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1. Introdução
O objetivo da comunicação é explorar e divulgar a tese evaldiana de que “a filosofia é uma
forma de arte” e mostrar como esta tese deriva de ideias bergsonianas. Mais especificamen-
te, de uma “distorção” do conceito de “intuição filosófica” de Henri Bergson, desenvolvido
sobretudo na Conferência homônima, intitulada de “A Intuição Filosófica” (1911). Como pre-
tendemos fazer isso? Primeiro, é preciso remontar a argumentação (pelo menos parcialmen-
te) de Evaldo Coutinho conforme ela aparece em O espaço da arquitetura (1970), capítulo
2, “A espacialidade permanente”, subcapítulo 2, “A intuição filosófica e a intuição artística”,
e eventualmente em outros escritos auxiliares. Segundo, é preciso desenvolver a distinção
bergsoniana entre inteligência e intuição como dois “movimentos inversos do espírito”, so-
bretudo do modo como ela aparece em A evolução criadora (1907); depois disso, será possí-
vel mostrar que na base do pensamento de Evaldo Coutinho existe um “intuicionismo” dis-
torcido a seu modo. O que se pode esperar da análise provisória deste diálogo? Do ponto de
vista da interpretação do autor: a) articular internamente e explorar possibilidades de leitura
do conceito evaldiano de filosofia como arte; b) recompor parte do quadro de influências do
filósofo brasileiro, rastreando pontos de contato efetivo entre ele e outros autores; do ponto
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Mas antes, um breve parênteses: quem é Evaldo Coutinho? Evaldo Coutinho foi um filósofo
da cidade do Recife, nascido em 1911, falecido em 2007. Escreveu nove obras lançadas pela
editora Perspectiva, publicadas entre 1971-1998, em que se destacam a criação de um sistema
filosófico, o “solipsismo de inclusão”, uma teoria estética, que poderia ser chamada de “es-
tética da autonomia”, e uma quintologia literária, “matéria-prima” de seu sistema filosófico
– chamada de A Ordem Fisionômica. Apesar de praticamente desconhecido do público e da
academia, os poucos conhecedores de sua obra são unânimes: suas ideias, hoje inexploradas,
têm potencial de impactar seriamente as categorias tradicionais da critica e historiografia
da filosofia brasileira, quando forem redescobertas, o que deverá acontecer (se acontecer)
inevitavelmente em forma de revival de um extemporâneo. No entanto, desde pelo menos
o lançamento do filme documentário A composição do vazio (2001), é possível apontar para
uma mudança de cenário e uma renovação do interesse em torno de sua obra.
Três observações. Primeira, o “princípio de autonomia da arte” evaldiano se diz em três senti-
dos, conjuntura que pode ser graficamente representada por três círculos concêntricos que se
contém um ao outro, do maior para o menor, que também são como espiras circulares de um
espiral. Em O espaço da arquitetura, é textual: “A consideração da autonomia (...) no plano
estético se gradua à maneira de círculos concêntricos: a autonomia da arte, a autonomia do
gênero artístico e, com diâmetro ainda menor, a autonomia da obra de arte” (COUTINHO,
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1998, p. 15). Segunda observação, Evaldo Coutinho acredita estar sofisticando o “princípio da
autonomia da atividade artística” de Lionelo Venturi1, adicionando “mais duas outras autono-
mias: a do gênero artístico e a de cada obra de arte em particular”. Terceira e mais importante:
a autonomia da arte não é definida pelo Belo ou pela Beleza: “o belo é teoricamente secundá-
rio” (COUTINHO, 1993, p. 23). Em apoio a este raciocínio, ele diz em outro lugar2:
Com efeito, muitos autores definem a estética desse modo: a disciplina que aborda o pro-
blema do belo através da arte. Situo-me entre os que discordam. Posso escrever um ensaio
de estética atribuindo ao belo apenas um papel relativo: o de ter sido, efetivamente, um dos
ditames da estética do classicismo (COUTINHO, 1973).
Portanto, o verdadeiro “ponto de vista filosófico” da teoria, crítica, historiografia, bem como
da criação e fruição da arte, para Evaldo Coutinho, é o que ele chama em trecho supracitado
de “concepção própria” do artista, que veremos se trata da “intuição artística”. O belo é aci-
dental; a intuição é substancial. A autonomia da arte enquanto atividade espiritual livre sig-
nifica, positivamente e negativamente, que a comunicação da intuição realiza suas exigências
imanentes por meio de um conjunto próprio de princípios, regras e normas, que não se con-
fundem e que não podem ser afetadas por ingerências de atividades do espírito desenvolvidas
no sentido oposto ou alheio da atividade intuitiva, como por exemplo, o compromisso com
a resolução dos problemas da vida cotidiana (a arte autônoma e livre inclusive da presença
obrigatória de uma “mensagem” edificante ou pragmática), bem como das ingerências da
ciência positiva sobre a estética. A estética deve manter-se livre do “influxo, sempre danoso,
de concepções da ciência positiva sobre a filosofia da arte” (COUTINHO, 1998, p. 21). Nesse
sentido Evaldo Coutinho diz:
Ao passo que a ciência positiva se detêm sobre “constantes apreciáveis”, classificação e aná-
lise de fatos que se repetem, a estética se detêm sobre “fenômenos insulados”, intuições ou
concepções singulares e personalíssimas. Eis que na base do princípio de autonomia da arte
evaldiana, no ponto preciso em que a arte como atividade autônoma do espírito se distingue
1. Lionello Venturi (1885- 1961), crítico de arte italiano, escreveu a History of art criticism (1936).
2. Em contraste ao classicismo, Evaldo Coutinho (1991, p. 23) complementa ainda em outro lugar: “Na configu-
ração barroca, até o feio se legitima. O feio, o obscuro, o complexo”.
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das outras atividades não-intuitivas, entremostra-se, ainda que implicitamente, como pres-
suposto, a distinção bergsoniana entre “inteligência” e “intuição” como os “dois movimentos
inversos do espírito”.
Imaginemos pois um recipiente cheio de vapor em alta pressão e, aqui e ali, nas paredes
do vaso, uma fissura por onde o vapor escapa em jato. O vapor lançado no ar condensa-
-se quase que por inteiro em gotículas que voltam a cair, e essa condensação e essa queda
representam simplesmente a perda de algo, uma interrupção, um deficit. Mas uma pequena
parte do jato de vapor subsiste, não condensada, durante alguns instantes; esta se esforça
por reerguer as gotas que caem; consegue, no máximo, tornar a queda mais lenta. Assim, de
um imenso reservatório de vida devem lançar-se incessantemente jatos, cada um dos quais,
tornando a cair, é um mundo. A evolução das espécies vivas no interior desse mundo re-
presenta aquilo que subsiste da direção primitiva do jato original e de uma impulsão que se
prolonga em sentido inverso da materialidade (BERGSON, 2005, p. 268-269).
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tros e exteriores. É por isso que no cinema as imagens em movimento parecem “animadas”
ou “vivas”, mas não passam de uma sucessão de flagrantes “inertes” e “estanques” religados
posteriormente por um trabalho de intelecção:
Por outro lado, a intuição corresponde no plano das atividades espirituais, em diferentes graus
de precisão, à arte, à filosofia, e à mística. O “objetivo” principal do exercício livre da intuição
não é pragmático, está voltado para o espírito, não para a matéria. Não se trata de resolver os
problemas da nossa vida, mas de reconduzir-nos “para o interior mesmo da vida” (BERGSON,
2005, p. 191). “O conhecimento desinteressado do real” procede pela intensificação e dilatação
indefinida do objeto, por meio do esforço de imaginação, de introspecção ou espiritualidade,
na tentativa de instalar-se no interior mesmo do objeto, “por uma espécie de simpatia” (BER-
GSON, 2005, p. 192). Desde que “instinto é simpatia” (BERGSON, 2005, p. 191), Bergson pôde
definir a intuição, do ponto de vista das funções imanentes da vida, como “o instinto tornado
desinteressado, consciente de si mesmo” (BERGSON, 2005, p. 191). E acrescenta:
Que um esforço desse tipo não seja impossível, já o mostra a existência, no homem, de
uma faculdade estética ao lado da percepção normal. Nosso olho percebe os traços do ser
vivo, mas justapostos uns aos outros e não organizados entre si. Escapa-lhe a intenção da
vida, o movimento simples que corre através das linhas, que as liga umas as outras e lhes dá
uma significação. É essa intenção que o artista visa recuperar, recolocando-se no interior do
objeto por uma especie de simpatia, desfazendo, por um esforço de intuição, a barreira que
o espaço interpõe entre ele e o modelo. É verdade que essa intuição estética, como aliás a
percepção exterior, alcança apenas o individual. Mas podemos conceber uma investigação
orientada no mesmo sentido que a arte e que tomaria por objeto a vida em geral, assim
como a ciência física (BERGSON, 2005, p. 192).
Com efeito, no decurso da evolução das formas de vida, o impulso vital (élán vital), movimen-
to de diferenciação, não apagou os vestígios de intuição na inteligência, e de inteligência na
intuição. Deleuze (1999, p. 76) diz: “Daí haver uma auréola de instinto na inteligência, uma
nebulosa de inteligência no instinto, um quê de animado nas plantas, um quê de vegetativo
nos animais”. Disso decorrem duas noções para nossa comunicação: a) o exercício da arte e da
filosofia diz respeito à intuição, mas necessita das mediações da inteligência e da linguagem
para sua comunicação, embora não se defina por ela, e; b) o exercício da faculdade intuitiva
pode ser conduzido por um esforço voluntário e até “metodológico”. Como diz Deleuze (1999,
p. 7): “a intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa”, mas “é o
método do bergsonismo”. Deleuze chega a elencar cinco regras do método no melhor estilo
das Regulae cartesiana. E com o “método da intuição” ou a “intuição como método”, ainda
segundo Deleuze (1999, p. 8), Bergson contava “estabelecer a filosofia como disciplina abso-
lutamente ‘precisa’, tão precisa em seu domínio quanto a ciência no seu, tão prolongável e
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transmissível quanto a própria ciência”. E Bergson, ele mesmo diz: “Assim distinguimos ni-
tidamente a metafísica da ciência. Mas assim também lhes atribuímos um idêntico valor”. E
ainda nesse mesmo sentido:
Não haveria lugar para duas maneiras de conhecer, filosofia e ciência, caso a experiência não
se apresentasse a nós sob dois aspectos diferentes, de um lado sob a forma de fatos que
se justapõem a fatos, que se repetem aproximadamente, que se medem aproximadamente,
que se desdobram enfim no sentido da multiplicidade distinta e da espacialidade, do outro
sob a forma de uma penetração recíproca que é pura duração, refratária à lei e à medida
(BERGSON, 2006, p. 143).
Embora essa influência seja mais difícil de ser observada quanto ao conceito de “inteligên-
cia”, desde que nenhuma epistemologia é encontrável na ordem fisionômica – um caso raro
ou único de ontologia sem considerações positivas sobre as ciências – ela pode ser observada
quando o “pensamento comum” é conceituado de acordo com algo bem semelhante ao “mé-
todo cinematográfico da inteligência” de Bergson. Em A imagem autônoma (1972), encontra-
-se em várias passagens uma reflexão desenvolvida no seguinte sentido:
Sabe-se que o olhar humano atua, freqüentemente [sic], como se fora a objetiva, residindo
nele, por conseguinte, o exemplo do que seria a câmera do cinema. Sem dar-se conta do
evento, há um cineasta implícito no portador da visão (COUTINHO, 1996, p. XI).
A diferença mais visível é que Bergson explora muito mais o aspecto “artificial”, “mecânico”
e “ilusório” da metáfora do cinema, enquanto Evaldo Coutinho avança a curiosa concepção
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Em Evaldo Coutinho, teoria e crítica do cinema e do conhecimento se tocam, mas sem formar
uma epistemologia, o que há é uma certa noção sobre o funcionamento da “inteligência” e do
“pensamento” em geral, sugerindo talvez uma gnoseologia. Para Evaldo Coutinho, o aspecto
intelectual do cinema não se restringe ao funcionamento do mecanismo do cinematógrafo
registrar e exibir o movimento (note-se que o cinematógrafo que Bergson alude registra e
exibe as fitas no mesmo aparelho), mas se estende à forma de fruição das imagens puras (em
movimento, descoloridas e silenciosas), que é o subentendimento de uma imagem ausente
por meio de uma imagem presente, isto é, as imagens virtuais do cinema assim como as da
consciência cotidiana se encadeiam como em uma espécie de linguagem, daí o exercício de
fruição do cinema ser intelectual, do mesmo modo que a intelectualidade é uma espécie de
fruição cinematográfica. No cinema, o público é obrigado a perseguir o “liame lógico” entre a
imagem e seu sentido e, mais que isso, entre a imagem anterior e a posterior, para “remontar”
o sentido da sequência como sequência e não como posições isoladas. A diferença da “ima-
gem pura” do cinema para as “imagens verbais” da literatura é que a primeira tem o significa-
do translúcido, de entendimento imediato, a segunda é opaca, meramente evocativa:
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algo simples, infinitamente simples, tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca
conseguiu dizê-lo. E é por isso que falou por toda a sua vida. (…) Toda a complexidade de sua
doutrina, que pode ir ao infinito, não é portanto mais que a incomensurabilidade entre sua
intuição simples e os meios de que dispunha para exprimi-la. Qual é essa intuição? Se o filó-
sofo não pôde formulá-la, não seremos nós que o conseguiremos (BERGSON, 2006, p. 125).
Entretanto, e esta é a questão do escopo desta comunicação, Bergson parece nunca demarcar
claramente a distinção precisa entre a intuição filosófica e a intuição estética. De modo geral
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e até mesmo abstrato, elas poderiam ser distinguidas de acordo com os “dois movimentos
inversos do espírito”, isto é, diferenciadas “em graus” mas não “em natureza”. Desse modo, a
distinção entre a intuição do artista e a do filósofo se deve a uma diferença de “extensão”, di-
minuta no artista, ampla no filósofo (e talvez mais ampla ainda no caso da mística), mas não
diferença na “direção” ou no “sentido” do esforço consciente. Mas tal distinção ainda parece
um tanto quanto vaga e não chega a esclarecer a questão de se esta diferença de “extensão” ou
de “grau” diz respeito à amplitude do conteúdo ideativo da intuição estética ou filosófica ou
diz respeito aos meios materiais e formais com os quais cada um, filósofo e artista, dispõem
tradicionalmente para comunicar a sua intuição do mundo, ou ainda a ambos os fatores.
6. O desvio
Henri Bergson e Evaldo Coutinho têm a opinião de que a “intuição encontradiça na arte é do
mesmo gênero da que se encontra no sistema filosófico” (COUTINHO, 1998, p. 95). Mas não
há em Bergson o mesmo interesse de Evaldo Coutinho em assimilar completamente a filoso-
fia no âmbito artístico. Então Evaldo Coutinho, como não encontrando uma distinção clara
entre a intuição dos artistas e a intuição dos filósofos em Bergson, distorce o intuicionismo,
recusando-se a enxergar, como seria natural, que a intuição filosófica seja de algum modo
distinta da intuição estética, mesmo em graus, isto é, não acredita que a filosofia conserve
uma autonomia nem mesmo relativa diante da arte, pelo contrário a filosofia se subordina
completamente à arte. Então em O espaço da arquitetura, o filósofo dedica um subcapítulo
inteiro para revisitar a Conferência de Bergson, avançando o seguinte passo:
É na obra de arte que a intuição se efetiva, que o sentimento das coisas se mostra em bus-
ca de adesões, entendendo-se nesse explícito mister as artes propriamente ditas e mais os
sistemas filosóficos, que também são obras de arte, do mesmo modo que estas são também
filosofias (COUTINHO, 1998, p. 70).
Algumas observações. Por que os filósofos são artistas? Porque fazer filosofia diz respeito a
busca de comunicação da intuição por meio de obras, e é a arte que se define essencialmente
como a atividade em que o “sentimento das coisas se mostra em busca adesões”, de “univer-
sal solidariedade”, e nisso fazer filosofia se assemelha a fazer literatura, escultura, pintura,
arquitetura. Por que os artistas são filósofos? Porque fazer arte, qualquer gênero, supõe que o
autor possua uma “intuição do universo”, um “sentimento das coisas” tão cósmico, tão univer-
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sal, tão ubíquo, tão amplo quanto à intuição do filósofo. Em conclusão, ao que tudo indica,
Evaldo Coutinho suprime as diferenças de grau entre a intuição estética e a intuição filosó-
fica, une a arte e a filosofia. Na união de escopos do conceito de arte e de filosofia, à rigor, é a
filosofia que se torna uma das várias formas ou um dos gêneros autônomos de arte e não vice-
-versa. Acontece que os demais gêneros de arte não poderiam ser compreendidos sob o con-
ceito de filosofia, enquanto criação de um sistema filosófico por um filósofo. O filósofo não é
um pintor, e a tela à óleo não é um sistema filosófico, mas as telas “também são filosofias” na
medida em que são miniaturações de uma intuição do universo tão ubíqua quanto à filosó-
fica. Do outro lado, a filosofia sim pode ser subsumida no conceito de arte, e ser considerada
conjuntamente com a literatura, a pintura, ao cinema, como esforços conscientes, atividades
espirituais, cujo sentido é a comunicação da intuição. Nesse sentido, Evaldo Coutinho diz: “a
intuição do filósofo e a intuição do artista são a mesma intuição (…) pertencendo, dessarte, os
portadores de sentimento cósmico, a uma categoria única, é compreensível que uma comuni-
dade de adjetivações alie todos em um só título” (COUTINHO, 1998, p. 100). No vocabulário
evaldiano a “intuição estética” e a “intuição filosófica” tornam-se sinônimas funcionais, aten-
dendo a diversos nomes no decorrer da obra: intuição cósmica, ideação ubíqua, sentimento
das coisas, pensamento básico, concepção de mundo, intuição do universo, etc., que ele varia
e intercambia “por uma questão de estilo pessoal” (EVALDO, 1993).
7. Comunicação da intuição
Evaldo Coutinho aprofunda a questão bergsoniana da distinção de grau entre a intuição esté-
tica e filosófica. A intuição do filósofo e a intuição do artista são a mesma intuição, “apenas”
com a ressalva de que são “variáveis quanto ao modo de se fazerem discerníveis, à necessi-
dade, que tem cada um, de valer-se do muito ou do pouco (COUTINHO, 1998, p. 100). No
seguinte trecho o filósofo se demora na mesma problemática:
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O problema da comunicação da intuição – que ela não pode ser conhecida em seu original,
que ela deve usar os meios da inteligência e da linguagem para ser comunicada, que o espírito
de simplicidade se complica na letra, etc – está articulado na obra evaldiana em torno do con-
ceito de “acidentalidade” e seu correlativo “substancialidade”. A ideia é que do transcurso da
comunicação, da intuição do autor à recepção do público, acontecem “perdas”, como “chia-
dos”, “interferências”, “ruídos”, tecnicamente, uma acidentalidade, no conteúdo original da
mensagem. A fim de ser comunicada, a intuição precisa ser exteriorizada e como que “inscri-
ta” por sobre uma “matéria da arte”. A matéria da arte é como uma superfície de inscrição da
intuição. É no transcurso do “autor à matéria” e da “matéria ao público” que reside a acidenta-
lidade. Sendo assim, a acidentalidade é dupla: a acidentalidade da criação e a acidentalidade
da fruição estética. Há o que o autor quis dizer, o que ele disse efetivamente, e o que cada um
do público absorveu. A intuição não pode ser simplesmente transladada tal e qual do espí-
rito do artista para a matéria da arte. É preciso um trabalho de conversão da intuição para a
linguagem específica de cada arte de acordo com suas exigências respectivas e intrínsecas, de
acordo com o “campo formal” de cada matéria. Neste esforço de expressão, consiste a “criati-
vidade artística” ou “filosófica” (sinônimas funcionais no vocabulário evaldiano), e a carrei-
ra artística (e também a filosófica) representa os sucessivos esforços do artista (ou filósofo)
“vencer” a acidentalidade. Acontece que os demais artistas, devido a “escassez” intrínseca de
suas matérias nunca poderão vencer a acidentalidade da comunicação como os filósofos.
Um exemplo: a intuição de mundo de um pintor deve ser externada por via da cor e das for-
malidades intrínsecas que decorrem da natureza íntima da cor e sua manipulação, isto é, os
valores cromáticos ou o campo formal da matéria da cor; e então, a presença da intuição na
obra estará delimitada aos temas e subtemas admissíveis ou não pela linguagem específica da
matéria colorida. Sabe-se que nem tudo pode ser comunicado cromaticamente. E inclusive
é possível conceber que existam temas intrinsecamente anfigúricos ou irrepresentáveis por
meio da cor. Mas no caso da filosofia a “matéria da arte” do filósofo é o Ser em sua totalida-
de não havendo para a expressão da intuição temas ou elementos passíveis de “recusa”. Por
exemplo: “quando logo nas páginas de abertura [de O mundo como vontade e representação],
ele [Schopenhauer] insiste na presença da vontade em todos os domínios do ser, sua intui-
ção se patenteia como autêntica ideação ubíqua” (COUTINHO, 1998, p. 109). Não se dirá que
uma tela à óleo de uma paisagem determinada esteja mais apta à comunicar com a mesma
precisão e substancialidade um sentimento cósmico do que um conjunto de conceitos e ima-
gens verbais articulados em forma de sistema, que tem a pretensão ou privilégio de abstração
e universalização de aplicação que obras de arte que lidam com parcelas do ser não têm.
É uma harmonia superior, uma ideação ubíqua, como eu chamo na obra. O princípio bá-
sico é que ela está presente em tudo. E um dos caracteres da Filosofia é a universalidade
de aplicação. Um termo é filosófico quando ele tem aplicação universal. A minha ideação
tem aplicação universal. A circunstância da morte absoluta, uma funeralidade total, é um
princípio filosófico.
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8. Considerações finais
Da conceituação da “filosofia como arte” decorrem importantes problemas e temas para a te-
oria estética evaldiana, mas que não caberiam no escopo da comunicação, dentre os quais se
destacam: a exploração das categorias de “arte ideal” e “arte empírica”, que envolve a distinção
precisa entre a filosofia e a literatura, as categorias de “arte de realidade” e “arte de representa-
ção”, e a distinção precisa entre a arquitetura, filosofia e mística, a lei de autonomia do gênero,
que levanta a questão de se o Ser enquanto tal pode consistir em “matéria da arte” e em que
sentido a lei da exclusividade da matéria se aplica à filosofia; a lei de autonomia da obra e a
questão da lógica interna do sistema filosófico; a questão da crítica e da historiografia filosó-
fica solidária com a artística, o problema do cancelamento das intuições e da indulgência com
que devem ser recepcionadas, entre inúmeros outros temas possíveis de serem trabalhados
na exploração do conceito evaldiano de filosofia. Talvez seja lícito, pelo menos, deixar suge-
rido, à guisa de conclusão desta breve comunicação, que entremostra-se um bergsonismo no
fundo do pensamento evaldiano e que esta base foi a condição de possibilidade da construção
do conceito de “filosofia como arte” por meio de um desvio.
Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. Evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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mento de Filosofia da UFPE. Depoentes: Ângelo Monteiro, Daniel Lima, Evaldo Coutinho. Recife: 1993. 1
VHS (115 min), son., color.
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