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Resenha da primeira parte de “Em Busca de Sentido” de Viktor E.

Frankl
Rafael Mendonça de Paula

Eric Hobsbawn em sua análise histórica do século XX, que ele não sem motivos
denominou “Era dos Extremos”, afirma que, em certo sentido, pode-se dizer que o
século XX somente iniciou em 1914 com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, pois
até essa data, vivia-se ainda sob o espírito do século XIX, um século materialista,
herdeiro das Revoluções do século das Luzes – revoluções que teriam libertado o
homem das supertições e preconceitos obscurantistas dos séculos anteriores, vividos
nas trevas privadas da luz da Razão – que acreditava no Progresso, no poder do
método e da Ciência em alçar o homem para além da penúria e da necessidade,
encerrando o período em que a humanidade esteve à mercê das forças Natureza,
iniciando, assim, um período inaudito de paz e prosperidade. Não à toa, esse período
de altas esperanças e otimismo no futuro da humanidade é chamado de belle époque.
A eclosão da Guerra leva ao fim das ilusões do triunfo da humanidade sobre a morte e
o sofrimento, dando início a um século que pretendia-se como emancipatório, mas
provou ser uma era de extremos, um século onde o domínio material e científico
serviu ao horror e a crueldade humana poucas vezes visto, a um projeto de dominação
e extermínio de toda uma população e, algo que não existia, regimes políticos
totalitários.

E em meio a esse século de contradições tão marcadas - o progresso material


redundou na miséria humana; o domínio técnico e a ciência serviram ao projeto mais
radical de extermínio de um povo e cultura e nas formas de dominação totalitárias da
vida e da subjetividade humana; a promessa de felicidade deu origem ao vazio
existencial e ao niilismo – que nasceu e viveu, produziu e criou em meio ao horror e
sob as condições mais terríveis – Viktor Emil Frankl, criador da Logoterapia, a terceira
escola de pensamento psicoterápico vienense, que coloca no centro de sua teoria a
vontade e necessidade ontológica de sentido dos seres humanos. Tal é a força e
propósito da obra de Viktor Frankl, o resgate do sentido da existência humana em face
do sofrimento e da morte, que o progresso científico e material não eliminam a
necessidade de sentido da existência e fazer humano, sob pena de reduzir o humano
ao animal e jogá-lo em um vazio existencial. Tal descoberta, que Viktor – nascido em
1905 - já intuía em sua adolescência e já postulava em sua prática clínica, em seus
centros de prevenção de suicídio da juventude vienense, foi posta à prova, uma prova
de fogo, na própria vida de Frankl, quando ele, fiel aos seus valores espirituais, decidiu
(ao contrário de muitos que emigraram quando houve a ascensão do partido nazista
ao poder e consequente escalada do antissemitismo e das leis que cerceavam a vida e
trabalho dos judeus) permanecer em sua Viena natal, a despeito dos riscos que isso
implicava para a sua vida, para permanecer junto aos seus pais idosos que não podiam
emigrar e a eles fornecer os cuidados e confortos possíveis, e devido a essa escolha
passou por umas das experiências mais extremas do século a vida em um campo de
concentração.

E foi o que vivenciou e padeceu em um campo de concentração, o seu


experimentum crucis, que Frankl narra na primeira parte de seu livro “Em Busca de
Sentido: um psicólogo no Campo de Concentração”, onde permeada pelos pequenos
acontecimentos cotidianos, pelas terríveis mazelas e tormentos diários, temos a
descrição da psicologia da população de um campo de concentração (desde os
prisioneiros, os capos e guardas) enfatizando tanto as condições psicológicas
imprescindíveis, as condições sine qua non, para a sobrevivência em situações tão
extremas quanto o imorredouro espírito, o essencial do humano, que se jaz em cada
um de nós.

E desse modo, Frankl narra, em um livro escrito em nove dias, sua experiência
pessoal como sobrevivente de Auschwitz e Daschau, visando assim, responder à crucial
questão “de que modo se refletia na mente do prisioneiro médio a vida cotidiana do
campo de concentração?”.

E o primeiro ponto a ser narrado, logo no desembarque na estação ferroviária


de Auschwitz, após uma viagem de trem em condições extremamente desumanas, é a
primeira seleção onde 90% dos prisioneiros já foram enviados de maneira inapelável
para a morte nas câmaras de gás, destino esse ao qual Frankl escapou pelo esforço que
fez em manter uma postura ereta que o ajudasse a esconder o manuscrito que levava
escondido sob a capa que vestia, sendo essa postura ereta altiva que o fez escapar do
arbítrio do guarda que eliminava os doentes inaptos aos trabalhos forçados
executados no campo.

Já nesse primeiro momento, Frankl faz importantes descobertas sobre o ser


humano e sua capacidade de padecer e sobreviver, pois relata que além do humor
negro e da curiosidade humana que apareceram em meio às condições extremas que
encontraram no campo, logo descobriu que muitas das coisas que tinha lido em livros
de medicina eram simplesmente falsas, que as pessoas suportam muito mais que os
compêndios científicos postulam, como o número de horas que uma pessoa aguenta
ficar sem dormir, bem como que ele Viktor, era também capaz de muitas coisas que
ele supunha impossíveis de ele fazer ou deixar de fazer, como, por exemplo, dormir
em um beliche de três andares, sem colchão, somente uma tábua de madeira, com
cada andar medindo 2 x 2,25, onde dormiam nove pessoas amontoadas lado a lado,
compartilhando somente dois cobertores.

Inclusive, nessa mesma noite, Frankl adota a resolução, novamente, coerente


com seus valores e filosofia de vida, de não “ir para o fio”, isto é, cometer suicídio
usando o método usual em Auschwitz de segurar a cerca de arame eletrificada. Frankl
dotou de maior significação tal resolução firmando um pacto consigo mesmo,
apertando uma mão na outra.

Seguindo a sua descrição dos estágios psicológicos pelos quais passam os


prisioneiros do campo, temos, logo após o choque inicial, a fase da apatia, quando em
face do horror, da dor e da indizível saudade de seus familiares a pessoa vai morrendo
interiormente, e após alguns dias ou semanas, a pessoa deixa de reagir psiquicamente
às cenas de tortura, crueldade e sadismo explícito e parando de tentar ignorar a visão
do sofrimento, o encara indiferente e insensível.

Ainda que a apatia e a insensibilidade, essa couraça necessária a defesa da


integridade psíquica da pessoa, não sejam capazes de evitar que o escárnio e a
desfaçatez possam ainda ferir o senso de orgulho próprio, pois em um episódio que
Frankl narra, ele encara e enfrenta um cruel capo que o insulta chamando-o de
vagabundo quando era patente o esforço e trabalho de Viktor, pois como ele diz, o que
esse episódio ilustra é que “mesmo aquele que já perdeu a sensibilidade emocional
ainda chega a ser tomado de revolta, não por brutalidade externa ou qualquer dor
física, mas pelo escárnio que acompanha tudo isso” (pág. 43).

E em diversos episódios como esses, em pequenas cenas narradas, que Frankl


expõe as condições psicológicas de pessoas submetidas à condições extremas, que sob
a pressão de necessidades, em elevado grau de privação e tensão, houvesse uma
regressão da vida psicológica, dando expressão aos instintos mais básicos e primitivos.
Assim, em sonhos os prisioneiros viam suas necessidades mais básicas satisfeitas –
sonhando o prisioneiro com a realização de desejos tais como uma torta, um banho de
água quente, um cigarro – e sofrendo terrivelmente com o contraste com a dura
realidade ao despertar. Nesse sentido, a fome também é responsável pela regressão
da vida psíquica, dominando e obsecando a conversa e pensamentos dos presos.
Também a sexualidade regride, não havendo nenhuma manifestação da sexualidade
no campo, ao contrário de prisões e quartéis. Nesse ponto, é manifesta também a
ausência de sentimentos, ou como posto por Frankl “a peremptória necessidade de se
concentrar sobre a pura e simples preservação da vida constantemente ameaçada
suscitam uma depreciação radical de tudo aquilo que não serve a esse interesse
exclusivo” (pág. 49), ou seja, as pessoas se tornam incapazes de se importarem com o
bem-estar de outrem e reduzem a sua sensibilidade a pura sobrevivência.

Mas não foi somente indiferença e apatia que Frankl descobriu no campo de
concentração, mas, também, a liberdade interior, pois para Frankl fica evidente que se
nos perguntássemos sobre a liberdade humana, sobre o que há além dos múltiplos
determinantes e condicionamentos do comportamento da pessoa, encontraríamos,
exemplificados no comportamento de diversas pessoas, tantos prisioneiros quanto
guardas ou capos, que conseguiram transcender as terríveis condições do campo e
apresentar um comportamento decente demonstrando “se pode privar a pessoa de
tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às
condições dadas” (pág. 88). A todo momento, nós humanos, temos a possibilidade de
escolha, a liberdade última de decidirmos qual será a nossa atitude, de buscar o
sentido de cada situação, de nos fazermos dignos de nosso tormento (palavras de
Dostoievsky que Frankl sempre lembrava em seu calvário), e configurar a nossa vida de
modo que tenha sentido. O sentido da vida não se encontra na exclusão do sofrimento
e da morte, pois “se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente
o terá [...] Aflição e morte fazem parte da existência como um todo” (pág. 90).

Há aí, e sempre presente, a possibilidade da pessoa encontrar o crescimento


através da realização interna de valores. É também uma característica humana, algo
que o pensamento de Espinoza apontou, que o ser humano somente pode existir
dentro de uma perspectiva futura, sub specie aeternitatis, do ponto de vista da
eternidade, sendo capaz de dotar de sentido o sofrimento presente em perspectiva de
um futuro vindouro. Assim fazia Frankl, que em momentos muito penosos no campo
imaginava-se, em um futuro próximo, dando aulas sobre o tema, e assim, percebia a si
mesmo e às suas condições em uma perspectiva mais objetiva, científica, tornando
aquilo que o torturava e o afligia mais suportável ao alçar-se assim da situação
presente rumo ao futuro onde o padecimento teria outro sentido.

Frankl aponta que todo o indivíduo é único, singular e insubstituível, e que


saber disso, ter em mente, sempre essa singularidade dá a pessoa o “porquê” da
existência, e em posse desse “porquê” a pessoa descobre o “como”. Nesse sentido, há
também que nunca devemos nos perguntar o que nós temos que esperar da vida, mas
sim o que a vida espera de nós, em uma revolução copenicana do sentido, devemos
sempre nos perguntar o que a vida espera de nós a cada momento, uma resposta que
não seja um discurso ou uma elucubração, mas sim uma ação efetiva, pelo
cumprimento das tarefas colocadas a nós pela vida. Essa exigência da vida altera-se de
pessoa a pessoa e de momento em momento, não havendo uma resposta única
absoluta a ser dada, mas sempre a responsabilidade presente em toda a situação
concreta, como posto por Frankl: “ninguém pode assumir dela o destino, e ninguém
pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta esse
sofrimento está também a possibilidade de uma realização única e singular” (pág. 102
e 103).

Por fim, cabe ressaltar uma última reflexão que Frankl extraiu de sua
experiência nos campos de concentração, que tanto entre guardas quanto entre
prisioneiros, tanto entre algozes quanto vítimas, haviam pessoas capazes de atos de
crueldade quanto de atos dignos da humanidade, revelando-se o ser humano como ele
é, uma liga entre o bem e o mal, colocando como resposta a pergunta do que consiste
o ser humano como “o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as
câmaras de gás; mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com
uma oração nos lábios.” (pág. 112, 113)

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