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PRIMEIRA PARTE
1
Cf, Bernal, J. D.: Science in History, Londres, 1957.
sociedade, ao considerar, na relação indivíduo-sociedade, esta como variável
independente mas o indivíduo como variável dependente, encontramos em
Aristóteles uma concepção contrária: o indivíduo é encarado como fonte de todas as
estruturas sociais, pois nele pré-existem todas as tendências correspondentes. A
solução aristotélica é, por isso, «individualista» (sem pretendermos atribuir à
antiguidade clássica um «individualismo» no sentido característico da idade
moderna e contemporânea).
Com isto já fica dito que só encontramos respostas «individualistas»
propriamente ditas na idade moderna, ou seja, nas primeiras fases do
desenvolvimento capitalista. Também sob a influência da tradição cristã (a qual, por
seu turno, sofre modificações conforme as transformações sociais) se desenvolve o
individualismo, na medida em que se atribui a priori a cada um a capacidade de
decidir livre e racionalmente («livre arbítrio»). É evidente a concordância desta tese
com a natureza do modo de produção capitalista (cf. a este respeito também 3.2).
Como consequência, encontramos nas teorizações da filosofia e da economia
política do capitalismo ascendente uma tendência centrada no indivíduo, como o era
em Aristóteles. Sobretudo no que respeita à nossa questão, ela exprime-se na
busca de «forças motrizes» dos indivíduos, às quais estaria subordinado o
aparecimento e a estruturação interna de sociedades, estados e sistemas
económicos. É assim que Thomas Hobbes, no seu Leviatã (1651), vê essa força
motriz na ambição do poder, Adam Smith, um dos fundadores da economia política
burguesa, considera a «simpatia» e a procura por cada um dos seus próprios
interesses (no seu Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações,
1776) «as» forças motrizes da vida social e económica, e Jeremy Bentham, na
Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação («Introduction to the Principles
of Morals and Legislation»), de 1789, pensou ter encontrado na busca da «utilidade»
ou do «prazer» a principal força motriz da vida humana Voltaremos a esta temática,
com intenções polêmicas, no cap. 5.
Por outro lado, na idade moderna também se encontra o «sociocentrismo» de
Platão em concepções segundo as quais a unidade social, de ordem superior ao
indivíduo, é interpretada como um «organismo». (A imagem do organismo já é
utilizada por Platão.) O facto de Shakespeare, no seu Coriolano, se ter servido da
fábula «O Corpo e os Membros», atribuída a Menénio Agripa e que este teria
utilizado para convencer os plebeus romanos revoltados a voltarem para Roma,
indica a vivacidade duma tal ideia na sua época. O modelo do organismo aplicado
às relações entre o indivíduo e a sociedade foi defendido nos tempos modernos,
entre outros, por Niccolo Machiavelli (1469-1527), ligado a uma espécie de teoria
das «élites»-massas, bem como por Giambattista Vico (obra principal: Princípios
duma Nova Ciência em torno da Natureza Comum das Nações, «Principi di una
Scienzia nuova d'intorno alla comune Natura delle Nazioni», 1725) e por Pierre
Joseph Proudhon (Ideia Geral da Revolução, «Idée générale de la Révolution»,
1851). Tal concepção assume uma forma especial no romantismo alemão, da qual,
porém, voltaremos a falar de forma mais sistematizada.
Se tomarmos os nomes e os anos citados (de forma muitíssimo incompleta)
na sua ordem cronológica, chegamos entretanto à segunda metade do século XIX,
isto é, à época em que a psicologia se forma como disciplina independente e a partir
da qual também se pode agora falar dos primórdios da psicologia social. Estes seus
primeiros passos estão, contudo, menos orientados para a psicologia e mais para
outras disciplinas, tais como a teoria do Estado e do Direito, a economia política, a
ética, etc. Isto deriva, sobretudo, do facto de a psicologia burguesa se desenvolver
primeiro apenas como psicologia individual — de acordo com o axioma do
individualismo — e, consequentemente, se ignorar o carácter social do
comportamento e vivência dos homens2.
Aliás, a psicologia em gestação — se bem que no seu começo de inspiração
materialista mecanicista — tem de ser acusada de (em concordância com a sua
posição de classe) ter omitido deliberadamente as bases filosóficas essenciais para
respostas férteis às suas questões, ou seja, as concepções de Marx e Engels. Que
o leitor volte de novo ao prefácio da 1.2 edição do nosso livro: as palavras que lhe
servem de lema contêm em embrião já alguns princípios que são e serão de
alcance extraordinário para um desenvolvimento positivo tanto da psicologia como
da sociologia a psicologia social pode ser tida como o elemento de ligação entre
ambas.
Não é por acaso que se desenvolvem concepções sociológicas e também
psicossociológicas justamente no século XIX e em especial na sua segunda metade
O século XIX é o apogeu da sociedade capitalista, e no seu último terço situa-se a
fase imperialista desta ordem social. O proletariado, devido ao crescimento
populacional proporcionado pelo desenvolvimento das forças produtivas (a
população europeia triplicou durante o século XIX), tornou-se um fenómeno de
massas. A contradição fundamental do capitalismo exacerbou-se visivelmente com
a aglomeração da mão-de-obra e o desenvolvimento da divisão do trabalho e da
especialização, enquanto os indivíduos produtores se «alienam» cada vez mais da
sua verdadeira condição de seres humanos3. Tal contradição aparece de forma cada
vez mais massiva como luta de classes entre a burguesia e o proletariado, sendo
prova disso as grandes insurreições e greves desse século. Em suma: os novos
fenómenos sociais já não podem passar despercebidos: eles vão cristalizar em
diversas teorias e concepções que, de um ou de outro modo, estão subordinadas às
necessidades da época.
Esta multiplicidade tem de ser agora examinada à luz do nosso critério
selectivo, a fim de que só possam ser incluídas na nossa exposição algumas das
mais importantes linhas mestras do desenvolvimento que então se inicia.
Julgamos poder distinguir três complexos que consideramos serem as raízes
da psicológia social burguesa. É-lhes própria uma versão específica da questão
geral da relação entre sociedade e indivíduo, bem como a forma de tratar sobretudo
2
Mais pormenores em Hiebsch, H.: A Importância da Imagem do Homem para a Teorização na
Psicologia (Die Bedeutung des Menschenbildes fur de Theoriebildung in der Psychologie), Probl. Erg.
Psychol, I, 1961.
3
Este tema será aprofundado no cap. 3.
determinado problema parcial da psicologia social e de o tentar solucionar de modo
diferente. Trata-se de questões que, ainda hoje e do ponto de vista marxista, são
actuais — embora de forma completamente diferente da assumida no passado.
Estas três raízes são, quanto a nós, a psicologia dos povos, que surge
sobretudo na Alemanha, a psicologia das massas, que aparece principalmente nos
países latinos (Itália, França) e as teorias do comportamento social como instinto, tal
como foram formuladas na Inglaterra e nos EUA no princípio do século XX. A nossa
atenção vai agora para estas três correntes.
4
Geiger, T.: As Massas e a sua Acção (Die Masse und ihre Aktion), Estugarda, 1936.
solução não-dialéctica do problema — exactamente como a absolutização
individualista.
Numa mistura singular, vamos encontrar ambas as respostas aparentemente
contraditórias numa só concepção, de um modo que especialmente demonstra o
carácter de classe da psicologia social burguesa, ou seja, na psicologia das massas
Mas, em última análise, esta pode ser entendida, no seu conjunto, mais como
representante duma absolutização «individualista».
5
Contido na edição Rowohlt do livro de J. Ortega y Gasset: 4 Rebelião das Massas (Der Aufstand
der Massen), Hamburgo, 1956, p. 142.
Estes quatro atributos não são outra coisa do que uma repetição da tese de
Le Bon sobre as massas, nomeadamente no estilo de verdades definitivas. Vamos
primeiro examiná-las quanto ao seu conteúdo real e apresentar dois argumentos
decisivos contra este tipo de psicologia das massas.
A psicologia das massas, desde Le Bon até Ortega y Gasset e ao autor do
verbete «enciclopédico» acabado de citar, utiliza um artifício lógico: ela estuda (mais
ou menos empiricamente; de modo exacto estes fenómenos da psicologia das
massas nunca foram investigados!) determinados estados, que efectivamente
ocorrem, de grupos humanos de pequeno ou grande volume. Como protótipo
pode-se considerar o exemplo do estado de pânico, frequentemente usado. De
improviso, porém, este estado passageiro é transformado em especificidade da
«massa» como figura social! Mas a «massa» como figura social — ao lado de
outras formas sociais — não existe; um tal conceito é absurdo, pois não lhe são
próprios quaisquer atributos além do estado passageiro e imposto do exterior
(exceptuando o grande número, que já pertence ao conceito geral de massa como
«multidão» ).
A psicologia das massas afirma que todos os atributos do estado das massas
surgiria em consequência de uma tal aglomeração de homens; que a «massa» seria
a causa, p. ex., da perda da racionalidade. Assim sendo, estes atributos não
deveriam manifestar-se no homem isolado. Mas isto de modo nenhum é o que se
passa. Se analisarmos as condições em que esses atributos em geral se
manifestam, verificamos que elas são as mesmas no indivíduo e numa multidão,
com a diferença de que nas massas, claro, elas se multiplicam e, mediante os
mecanismos de transmissão, contágio e outros, também podem apresentar-se
potenciadas. Exagerando: Um homem isolado, em determinada situação (p. ex.,
perigo) pode igualmente cair num «estado de massas», por exemplo, agindo sem
reflectir, cego às consequências e sob carga afectiva.
O estado de massas caracteriza-se em primeiro lugar pela perda da estrutura
grupal, isto é, pelo desaparecimento transitório de todas as características dum
grupo humano que criam o seu «potencial colectivo» (cf. cp. 7). É certo que todos os
grupos humanos possíveis podem cair num tal estado, mas, como hoje sabemos,
isso depende do seu grau de organização: assim, um colectivo bem estabilizado é
relativamente insensível a situações induzidas por massas, pois ele desenvolveu
modos de dominar essas eventualidades. Um grupo efémero, pelo contrário, p. ex.,
os espectadores duma sessão de cinema, está mais facilmente sujeito a tais
induções. Mas com certeza que também o número desempenha aqui o seu papel, a
saber, na medida em que nas formações maiores se podem desenvolver estruturas
menos sólidas.
Considerando tudo isto, torna-se evidente que nas proposições básicas da
psicologia das massas ainda se contém uma implicação que constitui o seu
conteúdo ideológico propriamente dito. É a tese segundo a qual «as massas» são
por natureza desordenadas, caóticas e também incapazes de criar, a partir de si
mesmas, uma ordem própria. (No cap. 3 exporemos o pano de fundo gnoseológico
desta tese.) Deste princípio segue-se que a «massa» carece necessariamente de
um «líder» (um «Führer»), o qual, vindo de fora, lhe confere então uma ordem. Por
seu lado, a teoria das «élites»-massas, assim constituída, desvenda bem demais o
seu carácter de classe no seio da sociedade capitalista: por «massas» não se visa
outra coisa senão a classe operária, à qual por claríssimas razões se pretende
negar a capacidade de dirigir a sociedade, o Estado e a economia; a «élite» é, por
conseguinte, a burguesia, a única que estaria em condições de o fazer. Este é o
sentido verdadeiro e profundo da psicologia das massas. Precisamente ela
evidencia a correcção da tese que colocámos no início deste capítulo: as correntes
da psicologia social burguesa estão em íntima relação com as necessidades da
dominação de classe capitalista.
Em resumo, pode dizer-se agora, sob o aspecto que tra tamos, que a
questão da relação entre o indivíduo e a sociedade, que consideramos fundamental
no pensamento psicossociológico, foi respondida na chamada psicologia das
massas em sentido individualista — no sentido duma absolutização da contradição
entre indivíduo e sociedade a favor do indivíduo. A proposição da psicologia das
massas referida em último lugar, com a sua consequência lógica, a teoria das
«élites»-massas, exprime-se assim na sua negação essencial para a psicologia
social marxista: grupos humanos, isto é, homens que trabalham uns com os outros
e vivem em conjunto são capazes por si próprios de se moldarem uma ordem. Nos
capítulos 7 a 9 documentaremos esta tese com factos.
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