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Resenha: Tudo é Rio, Carla Madeira

SINOPSE: Tudo é rio é o livro de estreia de Carla Madeira. Com uma narrativa
madura, precisa e ao mesmo tempo delicada e poética, o romance narra a história do
casal Dalva e Venâncio, que tem a vida transformada após uma perda trágica,
resultado do ciúme doentio do marido, e de Lucy, a prostituta mais depravada e
cobiçada da cidade, que entra no caminho deles, formando um triângulo amoroso.
Na orelha do livro, Martha Medeiros escreve: “Tudo é rio é uma obra-prima, e não há
exagero no que afirmo. É daqueles livros que, ao ser terminado, dá vontade de
começar de novo, no mesmo instante, desta vez para se demorar em cada linha,
saborear cada frase, deixar-se abraçar pela poesia da prosa. Na primeira leitura, essa
entrega mais lenta é quase impossível, pois a correnteza dos acontecimentos nos leva
até a última página sem nos dar chance para respirar. É preciso manter-se à tona ou a
gente se afoga.”

A metáfora do rio se revela por meio da narrativa que flui – ora intensa, ora mais
branda – de forma ininterrupta, mas também por meio do suor, da saliva, do sangue,
das lágrimas, do sêmen, e Carla faz isso sem ser apelativa, sem sentimentalismo
barato, com a habilidade que só os melhores escritores possuem.
*
Poucas vezes vi uma estreia tão corajosa como a de Carla Madeira no mundo literário.
Tudo é Rio é um dos fenômenos mais recentes da literatura nacional graças a uma
reedição do livro lançado originalmente em 2014 pela autora Carla Madeira. Depois de
esperar o hype em torno da obra passar, decidi pegá-lo emprestado com minha melhor
amiga (na mesma remessa em que peguei o exemplar de Gostaria Que Você Estivesse
Aqui, do Fernando Scheller) para lê-lo com calma e analisar porquê de tanta comoção
com a obra.
E após ler a história, ENTENDI (em maiúsculo mesmo).
Era um hype totalmente justificado, e não apenas isso, como também necessário. Carla
lançou seu livro quase oito anos antes dele bombar entre a bolha de leitores brasileiro.
Um lapso temporal justificado já que no mercado nacional predomina o nome de
grandes autores americanos ou de autores já consagrados. Há vários tipos de modas
passageiras, mas ultimamente, e muitas vezes graças as redes sociais, está ocorrendo
uma valorização da literatura nacional contemporânea. Torto Arado foi um dos
primeiros livros que eu vi bombar na mídia, e agora Tudo é Rio seguiu os mesmos
passos, conseguindo a atenção dos grandes “booktubers” e do público em geral.
Na minha visão, o motivo pelo qual Tudo é Rio não fez o sucesso que merecia na sua
primeira publicação deve-se ao fato de que ele é um livro contido. É um livro quase que
sussurrado, com uma trama forte demais para a sociedade brasileira de 2014. Passaram-
se menos de uma década, mas hoje em dia Tudo é Rio pode existir sem os julgamentos
que seriam feitos por grande parcela do leitor médio que o pegou para ler naquela
época. Além disso, há também uma forte tendência na problematização em cima de uma
questão do livro que eu vou abordar na parte dos spoilers, mas o que importa desse
“detalhe” é apontar que ele não seria discutido da mesma forma que está sendo hoje se o
livro tivesse estourado em 2014. Claro que são apenas suposições e creio eu que tudo
tem um tempo certo para acontecer, felizmente Tudo é Rio rompeu a bolha do
anonimato e permitiu que não apenas eu, mas diversas pessoas pudessem adentrar
nessas águas que Carla Madeira criou com tanto cuidado.
Sendo uma obra que faz jus ao título, Tudo é Rio é um livro que flui. Há livros com
poucas páginas que parecem calhamaços, enquanto calhamaços podem ser lidos em
poucos dias graças a escrita fluída. Tudo é Rio pertence ao segundo grupo, mesmo não
tendo tantas páginas assim. O que importa é que ele tem um ritmo, ele sabe o que
mostrar, quando mostrar e segura o leitor até o final, quase como um rio que desemboca
em uma bela paisagem.
Os capítulos são curtos, mas diretos. Há vezes em que a história faz um pequeno desvio
para se aventurar na passado de alguns personagens, dando-nos o contexto necessário
para seguir viagem no presente. É uma não-linearidade que funciona do começo ao fim,
mesmo eu sentindo que o livro poderia ser mais devido a sua qualidade. Não é uma
trama revolucionária, mas é uma distorção do que normalmente esperamos.
A primeira protagonista a ser apresentada é Lucy, uma puta. 90% da coragem do livro
vem da história dela. Sendo uma prostituta, o mundo de Lucy é todo carregado de sexo
e a autora faz jus a isso. Há cenas eróticas, mas tudo encaixado no que a história precisa
mostrar. Nada está ali pelo valor de choque ou exagerado. Porque existem sim mulheres
como Lucy no Brasil, nós que não as conhecemos ou decidimos conscientemente
ignorá-las. Daí vem o choque. Carla Medeiro a apresenta de uma maneira em que não
há julgamentos. Nem em cima dela, que é muito humanizada conforme conhecemos seu
passado, nem em cima de Venâncio, o protagonista masculino. Ele faz casal com Dalva,
a última ponta de um triângulo amoroso que só existe pela falta de uma palavra melhor.
Porque Dalva e Lucy nunca disputam Venâncio, mas ambas estão conectadas com a sua
história de uma maneira indelével.
Dito isso, Tudo é Rio é um livro bom mesmo. Daqueles que ficam com você mesmo
depois da leitura, e eu digo isso já querendo relê-lo ou até mesmo roubá-lo da minha
melhor amiga. Recomendo com total convicção porque é uma leitura fluída, marcante e
muito bem escrita. Em pouco mais de 200 páginas, Carla Madeira se tornou minha
autora nacional favorita e eu já estou quase comprando o seu próximo livro que se
chama Véspera. Se for tão bom quanto esse, certamente é uma obra-prima.
Se você puder ler Tudo é Rio, leia. Ao término você vai estar de queixo caído e eu vou
dizer o porquê na parte COM SPOILERS da nossa resenha. Aquela destinada apenas a
quem já leu o livro inteiro ou que não se importa de saber pontos chaves da trama.
Estando avisados, é hora de mergulhar fundo.
*
Eu sei que Lucy vai chamar a atenção de muita gente. Ela é uma puta desbocada que faz
o que quer, hipnotiza todo mundo e sai por aí fazendo os outros de gato e sapato. O tipo
de personagem que você nota que o autor (nesse caso, a autora) se divertiu escrevendo-
a. Só que se Lucy é um grito, a maior beleza de Tudo é Rio mora na personagem de
Dalva. Uma mulher que passa mais da metade da história calada, sofrendo de maneira
resoluta uma perda que nós não entendemos até o terço final do livro.
Porém, mesmo Dalva sendo minha favorito, não posso negar que a construção de Lucy
é muito bem feita. Ela é uma menina que cresceu sem afetos, tendo o corpo como seu
único companheiro e moeda de troca em busca de prazer. A relação de Lucy com sua
própria sexualidade é escancarada, chega a ser brutal, mas ao mesmo tempo que você
fica chocado, não consegue deixar de ler. Ela é mesmo hipnotizante, porque apesar de
tudo, não há aquela maldade. Mesmo sendo prostituta, Lucy é como a autora define,
uma puta-ingênua. E o arco dela na história é justamente isso, ela aceitando sua própria
ingenuidade e vulnerabilidade. Lucy apaixona-se por Venâncio. Um pecado mortal no
mundo da prostituição, mas decide deitar-se com ele que se recusa dia após dia. Quando
o ato é consumado, Lucy engravida. E aí que o livro dá uma reviravolta, pois quando
descobre que Lucy está grávida, Dalva desperta. Não para atacá-la, mas para defendê-la.
A história de Dalva não nos é dada logo de cara. Sabemos que ela é a esposa de
Venâncio e que algo aconteceu entre os dois para que o amor acabasse de maneira
imediata. Em um breve capítulo, Venâncio narra que jogou seu bebê contra a parede em
um ataque de ciúmes. Dalva, dominada pelos instintos maternos, nunca conseguiu
perdoá-lo, mas decidiu ficar ao seu lado como um lembrete do que ele fizera. Se antes
havia amor entre os dois, a única coisa que preenchia aquela relação a partir daquele
momento era indiferença.
Pela forma como nos é apresentado os fatos, o lado de Dalva é o que parece mais certo.
Só então que adentrando o passado de Venâncio é que vemos como ele teve um passado
violento, sendo criado em uma sociedade hiper masculina que realçou seus piores lados.
Ainda assim, ele é um homem sensível na medida do possível. Fica claro que ele nunca
deixou de amar Dalva um dia sequer, mas dá vazão as suas necessidades quando vai até
o bordel em que Lucy vive, conquistando o coração daquela puta com seus olhos cheios
de sofrimento. É uma tragédia anunciada. Venâncio nunca muda de lado, nem bambeia
para o lado de Lucy, que continua indo atrás dele, mesmo grávida. Quando ele descobre
isso, julga como sendo uma afronta e se prepara para atacar Lucy, que é prontamente
defendida por Dalva que fala com Venâncio pela primeira vez em anos, ameaçando-o
com uma faca.
Uma atitude que se tornou o meu momento favorito da obra inteira. Muito porquê Dalva
é escrita como sendo a mocinha ingênua que se apaixona perdidamente e vive um conto
de fadas até ter seu filho retirado de si. Dalva que nunca tinha experimentado a dor e o
luto, se transforma em uma nova mulher. Uma versão mais dura de si mesma que não
tem medo de nada e nem ninguém. Não que ela precise lutar, xingar ou fazer nada do
tipo. Seu silêncio é o que mais penetra na cabeça de Lucy e Venâncio. A primeira chega
até a dizer que nunca ia decifrar uma mulher como ela. Realmente, até depois da leitura,
Dalva continua sendo um mistério. Não por ser má-escrita ou má desenvolvida, mas
porque suas atitudes parecem tão humanamente possíveis que você torce para que não
exista ninguém como ela. Que mesmo sofrendo, não impõe seu sofrimento a ninguém.
Posso afirmar por experiência própria que pessoas como Dalva existem sim.
Ao final da história, um pouco do mistério em torno de Dalva finalmente é revelado.
Em suas caminhadas, que são um ponto de destaque em diversos capítulos, descobrimos
que vai até a casa de uma mulher que foi salvou a vida de seu filho após o ato de
Venâncio. Vicente, a criança que nunca morreu, é a grande reviravolta que nos faz
reimaginar tudo o que sabíamos até aquele momento.
Dalva não estava de luto. Ela estava criando seu filho longe da figura de Venâncio, visto
que não podia confiar nele. Com a chegada de João, filho de Lucy, viu como o marido
tinha mudado com o passar dos anos, se tornando alguém confiável novamente. É aí que
Dalva decide tomar uma decisão. Ela abraça João e sua mãe Lucy como parte da
família, e traz Vicente para conhecer o próprio pai. Dalva perdoa Venâncio como uma
chance de tentar viver seu conto de fadas interrompido. E aí que a história acaba. Com
um retorno e um futuro incerto, mas feliz.
E é aqui que entra a problematização que eu citei anteriormente. Será que cabe a Dalva
perdoar um ato violento como o de Venâncio? Afinal, ele não só tentou matar o próprio
filho, como também bateu nela. Sem usar meias palavras, é óbvio que violência contra
crianças e mulheres é algo condenável e que deve ser levado a justiça, mas nesse
contexto aqui, dentro de uma história, me parece ser uma decisão que não nos pertence.
O que importa é que Venâncio foi punido, não pela justiça, mas pela própria vida e se
arrependeu a ponto de nunca mais fazer o que fez novamente. O livro claramente
trabalha nessa questão. E eu entendo se alguém disser, “tá passando pano pra macho
violento?”, porque o livro carece de julgamento de valor, mas ele trabalha com questões
tão humanas que pra mim pareceu real a atitude de Dalva e o arrependimento de
Venâncio.
Claro que na vida real as coisas não deveriam ser assim. Toda violência deve ser
denunciada. Mas tendo em vista que provavelmente a história do livro se passa em uma
cidadezinha do interior, é óbvio que o desenrolar dela não seria modernoso como
imaginávamos. Dalva não é uma feminista empoderada, ela é uma mulher que ficou
dura pelo sofrimento e que faz o que faz para sobreviver. Esse é um contexto que deve
ser considerado. Mas mesmo assim, eu entendo com toda razão quem se sentir
incomodado com esse final. Homens que nem Venâncio não merecem finais felizes,
merecem cadeia. E isso é algo que eu acredito, mesmo querendo confiar na esperança da
ficção.
Resumindo, Tudo é Rio é contraditório e pode parecer amargo em diversos pontos. Mas
é um livro que merece ser lido mesmo assim. Nenhuma obra é perfeita, e os pontos
falhos do livro são poucos. Talvez hoje em dia Carla Madeira escrevesse outro final ou
talvez ela quisesse criar esse ponto de discussão em torno da figura de Venâncio. Será
que a violência dele deve ser perdoada? Até onde vai o arrependimento e a mudança?
São questões que vão muito além da vida, mas que valem a pena serem levantadas.
E se o livro carece desses julgamentos, então é dever do público apontar o que é
problemático para que evitemos influências na vida real. Não se esqueçam que empatia
sem limites é autodestruição. Então por mais que o perdão de Dalva seja algo bonito, ele
muitas vezes pode ser perigoso. Um homem que bate em mulher pode matá-la.
Denunciar a violência doméstica é necessário.

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