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FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PODER E REPRESENTAÇÃO
ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Primeira Dinastia. Séculos XII a XIV
volume II
DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA
HISTÓRIA DA ARTE
2005
III.
iconologia da família real portuguesa
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Os vários temas que dispomos para análise neste estudo reflectem realidades e
intenções distintas, mas complementares, no quadro de uma abordagem iconológica. Se
alguns destes temas demonstram o desejo de salvaguardar valores ligados ao universo
social, à glorificação de um cargo, de um estatuto, de uma instituição, de um grupo social
ou mesmo de um indivíduo específico, outros transcendem esse mesmo universo e
projectam-se num discurso vocacionado para a imagem que pretendem dar de si no Além,
com vista à salvação da alma e ao gozo pleno da bemaventuramça perdurauel1.
Nesta confluência de aspirações ou afirmações de ordem social e espiritual que
compõem a estruturação da imagem pública dos vários indivíduos, reside, pois, o principal
fundamento da imagem material, aquela que, após o desaparecimento do corpo físico, os
exaltará e perpetuará no mundo dos vivos. Por isso, o conceito de “imagem” deve ser aqui
entendido nas suas duas vertentes: imagem conceptual, como “estrutura” muito ampla que
radica na forma como as virtudes e os defeitos destes indivíduos foram vistos; e “imagem”
enquanto matéria, enquanto objectos tangíveis que os representam ou que representam
conceitos, devoções pessoais e aspirações de cada um.
Neste sentido, julgamos poder definir os objectos com os seus conteúdos
iconográficos e iconológicos como arte da história manipulada e como arte da memória. Na
verdade, o fim a que se destinavam estes objectos e documentos não os diferencia
substancialmente de outros documentos da investigação histórica, que, igualmente
manipulados pelos seus encomendadores ou executantes, pretendem dar uma imagem mais
favorável ou menos positiva, consoante os interesses do momento.
Como bem definiu Manuel Castiñeiras, “en pocos períodos como el de la Edad
Media la falsificación, la invención y la obliteración fueron consubstánciales al ejercicio de
la memoria histórica. Crónicas, documentos y leyendas están repletos de falsos históricos
al servicio de una ideología que buscaba a través de la memoria escrita la transformación
del pasado en beneficio del presente y con ello condicionar irremediablemente su
recepción posterior. De entre las muchas fórmulas de alteración de la historia destaca por
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
su sutileza e efectividad la búsqueda intencionada del olvido, puesto que éste, al obviar una
memoria, conlleva la afirmación de otra que sustituye y oculta la precedente”2.
A criação, ou mesmo, manipulação, de uma memória é, antes de mais, uma forma
de ganhar lugar na História. No caso dos poderosos, a conquista desse lugar não se
questiona, pois ela está ganha à partida. O que está em causa é a obtenção de um melhor
lugar na História, um lugar de herói, de santo, de sábio... Ora, estes não são predicados que
se apliquem facilmente e com veracidade a todos os que os ambicionam. É aí que entra o
factor “manipulação” ou “recriação” da memória, uma espécie de ajuda emprestada à boa
construção. É para aí que confluem as redacções das vidas (dos prodigiosos feitos no
campo de batalha, as aparições divinas, os sonhos místicos, os actos de bravura, os mais
abnegados actos de misericórdia e piedade, a construção de igrejas…), os longos
testamentos, ou as imagens propagandísticas pintadas ou esculpidas nos diversos meios
emissores de mensagens.
A análise dos escritos medievais portugueses, como as crónicas ou mesmo os
poemas, relevam-nos que, por entre os verdadeiros factos históricos, contados de tantas
maneiras diferentes nos distintos documentos, invenções ou falsificações se entrelaçam
com a verdade, com vista ao enaltecimento ou à calúnia, engrandecendo ou diminuindo a
importância e o valor daqueles a quem se referem.
O confronto entre o documento escrito e o documento plástico e iconográfico é,
sem dúvida, a mais valia do historiador da arte. Porém, não raras vezes, a ausência de um
ou de outro tipo de documento apenas permite valorizar aquele que traduz a informação,
conduzindo-nos para o campo das hipóteses ou para a cripto-história da arte3.
No contexto das intenções do nosso estudo, definido em linhas gerais pela análise
de imagens com suportes diferenciados, a partir das quais desejamos extrair o seu conteúdo
enquanto documento histórico, analisamos as imagens como documentos e como
monumentos. São documentos palpáveis e precisos que exprimem a pulsão de uma
SERRÃO, A Cripto-História da Arte. Análise de Obras de Arte Inexistentes, Lisboa, Livros Horizonte, 2001.
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sociedade, ainda que apenas de uma sociedade de elite. Sem recorrer a representações
posteriores ao período de vida das personagens em análise, interessa-nos o conjunto das
“imagens” que influenciaram os seus contemporâneos.
Certo é que as vias da criação iconográfica se manifestam, nestes casos,
essencialmente, nos monumentos funerários. Estes evoluem de formas muito simples e
onde a representação do corpo está totalmente ausente, para outras mais elaboradas, mais
volumosas e aparatosas, onde a estátua jacente constitui uma das mais importantes
figurações dos indivíduos, conjugada com outros temas que se associam a eles, ou,
simplesmente, associados a crenças de carácter universal. O valor totalmente reconhecido à
emergência e consequente desenvolvimento das representações jacentes impõe, porém, que
lhe dediquemos uma atenção especial.
E se, no caso português, nos ressentimos da escassez de iconografia régia vinculada
a outros suportes (especialmente em iluminuras, numa realidade tão oposta ao que
aconteceu em Castela, França e Inglaterra entre os séculos XII e XIV), outros meios de
propaganda pelas imagens devem ser valorizados, como são os casos dos selos e das
moedas, bem como os escassos exemplos de estatuária.
Somos movidos pela convicção de que a partir destas “imagens” encontraremos os
sinais, ou mesmo as evidências, que servirão de chave para abrir portas de “salas
nebulosas” onde se escondem respostas às perguntas a que os documentos escritos, ou a
falta deles, não respondem totalmente.
Tal como tem vindo a provar a mais recente historiografia da arte, as imagens
medievais, num todo, não foram apenas criadas como mecanismos de informação didáctica
e de testemunhos para os iletrados, mas sim como mecanismos de memória para todos os
que preenchem o corpo social, presente e vindouro. Elas são o espelho de uma sociedade e
dos seus valores, dos grandes momentos e das desventuras. Não temos, por isso, dúvidas,
de que eram compreendidas pelos seus contemporâneos. Se assim não fosse, não teriam
razão de existir. É certo que o registo da sua compreensão poderia variar de acordo com o
grau de conhecimentos de cada receptor. Porém, a leitura era certamente feita por todos e
é, nesse objectivo, que radica o grande poder das imagens – o poder da intercomunicação.
Desta forma, não podemos aceitar a existência de uma arte “ingénua” ou
“descomprometida”. Toda a criação imagética tem, pelo menos, um objectivo, mais ou
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cada momento histórico, a convicta e piedosa fé que parecem ter possuído até ao último
sopro de vida. Quase de forma uníssona, não se deixam espaços em aberto nesta
iconografia dos grandes do mundo secular para que se expressem anomalias sujeitas a
crítica e, sobretudo, ao esquecimento. A iconografia parece dizer-nos que todos os
membros deste grupo de elite são de “de boa memória” – a memória exímia, a memória do
poder.
Alguns, porém, deixam vinculados, de maneira indelével, a marca das suas paixões,
a marca de uma vivência plena dos seus altos e baixos, atravessada por arrebatamentos
súbitos, sem fio de temperança, à maneira dos homens do mundo, filhos de Adão. Mas,
mesmo sujeitos à Roda da Vida/Roda da Fortuna que uniformiza todos os seres não
divinos, eles, os eleitos de Deus, reencontram-se com o bom caminho e, em jeito de
catarse, terminam, por fim, como seres perfeitos, deixando para o futuro a imagem
controlada e perfeitamente ajustada de quem nada ficou a dever, indo então, em “plena e sã
consciência”, ao encontro do Juiz Supremo, o mesmo que lhes legou o máximo poder
terreno sobre todos os homens, o poder real. Em outras palavras, trata-se do mito que
suplanta a realidade.
Foi seguindo esta sequência que estruturámos o nosso estudo no que se refere à
análise estritamente iconográfica e iconológica dos temas afectos aos sujeitos envolvidos.
Partindo da observação dos atributos e formas de representação dos membros da família
real, num conjunto de imagens vinculadoras de conceitos ligados, essencialmente, ao
mundo temporal (nomeadamente, o conceito de fama), e estabelecendo, sempre que
possível, relações com acontecimentos reais ligados às suas vidas, com os fundamentos
ideológicos que regiam as condutas de cada grupo social, as suas crenças e valores, para,
depois, chegar aos símbolos e temas que nos relevam as preocupações inerentes à morte,
desde a sua preparação à lamentação, e, sobretudo, às preocupações com a imortalidade,
com recurso a mensagens dirigidas não apenas à sociedade coeva, mas à dos tempos
futuros e funcionando simultaneamente como votos propiciatórios do destino das suas
almas no Além.
É o não esquecimento que está em causa. É a fuga ao marasmo de que se reveste a
memória da humanidade, ingrata e fugaz, que move estes homens e mulheres, conscientes
dos efeitos nefastos da morte, que tudo apaga, que tudo esquece. Com esse firme
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“La moral de los gestos”, Fragmentos para una Historia del Cuerpo Humano, (ed Feher Michel,), Parte II,
Madrid, Taurus, 1991, pp. 129-146.
6 Carolina Walter BYNUM, “El cuerpo femenino y la pratica religiosa en la baja Edad Media”,
Fragmentos para una Historia del Cuerpo Humano, Parte I, Madrid, pp. 163-225 e The Resurrection of the Body in
Westeern Christianity 200 – 1336, Nova York, Columbia University Press, 1995.
7 Moche BARASCHE, Giotto y el Lenguaje del Gesto, Madrid, Akal, 1999 (1.ª ed. Cambrigde
tomb effigies”, Sculpture. The Great Art of the Middle Ages from the Fifth Century to the Fifteenth Century,
Taschen, 1989, pp. 166-177.
9 Vejam-se todos os trabalhos citados neste estudo.
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1.1 Os Jacentes
Os jacentes e a sua evolução constituem uma das principais características da arte
escultórica produzida durante a Baixa Idade Média, podendo ser considerados com uma
criação eminentemente gótica. O processo evolutivo da construção destas estátuas
tumulares já foi alvo de estudo por parte de muitos autores, nos respectivos países de
origem, mas também, de uma forma generalizada, ao nível da arte europeia. Em Portugal,
os diferentes autores que escreveram sobre escultura gótica, têm vindo a sistematizar o
processo evolutivo dos jacentes e as suas variantes, entre os séculos XIII e XV, contando-
se, entre a historiografia mais recente, com o estudo e análise minuciosa da autoria de
Mário Jorge Barroca, que traça as linhas gerais deste processo através dos exemplos
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Lamenta-se o desaparecimento de
alguns notáveis conjuntos de estátuas-
colunas da primeira fase do Gótico,
nomeadamente as que decoravam a
fachada da Abadia de Saint-Denis de
Paris12, obedecendo ao programa e
inventiva de Suger, bem como se lamenta
o desaparecimento de alguns monumentos
funerários dessa mesma fase. Os
remanescentes, porém, são suficientes para
que se possam estabelecer os inevitáveis
paralelos da gradual evolução, como já
assinalaram vários autores de estudos
sobre a escultura funerária da primeira fase
do Gótico.
Vários são os que colocam esta
evolução da escultura figurativa no
contexto sócio-mental de revalorização do
indivíduo13, conforme às directrizes de
grandes teólogos e intelectuais medievais,
Algumas das estátuas colunas dos portais da fachada
ocidental da Abadia de Saint-Denis.
nomeadamente Santo Anselmo, Hugo de
(antes de 1140). Segundo desenhos de Antoine Benoist para
Bertrand de Montfaucon, Les Monumens de la monarchie françoise, São Victor ou São Tomás de Aquino e
1729). Dossier d’Archeologie, n.º 261, Março de 2001, p. 51.
que, no cômputo geral, relacionam a Esco-
lástica dos séculos XII e XIII com todo um universo de descoberta do indivíduo como ser
dual, no qual o espírito tem predominância, mas não desvaloriza o corpo, sendo este,
agora, entendido como veículo, não apenas do pecado, mas também das boas acções e da
própria Salvação, (entendimentos contrários aos que prevaleceram nos séculos do
Algumas destas estátuas são conhecidas graças aos desenhos de Antoine Benoist para B. de
12
MONTFAUCON, publicados na obra Les monuments de la monarchie française, I, Paris, 1729, il. 16. Cf.
Summer CROSBY e Pamela BLUM, The Royal Abbey of Saint-Denis from its Beginnings to the Death of Suger,
575-1151, New Haven e Londres, 1987, pp. 29-50.
13 Cf. Paul WILLIAMSON, op. cit., 1997, pp. 22-23.
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Românico e defendidos por Teólogos como Pedro Damião14). Assim, ao não negar valor à
matéria, ela torna-se foco de atenções e, logo, de uma maior liberdade representativa.
Ideólogos e artífices, cedo foram sensíveis a este novo quadro mental de reconhecimento
da unidade corpo-alma, como bem provam as já referidas estátuas-colunas e as estátuas
jacentes.
Este conjunto de ideias conflui numa visão mais humanista e de maior tolerância
relativamente à representação imagética do corpo, tomando forma nas produções artísticas
através de uma corporeidade mais “viva” e acrescentada de gestos e expressões que
propiciaram uma mais fácil identificação entre os indivíduos e as imagens que os
representam15.
A isto associado, também os gestos foram alvo de reflexão por parte dos grandes
ideólogos do tempo, como já tivemos oportunidade de referir a propósito do grupo
escultórico de São Luís e de Margarida da Provença. Se Hugo de São Victor desempenhou
importante papel na atenção dada às condutas gestuais daqueles que deveriam ser o exemplo
por excelência, contrastando os seus gestos controlados e normativos com os que o
homem comum e os seres infernais tendiam a materializar (gestus x gesticulatio)16, a nova
religiosidade proposta pelas Ordens Mendicantes, em especial pelos franciscanos, veio
acrescentar valor ao corpo-matéria e à retórica dos gestos. A disciplina dos gestos,
acreditava-se, podia contribuir para reformar o homem no seu interior.
Como refere Jean-Claude Schmitt, os gestos e a mobilidade, no âmbito da cultura
cristã da Idade Média, participam do transitório, do instável (de que é bom exemplo o tema
da Roda da Fortuna), do terrestre, da história: eles caracterizam o homem carnal, a tentação
do pecado e a agitação do vício. Contrastam, desta forma, com o movimento celeste
regular, os ciclos imutáveis e, num extremo, com a ausência absoluta de movimento. Desta
forma se compreende que os rituais medievais, caracterizados pela afectação da
14 Cf. G. CALVESI, “San Pier Damiani. Il cibo, il sesso e le donne”, Storia e Dossier, Outubro de
1987, pp. 25-27 e Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Leonor de Aquitania en Fontevarault...., op. cit.,
1994, p. 469.
15 Carla Serapicos SILVÉRIO, Representações da Realeza na Cronística Medieval Portuguesa, Lisboa,
Colibri, 2004, traça as linhas gerais do pensamento teórico relativamente ao corpo na Baixa Idade
Média e de como estas são perceptíveis nos textos das crónicas sobre a dinastia de Borgonha.
16 Jean-Claude SCHMITT, “Gestus-gesticulatio: Contribuition à l’étude du vocabulaire latin
médiéval des gestes”, La Lexicographie du latin médiéval et ses rapports avec les recherches actuelles sur la civilisation
du Moyen Age, Paris, CNRS, 1981, pp. 377-390.
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interpretado como uma estátua jacente, e não nos permitindo distinguir se se tratava de
uma representação na qualidade de defunto ou uma clara imagem de majestade18.
Ao longo dos anos de vigência da dinastia capetíngia, cedo começaram a aparecer
túmulos com estátua jacente. Primeiro, para elementos religiosos não pertencentes à família
real, sendo o caso mais antigo o do bispo Gebhart de Constance, falecido em 996 e cujo
túmulo foi descrito, no século XII, por um cronista. Ignora-se a data certa da sua execução,
mas o facto de ter sido feito em gesso aponta para cronologias muito recuadas (finais do
séc. X ou inícios do século XI)19.
Os túmulos de Saint-Germain-des-Prés, esculpidos em pedra, pouco depois de
1163, são, de facto, os primeiros exemplos de monumentos funerários com estátua jacente
feitos para elementos da família real francesa. Veja-se o exemplo tão significativo do
túmulo do rei merovíngio Quildeberto, realizado por vontade dos monges da referida
abadia: possui estátua jacente, considerada uma das mais antigas que hoje se conhecem, e
inaugura uma fórmula de trabalho escultórico aplicado à realização de jacentes, a que
Erlande-Brandenburg designou por “talha em tina” (ou “em bacia”), permitindo uma
grande economia da espessura da tampa de pedra.
Esta técnica alcançou os meados do século XIII, caracterizando-se por um gradual
desaparecimento ou diminuição da bordadura da tampa, como se pode ver no túmulo do
infante Filipe Dagoberto20, filho de Filipe VIII e Branca de Castela (1222-1235). Por vezes,
a talha em tina dos jacentes conjuga-se com a forma trapezoidal das tampas dos sarcófagos.
Embora o relevo não atinja um volume significativo, estes exemplos constituem um
patamar de importância na gradual evolução dos jacentes.
18 Cf. Christian BEUTLER, “Documents sur la sculpture carolingienne”, Gazette des Beaux-arts,
I, 1963, p. 195.
19 Cf. Alain ERLANDE-BRANDEBURG, op. cit., 1975, p. 109.
20 IDEM, ibidem, p. 111.
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Jacente de Quildeberto.
c.1150. Saint-Germa in-des-Prés. Abadia de Saint-
Denis.
21 Wilibald SAUERLÄNDER, La Sculture gothique en France, Paris, Flammarion, 1972, pp. 128-
129, defendeu que a cronologia dos jacentes de Henrique II e de Ricardo Coração de Leão deveriam
corresponder aos primeiros anos do século XIII, enquanto que Alain ERLANDE-BRANDENBURG
(op. cit., 1975, p. 122) considera-os anteriores à morte de Leonor da Aquitânia, isto é, anteriores a 1204.
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infantes João e Branca, filhos de São Luís, que rei encomendou às oficinas de Limoges.
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são excelentes exemplos os jacentes de Henrique III e de Leonor de Castela, obras muito
dispendiosas, encomendadas a William de Torel25.
Em Portugal, o uso do metal na construção de jacentes só se verificou muito
tardiamente, já no século XV, com o jacente do infante D. Afonso, filho de D. João I,
sepultado na Sé de Braga, realizado na Flandres.
Tanto em Portugal, como nos outros reinos peninsulares, não foram apenas os
religiosos os que mais amplamente conquistaram o direito à representação volumétrica dos
seus corpos na pedra dos monumentos funerários, embora constem entre os mais antigos
que se conhecem. A título de exemplo refira-se o túmulo de San Millán de la Cogolla, no
Mosteiro de Suso (finais do século XII - La Rioja, Espanha), embora, neste caso, o
tumulado já tivesse acedido à condição de santidade, mais propícia, por isso, à
monumentalidade e aparato representativo e, em Portugal, em datas mais avançadas
(segunda metade do século XIII), os túmulos de D. Tibúrcio, bispo de Coimbra e grande
apoiante da causa do Conde de Bolonha, cuja execução deverá ser posterior a 125326; de D.
Egas Fafes de Lanhoso (c.1260), dispostos junto dos muros da Sé Velha de Coimbra.
Se aceitarmos, porém, que o túmulo românico de uma rainha, sepultada no
Mosteiro de Alcobaça, pertence a D. Urraca, mulher de D. Afonso II, falecida em 1220,
como julgamos ser, então percebemos como, timidamente, nos primeiros anos do século
XIII, as estátuas jacentes começaram também a ser requeridas pelos encomendadores
laicos portugueses, entendidas, certamente, como poderoso meio de preservação da
memória. Quem estaria mais empenhado nessa preservação do que a própria família real
portuguesa, à semelhança do que já se passava noutros reinos da Europa gótica?
Na sequência deste último, o túmulo de D. Rodrigo Sanches, filho bastardo de D.
Sancho I, sepultado no Mosteiro de Grijó (c.1245), constituiu um segundo e interessante
exemplo no contexto da tumulária portuguesa.
Em ambos os casos, a encomenda não foi iniciativa dos próprios, mas sim a
familiares que, através destas memórias de pedra, quiseram valorizar e exaltar o valor e a
recordação de ambos os tumulados, conferindo-lhes um lugar de repouso e uma
visibilidade muito especial.
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Cf. Mário Jorge BARROCA, “Escultura funerária”, Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e
26
primeiramente, em Santa Cruz de Coimbra, onde permaneceu por cerca de dez anos, até à sua
tumulação definitiva em Alcobaça. O mesmo aconteceu com o corpo de D. Afonso III, sepultado
durante dez anos em São Domingos de Lisboa, procedendo-se à trasladação para o Mosteiro de
Alcobaça em 1289.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Exemplos muito
semelhantes encontramos em
Las Huelgas de Burgos, no
túmulo de D. Berenguela,
segunda mulher de Afonso IX
de Leão, falecida em 1246, e cujo
monumento funerário consiste
numa arca lisa, com tampa de
duas águas e sustentado por
Túmulo de D. Berenguela.
leões. Mais interessante e
Séc. XIII. Mosteiro de Las Huelgas de Burgos.
Belén Castillo, Juan Elorza, Marta Negro, El Panteón Real de la Huelgas de
ilustrando melhor a realidade dos
Burgos, Est. 26.
túmulos que hoje não
apresentam qualquer decoração
por desaparecimento da
policromia, é o túmulo do
Infante Fernando de la Cerda,
filho primogénito de Afonso X,
o Sábio e herdeiro da coroa. É
datado dos finais do século XIII
e compõe-se de arca
trapezoidal, totalmente lisa, mas
Túmulo de D. Fernando de La Cerda. (†1333).
Mosteiro de Las Huelgas de Burgos. ainda com restos de decoração
Belén Castillo, Juan Elorza, Marta Negro, El Panteón Real de la Huelgas de Burgos,
Est. 26. pintada (octógonos que exaltam
a linhagem paterna, através da representação de castelos e leões, e materna com as armas
de Aragão)28. É legítimo, pois, questionarmos se os monumentos funerários de Afonso II e
de Afonso III seriam policromados e se o desgaste, sofrido durante o longo tempo em que
Cf. Maria Jesus GOMEZ BARCENA, Escultura Gótica Funeraria en Burgos, pp.198-199. J.
28
YARZA LUACES, “Despesas fazen los omnes de muchas guisas en soterrar los muertos”, Fragmentos,
n.º 2, 1984, p. 12, referindo-se a este túmulo, julga que ele terá sido concebido “Dentro de su dignidad,
parece como si se hubiera respetado la voluntad del rey expresa en las Partidas, no mucho lujo, nada de
escenas dolientes y carácter sagrado del monumento”.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
permaneceram na antiga galilé alcobacense, não lhes teria feito desaparecer as antigas
decorações pictóricas.
Contemporâneo do túmulo de
D. Afonso III é o monumento
funerário da Infanta D. Berenguela,
filha de Fernando III e sobrinha de
Luís IX de França, igualmente
sepultada em Las Huelgas de Burgos. É
datado do último quartel do século
XIII e, contrariamente ao túmulo do
nosso monarca, o da infanta espanhola,
apresenta ampla decoração escultórica.
Segundo a historiografia espanhola este
túmulo foi mandado fazer pela infanta
para a sua avó, a rainha D. Berenguela,
Túmulo de D. Berenguela. que jazia em sepultura muito simples,
Séc. XIII. Mosteiro de Las Huelgas de Burgos.
Fray Valentin de la Cruz, El Monasterio de las Huelgas de Burgos, Leão, segundo vontade da própria 29, como já
Everest, 1990. p. 40.
vimos.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
representação) coexistiram durante bastante tempo, pelo menos no que se refere a figuras
da família real. Ambas expressam atitudes diferentes face à morte (uma de humildade face à
memória de si; outra de exaltação e valorização da memória e, ambas, se inserem dentro dos
valores da crença e da religiosidade dos anos do Gótico).
De qualquer forma, os dois exemplos ducentistas de elementos da família real
portuguesa com jacentes (D. Urraca e D. Rodrigo Sanches), deixam perceber a evolução da
expressividade do corpo retratado, quando comparados com as estátuas jacentes da
primeira metade do século XIV entre as quais têm especial destaque os jacentes de D.
Dinis (c. 1325) e D. Isabel de Aragão (c. 1330).
Em Portugal, num primeiro tempo (1ª metade do século XIII), chamemos-lhe de
proto-Gótico (retardado temporalmente em relação a França e em especial aos ateliers da
região de Paris, e que tanto influenciaram a tumulária inglesa deste período), as estátuas
jacentes foram marcadas por volumetrias pouco acentuadas, como que “agarradas” ao seu
suporte (tampa sepulcral), visível estaticismo e total idealismo das fisionomias.
Esta situação só sofreu alterações significativas no final do primeiro quartel do
século XIV, com o monumento funerário do rei D. Dinis, correspondendo a um segundo
momento, em que a escultura gótica portuguesa, de cariz figurativo, assumiu uma posição
de paridade para com a congénere dos centros artísticos que, por estes tempos, ditavam a
moda (em especial a França, a Inglaterra e Castela-Leão).
Não é por acaso que esse salto qualitativo e esse ajuste estético aos centros de
vanguarda artística se deveram a uma encomenda régia. É aos reis e às rainhas da primeira
dinastia que devemos o maior número de inovações na iconografia e na plástica da
escultura funerária a eles afecta, pois cabia-lhes maior responsabilidade no controlo
iconográfico e na imagem que a arte daria deles próprios para a posteridade, enquanto
protagonistas por excelência do poder temporal. A preocupação com a fama póstuma é
indissociável dos seus papéis de protagonistas da História. Não admira, pois, que o túmulo
de D. Dinis reflicta esse mesmo interesse, introduzindo em Portugal uma volumetria
agigantada dos sarcófagos e das respectivas estátuas jacentes, algo que difere da realidade
coeva francesa para este período e que difere, mesmo, de outros sarcófagos portugueses de
cariz afrancesado, como é exemplo o túmulo do rico mercador de Lisboa, Bartolomeu
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Joanes, falecido na proximidade da data em que D. Dinis abandonou o mundo dos vivos
(1325).
Estátua jacente de D. Dinis. c.1324-1325. Igreja do Mosteiro de Odivelas. Foto: José Pessoa/DDF/IPM.
Dinis, a 24 de Outubro de 2004, levada a cabo por José Pessoa e a sua equipa técnica da Divisão de
Documentação Fotográfica do Instituto Português de Museus, foi experimentado, pela primeira vez,
um exame a obras de escultura em pedra com incidência de espectro ultra-violeta e consequente registo
fotográfico. O que aí pudemos constatar, com alguma surpresa e grande satisfação, foi a eficácia deste
método (até agora aplicado, essencialmente, à pintura e ao azulejo), constatando-se que todas as áreas
moldadas em gesso reflectem uma tonalidade de roxo muito escuro, sempre que a densidade do gesso é
maior, e roxo mais claro, quando corresponde a superfícies constituídas por aguadas de gesso ou
camadas muito finas do mesmo material. Os elementos originais, em pedra, reflectem uma cor beije-
dourado. Na sua totalidade, julgamos não poder encontrar hoje mais que 30% do monumento original,
correspondendo às figuras da primeira cena da cabeceira do sarcófago, bem como aos dois altares que
integram estas duas cenas da Boa Morte; parte dos hábitos dos religiosos e das religiosas cistercienses que
decoram as faces longas da arca, sendo de gesso todos os bustos das mesmas (os busto dos monges já
não existem, mas as superfícies do fundo dos nichos registam ainda manchas de gesso para a colagem
das respectivas cabeças, bem como as perfurações feitas para introdução dos ferros para as sustentar), e
algumas mãos das mesmas; a maioria das arcarias que decoram a parte superior da arca, sobre os nichos
das figuras e que revelam ainda muitos vestígios de policromia; pequenas partes das almofadas em que
assenta a cabeça da estátua jacente; pequena parte do pescoço; parte do peito e um pequeno fragmento
de um dos pés, abrangendo uma parcela da fivela que permitiu reconstituir em gesso a totalidade deste
fragmento; uma pequena parte de um dos cães que se encontram aos pés do jacente do monarca,
registando ainda a marcação das costelas. Confirmámos assim, indubitavelmente, que a cabeça, com a
longa barba e longos cabelos, a coroa, os braços e a maior parte da indumentária do jacente (do peito
até à extremidade da túnica e do manto) são fruto do restauro oitocentista, sem que se possa afirmar se
este modelo respeitou as fisionomias, gestos e atributos do jacente original. Quanto à decoração da
arca, julgamos que o aproveitamento de muitos fragmentos originais permitiu que as figuras fossem
restauradas de acordo com os modelos originais, ainda que seja estranha a sistemática substituição de
todas as partes superiores das figuras religiosas a partir da mesma altura do corpo (do peito para cima).
Esperamos poder levar a cabo, em futuro próximo, o levantamento integral deste monumento com
espectro ultra-violeta, para a realização de um estudo monográfico, com a colaboração de José Pessoa.
397
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
pudemos constatar, com ínfima margem de erro, aquilo que os nossos olhos se apercebem
logo numa primeira análise, acrescentando ainda outras informações “camufladas”, isto é,
que a grande maioria dos elementos constituintes deste sarcófago foram moldados em
gesso, no mais desastroso restauro alguma vez feito em Portugal em obras com a
importância de um túmulo régio. A verdade é que não sabemos quais os verdadeiros gestos
dos braços do jacente, que poderiam, originalmente segurar a espada, numa tipologia que
vamos encontrar na maioria dos jacentes de cavaleiros do século XIV, bem como no de D.
Pedro I, e que é bem diferente do que hoje vemos: uma das mãos a segurar,
despropositadamente, uma ponta do manto. Parece-nos arriscado e inconsistente,
especular sobre a existência de um ceptro nas mãos do rei, tentando aproximá-lo da
iconografia e da plástica dos jacentes dos monarcas franceses, pelo que mantemos as
nossas reservas.
Se atentarmos na monumentalidade deste sarcófago, facilmente nos apercebemos
que ele se relaciona mais com a realidade portuguesa e até mesmo, peninsular, onde são
frequentes os túmulos e as estátuas jacentes de gigantescas dimensões, do que com a
realidade francesa coeva, de escala mais reduzida, mais humana, bem como os conjuntos
de figuras emparelhadas sob nichos a decorar as arcas tumulares, que aparecem em alguns
túmulos franceses, mas são muitíssimo mais frequentes na tumulária peninsular. Parece-nos
pois, que mais que um francesismo original, existe, talvez, um restauro que, consciente ou
inconscientemente, lhe conferiu um fácies afrancesado.
Mas se o moimento de D. Dinis, não se filia directamente na escultura tumular
francesa (ainda que alguns aspecto se aproxime desta), as intenções do monarca português
ao encomendá-lo reflectem, em nosso entender, uma procura de aproximação aos mesmos
propósitos políticos e propagandísticos que, em França, levaram São Luís, alguns anos
antes, a encomendar um notável conjunto de túmulos para os reis seus antecessores31 e um
Neste momento, porém, serviu-nos a experiência para poder confirmar aquilo que se vê a olho nu, e
acrescentar outras informações que só com exames deste tipo podem passar da fase da suspeita, para a
fase de confirmação, assentando em bases sólidas.
31 Clovis II (635-+657); Pepino o Breve (714-+768); Carlos Martel (688-+41); Luís III (863-
+882); Berta (726-+783); Carloman (866-+884); Henrique I (1008-+1060); Constança de Arles (984-
+1032); Roberto o Piedoso (970-+1031); Filipe III (1116-+1131); Carloman (751-+771); Constança de
Castela (1136-+1160); Luís o Gordo (1081-1137); Ermentrude (825-+869). Catorze dos dezasseis
túmulos da grandiosa encomenda de São Luís foram concebidos a partir do mesmo modelo:
personagens alongadas, rosto totalmente idealizados, vestidos segundo a moda do século XIII, os pés
398
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
valioso túmulo para si próprio. Essa inédita e grandiosa encomenda do monarca francês
demonstra, não apenas a importância que nos derradeiros anos do século XIII se conferia à
sepultura monumental e figurativa das personagens régias, mas também como nelas se via
uma excelente oportunidade de glorificar memórias e afirmar dinastias, associadas a um
determinado panteão. São Luís, assim, e à semelhança do que havia pretendido Leonor da
Aquitânia relativamente a Fontevrault, afirmava a sua própria posição na história
linhagística da monarquia francesa e a ideia de continuidade dinástica entre merovíngios e
capetíngios.
A situação tendeu a evoluir e o século XIV foi, sem dúvida, o grande século do
desenvolvimento da arte tumular em Portugal32, o grande momento do desenvolvimento
de iconografias e de aperfeiçoamentos estéticos, que conduziram ao expoente máximo do
naturalismo na arte medieval, algo tardio em relação ao reino de Castela e, sobretudo, ao de
Leão, em que o século XIII se revela bem mais criativo e inovador que a centúria de
Trezentos. Mas foi, de facto, a França, o referencial de todas estas tendências.
Ora a necessidade de criar mensagens eficazes e representativas do poder e dos
valores dessa mesma monarquia criou terreno propício à criatividade e à magnificência das
representações, gerando verdadeiros protótipos de iconografia tumular régia, repetidos,
sem grandes alterações, a cada nova construção, como tão bem se viu com o caso dos
dezasseis túmulos encomendados por São Luís.
Retratos totalmente idealizados caracterizam os jacentes dos reis e das rainhas de
França até à primeira metade do século XIV. Os seus rostos em nada diferem dos que os
artistas usaram para representar santos, santas e profetas, em Saint-Denis ou noutros
importantes mosteiros, abadias e catedrais da época. Os seus atributos, quase sempre as
regalia33 das coroações, acompanham estas figuras como elementos distintivos da sua
assentes sobre mísula (como se estivessem de pé). Com uma as mãos seguram o ceptro e com a outra
retêm, geralmente, a fita que prende o manto. Alguns elementos ajudam a diferenciar as personagens,
como são as coroas, todas diferentes, bem como os rostos de Henrique I ou de Roberto, o Piedoso,
com particular expressividade. Cf. Serge SANTOS e Claude SAUVAGEOT, Saint-Denis. Dernière
Demeure des Rois de France, Zodiaque, 1999.
32 A realidade portuguesa espelha um percurso algo diferente do que caracterizou a arte
funerária em Leão, em que o século XIII se revelou mais inventivo, experimentalista e bem sucedido
plasticamente do que o século XIV, como bem demonstrou Ângela FRANCO MATA, op. cit., 1998, pp.
425-426.
33 Cf. D. GABORIT CHOPIN, Regalia. Les instruments du sacre des rois de France. Les «Honeurs de
399
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
condição régia. Em suma, trata-se de imagens marcadas pela eficácia da mensagem, que é
conseguida através de gestos rituais, da beleza idealizada e da total ausência de
correspondência com as reais fisionomias dos retratados, correspondendo, sim, à imagem
social destas figuras, à imagem pública que deles deveriam ter os súbditos34.
O mesmo sucede com os jacentes régios (e não só) pertencentes às centúrias de
Duzentos e Trezentos e destinados a poderosos de outros reinos, entre os quais se
destacam os três túmulos de Fontevrault. Nestes últimos, tal como nos jacentes franceses,
propicia-se uma imagem de perfeição
corporal aliada à juventude, perfeição essa,
não necessariamente condizente com a
realidade das suas vidas, e esforçada por
apagar todo e qualquer traço de debilidade
ou pecado, no que André Vauchez definiu
como um “realismo sobrenatural”35 e
Manuel Núñez Rodríguez36 como um
projecto objectivamente dirigido ao
conceito de valor intemporal do corpo. A
proposta de caracterização idealizada segue,
muito provavelmente, os princípios
enunciados por Hugo de São Victor,
segundo o qual os justos haveriam de
Pormenor do jacente de Henrique II. Última década do ressuscitar com um corpo espiritual
séc. XII. Abadia de Fontevrault.
Apud Antónia Fraser, The Lives of Kings & Queens of England, semelhante ao corpo carnal e conforme a
p.53.
400
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
não fossem os reis de França os “escolhidos”, entre todos os reis do mundo, como os que
tinham mais próxima ligação com Deus, agindo como seus ministros, seus filhos
adoptivos, inclusive dotados de poderes taumatúrgicos. Mas as suas representações
acentuavam, também, a condição social dos retratados, através de atributos iconográficos e
de outros símbolos que testemunhavam inequivocamente que se tratavam de homens e de
mulheres do poder temporal. Nesta perspectiva, porém, uma certa caracterização de
perfeição física e moral, bem como a afirmação do poder, não foi exclusiva dos jacentes
dos monarcas franceses e revela-se plenamente na estatuária tumular por toda a Europa de
então.
Não é difícil, por isso, compreender que D. Dinis tenha pretendido para si uma
representação póstuma semelhante ao que de mais actual e magnificente se fazia noutros
importantes países. Uma imagem de homem de poder, cuja memória, a morte não poderia
apagar. Se o seu corpo biológico desaparecesse, sob os efeitos dissolventes da morte física,
como era de esperar, o corpo político do rei permaneceria vivo para memória futura, numa
representação de perfeição, num “corpo” imortalizado na pedra tumular e, no plano da
cadeia de sucessão ininterrupta, no sucessor de direito.
Paul Binski demonstrou, com clareza, que neste tempo vários eram os elementos
que caracterizavam as estátuas jacentes dos monarcas com o objectivo de distinguir aquilo
a que Kantorowicz denominou por “os dois corpos do rei”: um corpo social, oficial e
imortal; e outro natural e mortal. As efígies de bronze são talvez aquelas que melhor se
relacionam com a ideia de imortalidade, uma vez que, através da cor reluzente, revelam os
corpos das personagens régias da forma mais esplêndida e sobrenatural. Aqui, não existe
semelhança entre os vivos e os jacentes, entre o corpo natural e o corpo imortal,
colocando, assim, estas personalidades para além do universo tangível.
Mas, os jacentes de pedra policromada também se destinavam a criar uma
“sensação de vida” na mente dos observadores, na medida em que colorir uma imagem é,
de alguma forma, dar-lhe vida. Se juntarmos a isto o facto de a maioria dos jacentes
portugueses do século XIV ser representado com os olhos abertos e, alguns, ainda, a
desempenharem funções ou gestos próprios dos vivos (ler um livro, segurar a espada com
as duas mãos, etc...), percebemos como tão claramente se destinavam a afastar a ideia de
401
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
37 Cf. Mário Jorge BARROCA, “Escultura funerária”, Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e
402
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
403
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
404
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
colar de contas que lhe envolve o pescoço e o colo, à semelhança do gesto que podemos
observar nos jacentes régios franceses do panteão de Saint-Denis, embora aí não se trate de
um colar de contas, mas da fita que prende os mantos de reis e rainhas. Com a outra mão,
segura um par de luvas, sinal de distinção social e nobreza de gestos, situação que só
encontramos em França em 1393, no jacente de Leão VI de Lusignan, rei da Pequena
Arménia, no Panteão de Saint-Denis. Este é o primeiro exemplo de reis de origem
francesa, entre os túmulos com jacente que chegaram aos dias de hoje, que apresentam
como atributo as luvas, um signo de distinção dos grandes personagens, dentro da tradição
oriental. Mas há que distinguir entre ter as luvas nas mãos e ter as mãos enluvadas. Esta
última situação é mais frequente e tem antecedentes mais remotos. Em Portugal, o jacente
da rainha D. Urraca apresenta as mãos enluvadas, tal como dois dos jacentes régios de
Fontevrault (Henrique II e Ricardo Coração de Leão), constituindo, estes, um primeiro e
precoce exemplo desta iconografia.
Já os gestos que melhor identificam as representações dos nossos reis são, sem
dúvida, os que lhes conferem aspectos cerimoniais e de aparato, como os que podemos ver
no jacente de D. Dinis, segurando originalmente atributos régios hoje desaparecidos, ou o
de D. Pedro I, que à semelhança de nobres cavaleiros do seu tempo, revela-se para a
posteridade do seu memorial funerário, pronto a desembainhar a volumosa espada que
corre na diagonal sobre o corpo. Embora sugerindo a possibilidade de uma futura acção, a
gestualidade desta estátua não deixa de ser contida, uma forma de estabilização temporária
e precária de todo e qualquer movimento brusco, sugerindo-o apenas.
É comum percebermos a existência de ambivalências nos túmulos medievais.
Jacentes como o de D. Pedro I, representando o rei com trajos de aparato, coroado, com
os olhos abertos e a segurar a espada com ambas as mãos, tendem a contrariar a ideia de
estarmos perante um defunto, pois são-lhe emprestados gestos dos vivos. O rei é aqui
representado não apenas como rei, mas também como cavaleiro vivo e alerta, vigilante, em
direcção à eternidade à qual se entrega, sendo por isso acompanhado por tantos anjos que
actuam como psicopompos e, sabemos que nisso ele crê, pois vamos vê-lo, no túmulo de
D. Inês de Castro, entre os eleitos no Paraíso.
Exemplos tão ou mais ambivalentes que este encontramos um pouco por toda a
Europa dos séculos XIII e XIV, como é o caso de túmulo de Edmundo Crouchback
405
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
em selos da época, não tem precedentes na arte francesa medieval, como bem notou Anne McGee
MORGANSTERN, Gothic Tombs of Kingship in France, the Low Countries, and England, Pennsylvania,
The Pennsylvania State University Press, 2000, p. 72.
Cf. Joel ROSENTHAL, The Purchase of Paradise. Gift Giving and the Aristocracy, 1307-1485,
41
Londres/Toronto, 1972.
406
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
habitualmente se designa por lit de parade. Bem mais expressivos e naturalistas são os três
jacentes de Fontevrault, cujos corpos retratados na pedra calcária e policromada, repousam
sobre os lençóis dos seus leitos de morte, dispostos à maneira de “estores venezianos”,
situação que não vemos no túmulo de Quildeberto.
42 Cf. Jean-Pierre GABORIT, “Sur le lit de parade. Essai d’interprétation d’un motif funéraire”,
Actas do Colóquio La Figuration des Morts dans la Chretienté Medievale jusqu’a la Fin du Premier Quart du
XIVe Siècle, 1.er Cahier de Fontevrault, Abbaye Royale de Fontevrault, Centre Culturel de l’Ouest, 26-28
Maio, 1988 (com outra bibliografia citada).
43 M. NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Leonor da Aquitania…”, op. cit., 1994, p. 459.
407
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
rainha no leito de morte para prestação das últimas homenagens – constituindo assim,
provavelmente, um exemplo português dos designados lit de parade, numa versão,
sublinhamos, simplificada. Senão, vejamos: o corpo pétreo, ou representação escultórica de
D. Urraca, disposto em decúbito supino, sugere, claramente, a representação de um corpo
morto. Nada nos indica sinais de vida, como os que vemos em outros jacentes posteriores
(olhos abertos ou realização de gestos só possíveis em vida). Aqui, o que podemos obser-
var é o rosto de um cadáver, com os olhos
fechados e a boca desenhada com os lábios
no sentido descendente. Também os gestos
e toda a disposição do corpo envolto em
ampla indumentária de aparato, apontam no
mesmo sentido. As mãos estão cruzadas
sobre o peito, na posição mais comum de
apresentação e sepultura dos cadáveres
cristãos, muito embora esta posição só se
torne plenamente aceite (contrastando com
o costume romano de colocar os defuntos
com os braços a ladear o corpo), nos
séculos do Românico, como provam um
conjunto de sepulturas da área Noroeste de
Espanha e na Provença44.
A cabeça da estátua assenta sobre
Vista superior do túmulo de D. Urraca. c. 1220-1223.
Igreja do Mosteiro de Alcobaça. Apud. O Panteão Régio do uma almofada, elemento que, por si só, su-
Mosteiro de Alcobaça, p. 57.
gere a presença de um leito, sendo este o primeiro exemplo português conhecido, indo de
encontro ao que também havia sido uma novidade nos jacentes de Fontevrault,
encomendados pela avó de D. Urraca. Por sua vez, o corpo ocupa um espaço pentagonal
escavado em relação aos bordos da tampa, sugerindo o efeito de calcamento que o peso de
um corpo exerce sobre a cama, e ficando, assim, as extremidades mais elevadas em relação
ao centro. Trata-se de um exemplo de jacente português que recorre à já referida “talha em
Cf. A. Kingsley PORTER, Romanesque Sculpture of the Pilgrimade Roads, (1.ª ed. Boston,
44
408
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
tina”, semelhante à que foi realizada para o jacente do merovíngio Quildeberto, e, talvez,
na sequência da experiência do jacente de um abade (finais do século XII – inícios do
século XIII), lavrado numa tampa tumular existente na igreja do Mosteiro de Paço de
Sousa, cuja técnica usada foi, como já havia notado Manuel Luís Real45, de um baixo-relevo
pouco acentuado, lavrado “en cuvette”.
Por outro lado, a solenidade das indumentárias indicam que a rainha está vestida
para apresentação pública, com todo o rigor e aparato necessários: rosto emoldurado pelo
véu soqueixado e pela coroa; longo vestido pregueado e plissado, cingido na cintura por
um cinto largo; manto longo, preso no pescoço, e que se dispõem lateralmente ao corpo da
figura, de forma rigorosamente simétrica, arranjado para uma apresentação inamovível.
Difere, por isso, de outras representações de jacentes, em que o ondulado dos pregueados
permite-nos pensar que estas foram representadas como se fossem estátuas para ser vistas
de pé, pouco ou nada diferentes de outras estátuas em que esses personagens se fazem
representar em momentos-chaves das suas vidas públicas, isto é, como seres viventes.
Ainda que com carácter de proposta, julgamos poder ver neste jacente e na sua
articulação com a tampa sepulcral, a representação da última exposição do corpo de D.
Urraca, antes do seu sepultamento, ou seja, no momento em que o corpo é disposto no lit
de parade para veneração e homenagem dos familiares e súbditos. É provável que não se
tenha pretendido representar a rainha em exposição num leito, com as suas características
intrínsecas O seu aspecto geral evoca melhor uma padiola de madeira, na qual era não
apenas exposto o defunto, mas também constituía o objecto e o meio, em que o corpo era
transportado desde o lugar da morte até à igreja onde seria sepultado, semelhante ao que
podemos observar na representação das exéquias e funerais de outras importantes figuras
régias medievais, de que é exemplo o funeral de Eduardo, o Confessor, representado na
famosa tapeçaria de Bayeux (c. 1080), ou os funerais de São Luís ou de Joana de Bourbon,
representados nas Grandes Crónicas de França, do reinado de Carlos V.
Um outro interessante exemplo é-nos dado a conhecer através de um túmulo do
século XIII, pertencente a um cavaleiro, e hoje acervo do Museu de Poitiers, em que o
45 Manuel Luís REAL, (manuscrito inédito, 1978), p. 155. Para Mário Jorge BARROCA,
“Escultura funerária”, Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário BARROCA, op. cit., 2002, p. 212,
porém, este não é ainda um jacente, “por lhe faltar a indispensável tridimensionalidade”, mas é um
exemplo que permite compreender os primórdios da construção de jacentes em Portugal.
409
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
pouco espaço destinado à exposição da estátua jacente, bem como o facto de ter o corpo
parcialmente coberto por um tecido, levou Jean-Pierre Gaborit46 a considerar tratar-se de
uma figuração do defunto colocado sobre um feretrum ou ferculum, acompanhado de
algumas das insígnias da sua categoria social, e pronto para ser transportado para o lugar de
sepultura.
Mas se este tema dos lit de parade é parco no universo da tumulária portuguesa de
elementos da família real, entre os séculos XII a XIV, a verdade é que não deixa de estar
presente uma outra tipologia iconográfica, que se prende com a representação do leito de
morte: a morte-sono. Esta categoria iconográfica, embora não apareça com as especificidades
do retrato dos tumulados nos momentos imediatos à sua morte (destinados à homenagem
e veneração), evoca também o leito ou o feretrum onde jaz o defunto, mas propondo a
negação da morte destes personagens, evitando o entendimento dessa morte como estado
definitivo e irreversível, que é assim contrariado. Um vez que esta tipologia é bastante mais
perceptível em alguns jacentes portugueses do que a anteriormente analisada, dedicamos-
lhe uma atenção especial.
410
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Jacente de Fernando II de Leão. Séc. XIII. Catedral de Santiago de Compostela. Apud Manuel
Chamoso Lamas, Escultura Funerária en Galicia, 1979, p. 508.
Jacente de Afonso IX de Leão. Séc. XIII. Catedral de Santiago de Compostela. Apud Manuel
Chamoso Lamas, Escultura Funerária en Galicia, 1979, p. 508.
Esta iconografia refere-se, não tanto ao corpo mortal do rei, mas ao corpo político,
enquanto garante da paz e da justiça. Este, não morre nunca. Por isso, a simulação do
“sono da morte” destina-se, melhor do que qualquer outra opção representativa, a
expressar valores de continuidade da monarquia e da própria dinastia, isto é, a simbolizar a
unidade do corpo místico rei-reino, assim como a afirmar a imortalidade dos que governam
em nome de Cristo.
O corpo e os gestos, retratados na pedra dos túmulos através das estátuas
funerárias, combinam-se, desta forma, para a exaltação da memória e para relembrar
princípios caros às teorias políticas tardo-medievais, e princípios advogados pela doutrina
cristã respeitantes à imortalidade, ainda que esses mesmos princípios sejam herdeiros de
um passado pagão que contava já com uma larga tradição.
411
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Sem pretendermos refazer o historial das representações dos defuntos como entes
adormecidos, apresentamos, apenas, alguns exemplos mais significativos sob o ponto de
vista iconográfico.
A procura de uma libertação perante o estado de angústia e de impotência
proporcionada pela ideia da morte definitiva, conduziu alguns pensadores da Antiguidade a
valorizar o mundo onírico, dissertando sobre ele (sendo disso espelho a própria mitologia
grega), como no anteriormente referido tratado de Aristóteles ou nas Obras morais de
Plutarco, e proporcionando aos artistas matéria representativa bastante ampla. No estado
morte-sono são representados vários jacentes de época etrusca e de patrícios romanos,
inspirados pela iconografia do gesto dormitionem de Endímion48.
Esta mesma valorização do sono e do sonho, enquanto condição privilegiada para
revelações e, da mesma forma, condição perfeita para não estabelecer uma ruptura
definitiva com o mundo dos vivos, encontramo-la em textos bíblicos (Eclesiásticos XXXIV,
1-2), e abundam as referências a sonhos reveladores, como são exemplos Nabucodonosor
e a Visão da Árvore; o sonho do Faraó interpretado por José (Génesis XLI, 1-5), o sonho
de Jacob (Génesis XXVIII, 10-12), o sonho dos reis Magos, entre tantos outros. Todos
evidenciam o carácter divino da mensagem e um conteúdo ideológico que determina o
sonho-visão como fonte inesgotável de comunicação entre o indivíduo e a divindade.
Como bem refere Manuel Núñez, de todas estas visões, destaca-se o sonho de
Salomão (Reis, IX), “donde Yavé se adelanta a la futura teoría política del medioevo sobre
la cooperación Iglesia-Monarquía y que, como se fijará en las Partidas, determina que los
reyes habrán de mantener la fe «honrando y guardando las iglesias»”49.
Durante os anos do Gótico, e com o surgimento de novos santos medievais,
verificou-se a continuidade da valorização do mundo onírico, de que é bom exemplo a
legenda de São Francisco, em que se conta a sua aparição em sonhos a Gregório IX (a
representação iconográfica deste tema encontrou a melhor expressão nos frescos de Giotto
que, em Assis, imortalizaram a iconografia da aparição do poverello a Gregório IX).
48 Segundo alguns autores, Endímion era filho de Zeus. Escolheu dormir um sono eterno e o
deus adormeceu-o, conservando-o eternamente jovem. Segundo algumas versões, a Lua (Selene) viu-o
durante esse sono e apoixonou-se por ele. Cf. Pierre GRIMAL, Dicionário da Mitologia Grega e Romana,
Lisboa, Difel, 1992, p. 134 e Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., 1999, pp. 57-58.
49 Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., p. 62.
412
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Pormenor do jacente
de Dagoberto.
c.1258 (encomenda de
São Luís).
Abadia de Saint-Denis.
414
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
415
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
tampa e, ainda, a colocação dos pés calçados e com esporas, virados para o mesmo lado (esquerdo).
Todavia, o aspecto geral da estátua é mais imperfeita e menos naturalista. As claras semelhanças e
muitos pontos de contacto entre os dois monumentos funerários de Pombeiro, levam Mário Jorge
BARROCA, op. cit., 1987, p.460, a levantar a hipótese de se tratar de obras de um mesmo escultor.
Manuel Real, em 1978, já havia salientado a inovação que constitui a posição deste jacente, e que só
voltaria a ser repetida nos túmulos de Domingos Joanes (Oliveira do Hospital) e de Fernão Sanches
(Museu Arqueológico do Carmo). Os modelos dos dois sarcófagos de Pombeiro revelam inspiração
directa em exemplares galegos, como já havia chamado à atenção Manuel CHAMOSO LAMAS,
Escultura Funerária en Galicia, Orense, Instituto de Estúdios Orensanos “Padre Feijoo” de la Diputación
Provincial, 1979, pp.509-516, nomeadamente nos referidos jacentes de Fernando II e Afonso IX de
Leão, bem como no do Conde D. Raimundo de Borgonha, todos sepultados na Catedral de Santiago de
Compostela. Ambos os túmulos que actualmente se encontram no interior da Igreja de Pombeiro,
pertenceram ao antigo núcleo funerário que constituía um verdadeiro panteão da nobreza de Entre-
Douro-e-Minho (M. J. BARROCA, ibdidem p. 459), situado, outrora, na galilé da mesma igreja. Sobre os
túmulos de Pombeiro Cf. Manuel M. RODRIGUES, “Igreja de Pombeiro”, A Arte Portuguesa, vol. I, n.º
1, Porto, Janeiro de 1882, pp. 61-62; Diogo de MACEDO, Iconografia Tumular Portuguesa. Subsídios para a
formação de um Museu de Arte Comparada, Lisboa, 1934, p. 22; Fr. António da Assunção MEIRELES,
Memórias do Mosteiro de Pombeiro, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1942, pp- 70-71; Armando de
MATTOS, “Arqueologia Artística. II...”, op. cit., pp. 62-64; J. M. Cordeiro de SOUSA, Contribuição para
uma Ementa dos Jacentes Portugueses, Lisboa, IAC, 1946, p. 13, Reynaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948,
p. 18, Manuel Luís REAL, policopiado inédito, 1978, pp. 157-160; D. Luís Gonzaga de Lencastre e
TÁVORA “Apontamentos de Armaria Medieval Portuguesa. II. De novo o selo de D. Constança Gil”,
Armas e Troféus, V.ª série, vol. I, Lisboa, 1980, p. 28 e nota 8; José MATTOSO, “O Românico
Português. Interpretação económica e social” (1980), republ. Portugal Medieval. Novas Interpretações,
Lisboa, INCM, 1985, p. 168, Pedro DIAS, op. cit., 1986, pp. 125-126; Mário Jorge BARROCA, op. cit.,
1987, p. 403; Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2002, pp. 221-
222.
416
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Túmulo de um membro da
família de Lima ou
Nóbrega
Foto: PAF
54 Da primeira metade do século XIV (1336-1340 ?), estes dois túmulos arrolam-se entre as
obras atribuídas à oficina de Mestre Pero. Constituídos por arcas sepulcrais esculpidas em granito, sem
qualquer decoração, possuem tampas com estátuas jacentes, lavradas em calcário brando da região de
Coimbra (pedreiras de Ançã, Outil ou Portunhos). Ambas as estátuas, do cavaleiro e da sua mulher,
apresentam-se em decúbito lateral, simbolizando um estado letárgico A sua atribuição à mão ou à
oficina de Mestre Pero tem sido unânime desde a década de 20 do século XX, quando Alberto Feio
descobriu o contrato para a realização do túmulo de D. Gonçalo Pereira e, mais tarde, o recibo de
pagamento do túmulo de D. Vataça ao mesmo mestre escultor. De facto, a estátua jacente de D.
Domingas Sabanchais, em tudo se assemelha à de D. Vataça e muitas semelhanças apresenta com as
figuras femininas esculpidas na arca tumular do arcebispo de Braga e no túmulo da Rainha Santa Isabel.
Sobre estes túmulos veja-se, entre outros títulos: Vergílio CORREIA, op. cit., 1924, p. 41; A.
GONÇALVES, «Esculturas da Capela dos Ferreiros», Ilustração Moderna, Ano 5, nº 40, Porto, ed.
Marques Abreu, Fev. de 1930, pp. 34-37; Aarão de LACERDA, op. cit., 1942., p. 460; Reynaldo dos
SANTOS, op. cit., 1948; Pedro DIAS, op. cit., vol. IV, 1986, p. 117; Francisco Pato de MACEDO, “O
descanso eterno. A tumulária», História da Arte Portuguesa, (dir. Paulo Pereira), vol. I, Lisboa, Circulo de
417
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Leitores, 1995, p. 444; Emídio Maximiniano FERREIRA, A Arte Tumular Medieval Portuguesa (Séculos
XII-XV), Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1986, p. 112; Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2000, vol. II,
Tomo 2, pp. 1627-1632.
55 Veja-se foto do túmulo completo no capítulo 2 da III Parte.
418
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
419
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
visual e simbólica a esse novo poder. O último ritual de apresentação pública dos
monarcas, ocorrido durante os funerais, deve ser igualmente valorizado, tendo em conta a
existência que se verifica, em alguns casos, da sua relação estreita com as representações
jacentes nos monumentos funerários, situação que é mais compreensível, e até mais
explícita, para os casos franceses e ingleses, do que nos jacentes régios portugueses, na
medida em que não existem descrições pormenorizadas sobre as exéquias dos nossos reis,
pelo menos no que se refere às suas indumentárias e regalia, como veremos.
Em França, como já vimos, o ritual da sagração impõem-se como a principal
cerimónia da monarquia, pois, através dela, o rei adquire um estatuto sobrenatural. A
forma como o ritual foi adquirindo complexidade demonstra bem o relevo que detinha.
Conhecemos hoje, especialmente bem, todo o desenrolar das cerimónias de
confirmação dos novos monarcas franceses, através da abundância dos ordines1 da sagração,
onde os textos e as notas marginais nos permitem conhecer todos os passos, e as
iluminuras respectivas ilustram, claramente, todo o aparato litúrgico e laico que os
caracterizavam. São de salientar três Ordines franceses do século XIII (o Ordo de 1230, o
Ordo de 1250 e o Ordre de la consécration et du couronement des rois de France, ou Ordo Capetíngio,
datado de 1270), e ainda, do século XIV, o Livre du Sacre, mais conhecido como Coronation
Book2, do reinado de Carlos V. Em Inglaterra, a importância das cerimónias de sagração
dos novos monarcas também deixou notáveis testemunhos literários e iconográficos, sendo
os mais notáveis o Liber Regalis3, o Litlyngton Missal e o Pamplona Coronation Book.
1 Sobre os ordines das coroações dos reis franceses veja-se Richard A. JACKSON, “Les ordines
des couronnements royaux au Moyen Age”, Le Sacre des Rois, Paris, Société d’Edition Les Belles Lettres,
1985, pp. 63-74.
2 Londres, British Library, Ms Cotton Tiberius D. VIII. É composto por trinta e oito ilustrações
de cada fase da sagração e está datado de 1365, pela própria mão de Carlos V, um ano após a sua
sagração.
3 Londres, Westminster Abbey Ms 38. É composto por trinta e quatro fólios contendo o ordo
para a sagração de um rei, de um rei e de uma rainha e de uma rainha individualmente. Cada liturgia
abre com uma iluminura de página inteira contendo referências simbólicas ao texto. Neste caso, o texto
da sagração é parte integrante de um volume que contempla outros assuntos litúrgicos, sendo o Liber
Regalis apenas uma parte de um manuscrito descritivo de cerimónias eclesiásticas, contrariamente ao
Coronation Book de Carlos V, apenas destinado à cerimónia da sagração. Esta obra insere-se na produção
de manuscritos iluminados de Westminster, tal como o Litlyngton Missal, executado pelas mesmas mãos,
ou o Pamplona Coronation Book (actualmente no Arquivo Geral de Pamplona, MS 197), como
testemunhos da muito estreita ligação da abadia à monarquia inglesa. Convém relembrar que a abadia
de Westminster possuía os direitos de custódia sobre as regalia da coroação, à semelhança do que se
passava com Saint-Denis para a realidade francesa contemporânea. Cf. Helen LACEY, A Comparison of
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
the Illuminations of Liber Regalis with those of the Coronation Book of Charles V of France,
www.york.ac.uk/teaching/history/pipg/coronation.pdf, (7-11-2003); Paul BINSKY, The Liber Regalis:
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Transporte da Santa Ampôla da Igreja de S. Remígio de Unção com os santos óleos sobre a testa do novo rei.
Reims para a Catedral de Reims, em procissão solene. Ordo da Sagração e Coroação dos Reis de França.. c.1250. (LAT 1246
Ordo da Sagração e Coroação dos Reis de França.. c.1250. (LAT 1246 fl.17).
fl.4). Collete Baune, Des Manuscripts des Rois de France au Moyen Collete Baune, Des Manuscripts des Rois de France au Moyen Age, p.
Age, p. 125. 127.
Unção dos braços e das costas; o rei veste os Unção do peito de Carlos V de Fraça.
trajos solenes; imposição solene da coroa e das Livre do Sacre (Coronation Book) (Guillaume Durand, Rationale
restantes insígnias; final da cerimónia. Ordo da divnorum officiorum, traduzido por Jean Golein. FR 437, fl. 44v.º)
Sagração e Coroação dos Reis de França. c.1250. (LAT Collete Baune, Des Manuscrits des Rois de France au Moyen Age, p. 129.
1246 fl. 26). Collete Baune, Des Manuscrits des Rois de
France au Moyen Age, p. 128.
its date and European Context. The Regal Image of Richard II and the Wilton Diptyc, ed. D. Gordon, Londres,
1977.
423
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Por fim, o arcebispo tomava das mãos dos nobres a coroa e colocava-a na cabeça
do “eleito”. Este, era então conduzido solenemente ao trono, que se encontrava instalado
sobre um estrado no coro. Terminava, por vezes, com a bênção dos estandartes com as
flores-de-lis, antes de passar, caso fosse essa a situação, à sagração da rainha4. Esta última
cerimónia era mais simples e a unção era feita com um óleo benzido pelo arcebispo, em
menos partes do corpo.
No Livre du Sacre (Coronation Book) de Carlos V, insiste-se notoriamente sobre o
sacramento da unção “qui fait du roi une personne mixte quasi clerical. Le roi est un
“Christ” oint du Seigneur, entouré des douze pairs comme des apôtres, vassale de Dieu
seul, porteur de la religion royale”5.
É interessante salientar que, no fólio 74, o texto que aí se pode ler é da mão do
próprio rei Carlos V, testemunho de que ele teve um papel activo na correcção, arranjo,
escrita e ilustração do texto, e não apenas no seu patrocínio. Esta é uma obra que, tendo
sido redigida e ilustrada poucos anos após a coroação do casal régio, revestiu-se de uma
extraordinária importância para as pretensões de Carlos V. Como concluiu Claire. R.
4 Cf. Patrick DEMONY, op. cit., 2001, pp. 90-119 e Colette BEAUNE, op. cit., 1997, pp.124-
130.
5 Colette BAUNE, op. cit., 1997, pp. 128-129.
424
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Sherman6, a coroação e respectivas cerimónias foram os primeiros passos dados por Carlos
V para a criação de um suporte firme de uma monarquia que se apresentava vacilante,
através da sua divulgação escrita e ilustrada. Por isso se reveste de tanto interesse e atenção
por parte do monarca a redacção deste livro, que difere, pela interferência directa do rei,
dos usuais ordines de sagração, inseridos em Pontificais e, como tal, compondo apenas uma
parte inserida em obras de carácter litúrgico e da responsabilidade dos meios eclesiásticos.
Aqui, é o rei que assume um papel determinante na condução e fixação do ritual.
No que respeita à coroação das rainhas de França, o caso de Joana de Bourbon
(1338-1378), mulher de Carlos V, constitui um exemplo de grande relevo, na medida em
que os rituais de que se reveste a cerimónia também ficaram registados graficamente
através de um conjunto de nove iluminuras. Através da comparação entre o texto do Livre
do Sacre, mais conhecido como Coronation Book, Claire R. Sherman conclui que existe uma
relação directa entre os ritos da coroação dos reis e os mesmos para as rainhas. Diversos
aspectos, porém, deixam
perceber a situação de
inferioridade do status social da
rainha em relação ao rei,
nomeadamente pelo facto de
Carlos V, à semelhança de todo
os seus antecessores (desde
Clovis, em 496), ter sido ungido
poder taumatúrgico que colocava os governantes franceses em posição superior aos seus
congéneres de outros reinos, enquanto que a rainha foi ungida com um óleo simplesmente
benzido, aplicado somente no peito e na cabeça7.
425
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Coroação de Carlos V e de
Joana de Borbon.
Grandes Chroniques de France
(reinado de Carlos V). BNF, fol.
439.
426
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Em resumo, o destaque que é dado, neste livro, aos ritos de coroação e sagração de
Joana de Bourbon não se destina a fazer a afirmação do poder político da rainha, mas antes
a excepcionalidade do seu elevado estatuto como pessoa real, confirmado com a última
iluminura, em que a rainha aparece a receber a comunhão. C. R. Sherman recorda que,
nestes tempos, provavelmente, apenas o rei e a rainha eram os únicos não-clérigos a ter
este privilégio.
O que assistimos com a redacção e ilustração desta obra, é mais um importante
passo em frente na interferência do poder real na esfera do poder religioso, e uma
afirmação do monarca como condutor da sua própria propaganda dinástica, com fins
legitimistas. A junção textual e iconográfica da coroação do rei e da rainha, destinam-se,
assim, a reforçar o prestígio da monarquia francesa através dos seus dois representantes
como um todo único, situação que se verificaria até à morte da rainha em 1378, em outras
obras que ilustram a unidade do casal e da sua família.
A sequência das sagrações em Inglaterra seguia, grosso modo, os mesmos passos,
diferindo apenas, ainda que com grande importância, na inexistência de um óleo sagrado
trazido por um anjo que conferisse aos reis ingleses o mesmo carácter supra-natural dos
reis Franceses9.
A ligação que se pode estabelecer entre as regalia recebidas durante a cerimónia da
sagração/coroação e a presença e exposição dessas mesmas insígnias, durante os funerais
régios, foram temas já amplamente estudados por A. Erland-Brandenburg, para alguns
casos de monarcas franceses e ingleses10. A ostentação pública das regalia nos momentos
que antecedem a inumação, bem como o significado político inerente a todo este aparato,
não podia deixar de influenciar a representação póstuma dos reis e rainhas nas respectivas
estátuas jacentes.
Se pouco ou nada sabemos sobre os funerais dos reis merovíngios, e se as
descrições são muito sumárias para os funerais dos representantes da dinastia Carolíngia, o
único destaque vai apenas para as cerimónias fúnebres de Lotário, que conhecemos graças
às descrições de Richer: On lui fit de magnifique funérailles avecun déploiement de luxe royal. On
9 Sobre a sagração dos reis ingleses veja-se, entre outros estudos, Raymonde FOREVILLE, “Le
sacre des rois anglo-normands et angevins et le serment du sacre (XIe – XIIe siècles)”, AA.VV. Le Sacre
des Rois, Paris, Société d’Edition Les Belles Lettres, 1985, pp. 101-117.
427
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
disposa un lit qu’on décora des insignes de la royauté. On revêtit son corps d’un vêtement de soie et on le
couvrit d’un manteau de pourpre orné des pierres précieuse et tissé d’or. Les grands du royaume portaient le
lit. Les évêques et clergé marchaient en avant avec les évangiles et les croix. Au milieu d’eux s’avançais, en
poussant des gémissements, celuis qui portait la coronne, brillant d’or et pierres précieuses, avec beaucoup
d’autres insignes. Le chant de mélodie funèbre était entrecoupé des sanglots. Les vassaux aussi défilaient à
leur rang, le visage défait ; le reste du cortège suivait en pleurant11.
A partir desta descrição, pode-se compreender que o rei era vestido, à maneira dos
imperadores romanos, com o manto de púrpura que recobria uma veste de seda; que as
regalia (regalibus insignibus) eram colocadas sobre o leito fúnebre, e que estas eram as mesmas
que lhe eram atribuídas no dia da sagração: a espada, o bastão ornado de ouro e pedras e o
ceptro. A coroa era transportada por algum clérigo do cortejo, uma vez que havia sido
atribuída pela papa e não pelos membros do clero, diferindo, assim, das restantes insígnias.
No caso dos reis ingleses, até à morte de Henrique I (sepultado na abacial de
Reading, em 1136), os cronistas não referem a presença das regalia. Com a ascensão dos
Plantagenetas ao trono, opera-se uma alteração fundamental. Passa a haver uma relação
muito estreita entre o cerimonial da sagração e os funerais, desde a morte de Henrique, o
Jovem em 1183. Matthiew Paris e Roger de Wendover indicam que o corpo do rei, que foi
sagrado e provavelmente ungido em 1170, e coroado, juntamente com a sua mulher, em
1172, foi vestido com vestes de linho, as mesmas que ele usou no dia da sagração12.
Já quanto aos funerais de Henrique II († 1189), morto seis anos depois do seu filho,
Bonoit de Peterborough descreveu, com detalhe, o transporte do corpo do rei desde
Chinon a Fontevrault. Ele estava vestido com trajes reais (regis apparatu), com coroa na
cabeça, as mãos cobertas por luvas. Segurava o ceptro com uma das mãos. Os pés estavam
calçados e munidos das esporas e, à cintura, ostentava a espada. Em casos como este, as
regalia estão estreitamente associadas à pessoa real. “Il est évident qu’il y a eu volunté
Roger de WENDOVER, Flores historiarum, ed. G. Hewlett, Londres, 1886, t. I, p. 130 (Rerum
britannicarum medii aevi scriptores, vol. 84)
428
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
d’etablir un lien très étroit entre la cérimonie de l’onction qui fait le roi et l’apparat des
funérailles”13.
Nos funerais de Ricardo Coração de Leão, como era significativa a distância (250
Km), entre o castelo de Châlus (lugar onde faleceu - †1199) e Fontevrault, sendo
necessários sete dias para o transporte do corpo, não foi possível conduzir o cadáver
vestido com os trajos reais, as regalia e a cara descoberta. No que se refere aos funerais de
João Sem Terra, Roger Wandover refere que o rei foi transportado vestido com os
ornamentos reais.
Torna-se evidente que, desde a subida ao trono dos Plantagenetas, houve a vontade
de magnificar a pessoa real. Esta vontade de glorificação encontra-se na exposição pública
do rei vestido com todas as insígnias de majestade. “Même mort, le corps du roi continuait
à posséder ce caractère special que lui avait donné l’onction »14. Foi por contaminação que
os reis franceses adoptaram este cerimonial dos reis ingleses.
Nos primeiros famosos túmulos de monarcas do panteão real de Fontevrault,
Henrique II e Ricardo Coração de Leão, os jacentes de ambos são apresentados no lit de
parade, ostentando os principais atributos da condição régia: coroa; ceptro; espada; esporas;
túnicas e manto de púrpura. Esta inovadora iconografia, aqui experimentada em anos
anteriores a 1204 (ano da morte de Leonor da Aquitânia), destina-se a representar os
respectivos reis ingleses, com as vestes e as regalia das cerimónias de sagração a que ambos
se haviam submetido, isto é, em retratos de regis apparatu15, como expressão de poder.
Estes exemplos não foram os únicos que provam como, na Inglaterra dos finais do
século XII e inícios do século XIII, por ocasião das exéquias dos representantes do ofício
régio, os corpos eram vestidos com os trajos da sagração, como nos dá notícia Mathieu
Paris e Roger Wendover sobre os funerais de Henrique o Jovem, co-rei de Inglaterra com
seu pai Henrique II. Morto em 1183, durante o cerimonial das exéquias o corpo foi
revestido com as mesmas vestes que usou no dia da sua sagração, assim sendo exposto no
seu leito mortuário16.
429
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
O primeiro rei francês que beneficiou de um funeral tão esplêndido quanto os dos
reis ingleses foi Filipe Augusto. Antes da sua morte, não existe qualquer outro exemplo
conhecido. O rei morreu em Mantes, em 1223, e foi transportado para Saint-Denis. Foi
revestido com um tecido de ouro, sob o qual foi colocada a túnica e a dalmática. Tinha
numa das mãos o ceptro e, sobre a cabeça, foi-lhe colocada a coroa. Um cortejo de barões
transportou a liteira real. De qualquer forma, as insígnias não coincidiram totalmente com
as que foram atribuídas na sagração. O cerimonial francês demorou mais tempo a
complexizar-se e a fixar-se e, só aos poucos, se assistiu ao aparecimento das restantes
regalia.
A exposição do corpo do defunto rei, revestido com as vestes da sagração e as
regalia, tornou-se, então, um costume generalizado na Europa. O imperador Otão IV, antes
de morrer, nas suas disposições testamentárias, indicou que pretendia que o vestissem com
o manto real branco, as esporas de ouro, as luvas nas mãos, o anel no dedo e os braceletes
no braço, o ceptro na mão direita, o globo na mão esquerda e espada disposta ao seu lado,
à direita.
430
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Cf. Elie BERGER, Histoire de Blanche de Castille, Paris, 1895, que ainda permanece como obra
17
431
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
18J. M. NIETO SORIA, “Origem divino, espírito laico y poder real en la Catilla del siglo XIII”,
Anuario de Estudios Medievales, n.º 27/1, Barcelona, CSIC, 1997, p. 70.
432
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
de fórmulas alusivas al origem divino de la realeza fue claramente valorada por Alfonso X
como una afirmación de que, al provenir su autoridad directamente de Dios, sin mediación
alguna de papa o emperador, quedaba confirmada su plena autonomia como poder político
incontestable dentro de su reino”20. A simples titulação “rei pela graça de Deus” era a
contínua recordação desta especial relação.
Com Sancho IV, a afirmação da superioridade do rei e da sua origem divina
estabelecem-se de forma ainda mais autoritária. Afonso X havia escolhido para preceptor
do filho e futuro rei, o frei Juan Gil de Zamora, ensinando-o de acordo com os preceitos
defendidos no De preconiis Hispaniae, dos quais o rei retirou favoráveis consequências aos
seus intentos, desde critérios providencialistas, à interpretação mais autoritária do poder
real, convertendo-o, a ele, Sancho IV, e na interpretação de M. Castro21, numa espécie de
“semideus”. Sancho IV evitou sempre que a proclamada origem divina implicasse qualquer
forma de controlo ou fiscalização da Igreja sobre o poder real, quer fosse por mediação do
papa, quer dos bispos. E, pelo contrário, procurou sempre que essa mesma prerrogativa lhe
permitisse justificar os seus direitos de intervenção sobre a Igreja22.
Neste contexto de divinização da realeza, reclamada ou mesmo aceite em todos os
países da Europa ocidental durante a baixa Idade Média, causou estranheza a alguns
autores e, durante algum tempo, notou-se a ausência ou a falta de sistematização dos ritos
litúrgicos de acesso ao trono23, em especial a questão da unção. Centrando as preocupações
nessa ausência, tenderam a interpretar a monarquia medieval castelhana como anómala.
Também a historiografia portuguesa, estabelecendo os inevitáveis paralelos com o
que ocorria, por exemplo, em França e em Inglaterra, e perante a ausência de informações
documentais, ou outras, que permitissem afirmar a existência de complexos ritos de acesso
monarchie castillane du Bas Moyen Age”, Annales, E. S. C, 39, 1984, pp. 429-453 ; Peter LINEHAN,
History and Historians of Medieval Spain, (cap. 12 a 14); Adeline ROCQUOIS, “De los reyes que no son
taumaturgos de la realeza en España”, Relaciones. Estúdios de Historia y Sociedad, vol. XIII, 1992, pp. 55-83.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
24 Entre outros títulos veja-se “Imágenes religiosas del rey e del poder real en la Castilla del
siglo XIII”, En la España Medieval, vol. V, Homenaje al Prof. D. Angel Ferrari Núñez, II, Madrid, 1986,
pp. 709-729; op. cit., 1983; op. cit., 1988.
25 Embora se julgue que a cerimónia da unção remonte a Recaredo, a primeira notícia da sua
existência refere-se à unção de Wamba. Existem igualmente informações documentais sobre a sagração
dos reis da monarquia asturiana e leonesa que remontam ao reinado de Afonso II, bem como notícias
de que foram ungidos Afonso III, Ordonho II, Ramiro III, Fernnado I e Afonso VII, entre outros.
434
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
hubiese Pontífices, y que los emperadores de épocas anteriores tenían poder incluso sin la
consagración, porque, en cualquier caso, todo poder venia de Dios”28.
A todos estes argumentos, Nieto Soria junta outro para reforçar a sua argumentação
acerca da não prioridade de os reis castelhanos se submeterem à unção: os conselheiros de
Afonso X tinham certamente conhecimento que Inocêncio III havia estabelecido uma
doutrina precisa sobre o significado da unção real, na qual se subvalorizava os efeitos
espirituais desta, ao mesmo tempo que valorizavam as dependências do rei face à Igreja.
Por isso, a unção real terá sido vista por Afonso X mais como um passo atrás em relação
ao processo de centralização do poder régio, ou secularização do Estado, e menos como
uma conveniência que lhe garantisse legitimidade na sua origem divina, a qual estava
garantida à partida.
O mesmo, parece-nos, poderá ter acontecido em Portugal, não fossem os reinados
de D. Afonso III, D. Dinis e até mesmo de D. Afonso IV tão marcados pela influência da
corte castelhana e, em especial, pela figura de Afonso X (quer nas relações familiares, quer
numa contínua e alinhada progressão na centralização do poder régio), quer mesmo pelas
personalidades políticas de Sancho IV e de Afonso XI.
No que respeita à realidade portuguesa coeva, a sagração e coroação dos nossos reis
e respectivas mulheres conhece já uma longa historiografia. Esta questão e a sua reflexão
concentra, em si mesma, uma importância significativa, no momento em que nos
propomos compreender a iconografia das suas representações. Por isso, e não querendo
estender-nos nos revisionismos excessivos, importa-nos destacar as posições de diferentes
autores que demonstram duas posições distintas face ao mesmo problema, fundamentadas
com os dados disponíveis nas cronologias em que cada um dissertou sobre o problema.
António Brásio29 e Paulo Merêa30 afirmavam, em 1962, de forma categórica, que os
reis portugueses nunca haviam sido coroados nem sagrados liturgicamente, apesar dos
pedidos feitos ao papa, por D. Duarte, para obtenção desse privilégio. Para estes autores,
os monarcas portugueses eram apenas “alevantados” e aclamados por reis. Ambos se
436
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
baseavam na ausência de descrições das sagrações dos reis portugueses nas crónicas de
Fernão Lopes e de Rui de Pina e, Paulo Merêa, confrontado com a informação de Frei
António Brandão quanto à unção e coroação de D. Sancho I na Sé de Coimbra, colocou-a
claramente em dúvida, afirmando que este não se apoiava em fonte conhecida. Ambos os
autores seguiam a linha de pensamento dos historiadores espanhóis, especialmente Sanchez
Albornoz31 e, ainda, no clássico estudo de Percy Schramm32, ambos tendencialmente
opositores da existência, ou, pelo menos, da continuidade das cerimónias de sagração e
imposição da coroa nos reinos hispânicos33.
Como já vimos, as questões levantadas por Albornoz e Schramm fizeram escola em
Espanha e, em 1984, Teófilo Ruíz transformava as dúvidas levantadas nestes estudos em
tese. Se, em Espanha, coube a Nieto Soria a mais profunda revisão dos conteúdos e uma
análise mais actualizada e melhor fundamentada destes princípios, dando origem a um
entendimento diferente, em Portugal, deve-se a José Mattoso uma nova e necessária
tomada de posição. Este último historiador, não se limitou a analisar o caso português,
passando em revista, também, as fontes castelhanas e leonesas em que se basearam
Albornoz e, sobretudo, Teófilo Ruíz.
Rebatendo as teses que se apoiam no laconismo das fontes cronísticas peninsulares
a respeito da sagração e da coroação, Mattoso considera alguns trechos que nelas se
encontram suficientemente expressivos e onde se nota a presença de elementos do
sagrado. Na Crónica Latina dos Reis de Castela, refere-se que as cerimónias (embora com
maior ênfase dado aos gestos de homenagem para com Henrique I e para com Fernando
III), se processaram na Igreja de Santa Maria de Valladolid. Rodrigo Ximénez de Rada, ao
tendem a negar que os reis de Leão e Castela tivessem sido sagrados ou ungidos com os santos óleos,
ou mesmo que se tivessem submetido a uma cerimónia litúrgica de coroação. Sánchez Albornoz, que
mostrou a vigência do uso pelos reis visigodos, asturianos e leoneses, até Fernando, o Magno, confessa
ignorar o que teria acontecido aos seguintes, e passa depois a considerar excepcionais as sagrações de
Afonso VII e de Afonso XI, essas bem documentadas. Baseia-se, para isso, em breves relatos
cronísticos das cerimónias de investidura dos reis castelhanos, nos quais não é mencionada a coroação
litúrgica, falando-se apenas de gestos de tipo secular, como a entronização e a homenagem por meio do
beija-mão”. José MATTOSO, “A coroação dos primeiros reis de Portugal”, A Memória da Nação, org.
Francisco Bettencourt e Diogo Ramada Curto, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1993, pp. 187-200.
437
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
referir-se aos mesmos reis, indica, a propósito de Henrique I, que foi elevado à dignidade
régia pelos pontífices e magnates, tendo todo o clero cantado o Te Deum laudamus. O
mesmo é referido na Primeira Crónica Geral de Espanha, onde se cita a participação do clero.
No caso da conhecida coração de Afonso XI, sabe-se que o acto teve lugar no interior de
uma igreja34.
Pese embora o facto de as primeiras crónicas portuguesas se revelarem
profundamente lacónicas a este respeito, a Crónica de 1419 contém, acerca de D. Sancho I, a
frase mais expressiva: “foi coroado por rei em Coimbra”, algo mais completo do que as
vulgares locuções verbais de “alçaram por rei” ou “foi alçado por rei”, que se podem ler na
Crónica de 1344, ou em algumas passagem de Rui de Pina35. O autor da Crónica de 1419,
referindo-se a D. Afonso IV, diz que foi, também, solenemente alevantado e obedecido por rei.
Fernão Lopes, na Crónica de D. Fernando, indica que partindo el d’aquel moesteiro [Alcobaça]
onde seu padre fora tragido e el levantado por rei […], havendo, por isso, a clara menção de um
espaço eclesiástico de grande relevo36.
Este laconismo dos cronistas é entendido pelo referido historiador como um
desinteresse pelos rituais das investiduras régias, ou, simplesmente, como uma incapacidade
de traduzir na escrita a linguagem gestual, mesmo a mais solene. Considera, porém,
precipitado, e usando apenas estas fontes, afirmar que não existiram cerimónias de
sagração e de coroação dos nossos reis. Vários testemunhos parecem demonstrar
exactamente o contrário, sobretudo, durante a primeira dinastia.
São estes testemunhos - seguindo a mesma enumeração de J. Mattoso - o
manuscrito 1134 da Biblioteca Municipal do Porto, dos finais do século XII, conhecido
como “Pontifical de Santa Cruz de Coimbra”, onde nos fols. 130 a 134 se encontra o Ordo
benedicendi regnum. Para além da existência de sinais de ter sido utilizado, o autor sublinha o
facto de possuir uma oração acrescentada à margem para introduzir a solenização especial
da bênção e a entrega da espada. Neste Ordo, é também referida a unção das mãos, do
peito, das costas e dos braços pelo metropolita, a bênção e entrega da espada, de braceletes,
da capa solene ou pálio, e do báculo, além da imposição da coroa. Perece, ainda, que a
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
investidura destas insígnias decorria antes da Eucaristia. Em comparação com outros ordines
ocidentais, demonstra ser uma cópia do ritual que consta do Pontifical romano-germano do
século X, sendo este o mais difundido na área da liturgia romana, e de que se conhece outra
cópia, com variantes, no designado cerimonial de Cardeña, também do século XII. “Tudo
isto mostra a difusão daquele ordo, provavelmente desde que se abandonou a liturgia
hispânica, no fim do século XI”37. É provável, segundo o mesmo, que este manuscrito
tenha servido para coroação de D. Sancho I e dos reis seguintes.
Existe ainda outro manuscrito, igualmente pertencente a Biblioteca Municipal do
Porto (343), também de origem crúzia e coimbrã, com um ritual simplificado e com
algumas variações relativamente ao ordo anterior, sem que possamos negar a sua utilização.
O terceiro testemunho encontra-se no cerimonial de coroação de Afonso XI,
também usado por seu filho, Fernando V. Mattoso entende que esta obra tem especial
interesse para Portugal, uma vez que foi redigida por Raimundo Ebrard II, bispo de
Coimbra, entre 1325 e 1333. Escrito em castelhano e latim, denota muitos portuguesismos,
já notados pelo seu editor, Sánchez Albornoz. Testemunha, assim, o interesse que os meios
eclesiásticos portugueses atribuíam à solenidade litúrgica da coroação. No documento “…
também se encontra nele a unção dos ombros e das costas, não só do rei, mas também da
rainha, a bênção e entrega da espada e a bênção e imposição da coroa, além da
entronização num estrado elevado no interior da igreja”38.
O quarto e último testemunho, embora menos explícito, mas suficientemente claro,
consta do Livro dos Arautos, datado de 1416, publicado em 1977 por Aires de Nascimento39.
O arauto português que percorreu várias cortes europeias, ao referir-se à Sé de Coimbra,
diz que aí se coroavam ex consutudine os reis de Portugal. “Ora, se se tratava da catedral e de
uma coroação, deve-se presumir que se usasse uma cerimónia litúrgica aprovada pelas
autoridades eclesiásticas. E se era “costume” deve-se entender que a ela se tivesse sujeitado
vários reis e não apenas um”40.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
440
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Esta cerimónia podia também ter sido adoptada em Portugal ao menos para o
nosso primeiro rei, como permite supor o facto de para ele e vários dos seus descendentes
utilizarem um termo como “alçar” para exprimir o início da realeza, e de haver referências
expressas ao pregão “real, real”, idêntico ao que se usava também em Navarra quando se
aclamava o novo rei, de pé, sobre o escudo ou pavês”43.
De qualquer modo, no que respeita a Sancho I, não encontramos motivos para
duvidar das palavras de Frei António Brandão, cujas informações tão pormenorizadas só
podem ter tido por base alguma documentação entretanto perdida. Não resistimos, por
isso, a citar uma parte desse texto: Três dias depois do falecimento delRey D. Afonso, foi levantado
por Rey Dom Sancho com soleníssima pompa, & apparato em a cidade de Coimbra, & dando volta pellas
ruas publicas della, com as aclamações que em tais actos se costumão chegou à Sé aonde já estava a
José MATTOSO, “A realeza de Afonso Henriques”, História e Crítica, nº13, 1986, pp.5-14,
43
republicado em Fragmentos de uma Composição Medieval, 2ªed., Lisboa, Estampa, 1990, pp. 227-228.
441
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Rainha, & assistindo ambos aos divinos officios, forão coroadospor mão do Bispo Dom Martinho que
então presidia nesta Igreja, & tendolhe beijadas as mãos, & feita a veneração devida, os senhores que
então acharão em a Corte, se recolherão ao paço com grande alegria, & aplauso do povo44.
A este respeito, o recente e muito desenvolvido estudo de António Filipe
Pimentel45 revela-se de grande acuidade e claramente esclarecedor, sublinhando o valor das
informações de António Brandão (e rebatendo as posições de Peter Linehan46),
relacionando-as, ainda, com a campanha arquitectónica da década de sessenta do século
XII na Sé de Coimbra, lugar onde a sagração do rei ocorreu, preparando-a para “cenário da
coroação dos Reis de Portugal”, em especial o portal axial, em jeito de “opulenta tribuna,
destinada à apresentação, à multidão exterior, de um qualquer mistério, de uma transfiguração
operada no interior da catedral, em resultado de acto previamente levado a efeito”47. Isto é,
à apresentação do rei, D. Sancho I, e da rainha, D. Dulce, à multidão, após a sagração e
coroação dos mesmos no interior do templo.
A partir de meados do século XIII, e de forma quase generalizada (à excepção de
França), as monarquias ocidentais, e muito em particular as peninsulares, parecem tender a
evitar a subordinação à ordem eclesiástica, com a argumentação de que a unção não era o
único meio transmissor do poder real. Uma vez que o direito de sucessão ao trono se havia
tornado tendencialmente hereditário, a partir do século XII, os monarcas, nos respectivos
reinos, começaram a actuar e a intitular-se reis antes de receber a coroação, demonstrando,
assim, que não era a unção que os investia de um poder que já haviam herdado por direito.
“La tesis de que la muerte del rey hace instantáneamente rey a su sucesor es comúnmente
admitida”48.
É provável que, ao tempo de D. Afonso IV, a cerimónia de sagração de um novo
monarca já não fosse sentida como necessária, requerendo-se apenas a aclamação e a
44 Frei António BRANDÃO, op. cit. Parte IV, ed. 1974, fl. 1v.
45 Cf. António Filipe PIMENTEL, “A sagração do reino em torno do(s) projecto(s) da Sé
Velha”, Artis, n.º 3, Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, 2004, pp.
87-122.
46 Cf. Peter LINEHAN, “Ultrum reges Portugalie coronabantur annon”, 2.º Congresso Histórico
de Guimarães, vol. II, Guimarães, Câmara Municipal de Guimarães e Universidade do Minho, 1996, p.
394.
47 António Filipe PIMENTEL, “A sagração...”, op. cit., 2004, p. 117.
442
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
homenagem dos súbitos. Prova disso terá sido a convocação das Cortes em Évora, logo
após a morte de D. Dinis, a 7 de Janeiro de 1325, tendo D. Afonso IV ascendido ao trono
imediatamente e “logo, logo, convocou cortes, para Évora, às quais chamou ricos-homens,
cavaleiros e outros filhos de algo; bispos, abades, priores e representantes de cabidos,
mosteiros e igrejas; procuradores dos concelhos; e outras gentes do senhorio. Objectivo da
assembleia: «pêra me receberem por Rey e por senhor e me fazerem menagem e me conhecerem senhorio e
divido natural como a Rey e a senhor a que som theudos de conhecer e pera livrar com eles algũas outras
cousas». Vê-se que se tratou de um assembleia muito frequentada e luzida, espécie de
congresso nacional destinado a estreitar em torno do novo rei o País todo, clero-nobreza-
povo, obediente e concordante. Enfim, ritual de refazimento da ordem e da unanimidade;
o sapar das conflagrações dos últimos anos. Foi iniciativa muito hábil. A qual mostra um
Afonso IV politicamente maduro – conforme, aliás, era de esperar da sua idade e da sua
experiência. E dissemos «iniciativa». Acrescente-se «inédita» e só retomada no século XV.
Porque, desde 1254 – ano das primeiras cortes seguramente comprovadas – até 1433, não
conhecemos outras, além destas de 1325 (Évora), que tenham sido expressamente
convocadas para jurar um rei acabado de subir ao trono”49.
A partir da descrição da investidura das insígnias presente no Pontifical de Santa Cruz
de Coimbra, apercebemo-nos que, no seu conjunto, estes atributos materiais do poder régio
diferem, em número e também em género, dos que eram atribuídos aos reis franceses e
ingleses em idênticas cerimónias. Na Península, parecem ser valorizados, em primeiro
lugar, a espada, os braceletes, o manto real e, obviamente, a coroa. Apesar de este
manuscrito se referir a cerimónias que teriam tido lugar nos finais do século XII, e quiçá
nos inícios do século XIII, e de aceitarmos que, com o passar dos tempos, o número de
insígnias poderá ter aumentado, em situação análoga ao que se verificou em França, a
verdade é que nada nos leva a crer que tenham sido significativamente mais numerosas.
Essa particularidade portuguesa, quando confrontada com a iconografia dos nossos
monarcas, em especial com as suas estátuas jacentes, talvez seja a melhor confirmação para
uma relativa singeleza e uniformização das insígnias. Se o manto, a espada e a coroa estão
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
tudo enleado numa fita de seda. A cabeça estava intacta. Era pequena, condizendo com o
corpo, que não devia exceder 1,65m de altura, encontrando-se junto, “mas despegada” da
face, a barba ruiva e, soltas, umas madeixas de cabelo um pouco mais claro, e a dentadura
muito branca. Informações estas transmitidas pela imprensa da época […]”51. É muito
provável que o quer que o cadáver possuísse em matéria de objectos preciosos, tenha sido
saqueado no decurso da abertura (arrombamento) do túmulo pelas tropas francesas, ou
mesmo antes disso.
A exibição das insígnias do poder real, ou, se preferirmos, dos símbolos da
soberania, faz apelo não apenas à pessoa e dignidade do rei, bem como às suas virtudes,
mas, sobretudo, à autoridade da monarquia, enquanto tradição e continuação ininterrupta
do poder. A representação dos reis, com todo o aparato inerente a cada momento (seja na
coroação, seja numa entrada régia, em cerimónias públicas, em funerais, ou, simplesmente,
nos seus retratos), faz-se conforme ao necessário esplendor e prestígio da casa real:
“L’autorité du souverain, qui n’en connaît pas de plus haute sinon celle de Dieu, se donne a
voir à tous, à tout moment: elle est tangible, incontestable; il y a là quelque chose de
rassurant, car la puissance ainsi manifestée est une garantie d’ordre et de paix pour les
sujets” 52. O rei não é um indivíduo como os outros, possuindo uma essência diferente do
resto da humanidade, motivo pelo qual a sua apresentação não pode ser, de forma alguma,
negligenciada, devendo reflectir um carácter superior, magnífico, próximo do divino.
Sancho IV, o Bravo, demonstra o que pensava sobre as suas insígnias da soberania
no já referido Espelho dos Príncipes, que mandou redigir para o seu filho Fernando, entre
1292 e 1293. Nesta obra, o rei descreve ao seu herdeiro a figura do governante ideal, a
quem reveste de todas as insígnias reais que eram correntes na Idade Média, interpretando-
as num sentido alegórico e moralizante. “el ornato regio se convierte así en una especie de
coraza moral, que en cada una de sus partes amonesta y estimula al que la lleva,
protegiéndole de los vicios y enseñándole las virtudes”53.
A Majestade do rei é, em si, e sempre, um espectáculo. Quer se trate dos
cerimoniais ocorridos ao longo da vida dos soberanos, quer se trate de representações
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
1.2.1. A coroa
Em França, no ano de 816, pela primeira vez, um soberano foi ungido e coroado
no decurso de uma mesma cerimónia. Entendem vários autores que terá sido,
provavelmente, a partir deste momento que a coroa, ao tempo um círculo de metal com
pedras preciosas de importação bizantina, se tornou a insígnia essencial da realeza no
Ocidente, enriquecendo-se de significados jurídico-políticos nos últimos séculos da Idade
Média54.
Os ordines da sagração usados em França indicam que o rei dispunha de duas coroas:
a coroa da sagração, imposta pelo arcebispo de Reims e sustentada nas mãos dos seus
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
nobres; e uma coroa pessoal, mais ligeira que lhe era colocada na cabeça no momento da
comunhão e que o rei mantinha durante a sua saída da Catedral e durante o festim que se
seguia. Desde o século XII que a coroa com que eram sagrados os reis franceses possuía,
por vezes, uma forma cónica, dando-lhe a aparência de mitra, a fim de sublinhar o carácter
quase episcopal do soberano. Também a partir da mesma época, era, normalmente,
formada por quatro placas ligadas entre si, rematadas por quatro largas flores-de-lis
decoradas com doze pedras preciosas, com uma coifa vermelha ornada de pérolas.
Existiam, porém, variações, como se pode ver na coroa-relicário de S. Luís.
A coroa era, pois, a imagem
da Jerusalém Celeste,
simbolizando, como a tonsura dos
clérigos, a abertura sobre a
realidade do mundo elevado e
indicando os aspectos religiosos da
monarquia sagrada. Como
expressão de um simbolismo
cósmico, que se completava com o
ceptro, a coroa situava o rei em
relação com tudo o que o rodeava:
Coroa-relicário de Luís IX de França. Séc. XIII. Museu do Louvre. os quatro florões representam, se-
Claude Wenzler, Généalogie des Rois de France, 1994, p. 18.
gundo alguns autores, os quatro pontos cardeais, e a sua disposição na cabeça, na parte
mais alta do corpo humano, tanto física como espiritualmente, responde a uma vontade de
significar a sua proeminência, enquanto que a forma circular indica a perfeição55.
Como referem Kantorowicz e Jacques Krynen, a coroa é o emblema do poder
supremo, mas, também, um emblema dos bens inalienáveis e dos direitos imprescindíveis,
garantes da continuidade do poder e da unidade de um corpo político. Ao longo da Idade
Média, esta demarcação, entre a coroa material e a coroa imaterial, esteve longe de ser
54 Cf. M. BLOCH, Les Rois Thaumaturges, Études sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale,
particulièrement en France et en Angleterre, 2ªed., Paris, 1961, p. 69-70 e 469 e 500 ; Jacques KRYNEN,
L’empire du Roi. Idées et Croyances Politiques en France XIIIe-XVe Siècle, Paris, Gallimard, 1993, p. 125.
447
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
448
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Nas duas estátuas de vulto perfeito que podem ser identificadas como
representações de D. Afonso Henriques, bem como nos dois desenhos representando D.
Sancho I59, os monarcas estão coroados, sendo as duas últimas coroas rematadas por
cruzes. Referindo-se ao valor iconográfico das duas estátuas ditas de D. Afonso Henriques,
José Mattoso sublinha que “não se pode tratar de um mero sinal para identificar a função
exercida pela personagem. Os inegáveis testemunhos da falta de cuidado na guarda das
coroas solenes, ao contrário do que acontecia na época asturiana e que se tornou tradição
na Alemanha imperial, mostram-nos apenas menos importância atribuída a esta insígnia,
mas não necessariamente a ausência de coroação litúrgica. Também os nossos primeiros
reis aparecem coroados e envolvidos pelo manto solene nas representações iconográficas
que se conhecem de Afonso Henriques e de D. Sancho I, a saber a estátua que estava na
porta da igreja da Alcáçova de Santarém e que se guarda agora no Museu do Carmo, a
escultura da igreja de Rates identificada por Manuel Real, e a cópia do sinal de soberania de
Sancho I no Livro de Doações de Afonso III. Os dois primeiros datam dos séculos XII e
primeira metade do XIII e o original do segundo é contemporâneo de D. Sancho I”60.
449
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Numa moeda de prata, dos inícios do reinado de D. Afonso III, surge, pela
primeira vez na numismática portuguesa, a figuração do busto do rei, coroado e
acompanhado de outra insígnia do poder real61, assim como outra, do reinado de D. Pedro
I, de que também apenas conhecemos reprodução62.
61Esta moeda foi reproduzida por Teixeira de ARAGÃO, Descripção Geral e Histórica das Moedas
Cunhadas em Nome dos Reis, Regentes e Governadores de Portugal, t. I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1874-1880,
p. 164, e posteriormente por J. Ferraro VAZ, Numária Medieval Portuguesa 1128-1383, t. II, Lisboa, 1960,
p. 383, que afirma tê-la visto numa reprodução galvanoplástica, de prata, na Casa Schulman em
Amesterdão.
62 Cf. J. Ferraro VAZ, op. cit., 1960, p. 84.
450
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
1. D. Afonso II ao centro da
composição da secção dos
pés da arca tumular de D.
Urraca. Foto. José
Pessoa/DDF/IPM.
2. Pormenor do jacente de D.
Urraca. Apud José Custódio
Vieira da Silva, O Panteão Régio
do Mosteiro de Alcobaça, p. 63.
Foto: Henrique Ruas.
mando à Infante Dona Maria minha neta as minhas Cruzes pequenas de outro, que sam para trager ao colo, em que
andam religas, outro si lhe mando huma coucela cuberta de uma safira, em que amdam religas, e as duas minhas coroas
do ouro com as pedras, que em si tem. Cf. António Caetano de SOUSA, Provas…, Liv. II, p. 128.
66 Mário J. BARROCA, “50. Sarcófago de D. Urraca”, Nos Confins da Idade Média, Arte Portuguesa
Séculos XII-XV, Cat. de Exposição (Europália 1992), Lisboa, Instituto Português de Museus, 1992, p.
142, referindo-se ao túmulo de D. Urraca e concretamente à representação da lamentação da família
real, D. Afonso II e os seus filhos, nota «Nela o monarca apresenta-se coroado – tal como D. Urraca
no jacente – o que é um elemento interessante se tivermos em conta que não sobreviveu qualquer
coroa real portuguesa dos tempos medievais e que o cerimonial da coroação, o Ordo Benedicenti Regis,
contido num Pontifical de Santa Cruz (BPMP, ms. 1134), do último quartel do século XII, dá mais
relevo à imposição da espada do que à coroação.
451
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
452
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
dispondo da coroa como única insígnia do poder real. Em algumas moedas deste mesmo
reinado, em que se representa o rei com um conjunto abrangente de insígnias do poder
(sobretudo de carácter militar), este é representado coroado, o
mesmo acontecendo em outros espécimes numismáticos
(torneses e meios torneses), em que o soberano é representado num
busto coroado, de perfil.
A presença da coroa nas representações sigilográficas
Torneses de D. Fernando I.
dos nossos monarcas surge, igualmente, mas em contextos
Apud J. Ferraro Vaz, Numaria
Medieval Portuguesa, t. II, p. 430 distintos, sempre com o intuito de identificar a pessoa do rei.
Em dois selos, pertencentes a D. Dinis e a D. Afonso IV, de
tipo equestre, representa-se, no anverso, ambos os soberanos
com os elmos rematados pelas coroas reais, sendo mais
perceptível no primeiro do que no segundo caso. Refira-se que,
no conjunto da numismática de D. Fernando I, as barbudas e as
meias barbudas também representam o busto do rei, de perfil,
com o elmo rematado pela coroa real. Mas o que
verdadeiramente permite distinguir estes selos de um de
qualquer nobre cavaleiro ou infante é a associação deste
atributo com as armas de Portugal gravadas no escudo, que os
reis seguram com uma das mãos e nas gualdrapas do cavalo.
Mas as coroas são também atributo importante das
rainhas medievais, mesmo que se desconheçam cerimónias de
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
No jacente da Rainha Santa, a coroa cinge o véu monástico que lhe cobre a cabeça,
constituindo aqui o único elemento, entre os adereços que acompanham a representação
de D. Isabel, que nos permite identificá-la como sendo rainha de facto, escapando à total
identificação com uma freira clarissa. De notar, também, uma evolução formal nesta coroa,
mais complexa e detalhada nos pormenores que a constituem, com as flores-de-lis bem
recortadas e com a sugestão de algumas pedrarias, quando comparada com a coroa de D.
Urraca, claramente mais simples. Convém relembrar, ainda, que D. Isabel não possuía
454
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
apenas uma coroa, mas sim quatro, como se pode constatar do texto do seu último
testamento67.
Em dois selos pertencentes a um mesmo documento, podemos ainda contemplar,
pese o lamentável estado de conservação em que estes dois espécimes chegaram aos nossos
dias, as representações das infantas D. Teresa e D. Sancha, filhas de D. Sancho I, bem
como um conjunto de atributos iconográficos a elas associados. No que se refere à coroa,
esta é visível na figura de D. Teresa, no verso e anverso do selo, como elemento distintivo
da sua condição de legítima princesa.
Num interessante selo da rainha D. Beatriz, mulher de D. Afonso III, a que
voltaremos mais adiante, percepciona-se, com suficiente clareza, a presença da coroa na
cabeça da figura, sob a qual são visíveis os cabelos longos68.
No túmulo (dito) de D. Constança Manuel, mulher de D. Pedro I e mãe de D.
Fernando I (Museu Arqueológico do Carmo), apesar de já não possuir tampa sepulcral para
que possamos aferir sobre a existência de estátua jacente onde a princesa estivesse
representada, com ou sem o uso da coroa, na testeira da arca tumular, numa das cenas da
preparação da “boa morte”, podemos contemplar uma pequena figura feminina, muito
deteriorada, onde ainda é possível detectar a presença de uma coroa que lhe cinge os
longos cabelos69.
67 No seu primeiro testamento de 1314, D. Isabel deixa as suas coroas ao rei D. Dinis ou ao filho
herdeiro D. Afonso: Item mando que as minhas pedra, & as minhas Coroas, e as minhas brochas as qês son escritas
em hũa minha Carta selada com meu selo que ElRey as haja en sa vida & depois de sa morte fiquem ao Infante D.
Affonço meu filho primeiro herdeiro. No último testamento de D. Isabel, datado de 1327, a rainha altera a
disposição relativamente à transmissão das coroas: (...) e mando a minha coroa das esmeraldas à Rainha Dona
Breatis minha filha, e rogolho que a leixe à Infanta Dona Maria sa filha. Item mando à Iffanta Dona Maria minha
neta a minha coroa pequena, que tem as pedras furadas, & a minha brocha redonda, & a crux de ligno Domini que
anda em tres pedras çafiras furadas e as reliquias que andão na coroa do ouro, so o jaspe, & as outras religas de São
Bartolameu que andaõ so o cristal, e andaõ na cadea do ouro, & os teixees das aguias. Item mando à Inffanta Dona
Leanor minha neta outra coroa de balaisses grandes que estaõ em rosa, e os teixees das figuras dos paaos com pedras. Cf.
António Caetano de SOUSA, Provas…, pp. 144-153.
68 Trata-se de um selo pendente duplo, de formato circular, pertencente a uma carta de D. Beatriz, pela
qual a rainha ordenava que se desse ao cabido da Sé de Coimbra o Paul de Mansos, junto de Brunhos. É
datada de 27 de Agosto de 1332 (1294). Na orla do selo corre uma inscrição onde se pode ler [I] S:BREA[...
... ...:R]EGINA PORTUC[LENSIS] em caracteres romanos maiúsculos. (Doc. N.º 295 Mç 22 do Cabido da
Sé de Coimbra – 2.ª incorporação). Cf. Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, p. 236.
69 Veja-se imagem no cap. 5.5 da III Parte.
455
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
No jacente de
D. Inês de Castro, a
coroa é o atributo que
verdadeiramente lhe
confere a dignidade
pretendida pelo
encomendador deste
monumento funerário
(D. Pedro I). É no
Pormenor do jacente de D. Inês de Castro. comentário de Fernão
Foto: CVF
Lopes sobre o túmulo de D. Inês (de coroa na cabeça como se fosse rainha) que percebemos,
claramente, que a coroa material era elemento fundamental para a identificação de uma
rainha, situação que, neste caso, mereceu comentários, pelos motivos sobejamente
conhecidos. Repare-se no crescendo de requinte decorativo das coroas com que se fazem
representar estas personagens, sendo as de D. Pedro I e de D. Inês de Castro as mais
exuberantes.
Também as
estátuas jacentes de duas
jovens infantas, a infanta
(dita) D. Constança (filha
de D. Afonso, Senhor de
Portalegre e neta de D.
Afonso III), e D. Isabel
(filha de D. Afonso IV e
de D. Beatriz),
apresentam as cabeças
coroadas. No jacente da
infanta (dita) D.
Pormenor da cabeça do jacente da infanta (dita) D. Constança.
Séc. XIV. Sé de Lisboa. Foto: José Pessoa/DDF/IPM. Constança Afonso, a
coroa é alta e fechada,
456
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
diferente de todas as que já referimos, decorada com pequenas flores, que acentuam o
carácter pueril e virginal da jovem princesa. Neste caso específico, é mais apropriado
designá-la por guirlanda, ao invés de coroa, não obstante o seu carácter simbólico não
diferir do desta última.
Sabe-se, por exemplo, que a segunda filha de Pedro I, o Cruel, herdou, segundo o
testamento de seu pai, duas guirlandes ou garlandes, sendo estas, à semelhança das coroas
tradicionais, constituídas por metais nobres, pedras preciosas e pérolas. A mesma
designação era dada aos diademas que usavam alguns senhores que não tinham o estatuto
de rei, como são exemplos os condes de Barcelona70.
Neste caso, tratando-se da filha de um filho legítimo de D. Afonso III, mas que não
foi rei, faz todo o sentido que seja representada com guirlanda e não com coroa.
A ausência de estátuas jacentes ou de outro tipo de representações dos
descendentes varões dos nossos reis (à excepção do Conde de Bolonha) com uso da coroa,
bem como a inexistência de documentação elucidativa a este respeito, impossibilita-nos
fazer afirmações sobre o uso ou o não uso de coroas ou diademas por parte dos infantes
portugueses até aos finais do século XIV.
457
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
458
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Oviedo (1118-1127), onde a espada surge com determinante relevo entre as insígnias
régias, ou, a representação de Sancho III de Navarra na sua lápide sepulcral.
A sua importância é tal, no conjunto das insígnias régias portuguesas durante a
Idade Média que, não por acaso, a espada de D. Afonso Henriques, durante largos anos
exposta junto do primitivo túmulo do rei, constituiu, para muitas gerações, um dos mais
poderosos símbolos político-religiosos da monarquia portuguesa, referenciada como uma
insígnia-emblema da identidade nacional, envolta em mistério e crença, pelo menos até ao
reinado de D. Sebastião que, sabemos, tê-la-á levado para Alcácer-Quibir, na esperança da
obtenção da vitória73.
O mesmo valor se aplica ao escudo do nosso primeiro rei, alvo de particular
atenção e análise por parte de vários autores. Como já havia sublinhado José Mattoso74,
apesar de a historiografia espanhola não conferir especial relevo ao escudo como insígnia
do poder régio, praticamente ausente dos estudos de Bonifácio Palacios, Percy Schramm
ou C. Sanchez Albornoz, a iconografia régia demonstra, claramente, que ele assume uma
importância digna de nota. Basta que citemos exemplos tão notáveis como as representa-
ções de Fernando II ou de Afonso
IX em selos dos seus reinados, ou
as magníficas iluminuras que
representam Afonso IX e
Fernando II a cavalo, no Tumbo A
de Santiago de Compostela, ou,
ainda, Afonso II, o Casto numa
iluminura do Livro dos Testamentos
da Catedral de Oviedo, sendo que,
Afonso II, o Casto. Livro dos Testamentos da Catedral de Oviedo. neste último, o escudo e a espada
Séc. XII
não são apresentados pelo rei, mas sim por um nobre que o acompanha (o alferes).
As esporas constituem, também, um valioso símbolo do poder, sobretudo em
monarquias de base eminentemente guerreira. Tal como a espada ou o escudo, as esporas
Cf. José MATTOSO, “A realeza...”, (1986), op. cit., 2ªed., 1990, p. 224 e Maria de Lurdes
73
459
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
460
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Também o jacente de D.
Pedro I deve ser considerado
um exemplo notável quanto ao
valor atribuído à espada,
embainhada e em repouso sobre
o corpo, e que o rei segura com
as duas mãos, à semelhança do
jacente de D. Lopo Fernandes
Pacheco, entre as de outros
notáveis cavaleiros. Por isso, a
presença da espada nas mãos do
rei não pretende caracterizá-lo
como a qualquer outro cavaleiro
seu, mas sim, com a sua função
e atribuição militar que, como já
vimos, constitui uma das mais
Pormenor da estátua jacente de D. Pedro I.
Apud José C. Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. 94. proeminentes funções dos reis
Foto: Henrique Ruas.
461
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
462
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
76 Cf. J. G. MANN, “Notes on the armour worn in Spain from the X to the XV century”,
Archeologia, nº83, 1933 e Percy SCHRAMM, op. cit., 1960, pp. 117-118.
463
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
1.2.3.1 O manto
O manto, a túnica e, por vezes, a dalmática que o rei veste em apresentações de
aparato, revelam o carácter eclesiástico e espiritual da sua missão. O manto solene tem a
sua origem na Antiguidade, adquirindo, no período imperial romano, um valor especial e
464
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
mais próximo daquele que adquiriu durante a Idade Média. Esta insígnia passou a estar
relacionada com a cerimónia designada por Adoração da Púrpura, cujas fontes do séc. IV
atribuem ao tempo de Diocleciano: “(...) um indivíduo a quem era concedida uma
audiência privada com o imperador beijava o bordo da sua túnica em sinal de homenagem.
Esta cerimónia é considerada pelas referidas fontes como símbolo de uma alteração da
posição do imperador, que passa de magistrado civil (...), a déspota oriental. A adoratio
purpurae era apenas um dos aspectos de um processo em virtude do qual os últimos
imperadores romanos se rodearam de um protocolo cerimonial muito mais elaborado do
que os seus predecessores. Embora muitos dos elementos particulares possam encontrar-se
na prática romana de períodos anteriores, a sua combinação marcou uma verdadeira
mudança na natureza do cargo imperial. A pessoa do imperador passou a ser rodeada de
uma aura religiosa; peticionários e panegiristas dirigiam-se aos “ouvidos sagrados” do
imperador e as respostas que saíam da sua “boca sagrada” eram consignadas em linguagem
retórica oficial pelo seu “secretário sagrado”77.
Ainda que se verifique uma menor solenização, e um sentido menos aparatoso do
uso do manto solene pelos reis medievais, a verdade é que esta peça de vestuário mantém o
seu significado político-religioso, mais acentuado e mais enaltecido nuns países do que
noutros. A este respeito, são muito significativas as palavras de Isidoro de Sevilha quando,
a propósito de Leovigildo, na sua História dos Godos refere que […]. Fue el primero que hizo
aumentar el erario y el fisco, y también fue el primero que se presentó a los suyos en solio, cubierto de
vestidura real; pues antes de él, hábito y asiento eran comunes para el pueblo e para los reyes78. Também
Afonso X é esclarecedor acerca da importância das vestes reais quando a elas se refere nas
suas Partidas: Vestiduras, fazen mucho, […]. E los sabios antiguos establecieron, que los Reyes vestiesen
paños de seda, con oro, e con piedras preciosas, porque los omes los puedan conoscer luego que los viesen a
menos de preguntar por ellos79.
77 Cf. Tim CORNELL e JOHN MATTEWS, Roma, Herança de um Império, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1991.
78 Apud Isidro G. BANGO TORVISO, “Los Reyes y el arte durante la Alta Edad Media:
Leovigildo y Alfonso II y el arte oficial”, Lecturas de Historia del Arte, 1992, p. 21 e Fernando GALVÁN
FREILE, op. cit., 1997, p. 60.
79 Partida II, tit. V, ley V. Apud A. GARCIA CUADRADO, Las Cantigas: el Códice de Florencia,
465
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
466
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
como os reis que figuram no Livro dos Testamentos da Catedral de Oviedo, vestem mantos
azuis.
Iluminuras do Livro
dos Testamentos da
Catedral de Oviedo.
Séc. XII
1.2.3.2 O ceptro
O ceptro, sendo provavelmente a insígnia que confere maior autoridade ao rei, tão
valorizada na iconografia dos reis franceses e ingleses, bem como na de alguns reis
peninsulares80, não encontrou, ao que tudo parece indicar, grande receptividade por parte
da monarquia portuguesa durante a primeira dinastia. Insígnia da justiça e da virtude,
Todos monarcas representados no Livro das Estampas apresentam ceptro, bem como a
80
467
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
81 Cf. Patrick DEMOUY, op. cit., 2001, p. 107. Veja-se também para uma interpretação menos
clerical do significado, ou significados, do ceptro real, como os que conheceu durante a monarquia
asturiana, José MATTOSO, “A morte dos reis…”, op. cit., 1995, p. 194.
468
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
469
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
470
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
82Frei António BRANDÃO, Monarquia Lusitana, Parte III (1642), Lisboa, Imprensa Nacional
Casa da Moeda, 1973, f. 267.
471
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
batalha de Ourique, tornando-se, ela própria, emblema da luta travada pelo rei contra os
infiéis, alargando os territórios da Cristandade e defendendo a cruz de Cristo. Argumento
assaz relevante, na medida em que foi este o usado junto da Santa Sé, na procura de
reconhecimento de Portugal como reino independente de Leão e de D. Afonso Henriques
como rei de direito. Mas esta sobrevalorização da cruz, e a sua tomada como emblema de
um rei ou de um reino, tem antecedentes peninsulares na Alta Idade Média, e basta que
recordemos a importância da Cruz dos Anjos e da Cruz da Vitória para os reis asturianos,
Afonso II, o Casto (†842) e Afonso III (†909) respectivamente, emblemas dos monarcas e,
acima de tudo, emblemas da própria monarquia, cujo poder assentou, tal como na
monarquia portuguesa, na luta contra o Islão, e que já tivemos oportunidade de nos referir
na Parte I deste estudo.
Nada mais natural, por isso, que uma estátua póstuma que homenageia e recorda o
rei, desse destaque à cruz de Cristo, colocada nas suas mãos como que a sublinhar o valor e
intenções de um elemento de alto valor religioso, que passou a constar do seu escudo
pessoal e, depois, das armas nacionais83. De resto, a cruz ou cruzes, também são usadas,
posteriormente, na iconografia de outros monarcas portugueses. Talvez não seja abusivo
questionar o facto da coroa com que D. Sancho I é representado nos desenhos dos já
citados dois documentos, ser rematada, não com florões ou flores-de-lis, como era mais
habitual noutros reinos de então, mas sim com cruzes, elemento que poderá estar
relacionado com a importância deste símbolo cristão para o reinado de D. Afonso
Henriques, sendo aqui relembrada numa insígnia pessoal do seu sucessor. Também a
representação de D. Fernando I, nas dobras gentis, atrás referidas, apresenta duas cruzes a
ladear a figura do rei.
83Cf. Marquês de ABRANTES, “Da origem das armas de Portugal”, Lisboa, 1984, (Sep. de
Armas e Troféus, 5.ª série, 3-4, 1982-1983).
472
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
1.2.3.3 O globo
No que se refere ao globo da soberania (o globus), normalmente rematado por uma
cruz e presente em vários retratos de aparato de reis medievais ocidentais, apesar de ser
uma insígnia habitualmente conotada com o poder imperial (a sphaera), a verdade é que
vários foram os monarcas que não interpretaram esta insígnia como um privilégio
exclusivo dos imperadores, como atesta o texto do Espelhos dos Príncipes que Sancho IV de
Castela mandou redigir entre 1292 e 1293. Neste texto, atribui-se ao globo uma explicação
alegórica, bem como à iconografia régia, de um modo geral.
Em Castela, o globus não é referido com frequência nos ordines do século XIII,
aparecendo pela primeira vez no ordo redigido para a coroação de Afonso XI, mencionado
como “una manzana de oro”, que deve ser entendido à luz da sua fonte de inspiração, isto
é, de um ordo imperial do século XIII. Segundo P. Schramm, em Castela, o globus não
parece ter sido interpretado como uma insígnia real em si mesma. No que respeita à
iconografia, refira-se o exemplo de um selo do imperador Afonso VII, cuja fonte de
inspiração foi um selo imperial, onde se pode ver o rei a segurar o globo com a mão direita.
Em Leão, o jacente do rei Ordonho II, na Catedral de Leão, datado de 1299, representa o
monarca vestido com trajos cerimoniais, a segurar o globo e o ceptro (este último já
desaparecido)84. Já em Aragão, a situação é algo distinta no que se refere ao valor atribuído
a este objecto: quando em 1204, Pedro II foi coroado pelo Papa Inocêncio III, recebeu,
juntamente com as insígnias régias mais frequentes, o globo imperial85, ao que tudo indica
para fazer minguar o que até então haviam sido os direitos exclusivos do imperador
alemão86.
Em França, ao contrário de Inglaterra ou de outros países stentrionais, o globus não assume
especial relevo na apresentação pública dos monarcas, ambora alguns exemplos, sobretudo
de carácter mítico-simbólico valorizem este atributo, como são exemplo algumas
representações de Carlos Magno. Refira-se o ceptro de Carlos V ou a imagem de majestade
de Carlos Magno nas Grandes Chroniques de France, também do reinado de Carlos V.
473
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Já os reis ingleses demonstram forte apreço por esta insígnia, como atestam vários
exemplos iconográficos. Citem-se apenas alguns mais significativos, como o selo de
Henrique III (1218), ou o florim de Eduardo III (1344), ou, ainda, uma das iluminuras do
Apocalipse e Ordo da Coroação. Estes exemplos encontram a sua fonte de inspiração nas
representações de Cristo em Majestade, segurando o globo com uma das mãos.
Coroação de um rei.
Apocalipse e Livro da Coroação.
c.1330-1339, The Master and Fellows of Cosrpus Christi College,
Cambridge. Ms 20, fol. 68
Apud Paul Binski, Westminster Abbey…, p. 129.
474
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Esta insígnia, que até aqui passou despercebida nos estudos realizados sobre este
interessante selo, vem demonstrar que, também em Portugal, os reis não entendiam o globus
como uma insígnia exclusivamente imperial, não obstante a sua representação não constar
em nenhuma outra composição artística nacional entre os séculos XII a XIV. Não deixa de
ser interessante, porém, que seja precisamente nesta obra, que se reveste de tanto
significado político, mas também religioso, como veremos, que o rei apareça a ostentar o
globus.
1.2.3.4 O trono
Não obstante o facto de não conhecermos hoje nenhum trono português
pertencente a algum dos nossos reis da primeira dinastia (o único trono que se conhece
terá pertencido a D. Afonso V, afastando-se, assim, das cronologias de que nos ocupamos),
a iconografia destes tempos deixou-nos parcos exemplos, mas que entendemos não poder
deixar de analisar.
A inexistência de iluminuras que representem reis e rainhas nacionais entre os
séculos XII a XIV constitui um significativo obstáculo à nossa percepção do que terão sido
os tronos reais, no seu desenvolvimento ao longo destas centúrias. Em Espanha, a
475
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
abundância de iconografia regia, nos seus vários suportes, permite ter uma percepção mais
clara desta evolução. Nas iluminuras do Tombo A da Catedral de Compostela podemos
observar alguns tronos de reis e rainhas do século XII, nomeadamente de Afonso VII e de
D. Urraca, obedecendo à tipologia trono-banco87, no caso de D. Urraca, e à tipologia do
trono salomónico (com cabeças de leão a rematar os braços da cadeira e as patas a terminar
os pés da mesma) no de Afonso VII. Também o Livro das Estampas da Catedral de León
representa, maioritariamente, a tipologia trono-banco, à excepção do trono em que se senta
Ramiro III, cujos braços e pernas se identificam com as figuras de dois grifos88. Nas
Cantigas de Santa Maria, o trono simples em que Afonso X se senta é, claramente, um trono-
banco, enquanto que, no selo de Sancho IV, embora não possamos averiguar a existência
de um espaldar, o trono aqui representado sugere uma evolução diferente, mais
consentânea com a que verificamos em França ou em Inglaterra.
D. Urraca de Leão e Castela. (modelo de David entronizado. (modelo de trono com braços
trono-banco) rematados por figuras alegóricas)
Tombo A da Catedral de Santiago de Bíblia, Antigo Testamento. Biblioteca da Ajuda, Lisboa. Foto:
Compostela. Apud José Matoso, História de José Pessoa/DDF/IPM
Portugal, 2.º vol., p. 49. Foto: Godo-Foto,
Barcelona.
87A mesma tipologia que designamos por trono-banco, podemos observar no reverso de um
selo de Westminster, onde se representa Eduardo, o Confessor, entronizado (c. 1200); numa iluminura de
uma cópia do Fuero Juzgo (séc. XIV, BNL); ou no Saltério de Westminster (c. 1250).
88 Sobre os tronos representados nesta obra veja-se Fernando GALVÁN FREILE, op. cit.,
476
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Em Portugal, uma das composições artísticas mais recuadas no tempo, que nos
permite entender a morfologia de um trono medieval, é o que podemos ver na
representação de Cristo em Majestade na arca funerária de D. Rodrigo Sanches (meados do
século XIII).
Posteriormente, o já referido selo camarário do
reinado de D. Afonso IV, correspondendo aos meados
do século XIV, oferece-nos um segundo e intessante
exemplo dos modelos de tronos reais desta época, uma
vez que a representação de D. Afonso II, na face dos pés
do túmulo de D. Urraca, dada a profusão de figuras que
rodeiam o monarca, não permite percepcionar o tipo de
trono em que este se senta.
Na primeira representação, verificamos o modelo
tipológico do trono-banco, muito simples, sem espaldar,
Cristo em Majestade. apenas rematado lateralmente por duas colunas
Face longa da arca sepulcral de D. Rodrigo
Sanches. Meados do século XIII. Mosteiro de S.
Salvador de Grijó. Foto: P.A.F. encimadas por meias-esferas.
No selo português podemos observar a figura do rei entronizado, sendo este trono
mais semelhante a uma cadeira do que o referido no trono do túmulo de D. Rodrigo
Sanches. Apesar de não possuir grande aparato compositivo, não apresentando os leões
que podemos ver em muitas iluminuras que retratam reis franceses89, claramente na
evocação do trono de Salomão, ou quaisquer outras figuras zoomórficas ou mitológicas90,
esta sede, que não podemos adivinhar se seria de pedra ou de madeira, apresenta banco com
pés decorados, almofada e espaldar não muito alto, delimitado por colunas.
Esta imagem recordou-nos um trono frustre de pedra, referido por Júlio de
Castilho91 e já analisado anteriormente por Herculano, com gravura publicada no Panorama
(t.IX, p.20), e entretanto desaparecido. Segundo este último autor, encontrava-se na capela-
89Citem-se outros exemplos desta tipologia de tronos, tão comum em toda a Baixa Idade
Média, como por exemplo o trono que podemos observar num selo pessoal de Luís IX de França (ou,
ainda, nas muitas iluminuras que representam Carlos V de França na suas Grandes Chroniques.
90 Como o trono em que se senta o Rei David numa iluminura que ilustra um dos fólios de uma
477
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
mor da Sé de Lisboa, à direita do Altar-mor e, pelas notícias dadas por Castilho e por
António do Couto, em 1936 passou a integrar o museu das obras da Sé. Herculano
entendeu tratar-se da cadeira-trono onde os monarcas da primeira dinastia ouviam o povo
em audiência92, enquanto que Castilho julgou poder ver nela uma cadeira prelacial, à
semelhança de outras que ainda se conservam em basílicas italianas e, ainda, de um
exemplar que se conserva na Catedral de Reims.
A nossa opinião vai de encontro à proposta de Herculano, mais não fosse pelo
facto de esta cadeira ter sido entendida, ao longo dos séculos, como afecta aos
representantes máximos do poder temporal, o que justificou o acrescento, que lhe foi feito
em 1626, de um brasão com as armas de Portugal, gravado a tinta preta no espaldar da
cadeira pétrea. Não sabemos a data exacta da sua realização, mas não nos repugna que se
trate de uma cadeira medieval, ao contrário do que argumentava António do Couto93, e que
esta tenha sido usada pelos reis portugueses da primeira dinastia e, até, em cronologias
posteriores.
92 Herculano argumenta a sua hipótese referindo-se ao costume irem os reis, ou chefes do estado ouvir
os povos nas cathedrais, ou ás portas d’ellas, é anterior, é só por algum tempo contemporâneo, da monarchia. Quem nos
afiança que este pequeno monumento não seja obra dos primeiros soberanos? A data, que intenta dar como prova da sua
origem, não poderá por ventura ter sido alli posta como indicadora do seu reparo? Castilho relembra que este
costume não é só por algum tempo contemporâneo da monarchia, citando o exemplo de D. Fernando, que
aprazou o povo para a alpendrada de S. Domingos, a fim de ouvir as justificações sobre a reacção
negativa ao seu casamento com D. Leonor Teles, ou, ainda, as audiências de D. Pedro I. Cf. Júlio de
CASTILHO, op. cit., vol. V, ed. 1936, pp. 232-233.
478
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
te monarca entronizado, ou, em Portugal, o trono que o vemos no vértice superior da Roda
da Vida/Roda da Fortuna do túmulo de Pedro I, obra da segunda metade do século XIV.
Não significa, porém, que este trono pretendesse reproduzir o trono real onde D. Pedro se
terá sentado, mas sim um trono dotado de magnificência quase tão imponente quanto o
trono de Cristo em Majestade a presidir ao Juízo Final no túmulo de D. Inês de Castro95. O
que se pretende, em ambos os casos, é dotar estas imagens da maior solenidade possível,
93Observação em nota (1), ao texto de Júlio de CASTILHO, op. cit., vol. V, ed. 1936, p. 231.
94 Cf. Francesca ESPAÑOL, El Gótico Catalán, Barcelona, Fundación Caixa Manresa/Angle
Editorial, 2002, pp. 182-182.
95 Outras tipologias de tronos podem ser contempladas neste túmulo, nomeadamente aquele
em que se senta Pilatos, numa das cenas da Paixão de Cristo, lavrada na arca tumular.
479
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
tal como acontece noutros exemplos da época nos vários países. Qualquer correspondência
com o objecto real fica, assim, comprometida pela impossibilidade de o confirmarmos.
A mesma situação se verifica nas
dobras gentis de D. Fernando I, que diferem
das dobras pé-terra pelo facto de, nestas
últimas, o rei ser representado de pé,
enquadrado por uma arquitectura gótica
flamejante, enquanto que, nas primeiras,
ainda que a decoração possa parecer
idêntica, o rei encontra-se sentado no que
pode ser identificado como um trono de
grande aparato cenográfico e, certamente,
sem correspondência com o objecto real.
Esta tendência para a monumentalidade dos
tronos, que tendem a assemelhar-se cada
vez mais a cenários arquitectónicos e menos
São Luís entronizado.
Speculum historial. Vicente de Baeuvais. a uma cadeira, verifica-se, também, na
Terceiro quartel do séc. XIII.
Dijon, França. iconografia régia de outros países, em
Biblioteca Municipal, Ms. 568, fl. 9. Foto: I.R.H.T.-C.N.R.S
Apud Jacques le Goff, Saint Louis, f. 15. exemplos tão ilustrativos como no já referi-
de D. Fernando I.
480
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
1.3 Notas sobre os “retratos” e outras formas de identificação dos descendentes varões
O aparato das representações dos nossos reis possui, como já vimos, elementos de
identidade com os “retratos de aparato” de alguns cavaleiros. Existe, pois, uma partilha de
informação iconográfica e iconológica nas representações destes homens laicos, que assumem
diferentes tipos de poder. É natural que assim fosse, na medida em que, tanto os reis como os
nobres, são senhores da guerra, bem como do exercício da justiça feita fora dos meios
clericais. Por isso, um conjunto de atributos iconográficos é comum a ambos, pois ambos se
sujeitam aos mesmos rituais de iniciação da cavalaria e partilham actividades em comum: a
guerra e a caça.
A representação dos filhos varões dos nossos monarcas obedece a fórmulas
iconográficas que serão aqui abordadas a partir dos exemplos dados, na sua maioria, pelos
filhos ilegítimos, pois, dos legítimos, apenas trataremos um caso de excepção que julgamos
ter conseguido identificar, já que dos restantes não existem “retratos”. Sempre que necessário,
iremos recorrer a comparações com outros elementos pertencentes ao universo social da
nobreza, mas não ao seio da família real e, ainda a um elemento da burguesia do século XIV.
São as estátuas jacentes, bem como algumas figurações que se podem observar nas suas
arcas sepulcrais, que melhor espelham esta realidade, uma vez que não possuímos quaisquer
outros registos iconográficos.
No que se refere às indumentárias nos retratos dos nossos cavaleiros, em estátuas
jacentes, quer sejam eles filhos dos reis, quer sejam apenas elementos da nobreza, dificilmente
encontramos paralelos com o que podemos observar em França, Inglaterra ou Alemanha,
onde predominam as representações de cavaleiros vestidos com armaduras e/ou cotas de
malha. A realidade portuguesa revela-nos que a opção foi, maioritariamente, a dos trajos de
corte e menos a procura de uma conotação com a imagem da guerra, da heroicidade em
campo de batalha, tal como já havíamos sublinhado em capítulo anterior. Aliás, saliente-se,
essa opção estende-se aos temas escolhidos para decoração das faces dos sarcófagos, onde a
eleição temática se centra em temas representativos de actividades que se afastam da principal
função dos cavaleiros – o serviço militar – ou seja, actividades próprias e exclusivas da
cavalaria em tempos de paz, ou, simplesmente, temas religiosos ou heráldicos.
481
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Jacente de D. Rodrigo Sanches. Meados do século XIII (d. 1245). Igreja do Mosteiro de S. Salvador de
Grijó. Foto: PAF.
1 Mário Jorge BARROCA, “ Jacente de D. Rodrigo Sanches”, Pera Guerrejar. Armamento Medieval no
Espaço Português, Palmela, Câmara Municipal, 2000, p.83 e IDEM, “Armamento medieval”, Nova História
Militar de Portugal, vol. I, (coord. José Mattoso), Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, pp. 130-132.
482
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
2 Embora o exemplo mais expressivo seja fornecido pelo jacente de um nobre da corte de D.
Afonso IV (Lopo Fernandes Pacheco) e depois pelo jacente de D. Pedro I, a posição de uma das mãos do
jacente de D. Fernão Sanches, tocando o punho circular da espada que repousa ao seu lado, adverte para
um estado de semi-vigilância e para a operacionalidade do cavaleiro, tal como já tivemos oportunidade de
referir.
483
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
tes medievais ingleses, recaindo a opção pela representação dos cavaleiros em posição de
repouso (de defunto).
3 Infelizmente não conseguimos obter nenhuma fotografia que permita uma visão frontal do
jacente do Conde D. Pedro.
4 Cf. Vasco MOREIRA, “A igreja de S. João de Tarouca (o túmulo do Conde de Barcelos)”, Arte,
ano 7, n.º 74, Porto, ed. Marques Abreu, Fev. 1911, p. 16.
484
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
No que se refere aos atributos das estátuas jacentes ou das figurações dos respectivos
indivíduos nas arcas funerárias, nada permite diferenciá-los de outros pertencentes ao grupo
social da nobreza, não havendo qualquer insígnia que permita a sua identificação como filhos
de reis. A identificação faz-se, como tivemos oportunidade de referir em capítulo anterior,
através da heráldica (que a partir do reinado de D. Afonso III passa a adquirir uma nova
importância e relevo), que se releva nas arcas funerárias, com maior destaque em alguns
casos, como nos túmulos de Martim Afonso Chichorro ou do Conde D. Pedro, ou mais
discretas, como no túmulo de Fernão Sanches5, ou através de inscrições epigráficas, como a
que ainda podemos ver neste último túmulo, apesar das mutilações sofridas6. Nada relembra,
porém, a filiação materna destes homens, pela sua menor importância, quando comparada
com a ascendência paterna, ou seja, com a linhagem de sangue real.
Também os monumentos funerários de alguns infantes, ainda que não possuam
estátuas jacentes, (impossibilitando-nos, assim, de tecer considerações sobre as suas
representações), demonstram que a identificação do tumulado se faz, antes de mais, pela
heráldica, mais ou menos profusa, como nos casos dos túmulos românicos de infantes não
identificados7, pertencentes ao panteão de Alcobaça, ou através de legenda epigráfica gravada,
como no exemplo único do monumento funerário do infante D. Henrique († 1191), filho de
D. Sancho I e de D. Dulce8.
Relativamente aos túmulos dos infantes de Alcobaça, a sua originalidade e interesse,
para compreensão da evolução da arte funerária portuguesa ao longo do século XIII, foi
recentemente observada por José Custódio Viera da Silva9 que, dada a impossibilidade de
fazê-los corresponder aos nomes dos respectivos infantes, classificou-as por Arcas I, II e III,
5 Vergílio CORREIA, op. cit., 1924, p.31, chamou a atenção para a identificação entre os escudetes
do rebordo da tampa do túmulo de D. Fernão Sanches com a heráldica do selo pessoal do bastardo.
6 Leitura da insc. gravada na tampa do sarcófago:
“AQ(u)I IAZ DOM(m) [ferna]N SANC[hes]”. Cf. Mário J. BARROCA, op. cit., vol. I, tomo 2,
2000, p. 1535. O mesmo autor (p.1536) identifica esta inscrição como tendo sido realizada em data
posterior ao óbito e à criação do monumento funerário, provavelmente nos meados do século XV.
7 Sobre estes três túmulos veja-se, entre outros autores, Vergílio CORREIA, Alcobaça II. Mudanças
dos Túmulos Reais, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1929, p. 18; Reinaldo dos SANTOS, op. cit., vol I,
1948, p. 16; Vergílio CORREIA, Obras. Estudos de História da Arte Escultura e Pintura, vol. III, Coimbra,
Universidade, 1953, pp. 26-27; Manuel Luís REAL, “Alcobaça”, Gerhard GRAF, Portugal Roman, vol. I,
Paris, Zodiaque, 1986., p. 82; José Custódio Vieira da Silva, op. cit., 2003, 45-55.
8 Cf. Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2000, vol. II, t. I, pp. 503-505 (com bibliografia anterior).
9 Cf. José Custódio Vieira da SILVA, op. cit., 2003, pp. 45-55.
485
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Num estreito friso que constitui o remate superior da arca, em cada uma das
extremidades, relevam-se escudetes, agora lisos, mas, outrora, certamente reveladores das
armas portuguesas, a separar elementos geométricos.
A mesma sequência de palmetas10 (embora reveladora de modelos e de mão
diferentes) num encadeamento feito pelos círculos que lhes servem de moldura, repete-se
numa das abas da tampa sepulcral. Na outra, o espaço divide-se entre duas sequências de um
Este motivo aparece também, por exemplo, numa tampa se sarcófago românico da igreja de
10
Paço de Sousa.
486
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
entrelaçado de “fita”, divididas a um terço da secção por uma banda horizontal de triângulos
encadeados. A ladear, na vertical, entre formas abstractas, representam-se três escudos com as
armas de Portugal antigo, ao que se seguem outras formas geométricas, tudo inserido numa
moldura que lembra bastante a forma de uma lâmina de espada11.
Túmulo II de infante.
do túmulo, repetem-se os escudos, agora
Igreja do Mosteiro de Alcobaça.
Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro
com maiores proporções, três na parte
de Alcobaça, p.
superior (correspondente à tampa), com um
maior ao centro e dois mais pequenos a ladear, e seis na parte inferior (arca), dispostos em
duas fiadas e repetindo o esquema anterior.
Para José Custódio Vieira da SILVA, ibidem, p. 47, “A linguagem simbólica da decoração
11
presente nesta arca é praticamente inexistente. A composição esculpida que lhe dá conteúdo formal está
intimamente associada a motivos que perpassam quer pelas iluminuras dos códices (de modo particular
pelos que, devido ao seu carácter abstractizante, saíram dos sciptoria cistercienses, a começar pelo de
Alcobaça), quer pela ourivesaria românica e pelos marfins, quer ainda pelos tecidos preciosos. Trata-se, em
última análise, da transposição para a pedra dos desenhos abstractos e das composições de ritmo
estereotipado das colgaduras rituais que, muitas vezes bordadas a ouro e prata, cobriam as arcas funerárias
colocadas nos pendões régios e da alta nobreza”.
487
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
No túmulo III, o único deste conjunto em que as faces da arca apresentam decoração
figurativa (a ela nos referiremos em capítulo posterior), verifica-se, a nível da decoração das
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
duas abas da tampa, a repetição do motivo geométrico que conjuga círculos interpenetrantes,
formando um tapete de gosto abstractizante, de influência céltica ou simplesmente
altimedieval, e também românica, onde, agora, e diferenciando-se da tampa do túmulo II,
foram inseridos vários escudetes com as quinas portuguesas, no lado direito, e voltando-se a
repetir no lado esquerdo, mas agora alternados com os castelos e os leões, sem escudetes,
símbolos heráldicos de Castela e Leão. José Custódio Vieira da Silva, assinala que esta
decoração lembra os panos bordados com que se cobriam as arcas funerárias, passando para
a pedra os mesmos desenhos, num relevo pouco pronunciado, como se fossem relevos de
um bordado13.
A verdade é que, se hoje nos é difícil identificar os infantes sepultados nestes pequenos
túmulos, julgamos que na sua origem, ou pela presença de panos bordados com decoração
heráldica e até mesmo legenda, ou pela junção de um epitáfio junto de cada sarcófago, as
identificações seriam bem mais evidentes.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
14 Fr. Francisco BRANDÃO, op. cit., Parte VI, ed. 1980, L. XIX, c. 21.
15 António Caetano de SOUSA, História Genealógica…, Tomo 1, liv. II, (1735-1748), p. 193.
16 Cf. Inácio Vilhena de BARBOSA, “Mausoléo...”, op. cit., 1863, pp. 207 –208.
17 Borges de FIGUEIREDO, O Mosteiro de Odivelas. Casos de Reis e memorias de freiras, Lisboa, 1889,
p. 186.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Perfil do jacente do infante D. João, filho de D. Afonso IV e D. Beatriz, identificado, até ao momento, como sendo representação de
D. Maria Afonso (II). c.1327-1330.
Capela de S. Pedro/Igreja do Mosteiro de Odivelas.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM
18Vergílo CORREIA, op. cit., 1924, p. 38, não indica o nome da personagem aí tumulada, mas
refere-se-lhe como “O túmulo de uma dona de sangue real”, pelo que podemos interpretar que tinha
opinião pessoal sobre o assunto ou, então, que a proposta de Borges de Figueiredo não o convenceu
totalmente. Nunca o saberemos; Reynaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, p.23, ainda que coloque o
nome de D. Maria Afonso com interrogação, considera que “representa uma dona (D. Maria Afonso ?) de
mãos postas, como as da Sé, e que pode datar-se dos meados do século XIV”; IDEM, Oito Séculos de Arte
Portuguesa: História e Espírito, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional de Publicidade, 1970, p.254, onde o autor já
não interroga a identificação e refere-se-lhe como sendo de D. Maria Afonso; Pedro DIAS, op. cit., 1986,
vol. IV, p.123, indica que “No mesmo mosteiro de cistercienses está outro túmulo de um membro da
família real, concretamente o de D. Maria Afonso, filha natural de D. Dinis, falecida em 1320”; Manuela
Maria Justino TOMÉ, Mosteiro de S. Dinis de Odivelas. Estudo Histórico-Arquitectónico. Acções de Salvaguarda do
Património Edificado, Dissertação de Mestrado em Recuperação do Património Arquitectónico e
Paisagístico, Évora, Universidade de Évora, 1995, p. 154; Dionisio DAVID, Escultura Funerária Portuguesa
do Século XV, vol. II, p. 128; Mário Jorge BARROCA “Escultura funerária”, Carlos Alberto Ferreira de
ALMEIDA e Mário BARROCA, op. cit., 2003, p. 223: “o sarcófago de D. Maria Afonso (II), bastarda de
D. Dinis (falecida em 1320), que se conserva no Mosteiro de S. Dinis de Odivelas (…)”.
491
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
verificou na percepção que Caetano de Sousa teve da mesma figura, cerca de século e meio
antes. Por outro lado, apesar do desenvolvimento e dos muitos detalhes que Figueiredo dá à
sua história sobre a tentativa de violação, acaba por admitir que não encontrou qualquer
referência a este facto nos autores e crónicas antigas, deixando perceber que mais não é do
que um estimulante trecho literário imbuído do ímpeto romântico da cultura oitocentista.
Procura, também, argumentar, acerca de uma possível mudança do túmulo de D.
Maria Afonso, que se encontrava originalmente na capela de S. João Baptista (no Claustro),
para a capela de São Pedro (capela colateral da cabeceira, do lado de Epístola), sem conseguir
apurar o quando e o porquê dessa alteração, e, ainda, estabelecer a relação entre a filiação de
D. Maria Afonso (II) com a heráldica que decora as faces da arca sepulcral, mas acaba por
admitir que o que é diffícil de explicar, é certamente o leão rompante que se vê figurado no primeiro quartel
[do escudo]22.
Ao analisarmos detalhadamente este monumento funerário, colocando em relação
todas as suas partes constituintes, e tendo em linha de conta o que se sabe sobre as vidas dos
dois descendentes régios sepultados neste cenóbio cisterciense (D. Maria Afonso (II) e D.
João, filho legítimo de D. Afonso IV), podemos perceber que se trata, actualmente, de uma
obra híbrida, que junta partes de dois túmulos diferentes, mas nenhuma delas pertencente ao
alegado túmulo de Maria Afonso, que, aliás, acreditamos, se tenha feito sepultar em campa
rasa, como atrás ficou dito.
A história atribulada do património móvel do Mosteiro de Odivelas deve-se, não
apenas à extinção das Ordens Religiosas em 1834, mas, sobretudo, aos efeitos do terramoto
de 1755, causador de profundos estragos no túmulo de D. Dinis e que, certamente, não terá
poupado os restantes enterramentos que aí existiam. Para além disso, registam-se
movimentações dos túmulos no espaço interior do templo, ainda durante o século XX, o que
poderá ter ajudado a criar a hibridez que agora verificamos.
Quanto ao jacente, trata-se, ao que tudo indica, da representação de alguém jovem, ou
que se quis que fosse “retratado” como jovem, independentemente do sexo a que pertence o
tumulado.
493
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Em primeiro lugar, estranhámos o rosto. Não apenas por não possuir véu, como seria
de esperar na representação de uma mulher que foi freira até à data da morte, mas, também,
porque os seus traços fisionómicos não são totalmente femininos e, porque os cabelos, apesar
de longos (situação comum na moda da época e nas representações, tanto de homens como
de mulheres), são tratados à maneira dos penteados de alguns jacentes portugueses de
cavaleiros do século XIV, podendo-se estabelecer um paralelo muitíssimo evidente com os
penteados do jacentes de Bartolomeu Joanes ou de D. Fernão Sanches (cabelo longo e com
uma franja minúscula, cortada a direito), e diferente dos penteados que vemos em jacentes
femininos.
Rosto do jacente do
infante D. Afonso.
Foto:
José Pessoa/DDF/IPM
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
A indumentária é, também, masculina, com longa capa que lhe cobre o corpo quase
por completo, presa junto ao pescoço por firmal circular, e deixando ver a túnica ou vestido
amplo, sem cinto nem marcação na cintura, constituído por pregas verticais e lineares, não
deixando antever a anatomia da figura. Nem sinal de decote generoso, como era então muito
comum na indumentária feminina de aparato, deixando ver o volume dos seios, nem de
outros adereços, como os que vemos em estátuas jacentes de mulheres jovens e menos
jovens, como são exemplo a da infanta dita D. Constança Afonso, ou a de D. Maria de
Vilalobo (Sé de Lisboa) e, claro, nenhum elemento que aponte para a presença de uma hábito
religioso cisterciense.
Mas se Caetano de Sousa estranhou o facto de este jacente, caso pertencesse ao
infante D. João (como ele presumiu que pudesse pertencer), o representar com uma idade
mais avançada do que aquela com que os autores que o precederam indicam como aquela
com que o infante faleceu, aparentando aqui uma idade superior a dez anos, a nós não nos
constrange, na medida em que este não é o único exemplo de jacente português que não
reproduz a imagem de uma criança, ou melhor, de um bebé, conferindo-lhe o aspecto de
alguém com idade mais avançada. Referimo-nos, em concreto, ao caso do jacente da infanta
D. Isabel (1324-†1326), também filha de D. Afonso IV e de D. Beatriz, sepultada em Santa
Clara de Coimbra.
495
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
O que vemos neste último jacente, não é a representação de uma criança de dois anos
de idade, mas sim a de uma jovem de idade incerta, mas que a ausência de véu permite ajudar
a perceber tratar-se de alguém em idade núbil ou pré-núbil.
Pormenor do jacente da
infanta D. Isabel.
(1324-†1326).
Mestre Pero (atrib.)
Prov. Igreja de Santa Clara-
a-Velha de Coimbra.
Igreja de Santa Clara-a-
Nova de Coimbra.
Foto:
José Pessoa/DDF/IPM.
496
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Mais tarde, também em França, podem ser apontados raríssimos exemplos de arte
funerária que demonstram a evolução na forma de caracterizar a condição social das crianças,
sendo o mais notável o jacente de João, o Póstumo (†1316 –Saint-Denis), filho de Luís X e de
Clemência da Hungria, falecido com quatro dias de idade e que constitui um dos mais
precoces exemplos de representações fisionómicas de um bebé em arte funerária neste país.
497
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
verdadeiramente tenaz, estando constantemente ameaçada pelos muitos perigos que a sua
debilidade de ser totalmente dependente nem sempre lhe permitia fazer frente. Nesta aetas
imperfecta, a criança não é entendida, por isso, como um ser que possui relevância social e
jurídica, como deixam antever a sua ausência nas fontes escritas e nas fontes iconográficas, e
como bem prova a iconografia funerária.
Neste sentido, o facto de ser, muitas vezes, representada como indivíduo com idade
superior àquela que possuía na data do óbito, mais não é do que o testemunho da
incompreensão que então existia da condição da criança muito jovem, cujo curto tempo de
vida não proporcionou feitos dignos de nota, nada, enfim, de significativo, que justificasse a
criação de uma imagem-memória. Manipulando as formas de representação, ao atribuir-lhe
uma idade superior, subvertia-se a ordem das coisas, mas elevava-se o estatuto destes frágeis
indivíduos, atribuindo-lhes um novo e mais efectivo valor.
Não estranha, pois, que tanto a infanta D. Isabel, como o infante do túmulo de
Odivelas, que entendemos ser D. João, sejam representados como jovens e não como bebés
de dois e de um ano de idade, respectivamente.
Mas, se algumas dúvidas subsistissem à nossa argumentação, as informações que
Borges de Figueiredo dá a respeito da abertura do túmulo e do que lá se encontrou, elucidam-
nos claramente. Diz o autor, ainda convencido de que é o túmulo da bastarda D. Maria
Afonso (II), que o tumulo de D. Maria já não encerra as suas cinzas. Havendo sido aberto em certa
occasião, acharam nelle uma caixa de madeira já desconjuntada, e duas cobertas, uma d’ellas de seda que
mostrava haver sido côr de rosa, e outra d’estofo de lã e seda de listas e desenhos doirados sobre fundo
castanho. Achou-se alli também parte d’um esquelero de creança que não poderia ter mais d’anno, e um
casaquinho de creança de damasco verde25.
Ora, o esqueleto da criança e o tamanho do casaquinho de damasco verde coincidem,
exactamente, com a idade que possuía o infante D. João quando faleceu, cerca de um ano,
tendo-se conservado em razoável estado de conservação, certamente graças às técnicas de
embalsamamento dos corpos que então se faziam para personalidades importantes, e que
permitiu que muitos dos defuntos da família real se conservassem por vários séculos nos seus
túmulos.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Nas faces longas representam-se, respectivamente, dois grandes escudos com as armas
de Portugal e as armas de Castela e Leão, ao centro, divididos no espaço disponível por três
nichos em forma de gablete, entre duas estreitas torres pinaculares. Os dois nichos das
extremidades enquadram figuras de monges vestidos com hábitos cistercienses, ajoelhados e
segurando círios com ambas as mãos, para iluminar a alma do defunto, enquanto que o nicho
central, mais estreito, não alberga qualquer figura e a superfície fundeira é decorada com
elementos vegetalistas, num baixo-relevo muito ténue. Nas duas faces estreitas da arca,
correspondendo aos pés e à cabeceira do túmulo, relevam-se, em cada uma delas, um grande
escudo que repete a mesma heráldica.
Uma das faces longas da arca funerária do túmulo do infante D. Afonso (actualmente voltada para o público). Foto: José Pessoa/DDF/IPM
Ora, tratando-se do túmulo do infante D. João, a heráldica que aqui vemos está
absolutamente correcta, na medida em que era filho de um rei português (D. Afonso IV) e de
uma princesa castelhana-leonesa, D. Beatriz, filha de Sancho IV, o Bravo. Se aceitássemos que
este túmulo pertenceu a D. Maria Afonso (II), então, as armas teriam difícil explicação: as de
Portugal fariam sentido, uma vez que era filha de D. Dinis, mas as de Castela e Leão
parecem-nos menos aceitáveis, pois não só não se sabe quem foi a mãe desta bastarda, como
dificilmente podemos aceitar tratar-se de alguém que pertencesse à família real castelhana,
sendo, depois, totalmente ignorada pelas fontes.
Um outro e último argumento substância a nossa proposta: o túmulo do infante D.
João foi originalmente colocado na capela de S. Pedro, isto é, na capela colateral da cabeceira
da igreja, do lado da Epístola, enquanto que o de D. Maria Afonso (II), encontrava-se numa
capela do claustro que tinha por orago S. João Baptista. Ora, parece que o túmulo do infante
nunca terá mudado de sítio…
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Decoração vegetalista em baixo-relevo, nos espaços entre os gabletes que decoram a arca funerária de D. Isabel de
Aragão. c. 1330. Mestre Pêro (atrib.). Prov. Igreja de Santa Clara-a-Velha de Coimbra. Igreja de Santa Clara-a-Nova de Coimbra.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM
Já a decoração geométrica, esculpida num baixíssimo relevo, numa das duas almofadas
em que a estátua do infante repousa a cabeça, não encontra paralelos directos em nenhum
dos exemplares de escultura funerária deste período, constituindo uma originalidade deste
monumento, mas digna de nota pela beleza do efeito plástico produzido pelo padrão que se
destina a transmitir a sensação de tecido bordado.
Quanto aos enigmáticos suportes do túmulo de Odivelas, excluímo-los das partes
originalmente constituintes desta obra, não apenas porque o talhe das peças aponta para a
presença de uma mão diferente, o que por si só não constitui motivo de exclusão, mas
porque a sua linguagem plástica é muito mais evoluída e, sobretudo, porque a iconografia de
um dos suportes, descrita mas raramente interpretada por outros autores, à excepção de
Borges de Figueiredo, pode provar que não tem relação com este túmulo, mas sim com
outro, que em tempos terá existido, completo, neste mosteiro. Desenvolveremos esta questão
no capítulo intitulado “Discursos biográficos”, onde a sua leitura poderá permitir perceber
com que personagem se relaciona.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
representada com um rosário que é colocado sobre o peito e, ainda, numa das figuras que
preenchem a arca sepulcral, colocado à volta do pescoço e a cair-lhe sobre o peito. Mais
tarde, e como testemunho de continuidade desta iconografia, surge no jacente de D. Maria
de Molina, (das primeiras três décadas do século XV), filha do infante Afonso de Molina,
irmão de São Fernando, falecida em 1312, e sepultada em Valladolid (actualmente no
cruzeiro da Igreja do Mosteiro das Huelgas Reais de Vallodolid)2.
1Cf. Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, pp. 82-87 (com outra bibliografia).
2Cf. El Panteón Real de La Huelgas de Burgos. Los Enterramientos de los Reyes de León y de Castilla,
(Cat. de Exposição), Junta de Castilla y León, 1988, p. 21.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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3 Cf. Mark DUFFY, Royal Tombs of Medieval England, Gloucestershire, Tempus, 2003, p. 68.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
4 Zeferino SARMENTO,” Uma jóia trecentista” (1937), op. cit., 1993,p. 194.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
de Vilalobos5. No primeiro caso, a infanta, de olhos abertos, parece meditar sobre o texto
do Miserere, epigrafado nas “páginas” deste livro de pedra6, enquanto que a nobre dama,
neta de Sancho IV, o Bravo de Castela, se dedica à leitura do Padre-nosso e da Ave Maria7.
5 Já tivemos oportunidade de nos referir a estes dois livros e à sua leitura iconológica em
conjunto com outros pormenores constituintes dos dois monumentos funerários em Carla Varela
FERNANDES, op. cit., 2001, pp. 39-72.
6 Para a leitura epigráfica deste texto veja-se Mário Jorge BARROCA, op. cit., vol. II, t. 1, 2000,
pp. 1134-1138
7 IDEM, ibidem, vol. II, t. 2, pp. 1999-2002.
8 Pe. José Pereira BAYÃO, no suplemento à Crónica de D. Pedro, Lisboa, Officina de Pedro
Ferreira, 1760, p. 257. Descrição também referida e analisada por J. Mendes da Cunha SARAIVA, op.
cit., 1927 e Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, p. 75.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Nos já referidos selos das infantas Teresa e Sancha9, filhas de Sancho I, que
autentificavam a doação que ambas fizeram da Albergaria de Poiares, apesar do seu elevado
estado de deterioração, com desgaste acentuado dos relevos, e da perda de matéria,
podemos ainda observar as figuras das duas mulheres, representadas na sua condição de
princesas seculares e não como freiras. Ambas vestem longos trajos (vestidos cintados e
mantos), e D. Teresa tem a cabeça coroada, nas duas representações que preenchem o
anverso e o verso do selo, insígnia que a identifica com o sangue real de que descende,
enquanto que D. Sancha apenas parece ter a cabeça coberta por touca ou véu muito
cingido.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Matriz do selo de Constança de Castela (†1160), segunda mulher Matriz do selo de Usabel de Hainaut (†1190), mulher de Luís
de Filipe Augusto. Biblioteca Nacional de França, Cab. des Medailles VII.
(cl. Bibl. Nat.). Apud Erland-Brandenburg, Le Roi est Mort, pp. 42-43. c.1180-1185. Encontrado em 1858 por Viollet-le-Duc na abertura do
túmulo da rainha em Notre Dame de Paris. British Museum, 970. 9-
4, 1 (cl. R. Johnes).
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Cf. Jean CHEVALIER e Alain GHEERBRANT, op. cit., pp. 577-578 e Hans BIEDERMAN,
10
Diccionario de Símbolos, (1ª ed. - Munique, 1989), Barcelona, Paidós, 1996, pp. 271-272.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Pequeno cão com a cabeça de um galináceo entre as pernas Dois pequenos cães a disputarem pedaços de um
dianteiras. Túmulo da infanta (dita) D. Constança Afonso. galináceo. Túmulo de D. Maria de Vilalobos. Sé de Lisboa.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM. Foto: José Pessoa/DDF/IPM.
11 Gabriel PEREIRA, “Dois túmulos na Sé de Lisboa”, Arte Portuguesa, ano I, n.º 1, 1895, p. 15.
513
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
artimanhas (as tentações da carne), simbolizada pelos cães, não quebre a fortaleza.
Subtileza muito próxima da prática dos sermões de Santo António sobre a salvação
humana, onde se refere que o crente não deverá viver conforme os desejos da carne “para
não ser delapidado pelos lobos ferozes”, já que da carne vem a morte, entendida aqui como
uma condenação. Os cães teriam, assim, a equivalência simbólica de lobos vorazes”12.
Desta proposta, dever-se-á entender o tema como uma alusão à importância da
vigilância continuada da oração, cuja manutenção é aqui garantida pela leitura do livro de
orações13.
Encontrámos um tema com inegáveis semelhanças num conjunto escultórico do
românico tardio, numa das mísulas do apostolado da Câmara Santa de Oviedo. Aqui, pode
observar-se um quadrúpede, (cão ou raposa?), que ataca ferozmente o pescoço de um galo.
Maria da Soledad Álvarez Martínez refere que é um tema de origem moçárabe, inspirado
em iluminuras leonesas do século X14. Na interpretação de Árias Páramo, trata-se de uma
cena alegórica em que há um ser enganoso e carnívoro e um ser que simboliza a chegada
da luz, um ser vigilante15.
Mas, mais interessante, porque mais narrativo, é uma iluminura da Bíblia de São
Lourenço de Liège (século XII), que representa um interior doméstico (e é preciso não
esquecer que este é o espaço feminino por excelência), onde se pode ver uma mulher
sentada num dos cantos do quarto, ocupada com a tecelagem.
Junto de si, encontram-se dois galos entretidos a debicar algo que se encontra no
chão. Um terceiro, que, por ousadia, se afasta, é abocanhado por um lobo, raposa ou cão,
num lance rápido e certeiro. No canto oposto desta habitação, de frente para os dois
animais, encontra-se a figura de um religioso, em pé, que aponta para o quadrúpede e para
a sua presa surpreendida, num gesto demonstrativo que pretende chamar a atenção, em
jeito de advertência moral, reforçada pelo gesto da outra mão e da direcção do olhar,
12 Excertos do pequeno texto policopiado que nos foi enviado em 2000 pelo Prof. Doutor
Manuel Núñez Rodríguez quando lhe pedimos parecer sobre este tema dos túmulos da Sé de Lisboa e
que aqui tomamos a liberdade de traduzir.
13 Cf. Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, p. 58.
14 Cf. Maria Soledad ÁLVAREZ MARTÍNEZ, El Románico en Asturias, Gijón, Trea, 1999, p.
96.
15 Lorenzo ARIAS PÁRAMO, La Cámara Santa de la Catedral de Oviedo, Gijón, Trea, 1998, p. 24.
514
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
ambos virados para o céu, como que a lembrar as verdades divinas e o dever para com a
salvação da alma.
George Duby, na legenda a esta imagem, interpreta a cena com uma interrogação
desafiadora: “No coração da casa, porque não seria a mulher apanhada?”16.
As mulheres, com poder dentro dos seus próprios lares, eram controladas pelo
chefe masculino da casa e, por vezes, pelos eclesiásticos, que com os maridos disputavam
esse mesmo poder, a pretexto de direcção da consciência. Elas, porque destinadas a tarefas
específicas no interior do “gineceu”, não deixavam de constituir um grupo inquietante, se
não para os maridos, pelos menos para os moralistas, e deviam estar sempre ocupadas
“sendo a ociosidade considerada particularmente perigosa para estes seres frágeis. O ideal
era a partilha equilibrada entre a oração e o trabalho, o trabalho têxtil”17.
Tanto a infanta D. Constança, como D. Maria de Vilalobos, nos jacentes dos seus
túmulos, estão totalmente concentradas nas palavras santas dos seus livros de orações,
deixando para a posteridade a imagem de virtuosa perfeição, a perfeição da conduta
feminina ditada pelos moralistas, sem sinais de distracções que facilitassem as tentações da
carne, aquelas que conduzem à perdição do corpo, mas, especialmente da alma, tal como as
cenas esculpidas aos pés das jacentes parece pretender ilustrar.
16 George DUBY, “A vida privada nas casas aristocráticas da França feudal. Convivialidade”.
História da Vida Privada. Vol. II (Da Europa Feudal ao Renascimento), dir. Philippe Ariès e George
Duby, Lisboa, Afrontamento, 1990, p. 90.
17
IDEM, ibidem.
515
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
516
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
A já referida D. Branca,
filha de D. Afonso III e
Senhora de Las Huelgas de
Burgos, possui, ainda hoje, um
precioso monumento
funerário em que a decoração
se resume à abundante
heráldica patente nos escudos
de Castela-Leão e de Portugal,
inseridos em folhagem e
arabescos de gosto mudéjar. A
arca sepulcral é trapezoidal,
A. MAYER, El Estilo Gótico en España, Madrid, 1929, p. 80, notou, como anomalia, o facto da
18
composição do escudo português adoptar uma tipologia antiga e, mais surpreendente ainda, o facto de
517
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Pormenor do túmulo de D.
Urraca Afonso.
Séc. XIII-XIV.
Igreja do Mosteiro de S. João
de Tarouca.
Foto: CVF.
estes possuírem seis quinas e não cinco nos pequenos escudos, levando o autor a recuar a cronologia
vulgarmente adoptada para este túmulo (séc. XIV), datando-o do século XIII e concluindo que se
deverá tratar do túmulo da rainha D. Urraca de Portugal, filha de Afonso VIII. Esta hipótese é
totalmente improvável, uma vez que, D. Urraca, mulher de D. Afonso II, foi sepultada no Mosteiro de
Alcobaça, em túmulo ainda hoje existente, pelo que se mantém, de forma consensual, a identificação
deste túmulo com o lugar de inumação de D. Branca, infanta de Portugal.
19 Cf. Francisco Simas Alves de AZEVEDO, “Deux tombeau médiévaux portugais armoriés”,
Archivum Heraldicum – Bulletin, n.º 4, ano LXXIV, Lausanne, 1960, pp. 50-51; Luís Gonzaga de
Lencastre e TÁVORA, op. cit., 1984, pp. 11-18; Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, pp. 55-67.
518
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
519
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
20 Cf. Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2002, p. 227.
520
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
21
Cf. Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, p. 236, fig. 295.
521
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
22
Sobre estes últimos selos veja-se Jonathan ALEXANDER e Paul BINSKY, ed., op. cit., 1987,
p. 252.
522
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
2. A CAÇA
Se a maioria dos túmulos trecentistas portugueses reflecte estilos e programas
iconográficos que revelam pontos comuns com a arte funerária que se produzia na
Europa de então, já outros, pertencentes a notáveis cavaleiros portugueses destas
cronologias, veiculam valores que se afirmam como eminentemente nacionais, ao nível
do temário iconográfico, conferindo-lhes uma especificidade e uma singularidade
autóctone. Referimo-nos aos temas cinegéticos, relembrando aqui as suas
particularidades, conscientes de que antes de nós, outros autores se interessaram por
este tema, desenvolvendo e publicando estudos de significativo interesse.
Para alguns, a actividade cinegética e o seu desenvolvimento no Portugal
medieval foi o objecto de estudo1, e a arte que a tinha por tema, forma de ilustração ou
referência do que ficou escrito. Outros, porém, partindo das cenas esculpidas em
diferentes monumentos, analisaram os objectos per si, cotejando-os com as informações
documentais disponíveis2. Partimos, assim, de uma questão já explorada, e que nós
próprios tivemos oportunidade de abordar em outra ocasião, mas que entendemos ser
ainda campo de reflexão e de acrescento de informações, tanto quanto possível.
O tema coloca-nos algumas questões pertinentes e obriga-nos a levantar
hipóteses e a seguir pistas que, mesmo que não sejam definitivamente conclusivas, são
1 Cf. José MATTOSO, “A Caça no Soajo”, Estudos de Homenagem a Mariano Feio, 1986, pp.
681-688, republicado em Fragmentos de uma Composição Medieval, 2ªed., Lisboa, Estampa, 1990, pp.
205-211; Carlos Guilherme RILEY, A Caça na Sociedade e na Cultura Medieval, Provas de Aptidão
Pedagógica e Capacidade Científica, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1988 (policopiado);
Carlos Guilherme RILEY e Maria Helena da Cruz COELHO, “Sobre a caça medieval”, Estudos
Medievais, vol. 9, Porto, 1988, pp. 221-217.
2 Sobre os túmulos com iconografia cinegética veja-se, entre outros estudos, J. Possidónio
da SILVA, “O sarcófago de D. Afonso Sanches”, Boletim da Associação dos Arqueólogos, vol. III, 2.ª
série, n.º 11, Lisboa, RAACAP, 1880-1882, pp. 169-170; IDEM, “Relatório da Direcção”, Boletim da
Associação dos Arqueólogos, t. XIII, 5.ª série, n.º 6, Lisboa, RAACAP, 1917, p. 261; Vasco MOREIRA,
“A Igreja de São João de Tarouca...”, op. cit., Fev. de 1911, pp. 15-16; IDEM, Monografia do Concelho
de Tarouca, História e Arte, Viseu, 1924; Vergílio CORREIA, op. cit., 1924, pp. 29-30 e 173-174;
Diogo de MACEDO, Iconografia Tumular Portuguesa. Subsídios apra a formação de um Museu de Arte
Comparada, Lisboa, 1934, p. 25; Francisco Maria Esteves PEREIRA, “Túmulo de D. Fernão
Sanches”, Revista de Arqueologia, vol. 1, Lisboa, 1932, pp. 112-115; J. M. Cordeiro de SOUSA, op. cit.,
1946, p. 11; Reynaldo dos SANTOS, Oito Séculos…, p. 39; IDEM, op. cit., vol. I, 1948, p. 27;
Margarida RIBEIRO, “A montaria na escultura tumular...”, op. cit., 1960, pp. 29-40; Pedro DIAS, op.
cit., vol. IV, 1986, p. 127; Mário Jorge BARROCA, “48. Sarcófago do conde D. Pedro”, Nos Confins
da Idade Média, 1992, pp. 135-137; IDEM, op. cit., 2000, vol. I, t. II, 2000, pp. 1535-1541; Mário
Alberto Nunes COSTA, Vasco Esteves de Gatuz e o seu Túmulo Trecentista em Estremoz, Lisboa,
Academia Portuguesa da História, 1993; Carla Varela FERNANDES, “Escultura Gótica”, Museu
Arqueológico do Carmo. Roteiro da Exposição Permanente, coord. José Morais Arnaud e Carla Varela
Fernandes, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2002, pp. 86-87.
523
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Perante o corpus iconográfico medieval com cenas cinegéticas que hoje é possível
reunir, dificilmente conseguimos deixar de nos seduzir pelo fascínio que estas imagens
produzem. Talvez por escaparem às tradicionais cenas religiosas e aos temas
escatológicos mais comuns4, deixando-nos entrar num universo semi-pagão; talvez
porque lhes pressentimos origens que recuam para lá da Idade Média; talvez, ainda,
3 Cf. entre outros estudos, F. VALES VILLAMARÍN, “El sepulcro de Andrade o Boo”,
Anuário Brigantino, 1949; Manuel Chamoso LAMAS, op. cit., 1979 e Manuel NÚÑEZ
RODRÍGUEZ, “El sepulcro de Fernán Pérez de Andrade en San Francisco de Betanzos, como
expresión de un individualidade y una época”, Bracara Augusta, vol. XXXV, 1981, pp. 397 e ss;
IDEM, La Idea de inmortalidad en la Escultura Gallega (La imaginería funerária del caballero, s. XIV-XV),
Pontevedra, 1985, pp. 21-32. Sobre esta personalidade, paradigma medieval do cavaleiro ideal, veja-
se a recente obra de José Francisco CORREA ARIA, Fernán Pérez de Andrade, o Boo, ed.
Touxosoutos, 2004.
4 Como escreveu Reynaldo dos SANTOS, op. cit., 1948, vol. I, p. 27, a propósito da
decoração da arca funerária de D. Fernão Sanches, “a composição tem uma liberdade, movimento e
realismo que nos distraem da monotonia dos coros de carpideiras e fradinhos emparelhados”.
524
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
525
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Tratados de Alveitaria e Cetraria”, Revista Lusitana, vol. XIII, n.º 3 e 4, Lisboa, Imprensa Nacional,
1923, e Margarida RIBEIRO, “A montaria...”, op. cit., 1960, p. 30.
526
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
527
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
8 Vasco MOREIRA, op. cit., 1924, p. 74, identifica este sarcófago como tendo pertencido a
D. Branca de Sousa, primeira mulher do Conde D. Pedro. Desde então, vários autores colocaram
em dúvida esta atribuição, sem contudo ser possível identificar quem de facto foi aí inumado.
9 Procurador da rainha D. Beatriz, mulher de D. Afonso III.
10 Vergílio COREIA, op. cit., 1924, p. 31.
11 “(...) Ora como a grossura da parede não permitisse esconder totalmente todo o túmulo,
porque havia duas hombreiras e uma porta fingida sobre a face opposta, que fazia fundo ao tumulo,
tiveram de mutilar as esculpturas da face principal do sarcophago em dois lugares, afim de fazer a
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Túmulo de D. Fernão Sanches, filho bastardo de D. Dinis. c. 1335 Pedra calcária Prov. Mosteiro de S.
Domingos de Santarém. Museu Arqueológico do Carmo, Inv. n.º Esc. 2 . Foto: José Pessoa/DDF/IPM.
necessária caixa para entrar todo o alto relevo no tardoz das ombreiras, e ficar só a pedra das costas
do mencionado tumulo apparente na parede na capela”. Cf. J. Possidónio da SILVA, “O sarcófago
de D. Afonso Sanches”, op. cit., 1880-1882, p. 170.
12 Segundo uma descrição de J. Possidónio da Silva, sabe-se que o túmulo esteve entaipado
durante bastante tempo numa capela da extinta igreja de S. Domingos: “Quando em 1866 fomos a
Santarém evitar que as obras d’arte que se achavam abandonadas, mutiladas e desprezadas nas
igrejas profanadas (...) podessem ser conservadas (...) notamos que na remota capella do Rosário de
Nossa Senhora da Oliveira, da fundação de 1222 e junto da qual se edificou depois o convento de
S. Domingos em 1225, havia, defronte do retábulo, pertencente ao túmulo de Ruy de Menezes,
uma grande pedra lavrada a picão. Encravada na parede e a sua tosca face no destorcimento da
parede de alvenaria! (...) mandámos esburacar a parede sobre os dois lados da dita pedra (...), e veio
a descobrir-se que estava entaipado o sarcophago”. Cf. IDEM, Ibidem, p. 170 e “Relatório da
Direcção”, op. cit., 1917, p. 261. Após 1866 o túmulo foi transportado para o Museu do Carmo e em
1916 passou para o interior do referido museu escapando assim das vicissitudes climatéricas12.
13 Cf. Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2000, vol. I, T. II, p. 1539.
529
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Na verdade, o que aqui se narra são factos alusivos a uma das actividades lúdicas
preferenciais da nobreza, e significativa sob o ponto de vista estatutário, sublinhada
pelos atributos de nobilidade da estátua jacente, a que já nos referimos em capítulo
anterior.
Nesta composição, conjugam-se vários elementos e coloca-se em destaque a
cena que representa o momento exacto em que o javali foi ferido. Esta é a que ocupa
uma posição central e de maior destaque, mas é antecedida e sucedida por outras.
530
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
14 Sobre este relevo veja-se José António FALCÃO e Fernando António Baptista
PEREIRA, Santiago Combatendo os Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, Beja – Santiago de
Cacém, Departamento do Património Hostórico e Artístico da Diocese de Beja/Câmara Municipal
de Santiago do Cacém, 2001.
531
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Composição central da
face longa do túmulo de
D. Fernão Sanches.
Fernão Sanches, a cavalo,
desfere um golpe com a
lança no pescoço do javali.
Dois moços abrigam-se e
protegem-se sobre as
árvores, e um deles toca o
corno de caça.
Museu Arqueológico do
Carmo.
Foto:
José Pessoa/DDF/IPM
532
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
533
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Túmulo de D. Pedro Afonso, Conde Barcelos, filho bastardo de D. Dinis e de D. Grácia Frois.
Cena esculpida numa das faces longas da arca sepulcral.
c. 1350. Granito. Igreja de São João de Tarouca
Foto: Henrique Ruas (cortesia IPPAR)
O que vemos na face longa que hoje se encontra voltada para o público é uma
composição que só pode ter saído da mão de um escultor de grande perícia, que soube
compor cenas bem estruturadas e correctamente distribuídas no espaço. Embora o
granito em que foi esculpida não se preste à realização de trabalhos de grande detalhe e
naturalismo, a verdade é que nos encontramos diante de uma arte fortemente
expressiva, onde a sensação de movimento e de acção são as mais perceptíveis. Neste
“cortejo” quase conseguimos ouvir o remexer das folhas das árvores e arbustos,
atropelados pela passagem veloz dos animais, o rosnar dos cães e a sonoridade conjunta
dos olifantes soprados pelos três caçadores.
Assim, por entre um cenário florestal estilizado, mas mais naturalista do que
aquele que encontramos no túmulo dito de D. Branca de Sousa, o artífice representou a
perseguição ao porco-montês, realizada por três moços de monte que tocam olifantes.
534
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
É o momento em que o javali sai das moitas, iniciando a fuga sem sucesso, uma vez que
se encontra cercado, e é perseguido por dois mastins, enquanto que um terceiro o ataca,
mordendo-lhe o pescoço. Os cães, por se encontrarem mais perto do observador, e por
desempenharem um papel fundamental nesta cena de acção, assumem uma dimensão e
até uma monumentalidade superior, quando comparados com os três caçadores. O
animal perseguido é então “abatido a golpes de escuma”15.
535
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Túmulo de D. Pedro
Afonso, Conde de
Barcelos.
Cena de montaria (caça
ao javali) esculpida
numa das faces longas
da arca sepulcral.
Foto: Henrique Ruas
(cortesia IPPAR)
18 Francisco BRANDÃO, op. cit., Parte VI, ed. 1976, p. 178. Cf. Mário Jorge BARROCA,
536
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Um pouco por toda a Europa, a caça com falcão, a par da caça ao veado,
sobrepôs-se à caça grossa, ou seja, a caça ao javali ou ao urso19. Em Portugal, pelo
contrário, a montaria, e em especial a caça ao javali, continua a ser aquela que, e como a
arte tumular deixa perceber, maior valorização conhece até períodos muito tardios
(paralelamente com a falcoaria, sem que esta se sobreponha à primeira), verificando-se
que o mesmo interesse pela iconografia da caça se propaga à Galiza, como atrás foi
referido.
O que este tema pretende ilustrar, em contexto funerário, para além dos
motivos já evocados relativos à afirmação do estatuto social dos defuntos, julgamos que
se prende com o mesmo substrato ideológico e simbólico comum à iconografia de um
grande número de sarcófagos romanos com cenas venatórias, a que se juntam valores
próprios da cultura medieval, em especial da cultura cortês e cavaleiresca.
A valorização que os Romanos deram à caça adveio de conceitos herdados das
civilizações da Antiguidade oriental, mas, especialmente, da civilização Grega. É com os
monarcas orientais que primeiro se assiste à prática da caça como desporto, “cuja
função lúdica e simbólica, associada à dignidade majestática, virá a evoluir no sentido
do chamado “modelo oriental da caçada real”, com o qual os Gregos virão a tomar
conhecimento através dos Reis Persas20. Os Poemas Homéricos, entre outros escritos
gregos que visam os temas cinegéticos, definem o modelo heróico do caçador e
estabelecem a distinção entre a caça “vil”, enquanto actividade de subsistência e
19 Michel PASTOUREAU, “La chasse au sanglier…”, op. cit., 2000, pp. 7-8, procurou
interpretar a desvalorização da caça ao javali, a partir do século XII, nos meios principescos e em
países como a França e a Inglaterra, analisando os discursos simbólicos sobre o javali nos bestiários
e enciclopédias, nos exempla, nos tratados de caça, bem como nos documentos contabilísticos, na
iconografia e nos textos literários, verificando a evolução desse mesmo discurso, como
testemunhos da progressiva depreciação e, simultaneamente, da valorização da caça ao veado. Mas,
para o autor, a resposta não se encontra explicitamente nesta documentação, e é necessário que se
coloque este animal numa problemática mais alargada, referente à posição que a Igreja manifestou
relativamente à caça e às funções reais e principescas no Ocidente, entre a época merovíngia e o
século XIV. O javali, que tanta admiração colhia entre os caçadores romanos, os druidas celtas e os
guerreiros germânicos, transforma-se num besta impura, inimiga do Bem e de Deus, imagem do
homem pecador e revoltado. Santo Agostinho descreve o javali a destruir as vinhas do Senhor,
sendo o primeiro a fazer deste animal uma criatura do Diabo. É Rábano Mauro, no séc. IX, que
fixa definitivamente a simbólica infernal deste animal, no contexto da cultura e entendimentos
religiosos, usando expressões que seriam aproveitadas nos bestiários latinos dos séculos XI e XII.
20 Cf. Carlos Guilherme RILEY, op. cit., 1988, s/p.
537
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
21 IDEM, ibidem.
22 Cf. Michel PASTOUREAU, “La chasse au sanglier...”, op. cit., 2000, pp. 8-12.
538
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Túmulo com cena de caça ao javali. Meados do séc. IV. Arles. Musée d ‘Art Païen.
Apud. Naissance des Arts Chrétiens, p. 272.
Túmulo com cenas de caça ao javali e ao veado que ocupam as faces do sarcófago e de tampa.
Exumado em Trinquetaille (1974). Mármore branco. Último quartel do século IV.
Arles, Musée Lapidaire d’Art Chrétien. Apud Naissance des Arts Chrétiens, p. 274
Naissance des Arts Chrétiens. Atlas des Monuments Paléochrétiens de la France, Paris, Ministère de la
Culture/Imprimerie National Éditions, 1991, p. 275.
539
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
24 Estes medalhões que representam um imperador numa cena de caça sacrificial têm sido
Antiguidade Tardia Portuguesa”, Propaganda e Poder. Actas do Congresso Peninsular de História da Arte 5 a
8 de Maio de 1999, (Coord. Ivo Castro, Maria João Neto, Vítor Serrão), Lisboa, Colibri, 2001, pp. 19-
29.
26 Meleagro, filho de Eneu, rei dos Etólios de Cálidon, e de Alteia, é o herói do episódio
que ficou conhecido por “Caça de Cálidon”., contado na Ilíada. “(…) Eneu oferecera depois da
colheita um sacrifício a todas as divindades, excepto a Artémis. Então a deusa enviou contra
Cálidon um javali de prodigioso tamanho que assolou os campos. Para o vencer, Melegro, filho do
rei, reuniu vários caçadores vindos de todas as cidades da vizinhança. O animal matou muitos deles,
até cair sob os golpes do jovem” (Pierre GRIMAL, op. cit., 1992, p. 299. Mais tarde a lenda evoluiu,
tornando-se mais complexa e assumindo contornos mais dramáticos.
540
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
20-29.
31 Cf. Joaquín YARZA LUACES, “Despesas fazen los omnes…”, op. cit., 1984, p. 280.
32 José Luis HERNANDO GARRIDO, “Apuntes sobre la Caza”, op. cit., 2003, p. 107.
541
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
da caça ao javali, tanto mais que, no caso deste cavaleiro galego, não é apenas o
sarcófago que serve de suporte à figuração destes temas, mas também um interessante e
bem desenvolvido friso de baixos-relevos, adossado aos muros da capela-mor da Igreja
de S. Francisco de Betanzos.
No seu conjunto, representam a busca, com o acto de correr o monte e o abate,
bem como a assistência ao cavaleiro. O autor considera que a perseguição efectuada
pelos cães e o seu encurralamento compartem evocações que se reportam à atmosfera
particular do mundo arturiano: a perseguição do javali Troint, pelo prodigioso cão de
Artur, Cabal33. É com o tema da perseguição, como vimos, que se decora a totalidade
de uma das faces longas do túmulo do Conde D. Pedro.
A admiração pelo combate e caça ao javali atravessou toda a Alta Idade Média,
em especial os países germânicos, encontrando-se eco nas novelas de cavalaria. Na
verdade, os heróis militares altimedievais, como exempla para os cavaleiros da Baixa
Idade Média, não diferem substancialmente dos heróis Romanos; pelo contrário,
reforçam idênticos substratos míticos, em que o exemplo do guerreiro-caçador que
vence o javali, especialmente quando este detém características sobrenaturais, se
prolonga temporalmente, e permanece edificante enquanto arquétipo, muito para além
do tempo construção dos mitos arturianos.
Quanto ao lance e à assistência ao cavaleiro, o historiador galego propõe várias
leituras: ao tratar-se de uma caça civilizada e que civiliza a quem a pratica, implicando
preparação física e moral, estamos diante da representação da caça regulamentada como
um rito, que, tal como os códigos da cavalaria, valoriza o dever e compromisso de
socorro.
O programa destina-se, pois, a evocar a figura do Senhor de Andrade como
arquétipo de cavaleiro perfeito que, através de provas, durante as quais observou as
normas da conduta correcta, pode fazer-se merecedor do Paraíso. “Ante esta
exaltación, era inevitable que el moimento de aquel hombre que había sido justicia mayor
de Betanzos, según decisión real, creara una imagen de hombre poderoso (gran señor) y
de caballero de actitud modélica y fama ganada. Que toda esta dialéctica suscite su
admiración y constituya una advertencia moral para los demás, incitándoles a alcanzar
ese ideal que había convertido a “la flor de los caballeros” en ejemplo de defensor de un
542
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
orden y en una especie de héroe invicto que desestima el peligro y desafía las fuerzas
salvajes o malignas de la naturaleza”34.
O javali, enquanto besta possante e feroz, incita a um combate onde entram em
jogo a coragem e a destreza. Mas se pensarmos que este animal encerra, em si, desde o
século XII, conotações simbólicas com o demoníaco, melhor entendemos que a sua
captura ajuda à construção de uma imagem protótipo do heroísmo guerreiro, de base
cristã. Como já havia assinalado Paulo Pereira, a propósito das imagens de javalis na
arte manuelina, “efectivamente, tratava-se de uma prática corrente entre a nobreza; era
um desporto nobre e um exercício militar, detendo porém conotações morais nada
desprezíveis: de facto, constituía uma alegoria da expulsão (a caça) dos baixos instintos,
tanto mais evidente quanto em Portugal o porco selvagem ou o porco preto era
encarado popularmente como uma encarnação do Diabo”35. Desta forma, a caça aos
animais ferozes constitui um exercício que, para além de ser símbolo de pugna spiritualis,
era também útil para a guerra, como exercício em si mesmo e como forma de por à
prova a valentia e coragem do cavaleiro36. Talvez por isso encontremos representações
de javalis combinadas com temática da marginalia medieval, como são exemplo os temas
das asnas pintadas no tecto da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães.
No sistema classificativo dos animais de caça apresentado por Gaston Phébus, o
javali faz parte não apenas dos animais corpulentos (juntamente com o veado, o gamo, o
urso e o lobo), mas também dos animais mordedores (com o urso, o lobo, a raposa e a
lontra), dos animais fétidos (com o lobo, a raposa e o texugo) e dos animais negros (com
o urso e o lobo). Mas é também um animal corajoso, que não tem artifícios e que
combate até ao limite das suas forças. Por isso mesmo, ele é, contrariamente ao veado,
extremamente perigoso: C’est la beste dou monde qui a plus forz armes et qui plus tost tueroit un
homme ou une beste; il n’est nulle beste qu’il ne tuast seul a seul plus tost que elle ne feroit luy, ni lyon
ni liepart (...); quar lyons ne liepart ne tuent mie un homme ne une beste a un coup (...); le sanglier tue
d’un coup, comme on feroit d’un coutel”37.
543
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Mas se Gaston Phebus ainda lhe concede alguns créditos dignos de nota, já
Henri de Ferrières, pelo contrário, é o autor mais severo para com os significados do
javali: na sua obra Livre du Roy Modus et de la Reyne Ratio (1370), a rainha Ratio vê neste
animal uma encarnação de todos os inimigos de Cristo. Ele é a antítese do veado: às dez
“propriedades” cristológicas deste correspondem as dez propriedades diabólicas
daquele. Segundo a rainha, o javali é feio, negro e eriçado; vive nas trevas; é desleal,
colérico e feito de orgulho; é quereloso; possui duas presas temíveis, dignas das agulhas
do Inferno: deux dens Qui sont en as gueule; nunca olha para o céu, mas anda sempre com a
cabeça na terra; foge do sol todo o dia e não pensa em outra coisa que não os prazeres
terrestres; é sujo e encontra o prazer na lama”; enfim, ele é também preguiçoso: quando
está bem alimentado, só quer dormir. É o inimigo de Cristo. É o Anticristo”.
De um modo geral, a partir do século XIII, nas sumas teológicas sobre os
vícios, nos excertos dos exempla e depois nos bestiários literários ou iconográficos
associados aos sete pecados capitais, o javali reúne todos os vícios e pecados
anteriormente distribuídos pelo porco doméstico e pelo porco selvagem: sorditas, foeditas,
libido, intemperantia, gula, pigritia, violentia, furor, cruor, superbia, obstinatio, rapacitas, impietas38.
Desta forma, melhor se compreende o carácter simbólico da caça ao javali, pois a
Virtus que caracteriza o bom cavaleiro, manifestada pelo exercício da caça e pela boa
conduta na viagem atribulada da existência terrena, permite-lhe suplantar e dominar as
forças brutas da natureza, mesmo aquelas que se escondem e atacam no espaço da
floresta, também ela com conotações míticas e maravilhoso-demoníacas. A Virtus
manifesta-se, assim, como garantia de felicidade post-mortem e de apoteose celeste, tal
como nos sarcófagos romanos39, traduzindo-se em imagens dirigidas ao universo social
vivente, como materialização da glória ou fama, mas também ao universo celeste, à
maneira de panegírico da soma das virtudes que lhe permitirão alcançar a glória no
Além.
Talvez o entendimento desta simbologia moral permita perceber melhor porque
não causou constrangimentos às comunidades religiosas dos mosteiros e conventos,
que acolheram os túmulos destes nobres, uma iconografia que, à primeira vista, sugere
ser totalmente laica, especialmente em casos como os dos túmulos do Conde D. Pedro
544
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
545
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
reinado de Afonso X, o Sábio, e sob sua própria encomenda (a tradução do árabe, por
Muhammad ibn ‘Adb Allāh ibn ´Umar al-Bayzār’s Kitab al-ğawarih, conhecido como
Libro de las animalias que caçan (1252), e a tradução do traité du faucon malade, conhecido
como Tratado de las enfermedades de las aves que cazan. Mas se o rei Sábio valorizou as
traduções de tratados de falcoaria, foi com o seu sobrinho, D. João Manuel, que se
produziu a maior e mais expressiva literatura respeitante ao tema. No primeiro quartel
do século XIV, antes de 1325, o famoso príncipe castelhano terminou o seu Libro de la
caza, não constituindo cópia de qualquer outro livro anterior sobre falcoaria. Outra
notável obra sobre a caça com falcão, produzida em Castela, foi escrita por Pêro Lopez
de Ayala (Libro de caza de las aves, 1386), tornando-se o livro-chave da falcoaria
hispânica40.
De resto, o interesse relativo à caça com falcão que se verifica na Península
Ibérica é comum a outros países, como bem provam diferentes tratados sobre o tema,
de que é exemplo a obra De arte venandi cum avibus41, redigida para Frederico II de
Hohenstaufen (1194-1250), grande apreciador da falcoaria42.
e anotações por Ann Paulus e Baudin Van den Abeele), Nogent-le –Roi, Éditions J. Laget, 2001.
42 Cf. Carlo FORNARI e Alberto GENTILE, “Frédéric II et sa cour”,
http://www.stupormundi.it/Franc/la_cour.ptm (12 de Outubro, 2004).
546
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
43 Sobre a compilação e difusão dos tratados de falcoaria em Portugal, veja-se Luís KRUS,
“Livro de Falcoaria”, Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, org. e coord. Giulia Lanciani
e Giuseppe Tavani, 2ªed., Lisboa, Caminho, 2000, pp. 408-409.
44 Daudouin Van den ABEELE, “Le faucon sur a main. Un parcours iconographic médiéval”,
547
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Pormenor da figura do
Figuras da arca sepulcral de Adelaide Condessa de Joigny. falcoeiro da arca funerária de
c.1250. Prov. da Abadia de Dilo. Igreja de São João de Joigny (Champanhe, França). Adelaide, Condessa de Joigny.
Apud Anne McGee Morganstern, ob. cit., p. 19 . Apud Anne McGee
Morganstern, ob. cit., p. 19
46 Cf. Clementina Julia ARA GIL, op. cit., 1977, p. 120; IDEM, “Un grupo de sepulcros
palentinos del siglo XIII. Los primeros talleres de Carrión de los Condes, Pedro Pintor y Roy
Martínez de Burueva”, Actas del II Curso de Cultura Medieval. Alfonso VIII y su Epoca, Aguilar de
Campoo, 1990, Madrid, 1992, pp. 21-52; José Luis HERNANDO GARRIDO, “Algunas notas
sobre los sepulcros de Aguilar de Campoo: un grupo escultórico palentino de 1300”, Boletín del
Museo e Instituto Camón Aznar, XXXVII (1989), pp. 87-119; Margarita RUIZ MALDONADO,
“Escultura funeraria en Burgos: los sepulcros de los Rojas, Celadas y su círculo”, Boletín del Museo e
Instituto Camón Aznar, LVI, 1994, pp. 45-126.
548
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
47 Cf. A. SCHNAPP, Le Chasseur et la Cité. Chasse et érotique dans la Grèce Antique, Paris, 1997 e H.
D. DUNN, The Hunt as an Image of Love and Death in late Medieval and Renaissance Art, 1975.
48 Cf. Baudouin Van den ABEELE, op. cit., pp. 96-97.
549
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
3. DISCURSOS BIOGRÁFICOS
550
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
2
Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, “A Roda da Fortuna/Roda da Vida no túmulo de
D. Pedro, em Alcobaça”, Revista da Faculdade de Letras do Porto. Série História, 2.ª série, vol. VIII,
Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1991, pp. 255-263.
3 Manuel Vieira da NATIVIDADE, Ignez de Castro e Pedro o Cru perante a Iconografia dos seus
D Pedro I e D. Inês de Castro veja-se Luís Urbano AFONSO, op. cit. 2003, p. 19.
5 Serafín MORALEJO, “El «Texto» Alcobacense sobre los amores de D. Pedro y D.ª
Inês”, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, (Lisboa, 1-5 de Outubro de
1991), org. Aires de Nascimento e Cristina Ribeiro, vol. I, Cosmos, 1993, pp. 71-89.
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estava vivo para o fazer e, ainda, porque as mensagens que importava que constassem
no túmulo de D. Inês eram bem outras: mais do que contar a verdade dos factos,
importava a D. Pedro consolidar para todo sempre a imagem ideal e perfeita de Inês,
enfim, glorificá-la na condição de rainha, procurando, ainda, afirmar a legitimação dos
filhos de ambos.
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global, como já havia notado José Custódio Vieira da Silva6. Por agora, analisamos
apenas um dos temas iconográficos desta obra.
A história que se conta nesta roda dupla é a história que D. Pedro quis que nós
conhecêssemos, pelo que pode ser questionada, mas também adquire um excepcional
valor enquanto testemunho ou espelho da estrutura mental e das emoções pessoais do
rei, ou seja, vale, essencialmente, como forma de conhecimento do “indivíduo Pedro I”,
podendo ser confrontada com a mesma história contada na terceira pessoa,
especialmente por Fernão Lopes.
As duas rodas intercomunicantes são ladeadas pelas figuras de Adão e Eva
depois da Queda, relembrando a ideia conjunta de Queda e Morte, na sua associação ao
pecado original, mas que, pela vinda e sacrifício de Cristo, que se representa em três das
faces do Sarcófago de D. Inês, deixa à humanidade as portas abertas à Redenção. Esta
Roda representa, por isso, “o tempo presente da existência do ser, sublinhando a
fragilidade da condição humana, a sua imprevisibilidade e o seu carácter efémero”7.
6 Cf. José Custódio Vieira da SILVA, “Os Túmulos de D. Pedro I...”, op. cit., 2000, pp. 367-
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enunciar as etapas da vida do ser humano e a sua aplicação concreta à ilustração da vida
de um indivíduo em particular”8.
Esta é, portanto, a Roda da Vida de D.
Pedro, desde o seu nascimento até à morte,
ainda que a sua concepção geral se baseie numa
das mais prováveis fontes iconográficas
medievais sobre este tema de carácter genérico,
o Saltério de Robert de Lisle, também conhecido
como Saltério Arundel (c.1310-1330), como bem
identificou Serafim Moralejo e sublinhou Luís
Afonso.
Roda da Vida (As Idades do Homem).
4
Saltério de Robert de Lisle (c. 1310-1330)
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Pormenor da iluminura
do Livro de Horas de
Joana de Navarra.
Livro Horas de Joana de Navarra. Iluminura
de Jean Pucelle. c. 1330.
BNF. NAL 3145, fol. 85.
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12 Para uma compreensão mais global dos significados simbólicos do xadrez quando jogado
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Representa-se uma figura que assenta uma das mãos e as duas pernas no solo,
como se gatinhasse, enquanto que a outra mão está levantada e esticada, como que a
querer agarrar algo diante de si. Atrás de si, outra figura, de pé, parece segurá-la, como
que a impedi-la de alcançar os seus objectivos.
O sexto nicho, colocado no eixo vertical superior da
roda, corresponde, como em todas as Rodas da Vida ou
em todas as Rodas da Fortuna, à idade plena e ao gozo da
sorte na sua melhor fase. Nesta cena, D. Pedro aparece
isolado, numa clássica cena de majestade, sentado sobre
um trono, com as pernas abertas e, outrora, segurando
Aqui, a relação com a figura axial da Roda do Saltério de Lisle, quanto ao esquema
genérico, é total, mas afasta-se dela pelo detalhe da mão esquerda do rei, que aponta
para baixo, no sentido do cadáver amortalhado, que lhe faz correspondência directa no
alinhamento da Roda.
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é dominado. Agora, é a figura feminina que calca a figura barbada de um homem, cujo
rosto se vira para o observador.
Mas logo na cena seguinte, a figura de D. Inês aparece numa atitude de
subjugação às mãos de um homem. De joelhos no chão, D. Inês tem o corpo reclinado
para trás, puxada pelos cabelos e pelo rosto por uma figura de trajos longos, pondo-lhe
o pescoço a descoberto.
últimas, a que lhes falta a cabeça, esfaqueiam o coração e as costas da vítima do castigo.
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15 Sobre a inscrição patente neste pequeno esquife, vários autores defenderam leituras
diferentes, sendo as mais recentes de Mário Jorge BARROCA, op. cit., vol. II, t. 2, 2000, pp. 1740-
1747, que leu “CA:E :AFIN :DO MUDO” (“Que é o fim do mundo”) e Luís Urbano AFONSO,
op. cit., 2003, pp. 52-56, que leu A(té) :E(n) :AFIN :DO MU(n)DO”. Ambos os autores fazem o
historial das diferentes leituras, pelo que nos subtraímos da sua repetição. De qualquer forma,
parece-nos mais justificável que não se trate de um letreiro de carácter “informativo” sobre o que é
o Fim do Mundo, mas sim uma afirmação “lapidar” da inevitabilidade do percurso humano, não o
sentido trágico, mas como sinal de esperança na Salvação e, neste caso preciso, no reencontro com
Inês de Castro no Paraíso, como, aliás, fica demonstrado pela cena do Juízo Final no túmulo desta
última.
16 Luís AFONSO, ibidem, pp. 52-53.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
entre a Fortuna e Amor”17, o que levou Maralejo a baptizar esta composição como uma
rota fortunae amantium, conceito que Luís Afonso subscreve.
Esta Roda da Fortuna e Roda do Amor é marcada por uma bizarra figura axial, que
ocupa o nicho central inferior, bem como parte da pequena rosácea que constitui o
centro da composição.
A raridade desta figura já foi antes assinalada, sendo aqui representada como um
ser híbrido, monstruoso, com as duas cabeças (uma superior e antropóide e uma
segunda a ocupar o lugar das nádegas, de rosto monstruoso18) ligadas pela coluna
vertebral com vértebras salientes, aumentando o efeito grostesco que lhe foi conferido.
Assim, se uma das cabeças revela a beleza de uma mulher jovem, a outra assinala o que
de mais temível a Fortuna pode causar. A primeira associa-se ao gesto de parar a roda,
estendendo os braços e colocando-lhe um cravo, enquanto a segunda estende,
originalmente, as suas grosseiras patas sobre os dois infelizes amantes prostrados no
chão e com as mãos sobre a cabeça, em sinal de dor e desespero.
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Na primeira cena da roda, cuja leitura se inicia pela metade inferior esquerda,
paralela ao nicho da infantia da Roda da Vida, um jovem é ladeado por uma jovem, à
esquerda, ambos sentados, mostrando-se, assim, D. Pedro e D. Inês numa fase inicial
da sua relação amorosa19.
Na cena seguinte, há uma evolução na relação entre os dois: os jovens unem as
mãos esquerdas, como se se pretendesse evidenciar a existência de uma espécie de
aliança, ou laço mais profundo entre ambos, provavelmente, laços matrimoniais, como
já havia avançado Ferreira de Almeida, na sua proposta interpretativa, sobretudo se
tivermos em conta que a figura de Inês está agora à direita de D. Pedro.
No nicho seguinte, volta-se a representar o mesmo par, sentado, agora um
pouco mais afastado um do outro e com posturas mais aparatosas. Ele traça a perna em
attitude royale, e mostra a espada em repouso, enquanto ela revela uma postura mais
hirta, mais solene, adequada ao momento. Poder-se-á tratar “de uma imagem que visa
exprimir um retrato oficial do casal”20.
A Fortuna, porém, começa a exercer o seu desígnio no sentido contrário, girando
a roda e colocando as vidas dos dois amantes numa fase descendente. O movimento
súbito da roda parece fazer desequilibrar o célebre par, e Inês é a primeira a tombar do
banco em que ambos se sentam21.
A seguir, idêntica figura masculina à da cena anterior cai, aparatosamente, e leva
ambas as mãos à cabeça. Atrás dele (D. Pedro), D. Inês revela-se em posição ainda mais
desequilibrada, com o corpo encolhido, o que, juntamente com o gesto de D. Pedro,
evidencia o destino trágico a que ambos estão sujeitos, a interrupção terrena do seu
amor. Ao que tudo parece indicar, “aquilo que D. Pedro ou seus iconógrafos quiseram
salientar foi que a Fortuna também tem poder para dar e tirar amor, tal como dá a
riqueza e o poder em função do seu capricho”22.
19 Cf. Serafim MORALEJO, “El «Texto» Alcobacense”, op. cit., 1993, p. 84.
20 Luís Urbano AFONSO, op. cit., 2003, p. 73. O autor acrescenta que esta imagem
corresponde essencialmente ao poderíamos designar por wishful thinking, já que a imagem pública do
casamento entre ambos nunca pôde concretizar-se.
21 Ao contrário de outros autores anteriores, que viram na figura masculina desta cena a
representação de D. Afonso IV, Luís Afonso entende que continua a tratar-se de D. Pedro,
seguindo a mesma estruturação sequencial das cenas anteriores, o que a nosso entender é a
interpretação correcta.
22 Luís AFONSO, op. cit., 2003, p. 75.
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veste trajos longos, presos na cintura por um cinto, de onde pende, num dos lados, a
bainha de um punhal (bulhão), decorada com a fita que a envolve. Sugere-nos ser um
homem, ajoelhado, com o corpo na horizontal e encostado à segunda figura que se
encontra debaixo, deitada e totalmente submetida, com a cabeça e as costas assentes
numa base, que tanto pode sugerir o chão, como uma cama, de que ainda subsiste
parte, mas que as fracturas não permitem perceber claramente. A primeira figura segura
uma arma com uma das mãos, mais pequena que uma espada e maior que um cutelo e,
em gesto violento, crava-a no corpo da outra personagem, lateralmente, mas perto do
coração.
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casa de D. Maria Teles, surpreendendo-a enquanto dormia, e não lhe dando tempo nem
meios de fugir, ou vestir-se (apenas se socorrendo de uma colcha27), nem sequer de se
defender das falsas acusações de que era alvo. Este episódio reveste-se de tal
importância para a vida destas personagens e, sobretudo, como precioso meio de dar
uma muito má imagem de Leonor Teles, que Fernão Lopes não se poupa aos mais
ínfimos detalhes, desde os simples objectos aí presentes às emoções, de todos os que se
encontravam no quarto de D. Maria nessa fatídica madrugada, para criar um cenário de
profundo desastre.
Sem querer ouvir nada, D. João deu um grande empuxão pela ponta da colcha e atirou-a
ao chão, ficando descoberta parte do seu muito alvo corpo, à vista dos que estavam presentes. […] E
naquele derribar que o infante fez lhe deu com o bulhão que lhe oferecera o irmão dela por entre o
ombro e os peitos, perto do coração. […]. O infante, arrancando o bulhão, deu-lhe outro golpe pelas
virilhas e ela deu outro grito dizendo:
-Jesus, filho da Virgem, acudi-me!
Esta foi a sua última palavra, dando o espírito e lançando muito sangue28.
Assim terminou os seus dias a infanta D. Maria, entre a vergonha, os gritos, o
choro e as lágrimas, da própria, e de quem assistiu a tão lamentável cena.
O que vemos representado neste suporte do túmulo, não podendo ser tão
descritivo e preciso quanto o texto de Fernão Lopes, poderá resumir o que se passou
nessa madrugada em Coimbra e de como esse acontecimento marcou profundamente a
imagem do infante D. João, antes amado dos povos e dos fidalgos, e depois ambicioso,
fugido do reino e afastado da corte portuguesa, sem quaisquer hipóteses de acesso ao
trono após a morte do meio-irmão, D. Fernando. Sem dúvida que este episódio,
passado à pedra numa das partes constituintes de um monumento funerário, constituía
uma das melhores formas de identificação do tumulado.
Mas, as conclusões sobre o lugar de enterramento deste infante têm
permanecido numa espécie de limbo inconclusivo. José Luís Gavilanes Laso29 refere
27 D. Maria, acordando subitamente, quando viu aquela entrada no seu quarto levantou-se do leito tão
assustada e temerosa que mal se podia ter em si, e ao levantar-se nenhum vestido nem manto teve acordo nem tempo
para deitar sobre si, nem quem lho desse, porque as que estavam no quarto com ela não puderam aguentar-se com o
medo e temor. E querendo ela cobrir as suas vergonhosas partes, não encontrou nada à mão senão uma colcha branca
em que envolveu todo o seu corpo, assim se encostando a uma parede perto do leito. IDEM, ibidem, p. 109.
28 IDEM, ibidem, p. 110.
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29Cf. José Luís GAVILANES LASO, “Coyanza (Valência de D. Juan) y Portugal: dos
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qualidade de Defensor do Reino), por prisão e posterior morte do próprio, não havia
razões para que o então rei, D. João I, não resgatasse o corpo do infante de terras
castelhanas e lhe desse digna sepultura. Isso justificaria a tradição historiográfica
castelhana que o aponta como enterrado em Santo Estêvão de Salamanca31, local onde
faleceu em data incerta e onde poderá ter jazido durante alguns anos (sem que haja, no
entanto, qualquer documentação que o comprove, nem sequer vestígios ou memórias
da sua sepultura), mas também uma sepultura posterior, provavelmente em Odivelas,
como parece testemunhar o suporte de túmulo que aqui analisámos.
E justifica, ainda, a diferença de estilo que se verifica entre os suportes e as
restantes partes do túmulo em que estes se encontram inseridos, revelando uma
escultura mais evoluída, mais naturalista, enfim, um tratamento plástico mais de acordo
com a arte dos finais do século XIV e inícios do século XV.
Estas são questões que apresentamos apenas como propostas e que
permanecem como campo aberto de reflexão, aguardando novos dados. Não obstante,
perante as informações disponíveis e perante a nossa leitura da iconografia deste
elemento do túmulo, julgamos possível identificá-lo como tendo pertencido ao
desaparecido monumento funerário do infante D. João de Portugal, pois só com a
história de vida deste filho de D. Pedro e D. Inês de Castro, a sua leitura pode fazer
verdadeiramente sentido.
31 Cf. António Caetano de SOUSA, História Genealógica…, T. XI, liv. XIII, ed. 1946-1954, p.
373.
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monarca português é, só por si, muito significativo, sobretudo porque uma delas surge
associada à estátua de um bispo, como se com ela emparceirasse, ao que tudo indica.
Referimo-nos às duas estátuas românicas da Igreja de São Pedro de Rates
(um rei e um bispo), e à estátua truncada de D. Afonso Henriques (?) que,
alegadamente, terá pertencido à desaparecida ermida de São Miguel da Alcáçova de
Santarém2 e que é, actualmente, pertença do Museu Arqueológico do Carmo (Lisboa).
A ambas já nos referimos em capítulos anteriores, ao analisarmos a presença das
insígnias do poder real em diversas obras nacionais.
Impõe-se que comecemos a nossa análise pelas estátuas de Rates, uma vez que
se tratam dos exemplares mais antigos, datáveis, segundo Manuel L. Real3, da segunda
metade do século XII. Originalmente, as duas estátuas de vulto perfeito estavam
colocadas à entrada da capela onde se veneravam os restos mortais de São Pedro
Mártir, até que, em 1552, foram transferidas para a Catedral de Braga4.
São duas obras marcadas pela rudeza do talhe e pela economia de atributos,
esculpidas em granito e constituídas por duas partes cada. A parte superior,
correspondente ao tronco, concentra todos os elementos iconográficos, fisionómicos e
gestuais, enquanto que as partes inferiores, correspondentes às pernas das duas figuras,
são quase que simples blocos maciços e lisos (apenas com a sugestão dos pés), não
parecendo ter ocupado as atenções do escultor.
Os rostos das duas imagens caracterizam-se pelas fisionomias alongadas, com
pequenos olhos salientes, encimados pela curva das sobrancelhas (que, no caso do
bispo lhe confere uma expressão apreensiva), narizes triangulares e longos e bocas
pequenas, pouco ou nada expressivas. Emergem, neste contextos, as grandes orelhas,
algo despropositadas, fazendo lembrar aquilo que, alguns anos mais tarde, ainda vamos
Possidónio da Silva em finais do século XIX na antiga porta da Alcáçova de Santarém, pareceu
muito provável aos vários autores que escreveram sobre ela, que o seu lugar de origem fosse a
antiga ermida românica de São Miguel que, segundo Luís Montês Mattoso foi a primeira a ser
fundada pelo nosso primeiro monarca, pouco depois da reconquista da cidade. Cf. Inácio da
Piedade VASCONCELOS, História de Santarém Edificada…, Lisboa, 1740, parte I, p. 31; José
Possidónio Narciso da SILVA, “Explicação da estampa n.º 30”, Boletim de Architectura e Archeologia da
Real Associação dos Arqueólogos Portuguezes, tomo 2, 2.ª série, Lisboa, RAACAP, 1880, p. 162; Maria
Ângela BEIRANTE, Santarém Medieval, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1980, p. 95, e Mário
Jorge BARROCA, “12. D. Afonso Henriques”, Guimarães. Mil Anos a Construir Portugal, catálogo de
exposição, Guimarães, Museu Alberto Sampaio, 2000, p. 84.
3 Manuel LUÍS REAL, manuscrito inédito, amavelmente cedido pelo autor.
4 Gerhard GRAF, Portugal Roman, vol. 2. (Le Nord du Portugal), Yonne, Zodiaque, 1986, p.
88.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
5 Segundo Manuel Luís REAL, op. cit., inédito (apud. Gerad GRAF, op. cit., vol. 2, 1986, p.
89).
6 Manuel MONTEIRO, São Pedro de Rates, Porto, 1908, p. 56-57.
7 Gerhard GRAF, op. cit., 1986, p. 88.
8 IDEM, ibidem, p. 89.
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Estátua de um Rei (D. Afonso Henriques?). Séc. XII. Estátua de um Bispo (D. João Peculiar ?). Séc. XII.
Granito. Museu da Igreja de S. Pedro de Rates. Apud Granito. Museu da Igreja de S. Pedro de Rates. Apud
AAVV, Portugal A Formação de um País, p. 74. AAVV, Portugal A Formação de um País, p. 92.
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10 Sobre o gesto da mão sobre o peito, Cf. François GARNIER, op. cit., 1982, pp. 184-185.
11 José MATTOSO, “A realeza de Afonso Henriques”, op. cit., 2.ª ed., 1990, p. 224.
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12 D. João Peculiar, que esteve nada mais do que sete vezes em Roma em missões
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O rei e escuta os ensinamentos de O rei e dois bispos. Séc. XIV. Fuero Juzgo.
um bispo. Séc. XIV. Fuero Juzgo Biblioteca Nacional de Lisboa. Apud José
(tradução castelhana do código Mattoso, História de Portugal, vol. 2, p. 282.
visigótico). Biblioteca Nacional de
Lisboa. Apud José Mattoso, História de
Portugal, vol. 2, p. 283.
Mattoso considera altamente significativo, já que um representa o poder temporal e o outro o poder
espiritual (Cf. José MATTOSO, “1096-1325”, op. cit., vol. 2, 1992, pp. 282-283.
14 Cf. Carla Varela FERNANDES, “Escultura gótica”, op. cit., 2002, pp. 81-82 e IDEM,
usar essas mesmas insígnias e serem com elas representados neste tipo de “retrato de aparato” ou
iconografia do ministerium regis.
17 Como interpretou Mário Jorge BARROCA, “12. D. Afonso Henriques”, op. cit., 2000, p.
84.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Estátua de um monarca
(D. Afonso Henriques?)
Pormenor das mãos da estátua e da cruz
Porém, somos levados a defender, pela forma como o rei segura a cruz, que
sempre se terá tratado apenas de uma cruz e não o remate do Orbe ou Globus, ou
mesmo de um ceptro. Repare-se que a figura segura este objecto pelo braço inferior da
cruz, junto à intercepção com os braços horizontais. No caso das representações em
que os reis ou imperadores apresentam o Globus, a forma como seguram o objecto é
sempre diferente da que aqui vemos, sustentando-o pela base da esfera, sem nunca
segurar a cruz. Vejam-se exemplos como o Segundo Selo de Majestade de Henrique III
de Inglaterra, a estátua jacente de Eduardo II, ou o conhecido de retrato de Ricardo II
(Abadia de Westminster), entre tantos outros exemplos susceptíveis de menção, para
facilmente percebermos que era contra as normas do controlo iconográfico outra forma
18 Como interpretou José MATTOSO, “A Realeza de Afonso Henriques”, op. cit., 2ªed.,
1990, p. 224.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
de segurar o globo que não a que podemos ver nestes e noutros exemplos. Para além
do mais, não existem vestígios materiais do pretenso Globus no que nos é dado a
observar.
Molde da estátua
jacente de Eduardo
II de Inglaterra. (†
Segundo Grande Selo de Henrique III. 1259 – Catedral de 1327). National
Durham, MS 1.2 Reg.6a v. Portrait Galerery de
Apud Age of Chivalry…, p. 453. Londres. Apud Anne
McGee
Morganstern, Gothic
Tombs of Kinship…, p.
85.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
da pelo Islão, quer na criação de condições várias para a edificação de novos templos,
quer, ainda, na protecção concedida aos representantes da ordem espiritual.
Atrevemo-nos, no entanto, a levantar a hipótese de a presença da cruz, nas mãos
do pretenso D. Afonso Henriques, se poder relacionar com uma forma de evocação da
“adoração da Cruz”, cerimónia medieval que ocorria no Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra e constituía um ritual litúrgico que se processava numa sequência em que se
levava os reis vivos a venerar os reis mortos que aí se encontravam tumulados, bem
como a venerarem a Cruz, símbolo da realeza espiritual. Como refere Maria de Lurdes
Rosa19, seria para esta “adoração da cruz” “que serviam as orações acrescentadas talvez
nos séculos XIV e XV ao Ritual do Mosteiro, no exemplar que chegou até nós. Com
efeito, as orações de sufrágio pelos reis encontram-se aí juntamente com a “adoração da
Cruz”.
A mesma autora considera que este ritual deve ser enquadrado com outros
idênticos que existiram por toda a Europa medieval, nos grandes mosteiros e panteões
régios e principescos, sendo que a primeira grande construtora deste tipo de cerimónias
foi a abadia de Cluny que, por volta do ano mil, elaborou um cerimonial “ad regem
deduncendum”, o original de todos os restantes “Ordines” de acolhimento de
soberanos no mosteiro. À recepção do rei pelo abade, seguia-se a adoração da Cruz e
uma série de percursos simbólicos pela Abadia.
Ora, como evocação de um ritual que já se processaria à data de execução desta
estátua (1.ª metade do séc. XIII ?), ou, simplesmente como evocação da Cruz, como
símbolo do Mosteiro coimbrão ou, apenas, como símbolo da realeza divina, a sua
presença é perfeitamente coerente com uma iconografia pensada para este monarca.
Nesta imagem, o rei associa, em si, os atributos do poder temporal (coroa,
espada e manto) e um atributo do poder religioso, do qual está, igualmente, investido.
D. Afonso Henriques é apresentado como agente do plano divino, num período em
que a marcha para a centralização régia era já evidente, não havendo condições socio-
políticas para representações iconográficas idênticas à das duas estátuas de São Pedro
de Rates, claro manifesto de uma dualidade de poderes que, agora os chefes do poder
temporal pretendem, a todo o custo, diluir.
O empunhar da espada e a sua colocação sobre o peito e um dos ombros é
também observável em outras imagens do século XII, que representam monarcas de
19 Maria de Lurdes ROSA, “O corpo do chefe guerreiro...”, op. cit., 1996, pp. 117-118.
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outros reinos. É disso bom exemplo um selo do rei inglês Eduardo, o Confessor, onde se
representa o monarca entronizado, vestido com o manto e a segurar a espada em
semelhante posição à que vemos nesta estátua, enquanto que com a outra mão segura o
ceptro.
Selo de Eduardo o
Confessor.
Séc. XII. Society of
Antiquaries of
London.
Apud Paul Binski,
Westminster Abbey…,
p. 85.
582
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original para a realização das duas cópias. Ambas têm o braço esquerdo junto ao corpo,
enquanto que o direito se abre e com mão aponta para direita, provavelmente, num
gesto de indicação ou demonstração de algo, enfim, de alguma informação ou
acontecimento que hoje já não podemos averiguar.
A ladear ambas as figuras, encontra-se uma lança com estandarte, atributo que,
como vimos anteriormente, não aparece em mais nenhuma representação dos reis
portugueses da primeira dinastia.
Este último atributo deve ser convenientemente valorizado, na medida em que
em todas as representações dos nossos monarcas que actualmente conhecemos, o
elemento iconográfico mais destacado, para além da coroa, é sempre a espada. Motivo
pelo qual a presença deste estandarte não deixa de ser intrigante. José Mattoso entendeu
ser a expressão visual “do sentimento de vitória que se apoderou da corte portuguesa
depois da conquista de Silves, em 1189”20, manifestada através de uma insígnia
(estandarte da vitória) que se reporta à brilhante actuação nos campos de batalha. Os
estandartes revestem-se sempre de elevado valor, quer sejam os usados pelos exércitos
vencedores, quer sejam os estandartes tomados dos vencidos, prova irrefutável da
vitória.
O mesmo historiador já havia colocado em confronto a estátua dita de D.
Afonso Henriques do Mosteiro de Rates e a cópia do sinal de soberania de D. Sancho I
(do Livro de Doações), chamando a atenção para o facto de, na primeira, a espada alcançar
uma evidência notória, sendo esta substituída pelo estandarte na ponta de uma lança, na
segunda obra. Interroga-se então: “Quem sabe se ele queria assim afirmar que chegou
ainda mais longe do que o seu próprio pai, ao alcançar as portas de Sevilha, da fabulosa
Sevilha, e ao conquistar a cidade de Silves”. Chama ainda a atenção para o facto de esta
insígnia assumir um importante relevo entre o conjunto dos regalia recebidos por
Afonso VII, no decurso da sua coroação, já não como rei da Galiza, mas como
monarca de Leão e Castela, depois da morte de D. Urraca.
Não obstante o pouco valor artístico destas duas obras, elas constituem valiosos
documentos iconográficos para o entendimento da iconografia régia dos finais do
século XII e primeiros anos do século XIII. Aqui se nota a valorização dos símbolos
cristológicos (a grande cruz que encima o selo e as cruzes que rematam a coroa),
sublinhando o carácter cristão do rei e, claro, da monarquia portuguesa. Da mesma
20 Cf. José MATTOSO, “1096-1325”, op. cit., vol. II, 1992, p. 93.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
1 Sobre a evolução do príncipe feudal para o rei soberano, em França, Cf. Olivier
GUILLOT, Albert RIGAUDIÈRE e Yves SASSIER, Pouvoir et institutions dans la France Médiévale. 2.
Des temps féodaux aux temps de l’État, (1994), 3.ª ed., Paris, Armand Colin, 2003, pp. 107-138.
2 Cf. IDEM, ibidem, pp. 108-109.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
um tema que já foi amplamente tratado pela historiografia nacional e que, como tal,
abstemo-nos de desenvolver6.
Porém, se a documentação escrita pode ser discreta na aplicação destes
conceitos (tão caros à monarquia francesa), para nos indicar, de forma clara, o seu
entendimento e a sua aceitação, os actos da governação de alguns monarcas são disso
prova suficiente e, não deixa de ser curioso e muito interessante, que seja a iconografia
do poder real que dá verdadeiras mostras de estar imbuída dos conceitos de auctoritas,
postestas e maiestas, visíveis, na sua plenitude, durante os reinados de D. Afonso IV, D.
Pedro I e D. Fernando I.
Por outras palavras, a afirmação da soberania do rei é perfeitamente apreensível
na análise de certos documentos iconográficos, cuja execução foi directamente
ordenada pelos reis, ou mandados fazer por outros e a eles dirigidos, a partir do terceiro
quartel do século XIV, ainda que estes factores já sejam visíveis através das acções e da
documentação escrita de reinados anteriores.
Disso são prova perfeita, duas obras de impressionante complexidade
iconográfica, quando comparadas com outras dos reinados anteriores. Ao terem
chegado até nós em bom estado de conservação, permitindo assim a sua leitura, podem
ser consideradas obras fundamentais, constituindo, cada uma delas, um verdadeiro
unicum, ainda que acreditemos terem existido outras, que não sobreviveram à voragem
dos tempos. Ambas constituem testemunhos irrefutáveis de que o poder das imagens
era altamente valorizado como meio propagandístico de grande eficácia, a partir das
quais se difundem, junto de diferentes estratos sociais, as ideias políticas que emanam
da corte e do próprio rei.
Referimo-nos, em primeiro lugar, ao selo pendente pertencente a um
documento camarário de Lisboa, datado do reinado de D. Afonso IV (1352), muito
conhecido, mas nem por isso estudado sob o ponto de vista iconográfico7. O estudo
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
mais completo quanto à sua iconografia deve-se a Francisco Sengo8, como resultado de
um trabalho de âmbito curricular, não publicado e, por isso, pouco divulgado, no qual
são expressas algumas ideias fundamentais, às quais gostaríamos de acrescentar outros
dados importantes, através da sua análise detalhada, e até diferentes conclusões.
Em segundo lugar, não por importância histórica e artística uma vez que se trata
de uma obra maior da escultura gótica portuguesa, mas por ordem cronológica, o
túmulo de D. Fernando I, igualmente muito conhecido pela sua constante
reprodução em manuais de História e de História da Arte, mas praticamente “mudo”
para o público, no que se refere aos seus múltiplos significados, que entendemos serem
perceptíveis através do entendimento da sua iconografia e enquadramento iconológico,
bem como o seu real valor como obra de arte, que não hesitamos considerar ser do
mais destacado relevo no âmbito da escultura trecentista europeia.
Embora respeitantes a realidades diferentes e a reinados distintos, estas duas
obras têm algo em comum: elas são os únicos testemunhos visuais da aceitação
implícita da ideia de rei como chefe de todo o corpo social, inclusive, como chefe da
sua Igreja.
8 Francisco SENGO, Um Selo Medieval Português. Contributos para o seu estudo, trabalho
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Selo camarário de Lisboa. 1352. (Reinado de D. Afonso IV). Foto: IANTT (Luís Pavão).
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Por fim, o terceiro registo, mais amplo e mais rico em elementos iconográficos.
Da esquerda para a direita, podemos observar a figura mais destacada de toda a
composição pelas suas superiores dimensões: uma figura masculina, sedente sobre um
trono, vestida com trajos seculares, não muito longos (túnica e manto), deixando a
descoberto a anatomia dos braços, parte das pernas e os pés. Trata-se de uma figura
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
coroada que segura uma esfera, ou globo da soberania, com uma das mãos e, com a
outra, prepara-se para receber uma palma que lhe é entregue por uma segunda figura
masculina, tonsurada e genuflectida à sua frente (um clérigo)
De costas para esta última personagem encontra-se, de pé, um oficiante
religioso, paramentado com vestes episcopais, posicionado em frente a um altar, sobre
o qual se encontra o cálice eucarístico10. Sobre ele, dispõem-se, como que
dependuradas, duas simbólicas e muito estilizadas embarcações.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
afrontadas (muito provavelmente dois corvos), constitui o elemento não humano mais
destacado do conjunto12.
Sob o túmulo-relicário, duas pequenas figuras ajoelhadas e orantes, olham na
direcção do altar e da celebração da Eucaristia. Por fim, uma personagem isolada, atrás
do túmulo relicário, está de pé e segura, com as duas mãos, o que parece representar
um círio (diferente, pela sua fisionomia, dos atributos que identificamos nesta
composição como representações de palmas).
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
do soberano português – o Rei Afonso I – e do Bispo de Lisboa. Já Francisco Sengo deixou bem
argumentado no seu estudo que, o soberano em causa, seria D. Afonso IV, proposta que
corroboramos, dada a cronologia (embora não fosse impeditiva a existência de uma representação
memorial de D. Afonso Henriques, sempre que o tema é S. Vicente) e, ainda, com maior
significado, todo o ambiente político-religioso que se viveu neste reinado em torno da Sé de Lisboa,
protagonizado pelo próprio monarca, bem como a sua especial devoção para com o mártir S.
Vicente.
14 Sobre o significado simbólico das embarcações na iconografia de São Vicente já muito se
tem escrito, pelo que, simplesmente, optamos por destacar as conclusões de Lídia FERNANDES,
“O Culto Vicentino...”, op. cit., 1995, p. 227, por resumirem os aspectos mais importantes deste
atributo, ou signo: “Num território onde o litoral marítimo sempre exerceu uma profunda
influência nos povos, não será de estranhar que a barca, como signo de aventura, de alargamento de
fronteiras e de vitória sobre o elemento adverso, passasse a ser adoptado por toda a população.
Mais ainda, quando a cidade mais importante do futuro reino, prestes a ser conquistada, possuía
uma tradição de construção de embarcações que recuava a muitos séculos atrás, e onde grande
parte da população se dedicava a actividades piscatórias.
A adopção da barca como emblemática municipal comprova desta forma a vontade da
cidade de Lisboa e, afinal, de todo o território, em colocar o destino do reino sob a benção e sob o
poder de um santo que tinha chegado à cidade numa barca, numa das tantas barcas que o povo
fazia, e que constituía um dos elementos que asseguraria a conquista”.
15 Cf. Aires de NASCIMENTO e Saúl A. GOMES, op. cit., 1998, p. 10
16 Cf. Catálogo da Exposição Iconográfica e Bibliográfica comemorativa do VIII Centenário da chegada
das relíquias de S. Vicente a Lisboa, Lisboa, 1973, n.º 153. Com múltiplos significados simbólicos, o
corvo esteve sempre presente na iconografia de São Vicente, normalmente em número de dois.
Duarte GALVÃO, Cronica del Rey Dom Affonsso Hamrriques primeiro Rey desdes regnos de Portugal, ed.
Cascais, Conde de Castro Guimarães, 1918, acentua o papel do corvo na defesa do corpo do santo.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
santo martirizado até à costa, após a derradeira fase do martírio e morte, e até Lisboa,
durante a traslatio do Cabo de São Vicente.
O relicário17 é semelhante, na sua
forma, a um túmulo, como era comum na
época e como atestam vários exemplos
iconográficos, de entre os quais podemos
referir o de um capitel da cripta românica
da abacial de Saint-Denis de Paris, onde
um grupo de religiosos, em cortejo solene,
transportam um relicário deste tipo, ou,
ainda, o fragmento do túmulo-relicário de
São Bonifácio (?) na Igreja de All Saints
de Brixworth, Northamptonshire
(Inglaterra), datado de 133018, ou ainda, o
túmulo-relicário de São Tomás Beckett,
Fragmento do túmulo-relicário de S. Bonifácio (?).
Igreja de All Saints de Brixworth, Northamptonshire representado num vitral da capela da
(Inglaterra). 1330. Apud Age of Chivalry…, p. 210
Trindade na Catedral de Canterbury.
17 O valor, forma e função dos relicários são temas que têm vindo a suscitar grande
interesse por parte dos historiadores, existindo já uma ampla bibliografia, especialmente de origem
alemã e francesa. Citem-se os estudos de Alain DIERKENS, “Reliques et reliquaires, sources
d’histoire du Moyen Âge”, Sainteté et Martyre dans les Religions du Livre, (ed. J. MArx), Bruxelas, 1989,
pp. 47-56 e “Du bom (et du mauvais)…”, op. cit, 1999, pp. 239-251.
18 Este relicário de pedra, aberto em 1809, onde se encontrou fragmentos de ossos e um
fragmento de papel que se desintegrou antes de poder ser lido, poderá ter sido destinado a guardar
as relíquias de São Bonifácio, santo patrono de uma guilda de Brixworth, Northamptanshire. O
santo beneficiava de uma festa anual, com vigília e feira de três dias. Sobre este relicário Cf. a ficha
de Catálogo n.º 25 de Jonathan ALEXANDER e Paul BINSKI, ed., op. cit., 1987 (com outra
bibliografia citada).
19 Dos séculos XVII e XVIII várias sãos as descrições do túmulo do mártir, encontrado e
re-encontrado na capela-mor da Sé, embora os autores dos documentos sejam parcos nas
observações sobre a sua morfologia, referindo apenas que era de pedra, com cintas de prata,
possuía colunas e guardava-se dentro de uma caixão de madeira. Sobre este assunto veja-se o
apanhado do conjunto documental em Dagoberto MARKL, O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e
os Documentos, Lisboa, Caminho, 1987, pp. 231-235.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
20 Cf. Alain DIERKENS, “Du bom (et du mauvais)…” , op. cit., 1999, p. 243.
21 Cf. Paul BINSKY, op. cit., 1995, p. 94.
22 Cf. V. L. KENNEDY, “The moment of consecration and the elevation of the Host”,
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Talvez seja a primeira vez que o túmulo-relicário do santo foi representado num
selo, porquanto os exemplos anteriores conhecidos, relativos à iconografia vicentina,
mostram o corpo do santo deitado e não protegido por qualquer arca para relíquias.
Desta situação é representativo um selo pendente, de cor vermelha, em “dupla ogiva”
que autenticava um documento de S. Vicente de Fora, e que se conserva na Casa Forte
do ANTT, datado da era de 1283 (1245 – reinado de D. Sancho II). Apresenta a
figuração de um corpo nu, deitado de lado, com um corvo sobre os pés e, a encimar
esta composição, dois bustos, um de homem e outro de mulher. Na interpretação de
Luís Gonzaga de Lencastre e Távora (Marquês de Abrantes), poderá da representação
de D. Afonso Henriques e D. Teresa “pairando”sobre o corpo do mártir São Vicente,
numa homenagem dos Regrantes de Santo Agostinho ao fundador deste cenóbio, e
responsável pela recuperação das relíquias do santo mártir de Saragoça23.
Ora, no selo que agora no ocupa, a presença das relíquias do santo não se faz
pela representação do seu corpo, como julgou ver F. Sengo, numa hipotética figura
ajoelhada sob o altar. A verdade é que não se trata de uma figura, mas, simplesmente,
das pernas do pequeno altar e dos pregueados da toalha que o cobre. O corpo
encontra-se, por isso, oculto, resguardado pela arca sepulcral destinada às relíquias24,
23 Cf. Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, p.152 (nº 154), e ainda, IDEM, Manual de
respostas que a Igreja conseguiu dar à necessidade de protecção dessas valiosas relíquias, face ao
crescente fenómeno das peregrinações, desejáveis enquanto intensa manifestação de fé e igualmente
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
rentável negócio para os seus detentores, mas também, face aos constantes e muito conhecidos
episódios de roubo de relíquias que ocorreram um pouco por toda a Cristandade.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
esse poder com os arcebispos e bispos, representando, tal como eles, a supremacia do
poder espiritual na hierarquia eclesiástica.
O Globo da Soberania constitui, juntamente com a coroa, o manto real e o
trono, um conjunto de atributos próprio do governo monárquico, alguns dos quais
pertencentes ao grupo das regaliae. O Globo é, porém, a única insígnia do poder régio
que o monarca segura com mão, pois não nos parece que aqui se possa ver, como
segundo atributo sustentado pela outra mão do rei, o ceptro, numa clara transposição
de modelos franceses, como pretendeu ver F. Sengo. O objecto que poderia ser
identificado como tal, tratar-se-á, sim, por analogias formais com outros objectos
idênticos no mesmo selo, de uma palma identificadora de martírio, agora maior e mais
destacada do que as restantes que se podem ver nas mãos de outras personagens e, por
isso, em sintonia com a superioridade dimensional da figura do rei, e que lhe é entregue
pelas mãos de um religioso, colocado em posição subalterna. Tratando-se de uma
cerimónia relacionada com São Vicente Mártir, faz todo o sentido que as palmas como
símbolo de martírio estivessem abundantemente presentes no desenrolar dos
acontecimentos.
Aliás, o ceptro, ou vara da justiça, não poderia ser entregue ao rei, no âmbito de
uma cerimónia e num “retrato” de aparato, por uma simples figura de religioso, que
nem sequer pode ser identificado como um bispo. O ceptro, como elemento
identificativo do poder e da missão do soberano, a ser representado aqui, estaria
implicitamente nas mãos do rei, sem qualquer interferência de outras personagens.
Entronizado, recebendo a palma do martírio e presidindo a toda a cerimónia, à
qualidade de soberano na pessoa de D. Afonso IV, junta-se a de um eclesiástico, ou
seja, unem-se as duas funções no mesmo corpo político do rei. D. Afonso IV é, a partir
das ilações susceptíveis de retirar desta iconografia, o principal intermediário entre Deus
e o seu povo, bem como o chefe da Igreja do seu reino, aquele que patrocina e conduz
cerimónias de carácter religioso do mais elevado relevo. Como tal, a sua representação
não podia deixar de se revestir de todos os aspectos que nos fazem reconhecer a sua
auctoritas, como cabeça tutelar, condutora e simultaneamente dinamizadora da
cerimónia, bem como a maiestas, decalcada ao nível da representação das imagens
religiosas da Majestade de Cristo ou, e talvez neste caso, de forma mais precisa, das
representações do poder episcopal ou arquiepiscopal (o bispo ou o arcebispo
600
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
(não só na Sé de Lisboa mas também noutros templos), São Veríssimo, Sta. Máxima e
Sta. Júlia no Mosteiro de Santos), São Félix, Sto. Adrião e Sta. Natália (no Mosteiro de
Chelas, entre outros.
A justificação para a aceitação e afirmação de São Vicente, um santo do Sul
hispânico, como padroeiro de Lisboa, encontram os referidos historiadores no facto de
não ser apenas um santo tradicional, mas que também associava a revivescência do seu
culto junto das elites do poder, em especial da corte francesa, passando também a ser
culto das cortes hispânicas, como poderá ser prova a existência do Missal de Mateus,
trazido de Moissac para Braga, onde é dado particular destaque a São Vicente no
conjunto do santoral. A alteração dos cultos de Lisboa neste período deverá, por isso,
ser entendida no quadro da emigração franca para o ocidente peninsular e consequente
alteração do meio dirigente, a partir da corte e da hierarquia eclesiástica, logo após a
conquista de Lisboa30.
O que é certo é que, entre os mártires peninsulares, o diácono valenciano São
Vicente, assumiu particular destaque, e a sua fama rapidamente se espalhou por toda a
Cristandade, sobretudo no Ocidente, mas não só. Prova cabal do que afirmamos,
baseados nos estudos e conclusões de outros autores a este respeito, é o facto de Santo
Agostinho lhe ter dedicado “nada menos de cinco sermões”31.
A presença das relíquias vicentinas representava, no contexto da Reconquista de
Lisboa, uma forma de “patrocínio” celestial que importava argumentar, legitimando e
impondo a presença das autoridades cristãs do poder temporal e do poder espiritual na
cidade, como bem testemunha a construção do Mosteiro de São Vicente de Fora, ou a
presença muito precoce da iconografia vicentina em selos, quer do Mosteiro de São
Vicente, quer em documentos do concelho de Lisboa, permitindo detectar uma
mensagem simbólico-religiosa que tende a relacionar a cidade de Lisboa com o Além32.
O santo actua, assim, como estandarte da trama política da formação da
nacionalidade, como símbolo da luta e da vitória contra os infiéis. “Ele é o santo que dá
bênção à luta. É ele quem comanda as vitórias e as derrotas, quem pauta os passos da
guerra e quem disciplina depois a tormenta. D. Afonso Henriques funciona nesta acção
como o elemento cumpridor do destino divino. As suas decisões não são, em última
29Cf. Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Relgio regis…”, op. cit., 2001, p. 99.
30Augusto A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, pp. 9-10. Cf.
também Lídia FERNANDES, “O culto vicentino...”, op. cit., 1995, p. 223.
31 Cónego José FACÃO, op. cit., 1974, p. 6.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
instância, suas, antes acata as inspirações e ditames superiores que o irão conduzir à
vitória”33.
A exortação à veneração das relíquias do santo era feita não apenas em Lisboa,
mas também noutras paróquias portuguesas, como induz o texto do sínodo de Lisboa
de 124034. Assim, se o mártir de Saragoça era, essencialmente, um santo da urbe
lisboeta, tornou-se, de alguma forma, um santo nacional. Mas o que o diferencia de
tantos outros, cujas relíquias se veneravam em Portugal no século XII, era o facto de
ter como principais devotos e seus defensores, a nobreza, encabeçada pelo próprio rei,
D. Afonso Henriques, e notáveis figuras da época como são exemplos D. Gualdim Pais
e D. Gonçalo Egas de Lanhoso, entre outros. De resto, a estreita ligação entre a família
real portuguesa e o culto vicentino não mais deixou de existir durante a primeira
dinastia, tornando-se especialmente visível durante o reinado de D. Afonso IV, como
provam as intervenções de reconstrução que este monarca patrocinou na Sé de Lisboa,
e à escolha da iconografia vicentina para decorar a face maior do túmulo que
encomendou para si.
O santo mártir, cujos restos mortais repousavam na capela-mor de Lisboa, era
invocado não apenas como poderoso curandeiro de doenças do foro neurológico, mas
também para ajudar os infortunados a recuperar bens perdidos ou roubados ou para o
salvamento de náufragos35. O êxito da sua intercessão era celebrado de maneira festiva
e altamente participativa por todos, beneficiados ou não.
Ora, no caso da composição iconográfica aqui em análise, vários são os indícios de que
se trata de uma cerimónia de agradecimento a São Vicente pela sua protecção e
milagres36, e, em última instância, uma cerimónia que visava a exaltação do santo na sua
relação com a monarquia portuguesa. Aliás, a forma como se organizam as muitas
32 Augusto A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, pp. 11-12.
33 Lídia FERNANDES, “O culto vicentino...”, op. cit., 1995, pp. 223-224.
34 Augusto A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, pp. 11-12, p. 13.
35 Como refere André VAUCHEZ, op. cit., ed. 1985, p. 122, a santidade era verificada pela
sua eficácia. Se para os poderosos, a eficácia de um santo era verificada através da sua intervenção
em acções que poderiam mudar o curso da História (ex. das aparições de Cristo, da Virgem Maria e
de santos nos momentos de antecedem uma grande batalha), já para os simples fiéis, os milagres
esperados eram especialmente curas: “restituir la paz del espíritu a los poseídos por el demonio,
hacer caminar a los cojos y devolver la vista a los ciegos representaban entonces los criterios más
comunes de la santidad”.
36 A tradição de uma culto e de consequente pedido de protecção para cura de doeças e
outros favores não deixa de ser mencionado por D. Rodrigo da Cunha, ao mencionar ao facto das
relíquias terem sido mandadas colocar na capela-mor da igreja logo em 1173, no altar principal, para
“que pudesse ser tocada dos enfermos, e fieis que ellas acediam”. op. cit., fl. 96.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
37 Uma primeira colectânea inserta num Leendáruo Alcobacense (Lisboa, B.N., Alc. 420) –
publicada por Fei António Brandão (Monarquia Lusitana, 3.ª parte, Lisboa, 1632, fls. 296-300), bem
como pelo editor dos Portugaliae Monumenta Historica, e um segundo, correspondendo a descoberta
recente, em caderno isolado, na Biblioteca Nacional de Lisboa (Cx 21/X-3-14, n.º 21), inédita até à
data de publicação deste estudo (1988).
38 Aires A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, p. 14.
604
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
39 IDEM ibidem, p. 16
40 IDEM ibidem, p. 17
41 Cf. Francesca ESPAÑOL, op. cit., 2002, p. 105.
42 Cf. Paul BINSKI, Medieval Death. Ritual and Representation, Ithaca/Nova York, Cornell
University Press, 1996, p.16. Fazendo uso dos argumentos de Jean-Claude SCHMITT, “Le relique
et les images”, op. cit., 1999, p. 149, a legitimidade das relíquias dos santos reside, em última análise,
605
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Vida de Eduardo O
Confessor.
“Peregrinação ao
Túmulo de Eduardo
O confessor”.
Séc. XIII.
Westminster,
Londres.
Apud Paul Binski,
Westminster Abbey…,
p. 60.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
das palavras de Alain Dierkens44, o estatuto do relicário merece, pois, uma atenção
específica como receptáculo, como objecto sumptuoso, beneficiando do contacto
prolongado com as relíquias e, por isso, participando da virtus e da potestas das mesmas.
Logo, tocar, ou na impossibilidade de o fazer, estar o mais perto possível do relicário
tinha, para os fiéis, um valor central nas esperanças colocadas em torno de curas
607
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
milagrosas, pois o objecto tangível adquire valor e eficácia de substituição, tal como as
imagens dos santos substituem a presença real dos santos ou mesmo das suas relíquias,
conduzindo-se a elas preces, agradecimentos e castigos, como se de seres reais se
tratassem45.
Já as duas figuras do primeiro registo da composição, que se posicionam de
frente para um conjunto de fiéis, a eles se dirigindo ou simplesmente assumindo o papel
de protagonistas da cena, poderão relacionar-se com o papel desempenhado pelos
familiares ou amigos próximos do beneficiado, explicando a gravidade da enfermidade
ou problema, e exortando à participação directa ou através da oração, como se percebe
pelos gestos das mãos de todos aqueles que escutam as palavras dos dois oradores.
Todo o conjunto das cenas é marcado pela solenidade e ritualização dos gestos,
onde os símbolos religiosos assumem particular destaque (dois corvos, duas barcas,
palmas de martírio, altar e cálice eucarístico), sendo a condução do culto exercida por
uma autoridade secular com poderes religiosos – o rei, D. Afonso IV -, e por uma
autoridade religiosa – o bispo oficiante. “Fácil é reconhecer nestas expressões uma
forma elaborada por parte da autoridade que assume a condução do culto e pouco
deixa à espontaneidade do momento ou do indivíduo. O povo, esse está em toda aquela
multidão de devotos que cerca o santo e acompanha interessada a procissão dos
necessitados que acodem a pedir auxilio ou vêm testemunhar a assistência recebida em
situações aflitivas, quer em terra quer no mar”46.
A verdade é que, se a iconografia deste selo se referisse a uma cerimónia de re-
consagração de um novo altar dedicado a São Vicente, na Sé de Lisboa, certamente, tal
como acontece noutros muitos exemplos, verificaríamos a existência de uma procissão
solene, em que o túmulo-relicário seria transportado com destino ao novo altar, sendo
este um dos passos de maior relevo na traslatio, situação que aqui não se verifica. Pelo
contrário, todas as cenas, anteriormente descritas se relacionam, claramente, com uma
cerimónia destinada à obtenção de ajuda por intervenção do santo, cenas estas
comprometidas com as descrições que são feitas na colectânea de milagres de São
Vicente, da Biblioteca Nacional, tal como tivemos oportunidade de expor.
O facto de toda a cerimónia ser presidida pela figura do rei, não significa, quanto
a nós, que estejamos necessariamente na presença da cura, ou agradecimento por uma
608
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
cura, de alguma personagem específica e de elevado relevo social. Note-se que nenhum
protaganismo especial é conferido às figuras que se encontram em contacto mais
estreito com o relicário. Nas suas reduzidas dimensões, elas são, apenas, os simples
motivos que desencadeiam e justificam uma mensagem de maior alcance
propagandístico.
O que interessou aqui relembrar, através de uma memória material, foi o valioso
significado, religioso e político, do culto de São Vicente nestes anos, na sua intrínseca
relação com monarca D. Afonso IV, coincidente com cronologias em que vários
sismos provocaram a derrocada de partes importantes do edifício da Sé e a sua
consequente reconstrução, sob o patrocínio e elevado empenho do rei. Ou seja, faz-se a
exaltação da relação entre a monarquia portuguesa e o culto vicentino, usando o melhor
dos temas – a capacidade das relíquias do santo intervirem na ordem natural, através do
poder taumaturgico – e colocando a figura do soberano em evidência, como rector eclesiae
e como rex et sacerdos, aparecendo, ele, como o principal interveniente, como eixo de
todo o acontecimento.
Potenciando o valor de São Vicente como santo nacional, protector e
taumatúrgo, D. Afonso IV rememora aqui, tal como no seu papel como construtor da
Sé de Lisboa, edifício onde estas cenas decorrem, acções e valores inerentes à pessoa de
D. Afonso Henriques, constituindo, este último, uma memória de grande significado
nacional.
Como tivemos oportunidade de argumentar a propósito da escolha da Sé de
Lisboa por D. Afonso IV para seu locus sepulcralis, o rei, na importância que concede a
este edifício da sua capital e o amor, reverência e devoção que demonstra para com São
Vicente, associando a tudo isto a propaganda que faz dos seus próprios méritos como
guerreiro, dá claros sinais, quanto a nós, de que se vê a si próprio como um digno
sucessor de D. Afonso Henriques, re-memorizando os seus feitos e as suas devoções,
demonstrando-o através de gestos, de objectos e até de imagens.
A iconografia deste selo é, pois, uma iconografia de propaganda régia, onde são
colocados em destaque os poderes intervencionistas e participativos do rei na esfera do
sagrado e a sua identificação com o modelo de herói nacional proposto pela imagem,
algo mitificada, do primeiro rei dos portugueses. Mas também uma iconografia
celebrativa, que exalta as qualidades e poderes do santo, bem como doutrinária,
609
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
enquanto mensagem que incide sobre o poder e valor da fé, capaz de produzir milagres,
em torno de um santo tornado nacional.
Perante obras com esta, podemos compreender, com alguma facilidade, como,
ao tempo de D. Afonso IV, conceitos como auctoritas, potestas e maiestas são devidamente
conotados com a figura do rei, senhor e soberano, mesmo que este não tenha sido
ungido. Ele é rex gratia Dei, chefe máximo do corpo social do seu reino e, inclusive,
chefe e protector da Igreja nacional.
610
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
1 Sobre o túmulo do rei D. Fernando I, embora a historiografia não seja muito ampla e
desenvolvida relativamente à sua iconografia e significados simbólicos, reuniu o interesse de outros
investigadores no que diz respeito a alguns aspectos, pelos que devem ser aqui mencionados:
Almeida GARRET, op. cit., cap. XLII, 1848; J. Possidónio da SILVA, “Crónica”, Boletim da Real
Associação dos Arcitectos Civis e Archeólogos Portuguezes, 2ª série, n.º6, Lisboa, RAACAP, 1875, p. 96;
IDEM, “Túmulo d’El-Rei D. Fernando I de Portugal”, op. cit., 1875, p. 122; J. M. Cordeiro de
SOUSA, Inscrições Portuguesas do Museu do Carmo, 2ª ed., Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade,
1936, p. 23; Diogo de MACEDO, op. cit., 1940; Ramalho Ortigão, op. cit., 1896, pp. 78-8; Francisco
Nogueira de BRITO, op. cit., 1929, p. 40; Reinaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, p. 30; IDEM,
op. cit., vol. I, s/d, p. 276; Pedro DIAS, op. cit., vol. IV, 1986, pp. 124-125; Vítor SERRÃO, Santarém,
Lisboa, Presença, 1990, p. 142. O estudo mais completo deve-se a Gerard PRADALIÉ, op. cit, 2ªed.,
1992, pp. 108-116 e, posteriormente, a Mário Jorge BARROCA, op. cit, 2000, pp. 1901-1913, que, a
propósito da legenda epigráfica gravada no sarcófago, expõe, de forma desenvolvida, todas as
questões em torno da autoria da encomenda, da trasladação do corpo de D. Fernando de Lisboa
para Santarém e do artista responsável pela execução do monumento funerário. Veja-se, ainda,
Carla Varela FERNANDES, “Vida, Fama e Morte…”, op. cit. (no prelo).
2 Carla Varela FERNANDES, “Vida, Morte e Fama...”, op. cit. (no prelo).
3 Cf. Paulo PEREIRA, Enigmas. Lugares Mágicos de Portugal. Arquitecturas Sagradas, vol. II,
611
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
4 Cf. Maria José GOULÃO, “Figuras do Além. A escultura e a tumulária”, História da Arte
Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, p. 167.
612
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
No topo da tampa, numa altura não visível para quem não observa a obra de
uma perspectiva superior, mas com o claro objectivo de afirmar que quem aí jaz é uma
personagem régia, estão lavrados, em baixo-relevo, uma sequência vertical e alinhada de
grandes escudos com as armas de Portugal.
Nas secções laterais da tampa voltam a ser relevados escudos com as armas do
Reino, mas agora envolvidos por grandes molduras circulares, dentro das quais se
inserem finas molduras lobulares, com decoração vegetalista.
613
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Na secção oposta à
cabeceira da tampa, surge o
mesmo tema, com grande
destaque e solenidade, dentro de
um medalhão composto por oito
lóbulos radiantes,5 sendo agora
apresentado por dois anjos
tenentes, genuflectidos, vestidos
com longas e graciosas túnicas,
Face menor da tampa, correspondente aos pés do túmulo. de asas erguidas e segurando a
Foto: CVF.
moldura com ambas as mãos. A
rematar este escudo, vê-se uma
614
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
coroa, numa clara valorização deste elemento heráldico, definidor da linhagem paterna
de D. Fernando, aquela que lhe confere ao direito ao trono. Os escudos de Portugal
são, por isso, colocados na parte mais alta (porque mais importante) do sarcófago,
repetindo-se por quatro faces (superior, faces longas e face correspondente aos pés).
Refira-se que a tipologia desta coroa em muito se assemelha às que vemos
representadas em alguns tipos de moedas cunhadas no reinado de D. Fernando, quer
sejam os dinheiros, em que a coroa figura sozinha, quer nos torneses e nas barbudas: nas
primeiras, a cingir o cabelo do rei, e a que já nos referimos em capítulo anterior e, nas
segundas, a rematar o elmo com que D. Fernando cobre a cabeça.
Nas faces longas, a divisão entre os grandes escudos é feita por pequenas
molduras, também circulares, mas que, em vez de decoração heráldica, apresentam
bustos de diversas figuras. Vejamos, pois, a sua identificação.
Numa das faces, ao centro, encontra-se o busto de Cristo, em posição frontal,
facilmente identificável através do nimbo cruciforme. A ladeá-lo, à direita, o busto de
São Pedro e, à esquerda, o de São Paulo, ambos virando o olhar para Cristo, e ambos
identificáveis pelas suas fisionomias habituais na arte cristã medieval, não obstante o
facto de não possuírem quaisquer outros atributos.
615
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Busto de um homem com a cabeça Busto de D. Fernando I. Busto de um homem com turbante. Retrato
tonsurada. Foto: CVF do escultor que lavrou o túmulo? Retrato
Foto: CVF de um mouro ou de um judeu?
Foto: CVF
616
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
6 Hipótese que pareceu provável a Gerárd PRADALIÉ, op. cit., 2ªed., 1992, p. 108.
7 “Acredito que estamos perante o mestre canteiro que, há exactamente 649 anos, terá
talhado na dura rocha a última morada de Lopo Fernandes Pacheco”. Cf. F. E. Rodrigues
FERREIRA, “Busto do presumível canteiro do túmulo de Lopo Fernandes Pacheco”, Olisipo,
Boletim do Grupo “Amigos de Lisboa”, 2.ª série, n.º 7, Lisboa, Amigos de Lisboa, Dezembro de 1998, p.
79.
617
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
escultor, constitui apenas uma das hipóteses que gostaríamos de expor para reflexão,
sem que tenhamos uma opinião definitiva sobre ela, ou sobre outras igualmente
possíveis.
Na parte inferior das secções da tampa foi esculpido o epitáfio9 do rei, a
posteriori, segundo Mário Jorge Barroca. Julgamos que este é o tipo de elementos que
não constava no túmulo à data do segundo testamento do rei, podendo ser englobado
entre as obras a que D. Fernando destina uma verba, no testamento de 1383, pera
repairerem os ornamentos e porem outros quando comprir e mester for10...
A arca funerária também apresenta escudos com heráldica, constituindo
elementos decorativos de grande destaque, mas, desta vez, as armas de Portugal dão
lugar à heráldica da linhagem materna de D. Fernando, isto é, aos escudos dos Manuéis
(de D. Constança Manuel).
PRADALIÉ, op. cit., 2ªed., 1992, p. 121, nota 52 e Mário BARROCA, ibidem, p. 1910.
618
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Reafirme-se, tal como outros autores já o fizeram, que esta é apenas uma das
originalidades deste túmulo que, de forma totalmente inédita, confere uma importância
desmesurada à simbologia heráldica que evoca a mãe do soberano, algo que não
acontece em nenhum túmulo de outro monarca português, e que, acreditamos,
contribui significativamente para que percebamos a ingerência de D. Fernando neste
programa iconográfico.
À maneira do que seu pai já havia feito nos túmulos que mandou lavrar para si e
para D. Inês de Castro, também D. Fernando deixou que as marcas do “indivíduo”
transparecessem, pondo a descoberto os seus sentimentos mais inquietantes, fazendo
desta obra um documento-testemunho das suas convicções e desejos: só D. Constança
havia sido mulher legítima de D. Pedro I e D. Inês sua barregã, e nenhum dos filhos
fora daquele casamento poderiam ser considerados legítimos. Sublinhava, assim, o que
havia afirmado, de maneira tão clara, no seu testamento.
Foto:
José Pessoa/DDF/IPM
619
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
620
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Um bispo e um cardeal.
Fotos: CVF
Fotos: CVF
Duas figuras
de religiosos.
Molduras da
arca de
tumular de D.
Fernando
Fotos: CVF
621
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
622
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Por isso, eles são, em nossa opinião, representações que dão corpo à imagem da
sociedade tardo-medieval portuguesa como um todo, comum, de resto, às sociedades
de outros países cristãos da mesma época. Lamentavelmente, muitas destas figuras
encontram-se danificadas, umas com perda parcial de matéria e outras já quase
imperceptíveis.
Nas faces internas mais exteriores de todas as molduras, vemos uma espécie de
frisos ou bandas, preenchidas com minúsculas rosetas, dispostas sequencialmente, e
que, sempre que atingem o vértice de um lóbulo, transformam-se em pequenos rostos
humanos ou zoomórficos. Esta sequência de rosetas é semelhante à que também
decora o rebordo da tampa, onde se alternam com outras flores de diferente recorte.
Os lóbulos inferiores, bem como todos os espaços vazios que ladeiam a
totalidade das molduras (as circulares da tampa, ou as polilobadas da arca), foram
preenchidos, maioritariamente, com figuras pertencentes a um universo marginal,
normalmente fantástico, mas também ao mundo real, como teremos oportunidades de
melhor especificar e desenvolver adiante.
A leitura iconográfica que propomos para este túmulo inicia-se na tampa do
túmulo, onde, naturalmente, se dispõem as personagens mais importantes, constituindo
os eixos centrais e de ligação com os restantes elementos.
A figura de D. Fernando consta, como já vimos, num dos lados do túmulo,
ladeado por dois outros homens, fazendo-lhes correspondência directa, do outro lado,
as figuras de Cristo, ladeado por São Pedro e São Paulo, os dois pilares da Igreja.
Esta representação do rei simboliza, materialmente, o representante secular de
Deus sobre a terra, o monarca que recebe a sua linhagem marcada pelo selo divino e
que mantém uma relação especial com a divindade, um “ministro de Deus”. Ele é o
verdadeiro chefe do seu reino, implicando a total obediência dos seus súbditos, isto é,
da grande “massa social”, de cristãos e minorias religiosas, constituintes do corpo social
do reino, sob a protecção e controlo do rei. O rei é, como temos vindo sublinhar, o
chefe por excelência, inclusive, a cabeça que comanda todo o corpo social.
A representação de Cristo, na sua relação com a imagem de D. Fernando, vem
lembrar que ele é o Rei de todos os Reis, aquele que verdadeiramente confere poderes
sagrados aos soberanos da terra e ao papa, ladeado por S. Pedro e S. Paulo, aos quais se
juntam, fora das molduras, as figuras do Leão e da Águia e dos dois anjos, sublinhando a
623
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
11 Cf. Carla Serapicos SILVÉRIO, op. cit., 2004, p. 49. Veja-se, ainda, a este respeito A.
GUREVITCH, As Categorias da Cultura Medieval, Lisboa, Caminho, 1990, pp. 71-77.
12 Veja-se cap. 1.1.4 da I Parte.
13 Sobre o conceito de “espada espiritual”, personificada nos bispos de cada reino, e de
“espada temporal, personificada nos reis cristãos, Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., 1999,
p.11, refere “De servicio a la espada espiritual, puesto que, quien asume la espada temporal, ejerce
um poder de orientación, sugerencia o estímulo ante el Ministerio de Dios – el obispo – y como
prueba de la honra a sua Iglesia. De igual modo, el acto de servicio a Dios deberá inducirle a
prometer, guardar e hacer guardar sus mandamientos; como los reyes bíblicos que en el pasado
aplacaron la ira de Yavé, destruyeron la idolatría y acompañaron su acción el levantamiento del
Templo: Salomón y Josías”.
624
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
duplo poder, temporal e espiritual, definido no Decreto de Graciano (1120-1140), uma das
obras mais divulgadas no Ocidente medieval e considerada doutrina oficial, ou fonte,
por excelência, do direito canónico. Nas muitas cópias dos séculos XIII e XIV do
Decretum Gratiani existe, sempre, pelo menos uma iluminura onde se representa Cristo
em majestade a conferir a investidura do seu poder ao papa e ao imperador14. Estes
conceitos foram sublinhados alguns anos mais tarde na bula Una Sanctam do papa
Bonifácio VIII, expedida em 1302, e destinada a esclarecer o papel regulador do papa,
sucessor de S. Pedro e vigário de Cristo. Para Bonifácio VIII a cabeça da Igreja é Cristo,
e o corpo da Igreja é um só e indivisível, tutelado pelo Papa. Inspirando-se nos
Evangelhos, argumenta: “esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da
Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a igreja enquanto
que a primeira deve ser usada pela igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o
temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada
deve estar subordinada à outra espada; a autoridade deve ser submissa à autoridade espiritual”15.
De acordo com a teologia política da época, a realeza apresentava-se como uma
instituição de origem divina, possuidora de uma inquestionável protecção teológico-
religiosa16. Ora, nos finais do século XIV, a “espada espiritual”, a que D. Fernando
reconhece verdadeira autoridade é, antes de mais, a de Cristo, e depois... a do papa.
Não podemos esquecer que os anos de reinado de D. Fernando correspondem
aos tempos conturbados dos papas de Avinhão e, por fim, ao Grande Cisma (1378),
perante a dualidade de pontífices aos quais o monarca português oscilou
constantemente no seu apoio, ao sabor dos interesses políticos de cada momento. É,
pois, essencialmente, a Cristo/Deus, que D. Fernando deve a sua função no mundo do
homens.
Não podemos, nem devemos esquecer, também, que o reinado de D. Fernando
(1367-1383) foi contemporâneo do de Carlos V de França, o “Sage Roi” (1364-1380), a
quem se deve a encomenda e o empenhamento pessoal na redacção do famoso Songe du
Verger, obra onde são particularmente defendidas as prerrogativas da autoridade real
muitas cópias do Decreto de Graciano veja Robert JACOB, Images de la Justice. Essai sur
l’IconographieJjudiciaire du Moyen Age à l’Âge Classique, Paris, Le Léopard d’Or, 1994, pp. 9-49.
15 Cf. Enrique GALLEGO BLANCO, “Relaciones entre la Iglesia y el Estado en la Edad
625
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
face ao poder eclesiástico, tão caras ao monarca de França. Parece-nos difícil aceitar que
o soberano português fosse alheio à sua existência e, sobretudo, alheio a uma política
que tendia a generalizar-se, nas monarquias ocidentais, de procura e verdadeira
afirmação da autoridade real face aos poderes do papa, especialmente neste período
conturbado para a Cátedra de São Pedro17. Na verdade, a consciência da necessidade de
afirmação de um poder régio de origem divina, sem necessidade de intermediários, já
havia sido suficientemente valorizada no século XIII, em contexto peninsular, por
Afonso X, o Sábio18.
Neste túmulo, vemos como o rei pretendeu sublinhar que o seu poder é
recebido directamente de Cristo/Deus. É a Ele que D. Fernando deve a coroa e a
obediência e só a Ele deverá entregar o poder de que foi investido (pela graça de Deus)
na hora da morte, sem intermediários, isto é, sem interferência da Santa Sé. Não é
novo. A não submissão ao papa por parte do rei português, chefe de um reino que foi
colocado pelo seu fundador na dependência de Roma, quando os interesses apontavam
no sentido de uma libertação do jugo tentacular do império castelhano-leonês,
encontrou diferentes contornos ao longo dos sucessivos reinados, culminando, no
reinado de D. Pedro I, pai de D. Fernando, com a promulgação do designado beneplácido
régio, lei que obrigava a que todas as determinações papais só adquirissem força de lei no
país após o consentimento e aprovação do rei português.
A verdade é que, durante longo tempo, os monarcas medievais portugueses,
apesar da existência de conflitos mais ou menos agudos com a Igreja nacional, e perante
as consequências que esses conflitos tiveram nas relações da monarquia com a Santa Sé,
não puderam nunca descurar o representante máximo de Cristo, e esperaram sempre
obter a sua bênção para bem governarem.
Esta é uma realidade que se verifica com um constância muito precisa entre o
século XII e meados do século XIII. José Varandas, ao abordar as relações de D.
Sancho II com a Santa Sé, refere que “por um lado era o rei do papado, o representante
legítimo ditado pelo testamento de seu pai e vassalo da Santa Sé, e que por isso devia
obediência e respeito ao que o governante da Cristandade determinasse. Por outro lado
era o rei do reino, o soberano apoiado por um conjunto de conselheiros esclarecidos,
17 Cf. Walter ULMAN, Principios de Gobierno y Política en la Edad Media, Madrid, Alianza
626
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
que lhe apontavam o rumo. Mas tal como houvera sucedido a seu pai, Sancho não se
podia dar ao luxo de voltar as costas ao representante máximo de Cristo e governar o
reino sem a sua bênção. A posição e os interesses de Portugal necessitavam da
protecção da Santa Sé e a legitimidade do rei, a sua auctoritas e a sua dignitas precisavam
do mesmo apoio”19.
A promulgação do beneplácido régio mostra, porém, uma clara evolução no que se
refere a esse difícil, mas necessário equilíbrio, de apoios e de relações vassálicas e como,
cada vez mais, o Estado, através do eficaz exercício do seu poder, substitui a Igreja nas
relações com os súbditos. D. Pedro assumiu-se, com esta nova determinação, como
digno e legítimo representante de Deus sobre a Terra, como chefe da Igreja nacional,
num período que se adivinhava difícil para o papado, após a transferência da sede de
Roma para Avinhão20.
Ora, o tempo em que D. Fernando I governou é já diferente daquele que tinha
caracterizado o tempo dos primeiros reis de Portugal, seus antecessores. O rei já não
era o rei do papado, mostrando que a evolução das relações entre monarquia e Igreja,
em Portugal, seguiam o mesmo curso que se verificava noutros países, nomeadamente
em França, onde a um tempo profundamente marcado pela figura carismática de São
Luís, monarca que tanto se apoiou no poder papal, evoluiu-se para um maior e mais
claro afastamento entre estes dois poderes, verificável tanto com Filipe IV o Belo, como
depois com Carlos V, contemporâneo de D. Fernando I.
A verdade é que, e como temos vindo a sublinhar, o reinado de D. Fernando
corresponde ao período mais acentuado de fraqueza da autoridade da Cúria papal,
como tão bem espelhou Fernão Lopes na sua Crónica de El-Rei Fernando, onde se evoca
“a dramática cisão interna, então ocorrida na Igreja, sob o signo de uma alegórica
desvirtualização do corpo especial da Cristandade”21. O próprio monarca oscilou nos
seus apoios, ora pelo papa de Roma, ora pelo de Avinhão, ao sabor dos interesses
portugueses. Estes faziam-se nas várias guerras que desencadeou e, colocar-se ao lado
de um ou de outro papa, era simples forma, quase que descartável, de dizer quais eram
os seus amigos, sendo que os malogrados ingleses estiveram sempre nas suas
preferências.
627
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Por isso, nesta iconografia de rei muito cristão, e de rei como cabeça tutelar e
indiscutível de todo o universo social português, é com Cristo/Deus que D. Fernando
estabelece uma relação directa, representado à mesma altura e no mesmo eixo de
centralidade da tampa do sarcófago, um de cada lado, tutelando, vigiando e
controlando, ou seja, detendo poderes hegemónicos, sobre esferas de influência com
diferentes delimitações. D. Fernando I é aqui o vicarius Dei.
Neste sentido, representa-se a imagem de um corpo social terreno, através das
muitas figuras (bustos) da arca, como imagens individualizadas que, em conjunto, se
tornam um todo social, regido por uma única cabeça, e onde todos os membros
cooperam e são necessários para a sua saúde22, reproduzindo a forma como a sociedade
medieval se via a si mesma, ou seja, uma forma organicista, tal como é defendida no
Livro II das Partidas de Afonso X23. Não é, por isso, de estranhar que o ideólogo deste
túmulo assim o entendesse: se os “dois corpos do rei” simbolizavam a unidade do
poder e da sociedade terrena, o lugar onde o “corpo social” do rei era guardado até à
ressurreição final, o moimento, constituía o lugar privilegiado para relembrar esse papel
que cabe aos monarcas.
Perante a mensagem desta obra, não podemos deixar de estabelecer relações
com obras anteriores, onde essa mesma identificação se verifica, de maneira muito
especial. Referimo-nos às representações de Cristo e de D. Pedro I, patentes nos túmulos
de Alcobaça, pertencentes a este último monarca e a D. Inês de Castro.
Como já tivemos oportunidade de referir, a propósito da leitura iconográfica da
Roda da Vida/Roda da Fortuna do túmulo de D. Pedro I, José Custódio Vieira da Silva
foi o primeiro historiador a propor que a leitura destes dois complexos monumentos
funerários deveria ser feita em conjunto e de acordo com a sua primitiva localização ou
posicionamentos originais, pois existem mútuos reenvios de mensagens. Luís Urbano
Afonso, no seu já muito citado estudo sobre o tema das Idades do Homem, corroborou a
ideia e acrescentou, ainda, a relação tipológica, iconográfica e iconológica, entre a figura
de D. Pedro entronizado, que domina ao centro superior da Roda, com a figura de Cristo
Juíz, igualmente entronizado, na cena do Juízo Final, no facial dos pés do túmulo de D.
Inês de Castro.
628
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
D. Pedro I entronizado, no
Cristo Juiz. lóbulo superior da Roda da
Cena do Juízo Final.
Vida.
Testeira do túmulo de D. Inês
Testeira do Túmulo de D. Pedro.
de Castro.
Apud O Panteão Régio do Mosteiro de
Apud O Panteão Régio do Mosteiro
Alcobaça, p. 90.
de Alcobaça, p. 79.
Para este último autor, a figura entronizada, vestida com manto traçado à frente,
e que segurava outrora uma espada ou um ceptro, no túmulo de D. Pedro, é inspirada
ou, pelos menos, procura que o observador estabeleça uma relação com a figura de
Cristo Juíz do túmulo de D. Inês. As semelhanças são muitas, não obstante o mau
estado de conservação da figura do alegado D. Pedro: idênticas posturas, frontais e
hieráticas, lugares centrais e assumidamente tutelares que ocupam no centro das
composições respectivas.
A representação de D. Pedro difere das figuras que normalmente ocupam este
mesmo lugar nas Rodas da Vida ou nas Rodas da Fortuna, onde é habitual estar presente
“o esplendor do seu poder, destacando-se o brilho das regalia”, enquanto que, neste
caso, “aquilo que podemos ver na figura de D. Pedro é a consciência da brevidade da
vida terrena, fruto dos caprichos da Fortuna. Efectivamente, é possível ver que a mão
esquerda de D. Pedro, em vez de estar levantada, aponta para baixo com o indicador na
direcção da figura da Fortuna e na direcção do seu próprio cadáver (...). Em todo o
caso, é certo que a imagem de D. Pedro visa estabelecer uma analogia visual, e
conceptual, com a figura de Cristo no Juízo Final do túmulo de D. Inês de Castro.
Neste caso a figura de Cristo segura uma espada na mão direita, da qual hoje em dia
apenas se vê o punho e a guarda da lâmina, enquanto que a mão esquerda, de palma
aberta, está estendida para baixo, na direcção do Juízo Final. Estabelece-se, pois, uma
importante analogia entre as duas imagens, que apresentam, o mesmo tipo de
indumentária, o mesmo tipo de pregas, o mesmo tipo de poses, frontais e rígidas, e o
mesmo tipo de gestos”24.
629
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
630
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
acentuando, assim, a ideia de monarquia de direito divino e do rei como vicarius Dei, ao
qual todos os estratos sociais estão subordinados, incluindo os representantes do poder
espiritual em cada reino. Para melhor sublinhar esta ideia, o rei assume prerrogativas
próprias dos sacerdotes, na sua imagem de Rex et sacerdos, como a que vimos na análise
do selo que representa D. Afonso IV a presidir e a tomar papel activo na condução de
uma cerimónia religiosa na Sé de Lisboa.
Quando o objectivo foi representar, simplesmente, o poder régio, a arte
portuguesa da segunda metade do século XIV recorreu a fórmulas iconográficas que
visavam estabelecer paralelos entre as representações de Cristo, como Senhor e Juiz,
que assegura a tutela dos destinos da humanidade, com representações do rei temporal,
soberano e tutelador dos destinos e da ordem social do seu povo.
São imagens que exprimem, visualmente, os conceitos de auctoritas, potestas e, em
alguns casos, de maiestas, conceitos inerentes, também, às representações de Cristo Juiz.
A dualidade de poderes, presente na mentalidade medieval, fica perfeitamente
demonstrada no traçado conceptual deste túmulo, pertencente a um rei que se viu a si
mesmo como cabeça de um corpo complexo e heterogéneo, do qual ele determinou a
sua condução e a sua manutenção – mesmo quando a consciência pessoal contrariava
estas noções, por desvarios cometidos em vida, importava, antes de tudo, fazer crer que
assim era28.
Todas as figuras do túmulo, a que já nos referimos, encontram-se inseridas em
espaços delimitados por molduras, ora circulares, ora polilobadas. Este processo de
organização do espaço onde se distribuem destina-se, por um lado, a dar destaque ao
631
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
que é mais importante e, por outro, a demonstrar que constituem parte de universos
organizados e bem estruturados: o reino celestial e o reino terreno. Verifica-se, porém,
que neste túmulo, nem todas as figuras se limitam aos espaços devidamente delimitados
e enquadrados, mas ocupam, também, e com extraordinária abundância, espaços
diferentes, que poder-se-iam dizer “livres”. É aqui, neste vasto “universo” que escapa,
ou procura escapar, aos poderes tutelares, menos controlado, que habitam estranhas
personagens pertencentes a esse “maravilhoso mundo medieval”.
O seu número e variedade constituem, sem dúvida, um dos aspectos mais
interessantes e curiosos deste monumento, especialmente se tivermos em conta que é a
primeira vez que aparecem representados num túmulo medieval português, e que não
mais voltarão a surgir, com estas características, com esta diversidade e com este
ineditismo..
Estranhos na sua orgânica corporal, parecem saídos de algum pesadelo
fantasmagórico, de um conto gótico, ou de uma floresta assombrada. Mas, nem por
isso, deixam de ser fascinantes… Pelo contrário. A sua hibridez resulta, em alguns
casos, da junção de várias partes de corpos de animais e, noutros, de cabeças e braços
humanos com troncos e membros de várias espécies do reino animal ou vegetal.
Eles são, claramente, a transposição para a pedra do repertório das droleries dos
livros iluminados, mas não só. Em tudo medievais e em tudo góticas, estas estranhas
personagens têm ecos prévios em esculturas do mundo ocidental. Citemos apenas
alguns exemplos mais relevantes: os quadrilóbulos das jambas do Portal dos Livreiros
(1278 -1300) da Catedral de Rouen, tão bem analisados por Michael Camille; as mísulas
da Sala da Grande Audiência no Palácio dos Papas de Avinhão (séc. XIV); o famoso
claustro do mosteiro cisterciense de Santes Creus29, (século XIV, Tarragona, Espanha),
e com ecos em Portugal, nomeadamente nas mísulas do portal ocidental da Sé de
Évora); o retrocoro (trascoro) da Catedral de Toledo30, como já havia chamado a atenção
Gérad Pradalié31, ou, ainda, e com claras semelhanças com algumas figuras do túmulo
humana e corpo de animal, tal como no túmulo do rei português”. Cf. Gérad PRADALIÉ, op. cit.,
2ªed., 1992, p. 114.
632
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Três dos muitos quadrilóbos com figuras fantásticas que decoram o Portal dos Livreiros da Catedral de Rouen
(França). c. 1278-1300. Fotos: CVF.
633
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Pormenor de algumas das figuras grotescas dos capitéis do Claustro do Mosteiro de Santes Creus
(Tarragona, Espanha). Apud Francesca Español, El Gótico Catalán, p. 51.
34 Émile MÂLE, L’Art Religieux du XIIIe Siècle en France, Paris, [reed.], Librairie Armand
634
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
35 Cf. Michael CAMILLE, Images dans les Marges aux Limites de l’Art Médieval, Paris,
Gallimard, [ed. francesa], 1997, pp. 119-130.
36 Santarém era, por tradição, durante toda a Idade Média, a cidade onde alguns dos nossos
monarcas buscaram a ajuda de reputados médicos, experientes na tradição herdada dos Árabes.
Terá sido o caso de D. Sancho I, que aí passou os últimos meses da sua vida; de D. Sancho II, que
se dirigiu a esta cidade por repetidas vezes a partir de 1217, conhecendo-se, para este período, as
identidades de alguns médicos seus que aí o trataram: dois cónegos de Lamego; dois mestres de
Évora, um de Lisboa e um do Porto. Santarém, era, por isso, o local mais reputado para tratamento
de enfermidades difíceis e, a essa tradição não deverá ter sido alheio o facto de um dos mais
conhecidos médicos e teólogos medievais portugueses, São Frei Gil (de Santarém), ter sido frade do
Convento de São Domingos desta cidade. Neste contexto medicinal, existe, todavia, uma
importante componente “esotérica”, que também se associa a Santarém e em especial à figura de
São Frei Gil, médico do corpo e das almas”, iniciado nas ciências obscuras nas grutas de Toledo,
quando se dirigia para a Universidade de Paris.
635
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
37 Cf. Paulo PEREIRA, op. cit., 2004, p. 189. Veja-se, ainda, o estudo de Fernando António
BAPTISTA PEREIRA, “Et in áurea aetate ego… Notas sobre a representação dos Homens
Silvestres na arte portuguesa dos séculos XV e XVI”, El Dorado, Lisboa, 4 Elementos, 1982, pp. 58-
66.
38 Entre algumas publicações de Mike HARDING sobre este tema, veja-se um pequeno
mas sugestivo livro de divulgação, A Little Book of The Green Man, Londres, Aurun Press Ltd, 1998.
39 Kathleen BASFORD, The Green Man, P.S. Brewer, 1978.
40 Marcia MACDERMORTT, Explore Green Man, Heart of Albion Press, 2003.
41 A representação de gatos e, sobretudo, leões, parcialmente constituídos por folhagens,
636
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
637
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Green men (Homens verdes). Uma das figuras Extremidades da arca tumular de D. Fernando I.
regurgita as folhas; a outra possui os cabelos Foto: CVF
compostos por duas hastes de folhagens.
638
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
que certas personagens chamadas green men, saíam em procissão, cobertas por
folhagens43.
A recordação do tempo cíclico num monumento funerário não deixa de fazer
todo o sentido, aliás, já havia sido representado na Roda da Vida/Roda da Fortuna do
túmulo de D. Pedro I. A verdade é que o Green Man, porque constituído por matéria
vegetal, talvez melhor do que qualquer outra imagem, ilustra o princípio da morte e
corrupção do corpo, da ressurreição e do renascimento44.
As suas origens são pagãs, sem dúvida, mas a mensagem que ilustram mantém-
se viva ao longo dos séculos em que o Cristianismo nasceu e se desenvolveu,
coabitando e incorporando as composições com iconografia religiosa e cristã por
excelência, sem que pareçam ter sido considerados uma afronta para as autoridades
clericais, e muito menos para os fiéis. Talvez isso ajude a compreender porque na
estranha Rosslyn Chapel (Edinburgh, Escócia), fundada pelo cavaleiro templário
William Sinclair, ainda hoje se possam contemplar cento e três Green Men e apenas uma
imagem de Jesus, situação ainda mais compreensível se tivermos em conta que figuras
como estas também foram esculpidas nas igrejas templárias de Jerusalém no século
XII45.
Mas mesmo sem ligações ao alegado mundo hermético dos templários, estas
figuras estão demasiado presentes na arte medieval, algumas ocupando posições de
relevo, para que descuremos as interrogações sobre o seu significado.
É claro que em países como a Inglaterra, a Escócia ou a França, onde o
imaginário pagão associado às florestas deixou raízes tão profundas e conheceu
revitalizações tão significativas em épocas sucessivas, estando sempre presente nos mais
famosos romances de cavalaria, o terreno era mais propício à sua divulgação. Dos
muitos exemplos existentes, especialmente no Reino Unido, reproduzimos aqui apenas
três, datados do século XIV.
Mike Harding, quando este o interrogou sobre a hipótese de uma ligação entre as representações do
green man e as obras dos templários. A dúvida surgiu na mente do autor ao confrontar-se com um
símbolo templário numa das chaves da abóbada da igreja de St. Mary de York (actual York Arts
Center), junto com outra onde se representa o green man.
639
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Green Man. Chave de Abóbada. Eaton Green Man. Chave de Abóbada da Green Man. Chave de abóbada de St
under Haywood, Shropshire (Inglaterra). Catedral de Ely, (Inglaterra). Mary’s Church (York, Inglaterra)
640
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Figura híbrida bicéfala. Face longa da arca tumular de D. Figura híbrida. Face longa da arca tumular de D. Fernando I
Fernando I (lado esquerdo). Foto: CVF (lado esquerdo). Foto: José Pessoa/DDF/IPM.
Figura híbrida. Face longa da arca tumular de D. Fernando I Duas figuras híbridas afrontadas. Face longa da arca
(esquerdo). Foto: CVF tumular de D. Fernando I (lado direito). Foto: José Pessoa/DDF/IPM.
A excepção à presença das línguas de fogo é feita pelas figuras de dois curiosos
dragões alados, que entrelaçam os longos pescoços e afrontam as cabeças de leões.
Na parte superior da arca, as figuras diferem destas últimas pelo facto de
possuírem, maioritariamente, características antropomórficas.
A figura única que
permanece arreigada ao
universo totalmente
zoomórfico é constituída
por cabeça de leão, virando-
se frontal e
ameaçadoramente para o
observador, tem corpo
enrugado e duas majestosas
Figura híbrida da parte superior da arca tumular asas de pássaro, totalmente
de D. Fernando I (lado direito). Foto: José Pessoa/DDF/IMP
641
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
abertas.
As três restantes seguem idêntico esquema compositivo, e revelam-se as mais
espectaculares de todo o conjunto, todas elas marcadas por carácter guerreiro, violento
e ameaçador, mas não sem que haja algum sentido burlesco. Na face longa do lado
direito, a única figura que se deixa ver (a outra foi destruída pelo o rombo feito na arca,
segundo se conta, pelas tropas francesas, a fim de saquearem o espólio aí existente), é
composta por corpo de insecto, patas de cabra, asas de pássaro, tronco e cabeça
antropóides. Tem o corpo virado para a direita, e o tronco e a cabeça em completa
torção para a esquerda, vestido com uma camisa de mangas arregaçadas, cujas pregas se
movem em função da torção corporal, enquanto que a cabeça é coberta por elmo
cónico e pontiagudo. Levanta com uma das mãos um escudo, com vestígios de
decoração em baixo-relevo e, com a outra, uma lança, captando-se o momento exacto
em que vai desferir a lançada.
Figura antropomórfica da
parte superior da arca
tumular de D. Fernando I
(lado direito).
642
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
643
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Como já havíamos notado no nosso primeiro estudo sobre este túmulo, para
além dos aspectos plásticos comuns e da atitude agressiva destas últimas figuras,
importa salientar um elemento que também é comum a quase todas as que são
parcialmente humanas: cobrem as cabeças com chapéus ou gorros, que podem ser
644
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
identificados com os que eram comummente usados pelos judeus medievais – o pilleus
cornutus (chapéu bicudo ou redondo com extremidade bicuda), ou turbantes e chapéus
de pala levantada e extremidade pontiaguda48. Este elemento poderia ser meramente
ocasional e destituído de importância, não fosse o facto do pretenso alquimista
apresentar, também, o que sugere ser o pilleus cornutus. Embora chapéus como estes
apareçam a cobrir as cabeças de alquimistas e físicos em iluminuras medievais, sem que
se possa afirmar tratarem-se sempre de judeus, o facto de ser a única peça de vestuário
que a figura ostenta não deixa de ser significativo49.
Alquimista preso
na sua “câmara
secreta”.
Registo superior da
arca tumular de D.
Fernando I (lado
esquerdo)
Foto:
José
Pessoa/DDF/IPM
(antes da limpeza e
restauro do túmulo)
muitas iluminuras dos séculos XIV e XV, como são exemplos os que ilustram um interessante
fresco da igreja de Thröl (Arnoldstein, Carintia); numa Bíblia iluminada (Paris -1240, fl. 124); numa
Crucificação iluminada da Biblia Pauperum (c. 1358), Viena, cod. 370, fl. 20, ou na cabeça da figura de
S. José, em relevo esculpido no altar-mor do mosteiro beneditino de Cismar (c. 1310-1320). Para
visualização destes e de outros exemplos veja-se, Heinz SCHREDCKENBERG, The Jews in
Christian Arte. An Illustrated History, Continuun/New York, 1996, pp. 64, 73, 137. Sobre a
iconografia dos judeus em Portugal veja-se o recente estudo de Luís Urbano AFONSO, “The
cultural construction of the Jews in late medieval Portugal: Contributions to a reevaluation”,
Mitteilungen der Carl Justi Vereinigung, vol. 13, 2001, pp. 22-46.
49 A realização do IV Concílio de Latrão (com início a 11 de Novembro de 1215), durante
o pontificado de Inocêncio III, visou questões relacionadas com as minorias religiosas, judeus e
muçulmanos, saldando-se em claro prejuízo para os primeiros, que se viram, consequentemente,
ainda mais discriminados, no mundo europeu tardo-medieval. Das disposições dedicadas aos judeus
saíram leis como as da proibição de saírem das suas casas durante os dias da Semana Santa, a
obrigação de usar roupas especiais que os distinguissem dos cristãos, ou a proibição de ocupar
cargos públicos (leis 67-70).
645
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
A cena do alquimista, observada por outros autores como um dos mais antigos
quadros representativos desta “ciência obscura”50 e geradora de interesses vários, de
aliciantes e condenações, revela-se, nesta obra, com uma tal riqueza de detalhes que a
sua importância para a compreensão do conteúdo iconográfico do túmulo só pode ser
relevante.
O alquimista parece estar nu, sentado numa bela cadeira com espaldar, e segura
com uma das mãos o Ovo ou Vaso dos Filósofos, (símbolo da Pedra Filosofal) enquanto o
observa. Está preso, pelo pescoço, por uma corda que se liga a um pesado cepo,
segurando-a com a outra mão, e chamando, assim, a nossa atenção para esse facto.
Atrás de si, prateleiras com vasos, frascos, uma ampulheta e um almofariz, materializam
o cenário de um laboratório de alquimia, um retrato das enigmáticas “câmaras secretas”.
Pormenor do alquimista.
646
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Mendicantes, contam-se entre os grupos que mais interesse manifestaram pela alquimia,
tentando percebê-la e explorá-la, mesmo quando o objectivo era a sua condenação.
Esta surpreendente e inédita cena insere-se, certamente, no âmbito dos muitos
debates em torno da alquimia (quaestio de alchimia), presentes no mundo latino medieval
durante os séculos XIII e XIV, e em que participaram teólogos e pensadores de
nomeada, como Alberto Magno, Tomás de Aquino, São Boaventura, Roger Bacon, ou
Egidio Romano51.
A alquimia era entendida como “arte-filosófica”52, enquadrando as suas operações
em reflexões científico- religiosas, a par da prática experimental, diferente, por isso, dos
conceitos filosófico-naturalistas e medicinais de orientação aristotélica e de teor
eminentemente doutrinário.
O seu objectivo máximo era o aperfeiçoamento da matéria criada, um projecto
com evidentes conotações religiosas, o que conduziu os praticantes a auto dominarem-
se co-criadores, ou colaboradores de Deus, no seu projecto de restabelecer a perfeição
dos corpos.
Criticados e acusados de insistir em “missões impossíveis” – imitar a natureza
enquanto criação divina – foram vistos como burlões e perigosos falsários. As ordens
religiosas condenaram-na e o papa João XXII proibiu o estudo e a prática da alquimia
em 1317, através da emissão da Bula Spondent quas non exhibent, não surtindo, porém, os
efeitos esperados. Em pleno séc. XIV, o inquisidor Nicolás Eymeric, acusa-os de
falsários e de pactuarem com o demónio, ao mesmo tempo que juristas consideram
legítima a arte transmutatória, sempre que se pratique sob o controlo do príncipe.
Desta forma, ao longo do séc. XIV, assiste-se ao declínio da alquimia
metalúrgica e a continuidade do interesse pela alquimia vocacionada para a busca da
vida eterna, a partir das perspectivas abertas por Roger Bacon (Secretum secretorum). Os
franciscanos, em especial os Espirituais, no seu programa de profunda renovatio religiosa,
prezo a uma corrente que do pescoço termina a um cêpo que se vê aos seus pés, afim de que os
seus malefícios não possam ser nocivos aos homens”.
51 Veja-se Gilbert DAHAN, Les Intellectuels Chrétiens et les Juifs au Moyen Âge, Paris Editions
du Cerf, 1990.
52 Sobre a alquimia no mundo latino medieval veja-se, entre outros estudos, o artigo de
Chiara CRISCIANI, “La ciencia oculta”, El Mundo Medieval, nº 4, Barcelona, 2001, pp. 33-39 e ainda
C. CRISCIANI e A. Paravicini BAGLIANI, ed., Alchimia e medicina nel medioevo, 2003.
647
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
encontram lugar proeminente na lista dos interessados pela alquimia, em especial pela
sua vertente terapêutica53.
Aceites por uns e com profunda suspeição por outros, o seu mundo
movimenta-se entre a aceitação e a condenação. Ora, o alquimista presente neste
túmulo não é um homem livre, a praticar tranquilamente a sua arte entre quatro
paredes. Está preso, o que logo induz a uma situação condenatória. Acresce ainda o
facto de se tratar, provavelmente, de um judeu. Tanto os alquimistas, enquanto grupo
profissional, como os judeus, enquanto grupo social, são vistos com suspeição neste
conturbado séc. XIV, e acarretam consigo ideias sobre um mundo hermético, um
mundo fechado e secreto, tradutor de incompreensão e de intolerância.
Como já referimos, os reis medievais também tinham alquimistas nas suas
cortes, aqueles cuja actividade estava sob “o controle do príncipe”, da mesma forma
que alguns judeus possuíam cargos importantes nas cortes, quer como físicos, quer em
cargos administrativos, como provam os estudos sobre as cortes portuguesas54. Mas
estes são excepções. Todos os restantes, faziam parte de grupos pretensamente
controlados pelo rei (os seus judeus), mas não ilibados de desconfianças e de
sentimentos hostis por parte da população maioritariamente cristã.
Parece-nos clara a intenção de satirizar os “outros”, os “impuros”, aqueles que,
enquanto minorias “suportáveis” dentro do quadro social, nunca serão totalmente
aceites. A sátira não se justifica apenas com a cena do alquimista (judeu?) aprisionado à
sua própria obsessão pela transmutação e simbolizando a condenação de uma ciência
obscura e símbolo das “más ciências”, capazes de causar danos, mas também na
presença dos monstros, mutações de humanos em demónios e outras criaturas
infernais, de caras grotescas e, algumas, com chapéus de judeus55.
53 Chiara CRISCIANI, “La ciencia oculta”, op. cit., 2001, pp. 38-39. Não deixa de ser
relevante o facto desta cena ter sido representada numa obra realizada em Santarém e para figurar
num convento desta cidade. Como já havia notado Manuel J. GANDRA, “Subsídio para o
inventário das coordenadas mítico-herméticas subjacentes à hagiografia de S. Frei Gil de Santarém”,
S. Frei Gil de Santarém e a sua Época, catálogo de exposição, Santarém, Câmara Municipal de
Santarém, 1997, p. 67, esta cena poderá estar relacionada com a pervivência de uma tradição
hermético–alquimica em Santarém, cujos ecos remontam, pelo menos, à instalação de S. Frei Gil de
Santarém no convento dominicano desta urbe.
54 Veja-se a respeito da presença de judeus nas cortes portuguesas medievais o clássico
estudo de Maria José FERRO, Os Judeus em Portugal no Século XIV, Lisboa, Guimarães Editores,
1979.
55 As caricaturas anti-semíticas ganham expressão nos séculos XIII e XIV através de
imagens compósitas e burlescas, com caras pautadas por uma fealdade propositada, onde não
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
faltam os narizes arqueados e chapéus característicos dos israelitas, como podemos ver em códices
iluminados, esculturas em pedra e madeira (especialmente nas misericórdias dos cadeirais).
56 Expressões retiradas do Mistério da Paixão de Arnaoul Gréban (antes de 1452), citadas na
obra de Jean DELUMEAU, História do Medo no Ocidente, 1300-1800, São Paulo, Companhia das
Letras, [reed.], 1989, p. 284.
57 Veja-se o estudo de Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Iconografia de uma
p. 53.
649
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
651
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
religioso e estivesse a par das tendências da moral do seu tempo e, inclusive, do que
então se defendia nos Espelhos dos Príncipes, a estruturação interna da obra e as
ligações que se estabelecem entre as muitas personagens apontam, muito claramente,
para a mente de um clérigo de elevado nível cultural.
Nos estudos de História da Arte medieval, mesmo quando se identifica
documentalmente o encomendador e o artífice, no caso de uma encomenda laica,
encontramos, quase sempre, dificuldade em identificar a quem se deve a formulação
dos programas iconográficos. Se este problema não se coloca em obras cujo tema, ou
temas, pertencem ao universo do temário mais comum da arte cristã (Anunciação,
Calvário, etc.), podendo-se atribuir a composição ao próprio artista, que, segundo o seu
nível de conhecimentos e perícia técnica, o reproduzia com maiores ou menores
alterações, quando se tratam de obras de maior complexidade, porém, esta situação não
se afigura tão linear.
Em Portugal, entre o escassíssimo universo documental para a escultura
funerária do século XIV, o contrato firmado entre o Arcebispo de Braga D. Gonçalo
Pereira e os mestres escultores Pero e Telo Garcia (11 de Junho de 1334), permite
perceber a participação do encomendador na produção do seu monumento funerário:
…um moimento e sua coberta, que devem lavrar, aperfazer e afigurar, assi de figuras como de signais,
por aquela guisa que o Arcebispo mandar…61 Neste caso, sendo Gonçalo Pereira um
arcebispo, quem melhor do que ele próprio para definir o programa iconográfico do
seu moimento?
Também Luís Afonso veio recentemente demonstrar, de forma cabal, que a
concepção do programa iconográfico dos túmulos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro
também teve por base ideológica as directrizes dadas pelos monges de Alcobaça, e que,
inclusive, estes terão posto à disposição dos artífices algumas obras e respectiva
iconografia existente no scriptorium dessa abadia62.
Estes dois raros, mas muito importantes exemplos, demonstram bem como a
arte funerária produzida para grandes personalidades, na sua qualidade de “arte da
memória”, compreendia programas iconográficos definidos por personalidades com
profundos conhecimentos exegéticos, bem como conhecimentos sobre as correntes e
61 Cf. Alberto FEIO, “Dois Sepulcros Medievais e seus Artistas”, Biblos, vol. I, Coimbra,
1925, separata.
62 Cf. Luís Urbano AFONSO, op. cit., 2003, pp. 76-90.
652
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
tendências religiosas mais actuais, ainda que os pudessem formular em conjunto com o
encomendador.
Vários autores têm vindo a demonstrar como o papel exercido pelos
confessores dos monarcas se revelou de extrema importância ao longo de toda a Idade
Média e, como “durante século XIV, os franciscanos parecem ter monopolizado, de
facto, esta função”63. Franciscanos eram os confessores de D. Afonso IV, D. Pedro I e
D. Fernando I. Este último rei contou com Fr. Fernando de Astorga e Fr. Vasco
Pereira, como seus confessores e, ainda, Fr. Martinho (1369-1381)64.
Podemos colocar a hipótese de Fr. Martinho, ou de outro franciscano com forte
influência junto do rei entre os anos de 1381 e 1383, poder ter sido o ideólogo deste
monumento funerário, ainda que admitamos a insuficiência dos nossos conhecimentos
relativamente à sua formação, percurso intelectual e pensamento.
No caso do túmulo de D. Fernando I, julgamos poder afirmar que se conjuga a
relação entre um iconólogo que muito bem soube delinear as estratégias para a
afirmação de uma boa memória do rei, e um escultor (ou escultores), dotado não
apenas de grande perícia técnica na arte de lavrar o brando calcário de Santarém, mas
também munido de um rico caderno de desenhos, onde dominam influências da arte
produzida noutros países, trazendo impressionantes novidades a uma obra portuguesa.
Talvez o relevo social do ideólogo desta obra, bem como a excelência do artífice
contratado, possam justificar a representação de ambos na tampa do túmulo, à esquerda
e à direita do encomendador, D. Fernando I. Entre tantos elementos e temas inéditos
que aqui se encontram, este seria apenas mais um, justificando-se, provavelmente, pela
participação do próprio rei na elaboração da iconografia da sua memória tumular que,
em tudo, revela modernidade e arrojo.
Neste túmulo D. Fernando coloca em evidência o entendimento das duas
esferas (ou espadas) do poder: o espiritual e o temporal, sendo o primeiro tutelado por
Cristo e o segundo por ele próprio. Inserida numa concepção organicista do poder e da
sociedade, esta estruturação dos temas aqui presentes resume bem o que temos vindo a
desenvolver relativamente aos fundamentos ideológicos das iconografias do poder real
e à própria ideia que D. Fernando tinha da sua função. Na proximidade da morte, deixa
testemunho de quem são os verdadeiros poderes e qual a sua relação hierárquica, indo
63 Rita Costa GOMES, A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média, Lisboa, Difel,
1995, p. 119.
653
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
de encontro ao que também deixou expresso no texto do seu testamento de 1378: (…)
considerando Nos dito Rey como nenhũa cousa é mays certa que a morte e nenhũa mays dovydosa que a
ora em que há de vynr e temendo o Juízo muy espantoso daquel alto Rey celestial e princepe e senhor de
todolos Reis en que há de vinr Julgar todolos que no mundo criou (…)65.
Revela também, e muito, o cuidado posto na propaganda de si próprio e das
linhagens de que descende. Não se trata, pois, de uma memória voltada para o passado,
ou seja, não pretende mostrar à sociedade do seu tempo que com ele se encerra uma
dinastia. Pelo contrário, a afirmação muito clara da sua legitimidade, através da presença
impositiva da heráldica de D. Constança Manuel, é apenas forma de sublinhar o que já
havia expresso por escrito quanto à bastardia dos filhos de Inês de Castro, enfatizando,
assim, o direito legítimo da sua filha D. Beatriz para assumir o trono de Portugal. É
pois, uma verdadeira obra de propaganda régia.
654
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
situação distinta do que caracteriza a iconografia funerária espanhola, onde vários são os
monumentos funerários do século XIII em que podemos encontrar este tema. Veja-se, entre outras
obras sobre a escultura gótica de âmbito funerário em Espanha, Ángela FRANCO MATA, op. cit.,
1998, pp. 394-531 e Rocio SÁNCHEZ AMEIJEIRAS, Investigaciones Iconográficas sobre la Escultura
Funeraria del Siglo XIII en Castilla y León, Tese de Doutoramento, publicada em microfichas pelo
Servicio de Publicaciones de la Universidad de Santiago de Compostela, 1994.
655
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
2 José MATTOSO, “O culto dos mortos no fim do século XI”, O reino dos Mortos na Idade
que não existe outro exemplo semelhante. Aguardamos o resultado de actuais e futuras
investigações de outros autores.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
5 Sobre estes dois portais românicos veja-se, entre outros estudos, Miguel Angel GÁRCIA
GUINEA, El Românico en Palencia, Paléncia, Diputación Provincial de Paléncia, 1997, pp. 161-170.
6 Cf. Maria Concepción PORRAS GIL, “Sepulcro de San Juan de Ortega”, Las Edades del
Hombre. Memórias y Esplendores (Cat. de Exposição), Catedral de Palencia, Palencia, 1999, pp. 49-50.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
7 Cf. Ángela FRANCO MATA, op. cit., 1998, p. 419; Clementina Julia ARA GIL, op. cit.,
1977, pp. 32-34; Rocío SÁNCHEZ AMEIJEIRAS, op. cit., 1994, p. 155; Francisco ANTÒN,
Monasterios Medievales de la Provincia de Valladolid, 2.ª ed., Valladolid, pp. 229-230.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Relevo dos Apóstolos. Meados do séc. XII. Basílica de Saint-Denis. Apud Sculpture, p. 67
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
É certo que o tema de Cristo entre os Apóstolos e com a presença dos Evangelistas
(quer por representação antropomórfica, quer através do Tetramorfo), persiste na arte
gótica, em especial na escultura tumular. Mas a plástica empresta-lhes um carácter
diferente, mais naturalista, mais humano e mais “vivo”, do que aquele que vemos nos
dois túmulos supracitados. É este o tema que vemos a decorar uma das faces longas do
túmulo da Rainha Santa Isabel, prolongando-se alguns elementos (os Evangelistas) para as
faces da cabeceira e dos pés. Mas o que aí vemos tem já um carácter marcadamente
gótico, no tratamento das figuras e na própria representação de Cristo.
No túmulo de D. Urraca, os Apóstolos que preenchem as faces longas estão
inseridos em arcos de volta perfeita assentes em colunas capitelizadas e sem decoração.
Estão sentados, com as pernas abertas, em posição frontal (posição majestática), só
contrariada, em algumas figuras, pela ligeira torção das cabeças. Seguram livros ou
filactérias, actualmente sem qualquer legenda.
661
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Maiestas Domini entre os Apóstolos. Face longa do túmulo de D. Rodrigo Sanches. Meados do séc. XIV (d. 1245).
Mosteiro de S. Salvador de Grijó (Claustro). Foto: PAF.
4
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Tetramorfo. Figuras que ladeiam a mandorla da Maiestas Domini. Túmulo de Urraca. Fotos: PAF.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
trajos da estátua jacente da rainha, também as restantes figuras são cobertas por
roupagens cujos pregueados se desenvolvem de forma acentuadamente irrealista8,
especialmente sobre as pernas, ombros e braços, como se fossem placas metálicas,
estáticas, estratificadas, e quase planas, ora em V, ora em semicírculo, tornando-se
especialmente expressivas no contraste que exercem com as pregas verticais e lineares
da parte central das túnicas.
Em todas as figuras, incluindo as da secção dos pés do túmulo (cena da
Lamentação) a que nos referiremos noutro capítulo, e à excepção da estátua jacente,
possuem, aos pés, como se fosse uma faixa ou fita de tecido maleável colocado na
horizontal, um espaço destinado a colocar, provavelmente, uma legenda, que
identificasse cada uma das personagens. Elemento idêntico encontra-se no Cristo em
Majestade proveniente da muito destruída igreja românica de Sahagún (Leão, Espanha),
disposta sobre os tornozelos da figura9. Admitimos, no entanto, que qualquer
comparação entre a estética desta obra com a do túmulo de D. Urraca é,
necessariamente forçada, e que o cotejo com outras obras deve ser realizado com maior
acuidade. Assim o tentaremos fazer em capítulo a ela dedicado.
Maiestas Domini.
Relevo de um provável frontal de Altar da Igreja românica
de Sahagún. Séc. XII. Colecção particular.
Apud El Tímpano Românico, p. 213
olvidada Maiestas Domini procedente del monasterio benedictino de Sahagún”, coord. Rocío
Sanches Ameijeiras y José Luis Senra Gabriel y Galán, El Tímpano Románico. Imágenes, Estructuras y
Audiencias, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2003, pp. 211-229.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
José Custódio Vieira da SILVA, op. cit., 2003, p. 60. A inspiração subjacente à presença do
10
Livro da Vida nas mãos de Cristo, em cenas alusivas ao julgamento das almas relaciona-se uma
passagem do Evangelho de São Lucas: Alegrai-vos, pois vossos nomes estão inscritos no céu. (Lc, 10. 20).
667
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
identifica por apresentar como atributo iconográfico uma dupla chave, tratando-se, por
isso, de uma representação de São Pedro.
Pormenores da figura do Apostolado. Túmulo de um infante não identificado. Sala dos Túmulos (Alcobaça).
Fotos: PAF.
As doze figuras, dispostas seis a seis, nas duas faces longas, representam os Doze
Apóstolos. Esta teoria é dividida a meio pela iconografia da cabeceira, onde se representa
Cristo em Majestade, ladeado pelos símbolos apocalípticos dos quatro Evangelistas,
representados na face que hoje não se deixa ver11, e seguindo, assim, o mesmo esquema
do túmulo de D. Urraca.
A outra face estreita apresenta duas figuras, em tudo idênticas às caracterizações
fisionómicas, posturas e indumentárias das figuras dos Apóstolos. Estas têm sido
interpretadas como sendo familiares do defunto12, e, mais recentemente, como uma
provável representação da Anunciação13.
11Apesar de hoje não podermos confirmar, uma vez que esta face correspondente à
cabeceira do túmulo se encontra encostada a um dos muros do panteão setecentista alcobacense,
Vergílio Correia, que terá visto este túmulo noutra posição, descreve a cena aí representada: “A
arquinha de um dos 3 infantes desconhecidos tumulados no Panteon real alcobacense apresenta o
perímetro escavado de nichos sob arcadas de volta plena, ocupados por figuras sentadas de
apóstolos de grossos corpos atarracados e grandes cabeças barbadas ou glabras, com comas
abundantes, segurando ou ostentando livros e filactérias. No topo da cabeceira, o mais largo, vê-se
uma representação do Salvador em glória, Cristo pantokrator dentro de auréola quadrilobada, ladeado
pelos animais simbólicos do tetramorfos”. Vergílio CORREIA, op. cit., vol. III, Coimbra, Universidade,
1953, pp. 26-27.
12 Manuel Luís REAL, “Alcobaça”, op. cit., vol. I, 1986, p. 82
13 Cf. José Custódio Vieira da SILVA, op. cit., 2003, pp. 50-52.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
também gótica) deste tema14. Quanto à segunda personagem, apesar não possuir nem
barba nem bigode, nada nos permite identificá-la como uma figura feminina, porquanto
ela é, e muito, idêntica a outras que constituem o Apostolado, isto é, a um conjunto de
doze homens.
Sem podermos fazer afirmações quanto à identificação destas duas personagens,
não gostaríamos de deixar de levantar uma hipótese que nos pareceu possível: poderão
estas duas figuras representar os dois profetas escatológicos – Ezequiel e Elias? Algumas
obras da arte medieval associam os dois profetas a cenas do Juízo Final, como é exemplo
o portal ocidental e central da Catedral de León, como bem identificou e relacionou
Ângela Franco Mata15. Apesar de nenhum outro atributo individualizar estas duas
figuras do túmulo, relacionando-as com os profetas ou com quaisquer outras
personagens religiosas ou laicas, a presença da filactéria e do livro são atributos que
encontramos vulgarmente nas mãos de profetas, sendo que o livro também pode ser um
dos atributos de Ezequiel (a este profeta se atribui um dos livros da Bíblia), ou a
filactéria, que poderia comportar a legenda Porta clausa est, non aperietur. Esta hipótese é,
portanto, e apenas, mais um contributo para reflexão, sem que possamos fazer
afirmações conclusivas.
Por tudo o que temos vindo a descrever, as representações de Cristo destes
túmulos românicos (ainda que não possamos confirmar a representação da testeira do
túmulo do infante) são muito diferentes das imagens de Cristo da nossa tumulária
trecentista, imbuídos de humanidade, de pietas e até do pathos gótico que, pelas suas
dores, pelo seu sofrimento, redime a humanidade ao abrir as portas da Salvação.
As três representações de Cristo lavradas no túmulo de D. Isabel de Aragão
distribuem-se por duas faces da arca tumular. Na testeira, representa-se o Calvário, tema
ausente da nossa tumulária românica, mas frequente nos túmulos góticos, sobretudo na
sua relação com o tema da Anunciação. Ao centro, e sob um arco de volta perfeita,
distribuem-se três figuras lavradas em alto-relevo: Cristo com as mãos e os pés pregados
na alta cruz, tem a cabeça pendente para a direita, coroada de espinhos e os olhos
fechados.
14 Cf. Marc THOUMIEU, Dictionnaire d’Iconographie Romane, Zodiaque, 3.ª ed., 1998, pp. 33-
34. Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, A Anunciação na Arte Medieval Portuguesa. Estudo
Iconográfico, Porto, Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
1983, e Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2002, pp. 188-194.
15 Cf. Ângela FRANCO MATA, op. cit., 1998, pp. 217-224.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Testeira do túmulo de D. Isabel de Aragão (Rainha Santa). c. 1330. Pedra calcária policromada. Prov. Igreja de Santa
Clara-a-Velha de Coimbra. Santa Clara-a-Nova de Coimbra. Foto: José Pessoa/DDF/IPM.
O seu corpo não é esquelético nem está contorcido, não nos transmitindo, assim,
a mesma sensação de horror e compaixão que suscita a visão do conhecido Cristo Negro
do Museu Nacional Machado de Castro, proveniente do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra, obra igualmente trecentista e verdadeiramente notável. Este, porém, não deixa
de ser um apelo à contemplação e à reflexão sobre a dor e a morte sacrificial do
Redentor, longe do hieratismo mudo de alguns dos Cristos crucificados dos anos do
Românico. À direita da Cruz, e olhando para o rosto morto de seu filho, a Virgem Maria
mantém-se estática, com os braços descaídos e as duas mãos juntas, num gesto que
traduz o sofrimento perante uma dor implacável – a morte16. À esquerda, São João
Evangelista, o discípulo preferido de Cristo, segura com uma das mãos o seu Evangelho e
com a outra, erguida e aberta, dirige o nosso olhar para o Cristo Crucificado.
Fórmula simplificada de Calvário, restrita às três principais personagens, foi assim
que os escultores góticos representaram, maioritariamente, o fim da vida terrena de
Cristo nos túmulos góticos portugueses.
Encontramos idêntica composição na secção dos pés da arca tumular de D.
Fernão Sanches, filho bastardo de D. Dinis, embora, neste exemplo, a figura de Cristo se
aproxime mais das representações marcadas por intenso pathos, conseguido através do
excessivo alongamento e emagrecimento do corpo e da sua contorção, e os gestos da
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Virgem e de São João sejam mais expressivos, nomeadamente neste último, onde lhe
reconhecemos a retórica gestual do sofrimento, através da colocação da palma da mão
contra a face17.
Calvário. Testeira do
túmulo de D. Fernão
Sanches, filho bastardo
de D. Dinis.
Séc. XIV.
Prov. Igreja de São
Domingos de Santarém.
Museu Arqueológico do
Carmo.
Foto: José
Pessoa/DDF/IPM
Calvário.
Secção dos pés da arca
tumular de D. Martim
Afonso Chicorro, filho
bastardo de D. Afonso III.
Séc. XIV.
Foto: Museu Municipal de
Santarém (cortesia)
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Fora do âmbito da família real, acrescente-se, ainda, o Calvário lavrado numa das
testeiras do túmulo do bispo D. Afonso Pires, sepultado na igreja de S. Pedro de
Balsemão (séc. XIV).
Nos monumentos funerários de Fernão Sanches e de Martim Afonso Chichorro,
as cenas do Calvário opõem-se às que se representam, nas testeiras das respectivas arcas,
cenas relacionadas com a concepção ou com a infância de Jesus. A sua leitura, não pode
deixar de ser feita em conjunto.
No túmulo de Fernão Sanches representa-se a Anunciação, com a Virgem Maria e
o Arcanjo São Gabriel em perfeita comunicação, separados entre si por um bojudo jarrão
com lírios, símbolo da virgindade de Maria, muito semelhante à representação do
mesmo tema numa das faces menores do túmulo de D. Leonor Afonso, filha bastarda
de D. Afonso III, embora, neste último, se invertam os lugares onde as figuras são
colocadas e se revelem algumas diferenças como, por exemplo, no gesto de São Gabriel,
que agora se dirige para filactéria que contém a mensagem, e não no sentido da figura da
Virgem.
Anunciação.
Secção dos pés da arca
tumular de D. Fernão
Sanches.
Foto:
José Pessoa/DDF/IPM
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Anunciação
Secção dos pés da arca
tumular de D. Leonor Afonso
c. 1319/1325.
Igreja de Santa Clara de
Santarém
Foto: PAF
Legenda Dourada, acrescentada de palavras e de gestos que não encontramos nos Evangelhos: Maria
estendendo as suas mãos e levantando os olhos para o céu respondeu ao anjo:” Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se
em mim segundo a tua palavra” e (…) imediatamente a Virgem concebeu no seu seio o Filho de Deus enquanto Deus
verdadeiro e enquanto verdadeiro homem e desde aquele preciso momento nele o recém engendrado existiu na plenitude
de sabedoria e de poder que teve até aos seus trinta anos (…). Cf. J. VORAGINE, La Legenda Dorada, vol. I,
ed. Madrid., Alianza Forma, 1995, pp. 214-215.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
No túmulo de
Martim Afonso Chichorro,
em vez da Anunciação
representa-se A Virgem com
o Menino, na versão
Glikofilousa (Virgem de
Ternura): Maria, em posição
sedente sobre um trono-
banco, olha para o Filho,
ainda criança, que se
Virgem com o Menino. Testeira do túmulo de D. Martim Afonso Chichorro.
Séc. XIV. Foto: Museu Municipal de Santarém (cortesia) encontra de pé sobre uma
das pernas da mãe, estabelecendo, com ele, uma relação maternal muito próxima e
afectiva. A Virgem segura um fruto (talvez uma maçã, simbolizando Maria como nova
Eva, que oferece o fruto da Salvação; talvez uma romã, símbolo da unidade dos fiéis da
Igreja Católica), enquanto o Menino Jesus segura com uma das mãos o Globo Universal,
símbolo de poder, de soberania e de eternidade.
Tanto a Anunciação como a Virgem com o Menino são temas relativos à vida da
Virgem, mas também à infância de Jesus. Dos seus primeiros momentos como Verbo
encarnado no ventre de Maria, aos diferentes momentos da sua infância, estas imagens
reflectem a ideia de início de um percurso que termina com a Crucificação (ou Calvário),
o fim da vida terrena de Cristo, mas também o início da Glória, a porta para Redenção
da Humanidade. Colocados nos topos das arcas tumulares, estes temas sublinham a
ideia de início e de fim, o alfa e o ómega, Jesus como começo e fim de todas as coisas.
Trata-se, pois, de uma mensagem de reflexão para todos os cristãos, sobre o sacrifício
do Deus Redentor, garantia da própria salvação, a esperança para os fiéis, cujas almas
partem para a viagem no Além, apropriada, como tal, à iconografia funerária.
Retomemos agora a iconografia de Cristo das faces da arca tumular da Rainha
Santa Isabel. Numa das faces longas, ao centro do grupo do Apostolado, Cristo encontra-
se de pé, virado frontalmente para o observador; tem a cabeça aureolada com nimbo
simples (e não cruciforme como é mais comum), cabelos longos, a caírem-lhe em duas
madeixas, sobre os ombros e o peito; barba e bigode anelado; cobre parte do corpo com
um manto, deixando o peito e a parte inferior das pernas e pés desnudos; estende e abre
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
uma das mãos (a outra encontra-se destruída, pelo que não podemos fazer afirmações
sobre o gesto anteriormente exercido).
Cristo Ressuscitado entre os Apóstolos. Face longa do túmulo de D. Isabel de Aragão. Foto: José Pessoa/DDF/IPM.
A nudez do peito e dos pés, bem como a postura das mãos, permitem revelar o
que as roupagens e os gestos das imagens românicas ocultam: as chagas da Paixão. Este
é, portanto, o Cristo Ressuscitado que se revela aos Apóstolos, seus companheiros
terrenos, mostrando-lhes os sinais do seu martírio, e que se revela à humanidade como
testemunho da possibilidade de Redenção. Este tema é, pois, a afirmação da crença na
salvação e na redenção através da morte e do Juízo Final protagonizado por Cristo.
A mesma intencionalidade subjaz à concepção iconográfica do terceiro Cristo
deste túmulo, lavrado na testeira, entre o Calvário e o símbolo iconográfico do
evangelista Mateus. Aqui, porém, Cristo encontra-se entronizado sobre alto pedestal,
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
veste túnica cingida na cintura e manto que prende no peito com firmal idêntico aos que
vemos nos mantos dos apóstolos da face longa. O que o equipara à imagem cristológica
anterior é o facto de, originalmente, ter as duas mãos levantadas e abertas para mostrar
as chagas.
Esta última imagem reproduz, embora de forma mais singela, o tema que mestre
Mateo, nos finais do século XII, esculpiu no tímpano do Pórtico da Gloria da Catedral
de Santiago de Compostela. Na obra compostelana, o imenso Cristo, que marca o centro
do tímpano, encontra-se entronizado e coroado, mostrando a totalidade das chagas,
através do mesmo artifício da semi-nudez do corpo e das mãos abertas e viradas para os
fiéis; ladeiam-no os quatro símbolos dos Evangelistas e uma corte de anjos que seguram
e apresentam os instrumentos da Paixão (as arma Christi). Relevadora das transformações
da religiosidade que se fizeram sentir a partir de meados dessa centúria, esta composição
enaltece a humanização das figuras divinas. Como sublinha Manuel Castiñeiras
Gonzáles, a propósito desta obra, o antigo Pantocrator, solene e juiz, dá agora lugar a
imagens emotivas e sofredoras que tentam mostrar a natureza humana de Cristo, com o
objectivo de captar mais a benevolência que o terror das audiências19.
Tanto o Cristo do Pórtico da Glória, como as três imagens do túmulo da Rainha
Santa dão resposta visual ao culto do Corpo de Cristo, emergente no século XII como
tão bem testemunha o célebre hino composto por São Bernardo de Claraval (Rhythmica
oratio ad anum quodlibet membrorum Christi patiensis et a cruce pendentis) 20, e desenvolvendo-se
durante o século XIII, converten-se em imagens devocionais que pretendem mostrar
aos fiéis dos anos do Gótico, um Cristo sofredor, consubstancial da condição humana,
que lhes exibe as chagas do sacrifício do corpo.
Várias são as obras portuguesas do século XIV que testemunham,
inequivocamente, este culto do corpo de Cristo, insistindo nas suas penas e na
humanidade do seu ser. Na secção dos pés do túmulo do bispo D. Pedro IV (c. 1340 -Sé
de Évora), representa-se, também, Cristo em Majestade, deixando ver as chagas abertas no
torso semi-desnudo, e levantando os dois braços e as mãos com a mesma
intencionalidade. Aqui, porém, optou-se pela clássica representação, dentro da
19 Cf. Manuel Antonio CASTIÑEIRAS GONZÁLES, “La persuasión como motivo central
del discurso: la boca del infierno de Santiago de Barbadelo y el Cristo de las llagas del Pórtico de la
Gloria”, El Tímpano Românico. Imágenes, Estructuras y Audiencias, coord. Rocío Sanches Ameijeiras y
José Luis Senra Gabriel y Galán,Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2003, p. 246.
20 IDEM, ibidem, pp. 248-249.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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Face da arca onde se ilustram cenas da Infância de Jesus. Foto: José Pessoa/DDF/IPM
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
No nicho seguinte, segue-se a representação da Fuga para o Egipto, com São José,
de pé, a conduzir o jumento que transporta a Virgem e o Menino, olhando-a
ternamente, como que a transmitir segurança e confiança. Segundo o Evangelho de
Mateus, a sagrada família saiu durante a noite (profungit in tenebris), dirigindo-se para o
Egipto porque, desde tempos remotos, era o lugar preferencial de refúgio dos hebreus
em apuros25.
As cenas da Infância terminam com o sexto nicho desta face longa onde se
representou a Apresentação de Cristo no Templo ou Circuncisão. A figura do Menino já
desapareceu, mas ainda podemos contemplar as outras duas personagens que se
encontram no interior do templo, a Virgem e o Sacerdote, de pé, em frente ao altar.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
complexidade das composições de uma forma geral, quer pelo maior número de
personagens, quer pela variedade e riqueza dos cenários.
Cristo e os Apóstolos distribuem-se apertadamente num dos lados da mesa
rectangular e coberta com toalha, ficando de frente para o observador, à excepção de
um elemento (Judas), que se destaca de todos os outros, ao ter sido colocado no lado
contrário da mesa, mais perto do público, mas numa posição rasteira, algo escondida,
denunciando a culpa, aquando das solenes palavras proferidas por Jesus, a respeito da
traição de um dos Apóstolos. Toda a sua caracterização eleva a suspeita. A Última Ceia
não é apenas um momento de despedida e de revelação, mas também a instituição de
um dos principais sacramentos cristãos: a comunhão eucarística
Refira-se que esta não é a primeira iconografia da Última Ceia em túmulos
trecentistas portugueses, contando-se, entre os que nos chegaram, o túmulo de João
Gordo, na Sé do Porto, e o do bispo D. Afonso Pires, na Igreja de S. Pedro de
Balsemão (Lamego). Estas diferem substancialmente da que é representada no túmulo
de D. Inês de Castro, pelo esquematismo das composições, onde faltou a capacidade de
criar planos distintos para melhor distribuir as figuras e conferir-lhes maior naturalismo
(ressalve-se que o túmulo do bispo foi esculpido em granito, o que não proporciona a
criação de escultura de elevada qualidade). A verdade é que agrupar treze figuras em
torno de uma mesa, tornando-as visíveis e identificáveis, não se afigurou como solução
fácil para um grande número de artífices medievais, dando origem a representações com
total ausência de perspectiva, pouco verosímeis, em que a forma da mesa determinou a
maneira como eram distribuídas as personagens, sendo a mesa rectangular aquela que
mais dificuldades colocava. No caso da obra que aqui analisamos, a mesa é rectangular,
o que, uma vez mais, abona em favor do seu autor, pela solução que conseguiu criar.
No nicho seguinte, a representação da Agonia no Horto, ou Oração no Monte das
Oliveiras, propõe, pelo imobilismo das personagens, um claro sentido introspectivo do
dilema e combate moral que a personagem aí vive: Cristo ajoelhado e com as mãos em
prece, trava a dura luta interior, domando o medo do sofrimento e da morte, a mais
dura das tentações, dirigindo-se a Deus e aceitando o seu Destino conforme à Sua
vontade. Nesta batalha entre a carne e o espírito, recebe consolação de um anjo descido
do Céu e nele “suspenso”, enquanto os três Apóstolos, adormecidos sob a copa das
árvores (oliveiras), estão alheados do que ali ocorria.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
26 Flávio GONÇALVES, “O Suicídio de Judas na Arte Portuguesa”, Museu, 2.ª série, n.º 4,
Junho de 1962, separata, p. 5.
27 IDEM, ibidem, p. 7.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Pormenor do soldado
romano e da figura de
1. Beijo de Judas (Prisão de Cristo) e Suicídio de Judas (à direita). Judas enforcado com
2. Pilatos Lava as Mãos (à esquerda). alma a ser resgatada
3.ª e 4.ª edículas de uma das faces longas da arca do túmulo de D. Inês de por um demónio.
Castro. Foto: PAF
Foto: José Pessoa/DDF/IPM
Jesus é então conduzido ao tribunal civil dos Romanos, presidido pelo procurador
da Judeia, Pôncio Pilatos. Escoltado por diversas personagens, dispõe-se de frente para
o procurador romano que, à maneira de Heródes, na cena do outro facial do túmulo, se
encontra majestaticamente sentado. Perante a decisão que se vê obrigado a tomar, sob
pressão dos Judeus que também aí se encontram, Pilatos “lava as mãos”, como se vê
pela presença de uma figura que lhe traz um jarro com água, e outra que sustenta com as
mãos uma bacia, remetendo, assim, a decisão final da condenação ou da libertação, para
os representantes máximos da comunidade judaica. Mais uma vez se nota a habilidade
do autor desta composição na organização das cenas, criando diferentes planos que
colocam em evidência as figuras principais e, em segundo plano, outras, secundárias,
esculpindo-lhes apenas as cabeças e partes dos corpos.
A intensidade do drama acentua-se na cena seguinte, correspondente à Flagelação.
Cristo está preso a um pelourinho de gaiola, e não a uma coluna, como seria de esperar.
Mais uma vez, se pode afirmar, perante elementos como estes (e que constitui apenas
mais uma das novidades iconográficas deste túmulo), não ter sido alheio aos escultores
desta obra as vantagens de representar um instrumento de castigo mais próximo
daqueles que se podiam ver nas vilas e cidades da Idade Média, procurando, assim, uma
maior identificação entre a História e o presente e, também, entre Cristo e os homens.
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sões faciais dos intervenientes, o que faz distinguir este painel de muitos outros que
compõem o retábulo de Cornellà. E se maioria dos autores havia sublinhado a presença
de uma estética e de uma composição especialmente inspirada nos marfins franceses e
na pintura italiana para todos os painéis do retábulo, F. Español, ainda que aceite a
primeira fonte de inspiração e refute a inspiração na iconografia e estética da pintura
italiana, por considerá-la menos “agitada” e dramática que a obra catalã, encontrou, pelo
menos no que se refere à Flagelação, um paralelo mais acentuado nas composições das
iluminuras inglesas. Dá, para isso, importantes exemplos, como a Flagelação do Saltério
Luttrell ou as iluminuras do designado “grupo Peterborough”29.
Flagelação. Saltério Luttrell. Londres. British Library, Add. 42130, fl. 92v.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
o momento em que Ele, já flagelado e com o corpo cada vez mais esquelético,
carregando uma imensa e pesada Cruz sobre um dos ombros, pára para olhar e dirigir-se
ao grupo das mulheres que o seguem, em particular a Virgem Maria.
Esta, inserida num grupo de figuras com rostos semi-cobertos pelos mantos,
num gesto discreto de piedade e amor, segura um dos braços da Cruz, procurando
aliviar-lhe a dor e o sofrimento no caminho da morte. À frente segue um soldado
romano, precedido por uma figura de criança que segura os cravos da Cruz.
Encontramos novamente paralelos entre esta composição e as iluminuras
inglesas e francesas da primeira metade do século XIV. O pathos acentuado que
transmite o corpo quase nu e macerado de Cristo, bem como o gesto da Virgem a tocar
a cruz com uma das mãos, segue muito de perto o modelo que encontramos no tema
homónimo numa das iluminuras do denominado “grupo Peterborough”, enquanto que
no Cristo a Caminho do Calvário do Livro de Horas de Jeanne d’Evreux (Jean Pucelle), gestos
como o do torção da cabeça de Cristo para trás, olhando para a Virgem, ou a inserção
da figura central num conjunto mais vasto de personagens que a precedem, apresentam
também alguns paralelos com a composição tumular.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Todas estas edículas historiadas são divididas entre si por estreitos nichos, em
jeito de torres gabletadas, onde se inserem figuras de profetas e antigos reis bíblicos,
cada um com uma filactéria que o identificaria (hoje já não é possível fazê-lo e não
sabemos se algum dia o foi). Tratar-se-ão, muito provavelmente, das representações dos
profetas que anunciaram a vinda do Salvador, e dos reis do Antigo Testamento que o
prefiguram.
O público que percorre com o olhar a sequência das cenas da Paixão é, então,
conduzido para a cabeceira do túmulo, onde, num quadro de superiores dimensões, na
secção correspondente à arca, se representa o Calvário.
Conhecemos, é certo, outras representações do Calvário em arcas tumulares
portuguesas do século XIV, como são os já referidos exemplos os túmulos da Rainha
Santa ou de D. Fernão Sanches. Mas nenhum é tão desenvolvido e nenhum é tão
expressivo e emotivo como o que se releva na arca tumular de D. Inês de Castro.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Corolário e motivo maior da vinda de Jesus ao mundo dos homens, esta cena
assume, aqui, uma extraordinária vocação emotiva e catequética. Todo o cenário e a
forma como se organizam as personagens, fazem-nos pensar nas representações teatrais
(Mistérios) que então se faziam nas igrejas e catedrais, especialmente durante a Semana
Santa, não sendo de todo impossível que estas tenham influenciado a estética global da
composição da cabeceira do túmulo, bem como de algumas cenas das faces laterais,
como já havia aludido Flávio Gonçalves, a propósito da iconografia do Suicídio de Judas30.
Na parte superior deste cenário, a simular um céu repleto de entidades angélicas
envoltas em nuvens (muitas já desaparecidas), e segurando toalhas para limpar o sangue
de Cristo, vemos também a figura antropomorfizada do Sol, à direita de Cristo (em lugar
de honra), à que, originalmente, deveria corresponder a figuração da Lua. Pretendeu-se,
30 “A frequência destes Judas dependurados, de barriga aberta e de alma a ser conduzida por
demónios, justifica-se pela acção que o teatro da época exerceu sobre os artistas. Divulgados durante
o século XIV, os mistérios atingem o apogeu nos séculos XV e XVI, contribuindo bastante para a
formação da mentalidade das populações”. Cf. Flávio Gonçalves, “O suicídio de Judas...”, op. cit.,
1962, p. 12.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
desta forma, dar destaque ao eclipse descrito nos Evangelhos, ocorrido ao meio-dia de
sexta-feira.
Em baixo, e ladeados por dois nichos onde se enquadram dois profetas,
reproduz-se o topo do Gólgota, tendo atrás de si um palácio acastelado que simboliza
Jerusalém. Em primeiro plano, distribuem-se dez personagens: ao centro, pendente de
uma grande cruz, cujo braço vertical superior possui inscrição epigráfica gravada numa
fita que nele se enrola, a figura algo contorcida e magra de Jesus pontua o eixo da
composição. Já lhe falta a cabeça e os braços, mas o tratamento plástico do corpo não
deixa de ser notável.
De um e outro lado da cruz onde está Cristo, erguem-se as duas cruzes, mais
pequenas, onde estão o Bom e o Mau Ladrão, com idêntica postura dos braços e das
pernas, dificultando, assim, a identificação entre ambos, mas que a disposição, à direita e
à esquerda de Cristo, deverá bastar para que os identifiquemos.
Na extremidade esquerda da composição, encontra-se figurado um soldado,
segurando com uma das mãos o escudo, e com a outra uma arma (espécie de maça),
com que vai partir as pernas ao ladrão que se encontra crucificado junto de si.
Do outro lado da cruz que se supõe ser a do Bom Ladrão, agrupam-se três
mulheres, cuja caracterização lhes confere, em nossa opinião, a categoria de melhor
trecho compositivo de todo o túmulo, revelador de um notável entendimento plástico e
concepção artística: Maria, já sem conseguir suportar estoicamente o sofrimento,
desfalece31, caindo, e é amparada pelas Santas Mulheres. O seu corpo parece agora sem
vida, totalmente abandonado ao inconsciente, concentrando em si a maior parte do
pathos que marca toda a cena. O sentido estático conferido aos corpos das outras duas
mulheres, com os olhares virados para o solo e com os véus que cobrem as suas cabeças
a pender, acentuam o sentido descendente que normalmente se atribui à caracterização
da tristeza e da dor. Esta é, de facto, e como já havia sublinhado Reinaldo dos Santos,
uma das mais belas e impressionantes páginas deste grande “livro de horas” de
calcário32.
Maria a desfalecer aos pés da cruz, numa cena do Calvário. Como bem nos sugeriu o Prof. Doutor
Fernando António Baptista Pereira, este é um tema que surge, inicialmente, na arte italiana, e de que
é bom exemplo um crucifixo do acervo da National Gallery de Londres, datado de 1272-1285
(NG6361), passando depois à arte francesa e também peninsular.
32 Reynaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, pp. 28-29.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
cena do túmulo tenha optado por colocá-lo à direita, junto do grupo dos homens),
apresentam importantes pontos de comparação e sugerem um referente iconográfico de
inspiração que deve ser tido em conta
Talvez esta aproximação composicional e iconográfica que se verifica, quer às
iluminuras inglesas, quer às francesas, em especial à obra de Jean Pucelle, represente
mais um indicador, para juntar a outros avançados por Luís Urbano Afonso, de que as
obras de Alcobaça em muito são subsidiárias da iluminura dos séculos XIII e XIV e,
694
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
talvez, que na sua elaboração possam ter participado, se não artífices ingleses ou
franceses, quiçá catalães (também fortemente influenciados pela arte dos livros
iluminados parisienses e ingleses, bem como pelos marfins franceses, e como se verifica
nos retábulos de pedra que se produziram na centúria de Trezentos na Antiga Coroa de
Aragão), trazendo consigo modelos tipológicos que conseguiram desenvolver e até
aperfeiçoar.
Não queremos com esta proposta retirar crédito às de outros investigadores que
entenderam estes dois túmulos como resultado de uma oficina portuguesa (desde
Vergílio Correia)33, certamente coimbrã34, possível no seguimento de uma arte que se
33 O autor entende que esta obra se inscreve na tradição que vem do Sul (Lisboa),
“nitidamente desligada da evolução contemporânea de Coimbra”. Cf. Vergílio CORREIA, op. cit.,
1924, pp. 34-35.
34 Diogo de MACEDO, “Os Túmulos de Alcobaça” Ocidente, Lisboa, s.d., separata, p.8),
defendeu que os túmulos “foram delineados por um artista francês e esculpidos por vários mestres
portugueses, de boa oficina, ainda que sujeitos ao risco inicial do seu inventor ignorado (…)”. Já
Lourenço Chaves de ALMEIDA, Os Túmulos de Alcobaça e os Artistas de Coimbra, Lisboa, Junta de
Província da Estremadura, 1944, pp. 14-15, defendeu a autoria portuguesa (coimbrã). Reinaldo dos
SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, pp. 21-28, ainda que aceite que “muito nestas duas obras é novo e
desusado dentro da evolução precedente da escultura nacional, e até da própria arte peninsular” e
que a “exuberância da decoração figurativa e ornamental das arcas, a composição do Juízo Final de
inspiração iconográfica francesa, rica como a dos tímpanos de uma catedral, a originalidade da
rosácea, que tão logicamente decora as fachadas das igrejas como raramente – caso único – se
inscreve no quadro do sarcófago, tudo é excepcional”, ainda assim, entendeu que “qualquer que seja
o seu autor – francês, espanhol ou português – é dentro da evolução da escultura nacional que o
temos que incorporar, porque foi aqui que obra foi concebida e realizada na sequência de uma
evolução que prepara e explica a sua arte original, sem afinidades directas com protótipos
peninsulares ou franceses, que justifiquem integrá-los numa evolução artística estranha”. Pedro
DIAS, “A arte portuguesa nos séculos XIII, XIV e XV”, História de Portugal, dir. José Hermano
Saraiva, vol. III, Lisboa, Alfa, 1983, pp. 305 e 311, afirmou que são “certamente, obra de nacional,
indiscutivelmente o melhor escultor do tempo, que teve para a sua execução as melhores condições
de trabalho possíveis então, dada a vontade do monarca de conseguir duas sepulturas à medida da
sua paixão e da sua raiva. A escultura gótica nacional evoluciona regularmente a partir de meados do
século XIII, dá um salto qualitativo importante com a vinda de Mestre Pero, para servir D. Isabel de
Aragão, e atinge o seu ponto mais alto com a execução dos magníficos mausoléus de D. Pedro e D.
Inês”. Mas o mesmo autor, três anos depois (op. cit., vol. IV, 1986, p. 128), colocou a hipótese de
outra nacionalidade para a autoria dos dois túmulos, sublinhando que “não podemos pôr de lado a
possibilidade de o seu autor ser estrangeiro, um francês, pois em muitos aspectos o que se vê em
Alcobaça encontra paralelos ou protótipos em diversos pontos do Centro e Sudeste de França”,
dando como exemplos o retábulo com cenas da Paixão do Museu de Cluny (c.1350) e fragmentos do
túmulo de Carlos V, ou mesmo, e ainda anterior a estas obras, alguns elementos da fachada da
Catedral de Chartres. Francisco Pato de MACEDO e Maria José GOULÃO, “Os túmulos de D.
Pedro e D. Inês”, História da Arte Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores,
1995, p. 446, entendem haver participação de mestres das oficinas de Coimbra, pelo facto da pedra
em que foram lavrados os túmulos ser oriunda das pedreiras desta região, e defendem a existência
de mãos diferentes que se reflectem visivelmente no trabalho final Já Paulo PEREIRA, 2000 anos de
Arte em Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p. 187, defendeu que os lavrantes pudessem ter
sido, eventualmente, estrangeiros, enquanto que José Custódio Vieira da SILVA, “Os túmulos de D.
Pedro...”, op. cit., 2000, p. 371, ainda que afirme que “a autoria destes dois túmulos continua
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
mergulhada no mais completo desconhecimento”, concluiu que “estamos em crer, porém, que
poderá ter sido uma dupla de escultores eventualmente portuguesa”, à semelhança do que
aconteceram com o túmulo de D. Gonçalo Pereira. Mário Jorge BARROCA, (Carlos Alberto
Ferreira de ALMEIDA e Mário BARROCA, op. cit., 2002, pp. 236-237), colocou a hipótese de uma
realização devida à parceria de mestres estrangeiros que realizaram “um monumento único, sem
antecedentes e sem continuidade”, e apesar de não rejeitar em absoluto a participação portuguesa,
sublinha que “também os argumentos do «espírito nacional» que se plasmaria na sua arte, que tanto
agradaram à nossa historiografia num passado recente, não se afiguram decisivos para garantir a
origem portuguesa do(s) seu(s) autor(es)”.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
mosteiro (como comprova o já muito citado e recente estudo de Luís Urbano Afonso),
trazendo consigo uma plástica nova e modelos iconográficos diferentes, e sem
“constrangimentos de orçamento”, o resultado final só poderia ser de excepcional
qualidade.
Assim, e ainda que a participação portuguesa seja possível de equacionar,
maiores são os motivos que nos levam a defender a participação estrangeira nestas
obras, quer esta seja espanhola, francesa ou mesmo inglesa.
No que se refere à escolha do programa iconográfico alusivo à Vida de Cristo,
com especial ênfase na sua Paixão, não deverá ser entendido apenas como desejo de D.
Pedro em glorificar a imagem da sua amada, atribuindo ao monumental túmulo que lhe
mandou lavrar a principal iconografia do Cristianismo, e relegando para o seu as cenas
da Vida e Martírio de São Bartolomeu, claramente de importância inferior, ainda que,
certamente, relevante. A presença destes temas, onde o Calvário comporta aqui uma
dimensão e sentido trágico sem precedentes na arte tumular portuguesa, justifica que
aceitemos ter havido a intenção de expressar uma subtil comparação entre o martírio de
Cristo e o sacrifício de Inês, conferindo-lhe, desta forma, “contornos de martírio
santificado”35.
A morte de Inês de Castro foi uma “má morte”, sem tempo para confissões ou
sacramentos eucarísticos, ao contrário da de D. Pedro, preparada e assistida, como tão
bem quis que ficasse registado através da iconografia escolhida para a secção
correspondente aos pés da sua arca funerária. Morte considerada injusta, violenta,
justificada pelas estranhas Razões de Estado, ela não deixa de se poder assemelhar com
a morte de Jesus, onde prevaleceu a incompreensão dos seus mandatários, sacrificando-
se o Bem, encarnado pelo Salvador, em benefício da manutenção da ordem política e
religiosa estabelecida.
Ao adquirir estes contornos de martírio santificado, a punição exemplar a que
foram sujeitos os carrascos de Inês, mais não pareceria do que o justo e pleno exercício
da justiça, perfeitamente justificada segundo a compreensão do seu mandatário,
havendo, pois, um paralelo entre Cristo Juíz, que reina no Além, e que podemos ver no
35 Francisco Pato MACEDO e Maria José GOULÃO, “Os túmulos de D. Pedro e D. Inês”,
op. cit., 1995, p. 449 já havia aludido para esta intenção ao referir que, “Nos frontais do túmulo de D.
Inês, um conjunto de cenas hagiográficas centradas na Vida de Cristo constitui um ciclo de vida e de
morte, destinado com toda a certeza, a estabelecer analogia simbólica com a vida da tumulada”.
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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Juízo Final da testeira do túmulo, e D. Pedro I, reinante na terra, com poder vindo
directamente de Deus e com a incumbência de praticar a justiça, algo a que este reinado
ficou particularmente vinculado.
Esta procura de uma imagem próxima da santidade para D. Inês de Castro é
perceptível, igualmente, na estátua jacente, espelho de um modelo perfeito de virtudes
cívicas e religiosas, cuja alma é digna de ser amparada e transportada por um grande
número de anjos, bem como na presença da dama, já na qualidade de ressuscitada, a
assistir ao desenrolar dos acontecimentos no dia do Juízo Final.
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