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Livro: A Mais Recôndita Memória dos Homens

Autor: Mohamed Mbougar Sarr


Editora: Fósforo
Ano: 2023
Apreciação por: Luiz Cancello

Quando se lê um livro excepcional, é frequente perce- A literatura surgiu para mim sob os traços de uma mu-
ber desde o início essa qualidade, mas sem saber como lher de beleza aterradora. Disse-lhe, gaguejando, que
a percepção acontece. De que recursos se utiliza o autor a buscava. Ela riu com crueldade, respondeu que não
para nos prender à leitura? O que nos faz perceber que ali pertencia a ninguém. Então me pus de joelhos e supli-
há algo a mais, além do comum? quei: Passe uma noite comigo, uma única e miserável
noite. Ela desapareceu sem uma palavra. Lancei-me
Pretender fazer a apreciação de um livro com essa qua- em seu encalço, cheio de determinação e arrogância:
lidade é uma tarefa difícil. O máximo que conseguirei, Vou te pegar, vou te sentar em meus joelhos, vou te
nas linhas que seguem, é ressaltar alguns aspectos desse obrigar a me olhar nos olhos, vou ser escritor! Mas sem-
texto brilhante. pre chega o terrível momento, no caminho, em plena
noite, em que uma voz ressoa e te atinge como um
Este é um livro sobre o ato de escrever. Sobre escritores, raio; e ela te revela, ou te lembra, que a vontade não
poderia ser dito, mas então parece que o livro só interes- basta, que o talento não basta, que a ambição não
saria a esses seres estranhos. O livro é muito mais. Fala basta, que ter uma bela caneta não basta, que ter lido
sobre sentir-se estrangeiro, visto que é um senegalês muito não basta, que ser famoso não basta, que ter
que o escreve na França, mas é também um senegalês uma vasta cultura não basta, que ser sábio não basta,
na França o personagem principal. É um livro sobre outro que o engajamento não basta, que a paciência não
livro: há um escritor, T.C. Elimane, que ninguém sabe por basta, que se embriagar de vida pura não basta, que
onde anda, mas escreveu uma obra seminal chamada “O se distanciar da vida não basta, que acreditar em seus
labirinto do inumano”, a quem ninguém pode ficar indi- sonhos não basta, que dissecar o real não basta, que
ferente, e dessa obra há poucos exemplares. Fala sobre as a inteligência não basta, que comover não basta, que
buscas dessa obra e de seu autor, da busca incessante de a estratégia não basta, que a comunicação não basta,
algo que nos escapa. que mesmo ter algo a dizer não basta, tampouco basta
o trabalho duro; e a voz ainda diz que tudo isso é pos-
Diégane Latyr Faye, escritor e personagem principal da sível, é quase sempre uma condição, uma vantagem,
trama, persegue o rastro de T.C. Elimane. Nessa procu- um atributo, uma força, decerto, mas a voz logo acres-
ra esbarra com diversos personagens, alguns deles tam- centa que, na essência, nenhuma dessas qualidades
bém escritores estrangeiros e negros, embora falantes de nunca é suficiente quando se trata de literatura, visto
francês, configurando um estranho deslocamento e evi- que escrever exige sempre outra coisa, outra coisa, ou-
denciando as ambiguidades herdadas pelos habitantes tra coisa. Então a voz se cala e te deixa na solidão, na
das antigas possessões africanas. Encontraremos no li- estrada, com o eco de outra coisa, outra coisa que gira
vro, permeando essa temática, o estranhamento existen- e foge, outra coisa diante de você, escrever exige sem-
cial da condição humana. pre outra coisa nessa noite de aurora incerta.

Há muitos obstáculos ao fazer uma apreciação desta obra “Escrever exige sempre outra coisa”, diz a citação. Ha-
prima. Desde o início tento definir o tema do livro, mas verá “outra coisa”? Haverá uma originalidade radical?
ele escapa. É um carrossel onde tento entrar enquanto Há indícios, no romance, de que “O labirinto do inuma-
gira. Sim, é sobre Literatura, mas ultrapassa um tema cir- no” copia, em parte, um outro livro. Essa suspeita per-
cunscrito. É sobre as angústias do escrever, sobre a busca meia as reflexões de Diégane, trazendo à tona o fato
infinda, retratada na busca do autor de “O labirinto do que cada obra se inspira nas outras que a precederam.
inumano”, mas é também sobre a vida em busca de um O que é, então, o plágio? Qual o critério, a distância da
sentido. Vejo-me repetindo, em outras palavras, o que já obra supostamente plagiada, para um texto ser consi-
foi dito. Uma citação talvez ajude: derado original?
Estes problemas surgiram anteriormente na realidade,
numa acusação ao escritor malinês Yambo Ouologuem,
que depois desse evento retirou-se da cena literária.
Mohamed Mbougar Sarr dedica seu livro ao colega afri-
cano. Além disso, o autor deixa claro, em sua obra, uma
dívida ao escritor chileno Roberto Bolaños, em especial
ao livro “Os detetives selvagens”. Como se vê, as referên-
cias se cruzam, uma narrativa leva a outra, e assim ao in-
finito do universo das Letras. E na vida, pode-se dizer?

Durante sua busca, Diégane cruza com diversos perso-


nagens, entre elas Siga D., uma escritora senegalesa de
60 anos, que conhece parte da história de T.C. Elimane.
Ela é central na narrativa, uma referência para os escrito-
res negros na Europa, quase um arquétipo materno. São
muitos outro os personagens significativos que o leitor
encontrará nesta obra, quase todos ligados dieta ou indi-
retamente ao mundo literário. Cada um deles é retratado
com maestria e tem seu lugar na trama – todos foram, de
algum modo, impactados pela leitura de “O labirinto do
inumano”, que serve de fio condutor para as vidas que se
entrelaçam.

O livro poder ser lido como uma crítica ao mundo lite-


rário, com suas normas, seus egos inflados, seus ciúmes
expressos ou disfarçados, sua ânsia de glória. Mas creio
que é uma leitura restrita. O texto extrapola o círculo dos
autores, editores e livreiros, alcançando dilemas existen-
ciais mais amplos, como tentei mostrar nesta apreciação.

Mohamed Mbougar Sarr nasceu em 1990 no Senegal, fi-


lho de um médico. Foi educado em uma boa escola mili-
tar de seu país e na Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais de Paris. Mora na França e sua língua é o francês.
Escreveu “A mais recôndita memória dos homens” com
menos de 30 anos. Ganhou, com esse romance, o prêmio
Goncourt, a mais alta honraria literária da França.

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