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Santa Maria, RS
2012
Daiane Silveira Rossi
Santa Maria, RS
2012
Daiane Silveira Rossi
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Profª. Drª. PhD. Beatriz Teixeira Weber (UFSM)
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Profª. Drª. Nikelen Acosta Witter – Orientadora (UNIFRA)
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Profª. Ms. Paula Simone Bolzan Jardim (UNIFRA)
ABSTRACT:
Investigating the sanitation project of the Santa Maria city, on early twentieth century, were
noticed changes in the urban landscape implicated by the project. Reviewing the literature
about the history of Hygiene and allusions in their urbanity place, realized the paucity of
works related to the theme. Thus, we sought to establish relationships between sanitarism,
urbanism and political context in order to understand the factors influencing a city in the
interior of Rio Grande do Sul, the formulation of a project prior to the sanitary pro-national
sanitation campaign. The methodology we used is the intersection of historiography that
addresses issues related to hygiene and urbanization, with the correspondence exchanged
between the Municipal Mayor Dr. Astrogildo César de Azevedo and engineer Francis
Saturnino de Brito and the President of the State Antônio Augusto Borges , and stewardship
reports and travel accounts. Several factors have triggered this process, among which stands
out the installation of the railway in the town, population growth and the interests of
politicians and doctors in the region in dealing with the health of the population as a form of
government action and social control.
Quem escolheu a História aos 10 anos de idade tem muito que agradecer pelo
incentivo em ir atrás deste objetivo traçado tão cedo.
Mãe, professora Marfisa, exemplo de profissional e de mulher, a ti devo toda a minha
formação. Teu estímulo à leitura dos clássicos, que com 09 anos não fizeram muito sentido,
hoje digo que certamente foi graças a eles que me tornei uma apaixonada por leitura. Não
posso deixar de destacar tua compreensão com minhas ausências, intensificadas neste último
ano, e por sempre dar um jeitinho em convencer o pai de que isto era necessário. Pai, que fez
de suas “vaquinhas” o investimento para me manter na cidade e numa faculdade particular, te
agradeço imensamente. Sem vocês dois não seria possível a conclusão deste curso e é a vocês
que dedico esses quatro anos de empenho exclusivo aos estudos. Certamente ainda retribuirei
a todo esse esforço.
A minha vó “do XIX”, Geni, por, mesmo sem entender “porquê essa guria tem que
estudar tanto”, sempre estar esperando com sua “gemada” e seu “arroz doce” para me agradar.
Vó, escrever sobre o final do século XIX e início do XX, foi a melhor maneira que encontrei
para estar “perto de ti” diariamente.
A Bisa “Tica”, no auge dos seus 97 anos de muita lucidez, agradeço pelas explicações
práticas do que era o contexto sanitário da cidade quando “o tal Dr. Astrogildo mandava por
aqui”.
Aos meus irmãos-filhos, Juliano e Jean, agradeço pelas distrações constantes. Juliano,
seu palhaço, tua alegria por mais que me irrite, colaboraram muito para me animar em meio
aos surtos de final de graduação. Jean, seu nerd, tua seriedade e maturidade são para mim um
orgulho e nossas conversas diárias sobre Harry Potter e afins sempre são um ótimo ponto de
escape deste louco mundo acadêmico.
A minha amiga-irmã-filha-mãe Tamiris, pelas altas madrugadas de discussões
acadêmicas, manhãs de leitura conjunta, sempre com auxílio a cada complexo texto que nos
deparávamos. Mas para além da academia, te agradeço pela compreensão das minhas
ausências, pelos abraços que sempre me fortalecem, pelos mates, simples conversas e boas
rizadas que me mantiveram em sã consciência nos últimos dois anos, obrigada por fazer parte
da minha vida!
A Casa de Memória Edmundo Cardoso, através da dona Terezinha Pires Santos e
Gilda May Cardoso, pelas infindáveis conversas sobre a História da nossa cidade, entre um
café e outro. Agradeço pela descrição de cada imagem das ruas e praças que me encantavam,
mas, sobretudo, por terem disponibilizado seus arquivos para que eu pudesse desenvolver essa
pesquisa.
Sou grata a todos os professores do Curso de História da UNIFRA. A professora
Janaína por ler meus primeiros artigos, sempre fazendo apontamentos que me fizeram crescer
academicamente, também não posso deixar de agradecer inúmeras caronas e as conversas
motivadoras de sempre “tu tem que sair, guria, aproveita”; ao professor Rangel pelas
discussões sobre História Urbana e nossos incansáveis debates sobre Halbawachs; as aulas de
Pré-História do professor Farinatti, sempre acompanhadas de uma ou outra discussão
futebolística ao som da bela Yamarra que nos acompanhava toda terça-feira às 22h; ao
professor Leonardo e suas infindáveis provocações sobre “essa tal historinha aí que tu
escreve”, sempre foram motivadoras para seguir pesquisando; ao professor Maccari, parceiro
de amor pelo tricolor, agradeço pelas inúmeras indicações de filmes que, um dia, ainda
prometo assistir todos.
Não posso deixar de agradecer a professora Roselâine Casanova Corrêa por ter me
proporcionado o início da minha formação como pesquisadora, através da bolsa de PROBEX,
a partir da qual foi onde encontrei as fontes deste trabalho. A ti, Rose também agradeço por
ter incitado em mim o apreço pela História de Santa Maria, especialmente, a sua urbanização.
As professoras Paula Bolzan e Beatriz Weber agradeço imensamente por aceitarem
fazer a leitura desse trabalho, tenho certeza que seus apontamentos serão essenciais para o
engrandecimento desta pesquisa. Professora Beatriz, inspiração acadêmica através de seus
textos sobre História da Saúde que me instigaram a compreender melhor essas “artes de
curar” em Santa Maria. Professora Paula, que no último ano se tornou essencial na minha
formação, através da orientação do Estágio, só tenho a te agradecer pela motivação que
sempre me passou, afim de que um dia me torne uma boa professora. Além de estar sempre
disponível para uma boa conversa, através de uma indicação ou outra de Mia Couto ou
Galeano, torna-se uma pessoa essencial na vida de teus alunos que acaba conquistando como
teus amigos.
A professora Nikelen Witter, primeiramente, agradeço por ter aceitado o desafio de me
orientar quando ainda estava nas primeiras leituras das fontes, em 2010; por sempre acreditar
no meu potencial e explorar ele de maneira incansável; pelas suas aulas que serão sempre
motivo de inspiração na minha carreira docente. Além disso, agradeço a ‘Sally Owens’ por
seus textos que sempre são um ótimo passatempo para desopilar desse academicismo que a
faculdade nos enquadra. Sobretudo, sou grata por ter me apresentado o Lumus, melhor lugar
para passar horas discutindo sobre o nosso fantástico mundo nerd e pelas amizades lá
construídas. Mesmo a distância, sempre há uma potterhead disponível para um bom bate-papo
que me faz perder a noção tempo e me ajuda tanto a desligar desse mundo louco.
Por fim, agradeço a algo superior, que mesmo não sabendo explicar ao certo o que é,
acredito que exista e que sempre é capaz de me fortalecer nos meus momentos mais difíceis.
Agradeço a vida, por me proporcionar sempre muita convicção dos meus sonhos e me fazer
correr incessantemente atrás deles.
“Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................12
2 A ERA DO SANEAMENTO...............................................................................................18
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................57
6 REFERÊNCIAS...................................................................................................................59
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1. INTRODUÇÃO:
Numa época em que está em voga o debate sobre problemas ambientais, chama
atenção o fato de que uma cidade já massivamente urbana como Santa Maria, situada no
interior do Rio Grande do Sul, distante 300 km da capital Porto Alegre, possuir uma realidade
na qual, pelo menos, 40% da população ainda enfrenta problemas causados por esgotos à céu
aberto. Conforme dados fornecidos pela CORSAN (Companhia Riograndense de
Saneamento) para o ano de 2010, menos de 50% das casas em Santa Maria possuem sistema
de esgoto coletado e tratado, já no que se refere ao tratamento da água, há uma totalidade de
100%. Dos 42 bairros, Camobi corresponde a 16,84% do território total do município, sendo
um dos mais extensos e o com o maiores problemas sanitários, pois não possui um sistema de
esgotos. Desde 2010, data limite para a renovação dos contratos da prefeitura com a rede
responsável pelo saneamento, uma das principais discussões que se vê na mídia é a respeito
de meios para sanar os problemas referentes à falta de higiene pública de vários pontos da
cidade. Entre os políticos, no período de eleição, resolver essa dificuldade está entre as
principais promessas de campanha.
A presente pesquisa aborda o primeiro projeto sanitário para cidade, quando este ainda
era responsabilidade dos municípios com apoio do governo do estado. Na década de 1960,
porém, o saneamento básico foi parcialmente privatizado sem que isso resolvesse a maior
parte dos problemas que existiam e ainda existem. De fato, os debates sobre a situação dos
saneamentos nas cidades permanecem extremamente atuais. Afinal, ainda hoje, este é um
problema que envolve políticas públicas referentes à salubridade e urbanidade, pois, conforme
afirmou o Secretário de Infraestrutura e Serviços do município em 2011, “não adianta
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asfaltarmos as ruas, sem antes criarmos o sistema de esgoto” 1. Ou seja, para iniciar este
trabalho, parte-se do pressuposto que as políticas sanitárias estão diretamente relacionadas às
medidas de intervenção no espaço urbano.
1
Entrevista concedida por Tubias Calill em 07/11/2011 – disponível em:
http://www.santamaria.rs.gov.br/noticias/3139-saneamento-basico-prefeitura-lanca-programa-com-investimento-
de-r-13-milhao-para-melhorias-em-regioes-carentes-da-cidade
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Foucault, ao explorar a medicina social, determina três etapas para a sua formação. A
primeira corresponde à “Medicina do Estado”, que se desenvolveu na Alemanha, no início do
século XVIII, onde haverá o princípio da intervenção estatal na saúde, através do
desenvolvimento de uma prática médica centrada na melhoria do nível de saúde da população.
A segunda refere-se à “Medicina Urbana”, desenvolvida na França, no final do século XVIII.
Nesse segundo conceito, o autor atribuirá à formação da medicina social como um fenômeno
oriundo da urbanização, ou seja, da necessidade de organização das cidades como uma
unidade. Através da preocupação com a Higiene Pública dos ambientes, por meio de uma
fiscalização dos locais de amontoamento, chamados “cemitérios”, controle da circulação de
água e ar e organização dos espaços de distribuição dos esgotos. Por fim, refere-se à
“Medicina da Força do Trabalho”, que surge na Inglaterra, no século XIX, com o objetivo de
controlar a saúde e o corpo dos trabalhadores, a fim de torná-los aptos ao trabalho e menos
perigosos como vetores de doenças à população mais rica (FOUCAULT, 2004).
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A historiografia mais recente, de meados da década de 1980 e anos 1990, foi marcada
pela pluralidade temática, onde os historiadores primaram por testarem os grandes “esquemas
explicativos” em pesquisas monográficas e aplicadas à contextos sociais e históricos
específicos. Tais esforços originaram “estudos que deram destaque à Saúde Pública e o papel
do Estado na sua construção” (WITTER, 2007, p. 152). Nikelen Witter aponta em sua tese
dois “balanços críticos”, um em nível internacional e outro nacional, elaborados acerca do
tema. No âmbito nacional, destaca o texto de Nísia Trindade e Maria Alice Carvalho, o qual
associa a temática da Medicina e das Políticas de Saúde no Brasil como um poder disciplinar
sobre a população (CARVALHO; LIMA, 1992). Já em nível internacional, Witter destaca a
obra de Dorothy Porter, que avaliou as pesquisas de Foucault e Rosen, comparando-as com
novas pesquisas em países europeus (WITTER, 2007).
contra uma História “olímpica”, a reflexão sobre antigas inquietações humanas – tais
como a família, a alimentação, o amor, a doença, a sexualidade e a morte –, quando
qualificada, ainda mais, pela ênfase na ação dos sujeitos e na crítica ao
estabelecimento de relações mecânicas entre estas ações e a estrutura econômico-
social, parece ser o que melhor corresponde à noção de uma História Social
(CARVALHO; LIMA, 1992, p.119).
Pública no Brasil, os pioneiros a abordar esse assunto, dentro da academia, foram os cientistas
sociais, a partir da década de 1980. Um dos primeiros foi o sociólogo Luis Antônio de Castro
Santos, com os artigos Estado e Saúde Pública no Brasil: 1889-1930 (1980) e O pensamento
sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade (1985),
ambos publicados pela Revista de Ciências Sociais – Dados. Nestes, o autor analisa as
questões de Saúde Pública na Primeira República, considerando o movimento sanitarista do
período como o mais importante projeto de construção da nacionalidade brasileira. O mesmo
autor, no livro A Reforma Sanitária no Brasil: ecos da Primeira República (2003), abordou
mais profundamente essas questões.
Outro sociólogo a abordar o tema foi Gilberto Hochman (1993; 1998). Seguindo na
linha de Castro Santos (1985), Hochman fez uma análise das relações entre saúde pública e
construção do estado no Brasil da Primeira República. No seu livro, A Era do saneamento: as
bases da política de Saúde pública no Brasil, o autor faz um estudo sobre a história da Saúde
Pública no Brasil, enfocando as décadas de 1910 e 1920, e abordando, especialmente, as
primeiras iniciativas higienistas de regulação do estado brasileiro. Hochman justifica o título
de sua obra, destacando o que significou, literalmente, a “Era do Saneamento”. Ele explica
que:
Sendo assim, dividiu-se em três partes. A primeira: A Era do Saneamento tem por
objetivo situar o leitor no contexto das reformas sanitárias e urbanas do final do século XIX e
início do XX, destacando o papel dos higienistas para a elevação da saúde como
responsabilidade do Estado. Na sequência, em Santa Maria/RS no final do século XIX e início
do XX pretende-se contextualizar o objeto de estudo dentro dos processos que ocorreram na
cidade no período, apontando para as motivações que levaram as autoridades locais a
desenvolver um projeto de saneamento. Por fim, A intendência do Dr. Astrogildo de Azevedo
e o saneamento de Santa Maria aborda o quanto as relações entre a política local e a estadual
influenciaram na tomada de decisões referentes à saúde no local. Além disso, neste capítulo
explora-se o projeto sanitário e suas implicações.
2
Ressalta-se que neste trabalho serão utilizadas as ortografias originais das fontes pesquisadas.
18
2. A ERA DO SANEAMENTO
As cidades passaram a ser vistas como “laboratório social”, pois eram onde poderiam
observar as doenças, a fome, a embriaguez e a loucura (LIMA, 2002). Doenças como o
cólera, a febre amarela e a peste eram as que dispendiam uma maior atenção das autoridades.
Pode-se dizer, inclusive, que elas transcenderam às ações de combate e consistiram em
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A sociedade brasileira viu-se obrigada a renovar-se e, por isto, fez dos higienistas seu
braço direito. Sob a ótica de que “a saúde torna-se cada vez mais necessária ao bom
funcionamento das sociedades em via de industrialização” (ADAM; HERZLICH, 2001, p.43),
era preciso equilibrar a noção de meio externo e interno, ou seja, sanear os ambientes
(externo) para obter uma melhor saúde do corpo (interno). Esta era uma necessidade, pois as
condições de vida e de trabalho nas cidades haviam se transformado em direção ao acúmulo
de pessoas e ao aumento dos contatos, o que fez com que aumentassem o número de
epidemias.
Este foi o caso da febre amarela no Rio de Janeiro, a qual os médicos relacionaram à
chegada de um navio negreiro vindo de New Orleans (EUA), em 1849, que teve seus
tripulantes dispersados. Isto teria disseminado a doença pela cidade, atingindo mais de 90.000
habitantes, dos 266 mil. Dessa forma, essa doença tornou-se a grande questão sanitária
nacional (CHALHOUB, 1999; BENCHIMOL, 2011). É nesse meio que o movimento de
higiene pública expande as normativas da saúde em relação à esfera pública. Os higienistas
relacionavam as doenças com o ambiente e com as relações sociais que produziam a fome, a
miséria, a exploração e a opressão. Uma intervenção sanitária neste contexto, por conseguinte,
foi identificada como revolucionária. Foi o período em que a medicina fundiu-se à política e
se expandiu em direção ao espaço social (CZERESNIA, 2000).
Ainda sobre o caso brasileiro, foi a partir da epidemia supracitada que o Império viu-
se obrigado a reorganizar suas ações nas questões de saúde. O que se desdobrou “na criação
da Junta Central de Higiene, em 1850-51, e relacionadas a esta, em cada província, as
Comissões de Higiene Pública” (WITTER, 2007, p. 59). Essa questão envolvendo doenças foi
tão significativa que o primeiro relatório a aparecer assinado por alguém que se intitulava
membro da Comissão de Higiene Pública no Rio Grande do Sul, datado de fins de 1853,
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demonstra claramente o papel que a epidemia de febre amarela teve como ativador das
preocupações governamentais com a saúde da população (WITTER, 2007).
O primeiro historiador a elaborar um estudo sobre a Saúde Pública foi o norte-
americano George Rosen, na década de 1950, através de seu livro “Uma História da Saúde
Pública”, que se tornou fundamental para os estudos sobre esse tema. Nessa obra, o autor
rompe com a história escrita somente por médicos. Rosen destaca que, ao longo do século
XIX, houve diferentes esforços no sentido de centralizar as administrações para a saúde
pública. Especialmente a partir da segunda metade do século XIX, se notaram mudanças mais
efetivas no que diz respeito à administração da saúde e saneamento. Estas ações ocorreram via
processo de higienização, centrando-se, primordialmente, no espaço urbano. Essa foi a
perspectiva que norteou a organização de políticas governamentais, dadas suas devidas
proporções, em diversos locais, como França, Inglaterra, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto
Alegre. Tais ideias, a respeito das ações sanitárias, tiveram forte influência no Brasil entre os
higienistas ou sanitaristas, como eram chamados aqueles engajados no movimento sanitarista
da República Velha (1889-1930).
Ao primeiro grupo pertencia o bacteriologista Oswaldo Cruz (1872 – 1917) que foi
por muitos anos Diretor Geral de Saúde Pública, cargo que hoje seria correspondente ao
Ministro da Saúde. Este médico acreditava que o progresso do país não acontecia devido à
insalubridade das cidades, pois isto consistia em um grande obstáculo para a modernização.
Também o acompanhava neste pensamento o Presidente da República Rodrigues Alves
21
quanto entre políticos, emergiram noções de inferioridade racial e isto foi atribuído à
proliferação das doenças infectocontagiosas do país (FARIA, 2007). A miscigenação, por
exemplo, era um fator de atraso e subdesenvolvimento, assim como o mestiço era visto como
um elemento nocivo à sociedade (CASTRO SANTOS, 1985).
Além disso, a partir das teorias bacteriológicas do final do século XIX, e depois com
as teses de Louis Pasteur sobre a microbiologia, as doenças também passaram a ser vistas
como um atraso para o progresso e a modernização da sociedade. Na bacteriologia da época,
acreditava-se que as origens biológicas das doenças eram provenientes da qualidade do ar, das
emanações miasmáticas ou dos cheiros fétidos, criando, desta forma, um estado atmosférico
propício ao contágio. Sendo assim, as cidades e suas precárias condições eram um grande
problema a ser solucionado, pois pela higiene do período entendia-se a ausência de cheiros
fortes e a não aparência de sujeira à visão. Entretanto, a profilaxia se resumia ao saneamento
ambiental, que era, basicamente, a quarentena e a exclusão dos doentes (BOARINI, 2003).
Nas últimas décadas do século XIX, o advento da microbiologia possibilitou uma nova
compreensão dos males. Visto que, com a descoberta da existência de micróbios
transmissores de infecções, decaí a ideia que as doenças eram transmitidas pelos miasmas,
entendidos, nessa época, como ares corrompidos. Este fato que não desqualificou a
necessidade de higienizar os ambientes, pelo contrário, aperfeiçoou os estudos sobre as causas
e tratamentos dos principais males que atacavam a população, pois “a insalubridade dos
ambientes, da moradia, dos alimentos e o esgotamento físico estavam entre os principais
vilões da saúde” (BOARINI, 2003, p. 35). Deste pensamento, nasceu o mito que a pobreza e a
falta de higiene, assim como os membros destes grupos mais pobres, são as causas das
proliferações das doenças infectocontagiosas.
como perspectivas reformistas, até radicais, era a medicina se fundindo à política e o Estado
em direção ao espaço social.
Ao observar estudos específicos sobre o cólera no sul do Brasil, não se pode deixar de
citar a tese de Nikelen Witter, intitulada Males e Epidemias: sofredores, governantes e
curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX), defendida em 2007. Neste
trabalho, a autora aborda a epidemia do cólera de 1855 - que assolou a capital da Província do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre - para compreender o papel dos sofredores, curadores e
governantes no que se refere às concepções de saúde, doença e cura; bem como suas
implicações para a institucionalização da Saúde Pública. Sendo assim, a década de 1850 foi
significativa no que se refere ao surgimento da Saúde Pública no Brasil, através do início dos
“debates acerca de qual papel seria representado pelo governo da nação junto ao processo de
melhoramento sanitário das cidades e do país” (WITTER, 2007, p. 22). No entanto, não se
pode ficar restrito a destacar somente o cólera, pois antes, mas ainda no início dessa década de
1850, a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro já havia apontado os primeiros destaques
à atuação do Estado para “amenizar as possíveis invasões das doenças” (PIMENTA,2011,
p.22). Tem-se como exemplo, a já citada, criação de uma Junta Central de Higiene na capital
e, junto a esta, Comissões de Higiene Pública em cada Província, que tinham o objetivo de
reestruturar a atenção sanitária oferecida à população.
responsável pela Província ressalta não haver epidemias, preocupa-se com as precárias
condições de higiene das cidades, situação que poderia ser propícia há uma instalação de
doenças. No ano seguinte, outro Presidente dessa mesma Comissão, Dr. Manoel Pereira da
Silva Ubatuba, envia um relatório apontando para “a enorme mortalidade provocada por
moléstias do tubo digestivo” (p.61), além de sua notável preocupação sobre a falta de água
potável. Ubatuba assinala os lugares e algumas ações que o governo e a Comissão deveriam
atuar para afastar “os males que dizimavam a população” (p.62). Mesmo com o envio de
relatórios anuais para a Junta Central, esta pouca importância conferia, foi apenas com a
epidemia do cólera de 1855 que foram dadas maiores atenções às reivindicações da Comissão
de Higiene da Província.
sertão. Este documento obteve uma grande repercussão no meio intelectual e político no
início da República, foi a partir dele que o Presidente de Academia Nacional de Medicina,
Miguel Pereira, proferiu um discurso a respeito da situação sanitária brasileira, no qual
afirmou que o país era um “imenso hospital” (HOCHMAN, 1998). Dessa forma, seriam
necessárias medidas para sanear este problema, que a partir de então não ficava restrito apenas
aos grandes centros, pelo contrário, era solucionando os males do interior do país que se
chegaria a medidas para resolver um problema nacional. Sendo assim, emergia, portanto, a
segunda fase do movimento sanitarista, marcada pelo início das discussões pelo saneamento
dos sertões e as primeiras efetivações de políticas públicas de saúde.
Além de “condenarem lugares como os morros, pois impediam a circulação dos ventos
capazes de dissipar os males pelos ares; entre os fatores morbígenos, sobressaíam as
habitações, especialmente as “coletivas” onde se aglomeravam os pobres” (BENCHIMOL,
2011, p. 240). Os médicos desaprovavam estes locais nos quais havia pouca luz e rara
circulação do ar, pois eram propícios a liberar nuvens de miasmas. Igualmente, também
combatiam outros hábitos da vida urbana, como por exemplo: animais mortos pelas ruas,
amontoados de lixos e valas a céu aberto, hospitais fora das regras higiênicas, ruas estreitas e
tortuosas que prejudicavam a circulação dos ares, pouca arborização nas praças, etc. Atrás de
todos esses diagnósticos, os higienistas contribuíram para que fossem estabelecidas as
primeiras leis que regulassem a higiene das cidades e o crescimento urbano, cujo objetivo era
transformar a capital do Império num local mais salubre e moderno – considerando que todos
os estudos eram voltados ao Rio de Janeiro.
e o início da República, a capital brasileira atraiu novos habitantes, dobrando sua população
que já ultrapassara os 500 mil habitantes. Paralelo a estes dados estavam às epidemias, que já
superavam o número de mortes das anteriores. A febre amarela, a varíola, a malária e a
tuberculose, juntas, causaram mais de 15 mil óbitos entre 1890 e 1891 (BENCHIMOL, 2011).
Sendo assim, os médicos higienistas perceberam que seus métodos profiláticos não estavam
sendo eficazes, eram necessárias medidas mais eficazes no controle e tratamento destas
doenças. Por isto, no programa de governo de Francisco de Paula Rodrigues Alves de 1901,
para o cargo de Presidente da República, o saneamento do Rio de Janeiro era prioridade.
A viagem de Artur Neiva e Belisário Pena foi financiada pelo Instituto Oswaldo Cruz
(IOC) e requerida pela Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão do Ministério dos Negócios
da Indústria, Viação e Obras Públicas. Entre as várias viagens financiadas pelo IOC, esta foi a
de maior repercussão, visto que se apontou para uma realidade até então desconhecida, que
caracterizava a população do interior do Brasil como doente, pobre, analfabeta, isolada
geográfica e culturalmente, além de com vocação para regredir (NEIVA, PENNA apud SÁ,
2009). O debate que girou em torno do relatório dessa viagem influenciou anos a fio em uma
reestruturação de políticas de saúde no Brasil. A criação de uma Liga Pró-Saneamento, em
1918, por exemplo, foi reflexo disto. Além de um movimento pelo saneamento dos sertões, da
defesa da criação de postos de profilaxia rural e de educação sanitária, e, sobretudo, a
campanha pela federalização dos serviços de saúde pública no Brasil, cuja maior expressão
foi à criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em dezembro de 1919
(CASTRO SANTOS, 1985; HOCHMAN, 1998). Sendo assim, inaugurou-se no cenário
nacional um movimento sanitarista que refletiu num discurso político idealizador. Período
caracterizado pelo fortalecimento da união entre Estado e medicina, no sentido de intervir na
sociedade e formular, definitivamente, políticas públicas de saúde. Os “sanitaristas e os
políticos adquiriram o direito de intervir na vida das populações, no sentido de higienizá-las,
discipliná-las e organizá-las de acordo com a lógica das novas relações sociais” (MELLO;
BELTRAME; 2010, p. 93).
Entre os literatos citados que faziam parte deste contexto do movimento sanitarista,
destaca-se a figura de Monteiro Lobato. Em um primeiro momento, Lobato estava
impregnado do pensamento dos políticos nacionalistas da época, que acreditavam que o atraso
do Brasil era responsabilidade do povo, especialmente os sertanejos. Quando criou o
personagem Jeca Tatu, estava representando esse caboclo do interior, considerado um “piolho
da terra, uma praga da terra” (LOBATO, 1912, apud CAMPOS, 1986, p. 15). Caracterizava o
caipira como passivo, preguiçoso, ignorante e supersticioso. Entretanto, quando Lobato adere
aos ideais do movimento pró-saneamento, concluí que “o Jeca não é assim, está assim” (apud
HOCHMAN, 1998, p. 68). Dessa forma, acredita que a melhor forma de “ressuscitar o Jeca”
seria passar a acreditar na medicina e suas prescrições higiênicas, só assim livraria os
sertanejos, caipiras, dos permanentes desânimos que as doenças os causavam.
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A partir da segunda metade do século XIX, o país passou por um intenso processo de
transformações econômicas, sociais e culturais. Buscava-se o progresso e a modernização,
para isto foram necessárias várias medidas de controle social, sendo que as políticas
higienistas se inseriam nesse propósito. Nas palavras da historiadora Margarida de Souza
Neves, a virada do século XIX para o XX foi definida por “vertigem e aceleração do tempo”,
referindo-se a capital da República, Rio de Janeiro (2011, p.15).
Ainda que de forma menos contundente, o mesmo sentimento estaria presente nas
principais cidades brasileiras, que, tal como a cidade-capital, cresciam como nunca,
tornavam complexas suas funções e recebiam levas de imigrantes europeus (...).
Tudo parecia mudar em ritmo alucinante. A política e a vida cotidiana; as ideias e as
práticas sociais; a vida dentro das casas e o que se via nas ruas (NEVES, 2011, p.
15).
propiciando-lhes certa prosperidade na região. Entretanto, embora houvesse essa ligação com
o meio rural, suas atividades consistiam-se essencialmente urbanas, eram oleiros,
marceneiros, alfaiates, ourives, pedreiros, sapateiros, etc. Segundo o Relatório do Presidente
da Província, Joaquim Antão Fernandes Leão, em 1859 havia na Vila “14 curtumes, 37
atafonas, 14 olarias, 10 marcenarias, 8 ferrarias, 6 ourives, 18 alfaiatarias, 10 sapatarias, 8
lombilharias, 4 carpintarias, 10 pedreiros, 14 curtidores, 2 pedreiras, 40 casas de negócio”
(apud CARVALHO, 2005, p. 45). Considerando que grande parte destas casas comerciais era
de imigrantes alemães, se pode inferir que nada tinham de pobres infelizes, como, na maioria
das vezes, destaca a historiografia tradicional. O viajante Robert Avé-Lallemant, quando
esteve em Santa Maria, fora hospedado por um jovem ourives alemão, de 18 anos e já
independente da família, ou seja, pode-se perceber a prosperidade de alguns imigrantes na
região. Assim sendo, esses imigrantes ocuparam alguns cargos importantes na cidade, além de
possuírem um papel fundamental no cenário comercial da região até, pelo menos, a década de
1880.
Além das condições econômicas, alguns relatos apontam para as condições dos
espaços da cidade que atentam para um cenário essencialmente ruralizado, com um ambiente
urbano muito precário até as últimas décadas do século XIX. Elementos comprovados através
da análise do relato do Presidente da Província Joaquim Leão, no qual descreve que havia “4
estradas gerais, em mau estado, 2 pontes, em estado de ruína, ruas e praças também em
ruínas” (apud CARVALHO, 2005, p. 51).
Há também outros dois elementos importantes para destacar do final do século XIX na
região central do Estado. O primeiro foi o fato de as primeiras levas de imigrantes italianos
terem se instalado no Núcleo Colonial de Silveira Martins, nos anos de 1877 e 1878. E o
segundo foi à instalação da rede ferroviária em Santa Maria entre 1880 e 1885.
A imigração italiana nessa região, segundo Maria Catarina Zanini, tratava-se de uma
migração familiar. Eram parentes, vizinhos, amigos, “uma série de relações que foram muito
importantes também na continuidade de atração de novos imigrantes, fato que foi se
efetuando até as primeiras décadas do século XX, sempre em menor escala” (ZANINI, 2008,
p. 146). Especificamente sobre o Núcleo Colonial de Silveira Martins, conhecido como
Quarto Núcleo Imperial de Colonização Italiana, os imigrantes que chegaram à região foram
assentados em “barracões”, até que fossem demarcados seus lotes de terras. Entretanto, alguns
nem esperaram a conclusão destas definições e se estabeleceram nos distritos de Santa Maria,
32
através da compra de alguns lotes, o que comprova que alguns migraram com capital
suficiente para tal. Maíra Ines Vendrame aponta que a escolha destes lotes não foi aleatória,
As relações de amizade entre algumas famílias era um aspecto que contribuía para
que procurassem se estabelecer próximas umas das outras. [...] Uma rede de
reciprocidade entre elas que permitia a elaboração de estratégias conjuntas de
ocupação e organização de um determinado espaço. [...] As afinidades entre os
grupos familiares foi um recurso que possibilitou que houvesse uma coesão nos
núcleos colônias da região central do Rio Grande do Sul (VENDRAME, 2012, pp.
144-145).
porto da Argentina (MORALES apud PRESTES, 2010, p. 20). Além disso, dentre os
problemas urbanos, estavam a falta de uma melhor estrutura viária, abastecimento de água,
iluminação pública, fornecimento de energia e ruas sem calçamento, fatores que faziam de
Santa Maria um local com sérios problemas sanitários. O engenheiro civil com experiência
em sanitarismo Francisco Saturnino de Brito, quando esteve em Santa Maria, em 1918, para
elaborar o projeto de saneamento para a cidade, descreveu seu cenário:
A posição geográfica desta cidade, centro do Estado do Rio Grande do Sul, e o fato
de daí partirem as linhas férreas para São Paulo, para Porto Alegre, para o porto de
Rio Grande e para a fronteira do Brasil dão-lhe uma tríplice importância: política,
comercial e sanitária. Assim como os benefícios de qualquer ordem, na economia
social, daqui podem irradiar com destinos vários, assim também os malefícios aqui
gerados podem espalhar-se, e os que por aqui passarem, vindos de localidades
insalubres, se poderão fixar-se na cidade se não se preparar convenientemente a sua
defesa pelo estabelecimento de boas condições de salubridade. O coração do estado
precisa se preparar para o duplo trabalho, eferente e aferente, proveniente da
circulação que se estabeleceu e aumenta cada vez mais (Revista CCA, Santa Maria,
31 de maio de 1931).
De acordo com a visão cientificista de Saturnino de Brito, na qual faz relações entre o
biológico e o social, através da comparação com um coração devido à posição geográfica da
cidade, a ferrovia poderia ser um grande foco de propagação de enfermidades, tendo em vista
que percorria as mais variadas cidades do Estado e da região sudeste do Brasil. Além disso,
havia uma discussão nesse período referente à higiene pública, através da qual a noção de
contágio estava vinculada ao indivíduo como agente causador da disseminação de doenças. Se
a ferrovia estava proporcionando uma maior circulação de pessoas na cidade, então era
necessário saneá-la, pois “as ações sanitárias visavam a livrar os indivíduos saudáveis do
contato com os doentes e livrar os doentes dos agentes causadores” (WEBER, 1999, p. 51).
Dessa forma, uma Santa Maria pouco saudável poderia significar a propagação de
insalubridade e epidemias pelo país.
O acesso à cidade também era bastante limitado, numa descrição de 1860, o viajante
italiano Henrique Ambauer, comenta sobre as condições da cidade.
Um terreno quase plano, pontilhado por sangas barrentas e lagoas pouco profundas,
algumas das quais podiam tornar-se atoleiro que infernizavam a vida dos passantes
(...) existiam somente duas ruas notáveis, de resto, eram casas que se espalhavam
pelas coxilhas circundantes sem que se formassem ruas bem definidas (apud
WITTER, 2001, p. 26).
No mesmo período, da década de 1860, a família Daudt fez uma viagem até São
Leopoldo e também descreveram precárias condições. “Até Rio Pardo fizemos a viagem em
15 dias, numa carretilha puxada por 3 juntas de bois. A estrada era péssima, que só mesmo
com a força de meia dúzia de bois possantes poderia safar-se o veículo das ‘sangas’ e dos
atoladores” (DAUDT FILHO, 2003, p. 33). Através desse relato, nota-se uma pouquíssima
urbanização, sobre um contexto maior ainda fortemente ruralizado. Por outro lado, fora da
Vila, ficam aparentes as difíceis condições de locomoção que as estradas que a ligavam a
outras regiões da Província forneciam. Com base em Daudt, pode-se localizar quais os tipos
de tráfego do período, caracterizado ou pelas carretas ou pelos cavalos. Sabe-se que esta era
uma realidade não apenas de Santa Maria, mas da maioria das cidades do Brasil. Entretanto,
esse contexto se estende até a instalação da ferrovia, no que tange ao núcleo do povoado, e
adentra o século XX para alguns distritos mais afastados, como a região que fazia limites com
o município de São Sepé.
Com exceção da estrada da colônia Silveira Martins as outras são más, abertas
simplesmente no campo ou no mato, no verão são secas e transitáveis, mas no
inverno se tornam impossíveis de transitar (...) as ruas do centro da cidade não são
calçadas (...). Ressente-se o arrabalde do Passo da Areia de uma ponte ou pontilhão,
(...) que no inverno quando as chuvas são constantes os moradores são obrigados a
ficarem cortados do livre trânsito até que baixem as águas (...) Na estrada para São
Sepé, estrada geral de comércio, há um sangradouro do banhados dos Pintos que é
um verdadeiro martírio ao viajante, quer escoteiro, quer de carreta; o interesse
público clama pela construção de um pontilhão (apud CARVALHO, 2005, p. 58).
35
Ilustração 02
Planta da cidade de Santa Maria de 1902
Ainda assim, não se pode excluir deste contexto a intensa movimentação material e
humana que a linha férrea proporcionou. Os fatores iniciais dessas modificações que se
projetavam estavam nos aspectos geográficos que circundavam Santa Maria. O viajante
alemão, Wilhelm Lacmann, quando lá esteve em 1903, descreveu a respeito disto.
Todas as rotas que ligariam a capital à fronteira oeste do Estado passavam pelo local,
favorecendo um ponto estratégico de instalação de casas de comércio e, por conseguinte,
oportunidades de empregos, fatores que atraíam a instalação de muitos que por ali só estavam
de passagem.
Daniela Valandro de Carvalho, analisando esse período, que se estende do final do
século XIX e início do XX, fez um gráfico que demonstra o crescimento populacional da
cidade.
37
52.960
50.000
36.000
Habitantes
30.185
25.207
13.000
8.228
1872 1885 1890 1900
Anos 1907 1910 1920
Ilustração 03
Mapa da Rede Ferroviária do Rio Grande do Sul em 1910
esse crescimento estatístico nos mostra a tamanha influência exercida pela ferrovia
no processo de urbanização e crescimento da cidade de Santa Maria, como um
atrativo inegável, não só pelas novas oportunidades de emprego, mas, sobretudo por
ser o ponto de encontro dos trilhos gaúchos, trazendo e levando pessoas, provocando
uma intensa circularidade material e humana, conferindo a cidade a característica de
ser uma cidade de passagem (CARVALHO, 2005, p. 55).
Isabelle, em 1834, ainda afere que “a situação desta povoação é muito agradável; os arredores,
encantadores, são passivelmente habitados” (ISABELLE apud WITTER, 2001, p. 28); e
Robert Avé-Lallemant, em 1858, destaca que “da crista da serra goza-se maravilhosa vista.
Sobre belos vales e desfiladeiros descortina-se a aprazível Santa Maria e, mais longe, os
imensos campos da Província” (AVÉ-LALLEMAND apud WITTER, 2001, p.28-29).
Comparando-se os relatos destes viajantes com o discurso dos higienistas do mesmo período,
se podem encontrar algumas semelhanças ao pensamento hipocrático, espécie de manual mais
recorrente do período, no qual se destaca os ares, águas e lugares. Dessa forma, compreende-
se a referência à salubridade dos espaços, o bom regime dos ventos, águas e temperaturas,
sendo um ambiente privilegiado em relação às outras regiões (WITTER, 2005). Entretanto,
ainda se tem uma visão sobre os lugares amparados pela natureza favorável a saúde, e não
como um ambiente salubre graças à intervenção humana, como pensavam os sanitaristas
desse período. Ou seja, acreditavam apenas numa perspectiva de higiene através de um
controle sanitário da população e do meio externo (VIGARELLO, 2001; NEVES, 2000).
Sobre o final do século XIX, o médico Astrogildo César de Azevedo fez um relato
sobre as condições sanitárias da cidade, sendo este publicado na Revista Comemorativa do
primeiro centenário da cidade em 1914.
Esse pensamento, que exaltava a salubridade natural dos espaços, não ficava restrito
apenas ao médico Astrogildo de Azevedo. Além dos viajantes, que também apontaram esta
característica desde o século XIX, o Presidente do Estado entre 1908 e 1913, Carlos Barbosa
Gonçalves, quando se referiu as epidemias de varíola e peste bubônica nas cidades de Pelotas,
Porto Alegre e Rio Grande, afirmou que devido às “magníficas condições do clima com que
foram brindadas, as epidemias extinguiram-se ao entrar” (apud WEBER, 1999, p. 53). O
engenheiro Saturnino de Brito, contratado por Astrogildo de Azevedo para elaborar o projeto
de saneamento de Santa Maria, quando esteve na cidade em 1918, a pedido do médico que na
época era Intendente Municipal, também ressaltou os aspectos salubres do local. “As
40
Entende-se que os objetivos dos dois relatos eram diferentes, o primeiro foi exposto a
população, tinha um caráter comemorativo. Já o segundo trata-se de um relatório interno,
entre os responsáveis pela saúde do município e cujo objetivo do Delegado de Higiene era
apontar os problemas pelos quais almejava que medidas fossem tomadas de imediato,
inclusive porque já previa a instalação e propagação de doenças em função da insalubridade
em que se encontrava Santa Maria. Evidente que não exporia isto aos santa-marienses, pois
além de, provavelmente, causar um pânico geral, estaria abrindo margem para possíveis
reivindicações que recairiam sob seu cargo.
Num âmbito mais global, outro dado relevante sobre a situação sanitária está
relacionado à mortalidade infantil. Historiadores apontam que a rarefação de certas epidemias
justifica-se por várias medidas de proteção contra o contágio. Estas se davam através do
progresso na administração das cidades, aperfeiçoamento das técnicas agrícolas, controle do
desequilíbrio demográfico, mas, sobretudo, devem-se às melhorias das condições de higiene e
a universalização da educação. Além disso, merece destaque a diminuição da taxa de
mortalidade infantil, “enquanto esta permanece muito alta – as crianças são mais vulneráveis
41
controle dos ambientes e da população não fossem efetivadas de imediato, ainda assim,
percebeu-se a adoção de algumas profilaxias urbanas que ajudaram na diminuição gradual do
coeficiente de óbitos e no controle das principais epidemias que assolaram o Estado no
período. Tem-se como exemplo: a varíola em 1905, o tifo em 1909 e a peste bubônica em
1912, esta última será abordada no capítulo seguinte, destacando o caso que ocorreu em Santa
Maria.
43
Embora Santa Maria fosse reduto de ferrenhos liberais durante o Império, tendo
Gaspar Silveira Martins vários adeptos no local, a partir do final da década de 1890 este
cenário se modifica. Em 1888, ocorreu na cidade o 6º Congresso Republicano do Rio Grande
do Sul, com a presença dos principais nomes da política rio-grandense do período: Júlio
Prates de Castilhos, Antônio Augusto Borges de Medeiros, Ramiro Barcelos, Fernando
Abbott, Pinheiro Machado, Francisco de Abreu Vale Machado, entre outros. Neste mesmo
encontro, foi eleita uma Comissão Executiva do partido para ser representada no Congresso
Nacional no Rio de Janeiro, sendo integrada por Ramiro Barcelos e Júlio de Castilhos
(BELTRÃO, 1979). Essa reunião foi muito expressiva, pois além de traçar os rumos das
diretrizes do partido dali em diante, significava estabelecer num centro estratégico do Estado
novos adeptos e fortalecer as alianças entre políticos da capital e do interior.
literário” (RIBEIRO, 1993, p. 104). Ou seja, a maioria era composta por adeptos ao governo
castilhista-borgista, servindo como “formadores de lideranças partidárias, sustentando
campanhas eleitorais entre grupos opostos e expressando o descontentamento das dissidências
e rupturas internas dos partidos” (BIAVASCHI, 2012, p. 194).
Em 1907, ano de eleição para presidência do Rio Grande do Sul, há uma cisão no
Partido Republicado. Pressionado pelo já dissidente do PRR, Joaquim Francisco de Assis
Brasil, Fernando Abbott, correligionário de Castilhos, concorre pelo recém-fundado Partido
Republicano Democrático (PRD). Percebendo a dificuldade em controlar o partido, Borges de
Medeiros prefere ficar no comando interno e lança Carlos Barbosa às eleições (PEZAT,
2007). Em Santa Maria, o grupo dissidente conseguiu apoio da maior parte do PRR local,
motivando Borges a promover aliados aos principais cargos da cidade. Além disso, para
fortalecer sua influência, cria um novo periódico republicano A Tribuna (1907-1911) – que
mais tarde se transformaria em Diário do Interior (1911-1939) – e fecha o jornal que fazia
oposição no período, O Estado (1898 – 1907). Embora a maioria apoiasse Abott, as
estratégias de persuasão borgistas eram mais fortes, resultando na vitória de Carlos Barbosa
na cidade, mesmo que por apenas 150 votos de diferença (BIAVASCHI, 2012).
Outro jornal que ficou caracterizado por ferrenhas oposições aos perrepistas foi O
Federalista (1912-1917), transformado, posteriormente, em Correio da Serra (1917 - ? ),
liderado pelo político e jornalista, pertencente ao Partido Federalista, Arnaldo Melo. O
combate deste periódico ao PRP teve seu auge em 1918, quando suas instalações foram
assaltadas e parcialmente destruídas, obtendo repercussão estadual, tendo em vista que
participaram do ato soltados da Brigada Militar sob ordens do delegado de polícia da cidade.
Este fato desencadeou a renúncia do então Intendente republicano, Dr. Astrogildo de
Azevedo. Entretanto, entende-se ser necessária uma compreensão mais ampla sobre os
motivos que levaram a derrocada de Azevedo, juntamente com seu vice, o Conselho
Municipal e todas as demais autoridades oficiais que compunham a Intendência.
Essa crise política atingiu projeções que foram além de Santa Maria, pois por trás dela
estavam as duras criticas do jornal à cobrança de imposto de exportação municipal. Para
afastar a crise causada pela greve dos ferroviários de 1917, a Intendência estabeleceu taxações
sobre todos os produtos produzidos no local, aliado aos já existentes sobre o abate e a criação
de gado, o predial de veículos e de concessão de licença a comerciantes. Entretanto, Borges
de Medeiros não concordava com essa autonomia fiscal, revelando um conflito de interesses
45
entre governo municipal e estadual (BIAVASCHI, 2004). Essa fragilidade entre parceiros
políticos foi um bom motivo para os opositores lançarem-se às críticas, enfraquecendo os
laços entre os republicanos. Tanto que, quando ocorreu o atentado contra o jornal e o
intendente se viu completamente acuado pela crise que já estava passando e então renunciou,
o presidente do Estado não articulou nenhum meio para reestabelecer seu prestígio, apenas
nomeou um novo representante que correspondesse aos seus termos. Os jornais da situação,
representados, especialmente, pelo Diário do Interior, fizeram vistas grossas aos fatos,
obedecendo muito mais aos interesses de Borges de Medeiros do que do líder local.
Doenças como difteria, febre tifoide, peste bubônica, varíola, varicela, sífilis e
tuberculose fizeram parte do cenário rio-grandense entre 1895 e 1928, com alguns casos
sérios de epidemias, como já citado, de varíola, tifo e peste bubônica. Em um artigo publicado
em 1914, um dos médicos que atuava na cidade, Dr. Astrogildo de Azevedo, relata que estas
doenças eram comuns ao local, sendo responsáveis pela maioria das mortes. Entre 1909 e
1910, o Inspetor de Higiene Municipal, Dr. Alfredo Torres, fez um balanço geral das
enfermidades e condições higiênicas do município, destacando como sérios problemas a falta
de sistemas de esgoto e abastecimento de água. Acreditava que várias doenças poderiam ser
evitadas se houvessem melhorias nestas áreas (WEBER, 1999; WEBER; QUEVEDO, 2001).
Quando analisada a documentação, são nítidas as recorrentes menções às medidas
higiênicas. Em 1858, numa correspondência trocada entre um vigário da Vila de Santa Maria,
Pe. Antônio Gomes Coelho do Vale, com o Presidente da Província, Joaquim Fernandes
Leão, nota-se que já havia preocupação com a higiene. Nessa carta foi apontado que o
46
Como não havia saneamento, os lixos e dejetos eram depositados em tonéis vendidos
pela Intendência que, quando cheios, eram deixados em frente às residências a fim de que os
responsáveis, conhecidos como ‘cubeiros’, recolhessem e levassem para o local estabelecido
pela administração municipal. Essas ações eram, inclusive, cobradas, havia uma taxa para a
limpeza e varredura das ruas. Entretanto, além desse serviço ser ineficiente, havia pouca
fiscalização, o que acabava resultando no lançamento desses resíduos no pátio das casas,
prejudicando a salubridade pública 3. Em relato ao engenheiro Saturnino de Brito, Astrogildo
de Azevedo aponta esses problemas higiênicos da cidade.
A remoção dos materiais fecais faz-se em cubos ou fossas móveis para fora da
cidade. O lixo é retirado em carroças. Tais serviços são muito incompletos: fica
ainda muita imundice nos quintais. O calçamento das ruas é feito de pedras
irregulares sobre lastro de areia. Em algumas vias públicas, é completo; em outras
limita-se a duas faixas longitudinais de 2 a 4 metros, constituindo sarjetas
(Correspondências Expedidas, 16/12/1916, fundo Astrogildo de Azevedo, acervo
CMEC).
3
Fundo da Intendência Municipal, AHMSM. Caixa 09, livro 44, p. 127, 1906.
47
4
Fundo da Intendência Municipal, AHMSM - caixa 14, livro 68, p. 41, 1911.
48
Caridade. Foram também distribuídos materiais para a desinfecção e isolamento dos locais
nos quais ocorreram casos de contaminação. Além disso, ficou determinado que praças da
Brigada Militar fariam o policiamento dos ambientes infectados, a fim de não deixar ninguém
se aproximar. Em casos de residências particulares, a fiscalização era para que não entrassem
nem saíssem até que fosse dizimada a doença (Diário do Interior, agosto de 1912, apud
PRESTES, 2010).
Ainda sobre o relatório citado de 1915, acha-se pertinente fazer algumas considerações
sobre o quanto seus dados podem ter influenciado às realizações de algumas medidas
profiláticas para resolver os problemas higiênicos de Santa Maria.
5
Correspondência Expedida, 12/09/1916, fundo Astrogildo de Azevedo – CMEC.
49
Grippe 04
Molestias choleriformes 01
Dysenteria 19
Peste 05
Lepra (Morphéa) --
Erysipela --
Outras moléstias epidêmicas 17
Infecção purulenta e septicemia 06
Pustula maligna e carbúnculo --
Hydrophobia --
Tuberculose pulmonar e de outros órgãos 65
Escruphulose 01
Syphilis 01
Blenorrhagia do adulto --
Câncer e outros tumores malignos 06
Outros tumores --
Rheumatismo --
Escurbuto --
Diabetes --
Molestia bronzeada de Addison --
Ankilostomiase --
Leucemia 01
Anemia – Clorose --
Outras moléstias geraes 02
Alcoolismo --
Saturnismo --
Affecções do systema nervoso 26
Affecções do aparelho circulatório 27
Affecções do aparelho respiratório 33
Affecções do aparelho digestivo 100
Affecções do aparelho urinário e anexos 15
Affecções puerperaes 06
Affecções da pelle e do tecido cellular --
Affecções dos órgãos da locomoção --
Affecções da infância e vícios de conformação 15
Debilidade geral 09
Affecções produzidas por causas exteriores 22
Molestias mal definidas 447
Total: 895
Nati-mortos 52
Fonte: Relatório apresentado ao Ex. Snr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado, Vice-Presidente
em exercício do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Protasio Antonio Alves, secretário de Estado
dos Negócios do Interior e Exterior. 08/09/1915. AHRS.
Das 44 possíveis causas de mortes, constadas no relatório que possuía esse formato
padrão para todas as cidades do Estado, 27 ocorreram em Santa Maria, totalizando 61,3%, o
que permite dizer que o índice e a variação de doenças no local eram muito altos. Dos 895
50
óbitos, excluindo os 447 casos de moléstias mal definidas, temos 448 e destes, 140 estão
diretamente relacionados a problemas envolvendo a falta de saneamento. Ou seja, 31,25% das
pessoas que passavam por um diagnóstico médico faleceram devido a quatro doenças: afecção
do aparelho digestivo, febre tifoide, disenteria e moléstia coliforme. Destas, a febre tifoide e a
moléstia coliforme estavam completamente relacionadas a problemas de abastecimento de
água, pois eram causadas por sua contaminação. Afecção do aparelho digestivo e moléstia
coliforme, talvez também pudesse causar infecção pelo mesmo motivo, mas é certo que se
trata de casos de falta de higiene, pois se não fosse por problemas hídricos, poderia ser devido
à ingestão de alimentos contaminados, insalubres. A divulgação deste relatório foi feita no
final do ano de 1915, portanto, no ano seguinte, esse documento seria a base para possíveis
tomadas de decisões relacionadas à saúde da cidade, tanto pela Intendência quanto pelo
Presidente do Estado.
Em 1916, ocorreram eleições municipais, sendo eleito Dr. Astrogildo de Azevedo, que
assumiu a administração em outubro daquele mesmo ano. Não é possível mensurar o quanto o
relatório de doenças do ano anterior influenciou na política de Azevedo, entretanto, ainda
analisando suas correspondências, ficou claro que seu objetivo principal enquanto Intendente
seria elaborar um projeto de saneamento. Mesmo antes de sua posse trocou cartas com
Saturnino de Brito, articulando estratégias para que seu objetivo fosse realizado.
Meu amigo Dr. José Barbosa Gonçalves teve a bondade de lhe escrever uma carta a
respeito do saneamento de Santa Maria, de cujo município assumirei a
administração no dia 3 de outubro próximo. [...] Este ano não será possível iniciar o
serviço porque recebo o município em péssimas condições financeiras e terei de me
dedicar inteiramente a tarefa de equilibrar o orçamento. Acredito que no próximo
ano, seja possível dar começo aos trabalhos preliminares do grande melhoramento,
objeto principal de minhas preocupações. Meu pensamento é convidá-lo para visitar
a cidade a fim de inteirar-se das particularidades peculiares ao caso e traçar a diretriz
a seguir para chegar a solução preferível. [...] Esta cidade é o centro geográfico do
Estado e não possuí nas vizinhanças rios caudalosos, onde se possa captar a água e
lançar o efluente dos esgotos. Deve-se procurar água no subsolo? Aduzi-la de rios
distantes? Conjugar varias fontes próximas? Onde abandonar as águas do esgoto?
São outros tantos pontos que nos deixam perplexos e que V. Ex. poderá elucidar sem
muita perda de tempo. Seria de primacial importância para mim ter desde já uma
ideia, ainda que não fosse muito aproximada, de quanto teria que despender o
município com os estudos completos (Correspondências expedidas, 12/09/1916,
fundo Astrogildo de Azevedo – CMEC).
51
Pensando, portanto, no projeto sanitário como uma política pública de saúde, cabe
destacar as articulações do Intendente com o Presidente do Estado para conseguir convencê-lo
da importância de trazer um engenheiro renomado no país, como Saturnino de Brito, que já
havia realizado o projeto de saneamento de grandes cidades, como Rio Grande, Santos, Belo
Horizonte, Belém, João Pessoa e Recife (REZENDE; HELLER, 2008). O caráter liberal da
Constituição de 1891concedia autonomia aos Estados brasileiros para a realização de políticas
públicas e a política positivista do PRR no Rio Grande do Sul que tinha por princípio a não
intervenção nas liberdades individuais. Isto significava que os municípios eram relativamente
autônomos para tomar decisões deste caráter, desde que não afetasse drasticamente nos seus
orçamentos (WEBER, 1999). Percebe-se essa característica na carta, já mencionada, de
Azevedo para Brito: “este ano não será possível iniciar o serviço porque recebo o município
em péssimas condições financeiras e terei de me dedicar inteiramente a tarefa de equilibrar o
orçamento”. Embora o saneamento fosse prioridade, era necessário reestabelecer as finanças
primeiro, para, talvez, não se indispor com o Estado.
Além disso, Dr. Astrogildo de Azevedo tinha como forte argumento o Regulamento da
Diretoria de Higiene do Estado do Rio Grande do Sul, aprovado em 1907, o qual se referia à
organização “do serviço sanitário do Estado, devendo atender a todas as questões relativas à
higiene, moléstias endêmicas, epidêmicas e transmissíveis, condições sanitárias da população
e das habitações coletivas” (WEBER, 1999, p. 50). Ainda havia a vantagem de Azevedo ser
do mesmo partido de Borges de Medeiros, fator de extrema importância nesses casos de
negociação. Acompanhando as datas das correspondências trocadas entre os três envolvidos
nesse processo, percebe-se que assim que o Intendente acertava algum termo com o
engenheiro, imediatamente o Presidente era avisado e remetia congratulações ao seu
correligionário por estar ponto em prática seu grande projeto de governo 6.
Outro elemento que muito agradava a política borgista era o caráter de controle social
que havia nos planos de Astrogido de Azevedo. Fazia parte do Regulamento de Higiene do
Estado termos que estabeleciam “ações sanitárias que visavam vigiar e controlar o meio
externo para garantir a sua higiene, por meio de instrumentos coercitivos, como polícia e
campanhas” (WEBER, 1999, p. 51). Portanto, ações que visassem controlar os espaços e a
população eram aceitadas pelo governo. Quando foi Delegado de Higiene, em 1899, Azevedo
já demonstrava esse caráter através de algumas medidas, como, por exemplo, punição para
6
Correspondências expedidas e recebidas – fundo Astrogildo de Azevedo – 1916 a 1918. Acervo CMEC.
53
quem descumprisse o Código de Posturas do município, que proibia a população a jogar lixo e
dejetos em locais não autorizados. De acordo com o discurso do médico, eram os maus
hábitos do povo os responsáveis pelos problemas de saúde na cidade 7.
7
Fundo da Intendência Municipal. AHMSM. Caixa 14, Livro 76, p. 81, 1912.
54
A partir dos dados das tabelas 04 e 05, comprova-se que embora 60,7% das casas
fossem beneficiadas com o saneamento, isto não significava a mesma proporção para os
espaços. Dentro de uma lógica de sanear o eixo ferrovia-centro, desconsideram-se ruas com
um grande número de prédios, como a Tuyuty, com 185, e a Avenida Ypiranga, com 122, por
exemplo, por serem um pouco mais afastadas dessa região central. Enquanto isso, estavam
previstas ruas com menos de dez casas, como a Praça Saldanha Marinho com 06 e a Rua Vale
Machado com 07, pelo fato de estarem em posições estratégicas dentro da lógica
modernizante e reguladora que a ação de sanitária previa.
Além disso, se for observada a ilustração 04, constata-se que data de dois anos após as
tabelas 04 e 05, isso significa que ela foi elaborada pelo sanitarista Saturnino de Brito a partir
dos dados coletados anteriormente por Astrogildo de Azevedo. Demonstrando, portanto, o
eixo ferrovia-centro, referido anteriormente, que na planta está destacado pelas áreas de
traçados irregulares na posição central-sul da figura. Dessa forma, fica mais clara a percepção
56
do ideal de sanear apenas o centro da cidade, pois, analisando a imagem, percebe-se a extensa
área que não entrou no projeto de saneamento. Ficou complicado de mensurar, mas
certamente corresponde a bem mais de 50% do território total da cidade. Sendo assim, ainda
compreendendo as estratégias de Astrogildo de Azevedo como algo completamente inserido
na ideologia borgista. Conclui-se que essa proposta de políticas públicas higienistas
significava uma cidade organizada e saudável, sendo isto uma projeção do ideal positivista de
uma sociedade disciplinada.
57
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Ao final desta pesquisa, espera-se ter resolvido seu objetivo principal, compreender o
primeiro projeto de saneamento de Santa Maria, através de discussões a respeito do final do
século XIX o início do XX. Buscou-se debater sobre quais motivos levaram aos políticos da
época em buscar por um projeto sanitário para um município do interior do estado, num
período em que apenas as três maiores cidades Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas estavam
desenvolvendo essa ideia.
Em função da doença, algumas medidas higiênicas tiveram que ser tomadas, como
isolamento dos doentes, construção de um lazareto e forte fiscalização das casas infectadas.
Desde a segunda metade do século XIX, notaram-se escassas preocupações com a saúde da
população. Há poucos exemplos, mas, ainda assim, destaca-se o caso da realocação do
cemitério, que foi motivado por questões religiosas, mas também, sobretudo, higiênicas, pois
foi retirado do centro para um local mais afastado a fim de ficar localizado num ambiente
mais arejado e salubre. Dessa forma, se percebe uma efetivação de medidas sanitárias na
cidade apenas com a epidemia de peste bubônica, no início da década de 1910.
urbanísticas dos administradores, de apenas elaborar um plano para coleta dos dejetos e
abastecimento de água para as ruas mais centrais, percebe-se que para além da preocupação
com a saúde da população, a grande questão era dar a cidade um aspecto salubre,
especialmente nas áreas de maior circulação, limitando-se ao eixo ferrovia-centro (Praça
Saldanha Marinho). Em nome de uma cidade limpa e saudável, era permitido agir com
elementos coercitivos para quem descumprisse o Código de Posturas do município, pois,
conforme discurso do médico Azevedo, os problemas de saúde em Santa Maria davam-se
devido aos maus hábitos de seus habitantes. Nesse ponto, retoma-se a ideologia positivista, na
qual visava por uma sociedade saudável, sendo assim, amparados pela Constituição de 1891,
os intendentes eram livres para intervir da forma que achassem mais coerentes para manter a
cidade salubre, longe de doenças.
Tendo em vista todos esses aspectos da pesquisa, conclui-se que a profilaxia urbana
referida no título trata-se não somente do projeto de saneamento para Santa Maria, mas, de
todas as ações de políticas de higiene que envolveu. Retomando a frase do epílogo, “Pobre
Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade”, compara-se o personagem de
Monteiro Lobato com o objeto deste trabalho. Afinal, mesmo com todas as discussões que
houve em torno destas medidas sanitárias, pouco foi efetivado. Ou seja, o saneamento da
cidade ficou ótimo no papel, mas na realidade ainda demorou quase 20 anos para ser
efetivado. Foi apenas na intendência de Manoel Ribas, em 1931, que o município passou a ter
uma rede de abastecimento de água e remoção dos esgotos. Mesmo que o projeto estudado
não tenha sido efetivado, percebeu-se sua importância em ser analisado. Afinal, esta foi a
primeira política pública urbana claramente definida para a cidade de Santa Maria.
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