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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Letras Orientais
Disciplina: Literatura Hebraica V
Docente: Luis Sérgio Krausz

A psicose coletiva em

Badenheim, 1939

São Paulo, abril de 2016

Mirella de Carvalho

Nº USP: 7613181

Período: noturno
A psicose coletiva em Badenheim, 1939

Mirella de Carvalho

RESUMO: este ensaio tem como objetivo analisar a novela Badenheim, de


Aharon Appelfeld, e a “cegueira” coletiva de seus personagens diante da realidade.

Aharon Appelfeld, escritor de língua hebraica, retrata em suas obras a situação


vivida pelos judeus da Europa Central no período que antecede a Segunda Guerra
Mundial. Tal tema se contrapõe à ideologia do sionismo, que propõe o total
esquecimento do passado daquele povo, marcado por diásporas e pelo recente
genocídio.

Diferentemente de outros escritores hebraicos, o autor opta por uma escrita


ficcional, criativa, fugindo da literatura puramente biográfica. Apesar de não relatar suas
memórias na íntegra, acaba descrevendo situações e sensações comuns a todos os
judeus da época, no intuito de reconstruir seu passado e o de muitos outras pessoas de
mesma origem. Luis S. Krausz comenta, em seu ensaio “Assimilação e Melancolia”:

“O projeto do autor aproxima-se, antes, de uma arqueologia dos escombros, por meio da qual ele
reconstrói um universo complexo, de aporias, contradições e perplexidade, próprio dos judeus da
Mitteleuropa (Europa Central) no período entre guerras. O mundo recriado por Appelfeld paira
entre duas eras e dois lugares, em meio à nostalgia por um passado, tanto mais idealizado quanto
mais distante, e a cegueira ante a iminência da catástrofe judaico-europeia.” 1

Escrita em 1978, Badenheim é uma novela ambientada em uma estância turística


de mesmo nome. Essencialmente judeus, seus moradores e turistas são surpreendidos
com o gradativo cerceamento da liberdade de ir e vir, imposta pelo próprio Estado, e a
iminente deportação para a Polônia, sem haver maiores explicações para tal.

A narrativa começa com Trude, uma mulher doente, observando a


movimentação da cidade através de sua janela. Martin, seu esposo, é dono da farmácia e

1
KRAUSZ, Luis Sérgio. “Assimilação e Melancolia”. In: Ruínas Recompostas: judaísmo centro-europeu
em Aharon Appelfeld, Joseph Roth e George Hermann. São Paulo: Humanitas, 2013.
cuida o tempo todo dela. Os turistas começam a chegar, assim como os músicos que
participariam do festival de música, uma das atrações do local. E assim, a história vai
sendo narrada de maneira cronológica, porém esparsa.

Todos os personagens são, de certa forma, protagonistas. O autor vai


descrevendo o cotidiano do local, ao mesmo tempo em que descreve os personagens,
delineando assim suas características e costumes. Ao longo da obra, a narrativa torna-se
difusa, ou seja, apesar dos acontecimentos serem postos sequencialmente, isso é feito de
maneira desordenada, havendo, em um único parágrafo, a descrição de vários
acontecimentos, referentes a vários personagens. Essa característica nos dá a sensação
de perplexidade, condizente com o momento ali retratado.

Percebe-se que todos são judeus assimilados e exaltam a cultura das grandes
cidades centro-europeias, buscando se identificar com os alemães, falando sua língua e
admirando sua música e literatura, na tentativa de igualarem-se a eles e serem aceitos na
sociedade. Criticam os ostjuden, judeus tradicionais do leste, que se mantém vinculados
à religião. E esta admiração pelos alemães, “sinônimo de civilização e progresso”2,
contribui de maneira preponderante para que os veranistas e moradores de Badenheim
não se dessem conta do que estava acontecendo.

O primeiro evento estranho é a chegada da Divisão Sanitária, que passou a


investigar os estabelecimentos e casas sem que as pessoas fossem informadas sobre o
motivo. Eram rudes, por mais que os moradores, apesar de intrigados, colaborassem de
forma amistosa com seu trabalho. Este trecho a seguir exemplifica a abordagem feita
pelos inspetores:

“Perto das dez horas apareceu o inspetor da Divisão Sanitária e pediu para examinar o
estabelecimento. O inspetor perguntou sobre detalhes estranhos. Quem é o dono, foi
recebida como herança? Quando e de quem havia sido comprada? Quanto vale a
farmácia? Martin, surpreso, explicou que tudo havia sido caiado e passado pela
desinfecção prescrita. O funcionário sacou o metro e mediu. Não se desculpou, não
agradeceu, foi direto pra rua.” 3

2
KRAUSZ, Luis Sérgio. “Assimilação e Melancolia”. In: Ruínas Recompostas: judaísmo centro-europeu
em Aharon Appelfeld, Joseph Roth e George Hermann. São Paulo: Humanitas, 2013.
3
APPELFELD, Aharon. Badenheim, 1939. Barueri: Amarilys, 2012.
Alguns meses após chegarem, começaram a promover a Polônia através de
folhetos e cartazes e, assim, transmitir a ideia de uma vida melhor em outro país. Na
narrativa muitos se questionam, outros amenizam a situação com suposições otimistas,
como o empresário Pappenheim. Este, por sua vez, apesar de transparecer otimista,
estava na verdade cada vez mais melancólico, como é citado por diversas vezes na
narrativa.

A situação vai se complicando: os correios são fechados; semanas depois, há


barricadas nas entradas da cidade, impedindo que as pessoas entrem ou saiam da
estância, exceto quando algum judeu chegava; a comida torna-se escassa até acabar.
Enquanto isso, os turistas e habitantes da cidade continuam frequentando o hotel e
mantendo-se juntos, sonhando com a nova vida na Polônia, em uma cegueira coletiva
que ultrapassa os limites da racionalidade.

Tal cegueira se dá porque a situação que está se configurando diante deles é


extremamente absurda de se pensar, já que acreditavam plenamente nas instituições
alemãs, as quais se espelhavam e admiravam. Quando Martin recebe a visita nada
amigável da Divisão Sanitária, não questiona a instituição, e procura motivos para ser
investigado: “Ele (Martin) acreditava nas instituições e logicamente culpou a si próprio.
Talvez a entrada dos fundos não tivesse sido reparada como deveria”.4 Luis S. Krausz
descreve ideia semelhante em seu ensaio:

“A confusão de parâmetros, inclusive a ideia, profundamente ancorada na visão de


mundo dos judeus germanizados do antigo império Austro-húngaro, de que a Alemanha
e a cultura alemã eram sinônimo de civilização e de progresso, estes ídolos do
pensamento oitocentista, põe em evidência o caráter ingênuo e mesmo patético de uma
população cegada pelas ideologias a ponto de tornar-se incapaz de perceber o que se
passava em seu ambiente imediato.”5

E por fim, a narrativa se encerra com os judeus entrando no trem que os levará
para seus derradeiros destinos, ainda cegos, ainda iludidos com uma vida melhor na
Polônia, em uma psicose coletiva que talvez fosse, na verdade, um dispositivo, uma
defesa de seus próprios subconscientes.

4
APPELFELD, Aharon. Badenheim, 1939. Barueri: Amarilys, 2012.
5
KRAUSZ, Luis Sérgio. “Assimilação e Melancolia”. In: Ruínas Recompostas: judaísmo centro-europeu
em Aharon Appelfeld, Joseph Roth e George Hermann. São Paulo: Humanitas, 2013.
BIBLIOGRAFIA

APPELFELD, Aharon. Badenheim, 1939. Barueri: Amarilys, 2012.

KRAUSZ, Luis Sérgio. “KRAUSZ, Luis Sérgio. “Assimilação e Melancolia”. In:


Ruínas Recomposta: judaísmo centro-europeu em Aharon Appelfeld, Joseph Roth e
George Hermann. São Paulo: Humanitas, 2013.

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