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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Letras Orientais
Disciplina: Literatura Hebraica VI
Docente: Luis Sérgio Krausz

A desumanização e a ressignificação da existência


em É isto um homem?
de Primo Levi

São Paulo, outubro de 2017

Mirella de Carvalho

Nº USP: 7613181

Período: noturno
A desumanização do homem e a ressignificação da existência em
“É isto um homem?”, de Primo Levi

Mirella de Carvalho

RESUMO: este ensaio tem como objetivo analisar a obra É isto um homem?,
de Primo Levi.

Sobrevivente do genocídio judeu promovido pelos nazistas alemães


durante a Segunda Guerra Mundial, o italiano Primo Levi publicou diversos
livros acerca de sua atroz experiência nos campos de concentração em
Auschwitz, na Polônia. Capturado em 1943, permaneceu por pouco mais de
um ano preso com outros judeus, todos sendo obrigados a trabalhos forçados e
extenuantes, regados a agressões físicas e psicológicas, além da fome e do
frio que jamais se conseguirá mensurar em palavras.

Vítimas do antissemitismo crescente desde o final do século XIX, os


judeus foram, ao longo das primeiras décadas do século XX, cada vez mais
privados dos poucos direitos que possuíam, até ao ponto de serem
condenados à morte pelo governo alemão, que empreendeu a construção dos
campos de concentração e de extermínio.

Aos sobreviventes, veio a necessidade de relatar o que houve, tanto


com o intuito de denúncia como também para tentar aliviar o trauma que
mudou completamente suas vidas e o modo de encará-la. Para isso,
recorreram à chamada literatura de testemunho, a qual se volta para
acontecimentos traumáticos contados, muitas vezes, em forma de diário.
Caracteriza-se, também, por se referir a eventos históricos traumáticos1,
representando – ou tentando representar – as múltiplas vozes que vivenciaram
o mesmo trauma. De acordo com Carolina Maciel:

1
MACIEL, Carolina Pina Rodrigues. “Literatura de Testemunho”. In: Revista Opiniães, nº 09, 2016.
“A literatura de testemunho pode ser entendida como uma forma de
recriação de mundos baseados em experiências memorialísticas de sujeitos
que testemunharam, de alguma forma, um evento histórico (...). É uma
possibilidade de apresentar relatos com um peso traumático e inarrável,
levantando questões e dando voz às narrativas de minorias, de sobreviventes
de holocaustos e de outras formas de genocídio, repressão e violação dos
direitos humanos. Percebemos, também, que o testemunho salienta a relação
entre discurso histórico e discurso ficcional”2

Neste sentido, podemos definir a literatura de testemunho como a busca


pela representação daquilo que foi visto e vivido, unindo fato histórico à
experiência individual, recorrendo à ficção. Porém, mesmo que se busque
retratar fielmente o que houve, não é possível expressar em palavras certos
acontecimentos.

Considerada uma das obras mais importantes deste gênero, É Isto um


Homem? relata o período em que Primo Levi esteve em Auschwitz, passando
por situações inimagináveis, assim como os outros prisioneiros, até que fosse
libertado pelos russos ao final da guerra. Narrado em primeira pessoa, o autor
discorre detalhadamente sobre os longos meses em que esteve no campo,
desde quando foi detido, passando pela sua dura rotina, até sua soltura.

Através destes detalhes, faz reflexões sobre a condição humana de


quem vivia naquela indústria de extermínio. Reflete, inclusive, sobre a ausência
de léxico para exprimir o que estava passando:

“Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua
não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um
homem.”3

Como bem observa Emília Amaral:

“É isto um homem? desenvolve-se a partir de memórias ou


recordações de sentimentos e atmosferas, que vão do monólogo interior à
extrema objetividade.”4

2
MACIEL, Carolina Pina Rodrigues. “Literatura de Testemunho”. In: Revista Opiniães, nº 09, 2016.
3
LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
4
AMARAL, Emília.
Primo Levi fala sobre essa objetividade em entrevista concedida a Philip Roth:

“No campo de concentração, vivi do modo mais racional que me era


possível, e escrevi É Isto um Homem? me esforçando para explicar aos outros,
e a mim mesmo, os eventos em que eu estivera envolvido, mas sem nenhuma
intenção literária clara. Meu modelo era o do ‘relatório semanal’ que se faz nas
fábricas: ele deve ser preciso, conciso e utilizar uma linguagem compreensível
para todos da hierarquia industrial.”5

A objetividade busca expressar com fidelidade o que ocorreu; já o


monólogo interior busca exteriorizar os pensamentos que Levi teve diante das
inúmeras situações de humilhação e violência constantes. Logo que foi preso e
levado a um campo de concentração em Fóssoli, ainda na Itália, a dignidade já
havia começado a ser substituída progressivamente pela desumanização e,
então, qualquer sentido outrora conhecido do que seja a vida vai se alterando
permanentemente:

“A noite chegou, e todos compreenderam que olhos humanos não


deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite dessas.”6 – Levi se refere à noite
que antecedeu a viagem para a Polônia, quando estava, junto a famílias
inteiras, preso em campo de concentração italiano.

E durante a viagem para a Polônia:

“Embarcaram-nos, então, nos ônibus e nos levaram até a estação


de Carpi. Lá nos esperavam o trem e a escolta para a viagem. E lá
recebemos as primeiras pancadas, o que foi tão novo e absurdo que não
chegamos a sentir dor, nem no corpo nem na alma. Apenas um profundo
assombro: como é que, sem raiva, pode-se bater numa criatura humana?”7

A partir de então, situações degradantes eram regra: fome e sede, gritos


e pancadas vindos dos guardas da SS, a desapropriação de seus bens
materiais mais básicos, como roupas, relógios, sapatos, documentos; seus
corpos expostos, o banho frio, o cabelo cortado, a substituição de seus nomes
e identidade por números. A privação do lar, de seus hábitos, o convívio com

5
ROTH, Philip. “Primo Levi”. In: Entre Nós. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
6
LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
7
Idem.
familiares, enfim, tudo, simplesmente tudo o que tinham foi tirado deles. E
assim, tira-se também sua humanidade.

Irving Howe comenta em seu texto “A escrita e o Holocausto” que a


desumanização fazia parte do plano nazista em criar um sistema de
subjugação que transpõe qualquer relação normal de nossa sociedade. 8
Portanto, não somente prisioneiros sofriam tal desumanização, mas também os
guardas que ali estavam, impondo a ordem e praticando torturas contínuas. O
fato de não responderem às perguntas dos prisioneiros e afirmarem que Hier
ist kein warum (aqui não existe porquê) reforça a ideia de que os judeus não
eram humanos.

A desumanização se dá quando a ideia de futuro ou mesmo o


questionamento do porquê daquele absurdo todo desaparecem. Não há
esperança, não existe mais o lado de fora, não se lembra mais do passado,
salvo alguns lampejos de memória.

“Parecia impossível que existissem realmente um mundo e um tempo,


a não ser nosso mundo de lama e nosso tempo estéril e estagnado, para os
quais já não conseguíamos imaginar um fim.”9

É como um dispositivo de proteção, em que o indivíduo vive apenas o


momento presente, o agora, no qual significa ser o mais racional possível para
poder obter melhor alimento, melhores vestimentas, a preservação dos
instrumentos que lhe permitem a sobrevivência, como a faca para o pão e a
colher para a sopa. Os que não possuíam tal dispositivo de proteção,
prostravam-se a espera da morte, e eram chamados de “muçulmanos”.

O medo da morte já não existe; entra-se no campo com a certeza de que


se está condenados a ela, porém, com o passar dos meses, nada mais era
esperado. Nem mesmo quando os bombardeios dos Aliados começaram:

“Estávamos acabados demais para termos verdadeiro medo (...).


A maioria aguentou o novo perigo e o novo sofrimento com inalterada
indiferença; não se tratava de resignação consciente e sim do torpor opaco

8
HOWE, Irving. “A escrita e o holocausto”. In: Cadernos de Língua e Literatura Hebraica. São Paulo:
Humanitas, 1999.
9
LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
dos animais de carga, domados à força de golpes, que já não sentem mais
a dor das pancadas.”10

Assim, viver no campo de concentração era esquecer-se de qualquer


concepção ou ideal de vida do mundo lá fora, de qualquer ética ou compaixão.
Mantê-las significaria dar chance para perder a própria vida. Era cada um por
si, a cuidar de seus pertences para não ser roubado, atentar-se aos mandos
dos Kapos e à disciplina exigida para não ser punido. E, com o tempo,
aprende-se a viver ali, compreende-se sua dinâmica e torna-se parte dele.

“Dizemos ‘fome’, dizemos ‘cansaço’, ‘medo’ e ‘dor’, dizemos


‘inverno’, mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavras livres,
criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas,
em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo,
teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para
explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero,
vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro
de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega.”11

Desta forma, através de tal desumanização, a vida reduz-se ao puro


instinto, à busca em suprir as necessidades do corpo. A luta diária contra a
fome – que não se sacia nunca – contra o frio, as dores do trabalho
extenuante, o desconforto das beliches dividas com outros prisioneiros e o
esquecimento do passado e do futuro, este último tão incerto que parece
inexistente, dão uma nova significação para o viver.

10
LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
11
Idem.
BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Emília. “Memorialismo e experiência estética: Primo Levi”. In:


Estudos Judaicos: Shoá, o Mal e o Crime. São Paulo: Humanitas, 2012.

HOWE, Irving. “A escrita e o holocausto”. In: Cadernos de Língua e Literatura


Hebraica. São Paulo: Humanitas, 1999.

LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

MACIEL, Carolina Pina Rodrigues. “Literatura de Testemunho”. In: Revista


Opiniães, nº 09, 2016.

ROTH, Philip. “Primo Levi”. In: Entre Nós. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.

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