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Introdução à psicologia social marxista

Hans Hiebsch & Manfred Vorwerg

PRIMEIRA PARTE

Desde que há homens que trabalham e vivem juntos, a partir do momento em


que eles se vêem obrigados a reflectir sobre a sua existência social, há
indubitavelmente pensamento «psicossociológico», como um aspecto de amplos
esforços intelectuais para compreender — e também moldar — a relação do homem
com as grandes estruturas sociais. Com o desenvolvimento da humanidade, este
pensamento encontra expressão em objectivações historicamente demonstráveis:
em instituições societárias e sociais, em mitos e lendas, em concepções filosóficas
— e, finalmente, também nas ciências particulares que a pouco e pouco se foram
constituindo.
Por muito longa que seja a história do pensamento psicossociológico, curta é
a história da psicologia social como disciplina relativamente autónoma dentro da
ciência psicológica. Se esta mal tem um século, aquela pouco mais tem que
cinquenta anos.
Na primeira parte da nossa Introdução indagamos das raízes do pensamento
psicossociológico, do objecto e tarefas actuais da psicologia social nas nossas
condições sociais — como se apresentam à luz da concepção científica do mundo
da classe operária, o materialismo dialéctico e histórico.

1. PARA A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA SOCIAL

1.1 Fundamentos e questões básicas

Até agora ainda não se escreveu nem a história da psicologia nem a da


psicologia social do ponto de vista do materialismo histórico. Não podemos
preencher aqui esta lacuna. Podemos apenas tentar esboçar o desenvolvimento da
psicologia social nalguns traços grosseiros mas que nos parecem importantes,
sobretudo na perspectiva de despertar e aprofundar a compreensão de problemas
actualmente prementes. Mas isto também quer dizer que, para nós, se trata
principalmente de uma história de problemas; examinar as relações complexas
entre certas correntes ou teses e as condições político-sociais no tempo da sua
génese exigiria um longo trabalho de investigação, especialmente histórico, que,
como se disse, ainda está por fazer.
No entanto, a nossa atenção dirigir-se-á de início justamente para a
generalidade dessas relações. O pensamento humano e os seus produtos, seja qual
for a forma sob que eles se apresentem, radicam sempre em necessidades
demonstráveis que, por seu lado, também são expressão de determinadas
situações históricas, sociais e políticas. Ele é expressão da actividade espiritual dos
homens, que em última instância remonta à actividade prática, à praxis social. A
história da ciência fornece inúmeras provas de como, por exemplo, as descobertas
científicas e as teorizações resultam das necessidades da produção material; o
mesmo se passa com as ideias no campo das ciências sociais, cuja conexão com o
estado de desenvolvimento das condições sociais é evidente1.
Naturalmente, a ciência não constitui apenas um reflexo passivo da base
social na cabeça dos homens. Na medida em que a ciência reflecte correctamente a
realidade e se insere como determinante na actividade dos indivíduos, ela torna-se
uma força activa e transformadora, que gera grandes modificações na vida de cada
um e da sociedade. Basta pensar nas mudanças revolucionárias provocadas no
mundo pela ciência do marxismo-leninismo! Na sociedade socialista, as ciências,
estruturadas sobre a base filosófica do materialismo dialéctico, tornam-se cada vez
mais uma força produtiva directa. Isto aplica-se igualmente às ciências sociais.
A função das ciências na moribunda sociedade capitalista imperialista é
oposta a esta sua função progressista. Aí, com o declínio desta ordem social, a
sociologia torna-se cada vez mais a sua apologética, tornando-se uma força
reaccionária que se vende aos interesses da classe dominante e procura manter o
status quo da dominação de classe.
Também a psicologia social burguesa, que surgiu como expressão de
necessidades sociais da sociedade capitalista, revela os aspectos assinalados: ela
pode ser entendida como reflexo das condições sociais e como apologética da
dominação de classe burguesa — serva que atende as necessidades desta. Por
outro lado, na sociedade socialista e entre os seus representantes progressistas dos
países capitalistas, ela tornou-se hoje uma ciência activa, transformadora da
realidade.
Vamos examinar estas conexões. Procederemos do seguinte modo: como
critério para a selecção das linhas de desenvolvimento na história do problema,
utilizaremos o da importância que estas tiveram para a solução de algumas
questões básicas da psicologia social, independentemente do facto de o problema
posto por ela ter sido ou não correctamente resolvido. Como aspecto da
investigação escolhe-se a relação entre o indivíduo e a sociedade, por duas razões:
primeiro, porque esta relação (encaramo-la, do ponto de vista
filosófico-gnoseológico, como uma relação entre ser e consciência) é realmente uma
preocupação básica do pensamento sociológico; segundo, porque na história desta
problemática aquela questão até agora tem sido sempre levantada — é verdade que
de maneira especial, ou seja, sob a forma da questão do primado ou da primazia do
indivíduo ou da sociedade — e respondida deste ou daquele modo, conforme a
situação social. Reconheceremos até que ponto a própria questão já era mal posta
e que, por consequência, as soluções apresentadas também tinham de seguir
caminhos errados. Mas precisamente isto pode servir-nos de fio condutor para uma
questão mais produtiva e para uma melhor solução.
Já na filosofia da antiguidade clássica, na oposição entre Platão e Aristóteles,
aparecem respostas contraditórias a essa questão. Enquanto Platão nos diálogos O
Estado (Politeia) e As Leis (Nomoi) toma uma posição «colectivista» centrada na

1
Cf, Bernal, J. D.: Science in History, Londres, 1957.
sociedade, ao considerar, na relação indivíduo-sociedade, esta como variável
independente mas o indivíduo como variável dependente, encontramos em
Aristóteles uma concepção contrária: o indivíduo é encarado como fonte de todas as
estruturas sociais, pois nele pré-existem todas as tendências correspondentes. A
solução aristotélica é, por isso, «individualista» (sem pretendermos atribuir à
antiguidade clássica um «individualismo» no sentido característico da idade
moderna e contemporânea).
Com isto já fica dito que só encontramos respostas «individualistas»
propriamente ditas na idade moderna, ou seja, nas primeiras fases do
desenvolvimento capitalista. Também sob a influência da tradição cristã (a qual, por
seu turno, sofre modificações conforme as transformações sociais) se desenvolve o
individualismo, na medida em que se atribui a priori a cada um a capacidade de
decidir livre e racionalmente («livre arbítrio»). É evidente a concordância desta tese
com a natureza do modo de produção capitalista (cf. a este respeito também 3.2).
Como consequência, encontramos nas teorizações da filosofia e da economia
política do capitalismo ascendente uma tendência centrada no indivíduo, como o era
em Aristóteles. Sobretudo no que respeita à nossa questão, ela exprime-se na
busca de «forças motrizes» dos indivíduos, às quais estaria subordinado o
aparecimento e a estruturação interna de sociedades, estados e sistemas
económicos. É assim que Thomas Hobbes, no seu Leviatã (1651), vê essa força
motriz na ambição do poder, Adam Smith, um dos fundadores da economia política
burguesa, considera a «simpatia» e a procura por cada um dos seus próprios
interesses (no seu Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações,
1776) «as» forças motrizes da vida social e económica, e Jeremy Bentham, na
Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação («Introduction to the Principles
of Morals and Legislation»), de 1789, pensou ter encontrado na busca da «utilidade»
ou do «prazer» a principal força motriz da vida humana Voltaremos a esta temática,
com intenções polêmicas, no cap. 5.
Por outro lado, na idade moderna também se encontra o «sociocentrismo» de
Platão em concepções segundo as quais a unidade social, de ordem superior ao
indivíduo, é interpretada como um «organismo». (A imagem do organismo já é
utilizada por Platão.) O facto de Shakespeare, no seu Coriolano, se ter servido da
fábula «O Corpo e os Membros», atribuída a Menénio Agripa e que este teria
utilizado para convencer os plebeus romanos revoltados a voltarem para Roma,
indica a vivacidade duma tal ideia na sua época. O modelo do organismo aplicado
às relações entre o indivíduo e a sociedade foi defendido nos tempos modernos,
entre outros, por Niccolo Machiavelli (1469-1527), ligado a uma espécie de teoria
das «élites»-massas, bem como por Giambattista Vico (obra principal: Princípios
duma Nova Ciência em torno da Natureza Comum das Nações, «Principi di una
Scienzia nuova d'intorno alla comune Natura delle Nazioni», 1725) e por Pierre
Joseph Proudhon (Ideia Geral da Revolução, «Idée générale de la Révolution»,
1851). Tal concepção assume uma forma especial no romantismo alemão, da qual,
porém, voltaremos a falar de forma mais sistematizada.
Se tomarmos os nomes e os anos citados (de forma muitíssimo incompleta)
na sua ordem cronológica, chegamos entretanto à segunda metade do século XIX,
isto é, à época em que a psicologia se forma como disciplina independente e a partir
da qual também se pode agora falar dos primórdios da psicologia social. Estes seus
primeiros passos estão, contudo, menos orientados para a psicologia e mais para
outras disciplinas, tais como a teoria do Estado e do Direito, a economia política, a
ética, etc. Isto deriva, sobretudo, do facto de a psicologia burguesa se desenvolver
primeiro apenas como psicologia individual — de acordo com o axioma do
individualismo — e, consequentemente, se ignorar o carácter social do
comportamento e vivência dos homens2.
Aliás, a psicologia em gestação — se bem que no seu começo de inspiração
materialista mecanicista — tem de ser acusada de (em concordância com a sua
posição de classe) ter omitido deliberadamente as bases filosóficas essenciais para
respostas férteis às suas questões, ou seja, as concepções de Marx e Engels. Que
o leitor volte de novo ao prefácio da 1.2 edição do nosso livro: as palavras que lhe
servem de lema contêm em embrião já alguns princípios que são e serão de
alcance extraordinário para um desenvolvimento positivo tanto da psicologia como
da sociologia a psicologia social pode ser tida como o elemento de ligação entre
ambas.
Não é por acaso que se desenvolvem concepções sociológicas e também
psicossociológicas justamente no século XIX e em especial na sua segunda metade
O século XIX é o apogeu da sociedade capitalista, e no seu último terço situa-se a
fase imperialista desta ordem social. O proletariado, devido ao crescimento
populacional proporcionado pelo desenvolvimento das forças produtivas (a
população europeia triplicou durante o século XIX), tornou-se um fenómeno de
massas. A contradição fundamental do capitalismo exacerbou-se visivelmente com
a aglomeração da mão-de-obra e o desenvolvimento da divisão do trabalho e da
especialização, enquanto os indivíduos produtores se «alienam» cada vez mais da
sua verdadeira condição de seres humanos3. Tal contradição aparece de forma cada
vez mais massiva como luta de classes entre a burguesia e o proletariado, sendo
prova disso as grandes insurreições e greves desse século. Em suma: os novos
fenómenos sociais já não podem passar despercebidos: eles vão cristalizar em
diversas teorias e concepções que, de um ou de outro modo, estão subordinadas às
necessidades da época.
Esta multiplicidade tem de ser agora examinada à luz do nosso critério
selectivo, a fim de que só possam ser incluídas na nossa exposição algumas das
mais importantes linhas mestras do desenvolvimento que então se inicia.
Julgamos poder distinguir três complexos que consideramos serem as raízes
da psicológia social burguesa. É-lhes própria uma versão específica da questão
geral da relação entre sociedade e indivíduo, bem como a forma de tratar sobretudo

2
Mais pormenores em Hiebsch, H.: A Importância da Imagem do Homem para a Teorização na
Psicologia (Die Bedeutung des Menschenbildes fur de Theoriebildung in der Psychologie), Probl. Erg.
Psychol, I, 1961.
3
Este tema será aprofundado no cap. 3.
determinado problema parcial da psicologia social e de o tentar solucionar de modo
diferente. Trata-se de questões que, ainda hoje e do ponto de vista marxista, são
actuais — embora de forma completamente diferente da assumida no passado.
Estas três raízes são, quanto a nós, a psicologia dos povos, que surge
sobretudo na Alemanha, a psicologia das massas, que aparece principalmente nos
países latinos (Itália, França) e as teorias do comportamento social como instinto, tal
como foram formuladas na Inglaterra e nos EUA no princípio do século XX. A nossa
atenção vai agora para estas três correntes.

1.2 Psicologia dos povos

Independentemente do modo como este ou aquele dos seus representantes


tenha entendido o problema básico da psicologia dos povos, este pode resumir-se
na seguinte tese: existe algo como uma alma supra-individual e a totalidade
supra-individual a que essa alma está subordinada é o povo, a nação. A alma, o
espírito do indivíduo constitui a parte subalterna, ou participa na alma do povo
Deve-se reter, em primeiro lugar, o seguinte: é evidente tratar-se, nesta
concepção, de uma absolutização da contradição entre o indivíduo e o social a favor
da sociedade, isto é, de uma forma especial do «colectivismo». Compreende-se que
tal absolutização incida sobre o «povo», se tivermos em conta o facto de as nações
se formarem nos séculos XVIII e XIX sob a acção da lei do desenvolvimento da
sociedade capitalista; o povo é então descoberto como um facto social sui generis.
Aqui também é inconfundível a influência da Revolução Francesa. Que isto se
manifeste com tanta clareza especialmente na Alemanha também se explica,
decerto, pelo facto de, após as guerras de libertação, a ardente aspiração do povo
alemão a uma nação unificada, traída pelos senhores feudais, se ter
consubstanciado nessa forma ideológica.
A ideia de uma «alma do povo» é, porém, uma variante do idealismo
objectivo; não é por acaso que a psicologia dos povos se baseia, entre outras, na
teoria hegeliana do «espírito objectivo».
Com isto aludimos já a algumas das raízes histórico-ideológicas. Uma delas
é, pois, Hegel; outra terá de procurar-se no movimento do romantismo alemão, onde
se encontra tanto a tese idealista do «supra-individual» como a relacionação com o
povo, preparada, p. ex., por Herder (Vozes dos Povos em Canções, «Stimmen der
Völker in Liedern», 1773; Ideias para uma Filosofia da História da Humanidade,
«Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit», 1784-1791), defendida por
Wilhelm von Humboldt, em especial na sua obra de filosofia linguística Acerca da
Diversidade da Estrutura da Linguagem Humana e da sua Influência sobre o
Desenvolvimento Espiritual do Género Humano (Uber die Verschiedenheit des
menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwicklung des
Menschengeschlechts), de 1836. Neste último autor, a concepção
romântico-idealista transparece no seu conceito da «forma interior da linguagem».
Porém, só em 1860 o nome e o conceito de «psicologia dos povos» se
tornaram um programa científico. M. Lazarus e H. Steinthal, vindos da linguística e
da mitologia e até certo ponto ligados à psicologia de Herbart, publicaram no
primeiro volume da recém-aparecida «Revista de Psicologia dos Povos e
Linguística» as suas Ideias Preliminares sobre a Psicologia dos Povos (Einleitenden
Gedanken über Völkerpsychologie) A tarefa da psicologia dos povos é aí
programaticamente formulada assim: «identificar psicologicamente a essência do
espírito do povo e a sua acção, desvendar as leis segundo as quais se processa a
actividade espiritual dum povo (...) e as razões tanto do aparecimento como do
desenvolvimento e por último do declínio das especificidades dum povo». Acerca da
relação entre indivíduo e comunidade também se diz aí: «A psicologia ensina que o
homem é inteiramente e por natureza social, isto é, está determinado para a vida
social, porque só em relação com os seus semelhantes pode ser e realizar o que
deve, pode ser e agir do modo para que, pela sua própria essência, está
determinado a ser e a agir».
O programa de Lazarus e de Steinthal ficou entretanto programa; não se lhe
seguiram investigações empíricas. Uma ampla colecção de materiais sobre o tema
da psicologia dos povos foi-nos proporcionada pelo «pai da psicologia», Wilhelm
Wundt, passados mais de quarenta anos. Mas já em 1863 ele publicara, sob a
impressão do programa concebido por Lazarus e Steinthal, como ele próprio afirma,
na primeira edição do seu livro Lições sobre a Alma Humana e Animal (Vorlesungen
über die Menschen und Tierseele) o seu projecto da psicologia dos povos. Se
compararmos o esquema aí traçado com o projecto realizado muito mais tarde
(depois de 1900), torna-se evidente que também Wundt não conseguiu integrar
numa teoria psicológica satisfatória os rudimentos teóricos altamente confusos da
psicologia dos povos. Na verdade, o próprio Wundt não pode ser considerado um
representante típico da tese do «psiquismo supra-individual»; o facto de a psicologia
dos povos, apesar de alguns começos, ter adormecido suavemente depois de
Wundt é revelador da esterilidade da absolutização «colectivista».
A ideia do «psiquismo supra-individual», do «espírito do povo ou do grupo»
ou da «alma do espírito do povo» (ou qualquer outra sua designação) continua no
entanto, de uma forma ou de outra, a actuar até hoje. Raras vezes na acepção que
lhe deu o sociólogo T. Geiger4, que tomou este conceito num sentido substancial,
mais funcional mas não menos obscuro da tese segundo a qual o todo é mais do
que a soma das suas partes. Sabemos hoje que uma totalidade é, por um lado, a
soma das suas partes, se incluirmos as regras da sua articulação como «parte» na
soma, mas também que, por outro lado, ela é ao mesmo tempo de facto
funcionalmente mais que isso, porque (em consequência das regras de conexão)
nela se pode estabelecer uma ordem espacial-temporal (o que naturalmente não é
possível a uma «parte» isolada e só por si). Em suma: a relação entre um todo e as
suas partes — quer seja concebida como relação e problema psíquico individual,
biológico ou psicossocial — só pode ser compreendida e solucionada de modo
dialéctico. E a absolutização, tal como ela se nos depara na interpretação
«colectivista» da relação entre sociedade e indivíduo é, por conseguinte, uma

4
Geiger, T.: As Massas e a sua Acção (Die Masse und ihre Aktion), Estugarda, 1936.
solução não-dialéctica do problema — exactamente como a absolutização
individualista.
Numa mistura singular, vamos encontrar ambas as respostas aparentemente
contraditórias numa só concepção, de um modo que especialmente demonstra o
carácter de classe da psicologia social burguesa, ou seja, na psicologia das massas
Mas, em última análise, esta pode ser entendida, no seu conjunto, mais como
representante duma absolutização «individualista».

1.3 Psicologia das massas

A psicologia das massas propõe-se estudar um fenómeno social a que até


então não se atendera, justamente as chamadas massas. Não pode haver qualquer
dúvida sobre o que se entende por massas: trata-se da classe operária, que se
tornara realmente um fenómeno de massas e que, na primeira metade do século
XIX, recorre a acções espontâneas contra os seus verdugos e opressores, se
organiza cada vez melhor e, sob a influência dos partidos marxistas, inicia em
seguida, de forma organizada, a sua luta por melhores condições económicas e
políticas de vida. Era este o «fenómeno novo», assustador para os burgueses e o
seu pensamento, que tinha de ser dominado de qualquer maneira. Mas como?
Em 1890 aparece a obra As Leis da Imitação (Les lois de l’imitation) de
Gabriel Tarde. De certo modo, ela pode ser considerada precursora da psicologia
das massas, apesar de não lhe ser expressamente dedicada. Os acontecimentos
que se desenrolam entre os homens, no sentido de inter-relações, estão
subordinados, segundo Tarde, à imitação, baseada num instinto correspondente. Ao
analisar as diversas espécies de fenómenos condicionados pela imitação,
deparou-se a Tarde a dificuldade de estes não poderem ser explicados cabalmente
por meio das hipóteses intelectuais de que se servia a psicologia académica. A sua
atenção passou, por consequência, a incidir mais sobre o elemento afectivo (ou
seja, não-racional) do comportamento social dos homens, até aí desprezado.
Também aqui é evidente a influência da filosofia irracionalista que surgiu na época
do imperialismo como filosofia de classe da burguesia. Dois elementos do trabalho
de Tarde influenciaram os seus contemporâneos Scipio Sighele, na Itália, e Gustave
Le Bon, em França: a ideia da imitação e sugestão, assim como o irracionalismo na
explicação do comportamento social.
Cinco anos depois de As Leis da Imitação de Tarde apareceu o livro 4
Multidão Delinquente (La folla delinquente) da autoria de Sighele, mais tarde
publicado em alemão com o título de Psicologia da Rebelião e dos Crimes das
Massas (Psychologie des Aufstands und der Massenverbrechen) e no mesmo ano A
Psicologia das Multidões (Psychologie des Foules) de Le Bon, a obra de maior
influência mas inteiramente eclecticista da psicologia das massas. O teórico do
direito penal, Sighele, interessou-se pelas raízes de crimes que podem surgir em
situações de rebelião Vê essas raízes numa dinâmica irracional da acção, que
irrompe precisamente em situações de massas, porque o comando consciente e
racional do comportamento teria necessariamente de se perder. Passa-se portanto
uma espécie de «acto sob afecto», para o qual se tinham de reconhecer
circunstâncias atenuantes, do ponto de vista do direito penal. Sighele conseguiu
efectivamente a inclusão de um parágrafo correspondente no código penal italiano.
Le Bon integra as bases irracionalistas num panfleto contra as massas:
contrapõe-lhes os homens da «élite». Se é verdade que ele, nos seus exemplos,
admite para todos os homens a possibilidade de ganharem características das
massas, desde que eles se aglomerem num certo número e em determinadas
condições («A reunião de alguns indivíduos forma uma massa; e mesmo que se
tratasse de sábios eminentes, eles tomariam, para todas as coisas que estão fora
da sua especialidade, as características das massas. O poder de observação e o
espírito crítico de cada um deles reduz-se imediatamente»), transparece no entanto
em todos os seus exemplos um modelo: o da classe operária revolucionária, que
ainda durante a vida de Le Bon tinha demonstrado o seu poder na Comuna de
Paris.
Quais são então para Le Bon as características das massas?
Utilizamos para a sua descrição a caracterização feita por Ernesto Grassi, na
qualidade de editor responsável da Enciclopédia Alemã Rowohlt (Rowohlts
Deutsche Enzyklopädie), para o verbete «massa»5 — devendo observar-se que o
autor quer proclamar uma verdade universal e definitiva, e não apenas fazer
referências históricas:

«Pois chegámos ao conhecimento de que o indivíduo, quando em


determinadas situações históricas (...) se torna parte duma massa, cai sob a
alçada de certas paixões. O instintivo, o irracional passa a predominar. São
atributos típicos dos homens em massas:
1. Anonimidade. O modo de comportamento individual desvanece-se
sob a alçada das paixões que a todos tomam e é substituído por uma forma
de reagir impulsiva e instintiva.
2. Determinabilidade-pelos afectos. Afecto e instinto substituem a
razão. Assim se explica a grande tendência das massas, para serem
influenciadas pois não agem baseadas na reflexão e compreensão, sendo
guiadas apenas por emoções.
3. Redução da inteligência. A inteligência das massas cai abaixo do
nível dos indivíduos que as compõem. Quem quiser assegurar-se o aplauso
das massas, orientar-se-á pelo limiar inferior da inteligência e renunciará a
uma argumentação lógica (...).
4. Redução da responsabilidade pessoal. Na medida em que o
indivíduo renuncia ao domínio das suas próprias paixões, ele perde o
sentimento de responsabilidade e pode ser levado a praticar actos que,
sozinho perante a opinião pública, nunca cometeria.»

5
Contido na edição Rowohlt do livro de J. Ortega y Gasset: 4 Rebelião das Massas (Der Aufstand
der Massen), Hamburgo, 1956, p. 142.
Estes quatro atributos não são outra coisa do que uma repetição da tese de
Le Bon sobre as massas, nomeadamente no estilo de verdades definitivas. Vamos
primeiro examiná-las quanto ao seu conteúdo real e apresentar dois argumentos
decisivos contra este tipo de psicologia das massas.
A psicologia das massas, desde Le Bon até Ortega y Gasset e ao autor do
verbete «enciclopédico» acabado de citar, utiliza um artifício lógico: ela estuda (mais
ou menos empiricamente; de modo exacto estes fenómenos da psicologia das
massas nunca foram investigados!) determinados estados, que efectivamente
ocorrem, de grupos humanos de pequeno ou grande volume. Como protótipo
pode-se considerar o exemplo do estado de pânico, frequentemente usado. De
improviso, porém, este estado passageiro é transformado em especificidade da
«massa» como figura social! Mas a «massa» como figura social — ao lado de
outras formas sociais — não existe; um tal conceito é absurdo, pois não lhe são
próprios quaisquer atributos além do estado passageiro e imposto do exterior
(exceptuando o grande número, que já pertence ao conceito geral de massa como
«multidão» ).
A psicologia das massas afirma que todos os atributos do estado das massas
surgiria em consequência de uma tal aglomeração de homens; que a «massa» seria
a causa, p. ex., da perda da racionalidade. Assim sendo, estes atributos não
deveriam manifestar-se no homem isolado. Mas isto de modo nenhum é o que se
passa. Se analisarmos as condições em que esses atributos em geral se
manifestam, verificamos que elas são as mesmas no indivíduo e numa multidão,
com a diferença de que nas massas, claro, elas se multiplicam e, mediante os
mecanismos de transmissão, contágio e outros, também podem apresentar-se
potenciadas. Exagerando: Um homem isolado, em determinada situação (p. ex.,
perigo) pode igualmente cair num «estado de massas», por exemplo, agindo sem
reflectir, cego às consequências e sob carga afectiva.
O estado de massas caracteriza-se em primeiro lugar pela perda da estrutura
grupal, isto é, pelo desaparecimento transitório de todas as características dum
grupo humano que criam o seu «potencial colectivo» (cf. cp. 7). É certo que todos os
grupos humanos possíveis podem cair num tal estado, mas, como hoje sabemos,
isso depende do seu grau de organização: assim, um colectivo bem estabilizado é
relativamente insensível a situações induzidas por massas, pois ele desenvolveu
modos de dominar essas eventualidades. Um grupo efémero, pelo contrário, p. ex.,
os espectadores duma sessão de cinema, está mais facilmente sujeito a tais
induções. Mas com certeza que também o número desempenha aqui o seu papel, a
saber, na medida em que nas formações maiores se podem desenvolver estruturas
menos sólidas.
Considerando tudo isto, torna-se evidente que nas proposições básicas da
psicologia das massas ainda se contém uma implicação que constitui o seu
conteúdo ideológico propriamente dito. É a tese segundo a qual «as massas» são
por natureza desordenadas, caóticas e também incapazes de criar, a partir de si
mesmas, uma ordem própria. (No cap. 3 exporemos o pano de fundo gnoseológico
desta tese.) Deste princípio segue-se que a «massa» carece necessariamente de
um «líder» (um «Führer»), o qual, vindo de fora, lhe confere então uma ordem. Por
seu lado, a teoria das «élites»-massas, assim constituída, desvenda bem demais o
seu carácter de classe no seio da sociedade capitalista: por «massas» não se visa
outra coisa senão a classe operária, à qual por claríssimas razões se pretende
negar a capacidade de dirigir a sociedade, o Estado e a economia; a «élite» é, por
conseguinte, a burguesia, a única que estaria em condições de o fazer. Este é o
sentido verdadeiro e profundo da psicologia das massas. Precisamente ela
evidencia a correcção da tese que colocámos no início deste capítulo: as correntes
da psicologia social burguesa estão em íntima relação com as necessidades da
dominação de classe capitalista.
Em resumo, pode dizer-se agora, sob o aspecto que tra tamos, que a
questão da relação entre o indivíduo e a sociedade, que consideramos fundamental
no pensamento psicossociológico, foi respondida na chamada psicologia das
massas em sentido individualista — no sentido duma absolutização da contradição
entre indivíduo e sociedade a favor do indivíduo. A proposição da psicologia das
massas referida em último lugar, com a sua consequência lógica, a teoria das
«élites»-massas, exprime-se assim na sua negação essencial para a psicologia
social marxista: grupos humanos, isto é, homens que trabalham uns com os outros
e vivem em conjunto são capazes por si próprios de se moldarem uma ordem. Nos
capítulos 7 a 9 documentaremos esta tese com factos.

1.4 Teorias do comportamento como instinto

Outra variante da solução «individualista» surge a seguir. Em 1908 publica-se


em Londres a Introdução à Psicologia Social (Introduction to Social Psychology) de
William McDougall, psicólogo que mais tarde ensinou nos EUA. Aí aparece
programaticamente o conceito de «psicologia social», antes só esporadicamente
utilizado; interessante é o facto de no mesmo ano ter aparecido em Nova Iorque um
livro do sociólogo E. A. Ross com o título de Psicologia Social (Social Psychology).
A «Introdução» de McDougall, que conheceu muitas edições e foi traduzida
em numerosas línguas, propunha-se a tarefa de investigar sistematicamente as
«forças motrizes» às quais está subordinado o comportamento dos homens, em
especial o seu comportamento social. Ele chamou-lhes «instincts» (instintos) e mais
tarde «propensities» (propensões, tendências). Nas suas palavras, elas são
«disposições psicofísicas», canais estabelecidos hereditariamente para a descarga
da energia nervosa. Eles têm uma parte aferente, que determina o modo como as
coisas são percepcionadas, uma parte central, graças à qual «experimentamos uma
estimulação emocional de qualidade particular na percepção de tais objectos», e
uma parte eferente que determina a forma como reagimos a estes objectos.
McDougall enumera cerca de uma dúzia de tais «instintos», mas revê depois
ocasionalmente a sua designação e o seu número.
Ocupar-nos-emos mais extensamente da problemática dos instintos no
capítulo 5; para começar, basta-nos aqui a verificação de que se vê nas forças
instintivas inatas a verdadeira e última causa do comportamento social e também
das formações sociais dos homens. Como ainda demonstraremos, estas ideias
revelaram-se um caminho errado; em antítese a elas, teremos de formular: o
comportamento social dos homens é aprendido, e as respectivas «forças motrizes»
são de natureza social — o que ainda provaremos em pormenor.
Resumindo, pode-se dizer agora: as três raízes da psicologia social
burguesa, anteriormente esboçadas de forma sucinta, contêm três enunciados
básicos, que, por princípio, são caminhos errados do pensamento psicossociológico;
nomeemo-los mais uma vez, para uma melhor visão de conjunto:
Na psicologia dos povos admite-se a existência substancial de uma «alma
supra-individual»; esta tese representa, como protótipo, a solução «colectivista» da
contradição entre indi. víduo e sociedade. A sua superação consiste na elucidação
da relação dialéctica entre indivíduo e sociedade, que, como veremos, foi
antecipada no materialismo histórico por Marx e Engels; naturalmente que ela
pressupõe a superação real da limitação burguesa do pensamento
psico-sociológico, a abolição da «alienação» entre indivíduo e sociedade (ct.
capítulo 3), isto é, a edificação da ordem socialista da sociedade.
A psicologia das massas afirma a incapacidade dos homens de se darem a si
próprios uma ordem social, e vê unicamente na «élite» (burguesa) a instância
constituinte dessa ordem; a negação desta tese é feita na prática pela
demonstração de que as massas revolucionárias do proletariado estão inteiramente
em condições de construir a sua sociedade liberta de exploração e opressão; na
teoria — e isto é importante para a psicologia social marxista — essa negação
faz-se através do reconhecimento do facto de que «ordem», «estrutura» são
atributos essenciais imanentes a agrupamentos humanos.
A teoria psicossociológica dos instintos diz que o motivo do comportamento
social propriamente dito e das suas particularidades, bem como da formação da
sociedade, são tendências biológicas inatas do indivíduo. Pelo contrário, para uma
psicologia social marxista é evidente que o comportamento social é aprendido e que
a aprendizagem social se realiza sob as condições da ordem social em que vivem e
se desenvolvem os indivíduos. (Aprofundaremos este tema no capítulo 4.)

1.5 Situação actual na psicologia social

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