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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PODER E REPRESENTAÇÃO
ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
Primeira Dinastia. Séculos XII a XIV

Carla Varela Fernandes

volume II

DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA

HISTÓRIA DA ARTE

2005
III.
iconologia da família real portuguesa
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A GLÓRIA TERRENA E A SALVAÇÃO: EM BUSCA DA FAMA E DA IMORTALIDADE

Os vários temas que dispomos para análise neste estudo reflectem realidades e
intenções distintas, mas complementares, no quadro de uma abordagem iconológica. Se
alguns destes temas demonstram o desejo de salvaguardar valores ligados ao universo
social, à glorificação de um cargo, de um estatuto, de uma instituição, de um grupo social
ou mesmo de um indivíduo específico, outros transcendem esse mesmo universo e
projectam-se num discurso vocacionado para a imagem que pretendem dar de si no Além,
com vista à salvação da alma e ao gozo pleno da bemaventuramça perdurauel1.
Nesta confluência de aspirações ou afirmações de ordem social e espiritual que
compõem a estruturação da imagem pública dos vários indivíduos, reside, pois, o principal
fundamento da imagem material, aquela que, após o desaparecimento do corpo físico, os
exaltará e perpetuará no mundo dos vivos. Por isso, o conceito de “imagem” deve ser aqui
entendido nas suas duas vertentes: imagem conceptual, como “estrutura” muito ampla que
radica na forma como as virtudes e os defeitos destes indivíduos foram vistos; e “imagem”
enquanto matéria, enquanto objectos tangíveis que os representam ou que representam
conceitos, devoções pessoais e aspirações de cada um.
Neste sentido, julgamos poder definir os objectos com os seus conteúdos
iconográficos e iconológicos como arte da história manipulada e como arte da memória. Na
verdade, o fim a que se destinavam estes objectos e documentos não os diferencia
substancialmente de outros documentos da investigação histórica, que, igualmente
manipulados pelos seus encomendadores ou executantes, pretendem dar uma imagem mais
favorável ou menos positiva, consoante os interesses do momento.
Como bem definiu Manuel Castiñeiras, “en pocos períodos como el de la Edad
Media la falsificación, la invención y la obliteración fueron consubstánciales al ejercicio de
la memoria histórica. Crónicas, documentos y leyendas están repletos de falsos históricos
al servicio de una ideología que buscaba a través de la memoria escrita la transformación
del pasado en beneficio del presente y con ello condicionar irremediablemente su
recepción posterior. De entre las muchas fórmulas de alteración de la historia destaca por

1 Cr. 1419, D.D., XXI, 65.

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su sutileza e efectividad la búsqueda intencionada del olvido, puesto que éste, al obviar una
memoria, conlleva la afirmación de otra que sustituye y oculta la precedente”2.
A criação, ou mesmo, manipulação, de uma memória é, antes de mais, uma forma
de ganhar lugar na História. No caso dos poderosos, a conquista desse lugar não se
questiona, pois ela está ganha à partida. O que está em causa é a obtenção de um melhor
lugar na História, um lugar de herói, de santo, de sábio... Ora, estes não são predicados que
se apliquem facilmente e com veracidade a todos os que os ambicionam. É aí que entra o
factor “manipulação” ou “recriação” da memória, uma espécie de ajuda emprestada à boa
construção. É para aí que confluem as redacções das vidas (dos prodigiosos feitos no
campo de batalha, as aparições divinas, os sonhos místicos, os actos de bravura, os mais
abnegados actos de misericórdia e piedade, a construção de igrejas…), os longos
testamentos, ou as imagens propagandísticas pintadas ou esculpidas nos diversos meios
emissores de mensagens.
A análise dos escritos medievais portugueses, como as crónicas ou mesmo os
poemas, relevam-nos que, por entre os verdadeiros factos históricos, contados de tantas
maneiras diferentes nos distintos documentos, invenções ou falsificações se entrelaçam
com a verdade, com vista ao enaltecimento ou à calúnia, engrandecendo ou diminuindo a
importância e o valor daqueles a quem se referem.
O confronto entre o documento escrito e o documento plástico e iconográfico é,
sem dúvida, a mais valia do historiador da arte. Porém, não raras vezes, a ausência de um
ou de outro tipo de documento apenas permite valorizar aquele que traduz a informação,
conduzindo-nos para o campo das hipóteses ou para a cripto-história da arte3.
No contexto das intenções do nosso estudo, definido em linhas gerais pela análise
de imagens com suportes diferenciados, a partir das quais desejamos extrair o seu conteúdo
enquanto documento histórico, analisamos as imagens como documentos e como
monumentos. São documentos palpáveis e precisos que exprimem a pulsão de uma

2 Manuel Antonio CASTIÑEIRAS GONZÁLEZ, “Poder, memoria y olvido: la galería de


retratos regios en el Tumbo A de la Catedral de Santiago (1129-1134)”, Quintana. Revista de Estudios do
Departamento de Historia da Arte, n.º 1, Universidade de Santiago de Compostela, 2002, p. 187. A este
respeito veja-se, ainda, Júlio CARO BAROJA, Las falsificaciones de la Historia (en relación con las Españas),
Barcelona, 1992, p. 17.
3 Sobre o conceito de Cripto-História da Arte veja-se o importante contributo de Vítor

SERRÃO, A Cripto-História da Arte. Análise de Obras de Arte Inexistentes, Lisboa, Livros Horizonte, 2001.

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sociedade, ainda que apenas de uma sociedade de elite. Sem recorrer a representações
posteriores ao período de vida das personagens em análise, interessa-nos o conjunto das
“imagens” que influenciaram os seus contemporâneos.
Certo é que as vias da criação iconográfica se manifestam, nestes casos,
essencialmente, nos monumentos funerários. Estes evoluem de formas muito simples e
onde a representação do corpo está totalmente ausente, para outras mais elaboradas, mais
volumosas e aparatosas, onde a estátua jacente constitui uma das mais importantes
figurações dos indivíduos, conjugada com outros temas que se associam a eles, ou,
simplesmente, associados a crenças de carácter universal. O valor totalmente reconhecido à
emergência e consequente desenvolvimento das representações jacentes impõe, porém, que
lhe dediquemos uma atenção especial.
E se, no caso português, nos ressentimos da escassez de iconografia régia vinculada
a outros suportes (especialmente em iluminuras, numa realidade tão oposta ao que
aconteceu em Castela, França e Inglaterra entre os séculos XII e XIV), outros meios de
propaganda pelas imagens devem ser valorizados, como são os casos dos selos e das
moedas, bem como os escassos exemplos de estatuária.
Somos movidos pela convicção de que a partir destas “imagens” encontraremos os
sinais, ou mesmo as evidências, que servirão de chave para abrir portas de “salas
nebulosas” onde se escondem respostas às perguntas a que os documentos escritos, ou a
falta deles, não respondem totalmente.
Tal como tem vindo a provar a mais recente historiografia da arte, as imagens
medievais, num todo, não foram apenas criadas como mecanismos de informação didáctica
e de testemunhos para os iletrados, mas sim como mecanismos de memória para todos os
que preenchem o corpo social, presente e vindouro. Elas são o espelho de uma sociedade e
dos seus valores, dos grandes momentos e das desventuras. Não temos, por isso, dúvidas,
de que eram compreendidas pelos seus contemporâneos. Se assim não fosse, não teriam
razão de existir. É certo que o registo da sua compreensão poderia variar de acordo com o
grau de conhecimentos de cada receptor. Porém, a leitura era certamente feita por todos e
é, nesse objectivo, que radica o grande poder das imagens – o poder da intercomunicação.
Desta forma, não podemos aceitar a existência de uma arte “ingénua” ou
“descomprometida”. Toda a criação imagética tem, pelo menos, um objectivo, mais ou

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menos poderoso, mais ou menos eficaz, e tem, seguramente, um receptor, ou receptores-


alvo, uma audiência, a quem a mensagem, ou mensagens, são dirigidas. No caso específico
dos governantes, ou daqueles que ocupam posições de charneira relativamente ao grupo
social em que se inserem, o investimento nos conteúdos das mensagens expressas através
das imagens é, necessariamente relevante, operando enquanto forma, ou enquanto
instrumentos de propaganda.
Os nossos soberanos, bem como alguns dos seus familiares, investiram em acções
propagandísticas, ou deixaram-se propagandear por outros, em acções ou edificações
pontuais e resultantes das suas próprias consciências individuais, ou, em acções/edificações
mais ou menos espontâneas levadas a efeito por aqueles que os rodeavam, que bem os
conheciam, ou que deles desejavam obter alguma benesse. E, como têm vindo a sublinhar
alguns historiadores do pensamento político medieval, o fundamento mais sólido do poder
monárquico é, precisamente, a sua representação.
Quer o conjunto de símbolos (ou insígnias) que fazem acompanhar as suas pessoas,
ou com as quais se fazem retratar, quer a complexa linguagem das narrativas e símbolos
representados nos monumentos que guardam os restos mortais destes homens e mulheres,
constituem formas de propaganda e de enaltecimento pessoal, mas também de exaltação da
própria monarquia e da própria nobreza. Nestas obras encontra-se subjacente o
reconhecimento do poder régio como emanação divina, e do poder da nobreza, enquanto
classe dominante. Tratam-se, pois, de imagens de auto-afirmação e de imagens ao serviço
do poder político, intervindo no universo social à maneira de panegíricos.
Desta forma, podemos interrogar-nos até que ponto a iconografia régia revela aos
observadores as personagens verídicas, as personagens históricas, os gestos das suas vidas,
os seus pensamentos e sentimentos íntimos? Até que ponto existe coincidência entre as
memórias representadas e a verdadeira existência desta ou daquela personagem? A resposta
não é tão clara quanto à partida poderá parecer.
Não deixa de ser notório que a grande maioria dos casos analisados se perpetuou
através de uma memória manipulada, pelos próprios ou pelos que lhes sobreviveram, uma
memória embelezada que não transpira debilidades, incertezas, medos, erros e injustiças.
Tudo concorre para a sensação de perfeição moral, de paz temporal e espiritual.
Glorificam-se as façanhas que conduziram às vitórias, as grandes virtudes propostas para

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cada momento histórico, a convicta e piedosa fé que parecem ter possuído até ao último
sopro de vida. Quase de forma uníssona, não se deixam espaços em aberto nesta
iconografia dos grandes do mundo secular para que se expressem anomalias sujeitas a
crítica e, sobretudo, ao esquecimento. A iconografia parece dizer-nos que todos os
membros deste grupo de elite são de “de boa memória” – a memória exímia, a memória do
poder.
Alguns, porém, deixam vinculados, de maneira indelével, a marca das suas paixões,
a marca de uma vivência plena dos seus altos e baixos, atravessada por arrebatamentos
súbitos, sem fio de temperança, à maneira dos homens do mundo, filhos de Adão. Mas,
mesmo sujeitos à Roda da Vida/Roda da Fortuna que uniformiza todos os seres não
divinos, eles, os eleitos de Deus, reencontram-se com o bom caminho e, em jeito de
catarse, terminam, por fim, como seres perfeitos, deixando para o futuro a imagem
controlada e perfeitamente ajustada de quem nada ficou a dever, indo então, em “plena e sã
consciência”, ao encontro do Juiz Supremo, o mesmo que lhes legou o máximo poder
terreno sobre todos os homens, o poder real. Em outras palavras, trata-se do mito que
suplanta a realidade.
Foi seguindo esta sequência que estruturámos o nosso estudo no que se refere à
análise estritamente iconográfica e iconológica dos temas afectos aos sujeitos envolvidos.
Partindo da observação dos atributos e formas de representação dos membros da família
real, num conjunto de imagens vinculadoras de conceitos ligados, essencialmente, ao
mundo temporal (nomeadamente, o conceito de fama), e estabelecendo, sempre que
possível, relações com acontecimentos reais ligados às suas vidas, com os fundamentos
ideológicos que regiam as condutas de cada grupo social, as suas crenças e valores, para,
depois, chegar aos símbolos e temas que nos relevam as preocupações inerentes à morte,
desde a sua preparação à lamentação, e, sobretudo, às preocupações com a imortalidade,
com recurso a mensagens dirigidas não apenas à sociedade coeva, mas à dos tempos
futuros e funcionando simultaneamente como votos propiciatórios do destino das suas
almas no Além.
É o não esquecimento que está em causa. É a fuga ao marasmo de que se reveste a
memória da humanidade, ingrata e fugaz, que move estes homens e mulheres, conscientes
dos efeitos nefastos da morte, que tudo apaga, que tudo esquece. Com esse firme

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objectivo, os investidos de poder, marcado ou não pelo selo divino, preocuparam-se e


manifestaram-se no sentido da salvaguarda da sua memória, social e espiritual, através de
representações de grande riqueza nuns casos, mais discreta noutros e totalmente ausente
para outros.

1. QUANDO O CORPO SE FAZ APARATO


As diversas questões em torno da valorização que o corpo e os gestos adquiriram
na Baixa Idade Média têm sido, nos últimos anos, alvo de profundas e inovadoras análises
por parte de historiadores da Arte e da Antropologia histórica, destacando-se os trabalhos
de François Garnier4, Jean-Claude Schmitt5, Caroline Walker Bynum6, Moche Barasche7,
Xavier Barral i Altet8, Manuel Núñez Rodríguez9, entre muitos outros. Por isso, julgamos
ser desnecessário abordar, de forma desenvolvida, ideias e conceitos que estão amplamente
estudados e divulgados, podendo-nos conduzir ao erro de desenvolver generalidades do
conhecimento histórico e cair em inevitáveis e indesejáveis repetições perante as
conclusões pioneiras de outros autores, mais abalizados nestas matérias.
No entanto, algumas questões que envolvem o ressurgimento do interesse pelo
corpo e pela sua representação, nas cronologias que aqui nos ocupamos, não podem deixar
de ser referidas e até analisadas, quando confrontadas com o corpus iconográfico desta
dissertação.
A iconografia dos poderosos espelha, dentro das especificidades da condição social
destes homens e mulheres, uma valorização e um cuidado especiais na apresentação dos
seus corpos, representados em vários suportes, indo de encontro à condição de

4 François GARNIER, Le Langage de l’Image au Moyen Âge. Signification e Symbolique, 2 vol., Le


Léopard d’Or, 1982.
5 Entre os vários trabalhos deste autor em torno do corpo e dos gestos, veja-se op. cit., 1990 e

“La moral de los gestos”, Fragmentos para una Historia del Cuerpo Humano, (ed Feher Michel,), Parte II,
Madrid, Taurus, 1991, pp. 129-146.
6 Carolina Walter BYNUM, “El cuerpo femenino y la pratica religiosa en la baja Edad Media”,

Fragmentos para una Historia del Cuerpo Humano, Parte I, Madrid, pp. 163-225 e The Resurrection of the Body in
Westeern Christianity 200 – 1336, Nova York, Columbia University Press, 1995.
7 Moche BARASCHE, Giotto y el Lenguaje del Gesto, Madrid, Akal, 1999 (1.ª ed. Cambrigde

University Press, 1990).


8 Xavier BARRAL I ALTET, “The reality of the body” e “Sculpture and politics. The princely

tomb effigies”, Sculpture. The Great Art of the Middle Ages from the Fifth Century to the Fifteenth Century,
Taschen, 1989, pp. 166-177.
9 Vejam-se todos os trabalhos citados neste estudo.

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protagonistas da História, ou seja, de agente humanos com responsabilidades acrescidas


quanto à exemplaridade. É evidente que a busca de fama e de imortalidade é, nestes casos,
mais visível e preponderante do que nos indivíduos ditos comuns. Como tal, não pode
estranhar que as suas representações estejam imbuídas de um conjunto de símbolos e de
signos que se manifestam através de uma mais visível corporeidade, ou de atributos, mas
também de gestos e até de fisionomias que expressem essa mesma exemplaridade.
Representações régias, pintadas ou esculpidas, elas são sempre o reflexo de um
desejo de exaltação dos valores próprios das monarquias e da pessoa do rei (ou da rainha) e
actuam como poderosos meios propagandísticos, tanto mais amplos e valorizados quanto
mais frágil é a legitimidade do poder, ou a capacidade de assegurar uma determinada
linhagem do trono. No caso português, a legitimidade e continuidade dinástica não sofreu
sérias ameaças durante o período de governo da designada Dinastia de Borgonha, o que
talvez justifique o parco número de representações dos nossos monarcas, quando
comparado com a situação verificável para o mesmo período em Castela, Leão, França ou
Inglaterra.
Nestes países, a abundância de representações régias é especialmente acentuada
durante determinados reinados, em que a necessidade de valorização do poder e da
soberania de alguns monarcas se fez sentir de forma especial, condicionada por diferentes
razões. Por isso, a iconografia régia não se restringe aí apenas aos monumentos funerários,
mas, estende-se, e de forma muito ostensiva, à iluminura, à escultura monumental e até à
sigilografia e à numismática.
Em Portugal, pelo contrário, poucos são os exemplos de iconografia régia fora do
âmbito funerário, pelo menos no que se refere às representações pintadas, de que apenas
conhecemos dois singelos exemplos de pouco valor artístico, ou à escultura monumental
de que apenas se conhecem duas estátuas de vulto perfeito (alegadas representações de D.
Afonso Henriques), e que não podemos afiançar qual o seu lugar de exposição original. A
sigilografia permite-nos, apenas, através de um muito restrito número de espécimes, tecer
importantes considerações sobre a iconografia régia ao tempo de D. Afonso IV e, no que
se refere às rainhas e infantas, definir as tipologias de representação e figurinos mais
comuns na época. No que se refere à numismática, até ao reinado de D. Fernando I, os
modelos são muito repetitivos, embora com características estilísticas distintas, para

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assumirem um notório pendor de inovação e de complexidade durante o período de


governo do último monarca da primeira dinastia.
São, por isso, os jacentes, e algumas representações das personagens régias nas arcas
tumulares, que melhor permitem a compreensão das formas de representação dos
elementos da família real portuguesa, pelo que, não podemos deixar de procurar
estabelecer as relações existente entre estas representações e os conceitos inerentes ao
aparato próprio do exercício do poder, aos rituais de acesso a esse mesmo poder e aos
rituais de passagem do poder para as mãos do sucessor.
Assim, para compreender o conjunto de aspectos que caracterizam a iconografia
régia, nas estátuas jacentes ou em outro tipo de obras que se prestam à figuração dos
nossos reis e/ou rainhas, é necessário passar em revista questões relacionadas com os
rituais mais importantes do poder monárquico, bem como às insígnias próprias do poder
régio. Só esse entendimento permite perceber a evolução de um regis apparatu nos jacentes
dos nossos monarcas e respectivas rainhas, por vezes idêntico ao que se processava
noutros países e, outras vezes, com características próprias que espelham um realidade
distinta da que se verifica nas congéneres monarquias europeias. Também, assim,
poderemos compreender melhor as opções iconográficas dos descendentes legítimos e
ilegítimos da Casa Real.

1.1 Os Jacentes
Os jacentes e a sua evolução constituem uma das principais características da arte
escultórica produzida durante a Baixa Idade Média, podendo ser considerados com uma
criação eminentemente gótica. O processo evolutivo da construção destas estátuas
tumulares já foi alvo de estudo por parte de muitos autores, nos respectivos países de
origem, mas também, de uma forma generalizada, ao nível da arte europeia. Em Portugal,
os diferentes autores que escreveram sobre escultura gótica, têm vindo a sistematizar o
processo evolutivo dos jacentes e as suas variantes, entre os séculos XIII e XV, contando-
se, entre a historiografia mais recente, com o estudo e análise minuciosa da autoria de
Mário Jorge Barroca, que traça as linhas gerais deste processo através dos exemplos

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

existentes, estabelecendo as ligações entre si, e associando-os às mutações sociais e das


mentalidades10.
No enquadramento temático deste estudo escusamo-nos, porém, de traçar as
linhas gerais da evolução dos jacentes góticos portugueses, abordando apenas aqueles
que se referem a personagens da família real, sem que possamos deixar de estabelecer
os inevitáveis paralelos ou diferenças com outros pertencentes a personagens fora deste
círculo restrito.
Veremos, pois, como o papel desempenhado pelos jacentes não foi insignificante
aos olhos de quem quis proclamar uma condição social privilegiada, a fama póstuma ou
mesmo, a imortalidade, quer em Portugal, quer nos restantes reinos da Europa de então.
Procuraremos, também, estabelecer a sua relação, em particular com os casos francês e
inglês, bem como com os que se verificam noutros reinos ibéricos, quer por similitude,
quer por diferença.
No que se refere ao progressivo avanço para a uma maior volumetria, e logo, uma
maior visibilidade na representação dos poderosos, os monumentos funerários dão-nos,
provavelmente, os melhores exemplos. Na Europa dos séculos XII a XIV, a Europa das
Catedrais, os poderosos iniciaram, não apenas a conquista do espaço religioso para lugar de
enterramento e valorização das suas memórias, mas, também, uma maior dimensão e
espectacularidade dos monumentos funerários em que se fizeram inumar.
Essa é a mesma Europa que assistiu ao progressivo desenvolvimento da
corporeidade das estátuas-colunas, constituindo-se estas como os elementos mais
destacados de muitos portais de novos templos ou substituindo portais de templos antigos.
A relação destes elementos escultórico-arquitectónicos com as estátuas jacentes dos
túmulos é por demais evidente, levando Erlande-Brandenburg a admitir que os escultores
de estátua-colunas e de túmulos pudessem ser os mesmos11. A evolução terá sido
simultânea.

10 Cf. Mário Jorge BARROCA,”Escultura Funerária”, Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e


Mário Jorge BARROCA, História da Arte em Portugal. O Gótico, Lisboa, Presença, 2002, pp. 207-246.
11 Cf. Alain ERLANDE-BRANDENBURG, “Le cimitiére des rois…”, op. cit., 1964, pp. 481-

492 e Paul WILLIAMSON, op. cit., 1997, p. 92.

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Lamenta-se o desaparecimento de
alguns notáveis conjuntos de estátuas-
colunas da primeira fase do Gótico,
nomeadamente as que decoravam a
fachada da Abadia de Saint-Denis de
Paris12, obedecendo ao programa e
inventiva de Suger, bem como se lamenta
o desaparecimento de alguns monumentos
funerários dessa mesma fase. Os
remanescentes, porém, são suficientes para
que se possam estabelecer os inevitáveis
paralelos da gradual evolução, como já
assinalaram vários autores de estudos
sobre a escultura funerária da primeira fase
do Gótico.
Vários são os que colocam esta
evolução da escultura figurativa no
contexto sócio-mental de revalorização do
indivíduo13, conforme às directrizes de
grandes teólogos e intelectuais medievais,
Algumas das estátuas colunas dos portais da fachada
ocidental da Abadia de Saint-Denis.
nomeadamente Santo Anselmo, Hugo de
(antes de 1140). Segundo desenhos de Antoine Benoist para
Bertrand de Montfaucon, Les Monumens de la monarchie françoise, São Victor ou São Tomás de Aquino e
1729). Dossier d’Archeologie, n.º 261, Março de 2001, p. 51.
que, no cômputo geral, relacionam a Esco-
lástica dos séculos XII e XIII com todo um universo de descoberta do indivíduo como ser
dual, no qual o espírito tem predominância, mas não desvaloriza o corpo, sendo este,
agora, entendido como veículo, não apenas do pecado, mas também das boas acções e da
própria Salvação, (entendimentos contrários aos que prevaleceram nos séculos do

Algumas destas estátuas são conhecidas graças aos desenhos de Antoine Benoist para B. de
12

MONTFAUCON, publicados na obra Les monuments de la monarchie française, I, Paris, 1729, il. 16. Cf.
Summer CROSBY e Pamela BLUM, The Royal Abbey of Saint-Denis from its Beginnings to the Death of Suger,
575-1151, New Haven e Londres, 1987, pp. 29-50.
13 Cf. Paul WILLIAMSON, op. cit., 1997, pp. 22-23.

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Românico e defendidos por Teólogos como Pedro Damião14). Assim, ao não negar valor à
matéria, ela torna-se foco de atenções e, logo, de uma maior liberdade representativa.
Ideólogos e artífices, cedo foram sensíveis a este novo quadro mental de reconhecimento
da unidade corpo-alma, como bem provam as já referidas estátuas-colunas e as estátuas
jacentes.
Este conjunto de ideias conflui numa visão mais humanista e de maior tolerância
relativamente à representação imagética do corpo, tomando forma nas produções artísticas
através de uma corporeidade mais “viva” e acrescentada de gestos e expressões que
propiciaram uma mais fácil identificação entre os indivíduos e as imagens que os
representam15.
A isto associado, também os gestos foram alvo de reflexão por parte dos grandes
ideólogos do tempo, como já tivemos oportunidade de referir a propósito do grupo
escultórico de São Luís e de Margarida da Provença. Se Hugo de São Victor desempenhou
importante papel na atenção dada às condutas gestuais daqueles que deveriam ser o exemplo
por excelência, contrastando os seus gestos controlados e normativos com os que o
homem comum e os seres infernais tendiam a materializar (gestus x gesticulatio)16, a nova
religiosidade proposta pelas Ordens Mendicantes, em especial pelos franciscanos, veio
acrescentar valor ao corpo-matéria e à retórica dos gestos. A disciplina dos gestos,
acreditava-se, podia contribuir para reformar o homem no seu interior.
Como refere Jean-Claude Schmitt, os gestos e a mobilidade, no âmbito da cultura
cristã da Idade Média, participam do transitório, do instável (de que é bom exemplo o tema
da Roda da Fortuna), do terrestre, da história: eles caracterizam o homem carnal, a tentação
do pecado e a agitação do vício. Contrastam, desta forma, com o movimento celeste
regular, os ciclos imutáveis e, num extremo, com a ausência absoluta de movimento. Desta
forma se compreende que os rituais medievais, caracterizados pela afectação da

14 Cf. G. CALVESI, “San Pier Damiani. Il cibo, il sesso e le donne”, Storia e Dossier, Outubro de

1987, pp. 25-27 e Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Leonor de Aquitania en Fontevarault...., op. cit.,
1994, p. 469.
15 Carla Serapicos SILVÉRIO, Representações da Realeza na Cronística Medieval Portuguesa, Lisboa,

Colibri, 2004, traça as linhas gerais do pensamento teórico relativamente ao corpo na Baixa Idade
Média e de como estas são perceptíveis nos textos das crónicas sobre a dinastia de Borgonha.
16 Jean-Claude SCHMITT, “Gestus-gesticulatio: Contribuition à l’étude du vocabulaire latin

médiéval des gestes”, La Lexicographie du latin médiéval et ses rapports avec les recherches actuelles sur la civilisation
du Moyen Age, Paris, CNRS, 1981, pp. 377-390.

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imobilidade, a solenidade, o hieratismo e a ostentação dos corpos e dos objectos rituais,


sejam atributos do poder e da sabedoria, bem como signos de sacralidade. São estes os
gestos de um bispo, de um rei ou de um papa17.
No que se refere à arte, sem dúvida que esta identificação foi primeiro sentida em
relação às imagens religiosas, imagens devocionais que, ao tornarem-se mais humanas pela
representação dos seus corpos, pelo naturalismo dos seus gestos e expressões de
sofrimento (que melhor exemplo que os Cristos Dolorosos, tão do agrado dos
franciscanos…), ou nas suas alegrias e bem-aventuranças eternas (cite-se o Anjo do Sorriso
do Portal da Catedral de Reims, entre tantos outros notáveis exemplos) tocaram mais
profundamente os sentidos e as almas dos fiéis. Mas a iconografia religiosa não encerrou o
novo ciclo de humanismo e naturalismo na arte e estes valores estenderam-se também à
iconografia dos não-santos. Foram os poderosos do mundo terreno (clérigos e leigos) que,
respondendo a desejos de fama post-mortem, encomendaram aos artífices, que para si
laboraram, estátuas jacentes que, pouco a pouco, se foram “descolando” da pedra das
tampas dos sarcófagos, ganhando volume, monumentalidade, naturalismo e aparato nos
gestos e nos atributos.
Este processo, que coloca a realização de jacentes num plano de primeira linha,
converge não apenas no interesse progressivo pela natureza, mas também pelo corpo do
defunto como uma individualidade, situação a que não pode ser alheio o igualmente
progressivo uso de legendas epigráficas nos túmulos ou a acompanhá-los à maneira de
curricula vitae dos tumulados.
Porém, o processo não foi rápido e, mais uma vez, notamos a evolução artística de
uma Europa a vários tempos. Em França ou em Inglaterra, foi mais precoce do que em
Portugal, nos restantes reinos ibéricos ou mesmo em Itália. Na França da dinastia
merovíngia não encontramos túmulos com jacentes, mas apenas discretas inscrições que
nos permitem perceber tratarem-se de elevadas personalidades. Durante a dinastia
carolíngia, o único exemplo de que há notícia é o de Carlos Magno, sabendo-se que possuía
uma representação do imperador na parte inferior do túmulo, não podendo ser

17 Cf. IDEM, op. cit., 1990, p. 29.

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interpretado como uma estátua jacente, e não nos permitindo distinguir se se tratava de
uma representação na qualidade de defunto ou uma clara imagem de majestade18.
Ao longo dos anos de vigência da dinastia capetíngia, cedo começaram a aparecer
túmulos com estátua jacente. Primeiro, para elementos religiosos não pertencentes à família
real, sendo o caso mais antigo o do bispo Gebhart de Constance, falecido em 996 e cujo
túmulo foi descrito, no século XII, por um cronista. Ignora-se a data certa da sua execução,
mas o facto de ter sido feito em gesso aponta para cronologias muito recuadas (finais do
séc. X ou inícios do século XI)19.
Os túmulos de Saint-Germain-des-Prés, esculpidos em pedra, pouco depois de
1163, são, de facto, os primeiros exemplos de monumentos funerários com estátua jacente
feitos para elementos da família real francesa. Veja-se o exemplo tão significativo do
túmulo do rei merovíngio Quildeberto, realizado por vontade dos monges da referida
abadia: possui estátua jacente, considerada uma das mais antigas que hoje se conhecem, e
inaugura uma fórmula de trabalho escultórico aplicado à realização de jacentes, a que
Erlande-Brandenburg designou por “talha em tina” (ou “em bacia”), permitindo uma
grande economia da espessura da tampa de pedra.
Esta técnica alcançou os meados do século XIII, caracterizando-se por um gradual
desaparecimento ou diminuição da bordadura da tampa, como se pode ver no túmulo do
infante Filipe Dagoberto20, filho de Filipe VIII e Branca de Castela (1222-1235). Por vezes,
a talha em tina dos jacentes conjuga-se com a forma trapezoidal das tampas dos sarcófagos.
Embora o relevo não atinja um volume significativo, estes exemplos constituem um
patamar de importância na gradual evolução dos jacentes.

18 Cf. Christian BEUTLER, “Documents sur la sculpture carolingienne”, Gazette des Beaux-arts,
I, 1963, p. 195.
19 Cf. Alain ERLANDE-BRANDEBURG, op. cit., 1975, p. 109.
20 IDEM, ibidem, p. 111.

389
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Jacente de Quildeberto.
c.1150. Saint-Germa in-des-Prés. Abadia de Saint-
Denis.

Jacente de Filipe Dagoberto.


Séc. XIII. Abadia de Saint-Denis.

Quanto à coroa inglesa, os exemplos do panteão de Fontevrault são aqueles que


melhor ilustram o valor conferido aos jacentes nos últimos anos do século XII e primeira
década do século XIII (c. 1199-1210) 21. Revestiram-se de uma importância capital para a
continuidade da realização de estátuas jacentes para os soberanos ingleses e franceses na
centúria de Duzentos.
Em França, convivem ao longo do século XIII, duas situações distintas quanto à
volumetria dos jacentes: independentes ou quase independentes da tampa sepulcral, como
são os casos do túmulo de Luís VII, ou os famosos jacentes da encomenda de São Luís; e
jacentes de um relevo pouco pronunciado em relação ao seu suporte, como são os casos
das estátuas de Adelaide de Champanhe (c. 1260- actualmente em Saint-Jean de Joigny), ou
de Isabel de Aragão (c. 1275, em Saint-Denis).
Verifica-se, pois, que entre meados do século XII e meados do século XIII, o
contexto cultural e religioso do Ocidente foi particularmente propício ao aparecimento dos

21 Wilibald SAUERLÄNDER, La Sculture gothique en France, Paris, Flammarion, 1972, pp. 128-
129, defendeu que a cronologia dos jacentes de Henrique II e de Ricardo Coração de Leão deveriam
corresponder aos primeiros anos do século XIII, enquanto que Alain ERLANDE-BRANDENBURG
(op. cit., 1975, p. 122) considera-os anteriores à morte de Leonor da Aquitânia, isto é, anteriores a 1204.

390
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

jacentes e ao consequente aumento da sua volumetria: quer os conceitos relativos ao poder,


expressos nos muitos “espelhos dos príncipes”, aos quais já tivemos oportunidade de nos
referir, quer a valorização do indivíduo, as reflexões sobre a morte e o Além, onde se cruza
o novo conceito de Purgatório, atento à morte individual, quer o desenvolvimento da
própria cultura cortês, permitem-nos perceber porque foi tão cara a Leonor da Aquitânia a
encomenda de um conjunto de jacentes com iconografia inovadora para a Abadia de
Fontevarault22.
A plástica destes últimos inspira-se
na escultura em metal23. Este material seria
amplamente usado na realização de
jacentes, quer em França, quer em
Inglaterra, sempre encomendados por
personalidades de grandes recursos
financeiros, quase sempre pertencentes à
família real. Sabe-se, por exemplo, através
das descrições de alguns cronistas, que os
jacentes de Filipe VII, Filipe Augusto, Luís
Rosto do jacente de Leonor de Castela, mulher de VIII, Luís IX e Branca de Castela eram
Henrique III.
1292-1294. William de Torel. Westminster. feitos de prata e ouro e de outros ricos
Paul Binski, Westminster Abbey and the Plantagenets…, p. 108.
materiais que os cronistas não especificam.

Muito mais frequentes eram os túmulos em obra de Limoges, de que os desenhos


da Colecção Gaignière nos permitem perceber a quantidade. Os mais antigos remontam ao
século XII, mas os artistas limosinos continuaram a produzi-los até ao século XIV24.
Muitos são os túmulos de bronze que se podem arrolar entre o conjunto da tumulária
francesa tardo-medieval. Em Inglaterra, todavia, e por influência de França, os jacentes em
metal constituem algumas das mais notáveis obras-primas da escultura medieval, de que

22Cf. M. NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Leonor de Aquitânia...”, op. cit., 1994, p. 458.


23 Wilibald SAUERLÄNDER, op. cit., n.º 42; Alain ERLANDE-BRANDENBUG, “Le
cimetière des rois...”, op. cit., 1964, p. 483.
24 Em França, são exemplos, entre muitos outros que sabe terem existido, os jacentes dos

infantes João e Branca, filhos de São Luís, que rei encomendou às oficinas de Limoges.

391
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

são excelentes exemplos os jacentes de Henrique III e de Leonor de Castela, obras muito
dispendiosas, encomendadas a William de Torel25.
Em Portugal, o uso do metal na construção de jacentes só se verificou muito
tardiamente, já no século XV, com o jacente do infante D. Afonso, filho de D. João I,
sepultado na Sé de Braga, realizado na Flandres.
Tanto em Portugal, como nos outros reinos peninsulares, não foram apenas os
religiosos os que mais amplamente conquistaram o direito à representação volumétrica dos
seus corpos na pedra dos monumentos funerários, embora constem entre os mais antigos
que se conhecem. A título de exemplo refira-se o túmulo de San Millán de la Cogolla, no
Mosteiro de Suso (finais do século XII - La Rioja, Espanha), embora, neste caso, o
tumulado já tivesse acedido à condição de santidade, mais propícia, por isso, à
monumentalidade e aparato representativo e, em Portugal, em datas mais avançadas
(segunda metade do século XIII), os túmulos de D. Tibúrcio, bispo de Coimbra e grande
apoiante da causa do Conde de Bolonha, cuja execução deverá ser posterior a 125326; de D.
Egas Fafes de Lanhoso (c.1260), dispostos junto dos muros da Sé Velha de Coimbra.
Se aceitarmos, porém, que o túmulo românico de uma rainha, sepultada no
Mosteiro de Alcobaça, pertence a D. Urraca, mulher de D. Afonso II, falecida em 1220,
como julgamos ser, então percebemos como, timidamente, nos primeiros anos do século
XIII, as estátuas jacentes começaram também a ser requeridas pelos encomendadores
laicos portugueses, entendidas, certamente, como poderoso meio de preservação da
memória. Quem estaria mais empenhado nessa preservação do que a própria família real
portuguesa, à semelhança do que já se passava noutros reinos da Europa gótica?
Na sequência deste último, o túmulo de D. Rodrigo Sanches, filho bastardo de D.
Sancho I, sepultado no Mosteiro de Grijó (c.1245), constituiu um segundo e interessante
exemplo no contexto da tumulária portuguesa.
Em ambos os casos, a encomenda não foi iniciativa dos próprios, mas sim a
familiares que, através destas memórias de pedra, quiseram valorizar e exaltar o valor e a
recordação de ambos os tumulados, conferindo-lhes um lugar de repouso e uma
visibilidade muito especial.

25 Cf. Paul BINSKI, op. cit., 1995, pp. 107-111.

392
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Talvez o facto de estes dois exemplos mais precoces se deverem a encomendas de


familiares e não aos próprios, justifique, mais do que qualquer outro motivo, que possuam
decoração e especial aparato, e que, nas mesmas cronologias, importantes figuras, como o
próprio D. Afonso II, não tenham sido inumados em monumentos funerários com jacente,
ou com qualquer iconografia relevada nas arcas funerárias dos seus monumentos,
cingindo-se, a arcas lisas e tampas sem jacente, reflexo de uma atitude de humildade, que
tanto convinha na hora da morte como salvo-conduto para a salvação da alma, ou, como
simples escolha de quem mais tarde os encomendou, tratando-se de cenotáfios, ou, ainda,
como cumprimento das vontades dos defuntos, em encomendas feitas a posteriori. Tanto os
monumentos funerários de Afonso II
como de Afonso III terão sido realizados
após a morte dos monarcas27, devendo-se
as suas encomendas, ou aos filhos ou, no
caso do segundo, à rainha, ou, ainda, aos
próprios monges de Alcobaça.
Nestes casos, porém, talvez seja
conveniente lembrar que não sabemos se
os túmulos eram cobertos com panos
bordados, com identificação heráldica
e/ou outras formas de identificação, ou
Túmulo de D. Afonso III(?) ou D. Afonso II(?). mesmo se eram pintados, tendo,
Séc. XIII.
Igreja do Mosteiro de Alcobaça. entretanto, desaparecido a policromia das
José C. Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, p.
34. mesmas.

Cf. Mário Jorge BARROCA, “Escultura funerária”, Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e
26

Mário BARROCA, op. cit., 2002, pp. 219-220.


27 Como anteriormente tivemos oportunidade de referir, D. Afonso II foi sepultado,

primeiramente, em Santa Cruz de Coimbra, onde permaneceu por cerca de dez anos, até à sua
tumulação definitiva em Alcobaça. O mesmo aconteceu com o corpo de D. Afonso III, sepultado
durante dez anos em São Domingos de Lisboa, procedendo-se à trasladação para o Mosteiro de
Alcobaça em 1289.

393
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Exemplos muito
semelhantes encontramos em
Las Huelgas de Burgos, no
túmulo de D. Berenguela,
segunda mulher de Afonso IX
de Leão, falecida em 1246, e cujo
monumento funerário consiste
numa arca lisa, com tampa de
duas águas e sustentado por

Túmulo de D. Berenguela.
leões. Mais interessante e
Séc. XIII. Mosteiro de Las Huelgas de Burgos.
Belén Castillo, Juan Elorza, Marta Negro, El Panteón Real de la Huelgas de
ilustrando melhor a realidade dos
Burgos, Est. 26.
túmulos que hoje não
apresentam qualquer decoração
por desaparecimento da
policromia, é o túmulo do
Infante Fernando de la Cerda,
filho primogénito de Afonso X,
o Sábio e herdeiro da coroa. É
datado dos finais do século XIII
e compõe-se de arca
trapezoidal, totalmente lisa, mas
Túmulo de D. Fernando de La Cerda. (†1333).
Mosteiro de Las Huelgas de Burgos. ainda com restos de decoração
Belén Castillo, Juan Elorza, Marta Negro, El Panteón Real de la Huelgas de Burgos,
Est. 26. pintada (octógonos que exaltam
a linhagem paterna, através da representação de castelos e leões, e materna com as armas
de Aragão)28. É legítimo, pois, questionarmos se os monumentos funerários de Afonso II e
de Afonso III seriam policromados e se o desgaste, sofrido durante o longo tempo em que

Cf. Maria Jesus GOMEZ BARCENA, Escultura Gótica Funeraria en Burgos, pp.198-199. J.
28

YARZA LUACES, “Despesas fazen los omnes de muchas guisas en soterrar los muertos”, Fragmentos,
n.º 2, 1984, p. 12, referindo-se a este túmulo, julga que ele terá sido concebido “Dentro de su dignidad,
parece como si se hubiera respetado la voluntad del rey expresa en las Partidas, no mucho lujo, nada de
escenas dolientes y carácter sagrado del monumento”.

394
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

permaneceram na antiga galilé alcobacense, não lhes teria feito desaparecer as antigas
decorações pictóricas.
Contemporâneo do túmulo de
D. Afonso III é o monumento
funerário da Infanta D. Berenguela,
filha de Fernando III e sobrinha de
Luís IX de França, igualmente
sepultada em Las Huelgas de Burgos. É
datado do último quartel do século
XIII e, contrariamente ao túmulo do
nosso monarca, o da infanta espanhola,
apresenta ampla decoração escultórica.
Segundo a historiografia espanhola este
túmulo foi mandado fazer pela infanta
para a sua avó, a rainha D. Berenguela,
Túmulo de D. Berenguela. que jazia em sepultura muito simples,
Séc. XIII. Mosteiro de Las Huelgas de Burgos.
Fray Valentin de la Cruz, El Monasterio de las Huelgas de Burgos, Leão, segundo vontade da própria 29, como já
Everest, 1990. p. 40.
vimos.

Assim, fosse por questões de humildade ou de respeito para com as determinações


de Afonso X nas Partidas, que exortam à simplicidade dos monumentos funerários,
conviviam, nas mesmas cronologias e nos mesmos lugares de enterramento, túmulos lisos
ou com decoração sóbria (pintada ou acrescentada através de colchas ou panos) e túmulos
com arcas decoradas e até mesmo com estátuas jacentes (sendo a França um bom exemplo
desta última situação).
Se as encomendas se deviam aos familiares e não aos próprios, é normal que os
monumentos não se pautassem, de forma tão determinante, aos desejos de humildade, mas
fossem dotados de maior aparato decorativo, pois não constrangia a memória dos que aí
haviam sido inumados, uma vez que não haviam sido eles os autores de tais iniciativas,
servindo, assim, como melhor forma de exaltação e até de propaganda. O que é certo é que
estas duas situações (túmulos com jacentes e túmulos sem qualquer forma de

395
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

representação) coexistiram durante bastante tempo, pelo menos no que se refere a figuras
da família real. Ambas expressam atitudes diferentes face à morte (uma de humildade face à
memória de si; outra de exaltação e valorização da memória e, ambas, se inserem dentro dos
valores da crença e da religiosidade dos anos do Gótico).
De qualquer forma, os dois exemplos ducentistas de elementos da família real
portuguesa com jacentes (D. Urraca e D. Rodrigo Sanches), deixam perceber a evolução da
expressividade do corpo retratado, quando comparados com as estátuas jacentes da
primeira metade do século XIV entre as quais têm especial destaque os jacentes de D.
Dinis (c. 1325) e D. Isabel de Aragão (c. 1330).
Em Portugal, num primeiro tempo (1ª metade do século XIII), chamemos-lhe de
proto-Gótico (retardado temporalmente em relação a França e em especial aos ateliers da
região de Paris, e que tanto influenciaram a tumulária inglesa deste período), as estátuas
jacentes foram marcadas por volumetrias pouco acentuadas, como que “agarradas” ao seu
suporte (tampa sepulcral), visível estaticismo e total idealismo das fisionomias.
Esta situação só sofreu alterações significativas no final do primeiro quartel do
século XIV, com o monumento funerário do rei D. Dinis, correspondendo a um segundo
momento, em que a escultura gótica portuguesa, de cariz figurativo, assumiu uma posição
de paridade para com a congénere dos centros artísticos que, por estes tempos, ditavam a
moda (em especial a França, a Inglaterra e Castela-Leão).
Não é por acaso que esse salto qualitativo e esse ajuste estético aos centros de
vanguarda artística se deveram a uma encomenda régia. É aos reis e às rainhas da primeira
dinastia que devemos o maior número de inovações na iconografia e na plástica da
escultura funerária a eles afecta, pois cabia-lhes maior responsabilidade no controlo
iconográfico e na imagem que a arte daria deles próprios para a posteridade, enquanto
protagonistas por excelência do poder temporal. A preocupação com a fama póstuma é
indissociável dos seus papéis de protagonistas da História. Não admira, pois, que o túmulo
de D. Dinis reflicta esse mesmo interesse, introduzindo em Portugal uma volumetria
agigantada dos sarcófagos e das respectivas estátuas jacentes, algo que difere da realidade
coeva francesa para este período e que difere, mesmo, de outros sarcófagos portugueses de
cariz afrancesado, como é exemplo o túmulo do rico mercador de Lisboa, Bartolomeu

29 Cf. Maria Jesus GOMEZ BARCENA, op. cit., p. 196.

396
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Joanes, falecido na proximidade da data em que D. Dinis abandonou o mundo dos vivos
(1325).

Estátua jacente de D. Dinis. c.1324-1325. Igreja do Mosteiro de Odivelas. Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

Tem sido apontado o gosto francês na estética do túmulo de D. Dinis. Mas a


verdade, porém, é que pouco podemos encontrar nos elementos originais deste túmulo que
nos permita fazer tal afirmação. Após o exame da obra com espectro ultra-violeta30,

Em campanha de levantamento de documentação fotográfica realizada ao túmulo de D.


30

Dinis, a 24 de Outubro de 2004, levada a cabo por José Pessoa e a sua equipa técnica da Divisão de
Documentação Fotográfica do Instituto Português de Museus, foi experimentado, pela primeira vez,
um exame a obras de escultura em pedra com incidência de espectro ultra-violeta e consequente registo
fotográfico. O que aí pudemos constatar, com alguma surpresa e grande satisfação, foi a eficácia deste
método (até agora aplicado, essencialmente, à pintura e ao azulejo), constatando-se que todas as áreas
moldadas em gesso reflectem uma tonalidade de roxo muito escuro, sempre que a densidade do gesso é
maior, e roxo mais claro, quando corresponde a superfícies constituídas por aguadas de gesso ou
camadas muito finas do mesmo material. Os elementos originais, em pedra, reflectem uma cor beije-
dourado. Na sua totalidade, julgamos não poder encontrar hoje mais que 30% do monumento original,
correspondendo às figuras da primeira cena da cabeceira do sarcófago, bem como aos dois altares que
integram estas duas cenas da Boa Morte; parte dos hábitos dos religiosos e das religiosas cistercienses que
decoram as faces longas da arca, sendo de gesso todos os bustos das mesmas (os busto dos monges já
não existem, mas as superfícies do fundo dos nichos registam ainda manchas de gesso para a colagem
das respectivas cabeças, bem como as perfurações feitas para introdução dos ferros para as sustentar), e
algumas mãos das mesmas; a maioria das arcarias que decoram a parte superior da arca, sobre os nichos
das figuras e que revelam ainda muitos vestígios de policromia; pequenas partes das almofadas em que
assenta a cabeça da estátua jacente; pequena parte do pescoço; parte do peito e um pequeno fragmento
de um dos pés, abrangendo uma parcela da fivela que permitiu reconstituir em gesso a totalidade deste
fragmento; uma pequena parte de um dos cães que se encontram aos pés do jacente do monarca,
registando ainda a marcação das costelas. Confirmámos assim, indubitavelmente, que a cabeça, com a
longa barba e longos cabelos, a coroa, os braços e a maior parte da indumentária do jacente (do peito
até à extremidade da túnica e do manto) são fruto do restauro oitocentista, sem que se possa afirmar se
este modelo respeitou as fisionomias, gestos e atributos do jacente original. Quanto à decoração da
arca, julgamos que o aproveitamento de muitos fragmentos originais permitiu que as figuras fossem
restauradas de acordo com os modelos originais, ainda que seja estranha a sistemática substituição de
todas as partes superiores das figuras religiosas a partir da mesma altura do corpo (do peito para cima).
Esperamos poder levar a cabo, em futuro próximo, o levantamento integral deste monumento com
espectro ultra-violeta, para a realização de um estudo monográfico, com a colaboração de José Pessoa.

397
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

pudemos constatar, com ínfima margem de erro, aquilo que os nossos olhos se apercebem
logo numa primeira análise, acrescentando ainda outras informações “camufladas”, isto é,
que a grande maioria dos elementos constituintes deste sarcófago foram moldados em
gesso, no mais desastroso restauro alguma vez feito em Portugal em obras com a
importância de um túmulo régio. A verdade é que não sabemos quais os verdadeiros gestos
dos braços do jacente, que poderiam, originalmente segurar a espada, numa tipologia que
vamos encontrar na maioria dos jacentes de cavaleiros do século XIV, bem como no de D.
Pedro I, e que é bem diferente do que hoje vemos: uma das mãos a segurar,
despropositadamente, uma ponta do manto. Parece-nos arriscado e inconsistente,
especular sobre a existência de um ceptro nas mãos do rei, tentando aproximá-lo da
iconografia e da plástica dos jacentes dos monarcas franceses, pelo que mantemos as
nossas reservas.
Se atentarmos na monumentalidade deste sarcófago, facilmente nos apercebemos
que ele se relaciona mais com a realidade portuguesa e até mesmo, peninsular, onde são
frequentes os túmulos e as estátuas jacentes de gigantescas dimensões, do que com a
realidade francesa coeva, de escala mais reduzida, mais humana, bem como os conjuntos
de figuras emparelhadas sob nichos a decorar as arcas tumulares, que aparecem em alguns
túmulos franceses, mas são muitíssimo mais frequentes na tumulária peninsular. Parece-nos
pois, que mais que um francesismo original, existe, talvez, um restauro que, consciente ou
inconscientemente, lhe conferiu um fácies afrancesado.
Mas se o moimento de D. Dinis, não se filia directamente na escultura tumular
francesa (ainda que alguns aspecto se aproxime desta), as intenções do monarca português
ao encomendá-lo reflectem, em nosso entender, uma procura de aproximação aos mesmos
propósitos políticos e propagandísticos que, em França, levaram São Luís, alguns anos
antes, a encomendar um notável conjunto de túmulos para os reis seus antecessores31 e um

Neste momento, porém, serviu-nos a experiência para poder confirmar aquilo que se vê a olho nu, e
acrescentar outras informações que só com exames deste tipo podem passar da fase da suspeita, para a
fase de confirmação, assentando em bases sólidas.
31 Clovis II (635-+657); Pepino o Breve (714-+768); Carlos Martel (688-+41); Luís III (863-

+882); Berta (726-+783); Carloman (866-+884); Henrique I (1008-+1060); Constança de Arles (984-
+1032); Roberto o Piedoso (970-+1031); Filipe III (1116-+1131); Carloman (751-+771); Constança de
Castela (1136-+1160); Luís o Gordo (1081-1137); Ermentrude (825-+869). Catorze dos dezasseis
túmulos da grandiosa encomenda de São Luís foram concebidos a partir do mesmo modelo:
personagens alongadas, rosto totalmente idealizados, vestidos segundo a moda do século XIII, os pés

398
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

valioso túmulo para si próprio. Essa inédita e grandiosa encomenda do monarca francês
demonstra, não apenas a importância que nos derradeiros anos do século XIII se conferia à
sepultura monumental e figurativa das personagens régias, mas também como nelas se via
uma excelente oportunidade de glorificar memórias e afirmar dinastias, associadas a um
determinado panteão. São Luís, assim, e à semelhança do que havia pretendido Leonor da
Aquitânia relativamente a Fontevrault, afirmava a sua própria posição na história
linhagística da monarquia francesa e a ideia de continuidade dinástica entre merovíngios e
capetíngios.
A situação tendeu a evoluir e o século XIV foi, sem dúvida, o grande século do
desenvolvimento da arte tumular em Portugal32, o grande momento do desenvolvimento
de iconografias e de aperfeiçoamentos estéticos, que conduziram ao expoente máximo do
naturalismo na arte medieval, algo tardio em relação ao reino de Castela e, sobretudo, ao de
Leão, em que o século XIII se revela bem mais criativo e inovador que a centúria de
Trezentos. Mas foi, de facto, a França, o referencial de todas estas tendências.
Ora a necessidade de criar mensagens eficazes e representativas do poder e dos
valores dessa mesma monarquia criou terreno propício à criatividade e à magnificência das
representações, gerando verdadeiros protótipos de iconografia tumular régia, repetidos,
sem grandes alterações, a cada nova construção, como tão bem se viu com o caso dos
dezasseis túmulos encomendados por São Luís.
Retratos totalmente idealizados caracterizam os jacentes dos reis e das rainhas de
França até à primeira metade do século XIV. Os seus rostos em nada diferem dos que os
artistas usaram para representar santos, santas e profetas, em Saint-Denis ou noutros
importantes mosteiros, abadias e catedrais da época. Os seus atributos, quase sempre as
regalia33 das coroações, acompanham estas figuras como elementos distintivos da sua

assentes sobre mísula (como se estivessem de pé). Com uma as mãos seguram o ceptro e com a outra
retêm, geralmente, a fita que prende o manto. Alguns elementos ajudam a diferenciar as personagens,
como são as coroas, todas diferentes, bem como os rostos de Henrique I ou de Roberto, o Piedoso,
com particular expressividade. Cf. Serge SANTOS e Claude SAUVAGEOT, Saint-Denis. Dernière
Demeure des Rois de France, Zodiaque, 1999.
32 A realidade portuguesa espelha um percurso algo diferente do que caracterizou a arte

funerária em Leão, em que o século XIII se revelou mais inventivo, experimentalista e bem sucedido
plasticamente do que o século XIV, como bem demonstrou Ângela FRANCO MATA, op. cit., 1998, pp.
425-426.
33 Cf. D. GABORIT CHOPIN, Regalia. Les instruments du sacre des rois de France. Les «Honeurs de

Charlemagne», (Cat. de Exposição), Paris, 1987.

399
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

condição régia. Em suma, trata-se de imagens marcadas pela eficácia da mensagem, que é
conseguida através de gestos rituais, da beleza idealizada e da total ausência de
correspondência com as reais fisionomias dos retratados, correspondendo, sim, à imagem
social destas figuras, à imagem pública que deles deveriam ter os súbditos34.
O mesmo sucede com os jacentes régios (e não só) pertencentes às centúrias de
Duzentos e Trezentos e destinados a poderosos de outros reinos, entre os quais se
destacam os três túmulos de Fontevrault. Nestes últimos, tal como nos jacentes franceses,
propicia-se uma imagem de perfeição
corporal aliada à juventude, perfeição essa,
não necessariamente condizente com a
realidade das suas vidas, e esforçada por
apagar todo e qualquer traço de debilidade
ou pecado, no que André Vauchez definiu
como um “realismo sobrenatural”35 e
Manuel Núñez Rodríguez36 como um
projecto objectivamente dirigido ao
conceito de valor intemporal do corpo. A
proposta de caracterização idealizada segue,
muito provavelmente, os princípios
enunciados por Hugo de São Victor,
segundo o qual os justos haveriam de
Pormenor do jacente de Henrique II. Última década do ressuscitar com um corpo espiritual
séc. XII. Abadia de Fontevrault.
Apud Antónia Fraser, The Lives of Kings & Queens of England, semelhante ao corpo carnal e conforme a
p.53.

um modelo ideal de beleza perfeita, de que se haveria de dispor na vida eterna.


Aproximando a imagem pública dos representantes do poder temporal da imagem
requerida para as representações dos santos, criavam-se poderosos auxiliares de memória
na mente dos homens desse tempo, numa ideia de exemplaridade próxima da santidade,

34 Cf. Paul WILLIAMSON, op. cit., 1997, pp. 233-233.


35 Cf. A. VAUCHEZ, “Le gisants et la theologie de la Ressurection”, C. I. Fontevrault, Maio de
1988.
36 Apud M. NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Leonor de Aquitania...”, op. Cit., 1994, p. 469.

400
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

não fossem os reis de França os “escolhidos”, entre todos os reis do mundo, como os que
tinham mais próxima ligação com Deus, agindo como seus ministros, seus filhos
adoptivos, inclusive dotados de poderes taumatúrgicos. Mas as suas representações
acentuavam, também, a condição social dos retratados, através de atributos iconográficos e
de outros símbolos que testemunhavam inequivocamente que se tratavam de homens e de
mulheres do poder temporal. Nesta perspectiva, porém, uma certa caracterização de
perfeição física e moral, bem como a afirmação do poder, não foi exclusiva dos jacentes
dos monarcas franceses e revela-se plenamente na estatuária tumular por toda a Europa de
então.
Não é difícil, por isso, compreender que D. Dinis tenha pretendido para si uma
representação póstuma semelhante ao que de mais actual e magnificente se fazia noutros
importantes países. Uma imagem de homem de poder, cuja memória, a morte não poderia
apagar. Se o seu corpo biológico desaparecesse, sob os efeitos dissolventes da morte física,
como era de esperar, o corpo político do rei permaneceria vivo para memória futura, numa
representação de perfeição, num “corpo” imortalizado na pedra tumular e, no plano da
cadeia de sucessão ininterrupta, no sucessor de direito.
Paul Binski demonstrou, com clareza, que neste tempo vários eram os elementos
que caracterizavam as estátuas jacentes dos monarcas com o objectivo de distinguir aquilo
a que Kantorowicz denominou por “os dois corpos do rei”: um corpo social, oficial e
imortal; e outro natural e mortal. As efígies de bronze são talvez aquelas que melhor se
relacionam com a ideia de imortalidade, uma vez que, através da cor reluzente, revelam os
corpos das personagens régias da forma mais esplêndida e sobrenatural. Aqui, não existe
semelhança entre os vivos e os jacentes, entre o corpo natural e o corpo imortal,
colocando, assim, estas personalidades para além do universo tangível.
Mas, os jacentes de pedra policromada também se destinavam a criar uma
“sensação de vida” na mente dos observadores, na medida em que colorir uma imagem é,
de alguma forma, dar-lhe vida. Se juntarmos a isto o facto de a maioria dos jacentes
portugueses do século XIV ser representado com os olhos abertos e, alguns, ainda, a
desempenharem funções ou gestos próprios dos vivos (ler um livro, segurar a espada com
as duas mãos, etc...), percebemos como tão claramente se destinavam a afastar a ideia de

401
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

morte e de corpo corruptível, criando a ideia de existência físico-espiritual contínua, isto é,


imortal.
Embora seja possível aceitarmos que em alguns casos possa ter havido a intenção
de representar o “ressuscitado” e não a representation au vif, “sublinhando a crença na
Ressurreição Final”37, entendemos que este conceito não se pode aplicar a todos os
jacentes representados com os olhos abertos. Note-se que gestos como o segurar com as
duas mãos o punho de uma espada embainhada, predispondo-se a usá-la, como no caso de
jacente de D. Pedro I, entre muitos outros, numa atitude que não pode deixar de ser vista
como própria das acções de um guerreiro, não se enquadra, desta forma, nos gestos e
atitudes que se esperam de alguém que, na qualidade de ressuscitado, certamente a gozar da
paz e glória celestial, gostasse de continuar a manifestar, ou que, moralmente, fosse mais
adequado. Não é por acaso, certamente, que ao querer fazer-se representar como
ressuscitado, D. Pedro mandou que o colocassem num balcão, ao lado de D. Inês de
Castro, em contemplação da corte celestial, e não a exercer gestos ou funções próprias da
actividade militar ou governativa. Também a leitura dos livros de orações não se presta
enquanto gesto, e na nossa opinião, a representar um “ressuscitado”. Na plena paz
espiritual que alegadamente esperariam encontrar no Paraíso, já não necessitariam do livro
com as orações a proferir, pois estariam diante daqueles a quem as preces, em vida, foram
dirigidas. Defendemos, pois, que a conjugação dos olhos abertos com alguns gestos que
implicam uma acção, destinam-se a evocar o testemunho das acções e virtudes que
caracterizaram os defuntos enquanto gozaram de existência terrena, testemunhos esses,
que pela sua natureza, pesariam, certamente, na balança de São Miguel.
Por outro lado, a conjugação da policromia com os elementos acima referidos, ao
transmitir uma ideia de vida e de humanidade, ampliava a relação entre os túmulos e o
público, por identificação, situação que era menos conseguida com os túmulos de metal
dourado38.
É verdade que, da lista dos nove monarcas da primeira dinastia portuguesa, apenas
dois possuem hoje túmulo com estátua jacente, limitando, assim, o nosso campo de análise.
Entre os dois, de D. Dinis e de D. Pedro I, nota-se a evolução da tendência para grandiosa

37 Cf. Mário Jorge BARROCA, “Escultura funerária”, Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e

Mário BARROCA, op. cit., 2002, p. 215.

402
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

monumentalidade das arcas e dos respectivos jacentes e a afirmação de uma tipologia


iconográfica, comum a reis e a cavaleiros: de olhos abertos, seguram os punhos das
espadas, dispondo-se a desembainha-las.
O túmulo de D. Isabel de Aragão espelha, também, esse gosto tão português pelo
gigantismo dos jacentes, conferindo um superior aparato ao corpo, lugar de todos os
símbolos de poderes e de virtudes. É uma estátua jacente estática, volumosa e perturbante.
Uma espécie de maciço pétreo, totalmente enroupado e de uma solenidade aparatosa e
indesmentível, que procura transportar a nossa imaginação para a imagem ideal de rainha
que, apesar de inacessível, mostra-nos, através dos seus gestos e atributos iconográficos, o
quanto foi piedosa, devota e caritativa – o quanto foi humana.

Jacente de D. Isabel de Aragão. c.1330.


Convento de Santa Clara-a-Velha Convento de Santa Clara-a-Nova).
Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

Embora diferente, a estátua jacente de D. Inês de Castro é, em tudo, um retrato de


aparato. De uma beleza finamente recortada, amparada por volumosos anjos, aquela que,
em vida, nunca foi rainha, é aqui representada como tal. O seu corpo já não assume a
volumetria excessiva do de D. Isabel de Aragão, mas sim um naturalismo pungente, dado
pelas pregas das roupagens e pelos traços anatómicos mais próximos da realidade humana,
ainda que dificilmente possamos pensar na existência de semelhanças com as suas
fisionomias reais.

38 Cf. Paul BINSKI, op. cit., 1995, p. 111.

403
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Neste e noutros jacentes de elementos


da família real, os gestos associam-se
eficazmente às fisionomias e aos atributos, a
fim de melhor convencerem os observadores
de que estão diante de figuras de excepção e de
que as suas vidas terrenas foram devotadas a
grandes feitos ou imbuídas de grandes virtudes.
No caso das mulheres da dinastia de
Borgonha, rainhas, filhas legítimas ou
bastardas, os gestos expressam, antes de mais,
sinais de pura religiosidade, alguma castidade,
decoro e também nobreza: ou com as mãos
erguidas em prece, como símbolo de piedade
das tumuladas (como podemos ver nos
jacentes da infanta D. Isabel, filha de D.
Afonso IV e de D. Beatriz, no túmulo que a
avó, D. Isabel de Aragão mandou fazer para a
Estátua jacente de D. Inês de Castro.
Igreja do Mosteiro de Alcobaça. José C. Vieira da Silva, neta morta em tenra idade), ou a segurar, com
O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. 31.

as duas mãos, livros de horas, epigrafados ou não, simbolizando religiosidade, recato e


decoro (como vemos, pela primeira vez, nas mãos de D. Isabel de Aragão, ou nas mãos da
infanta da Sé de Lisboa, dita D. Constança Afonso).
No caso da representação da rainha D. Urraca, em jacente realizado em cronologias
mais recuadas, cruza simplesmente as mãos sobre o peito, em sinal de aceitação da morte e
do destino que lhe foi reservado. É o gesto do lendário bispo Turpim, na Chanson de Roland,
enquanto aguarda a chegada da morte, deitado no chão, em Roncesvales: sobre o peito, bem ao
meio, cruzou as suas mãos brancas muito belas39. É também esta a atitude de grande número das
estátuas jacentes a partir do século XII.
O jacente de D. Inês de Castro aporta outras novidades às representações das
rainhas portuguesas. No que aos gestos se refere, vemo-la a tocar com uma das mãos o

39 Apud Philippe ARIES, op. cit., 1989, p. 22.

404
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

colar de contas que lhe envolve o pescoço e o colo, à semelhança do gesto que podemos
observar nos jacentes régios franceses do panteão de Saint-Denis, embora aí não se trate de
um colar de contas, mas da fita que prende os mantos de reis e rainhas. Com a outra mão,
segura um par de luvas, sinal de distinção social e nobreza de gestos, situação que só
encontramos em França em 1393, no jacente de Leão VI de Lusignan, rei da Pequena
Arménia, no Panteão de Saint-Denis. Este é o primeiro exemplo de reis de origem
francesa, entre os túmulos com jacente que chegaram aos dias de hoje, que apresentam
como atributo as luvas, um signo de distinção dos grandes personagens, dentro da tradição
oriental. Mas há que distinguir entre ter as luvas nas mãos e ter as mãos enluvadas. Esta
última situação é mais frequente e tem antecedentes mais remotos. Em Portugal, o jacente
da rainha D. Urraca apresenta as mãos enluvadas, tal como dois dos jacentes régios de
Fontevrault (Henrique II e Ricardo Coração de Leão), constituindo, estes, um primeiro e
precoce exemplo desta iconografia.
Já os gestos que melhor identificam as representações dos nossos reis são, sem
dúvida, os que lhes conferem aspectos cerimoniais e de aparato, como os que podemos ver
no jacente de D. Dinis, segurando originalmente atributos régios hoje desaparecidos, ou o
de D. Pedro I, que à semelhança de nobres cavaleiros do seu tempo, revela-se para a
posteridade do seu memorial funerário, pronto a desembainhar a volumosa espada que
corre na diagonal sobre o corpo. Embora sugerindo a possibilidade de uma futura acção, a
gestualidade desta estátua não deixa de ser contida, uma forma de estabilização temporária
e precária de todo e qualquer movimento brusco, sugerindo-o apenas.
É comum percebermos a existência de ambivalências nos túmulos medievais.
Jacentes como o de D. Pedro I, representando o rei com trajos de aparato, coroado, com
os olhos abertos e a segurar a espada com ambas as mãos, tendem a contrariar a ideia de
estarmos perante um defunto, pois são-lhe emprestados gestos dos vivos. O rei é aqui
representado não apenas como rei, mas também como cavaleiro vivo e alerta, vigilante, em
direcção à eternidade à qual se entrega, sendo por isso acompanhado por tantos anjos que
actuam como psicopompos e, sabemos que nisso ele crê, pois vamos vê-lo, no túmulo de
D. Inês de Castro, entre os eleitos no Paraíso.
Exemplos tão ou mais ambivalentes que este encontramos um pouco por toda a
Europa dos séculos XIII e XIV, como é o caso de túmulo de Edmundo Crouchback

405
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

(terminado em 1300 ou 1301), Duque de Lencastre e irmão de Eduardo I de Inglaterra: o


insigne cavaleiro é representado como tal na sua estátua jacente, com as pernas traçadas e
com anjos a segurarem-lhe a cabeça, em jeito de transporte da alma. Ele não se entrega à
morte como um fim irremediável, mas com esperança na vida eterna, como bem prova a
representação equestre que foi esculpida no tímpano do seu arcossólio, onde Edmundo,
com gesto penitencial, galopa sobre nuvens, como se já estivesse, de facto, no Paraíso40.
Muitos outros exemplos poderiam ser apontados e a tumulária trecentista portuguesa
possui bons testemunhos iconográficos do que Joel Rosenthal designou de “strategies for
afterlife” 41.

Pormenor to tímpano do túmulo de Edmund


Crouchback.

Apud Paul Binski, Westmimster Abbey…., p. 117.

As primeiras representações de defuntos régios em estátuas jacentes, nos diferentes


reinos europeus, tendem, todavia, para apresentar as personagens como se estivessem
dispostos para última homenagem e veneração no seu leito de morte. É o que vemos no
exemplo do jacente rei do merovingio Quildeberto, cuja estátua foi integrada dentro de
uma moldura, sugerindo a forma do esquife onde terá sido exposto para as últimas
homenagens ao rei defunto. Poder-se-á relacionar esta nova iconografia com o que

40 Esta representação equestre de Edmundo Crouchback, semelhante às imagens de alguns cavaleiros

em selos da época, não tem precedentes na arte francesa medieval, como bem notou Anne McGee
MORGANSTERN, Gothic Tombs of Kingship in France, the Low Countries, and England, Pennsylvania,
The Pennsylvania State University Press, 2000, p. 72.
Cf. Joel ROSENTHAL, The Purchase of Paradise. Gift Giving and the Aristocracy, 1307-1485,
41

Londres/Toronto, 1972.

406
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

habitualmente se designa por lit de parade. Bem mais expressivos e naturalistas são os três
jacentes de Fontevrault, cujos corpos retratados na pedra calcária e policromada, repousam
sobre os lençóis dos seus leitos de morte, dispostos à maneira de “estores venezianos”,
situação que não vemos no túmulo de Quildeberto.

Pormenor de um dos túmulos do panteão de Fontevrault (túmulo de Leonor da Aquitânia).


George Duby, Xavier Barral y Altet, Sophie Guillot de Suduiraut, Sculpture. II, p. 170.

A importância da iconografia dos lit de parade, e em especial para os casos de


Fontevrault, já estudada por vários autores42, resume-a M. Núñez Rodríguez: “Desde las
exigencias de un ritual religioso-funerario, conforme a la condición del soberano (more
regio), se manifiesta la necesidad de exponer el cuerpo de los reyes en su lecho de muerte,
revestidos con los regalia asociados a su condición (potestas) y estado (corona, ceptro....),
como también afirmar la legitimidad de una corona (...); tal será el simbolismo de estos
yacentes, a modo de pilares sobre los que reposa el orden político Plantagenêt que, sin
duda, comenzaba a despertar sospechas por sus fallos internos”43.
Em boa verdade, esta tipologia iconográfica que encontramos nos três primeiros
túmulos de Fontevrault (os jacentes deitados sobre o lençol do que parecem ser os leitos de
morte, onde os respectivos corpos foram expostos, solenemente, e revestidos de todas as
insígnias) não encontra paralelos directos nos túmulos régios portugueses conhecidos.
Mas, ainda que de forma simplificada, a ideia que terá presidido à construção do
jacente de D. Urraca, parece indiciar esta mesma intenção - a representação da defunta

42 Cf. Jean-Pierre GABORIT, “Sur le lit de parade. Essai d’interprétation d’un motif funéraire”,
Actas do Colóquio La Figuration des Morts dans la Chretienté Medievale jusqu’a la Fin du Premier Quart du
XIVe Siècle, 1.er Cahier de Fontevrault, Abbaye Royale de Fontevrault, Centre Culturel de l’Ouest, 26-28
Maio, 1988 (com outra bibliografia citada).
43 M. NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Leonor da Aquitania…”, op. cit., 1994, p. 459.

407
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

rainha no leito de morte para prestação das últimas homenagens – constituindo assim,
provavelmente, um exemplo português dos designados lit de parade, numa versão,
sublinhamos, simplificada. Senão, vejamos: o corpo pétreo, ou representação escultórica de
D. Urraca, disposto em decúbito supino, sugere, claramente, a representação de um corpo
morto. Nada nos indica sinais de vida, como os que vemos em outros jacentes posteriores
(olhos abertos ou realização de gestos só possíveis em vida). Aqui, o que podemos obser-
var é o rosto de um cadáver, com os olhos
fechados e a boca desenhada com os lábios
no sentido descendente. Também os gestos
e toda a disposição do corpo envolto em
ampla indumentária de aparato, apontam no
mesmo sentido. As mãos estão cruzadas
sobre o peito, na posição mais comum de
apresentação e sepultura dos cadáveres
cristãos, muito embora esta posição só se
torne plenamente aceite (contrastando com
o costume romano de colocar os defuntos
com os braços a ladear o corpo), nos
séculos do Românico, como provam um
conjunto de sepulturas da área Noroeste de
Espanha e na Provença44.
A cabeça da estátua assenta sobre
Vista superior do túmulo de D. Urraca. c. 1220-1223.
Igreja do Mosteiro de Alcobaça. Apud. O Panteão Régio do uma almofada, elemento que, por si só, su-
Mosteiro de Alcobaça, p. 57.

gere a presença de um leito, sendo este o primeiro exemplo português conhecido, indo de
encontro ao que também havia sido uma novidade nos jacentes de Fontevrault,
encomendados pela avó de D. Urraca. Por sua vez, o corpo ocupa um espaço pentagonal
escavado em relação aos bordos da tampa, sugerindo o efeito de calcamento que o peso de
um corpo exerce sobre a cama, e ficando, assim, as extremidades mais elevadas em relação
ao centro. Trata-se de um exemplo de jacente português que recorre à já referida “talha em

Cf. A. Kingsley PORTER, Romanesque Sculpture of the Pilgrimade Roads, (1.ª ed. Boston,
44

Massachussets, 1923), Nova Iorque, 1966.

408
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

tina”, semelhante à que foi realizada para o jacente do merovíngio Quildeberto, e, talvez,
na sequência da experiência do jacente de um abade (finais do século XII – inícios do
século XIII), lavrado numa tampa tumular existente na igreja do Mosteiro de Paço de
Sousa, cuja técnica usada foi, como já havia notado Manuel Luís Real45, de um baixo-relevo
pouco acentuado, lavrado “en cuvette”.
Por outro lado, a solenidade das indumentárias indicam que a rainha está vestida
para apresentação pública, com todo o rigor e aparato necessários: rosto emoldurado pelo
véu soqueixado e pela coroa; longo vestido pregueado e plissado, cingido na cintura por
um cinto largo; manto longo, preso no pescoço, e que se dispõem lateralmente ao corpo da
figura, de forma rigorosamente simétrica, arranjado para uma apresentação inamovível.
Difere, por isso, de outras representações de jacentes, em que o ondulado dos pregueados
permite-nos pensar que estas foram representadas como se fossem estátuas para ser vistas
de pé, pouco ou nada diferentes de outras estátuas em que esses personagens se fazem
representar em momentos-chaves das suas vidas públicas, isto é, como seres viventes.
Ainda que com carácter de proposta, julgamos poder ver neste jacente e na sua
articulação com a tampa sepulcral, a representação da última exposição do corpo de D.
Urraca, antes do seu sepultamento, ou seja, no momento em que o corpo é disposto no lit
de parade para veneração e homenagem dos familiares e súbditos. É provável que não se
tenha pretendido representar a rainha em exposição num leito, com as suas características
intrínsecas O seu aspecto geral evoca melhor uma padiola de madeira, na qual era não
apenas exposto o defunto, mas também constituía o objecto e o meio, em que o corpo era
transportado desde o lugar da morte até à igreja onde seria sepultado, semelhante ao que
podemos observar na representação das exéquias e funerais de outras importantes figuras
régias medievais, de que é exemplo o funeral de Eduardo, o Confessor, representado na
famosa tapeçaria de Bayeux (c. 1080), ou os funerais de São Luís ou de Joana de Bourbon,
representados nas Grandes Crónicas de França, do reinado de Carlos V.
Um outro interessante exemplo é-nos dado a conhecer através de um túmulo do
século XIII, pertencente a um cavaleiro, e hoje acervo do Museu de Poitiers, em que o

45 Manuel Luís REAL, (manuscrito inédito, 1978), p. 155. Para Mário Jorge BARROCA,
“Escultura funerária”, Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário BARROCA, op. cit., 2002, p. 212,
porém, este não é ainda um jacente, “por lhe faltar a indispensável tridimensionalidade”, mas é um
exemplo que permite compreender os primórdios da construção de jacentes em Portugal.

409
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

pouco espaço destinado à exposição da estátua jacente, bem como o facto de ter o corpo
parcialmente coberto por um tecido, levou Jean-Pierre Gaborit46 a considerar tratar-se de
uma figuração do defunto colocado sobre um feretrum ou ferculum, acompanhado de
algumas das insígnias da sua categoria social, e pronto para ser transportado para o lugar de
sepultura.
Mas se este tema dos lit de parade é parco no universo da tumulária portuguesa de
elementos da família real, entre os séculos XII a XIV, a verdade é que não deixa de estar
presente uma outra tipologia iconográfica, que se prende com a representação do leito de
morte: a morte-sono. Esta categoria iconográfica, embora não apareça com as especificidades
do retrato dos tumulados nos momentos imediatos à sua morte (destinados à homenagem
e veneração), evoca também o leito ou o feretrum onde jaz o defunto, mas propondo a
negação da morte destes personagens, evitando o entendimento dessa morte como estado
definitivo e irreversível, que é assim contrariado. Um vez que esta tipologia é bastante mais
perceptível em alguns jacentes portugueses do que a anteriormente analisada, dedicamos-
lhe uma atenção especial.

1.1.1. Os jacentes adormecidos


A morte como situação transitória, estado letárgico que obedece a um princípio há
muito defendido por Aristóteles (De somno et vigilia)47, encontra-se patente em algumas
estátuas jacentes, pertencentes a túmulos medievais portugueses. Os mais expressivos,
porém, não correspondem aos túmulos de reis e de rainhas, mas a elementos da nobreza,
quer sejam, ou não, filhos de monarcas.
Em Espanha, dois jacentes de reis de Leão, datados do século XIII, revelam, pela
sua inusual posição em decúbito lateral, o significado muito claro da transitoriedade da
alma dos defuntos, negação da irreversibilidade da morte, conforme às directrizes cristãs,
na qual a alma se encontra em estado de sono até alcançar a sua Bem-aventurança.
Referimo-nos aos jacentes dos reis Fernando II e Afonso IX de Leão, na Catedral de
Santiago de Compostela, amplamente estudados por Manuel Núñez Rodríguez.

46 IDEM, ibidem, pp. 118-119.


47 Cf. Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., 1994, p. 13.

410
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Jacente de Fernando II de Leão. Séc. XIII. Catedral de Santiago de Compostela. Apud Manuel
Chamoso Lamas, Escultura Funerária en Galicia, 1979, p. 508.

Jacente de Afonso IX de Leão. Séc. XIII. Catedral de Santiago de Compostela. Apud Manuel
Chamoso Lamas, Escultura Funerária en Galicia, 1979, p. 508.

Esta iconografia refere-se, não tanto ao corpo mortal do rei, mas ao corpo político,
enquanto garante da paz e da justiça. Este, não morre nunca. Por isso, a simulação do
“sono da morte” destina-se, melhor do que qualquer outra opção representativa, a
expressar valores de continuidade da monarquia e da própria dinastia, isto é, a simbolizar a
unidade do corpo místico rei-reino, assim como a afirmar a imortalidade dos que governam
em nome de Cristo.
O corpo e os gestos, retratados na pedra dos túmulos através das estátuas
funerárias, combinam-se, desta forma, para a exaltação da memória e para relembrar
princípios caros às teorias políticas tardo-medievais, e princípios advogados pela doutrina
cristã respeitantes à imortalidade, ainda que esses mesmos princípios sejam herdeiros de
um passado pagão que contava já com uma larga tradição.

411
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Sem pretendermos refazer o historial das representações dos defuntos como entes
adormecidos, apresentamos, apenas, alguns exemplos mais significativos sob o ponto de
vista iconográfico.
A procura de uma libertação perante o estado de angústia e de impotência
proporcionada pela ideia da morte definitiva, conduziu alguns pensadores da Antiguidade a
valorizar o mundo onírico, dissertando sobre ele (sendo disso espelho a própria mitologia
grega), como no anteriormente referido tratado de Aristóteles ou nas Obras morais de
Plutarco, e proporcionando aos artistas matéria representativa bastante ampla. No estado
morte-sono são representados vários jacentes de época etrusca e de patrícios romanos,
inspirados pela iconografia do gesto dormitionem de Endímion48.
Esta mesma valorização do sono e do sonho, enquanto condição privilegiada para
revelações e, da mesma forma, condição perfeita para não estabelecer uma ruptura
definitiva com o mundo dos vivos, encontramo-la em textos bíblicos (Eclesiásticos XXXIV,
1-2), e abundam as referências a sonhos reveladores, como são exemplos Nabucodonosor
e a Visão da Árvore; o sonho do Faraó interpretado por José (Génesis XLI, 1-5), o sonho
de Jacob (Génesis XXVIII, 10-12), o sonho dos reis Magos, entre tantos outros. Todos
evidenciam o carácter divino da mensagem e um conteúdo ideológico que determina o
sonho-visão como fonte inesgotável de comunicação entre o indivíduo e a divindade.
Como bem refere Manuel Núñez, de todas estas visões, destaca-se o sonho de
Salomão (Reis, IX), “donde Yavé se adelanta a la futura teoría política del medioevo sobre
la cooperación Iglesia-Monarquía y que, como se fijará en las Partidas, determina que los
reyes habrán de mantener la fe «honrando y guardando las iglesias»”49.
Durante os anos do Gótico, e com o surgimento de novos santos medievais,
verificou-se a continuidade da valorização do mundo onírico, de que é bom exemplo a
legenda de São Francisco, em que se conta a sua aparição em sonhos a Gregório IX (a
representação iconográfica deste tema encontrou a melhor expressão nos frescos de Giotto
que, em Assis, imortalizaram a iconografia da aparição do poverello a Gregório IX).

48 Segundo alguns autores, Endímion era filho de Zeus. Escolheu dormir um sono eterno e o
deus adormeceu-o, conservando-o eternamente jovem. Segundo algumas versões, a Lua (Selene) viu-o
durante esse sono e apoixonou-se por ele. Cf. Pierre GRIMAL, Dicionário da Mitologia Grega e Romana,
Lisboa, Difel, 1992, p. 134 e Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., 1999, pp. 57-58.
49 Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., p. 62.

412
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A importância desse “instrumento intangível”, para a revelação de valiosas


mensagens, reflecte-se na abundância com que o tema dos sonhos surge, frequentemente
representado, no universo artístico medieval, nas diferentes formas de arte figurativa, onde
se incluem, claro, os túmulos.
Por isso, a proposta sugerida pelos jacentes de Fernando II e Afonso IX de Leão
mais não são do que um aproveitamento desses temas, aplicados, agora, à iconografia régia
póstuma. Com ela, tenta-se de evitar a recordação da morte biológica, e criar na mente dos
vivos (súbditos) uma imagem de imortalidade da instituição monárquica. Ao mesmo
tempo, potencia-se, nos mesmos súbditos, a predisposição para prestar homenagem ao rex
gratia Dei, que se encontra em estado de adormecimento e não em estado de transitus ou
morte50.
Esta iconografia funerária também deixou alguma herança na tumulária medieval
francesa, na hora de representar aqueles que foram “cabeças tutelares” do poder
monárquico, e de que é exemplo o magnífico túmulo do rei merovíngio Dagoberto (603 -
629 - †639), realizado para a Igreja abacial de Saint-Denis, entre 1258-1264, e colocado no
mesmo lugar da sua sepultura original, à direita das relíquias de São Dinis51. Nesta obra,
podemos contemplar o duplo valor atribuído ao sono e ao sonho: em primeiro lugar, o
jacente de Dagoberto, que o representa deitado em decúbito lateral, com a cabeça assente,
confortavelmente, sobre uma almofada, os olhos abertos e as mãos juntas, em gesto de
oração. Sugere-nos que o rei está vivo e desfruta do “repouso da morte”, enquanto os
santos intercedem pela sua alma. Nos três registos que compõem o tímpano do majestoso
arcossólio, conta-se a atribulada viagem da alma do merovígio, de acordo com a legenda do
eremita João de Lipari. Esta, conta como a alma do rei foi salva do Inferno, graças à
intervenção dos santos Dinis, Maurício e Martinho. No primeiro registo, vemos, deitado
sobre um leito, o eremita João, adormecido e, reclinado sobre ele, a figura do bispo
Ansoaldo que lhe toca levemente o ombro e nos convida a descobrir a visão que se
desenrola nos registos do tímpano.

50Idem, ibidem, p. 71.


51Sobre o túmulo de Dagoberto veja-se Alain ERLANDE-BRANDENBURG, op. cit., 1975,
pp. 135-137 e Serge SANTOS, op. cit., 1999, pp. 36-37, bem como Françoise BARON, “«Cimetiere aus
róis» et Musée de sculpture funéraire”, Saint-Denis la Basilique et le Trésor, Dossier d’Archeologie, n.º 261 –
Março de 2001, pp. 68-70.

413
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor do jacente
de Dagoberto.

c.1258 (encomenda de
São Luís).
Abadia de Saint-Denis.

Serge Santos, Saint-Denis.


Dernière Demeure des Rois
de France, Est. 4C.
Foto: Claude Sauvageot

Sonho-visão de São João de Lipari. Túmulo de


Dagoberto.

c.1258 (encomenda de São Luís).


Abadia de Saint-Denis.

Serge Santos, Saint-Denis. Dernière Demeure des Rois de France,


Est.4A
Foto: Claude Sauvageot

Curiosamente, entre os muitos túmulos de época medieval existentes na basílica-


necrópole dos reis de França, o túmulo de Dagoberto é o único que contempla esta
iconografia da morte-sono, justificando-se, muito provavelmente, pela existência de uma
lenda sobre a viagem da alma deste rei no Além, a partir de um sonho-visão de um santo,
situação que não se conhece para nenhum outro dos tumulados em Saint-Denis.

414
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Em Inglaterra, não existem, ou pelo menos


não subsistiram, túmulos medievais pertencentes à
monarquia, em que os jacentes sejam representados
em posição lateral e como se estivessem
adormecidos. Mesmo entre a tumulária das famílias
nobres, apenas podemos referir o túmulo de Sir
William de Kerdiston († 1361), sepultado na Igreja de
Santa Maria de Norfolk, com jacente posicionado
lateralmente, cabeça sobre a almofada, a espada
distendida junto ao corpo e assentando, todo ele,
sobre o que parece ser uma sugestão de nuvens52.
No que se refere a Portugal, a iconografia da
morte-sono parece ter sido, igualmente, do agrado de
alguns notáveis da aristocracia portuguesa dos
séculos XIII e XIV, mas não tanto dos nossos reis e
rainhas, como afirmámos anteriormente. Referimo-
nos ao jacente de um dos túmulos de cavaleiros
Túmulo de Sir William de Kerdiston.
Séc. XIV. Igreja de santa Maria de Norfolk sepultados na igreja do Mosteiro de Pombeiro, per-
(Inglaterra).
tencente a D. João Afonso de Albuquerque53, 1.º Conde de Barcelos, onde o nobre
cavaleiro é representado em decúbito lateral, em vez da tradicional representação em

52 Cf. Anne McGee MORGANSTERN, op. cit., 2000, p. 106.


53 O túmulo identificado por Manuel Luís Real (em manuscrito inédito datado de 1978, p. 158-
159) como pertencente ao cavaleiro D. João Afonso de Albuquerque, 1.º Conde de Barcelos, apresenta
algumas semelhanças interessantes com o túmulo de outro cavaleiro da família dos de Lima (séc. XIII),
também pertencente ao antigo panteão da Igreja de Pombeiro de Ribavizela, embora seja ligeiramente
mais tardio (c.1304-1310 ?), e introduza novidades dignas de nota. Salienta-se, como inovação, que seria
retomada noutros túmulos de cavaleiros da primeira metade do século XIV, o posicionamento da
estátua jacente em decúbito lateral, com um dos braços flectidos e a mão sob o rosto, enquanto a outra
mão segura a espada deitada sobre a tampa, e não sobre o corpo do cavaleiro, como era mais habitual.
Outro denominador comum entre os dois túmulos de Pombeiro, e que não voltamos a encontrar na
tumulária trecentista, é a iconografia dos sarcófagos, onde se representam os cavaleiros montados no
corcéis, com gualdrapas e empunhando a lança em riste, da qual pende o talão. Porém, acrescenta outro
quadro idêntico na outra face, substituindo apenas a lança por uma espada. Difere ainda do outro
túmulo de Pombeiro, pelo facto do pendão da lança possuir um escudo com as armas familiares. Na
cabeceira, e seguindo também o modelo do outro túmulo, releva-se um escudo heráldico com cinco
flores-de-lis. Também ao nível da tampa existem semelhanças e diferenças. A presença do lençol
pregueado, sobre o qual se deita o jacente, é claramente inspirado no túmulo do outro cavaleiro, bem
como a inserção da estátua dentro do limite espacial da empena de duas águas que confere forma à

415
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

decúbito supino, como se verifica no outro túmulo de Pombeiro, pertencente a um


elemento da linhagem dos de Lima.
D. João Afonso de Albuquerque é representado com uma das mãos sob o rosto,
como se estivesse tranquilamente adormecido, enquanto que com a outra mão segura o
punho da espada, distendida ao lado do corpo.
A própria tampa tumular, coberta com um lençol ou colcha pétrea, com os seus
pregueados a cair no rebordo, sugere a representação do leito - leito-de-morte,
provavelmente - constituindo mais um indicador de que a ideia do encomendador, ou do
artífice, não foi outra senão a de, deliberadamente, evitarem a representação do estado
irreversível da morte, optando pelo modelo da morte-sono, ao nível da iconografia do
jacente, certamente por influência da iconografia funerária galega.

tampa e, ainda, a colocação dos pés calçados e com esporas, virados para o mesmo lado (esquerdo).
Todavia, o aspecto geral da estátua é mais imperfeita e menos naturalista. As claras semelhanças e
muitos pontos de contacto entre os dois monumentos funerários de Pombeiro, levam Mário Jorge
BARROCA, op. cit., 1987, p.460, a levantar a hipótese de se tratar de obras de um mesmo escultor.
Manuel Real, em 1978, já havia salientado a inovação que constitui a posição deste jacente, e que só
voltaria a ser repetida nos túmulos de Domingos Joanes (Oliveira do Hospital) e de Fernão Sanches
(Museu Arqueológico do Carmo). Os modelos dos dois sarcófagos de Pombeiro revelam inspiração
directa em exemplares galegos, como já havia chamado à atenção Manuel CHAMOSO LAMAS,
Escultura Funerária en Galicia, Orense, Instituto de Estúdios Orensanos “Padre Feijoo” de la Diputación
Provincial, 1979, pp.509-516, nomeadamente nos referidos jacentes de Fernando II e Afonso IX de
Leão, bem como no do Conde D. Raimundo de Borgonha, todos sepultados na Catedral de Santiago de
Compostela. Ambos os túmulos que actualmente se encontram no interior da Igreja de Pombeiro,
pertenceram ao antigo núcleo funerário que constituía um verdadeiro panteão da nobreza de Entre-
Douro-e-Minho (M. J. BARROCA, ibdidem p. 459), situado, outrora, na galilé da mesma igreja. Sobre os
túmulos de Pombeiro Cf. Manuel M. RODRIGUES, “Igreja de Pombeiro”, A Arte Portuguesa, vol. I, n.º
1, Porto, Janeiro de 1882, pp. 61-62; Diogo de MACEDO, Iconografia Tumular Portuguesa. Subsídios para a
formação de um Museu de Arte Comparada, Lisboa, 1934, p. 22; Fr. António da Assunção MEIRELES,
Memórias do Mosteiro de Pombeiro, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1942, pp- 70-71; Armando de
MATTOS, “Arqueologia Artística. II...”, op. cit., pp. 62-64; J. M. Cordeiro de SOUSA, Contribuição para
uma Ementa dos Jacentes Portugueses, Lisboa, IAC, 1946, p. 13, Reynaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948,
p. 18, Manuel Luís REAL, policopiado inédito, 1978, pp. 157-160; D. Luís Gonzaga de Lencastre e
TÁVORA “Apontamentos de Armaria Medieval Portuguesa. II. De novo o selo de D. Constança Gil”,
Armas e Troféus, V.ª série, vol. I, Lisboa, 1980, p. 28 e nota 8; José MATTOSO, “O Românico
Português. Interpretação económica e social” (1980), republ. Portugal Medieval. Novas Interpretações,
Lisboa, INCM, 1985, p. 168, Pedro DIAS, op. cit., 1986, pp. 125-126; Mário Jorge BARROCA, op. cit.,
1987, p. 403; Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2002, pp. 221-
222.

416
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Túmulo de um membro da
família de Lima ou
Nóbrega

Finais do séc. XIII

José Mattoso, História de


Portugal, 2.º vol., p. 176. Foto:
Nuno Calvet.

Túmulo de D. João Afonso


de Albuquerque.

Inícios do séc. XIV.


Igreja do Mosteiro de
Pombeiro.

Foto: PAF

Em dois outros monumentos funerários, revela-se o apreço que demonstraram


alguns elementos da nobreza portuguesa do século XIV pela representação dos defuntos
em estado de adormecimento, embora de forma mais subtil do que nos exemplos antes
citados. São os já muito conhecidos túmulos pertencentes ao cavaleiro D. Domingos
Joanes e a sua mulher, D. Domingas Sabanchais, que se fizeram sepultar na igreja matriz de
Oliveira do Hospital54 (c. 1341 - Capela dos Ferreiros).

54 Da primeira metade do século XIV (1336-1340 ?), estes dois túmulos arrolam-se entre as
obras atribuídas à oficina de Mestre Pero. Constituídos por arcas sepulcrais esculpidas em granito, sem
qualquer decoração, possuem tampas com estátuas jacentes, lavradas em calcário brando da região de
Coimbra (pedreiras de Ançã, Outil ou Portunhos). Ambas as estátuas, do cavaleiro e da sua mulher,
apresentam-se em decúbito lateral, simbolizando um estado letárgico A sua atribuição à mão ou à
oficina de Mestre Pero tem sido unânime desde a década de 20 do século XX, quando Alberto Feio
descobriu o contrato para a realização do túmulo de D. Gonçalo Pereira e, mais tarde, o recibo de
pagamento do túmulo de D. Vataça ao mesmo mestre escultor. De facto, a estátua jacente de D.
Domingas Sabanchais, em tudo se assemelha à de D. Vataça e muitas semelhanças apresenta com as
figuras femininas esculpidas na arca tumular do arcebispo de Braga e no túmulo da Rainha Santa Isabel.
Sobre estes túmulos veja-se, entre outros títulos: Vergílio CORREIA, op. cit., 1924, p. 41; A.
GONÇALVES, «Esculturas da Capela dos Ferreiros», Ilustração Moderna, Ano 5, nº 40, Porto, ed.
Marques Abreu, Fev. de 1930, pp. 34-37; Aarão de LACERDA, op. cit., 1942., p. 460; Reynaldo dos
SANTOS, op. cit., 1948; Pedro DIAS, op. cit., vol. IV, 1986, p. 117; Francisco Pato de MACEDO, “O
descanso eterno. A tumulária», História da Arte Portuguesa, (dir. Paulo Pereira), vol. I, Lisboa, Circulo de

417
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Interessa-nos abordar, porém, no âmbito temático deste estudo, por se tratar de um


elemento da família real portuguesa, um dos filhos bastardos de D. Dinis – D. Fernão
Sanches (1.ª metade do século XIV) – que foi igualmente representado no seu monumento
funerário com semelhante iconografia, ainda que se tivessem dispensado os elementos que
sugerem a presença de um leito55. Mas, mesmo sem lençóis ou colchas a amaciar o leito do
defunto, a iconografia da tampa tumular de D. Fernão Sanches, em tudo é sugestiva de um
estado letárgico, um estado de adormecimento, não muito profundo, diríamos mesmo
vigilante.
Deitado em decúbito lateral direito, o cavaleiro repousa a cabeça sobre uma das
mãos e estas, sobre duas grandes almofadas, que parecem calcar-se sob o seu peso. O rosto
tem expressão tranquila, com os olhos levemente fechados, barba e cabelos longos, de
madeixas onduladas e dispostas simetricamente. Observando apenas o rosto deste
cavaleiro, poderíamos pensar que estaria abandonado aos seus sonhos mais doces,
totalmente desligado dos prazeres, ou dos perigos, que oferece o mundo dos vivos. Outro
elemento da sua iconografia diz-nos, porém, que não é bem assim… Com os dedos da
outra mão, Fernão Sanches toca levemente o punho da sua espada, deitada sobre a tampa,
junto ao corpo, num gesto que recorda, directamente, o jacente de D. João Afonso de
Albuquerque. A mesma espada que o bastardo de D. Dinis terá usado em vida, para fazer
frente aos seus inimigos, a mesma espada que, como cavaleiro de Cristo, estaria sempre
pronto a colocar-se ao serviço da Fé, é agora aqui representada como companheira de
jornada da “longa noite fúnebre”, a qual, ele poderá, a qualquer momento, subtrair à
bainha e enfrentar as ameaças do mundo visível e, talvez até, as do mundo invisível,
enquanto aguarda o dia do Juízo e a sua esperada integração entre os eleitos do Reino
Celeste.

Leitores, 1995, p. 444; Emídio Maximiniano FERREIRA, A Arte Tumular Medieval Portuguesa (Séculos
XII-XV), Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1986, p. 112; Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2000, vol. II,
Tomo 2, pp. 1627-1632.
55 Veja-se foto do túmulo completo no capítulo 2 da III Parte.

418
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor do jacente de D. Fernão Sanches. Primeira metade do século XIV.


Convento de S. Domingos de Santarém. Museu Arqueológico do Carmo.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

É, portanto, a captação de um instante possível, uma forma de tempo suspenso,


que o mestre escultor deste monumento funerário conseguiu traduzir na pedra em que
esculpiu a estátua jacente. A mesma que se pode perceber na iconografia da caça ao javali,
representada na face longa deste monumento, onde o exacto momento de desferir o golpe
na fera selvagem nos deixa suspensos, na curiosidade de conhecer o momento seguinte…
Além deste elemento referente ao jacente, a própria presença do mastim, que se
encontra sentado aos pés do cavaleiro, e que outrora teria a sua cabeça voltada para quem
se aproximasse do túmulo (decepada em algum momento pouco feliz da sua atribulada
existência), constitui outro elemento que aponta para um estado de vigília permanente,
dividida entre o defunto-adormecido mas vigilante, e o seu fiel companheiro de lutas e de
caçadas, e que é também companheiro na morte.
Estes são os únicos jacentes realizados em Portugal nas centúrias de Duzentos e na
primeira metade de Trezentos, que apresentam, de forma clara, a iconografia da morte-
sono (pelo menos, entre os exemplos que nos chegaram), como forma de evitar, na
memória daqueles que, ao longo dos tempos, tomaram contacto com os seus monumentos
funerários, a ideia de irreversibilidade da morte e dos seus efeitos nefastos. Mantendo-os
adormecidos, poder-se-ia imaginar que um dia regressariam ou, pelo menos, que um dia
despertariam de corpo incorrupto para a Bem-aventurança e para a companhia de Deus.

419
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

1.2 Regis apparatu


Mas se o corpo se faz aparato nos jacentes dos poderosos laicos, outros foram os
meios usados, ou melhor, os materiais ou suportes que se prestaram à iconografia afecta
aos membros constituintes da família real. Por isso, apesar de continuarmos a referir estes e
outros jacentes, é necessário que alarguemos o nosso campo de análise a outros meios
então usados na propaganda do poder através das imagens. Impõem-se, igualmente,
abordar comparativamente a realidade portuguesa no que se refere aos cerimoniais, ritos e
actos públicos dos poderosos, com os que caracterizavam as congéneres monarquias
ocidentais, para que, assim, possamos melhor avaliar e compreender como estes influíram,
ou estiveram ausentes, no aparato da representação dos seus corpos.
Antes de mais, é necessário averiguar da existência, ou da não existência, de
cerimoniais e ritos nos quais as insígnias do poder real passavam a ser pertença dos
soberanos e sua forma própria de diferenciação relativamente aos outros indivíduos.
Símbolos do poder régio por excelência, estas insígnias adquiriram, desde a Antiguidade,
uma notável importância nos momentos de apresentação pública dos governantes, bem
como nos “retratos” em que foram figurados, nos diversos momentos das suas vidas e,
inclusive, após a morte.
Os rituais do poder monárquico destinam-se, antes de mais, a vivificar a fidelidade
dos súbditos e a garantir a continuidade desse mesmo poder: a sagração; as entradas régias
e os funerais, são os três rituais mais destacados, constituindo ritos de passagem –
passagem da condição de príncipe para a de rei; passagem de limites fronteiriços marcados
pelas portas das cidades nas quais o rei é recebido com aparato; passagem da vida para a
morte e desta para a “vida política” do novo rei, sucessor por direito.
Da mesma forma, a cerimónia em que o rei investe um novo cavaleiro constitui um
rito de passagem, não apenas para a vida adulta (independentemente da idade em que cada
jovem é investido), mas também como passagem da condição de mero jovem iniciado nas
armas, um mancebo, para um grupo de elite, com valores e códigos próprios.
Interessa-nos, assim, analisar o valor do rito, ou dos ritos, que conferem aos
detentores máximos do poder temporal uma nova condição, isto é, um novo papel a
desempenhar na hierarquia social em que se integram. Referimo-nos concretamente às
cerimónias de ascensão ao trono, bem como as respectivas insígnias que dão confirmação

420
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

visual e simbólica a esse novo poder. O último ritual de apresentação pública dos
monarcas, ocorrido durante os funerais, deve ser igualmente valorizado, tendo em conta a
existência que se verifica, em alguns casos, da sua relação estreita com as representações
jacentes nos monumentos funerários, situação que é mais compreensível, e até mais
explícita, para os casos franceses e ingleses, do que nos jacentes régios portugueses, na
medida em que não existem descrições pormenorizadas sobre as exéquias dos nossos reis,
pelo menos no que se refere às suas indumentárias e regalia, como veremos.
Em França, como já vimos, o ritual da sagração impõem-se como a principal
cerimónia da monarquia, pois, através dela, o rei adquire um estatuto sobrenatural. A
forma como o ritual foi adquirindo complexidade demonstra bem o relevo que detinha.
Conhecemos hoje, especialmente bem, todo o desenrolar das cerimónias de
confirmação dos novos monarcas franceses, através da abundância dos ordines1 da sagração,
onde os textos e as notas marginais nos permitem conhecer todos os passos, e as
iluminuras respectivas ilustram, claramente, todo o aparato litúrgico e laico que os
caracterizavam. São de salientar três Ordines franceses do século XIII (o Ordo de 1230, o
Ordo de 1250 e o Ordre de la consécration et du couronement des rois de France, ou Ordo Capetíngio,
datado de 1270), e ainda, do século XIV, o Livre du Sacre, mais conhecido como Coronation
Book2, do reinado de Carlos V. Em Inglaterra, a importância das cerimónias de sagração
dos novos monarcas também deixou notáveis testemunhos literários e iconográficos, sendo
os mais notáveis o Liber Regalis3, o Litlyngton Missal e o Pamplona Coronation Book.

1 Sobre os ordines das coroações dos reis franceses veja-se Richard A. JACKSON, “Les ordines
des couronnements royaux au Moyen Age”, Le Sacre des Rois, Paris, Société d’Edition Les Belles Lettres,
1985, pp. 63-74.
2 Londres, British Library, Ms Cotton Tiberius D. VIII. É composto por trinta e oito ilustrações

de cada fase da sagração e está datado de 1365, pela própria mão de Carlos V, um ano após a sua
sagração.
3 Londres, Westminster Abbey Ms 38. É composto por trinta e quatro fólios contendo o ordo

para a sagração de um rei, de um rei e de uma rainha e de uma rainha individualmente. Cada liturgia
abre com uma iluminura de página inteira contendo referências simbólicas ao texto. Neste caso, o texto
da sagração é parte integrante de um volume que contempla outros assuntos litúrgicos, sendo o Liber
Regalis apenas uma parte de um manuscrito descritivo de cerimónias eclesiásticas, contrariamente ao
Coronation Book de Carlos V, apenas destinado à cerimónia da sagração. Esta obra insere-se na produção
de manuscritos iluminados de Westminster, tal como o Litlyngton Missal, executado pelas mesmas mãos,
ou o Pamplona Coronation Book (actualmente no Arquivo Geral de Pamplona, MS 197), como
testemunhos da muito estreita ligação da abadia à monarquia inglesa. Convém relembrar que a abadia
de Westminster possuía os direitos de custódia sobre as regalia da coroação, à semelhança do que se
passava com Saint-Denis para a realidade francesa contemporânea. Cf. Helen LACEY, A Comparison of

421
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Estas cerimónias, que se compunham de elementos laicos e religiosos, constituem,


como já tivemos oportunidade de desenvolver em capítulos anteriores, os momentos a
partir dos quais o sucessor do rei defunto, ou deposto, se torna, efectivamente, rei.
Enquanto que a coroação é a simples investidura do príncipe com as insígnias do poder
(espada, ceptro, coroa) pelos grandes do reino, sendo, por isso, uma festa laica de forte
coloração guerreira (bênção dos estandartes) e onde a participação dos clérigos não é
indispensável, a sagração, pelo contrário, é uma cerimónia clerical. Com antecedentes que
remontam à Antiguidade e, sobretudo, à Antiguidade oriental (unção dos reis de Israel), os
reis visigodos não a dispensaram, assim como toda a dinastia carolíngia.
Depois do século IX, as duas componentes, laica e religiosa, passam a estar sempre
ligadas numa mesma cerimónia, não conhecendo, desde então, mutações significativas. O
lugar da sagração é, invariavelmente, Reims, cidade que guardava a Santa Ampola, e o
arcebispo de Reims o oficiante obrigatório, não obstante as contestações de Saint-Denis.
De uma forma simplificada e algo generalista, a cerimónia, que se realizava sempre
durante um manhã de domingo, iniciava-se com o rei a proferir o juramento de ser
verdadeiramente católico, tocando os Evangelhos e as relíquias com a mão direita.
Seguiam-se as promessas à Igreja, prometendo guardar os privilégios desta instituição
sagrada, e aos laicos de fazer a justiça e manter a paz. Era então aclamado por toda a
assembleia. “Eleito” por todos, o rei podia, então, ser sagrado.
O oficiante preparava uma mistura de creme com o óleo da Santa Ampola, que
entretanto havia sido transportada desde São Remigio de Reims para a Catedral de Reims,
em procissão solene, sendo entregue à guarda do respectivo arcebispo. O rei, apenas
vestido com túnica semelhante a uma dalmática, era então ungido sobre a testa, o peito, as
costas, os braços e as mãos. Após a sagração, seguia-se a entrega das insígnias, agora com
participação laica. Se as regalia eram benzidas e colocadas sobre o altar, adquirindo assim
um valor religioso, a sua entrega ao rei era feita pelos pares de França. A espada Joyeuse de
Carlos Magno, o ceptro, as esporas, o anel, a mão da justiça, eram sucessivamente
entregues ao novo rei.

the Illuminations of Liber Regalis with those of the Coronation Book of Charles V of France,
www.york.ac.uk/teaching/history/pipg/coronation.pdf, (7-11-2003); Paul BINSKY, The Liber Regalis:

422
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Transporte da Santa Ampôla da Igreja de S. Remígio de Unção com os santos óleos sobre a testa do novo rei.
Reims para a Catedral de Reims, em procissão solene. Ordo da Sagração e Coroação dos Reis de França.. c.1250. (LAT 1246
Ordo da Sagração e Coroação dos Reis de França.. c.1250. (LAT 1246 fl.17).
fl.4). Collete Baune, Des Manuscripts des Rois de France au Moyen Collete Baune, Des Manuscripts des Rois de France au Moyen Age, p.
Age, p. 125. 127.

Unção dos braços e das costas; o rei veste os Unção do peito de Carlos V de Fraça.
trajos solenes; imposição solene da coroa e das Livre do Sacre (Coronation Book) (Guillaume Durand, Rationale
restantes insígnias; final da cerimónia. Ordo da divnorum officiorum, traduzido por Jean Golein. FR 437, fl. 44v.º)
Sagração e Coroação dos Reis de França. c.1250. (LAT Collete Baune, Des Manuscrits des Rois de France au Moyen Age, p. 129.
1246 fl. 26). Collete Baune, Des Manuscrits des Rois de
France au Moyen Age, p. 128.

its date and European Context. The Regal Image of Richard II and the Wilton Diptyc, ed. D. Gordon, Londres,
1977.

423
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Por fim, o arcebispo tomava das mãos dos nobres a coroa e colocava-a na cabeça
do “eleito”. Este, era então conduzido solenemente ao trono, que se encontrava instalado
sobre um estrado no coro. Terminava, por vezes, com a bênção dos estandartes com as
flores-de-lis, antes de passar, caso fosse essa a situação, à sagração da rainha4. Esta última
cerimónia era mais simples e a unção era feita com um óleo benzido pelo arcebispo, em
menos partes do corpo.
No Livre du Sacre (Coronation Book) de Carlos V, insiste-se notoriamente sobre o
sacramento da unção “qui fait du roi une personne mixte quasi clerical. Le roi est un
“Christ” oint du Seigneur, entouré des douze pairs comme des apôtres, vassale de Dieu
seul, porteur de la religion royale”5.

Livre do Sacre (Coronation


Book) de Carlos V.
Séc. XIV
British Library

É interessante salientar que, no fólio 74, o texto que aí se pode ler é da mão do
próprio rei Carlos V, testemunho de que ele teve um papel activo na correcção, arranjo,
escrita e ilustração do texto, e não apenas no seu patrocínio. Esta é uma obra que, tendo
sido redigida e ilustrada poucos anos após a coroação do casal régio, revestiu-se de uma
extraordinária importância para as pretensões de Carlos V. Como concluiu Claire. R.

4 Cf. Patrick DEMONY, op. cit., 2001, pp. 90-119 e Colette BEAUNE, op. cit., 1997, pp.124-
130.
5 Colette BAUNE, op. cit., 1997, pp. 128-129.

424
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Sherman6, a coroação e respectivas cerimónias foram os primeiros passos dados por Carlos
V para a criação de um suporte firme de uma monarquia que se apresentava vacilante,
através da sua divulgação escrita e ilustrada. Por isso se reveste de tanto interesse e atenção
por parte do monarca a redacção deste livro, que difere, pela interferência directa do rei,
dos usuais ordines de sagração, inseridos em Pontificais e, como tal, compondo apenas uma
parte inserida em obras de carácter litúrgico e da responsabilidade dos meios eclesiásticos.
Aqui, é o rei que assume um papel determinante na condução e fixação do ritual.
No que respeita à coroação das rainhas de França, o caso de Joana de Bourbon
(1338-1378), mulher de Carlos V, constitui um exemplo de grande relevo, na medida em
que os rituais de que se reveste a cerimónia também ficaram registados graficamente
através de um conjunto de nove iluminuras. Através da comparação entre o texto do Livre
do Sacre, mais conhecido como Coronation Book, Claire R. Sherman conclui que existe uma
relação directa entre os ritos da coroação dos reis e os mesmos para as rainhas. Diversos
aspectos, porém, deixam
perceber a situação de
inferioridade do status social da
rainha em relação ao rei,
nomeadamente pelo facto de
Carlos V, à semelhança de todo
os seus antecessores (desde
Clovis, em 496), ter sido ungido

Coroação de Joana de Bourbon.


em sete partes do corpo com os
Livre do Sacre (Coronation Book) de Carlos V.
Séc. XIV. British Library
Santos óleos, conferindo-lhe um

poder taumatúrgico que colocava os governantes franceses em posição superior aos seus
congéneres de outros reinos, enquanto que a rainha foi ungida com um óleo simplesmente
benzido, aplicado somente no peito e na cabeça7.

6 Cf. em especial, o já citado artigo, “Representations of Charles V...”, Medievalia et Humanistica,


pp.83-96.
7 Claire Richter SHERMAN, “Taking a second look…”, op. cit., 1982, p. 103.

425
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Também no que se refere aos atributos, ou regalia, o ceptro da rainha, símbolo da


sua autoridade temporal, é mais pequeno que o do rei; a mesma disparidade se aplica ao
trono. Na cena da coroação, a rainha está rodeada por barões e não pelos doze companheiros
de armas e seus pares no poder, como acontece na cena da coração do rei.

Coroação de Carlos V e de
Joana de Borbon.
Grandes Chroniques de France
(reinado de Carlos V). BNF, fol.
439.

Embora sejam elementos que sugerem a fragilidade do poder político da rainha, de


acordo com as normas que a impossibilitavam de ascender sozinha ao trono de França,
todavia, também alguns elementos permitem-nos perceber que o poder político, em si, não
é o único propósito da inserção de textos e imagens referentes à sua coração, mas que as
funções que lhe são próprias são aqui contempladas de forma expressiva. No momento da
unção, Joana de Bourbon recebe também o anel, símbolo tradicional da fé cristã, que alude
às responsabilidades da rainha para com a Igreja, a sua crença na Santíssima Trindade e
ainda, à obrigação de combater a heresia. Ao mesmo tempo que verificamos que o ceptro
que recebe é menor do que o do rei, a vara que lhe é entregue em simultâneo, é associada,
na liturgia, com a responsabilidade espiritual e caritativa da rainha (o texto que acompanha
a respectiva imagem refere que ela deve ser misericordiosa para com os pobres, com as
viúvas e com os órfãos)8.

8 IDEM, ibidem, pp. 106-108.

426
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Em resumo, o destaque que é dado, neste livro, aos ritos de coroação e sagração de
Joana de Bourbon não se destina a fazer a afirmação do poder político da rainha, mas antes
a excepcionalidade do seu elevado estatuto como pessoa real, confirmado com a última
iluminura, em que a rainha aparece a receber a comunhão. C. R. Sherman recorda que,
nestes tempos, provavelmente, apenas o rei e a rainha eram os únicos não-clérigos a ter
este privilégio.
O que assistimos com a redacção e ilustração desta obra, é mais um importante
passo em frente na interferência do poder real na esfera do poder religioso, e uma
afirmação do monarca como condutor da sua própria propaganda dinástica, com fins
legitimistas. A junção textual e iconográfica da coroação do rei e da rainha, destinam-se,
assim, a reforçar o prestígio da monarquia francesa através dos seus dois representantes
como um todo único, situação que se verificaria até à morte da rainha em 1378, em outras
obras que ilustram a unidade do casal e da sua família.
A sequência das sagrações em Inglaterra seguia, grosso modo, os mesmos passos,
diferindo apenas, ainda que com grande importância, na inexistência de um óleo sagrado
trazido por um anjo que conferisse aos reis ingleses o mesmo carácter supra-natural dos
reis Franceses9.
A ligação que se pode estabelecer entre as regalia recebidas durante a cerimónia da
sagração/coroação e a presença e exposição dessas mesmas insígnias, durante os funerais
régios, foram temas já amplamente estudados por A. Erland-Brandenburg, para alguns
casos de monarcas franceses e ingleses10. A ostentação pública das regalia nos momentos
que antecedem a inumação, bem como o significado político inerente a todo este aparato,
não podia deixar de influenciar a representação póstuma dos reis e rainhas nas respectivas
estátuas jacentes.
Se pouco ou nada sabemos sobre os funerais dos reis merovíngios, e se as
descrições são muito sumárias para os funerais dos representantes da dinastia Carolíngia, o
único destaque vai apenas para as cerimónias fúnebres de Lotário, que conhecemos graças
às descrições de Richer: On lui fit de magnifique funérailles avecun déploiement de luxe royal. On

9 Sobre a sagração dos reis ingleses veja-se, entre outros estudos, Raymonde FOREVILLE, “Le
sacre des rois anglo-normands et angevins et le serment du sacre (XIe – XIIe siècles)”, AA.VV. Le Sacre
des Rois, Paris, Société d’Edition Les Belles Lettres, 1985, pp. 101-117.

427
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

disposa un lit qu’on décora des insignes de la royauté. On revêtit son corps d’un vêtement de soie et on le
couvrit d’un manteau de pourpre orné des pierres précieuse et tissé d’or. Les grands du royaume portaient le
lit. Les évêques et clergé marchaient en avant avec les évangiles et les croix. Au milieu d’eux s’avançais, en
poussant des gémissements, celuis qui portait la coronne, brillant d’or et pierres précieuses, avec beaucoup
d’autres insignes. Le chant de mélodie funèbre était entrecoupé des sanglots. Les vassaux aussi défilaient à
leur rang, le visage défait ; le reste du cortège suivait en pleurant11.
A partir desta descrição, pode-se compreender que o rei era vestido, à maneira dos
imperadores romanos, com o manto de púrpura que recobria uma veste de seda; que as
regalia (regalibus insignibus) eram colocadas sobre o leito fúnebre, e que estas eram as mesmas
que lhe eram atribuídas no dia da sagração: a espada, o bastão ornado de ouro e pedras e o
ceptro. A coroa era transportada por algum clérigo do cortejo, uma vez que havia sido
atribuída pela papa e não pelos membros do clero, diferindo, assim, das restantes insígnias.
No caso dos reis ingleses, até à morte de Henrique I (sepultado na abacial de
Reading, em 1136), os cronistas não referem a presença das regalia. Com a ascensão dos
Plantagenetas ao trono, opera-se uma alteração fundamental. Passa a haver uma relação
muito estreita entre o cerimonial da sagração e os funerais, desde a morte de Henrique, o
Jovem em 1183. Matthiew Paris e Roger de Wendover indicam que o corpo do rei, que foi
sagrado e provavelmente ungido em 1170, e coroado, juntamente com a sua mulher, em
1172, foi vestido com vestes de linho, as mesmas que ele usou no dia da sagração12.
Já quanto aos funerais de Henrique II († 1189), morto seis anos depois do seu filho,
Bonoit de Peterborough descreveu, com detalhe, o transporte do corpo do rei desde
Chinon a Fontevrault. Ele estava vestido com trajes reais (regis apparatu), com coroa na
cabeça, as mãos cobertas por luvas. Segurava o ceptro com uma das mãos. Os pés estavam
calçados e munidos das esporas e, à cintura, ostentava a espada. Em casos como este, as
regalia estão estreitamente associadas à pessoa real. “Il est évident qu’il y a eu volunté

10 Alain ERLANDE-BRANDENBURG, op. cit., 1975, pp. 5-43.


11 RICHER, Histoire de France (888-995), ed. e trad. Robert Latouche, Paris, 1937, t. II, pp. 140-
143 (col. Les Classiques d´Histoire de France au Moyen Âge).
12 Matthieu PARIS, Chronica majora, t. II, p. 139 (Rerum britannicarum medii aevi scriptores, vol. 57);

Roger de WENDOVER, Flores historiarum, ed. G. Hewlett, Londres, 1886, t. I, p. 130 (Rerum
britannicarum medii aevi scriptores, vol. 84)

428
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

d’etablir un lien très étroit entre la cérimonie de l’onction qui fait le roi et l’apparat des
funérailles”13.
Nos funerais de Ricardo Coração de Leão, como era significativa a distância (250
Km), entre o castelo de Châlus (lugar onde faleceu - †1199) e Fontevrault, sendo
necessários sete dias para o transporte do corpo, não foi possível conduzir o cadáver
vestido com os trajos reais, as regalia e a cara descoberta. No que se refere aos funerais de
João Sem Terra, Roger Wandover refere que o rei foi transportado vestido com os
ornamentos reais.
Torna-se evidente que, desde a subida ao trono dos Plantagenetas, houve a vontade
de magnificar a pessoa real. Esta vontade de glorificação encontra-se na exposição pública
do rei vestido com todas as insígnias de majestade. “Même mort, le corps du roi continuait
à posséder ce caractère special que lui avait donné l’onction »14. Foi por contaminação que
os reis franceses adoptaram este cerimonial dos reis ingleses.
Nos primeiros famosos túmulos de monarcas do panteão real de Fontevrault,
Henrique II e Ricardo Coração de Leão, os jacentes de ambos são apresentados no lit de
parade, ostentando os principais atributos da condição régia: coroa; ceptro; espada; esporas;
túnicas e manto de púrpura. Esta inovadora iconografia, aqui experimentada em anos
anteriores a 1204 (ano da morte de Leonor da Aquitânia), destina-se a representar os
respectivos reis ingleses, com as vestes e as regalia das cerimónias de sagração a que ambos
se haviam submetido, isto é, em retratos de regis apparatu15, como expressão de poder.
Estes exemplos não foram os únicos que provam como, na Inglaterra dos finais do
século XII e inícios do século XIII, por ocasião das exéquias dos representantes do ofício
régio, os corpos eram vestidos com os trajos da sagração, como nos dá notícia Mathieu
Paris e Roger Wendover sobre os funerais de Henrique o Jovem, co-rei de Inglaterra com
seu pai Henrique II. Morto em 1183, durante o cerimonial das exéquias o corpo foi
revestido com as mesmas vestes que usou no dia da sua sagração, assim sendo exposto no
seu leito mortuário16.

13 Alain ERLANDE-BRANDENBURG, op. cit., 1975, p. 16.


14 IDEM, ibidem, p. 17.
15 Cf. Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Leonor da Aquitania...”, op. cit., 1994, p. 463.

429
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Túmulos de Ricardo Coração de Leão, Leonor da Aquitânia e Henrique II.


Finais do séc. XII/inícios do séc. XIII. Abadia de Fontevrault.
George Duby, Xavier Barral y Altet, Sophie Guillot de Suduiraut, Sculpture. II, p. 170.

O primeiro rei francês que beneficiou de um funeral tão esplêndido quanto os dos
reis ingleses foi Filipe Augusto. Antes da sua morte, não existe qualquer outro exemplo
conhecido. O rei morreu em Mantes, em 1223, e foi transportado para Saint-Denis. Foi
revestido com um tecido de ouro, sob o qual foi colocada a túnica e a dalmática. Tinha
numa das mãos o ceptro e, sobre a cabeça, foi-lhe colocada a coroa. Um cortejo de barões
transportou a liteira real. De qualquer forma, as insígnias não coincidiram totalmente com
as que foram atribuídas na sagração. O cerimonial francês demorou mais tempo a
complexizar-se e a fixar-se e, só aos poucos, se assistiu ao aparecimento das restantes
regalia.
A exposição do corpo do defunto rei, revestido com as vestes da sagração e as
regalia, tornou-se, então, um costume generalizado na Europa. O imperador Otão IV, antes
de morrer, nas suas disposições testamentárias, indicou que pretendia que o vestissem com
o manto real branco, as esporas de ouro, as luvas nas mãos, o anel no dedo e os braceletes
no braço, o ceptro na mão direita, o globo na mão esquerda e espada disposta ao seu lado,
à direita.

16 Cf. ERLANDE-BRANDENBURG, op. cit., 1975, pp-15-16.

430
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Nas exéquias de Filipe IV, o


Belo († 1314) é referida, pela primeira
vez, a mão da justiça, que o corpo do rei
possuía sob a mão esquerda, enquanto
a direita segurava o ceptro. A mão da
Mão da Justiça. justiça encontra-se mencionada no
Séc. XIII-XIV. Museu do Louvre.
Apud Claude Wenzler, Généalogie des Rois de France, 1994, p. 18. ordo da coroação redigido em Reims,
no final do reinado de Luís IX.
A escassez de documentação sobre os funerais das rainhas, que já se verificava para
o período carolíngio, impede-nos de saber algo mais sobre esta realidade para a monarquia
capetíngia. Nenhum texto nos permite afirmar a existência de um cerimonial especial até à
morte de Branca de Castela17. Morreu em 26 ou 27 de Novembro de 1252 e, alguns dias
antes havia feito profissão religiosa, vestindo-se com o hábito cisterciense que usavam as
monjas de Maubuisson. O corpo foi revestido com as vestes reais e colocaram-lhe uma
coroa de ouro na cabeça. Foi transportada pelas ruas de Paris numa “chaire dorée” até
Saint-Denis.
As descrições dos funerais de Branca de Castela permitem-nos perceber que, desde
os meados do séc. XIII, se honravam as rainhas mortas de uma forma muito semelhante
aos reis. Na mesma época, o Ordo de Reims (reinado de S. Luís), precisa, com clareza, a
sagração da rainha: ela será ungida pelo arcebispo na cabeça e no peito, não com os santos
óleos, mas com um óleo benzido. Após a unção, o arcebispo entrega-lhe um ceptro e uma
vara. A rainha não participa do carácter quase sacerdotal do rei, o que também explica a
lenta evolução dos funerais das rainhas em relação aos dos reis.
É, pois, bem revelador que uma tal honra tenha sido consagrada a Branca de
Castela. Ela foi regente do reino durante a menoridade de Luís IX e durante a sua estada na
cruzada na Terra Santa. Desempenhou um papel de primeiro plano durante toda a sua vida
na administração do reino. Pela primeira vez na monarquia francesa, uma rainha havia
podido ter tal acção. Conseguiu ainda a admiração de muitos franceses e uma aura de santi-

Cf. Elie BERGER, Histoire de Blanche de Castille, Paris, 1895, que ainda permanece como obra
17

fundamental para o estudo desta notável rainha.

431
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

dade nos últimos anos da sua vida.


Por isso, esta cerimónia não teve
precedentes e levaria algum tempo
até ser repetida com idêntico aparato
(com Joana de Evreux, mulher de
Carlos IV - †1370 e Joana de
Bourbon).
Após esta breve análise ao
Funeral de Joana de Bourbon
Grandes Chroniques de France (de Carlos V). (FR 2831, fol. 480v.º) ritual da coroação/sagração e da

apresentação pública dos corpos régios durante as cerimónias fúnebres, em França


(envolto em características e pretensões especiais, das quais se destaca a exaltação da crença
num rei eleito por Deus para cumprir uma missão redentora), bem como em Inglaterra,
cabe agora tentar perceber se estes mesmos rituais, encontraram terreno fértil nos reinos
peninsulares e se eles se justificavam ou era desejados, no âmbito das pretensões destas
monarquias.
Vejamos, primeiro, e em especial, o caso do reino de Castela, com o qual sempre
tivemos uma estreita ligação, quer por concordância, quer por oposição, nos mais variados
domínios. Como tivemos oportunidade de referir anteriormente, a propósito dos “espelhos
dos príncipes”, o pensamento político tardo-medieval que imperou em Leão e Castela
atribuía à monarquia uma origem divina e, ao rei, um carácter de vigário de Cristo,
convertendo, em consequência, o reino num senhorio divinal18.
No século XIII, estas ideias já não constituíam novidade, nem qualquer forma de
interesse especial, pois estavam formuladas e aceites desde há largo tempo19. A única
alteração que se verifica desde essa centúria consiste num novo aproveitamento das
mesmas crenças, no sentido de aí buscar os fundamentos necessários para a afirmação de
um modelo político para uma monarquia mais autoritária, ou seja, aquilo a que Nieto Soria
designa como processo de secularização: “La vigorosa persistência en la Castilla del siglo XIII

18J. M. NIETO SORIA, “Origem divino, espírito laico y poder real en la Catilla del siglo XIII”,
Anuario de Estudios Medievales, n.º 27/1, Barcelona, CSIC, 1997, p. 70.

432
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

de fórmulas alusivas al origem divino de la realeza fue claramente valorada por Alfonso X
como una afirmación de que, al provenir su autoridad directamente de Dios, sin mediación
alguna de papa o emperador, quedaba confirmada su plena autonomia como poder político
incontestable dentro de su reino”20. A simples titulação “rei pela graça de Deus” era a
contínua recordação desta especial relação.
Com Sancho IV, a afirmação da superioridade do rei e da sua origem divina
estabelecem-se de forma ainda mais autoritária. Afonso X havia escolhido para preceptor
do filho e futuro rei, o frei Juan Gil de Zamora, ensinando-o de acordo com os preceitos
defendidos no De preconiis Hispaniae, dos quais o rei retirou favoráveis consequências aos
seus intentos, desde critérios providencialistas, à interpretação mais autoritária do poder
real, convertendo-o, a ele, Sancho IV, e na interpretação de M. Castro21, numa espécie de
“semideus”. Sancho IV evitou sempre que a proclamada origem divina implicasse qualquer
forma de controlo ou fiscalização da Igreja sobre o poder real, quer fosse por mediação do
papa, quer dos bispos. E, pelo contrário, procurou sempre que essa mesma prerrogativa lhe
permitisse justificar os seus direitos de intervenção sobre a Igreja22.
Neste contexto de divinização da realeza, reclamada ou mesmo aceite em todos os
países da Europa ocidental durante a baixa Idade Média, causou estranheza a alguns
autores e, durante algum tempo, notou-se a ausência ou a falta de sistematização dos ritos
litúrgicos de acesso ao trono23, em especial a questão da unção. Centrando as preocupações
nessa ausência, tenderam a interpretar a monarquia medieval castelhana como anómala.
Também a historiografia portuguesa, estabelecendo os inevitáveis paralelos com o
que ocorria, por exemplo, em França e em Inglaterra, e perante a ausência de informações
documentais, ou outras, que permitissem afirmar a existência de complexos ritos de acesso

19 Sobre o conceito de monarquia divina em Espanha na época altimedieval, Cf. Manuel


GARCÍA PELAYO, El Reino de Dios como Arquétipo Político. Estudio sobre las Fases Políticas de la Alta Edad
Media, Madrid, 1959.
20 J. M. NIETO SORIA, “Origem divino….”, op. cit., pp. 70-71 e Joseph F. O’CALLAGHAN,

El Rey Sábio. El Reinado de Alfonso X de Castilha, Sevilla, 1996, pp. 46-47.


21 M. CASTRO, “Las ideias políticas y la formación del príncipe en el «De Preconiis Hispaniae”

de Fray Juan Gil de Zamora”, Hispania, 88, 1962, pp. 521-526.


22 J. M. NIETO SORIA, “Origem divino….”, op. cit., 1997, p. 73.
23 Cf. entre outros estudos, os mais recentes de Teófilo F. RUIZ, “Une royauté sans sacre: la

monarchie castillane du Bas Moyen Age”, Annales, E. S. C, 39, 1984, pp. 429-453 ; Peter LINEHAN,
History and Historians of Medieval Spain, (cap. 12 a 14); Adeline ROCQUOIS, “De los reyes que no son
taumaturgos de la realeza en España”, Relaciones. Estúdios de Historia y Sociedad, vol. XIII, 1992, pp. 55-83.

433
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

ao trono, concluíram da não existência desses mesmos ritos e estabeleceram uma


aproximação aos ritos de tradição germânica, igualmente praticados para a ascensão ao
poder dos reis de Navarra, ou seja, a elevação do rei sobre o pavês, acompanhado de
aclamação por parte dos seus companheiros-de-armas. Excluía-se, assim, a prática da
sagração litúrgica ou, mesmo, uma eventual conjuntura propícia a que tal acontecesse.
Estas interpretações teriam, necessariamente, de colocar em dúvida o verdadeiro
carácter sagrado das respectivas monarquias, partindo da ideia de que apenas a unção
conferia ao rei uma carácter divino.
Porém, estudos posteriores, incidentes quer sobre a realidade castelhana, quer sobre
a realidade portuguesa, vieram trazer novas abordagens a esta questão, bem como novas
provas de que a dita anomalia dos dois reinos peninsulares não era, nem tão linear na sua
classificação, nem sequer, que o modelo francês tivesse sido considerado totalmente
prioritário para a afirmação das monarquias divinas em solo peninsular.
J. M. Nieto Soria encabeça, para o caso castelhano, uma nova proposta, que difere
das posições tomadas pela historiografia que o antecede, proposta, essa, amplamente
demonstrada em vários estudos24. O referido autor valoriza as condicionantes próprias da
evolução plurissecular, unidas às circunstâncias próprias do início de cada reinado, para
melhor se compreender o desinteresse, que parece ter havido por parte da realeza
castelhana, por cerimónias a partir das quais se poderia deduzir alguma forma de submissão
ou dependência do poder real em relação ao poder eclesiástico, ou seja, a partir do
monopólio que o clero desfrutava sobre a sacralização. Por outro lado, apoia-se no facto
de, desde Fernando I, o rei intitular-se “rex gratia Dei”, tornando-se esta titulação de uso
comum.
Apesar de nos reinos hispânicos existirem precedentes da unção régia na época
visigoda25, como forma de aliança entre monarquia e Igreja no momento do acesso ao
trono, ou mesmo o precedente que marcou a unção de Afonso VII pelo arcebispo

24 Entre outros títulos veja-se “Imágenes religiosas del rey e del poder real en la Castilla del
siglo XIII”, En la España Medieval, vol. V, Homenaje al Prof. D. Angel Ferrari Núñez, II, Madrid, 1986,
pp. 709-729; op. cit., 1983; op. cit., 1988.
25 Embora se julgue que a cerimónia da unção remonte a Recaredo, a primeira notícia da sua

existência refere-se à unção de Wamba. Existem igualmente informações documentais sobre a sagração
dos reis da monarquia asturiana e leonesa que remontam ao reinado de Afonso II, bem como notícias
de que foram ungidos Afonso III, Ordonho II, Ramiro III, Fernnado I e Afonso VII, entre outros.

434
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Gelmirez, em Santiago de Compostela, segundo se descreve na Historia Compostelana (Livro


I.º, cap. 66), o que viria a acontecer nos séculos seguintes contraria a existência de
continuidade dessa cerimónia mediada pelos eclesiásticos, e o que verdadeiramente se
impõe e assegura o reconhecimento do rei enquanto tal, são os juramentos dos monarcas,
com ou sem presença eclesiástica.
Para o referido autor, a continuidade dessa experiência histórica terá dado a Afonso
X a confiança suficiente para que, “teniendo además en cuenta la más amplia dimensión
autoritária que ahora se proponia extraer de la ideologia vinculada à monarquía de derecho
divino no pareciese ni necesario ni coherente recurrir a tal recurso cerimonial”26.
Acrescenta ainda que, tendo Afonso X dado particular atenção ao conhecimento do
passado histórico hispânico, em especial da monarquia visigótica, tivesse daí retirado a lição
necessária, pois, nesse mesmo período, a unção não foi motivo suficiente para garantir a
incontestabilidade de um rei ou, mesmo, para impedir a deposição, como se verificou com
o famoso Wamba, ungido e deposto, com protagonismo de alguns eclesiásticos
transformados em vigias da legitimidade régia. Esta não era, certamente, uma hipótese que
estivesse na órbita dos interesses do monarca castelhano, já legitimado no seu poder divino
desde há muito.
É por isso fácil compreender que os monarcas evitassem qualquer forma de
representação que pudesse ser interpretada como imagem de submissão ou de dependência
do poder eclesiástico, como aquela que se verificava na cerimónia litúrgica da unção27.
Este tipo de posição tomada pelos monarcas possuía, no contexto da época
afonsina, importantes apoios teóricos, como os que analisou Kantorowicz. Face ao grupo
dos canonistas hierocráticos, partidários da ampliação do poder do papa em detrimento do
poder do rei e do poder imperial, “el outro grupo de canonistas, los «dualistas», que estaban
a favor de un equilíbrio de los dos poderes universales, mantenía que el poder imperial
provenía solo de Dios através del acto de elección. El argumento típico de estos canonistas
«dualistas» del siglo XII y princípios del XIII era que los emperadores existían antes que

26 NIETO SORIA, “Origem divino…”, op. cit., 1997, p. 77.


27 IDEM, ibidem, p. 78.

435
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

hubiese Pontífices, y que los emperadores de épocas anteriores tenían poder incluso sin la
consagración, porque, en cualquier caso, todo poder venia de Dios”28.
A todos estes argumentos, Nieto Soria junta outro para reforçar a sua argumentação
acerca da não prioridade de os reis castelhanos se submeterem à unção: os conselheiros de
Afonso X tinham certamente conhecimento que Inocêncio III havia estabelecido uma
doutrina precisa sobre o significado da unção real, na qual se subvalorizava os efeitos
espirituais desta, ao mesmo tempo que valorizavam as dependências do rei face à Igreja.
Por isso, a unção real terá sido vista por Afonso X mais como um passo atrás em relação
ao processo de centralização do poder régio, ou secularização do Estado, e menos como
uma conveniência que lhe garantisse legitimidade na sua origem divina, a qual estava
garantida à partida.
O mesmo, parece-nos, poderá ter acontecido em Portugal, não fossem os reinados
de D. Afonso III, D. Dinis e até mesmo de D. Afonso IV tão marcados pela influência da
corte castelhana e, em especial, pela figura de Afonso X (quer nas relações familiares, quer
numa contínua e alinhada progressão na centralização do poder régio), quer mesmo pelas
personalidades políticas de Sancho IV e de Afonso XI.
No que respeita à realidade portuguesa coeva, a sagração e coroação dos nossos reis
e respectivas mulheres conhece já uma longa historiografia. Esta questão e a sua reflexão
concentra, em si mesma, uma importância significativa, no momento em que nos
propomos compreender a iconografia das suas representações. Por isso, e não querendo
estender-nos nos revisionismos excessivos, importa-nos destacar as posições de diferentes
autores que demonstram duas posições distintas face ao mesmo problema, fundamentadas
com os dados disponíveis nas cronologias em que cada um dissertou sobre o problema.
António Brásio29 e Paulo Merêa30 afirmavam, em 1962, de forma categórica, que os
reis portugueses nunca haviam sido coroados nem sagrados liturgicamente, apesar dos
pedidos feitos ao papa, por D. Duarte, para obtenção desse privilégio. Para estes autores,
os monarcas portugueses eram apenas “alevantados” e aclamados por reis. Ambos se

28 E. KANTOROWICZ, op. cit., 1985, pp. 304-305.


29 António BRÁSIO, “O problema da sagração dos monarcas portugueses”, Anais da Academia
Portuguesa da História, 2.ª série, vol. 12, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1962, pp. 21-49.
30 Paulo MERÊA, “Sobre a aclamação dos nossos reis”, Sep. da Revista Portuguesa de História,

nº10, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1962, pp. 6-11.

436
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

baseavam na ausência de descrições das sagrações dos reis portugueses nas crónicas de
Fernão Lopes e de Rui de Pina e, Paulo Merêa, confrontado com a informação de Frei
António Brandão quanto à unção e coroação de D. Sancho I na Sé de Coimbra, colocou-a
claramente em dúvida, afirmando que este não se apoiava em fonte conhecida. Ambos os
autores seguiam a linha de pensamento dos historiadores espanhóis, especialmente Sanchez
Albornoz31 e, ainda, no clássico estudo de Percy Schramm32, ambos tendencialmente
opositores da existência, ou, pelo menos, da continuidade das cerimónias de sagração e
imposição da coroa nos reinos hispânicos33.
Como já vimos, as questões levantadas por Albornoz e Schramm fizeram escola em
Espanha e, em 1984, Teófilo Ruíz transformava as dúvidas levantadas nestes estudos em
tese. Se, em Espanha, coube a Nieto Soria a mais profunda revisão dos conteúdos e uma
análise mais actualizada e melhor fundamentada destes princípios, dando origem a um
entendimento diferente, em Portugal, deve-se a José Mattoso uma nova e necessária
tomada de posição. Este último historiador, não se limitou a analisar o caso português,
passando em revista, também, as fontes castelhanas e leonesas em que se basearam
Albornoz e, sobretudo, Teófilo Ruíz.
Rebatendo as teses que se apoiam no laconismo das fontes cronísticas peninsulares
a respeito da sagração e da coroação, Mattoso considera alguns trechos que nelas se
encontram suficientemente expressivos e onde se nota a presença de elementos do
sagrado. Na Crónica Latina dos Reis de Castela, refere-se que as cerimónias (embora com
maior ênfase dado aos gestos de homenagem para com Henrique I e para com Fernando
III), se processaram na Igreja de Santa Maria de Valladolid. Rodrigo Ximénez de Rada, ao

31 Claudio Sánchez ALBORNÓZ, “La ordinatio principis en la España goda y post-visigoda”,


Cuadernos de Historia de España, nº35-36, 1962, pp. 5-36.
32 Percy SCHRAMM, Las Insígnias de la Realeza en la Edad Media Española, Madrid, 1960.
33 “Com efeito, a maioria dos autores peninsulares que se têm pronunciado sobre esta matéria

tendem a negar que os reis de Leão e Castela tivessem sido sagrados ou ungidos com os santos óleos,
ou mesmo que se tivessem submetido a uma cerimónia litúrgica de coroação. Sánchez Albornoz, que
mostrou a vigência do uso pelos reis visigodos, asturianos e leoneses, até Fernando, o Magno, confessa
ignorar o que teria acontecido aos seguintes, e passa depois a considerar excepcionais as sagrações de
Afonso VII e de Afonso XI, essas bem documentadas. Baseia-se, para isso, em breves relatos
cronísticos das cerimónias de investidura dos reis castelhanos, nos quais não é mencionada a coroação
litúrgica, falando-se apenas de gestos de tipo secular, como a entronização e a homenagem por meio do
beija-mão”. José MATTOSO, “A coroação dos primeiros reis de Portugal”, A Memória da Nação, org.
Francisco Bettencourt e Diogo Ramada Curto, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1993, pp. 187-200.

437
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

referir-se aos mesmos reis, indica, a propósito de Henrique I, que foi elevado à dignidade
régia pelos pontífices e magnates, tendo todo o clero cantado o Te Deum laudamus. O
mesmo é referido na Primeira Crónica Geral de Espanha, onde se cita a participação do clero.
No caso da conhecida coração de Afonso XI, sabe-se que o acto teve lugar no interior de
uma igreja34.
Pese embora o facto de as primeiras crónicas portuguesas se revelarem
profundamente lacónicas a este respeito, a Crónica de 1419 contém, acerca de D. Sancho I, a
frase mais expressiva: “foi coroado por rei em Coimbra”, algo mais completo do que as
vulgares locuções verbais de “alçaram por rei” ou “foi alçado por rei”, que se podem ler na
Crónica de 1344, ou em algumas passagem de Rui de Pina35. O autor da Crónica de 1419,
referindo-se a D. Afonso IV, diz que foi, também, solenemente alevantado e obedecido por rei.
Fernão Lopes, na Crónica de D. Fernando, indica que partindo el d’aquel moesteiro [Alcobaça]
onde seu padre fora tragido e el levantado por rei […], havendo, por isso, a clara menção de um
espaço eclesiástico de grande relevo36.
Este laconismo dos cronistas é entendido pelo referido historiador como um
desinteresse pelos rituais das investiduras régias, ou, simplesmente, como uma incapacidade
de traduzir na escrita a linguagem gestual, mesmo a mais solene. Considera, porém,
precipitado, e usando apenas estas fontes, afirmar que não existiram cerimónias de
sagração e de coroação dos nossos reis. Vários testemunhos parecem demonstrar
exactamente o contrário, sobretudo, durante a primeira dinastia.
São estes testemunhos - seguindo a mesma enumeração de J. Mattoso - o
manuscrito 1134 da Biblioteca Municipal do Porto, dos finais do século XII, conhecido
como “Pontifical de Santa Cruz de Coimbra”, onde nos fols. 130 a 134 se encontra o Ordo
benedicendi regnum. Para além da existência de sinais de ter sido utilizado, o autor sublinha o
facto de possuir uma oração acrescentada à margem para introduzir a solenização especial
da bênção e a entrega da espada. Neste Ordo, é também referida a unção das mãos, do
peito, das costas e dos braços pelo metropolita, a bênção e entrega da espada, de braceletes,
da capa solene ou pálio, e do báculo, além da imposição da coroa. Perece, ainda, que a

34 Cf. José MATTOSO, “A coroação...”, op. cit., 1993, pp. 189-190.


35 A título de exemplo, D. Dinis, segundo as palavras de Rui de Pina, após a morte de seu pai,
“foy logo aleuãntado e obedeçido por Rey deportugal E do algarue (…)”.

438
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

investidura destas insígnias decorria antes da Eucaristia. Em comparação com outros ordines
ocidentais, demonstra ser uma cópia do ritual que consta do Pontifical romano-germano do
século X, sendo este o mais difundido na área da liturgia romana, e de que se conhece outra
cópia, com variantes, no designado cerimonial de Cardeña, também do século XII. “Tudo
isto mostra a difusão daquele ordo, provavelmente desde que se abandonou a liturgia
hispânica, no fim do século XI”37. É provável, segundo o mesmo, que este manuscrito
tenha servido para coroação de D. Sancho I e dos reis seguintes.
Existe ainda outro manuscrito, igualmente pertencente a Biblioteca Municipal do
Porto (343), também de origem crúzia e coimbrã, com um ritual simplificado e com
algumas variações relativamente ao ordo anterior, sem que possamos negar a sua utilização.
O terceiro testemunho encontra-se no cerimonial de coroação de Afonso XI,
também usado por seu filho, Fernando V. Mattoso entende que esta obra tem especial
interesse para Portugal, uma vez que foi redigida por Raimundo Ebrard II, bispo de
Coimbra, entre 1325 e 1333. Escrito em castelhano e latim, denota muitos portuguesismos,
já notados pelo seu editor, Sánchez Albornoz. Testemunha, assim, o interesse que os meios
eclesiásticos portugueses atribuíam à solenidade litúrgica da coroação. No documento “…
também se encontra nele a unção dos ombros e das costas, não só do rei, mas também da
rainha, a bênção e entrega da espada e a bênção e imposição da coroa, além da
entronização num estrado elevado no interior da igreja”38.
O quarto e último testemunho, embora menos explícito, mas suficientemente claro,
consta do Livro dos Arautos, datado de 1416, publicado em 1977 por Aires de Nascimento39.
O arauto português que percorreu várias cortes europeias, ao referir-se à Sé de Coimbra,
diz que aí se coroavam ex consutudine os reis de Portugal. “Ora, se se tratava da catedral e de
uma coroação, deve-se presumir que se usasse uma cerimónia litúrgica aprovada pelas
autoridades eclesiásticas. E se era “costume” deve-se entender que a ela se tivesse sujeitado
vários reis e não apenas um”40.

36 José MATTOSO, “A coroação...”, op. cit., 1993, p. 190.


37 IDEM, ibidem, p. 192.
38 IDEM, ibidem, p. 192
39 Aires Augusto NACIMENTO, Livro do Arautos (estudo codicológico, histórico, literário,

linguístico; texto crítico e tradução), Lisboa, 1977, pp. 250-251.


40 José MATTOSO, “A coroação...”, op. cit., 1993, p. 193.

439
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

J. Mattoso conclui, assim, que a anomalia que se verifica com a escassez e


informações dadas pelos cronistas a propósito do cerimonial religioso da sagração, se deve
explicar pelo facto de os dois rituais, “tanto o do Pontifical romano-germânico como o do
bispo Raimundo Ebrard, incluírem vários actos e expressões que significavam uma certa
submissão do rei para com o poder eclesiástico, e que a corte não estava obviamente
interessada em sublinhar”41. Esta conclusão vai de encontro ao que Manuel Nieto Soria
defende relativamente ao laconismo das fontes castelhanas, como já tivemos oportunidade
de sublinhar.
Ora, perante argumentos tão fundamentados a partir de testemunhos documentais,
parece-nos difícil aceitar que as cerimónias de sagração e de coroação não se tivessem
processado em Portugal, pelo menos durante os primeiros reinados. É possível que nem
todos os monarcas da primeira dinastia se tenham sujeitado à unção, e que tenham
entendido estar revestidos pela acção sagrada de uma força sobrenatural pelo simples facto
de os seus antecessores terem sido ungidos, não necessitando, assim, de valorizar a sujeição
do seu poder às instituições eclesiásticas. Algo, portanto, análogo ao que se verificou em
Castela. Mas os primeiros, acreditamos, e como também defende J. Mattoso, não
dispensariam o reconhecimento de poderes superiores como os que a unção lhes
proporcionava, fazendo fé nas palavras de Raimundo Ebrard. Este, diz que os reis se vivem a
seruicio de Dios, faran milagros en sus vidas, o que lhes confere um carácter taumatúrgico e, por
outro lado, que los reyes que quieren guardar iusticia, solamiente com los ojos destruen todo mal42.
Se esta é uma realidade que nos parece plausível a partir do início do reinado de D.
Sancho I, e com continuidade nos monarcas seguintes, pelo menos no que se refere aos
reinados de Afonso II, Sancho II e talvez Afonso III, no caso do primeiro rei dos
Portugueses, quer pelas circunstâncias próprias do acesso ao trono, quer pelas
características da constituição do território, onde as vitórias militares foram de facto, o
grande sustentáculo das argumentações que o conduziram ao trono de um reino nascente,
podemos colocar maiores reservas, ainda que pensemos que a coroação cerimonial possa
ter tido enquadramento dentro das manobras políticas levadas a cabo pelos notáveis
clérigos que assessoraram o príncipe Afonso Henriques para o conduzir à dignidade de rei.

41 IDEM, ibidem, p. 198.


42 IDEM, ibidem, 198-199.

440
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Analisando a importância que foi


conferida, ao longo de toda a Idade
Média, ao escudo pessoal de D. Afonso
Henriques, depositado junto do túmulo
em que se fez sepultar na igreja do
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, J.
Mattoso considera que “numa tradição
tão antiga permite considerar solidamente
verosímil a hipótese de a veneração ao
escudo do primeiro rei de Portugal estar
ligada a uma cerimónia da sua aclamação
de pé sobre o pavês, levantado aos
ombros dos seus homens, segundo um
cerimonial atestado por Tácito para os
chefes guerreiros das tribos germânicas, e
David alçado sobre o pavês.
Iluminura dos inícios do séc. X. Saltério de Paris. que perdurou em Navarra para o seu rei
BNF, MS GREC 139, fl. 137.
Le Monde de la Bible, n.º 148, Jan.-Fev., 2003, p. 26. até ao fim da Idade Média.

Esta cerimónia podia também ter sido adoptada em Portugal ao menos para o
nosso primeiro rei, como permite supor o facto de para ele e vários dos seus descendentes
utilizarem um termo como “alçar” para exprimir o início da realeza, e de haver referências
expressas ao pregão “real, real”, idêntico ao que se usava também em Navarra quando se
aclamava o novo rei, de pé, sobre o escudo ou pavês”43.
De qualquer modo, no que respeita a Sancho I, não encontramos motivos para
duvidar das palavras de Frei António Brandão, cujas informações tão pormenorizadas só
podem ter tido por base alguma documentação entretanto perdida. Não resistimos, por
isso, a citar uma parte desse texto: Três dias depois do falecimento delRey D. Afonso, foi levantado
por Rey Dom Sancho com soleníssima pompa, & apparato em a cidade de Coimbra, & dando volta pellas
ruas publicas della, com as aclamações que em tais actos se costumão chegou à Sé aonde já estava a

José MATTOSO, “A realeza de Afonso Henriques”, História e Crítica, nº13, 1986, pp.5-14,
43

republicado em Fragmentos de uma Composição Medieval, 2ªed., Lisboa, Estampa, 1990, pp. 227-228.

441
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Rainha, & assistindo ambos aos divinos officios, forão coroadospor mão do Bispo Dom Martinho que
então presidia nesta Igreja, & tendolhe beijadas as mãos, & feita a veneração devida, os senhores que
então acharão em a Corte, se recolherão ao paço com grande alegria, & aplauso do povo44.
A este respeito, o recente e muito desenvolvido estudo de António Filipe
Pimentel45 revela-se de grande acuidade e claramente esclarecedor, sublinhando o valor das
informações de António Brandão (e rebatendo as posições de Peter Linehan46),
relacionando-as, ainda, com a campanha arquitectónica da década de sessenta do século
XII na Sé de Coimbra, lugar onde a sagração do rei ocorreu, preparando-a para “cenário da
coroação dos Reis de Portugal”, em especial o portal axial, em jeito de “opulenta tribuna,
destinada à apresentação, à multidão exterior, de um qualquer mistério, de uma transfiguração
operada no interior da catedral, em resultado de acto previamente levado a efeito”47. Isto é,
à apresentação do rei, D. Sancho I, e da rainha, D. Dulce, à multidão, após a sagração e
coroação dos mesmos no interior do templo.
A partir de meados do século XIII, e de forma quase generalizada (à excepção de
França), as monarquias ocidentais, e muito em particular as peninsulares, parecem tender a
evitar a subordinação à ordem eclesiástica, com a argumentação de que a unção não era o
único meio transmissor do poder real. Uma vez que o direito de sucessão ao trono se havia
tornado tendencialmente hereditário, a partir do século XII, os monarcas, nos respectivos
reinos, começaram a actuar e a intitular-se reis antes de receber a coroação, demonstrando,
assim, que não era a unção que os investia de um poder que já haviam herdado por direito.
“La tesis de que la muerte del rey hace instantáneamente rey a su sucesor es comúnmente
admitida”48.
É provável que, ao tempo de D. Afonso IV, a cerimónia de sagração de um novo
monarca já não fosse sentida como necessária, requerendo-se apenas a aclamação e a

44 Frei António BRANDÃO, op. cit. Parte IV, ed. 1974, fl. 1v.
45 Cf. António Filipe PIMENTEL, “A sagração do reino em torno do(s) projecto(s) da Sé
Velha”, Artis, n.º 3, Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, 2004, pp.
87-122.
46 Cf. Peter LINEHAN, “Ultrum reges Portugalie coronabantur annon”, 2.º Congresso Histórico

de Guimarães, vol. II, Guimarães, Câmara Municipal de Guimarães e Universidade do Minho, 1996, p.
394.
47 António Filipe PIMENTEL, “A sagração...”, op. cit., 2004, p. 117.

442
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

homenagem dos súbitos. Prova disso terá sido a convocação das Cortes em Évora, logo
após a morte de D. Dinis, a 7 de Janeiro de 1325, tendo D. Afonso IV ascendido ao trono
imediatamente e “logo, logo, convocou cortes, para Évora, às quais chamou ricos-homens,
cavaleiros e outros filhos de algo; bispos, abades, priores e representantes de cabidos,
mosteiros e igrejas; procuradores dos concelhos; e outras gentes do senhorio. Objectivo da
assembleia: «pêra me receberem por Rey e por senhor e me fazerem menagem e me conhecerem senhorio e
divido natural como a Rey e a senhor a que som theudos de conhecer e pera livrar com eles algũas outras
cousas». Vê-se que se tratou de um assembleia muito frequentada e luzida, espécie de
congresso nacional destinado a estreitar em torno do novo rei o País todo, clero-nobreza-
povo, obediente e concordante. Enfim, ritual de refazimento da ordem e da unanimidade;
o sapar das conflagrações dos últimos anos. Foi iniciativa muito hábil. A qual mostra um
Afonso IV politicamente maduro – conforme, aliás, era de esperar da sua idade e da sua
experiência. E dissemos «iniciativa». Acrescente-se «inédita» e só retomada no século XV.
Porque, desde 1254 – ano das primeiras cortes seguramente comprovadas – até 1433, não
conhecemos outras, além destas de 1325 (Évora), que tenham sido expressamente
convocadas para jurar um rei acabado de subir ao trono”49.
A partir da descrição da investidura das insígnias presente no Pontifical de Santa Cruz
de Coimbra, apercebemo-nos que, no seu conjunto, estes atributos materiais do poder régio
diferem, em número e também em género, dos que eram atribuídos aos reis franceses e
ingleses em idênticas cerimónias. Na Península, parecem ser valorizados, em primeiro
lugar, a espada, os braceletes, o manto real e, obviamente, a coroa. Apesar de este
manuscrito se referir a cerimónias que teriam tido lugar nos finais do século XII, e quiçá
nos inícios do século XIII, e de aceitarmos que, com o passar dos tempos, o número de
insígnias poderá ter aumentado, em situação análoga ao que se verificou em França, a
verdade é que nada nos leva a crer que tenham sido significativamente mais numerosas.
Essa particularidade portuguesa, quando confrontada com a iconografia dos nossos
monarcas, em especial com as suas estátuas jacentes, talvez seja a melhor confirmação para
uma relativa singeleza e uniformização das insígnias. Se o manto, a espada e a coroa estão

48 CF. Bonifacio PALACIOS MARTIN, La Coronación de los Reyes de Aragón 1204-1410.


Aportación al estudio de las estructuras políticas medievales, Valência, Universidad de Zaragoza. Facultad de
Filosofia y Letras, 1975, pp. 13-18.

443
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

presentes em todas as representações dos reis portugueses, a referência documental aos


braceletes não encontra correspondência iconográfica, pelo menos nas obras que nos
chegaram. Da mesma forma, as esporas, que sabemos serem uma das insígnias mais
importantes nas investiduras dos reis franceses, não são referidas no Pontifical de Santa Cruz
de Coimbra, mas estão presentes nas estátuas jacentes.
A ausência de descrições desenvolvidas sobre as sagrações e os funerais dos nossos
reis e rainhas da primeira dinastia também dificulta a total compreensão do número e tipo
de insígnias do poder régio, recebidas durante a sagração e, na ausência desta cerimónia,
simplesmente usadas pelos monarcas portugueses, por direito e por costume.
A única notícia algo desenvolvida que conhecemos relativamente aos funerais
régios, para além do de D. Isabel de Aragão, refere-se ao funeral de D. Dinis, contado com
detalhes por Brandão e retomado por Cordeiro de Sousa: “Depois de lhe embalsamarem o
cadáver, como afirma Brandão, encerraram-no em um ataúde que cobriram com um pano
de brocado e colocaram numas andas em que o trouxeram vagarosamente pelos caminhos
lamacentos da charneca ribatejana, com grande acompanhamento de clérigos com círios
acesos e ao “som de muitos sinos das igrejas e conventos” dos povoados, até Vila Nova, e
daí “por aquela ribeira do Tejo”, para Odivelas, onde o bispo D. Gonçalo Pereira mandara
estar o cabido da Sé, as Ordens, e a Câmara da Cidade. Então todos descavalgaram e
entraram com o féretro real na igreja do mosteiro a cuja porta esperavam as oitenta
religiosas da comunidade cisterciense, com tochas acesas”50. Apesar do aparato e da
importância que é dada às exéquias de D. Dinis, a verdade é que não se faz referência à
presença de qualquer insígnia do poder régio, nem sequer à coroa.
Também as notícias que dispomos sobre a abertura do túmulo não referem nada
para além dos tecidos em que o cadáver de D. Dinis se encontrava envolvido e de alguns
elementos fisionómicos: “Encontraram-se destroços de um caixão de madeira de carvalho,
entre os quais a ossada do Rei, em decúbito lateral esquerdo, posição provavelmente
resultante das anteriores deslocações do túmulo. Estava envolta numa tela de seda com
listas verdes alaranjadas, tecida com fio de oiro, e os restos de um camisote de escarlata,

49 Armindo de SOUSA, “1325-1480”, op. cit., vol. II, 1992, p. 484.


50 J. M. CORDEIRO DE SOUSA, “Malfeitorias no túmulo do Rei D. Dinis”, Revista de
Guimarães, vol. LXXVI, Guimarães, 1966, separata, p. 3.

444
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

tudo enleado numa fita de seda. A cabeça estava intacta. Era pequena, condizendo com o
corpo, que não devia exceder 1,65m de altura, encontrando-se junto, “mas despegada” da
face, a barba ruiva e, soltas, umas madeixas de cabelo um pouco mais claro, e a dentadura
muito branca. Informações estas transmitidas pela imprensa da época […]”51. É muito
provável que o quer que o cadáver possuísse em matéria de objectos preciosos, tenha sido
saqueado no decurso da abertura (arrombamento) do túmulo pelas tropas francesas, ou
mesmo antes disso.
A exibição das insígnias do poder real, ou, se preferirmos, dos símbolos da
soberania, faz apelo não apenas à pessoa e dignidade do rei, bem como às suas virtudes,
mas, sobretudo, à autoridade da monarquia, enquanto tradição e continuação ininterrupta
do poder. A representação dos reis, com todo o aparato inerente a cada momento (seja na
coroação, seja numa entrada régia, em cerimónias públicas, em funerais, ou, simplesmente,
nos seus retratos), faz-se conforme ao necessário esplendor e prestígio da casa real:
“L’autorité du souverain, qui n’en connaît pas de plus haute sinon celle de Dieu, se donne a
voir à tous, à tout moment: elle est tangible, incontestable; il y a là quelque chose de
rassurant, car la puissance ainsi manifestée est une garantie d’ordre et de paix pour les
sujets” 52. O rei não é um indivíduo como os outros, possuindo uma essência diferente do
resto da humanidade, motivo pelo qual a sua apresentação não pode ser, de forma alguma,
negligenciada, devendo reflectir um carácter superior, magnífico, próximo do divino.
Sancho IV, o Bravo, demonstra o que pensava sobre as suas insígnias da soberania
no já referido Espelho dos Príncipes, que mandou redigir para o seu filho Fernando, entre
1292 e 1293. Nesta obra, o rei descreve ao seu herdeiro a figura do governante ideal, a
quem reveste de todas as insígnias reais que eram correntes na Idade Média, interpretando-
as num sentido alegórico e moralizante. “el ornato regio se convierte así en una especie de
coraza moral, que en cada una de sus partes amonesta y estimula al que la lleva,
protegiéndole de los vicios y enseñándole las virtudes”53.
A Majestade do rei é, em si, e sempre, um espectáculo. Quer se trate dos
cerimoniais ocorridos ao longo da vida dos soberanos, quer se trate de representações

51 IDEM, ibidem, pp. 6-7.


52 Cf. Armand STRUBEL, Littérature Politique et Société dans la France du Moyen Âge, Paris, PUF,
1996, p. 391.

445
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

artísticas, destinam-se, invariavelmente, a captar o olhar imediato dos súbditos. Neles,


devem ser reconhecidos a pessoa do rei e o seu poder, recorrendo-se, menos vezes, da
verdadeira fisionomia dos monarcas, e, mais frequentemente, dos símbolos pelos quais é
reconhecido o poder monárquico.
Como já vimos, pelas características que distinguem a monarquia portuguesa das
congéneres francesa ou inglesa, e a sua maior proximidade para com a realidade da
monarquia castelhana, as insígnias do poder régio traduzem-se, entre nós, numa maior
economia ou menor diversificação, de acordo com a importância que cada uma delas
possui e com o que representa.
Em todas as formas de representação, tão distantes da realidade das fisionomias de
cada um, dá-se destaque aos atributos e à sua linguagem simbólica. São eles que melhor
identificam os corpos a que estão associados. Quer se tratem de objectos inerentes ao
exercício do poder régio, vulgarmente conotados com as cerimónias de sagração/coroação,
quer se tratem de objectos que indiciam acções e virtudes, quer sejam ainda pequenos
apontamentos marginais, ou mesmo, a maior ou menor incidência de elementos heráldicos,
eles são os melhores aliados do “retratado” para a preservação da sua memória. Vejamos,
por isso, a selecção de atributos mais comuns nas representações dos elementos da família
real portuguesa, a partir dos referentes iconográficos disponíveis.

1.2.1. A coroa
Em França, no ano de 816, pela primeira vez, um soberano foi ungido e coroado
no decurso de uma mesma cerimónia. Entendem vários autores que terá sido,
provavelmente, a partir deste momento que a coroa, ao tempo um círculo de metal com
pedras preciosas de importação bizantina, se tornou a insígnia essencial da realeza no
Ocidente, enriquecendo-se de significados jurídico-políticos nos últimos séculos da Idade
Média54.
Os ordines da sagração usados em França indicam que o rei dispunha de duas coroas:
a coroa da sagração, imposta pelo arcebispo de Reims e sustentada nas mãos dos seus

53 Cf. Percy SCHRAMM, op. cit., 1960, pp. 56-57.

446
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

nobres; e uma coroa pessoal, mais ligeira que lhe era colocada na cabeça no momento da
comunhão e que o rei mantinha durante a sua saída da Catedral e durante o festim que se
seguia. Desde o século XII que a coroa com que eram sagrados os reis franceses possuía,
por vezes, uma forma cónica, dando-lhe a aparência de mitra, a fim de sublinhar o carácter
quase episcopal do soberano. Também a partir da mesma época, era, normalmente,
formada por quatro placas ligadas entre si, rematadas por quatro largas flores-de-lis
decoradas com doze pedras preciosas, com uma coifa vermelha ornada de pérolas.
Existiam, porém, variações, como se pode ver na coroa-relicário de S. Luís.
A coroa era, pois, a imagem
da Jerusalém Celeste,
simbolizando, como a tonsura dos
clérigos, a abertura sobre a
realidade do mundo elevado e
indicando os aspectos religiosos da
monarquia sagrada. Como
expressão de um simbolismo
cósmico, que se completava com o
ceptro, a coroa situava o rei em
relação com tudo o que o rodeava:
Coroa-relicário de Luís IX de França. Séc. XIII. Museu do Louvre. os quatro florões representam, se-
Claude Wenzler, Généalogie des Rois de France, 1994, p. 18.

gundo alguns autores, os quatro pontos cardeais, e a sua disposição na cabeça, na parte
mais alta do corpo humano, tanto física como espiritualmente, responde a uma vontade de
significar a sua proeminência, enquanto que a forma circular indica a perfeição55.
Como referem Kantorowicz e Jacques Krynen, a coroa é o emblema do poder
supremo, mas, também, um emblema dos bens inalienáveis e dos direitos imprescindíveis,
garantes da continuidade do poder e da unidade de um corpo político. Ao longo da Idade
Média, esta demarcação, entre a coroa material e a coroa imaterial, esteve longe de ser

54 Cf. M. BLOCH, Les Rois Thaumaturges, Études sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale,

particulièrement en France et en Angleterre, 2ªed., Paris, 1961, p. 69-70 e 469 e 500 ; Jacques KRYNEN,
L’empire du Roi. Idées et Croyances Politiques en France XIIIe-XVe Siècle, Paris, Gallimard, 1993, p. 125.

447
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

evidente e os conceitos permaneceram presos ao objecto simbólico. Ela é uma entidade


superior, distinta, por sua vez, do rex e do regnum56.
A coroa real é a marca da eleição, conferida por Deus, e o símbolo da recompensa
que o soberano receberá do Céu após a sua morte…se o seu reinado tiver sido exercido
com dignidade. Embora esta insígnia esteja presente em todas as representações dos reis
portugueses da primeira dinastia, e alguns testamentos régios a mencionem, a verdade é
que o seu valor não se impõe como sendo o objecto-símbolo mais relevante, aquele que, de
facto, fazia a afirmação das bases do poder monárquico em Portugal. Julgamos que
situação era idêntica noutros reinos peninsulares.
A verdade é que parece nunca ter existido uma coroa, por excelência, que fosse
transmitida de pais para filhos, ou mesmo uma coroa especialmente guardada para os dias
da sagração, como se verificou em França. Na única situação em que este facto se
testemunha, não em Portugal, mas em Castela, trata-se de uma excepção, como bem notou
Palácios Martin. O autor chamou a atenção para o facto do testamento de Afonso X (1248)
revelar que o rei sentira necessidade de determinar que a sua coroa pessoal deveria ser
herdada pelo seu sucessor. Se esta situação fosse normal, não haveria necessidade de incluir
tal disposição testamentária. De facto, o sucessor foi sepultado com a coroa que herdara e
ninguém se preocupou em passá-la ao herdeiro seguinte57. Também a coroa dita de Afonso
VIII de Castela, encontrada em 1948 no túmulo de Sancho IV, na Catedral de Toledo,
denota que havia sido reutilizada, não sabemos se por todos os sucessores de Afonso VIII,
se apenas por Sancho IV. A verdade é que não a transmitiu à sua descendência, sendo com
ela sepultado, e não com uma coroa funerária, mais simples e de materiais menos
preciosos, como parece ter sido uso comum58. Esta situação, de uma relativa valorização da
coroa com bem alienável, julgamos, terá caracterizado também a passagem, ou a não
passagem, das coroas dos reis portugueses para os seus sucessores, no período cronológico
de que aqui nos ocupamos.

55 Cf. J. CHEVALIER e A. GHEERBRANT, Dictionnaire des Symboles, pp. 238-239 e Fernando


GALVÁN FREILE, op. cit., 1997, p. 54.
56 Ernest H. KANTOROWICZ, op. cit., 1985, pp. 318-361, Jacques KRYNEN, op. cit., p. 125.
57 Bonifacio PALACIOS MARTIN, “Los símbolos de la soberanía en la Edad Media española. El

simbolismo de la espada”, p. 274.


58 Cf. Percy SCHRAMM, op. cit., 1960, pp. 35-41.

448
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Nas duas estátuas de vulto perfeito que podem ser identificadas como
representações de D. Afonso Henriques, bem como nos dois desenhos representando D.
Sancho I59, os monarcas estão coroados, sendo as duas últimas coroas rematadas por
cruzes. Referindo-se ao valor iconográfico das duas estátuas ditas de D. Afonso Henriques,
José Mattoso sublinha que “não se pode tratar de um mero sinal para identificar a função
exercida pela personagem. Os inegáveis testemunhos da falta de cuidado na guarda das
coroas solenes, ao contrário do que acontecia na época asturiana e que se tornou tradição
na Alemanha imperial, mostram-nos apenas menos importância atribuída a esta insígnia,
mas não necessariamente a ausência de coroação litúrgica. Também os nossos primeiros
reis aparecem coroados e envolvidos pelo manto solene nas representações iconográficas
que se conhecem de Afonso Henriques e de D. Sancho I, a saber a estátua que estava na
porta da igreja da Alcáçova de Santarém e que se guarda agora no Museu do Carmo, a
escultura da igreja de Rates identificada por Manuel Real, e a cópia do sinal de soberania de
Sancho I no Livro de Doações de Afonso III. Os dois primeiros datam dos séculos XII e
primeira metade do XIII e o original do segundo é contemporâneo de D. Sancho I”60.

Pormenor da estátua (dita) de D. Afonso


Henriques.
Séc. XII. Igreja de S. Pedro de Rates.
Apud Portugal. A Formação de um País, p. 74.

59 Vejam-se as fotos destas representações de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I no capítulo


7.1 desta III Parte.
60 José MATTOSO, “A realeza de Afonso Henriques…” (1986), op. cit., ed. 1990, p. 225.

449
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor da estátua (dita) de D. Afonso Henriques.


Séc. XIII.
Museu Arqueológico do Carmo.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Numa moeda de prata, dos inícios do reinado de D. Afonso III, surge, pela
primeira vez na numismática portuguesa, a figuração do busto do rei, coroado e
acompanhado de outra insígnia do poder real61, assim como outra, do reinado de D. Pedro
I, de que também apenas conhecemos reprodução62.

Morabitinos de Sancho I e de Afonso II.


Museu Numismático Português – Casa da Moeda, Lisboa, n.º Desenho de moeda do reinado de D. Dinis (apócrifa?).
12.638 e 12.659. Apud História de Portugal (dir. José Mattoso), Apud Ferraro Vaz, op. cit., p. 392.
vol II, p. 87

Distingue-se, por isso, das representações equestres dos morabitinos de Sancho I,


Afonso II e Sancho II, seguindo tipologias da numismática inglesa, como veremos mais

61Esta moeda foi reproduzida por Teixeira de ARAGÃO, Descripção Geral e Histórica das Moedas
Cunhadas em Nome dos Reis, Regentes e Governadores de Portugal, t. I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1874-1880,
p. 164, e posteriormente por J. Ferraro VAZ, Numária Medieval Portuguesa 1128-1383, t. II, Lisboa, 1960,
p. 383, que afirma tê-la visto numa reprodução galvanoplástica, de prata, na Casa Schulman em
Amesterdão.
62 Cf. J. Ferraro VAZ, op. cit., 1960, p. 84.

450
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

adiante. Teixeira de Aragão reproduz duas moedas do reinado de D. Dinis63, da antiga


colecção “Thomsen” que, embora consideradas apócrifas, Ferraro Vaz considera
interessante voltar a reproduzir64. Nelas se representa o busto do rei com a cabeça coroada.
A sua tipologia é muito semelhante à de moedas do reinado de Eduardo III de Inglaterra
(1327-1377).
Nas duas únicas estátuas jacentes de reis portugueses da primeira dinastia, que
chegaram aos nossos dias, (de D. Dinis65 e de D. Pedro I), as coroas são, entre os atributos
hoje visíveis, os que identificam, mais claramente, estas figuras com o ministerium regis.
Também no túmulo de D. Urraca, a representação do rei D. Afonso II, na face dos pés da
arca sepulcral, revela a presença da coroa66, aliás, muito semelhante em termos formais à
que podemos ver na cabeça da estátua jacente de D. Urraca.

1. D. Afonso II ao centro da
composição da secção dos
pés da arca tumular de D.
Urraca. Foto. José
Pessoa/DDF/IPM.

2. Pormenor do jacente de D.
Urraca. Apud José Custódio
Vieira da Silva, O Panteão Régio
do Mosteiro de Alcobaça, p. 63.
Foto: Henrique Ruas.

63 Teixeira de ARAGÃO, op. cit., t. I, 1884-1880.


64 J. Ferraro VAZ, op. cit., 1960, t. II, p. 392.
65 D. Dinis, no testamento de 1322, deixa as suas duas coroas à neta, a infanta D. Maria: [...] Item

mando à Infante Dona Maria minha neta as minhas Cruzes pequenas de outro, que sam para trager ao colo, em que
andam religas, outro si lhe mando huma coucela cuberta de uma safira, em que amdam religas, e as duas minhas coroas
do ouro com as pedras, que em si tem. Cf. António Caetano de SOUSA, Provas…, Liv. II, p. 128.
66 Mário J. BARROCA, “50. Sarcófago de D. Urraca”, Nos Confins da Idade Média, Arte Portuguesa

Séculos XII-XV, Cat. de Exposição (Europália 1992), Lisboa, Instituto Português de Museus, 1992, p.
142, referindo-se ao túmulo de D. Urraca e concretamente à representação da lamentação da família
real, D. Afonso II e os seus filhos, nota «Nela o monarca apresenta-se coroado – tal como D. Urraca
no jacente – o que é um elemento interessante se tivermos em conta que não sobreviveu qualquer
coroa real portuguesa dos tempos medievais e que o cerimonial da coroação, o Ordo Benedicenti Regis,
contido num Pontifical de Santa Cruz (BPMP, ms. 1134), do último quartel do século XII, dá mais
relevo à imposição da espada do que à coroação.

451
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor da cabeça do jacente de D. Dinis.


Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. 13. Foto: Henrique Ruas.

Pormenor da cabeça do jacente de D. Pedro I. Foto: CVF.

O túmulo do rei D. Fernando I, apesar de não inserir estátua jacente, contém a


representação do rei num baixo-relevo que o representa em busto, inserido num clípeo, e

452
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

dispondo da coroa como única insígnia do poder real. Em algumas moedas deste mesmo
reinado, em que se representa o rei com um conjunto abrangente de insígnias do poder
(sobretudo de carácter militar), este é representado coroado, o
mesmo acontecendo em outros espécimes numismáticos
(torneses e meios torneses), em que o soberano é representado num
busto coroado, de perfil.
A presença da coroa nas representações sigilográficas

Torneses de D. Fernando I.
dos nossos monarcas surge, igualmente, mas em contextos
Apud J. Ferraro Vaz, Numaria
Medieval Portuguesa, t. II, p. 430 distintos, sempre com o intuito de identificar a pessoa do rei.
Em dois selos, pertencentes a D. Dinis e a D. Afonso IV, de
tipo equestre, representa-se, no anverso, ambos os soberanos
com os elmos rematados pelas coroas reais, sendo mais
perceptível no primeiro do que no segundo caso. Refira-se que,
no conjunto da numismática de D. Fernando I, as barbudas e as
meias barbudas também representam o busto do rei, de perfil,
com o elmo rematado pela coroa real. Mas o que
verdadeiramente permite distinguir estes selos de um de
qualquer nobre cavaleiro ou infante é a associação deste
atributo com as armas de Portugal gravadas no escudo, que os
reis seguram com uma das mãos e nas gualdrapas do cavalo.
Mas as coroas são também atributo importante das
rainhas medievais, mesmo que se desconheçam cerimónias de

Selo de tipo equestre de D.


coroação em que estas tivessem sido investidas de tal insígnia, e
Dinis. Apud José Mattoso;
História de Portugal, 2.º vol, p. 20.
até das infantas, sendo possível constatá-lo iconograficamente.
Para além da já referida coroa no jacente de D. Urraca, também através de uma
cópia de um selo de D. Mecía Lopes de Haro, podemos perceber a existência de um coroa
que cinge a cabeça da figura, morfologicamente diferente da de D. Urraca, mais conforme
às que se representavam no século XII, constituída apenas por uma banda metálica em
forma de anel, sem com qualquer decoração a rematar. Lembra as coroas que vemos em
algumas figuras dos vitrais da abadia de Saint-Denis, da encomenda de Suger.

453
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Selo da rainha D. Mecía Lopez de Haro,


pendente da carta de doação dos moinhos e de
um reguengo, a Paio Peres e sua mulher, Maria
Gonçalves, a 3 de Setembro de 1246.
Apud. Francisco da Fonseca Benavides, Rainhas
de Portugal, p. 127.

Pormenores dos vitrais da Abadia


de Saint-Denis.
Séc. XII.
Apud Saint-Denis la Basilique et le
Trésor, Dossiers d’Archeologie, n.º 261 –
Março 2001, p. 64.

No jacente da Rainha Santa, a coroa cinge o véu monástico que lhe cobre a cabeça,
constituindo aqui o único elemento, entre os adereços que acompanham a representação
de D. Isabel, que nos permite identificá-la como sendo rainha de facto, escapando à total
identificação com uma freira clarissa. De notar, também, uma evolução formal nesta coroa,
mais complexa e detalhada nos pormenores que a constituem, com as flores-de-lis bem
recortadas e com a sugestão de algumas pedrarias, quando comparada com a coroa de D.
Urraca, claramente mais simples. Convém relembrar, ainda, que D. Isabel não possuía

454
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

apenas uma coroa, mas sim quatro, como se pode constatar do texto do seu último
testamento67.
Em dois selos pertencentes a um mesmo documento, podemos ainda contemplar,
pese o lamentável estado de conservação em que estes dois espécimes chegaram aos nossos
dias, as representações das infantas D. Teresa e D. Sancha, filhas de D. Sancho I, bem
como um conjunto de atributos iconográficos a elas associados. No que se refere à coroa,
esta é visível na figura de D. Teresa, no verso e anverso do selo, como elemento distintivo
da sua condição de legítima princesa.
Num interessante selo da rainha D. Beatriz, mulher de D. Afonso III, a que
voltaremos mais adiante, percepciona-se, com suficiente clareza, a presença da coroa na
cabeça da figura, sob a qual são visíveis os cabelos longos68.
No túmulo (dito) de D. Constança Manuel, mulher de D. Pedro I e mãe de D.
Fernando I (Museu Arqueológico do Carmo), apesar de já não possuir tampa sepulcral para
que possamos aferir sobre a existência de estátua jacente onde a princesa estivesse
representada, com ou sem o uso da coroa, na testeira da arca tumular, numa das cenas da
preparação da “boa morte”, podemos contemplar uma pequena figura feminina, muito
deteriorada, onde ainda é possível detectar a presença de uma coroa que lhe cinge os
longos cabelos69.

67 No seu primeiro testamento de 1314, D. Isabel deixa as suas coroas ao rei D. Dinis ou ao filho
herdeiro D. Afonso: Item mando que as minhas pedra, & as minhas Coroas, e as minhas brochas as qês son escritas
em hũa minha Carta selada com meu selo que ElRey as haja en sa vida & depois de sa morte fiquem ao Infante D.
Affonço meu filho primeiro herdeiro. No último testamento de D. Isabel, datado de 1327, a rainha altera a
disposição relativamente à transmissão das coroas: (...) e mando a minha coroa das esmeraldas à Rainha Dona
Breatis minha filha, e rogolho que a leixe à Infanta Dona Maria sa filha. Item mando à Iffanta Dona Maria minha
neta a minha coroa pequena, que tem as pedras furadas, & a minha brocha redonda, & a crux de ligno Domini que
anda em tres pedras çafiras furadas e as reliquias que andão na coroa do ouro, so o jaspe, & as outras religas de São
Bartolameu que andaõ so o cristal, e andaõ na cadea do ouro, & os teixees das aguias. Item mando à Inffanta Dona
Leanor minha neta outra coroa de balaisses grandes que estaõ em rosa, e os teixees das figuras dos paaos com pedras. Cf.
António Caetano de SOUSA, Provas…, pp. 144-153.
68 Trata-se de um selo pendente duplo, de formato circular, pertencente a uma carta de D. Beatriz, pela

qual a rainha ordenava que se desse ao cabido da Sé de Coimbra o Paul de Mansos, junto de Brunhos. É
datada de 27 de Agosto de 1332 (1294). Na orla do selo corre uma inscrição onde se pode ler [I] S:BREA[...
... ...:R]EGINA PORTUC[LENSIS] em caracteres romanos maiúsculos. (Doc. N.º 295 Mç 22 do Cabido da
Sé de Coimbra – 2.ª incorporação). Cf. Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, p. 236.
69 Veja-se imagem no cap. 5.5 da III Parte.

455
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

No jacente de
D. Inês de Castro, a
coroa é o atributo que
verdadeiramente lhe
confere a dignidade
pretendida pelo
encomendador deste
monumento funerário
(D. Pedro I). É no
Pormenor do jacente de D. Inês de Castro. comentário de Fernão
Foto: CVF

Lopes sobre o túmulo de D. Inês (de coroa na cabeça como se fosse rainha) que percebemos,
claramente, que a coroa material era elemento fundamental para a identificação de uma
rainha, situação que, neste caso, mereceu comentários, pelos motivos sobejamente
conhecidos. Repare-se no crescendo de requinte decorativo das coroas com que se fazem
representar estas personagens, sendo as de D. Pedro I e de D. Inês de Castro as mais
exuberantes.
Também as
estátuas jacentes de duas
jovens infantas, a infanta
(dita) D. Constança (filha
de D. Afonso, Senhor de
Portalegre e neta de D.
Afonso III), e D. Isabel
(filha de D. Afonso IV e
de D. Beatriz),
apresentam as cabeças
coroadas. No jacente da
infanta (dita) D.
Pormenor da cabeça do jacente da infanta (dita) D. Constança.
Séc. XIV. Sé de Lisboa. Foto: José Pessoa/DDF/IPM. Constança Afonso, a
coroa é alta e fechada,

456
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

diferente de todas as que já referimos, decorada com pequenas flores, que acentuam o
carácter pueril e virginal da jovem princesa. Neste caso específico, é mais apropriado
designá-la por guirlanda, ao invés de coroa, não obstante o seu carácter simbólico não
diferir do desta última.
Sabe-se, por exemplo, que a segunda filha de Pedro I, o Cruel, herdou, segundo o
testamento de seu pai, duas guirlandes ou garlandes, sendo estas, à semelhança das coroas
tradicionais, constituídas por metais nobres, pedras preciosas e pérolas. A mesma
designação era dada aos diademas que usavam alguns senhores que não tinham o estatuto
de rei, como são exemplos os condes de Barcelona70.
Neste caso, tratando-se da filha de um filho legítimo de D. Afonso III, mas que não
foi rei, faz todo o sentido que seja representada com guirlanda e não com coroa.
A ausência de estátuas jacentes ou de outro tipo de representações dos
descendentes varões dos nossos reis (à excepção do Conde de Bolonha) com uso da coroa,
bem como a inexistência de documentação elucidativa a este respeito, impossibilita-nos
fazer afirmações sobre o uso ou o não uso de coroas ou diademas por parte dos infantes
portugueses até aos finais do século XIV.

1.2.2 Insígnias de cavalaria do rei


Atributos como a espada, o escudo ou as esporas, são comuns às representações de
reis e de cavaleiros. Porém, não nos parece legítimo afirmar que estes últimos não
constituem atributos do poder real por si só, e que são apenas insígnias da cavalaria. Não
faria sentido se assim fosse. A verdade é que o rei é o Cavaleiro dos cavaleiros, isto é, ele é
o chefe máximo da cavalaria, sendo o único, a partir de determinado momento, a poder
investir outros indivíduos de tal categoria. Faz parte das funções do ofício real e é-lhe
inerente, porque ele deve ser o exemplo do cavaleiro ideal. Enquanto a coroa e o ceptro
são símbolos de soberania por excelência, a espada e as esporas são instrumentos
vinculados à ideia de um poder temporal que assenta sobre a acção militar. São, por isso,
símbolos que compartem reis e cavaleiros.

70 Cf. Percy SCHRAMM, op. cit., 1960, pp. 64-65.

457
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Desta forma, a espada, enquanto signo e enquanto símbolo, viu-se potenciada,


durante a baixa Idade Média peninsular, na sua função de insígnia-emblema da soberania
do reino. Pedro III de Aragão reivindicava que ele e os seus antecessores haviam
conquistado as suas terras con la espada. Da mesma forma se deverá compreender a
importância conferida por Jaime I, ao entregar, no leito de morte, a sua espada ao príncipe
herdeiro. Para Palácios Martin “[…] no deja de llamar la atención que se ala única insignia
que le entrega de manera formal en el momento de transmitirle el reino […]”71. Não
significa, porém, que fosse prática corrente a transmissão da espada aos sucessores. “La
espada no sustituyó a la corona ni puede afirmarse todavía de ninguna de ellas que fuera
adoptada como símbolo exclusivo de la soberanía del reino”72.
A existência de espadas relacionadas com heróis fundadores, envoltos numa aura
mítica, conferia a estes objectos um valor redobrado, tornando-os preferidos a todos os
outros. Não é por acaso que a espada usada durante a sagração dos reis de França era
identificada como tendo sido a espada de Carlos Magno, a famosa Joyeuse.
A espada era, certamente, uma das insígnias que os nossos primeiros reis recebiam
durante a cerimónia da sagração/coroação, como tão bem testemunha o Ordo benedicendi
regnum, sendo-lhe conferido um valor simbólico especial, o que terá justificado um
acrescento ao texto do Ordo, isto é, uma oração para ser proferida na entregue solene da
espada ao novo rei. Assim, perece-nos legítimo reafirmar, na linha das propostas de outros
autores, que, em Portugal, e tal como em Castela ou em Aragão, era a espada a insígnia que
detinha maior relevo entre todas as que o rei recebia e usava, ultrapassando o valor
atribuído à coroa, já que a realeza portuguesa foi obtida, essencialmente, pelo direito de
conquista, atribuindo aos primeiros reis portugueses uma função eminentemente guerreira.
A iconografia é bem mais clara do que os testemunhos escritos quanto à
importância da espada como insígnia do poder régio. Como notáveis antecedentes
iconográficos das primeiras representações dos nossos monarcas, alguma iconografia de
outros reis da geografia peninsular deve ser citada: são os casos conhecidos dos reis
asturianos Afonso II, Ordonho II e Ordonho III, no Livro dos Testamentos da Catedral de

71 Bonifacio PALÁCIOS MARTÍN, op. cit., p. 285.


72 IDEM, ibidem, p. 288.

458
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Oviedo (1118-1127), onde a espada surge com determinante relevo entre as insígnias
régias, ou, a representação de Sancho III de Navarra na sua lápide sepulcral.
A sua importância é tal, no conjunto das insígnias régias portuguesas durante a
Idade Média que, não por acaso, a espada de D. Afonso Henriques, durante largos anos
exposta junto do primitivo túmulo do rei, constituiu, para muitas gerações, um dos mais
poderosos símbolos político-religiosos da monarquia portuguesa, referenciada como uma
insígnia-emblema da identidade nacional, envolta em mistério e crença, pelo menos até ao
reinado de D. Sebastião que, sabemos, tê-la-á levado para Alcácer-Quibir, na esperança da
obtenção da vitória73.
O mesmo valor se aplica ao escudo do nosso primeiro rei, alvo de particular
atenção e análise por parte de vários autores. Como já havia sublinhado José Mattoso74,
apesar de a historiografia espanhola não conferir especial relevo ao escudo como insígnia
do poder régio, praticamente ausente dos estudos de Bonifácio Palacios, Percy Schramm
ou C. Sanchez Albornoz, a iconografia régia demonstra, claramente, que ele assume uma
importância digna de nota. Basta que citemos exemplos tão notáveis como as representa-
ções de Fernando II ou de Afonso
IX em selos dos seus reinados, ou
as magníficas iluminuras que
representam Afonso IX e
Fernando II a cavalo, no Tumbo A
de Santiago de Compostela, ou,
ainda, Afonso II, o Casto numa
iluminura do Livro dos Testamentos
da Catedral de Oviedo, sendo que,
Afonso II, o Casto. Livro dos Testamentos da Catedral de Oviedo. neste último, o escudo e a espada
Séc. XII

não são apresentados pelo rei, mas sim por um nobre que o acompanha (o alferes).
As esporas constituem, também, um valioso símbolo do poder, sobretudo em
monarquias de base eminentemente guerreira. Tal como a espada ou o escudo, as esporas

Cf. José MATTOSO, “A realeza...”, (1986), op. cit., 2ªed., 1990, p. 224 e Maria de Lurdes
73

ROSA, “O Corpo do chefe...”, op. cit., 1996, vol. 3, pp. 94-100.


74 José MATTOSO, “A realeza...”, (1986), op. cit., 2ªed., 1990, p. 226.

459
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

são igualmente atributos de representação e de identificação dos cavaleiros. Não sabemos


se este atributo também era entregue aos novos monarcas portugueses nas cerimónias que
os consagravam nas suas funções, à semelhança do que acontecia em França e em
Inglaterra, constituindo assim, uma das regalia. Mas sendo este um destacado atributo dos
cavaleiros, dificilmente estaria ausente nas representações dos nossos reis.

Esporas do jacente de D. Dinis. Foto: CVF. Esporas do jacente de D.


Pedro. Foto: CVF.

No reino português, e durante a primeira dinastia, a espada, o escudo e as esporas


também conhecem um papel de relevo na iconografia coeva: nas já citadas estátuas
identificadas como sendo representações de D. Afonso Henriques, é a espada que o
monarca exibe e sustenta sobre os ombros, que adquire proeminência como insígnia do
poder régio; nos morabitinos de Sancho I, Afonso II e Sancho II, a tipologia do “retrato”
equestre, coloca em evidência a espada; no mesmo quadro de representações equestres, os
já citados exemplos dos selos do Conde de Bolonha, de D. Dinis e de D. Afonso IV,
seguem a mesma tipologia, agora com maior desenvolvimento iconográfico, onde as
figuras estão vestidas com armadura e elmo, a espada alçada e com uma das mãos a segurar
o escudo com identificação heráldica. Este modelo figurativo é idêntico ao que
encontramos nos selos de outros monarcas medievais de diferentes reinos, como são
exemplo os selos de Henrique III de Navarra, Henrique III de Inglaterra, ou Sancho IV de
Castela, entre muitos outros.

460
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Também o jacente de D.
Pedro I deve ser considerado
um exemplo notável quanto ao
valor atribuído à espada,
embainhada e em repouso sobre
o corpo, e que o rei segura com
as duas mãos, à semelhança do
jacente de D. Lopo Fernandes
Pacheco, entre as de outros
notáveis cavaleiros. Por isso, a
presença da espada nas mãos do
rei não pretende caracterizá-lo
como a qualquer outro cavaleiro
seu, mas sim, com a sua função
e atribuição militar que, como já
vimos, constitui uma das mais
Pormenor da estátua jacente de D. Pedro I.
Apud José C. Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. 94. proeminentes funções dos reis
Foto: Henrique Ruas.

medievais portugueses, desde D. Afonso Henriques, bem como atribuir-lhe o papel de


detentor do pleno ofício da justiça, na qual o rei era senhor e soberano.
Quanto ao jacente de D. Dinis, em virtude dos restauros efectuados no túmulo e,
em concreto, na estátua que representa o monarca, não é hoje possível detectar a presença
da espada nas mãos do rei, nem sequer a ladeá-lo, tal como acontece nas representações
funerárias de alguns cavaleiros do século XIV. A posição dos braços e mãos tanto podem
sugerir a primitiva presença da espada, como a presença de um ceptro. De qualquer forma,
por ora, é impossível fazermos afirmações precisas quanto à existência de um ou de outro
atributo iconográfico. Já as botinas e as esporas são evidentes, tanto no jacente de D.
Pedro I como no de D. Dinis.
O facto de a iconografia régia da primeira dinastia acentuar o carácter guerreiro dos
nossos reis comprova-se até mesmo em cronologias avançadas no século XIV, de que são
bons exemplos algumas moedas do reinado de D. Fernando I: as meias dobras pé-terra e as

461
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

dobras gentis, constituem valiosos documentos iconográficos para o entendimento do retrato


de aparato neste reinado. Nelas se pode observar o rei, vestido com armadura, de cara
descoberta, coroado e segurando com uma das mãos a espada alçada e, com a outra, o
escudo com as armas de Portugal gravadas. Todas as insígnias presentes nestas
composições põem ênfase na função guerreira do soberano português, não se privilegiando
outras, relacionadas com as restantes atribuições da função real, como seriam exemplo o
ceptro ou o globo.

Meias dobras pé-terra de D. Fernando I Dobras gentis de D. Fernando I.


Apud J. Ferraro VAZ, op. cit., p. 418 Apud IDEM, ibidem, p. 422.

Em nossa opinião, não deverá estranhar esta opção iconográfica, se atendermos ao


quadro da personalidade de D. Fernando e das circunstâncias que caracterizaram o seu
reinado, onde as guerras em que se envolveu marcaram profundamente os dois últimos
quartéis do século XIV. O carácter bélico do monarca está patente nas suas decisões e
acções e, talvez se reflicta na iconografia que nos chegou através destas moedas. É possível,
ainda, levantar a hipótese de outras representações do rei, com semelhantes características,
terem existido, e das quais não temos notícia, bem como o facto de lembrar que, na
proximidade da morte, o rei exigiu que o sepultassem vestido com a sua armadura, sobre a
qual queria que lhe vestissem o hábito dos Terceiros da Ordem de S. Francisco.
Nas duas cópias do selo de D. Sancho I (no Livro das Doações de D. Afonso III e no
Foral de Penas Ruivas75), constatamos que estas duas representações são o resultado de
uma mesma matriz e representam o rei ladeado por uma lança ou estandarte, contrariando
a tendência generalizada de valorizar a espada como atributo de cavalaria e do exercício da
justiça do rei.

75 Agradecemos à Prof. Doutora Maria João Violante Branco a informação sobre a


representação de D. Sancho I no foral de Penas Ruivas, bem como a cedência da respectiva imagem.

462
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Enquanto que, no Livro de Doações de D. Afonso III, a insígnia assume claramente a


aparência de lança, na extremidade da qual foram colocadas várias fitas de tecido decorado,
aproximando-se dos modelos dos estandarte medievais do Norte da Europa, bem como do
estandarte com que é representado um cavaleiro no Beato de Silos (c.1109)76, no Foral de
Penas Ruivas assemelha-se simplesmente a um estandarte, e as referidas fitas parecem
constituir apenas listras do pano do pendão.

Selo de D. Sancho I, Selo de D. Sancho I, segundo cópia


segundo cópia desenhada do Foral de Penas Ruivas (Lisboa,
no séc. XIV (Lisboa, IANTT, Gavetas, gav. 15, mç. 10, doc.
IANTT, Livro das Doações de 14. Foto. IANTT
D. Afonso III, fol. 13v.º).
Foto. IANTT

Não sabemos ao certo qual a intencionalidade da opção pela lança/estandarte em


detrimento da espada, especialmente porque esta insígnia aparece separada da figura do
monarca, mas com um carácter notoriamente identificador e preponderante. Este é um
atributo que se destina, normalmente, a sublinhar a heroicidade de um chefe militar e
encontramo-lo nas representações de alguns heróis da Antiguidade, como é exemplo uma
estátua de Augusto, em que o imperador é representado com a lança numa das mãos, e
apoiando o pé direito sobre a sphaera, símbolo de um império universal; surge também em
representações de importantes personagens da Idade Média, sendo de destacar, no caso
peninsular, a iluminura do Tombo A da Catedral de Compostela, em que figura Afonso IX
de Leão.

76 Cf. J. G. MANN, “Notes on the armour worn in Spain from the X to the XV century”,
Archeologia, nº83, 1933 e Percy SCHRAMM, op. cit., 1960, pp. 117-118.

463
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Afonso IX de Leão. Tombo A da Catedral de Santiago de


Compostela. Séc. XII.
Apud José Mattoso, História de Portugal, 2.º vol., p. 99.

O desenho muito sumário das duas representações de D. Sancho I impede-nos,


porém, de avaliar correctamente este atributo iconográfico, pelo menos, de averiguar a
existência de algum desenho de cariz heráldico. A estas duas imagens voltaremos mais
adiante, integrando-as na leitura iconológica de um conjunto de outras dos séculos XII e
XIII.

1.2.3 Outras insígnias da soberania (manto, ceptro, globo e trono)


Convém referir, no contexto das insígnias do poder régio que caracterizam a
iconografia que nos chegou, a presença de elementos não directamente relacionáveis com
as atribuições guerreiras dos nossos reis, mas outras, que vão de encontro ao poder
religioso e até sacerdotal de que estes eram investidos, bem como à sua posição como
garantes da justiça.

1.2.3.1 O manto
O manto, a túnica e, por vezes, a dalmática que o rei veste em apresentações de
aparato, revelam o carácter eclesiástico e espiritual da sua missão. O manto solene tem a
sua origem na Antiguidade, adquirindo, no período imperial romano, um valor especial e

464
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

mais próximo daquele que adquiriu durante a Idade Média. Esta insígnia passou a estar
relacionada com a cerimónia designada por Adoração da Púrpura, cujas fontes do séc. IV
atribuem ao tempo de Diocleciano: “(...) um indivíduo a quem era concedida uma
audiência privada com o imperador beijava o bordo da sua túnica em sinal de homenagem.
Esta cerimónia é considerada pelas referidas fontes como símbolo de uma alteração da
posição do imperador, que passa de magistrado civil (...), a déspota oriental. A adoratio
purpurae era apenas um dos aspectos de um processo em virtude do qual os últimos
imperadores romanos se rodearam de um protocolo cerimonial muito mais elaborado do
que os seus predecessores. Embora muitos dos elementos particulares possam encontrar-se
na prática romana de períodos anteriores, a sua combinação marcou uma verdadeira
mudança na natureza do cargo imperial. A pessoa do imperador passou a ser rodeada de
uma aura religiosa; peticionários e panegiristas dirigiam-se aos “ouvidos sagrados” do
imperador e as respostas que saíam da sua “boca sagrada” eram consignadas em linguagem
retórica oficial pelo seu “secretário sagrado”77.
Ainda que se verifique uma menor solenização, e um sentido menos aparatoso do
uso do manto solene pelos reis medievais, a verdade é que esta peça de vestuário mantém o
seu significado político-religioso, mais acentuado e mais enaltecido nuns países do que
noutros. A este respeito, são muito significativas as palavras de Isidoro de Sevilha quando,
a propósito de Leovigildo, na sua História dos Godos refere que […]. Fue el primero que hizo
aumentar el erario y el fisco, y también fue el primero que se presentó a los suyos en solio, cubierto de
vestidura real; pues antes de él, hábito y asiento eran comunes para el pueblo e para los reyes78. Também
Afonso X é esclarecedor acerca da importância das vestes reais quando a elas se refere nas
suas Partidas: Vestiduras, fazen mucho, […]. E los sabios antiguos establecieron, que los Reyes vestiesen
paños de seda, con oro, e con piedras preciosas, porque los omes los puedan conoscer luego que los viesen a
menos de preguntar por ellos79.

77 Cf. Tim CORNELL e JOHN MATTEWS, Roma, Herança de um Império, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1991.
78 Apud Isidro G. BANGO TORVISO, “Los Reyes y el arte durante la Alta Edad Media:

Leovigildo y Alfonso II y el arte oficial”, Lecturas de Historia del Arte, 1992, p. 21 e Fernando GALVÁN
FREILE, op. cit., 1997, p. 60.
79 Partida II, tit. V, ley V. Apud A. GARCIA CUADRADO, Las Cantigas: el Códice de Florencia,

Murcia, 1993, p. 80 e Fernando GALVÁN FREILE, ibidem, p. 60.

465
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Nas representações dos nossos monarcas, à excepção daquelas que se resumem a


“retratos” de busto, todas têm a presença do manto ou da capa solene. Vejam-se os
exemplos da estátua pretensamente de D. Afonso Henriques, pertencente ao Museu
Arqueológico do Carmo, distinta de todas as outras pela presença de um sustentador feito
de pequenas contas, que prende o manto, passando por cima do ombro direito da estátua e
conferindo-lhe grande solenidade; as duas representações gráficas de D. Sancho I, onde a
complicação de linhas que pretendem sugerir volumes dos panejamentos dificultam a
leitura da peça de vestuário que cobre quase por completo o corpo do rei; a representação
de D. Afonso II na arca tumular de D. Urraca e, ainda, as estátuas jacentes de D. Dinis e
de D. Pedro I.
Infelizmente, nada nos permite aferir sobre a cor destes mantos, desconhecendo-se,
inclusive, se alguma vez foi fixada, como no caso dos reis franceses, em que o azul foi a cor
dos mantos solenes, como recordação da cor dos hábitos dos grandes sacerdotes de Israel.
Eram, também, bordados com flores-de-lis, símbolo solar que apelava a à ideia cósmica e à
reivindicação de um poder supremo e, a partir do século XII, como símbolo mariano,
podendo, eventualmente, evocar a recomendação do reino à protecção de Nossa Senhora.
O facto de desconhecermos a cor e até a decoração
dos mantos solenes dos reis portugueses dificulta-nos a
percepção da existência de diferenças acentuadas entre
estes e os mantos ou capas usados pelos cavaleiros. Em
Castela e Leão, por exemplo, sabe-se que a cor dos mantos
reais podia variar de acordo com o gosto dos seus
detentores ou de quem os representava. Afonso VI é
representado na iluminura do Tombo A com manto
púrpura; Afonso X, o Sábio, numa iluminura do Livro dos
Jogos, veste manto de fundo branco, profusamente
Afonso VI. Tombo A da Catedral de
Santiago de Compostela. Séc. XII. decorado com alternância de rectângulos bordados com a
heráldica de Castela e Leão, enquanto que, nas iluminuras das Cantigas de Santa Maria, quer
nos códices do Escorial, quer no códice de Florença, as cores do manto variam entre o
azul, o verde e o vermelho; já Sancho IV, o Bravo, na iluminura do seu testamento, bem

466
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

como os reis que figuram no Livro dos Testamentos da Catedral de Oviedo, vestem mantos
azuis.

Pormenor a iluminura do Testamento de Sancho IV


Afonso X, o Sábio. (Privilégio Rodado).
Livro dos Jogos. Códice Escorialense.
Séc. XIII.

Iluminuras do Livro
dos Testamentos da
Catedral de Oviedo.
Séc. XII

1.2.3.2 O ceptro
O ceptro, sendo provavelmente a insígnia que confere maior autoridade ao rei, tão
valorizada na iconografia dos reis franceses e ingleses, bem como na de alguns reis
peninsulares80, não encontrou, ao que tudo parece indicar, grande receptividade por parte
da monarquia portuguesa durante a primeira dinastia. Insígnia da justiça e da virtude,

Todos monarcas representados no Livro das Estampas apresentam ceptro, bem como a
80

maioria dos que vemos nos Tombos da Catedral de Compostela.

467
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

segundo o ordo de Erdmann, o ceptro é a marca do poder real, simbolizando a obrigação


do rei em manter uma vida exemplar, defender o povo cristão, e ajudá-lo a caminhar sobre
os caminhos da justiça81.
Os monarcas franceses recebiam, durante a sagração, dois ceptros: um mais
pequeno, que no século XIII podia ser rematado por uma mão de marfim, testemunhando
que o rei era um novo David (David, significa “mão forte”); e um ceptro longo, cujos
remates podiam ser constituídos por decorações de temas diferentes, normalmente uma
flor-de-lis, sendo que o único que sobreviveu em França, pertencente a Carlos V, é
rematado com uma representação escultórica de Carlos Magno em majestade. Este ceptro
longo simboliza o bastão de Moisés, do pastor que guia o seu povo e testemunho de que a
Terra, por intermédio do rei, está ligada ao Céu. Carlos V, porém, é representado na
estátua de vulto do Louvre, bem como a sua mulher Joana de Bourbon, segurando um
ceptro mais simples, o que não deixa margem para dúvidas que, o anteriormente citado, era
apenas usado no dia da sagração e de seguida guardado em Saint-Denis, juntamente com as
outras regalia.
Com ceptro curto ou vara da virtude, são representados o rei Quildeberto, numa
estátua proveniente de Saint-Germais-des-Prés, actualmente no Museu do Louvre, e
Roberto de Anjou, numa estátua de majestade.
Mais recuado cronologicamente, e de origem peninsular, é o ceptro que podemos observar
numa das mãos de Afonso VII, na iluminura que o representa no Tombo A da Catedral de
Compostela. Num selo de Sancho IV, representa-se o monarca entronizado e coroado,
segurando o ceptro com uma das mãos.

81 Cf. Patrick DEMOUY, op. cit., 2001, p. 107. Veja-se também para uma interpretação menos
clerical do significado, ou significados, do ceptro real, como os que conheceu durante a monarquia
asturiana, José MATTOSO, “A morte dos reis…”, op. cit., 1995, p. 194.

468
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Estátua de Roberto de Anjou. c.


1276. Arnolfo di Cambio. Museu
Capitolino, Roma.

Remate do ceptro de Carlos V de


França. 1365-1380. Museu do Louvre Estátua de Quildeberto. Proveniente
do portal do refeitório de Saint-
Germain-des-Prés, Paris, 1239-1244.
Museu do Louvre

469
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Selo de Sancho IV, o Bravo. Séc. XIII. Apud.


Marcedes Gabrois Ballesteros, Sancho IV de
Castilla, T. I, p. 17

Iluminura de Afonso VII de Leão


de Castela (Tombo A da Catedral
de Santiago de Compostela.
Apud José Mattoso, História de
Portugal, 2.º vol., p. 55. Foto: Godo-
Foto, Barcelona.

Sabemos, também, que no decurso das cerimónias de coroação, as rainhas recebiam


apenas um ceptro, ou vara, como símbolo da virtude. A iconografia dos ordines, bem como
as estátuas jacentes de algumas rainhas francesas testemunham-no, para além da já referida
estátua de vulto de Joana de Bourbon.
Os únicos registos gráficos que possuímos do
ceptro real dos monarcas portugueses da primeira
dinastia, encontram-se em reproduções, como é
exemplo o que se pode ver numa estampa que
reproduz a já citada moeda de prata do reinado de
Desenho de uma moeda de D. Afonso III D. Afonso III. Aqui, e à maneira dos reis franceses
Reproduzido a partir de um exemplar que ilustra o
catálogo da Col. Thomsen de KR. ERSLEV. Apud J. (o que não deve estranhar uma vez que D. Afonso
Ferraro VAZ, op. cit. p. 383.
III viveu vários anos em França na qualidade de
Conde de Bolonha), o rei ostenta, não a espada, como é mais comum na iconografia régia
nacional, mas sim um ceptro rematado pela cruz. Infelizmente, apenas temos notícia desta

470
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

moeda através de reproduções desenhadas e não a partir do original ou de fotografia da


mesma.
Quanto às rainhas portuguesas, nenhuma representação, entre as que conhecemos,
testemunha o uso do ceptro, ou vara, como insígnia do poder.
Na estátua dita de D. Afonso Henriques, do Museu Arqueológico do Carmo, para
além das insígnias já referidas salienta-se outra, inédita na iconografia régia portuguesa.
Trata-se de uma cruz que o monarca segura com uma das mãos a partir do braço vertical
inferior da mesma. Não descartamos totalmente a hipótese de esta cruz ter constituído o
remate de um ceptro, entretanto desaparecido, uma vez que a estátua se encontra truncada,
como sugeriu J. Mattoso, embora nos pareça algo impróprio e até desadequado que o rei
fosse representado a segurar o ceptro desta forma e não pela vara do mesmo, como é, aliás,
uso comum e frequente. A esta questão voltaremos mais adiante. Por agora, julgamos
pertinente relacionar este atributo iconográfico de uma estátua que acreditamos ser
póstuma à existência física de D. Afonso Henriques, com o relevo simbólico que é dado à
cruz, no decurso do seu reinado, e de como este símbolo maior do Cristianismo, não
apenas passou a integrar o escudo do rei, a partir da Batalha de Ourique, como também é
relembrado no epitáfio do monarca. Embora este epitáfio já não exista, substituído por
altura da renovação dos túmulos régios de Santa Cruz de Coimbra durante o reinado de D.
Manuel I, foi transcrito por Frei António Brandão. Em dois dos versos que o compunham
podia então ler-se:
quod crucis hic tutor fuerit, necnon cruce tutus.
Ipsi clipeo crux clipeata docet
Na tradução do próprio F. A. Brandão:
“Bem mostra que foi defensor da cruz de Cristo defendida por ele o seu escudo
real, no qual se vê a mesma cruz repartida em escudos menores82”
É, pois, provável, que a cruz que vemos na mão desta estátua, que ao que tudo
indica representa o primeiro rei de Portugal, pretenda evocar o valor simbólico que esta
adquiriu durante o seu reinado, de acordo com a visão que o rei havia tido durante a

82Frei António BRANDÃO, Monarquia Lusitana, Parte III (1642), Lisboa, Imprensa Nacional
Casa da Moeda, 1973, f. 267.

471
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

batalha de Ourique, tornando-se, ela própria, emblema da luta travada pelo rei contra os
infiéis, alargando os territórios da Cristandade e defendendo a cruz de Cristo. Argumento
assaz relevante, na medida em que foi este o usado junto da Santa Sé, na procura de
reconhecimento de Portugal como reino independente de Leão e de D. Afonso Henriques
como rei de direito. Mas esta sobrevalorização da cruz, e a sua tomada como emblema de
um rei ou de um reino, tem antecedentes peninsulares na Alta Idade Média, e basta que
recordemos a importância da Cruz dos Anjos e da Cruz da Vitória para os reis asturianos,
Afonso II, o Casto (†842) e Afonso III (†909) respectivamente, emblemas dos monarcas e,
acima de tudo, emblemas da própria monarquia, cujo poder assentou, tal como na
monarquia portuguesa, na luta contra o Islão, e que já tivemos oportunidade de nos referir
na Parte I deste estudo.
Nada mais natural, por isso, que uma estátua póstuma que homenageia e recorda o
rei, desse destaque à cruz de Cristo, colocada nas suas mãos como que a sublinhar o valor e
intenções de um elemento de alto valor religioso, que passou a constar do seu escudo
pessoal e, depois, das armas nacionais83. De resto, a cruz ou cruzes, também são usadas,
posteriormente, na iconografia de outros monarcas portugueses. Talvez não seja abusivo
questionar o facto da coroa com que D. Sancho I é representado nos desenhos dos já
citados dois documentos, ser rematada, não com florões ou flores-de-lis, como era mais
habitual noutros reinos de então, mas sim com cruzes, elemento que poderá estar
relacionado com a importância deste símbolo cristão para o reinado de D. Afonso
Henriques, sendo aqui relembrada numa insígnia pessoal do seu sucessor. Também a
representação de D. Fernando I, nas dobras gentis, atrás referidas, apresenta duas cruzes a
ladear a figura do rei.

83Cf. Marquês de ABRANTES, “Da origem das armas de Portugal”, Lisboa, 1984, (Sep. de
Armas e Troféus, 5.ª série, 3-4, 1982-1983).

472
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

1.2.3.3 O globo
No que se refere ao globo da soberania (o globus), normalmente rematado por uma
cruz e presente em vários retratos de aparato de reis medievais ocidentais, apesar de ser
uma insígnia habitualmente conotada com o poder imperial (a sphaera), a verdade é que
vários foram os monarcas que não interpretaram esta insígnia como um privilégio
exclusivo dos imperadores, como atesta o texto do Espelhos dos Príncipes que Sancho IV de
Castela mandou redigir entre 1292 e 1293. Neste texto, atribui-se ao globo uma explicação
alegórica, bem como à iconografia régia, de um modo geral.
Em Castela, o globus não é referido com frequência nos ordines do século XIII,
aparecendo pela primeira vez no ordo redigido para a coroação de Afonso XI, mencionado
como “una manzana de oro”, que deve ser entendido à luz da sua fonte de inspiração, isto
é, de um ordo imperial do século XIII. Segundo P. Schramm, em Castela, o globus não
parece ter sido interpretado como uma insígnia real em si mesma. No que respeita à
iconografia, refira-se o exemplo de um selo do imperador Afonso VII, cuja fonte de
inspiração foi um selo imperial, onde se pode ver o rei a segurar o globo com a mão direita.
Em Leão, o jacente do rei Ordonho II, na Catedral de Leão, datado de 1299, representa o
monarca vestido com trajos cerimoniais, a segurar o globo e o ceptro (este último já
desaparecido)84. Já em Aragão, a situação é algo distinta no que se refere ao valor atribuído
a este objecto: quando em 1204, Pedro II foi coroado pelo Papa Inocêncio III, recebeu,
juntamente com as insígnias régias mais frequentes, o globo imperial85, ao que tudo indica
para fazer minguar o que até então haviam sido os direitos exclusivos do imperador
alemão86.
Em França, ao contrário de Inglaterra ou de outros países stentrionais, o globus não assume
especial relevo na apresentação pública dos monarcas, ambora alguns exemplos, sobretudo
de carácter mítico-simbólico valorizem este atributo, como são exemplo algumas
representações de Carlos Magno. Refira-se o ceptro de Carlos V ou a imagem de majestade
de Carlos Magno nas Grandes Chroniques de France, também do reinado de Carlos V.

84 Cf. Ângela FRANCO MATA, op. cit., 1998, p. 396.


85 O aspecto deste globo usado pelos reis aragoneses é descrito por Muntaner e traduzido por
Schramm (op. cit., pp. 130-131): “sobre la esfera dorada se levantaba un lirio adornado com piedras
preciosas, que llevaba sujeta una cruz, ricamente adornada, tambiém, com pedrería”.
86 Cf. Percy SCHRAMM, op. cit., 1960, pp. 126-134.

473
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Já os reis ingleses demonstram forte apreço por esta insígnia, como atestam vários
exemplos iconográficos. Citem-se apenas alguns mais significativos, como o selo de
Henrique III (1218), ou o florim de Eduardo III (1344), ou, ainda, uma das iluminuras do
Apocalipse e Ordo da Coroação. Estes exemplos encontram a sua fonte de inspiração nas
representações de Cristo em Majestade, segurando o globo com uma das mãos.

Selo de Majestade de Henrique III de


Inglaterra.
Apud Age of Chivalry, p. 387.

Segundo Selo de Majestade de Eduardo


III de Inglaterra.
Apud Age of Chivalry, p. 494.

Coroação de um rei.
Apocalipse e Livro da Coroação.
c.1330-1339, The Master and Fellows of Cosrpus Christi College,
Cambridge. Ms 20, fol. 68
Apud Paul Binski, Westminster Abbey…, p. 129.

474
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A única representação do globus na iconografia régia da primeira dinastia portuguesa


é a que podemos observar no já citado selo autárquico de 1352, sustentado por uma das
mãos de uma figura coroada, que identificamos como sendo D. Afonso IV, e a que
teremos oportunidade de nos referir, de forma mais desenvolvida, em capítulos seguintes.

Pormenor da figura do rei (no selo camarário de Lisboa (1352, reinado de D.


Afonso IV), sentado num trono e a segurar com uma das mãos o globo.
Foto: IANTT

Esta insígnia, que até aqui passou despercebida nos estudos realizados sobre este
interessante selo, vem demonstrar que, também em Portugal, os reis não entendiam o globus
como uma insígnia exclusivamente imperial, não obstante a sua representação não constar
em nenhuma outra composição artística nacional entre os séculos XII a XIV. Não deixa de
ser interessante, porém, que seja precisamente nesta obra, que se reveste de tanto
significado político, mas também religioso, como veremos, que o rei apareça a ostentar o
globus.

1.2.3.4 O trono
Não obstante o facto de não conhecermos hoje nenhum trono português
pertencente a algum dos nossos reis da primeira dinastia (o único trono que se conhece
terá pertencido a D. Afonso V, afastando-se, assim, das cronologias de que nos ocupamos),
a iconografia destes tempos deixou-nos parcos exemplos, mas que entendemos não poder
deixar de analisar.
A inexistência de iluminuras que representem reis e rainhas nacionais entre os
séculos XII a XIV constitui um significativo obstáculo à nossa percepção do que terão sido
os tronos reais, no seu desenvolvimento ao longo destas centúrias. Em Espanha, a

475
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

abundância de iconografia regia, nos seus vários suportes, permite ter uma percepção mais
clara desta evolução. Nas iluminuras do Tombo A da Catedral de Compostela podemos
observar alguns tronos de reis e rainhas do século XII, nomeadamente de Afonso VII e de
D. Urraca, obedecendo à tipologia trono-banco87, no caso de D. Urraca, e à tipologia do
trono salomónico (com cabeças de leão a rematar os braços da cadeira e as patas a terminar
os pés da mesma) no de Afonso VII. Também o Livro das Estampas da Catedral de León
representa, maioritariamente, a tipologia trono-banco, à excepção do trono em que se senta
Ramiro III, cujos braços e pernas se identificam com as figuras de dois grifos88. Nas
Cantigas de Santa Maria, o trono simples em que Afonso X se senta é, claramente, um trono-
banco, enquanto que, no selo de Sancho IV, embora não possamos averiguar a existência
de um espaldar, o trono aqui representado sugere uma evolução diferente, mais
consentânea com a que verificamos em França ou em Inglaterra.

D. Urraca de Leão e Castela. (modelo de David entronizado. (modelo de trono com braços
trono-banco) rematados por figuras alegóricas)
Tombo A da Catedral de Santiago de Bíblia, Antigo Testamento. Biblioteca da Ajuda, Lisboa. Foto:
Compostela. Apud José Matoso, História de José Pessoa/DDF/IPM
Portugal, 2.º vol., p. 49. Foto: Godo-Foto,
Barcelona.

87A mesma tipologia que designamos por trono-banco, podemos observar no reverso de um
selo de Westminster, onde se representa Eduardo, o Confessor, entronizado (c. 1200); numa iluminura de
uma cópia do Fuero Juzgo (séc. XIV, BNL); ou no Saltério de Westminster (c. 1250).
88 Sobre os tronos representados nesta obra veja-se Fernando GALVÁN FREILE, op. cit.,

1997, pp. 62-72.

476
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Em Portugal, uma das composições artísticas mais recuadas no tempo, que nos
permite entender a morfologia de um trono medieval, é o que podemos ver na
representação de Cristo em Majestade na arca funerária de D. Rodrigo Sanches (meados do
século XIII).
Posteriormente, o já referido selo camarário do
reinado de D. Afonso IV, correspondendo aos meados
do século XIV, oferece-nos um segundo e intessante
exemplo dos modelos de tronos reais desta época, uma
vez que a representação de D. Afonso II, na face dos pés
do túmulo de D. Urraca, dada a profusão de figuras que
rodeiam o monarca, não permite percepcionar o tipo de
trono em que este se senta.
Na primeira representação, verificamos o modelo
tipológico do trono-banco, muito simples, sem espaldar,
Cristo em Majestade. apenas rematado lateralmente por duas colunas
Face longa da arca sepulcral de D. Rodrigo
Sanches. Meados do século XIII. Mosteiro de S.
Salvador de Grijó. Foto: P.A.F. encimadas por meias-esferas.

No selo português podemos observar a figura do rei entronizado, sendo este trono
mais semelhante a uma cadeira do que o referido no trono do túmulo de D. Rodrigo
Sanches. Apesar de não possuir grande aparato compositivo, não apresentando os leões
que podemos ver em muitas iluminuras que retratam reis franceses89, claramente na
evocação do trono de Salomão, ou quaisquer outras figuras zoomórficas ou mitológicas90,
esta sede, que não podemos adivinhar se seria de pedra ou de madeira, apresenta banco com
pés decorados, almofada e espaldar não muito alto, delimitado por colunas.
Esta imagem recordou-nos um trono frustre de pedra, referido por Júlio de
Castilho91 e já analisado anteriormente por Herculano, com gravura publicada no Panorama
(t.IX, p.20), e entretanto desaparecido. Segundo este último autor, encontrava-se na capela-

89Citem-se outros exemplos desta tipologia de tronos, tão comum em toda a Baixa Idade
Média, como por exemplo o trono que podemos observar num selo pessoal de Luís IX de França (ou,
ainda, nas muitas iluminuras que representam Carlos V de França na suas Grandes Chroniques.
90 Como o trono em que se senta o Rei David numa iluminura que ilustra um dos fólios de uma

Bíblia do século XIII, pertencente à Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda.


91 Júlio de CASTILHO, op. cit., vol. V, ed. 1936, pp. 230-236.

477
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

mor da Sé de Lisboa, à direita do Altar-mor e, pelas notícias dadas por Castilho e por
António do Couto, em 1936 passou a integrar o museu das obras da Sé. Herculano
entendeu tratar-se da cadeira-trono onde os monarcas da primeira dinastia ouviam o povo
em audiência92, enquanto que Castilho julgou poder ver nela uma cadeira prelacial, à
semelhança de outras que ainda se conservam em basílicas italianas e, ainda, de um
exemplar que se conserva na Catedral de Reims.
A nossa opinião vai de encontro à proposta de Herculano, mais não fosse pelo
facto de esta cadeira ter sido entendida, ao longo dos séculos, como afecta aos
representantes máximos do poder temporal, o que justificou o acrescento, que lhe foi feito
em 1626, de um brasão com as armas de Portugal, gravado a tinta preta no espaldar da
cadeira pétrea. Não sabemos a data exacta da sua realização, mas não nos repugna que se
trate de uma cadeira medieval, ao contrário do que argumentava António do Couto93, e que
esta tenha sido usada pelos reis portugueses da primeira dinastia e, até, em cronologias
posteriores.

Cadeira de pedra (trono) com as armas de Portugal pintadas


no espaldar.
O desenho representa-a quando se encontrava no deambulatório da
Sé de Lisboa, tendo sido depositada, aquando dos restauros da Sé no
Museu das Obras do Edifício. Actualmente desaparecida.
Apud. Júlio de Castilho, Lisboa Antiga, (2.ª ed.), vol. V, p. 231.

92 Herculano argumenta a sua hipótese referindo-se ao costume irem os reis, ou chefes do estado ouvir
os povos nas cathedrais, ou ás portas d’ellas, é anterior, é só por algum tempo contemporâneo, da monarchia. Quem nos
afiança que este pequeno monumento não seja obra dos primeiros soberanos? A data, que intenta dar como prova da sua
origem, não poderá por ventura ter sido alli posta como indicadora do seu reparo? Castilho relembra que este
costume não é só por algum tempo contemporâneo da monarchia, citando o exemplo de D. Fernando, que
aprazou o povo para a alpendrada de S. Domingos, a fim de ouvir as justificações sobre a reacção
negativa ao seu casamento com D. Leonor Teles, ou, ainda, as audiências de D. Pedro I. Cf. Júlio de
CASTILHO, op. cit., vol. V, ed. 1936, pp. 232-233.

478
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Apresenta algumas semelhanças interessantes com o trono representado no referido


selo do tempo de D. Afonso IV (assento simples e espaldar não muito alto, ladeado por
colunas), à excepção da ausência dos quatro pés em jeito de colunas, que poderão ter sido
removidos em data incerta.
Embora não possamos afirmar ser este o modelo de trono que serviu de inspiração
ao autor da composição sigilográfica, não gostaríamos de passar em branco a sua
referência.

O trono românico que ainda se conserva na


catedral de Girona segue uma tipologia semelhante,
tendo sido acrescentado de vários elementos no século
XIV, o que lhe alterou a fisionomia, mas não deixa de
ser um interessante elemento para colocar em paralelo
com o trono português desaparecido e para melhor
perceber a existência destas peças nos acervos das
antigas catedrais94.
Por outro lado, a concepção que os artistas

Trono românico lavrado em pedra.


tinham de um trono real dotado de maior
Séc. XII, com acrescentos realizados em 1347.
Catedral de Girona.
monumentalidade é, por exemplo, o que vemos na
Apud Francesca Español, El Gótico Catalán, p.
183. iluminura do prólogo do Speculum historiale de Vicente
de Beauvais, dedicado a S. Luís, onde se representa es-

te monarca entronizado, ou, em Portugal, o trono que o vemos no vértice superior da Roda
da Vida/Roda da Fortuna do túmulo de Pedro I, obra da segunda metade do século XIV.
Não significa, porém, que este trono pretendesse reproduzir o trono real onde D. Pedro se
terá sentado, mas sim um trono dotado de magnificência quase tão imponente quanto o
trono de Cristo em Majestade a presidir ao Juízo Final no túmulo de D. Inês de Castro95. O
que se pretende, em ambos os casos, é dotar estas imagens da maior solenidade possível,

93Observação em nota (1), ao texto de Júlio de CASTILHO, op. cit., vol. V, ed. 1936, p. 231.
94 Cf. Francesca ESPAÑOL, El Gótico Catalán, Barcelona, Fundación Caixa Manresa/Angle
Editorial, 2002, pp. 182-182.
95 Outras tipologias de tronos podem ser contempladas neste túmulo, nomeadamente aquele

em que se senta Pilatos, numa das cenas da Paixão de Cristo, lavrada na arca tumular.

479
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

tal como acontece noutros exemplos da época nos vários países. Qualquer correspondência
com o objecto real fica, assim, comprometida pela impossibilidade de o confirmarmos.
A mesma situação se verifica nas
dobras gentis de D. Fernando I, que diferem
das dobras pé-terra pelo facto de, nestas
últimas, o rei ser representado de pé,
enquadrado por uma arquitectura gótica
flamejante, enquanto que, nas primeiras,
ainda que a decoração possa parecer
idêntica, o rei encontra-se sentado no que
pode ser identificado como um trono de
grande aparato cenográfico e, certamente,
sem correspondência com o objecto real.
Esta tendência para a monumentalidade dos
tronos, que tendem a assemelhar-se cada
vez mais a cenários arquitectónicos e menos
São Luís entronizado.
Speculum historial. Vicente de Baeuvais. a uma cadeira, verifica-se, também, na
Terceiro quartel do séc. XIII.
Dijon, França. iconografia régia de outros países, em
Biblioteca Municipal, Ms. 568, fl. 9. Foto: I.R.H.T.-C.N.R.S
Apud Jacques le Goff, Saint Louis, f. 15. exemplos tão ilustrativos como no já referi-

do selo de Eduardo III (1327) de Inglaterra;


na iluminura da coroação de um rei, no
Apocalipse e Livro da Coroação (c. 1330), ou em
duas moedas diferentes de Eduardo de
Woodstock, o Príncipe Negro (Chaise d’Or e
Moeda de Eduardo Woodstock, o Príncipe
Negro. Séc. XIV. Pavillon d’Or – 1362-1362), contemporâneo

de D. Fernando I.

480
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

1.3 Notas sobre os “retratos” e outras formas de identificação dos descendentes varões
O aparato das representações dos nossos reis possui, como já vimos, elementos de
identidade com os “retratos de aparato” de alguns cavaleiros. Existe, pois, uma partilha de
informação iconográfica e iconológica nas representações destes homens laicos, que assumem
diferentes tipos de poder. É natural que assim fosse, na medida em que, tanto os reis como os
nobres, são senhores da guerra, bem como do exercício da justiça feita fora dos meios
clericais. Por isso, um conjunto de atributos iconográficos é comum a ambos, pois ambos se
sujeitam aos mesmos rituais de iniciação da cavalaria e partilham actividades em comum: a
guerra e a caça.
A representação dos filhos varões dos nossos monarcas obedece a fórmulas
iconográficas que serão aqui abordadas a partir dos exemplos dados, na sua maioria, pelos
filhos ilegítimos, pois, dos legítimos, apenas trataremos um caso de excepção que julgamos
ter conseguido identificar, já que dos restantes não existem “retratos”. Sempre que necessário,
iremos recorrer a comparações com outros elementos pertencentes ao universo social da
nobreza, mas não ao seio da família real e, ainda a um elemento da burguesia do século XIV.
São as estátuas jacentes, bem como algumas figurações que se podem observar nas suas
arcas sepulcrais, que melhor espelham esta realidade, uma vez que não possuímos quaisquer
outros registos iconográficos.
No que se refere às indumentárias nos retratos dos nossos cavaleiros, em estátuas
jacentes, quer sejam eles filhos dos reis, quer sejam apenas elementos da nobreza, dificilmente
encontramos paralelos com o que podemos observar em França, Inglaterra ou Alemanha,
onde predominam as representações de cavaleiros vestidos com armaduras e/ou cotas de
malha. A realidade portuguesa revela-nos que a opção foi, maioritariamente, a dos trajos de
corte e menos a procura de uma conotação com a imagem da guerra, da heroicidade em
campo de batalha, tal como já havíamos sublinhado em capítulo anterior. Aliás, saliente-se,
essa opção estende-se aos temas escolhidos para decoração das faces dos sarcófagos, onde a
eleição temática se centra em temas representativos de actividades que se afastam da principal
função dos cavaleiros – o serviço militar – ou seja, actividades próprias e exclusivas da
cavalaria em tempos de paz, ou, simplesmente, temas religiosos ou heráldicos.

481
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A estátua jacente de D. Rodrigo Sanches (†1245 - filho ilegítimo de D. Sancho I)


constitui a mais antiga representação de um filho de um rei português da primeira dinastia.
Podemos observá-la na tampa do seu monumento funerário e é datável de meados do século
XIII. Este jacente do bastardo régio representa-o com a dignidade solene de um grande
cavaleiro, ou, melhor, de um importante aristocrata. Veste perpunto sobre a armadura de
cavaleiro, e por cima, presa sobre os ombros, uma capa que se estende um pouco abaixo dos
joelhos, deixando perceber a presença das joelheiras e dos pés calçados com botinas e
esporas, tal como já havia descrito e analisado Mário Jorge Barroca1, e que pelas suas
características ajudam a datar esta obra da centúria de Duzentos.

Jacente de D. Rodrigo Sanches. Meados do século XIII (d. 1245). Igreja do Mosteiro de S. Salvador de
Grijó. Foto: PAF.

1 Mário Jorge BARROCA, “ Jacente de D. Rodrigo Sanches”, Pera Guerrejar. Armamento Medieval no
Espaço Português, Palmela, Câmara Municipal, 2000, p.83 e IDEM, “Armamento medieval”, Nova História
Militar de Portugal, vol. I, (coord. José Mattoso), Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, pp. 130-132.

482
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor dos pés do jacente de D. Rodrigo


Sanches.
Foto: PAF

Pormenor da parte superior do jacente de D. Rodrigo Sanches.


Foto: PAF.

Se compararmos este jacente com os de dois filhos bastardos de D. Dinis, já da segunda


metade do século XIV, compreendemos a evolução da moda masculina da aristocracia
portuguesa e constatamos as muitas semelhanças que existem entre estes dois últimos.
Referimo-nos aos jacentes do Conde D. Pedro e de D. Fernão Sanches. Tanto os rostos
destas duas estátuas, agora com longas e penteadas barbas e cabelos igualmente longos, como
as indumentárias, caracterizadas pelo uso de túnica e longa capa, que escondem, em grande
parte, a anatomia da figura, fazem com que difiram substancialmente do jacente de D.
Rodrigo Sanches, aproximando-se do aspecto geral que caracteriza os jacentes do rei D.
Dinis, de Bartolomeu Joanes, de D. Pedro I ou de D. Lopo Fernandes Pacheco.
Trajos de corte, sem dúvida, mas a presença de atributos como a espada, as esporas, e
até o cão (normalmente um mastim ou um lebreu) aos pés das estátuas jacentes, evocam
outros meios mais aguerridos, onde a coragem e a bravura dos cavaleiros são postas à prova.
Se por vezes alguns gestos demonstram a intenção ou a capacidade dos cavaleiros de
retirarem as espadas das suas bainhas2, o facto de estas últimas serem adornadas com fitas
decorativas, onde se podem relevar inscrições, demonstram-nos que a função deste atributo

2 Embora o exemplo mais expressivo seja fornecido pelo jacente de um nobre da corte de D.
Afonso IV (Lopo Fernandes Pacheco) e depois pelo jacente de D. Pedro I, a posição de uma das mãos do
jacente de D. Fernão Sanches, tocando o punho circular da espada que repousa ao seu lado, adverte para
um estado de semi-vigilância e para a operacionalidade do cavaleiro, tal como já tivemos oportunidade de
referir.

483
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

é, antes de mais, a de conferir às representações um carácter de aparato, como se estes


homens tivesse pousado para um retrato com as suas melhores vestes e as suas melhores
insígnias. O trajo com que é representado o Conde D. Pedro3 é, talvez, o mais solene e
requintado de todos, uma vez que é adornado com um cordão pendente com vários nós e
uma borla de remate, sendo, claramente, uma indumentária de distinção social, à medida da
importância do “retratado”, como já havia assinalado Vasco Moreira4.

No jacente de D. Martim Afonso


Chichorro, filho bastardo de D. Afonso III,
não obstante o facto de ser representado
com o hábito franciscano, a presença da
espada embainhada e disposta ao correr do
corpo sob a mão direita, vem lembrar a sua
condição de nobre cavaleiro, mesmo que o
seu carácter geral se aproxime da imagem de
um irmão da Ordem Terceira de S.
Francisco.
Outro elemento que difere da
realidade estrangeira coeva é a ausência de
posturas tipicamente nobres nas estátuas dos
cavaleiros. Isto é, não encontramos nenhum
exemplo (entre os que chegaram aos nossos
dias), de cavaleiros representados com as
Estátua jacente de D. Martim Afonso Chichorro.
Séc. XIV. Prov. Igreja de Santa Clara de Santarém. Museu pernas cruzadas, tão característica dos jacen-
Municipal de Santarém. Foto: Museu Municipal de Santarém
(cortesia).

tes medievais ingleses, recaindo a opção pela representação dos cavaleiros em posição de
repouso (de defunto).

3 Infelizmente não conseguimos obter nenhuma fotografia que permita uma visão frontal do
jacente do Conde D. Pedro.
4 Cf. Vasco MOREIRA, “A igreja de S. João de Tarouca (o túmulo do Conde de Barcelos)”, Arte,

ano 7, n.º 74, Porto, ed. Marques Abreu, Fev. 1911, p. 16.

484
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

No que se refere aos atributos das estátuas jacentes ou das figurações dos respectivos
indivíduos nas arcas funerárias, nada permite diferenciá-los de outros pertencentes ao grupo
social da nobreza, não havendo qualquer insígnia que permita a sua identificação como filhos
de reis. A identificação faz-se, como tivemos oportunidade de referir em capítulo anterior,
através da heráldica (que a partir do reinado de D. Afonso III passa a adquirir uma nova
importância e relevo), que se releva nas arcas funerárias, com maior destaque em alguns
casos, como nos túmulos de Martim Afonso Chichorro ou do Conde D. Pedro, ou mais
discretas, como no túmulo de Fernão Sanches5, ou através de inscrições epigráficas, como a
que ainda podemos ver neste último túmulo, apesar das mutilações sofridas6. Nada relembra,
porém, a filiação materna destes homens, pela sua menor importância, quando comparada
com a ascendência paterna, ou seja, com a linhagem de sangue real.
Também os monumentos funerários de alguns infantes, ainda que não possuam
estátuas jacentes, (impossibilitando-nos, assim, de tecer considerações sobre as suas
representações), demonstram que a identificação do tumulado se faz, antes de mais, pela
heráldica, mais ou menos profusa, como nos casos dos túmulos românicos de infantes não
identificados7, pertencentes ao panteão de Alcobaça, ou através de legenda epigráfica gravada,
como no exemplo único do monumento funerário do infante D. Henrique († 1191), filho de
D. Sancho I e de D. Dulce8.
Relativamente aos túmulos dos infantes de Alcobaça, a sua originalidade e interesse,
para compreensão da evolução da arte funerária portuguesa ao longo do século XIII, foi
recentemente observada por José Custódio Viera da Silva9 que, dada a impossibilidade de
fazê-los corresponder aos nomes dos respectivos infantes, classificou-as por Arcas I, II e III,

5 Vergílio CORREIA, op. cit., 1924, p.31, chamou a atenção para a identificação entre os escudetes
do rebordo da tampa do túmulo de D. Fernão Sanches com a heráldica do selo pessoal do bastardo.
6 Leitura da insc. gravada na tampa do sarcófago:

“AQ(u)I IAZ DOM(m) [ferna]N SANC[hes]”. Cf. Mário J. BARROCA, op. cit., vol. I, tomo 2,
2000, p. 1535. O mesmo autor (p.1536) identifica esta inscrição como tendo sido realizada em data
posterior ao óbito e à criação do monumento funerário, provavelmente nos meados do século XV.
7 Sobre estes três túmulos veja-se, entre outros autores, Vergílio CORREIA, Alcobaça II. Mudanças

dos Túmulos Reais, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1929, p. 18; Reinaldo dos SANTOS, op. cit., vol I,
1948, p. 16; Vergílio CORREIA, Obras. Estudos de História da Arte Escultura e Pintura, vol. III, Coimbra,
Universidade, 1953, pp. 26-27; Manuel Luís REAL, “Alcobaça”, Gerhard GRAF, Portugal Roman, vol. I,
Paris, Zodiaque, 1986., p. 82; José Custódio Vieira da Silva, op. cit., 2003, 45-55.
8 Cf. Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2000, vol. II, t. I, pp. 503-505 (com bibliografia anterior).
9 Cf. José Custódio Vieira da SILVA, op. cit., 2003, pp. 45-55.

485
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

procurando classificá-los de acordo com uma sequência cronológica. Adoptamos aqui a


mesma enumeração para mais fácil compreensão.
O túmulo I constitui um monumento de boa lavra, esculpido em baixo-relevo, cuja
decoração da arca é constituída por palmetas inseridas em formas circulares encadeadas, que
se dispõem sequencialmente, interrompidas apenas por um círculo, onde se inscreve um
estrela de oito pontas.

Túmulo I de infante. Tampa do túmulo II de infante.


Igreja do Mosteiro de Alcobaça. Igreja do Mosteiro de Alcobaça.
Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio
48. do Mosteiro de Alcobaça, p. 46.

Num estreito friso que constitui o remate superior da arca, em cada uma das
extremidades, relevam-se escudetes, agora lisos, mas, outrora, certamente reveladores das
armas portuguesas, a separar elementos geométricos.
A mesma sequência de palmetas10 (embora reveladora de modelos e de mão
diferentes) num encadeamento feito pelos círculos que lhes servem de moldura, repete-se
numa das abas da tampa sepulcral. Na outra, o espaço divide-se entre duas sequências de um

Este motivo aparece também, por exemplo, numa tampa se sarcófago românico da igreja de
10

Paço de Sousa.

486
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

entrelaçado de “fita”, divididas a um terço da secção por uma banda horizontal de triângulos
encadeados. A ladear, na vertical, entre formas abstractas, representam-se três escudos com as
armas de Portugal antigo, ao que se seguem outras formas geométricas, tudo inserido numa
moldura que lembra bastante a forma de uma lâmina de espada11.

No túmulo II, duas das faces da arca


retomam os motivos vegetalistas e
geometrizantes, através do encadeamento de
círculos e triângulos, emoldurando e
encimando meias palmetas, fortemente
estilizadas. As quatro faces da arca são
delimitadas por estreitas colunas, rematadas,
em cima e em baixo, por folhagens. Nos
estreitos bordos laterais da tampa, recortam-
se escudos com as armas de Portugal antigo,
esculpidas em baixíssimo relevo, dispostos
dois a dois. Na face correspondente aos pés

Túmulo II de infante.
do túmulo, repetem-se os escudos, agora
Igreja do Mosteiro de Alcobaça.
Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro
com maiores proporções, três na parte
de Alcobaça, p.
superior (correspondente à tampa), com um

maior ao centro e dois mais pequenos a ladear, e seis na parte inferior (arca), dispostos em
duas fiadas e repetindo o esquema anterior.

Para José Custódio Vieira da SILVA, ibidem, p. 47, “A linguagem simbólica da decoração
11

presente nesta arca é praticamente inexistente. A composição esculpida que lhe dá conteúdo formal está
intimamente associada a motivos que perpassam quer pelas iluminuras dos códices (de modo particular
pelos que, devido ao seu carácter abstractizante, saíram dos sciptoria cistercienses, a começar pelo de
Alcobaça), quer pela ourivesaria românica e pelos marfins, quer ainda pelos tecidos preciosos. Trata-se, em
última análise, da transposição para a pedra dos desenhos abstractos e das composições de ritmo
estereotipado das colgaduras rituais que, muitas vezes bordadas a ouro e prata, cobriam as arcas funerárias
colocadas nos pendões régios e da alta nobreza”.

487
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenores do túmulo II de infante.


Igreja do Mosteiro de Alcobaça.
Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro
de Alcobaça, pp. 47 e 50.

Na parte superior da tampa de duas águas,


um requintado “tapete geométrico”, de círculos
entrelaçados, não contempla qualquer heráldica.Em
relação ao túmulo I, este segundo enfatiza a
linhagem do tumulado de forma mais clara e
acentuada, denotando “uma consciência mais
assumida dos valores heráldicos, uma vez que estes
escudos ganham um desenho e ocupam um espaço
mais consentâneos com o seu valor social e mental,
a que a pintura primitiva, que certamente

Pormenor da decoração da tampa do túmulo II


ostentariam, dava o brilho dos metais que hoje se
de infante. Igreja do Mosteiro de Alcobaça.
Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio
não pode observar”12.
do Mosteiro de Alcobaça, p. 49.

No túmulo III, o único deste conjunto em que as faces da arca apresentam decoração
figurativa (a ela nos referiremos em capítulo posterior), verifica-se, a nível da decoração das

12 IDEM, ibidem, p. 49.

488
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

duas abas da tampa, a repetição do motivo geométrico que conjuga círculos interpenetrantes,
formando um tapete de gosto abstractizante, de influência céltica ou simplesmente
altimedieval, e também românica, onde, agora, e diferenciando-se da tampa do túmulo II,
foram inseridos vários escudetes com as quinas portuguesas, no lado direito, e voltando-se a
repetir no lado esquerdo, mas agora alternados com os castelos e os leões, sem escudetes,
símbolos heráldicos de Castela e Leão. José Custódio Vieira da Silva, assinala que esta
decoração lembra os panos bordados com que se cobriam as arcas funerárias, passando para
a pedra os mesmos desenhos, num relevo pouco pronunciado, como se fossem relevos de
um bordado13.

Pormenor da decoração da tampa do túmulo III de infante.


Igreja do Mosteiro de Alcobaça.
Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de
Alcobaça, p. 53.

Túmulo III de infante.


Igreja do Mosteiro de Alcobaça.
Apud José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do
Mosteiro de Alcobaça, p. 51.

A verdade é que, se hoje nos é difícil identificar os infantes sepultados nestes pequenos
túmulos, julgamos que na sua origem, ou pela presença de panos bordados com decoração
heráldica e até mesmo legenda, ou pela junção de um epitáfio junto de cada sarcófago, as
identificações seriam bem mais evidentes.

13 IDEM, ibidem, p. 53.

489
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

1.3.1 O infante D. João. Identificação de um jacente à luz da iconografia


Depois das dúvidas que levantámos quanto à identificação do jacente comummente
designado como representando D. Maria Afonso (II), filha ilegítima de D. Dinis, sepultada na
igreja do Mosteiro do Odivelas, impõem-se agora que apresentemos os nossos argumentos,
para que melhor se compreenda a nossa proposta de identificação.
Francisco Brandão (1672) enumerou as pessoas de sangue real sepultadas no Mosteiro
de Odivelas, para além de D. Dinis: O infante D. João neto delRey Dom Dinis, & filho del-Rey Dom
Afonso Quarto, o qual está na Capella de S. Pedro. A senhora Dona Maria Afonso, filha bastarda delRey
Dom Dinis, Religiosa professa deste Convento a sepultura da qual está na parede do claustro, que responde à
da Capella de S. João Baptista14.
D. João foi filho de D. Afonso IV e de D. Beatriz e terá falecido com cerca de um ano
de idade, tendo sido sepultado na igreja do Mosteiro de S. Dinis de Odivelas, onde jazia já o
seu avô, D. Dinis e a sua tia, D. Maria Afonso (II). Caetano do Sousa aponta as datas de 23
de Setembro de 1326 para o seu nascimento e de 21 de Junho de 1327 para o óbito, baseado
em informações de autores anteriores, fazendo fé na sua veracidade, mas sem informar quais
as fontes que proporcionaram esta informação.
No pequeno comentário que faz sobre o infante D. João, este último autor nota que
foi sepultado no Convento de Odivelas, em túmulo de pedra em huma Capella junto da porta da Sacristia, e
que se este túmulo é o que tem hum vulto de marmore, o retrato representa differente idade, do que a que
dizem os nossos Escritores tinha o Infante quando morreo, porque a estatua mostra ser de mais de dez
annos15.
Vilhena de Barbosa refere-se também à existência de um túmulo de pedra, embora
não estabeleça qualquer relação com um monumento funerário específico16. Borges de
Figueiredo refere que, segundo Acenheiro, O ynfãte Dom Joam, jás em Odivellas aos pees de seu avoo
Dom Denis Rei, mas que, segundo “outros nossos escriptores, que mencionam o seu
fallecimento, dizem que foi sepultado na capella de S. Pedro”17.

14 Fr. Francisco BRANDÃO, op. cit., Parte VI, ed. 1980, L. XIX, c. 21.
15 António Caetano de SOUSA, História Genealógica…, Tomo 1, liv. II, (1735-1748), p. 193.
16 Cf. Inácio Vilhena de BARBOSA, “Mausoléo...”, op. cit., 1863, pp. 207 –208.
17 Borges de FIGUEIREDO, O Mosteiro de Odivelas. Casos de Reis e memorias de freiras, Lisboa, 1889,

p. 186.

490
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

O que é realmente interessante verificar, é que Caetano de Sousa, na primeira metade


do século XVIII, não encontrou qualquer motivo que o repugnasse considerar este túmulo
como pertencente a um infante, estranhando apenas a diferença de idade com que este é
representado na sua estátua jacente, contrariando o que dizem os nossos Escritores.
Ora, sabemos, como a historiografia artística portuguesa tem vindo a considerar,
desde Borges de Figueiredo (1889) até aos nossos dias18, que o túmulo seja a D. Maria
Afonso (II), filha bastarda de D. Dinis e religiosa cisterciense do mosteiro de Odivelas.
Assim, Figueiredo começa por notar que mesmo ao fundo da abside lateral da banda da
epistolla, ou capela de S. Pedro, que sempre conservou esta invocação, vê-se um túmulo de pedra, occupando o
local do antigo altar. Este tumulo, sem epitaphio, é um enigma19.

Perfil do jacente do infante D. João, filho de D. Afonso IV e D. Beatriz, identificado, até ao momento, como sendo representação de
D. Maria Afonso (II). c.1327-1330.
Capela de S. Pedro/Igreja do Mosteiro de Odivelas.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Relembramos que, em capítulo anterior, colocámos as nossas muitas dúvidas a


respeito desta identificação, pela estranheza que nos causou a ausência de um conjunto de

18Vergílo CORREIA, op. cit., 1924, p. 38, não indica o nome da personagem aí tumulada, mas
refere-se-lhe como “O túmulo de uma dona de sangue real”, pelo que podemos interpretar que tinha
opinião pessoal sobre o assunto ou, então, que a proposta de Borges de Figueiredo não o convenceu
totalmente. Nunca o saberemos; Reynaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, p.23, ainda que coloque o
nome de D. Maria Afonso com interrogação, considera que “representa uma dona (D. Maria Afonso ?) de
mãos postas, como as da Sé, e que pode datar-se dos meados do século XIV”; IDEM, Oito Séculos de Arte
Portuguesa: História e Espírito, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional de Publicidade, 1970, p.254, onde o autor já
não interroga a identificação e refere-se-lhe como sendo de D. Maria Afonso; Pedro DIAS, op. cit., 1986,
vol. IV, p.123, indica que “No mesmo mosteiro de cistercienses está outro túmulo de um membro da
família real, concretamente o de D. Maria Afonso, filha natural de D. Dinis, falecida em 1320”; Manuela
Maria Justino TOMÉ, Mosteiro de S. Dinis de Odivelas. Estudo Histórico-Arquitectónico. Acções de Salvaguarda do
Património Edificado, Dissertação de Mestrado em Recuperação do Património Arquitectónico e
Paisagístico, Évora, Universidade de Évora, 1995, p. 154; Dionisio DAVID, Escultura Funerária Portuguesa
do Século XV, vol. II, p. 128; Mário Jorge BARROCA “Escultura funerária”, Carlos Alberto Ferreira de
ALMEIDA e Mário BARROCA, op. cit., 2003, p. 223: “o sarcófago de D. Maria Afonso (II), bastarda de
D. Dinis (falecida em 1320), que se conserva no Mosteiro de S. Dinis de Odivelas (…)”.

491
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

atributos iconográficos da estátua jacente, conduzindo-nos, agora, à certeza, de que não se


pode tratar de um jacente de mulher e, muito menos, de uma freira cisterciense.
Borges de Figueiredo surpreendeu-se com a fisionomia da figura, e comenta que a
expressão d’aquelles lábios graciosos, a serenidade constante d’aquelle rosto gentil fizeram-me pensar numa
creança martyr; as figuras que sutentam o sarcófago confirmaram a minha supeita20. O autor tece, então,
uma imaginativa e romanceada história, partindo sempre do princípio que o jacente
representa uma figura feminina e jovem, e que as figuras de suporte do túmulo contariam
uma história da vida desta freirinha, filha bastarda de D. Dinis, que teria sido vítima de
tentativa de violação por parte de um cavaleiro de uma qualquer Ordem militar, que, ao não
conseguir levar a cabo os seus intentos, a terá ferido com a sua espada. Seria, assim, por causa
deste episódio que D. Dinis teria feito a filha professar no mosteiro real de monjas
cistercienses21.

Túmulo do infante D. João


Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Ao autor, no tempo em que escreveu, uma figura de cabelos longos, de fisionomia


andrógina e sem barba, só poderia ser identificada com uma mulher, interpretação que não se

19 Borges de FIGUEIREDO, op. cit., 1889, p. 193.


20 IDEM, ibidem, p. 193.

492
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

verificou na percepção que Caetano de Sousa teve da mesma figura, cerca de século e meio
antes. Por outro lado, apesar do desenvolvimento e dos muitos detalhes que Figueiredo dá à
sua história sobre a tentativa de violação, acaba por admitir que não encontrou qualquer
referência a este facto nos autores e crónicas antigas, deixando perceber que mais não é do
que um estimulante trecho literário imbuído do ímpeto romântico da cultura oitocentista.
Procura, também, argumentar, acerca de uma possível mudança do túmulo de D.
Maria Afonso, que se encontrava originalmente na capela de S. João Baptista (no Claustro),
para a capela de São Pedro (capela colateral da cabeceira, do lado de Epístola), sem conseguir
apurar o quando e o porquê dessa alteração, e, ainda, estabelecer a relação entre a filiação de
D. Maria Afonso (II) com a heráldica que decora as faces da arca sepulcral, mas acaba por
admitir que o que é diffícil de explicar, é certamente o leão rompante que se vê figurado no primeiro quartel
[do escudo]22.
Ao analisarmos detalhadamente este monumento funerário, colocando em relação
todas as suas partes constituintes, e tendo em linha de conta o que se sabe sobre as vidas dos
dois descendentes régios sepultados neste cenóbio cisterciense (D. Maria Afonso (II) e D.
João, filho legítimo de D. Afonso IV), podemos perceber que se trata, actualmente, de uma
obra híbrida, que junta partes de dois túmulos diferentes, mas nenhuma delas pertencente ao
alegado túmulo de Maria Afonso, que, aliás, acreditamos, se tenha feito sepultar em campa
rasa, como atrás ficou dito.
A história atribulada do património móvel do Mosteiro de Odivelas deve-se, não
apenas à extinção das Ordens Religiosas em 1834, mas, sobretudo, aos efeitos do terramoto
de 1755, causador de profundos estragos no túmulo de D. Dinis e que, certamente, não terá
poupado os restantes enterramentos que aí existiam. Para além disso, registam-se
movimentações dos túmulos no espaço interior do templo, ainda durante o século XX, o que
poderá ter ajudado a criar a hibridez que agora verificamos.
Quanto ao jacente, trata-se, ao que tudo indica, da representação de alguém jovem, ou
que se quis que fosse “retratado” como jovem, independentemente do sexo a que pertence o
tumulado.

21 IDEM, ibidem, pp. 203-205.


22 IDEM, ibidem, p. 205.

493
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Em primeiro lugar, estranhámos o rosto. Não apenas por não possuir véu, como seria
de esperar na representação de uma mulher que foi freira até à data da morte, mas, também,
porque os seus traços fisionómicos não são totalmente femininos e, porque os cabelos, apesar
de longos (situação comum na moda da época e nas representações, tanto de homens como
de mulheres), são tratados à maneira dos penteados de alguns jacentes portugueses de
cavaleiros do século XIV, podendo-se estabelecer um paralelo muitíssimo evidente com os
penteados do jacentes de Bartolomeu Joanes ou de D. Fernão Sanches (cabelo longo e com
uma franja minúscula, cortada a direito), e diferente dos penteados que vemos em jacentes
femininos.

Rosto do jacente do
infante D. Afonso.

Foto:
José Pessoa/DDF/IPM

494
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Rosto do jacente de Bartolomeu Joanes. Rosto do jacente de D. Fernão Sanches. Meados do


c. 1324 -1327. Capela de S. Bartolomeu da Sé de séc. XIV. Museu Arqueológico do Carmo Foto: José
Lisboa. Foto: José Pessoa/DDF/IMP Pessoa/DDF/IPM

A indumentária é, também, masculina, com longa capa que lhe cobre o corpo quase
por completo, presa junto ao pescoço por firmal circular, e deixando ver a túnica ou vestido
amplo, sem cinto nem marcação na cintura, constituído por pregas verticais e lineares, não
deixando antever a anatomia da figura. Nem sinal de decote generoso, como era então muito
comum na indumentária feminina de aparato, deixando ver o volume dos seios, nem de
outros adereços, como os que vemos em estátuas jacentes de mulheres jovens e menos
jovens, como são exemplo a da infanta dita D. Constança Afonso, ou a de D. Maria de
Vilalobo (Sé de Lisboa) e, claro, nenhum elemento que aponte para a presença de uma hábito
religioso cisterciense.
Mas se Caetano de Sousa estranhou o facto de este jacente, caso pertencesse ao
infante D. João (como ele presumiu que pudesse pertencer), o representar com uma idade
mais avançada do que aquela com que os autores que o precederam indicam como aquela
com que o infante faleceu, aparentando aqui uma idade superior a dez anos, a nós não nos
constrange, na medida em que este não é o único exemplo de jacente português que não
reproduz a imagem de uma criança, ou melhor, de um bebé, conferindo-lhe o aspecto de
alguém com idade mais avançada. Referimo-nos, em concreto, ao caso do jacente da infanta
D. Isabel (1324-†1326), também filha de D. Afonso IV e de D. Beatriz, sepultada em Santa
Clara de Coimbra.

495
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

O que vemos neste último jacente, não é a representação de uma criança de dois anos
de idade, mas sim a de uma jovem de idade incerta, mas que a ausência de véu permite ajudar
a perceber tratar-se de alguém em idade núbil ou pré-núbil.

Pormenor do jacente da
infanta D. Isabel.
(1324-†1326).
Mestre Pero (atrib.)
Prov. Igreja de Santa Clara-
a-Velha de Coimbra.
Igreja de Santa Clara-a-
Nova de Coimbra.
Foto:
José Pessoa/DDF/IPM.

No túmulo de Odivelas, o jacente, contrariamente aos de nobres do século XIV, não


possui barba, indício claro de que houve a intenção de o representar em tenra idade, algo
semelhante ao que ocorre com o jacente do infante D. Filipe Dagoberto de França (1222-
†1235), irmão de São Luís (Saint-Denis).
As razões da tendência para a segregação da criança na arte funerária gótica já foram
objecto de estudo por parte de Manuel Núñez Rodríguez23, autor que demonstrou haver uma
progressiva evolução na forma de encarar a representação dos indivíduos na aetas imperfecta,
sendo a Itália o país onde a arte deu o maior número de testemunhos e também os mais
precoces da iconografia da criança. Em França, exemplos como os dos dois filhos de São
Luís, João (†1268) e Branca (†1243), sepultados em Royaumont e actualmente em Saint-
Denis, representam os infantes, ambos falecidos com poucos anos de vida, não como tal, mas
como adultos, de reduzidas dimensões.

496
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor do rosto do jacente de Filipe de


França. (1222-†1235). Prov. Abadia de Royaumont.
Abadia de Saint-Denis

Jacentes dos infantes Branca e João, filhos de São


Luís. Placas de cobre esmaltado (oficinas de Limoges).
Prov. da Igreja de Royaumont, panteão dos infantes
de França. Actualmente na Abadia de Saint-Denis.
Séc. XIII.

Apud Dossier d’Archeologie, 26, Março 2001, p. 71.

Mais tarde, também em França, podem ser apontados raríssimos exemplos de arte
funerária que demonstram a evolução na forma de caracterizar a condição social das crianças,
sendo o mais notável o jacente de João, o Póstumo (†1316 –Saint-Denis), filho de Luís X e de
Clemência da Hungria, falecido com quatro dias de idade e que constitui um dos mais
precoces exemplos de representações fisionómicas de um bebé em arte funerária neste país.

23 Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “El concepto de la muerte en la “aetas imperfecta”:


Iconografia del niño”, La Idea y el Sentimiento de la Muerte en la Historia y en el Arte de la Edad Media (II),
Universidade de Santiago de Compostela, 1982, pp. 36-64.

497
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor do jacente de João I, o Póstumo.


Apud. Dossiers d’Archeologie, n.º 261, Março de 2001, p. 80.

Túmulo de uma infanta


castelhana. Filha de Afonso X
(?).
Séc. XIII.
Catedral de Ourense (Galiza,
Espanha)
Apud Chamoso Lamas, Escultura
Funerária en Galicia, p. 36.

Em Portugal, verifica-se que, no século XIV, não obstante o número de descendentes


reais falecidos com menos de quatro anos de idade, parece ter havido uma total resistência à
sua representação de acordo com a idade real, optando-se por figurá-los com idades
superiores, aquelas que socialmente detinham valor enquanto memória para ser recordada.
Porque no que diz respeito à fama póstuma, “el óbito del niño continuará siendo la historia
de una amnesia ante la muerte. Y es que el niño era una experiencia fugaz, en la medida en
que hay poco de excepcional en su vida”24.
Assim, antes da segunda idade (pueritia), a criança não é objecto de profundas
aspirações por parte dos pais; é vista como algo que se encontra ainda a germinar, podendo
vingar ou não, pois correspondia ao tempo em que a luta pela sobrevivência era

24 IDEM, ibidem, p. 42.

498
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

verdadeiramente tenaz, estando constantemente ameaçada pelos muitos perigos que a sua
debilidade de ser totalmente dependente nem sempre lhe permitia fazer frente. Nesta aetas
imperfecta, a criança não é entendida, por isso, como um ser que possui relevância social e
jurídica, como deixam antever a sua ausência nas fontes escritas e nas fontes iconográficas, e
como bem prova a iconografia funerária.
Neste sentido, o facto de ser, muitas vezes, representada como indivíduo com idade
superior àquela que possuía na data do óbito, mais não é do que o testemunho da
incompreensão que então existia da condição da criança muito jovem, cujo curto tempo de
vida não proporcionou feitos dignos de nota, nada, enfim, de significativo, que justificasse a
criação de uma imagem-memória. Manipulando as formas de representação, ao atribuir-lhe
uma idade superior, subvertia-se a ordem das coisas, mas elevava-se o estatuto destes frágeis
indivíduos, atribuindo-lhes um novo e mais efectivo valor.
Não estranha, pois, que tanto a infanta D. Isabel, como o infante do túmulo de
Odivelas, que entendemos ser D. João, sejam representados como jovens e não como bebés
de dois e de um ano de idade, respectivamente.
Mas, se algumas dúvidas subsistissem à nossa argumentação, as informações que
Borges de Figueiredo dá a respeito da abertura do túmulo e do que lá se encontrou, elucidam-
nos claramente. Diz o autor, ainda convencido de que é o túmulo da bastarda D. Maria
Afonso (II), que o tumulo de D. Maria já não encerra as suas cinzas. Havendo sido aberto em certa
occasião, acharam nelle uma caixa de madeira já desconjuntada, e duas cobertas, uma d’ellas de seda que
mostrava haver sido côr de rosa, e outra d’estofo de lã e seda de listas e desenhos doirados sobre fundo
castanho. Achou-se alli também parte d’um esquelero de creança que não poderia ter mais d’anno, e um
casaquinho de creança de damasco verde25.
Ora, o esqueleto da criança e o tamanho do casaquinho de damasco verde coincidem,
exactamente, com a idade que possuía o infante D. João quando faleceu, cerca de um ano,
tendo-se conservado em razoável estado de conservação, certamente graças às técnicas de
embalsamamento dos corpos que então se faziam para personalidades importantes, e que
permitiu que muitos dos defuntos da família real se conservassem por vários séculos nos seus
túmulos.

25 Borges de FIGUEIREDO, op. cit., 1889, p. 207.

499
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Jacente do infante D. João


Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Assim, e no que se refere à iconografia, no caso do jacente do infante D. João


recorreram-se a soluções que visaram tornar claro que não se tratava de alguém em idade
adulta, mas não o representando como um bébé. Não obstante o seu jacente ser mais
pequeno do que os que nos habituámos a ver para importantes figuras masculinas
portuguesas de Trezentos (c. de um metro e cinquenta centímetros), o ponto essencial em que
radica a diferença de representação entre uma criança do sexo masculino e um jovem, ou
adulto, é a ausência de alguns atributos iconográficos, como a espada e as esporas, sinal claro
de que o tumulado ainda não havia atingido a idade própria de ser investido cavaleiro. Os
dois cães, que se encontram aos pés, são elementos comuns na arte funerária deste período e
um dos mais usuais atributos de distinção social e, pela sua dimensão, aproximam-se mais dos
cães lavrados em túmulos de homens e muito menos dos cãezinhos domésticos que
normalmente se encontram aos pés dos jacentes femininos.
Se juntarmos à ausência da espada e das esporas o facto de a figura ser imberbe, mais
facilmente percebemos as intenções subjacentes à sua representação.
À proposta de identificação que aqui fazemos, baseando-nos até ao momento nas
informações que indicam que o infante D. João foi sepultado na igreja do Mosteiro de S.
Dinis de Odivelas, bem como na tipologia iconográfica do jacente deste monumento
funerário e no esqueleto que se encontrava (ou encontra) dentro do túmulo, há que
acrescentar a decoração da arca funerária.

500
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Nas faces longas representam-se, respectivamente, dois grandes escudos com as armas
de Portugal e as armas de Castela e Leão, ao centro, divididos no espaço disponível por três
nichos em forma de gablete, entre duas estreitas torres pinaculares. Os dois nichos das
extremidades enquadram figuras de monges vestidos com hábitos cistercienses, ajoelhados e
segurando círios com ambas as mãos, para iluminar a alma do defunto, enquanto que o nicho
central, mais estreito, não alberga qualquer figura e a superfície fundeira é decorada com
elementos vegetalistas, num baixo-relevo muito ténue. Nas duas faces estreitas da arca,
correspondendo aos pés e à cabeceira do túmulo, relevam-se, em cada uma delas, um grande
escudo que repete a mesma heráldica.

Uma das faces longas da arca funerária do túmulo do infante D. Afonso (actualmente voltada para o público). Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Ora, tratando-se do túmulo do infante D. João, a heráldica que aqui vemos está
absolutamente correcta, na medida em que era filho de um rei português (D. Afonso IV) e de
uma princesa castelhana-leonesa, D. Beatriz, filha de Sancho IV, o Bravo. Se aceitássemos que
este túmulo pertenceu a D. Maria Afonso (II), então, as armas teriam difícil explicação: as de
Portugal fariam sentido, uma vez que era filha de D. Dinis, mas as de Castela e Leão
parecem-nos menos aceitáveis, pois não só não se sabe quem foi a mãe desta bastarda, como
dificilmente podemos aceitar tratar-se de alguém que pertencesse à família real castelhana,
sendo, depois, totalmente ignorada pelas fontes.
Um outro e último argumento substância a nossa proposta: o túmulo do infante D.
João foi originalmente colocado na capela de S. Pedro, isto é, na capela colateral da cabeceira
da igreja, do lado da Epístola, enquanto que o de D. Maria Afonso (II), encontrava-se numa
capela do claustro que tinha por orago S. João Baptista. Ora, parece que o túmulo do infante
nunca terá mudado de sítio…

501
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Para concluirmos a análise deste monumento funerário gostaríamos de sublinhar que


o túmulo nunca foi totalmente concluído. E é precisamente a decoração que envolve os
elementos iconográficos da arca funerária que nos permite fazer esta afirmação. Em todas as
faces da arca podemos contemplar um padrão duplo de folhagem estilizada, preenchendo
todos os campos livres. Mas, enquanto que, numa das faces longas, percebemos que todas as
fases do trabalho escultórico foram concluídas, na face oposta (a que está voltada para o
público), ainda podemos ver as marcas da ferramenta que o escultor usou para escavar a
pedra à volta das folhas e caules, a fim de colocar estes desenhos em relevo, faltando-lhe,
depois, o tempo necessário para o polimento das superfícies; nas faces estreitas da arca, o
escultor parece ter tido apenas oportunidade de fazer o desenho e a marcação incisa das
várias folhas e caules deste padrão, deixando por escavar as superfícies em torno deste
elementos.
A verdade é que desconhecemos a razão do abandono e da não conclusão dos
trabalhos, bem como a autoria dos mesmos, ainda que possamos aventar ter sido algum
escultor ou oficina já com provas dadas de bom trabalho, quer no contexto da tumulária
lisboeta, quer no contexto das encomendas da família real.
Mas esta decoração vegetalista não pode deixar de ser cotejada com outra, muito
idêntica, que encontramos na arca funerária da Rainha Santa Isabel, quase imperceptível, mas
que um olhar atento permite identificar. Neste caso, o padrão repetitivo de folhas estilizadas e
caules encontra-se na parte superior das faces da arca, sobre a sequência de gabletes com
figuras de santos. Verificámos que um dos padrões vegetalistas da arca funerária de Odivelas
é idêntico ao que vemos na arca da rainha D. Isabel, constituídos por folhas de hera
estilizadas. Assim, julgamos que este elemento decorativo constitui mais um contributo para
ajudar a datar o túmulo do infante D. João, colocando a sua execução nos últimos anos da
segunda década do século XIV, isto é, entre 1327, data da morte do infante, e c.1330, data
proposta para a lavra do túmulo de sua avó, a Rainha Santa. A fisionomia do rosto, bem
como os volumes e tipo de pregas da indumentária da estátua jacente, também corroboram
esta cronologia.

502
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Decoração vegetalista em baixo-relevo, nos espaços entre os gabletes que decoram a arca funerária de D. Isabel de
Aragão. c. 1330. Mestre Pêro (atrib.). Prov. Igreja de Santa Clara-a-Velha de Coimbra. Igreja de Santa Clara-a-Nova de Coimbra.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Já a decoração geométrica, esculpida num baixíssimo relevo, numa das duas almofadas
em que a estátua do infante repousa a cabeça, não encontra paralelos directos em nenhum
dos exemplares de escultura funerária deste período, constituindo uma originalidade deste
monumento, mas digna de nota pela beleza do efeito plástico produzido pelo padrão que se
destina a transmitir a sensação de tecido bordado.
Quanto aos enigmáticos suportes do túmulo de Odivelas, excluímo-los das partes
originalmente constituintes desta obra, não apenas porque o talhe das peças aponta para a
presença de uma mão diferente, o que por si só não constitui motivo de exclusão, mas
porque a sua linguagem plástica é muito mais evoluída e, sobretudo, porque a iconografia de
um dos suportes, descrita mas raramente interpretada por outros autores, à excepção de
Borges de Figueiredo, pode provar que não tem relação com este túmulo, mas sim com
outro, que em tempos terá existido, completo, neste mosteiro. Desenvolveremos esta questão
no capítulo intitulado “Discursos biográficos”, onde a sua leitura poderá permitir perceber
com que personagem se relaciona.

503
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

1.4 Notas sobre os atributos iconográficos e temas representativos da condição social e


conduta no feminino
No que respeita à representação das nossas rainhas da primeira dinastia, não
obstante o parco número de obras que nos chegou e, ainda, o facto de não existirem
notícias acerca das cerimónias de coroação em que estas tivessem participado, não nos
repugna aceitar a sua existência, mesmo que não possamos aferir convenientemente o
número de insígnias do poder real que lhes eram entregues. Esta é, por isso, uma realidade
que se diferencia, de forma substancial, da monarquia francesa nas mesmas cronologias,
como anteriormente tivemos oportunidade de referir.
Ora, para além da coroa que, como já vimos, está presente em todas as
representações das nossas rainhas e princesas (à excepção da estátua jacente de D. Mecía
Lopez de Haro), bem como o manto, comum a todas as representações, nenhuma outra
insígnia do poder, relacionada ou não com a cerimónia da coroação, foi contemplada nas
representações destas mulheres, quer seja nas suas estátuas jacentes, quer em alguns selos
que chegaram aos nossos dias.
Pela sua posição superior na hierarquia social, rainhas e infantas desempenham um
papel de exemplaridade, onde a virtude manifestada através de atributos-símbolos tende a
ser privilegiada em detrimento das regalia.
Alguns destes atributos são de carácter religioso e pretendem manifestar as
devoções pessoais e fervores piedosos destas mulheres do poder secular.
Um dos atributos que nos sugere dúvidas é o colar de contas que vemos ao peito de
algumas estátuas jacentes. Tratar-se-á de um simples colar de adorno ou de um rosário?
Este é um atributo que encontramos no jacente de D. Inês de Castro, mas que já tinha
antecedentes em Portugal, como é o caso do jacente de D. Margarida de Albernaz1,
sepultada na capela da Misericórdia da Sé de Lisboa (claustro). Embora o culto do Rosário
remonte ao século XIII, por impulsionamento dos dominicanos, só viria a conhecer
verdadeira expressão iconográfica no século XV. Mas em Espanha é possível referir alguns
exemplos iconográficos anteriores, como são os casos dos jacentes de D. Urraca Lopez de
Haro, abadessa do mosteiro cisterciense de Cañas (Logronho), onde foi sepultada c.1262,

504
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

representada com um rosário que é colocado sobre o peito e, ainda, numa das figuras que
preenchem a arca sepulcral, colocado à volta do pescoço e a cair-lhe sobre o peito. Mais
tarde, e como testemunho de continuidade desta iconografia, surge no jacente de D. Maria
de Molina, (das primeiras três décadas do século XV), filha do infante Afonso de Molina,
irmão de São Fernando, falecida em 1312, e sepultada em Valladolid (actualmente no
cruzeiro da Igreja do Mosteiro das Huelgas Reais de Vallodolid)2.

Pormenor do rosário do jacente de D. Urraca


Lopez de Haro, abadessa do Mosteiro de Canas.
Séc. XIII. Foto: CVF.

Túmulo de D. Margarida Albernaz. Séc. XIV. Sé de Lisboa.


Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

No caso do jacente de D. Inês de Castro, o facto de este atributo se poder associar


às luvas que a figura segura com a outra mão, leva-nos a questionar se de facto se trata de
um rosário, ou se, pelo contrário, é um colar, simples objecto de adorno e de aparato, com
o objectivo de conferir maior solenidade e dignificação ao estatuto social da nobre dama.
Deixamos a questão em aberto.

1Cf. Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, pp. 82-87 (com outra bibliografia).
2Cf. El Panteón Real de La Huelgas de Burgos. Los Enterramientos de los Reyes de León y de Castilla,
(Cat. de Exposição), Junta de Castilla y León, 1988, p. 21.

505
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Mais comum, mas com a clara intenção de expressar a religiosidade e o recato


destas mulheres, o livro de orações constitui, em Portugal, um dos atributos iconográficos
mais valorizados nas representações do século XIV. A sua presença apela para a alta
condição sócio-económica destas mulhers e coloca em destaque o valor atribuído aos livros
de horas, nestes anos do Gótico, tendo chegado até aos nossos dias um razoável e valioso
número de exemplares, de que se destacam alguns de grande riqueza decorativa, como é
exemplo o Livro de Horas de Joana d’Evreux, ou o Livro de Horas de Maria de Navarra.
A importância que Luís IX de França dava à oração privada, despendendo muito do
seu tempo com esta prática devocional, mesmo em situações pouco propícias, ficou bem
ilustrada numa iluminura que o representa a cavalo, acompanhado de vários nobres e
clérigos, entretido na leitura do seu livro de orações. Também o Livro de Horas de Joana
d’Evreux, representa São Luís ocupado com as leituras religiosas, entre outros temas que
ilustram a vida piedosa e virtuosa do monarca francês.

São Luís genuflectido e a ler um livro de horas.


Livro de Horas de Joana d’Evreux. Séc. XIV. Jean
Pucelle.
Metropolitan Museum (The Cloisters).
Vida e Milagres de São Luís de Guilherme de Saint-Pathus, onde se
destaca a prática devocional itinerante da leitura do livro de horas.
Séc. XIV.
BNF, fr. 5716, f. 48.
Apud Jacque Le Goff, Saint Louis, fig. 10

No quadro da família real portuguesa, rainhas e infantas foram representadas com


este atributo, encontrando-se paralelos nas estátuas jacentes de mulheres da nobreza
portuguesa, e outros paralelos, para as mesmas cronologias e até mesmo para cronologias
anteriores, em outros países da Europa gótica.

506
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

No caso das rainhas, a sua aparição


faz-se num dos jacentes mais precoces da
arte medieval: Leonor da Aquitânia. O livro
que a rainha ostenta com as duas mãos,
encontra-se aberto, disposto para a leitura,
ainda que não possua qualquer texto
epigrafado ou qualquer decoração.
Pormenor da estátua jacente de Leonor da Aquitânia.

Diferente, e certamente com outro valor simbólico, é


de referir o livro que vemos na estátua jacente da rainha
Berengária (†1230), irmã de Sancho VI de Navarra e mulher
de Ricardo Coração de Leão, sepultada, não no mausoléu
angevino de Fontevrault, mas na sua Abadia de Épau (perto
de Le Mans), para onde se havia retirado em 1230. Este livro
tem a particularidade de ter a capa decorada com a efígie de
Berengária, em oração, ladeada por dois altos círios, todos os
elementos em baixo-relevo. A rainha segura o livro fechado
com as duas mãos, em jeito de apresentação, o que,
juntamente com o detalhe decorativo do mesmo, levou Mark
Duffy a interpretar a sua presença como uma intenção de
criar sugestão no público para que fossem feitas orações de
intercessão pela alma da rainha3.
Estátua jacente da Rainha
Berengária. c.1230. Abadia de No panteão de Saint-Denis, são raras as rainhas
Épau.
Apud Mark Daffy, Royal Tombs of representadas segurando livros. Citamos apenas o exemplo do
Medieval England, p. 69.

jacente de Constança de Arles (†984-1032), terceira mulher de Roberto, o Piedoso, em


túmulo pertencente à encomenda de São Luís, com o livro fechado e seguro por uma das
mãos, encostado ao lado esquerdo da figura. A grande maioria destes jacentes, porém, tem
as mãos em posição de oração, ou seguram a fita que prende o manto, num gesto nobre
que caracteriza também grande número dos jacentes masculinos deste panteão.

3 Cf. Mark DUFFY, Royal Tombs of Medieval England, Gloucestershire, Tempus, 2003, p. 68.

507
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Em Portugal, e numa sequência que procuraremos que


seja cronológica, tanto quanto possível, sabemos que a
destruída e desaparecida estátua jacente de D. Leonor Afonso,
filha bastarda de D. Afonso III, possuía um livro de orações,
que esta segurava com ambas as mãos, como indica Zeferino
Sarmento no comentário aos fragmentos da estátua,
encontrados aquando das obras de restauro em Santa Clara de
Santarém4, a que já havíamos aludido em capítulo anterior.
No que se refere a outra filha de D. Afonso III, esta
legítima, D. Branca de Portugal, Senhora de Las Huelgas de
Burgos, apesar do seu monumento funerário não ostentar
Pormenor do jacente de jacente, o selo pessoal da infanta representa-a segurando um
Constança de Arles. Séc. XIII.
Abadia de Saint-Denis. livro. Contrariamente ao que defendeu Manuel Núñez
Apud Serge Santos, Saint Denis
Derniere Demeure des Rois de France, Rodríguez, que pretendeu ver neste livro uma provável refe-
fig. 12.
rência ao interesse que esta Dona manifestou pela prática da
leitura, bem como na defesa da ideia de que cultura e pregação
não eram inconciliáveis (o que a levou a mandar traduzir para
língua romance o Livro das Batalhas de Deus do judeu converso
Rabi Ahner – com a finalidade exclusiva da sua leitura no
refeitório –), entendemos que, no contexto em que este
atributo surge, será mais provável que se trate de uma alusão
aos Evangelhos ou até da Regra de São Bento, indo, assim, de
encontro à iconografia monacal da figura, e constituindo mais
um elemento que pretende conferir uma imagem de perfeição
Selo da infanta D. Branca de
Portugal. moral e cristã à infanta, num ideal de aproximação à santidade.
Arquivo da Universidade de
Santiago de Compostela. Apud A hipotética sobrinha de D. Afonso III, D. Constança
Manuel Núñez Rodríguez, Casa,
Calle, Convento,…, p. 162.

Afonso (filha do infante D. Afonso, Senhor de Portalegre e de D. Violante Manuel),


sepultada na Sé de Lisboa, oferece um dos melhores exemplos de um livro de orações no
âmbito da tumulária medieval portuguesa, a par do livro que vemos no jacente de D. Maria

4 Zeferino SARMENTO,” Uma jóia trecentista” (1937), op. cit., 1993,p. 194.

508
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

de Vilalobos5. No primeiro caso, a infanta, de olhos abertos, parece meditar sobre o texto
do Miserere, epigrafado nas “páginas” deste livro de pedra6, enquanto que a nobre dama,
neta de Sancho IV, o Bravo de Castela, se dedica à leitura do Padre-nosso e da Ave Maria7.

Pormenores do jacente e do livro de


orações do jacente da infanta (dita) D.
Constança Afonso.
Séc. XIV. Sé de Lisboa.
Fotos: José Pessoa/DDF/IPM.

Também o jacente de D. Isabel de Aragão insere a representação de um livro. A


rainha tem as mãos cruzadas sobre o peito e, sob a mão direita, encontra-se disposto o
livro fechado, certamente na evocação de um livro de orações, a recordar as muitas horas
dispendidas pela Rainha Santa na prática devocional das leituras religiosas.
Em alinhamento com a inovadora proposta iconográfica que constituiu o túmulo
de D. Isabel, a rainha D. Beatriz, sua nora, também não dispensou o hábito de clarissa nem
o livro de orações, com que se fez representar na sua estátua jacente, entretanto
desaparecida, mas em boa hora descrita pelo Pe. José Pereira Bayão, em 17608.

5 Já tivemos oportunidade de nos referir a estes dois livros e à sua leitura iconológica em

conjunto com outros pormenores constituintes dos dois monumentos funerários em Carla Varela
FERNANDES, op. cit., 2001, pp. 39-72.
6 Para a leitura epigráfica deste texto veja-se Mário Jorge BARROCA, op. cit., vol. II, t. 1, 2000,

pp. 1134-1138
7 IDEM, ibidem, vol. II, t. 2, pp. 1999-2002.
8 Pe. José Pereira BAYÃO, no suplemento à Crónica de D. Pedro, Lisboa, Officina de Pedro

Ferreira, 1760, p. 257. Descrição também referida e analisada por J. Mendes da Cunha SARAIVA, op.
cit., 1927 e Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, p. 75.

509
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Nos já referidos selos das infantas Teresa e Sancha9, filhas de Sancho I, que
autentificavam a doação que ambas fizeram da Albergaria de Poiares, apesar do seu elevado
estado de deterioração, com desgaste acentuado dos relevos, e da perda de matéria,
podemos ainda observar as figuras das duas mulheres, representadas na sua condição de
princesas seculares e não como freiras. Ambas vestem longos trajos (vestidos cintados e
mantos), e D. Teresa tem a cabeça coroada, nas duas representações que preenchem o
anverso e o verso do selo, insígnia que a identifica com o sangue real de que descende,
enquanto que D. Sancha apenas parece ter a cabeça coberta por touca ou véu muito
cingido.

Selo de validação de D. Teresa,


infanta de Portugal, rainha de
Castela e Senhora de Lorvão.

Pendente do documento de doação da


Albergaria de Poiares. 1213.
Cartório do Cabido da Sé de
Coimbra, n.º 37, maço II,
(documentos reais – 1.ª incorporação).
Apud. Marquês de Abrantes, O Estudo
da Sigilografia Medieval Portuguesa, p.
152, fig.105 e 106.

Em ambos os selos, o único atributo iconográfico que ostentam resume-se às flores-


de-lis. No selo de D. Teresa, apesar da dificuldade de leitura, podemos intuir que a figura
segura, com uma das mãos, a fita do manto e, com a outra, um lírio (ou flor-de-lis), junto
ao peito. Este mesmo símbolo, agora mais visível e mais nítido, preenche parte do campo
sigilográfico, a ladear a figura, junto aos braços, de ambos os lados.

9 Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, pp. 152-153.

510
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

No selo de D. Sancha, enquanto que, com uma


das mãos, segura a fita que prende o manto, com o outro
braço e a mão erguidos, segura uma delicada flor-de-lis.
Os selos das duas infantas portuguesas são,
iconograficamente, semelhantes a outros do século XIII,
pertencentes a mulheres de famílias reais de outros países
ou a mulheres da nobreza, como são exemplos, o selo de
Isabel de Hainaut, cuja figura da rainha segura, com uma
das mãos, um ceptro e, com a outra, uma flor-de-lis; o
selo de Constança de Castela, em que as flores-de-lis são
apresentadas nas duas mãos da figura ou, ainda, o selo de
Selo de validação de D. Sancha, infanta de
Portugal, fundadora do Convento de Celas.
Documento de doação da Albergaria de Poiares.
Margarida de Quincy (c.1207-1235), formalmente mais
1213. Apud. Marquês de Abrantes, O Estudo da
Sigilografia Medieval Portuguesa, p. 152, fig.107. evoluído que os dois anteriores, mas que, mais uma vez,
o atributo que a figura segura com uma das mãos é a flor-
de-lis.

Matriz do selo de Constança de Castela (†1160), segunda mulher Matriz do selo de Usabel de Hainaut (†1190), mulher de Luís
de Filipe Augusto. Biblioteca Nacional de França, Cab. des Medailles VII.
(cl. Bibl. Nat.). Apud Erland-Brandenburg, Le Roi est Mort, pp. 42-43. c.1180-1185. Encontrado em 1858 por Viollet-le-Duc na abertura do
túmulo da rainha em Notre Dame de Paris. British Museum, 970. 9-
4, 1 (cl. R. Johnes).

511
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Os lírios, ou as flores-de-lis, não


adquirindo uma função heráldica, ao tornarem-
se atributos iconográficos, nas mãos de figuras
femininas, simbolizam pureza, inocência e
virgindade ou castidade. Não nos deve, por isso,
surpreender que sejam o atributo de eleição para
um grande número de selos com iconografia
feminina10.
No quadro dos temas e atributos que se
Selo de Margarida de Quincy, Condessa de Winchester
(1207-†1235). President and Fellows, Magdalen College,
associam com os jacentes femininos, ou que
Oxford, (Bracley Chrater B.I. 80). Apud Age of Chilvalry, p.
251. com eles se interligam, não poderíamos deixar
de referir um estranho tema representado na tampa sepulcral do túmulo da infanta (dita)
D. Constança Afonso, idêntico ao que podemos ver, também na tampa sepulcral, no
monumento funerário de D. Maria de Vilalobos e, de forma algo diferente e mais discreta,
na tampa do túmulo da Rainha Santa Isabel.
Trata-se de pequenos “apontamentos escultóricos”, quase marginais, mas nem por
isso menos interessantes, nem menos enigmáticos. A leitura iconográfica e iconológica que
tivemos oportunidade de fazer a este respeito, aquando do nosso estudo sobre os túmulos
medievais da Sé de Lisboa, permitiu-nos perceber que este tema é exclusivamente
característico da iconografia tumular feminina, e que comporta antecedentes com ele
relacionados, existentes em obras românicas.
Referimo-nos aos pequenos cães que ladeiam as pernas e os pés dos jacentes, que,
por si só, não constituiriam qualquer problemática de relevo, relacionando-se com a
condição social nobre das tumuladas, como cães domésticos que acompanham as suas
senhoras na última morada. Mas, o facto de estes cãezinhos, adornados com portentosas
coleiras de guizos, estarem entretidos a disputar, despedaçar ou a comer restos dos corpos
de galos, causa-nos imediata estranheza e obriga-nos a reflectir sobre o seu significado.
Como então afirmámos, esta cena, que vemos nos túmulos da dita D. Constança e
de D. Maria de Vilalobos, não se pode relacionar com qualquer episódio pitoresco da vida

Cf. Jean CHEVALIER e Alain GHEERBRANT, op. cit., pp. 577-578 e Hans BIEDERMAN,
10

Diccionario de Símbolos, (1ª ed. - Munique, 1989), Barcelona, Paidós, 1996, pp. 271-272.

512
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

de uma ou de outra personagem11, na medida em que as suas vidas nada tiveram de


coincidente. O seu valor é claramente simbólico e alegórico e o seu entendimento só pode
ser feito quando em conjunto com o outro atributo de relevo comum aos dois jacentes: o
livro.

Pequeno cão com a cabeça de um galináceo entre as pernas Dois pequenos cães a disputarem pedaços de um
dianteiras. Túmulo da infanta (dita) D. Constança Afonso. galináceo. Túmulo de D. Maria de Vilalobos. Sé de Lisboa.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM. Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

Dos muito significados simbólicos que o cão e o galo possuem individualmente,


poderíamos dissertar longamente, sem que isso nos permitisse descodificar o seu
significado em conjunto. A reflexão que Manuel Núñez Rodríguez generosamente nos
cedeu aquando do nosso primeiro estudo sobre este tema, abre, em nosso entender, a
perspectiva mais próxima do valor iconológico desta cenas, corroborado, depois, por nós,
com algumas achegas que resultaram das pesquisas e reflexões que fomos fazendo.
Não significa, todavia, que a problemática se encerre. Pelo contrário, trata-se apenas
de uma proposta de leitura, fundamentada a partir dos dados iconográficos e textuais de
que dispomos, deixando a porta aberta para futuros aprofundamentos e até diferentes
conclusões.
Fazendo uso das palavras de Núñez Rodríguez, “o galo despedaçado pelos cães
expressaria os temores que, em jeito de “capítulo moral”, advertem sobre a necessidade de
velar ante a fragilidade da condição humana. De acordo com este princípio, entram em
jogo a fauna pura e a fauna impura. Respectivamente, seria o galo, cujo canto matinal está
associado ao despertar, neste caso, para uma nova vida. Ele supõe a vigilância (e daí o valor
da oração continuada do jacente), para que o espírito da força satânica, com as suas

11 Gabriel PEREIRA, “Dois túmulos na Sé de Lisboa”, Arte Portuguesa, ano I, n.º 1, 1895, p. 15.

513
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

artimanhas (as tentações da carne), simbolizada pelos cães, não quebre a fortaleza.
Subtileza muito próxima da prática dos sermões de Santo António sobre a salvação
humana, onde se refere que o crente não deverá viver conforme os desejos da carne “para
não ser delapidado pelos lobos ferozes”, já que da carne vem a morte, entendida aqui como
uma condenação. Os cães teriam, assim, a equivalência simbólica de lobos vorazes”12.
Desta proposta, dever-se-á entender o tema como uma alusão à importância da
vigilância continuada da oração, cuja manutenção é aqui garantida pela leitura do livro de
orações13.
Encontrámos um tema com inegáveis semelhanças num conjunto escultórico do
românico tardio, numa das mísulas do apostolado da Câmara Santa de Oviedo. Aqui, pode
observar-se um quadrúpede, (cão ou raposa?), que ataca ferozmente o pescoço de um galo.
Maria da Soledad Álvarez Martínez refere que é um tema de origem moçárabe, inspirado
em iluminuras leonesas do século X14. Na interpretação de Árias Páramo, trata-se de uma
cena alegórica em que há um ser enganoso e carnívoro e um ser que simboliza a chegada
da luz, um ser vigilante15.
Mas, mais interessante, porque mais narrativo, é uma iluminura da Bíblia de São
Lourenço de Liège (século XII), que representa um interior doméstico (e é preciso não
esquecer que este é o espaço feminino por excelência), onde se pode ver uma mulher
sentada num dos cantos do quarto, ocupada com a tecelagem.
Junto de si, encontram-se dois galos entretidos a debicar algo que se encontra no
chão. Um terceiro, que, por ousadia, se afasta, é abocanhado por um lobo, raposa ou cão,
num lance rápido e certeiro. No canto oposto desta habitação, de frente para os dois
animais, encontra-se a figura de um religioso, em pé, que aponta para o quadrúpede e para
a sua presa surpreendida, num gesto demonstrativo que pretende chamar a atenção, em
jeito de advertência moral, reforçada pelo gesto da outra mão e da direcção do olhar,

12 Excertos do pequeno texto policopiado que nos foi enviado em 2000 pelo Prof. Doutor
Manuel Núñez Rodríguez quando lhe pedimos parecer sobre este tema dos túmulos da Sé de Lisboa e
que aqui tomamos a liberdade de traduzir.
13 Cf. Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, p. 58.
14 Cf. Maria Soledad ÁLVAREZ MARTÍNEZ, El Románico en Asturias, Gijón, Trea, 1999, p.

96.
15 Lorenzo ARIAS PÁRAMO, La Cámara Santa de la Catedral de Oviedo, Gijón, Trea, 1998, p. 24.

514
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

ambos virados para o céu, como que a lembrar as verdades divinas e o dever para com a
salvação da alma.

Bíblia de São Lourenço de Liège. Séc. XII. Bruxelas.


Biblioteca Real Alberto I. Ms. 9916. Apud História da Vida Privada, vol. 2, p. 90

George Duby, na legenda a esta imagem, interpreta a cena com uma interrogação
desafiadora: “No coração da casa, porque não seria a mulher apanhada?”16.
As mulheres, com poder dentro dos seus próprios lares, eram controladas pelo
chefe masculino da casa e, por vezes, pelos eclesiásticos, que com os maridos disputavam
esse mesmo poder, a pretexto de direcção da consciência. Elas, porque destinadas a tarefas
específicas no interior do “gineceu”, não deixavam de constituir um grupo inquietante, se
não para os maridos, pelos menos para os moralistas, e deviam estar sempre ocupadas
“sendo a ociosidade considerada particularmente perigosa para estes seres frágeis. O ideal
era a partilha equilibrada entre a oração e o trabalho, o trabalho têxtil”17.
Tanto a infanta D. Constança, como D. Maria de Vilalobos, nos jacentes dos seus
túmulos, estão totalmente concentradas nas palavras santas dos seus livros de orações,
deixando para a posteridade a imagem de virtuosa perfeição, a perfeição da conduta
feminina ditada pelos moralistas, sem sinais de distracções que facilitassem as tentações da
carne, aquelas que conduzem à perdição do corpo, mas, especialmente da alma, tal como as
cenas esculpidas aos pés das jacentes parece pretender ilustrar.

16 George DUBY, “A vida privada nas casas aristocráticas da França feudal. Convivialidade”.
História da Vida Privada. Vol. II (Da Europa Feudal ao Renascimento), dir. Philippe Ariès e George
Duby, Lisboa, Afrontamento, 1990, p. 90.
17
IDEM, ibidem.

515
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A iconografia tumular, mais propícia a demonstrar a melhor das imagens daqueles


que nesses monumentos se fazem inumar, “joga todos os trunfos”, numa arte que quer
fazer crer, numa arte quer convencer. A particularidade de se destinarem a guardar os
corpos daqueles cujas almas se encontram na proximidade de encarar o Além, conduz à
escolha de temas que reflectem as virtudes cristãs mais apreciáveis, como argumentos para
a salvação, mas, também, como memórias póstumas, sob a forma de exemplo para aqueles
que lhes sobrevivem. Certamente que o ideólogo destes túmulos tinha disso plena
consciência, mesmo que o tema só pudesse ser compreendido pelo seus pares, ou por
aqueles que, como estas damas e donzelas, conheciam bem os pensamentos e advertências
dos moralistas.
Fora do âmbito religioso e moral dos atributos e cenas dos túmulos das rainhas e
das filhas dos nossos monarcas, alguns elementos iconográficos destinam-se à memória
social, à demarcação do estatuto privilegiado destas mulheres no mundo dos vivos. A
predominância dos elementos heráldicos, em túmulos de rainhas e de infantas, parece
impor-se como uma característica muito própria e importante nas memórias visuais dos
membros femininos da família real.
Estes elementos surgem, por vezes, associados aos jacentes, normalmente gravados
nas tampas sepulcrais, ou como decoração das faces dos sarcófagos. Ressalve-se, porém,
que desconhecemos a iconografia de outros túmulos de infantas anteriores ao reinado de
D. Afonso III.
Entre os túmulos pertencentes às rainhas portuguesas e que possuem decoração,
apenas o de D. Urraca não possui qualquer heráldica para a sua identificação, bem como o
da princesa D. Constança Manuel (mulher de D. Pedro I) ainda que não possamos afirmar
se a tampa sepulcral deste monumento funerário, entretanto desaparecida, possuía ou não
escudetes ou qualquer outra representação heráldica.
O túmulo da rainha D. Mecía Lopez de Haro, na Capela da Vera Cruz ou Capela da
Rainha de Portugal, por ela fundada na igreja de Santa Maria la Real de Nájera, apresenta,
em todas as faces da arca sepulcral, a alternância de grandes escudos, ora com as armas dos
Haros, ora com as armas portuguesas do Reino, prova cabal de como, mesmo após D.
Sancho II ter sido destronado e sendo já falecido, D. Mecía insistiu na condição de rainha,
sinónimo do mais elevado estatuto social, associado ao da sua nobre linhagem.

516
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Túmulo da rainha D. Mecía


Lopez de Haro.
c.1272.
Capela da Vera Cruz da
Colegiada de Santa Maria la Real
de Nájera (La Rioja, Espanha).
Apud Gloria Treviño, Santa
María la Real de Nájera, p. 25.

A já referida D. Branca,
filha de D. Afonso III e
Senhora de Las Huelgas de
Burgos, possui, ainda hoje, um
precioso monumento
funerário em que a decoração
se resume à abundante
heráldica patente nos escudos
de Castela-Leão e de Portugal,
inseridos em folhagem e
arabescos de gosto mudéjar. A
arca sepulcral é trapezoidal,

Túmulo da infanta D. Branca, filha de D. Afonso III.


com tampa de duas águas, com
Séc. XIII. Mosteiro de Las Huelgas de Burgos.
Apud Fray Valentin de la Cruz, El Monasterio de las Huelgas de Burgos, p. 40.
as superfícies cobertas por um

único tema: um conjunto de estrelas em baixo-relevo, entrelaçadas, onde se alternam as


armas de Castela e Leão, dispostas em campo escuartelado em cruz, com 1-4 castelo e 2-3
leões e as armas de Portugal18.

A. MAYER, El Estilo Gótico en España, Madrid, 1929, p. 80, notou, como anomalia, o facto da
18

composição do escudo português adoptar uma tipologia antiga e, mais surpreendente ainda, o facto de

517
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

O túmulo de D. Urraca Afonso, filha bastarda de D. Afonso III, na sua singela


morfologia, apresenta como decoração, apenas um grande escudo com as quinas
portuguesa, lavrado numa das abas da tampa sepulcral.

Pormenor do túmulo de D.
Urraca Afonso.
Séc. XIII-XIV.
Igreja do Mosteiro de S. João
de Tarouca.
Foto: CVF.

Também o monumento funerário (provável cenotáfio) da dita princesa D.


Constança Manuel, na Sé de Lisboa, a que já nos referimos a propósito de outros
elementos iconográficos, confere especial destaque aos elementos heráldicos (escudos de
Portugal e dos Manuéis). Estes, assumem superior dimensão na arca sepulcral, ao ocupar
todas as faces e, ultrapassando os campos vulgarmente consignados para este tipo de
emblemática, para se impor, agora, com escudos mais pequenos, sobre a almofada em que
repousa a cabeça do jacente, ladeando-a. De facto, este extravasamento da heráldica das
arcas ferais para campos vários da tampa constitui uma tónica comum aos outros túmulos
trecentistas existentes no deambulatório da Sé de Lisboa19.

estes possuírem seis quinas e não cinco nos pequenos escudos, levando o autor a recuar a cronologia
vulgarmente adoptada para este túmulo (séc. XIV), datando-o do século XIII e concluindo que se
deverá tratar do túmulo da rainha D. Urraca de Portugal, filha de Afonso VIII. Esta hipótese é
totalmente improvável, uma vez que, D. Urraca, mulher de D. Afonso II, foi sepultada no Mosteiro de
Alcobaça, em túmulo ainda hoje existente, pelo que se mantém, de forma consensual, a identificação
deste túmulo com o lugar de inumação de D. Branca, infanta de Portugal.
19 Cf. Francisco Simas Alves de AZEVEDO, “Deux tombeau médiévaux portugais armoriés”,

Archivum Heraldicum – Bulletin, n.º 4, ano LXXIV, Lausanne, 1960, pp. 50-51; Luís Gonzaga de
Lencastre e TÁVORA, op. cit., 1984, pp. 11-18; Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, pp. 55-67.

518
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Túmulo da infanta (dita) D. Constança


Afonso.
Séc. XIV.
Sé de Lisboa.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

O túmulo da infanta D. Isabel (1324-†1326), filha de D. Afonso IV e de D. Beatriz,


reivindica, igualmente, um acentuado predomínio da heráldica. Verifica-se a existência de
escudos com as armas de Portugal e escudos com as armas de Aragão (estas últimas,
recebe-as de avó, D. Isabel de Aragão, encomendadora do túmulo, e não de sua mãe, que
era da família real castelhana), na tampa do túmulo (a ladear o jacente) e, ainda, na testeira
da arca, onde, na face posterior do baldaquino, se releva um grande escudo com as armas
de Portugal, antecedido por inscrição epigráfica de difícil leitura. Na arca tumular são
representadas as armas de Castela e Leão. Mas no caso deste túmulo, a heráldica não se
constitui apenas através de escudos esculpidos em relevo, sendo sublinhada através da
pintura do próprio túmulo, que tudo nos leva a crer ser ainda a policromia original, através

519
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

da representação das armas de


Portugal, Aragão e Leão nas torres
pinaculares que dividem os nichos
com que é decorada a arca sepulcral.
Este constitui um elemento digno de
nota, por quanto não conhecemos
qualquer outro exemplo de heráldica
pintada em monumentos funerários
medievais portugueses.
Mais imponente, mas com
idêntica linguagem plástica, o túmulo
da Rainha Santa também não deixa
quaisquer dúvidas ao observador
sobre a origem aragonesa desta rainha
de Portugal. Na testeira, apenas foram
Pormenor da arca tumular da infanta D. Isabel, com as torres
ameadas pintadas com heráldica familiar. Foto: José esculpidos escudos de Aragão: na face
Pessoa/IPM/DDF.

do baldaquino,a ladear o quadrifólio, dois escudetes maiores e, na arca sepulcral, outros


dois mais pequenos, a encimar o nicho onde se representa o Calvário. Já sobre a tampa
deste imenso sarcófago, alinham verticalmente, de ambos os lados da estátua jacente,
escudetes com as quinas de Portugal, as palas de Aragão e as águias da Sicília20. A grande
profusão de escudetes heráldicos, e a sua abrangência enquanto símbolos das origens, bem
como do cargo que desempenhou como rainha, ajudam a fazer do túmulo de D. Isabel
uma verdadeira “máquina celebrativa” do poder, um instrumento de propaganda de
altíssimo valor. Muitos outros aspectos da iconografia deste túmulo, bem como a sua
leitura iconológica, serão desenvolvidos em capítulos posteriores.
Por fim, o túmulo de D. Inês de Castro contempla, nada menos do que quarenta e
quatro escudetes, onde se alternam, sequencialmente, nas faces da tampa sepulcral, as
armas de Portugal e as armas da linhagem dos Castro. A disposição dos escudos, a sua

20 Cf. Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2002, p. 227.

520
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

abundância e repetitividade lembram o modelo dos túmulos dos Infantes de Castela


(c.1274), na igreja de Santa Maria la Blanca, em Villalcázar de Sirga (Palência).
Através desta heráldica, juntamente com a presença da coroa na cabeça da estátua
jacente de D. Inês, D. Pedro I sublinhava o seu juramento de que se haviam casado e de
que ela era rainha legítima de Portugal, digna de ser representada junto com as armas
simbólicas do reino. Ora, se nos referimos à iconografia do túmulo de D. Isabel de Aragão
como constituindo uma “máquina celebrativa”, este conceito não poderia ter aplicabilidade
mais notória e abrangente do que no túmulo de D. Inês de Castro.

Túmulos dos infantes D. Leonor


e D. Filipe. c.1274.
Villalcazar de Sirga (Palência,
Espanha). Foto: CVF.

A escassez de representações equestres de mulheres, sobretudo de rainhas, faz com


que o selo de D. Beatriz21, mulher de D. Afonso III, a que anteriormente nos referimos,
constitua um exemplar digno de nota, porque único. A sua raridade não se faz sentir
apenas em Portugal, mas são igualmente invulgares noutros contextos geográficos.
Neste selo português, não obstante os estragos infligidos, podemos observar a
rainha, vestida com manto, coroada e com os cabelos soltos, montando à amazona num
cavalo, de que apenas podemos ver parte do dorso e das patas. Este, ostenta gualdrapas,
num tecido de riscas, mas sem qualquer simbologia heráldica. Infelizmente, não podemos
arriscar sobre a existência de outros atributos que a rainha segurasse com as mãos.

21
Cf. Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, p. 236, fig. 295.

521
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Anverso do selo equestre de D. Beatriz, filha


de Afonso X, o Sábio e mulher de D. Afonso
III.
Autenticava uma carta pela qual a rainha
ordenava que se desse ao Cabido da Sé de
Coimbra o Paul de Ansos (Brunhos).

1294. Cabido da Sé de Coimbra, n.º 925, ms. 22


(2.ª incorporação).
Foto: Luís Pavão/IANTT

Entre os parcos exemplos de representações equestres em selos, para cotejo com


esta obra, podem ser referidos os selos de Joana de Stuteville (c. 1266?), considerado uma
raridade pela tipologia iconográfica, onde se pode ver a nobre dama, filha e única herdeira
de Nicolau de Stuteville, a cavalo, e segurando com uma das mãos o escudo com a
heráldica paterna, bem como o selo de Alice, viúva de Henrique III (duque de Brabante e
da Lotaríngia), datado de 1260, cuja tipologia terá servido de modelo ao selo anterior22.
É provável que a adopção do retrato equestre por parte destas mulheres (quer as
pertencentes às famílias reais, quer as das famílias da aristocracia), pretendesse estabelecer
uma associação entre imagens equestres e “nobreza”, enquanto estatuto. Talvez uma
tentativa de “decalque” dos modelos equestres dos selos de reis, infantes e cavaleiros, mas
com particularidades femininas, como a indumentária e a postura com que montam a
cavalo.

22
Sobre estes últimos selos veja-se Jonathan ALEXANDER e Paul BINSKY, ed., op. cit., 1987,
p. 252.

522
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

2. A CAÇA
Se a maioria dos túmulos trecentistas portugueses reflecte estilos e programas
iconográficos que revelam pontos comuns com a arte funerária que se produzia na
Europa de então, já outros, pertencentes a notáveis cavaleiros portugueses destas
cronologias, veiculam valores que se afirmam como eminentemente nacionais, ao nível
do temário iconográfico, conferindo-lhes uma especificidade e uma singularidade
autóctone. Referimo-nos aos temas cinegéticos, relembrando aqui as suas
particularidades, conscientes de que antes de nós, outros autores se interessaram por
este tema, desenvolvendo e publicando estudos de significativo interesse.
Para alguns, a actividade cinegética e o seu desenvolvimento no Portugal
medieval foi o objecto de estudo1, e a arte que a tinha por tema, forma de ilustração ou
referência do que ficou escrito. Outros, porém, partindo das cenas esculpidas em
diferentes monumentos, analisaram os objectos per si, cotejando-os com as informações
documentais disponíveis2. Partimos, assim, de uma questão já explorada, e que nós
próprios tivemos oportunidade de abordar em outra ocasião, mas que entendemos ser
ainda campo de reflexão e de acrescento de informações, tanto quanto possível.
O tema coloca-nos algumas questões pertinentes e obriga-nos a levantar
hipóteses e a seguir pistas que, mesmo que não sejam definitivamente conclusivas, são

1 Cf. José MATTOSO, “A Caça no Soajo”, Estudos de Homenagem a Mariano Feio, 1986, pp.

681-688, republicado em Fragmentos de uma Composição Medieval, 2ªed., Lisboa, Estampa, 1990, pp.
205-211; Carlos Guilherme RILEY, A Caça na Sociedade e na Cultura Medieval, Provas de Aptidão
Pedagógica e Capacidade Científica, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1988 (policopiado);
Carlos Guilherme RILEY e Maria Helena da Cruz COELHO, “Sobre a caça medieval”, Estudos
Medievais, vol. 9, Porto, 1988, pp. 221-217.
2 Sobre os túmulos com iconografia cinegética veja-se, entre outros estudos, J. Possidónio

da SILVA, “O sarcófago de D. Afonso Sanches”, Boletim da Associação dos Arqueólogos, vol. III, 2.ª
série, n.º 11, Lisboa, RAACAP, 1880-1882, pp. 169-170; IDEM, “Relatório da Direcção”, Boletim da
Associação dos Arqueólogos, t. XIII, 5.ª série, n.º 6, Lisboa, RAACAP, 1917, p. 261; Vasco MOREIRA,
“A Igreja de São João de Tarouca...”, op. cit., Fev. de 1911, pp. 15-16; IDEM, Monografia do Concelho
de Tarouca, História e Arte, Viseu, 1924; Vergílio CORREIA, op. cit., 1924, pp. 29-30 e 173-174;
Diogo de MACEDO, Iconografia Tumular Portuguesa. Subsídios apra a formação de um Museu de Arte
Comparada, Lisboa, 1934, p. 25; Francisco Maria Esteves PEREIRA, “Túmulo de D. Fernão
Sanches”, Revista de Arqueologia, vol. 1, Lisboa, 1932, pp. 112-115; J. M. Cordeiro de SOUSA, op. cit.,
1946, p. 11; Reynaldo dos SANTOS, Oito Séculos…, p. 39; IDEM, op. cit., vol. I, 1948, p. 27;
Margarida RIBEIRO, “A montaria na escultura tumular...”, op. cit., 1960, pp. 29-40; Pedro DIAS, op.
cit., vol. IV, 1986, p. 127; Mário Jorge BARROCA, “48. Sarcófago do conde D. Pedro”, Nos Confins
da Idade Média, 1992, pp. 135-137; IDEM, op. cit., 2000, vol. I, t. II, 2000, pp. 1535-1541; Mário
Alberto Nunes COSTA, Vasco Esteves de Gatuz e o seu Túmulo Trecentista em Estremoz, Lisboa,
Academia Portuguesa da História, 1993; Carla Varela FERNANDES, “Escultura Gótica”, Museu
Arqueológico do Carmo. Roteiro da Exposição Permanente, coord. José Morais Arnaud e Carla Varela
Fernandes, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2002, pp. 86-87.

523
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

caminhos e achegas que entendemos poderem conduzir à melhor compreensão de um


fenómeno que acabou por se afirmar entre nós.
A verdade é que, à excepção do túmulo de Fernán Perez de Andrade, o bóo
(1387. Igreja de S. Francisco, Betanzos, A Coruña)3, e este mesmo já tardio em relação
ao grande período criativo de arcas tumulares com cenas cinegéticas em Portugal
(segundo e terceiro quartel do século XIV), esta iconografia não mereceu grande apreço
por parte dos grandes senhores de outros reinos nas mesmas cronologias.

Túmulo de Fernán Perez de


Andrade.
1387.
Igreja de S. Francisco de Betanzos.
(A Corunha – Espanha).
Apud Joaquim Yarza Luarza
Luaces, Baja Edad Media. Los Siglos
del Gótico, p. 43.

Perante o corpus iconográfico medieval com cenas cinegéticas que hoje é possível
reunir, dificilmente conseguimos deixar de nos seduzir pelo fascínio que estas imagens
produzem. Talvez por escaparem às tradicionais cenas religiosas e aos temas
escatológicos mais comuns4, deixando-nos entrar num universo semi-pagão; talvez
porque lhes pressentimos origens que recuam para lá da Idade Média; talvez, ainda,

3 Cf. entre outros estudos, F. VALES VILLAMARÍN, “El sepulcro de Andrade o Boo”,
Anuário Brigantino, 1949; Manuel Chamoso LAMAS, op. cit., 1979 e Manuel NÚÑEZ
RODRÍGUEZ, “El sepulcro de Fernán Pérez de Andrade en San Francisco de Betanzos, como
expresión de un individualidade y una época”, Bracara Augusta, vol. XXXV, 1981, pp. 397 e ss;
IDEM, La Idea de inmortalidad en la Escultura Gallega (La imaginería funerária del caballero, s. XIV-XV),
Pontevedra, 1985, pp. 21-32. Sobre esta personalidade, paradigma medieval do cavaleiro ideal, veja-
se a recente obra de José Francisco CORREA ARIA, Fernán Pérez de Andrade, o Boo, ed.
Touxosoutos, 2004.
4 Como escreveu Reynaldo dos SANTOS, op. cit., 1948, vol. I, p. 27, a propósito da

decoração da arca funerária de D. Fernão Sanches, “a composição tem uma liberdade, movimento e
realismo que nos distraem da monotonia dos coros de carpideiras e fradinhos emparelhados”.

524
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

porque não encontramos monumentos funerários com estas características em outro


lugar que não aqui, em solo nacional, ou muito perto de nós, num espaço que tanto se
nos assemelha, hoje e sempre, a Galiza. Mas neste espaço geográfico, as cenas
cinegéticas em escultura funerária são apenas testemunho da contaminação de uma
tradição portuguesa que se estendeu, mas pouco, além das suas fronteiras.
A principal questão que esta iconografia nos coloca é, exactamente, o porquê da
sua presença em contextos funerários. A representação do javali é frequente em outros
suportes, ao longo da Idade Média, quer em Portugal, quer noutros países. Mas, a
decorar faces inteiras das arcas sepulcrais, constituiu uma originalidade que deverá
encontrar a sua explicação lógica em alguma influência que se fez sentir com maior
vigor em Portugal, do que na arte funerária de outras nacionalidades. Note-se, porém, a
título de exemplo raro, o túmulo de Roberto de Vere, quinto Duque de Oxford (†
1296), onde a presença do javali não consta na decoração parietal da arca, mas sim aos
pés do cavaleiro, como presa subjugada, substituindo aqui os cães, como elementos que
mais facilmente encontramos a ocupar este lugar, ou, mais raramente, leões ou dragões.

Mesmo que aluda


simbolicamente ao
exercício da caça, em
memória das virtudes
cavaleirescas de Roberto de
Vere, a ausência de uma
narrativa desenvolvida,
torna este túmulo
substancialmente diferente
Túmulo de Roberto de Vere. c.1320-1330. Proveniente de Earl´s Colne
Priory (Essex), transferido em 1935 para a Capela de Santo Estêvão de Bures dos túmulos portugueses.
(Suffolk, Inglaterra). Apud Anne McGee Morganster, ob. cit., p. 89

525
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Não podemos justificar a


opção dos cavaleiros
portugueses com o simples
apreço que esta actividade
granjeou em Portugal ao
longo de toda a Idade
Média e como tão bem
testemunham os vários
tratados sobre a caça que
Desenho do Túmulo de Roberto de Vere.
Londres, British Library, ms add. 27348, f. 29. Apud Anne McGee ainda hoje se conhecem.
Morganstern, ob. cit., p. 89
Alguns da autoria ou supervisão dos próprios reis, outros da autoria de homens
estreitamente relacionados com a corte, ao que se junta, ainda, os comentários que
alguns cronistas, como Fernão Lopes, tecem à caça, como divertimento e ocupação
indispensável para alguns senhores e sobretudo, soberanos, entre os quais e com
especial destaque, D. Fernando I, mas também D. Afonso IV e D. Pedro I.
Entender esta questão à luz de um conceito de periferia, que terá proporcionado
a pervivência de uma mentalidade e gostos de época Clássica e Altimedieval, pode ser
um caminho de investigação válido, mas, desde já, podemos afirmar que não encerra
totalmente os problemas que suscita e as interrogações que sobre ele se possam fazer.
Relembramos que, no mundo dos milites, guerra e caça participam de aspectos
muito comuns. Resistência, força e coragem são qualidades exigidas no campo de
batalha e nos campos e florestas onde se desenrolam as actividades cinegéticas. São
estas também algumas das principais linhas de força de que se devem compor as
características dos cavaleiros medievais. Por isso, se estão em tempos de tréguas ou paz,
a atenção deve ser dirigida para a actividade que lhes proporciona o treino físico,
mantendo-os saudáveis e prontos para a guerra e afastando-os da vida perniciosa do
ócio e da tentação de outros pecados, menos corteses e menos cristãos5.
Essa actividade é, sem dúvida, a caça, talvez até mais que os torneios, pelo
menos em Portugal, onde a prática destes espectáculos não parece ter conhecido o
mesmo sucesso e fôlego que em países como a França ou a Inglaterra, e, como

5 Na interpretação de Carolina Michaëlis de VASCONCELOS, “Mestre Giraldo e os seus

Tratados de Alveitaria e Cetraria”, Revista Lusitana, vol. XIII, n.º 3 e 4, Lisboa, Imprensa Nacional,
1923, e Margarida RIBEIRO, “A montaria...”, op. cit., 1960, p. 30.

526
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

consequência, a transposição desses acontecimentos lúdicos para as diferentes formas


de arte é, também, francamente mais visível na produção artística destes países.
Mas a caça não é apenas um meio constante de pôr à prova a coragem e
inteligência dos caçadores; é também um importante divertimento, ou seja, é também
uma actividade lúdica que tem continuidade na festa ou banquete, não diferindo, por
isso, do que caracterizava a caça no mundo romano da Antiguidade, como se dá
testemunho numa iluminura da obra de Gastón Phebus (1387-1389).
Herdeiros e continuadores de tradições guerreiras ancestrais, estes homens
pretenderam deixar para a posteridade uma memória social que demonstrasse não
apenas o seu poder enquanto classe social dominante, mas também valores de ordem
espiritual, associados aos ideais da cavalaria. Margarida Ribeiro já havia sublinhado o
valor simbólico das representações da caça ao javali, tendo em conta as superstições
medievais e os comentários do Livro da Montaria de D. João I6.
Mas para que possamos melhor perceber o conteúdo iconográfico das obras em
análise, cabe analisar as cenas representadas nas faces de algumas arcas tumulares e
fazer uma avaliação “estatística” dos homens que as mandaram fazer ou para os quais
foram feitas. Essa é, sem dúvida, a parte que menos problemas suscita. Tratam-se
maioritariamente de cenas de caça ao javali e cenas de falcoaria, esculpidas nas arcas
funerárias de vários cavaleiros, incluindo alguns dos filhos varões de reis, em especial,
filhos bastardos.
Existem hoje cinco monumentos funerários medievais com cenas cinegéticas:
de D. Fernão Sanches († c.1335 – capela de São Cosme e São Damião7 da extinta
igreja de São Domingos de Santarém); de D. Pedro, Conde de Barcelos (igreja de São

6 Margarida RIBEIRO, “A montaria...”, op. cit., 1960, p. 30.


7 Francisco Maria Esteves PEREIRA, “Túmulo de D. Fernão Sanches”, op. cit., 1932, p.
113, identifica a capela onde o cavaleiro Fernão Sanches foi sepultado como sendo a do Rosário de
Nossa Senhora da Oliveira, “fundada em 1222, junto da qual, depois de 125, foi edificado o
convento de S. Domingos em Santarém”. Já segundo Jorge CUSTÓDIO, “O convento de S.
Domingos de Santarém: Memória, espaço e arquitectura”, S. Frei Gil de Santarém e a sua Época, (Cat.
de Exposição), Santarém, Câmara Municipal de Santarém, 1997, pp. 123-124, “Uma das capelas que
menos sofreu até finais do séc. XVIII foi a de S. Cosme e D. Damião, que albergava membros da
família real. Nela encontrava-se sepultado Fernão Sanches (✝1333). Filho ilegítimo do rei D. Dinis.
É muito provável que a tampa sepulcral em Lousa de D. Maria Afonso, filha natural de D. Dinis e
mulher de D. João de La Cerda, também viesse desta capela, ou mesmo a campa do infante D.
Afonso, filho do rei D. Afonso IV, o que fora coroado no Paço Real. Na capela estava ainda um
estribeiro do próprio rei, Martim Durão (1272), mas estivera antes noutro lugar”.

527
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

João de Tarouca); o dito de D. Branca de Sousa8, mulher do Conde D. Pedro (séc.


XIV) provavelmente proveniente de São João de Tarouca, actualmente pertença do
Museu de Lamego); de D. Gomes Martins9 (século XIV- Igreja matriz de Monsaraz);
de Vasco Esteves de Gatus (segunda metade do século XIV - igreja de São Francisco
de Estremoz). A este inventário, junta-se outro túmulo, já desaparecido, pertencente ao
infante D. Afonso, Senhor de Portalegre, filho de D. Afonso III e de D. Beatriz,
sepultado na Igreja de S. Domingos de Lisboa que, segundo as descrições, não temos
dúvidas que era decorado com cenas montaria.
Embora todos estes monumentos funerários se revistam do maior interesse para
a História da Arte nacional, deter-nos-emos apenas sobre os que pertenceram a
elementos da família real portuguesa, sem que possamos, contudo, deixar de referir os
restantes.
No túmulo de D. Fernão Sanches, é a face longa (que se opõe à que se
encostava aos muros da capela de São Cosme e de São Damião, sem qualquer
decoração), aquela que foi destinada às cenas de caça; isto é, a face frontal da arca
funerária e aquela que adquiria maior visibilidade.
Entendemos, tal como Vergílio Correia10, que este é, entre todos os túmulos
com representações cinegéticas, o que apresenta maior qualidade escultórica, não só
porque o artífice soube tirar partido da pedra em que o lavrou, mais dúctil que o granito
dos túmulos do Conde D. Pedro, ou do dito de D. Branca de Sousa, mas porque o fez
com grande mestria, não desmerecendo os detalhes mais ínfimos, numa procura de
naturalismo que parece ter norteado as intenções mais profundas do mestre escultor.
A composição está truncada, interrompendo a leitura sequencial das cenas,
graças a dois roços abertos nesta face, efectuados quando, por algum motivo que
desconhecemos, os frades dominicanos entenderam por bem inseri-lo dentro de uma
parede11, mutilando assim as figuras, tal como dá notícia o Arq. Possidónio da Silva, a
quem se deve a descoberta desta obra, bem como a sua salvaguarda12.

8 Vasco MOREIRA, op. cit., 1924, p. 74, identifica este sarcófago como tendo pertencido a
D. Branca de Sousa, primeira mulher do Conde D. Pedro. Desde então, vários autores colocaram
em dúvida esta atribuição, sem contudo ser possível identificar quem de facto foi aí inumado.
9 Procurador da rainha D. Beatriz, mulher de D. Afonso III.
10 Vergílio COREIA, op. cit., 1924, p. 31.
11 “(...) Ora como a grossura da parede não permitisse esconder totalmente todo o túmulo,

porque havia duas hombreiras e uma porta fingida sobre a face opposta, que fazia fundo ao tumulo,
tiveram de mutilar as esculpturas da face principal do sarcophago em dois lugares, afim de fazer a

528
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Túmulo de D. Fernão Sanches, filho bastardo de D. Dinis. c. 1335 Pedra calcária Prov. Mosteiro de S.
Domingos de Santarém. Museu Arqueológico do Carmo, Inv. n.º Esc. 2 . Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

Possidónio da Silva, bem como Cordeiro de Sousa e Margarida Ribeiro,


entenderam a iconografia da face longa do sarcófago como uma memória do (dito)
“acidente de Almeirim”, no qual Fernão Sanches teria sido ferido por um javali,
acabando por falecer, em consequência desses mesmos ferimentos. Assim como Mário
Jorge Barroca, também entendemos que esta interpretação não ultrapassa mais do que
o domínio lendário, não tendo correspondência efectiva com a realidade biográfica de
Fernão Sanches, nem com a do túmulo13.

necessária caixa para entrar todo o alto relevo no tardoz das ombreiras, e ficar só a pedra das costas
do mencionado tumulo apparente na parede na capela”. Cf. J. Possidónio da SILVA, “O sarcófago
de D. Afonso Sanches”, op. cit., 1880-1882, p. 170.
12 Segundo uma descrição de J. Possidónio da Silva, sabe-se que o túmulo esteve entaipado

durante bastante tempo numa capela da extinta igreja de S. Domingos: “Quando em 1866 fomos a
Santarém evitar que as obras d’arte que se achavam abandonadas, mutiladas e desprezadas nas
igrejas profanadas (...) podessem ser conservadas (...) notamos que na remota capella do Rosário de
Nossa Senhora da Oliveira, da fundação de 1222 e junto da qual se edificou depois o convento de
S. Domingos em 1225, havia, defronte do retábulo, pertencente ao túmulo de Ruy de Menezes,
uma grande pedra lavrada a picão. Encravada na parede e a sua tosca face no destorcimento da
parede de alvenaria! (...) mandámos esburacar a parede sobre os dois lados da dita pedra (...), e veio
a descobrir-se que estava entaipado o sarcophago”. Cf. IDEM, Ibidem, p. 170 e “Relatório da
Direcção”, op. cit., 1917, p. 261. Após 1866 o túmulo foi transportado para o Museu do Carmo e em
1916 passou para o interior do referido museu escapando assim das vicissitudes climatéricas12.
13 Cf. Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2000, vol. I, T. II, p. 1539.

529
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Na verdade, o que aqui se narra são factos alusivos a uma das actividades lúdicas
preferenciais da nobreza, e significativa sob o ponto de vista estatutário, sublinhada
pelos atributos de nobilidade da estátua jacente, a que já nos referimos em capítulo
anterior.
Nesta composição, conjugam-se vários elementos e coloca-se em destaque a
cena que representa o momento exacto em que o javali foi ferido. Esta é a que ocupa
uma posição central e de maior destaque, mas é antecedida e sucedida por outras.

Composição da extremidade esquerda da


face longa do túmulo de D. Fernão
Sanches.
Fernão Sanches a cavalo e segurando o falcão
sobre a manopla. Atrás de si uma árvore,
onde se escondem pássaros que um pequeno
cão se esforça por espantar.
Museu Arqueológico do Carmo.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

Assim, na extremidade direita da composição, representa-se uma árvore, de


folhagem bem recortada, que abriga alguns pássaros. Na base do tronco, observa-se um
cão que, encostando duas das patas, empurra a árvore. Na realidade, este cão estaria a
ladrar, com o objectivo de assustar e afugentar as aves do seu local de repouso. Este
detalhe da cena recorda a iconografia de uma das faces estreitas do túmulo de D.
Gomes Martins, onde podemos ver uma cena idêntica.

530
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Cena de altanaria. Face lateral do túmulo


de D. Gomes Matins.
Dois cães ladram em direcção à árvore
onde se encontram abrigados alguns
pássaros. O cavaleiro aproxima-se, trazendo
o falcão sobre a manopla.
c. 1341
Igreja de Santa Maria de Monsaraz
Foto: CVF

Imediatamente a seguir vemos representado um elegante cavalo, caminhando a


trote, montado por figura vestida com trajos de corte, com penteado e barbas idênticas
à figura do jacente, pelo que interpretamos ser uma representação de D. Fernão
Sanches, numa cena de altanaria, com o falcão, imponente e de asas abertas, assente
sobre a manopla que lhe protege a mão e parte do braço. O falcão, altamente treinado,
faria agora a sua perseguição mortal às aves que antes se escondiam por entre a
folhagem da árvore, ainda que essa imagem não tenha sido representada.
Interrompida esta última cena pelo sulco profundo infligido à pedra do túmulo,
segue-se nova representação equestre, mais completa e menos desgastada do que a
anterior, onde um cavaleiro, que, novamente identificamos, tal como outros autores já o
haviam feito, como um “retrato” de D. Fernão Sanches, em cena de montaria. A
imagem é dotada de grande beleza, onde o movimento se expressa pelos gestos do
cavaleiro e pela posição dos dois animais e, ainda, pela sugestão do balançar dos ramos
das árvores.
O cavalo relembra a tipologia de tipo equestre mais frequente nas composições
dos séculos XIII e XIV, quer as que vemos em selos de reis e de outros senhores, quer
na escultura, como é exemplo o painel esculpido em alto-relevo para a igreja matriz de
Santiago do Cacém, onde se representa Santiago a combater os mouros14.

14 Sobre este relevo veja-se José António FALCÃO e Fernando António Baptista

PEREIRA, Santiago Combatendo os Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, Beja – Santiago de
Cacém, Departamento do Património Hostórico e Artístico da Diocese de Beja/Câmara Municipal
de Santiago do Cacém, 2001.

531
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Composição central da
face longa do túmulo de
D. Fernão Sanches.
Fernão Sanches, a cavalo,
desfere um golpe com a
lança no pescoço do javali.
Dois moços abrigam-se e
protegem-se sobre as
árvores, e um deles toca o
corno de caça.
Museu Arqueológico do
Carmo.
Foto:
José Pessoa/DDF/IPM

O animal galopa em direcção à presa, neste caso, um javali de grande porte e de


presas proeminentes, que tem o focinho rente ao chão. A proximidade deste com as
patas do cavalo indicia um momento de grande perigo, e em que só uma lançada
certeira, num golpe de matar de justa, pode deter a fúria do animal selvagem. Dois
mastins, inseridos no espaço entre as quatro patas do cavalo, também se dirigem e
aproximam corajosamente do javali acossado; sobre dois carvalhos que emolduram esta
composição central, dois moços refugiam-se do perigo eminente, agarrando-se aos
troncos, e o da esquerda tocando o corno ou buzina de caça.
Uma vez mais, a destruição de uma parte da face do sarcófago impede-nos de
visualizar o resto do corpo do javali e parte de uma figura que se encontra na
extremidade direita.
Esta, quase que acessória, representa um piqueiro que se dirige na direcção do
javali e do cavaleiro. Veste trajos mais curtos do que o cavaleiro e calça botinas
pontiagudas. Trás uma lança aos ombros e, enrolada à volta do braço esquerdo, uma
corda, com a qual irá aprisionar o animal.

532
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Figura de homem barbado e com a lança ao


ombro, a caminhar em direcção ao
acontecimento que decorre no centro da
composição.
Extremidade direita da face longa do túmulo de
D. Fernão Sanches.
Museu Arqueológico do Carmo
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Toda a narrativa é muito descritiva e destina-se, em nosso entender, a


propagandear a condição social de Fernão Sanches e as suas altas virtudes de cavaleiro
destemido, na qualidade de protagonista, dando disso provas através do exercício da
caça - a caça com falcão e a caça ao javali -, os dois tipo mais praticados e mais
apreciados na Baixa Idade Média, pelo menos, em Portugal, como adiante teremos
oportunidade de melhor avaliar.
Algo diferente, porque não insere cenas alusivas à falcoaria e porque é esculpido
no ingrato granito do Norte, é o grandioso monumento funerário do Conde de
Barcelos, na igreja do antigo Mosteiro de S. João de Tarouca, um dos mais interessantes
espécimes da tumulária medieval portuguesa.
Se a importância dada à caça, como tema de evocação, por excelência, da
condição nobre, foi valorizada por D. Fernão Sanches, ao mandá-la representar na face
longa do seu sarcófago (consignando as duas dos topos a cenas religiosas), D. Pedro
Afonso, ao ter destinado três das faces da sua arca funerária à iconografia com temas
cinegéticos, e a quarta ao escudo com armas de Portugal, leva ainda mais longe a
afirmação da linhagem, do poder senhorial e dos valores da cavalaria.
Apesar de se fazer sepultar numa importante casa da Ordem de Cister, e de o
seu túmulo ocupar um espaço algo desproporcionado em relação à dimensão desta

533
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

igreja, tornando-se especialmente visível e impactante, a verdade é que nenhum tema


religioso figura neste túmulo, como, à partida, seria de esperar.

Túmulo de D. Pedro Afonso, Conde Barcelos, filho bastardo de D. Dinis e de D. Grácia Frois.
Cena esculpida numa das faces longas da arca sepulcral.
c. 1350. Granito. Igreja de São João de Tarouca
Foto: Henrique Ruas (cortesia IPPAR)

O que vemos na face longa que hoje se encontra voltada para o público é uma
composição que só pode ter saído da mão de um escultor de grande perícia, que soube
compor cenas bem estruturadas e correctamente distribuídas no espaço. Embora o
granito em que foi esculpida não se preste à realização de trabalhos de grande detalhe e
naturalismo, a verdade é que nos encontramos diante de uma arte fortemente
expressiva, onde a sensação de movimento e de acção são as mais perceptíveis. Neste
“cortejo” quase conseguimos ouvir o remexer das folhas das árvores e arbustos,
atropelados pela passagem veloz dos animais, o rosnar dos cães e a sonoridade conjunta
dos olifantes soprados pelos três caçadores.
Assim, por entre um cenário florestal estilizado, mas mais naturalista do que
aquele que encontramos no túmulo dito de D. Branca de Sousa, o artífice representou a
perseguição ao porco-montês, realizada por três moços de monte que tocam olifantes.

534
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

É o momento em que o javali sai das moitas, iniciando a fuga sem sucesso, uma vez que
se encontra cercado, e é perseguido por dois mastins, enquanto que um terceiro o ataca,
mordendo-lhe o pescoço. Os cães, por se encontrarem mais perto do observador, e por
desempenharem um papel fundamental nesta cena de acção, assumem uma dimensão e
até uma monumentalidade superior, quando comparados com os três caçadores. O
animal perseguido é então “abatido a golpes de escuma”15.

Arca funerária do túmulo dito


de D. Branca de Sousa
Séc. XIV
Museu de Lamego
Foto: CVF

Já na outra face longa da arca tumular, apesar de se repetir o tema da caça ao


javali, os protagonistas mudam, em número e em estatuto. Não obstante o facto de boa
parte desta face ter sido destruída, percebemos que várias figuras foram
deliberadamente semi-apagadas, mas podemos ainda contemplar a figuração de um
cavaleiro, enquadrado, novamente, por arvoredo, idêntico ao que se releva na primeira
face descrita. É provável que, tal como no túmulo de D. Fernão Sanches, também aqui
se tenha pretendido “retratar” o Conde D. Pedro, “em atitude honrosa de matar de
justa”16 o perigoso javali.
Neste golpe certeiro, fruto da perícia de cavaleiro bem treinado, imortalizou-se a
imagem de destreza, valentia e nobreza do famoso conde, que fere mortalmente o javali
de pelo eriçado. Esta condição de privilegiado e poderoso aristocrata é sublinhada na
estátua jacente, onde elementos como a espada, esporas, túnica e manto longos, bem
como o lebreu ou mastim disposto aos pés, se conjugam para acentuar a nobilidade do
defunto17.

15 Margarida Ribeiro, “A montaria...”, op. cit., 1960, p. 34.


16 IDEM, ibidem. Como refere a autora, este golpe é comum ainda à representação do
cavaleiro do túmulo dito de D. Branca de Sousa e é calculado antre o olho e a caluga, para atingir o
coração do animal e este cair varado sem mais feridas.
17 Cf. Mário Jorge BARROCA, “48. Sarcófago do Conde D. Pedro”, op. cit., 1992, p. 136.

535
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Túmulo de D. Pedro
Afonso, Conde de
Barcelos.
Cena de montaria (caça
ao javali) esculpida
numa das faces longas
da arca sepulcral.
Foto: Henrique Ruas
(cortesia IPPAR)

Este sarcófago apresenta algumas diferenças iconográficas relativamente aos de


D. Fernão Sanches e de D. Gomes Martins que vale a pena relembrar. Embora todos
valorizem a temática da caça, no de Fernão Sanches as cenas de altanaria conjugam-se
com as de montaria, enquanto que no último, apenas se dá destaque à altanaria,
preenchendo-se com esta iconografia toda a face correspondente aos pés da arca. No
túmulo do Conde D. Pedro, a caça ao javali é, por seu turno, o único tema que, de
forma mais desenvolvida e pormenorizada, se representa nos faciais de maior destaque.
Embora não possamos tecer considerações seguras sobre a iconografia do
túmulo do infante D. Afonso, Senhor de Portalegre, a descrição de Francisco Brandão
permite-nos perceber que, pelo menos uma das faces da arca feral, ou, com maior
probabilidade, todas elas, eram consagradas à caça ao javali: Sepultarão ao Infante no Real
Convento de S. Domingos em humma caixa de mármore branco entalhada em roda de arvoredos de
Montaria: estava no baixo do cruzeiro a entrada da porta do Coro; […] Por ser grande o muimento,
& estar em sitio que occupava a serventia do cruzeiro, em annos passados o desfizerão, recolhendo-se o
corpo em hum pequeno túmulo de pedra no alto da parede para a pare da sanchristia […]18.

18 Francisco BRANDÃO, op. cit., Parte VI, ed. 1976, p. 178. Cf. Mário Jorge BARROCA,

op. cit., 2000, vol. II, t. 2, pp. 1388-1395.

536
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Um pouco por toda a Europa, a caça com falcão, a par da caça ao veado,
sobrepôs-se à caça grossa, ou seja, a caça ao javali ou ao urso19. Em Portugal, pelo
contrário, a montaria, e em especial a caça ao javali, continua a ser aquela que, e como a
arte tumular deixa perceber, maior valorização conhece até períodos muito tardios
(paralelamente com a falcoaria, sem que esta se sobreponha à primeira), verificando-se
que o mesmo interesse pela iconografia da caça se propaga à Galiza, como atrás foi
referido.
O que este tema pretende ilustrar, em contexto funerário, para além dos
motivos já evocados relativos à afirmação do estatuto social dos defuntos, julgamos que
se prende com o mesmo substrato ideológico e simbólico comum à iconografia de um
grande número de sarcófagos romanos com cenas venatórias, a que se juntam valores
próprios da cultura medieval, em especial da cultura cortês e cavaleiresca.
A valorização que os Romanos deram à caça adveio de conceitos herdados das
civilizações da Antiguidade oriental, mas, especialmente, da civilização Grega. É com os
monarcas orientais que primeiro se assiste à prática da caça como desporto, “cuja
função lúdica e simbólica, associada à dignidade majestática, virá a evoluir no sentido
do chamado “modelo oriental da caçada real”, com o qual os Gregos virão a tomar
conhecimento através dos Reis Persas20. Os Poemas Homéricos, entre outros escritos
gregos que visam os temas cinegéticos, definem o modelo heróico do caçador e
estabelecem a distinção entre a caça “vil”, enquanto actividade de subsistência e

19 Michel PASTOUREAU, “La chasse au sanglier…”, op. cit., 2000, pp. 7-8, procurou

interpretar a desvalorização da caça ao javali, a partir do século XII, nos meios principescos e em
países como a França e a Inglaterra, analisando os discursos simbólicos sobre o javali nos bestiários
e enciclopédias, nos exempla, nos tratados de caça, bem como nos documentos contabilísticos, na
iconografia e nos textos literários, verificando a evolução desse mesmo discurso, como
testemunhos da progressiva depreciação e, simultaneamente, da valorização da caça ao veado. Mas,
para o autor, a resposta não se encontra explicitamente nesta documentação, e é necessário que se
coloque este animal numa problemática mais alargada, referente à posição que a Igreja manifestou
relativamente à caça e às funções reais e principescas no Ocidente, entre a época merovíngia e o
século XIV. O javali, que tanta admiração colhia entre os caçadores romanos, os druidas celtas e os
guerreiros germânicos, transforma-se num besta impura, inimiga do Bem e de Deus, imagem do
homem pecador e revoltado. Santo Agostinho descreve o javali a destruir as vinhas do Senhor,
sendo o primeiro a fazer deste animal uma criatura do Diabo. É Rábano Mauro, no séc. IX, que
fixa definitivamente a simbólica infernal deste animal, no contexto da cultura e entendimentos
religiosos, usando expressões que seriam aproveitadas nos bestiários latinos dos séculos XI e XII.
20 Cf. Carlos Guilherme RILEY, op. cit., 1988, s/p.

537
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

praticada pelos estratos inferiores da sociedade, e a caça “nobre”, enquanto actividade


desportiva, exclusiva da classe aristocrática21.
Estes modelos são adoptados pelos Romanos e largamente difundidos através
da arte, como forma de propaganda das virtudes dos heróis e dos imperadores. Michel
Pastoureau sublinha que os romanos gostavam de caçar o javali, porque se tratava de
uma caça nobre, de uma fera temível, da qual admiravam a força e a coragem. Para o
caçador era um animal extremamente perigoso, que se batia até ao fim, sem fugir nem
renunciar. Pelos mesmos motivos, era adversário respeitado e procurado. Esta caça
praticava-se muitas vezes a pé e terminava geralmente com um combate corpo a corpo,
face a face. O trabalho de abatimento fazia-se com a ajuda dos cães mas apenas um
homem desferia o golpe final sobre o animal furioso: sobre a garganta ou entre os
olhos. Ser vencedor de um javali era sempre um feito. Assim, para o mundo romano, a
caça nobre era a do javali, do leão e do urso, e não a caça ao veado, relegada para os
camponeses, uma vez que não propiciava a glória22.
No cotejo que realizámos com um vasto número de túmulos romanos,
facilmente percebemos a semelhança entre a iconografia com cenas cinegéticas lavradas
nestes monumentos da Antiguidade Clássica, com os temas lavrados nas arcas
funerárias anteriormente descritas, não obstante o menor grau de realismo
representativo destas últimas. Escolhemos apenas alguns exemplos de túmulos
exumados em França (Arles), entre dezenas de outros existentes, para que se verifiquem
as inúmeras semelhanças. Estas são perceptíveis tanto no conceito como na forma: por
entre o arvoredo de uma floresta, um homem a cavalo, desfere a lançada certeira que
fere e mata o animal aguerrido, ajudado por outros homens, a pé e armados, bem como
pelos cães. A única diferença verificável é a ausência do olifante nos túmulos romanos,
e que nos nossos sarcófagos medievais está sempre presente. As diferenças plásticas
são, sublinhamos, as mais notórias, em que o realismo da arte clássica dá lugar ao
grafismo e simbolismo da arte medieval.

21 IDEM, ibidem.
22 Cf. Michel PASTOUREAU, “La chasse au sanglier...”, op. cit., 2000, pp. 8-12.

538
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Túmulo com cena de caça ao javali. Meados do séc. IV. Arles. Musée d ‘Art Païen.
Apud. Naissance des Arts Chrétiens, p. 272.

Túmulo com cenas de caça ao javali e ao veado que ocupam as faces do sarcófago e de tampa.
Exumado em Trinquetaille (1974). Mármore branco. Último quartel do século IV.
Arles, Musée Lapidaire d’Art Chrétien. Apud Naissance des Arts Chrétiens, p. 274

Para Paul-Albert Février, “devant ces scène de chasse, on ne peut s’empêcher de


réfléchir à ce qui a été un des actes essenciels de la vie sociale de la classe sénatoriale –
qui a commandé ces décors. La chasse, comme la culture – lecture ou musique – a
constitué un des moments importants de l’otium (le « loisir » noble, opposé au travail),
ainsi que le montre Sidoine Apollinaire dans le portrait qu’il a tracé du sénateur Vectius,
ami hospitalier, très soucieux de chasse en même temps que de la lecture de livres saints
(…) »23.
Na arte romana, porém, não foram apenas os sarcófagos que serviram de
suporte aos temas cinegéticos, encontrando-se também em mosaicos, com inúmeros
exemplos e, inclusive, com testemunhos no actual território português, em Conímbriga,

23 Paul-Albert FEVRIER, “Sarcophages sculptés, mobilier funéraire et arts mineurs”,

Naissance des Arts Chrétiens. Atlas des Monuments Paléochrétiens de la France, Paris, Ministère de la
Culture/Imprimerie National Éditions, 1991, p. 275.

539
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

como já havia chamado a atenção Margarida Ribeiro, ou em obras de grande aparato e


significado político, como é o caso do Arco de Constantino, em Roma, em que nos
medalhões se representa um imperador a cavalo no momento de desferir o golpe sobre
um gigantesco e temível javali24, isto é, uma cena de caça sacrificial.
Também em Portugal, a tampa de um
sarcófago romano exumado em Tróia (Setúbal) e
recentemente estudado por Justino Maciel25,
apresenta, não uma cena de caça, mas o epílogo
desta, através da representação do banquete,
onde a cabeça do javali, capturado e morto, se
encontra sobre a mesa, como testemunho. No
âmbito deste estudo, o autor aborda, não apenas
a temática da festa, no universo da cultura e das
mentalidades da sociedade romana, mas
Pormenor de um dos medalhões do Arco de interpreta a importância e valor simbólico da caça
Constantino. (117-138 d.C).
Apud H. W. Janson, História da Arte, p. 189. ao javali para esta mesma sociedade, avaliando o

relevo de virtudes, como a coragem e a força, e, em última instância, a heroicidade, mas


também a relação que estas cenas têm com o universo mitológico da história de
Meleagro, o herói que se dispõe a combater e a vencer o javali gigante26. “Assim como
Meleagro se revelou como herói caçando o mítico javali, acção representada nos
sarcófagos juntamente com o chamado banquete calidoniano, assim o banquete de
caçadores, representado paralelamente a uma cena de caça, tinha presente a

24 Estes medalhões que representam um imperador numa cena de caça sacrificial têm sido

atribuídos ao Templo Gentis Flaviae, ou a alguns monumentos da época Flávia. Mas a


historiografia mais recente reconhece neles a representação de António, datando-os de reinado de
Adriano.
25 Manuel Justino MACIEL, “Banquete e Apotheosis em alguns signos artísticos da

Antiguidade Tardia Portuguesa”, Propaganda e Poder. Actas do Congresso Peninsular de História da Arte 5 a
8 de Maio de 1999, (Coord. Ivo Castro, Maria João Neto, Vítor Serrão), Lisboa, Colibri, 2001, pp. 19-
29.
26 Meleagro, filho de Eneu, rei dos Etólios de Cálidon, e de Alteia, é o herói do episódio

que ficou conhecido por “Caça de Cálidon”., contado na Ilíada. “(…) Eneu oferecera depois da
colheita um sacrifício a todas as divindades, excepto a Artémis. Então a deusa enviou contra
Cálidon um javali de prodigioso tamanho que assolou os campos. Para o vencer, Melegro, filho do
rei, reuniu vários caçadores vindos de todas as cidades da vizinhança. O animal matou muitos deles,
até cair sob os golpes do jovem” (Pierre GRIMAL, op. cit., 1992, p. 299. Mais tarde a lenda evoluiu,
tornando-se mais complexa e assumindo contornos mais dramáticos.

540
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

consagração daquele acto heróico, em tensão de apoteose. Ou seja, pretendia-se com a


representação dessa cena, nos sarcófagos, destacar a Virtus que permite ao Homem
suplantar as forças da natureza e dominá-las”27.
Outros autores, que abordaram os temas cinegéticos na arte romana e na arte
medieval interpretaram a presença destes temas nos sarcófagos com aspectos que se
situam para lá da afirmação da virtus. José Luís Hernando Garrido entende que “en el
mundo clásico, la iconografía venatoria parece haber actuado como elemento protector,
capaz de velar el descanso del finado, reconociéndose ecos en obras medievales (…)”28.
Nas palavras de Pierre Grimal, o túmulo pagão era, também, “un signe adrésé
aux vivants, et perpétuant le souvenir de ses actions”29, realidade iconográfica que,
segundo Panofsky, desaparece com a adopção da religião cristã, deixando de estar
presentes temas que invocavam a personalidade e os feitos do morto30. Ora, perante a
iconografia de um ainda significativo número de monumentos funerários portugueses
que consagram grande parte da superfície decorada aos temas cinegéticos, entendemos
que esta proposta de Panofsky deve ser revista ou, pelo menos discutida.
É provável que este último autor desconhecesse os túmulos medievais com cenas
cinegéticas, uma vez que esta iconografia se confina, grosso modo, ao universo das
realizações artísticas portuguesas, certamente pouco ou nada divulgadas além fronteiras,
ao tempo que o autor escreveu a este respeito, e como ainda hoje se verifica.
Joaquín Yarza chamou a atenção para o facto de a abundância de cenas
cinegéticas em contextos religiosos ser mais abundante do que à partida poderia
parecer, motivo pelo que desaconselha uma explicação fácil31. J. L. Hernando Garrido
sublinha esta advertência lembrando que “no siempre podemos aducir que se trate de
simples temas profanos o de genéricos combates psicomáquicos”32.
Na análise sobre o túmulo de Fernán Perez de Andrade, “O bóo”, Manuel
Núñez assinalou diversos aspectos relativos aos valores simbólicos das representações

27 Justino MACIEL, “Banquete e Apotheosis…”, op. cit., 2001, p. 21.


28 Cf. José Luis HERNANDO GARRIDO, “Apuntes sobre la Caza en el Arte Medieval
Hispano”, Codex Aquilarensis, Cuadernos de Invetigación del Monasterio de Santa Maria la Real, vol. 19,
Aguilar de Campoo (Palencia), Dez. 2003, p. 106.
29 Pierre GRIMAL, La Civilisation Romaine, Champs-Flamarion, 1981, p. 76.
30 Erwin PANOSFKY, op. cit., p. 39. Veja-se, ainda, Mário Jorge BARROCA, op. cit., 1987, pp.

20-29.
31 Cf. Joaquín YARZA LUACES, “Despesas fazen los omnes…”, op. cit., 1984, p. 280.
32 José Luis HERNANDO GARRIDO, “Apuntes sobre la Caza”, op. cit., 2003, p. 107.

541
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

da caça ao javali, tanto mais que, no caso deste cavaleiro galego, não é apenas o
sarcófago que serve de suporte à figuração destes temas, mas também um interessante e
bem desenvolvido friso de baixos-relevos, adossado aos muros da capela-mor da Igreja
de S. Francisco de Betanzos.
No seu conjunto, representam a busca, com o acto de correr o monte e o abate,
bem como a assistência ao cavaleiro. O autor considera que a perseguição efectuada
pelos cães e o seu encurralamento compartem evocações que se reportam à atmosfera
particular do mundo arturiano: a perseguição do javali Troint, pelo prodigioso cão de
Artur, Cabal33. É com o tema da perseguição, como vimos, que se decora a totalidade
de uma das faces longas do túmulo do Conde D. Pedro.
A admiração pelo combate e caça ao javali atravessou toda a Alta Idade Média,
em especial os países germânicos, encontrando-se eco nas novelas de cavalaria. Na
verdade, os heróis militares altimedievais, como exempla para os cavaleiros da Baixa
Idade Média, não diferem substancialmente dos heróis Romanos; pelo contrário,
reforçam idênticos substratos míticos, em que o exemplo do guerreiro-caçador que
vence o javali, especialmente quando este detém características sobrenaturais, se
prolonga temporalmente, e permanece edificante enquanto arquétipo, muito para além
do tempo construção dos mitos arturianos.
Quanto ao lance e à assistência ao cavaleiro, o historiador galego propõe várias
leituras: ao tratar-se de uma caça civilizada e que civiliza a quem a pratica, implicando
preparação física e moral, estamos diante da representação da caça regulamentada como
um rito, que, tal como os códigos da cavalaria, valoriza o dever e compromisso de
socorro.
O programa destina-se, pois, a evocar a figura do Senhor de Andrade como
arquétipo de cavaleiro perfeito que, através de provas, durante as quais observou as
normas da conduta correcta, pode fazer-se merecedor do Paraíso. “Ante esta
exaltación, era inevitable que el moimento de aquel hombre que había sido justicia mayor
de Betanzos, según decisión real, creara una imagen de hombre poderoso (gran señor) y
de caballero de actitud modélica y fama ganada. Que toda esta dialéctica suscite su
admiración y constituya una advertencia moral para los demás, incitándoles a alcanzar
ese ideal que había convertido a “la flor de los caballeros” en ejemplo de defensor de un

33 Cf. Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., 1985, p. 28.

542
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

orden y en una especie de héroe invicto que desestima el peligro y desafía las fuerzas
salvajes o malignas de la naturaleza”34.
O javali, enquanto besta possante e feroz, incita a um combate onde entram em
jogo a coragem e a destreza. Mas se pensarmos que este animal encerra, em si, desde o
século XII, conotações simbólicas com o demoníaco, melhor entendemos que a sua
captura ajuda à construção de uma imagem protótipo do heroísmo guerreiro, de base
cristã. Como já havia assinalado Paulo Pereira, a propósito das imagens de javalis na
arte manuelina, “efectivamente, tratava-se de uma prática corrente entre a nobreza; era
um desporto nobre e um exercício militar, detendo porém conotações morais nada
desprezíveis: de facto, constituía uma alegoria da expulsão (a caça) dos baixos instintos,
tanto mais evidente quanto em Portugal o porco selvagem ou o porco preto era
encarado popularmente como uma encarnação do Diabo”35. Desta forma, a caça aos
animais ferozes constitui um exercício que, para além de ser símbolo de pugna spiritualis,
era também útil para a guerra, como exercício em si mesmo e como forma de por à
prova a valentia e coragem do cavaleiro36. Talvez por isso encontremos representações
de javalis combinadas com temática da marginalia medieval, como são exemplo os temas
das asnas pintadas no tecto da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães.
No sistema classificativo dos animais de caça apresentado por Gaston Phébus, o
javali faz parte não apenas dos animais corpulentos (juntamente com o veado, o gamo, o
urso e o lobo), mas também dos animais mordedores (com o urso, o lobo, a raposa e a
lontra), dos animais fétidos (com o lobo, a raposa e o texugo) e dos animais negros (com
o urso e o lobo). Mas é também um animal corajoso, que não tem artifícios e que
combate até ao limite das suas forças. Por isso mesmo, ele é, contrariamente ao veado,
extremamente perigoso: C’est la beste dou monde qui a plus forz armes et qui plus tost tueroit un
homme ou une beste; il n’est nulle beste qu’il ne tuast seul a seul plus tost que elle ne feroit luy, ni lyon
ni liepart (...); quar lyons ne liepart ne tuent mie un homme ne une beste a un coup (...); le sanglier tue
d’un coup, comme on feroit d’un coutel”37.

34 IDEM, ibidem, p. 29.


35 Cf. Paulo PEREIRA, “A simbólica manuelina. Razão, Celebração, Segredo”, História da Arte
Portuguesa, vol. II, Lisboa, Circulo de Leitores, 1995, p. 141.
36 Cf. Franco CARDINI, “O guerreiro e o cavaleiro”, op. cit., p. 65.
37 Gaston PHEBUS, Livre de Chasse, cap. IX, apud Michel PASTOUREAU, “La chasse…”, op.

cit., 2000, p.12.

543
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Mas se Gaston Phebus ainda lhe concede alguns créditos dignos de nota, já
Henri de Ferrières, pelo contrário, é o autor mais severo para com os significados do
javali: na sua obra Livre du Roy Modus et de la Reyne Ratio (1370), a rainha Ratio vê neste
animal uma encarnação de todos os inimigos de Cristo. Ele é a antítese do veado: às dez
“propriedades” cristológicas deste correspondem as dez propriedades diabólicas
daquele. Segundo a rainha, o javali é feio, negro e eriçado; vive nas trevas; é desleal,
colérico e feito de orgulho; é quereloso; possui duas presas temíveis, dignas das agulhas
do Inferno: deux dens Qui sont en as gueule; nunca olha para o céu, mas anda sempre com a
cabeça na terra; foge do sol todo o dia e não pensa em outra coisa que não os prazeres
terrestres; é sujo e encontra o prazer na lama”; enfim, ele é também preguiçoso: quando
está bem alimentado, só quer dormir. É o inimigo de Cristo. É o Anticristo”.
De um modo geral, a partir do século XIII, nas sumas teológicas sobre os
vícios, nos excertos dos exempla e depois nos bestiários literários ou iconográficos
associados aos sete pecados capitais, o javali reúne todos os vícios e pecados
anteriormente distribuídos pelo porco doméstico e pelo porco selvagem: sorditas, foeditas,
libido, intemperantia, gula, pigritia, violentia, furor, cruor, superbia, obstinatio, rapacitas, impietas38.
Desta forma, melhor se compreende o carácter simbólico da caça ao javali, pois a
Virtus que caracteriza o bom cavaleiro, manifestada pelo exercício da caça e pela boa
conduta na viagem atribulada da existência terrena, permite-lhe suplantar e dominar as
forças brutas da natureza, mesmo aquelas que se escondem e atacam no espaço da
floresta, também ela com conotações míticas e maravilhoso-demoníacas. A Virtus
manifesta-se, assim, como garantia de felicidade post-mortem e de apoteose celeste, tal
como nos sarcófagos romanos39, traduzindo-se em imagens dirigidas ao universo social
vivente, como materialização da glória ou fama, mas também ao universo celeste, à
maneira de panegírico da soma das virtudes que lhe permitirão alcançar a glória no
Além.
Talvez o entendimento desta simbologia moral permita perceber melhor porque
não causou constrangimentos às comunidades religiosas dos mosteiros e conventos,
que acolheram os túmulos destes nobres, uma iconografia que, à primeira vista, sugere
ser totalmente laica, especialmente em casos como os dos túmulos do Conde D. Pedro

38 Cf. Michel PASTOUREAU, ibidem, pp. 17-18.


39 Cf. Justino MACIEL, “Banquete e Apotheosis…”, op. cit., 2001, p. 24.

544
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

ou no de Fernán Perez de Andrade, onde a iconografia religiosa e até hagiográfica (tal


como era mais comum), está totalmente ausente.
Carece de explicação, no entanto, o motivo porque, em Portugal, este tema foi
transposto para a arte funerária e não em outros países (à excepção do reduzido, mas
interessante, foco galego). Desconhecemos se, no século XIV, existia um ou mais
túmulos romanos com cenas de caça ao javali, que tivessem servido de modelo ou de
fonte de inspiração ao primeiro dos sarcófagos medievais portugueses com esta
temática. Se existiram, e nada nos permite afirmar o contrário, terão desaparecido no
curso normal da evolução da História, onde as destruições ou simples
desaparecimentos de documentos são parte natural do desenvolvimento.
Perante esta hipótese, dificilmente encontramos resposta para o facto de ter
motivado os portugueses a reproduzir estes temas nos seus sarcófagos, e não, por
exemplo, os franceses, sabendo-se hoje que a abundância de sarcófagos romanos, com
cenas de caça ao javali, é maior nesse país e, actualmente, totalmente ausente em
Portugal. De momento, apenas nos é possível problematizar estas questões, e
continuaremos a reflectir sobre elas, na esperança de que novos dados possam fazer luz
sobre o problema.
A falcoaria, um tipo de caça em que a ave é a única arma, uma arma animada, e
em que todos galopam atrás do falcão, percorrendo grandes espaços amplos e abertos,
também se tornou numa das actividades lúdicas de maior apreço entre a aristocracia da
Baixa Idade Média, nela participando tanto homens como mulheres.
Não se sabe ao certo quando a
falcoaria foi introduzida na Península
Ibérica, embora se saiba que foi
contemporânea do período pós invasões
dos Godos, no século V. O testemunho
mais antigo é dado por Isidoro de Sevilha
nas suas Etimologiae, ao estabelecer a
Cavaleiro lombardo com falcão.
Segunda metade do séc. X. Portal da basílica de San Saba, Roma. classificação das aves.
Apud. Il Longobardi, (Cat. de Exposição, 1992), p. 307.

A prática e regulação da falcoaria, na geografia peninsular, datam, porém, do


século XIII, a partir de um conjunto de traduções para língua castelhana, durante o

545
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

reinado de Afonso X, o Sábio, e sob sua própria encomenda (a tradução do árabe, por
Muhammad ibn ‘Adb Allāh ibn ´Umar al-Bayzār’s Kitab al-ğawarih, conhecido como
Libro de las animalias que caçan (1252), e a tradução do traité du faucon malade, conhecido
como Tratado de las enfermedades de las aves que cazan. Mas se o rei Sábio valorizou as
traduções de tratados de falcoaria, foi com o seu sobrinho, D. João Manuel, que se
produziu a maior e mais expressiva literatura respeitante ao tema. No primeiro quartel
do século XIV, antes de 1325, o famoso príncipe castelhano terminou o seu Libro de la
caza, não constituindo cópia de qualquer outro livro anterior sobre falcoaria. Outra
notável obra sobre a caça com falcão, produzida em Castela, foi escrita por Pêro Lopez
de Ayala (Libro de caza de las aves, 1386), tornando-se o livro-chave da falcoaria
hispânica40.
De resto, o interesse relativo à caça com falcão que se verifica na Península
Ibérica é comum a outros países, como bem provam diferentes tratados sobre o tema,
de que é exemplo a obra De arte venandi cum avibus41, redigida para Frederico II de
Hohenstaufen (1194-1250), grande apreciador da falcoaria42.

Frederico II, em majestade, dá ordens aos seus falcoeiros.


O imperador germânico Frederico II, L’Art de Chasser les Oiseaux. Tradução francesa dos inícios do séc.
ladeado por um falcão. XIV. Paris, BNF, ms. 12400.
Iluminura do séc. XIII.

Em Portugal, conhecem-se também vários tratados da centúria de Trezentos,


como o famoso Livro de Falcoaria de Pedro Menino, composto a pedido de D. Fernando I,
40 José Manuel FRADEJAS RUEDA, “Falconer’s ornithological classification in medieval

Spain”, La Chasse au Moyen Age. Société, Traités, Symboles, p. 63-65.


41 Cf. Frédéric II de HOHENSTAUFEN, L’Art de Chasser avec les Oiseaux, (tradução, introdução

e anotações por Ann Paulus e Baudin Van den Abeele), Nogent-le –Roi, Éditions J. Laget, 2001.
42 Cf. Carlo FORNARI e Alberto GENTILE, “Frédéric II et sa cour”,
http://www.stupormundi.it/Franc/la_cour.ptm (12 de Outubro, 2004).

546
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

a que já fizemos referência em capítulo anterior, bem como um tratado de falcoaria da


autoria de João Martins Perdigão, falcoeiro de D. Dinis, que é referido no livro de
Pedro Menino, e, ainda, o Tratado de Alveitaria de Mestre Giraldo (1318), físico do rei D.
Dinis, realizações que nos permitem perceber o interesse que a caça com falcão
suscitava em Portugal nestes anos do século XIV43, especialmente nos círculos da corte,
como tão bem demonstrou Fernão Lopes acerca de D. Fernando I, na sua crónica
sobre este rei.
Na iconografia dos monumentos funerários portugueses vemos a associação da
caça com falcão com a caça ao javali ou, somente a caça com falcão (túmulo de D.
Gomes Martins). Não existem, assim, cenas onde se representem nobres em cenas
galantes, com ou sem a presença de mulheres, como as que encontramos nas droleries de
alguns manuscritos europeus desta época, ou na escultura com outros fins que não o
funerário.
Como sublinha Baudouin Van den Abeele44, o falcão é um atributo
caracterizador do homem galante, do amante cortês. Assim o representam os romances
arturianos ou a poesia trovadoresca, as cenas corteses esculpidas sobre as placas de
marfim dos artistas parisienses, os encontros galantes pintados nos muros dos castelos
e palácios, ou sobre as páginas dos livros iluminados.
Mas a presença de cenas narrativas da caça com falcão é uma especificidade da
tumulária portuguesa, diferente de outros exemplos de túmulos medievais em que a
evocação da falcoaria se faz através de cenas galantes, como é exemplo o túmulo de
Adelaide, Condessa de Joigny († depois de 1195), que apresenta nas faces da arca
funerária, um falcoeiro (o filho mais novo da condessa, Gaucher de Joigny), com a ave
pousada sobre o punho esquerdo, numa evocação do passatempo favorito da
nobreza45.

43 Sobre a compilação e difusão dos tratados de falcoaria em Portugal, veja-se Luís KRUS,

“Livro de Falcoaria”, Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, org. e coord. Giulia Lanciani
e Giuseppe Tavani, 2ªed., Lisboa, Caminho, 2000, pp. 408-409.
44 Daudouin Van den ABEELE, “Le faucon sur a main. Un parcours iconographic médiéval”,

La Chasse au Moyen Age. Société, Traités, Symboles, pp. 91-92.


45 Cf. Anne McGee MORGANSTERN, op. cit., 2000, p. 21.

547
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor da figura do
Figuras da arca sepulcral de Adelaide Condessa de Joigny. falcoeiro da arca funerária de
c.1250. Prov. da Abadia de Dilo. Igreja de São João de Joigny (Champanhe, França). Adelaide, Condessa de Joigny.
Apud Anne McGee Morganstern, ob. cit., p. 19 . Apud Anne McGee
Morganstern, ob. cit., p. 19

O mesmo conceito se aplica à iconografia de


algumas lápides tumulares, em que a figura do
defunto apresenta o falcão sobre um dos punhos,
vestido com trajos de corte, e de que é bom
exemplo uma lápide do século XIII, de um jovem
nobre francês, de que se desconhece a idade.
Também em Castela, a presença do falcão sobre as
mãos dos jacentes de cavaleiros dos séculos XIII e
XIV é, ainda hoje, possível de averiguar46.
A caça com falcão, ou a simples presença do
falcão sobre as mãos de algumas personagens
representadas em composições artísticas medievais,
Laje sepulcral de um jovem. Séc. XIII.
Apud Geórgia S. WRIGHT, “Le gisant grave
passou a resumir, simbolicamente, a cortesia e a
au XIIIe siecle et l’iconograpfie populaire, La
Figuration des Morts dans la Chrétienté Médiévale nobreza. Em algumas iluminuras ou em marfins
jusqu'à la fin du Premier Quart du XIV, 1988, p.
59. franceses, onde se representam homens e mulheres

46 Cf. Clementina Julia ARA GIL, op. cit., 1977, p. 120; IDEM, “Un grupo de sepulcros
palentinos del siglo XIII. Los primeros talleres de Carrión de los Condes, Pedro Pintor y Roy
Martínez de Burueva”, Actas del II Curso de Cultura Medieval. Alfonso VIII y su Epoca, Aguilar de
Campoo, 1990, Madrid, 1992, pp. 21-52; José Luis HERNANDO GARRIDO, “Algunas notas
sobre los sepulcros de Aguilar de Campoo: un grupo escultórico palentino de 1300”, Boletín del
Museo e Instituto Camón Aznar, XXXVII (1989), pp. 87-119; Margarita RUIZ MALDONADO,
“Escultura funeraria en Burgos: los sepulcros de los Rojas, Celadas y su círculo”, Boletín del Museo e
Instituto Camón Aznar, LVI, 1994, pp. 45-126.

548
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

em convívio, a presença do falcão pode significar o jogo erótico da sedução, e a ave


revela-se o atributo estereotipado do amante, ou mesmo da amante. Esta simbologia
conta com uma longa história na cultura ocidental.
Na Antiguidade, a caça e o amor são constantemente associados, constando
entre as histórias mitológicas como as de Actéon ou Eros47.
A falcoaria é uma actividade dos tempos de paz, como bem testemunha a
iconografia medieval, já que nunca se representa uma personagem com armadura e com
o falcão sobre o punho.
Nos selos de alguns nobres, sugere-se o binómio guerra e paz, através da
representação, numa das faces, de um homem a cavalo, em atitude de combate,
enquanto que, na outra face, o mesmo homem é representado com os atributos do
tempo de paz, o falcão e o cão48.
Nos túmulos portugueses, a iconografia da caça com falcão evoca, igualmente os
tempos de paz e, tal como as cenas de caça ao javali, (mais ainda que estas últimas), a
condição social dos defuntos, conferindo-lhes uma tónica particularmente cortês, tal
como convinha à imagem da nobreza do século XIV.

47 Cf. A. SCHNAPP, Le Chasseur et la Cité. Chasse et érotique dans la Grèce Antique, Paris, 1997 e H.

D. DUNN, The Hunt as an Image of Love and Death in late Medieval and Renaissance Art, 1975.
48 Cf. Baudouin Van den ABEELE, op. cit., pp. 96-97.

549
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

3. DISCURSOS BIOGRÁFICOS

Temas iconográficos como a caça, deixam-nos memórias intrinsecamente


identificadoras de um grupo social. E por muito narrativas que sejam as composições
que acabámos de referir, ou mesmo que saibamos que os indivíduos que as mandaram
representar nos seus monumentos funerários tenham sido assíduos praticantes desse
exercício e modalidade lúdica, a verdade é que não espelham, por si mesmo, um
momento específico das suas vidas, mas sim muitos momentos, comuns a todos eles,
não nos permitindo extrair informações precisas sobre o “indivíduo”, isto é, sobre a sua
biografia como sujeitos históricos. Estes temas constituem, antes de mais, afirmações
de pertença, afirmações de inserção num grupo socialmente privilegiado.
Mas a tumulária medieval portuguesa revela-se riquíssima nos temas escolhidos
pelos encomendadores ou sugeridos pelos iconógrafos e, entre a variada gama de
temas, verificamos a existência de discursos de carácter biográfico, e até mesmo auto-
biográfico, valiosos enquanto testemunhos e enquanto documentos que se revestem de
uma individualidade muito especial.
Dirigem-se à sociedade que lhes foi contemporânea e que mais facilmente
poderia compreender o seu significado, mas também às sociedades futuras, na
qualidade de depoimentos, algumas vezes, na primeira pessoa.

3.1 A Roda da Vida/Roda da Fortuna no túmulo de D. Pedro I


A abordagem que aqui fazemos ao tema iconográfico da Roda da Vida/Roda da
Fortuna no túmulo do rei D. Pedro I é, maioritariamente, subsidiária de um estudo
recentemente publicado, da autoria de Luís Urbano Afonso1, a que já nos referimos
anteriormente. Neste trabalho de análise iconológica sobre dois monumentos
funerários medievais portugueses (os túmulos de D. Pedro I – c.1361 -1366 - e de D.
Fernão Gomes de Góis – 1439-1440), o autor procurou encontrar as marcas do
“indivíduo”, das suas preocupações escatológicas e até teológicas, perscrutando um
tema comum a dois dos monumentos em questão, As Idades do Homem.
O rigor, profundidade e actualidade deste estudo não nos permite acrescentar
ideias diferentes, mas, simplesmente, sublinhar a nossa concordância com a esmagadora
maioria dos pontos essenciais em que se alicerça esta investigação. Ora, abrangendo

1 Luís AFONSO, op. cit., 2003.

550
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

pelo menos um túmulo pertencente a um elemento da família real e, sobretudo, porque


se trata de uma obra Maior, não podíamos, porém, deixar de referir algumas linhas
principais e ideias gerais que nela se defendem.
A Roda da Vida/Roda da Fortuna tem sido um dos aspectos mais estudados do
túmulo de D. Pedro, na procura de interpretar cada uma das cenas que constituem as
duas rodas concêntricas, bem como a sua mensagem global. Na historiografia
portuguesa, destaca-se, entre outros autores, Carlos Alberto Ferreira de Almeida2, que
efectuou uma leitura mais rigorosa do que a que encontramos no estudo pioneiro de
Manuel Vieira da Natividade3, não obstante a sua relevância, a que se seguiram tantos
outros estudos diferentes sobre os dois mais monumentais túmulos de Alcobaça4. Mas,
julgamos, o trabalho que se reveste de maior interesse para uma leitura iconográfica
destas obras e, em concreto, deste tema, é da autoria de Serafín Moralejo5, onde o
historiador demonstra a intrínseca relação existente entre literatura e iconografia na
criação da Rota Fortunae inserida no interior da Rota Aetum.
Todos os autores, sublinhe-se, reconheceram nesta iconografia a procura de
retratar momentos fundamentais da vida de D. Pedro e, especialmente, da sua vida em
conjunto com a de D. Inês de Castro. Resumindo, todos detectaram a presença de um
discurso biográfico, na primeira pessoa, variando, no entanto, as interpretações relativas
a algumas cenas específicas. Neste contexto, o trabalho de Luís Afonso tem, entre
outros méritos, o de clarificar quais as cenas, qual a parte da Roda onde se verificam
aspectos autobiográficos muito precisos e quais as que detêm um carácter mais genérico
e transmissor de visões e crenças universais (As Idades do Homem), mas com interligação
com as primeiras, tendo detectado, inclusive, algumas das obras literárias e
iconográficas que serviram de base à criação dos artífices deste túmulo, para além das
primeiras propostas de Serafim Moralejo.

2
Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, “A Roda da Fortuna/Roda da Vida no túmulo de
D. Pedro, em Alcobaça”, Revista da Faculdade de Letras do Porto. Série História, 2.ª série, vol. VIII,
Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1991, pp. 255-263.
3 Manuel Vieira da NATIVIDADE, Ignez de Castro e Pedro o Cru perante a Iconografia dos seus

Túmulos, Lisboa, A Editora, 1910.


4 Para uma listagem dos principais autores com trabalhos publicados sobre os túmulos de

D Pedro I e D. Inês de Castro veja-se Luís Urbano AFONSO, op. cit. 2003, p. 19.
5 Serafín MORALEJO, “El «Texto» Alcobacense sobre los amores de D. Pedro y D.ª

Inês”, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, (Lisboa, 1-5 de Outubro de
1991), org. Aires de Nascimento e Cristina Ribeiro, vol. I, Cosmos, 1993, pp. 71-89.

551
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Testeira do túmulo de D. Pedro I.


c. 1361-1367.
Igreja do Mosteiro de Alcobaça
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

A participação e empenho de D. Pedro na realização destes monumentos,


destinados a dar morada aos seus restos mortais e aos da sua amada, Inês de Castro, é
particularmente evidente nesta rosácea, que decora a secção correspondente aos pés da
sua arca funerária. Aqui, percebemos, com total evidência, que a história é contada
segundo a versão do próprio, passo a passo, codificada em trechos singulares e faseados
no tempo, onde a acção da Fortuna se faz sentir implacavelmente, na sua relação com o
tempo vivido, desde o nascimento até à morte, como tão bem ficou demonstrado na
Roda da Vida.
Faz sentido que estes discursos autobiográficos, transpostos para a pedra,
tivessem sido lavrados no túmulo do rei e não no de D. Inês de Castro, realizado antes
do seu, entre c.1358 (ano que surge a primeira referência à intenção de trasladar o corpo
de D. Inês para Alcobaça) e c.1361 (ano da trasladação). Se havia a intenção de contar a
história dos seus amores e do seu trágico fim terreno, havia que contá-la por quem

552
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

estava vivo para o fazer e, ainda, porque as mensagens que importava que constassem
no túmulo de D. Inês eram bem outras: mais do que contar a verdade dos factos,
importava a D. Pedro consolidar para todo sempre a imagem ideal e perfeita de Inês,
enfim, glorificá-la na condição de rainha, procurando, ainda, afirmar a legitimação dos
filhos de ambos.

Roda da Vida/Roda da Fortuna. Testeira do túmulo de D. Pedro I


Apud O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. 66.
Foto: Henrique Ruas.

Já no seu túmulo, porque realizado a posteriori, e também porque a sua imagem


não necessitava de ajustes e de idealizações mais rebuscadas, D. Pedro pôde fazer a
catarse dos seus tormentos emocionais mais profundos, deixando um depoimento
histórico de altíssimo valor, mesmo que não seja isento de manipulações ideológicas.
No entanto, se os dois túmulos podem ter leituras autónomas, ainda que visando alguns
objectivos idênticos, é a leitura conjunta que dá verdadeira substância à mensagem

553
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

global, como já havia notado José Custódio Vieira da Silva6. Por agora, analisamos
apenas um dos temas iconográficos desta obra.
A história que se conta nesta roda dupla é a história que D. Pedro quis que nós
conhecêssemos, pelo que pode ser questionada, mas também adquire um excepcional
valor enquanto testemunho ou espelho da estrutura mental e das emoções pessoais do
rei, ou seja, vale, essencialmente, como forma de conhecimento do “indivíduo Pedro I”,
podendo ser confrontada com a mesma história contada na terceira pessoa,
especialmente por Fernão Lopes.
As duas rodas intercomunicantes são ladeadas pelas figuras de Adão e Eva
depois da Queda, relembrando a ideia conjunta de Queda e Morte, na sua associação ao
pecado original, mas que, pela vinda e sacrifício de Cristo, que se representa em três das
faces do Sarcófago de D. Inês, deixa à humanidade as portas abertas à Redenção. Esta
Roda representa, por isso, “o tempo presente da existência do ser, sublinhando a
fragilidade da condição humana, a sua imprevisibilidade e o seu carácter efémero”7.

Adão. Testeira do túmulo de D. Pedro I Eva. Testeira do túmulo de D. Pedro I


Foto: PAF Foto: PAF

Passemos em revista, de forma breve, as diferentes cenas que constituem as


duas rodas, começando pelo circulo externo, correspondente à Roda da Vida, ou Roda
das Idades do Homem (rota aetatis hominum), que “explora de forma engenhosa a hibricidade
conceptual, e plástica, que resulta da fusão entre o modelo genérico destinado a

6 Cf. José Custódio Vieira da SILVA, “Os Túmulos de D. Pedro I...”, op. cit., 2000, pp. 367-

374 e op. cit., 2003, pp. 69-76.


7 Luís Urbano AFONSO, op. cit., 2003, p. 32.

554
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

enunciar as etapas da vida do ser humano e a sua aplicação concreta à ilustração da vida
de um indivíduo em particular”8.
Esta é, portanto, a Roda da Vida de D.
Pedro, desde o seu nascimento até à morte,
ainda que a sua concepção geral se baseie numa
das mais prováveis fontes iconográficas
medievais sobre este tema de carácter genérico,
o Saltério de Robert de Lisle, também conhecido
como Saltério Arundel (c.1310-1330), como bem
identificou Serafim Moralejo e sublinhou Luís
Afonso.
Roda da Vida (As Idades do Homem).
4
Saltério de Robert de Lisle (c. 1310-1330)

Na primeira cena, representa-se uma


mulher jovem com um bebé ao colo, junto a
uma lareira crepitante, numa composição muito
idêntica à que vemos na Roda da Vida do Saltério
de Robert de Lisle. Representa a primeira idade, a
infantia, de acordo com a divisão das idades
infantia. Roda da Vida da proposta por Isidoro de Sevilha nas suas
testeira do túmulo de D. Pedro.
Apud. O Panteão Régio do Mosteiro Etimologias (Livro XI, cap. 2, De aetatibus
de Alcobaça, p. 89.
Foto: Henrique Ruas honimum).
A presença desta última obra no scriptorium de Alcobaça, levou Luís Afonso a
identificá-la como uma das fontes de inspiração usadas pelo ideólogo, ou ideólogos da
composição dos túmulos. O fogo da lareira é interpretado pelo autor como uma alusão
aos meses de Janeiro e Fevereiro, o início do ano, simbolizando o início da vida, através
da Primeira Idade, mas também com outras conotações simbólicas, como a purificação,
ou mesmo a lareira como símbolo da unidade familiar, no seu sentido mais extenso,
agregando mortos e vivos9.
Na cena seguinte, representa-se a segunda etapa da vida, a pueritia, que, segundo
Santo Isidoro, decorria entre os sete e os catorze anos de idade. Três crianças reúnem-

8 IDEM, ibidem, p. 34.


9 IDEM, ibidem, pp. 36-37.

555
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

se em torno de dois professores, onde a disciplina é a orientação mais evidente deste


trecho, com os dois professores a puxarem as orelhas de dois dos alunos.
Moralejo interpretou a figura que se situa mais
perto do círculo interior como sendo a representação de
D. Pedro, por ter uma postura mais atenta e mais
“adulta”.
Não obstante os paralelos que Luís Afonso assinala
(Saltério iluminado por William de Brailes, da segunda
Puerícia. Roda da Vida da testeira do
túmulo de D. Pedro. Apud José metade do século XIII e a representação da pueritia num
Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio
do Mosteiro de Alcobaça, p. 89. Foto: capitel do Palazzo Ducale de Veneza, de finais do sécu-
Henrique Ruas

lo XIV), a nós, recordou-nos o carácter da educação de um notável príncipe,


representado numa iluminura da Vida de São Luís, onde, na presença da mãe, um mestre
procura que o jovem Luís se mantenha atento, usando para isso uma vara.

Pormenor da iluminura
do Livro de Horas de
Joana de Navarra.
Livro Horas de Joana de Navarra. Iluminura
de Jean Pucelle. c. 1330.
BNF. NAL 3145, fol. 85.

Na terceira cena, observam-se dois jovens, um homem e uma mulher, de frente


um para o outro e segurando sobre as pernas um tabuleiro de xadrez, correctamente
identificado por Ferreira de Almeida10 e por Dagoberto Markl11. O xadrez, jogado entre
pessoas de sexos opostos, tal como já tivemos oportunidade de referir a propósito do
10 Cf. Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, “A roda da fortuna...”, op. cit., 1991, p. 262.
11 Cf. Dagoberto MARKL, “O xadrez...”, op. cit., 1994-1995, pp. 337-339.

556
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

episódio novelesco de D. Mecía Lopez de Haro e D. Martim Sanches, simbolizava o


início de uma relação de intimidade e possuía um carácter algo erótico, dentro dos
códigos do amor cortês12.
Por isso, toda esta simbologia em torno do jogo de
xadrez tem de ser entendida dentro das características
específicas da terceira etapa da vida: a adolescentia; isto, segundo
a concepção isidoriana das idades do homem, entre os catorze
e os vinte e oito anos de idade. Neste caso, pode ser
interpretado como o início da relação amorosa entre D. Pedro
Adolescência. Roda da Vida
da testeira do túmulo de D. e D. Inês.
Pedro. Apud José C. Vieira da
Silva, O Panteão Régio do Mosteiro Uma vez que o período da adolescência é muito longo, e
de Alcobaça, p. 89. Foto:
Henrique Ruas as cenas aqui representadas, segundo Moralejo, dividem-se por
períodos de cerca de sete anos, a cena seguinte continua a ilustrar a adolescência,
agora com um jovem e uma jovem, sentados em níveis diferentes, mas abraçados, numa
alegoria do amor que os une. Desde 1910, com o estudo de Vieira da Natividade, que as
duas figuras têm sido interpretadas como representações de D. Pedro e de D. Inês de
Castro. A postura e atitude das duas figuras demonstram uma relação de intimidade
amadurecida: D. Inês apoia uma das mãos
sobre a perna direita de D. Pedro, este
“com as pernas traçadas em attitude royale,
como se a afinidade fosse já antiga, e,
segundo nos parece, como se o par tivesse
já contraído matrimónio”13. Moralejo já
havia notado as diferenças das
indumentárias nestas duas figuras, menos
Adolescência. Roda da Vida da testeira do túmulo de D.
Pedro. Foto: Luís Urbano Afonso.

juvenis do que nas cenas anteriores, especialmente a de D. Pedro.

12 Para uma compreensão mais global dos significados simbólicos do xadrez quando jogado

por homens e mulheres veja-se IDEM, ibidem.


13 Luís Urbano AFONSO, op. cit., 2003, p.45.

557
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

À Adolescência segue-se a Juventude (iuventus), balizada entre os vinte e oito e


os cinquenta anos de idade, considerada a mais vigorosa e durável de todas as etapas da
vida. A correspondência que deverá haver entre esta idade e a cena que se representa no
quinto nicho da roda é, porém, de
difícil leitura, não obstante as várias
tentativas de interpretação feitas por
vários autores. Salientamos, ainda,
que nenhuma nos satisfaz
totalmente e admitimos, também,
que nenhuma se afigura no nosso
horizonte com suficiente clareza
para que possamos tomar posição.
Juventude. Roda da Vida da testeira do túmulo de D. Pedro. Foto:
Luís Urbano Afonso.

Representa-se uma figura que assenta uma das mãos e as duas pernas no solo,
como se gatinhasse, enquanto que a outra mão está levantada e esticada, como que a
querer agarrar algo diante de si. Atrás de si, outra figura, de pé, parece segurá-la, como
que a impedi-la de alcançar os seus objectivos.
O sexto nicho, colocado no eixo vertical superior da
roda, corresponde, como em todas as Rodas da Vida ou
em todas as Rodas da Fortuna, à idade plena e ao gozo da
sorte na sua melhor fase. Nesta cena, D. Pedro aparece
isolado, numa clássica cena de majestade, sentado sobre
um trono, com as pernas abertas e, outrora, segurando

Imagem de majestade de D. Pedro


com uma das mãos um objecto já desaparecido (espada
I (como desdobramento da alegoria
da Juventude).
ou ceptro), mostrando-se, originalmente, com todo o seu
Roda da Vida da testeira do túmulo de
D. Pedro. Apud José C. Vieira da Silva, poder e com as insígnias equivalentes ao poder de que
O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça,
p. 90. Foto: Henrique Ruas foi investido.

Aqui, a relação com a figura axial da Roda do Saltério de Lisle, quanto ao esquema
genérico, é total, mas afasta-se dela pelo detalhe da mão esquerda do rei, que aponta
para baixo, no sentido do cadáver amortalhado, que lhe faz correspondência directa no
alinhamento da Roda.

558
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A relação desta tipologia iconográfica com a que os artífices usaram para


representar Cristo a presidir ao Juízo Final no túmulo de D. Inês de Castro, já foi
assinalada por Luís Afonso, e a ela voltaremos noutro capítulo.
Com esta cena se conclui o percurso ascendente da vida de D. Pedro, sendo as
cenas seguintes marcadas pelo declínio da vida, terminando na morte do monarca.
Neste percurso, cujas imagens deixam de ter paralelos com as que se podem ver
noutras Rodas da Vida, verifica-se uma mudança de discurso, com o abandono das
alegorias de carácter genérico, “para poder contar a história de sinistros factos
biográficos relativos à vida de D. Pedro”14, e onde só o último nicho pode ser
entendido como subsidiário das representações das Idades do Homem.
A primeira cena foi já interpretada por Ferreira de Almeida e por Moralejo
como representando D. Inês, sentada no chão, e segurando-se a uma coluna com uma
das mãos, sendo calcada pelo pé de uma segunda figura masculina, um provável
conselheiro régio de D. Afonso IV. A vítima, D. Inês, é surpreendida nos paços de
Coimbra, por esta anónima e intrigante figura.

D. Inês é subjugada por uma figura D. Inês reage e consegue,


masculina. temporariamente, dominar o seu
Roda da Vida da testeira do túmulo de agressor.
D. Pedro. Apud José C. Vieira da Silva, Roda da Vida da testeira do túmulo de D.
O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, Pedro. Apud José C. Vieira da Silva O
p. 90. Foto: Henrique Ruas Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. 90.
Foto: Henrique Ruas

Na cena seguinte, que Vieira da Natividade interpretou como um acto de


coragem e de determinação de D. Inês, inverte-se a posição de quem domina e de quem

14 IDEM, ibidem., p. 50.

559
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

é dominado. Agora, é a figura feminina que calca a figura barbada de um homem, cujo
rosto se vira para o observador.
Mas logo na cena seguinte, a figura de D. Inês aparece numa atitude de
subjugação às mãos de um homem. De joelhos no chão, D. Inês tem o corpo reclinado
para trás, puxada pelos cabelos e pelo rosto por uma figura de trajos longos, pondo-lhe
o pescoço a descoberto.

Assassínato de Inês de Castro. Roda


da Vida da testeira do túmulo de D.
Pedro.
Apud José C. Vieira da Silva, O Panteão
Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. 90.
Foto: Henrique Ruas
Esta posição e a brutalidade da cena deixam adivinhar o momento seguinte,
representado no décimo nicho: uma figura masculina, com trajos militares, posiciona-se
atrás de D. Inês, que continua de joelhos no chão e com as mãos a segurar elementos
da roda, enquanto que a sua cabeça, já cortada, jaz no solo, virada para o público.
No nicho seguinte, conta-se um dos mais famosos
episódios da vida de D. Pedro, ou, melhor, de uma das
determinações justiceiras que marcaram o seu reinado: a
punição dos assassinos de Inês de Castro, tão celebremente
narrada por Fernão Lopes, com a crueza necessária para que
melhor se perceba o desejo de vingança do monarca. Nesta
cena, encontram-se três personagens: ao centro, um homem
Castigo de um dos assassinos barbado e de mãos amarradas, cujo rosto se vira, uma vez
de Inês de Castro.
Apud José C. Vieira da Silva, O mais, para o observador, é preso pelos cabelos por uma
Panteão Régio do Mosteiro de
Alcobaça, p. 73 segunda figura e, pelas barbas, por uma terceira. Estas duas
8
Foto: Henrique Ruas

últimas, a que lhes falta a cabeça, esfaqueiam o coração e as costas da vítima do castigo.

560
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Por fim, a outra imagem axial desta roda, agora a


culminar o seu sentido descendente, representa D. Pedro
morto, amortalhado, com os braços e mãos cruzadas,
semi-inserido dentro de uma arca sepulcral, onde se releva
uma inscrição epigráfica15.
Como defende Luís Afonso, “a imagem do último
nicho da Roda da Vida não só constitui o corolário de
D. Pedro jazendo no esquife todo o círculo exterior, como também assume uma
(alegoria da Morte) Apud José C.
Vieira da Silva, O Panteão Régio do dimensão verdadeiramente vicarial e triplamente auto-
Mosteiro de Alcobaça, p. 89
Foto: Henrique Ruas referencial, na medida em que remete para o próprio ob-
jecto da imagem. Por outras palavras, o que pretendemos dizer é que a imagem do
cadáver sobre o esquife patente neste nicho não só equivale à monumental imagem do
jacente de D. Pedro sobre o seu túmulo – onde o monarca é representado com longas
barbas e com as mãos cruzadas sobre o peito, segurando um portentosa espada -, como
também se associa às duas cenas, cronologicamente anteriores, representando a Boa
Morte do rei D. Pedro existentes no facial oposto da arca, além de remeter para o
verdadeiro cadáver de D. Pedro que, um dia, seria envolto numa mortalha e colocado
dentro do sarcófago alcobacense”16.
No que respeita à roda mais pequena e inserida dentro da Roda da Vida, o
esquema das diferentes secções em que se divide diferencia-a das comuns Rodas da
Fortuna, normalmente ilustradas por uma única personagem, cuja sorte vai mudando na
relação ascensão-queda, uma vez que aqui encontramos sempre um par, D. Pedro e D.
Inês, transformando-se numa “autêntica Roda do Amor, e acentuando, assim, a ligação

15 Sobre a inscrição patente neste pequeno esquife, vários autores defenderam leituras
diferentes, sendo as mais recentes de Mário Jorge BARROCA, op. cit., vol. II, t. 2, 2000, pp. 1740-
1747, que leu “CA:E :AFIN :DO MUDO” (“Que é o fim do mundo”) e Luís Urbano AFONSO,
op. cit., 2003, pp. 52-56, que leu A(té) :E(n) :AFIN :DO MU(n)DO”. Ambos os autores fazem o
historial das diferentes leituras, pelo que nos subtraímos da sua repetição. De qualquer forma,
parece-nos mais justificável que não se trate de um letreiro de carácter “informativo” sobre o que é
o Fim do Mundo, mas sim uma afirmação “lapidar” da inevitabilidade do percurso humano, não o
sentido trágico, mas como sinal de esperança na Salvação e, neste caso preciso, no reencontro com
Inês de Castro no Paraíso, como, aliás, fica demonstrado pela cena do Juízo Final no túmulo desta
última.
16 Luís AFONSO, ibidem, pp. 52-53.

561
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

entre a Fortuna e Amor”17, o que levou Maralejo a baptizar esta composição como uma
rota fortunae amantium, conceito que Luís Afonso subscreve.

Roda da Fortuna/Roda do Amor


Apud O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça,
p. 66
Foto: Henrique Ruas

Esta Roda da Fortuna e Roda do Amor é marcada por uma bizarra figura axial, que
ocupa o nicho central inferior, bem como parte da pequena rosácea que constitui o
centro da composição.
A raridade desta figura já foi antes assinalada, sendo aqui representada como um
ser híbrido, monstruoso, com as duas cabeças (uma superior e antropóide e uma
segunda a ocupar o lugar das nádegas, de rosto monstruoso18) ligadas pela coluna
vertebral com vértebras salientes, aumentando o efeito grostesco que lhe foi conferido.
Assim, se uma das cabeças revela a beleza de uma mulher jovem, a outra assinala o que
de mais temível a Fortuna pode causar. A primeira associa-se ao gesto de parar a roda,
estendendo os braços e colocando-lhe um cravo, enquanto a segunda estende,
originalmente, as suas grosseiras patas sobre os dois infelizes amantes prostrados no
chão e com as mãos sobre a cabeça, em sinal de dor e desespero.

17 IDEM, ibidem, p. 68.


18 Encontramos um monstro com algumas características idênticas, nomeadamente na face
que se descobre nas nádegas, no túmulo de São Narciso de Girona, lavrado pelo escultor flamengo
Joan de Tournai , na primeira metade do século XIV. Cf. Francesca ESPAÑOL, op. cit., 2002, pp.
103-111.

562
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Na primeira cena da roda, cuja leitura se inicia pela metade inferior esquerda,
paralela ao nicho da infantia da Roda da Vida, um jovem é ladeado por uma jovem, à
esquerda, ambos sentados, mostrando-se, assim, D. Pedro e D. Inês numa fase inicial
da sua relação amorosa19.
Na cena seguinte, há uma evolução na relação entre os dois: os jovens unem as
mãos esquerdas, como se se pretendesse evidenciar a existência de uma espécie de
aliança, ou laço mais profundo entre ambos, provavelmente, laços matrimoniais, como
já havia avançado Ferreira de Almeida, na sua proposta interpretativa, sobretudo se
tivermos em conta que a figura de Inês está agora à direita de D. Pedro.
No nicho seguinte, volta-se a representar o mesmo par, sentado, agora um
pouco mais afastado um do outro e com posturas mais aparatosas. Ele traça a perna em
attitude royale, e mostra a espada em repouso, enquanto ela revela uma postura mais
hirta, mais solene, adequada ao momento. Poder-se-á tratar “de uma imagem que visa
exprimir um retrato oficial do casal”20.
A Fortuna, porém, começa a exercer o seu desígnio no sentido contrário, girando
a roda e colocando as vidas dos dois amantes numa fase descendente. O movimento
súbito da roda parece fazer desequilibrar o célebre par, e Inês é a primeira a tombar do
banco em que ambos se sentam21.
A seguir, idêntica figura masculina à da cena anterior cai, aparatosamente, e leva
ambas as mãos à cabeça. Atrás dele (D. Pedro), D. Inês revela-se em posição ainda mais
desequilibrada, com o corpo encolhido, o que, juntamente com o gesto de D. Pedro,
evidencia o destino trágico a que ambos estão sujeitos, a interrupção terrena do seu
amor. Ao que tudo parece indicar, “aquilo que D. Pedro ou seus iconógrafos quiseram
salientar foi que a Fortuna também tem poder para dar e tirar amor, tal como dá a
riqueza e o poder em função do seu capricho”22.

19 Cf. Serafim MORALEJO, “El «Texto» Alcobacense”, op. cit., 1993, p. 84.
20 Luís Urbano AFONSO, op. cit., 2003, p. 73. O autor acrescenta que esta imagem
corresponde essencialmente ao poderíamos designar por wishful thinking, já que a imagem pública do
casamento entre ambos nunca pôde concretizar-se.
21 Ao contrário de outros autores anteriores, que viram na figura masculina desta cena a

representação de D. Afonso IV, Luís Afonso entende que continua a tratar-se de D. Pedro,
seguindo a mesma estruturação sequencial das cenas anteriores, o que a nosso entender é a
interpretação correcta.
22 Luís AFONSO, op. cit., 2003, p. 75.

563
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A última cena, a que já nos referimos, é o espelho do desespero dos dois


amantes, deitados com as cabeças viradas para baixo, vestidos com trajos muito
singelos, com as mãos em gesto de dor e incompreensão, esmagados pelas patas de um
monstruoso infortúnio.
Todas estas cenas aqui descritas constituem um
testemunho de grande valor para a compreensão da imagem
que D. Pedro tinha de si e da sua vida, do seu poder e da sua
relação com os outros. Elas expressam a vontade do
monarca em contar a história à sua maneira, de forma
simplificada, é certo, porque codificada em pequenas mas
ilustrativas cenas, sujeitando esta história à compreensão ou
ao repúdio de quem a visse e a conseguisse ler. É, pois, um
documento auto-biográfico, o primeiro que encontramos
num túmulo de um monarca português.

Figura híbrida da Fortuna e


D. Pedro I e D. Inês de
Castro subjugados pelo
infortúnio.
Apud O Panteão Régio do
Mosteiro de Alcobaça, p. 66
Foto: Henrique Ruas

3.2 Proposta de identificação do túmulo do infante D. João de Portugal


Se o túmulo de D. Pedro I inaugura os discursos iconográficos de carácter
biográfico nas obras de arte funerária portuguesas, não havia de ser o último
relacionado com a primeira dinastia, como parecem testemunhar dois elementos de um
túmulo, cujas restantes partes terão desaparecido, e que identificamos (apenas a título
de proposta) como tendo pertencido ao infante D. João de Portugal (Duque de
Valência de Campos), filho de D. Pedro I e de D. Inês de Castro.
Actualmente, estas duas peças, dois suportes figurativos, sustentam a arca e a
tampa do monumento funerário do infante D. João, filho de D. Afonso IV e D.
Beatriz, na igreja do Mosteiro de Odivelas. A eles já nos referimos anteriormente, e
justificámos a sua exclusão das partes constituintes deste último túmulo, baseados nas
visíveis diferenças do trabalho escultórico, quando comparados com as figuras da
tampa e da arca, revelando uma estética diferente e um tratamento acentuadamente

564
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

naturalista (arriscamos mesmo a considerá-lo realista) e, acima de tudo, pelo que a


iconografia de um deles pretende ilustrar.
Desta forma, decidimos incluir a sua análise neste estudo, embora a cronologia
da execução deste monumento funerário ultrapasse a baliza temporal que
estabelecemos como limite (1383), por se encontrar inserido, como parte integrante,
numa obra anterior, datável de c.1327-1330, também pertencente a um elemento da
família real portuguesa.
Um destes suportes é, pela sua iconografia, mais interessante e também mais
significativo que o outro. O tema em causa, pela estranheza que provoca, tão diferente
dos habituais leões, ursos ou quimeras, que servem de suporte à esmagadora maioria
dos túmulos góticos, não parece estar relacionado com a mensagem que se pretendeu
para o túmulo do infante D. João, filho de D. Afonso IV e falecido com um ano de
idade, e, muito menos, com o hipotético túmulo da filha de D. Dinis, D. Maria Afonso
(II).
Ambos os suportes são constituídos apenas por figurações antropomórficas, à
semelhança do que acontece no túmulo de D. Inês de Castro, porém, com uma
considerável diferença: neste último, as figuras de suporte são individualizadas,
estáticas, não exercendo qualquer acção que não a de sustentar sobre as costas,
passivamente, o peso do monumento, enquanto que um dos suportes do túmulo de
Odivelas, é, objectivamente, narrativo, ilustrando uma acção que envolve duas
personagens humanas. Ele conta uma história trágica, uma história de assassinato, cuja
importância para a memória do tumulado e, logo, para a sua identificação, deveria ser
relevante. Caso contrário, não se justificaria a sua presença.
O outro, à maneira dos suportes do túmulo de D. Inês de Castro, parece ser
uma figura isolada de monge, hoje decapitado, mas de quem é possível ver o trajo
amplo que lhe cobre todo o corpo, fazendo um sugestivo efeito de pregas, rematado
pelo que parece ser um capuz, e calçando sandálias, reproduzidas na pedra com tal
cuidado de realismo e detalhe, que só podemos adivinhar um tratamento idêntico para a
cabeça e rosto desta figura, infelizmente desaparecida.
Mas voltemos ao suporte que verdadeiramente nos interessa analisar. O que
podemos ver, com toda a clareza, são duas figuras dispostas de maneira a criar a forma
adequada a uma peça de sustentação. A figura que se encontra em posição superior

565
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

veste trajos longos, presos na cintura por um cinto, de onde pende, num dos lados, a
bainha de um punhal (bulhão), decorada com a fita que a envolve. Sugere-nos ser um
homem, ajoelhado, com o corpo na horizontal e encostado à segunda figura que se
encontra debaixo, deitada e totalmente submetida, com a cabeça e as costas assentes
numa base, que tanto pode sugerir o chão, como uma cama, de que ainda subsiste
parte, mas que as fracturas não permitem perceber claramente. A primeira figura segura
uma arma com uma das mãos, mais pequena que uma espada e maior que um cutelo e,
em gesto violento, crava-a no corpo da outra personagem, lateralmente, mas perto do
coração.

Parte da arca do túmulo que identificámos como pertencente ao


infante D. João, filho de D. Afonso IV e D. Beatriz e suporte que
identificámos como tendo sido parte integrante do monumento
funerário do infante D. João de Portugal, filho de Pedro I e D.
Inês de Castro.
Igreja do Mosteiro de Odivelas
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

566
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A violência deste gesto é verificável no rosto da vítima, que se desfigura com o


choque provocado pela dor, contorcendo os lábios, cerrando os dentes (que o escultor
tão bem deixou ver), semicerrando os olhos e franzindo a testa. Se a personagem em
causa era detentora de alguma beleza digna de nota, perante a dor infligida, o seu rosto
torna-se grotesco, sendo, só por si, difícil de o identificar como sendo de uma
personagem feminina ou masculina. É, por isso, uma das figuras mais expressivas da
tumulária portuguesa, só encontrando paralelos de semelhante realismo nos túmulos de
D. Pedro e D. Inês de Castro.
Mas, o penteado desta
figura revela tratar-se de uma
mulher, pois parte do cabelo é
puxado para trás, sobre a nuca,
e é preso por uma fita larga
fazendo uma espécie de laço,
enquanto que as restantes
madeixas de cabelo caem soltas
e ondulantes nos dois lados do
rosto. A indumentária, muito
simplificada, consiste num
Pormenor do busto da figura da presumível D. Maria Teles, no
momento em que é golpeada pelo infante D. João. vestido, ou túnica, aberto à
Foto: José Pessoa/DDF/IPM
frente e preso no decote por
um pequeno botão, dando-lhe uma aparência de camisa de noite.
A verdade é que o escultor parece ter-se concentrado de forma especial na
caracterização do rosto, pois através da sua expressão imprime-se o significado moral e
essencial da história. Infelizmente não podemos confirmar o tipo e expressão do rosto
da personagem atacante, o que, certamente, iria de encontro ao realismo geral da
composição.
Esta cena, de tão brutais contornos, poderá ilustrar um acontecimento
importante da vida do infante D. João, que lhe custou a honra, a saída de Portugal e,
eventualmente, o trono português a que um dia aspirou, acabando por falecer em
Castela (Salamanca) em data incerta, mas que vários autores apontam como tendo
ocorrido entre 1397 e 1402.

567
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A história é por demais conhecida, graças à descrição viva e cheia de


pormenores dada por Fernão Lopes na sua Crónica de El-Rei D. Fernando.
D. João é descrito pelo cronista de forma elogiosa: Este infante D. João era homem
muito bem proporcionado no corpo e na fisionomia, elegante em parecer e feições, cheio de boas prendas e
habilidades, muito cortês e palaciano, agasalhador de muitos fidalgos do Reino e estrangeiros, muito
generoso e prestável a quem procurasse a sua protecção, dando-lhe cavalos e mulas e armas e vestidos e
dinheiro e aves e alãos e quaisquer outras cousas que em seu poder estivesse dar. Foi muito amigo de
seu irmão D. João, mestre de Avis, de modo que, como el-rei D. Pedro ordenara que sempre se
acompanhassem quando estavam na corte, também nunca se separavam no monte, na caça, no comer e
no dormir, e nos outros convívios usados por aqueles que bem se amam23.
Tendo-se enamorado de D. Maria Teles, irmã da rainha D. Leonor e viúva de
Álvaro Dias de Sousa, casou-se com ela em segredo. A notícia, que rapidamente se
espalhou por todo o reino, deixou surpreendido D. Fernando e muito apreensiva D.
Leonor Teles, desagradando-lhe o enlace da irmã pelas razões que Fernão Lopes
aponta: […] era que, vendo a sua irmã bemquista de todos e o infante D. João amado dos povos e
dos fidalgos tanto como el-rei, pensava que se poderiam as cousas azar de tal forma que reinaria o
infante D. João e seria rainha sua irmã e ficaria ela excluída do senhorio e do reinado, tanto mais que
el-rei não era bem são e dava mais mostras de durar pouco do que viver prolongadamente24.
Assim, por razões de inveja e desejos de poder, atribui-se a Leonor Teles o
boato de que ela desejava ver o infante D. João casado com D. Beatriz sua filha, usando
como mensageiro o conde D. João Afonso. O infante, foi assim seduzido por estas
sugestivas e falsas ideias de um dia vir a reinar por ser marido da herdeira do trono. Nas
palavras do cronista, o desejo de reinar, como sabeis, é cousa que não receia cometer obras contra
razão e contra direito, não podia o infante pensar noutra cousa senão em como havia de casar com a
infanta e ser quite de D. Maria por morte25. Ora, não se sabe bem quem lançou o boato, mas
constou ao infante que D. Maria era adúltera e que, como tal, a podia matar
legitimamente e aqui se cumpriu o provérbio “quem seu cão quer matar de raiva lhe põe nome”26.
O autor descreve, então, de forma emocionante e pungente, a forma ultrajante
como, estando em Coimbra, o infante entrou de madrugada, com outros homens, em

23 Fernão LOPES, Crónica de El-Rei don. Fernando, ed. 1997, p. 96.


24 IDEM, ibidem, p. 104.
25 IDEM, Ibidem, p. 105.
26 IDEM, Ibidem, p. 105.

568
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

casa de D. Maria Teles, surpreendendo-a enquanto dormia, e não lhe dando tempo nem
meios de fugir, ou vestir-se (apenas se socorrendo de uma colcha27), nem sequer de se
defender das falsas acusações de que era alvo. Este episódio reveste-se de tal
importância para a vida destas personagens e, sobretudo, como precioso meio de dar
uma muito má imagem de Leonor Teles, que Fernão Lopes não se poupa aos mais
ínfimos detalhes, desde os simples objectos aí presentes às emoções, de todos os que se
encontravam no quarto de D. Maria nessa fatídica madrugada, para criar um cenário de
profundo desastre.
Sem querer ouvir nada, D. João deu um grande empuxão pela ponta da colcha e atirou-a
ao chão, ficando descoberta parte do seu muito alvo corpo, à vista dos que estavam presentes. […] E
naquele derribar que o infante fez lhe deu com o bulhão que lhe oferecera o irmão dela por entre o
ombro e os peitos, perto do coração. […]. O infante, arrancando o bulhão, deu-lhe outro golpe pelas
virilhas e ela deu outro grito dizendo:
-Jesus, filho da Virgem, acudi-me!
Esta foi a sua última palavra, dando o espírito e lançando muito sangue28.
Assim terminou os seus dias a infanta D. Maria, entre a vergonha, os gritos, o
choro e as lágrimas, da própria, e de quem assistiu a tão lamentável cena.
O que vemos representado neste suporte do túmulo, não podendo ser tão
descritivo e preciso quanto o texto de Fernão Lopes, poderá resumir o que se passou
nessa madrugada em Coimbra e de como esse acontecimento marcou profundamente a
imagem do infante D. João, antes amado dos povos e dos fidalgos, e depois ambicioso,
fugido do reino e afastado da corte portuguesa, sem quaisquer hipóteses de acesso ao
trono após a morte do meio-irmão, D. Fernando. Sem dúvida que este episódio,
passado à pedra numa das partes constituintes de um monumento funerário, constituía
uma das melhores formas de identificação do tumulado.
Mas, as conclusões sobre o lugar de enterramento deste infante têm
permanecido numa espécie de limbo inconclusivo. José Luís Gavilanes Laso29 refere

27 D. Maria, acordando subitamente, quando viu aquela entrada no seu quarto levantou-se do leito tão

assustada e temerosa que mal se podia ter em si, e ao levantar-se nenhum vestido nem manto teve acordo nem tempo
para deitar sobre si, nem quem lho desse, porque as que estavam no quarto com ela não puderam aguentar-se com o
medo e temor. E querendo ela cobrir as suas vergonhosas partes, não encontrou nada à mão senão uma colcha branca
em que envolveu todo o seu corpo, assim se encostando a uma parede perto do leito. IDEM, ibidem, p. 109.
28 IDEM, ibidem, p. 110.

569
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

que, no Nobiliário de Alonso López de Haro, não se menciona a data da morte do


infante, mas sim o lugar de enterramento, o Convento dos Pregadores de Salamanca
(Santo Estêvão). Porém, o estudo com as recentes investigações do Pe. José Luís
Espinel, refere que nada foi encontrado a este respeito nos arquivos da Ordem, nem
sequer quaisquer vestígios da sepultura de D. João30.
Não há, em nosso entender, motivos suficientes para duvidarmos que este
infante português e duque de Valência, tenha sido sepultado na Igreja de Santo Estêvão
de Salamanca, aí jazendo em alguma sepultura posteriormente destruída ou,
simplesmente, desaparecida, até à data em que se criaram condições propícias à sua
trasladação para Portugal, sepultando-o, segundo a hipótese que aqui levantamos, em
Odivelas.
Estranhamos a ausência de referência à existência deste enterramento no
Mosteiro de S. Dinis, mas também não sabemos até que ponto ele era ou não
identificável por epitáfio, podendo-se ter perdido a memória de quem nele jazia, como
aconteceu, de resto, com outros monumentos funerários da família real portuguesa. Em
consequência do Terramoto de 1755, poderá o túmulo ter ficado maioritariamente
destruído (de resto, foi o que aconteceu a boa parte do túmulo de D. Dinis), restando
apenas os suportes, que foram, depois, reaproveitados no túmulo do outro infante
homónimo, mas filho de diferente casal régio.
Quem quer que tenha sido o encomendador do túmulo, sendo certamente o
mesmo que providenciou a vinda do seu corpo de Salamanca para Odivelas, não deixou
de dar relevo a este bizarro episódio, ainda que ele tenha sido relegado para elementos
secundários do sarcófago. Não sabemos como seriam decoradas as restantes partes do
seu monumento funerário, mas é muito provável que não desenvolvessem mais
aspectos relacionados com situações de má memória.
É provável, pois, que a encomenda do cenotáfio se deva a D. João I, uma vez
que era seu meio-irmão e que, tal como informa Fernão Lopes, tinha com ele uma
relação de afecto muito próxima. Afastadas as hipóteses de este filho de Inês de Castro
assumir o trono português (como o próprio Mestre de Avis entendeu ainda na

29Cf. José Luís GAVILANES LASO, “Coyanza (Valência de D. Juan) y Portugal: dos

engarves medievales”, www.ciberkiosk.pt/arquivo/cirberkiosk6/ensaios/joseluis.htm, p. 2 (13 de


Setembro de 2004)
30 Cf. Pe. José Luís ESPINEL, San Esteban de Salamanca. Historia e Guia. Siglos XIII-XX,

Salamanca, ed. San Esteban, 1995.

570
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

qualidade de Defensor do Reino), por prisão e posterior morte do próprio, não havia
razões para que o então rei, D. João I, não resgatasse o corpo do infante de terras
castelhanas e lhe desse digna sepultura. Isso justificaria a tradição historiográfica
castelhana que o aponta como enterrado em Santo Estêvão de Salamanca31, local onde
faleceu em data incerta e onde poderá ter jazido durante alguns anos (sem que haja, no
entanto, qualquer documentação que o comprove, nem sequer vestígios ou memórias
da sua sepultura), mas também uma sepultura posterior, provavelmente em Odivelas,
como parece testemunhar o suporte de túmulo que aqui analisámos.
E justifica, ainda, a diferença de estilo que se verifica entre os suportes e as
restantes partes do túmulo em que estes se encontram inseridos, revelando uma
escultura mais evoluída, mais naturalista, enfim, um tratamento plástico mais de acordo
com a arte dos finais do século XIV e inícios do século XV.
Estas são questões que apresentamos apenas como propostas e que
permanecem como campo aberto de reflexão, aguardando novos dados. Não obstante,
perante as informações disponíveis e perante a nossa leitura da iconografia deste
elemento do túmulo, julgamos possível identificá-lo como tendo pertencido ao
desaparecido monumento funerário do infante D. João de Portugal, pois só com a
história de vida deste filho de D. Pedro e D. Inês de Castro, a sua leitura pode fazer
verdadeiramente sentido.

31 Cf. António Caetano de SOUSA, História Genealógica…, T. XI, liv. XIII, ed. 1946-1954, p.
373.

571
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

4. SOB O SIGNO DO “REI MUITO CRISTÃO”


Como temos vindo a sublinhar, o rei medieval é instrumento de protecção da
sua Igreja. Como espada temporal teórica, está ao serviço da espada espiritual,
exercendo um poder de orientação e de estímulo dos que detêm o Ministério de Deus –
os prelados. Em contrapartida, este serviço a Deus induzia os monarcas a “(...)
prometer, guardar y hacer guardar sus mandamientos; como los reyes bíblicos que en el
pasado aplacaron la ira de Yavé, destruyeron la idolatría y acompañaron su acción con
el levantamiento del Templo: Salomón y Josías”1.
A evolução que se verifica em Portugal, bem como em outros países da
Cristandade ocidental, do conceito e prática de “rei feudal”, senhor suserano, para o
conceito de “rei soberano”, permite-nos compreender a própria evolução da posição do
poder régio face ao poder eclesiástico. A iconografia do poder régio, de aquém e de
além fronteiras, é o espelho dessa complicada e gradual afirmação do poder
monárquico.
Estamos conscientes da dificuldade com os historiadores de arte ainda se
debatem para uma definição de conceitos estanques em iconografia. No que respeita à
iconografia do poder temporal e, em concreto, em relação à iconografia dos reis
portugueses, para uma baliza temporal que se estende entre os inícios do século XIII e
os finais do século XIV, procurámos subdividir a categoria iconográfica do ministerium
regis em diferentes subcategorias. Estas, apresentam nuances e contornos distintos e,
juntas, permitem-nos perceber que a imagem do ministerium regis obedece, para as
cronologias aqui definidas, ao modelo do rei que se projecta sob o signo do “rei muito
cristão”.

4.1 Com a espada e a cruz


Para melhor exemplificarmos, e compreendermos, a evolução dos discursos da
iconografia régia como espelho da evolução do conceito de suserania para o de
soberania, bem como das relações estabelecidas entre poder monárquico e o poder
eclesiástico, desde os primórdios da nacionalidade, julgamos interessante colocar em
destaque duas estátuas referidas anteriormente, identificadas como sendo
representações de D. Afonso Henriques. O facto de poderem representar o primeiro

1 Manuel Núñez RODRÍGUEZ, op. cit., 1999, p. 11.

572
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

monarca português é, só por si, muito significativo, sobretudo porque uma delas surge
associada à estátua de um bispo, como se com ela emparceirasse, ao que tudo indica.
Referimo-nos às duas estátuas românicas da Igreja de São Pedro de Rates
(um rei e um bispo), e à estátua truncada de D. Afonso Henriques (?) que,
alegadamente, terá pertencido à desaparecida ermida de São Miguel da Alcáçova de
Santarém2 e que é, actualmente, pertença do Museu Arqueológico do Carmo (Lisboa).
A ambas já nos referimos em capítulos anteriores, ao analisarmos a presença das
insígnias do poder real em diversas obras nacionais.
Impõe-se que comecemos a nossa análise pelas estátuas de Rates, uma vez que
se tratam dos exemplares mais antigos, datáveis, segundo Manuel L. Real3, da segunda
metade do século XII. Originalmente, as duas estátuas de vulto perfeito estavam
colocadas à entrada da capela onde se veneravam os restos mortais de São Pedro
Mártir, até que, em 1552, foram transferidas para a Catedral de Braga4.
São duas obras marcadas pela rudeza do talhe e pela economia de atributos,
esculpidas em granito e constituídas por duas partes cada. A parte superior,
correspondente ao tronco, concentra todos os elementos iconográficos, fisionómicos e
gestuais, enquanto que as partes inferiores, correspondentes às pernas das duas figuras,
são quase que simples blocos maciços e lisos (apenas com a sugestão dos pés), não
parecendo ter ocupado as atenções do escultor.
Os rostos das duas imagens caracterizam-se pelas fisionomias alongadas, com
pequenos olhos salientes, encimados pela curva das sobrancelhas (que, no caso do
bispo lhe confere uma expressão apreensiva), narizes triangulares e longos e bocas
pequenas, pouco ou nada expressivas. Emergem, neste contextos, as grandes orelhas,
algo despropositadas, fazendo lembrar aquilo que, alguns anos mais tarde, ainda vamos

2 Tratando-se de uma representação de D. Afonso Henriques, esta estátua encontrada por

Possidónio da Silva em finais do século XIX na antiga porta da Alcáçova de Santarém, pareceu
muito provável aos vários autores que escreveram sobre ela, que o seu lugar de origem fosse a
antiga ermida românica de São Miguel que, segundo Luís Montês Mattoso foi a primeira a ser
fundada pelo nosso primeiro monarca, pouco depois da reconquista da cidade. Cf. Inácio da
Piedade VASCONCELOS, História de Santarém Edificada…, Lisboa, 1740, parte I, p. 31; José
Possidónio Narciso da SILVA, “Explicação da estampa n.º 30”, Boletim de Architectura e Archeologia da
Real Associação dos Arqueólogos Portuguezes, tomo 2, 2.ª série, Lisboa, RAACAP, 1880, p. 162; Maria
Ângela BEIRANTE, Santarém Medieval, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1980, p. 95, e Mário
Jorge BARROCA, “12. D. Afonso Henriques”, Guimarães. Mil Anos a Construir Portugal, catálogo de
exposição, Guimarães, Museu Alberto Sampaio, 2000, p. 84.
3 Manuel LUÍS REAL, manuscrito inédito, amavelmente cedido pelo autor.
4 Gerhard GRAF, Portugal Roman, vol. 2. (Le Nord du Portugal), Yonne, Zodiaque, 1986, p.

88.

573
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

encontrar nas figuras do túmulo de D. Rodrigo Sanches (Mosteiro de Grijó), de gosto


acentuadamente românico.
Numa das estátuas, cuja indumentária praticamente não se percebe, foi dado
grande realce à coroa que lhe cinge a cabeça, muito volumosa e constituída por três
registos, bem como à espada, colocada ao alto, presa por uma das mãos e encostada ao
corpo da figura. O outro braço dobra-se e encosta a mão ao peito. Na outra estátua, as
vestes episcopais são bem perceptíveis e a cabeça é cingida pela mitra. Com um dos
braços dobrados, a figura faz o gesto da bênção, enquanto o outro, praticamente
omitido numa visão frontal, serve para segurar o báculo, com crossa em voluta. Este,
detém a mesma imponência que a espada da primeira figura, e assume-se com o
atributo principal.
Ambas apresentam características semelhantes às das figuras de Cristo e dos
Santos figurados no tímpano do portal Oeste, podendo tratar-se de obras lavradas por
um mesmo escultor5, o que permite datar estas obras como sendo da fase construtiva
dos finais do século XII. É fácil concluir que estamos diante da representação de um rei
e de um bispo. Para Manuel Monteiro, “estas duas esculturas personificam os dois
poderes sociais que, graças à sua fraternização, fizeram eclodir sobre este solo
conquistado e cristianizado a admirável arte românica da Idade Média” 6. Mas, para
Gerard Graf7, apoiado nas mesmas suspeitas já levantadas por Manuel L. Real, trata-se
da representação de personalidades muito concretas e reais, “ligadas a uma fase muito
importante da vida do mosteiro”8.
Interroga-se este último historiador se não estaremos na presença das
representações de D. Afonso Henriques e de D. João Peculiar (?). O gesto de bênção da
estátua do bispo poderá estar em ligação com o acto de consagração de uma das partes
da Igreja, enquanto que a estátua do rei poderá ser uma evocação, uma memória do
primeiro rei de Portugal que, em 1145, confirmou a doação de São Pedro de Rates,
anteriormente feita por seu pai, ao priorado de Charité-sur-Loire, tendo sido, assim, o
primeiro da Congregação de Cluny em Portugal.

5 Segundo Manuel Luís REAL, op. cit., inédito (apud. Gerad GRAF, op. cit., vol. 2, 1986, p.
89).
6 Manuel MONTEIRO, São Pedro de Rates, Porto, 1908, p. 56-57.
7 Gerhard GRAF, op. cit., 1986, p. 88.
8 IDEM, ibidem, p. 89.

574
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Estátua de um Rei (D. Afonso Henriques?). Séc. XII. Estátua de um Bispo (D. João Peculiar ?). Séc. XII.
Granito. Museu da Igreja de S. Pedro de Rates. Apud Granito. Museu da Igreja de S. Pedro de Rates. Apud
AAVV, Portugal A Formação de um País, p. 74. AAVV, Portugal A Formação de um País, p. 92.

Parece-nos possível sustentar estas hipóteses, corroboradas já por outros


autores9, porquanto estas duas personalidades se ligam ao templo em causa e se ligam
entre si, em prol de um objectivo comum, testemunho da relação entre Regnum e
Sacerdotium.
No caso da (dita) imagem de D. Afonso Henriques da Igreja de Rates, os
atributos postos em destaque para identificação da personagem são, como já referimos,

9 José MATTOSO, coord., Portugal. A Formação de um País, catálogo de exposição, Lisboa,

Comissariado de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha 1992, p.74 e 92.

575
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

a coroa e a espada. Esta última insígnia do poder, de grandes dimensões, é empunhada


pela figura, colocando-a em evidência, a sublinhar a função guerreira de miles christi do
rei; ou seja, aquele que põe a sua espada e o seu corpo ao serviço da fé, dentro do ideal
de Cruzada peninsular.
Independentemente da protecção que o rei concede aos ministros do culto;
independentemente do seu patrocínio pessoal na construção de templos e,
independentemente da sua conduta mais ou menos virtuosa, é a Reconquista cristã, na
qual o rei participa, pessoal e activamente, como chefe supremo, que constitui a sua
mais poderosa afirmação de fé e a sua mais eficaz participação na construção do Reino
de Deus.
Essa exteriorização de um pensamento interiorizado parece ser expressa aqui
pelo gesto da mão sobre o peito10, num sinal de aceitação sincera da missão que lhe foi
confiada por Deus, conferindo-lhe “uma autoridade sem par, a que a distingue de todos
os outros homens”11, apoiada pelos detentores da potestas religiosa na Terra – os bispos.
Nesta imagem, o rei parece dizer que não é apenas mais um figurante da cena política,
mas sim um verdadeiro actor. Ele recebe e acata os conselhos do seu mentor espiritual,
D. João Peculiar, arcebispo de Braga entre 1138 e 1175, para, em conjunto (Monarquia-
Igreja), construírem um reino independente. Não deve ser alheio a isto o facto da figura
do rei ter a cabeça ligeiramente voltada para um dos lados, possivelmente para melhor
ilustrar a atenção dada por este aos gestos e figura de D. João Peculiar, a que se junta o
gesto da mão aberta sobre o peito.
Desta forma, devemos compreender que a estátua do monarca não foi
concebida para figurar sozinha no espaço religioso de São Pedro de Rates, como
memória única, exclusiva do rei e do seu protagonismo político e até religioso, mas que
houve a clara intenção de a associar à imagem de uma autoridade religiosa de primeiro
nível.
A presença da figura do bispo (provavelmente D. João Peculiar) vem, assim,
demonstrar que a dualidade de poderes se assume publicamente, que o rei e o bispo
detêm poderes tutelares, e que ambos lutam, lado a lado (o rei com a força das armas e
a boa estratégia militar; o bispo pela argumentação junto da Santa Sé), para a
constituição de um reino independente, baseado na argumentação da guerra de

10 Sobre o gesto da mão sobre o peito, Cf. François GARNIER, op. cit., 1982, pp. 184-185.
11 José MATTOSO, “A realeza de Afonso Henriques”, op. cit., 2.ª ed., 1990, p. 224.

576
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Reconquista contra o inimigo muçulmano. Ambos estão na linha da frente de muitas


batalhas, quer sejam militares, quer sejam diplomáticas12, e ambos se associam para a
construção de uma nova realidade política. Existe, pois, uma relação harmónica entre o
monarca português e o bispo, simbolizando a união entre os dois poderes máximos do
temporal e do espiritual.
Neste contexto de cultura e mentalidades ainda marcadamente feudais, Afonso
Henriques, apesar de líder guerreiro, neto do imperador Afonso VI e rei, é ainda um
primus inter pares, carecendo do inestimável apoio do clero para a obtenção dos seus
plenos poderes. Em suma, estamos ainda na presença de uma imagem do rei que é
suserano mas não é, verdadeiramente, soberano.
Assim, a visível relação de dependência existente entre D. Afonso Henriques e o
Arcebispo de Braga, figurado nestas duas estátuas, em que o poder temporal e o poder
espiritual se dividem por duas autoridades perfeitamente distintas, leva-nos a levantar a
hipótese da encomenda de ambas não ter partido da iniciativa régia, mas antes se dever
à iniciativa eclesiástica, quer esta tenha partido da pessoa de D. João Peculiar, quer dos
próprio monges de São Pedro de Rates.
Não mais voltaremos a encontrar imagens com este perfil definidor dos poderes
temporal e espiritual, em conjugação, e identificando personagens com verdadeira
existência histórica e significados político-religioso, nas obras de arte medieval
portuguesa que se conhecem, não obstante o facto de existirem, um pouco por todos
os reinos da Cristandade e até datas muito tardias, evidentes tentativas de, através das
imagens e do seu poder comunicador, incidir sobre a temática da subordinação do
poder real às autoridades eclesiásticas. Cite-se, apenas a título de exemplo, duas
iluminuras do Fuero Juzgo13, datado do século XIV e pertencente ao acervo de

12 D. João Peculiar, que esteve nada mais do que sete vezes em Roma em missões

diplomáticas, serviu de intermediário entre os interesses de D. Afonso Henriques e a Santa Sé


quando, em 1144, levou junto do Papa o juramento de vassalagem e encomendação do território
português à Igreja romana, aceite nesse mesmo ano, e constituindo mais um sinal de acercamento
entre as autoridades clericais e políticas portuguesas e o Papado. Sobre este importante arcebispo de
Braga veja-se, entre outros títulos, Avelino de Jesus COSTA, “D. João Peculiar co-fundador do
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra Bispo do Porto e Arcebispo de Braga”, Santa Cruz de Coimbra
do Século XI ao Século XX. Estudos no IX Centenário do Nascimento de S. Teutónio 1082-1982, Coimbra,
1984, pp. 59-83.
13 O Fuero Juzgo é a tradução castelhana do código visigótico. O que actualmente pertence

ao acervo de iluminuras da Biblioteca Nacional de Lisboa, tem proveniência incerta, sabendo-se


apenas que pertenceu a Juan Afonso, regedor do Logroño, nos anos finais do século XVI. As
capitais iluminadas representam, todas elas, a mesma temática: um rei e um bispo, o que José

577
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Iluminados da Biblioteca Nacional de Lisboa, onde se podem ver, respectivamente, o


rei entronizado e a receber um livro das mãos de dois bispos e um rei recebendo os
ensinamentos de um bispo.

O rei e escuta os ensinamentos de O rei e dois bispos. Séc. XIV. Fuero Juzgo.
um bispo. Séc. XIV. Fuero Juzgo Biblioteca Nacional de Lisboa. Apud José
(tradução castelhana do código Mattoso, História de Portugal, vol. 2, p. 282.
visigótico). Biblioteca Nacional de
Lisboa. Apud José Mattoso, História de
Portugal, vol. 2, p. 283.

A estátua do Museu do Carmo, corresponde, certamente, a uma cronologia


posterior à morte de D. Afonso Henriques (afirmação que sustentamos baseada na
análise dos elementos formais da obra, indicadores de uma estética já gótica, datável do
século XIII14, mesmo que da primeira metade da centúria), ainda que aceitemos tratar-
se da representação de Afonso I de Portugal. Ela aponta já para alguma evolução
quanto à iconografia régia e quanto à afirmação do posicionamento do rei como
responsável pela construção de um reino cristão e a sua relação com o poder da Igreja.
Para além dos atributos anteriormente analisados15, que facilmente se
identificam com algumas das regalia que os reis recebiam nas cerimónias de coroação16,
onde, mais uma vez, a espada, presa por uma das mãos do rei, é posta em destaque, o
monarca segura também, com a outra mão, uma cruz. Esta, na opinião de outros
autores, poderá, ter sido, inicialmente, associada ao Orbe17, como era costume nas

Mattoso considera altamente significativo, já que um representa o poder temporal e o outro o poder
espiritual (Cf. José MATTOSO, “1096-1325”, op. cit., vol. 2, 1992, pp. 282-283.
14 Cf. Carla Varela FERNANDES, “Escultura gótica”, op. cit., 2002, pp. 81-82 e IDEM,

“Vida, Fama e Morte…”, op. cit., 2005 (no prelo).


15 Cap. 1.2 da Parte III.
16 Mesmo que alguns reis não tivessem passado pelo ritual da coração/sagração, podiam

usar essas mesmas insígnias e serem com elas representados neste tipo de “retrato de aparato” ou
iconografia do ministerium regis.
17 Como interpretou Mário Jorge BARROCA, “12. D. Afonso Henriques”, op. cit., 2000, p.

84.

578
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

representações régias e imperiais do tempo, ou, ter constituído o remate de um ceptro18,


mas que, pelo facto da imagem se encontrar truncada, não podemos confirmar.

Estátua de um monarca
(D. Afonso Henriques?)
Pormenor das mãos da estátua e da cruz

Estátua de um monarca (D. Afonso Henriques?)


Séc. XIII. Mármore cinzento. Antiga Ermida de S.
Miguel da Alcáçova de Santarém. Museu Arqueológico
do Carmo (Lisboa). Foto: José Pessoa/IPM/DDF

Porém, somos levados a defender, pela forma como o rei segura a cruz, que
sempre se terá tratado apenas de uma cruz e não o remate do Orbe ou Globus, ou
mesmo de um ceptro. Repare-se que a figura segura este objecto pelo braço inferior da
cruz, junto à intercepção com os braços horizontais. No caso das representações em
que os reis ou imperadores apresentam o Globus, a forma como seguram o objecto é
sempre diferente da que aqui vemos, sustentando-o pela base da esfera, sem nunca
segurar a cruz. Vejam-se exemplos como o Segundo Selo de Majestade de Henrique III
de Inglaterra, a estátua jacente de Eduardo II, ou o conhecido de retrato de Ricardo II
(Abadia de Westminster), entre tantos outros exemplos susceptíveis de menção, para
facilmente percebermos que era contra as normas do controlo iconográfico outra forma

18 Como interpretou José MATTOSO, “A Realeza de Afonso Henriques”, op. cit., 2ªed.,

1990, p. 224.

579
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

de segurar o globo que não a que podemos ver nestes e noutros exemplos. Para além
do mais, não existem vestígios materiais do pretenso Globus no que nos é dado a
observar.

Molde da estátua
jacente de Eduardo
II de Inglaterra. (†
Segundo Grande Selo de Henrique III. 1259 – Catedral de 1327). National
Durham, MS 1.2 Reg.6a v. Portrait Galerery de
Apud Age of Chivalry…, p. 453. Londres. Apud Anne
McGee
Morganstern, Gothic
Tombs of Kinship…, p.
85.

O mesmo se aplica aos ceptros rematados


por cruzes, sustentados a cerca de um terço da vara,
e nunca pelo braço vertical inferior da cruz de
remate.
A cruz, só por si, atributo de grande poder
simbólico e significado religioso, junta-se, agora, à
iconografia de D. Afonso Henriques para, com a
espada, relembrar a memória do primeiro rei como
vitorioso conquistador (imagem da sua strenuitas),
mas também como um rei de selo divino, temente a
Deus, de quem recebeu directamente o poder.
Como ministro de Deus, ele é chefe da sua Igreja,

Apocalipse e Livro da Coroação.


protegendo-a e ampliando-a, quer através do ganho
c.1330-1339. Apud Age of Chivalry…, p. 201.
territorial cristão, em detrimento da geografia ocupa-

580
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

da pelo Islão, quer na criação de condições várias para a edificação de novos templos,
quer, ainda, na protecção concedida aos representantes da ordem espiritual.
Atrevemo-nos, no entanto, a levantar a hipótese de a presença da cruz, nas mãos
do pretenso D. Afonso Henriques, se poder relacionar com uma forma de evocação da
“adoração da Cruz”, cerimónia medieval que ocorria no Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra e constituía um ritual litúrgico que se processava numa sequência em que se
levava os reis vivos a venerar os reis mortos que aí se encontravam tumulados, bem
como a venerarem a Cruz, símbolo da realeza espiritual. Como refere Maria de Lurdes
Rosa19, seria para esta “adoração da cruz” “que serviam as orações acrescentadas talvez
nos séculos XIV e XV ao Ritual do Mosteiro, no exemplar que chegou até nós. Com
efeito, as orações de sufrágio pelos reis encontram-se aí juntamente com a “adoração da
Cruz”.
A mesma autora considera que este ritual deve ser enquadrado com outros
idênticos que existiram por toda a Europa medieval, nos grandes mosteiros e panteões
régios e principescos, sendo que a primeira grande construtora deste tipo de cerimónias
foi a abadia de Cluny que, por volta do ano mil, elaborou um cerimonial “ad regem
deduncendum”, o original de todos os restantes “Ordines” de acolhimento de
soberanos no mosteiro. À recepção do rei pelo abade, seguia-se a adoração da Cruz e
uma série de percursos simbólicos pela Abadia.
Ora, como evocação de um ritual que já se processaria à data de execução desta
estátua (1.ª metade do séc. XIII ?), ou, simplesmente como evocação da Cruz, como
símbolo do Mosteiro coimbrão ou, apenas, como símbolo da realeza divina, a sua
presença é perfeitamente coerente com uma iconografia pensada para este monarca.
Nesta imagem, o rei associa, em si, os atributos do poder temporal (coroa,
espada e manto) e um atributo do poder religioso, do qual está, igualmente, investido.
D. Afonso Henriques é apresentado como agente do plano divino, num período em
que a marcha para a centralização régia era já evidente, não havendo condições socio-
políticas para representações iconográficas idênticas à das duas estátuas de São Pedro
de Rates, claro manifesto de uma dualidade de poderes que, agora os chefes do poder
temporal pretendem, a todo o custo, diluir.
O empunhar da espada e a sua colocação sobre o peito e um dos ombros é
também observável em outras imagens do século XII, que representam monarcas de

19 Maria de Lurdes ROSA, “O corpo do chefe guerreiro...”, op. cit., 1996, pp. 117-118.

581
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

outros reinos. É disso bom exemplo um selo do rei inglês Eduardo, o Confessor, onde se
representa o monarca entronizado, vestido com o manto e a segurar a espada em
semelhante posição à que vemos nesta estátua, enquanto que com a outra mão segura o
ceptro.

Selo de Eduardo o
Confessor.
Séc. XII. Society of
Antiquaries of
London.
Apud Paul Binski,
Westminster Abbey…,
p. 85.

Estas são as únicas imagens medievais que poderão representar D. Afonso I e


que podemos arrolar no conjunto da iconografia régia produzida durante o período da
Primeira Dinastia, sendo a última que analisámos, a mais completa, sob o ponto de vista
iconográfico. Ambas põem resumir as bases ideológicas em que assentava o poder real
no mundo peninsular dos finais do século XII e meados do século XIII.
Igualmente pertencente a estas datas seria um selo de D. Sancho I que, durante
o século XIV, serviu de fonte iconográfica para duas reproduções, em desenhos,
presentes em dois documentos distintos. Já a eles nos referimos anteriormente, mas é
importante que os retomemos no âmbito deste capítulo, na medida em que, à
semelhança das duas esculturas supracitadas, também estes dois desenhos se inserem
nas representações criadas sob os auspícios do espírito da Reconquista.
Parece-nos certo que o modelo usado foi o mesmo para a criação das duas
obras, sendo estas, simples registos gráficos, sem quaisquer pretensões artísticas
profundas. A verdade é que se destinavam, simplesmente, a melhor identificar um selo
de validação usado por D. Sancho I. Tratando-se de cópias, realizada possivelmente
pelos mesmo autores das cópias dos dois textos e não por artistas habituados às artes
miniaturais da pintura sobre pergaminho, os mesmos limitaram-se a desenhar os traços
mais impressivos, resultando num trabalho rude e quase pueril.
No documento do Livro das Doações de D. Afonso III, vemos, não só o desenho do
verso do selo original, com a figura do rei, mas também o anverso, onde se representa,
de forma estilizada, as armas régias, indo de encontro ao facto de estas se terem

582
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

começado a usar nos diplomas do tempo de D. Sancho I. Quanto à figura do rei,


representada de pé e em posição frontal, percebemos ter existido alguma dificuldade
por parte do “artista” em dispô-la dentro do limite espacial criado pela forma
amendoada do selo.

Selo de D. Sancho I, segundo cópia Selo de D. Sancho I, segundo cópia do Foral de


desenhada no séc. XIV (Lisboa, Penas Ruivas (Lisboa, IANTT, Gavetas, gav. 15, mç.
IANTT, Livro das Doações de D. 10, doc. 14. Foto. IANTT (cedida por Maria João
Afonso III, fol. 13v.º). Foto. IANTT Violante Branco)

No outro registo gráfico do mesmo selo, presente na cópia do Foral de Penas


Ruivas, a figura do rei está posicionada a três quartos para o observador e insere-se,
com igual dificuldade, dentro do limite espacial do selo. Estas são as únicas diferenças
dignas de nota entre as duas reproduções.
Em ambos, o selo é encimado por uma cruz, de braços acentuadamente
flordelizados na imagem do Foral de Penas Ruivas, e mais rectos na do Livro de Doações.
As coroas, que tão expressivamente indicam tratar-se de uma personagem régia, são
rematadas por três cruzes, bem destacadas. Em ambas as figuras, o corpo está coberto
com vestes longas (túnica e manto de cerimónia), com tratamento mais complexo no
figura do Livro de Doações, onde uma infinidade de linhas e pontos pretendem mostrar as
pregas da túnica e do manto, bem como as mangas tufadas deste último.
É igualmente interessante constatar que os gestos das duas figuras são idênticos,
constituindo mais um argumento para que defendamos ter havido uma e única fonte

583
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

original para a realização das duas cópias. Ambas têm o braço esquerdo junto ao corpo,
enquanto que o direito se abre e com mão aponta para direita, provavelmente, num
gesto de indicação ou demonstração de algo, enfim, de alguma informação ou
acontecimento que hoje já não podemos averiguar.
A ladear ambas as figuras, encontra-se uma lança com estandarte, atributo que,
como vimos anteriormente, não aparece em mais nenhuma representação dos reis
portugueses da primeira dinastia.
Este último atributo deve ser convenientemente valorizado, na medida em que
em todas as representações dos nossos monarcas que actualmente conhecemos, o
elemento iconográfico mais destacado, para além da coroa, é sempre a espada. Motivo
pelo qual a presença deste estandarte não deixa de ser intrigante. José Mattoso entendeu
ser a expressão visual “do sentimento de vitória que se apoderou da corte portuguesa
depois da conquista de Silves, em 1189”20, manifestada através de uma insígnia
(estandarte da vitória) que se reporta à brilhante actuação nos campos de batalha. Os
estandartes revestem-se sempre de elevado valor, quer sejam os usados pelos exércitos
vencedores, quer sejam os estandartes tomados dos vencidos, prova irrefutável da
vitória.
O mesmo historiador já havia colocado em confronto a estátua dita de D.
Afonso Henriques do Mosteiro de Rates e a cópia do sinal de soberania de D. Sancho I
(do Livro de Doações), chamando a atenção para o facto de, na primeira, a espada alcançar
uma evidência notória, sendo esta substituída pelo estandarte na ponta de uma lança, na
segunda obra. Interroga-se então: “Quem sabe se ele queria assim afirmar que chegou
ainda mais longe do que o seu próprio pai, ao alcançar as portas de Sevilha, da fabulosa
Sevilha, e ao conquistar a cidade de Silves”. Chama ainda a atenção para o facto de esta
insígnia assumir um importante relevo entre o conjunto dos regalia recebidos por
Afonso VII, no decurso da sua coroação, já não como rei da Galiza, mas como
monarca de Leão e Castela, depois da morte de D. Urraca.
Não obstante o pouco valor artístico destas duas obras, elas constituem valiosos
documentos iconográficos para o entendimento da iconografia régia dos finais do
século XII e primeiros anos do século XIII. Aqui se nota a valorização dos símbolos
cristológicos (a grande cruz que encima o selo e as cruzes que rematam a coroa),
sublinhando o carácter cristão do rei e, claro, da monarquia portuguesa. Da mesma

20 Cf. José MATTOSO, “1096-1325”, op. cit., vol. II, 1992, p. 93.

584
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

forma, valorizam-se as vitórias militares de D. Sancho I, no âmbito da Reconquista,


através da presença do estandarte.
Em resumo, estamos diante de mais um registo iconográfico, dos inícios da
nacionalidade, em que se faz a afirmação do modelo do rei cristão, que é merecedor da
sua coroa pelos méritos alcançados nos campos de batalha, vencendo e conquistando
terras aos inimigos da Cristandade.

585
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

4.2 O rei como cabeça do corpo social


A gradual evolução do poder régio, com vista ao seu engrandecimento e em
prejuízo dos dois estratos sociais mais poderosos – clero e nobreza – obrigou,
necessariamente, a uma maior complexidade da iconografia régia, não apenas na
restante Europa, mas também em Portugal. Obedecendo a parâmetros mais amplos de
propaganda, testemunha-se, porém, uma relativa “pobreza” quanto à quantidade de
objectos materiais que nos chegaram e que ilustram a realidade nacional, algo
discrepante em relação, por exemplo, aos outros reinos peninsulares, à França ou à
Inglaterra.
O poder régio cresce em dimensão e imposição face aos restantes poderes e
complexificam-se os conceitos que lhe estão inerentes. À soberania do monarca é
preciso associar os conceitos de postestas e maiestas, que fazem do rei a cabeça do corpo
político, o chefe natural de todos os indivíduos1.
Em França, a aceitação incontestável da soberania do rei verifica-se durante a
segunda metade do século XIII, e é perfeitamente perceptível nas palavras de diferentes
autores. Cite-se, a título de exemplo, o autor da obra Livre de Jostice et Plet, que após
referir-se ao poder dos grandes vassalos do rei, como duques, condes e viscondes,
afirma que “chastelains, vavassor, citaen, vilain sunt souzmis à cels que nos avons devant nomez. Et
tuit son soz la main du roi”. Trata-se, pois, da afirmação da submissão de todos os estratos
sociais à autoridade superior do rei, independentemente das relações que estes
estabelecem com ele. Nos finais do século XIII, todos os autores concordam em ver no
rei de França um “soberano senhor” no seu reino2.
Certamente, muito terá contribuído para esta afirmação e aceitação da imagem
política do rei como soberano, em finais da centúria de Duzentos, o resultado final das
batalhas jurídicas entre Filipe IV, o Belo, e o poder papal, protagonizado na época por
Bonifácio VIII. A vitória do rei, conseguida à custa da sua persistência, do trabalho de
hábeis legistas e, ainda, com o apoio de alguns membros do alto clero francês, veio
mostrar à Cristandade que o rei de França possui uma fortíssima auctoritas regia e plena
potestas, palavras que encontramos em documentos da chancelaria régia de 1294 e 1297,

1 Sobre a evolução do príncipe feudal para o rei soberano, em França, Cf. Olivier

GUILLOT, Albert RIGAUDIÈRE e Yves SASSIER, Pouvoir et institutions dans la France Médiévale. 2.
Des temps féodaux aux temps de l’État, (1994), 3.ª ed., Paris, Armand Colin, 2003, pp. 107-138.
2 Cf. IDEM, ibidem, pp. 108-109.

586
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

não se vendo obrigado o rei, assim, a aceitar a superioridade do espiritual sobre o


temporal. Pelo contrário, no seu reino, ele é sempre a cabeça tutelar do corpo político e
social, inclusive chefe superior da Igreja nacional.
Ao rei de França reconheceu-se, também, uma terceira qualidade, a maiestas, que
juntamente com as outras duas enunciadas, constituíram a trilogia própria da dignidade
imperial. A majestade reagrupa todos os elementos do poder (participando, inclusive,
do sagrado e do religioso), e todos os atributos da soberania, a fim de colocar o seu
titular no topo da hierarquia3 do corpus republicae mysticum4, estabelecido sobre o modelo
do corpus ecclesiae mysticum. Trata-se, portanto, de um conceito organicista do Estado, o
qual já tivemos oportunidade de analisar na Parte I desta dissertação.
No que se refere a Castela, por exemplo, os reinados de Afonso X e de Sancho
IV constituem os mais eloquentes testemunhos da afirmação do poder régio e de como
os reis castelhanos se consideravam soberanos, detentores de um poder quase absoluto,
sem necessidade da mediação, ou permissão, das autoridades religiosas para o exercer5.
Não cabe avaliar, no âmbito do presente estudo, a presença destes conceitos
(potestas e maiestas) nos documentos régios redigidos durante a primeira dinastia
portuguesa, nem sequer desenvolver a sua aplicabilidade prática no quotidiano da
governação. É certo que a marcha em direcção à centralização do poder real e, por fim,
à monarquia absoluta, inicia-se muito cedo, sendo disso bom exemplo o reinado de D.
Afonso II, através de actos, muito precoces, de forte afirmação do poder régio, como
foi o das Inquirições. Também D. Afonso III, que viveu parte da sua juventude em
França, na corte de Branca de Castela e do seu primo (em primeiro grau) São Luís,
trouxe consigo, no regresso a Portugal, o gosto pela autoridade e pelo ideal de
fortalecimento do poder régio, pondo-os em prática logo após a sua ascensão ao trono
- demonstração de como se caminhava progressivamente para a soberania do rei. Este é

3 IDEM, ibidem, p. 110


4 Conceito que foi suportado pelas obras de vários autores que se dedicaram à teoria
política na França da Baixa Idade (especialmente durante a segunda metade do século XIV), com
vista a dotar o ideal de um “príncipe forte” de uma base de sustentação teórica. Entre os vários
autores, cite-se Jean Gerson e Filipe de Mézières e, especialmente Christine de Pizan através do seu
Livre du corps de policie. Todos defendem a necessidade da existência de uma total harmonia entre as
diferentes partes deste corpo político, todas elas subordinadas à cabeça, numa total submissão e
obediência a quem a representa – o rei.
5 Cf. capítulo 1.2 da I Parte.

587
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

um tema que já foi amplamente tratado pela historiografia nacional e que, como tal,
abstemo-nos de desenvolver6.
Porém, se a documentação escrita pode ser discreta na aplicação destes
conceitos (tão caros à monarquia francesa), para nos indicar, de forma clara, o seu
entendimento e a sua aceitação, os actos da governação de alguns monarcas são disso
prova suficiente e, não deixa de ser curioso e muito interessante, que seja a iconografia
do poder real que dá verdadeiras mostras de estar imbuída dos conceitos de auctoritas,
postestas e maiestas, visíveis, na sua plenitude, durante os reinados de D. Afonso IV, D.
Pedro I e D. Fernando I.
Por outras palavras, a afirmação da soberania do rei é perfeitamente apreensível
na análise de certos documentos iconográficos, cuja execução foi directamente
ordenada pelos reis, ou mandados fazer por outros e a eles dirigidos, a partir do terceiro
quartel do século XIV, ainda que estes factores já sejam visíveis através das acções e da
documentação escrita de reinados anteriores.
Disso são prova perfeita, duas obras de impressionante complexidade
iconográfica, quando comparadas com outras dos reinados anteriores. Ao terem
chegado até nós em bom estado de conservação, permitindo assim a sua leitura, podem
ser consideradas obras fundamentais, constituindo, cada uma delas, um verdadeiro
unicum, ainda que acreditemos terem existido outras, que não sobreviveram à voragem
dos tempos. Ambas constituem testemunhos irrefutáveis de que o poder das imagens
era altamente valorizado como meio propagandístico de grande eficácia, a partir das
quais se difundem, junto de diferentes estratos sociais, as ideias políticas que emanam
da corte e do próprio rei.
Referimo-nos, em primeiro lugar, ao selo pendente pertencente a um
documento camarário de Lisboa, datado do reinado de D. Afonso IV (1352), muito
conhecido, mas nem por isso estudado sob o ponto de vista iconográfico7. O estudo

6 Para uma compreensão mais alagada do tema do percurso da centralização régia em


Portugal Cf. as Histórias de Portugal, desde Alexandre Herculano até aos nossos dias.
7 Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, o Marquês de Abrantes ressalta a importância

deste selo, considerando-o de excepção e analisando-o detalhadamente. Porém, apesar de tentar


uma primeira leitura interpretativa, não desenvolve de forma satisfatória a sua proposta. Lúcia
Maria Cardoso ROSAS, “104. Selo do Concelho de Lisboa”, Nos Confins da Idade Média, Arte
Portuguesa Séculos XII-XV, Cat. de Exposição (Europália 1992), Lisboa, Instituto Português de
Museus, 1992, p. 196, estranhamente, nada acrescentou ou desenvolveu quanto à interpretação das
várias cenas.

588
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

mais completo quanto à sua iconografia deve-se a Francisco Sengo8, como resultado de
um trabalho de âmbito curricular, não publicado e, por isso, pouco divulgado, no qual
são expressas algumas ideias fundamentais, às quais gostaríamos de acrescentar outros
dados importantes, através da sua análise detalhada, e até diferentes conclusões.
Em segundo lugar, não por importância histórica e artística uma vez que se trata
de uma obra maior da escultura gótica portuguesa, mas por ordem cronológica, o
túmulo de D. Fernando I, igualmente muito conhecido pela sua constante
reprodução em manuais de História e de História da Arte, mas praticamente “mudo”
para o público, no que se refere aos seus múltiplos significados, que entendemos serem
perceptíveis através do entendimento da sua iconografia e enquadramento iconológico,
bem como o seu real valor como obra de arte, que não hesitamos considerar ser do
mais destacado relevo no âmbito da escultura trecentista europeia.
Embora respeitantes a realidades diferentes e a reinados distintos, estas duas
obras têm algo em comum: elas são os únicos testemunhos visuais da aceitação
implícita da ideia de rei como chefe de todo o corpo social, inclusive, como chefe da
sua Igreja.

4.2.1 Afonso IV e o selo camarário de Lisboa de 1346


Este selo, pertence a um documento datado da era de 1384 (1346), relativo à
arrematação de umas casas em Lisboa (a S. Mamede), feito por Martim Rois Balestro,
escudeiro e cidadão de Lisboa, que eram então da posse do rei, por terem sido
penhoradas a João Lourenço por dívidas deste para com o monarca9.
Importa, antes de mais, referir que é iconografado nas duas faces: numa,
representa-se a imagem idealizada da organização do espaço urbano de Lisboa com a Sé
Catedral em grande destaque, (apesar da idealização é provável que os perfis da catedral
ao tempo de D. Afonso IV, sejam coincidentes com o que se pode ver nesta
representação) e que é muito sugestivo para a análise destas temáticas, mas menos
importante para o nosso estudo; na outra, uma composição de grande complexidade
figurativa, onde se agrupam personagens de difícil identificação, elementos de micro-

8 Francisco SENGO, Um Selo Medieval Português. Contributos para o seu estudo, trabalho

curricular apresentado no âmbito da disciplina de História da Arte Gótica, do curso de História,


variante de História da Arte, 1999 (policopiado).
9 Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, p. 277.

589
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

arquitecturas e micro-esculturas, heráldica e legendas. Ambas as representações, do


verso e do anverso, se interligam entre si.
Vamo-nos deter nesta última composição. Impõe-se descrevê-la sumariamente,
para que melhor possamos compreender a organização do espaço, as hierarquias pré-
determinadas, a iconografia e a sua simbólica.

Selo camarário de Lisboa. 1352. (Reinado de D. Afonso IV). Foto: IANTT (Luís Pavão).

O espaço algo circular onde as cenas se desenrolam é marcado pela oposição


entre o interior e o exterior, delimitadas por uma estrutura que sugere arquitectura, mas
que mais não é que a justaposição entre elementos verdadeiramente arquitectónicos e
outros com carácter simbólico. Assim, como delimitação vertical do espaço interior,
erguem-se dois báculos episcopais (com crossa em voluta e sem decoração),
substituindo-se ao papel de vulgares colunas. A fechar, superior e horizontalmente, um
arco abatido e decorado com minúsculas esferas e encimado por onze pequenas torres,
faz a vez de arco, ou melhor, de tecto em abóbada, cobrindo o que podemos interpretar
como sendo um templo. O facto de, na outra face do selo, se dar grande destaque à Sé
de Lisboa e de, nesta face, a composição estar delimitada por dois báculos, insígnia

590
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

episcopal por excelência,


leva-nos a concluir sobre
a intenção de se
representar o interior da
referida Catedral, como já
o havia sugerido
Francisco Sengo.
No exterior deste templo
(na face que aqui nos
ocupa), delimitados por
Selo camarário de Lisboa. 1352. (Reinado de D. Afonso IV). Foto: IANTT
(Luís Pavão).

uma circunferência perolada (pequenas esferas organizadas sequencialmente), a


composição organiza-se simetricamente em três registos: em baixo, duas figuras
ajoelhadas, de frente uma para a outra, têm as mãos juntas para oração; ao centro, dois
escudos com as armas de Portugal e, a terminar, duas legendas que, pelo facto deste
selo se encontrar danificado na orla, impossibilita a leitura de ambas.
No interior, a composição organiza-se, igualmente, em três registos, aqui melhor
estratificados pela inclusão de faixas separadoras, sugerindo uma organização em
andares. No primeiro registo, em baixo, sobre aquilo que poderão ser as ondas de um
estilizado mar, ajoelham-se dezoito figuras em oração, antecedidas por outras duas, de
pé. De frente a este amplo conjunto figurativo, duas personagens, uma ajoelhada e a
outra de pé, ambas em prece, como se dirigissem a comunicação que aqui se estabelece.

Registo inferior do selo. Foto: IANTT (Luís Pavão)

591
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

No segundo registo, dois grupos constituídos por quatro e cinco figuras


respectivamente, em frente um ao outro, posicionam-se novamente genuflectidos, são
de maiores dimensões do que as personagens descritas para o primeiro registo e, pelo
menos duas delas, parecem segurar palmas, conhecido atributo de identificação dos
mártires, ou usados em cerimónias relacionadas com a presença ou evocação de
mártires.

Segundo registo (intermédio) do selo – figuras ajoelhadas, em oração e a segurar palmas.


Foto: IANTT (Luís Pavão)

Por fim, o terceiro registo, mais amplo e mais rico em elementos iconográficos.
Da esquerda para a direita, podemos observar a figura mais destacada de toda a
composição pelas suas superiores dimensões: uma figura masculina, sedente sobre um
trono, vestida com trajos seculares, não muito longos (túnica e manto), deixando a
descoberto a anatomia dos braços, parte das pernas e os pés. Trata-se de uma figura

Terceiro registo (superior) do selo. Foto: IANTT (Luís Pavão)

592
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

coroada que segura uma esfera, ou globo da soberania, com uma das mãos e, com a
outra, prepara-se para receber uma palma que lhe é entregue por uma segunda figura
masculina, tonsurada e genuflectida à sua frente (um clérigo)
De costas para esta última personagem encontra-se, de pé, um oficiante
religioso, paramentado com vestes episcopais, posicionado em frente a um altar, sobre
o qual se encontra o cálice eucarístico10. Sobre ele, dispõem-se, como que
dependuradas, duas simbólicas e muito estilizadas embarcações.

Pormenor da figura do rei, Pormenor do bispo oficiante e


entronizado, segurando o Globo da do altar eucarístico, encimado
Soberania e recebendo a palma das pelas duas barcas. Foto: IANTT
mãos de um religioso. Foto: IANTT (Luís Pavão)
(Luís Pavão)

Com proporções igualáveis à da primeira e maior figura, e assumindo a escala de


hierarquias que se verificam nas representações medievais, a representação de um
túmulo-relicário11, assente sobre altas colunas capitelizadas e encimado por duas aves

10 A relação entre as relíquias, a eucaristia e as imagens apresenta uma circularidade


contínua, quaisquer que sejam as diferenças existentes entre estes objectos. Cf. Jean-Claude
SHMITT, “Le relique et les images”, Les Reliques. Objects, Cults, Symboles, Hagilogia. Études sur la
Sainteté en Occident, Actes du Colloque International de l’Université du Littoral-Côte d’Opale
(Boulogne-sur-Mer), 4-6 Setembro de 1997, Breplos Publishers, 1999, p. 150
11 Os túmulos-relicários tanto podem ser os túmulos originais em que os santos foram

inumados, como cenotáfios, ou túmulos de “aparato”, especialmente concebidos para a exposição


das relíquias.

593
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

afrontadas (muito provavelmente dois corvos), constitui o elemento não humano mais
destacado do conjunto12.
Sob o túmulo-relicário, duas pequenas figuras ajoelhadas e orantes, olham na
direcção do altar e da celebração da Eucaristia. Por fim, uma personagem isolada, atrás
do túmulo relicário, está de pé e segura, com as duas mãos, o que parece representar
um círio (diferente, pela sua fisionomia, dos atributos que identificamos nesta
composição como representações de palmas).

Pormenor do túmulo-relicário de S. Vicente e das


figuras que lhe estão mais próximas, bem como dos
dois corvos, pousados sobre a tampa.

Foto: IANTT (Luís Pavão)

A partir da observação das várias personagens envolvidas na cena, da divisão


dos espaços e de outros elementos que a compõem, é possível avançar, dificilmente
sobre a identificação de todas, mas facilmente sobre algumas e, sobretudo, propor uma
leitura geral, ou seja, uma proposta sobre a mensagem principal e as sub-mensagens que
lhe estão inerentes.
Parece-nos fácil perceber que a figura coroada, e destacada em relação às outras,
seja uma representação de um rei, que identificamos aqui como sendo D. Afonso IV,
quer pela data do documento a que o selo pertence (1346), quer pelo facto de, como já
referimos, toda a cena se desenrolar no interior da Sé e Lisboa e, ainda, por estar
ladeada pelos escudos heráldicos com as armas de Portugal13. À data da realização deste

12 Com frequência, as arcas ou túmulos-relicários são de grandes dimensões e

desproporcionadas em relação às relíquias que contêm, por um questões de prestígio e de


ostentação (cf. Alain DIERKENS, “Du bon (et du mauvais)...”, op. cit., 1999, p.242.
13 O Marquês de Abrantes, na breve proposta de leitura iconográfica que faz deste selo,

entendeu poder tratar-se de um cerimónia de entronização das relíquias de S. Vicente na presença

594
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

selo, já às obras de reconstrução da Catedral, sob o patrocínio e forte empenho de D.


Afonso IV, estavam em pleno desenvolvimento, e o próprio testamento do rei,
revelando a sua intenção de ai se sepultar sob a protecção de São Vicente, havia sido
redigido (1345), pelo que a notoriedade que se havia de dar à pessoa do monarca em
qualquer iconografia relacionada com a Sé e com São Vicente, não pode, de forma
alguma, estranhar. Esta conclusão já havia sido expressa por F. Sengo, e é por nós
corroborada.
Da mesma forma, e a partir destes pressupostos, elementos como os dois
corvos, as barcas14, o túmulo-relicário e a água que se desenha no registo inferior,
relacionam-se com a iconografia de São Vicente, mártir cujo corpo era guardado e
venerado na Sé desde o reinado de D. Afonso Henriques (1173), obedecendo a um
projecto de enobrecimento de Lisboa15 como nova capital, sendo o rei o principal
dinamizador do empreendimento.
Em número de dois, os corvos cedo aparecem na iconografia vicentina,
incluindo a que se expressa na sigilografia medieval do Mosteiro de São Vicente de
Fora, desde 119016. A presença simbólica da água é feita pelas barcas e pela
representação estilizada das ondas do mar que, em conjunto, trouxeram o corpo do

do soberano português – o Rei Afonso I – e do Bispo de Lisboa. Já Francisco Sengo deixou bem
argumentado no seu estudo que, o soberano em causa, seria D. Afonso IV, proposta que
corroboramos, dada a cronologia (embora não fosse impeditiva a existência de uma representação
memorial de D. Afonso Henriques, sempre que o tema é S. Vicente) e, ainda, com maior
significado, todo o ambiente político-religioso que se viveu neste reinado em torno da Sé de Lisboa,
protagonizado pelo próprio monarca, bem como a sua especial devoção para com o mártir S.
Vicente.
14 Sobre o significado simbólico das embarcações na iconografia de São Vicente já muito se

tem escrito, pelo que, simplesmente, optamos por destacar as conclusões de Lídia FERNANDES,
“O Culto Vicentino...”, op. cit., 1995, p. 227, por resumirem os aspectos mais importantes deste
atributo, ou signo: “Num território onde o litoral marítimo sempre exerceu uma profunda
influência nos povos, não será de estranhar que a barca, como signo de aventura, de alargamento de
fronteiras e de vitória sobre o elemento adverso, passasse a ser adoptado por toda a população.
Mais ainda, quando a cidade mais importante do futuro reino, prestes a ser conquistada, possuía
uma tradição de construção de embarcações que recuava a muitos séculos atrás, e onde grande
parte da população se dedicava a actividades piscatórias.
A adopção da barca como emblemática municipal comprova desta forma a vontade da
cidade de Lisboa e, afinal, de todo o território, em colocar o destino do reino sob a benção e sob o
poder de um santo que tinha chegado à cidade numa barca, numa das tantas barcas que o povo
fazia, e que constituía um dos elementos que asseguraria a conquista”.
15 Cf. Aires de NASCIMENTO e Saúl A. GOMES, op. cit., 1998, p. 10
16 Cf. Catálogo da Exposição Iconográfica e Bibliográfica comemorativa do VIII Centenário da chegada

das relíquias de S. Vicente a Lisboa, Lisboa, 1973, n.º 153. Com múltiplos significados simbólicos, o
corvo esteve sempre presente na iconografia de São Vicente, normalmente em número de dois.
Duarte GALVÃO, Cronica del Rey Dom Affonsso Hamrriques primeiro Rey desdes regnos de Portugal, ed.
Cascais, Conde de Castro Guimarães, 1918, acentua o papel do corvo na defesa do corpo do santo.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

santo martirizado até à costa, após a derradeira fase do martírio e morte, e até Lisboa,
durante a traslatio do Cabo de São Vicente.
O relicário17 é semelhante, na sua
forma, a um túmulo, como era comum na
época e como atestam vários exemplos
iconográficos, de entre os quais podemos
referir o de um capitel da cripta românica
da abacial de Saint-Denis de Paris, onde
um grupo de religiosos, em cortejo solene,
transportam um relicário deste tipo, ou,
ainda, o fragmento do túmulo-relicário de
São Bonifácio (?) na Igreja de All Saints
de Brixworth, Northamptonshire
(Inglaterra), datado de 133018, ou ainda, o
túmulo-relicário de São Tomás Beckett,
Fragmento do túmulo-relicário de S. Bonifácio (?).
Igreja de All Saints de Brixworth, Northamptonshire representado num vitral da capela da
(Inglaterra). 1330. Apud Age of Chivalry…, p. 210
Trindade na Catedral de Canterbury.

Todos se caracterizam pela forma paralelepipédica com tampa de duas águas,


decorados com arcarias cegas19. Esta morfologia, herdada dos túmulos-relicários alti-
medievais, constitui um modelo imaginário, como imagem da casa de Deus, de acordo

17 O valor, forma e função dos relicários são temas que têm vindo a suscitar grande

interesse por parte dos historiadores, existindo já uma ampla bibliografia, especialmente de origem
alemã e francesa. Citem-se os estudos de Alain DIERKENS, “Reliques et reliquaires, sources
d’histoire du Moyen Âge”, Sainteté et Martyre dans les Religions du Livre, (ed. J. MArx), Bruxelas, 1989,
pp. 47-56 e “Du bom (et du mauvais)…”, op. cit, 1999, pp. 239-251.
18 Este relicário de pedra, aberto em 1809, onde se encontrou fragmentos de ossos e um

fragmento de papel que se desintegrou antes de poder ser lido, poderá ter sido destinado a guardar
as relíquias de São Bonifácio, santo patrono de uma guilda de Brixworth, Northamptanshire. O
santo beneficiava de uma festa anual, com vigília e feira de três dias. Sobre este relicário Cf. a ficha
de Catálogo n.º 25 de Jonathan ALEXANDER e Paul BINSKI, ed., op. cit., 1987 (com outra
bibliografia citada).
19 Dos séculos XVII e XVIII várias sãos as descrições do túmulo do mártir, encontrado e

re-encontrado na capela-mor da Sé, embora os autores dos documentos sejam parcos nas
observações sobre a sua morfologia, referindo apenas que era de pedra, com cintas de prata,
possuía colunas e guardava-se dentro de uma caixão de madeira. Sobre este assunto veja-se o
apanhado do conjunto documental em Dagoberto MARKL, O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e
os Documentos, Lisboa, Caminho, 1987, pp. 231-235.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

com o arquétipo do Templo da Jerusalém Celeste20 e, repetido a cada nova realização,


como tão bem testemunham alguns exemplos que nos chegaram, bem como as suas
representações na pintura e na escultura
medievais. Veja-se o exemplo das arca com
as relíquias compradas por São Luís e
representada nas Grandes Chroniques de France.
É de notar também, a preferência
que se verifica na Europa ocidental pelas
colunas como suporte dos relicários,
colocando-os numa posição elevada,
tendência esta que se regista em simultâneo
com a novidade de elevar a hóstia sagrada
durante a Eucaristia21, sendo o primeiro
Elevação das relíquias de São Luís. Grandes Chroniques
de France. 1370. BNF, fl. 324. registo deste acto datado de finais do século
XII, na igreja de Notre-Dame de Paris22.

No túmulo-relicário que podemos observar neste selo não existe qualquer


deslocação do objecto e das personagens, mas sim um notório estaticismo, não se
tratando, por isso, de um cortejo ou procissão solenes de transporte de relíquias como
no capitel da cripta de Saint-Denis, ou, de forma mais simples, como numa iluminura
datada do séc. IX, da Histoire de la mort de saint Jean-Baptiste, em que vemos duas
personagem a transportar o feretrum, a fim de depositar as relíquias no altar da igreja
correspondente. O túmulo relicário do selo encontra-se, pois, estanque, e bem assente
sobre altas colunas.

20 Cf. Alain DIERKENS, “Du bom (et du mauvais)…” , op. cit., 1999, p. 243.
21 Cf. Paul BINSKY, op. cit., 1995, p. 94.
22 Cf. V. L. KENNEDY, “The moment of consecration and the elevation of the Host”,

Medieval Studies, nº6, 1944, pp. 121-150.

597
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Transporte das relíquias. Transporte da arca das relíquias.


Histoire de la mort de saint Jean-Baptiste, Evangeliário cartuxo, séc. IX. Capitel da rotunda da cripta de Saint-Denis (Paris). Séc.
Biblioteca Nacional de Paris, ms. Lat. 9386, f.º 147. Apud Naissance XII. Foto: PAF
des Arts Chretiens, p. 86.

Talvez seja a primeira vez que o túmulo-relicário do santo foi representado num
selo, porquanto os exemplos anteriores conhecidos, relativos à iconografia vicentina,
mostram o corpo do santo deitado e não protegido por qualquer arca para relíquias.
Desta situação é representativo um selo pendente, de cor vermelha, em “dupla ogiva”
que autenticava um documento de S. Vicente de Fora, e que se conserva na Casa Forte
do ANTT, datado da era de 1283 (1245 – reinado de D. Sancho II). Apresenta a
figuração de um corpo nu, deitado de lado, com um corvo sobre os pés e, a encimar
esta composição, dois bustos, um de homem e outro de mulher. Na interpretação de
Luís Gonzaga de Lencastre e Távora (Marquês de Abrantes), poderá da representação
de D. Afonso Henriques e D. Teresa “pairando”sobre o corpo do mártir São Vicente,
numa homenagem dos Regrantes de Santo Agostinho ao fundador deste cenóbio, e
responsável pela recuperação das relíquias do santo mártir de Saragoça23.
Ora, no selo que agora no ocupa, a presença das relíquias do santo não se faz
pela representação do seu corpo, como julgou ver F. Sengo, numa hipotética figura
ajoelhada sob o altar. A verdade é que não se trata de uma figura, mas, simplesmente,
das pernas do pequeno altar e dos pregueados da toalha que o cobre. O corpo
encontra-se, por isso, oculto, resguardado pela arca sepulcral destinada às relíquias24,

23 Cf. Marquês de ABRANTES, op. cit., 1983, p.152 (nº 154), e ainda, IDEM, Manual de

Sigilografia Portuguesa Medieval, ed. do autor, s.d.


24 A colocação dos restos mortais dos santos em túmulos de pedra constituiu uma das

respostas que a Igreja conseguiu dar à necessidade de protecção dessas valiosas relíquias, face ao
crescente fenómeno das peregrinações, desejáveis enquanto intensa manifestação de fé e igualmente

598
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

dando-se “visibilidade” à sua presença através dos atributos da iconografia vicentina e


pelo destaque que é dado à Sé de Lisboa, lugar onde se guardava os restos mortais, na
outra face do selo. O oculto torna-se assim visível, na conjugação de símbolos vários.
O mesmo autor propõe, como leitura global da obra, tratar-se da representação
de uma cerimónia de re-consagração do altar dedicado a São Vicente que, sob o
patrocínio do rei, havia sido erguido no âmbito da reconstrução da cabeceira da Sé.
Identifica o conjunto das muitas personagens em oração como a junção de toda uma
sociedade, unida numa missa de “acção de graças” pela protecção exercida por São
Vicente nos anos imediatos ao flagelo da Peste Negra, uma vez que, e baseado nos
estudos de Mario Sensi, São Vicente era conhecido nas comunidades moçárabes como
santo depulsor pestilentiae. Entende, pois, que se trata de evidenciar o papel moral do rei
como Rei Cristianíssimo. “O Rei surge como intermediário entre São Vicente e seus
vassalos, encarregado de transmitir a prece, de ordenar o acto, de beneficiar da presença
perto das relíquias. A sua posição nesta composição, ao alto e na cena principal não é
despropositada numa hierarquia de valores visuais. Entronizado, o rei não é apenas um
actuante ou uma mera cabeça coroada. Ele tem a função sagrada de Rector Ecclesiae, ou
seja, ele é o protector da Igreja de Deus no seu reino (...)”25.
No que à questão de D. Afonso IV como imagem de rei muito cristão ou
cristianíssimo se refere, estamos em total sintonia com o autor.
Para D Afonso IV, assumir o papel preponderante desta cerimónia, investida,
toda ela, bem como o próprio rei, de carácter religioso e sacerdotal, significa, ou que ele
é um ungido, ou, então, que a unção dos primeiros reis se perpetuou através dos
sucessores, não o obrigando a passar pelo mesmo cerimonial, e aceitando-se que as
qualidades sacerdotais dos manarcas estavam, à partida, implícitas, desde que este subia
ao trono e governava como rex gratia Dei.
O certo é que o rei, entronizado, vestido e coroado como para uma
representação de majestade, segurando com uma das mãos o globo da soberania (o
Orbe ou Globus - atributo que passou despercebido nas análises que até agora foram
feitas a este selo) e dirigindo os acontecimentos de toda a cerimónia, assume a
majestade própria dos reis ungidos, os quais, por isso mesmo, estão investidos de um
poder religioso que lhes permite intervir nos rituais, substituindo-se ou compartilhando

rentável negócio para os seus detentores, mas também, face aos constantes e muito conhecidos
episódios de roubo de relíquias que ocorreram um pouco por toda a Cristandade.

599
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

esse poder com os arcebispos e bispos, representando, tal como eles, a supremacia do
poder espiritual na hierarquia eclesiástica.
O Globo da Soberania constitui, juntamente com a coroa, o manto real e o
trono, um conjunto de atributos próprio do governo monárquico, alguns dos quais
pertencentes ao grupo das regaliae. O Globo é, porém, a única insígnia do poder régio
que o monarca segura com mão, pois não nos parece que aqui se possa ver, como
segundo atributo sustentado pela outra mão do rei, o ceptro, numa clara transposição
de modelos franceses, como pretendeu ver F. Sengo. O objecto que poderia ser
identificado como tal, tratar-se-á, sim, por analogias formais com outros objectos
idênticos no mesmo selo, de uma palma identificadora de martírio, agora maior e mais
destacada do que as restantes que se podem ver nas mãos de outras personagens e, por
isso, em sintonia com a superioridade dimensional da figura do rei, e que lhe é entregue
pelas mãos de um religioso, colocado em posição subalterna. Tratando-se de uma
cerimónia relacionada com São Vicente Mártir, faz todo o sentido que as palmas como
símbolo de martírio estivessem abundantemente presentes no desenrolar dos
acontecimentos.
Aliás, o ceptro, ou vara da justiça, não poderia ser entregue ao rei, no âmbito de
uma cerimónia e num “retrato” de aparato, por uma simples figura de religioso, que
nem sequer pode ser identificado como um bispo. O ceptro, como elemento
identificativo do poder e da missão do soberano, a ser representado aqui, estaria
implicitamente nas mãos do rei, sem qualquer interferência de outras personagens.
Entronizado, recebendo a palma do martírio e presidindo a toda a cerimónia, à
qualidade de soberano na pessoa de D. Afonso IV, junta-se a de um eclesiástico, ou
seja, unem-se as duas funções no mesmo corpo político do rei. D. Afonso IV é, a partir
das ilações susceptíveis de retirar desta iconografia, o principal intermediário entre Deus
e o seu povo, bem como o chefe da Igreja do seu reino, aquele que patrocina e conduz
cerimónias de carácter religioso do mais elevado relevo. Como tal, a sua representação
não podia deixar de se revestir de todos os aspectos que nos fazem reconhecer a sua
auctoritas, como cabeça tutelar, condutora e simultaneamente dinamizadora da
cerimónia, bem como a maiestas, decalcada ao nível da representação das imagens
religiosas da Majestade de Cristo ou, e talvez neste caso, de forma mais precisa, das
representações do poder episcopal ou arquiepiscopal (o bispo ou o arcebispo

25 Francisco SENGO, op. cit., 1999, p. 4.

600
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

majestaticamente sentado na sua sede). Acentua-se, pois, o carácter sagrado do rei,


identificando-o com o poder religioso, ao nível da representação, já que, efectivamente,
ele detém esse mesmo poder, em termos teóricos e práticos.
Desta forma, o lugar que Afonso IV ocupa na composição é, no quadro das
funções políticas e religiosas da pessoa do rei, a de “rex et sacerdos”, indo de encontro à
perspectiva defendida por Garcia Pelaio26 (e anteriormente por Kantorowicz) de que
“Siendo tanto los reyes como los obispos imágenes o tipos de Cristo, y uniendo Cristo
las naturalezas real y la sacerdotal, quedaba abierta la vía tanto a la consideración del rex
como sacerdos como la consideración del obispo como rey” 27.
Por isso, a história do Estado medieval é, em grande parte, a história dos
intercâmbios entre as funções real e sacerdotal, assim como o mútuo intercâmbio de
símbolos. Na verdade, desde a época carolíngia que se evidenciou o carácter espiritual
do imperador, baseado na argumentação de que a unção fazia do imperador um
sacerdote. O mesmo se aplica ao rei. Aliás, tal como D. Dinis, que encontrou em
Afonso X, o Sábio, seu avô, o arquétipo régio por excelência28, também D. Afonso IV
não terá sido alheio aos conceitos sobre as formas de governo expressos nas Partidas,
onde se indica que o rei não é apenas o guia e caudilho das suas hostes, mas também
juiz no seu reino e “sennor en las cosas espirituales” (II, I, VI). Princípios que se
baseiam na procura da imagem do rei e do poder perfeito, encarnada pelo bíblico
David: o rei deve ser enérgico com os inimigos do seu povo, justo com os seus vassalos
e garante ou responsável pela fé29.
Já no que se refere à hipótese de se tratar de uma representação de sagração, ou
re-consagração, do altar dedicado a São Vicente, colocamos algumas dúvidas e
propomos uma leitura algo diferente.
Primeiro, é preciso compreender alguns passos da evolução do culto de São
Vicente e, sobretudo, conhecer um conjunto de elementos comuns à celebração dos
milagres atribuídos ao santo. Como já referiram Aires A. de Nascimento e Saúl António
Gomes, o culto que é devotado em Portugal ao mártir São Vicente, a partir do século
XII, impôs-se numa cidade onde se veneravam relíquias de outros santos da tradição
hispânica alti-medieval: Sta. Justa, São Gens, St. Anastácio, São Plácido, São Manços

26Garcia PELAIO, op. cit., 1981, pp. 258-260.


27E. KANTOROWICZ, op. cit., 1985, p. 140 e ss.
28 Cf. S. R. ACKERLIND, King Denis of Portugal and the Alfonsine Heritage, Nova York, Peter

Lang Publishing Inc., 1990.

601
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

(não só na Sé de Lisboa mas também noutros templos), São Veríssimo, Sta. Máxima e
Sta. Júlia no Mosteiro de Santos), São Félix, Sto. Adrião e Sta. Natália (no Mosteiro de
Chelas, entre outros.
A justificação para a aceitação e afirmação de São Vicente, um santo do Sul
hispânico, como padroeiro de Lisboa, encontram os referidos historiadores no facto de
não ser apenas um santo tradicional, mas que também associava a revivescência do seu
culto junto das elites do poder, em especial da corte francesa, passando também a ser
culto das cortes hispânicas, como poderá ser prova a existência do Missal de Mateus,
trazido de Moissac para Braga, onde é dado particular destaque a São Vicente no
conjunto do santoral. A alteração dos cultos de Lisboa neste período deverá, por isso,
ser entendida no quadro da emigração franca para o ocidente peninsular e consequente
alteração do meio dirigente, a partir da corte e da hierarquia eclesiástica, logo após a
conquista de Lisboa30.
O que é certo é que, entre os mártires peninsulares, o diácono valenciano São
Vicente, assumiu particular destaque, e a sua fama rapidamente se espalhou por toda a
Cristandade, sobretudo no Ocidente, mas não só. Prova cabal do que afirmamos,
baseados nos estudos e conclusões de outros autores a este respeito, é o facto de Santo
Agostinho lhe ter dedicado “nada menos de cinco sermões”31.
A presença das relíquias vicentinas representava, no contexto da Reconquista de
Lisboa, uma forma de “patrocínio” celestial que importava argumentar, legitimando e
impondo a presença das autoridades cristãs do poder temporal e do poder espiritual na
cidade, como bem testemunha a construção do Mosteiro de São Vicente de Fora, ou a
presença muito precoce da iconografia vicentina em selos, quer do Mosteiro de São
Vicente, quer em documentos do concelho de Lisboa, permitindo detectar uma
mensagem simbólico-religiosa que tende a relacionar a cidade de Lisboa com o Além32.
O santo actua, assim, como estandarte da trama política da formação da
nacionalidade, como símbolo da luta e da vitória contra os infiéis. “Ele é o santo que dá
bênção à luta. É ele quem comanda as vitórias e as derrotas, quem pauta os passos da
guerra e quem disciplina depois a tormenta. D. Afonso Henriques funciona nesta acção
como o elemento cumpridor do destino divino. As suas decisões não são, em última

29Cf. Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Relgio regis…”, op. cit., 2001, p. 99.
30Augusto A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, pp. 9-10. Cf.
também Lídia FERNANDES, “O culto vicentino...”, op. cit., 1995, p. 223.
31 Cónego José FACÃO, op. cit., 1974, p. 6.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

instância, suas, antes acata as inspirações e ditames superiores que o irão conduzir à
vitória”33.
A exortação à veneração das relíquias do santo era feita não apenas em Lisboa,
mas também noutras paróquias portuguesas, como induz o texto do sínodo de Lisboa
de 124034. Assim, se o mártir de Saragoça era, essencialmente, um santo da urbe
lisboeta, tornou-se, de alguma forma, um santo nacional. Mas o que o diferencia de
tantos outros, cujas relíquias se veneravam em Portugal no século XII, era o facto de
ter como principais devotos e seus defensores, a nobreza, encabeçada pelo próprio rei,
D. Afonso Henriques, e notáveis figuras da época como são exemplos D. Gualdim Pais
e D. Gonçalo Egas de Lanhoso, entre outros. De resto, a estreita ligação entre a família
real portuguesa e o culto vicentino não mais deixou de existir durante a primeira
dinastia, tornando-se especialmente visível durante o reinado de D. Afonso IV, como
provam as intervenções de reconstrução que este monarca patrocinou na Sé de Lisboa,
e à escolha da iconografia vicentina para decorar a face maior do túmulo que
encomendou para si.
O santo mártir, cujos restos mortais repousavam na capela-mor de Lisboa, era
invocado não apenas como poderoso curandeiro de doenças do foro neurológico, mas
também para ajudar os infortunados a recuperar bens perdidos ou roubados ou para o
salvamento de náufragos35. O êxito da sua intercessão era celebrado de maneira festiva
e altamente participativa por todos, beneficiados ou não.
Ora, no caso da composição iconográfica aqui em análise, vários são os indícios de que
se trata de uma cerimónia de agradecimento a São Vicente pela sua protecção e
milagres36, e, em última instância, uma cerimónia que visava a exaltação do santo na sua
relação com a monarquia portuguesa. Aliás, a forma como se organizam as muitas

32 Augusto A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, pp. 11-12.
33 Lídia FERNANDES, “O culto vicentino...”, op. cit., 1995, pp. 223-224.
34 Augusto A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, pp. 11-12, p. 13.
35 Como refere André VAUCHEZ, op. cit., ed. 1985, p. 122, a santidade era verificada pela

sua eficácia. Se para os poderosos, a eficácia de um santo era verificada através da sua intervenção
em acções que poderiam mudar o curso da História (ex. das aparições de Cristo, da Virgem Maria e
de santos nos momentos de antecedem uma grande batalha), já para os simples fiéis, os milagres
esperados eram especialmente curas: “restituir la paz del espíritu a los poseídos por el demonio,
hacer caminar a los cojos y devolver la vista a los ciegos representaban entonces los criterios más
comunes de la santidad”.
36 A tradição de uma culto e de consequente pedido de protecção para cura de doeças e

outros favores não deixa de ser mencionado por D. Rodrigo da Cunha, ao mencionar ao facto das
relíquias terem sido mandadas colocar na capela-mor da igreja logo em 1173, no altar principal, para
“que pudesse ser tocada dos enfermos, e fieis que ellas acediam”. op. cit., fl. 96.

603
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

figuras participantes da cena, em grupos de religiosos e de leigos, estratificados de


acordo com a sua condição e importância social, bem como a forma como todas as
figuras se relacionam com o túmulo relicário do santo e com o altar eucarístico, vão de
encontro às descrições que se conhecem destes momentos de louvor ao mártir
curandeiro, pelo que passamos a citar importantes excertos do estudo de Aires de
Nascimento e Saúl Gomes, como conclusões da análise às duas colectâneas de milagres
de São Vicente que até nós chegaram37.
Assim, relativamente aos gestos, atitudes e comportamentos dos devotos nos
momentos de solicitação da intervenção de São Vicente em auxílio dos doentes e
necessitados e seus consequentes milagres: “As curas são celebradas com estrépito, por
aclamação jubilosa: os sinos dobram, transpondo para o exterior, com a aprovação das
autoridades competentes, o alvoroço das primeiras testemunhas; em resposta, toda uma
multidão acorre à Sé. De resto, os suplicantes, nunca surgem isolados, ainda que
possam ser anónimos; à sua volta há sempre gente em movimento, de olhar
perscrutador e atento ao evoluir da situação. Interessada, muitas vezes, participante
sempre”38.
O milagre, como pretexto para celebração, impõem-se como ritual unificador de
todas as gentes em torno de algo Maior. É um louvor ao santo e a Deus, com a
participação do benecifiário, mas também de toda a comunidade que, em rituais
nocturnos, na Sé de Lisboa, se junta para agradecer a graça de que, hoje, foi alvo um
vizinho, um parente ou até um desconhecido, mas que, amanhã, poderá ser necessária
para qualquer um dos presentes, ou mesmo para o seu conjunto.
“Mas a entrada do doente na comunidade orante faz-se habitualmente através
de uma certa encenação teatral e movimentação dramática que envolve a participação
do próprio interessado. Mesmo em casos de paralisias infantis profundas, anota-se que
a criança se expressa «gestu perditi corporis et gutturis impedito murmure grauis», a
reclamar que a coloquem junto das relíquias do santo, enquanto os familiares se
esforçam por explicar ao povo, que imediatamente acorre, a circunstâncias da doença.
Gesto necessário este para garantir a oração comunitária (a populo circunstante piis

37 Uma primeira colectânea inserta num Leendáruo Alcobacense (Lisboa, B.N., Alc. 420) –

publicada por Fei António Brandão (Monarquia Lusitana, 3.ª parte, Lisboa, 1632, fls. 296-300), bem
como pelo editor dos Portugaliae Monumenta Historica, e um segundo, correspondendo a descoberta
recente, em caderno isolado, na Biblioteca Nacional de Lisboa (Cx 21/X-3-14, n.º 21), inédita até à
data de publicação deste estudo (1988).
38 Aires A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, p. 14.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

lacrimis et communibus uotis oratur), ele prepara também o anúncio da cura e o


extravasamento jubiloso para a cidade inteira” 39.
As duas pequenas figuras que podemos ver ajoelhadas debaixo do túmulo-
relicário representam, em nosso entender, os que vêm suplicar pela cura dos seus males,
situando-se, por isso, mais do que qualquer personagem envolvida nesta cena, na
proximidade ou contacto directo com o locus sepulcralis do santo, sendo que “(...) Um
dos gestos requeridos é por vezes o do toque com as mãos no sarcófago do santo,
como acontece no caso presenciado por Gualdim Pais. Também a palavra de súplica se
torna habitualmente indispensável. O santo, por seu lado, exerce a sua acção ora
imperceptivelmente ora por intervenção marcada por aparição. (...) E o agradecimento
exprime-se ritualmente pela participação no culto estabelecido, nos sermões laudatórios
organizados para a proclamação solene do milagre, pela divulgação festiva do favor
recebido”40.
A obtenção de uma graça exige que o suplicante entre em contacto, o mais
directo possível, com o túmulo-relcário. Como bem definiu Francesca Español a
propósito dos túmulos-relicários catalães “como que las reliquias pueden contaminar de
santidad a quien se ponga en relación con ellas, el sarcófago que las acoge es el medio a
través del cual se puede conseguir la curación. Por eso el enfermo lo toca, pasa por
debajo o circunda varias veces. (…). Por el mismo motivo, para favorecer la práctica de
unos rituales seculares, los sepulcros-santos románicos y góticos adoptan una específica
topología y los vemos dispuestos generalmente sobre columnas y separados del muro
de fondo de la capilla que los custodia”41.
A colocação destas duas figuras debaixo do túmulo-relicário, ajoelhadas e em
prece, deve ser, do nosso ponto de vista, suficientemente valorizado para compreensão
geral do tema. A sua disposição está em relação com a absoluta centralidade do valor,
real ou imaginário, que na Idade Média se atribui ao contacto físico com os objectos da
devoção cristã. Por um lado, porque esse contacto propiciava, na mente dos crentes, o
contágio de um benefício espiritual; por outro lado, o contacto sensorial relacionava-se
com a ideia de autenticidade42. O santo é um intercessor, e o seu culto conduz ao culto

39 IDEM ibidem, p. 16
40 IDEM ibidem, p. 17
41 Cf. Francesca ESPAÑOL, op. cit., 2002, p. 105.
42 Cf. Paul BINSKI, Medieval Death. Ritual and Representation, Ithaca/Nova York, Cornell

University Press, 1996, p.16. Fazendo uso dos argumentos de Jean-Claude SCHMITT, “Le relique
et les images”, op. cit., 1999, p. 149, a legitimidade das relíquias dos santos reside, em última análise,

605
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

de Deus. Tocando o santo, ou tocando o relicário do santo é, em última instância, em


Deus que os crentes tocam43.
Esta é uma cena que, embora mais simplificada, recorda a que podemos ver
numa das iluminuras da Vida de Eduardo o Confessor (- Estoire - Westminster), de meados
do século XIII, em que a forma de proximidade ou de contacto físico com o túmulo-
relicário do rei-santo da dinastia saxónica, é procurada por uma multidão de peregrinos
que apresentam problemas de saúde ou deficiência física, enquanto um monge canta o
Te Deum.

Vida de Eduardo O
Confessor.
“Peregrinação ao
Túmulo de Eduardo
O confessor”.
Séc. XIII.
Westminster,
Londres.
Apud Paul Binski,
Westminster Abbey…,
p. 60.

Da mesma forma, e reveladora de idêntica intencionalidade valorizadora do


poder milagroso dos sarcófagos-relicários dos santos, uma iluminura da Vida de Santa
Edeviges (Vita Beatea Hedwigis) que se pode contemplar entre as muitas iluminuras que
ilustram este manuscrito de 1353 (pertença do Museu J. Paul Getty, Malibu, ms. Ludwig
XI.7, fol. 87v), mostra-nos três figuras de doentes e estropiados, ajoelhados sob o altar
da famosa santa medieval, enquanto outras personagens, de pé, assistem às preces e aos
acontecimentos.

na corporeidade e historicidade de Cristo. Em sentido metafórico, os santos são o “Templo” de


Cristo, aquilo que justifica, sobretudo após a sua morte e ainda mais se esta assume a forma violenta
do martírio, a veneração dos seus restos corporais. A memória dos santos através das suas relíquias
(elas próprias testemunho de mortes violentas), são também a memória da Paixão de Cristo e da
Sua vitória sobre a morte.
43 Cf. Alain DIERKENS, “Du bon (et du mauvais)…”, ob. cit, 1999, p. 244.

606
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Vita Beatea Hedwigis.


“Peregrinação ao Túmulo de Santa Edviges”.

1353. Autor desconhecido. Museu J. Paul Getty,


Malibu,
ms. Ludwig XI.7, fol. 87v)

Um pouco mais distante cronologicamente, uma pintura de Gentile da Fabriano,


datada de 1425, remete a nossa imaginação para ambientes e gestos rituais tão seme-
lhantes ao que podemos ver no selo
aqui em análise e nas duas iluminuras
supracitadas. Observa-se o túmulo-
relicário de São Nicolau de Bari, cuja
colocação sobre quatro colunas se
aproxima claramente do que vemos
nosso selo e, por baixo, várias figuras
tocam-no ou desfalecem perante a
emoção do momento, enquanto
outras, visivelmente doentes,
conduzem-se, ou são conduzidas na
direcção do relicário, na esperança de
Peregrinação ao Túmulo de S. Nicolau de Bari.
1425. curas milagrosas.
Gentile da Fabriano
National Galery of Art. Washington D.C.
Samuel H. Kress Coleccion. Inv. N.º 1939.1.268
Em conclusão, e fazendo uso

das palavras de Alain Dierkens44, o estatuto do relicário merece, pois, uma atenção
específica como receptáculo, como objecto sumptuoso, beneficiando do contacto
prolongado com as relíquias e, por isso, participando da virtus e da potestas das mesmas.
Logo, tocar, ou na impossibilidade de o fazer, estar o mais perto possível do relicário
tinha, para os fiéis, um valor central nas esperanças colocadas em torno de curas

44 IDEM, ibidem, p. 240.

607
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

milagrosas, pois o objecto tangível adquire valor e eficácia de substituição, tal como as
imagens dos santos substituem a presença real dos santos ou mesmo das suas relíquias,
conduzindo-se a elas preces, agradecimentos e castigos, como se de seres reais se
tratassem45.
Já as duas figuras do primeiro registo da composição, que se posicionam de
frente para um conjunto de fiéis, a eles se dirigindo ou simplesmente assumindo o papel
de protagonistas da cena, poderão relacionar-se com o papel desempenhado pelos
familiares ou amigos próximos do beneficiado, explicando a gravidade da enfermidade
ou problema, e exortando à participação directa ou através da oração, como se percebe
pelos gestos das mãos de todos aqueles que escutam as palavras dos dois oradores.
Todo o conjunto das cenas é marcado pela solenidade e ritualização dos gestos,
onde os símbolos religiosos assumem particular destaque (dois corvos, duas barcas,
palmas de martírio, altar e cálice eucarístico), sendo a condução do culto exercida por
uma autoridade secular com poderes religiosos – o rei, D. Afonso IV -, e por uma
autoridade religiosa – o bispo oficiante. “Fácil é reconhecer nestas expressões uma
forma elaborada por parte da autoridade que assume a condução do culto e pouco
deixa à espontaneidade do momento ou do indivíduo. O povo, esse está em toda aquela
multidão de devotos que cerca o santo e acompanha interessada a procissão dos
necessitados que acodem a pedir auxilio ou vêm testemunhar a assistência recebida em
situações aflitivas, quer em terra quer no mar”46.
A verdade é que, se a iconografia deste selo se referisse a uma cerimónia de re-
consagração de um novo altar dedicado a São Vicente, na Sé de Lisboa, certamente, tal
como acontece noutros muitos exemplos, verificaríamos a existência de uma procissão
solene, em que o túmulo-relicário seria transportado com destino ao novo altar, sendo
este um dos passos de maior relevo na traslatio, situação que aqui não se verifica. Pelo
contrário, todas as cenas, anteriormente descritas se relacionam, claramente, com uma
cerimónia destinada à obtenção de ajuda por intervenção do santo, cenas estas
comprometidas com as descrições que são feitas na colectânea de milagres de São
Vicente, da Biblioteca Nacional, tal como tivemos oportunidade de expor.
O facto de toda a cerimónia ser presidida pela figura do rei, não significa, quanto
a nós, que estejamos necessariamente na presença da cura, ou agradecimento por uma

45 Cf. Carla Varela FERNANDES, op. cit., 1997.


46 Aires A. de NASCIMENTO e Saúl António GOMES, op. cit., 1988, p. 17.

608
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

cura, de alguma personagem específica e de elevado relevo social. Note-se que nenhum
protaganismo especial é conferido às figuras que se encontram em contacto mais
estreito com o relicário. Nas suas reduzidas dimensões, elas são, apenas, os simples
motivos que desencadeiam e justificam uma mensagem de maior alcance
propagandístico.
O que interessou aqui relembrar, através de uma memória material, foi o valioso
significado, religioso e político, do culto de São Vicente nestes anos, na sua intrínseca
relação com monarca D. Afonso IV, coincidente com cronologias em que vários
sismos provocaram a derrocada de partes importantes do edifício da Sé e a sua
consequente reconstrução, sob o patrocínio e elevado empenho do rei. Ou seja, faz-se a
exaltação da relação entre a monarquia portuguesa e o culto vicentino, usando o melhor
dos temas – a capacidade das relíquias do santo intervirem na ordem natural, através do
poder taumaturgico – e colocando a figura do soberano em evidência, como rector eclesiae
e como rex et sacerdos, aparecendo, ele, como o principal interveniente, como eixo de
todo o acontecimento.
Potenciando o valor de São Vicente como santo nacional, protector e
taumatúrgo, D. Afonso IV rememora aqui, tal como no seu papel como construtor da
Sé de Lisboa, edifício onde estas cenas decorrem, acções e valores inerentes à pessoa de
D. Afonso Henriques, constituindo, este último, uma memória de grande significado
nacional.
Como tivemos oportunidade de argumentar a propósito da escolha da Sé de
Lisboa por D. Afonso IV para seu locus sepulcralis, o rei, na importância que concede a
este edifício da sua capital e o amor, reverência e devoção que demonstra para com São
Vicente, associando a tudo isto a propaganda que faz dos seus próprios méritos como
guerreiro, dá claros sinais, quanto a nós, de que se vê a si próprio como um digno
sucessor de D. Afonso Henriques, re-memorizando os seus feitos e as suas devoções,
demonstrando-o através de gestos, de objectos e até de imagens.
A iconografia deste selo é, pois, uma iconografia de propaganda régia, onde são
colocados em destaque os poderes intervencionistas e participativos do rei na esfera do
sagrado e a sua identificação com o modelo de herói nacional proposto pela imagem,
algo mitificada, do primeiro rei dos portugueses. Mas também uma iconografia
celebrativa, que exalta as qualidades e poderes do santo, bem como doutrinária,

609
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

enquanto mensagem que incide sobre o poder e valor da fé, capaz de produzir milagres,
em torno de um santo tornado nacional.
Perante obras com esta, podemos compreender, com alguma facilidade, como,
ao tempo de D. Afonso IV, conceitos como auctoritas, potestas e maiestas são devidamente
conotados com a figura do rei, senhor e soberano, mesmo que este não tenha sido
ungido. Ele é rex gratia Dei, chefe máximo do corpo social do seu reino e, inclusive,
chefe e protector da Igreja nacional.

610
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

4.2.2 As duas esferas do poder e o túmulo do rei D. Fernando I


De todas as obras que analisámos do decurso das investigações conducentes à
nossa dissertação, o túmulo do rei D. Fernando I foi, sem dúvida, aquela que mais
interesse e fascínio nos suscitou. Em primeiro lugar, porque, até aqui, permanecia uma
“obra silenciosa”, sumariamente descrita, objecto de análises parciais, focadas num ou
noutro aspecto e de acordo com os interesses específicos de cada investigador1, mas
não interpretada na globalidade, isto é, sem uma leitura que fizesse a relação entre os
seus muitos elementos iconográficos e lhe percebesse o sentido, permanecendo algo
esquecida entre os muros do centenário Museu Arqueológico do Carmo. Em segundo
lugar, porque à medida que melhor a fomos conhecendo, mais excepcional e intrigante
foi surgindo aos nossos olhos.
Elaborámos uma primeira leitura iconológica em 2002, num estudo destinado a
integrar o volumoso Catálogo da colecção permanente do MAC2, ainda não publicado,
mas cujas directrizes gerais da nossa interpretação foram recentemente citadas por
Paulo Pereira, em pequeno texto dedicado a este monumento funerário3.
Agora, passados dois anos de um contacto diário com a obra, que não deixámos
nunca de interrogar e de sobre ela reflectir, é chegado o momento de desenvolver um
pouco mais essa primeira interpretação, abrir novas pistas e levantar as hipóteses que
nos parecem pertinentes, tendo também em atenção os contributos de outros autores
que escreveram antes de nós.

1 Sobre o túmulo do rei D. Fernando I, embora a historiografia não seja muito ampla e
desenvolvida relativamente à sua iconografia e significados simbólicos, reuniu o interesse de outros
investigadores no que diz respeito a alguns aspectos, pelos que devem ser aqui mencionados:
Almeida GARRET, op. cit., cap. XLII, 1848; J. Possidónio da SILVA, “Crónica”, Boletim da Real
Associação dos Arcitectos Civis e Archeólogos Portuguezes, 2ª série, n.º6, Lisboa, RAACAP, 1875, p. 96;
IDEM, “Túmulo d’El-Rei D. Fernando I de Portugal”, op. cit., 1875, p. 122; J. M. Cordeiro de
SOUSA, Inscrições Portuguesas do Museu do Carmo, 2ª ed., Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade,
1936, p. 23; Diogo de MACEDO, op. cit., 1940; Ramalho Ortigão, op. cit., 1896, pp. 78-8; Francisco
Nogueira de BRITO, op. cit., 1929, p. 40; Reinaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, p. 30; IDEM,
op. cit., vol. I, s/d, p. 276; Pedro DIAS, op. cit., vol. IV, 1986, pp. 124-125; Vítor SERRÃO, Santarém,
Lisboa, Presença, 1990, p. 142. O estudo mais completo deve-se a Gerard PRADALIÉ, op. cit, 2ªed.,
1992, pp. 108-116 e, posteriormente, a Mário Jorge BARROCA, op. cit, 2000, pp. 1901-1913, que, a
propósito da legenda epigráfica gravada no sarcófago, expõe, de forma desenvolvida, todas as
questões em torno da autoria da encomenda, da trasladação do corpo de D. Fernando de Lisboa
para Santarém e do artista responsável pela execução do monumento funerário. Veja-se, ainda,
Carla Varela FERNANDES, “Vida, Fama e Morte…”, op. cit. (no prelo).
2 Carla Varela FERNANDES, “Vida, Morte e Fama...”, op. cit. (no prelo).
3 Cf. Paulo PEREIRA, Enigmas. Lugares Mágicos de Portugal. Arquitecturas Sagradas, vol. II,

Lisboa, Circulo de Leitores, 2004, pp. 212-213.

611
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Após a realização dos inovadores, extraordinários e inultrapassáveis túmulos de


D. Pedro I e de D. Inês de Castro, nas décadas de cinquenta e sessenta do século XIV,
o túmulo de D. Fernando encerra a produção tumular realizada em Portugal e destinada
aos representantes da primeira dinastia. Na verdade este monumento, surge na linha de
qualidade e complexidade que se verifica nas encomendas régias, no que concerne à
arte tumular. A plástica, bem como a iconografia que aí vemos intrigam-nos, por não
apresentarem paralelos com nenhuma outra obra realizada até então, e sem deixar
“escola artística” que reproduzisse formas e temas idênticos na arte realizada nos anos
seguintes, como já havia notado Maria José Goulão4, factores estes que só vêm
demonstrar o carácter de excepção desta encomenda.
Trata-se, indiscutivelmente, de um obra complexa, prenhe de significados
intercomunicantes, em que cada elemento iconográfico desempenha um papel
determinado, mas só a relação entre todos, permite verdadeiramente, a compreensão da
mensagem principal e das sub-mensagens implícitas. Para melhor percebermos a leitura
das várias partes constituintes é fundamental que façamos uma descrição sumária dos
muitos elementos e suas respectivas localizações.
A originalidade deste monumento começa pela própria forma, semelhante a
uma arqueta ou a um cofre, mas de grandes proporções, idêntico à morfologia de
alguns relicários medievais, de pedra ou de metal. A arca é rectangular e, a tampa, de
perfil trapezoidal, possui altura inusitada para o que então era comum, apresentando-se
decorada em três registos. O jacente está ausente desta composição, mas parece ser
sugerido pelo facto da altura e da largura da tampa serem maiores na parte
correspondente à localização da cabeça do defunto, decrescendo progressivamente,
embora de maneira suave e quase imperceptível, como que a sugerir um corpo deitado,
que é mais largo e proeminente na sua parte superior, e mais estreito nas perna e nos
pés.

4 Cf. Maria José GOULÃO, “Figuras do Além. A escultura e a tumulária”, História da Arte
Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, p. 167.

612
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Túmulo do rei D. Fernando I. c. 1380-1383.


Igreja de S. Francisco de Santarém.
Pedra calcária esculpida em baixo- e alto-relevo, sem vestígios de policromia.
Museu Arqueológico Carmo. Inv. n.º Esc. 74
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

No topo da tampa, numa altura não visível para quem não observa a obra de
uma perspectiva superior, mas com o claro objectivo de afirmar que quem aí jaz é uma
personagem régia, estão lavrados, em baixo-relevo, uma sequência vertical e alinhada de
grandes escudos com as armas de Portugal.
Nas secções laterais da tampa voltam a ser relevados escudos com as armas do
Reino, mas agora envolvidos por grandes molduras circulares, dentro das quais se
inserem finas molduras lobulares, com decoração vegetalista.

613
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Faces longas da tampa do túmulo de D. Fernando I. Fotos: José Pessoa/DDF/IPM

Na secção oposta à
cabeceira da tampa, surge o
mesmo tema, com grande
destaque e solenidade, dentro de
um medalhão composto por oito
lóbulos radiantes,5 sendo agora
apresentado por dois anjos
tenentes, genuflectidos, vestidos
com longas e graciosas túnicas,

Face menor da tampa, correspondente aos pés do túmulo. de asas erguidas e segurando a
Foto: CVF.
moldura com ambas as mãos. A
rematar este escudo, vê-se uma

5Veja-se Paulo PEREIRA e Maria de Magalhães RAMALHO, “Segunda «pedra de


Traçaria» do Convento de São Francisco de Santarém”, Património Estudos, nº 1, Lisboa, IPPAR,
2001, pp. 123-128. Os autores demonstram a existência de paralelos entre o desenho de uma pedra
de traçaria encontrada nas escavações arqueológicas realizadas no convento de S. Francisco e o
medalhão da face posterior da tampa do sarcófago de D. Fernando, levantando a hipótese de o
primeiro constituir um estudo ou ensaio do segundo.

614
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

coroa, numa clara valorização deste elemento heráldico, definidor da linhagem paterna
de D. Fernando, aquela que lhe confere ao direito ao trono. Os escudos de Portugal
são, por isso, colocados na parte mais alta (porque mais importante) do sarcófago,
repetindo-se por quatro faces (superior, faces longas e face correspondente aos pés).
Refira-se que a tipologia desta coroa em muito se assemelha às que vemos
representadas em alguns tipos de moedas cunhadas no reinado de D. Fernando, quer
sejam os dinheiros, em que a coroa figura sozinha, quer nos torneses e nas barbudas: nas
primeiras, a cingir o cabelo do rei, e a que já nos referimos em capítulo anterior e, nas
segundas, a rematar o elmo com que D. Fernando cobre a cabeça.
Nas faces longas, a divisão entre os grandes escudos é feita por pequenas
molduras, também circulares, mas que, em vez de decoração heráldica, apresentam
bustos de diversas figuras. Vejamos, pois, a sua identificação.
Numa das faces, ao centro, encontra-se o busto de Cristo, em posição frontal,
facilmente identificável através do nimbo cruciforme. A ladeá-lo, à direita, o busto de
São Pedro e, à esquerda, o de São Paulo, ambos virando o olhar para Cristo, e ambos
identificáveis pelas suas fisionomias habituais na arte cristã medieval, não obstante o
facto de não possuírem quaisquer outros atributos.

Busto de São Pedro Busto de Cristo Busto de São Paulo


Foto: CVF Foto: CVF Foto: CVF

Enquanto o busto de Cristo é assessorado por dois anjos, que se dispõem em


cima e em baixo da moldura, os de São Pedro e São Paulo são encimados por figuras que
reforçam a mensagem seteriológica: a águia e o leão.

615
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Águia a rematar a parte superior da moldura Leão a rematar a parte superior da


que insere o busto de São Pedro. Foto. CVF. moldura que insere o busto de São
Paulo. Foto: CVF

Na outra face, fazendo correspondência directa com a localização das figuras


que acabámos de descrever, vemos, ao centro, o busto de um rei, com o rosto
parcialmente mutilado, mas identificável pela coroa, aberta, baixa e flordelisada, idêntica
à que vemos a rematar o grande escudo da secção estreita da arca, atrás referida.
Entendemos que esta figura de monarca represente D. Fernando I, que aqui surge num
retrato idealizado de busto, em vez da estátua jacente, e cujo penteado tanto se
assemelha aos retratos deste rei em algumas moedas cunhadas durante o seu reinado, tal
como em outro capítulo tivemos oportunidade de referir.

Busto de um homem com a cabeça Busto de D. Fernando I. Busto de um homem com turbante. Retrato
tonsurada. Foto: CVF do escultor que lavrou o túmulo? Retrato
Foto: CVF de um mouro ou de um judeu?
Foto: CVF

Deste conjunto, as restantes duas molduras com bustos oferecem uma


interpretação menos fácil. Do lado direito do monarca, vemos uma figura de homem
que olha na direcção do rei, e cujo o penteado, com tonsura, nos leva a identificá-lo,
logo numa primeira abordagem, com um clérigo. Poder-se-á tratar de um frade,
possivelmente um franciscano, ou talvez pretenda representar o ideólogo do túmulo,
alguém muito próximo do rei (e era natural que fosse um franciscano de Santarém),
quiçá o seu confessor, ou, ainda, a representação do próprio São Francisco de Assis,
por quem D. Fernando tinha grande devoção. Deixamos as probabilidades em aberto.

616
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Na outra pequena moldura, representa-se um homem, com idade difícil de


definir, cuja cabeça é coberta por um turbante, traçado e pendente. No primeiro estudo
que fizemos sobre este túmulo colocámos a hipótese de representar um mouro6 ou um
judeu, representante das minorias sociais. Agora, porém, confrontando esta figura com
a de um mestre arquitecto representado numa
mísula da Sala do Capítulo do Mosteiro do
Batalha, que apresenta a cabeça coberta por
turbante idêntico, não podemos deixar de
levantar a hipótese de se tratar da representação
do mestre escultor responsável pela execução
deste monumento funerário. As semelhanças
são, de facto, muitas.
Poderá o rei ter querido figurar, lado a lado,
O “arquitecto” da sala do Capítulo do
Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha).
com o ideólogo do túmulo – um religioso, pro-
Apud História da Arte Portuguesa, vol. I, p. 406.

vavelmente um franciscano? – e com o mestre escultor que passou à pedra, de forma


tão exímia, um programa iconográfico de elevada complexidade?
Apesar de inédita na arte medieval portuguesa, não devemos pôr de parte esta
hipótese, na medida em que o estatuto social dos artífices medievais, em finais do
século XIV e inícios do século XV, denota já um significativo relevo, como bem
demonstra o exemplo da Batalha e, ainda, porque não é a primeira vez que um escultor
se faz representar no monumento funerário de outrém, podendo-se referir o conhecido
túmulo de São Vicente de Ávila, datado do século XII, onde se pode observar dois
artífices a talhar a pedra de vários túmulos. Também Rodrigues Ferreira identificou um
minúsculo busto de homem com turbante, colocado sob a espada do jacente de D.
Lopo Fernandes Pacheco, como sendo a representação do escultor que lavrou o
túmulo deste cavaleiro7. Quando estudámos este monumento funerário, interpretámos
a referida figura de forma diferente8, porém, mantêm-se as hipóteses em aberto.
Quanto à interpretação da figura do túmulo de D. Fernando I como representação do

6 Hipótese que pareceu provável a Gerárd PRADALIÉ, op. cit., 2ªed., 1992, p. 108.
7 “Acredito que estamos perante o mestre canteiro que, há exactamente 649 anos, terá
talhado na dura rocha a última morada de Lopo Fernandes Pacheco”. Cf. F. E. Rodrigues
FERREIRA, “Busto do presumível canteiro do túmulo de Lopo Fernandes Pacheco”, Olisipo,
Boletim do Grupo “Amigos de Lisboa”, 2.ª série, n.º 7, Lisboa, Amigos de Lisboa, Dezembro de 1998, p.
79.

617
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

escultor, constitui apenas uma das hipóteses que gostaríamos de expor para reflexão,
sem que tenhamos uma opinião definitiva sobre ela, ou sobre outras igualmente
possíveis.
Na parte inferior das secções da tampa foi esculpido o epitáfio9 do rei, a
posteriori, segundo Mário Jorge Barroca. Julgamos que este é o tipo de elementos que
não constava no túmulo à data do segundo testamento do rei, podendo ser englobado
entre as obras a que D. Fernando destina uma verba, no testamento de 1383, pera
repairerem os ornamentos e porem outros quando comprir e mester for10...
A arca funerária também apresenta escudos com heráldica, constituindo
elementos decorativos de grande destaque, mas, desta vez, as armas de Portugal dão
lugar à heráldica da linhagem materna de D. Fernando, isto é, aos escudos dos Manuéis
(de D. Constança Manuel).

Faces longas da arca tumular de D. Fernando I. Fotos: José Pessoa/DDF/IPM

8 Cf. Carla Varela FERNANDES, op. cit., 2001, pp. 51-52.


9 Segundo leitura de Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2000, vol. II, tomo 2, p. 1901: [aqui
iaz o] MUY: NOBRE: REY : DON FERNANDO : FILHO DO MUI NOBRE : REY : DON
PEDRO : E [:] DA YNFANTE : DON/A CO (n)STANCA : FILHA : DE DON YOHAN
MANUHEL :/: Q(u)E FYNOU EN LYXBOA : NO (h)ABYTO DE SAN FRANCISCO :
FERIA Q(u)YNTA: XXII DYAS DE OBTUBRO [sic]: ERA DE MYL : E CCCC E XXY ANOS.
10 Testamento de 1383 (IANTT – Sta. Clara, maço 8, nº 417 – 418) – cit. por Gerárd

PRADALIÉ, op. cit., 2ªed., 1992, p. 121, nota 52 e Mário BARROCA, ibidem, p. 1910.

618
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Reafirme-se, tal como outros autores já o fizeram, que esta é apenas uma das
originalidades deste túmulo que, de forma totalmente inédita, confere uma importância
desmesurada à simbologia heráldica que evoca a mãe do soberano, algo que não
acontece em nenhum túmulo de outro monarca português, e que, acreditamos,
contribui significativamente para que percebamos a ingerência de D. Fernando neste
programa iconográfico.
À maneira do que seu pai já havia feito nos túmulos que mandou lavrar para si e
para D. Inês de Castro, também D. Fernando deixou que as marcas do “indivíduo”
transparecessem, pondo a descoberto os seus sentimentos mais inquietantes, fazendo
desta obra um documento-testemunho das suas convicções e desejos: só D. Constança
havia sido mulher legítima de D. Pedro I e D. Inês sua barregã, e nenhum dos filhos
fora daquele casamento poderiam ser considerados legítimos. Sublinhava, assim, o que
havia afirmado, de maneira tão clara, no seu testamento.

Face menor da arca,


correspondente aos pés
do túmulo.

Inseridos numa moldura de


micro-arquitecturas, dispõe-
se o escudo dos Manuéis,
apresentado por dois anjos
e encimado por um busto
de figura feminina.

Foto:
José Pessoa/DDF/IPM

O rei não se limitou apenas em fazer trasladar o túmulo de D. Constança


Manuel da igreja de S. Domingos de Santarém para a igreja de S. Francisco da mesma
cidade (1376), para que jazesse no mesmo locus que ele havia escolhido para si,
reforçando este novo panteão e reabilitando, assim, a memória esquecida da mãe.
Empenhou-se, também, em dar o devido destaque à imagem e linhagem materna,
fazendo com que estas tivessem lugar no seu próprio e grandioso monumento
funerário, através destes grandes escudos das faces laterais da arca, a que se junta um
outro, na secção oposta à cabeceira. Este último escudo, tal como o do rei, que se

619
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

releva na parte da tampa correspondente à mesma secção, também é apresentado por


dois anjos tenentes e, a rematá-lo, em vez da coroa que identifica o rei, surge agora um
busto de mulher, com a cabeça coberta por touca, uma provável representação
estereotipada de D. Constança (?).
Com esta decisão, D. Fernando terá procurado fazer face à imponência do
túmulo de D. Inês de Castro, que a homenageava como rainha legítima, dando agora
destaque à memória da mãe, através da heráldica impositiva dos Manuéis, a par da sua.
É muito provável que os restos mortais de D. Constança tenham sido trasladados, após
a morte de D. Fernando, para o túmulo do filho, deixando vazio aquele que havia vindo
de S. Domingos. Não temos, porém, qualquer documentação que nos elucide a este
respeito.
Na testeira do túmulo, as cenas lavradas na arca e na tampa têm de ser lidas em
conjunto. São alusivas à Vida e Milagres de S. Francisco de Assis, devoção especial do
monarca. Voltemos, porém, às faces longas da arca. Os escudos com as armas dos
Manuéis estão inseridos em molduras, agora polilobadas, e não circulares, como as que
vemos na tampa. São molduras escavadas com grande profundidade, para que no seu
interior se pudessem esculpir outros elementos.
Dentro dos lóbulos superiores, a encimar os escudos, e nos dois lóbulos laterais,
foram esculpidos vários bustos, em alto-relevo, todos diferentes e todos reveladores de
uma mão habituada a esculpir imagens de pequenas dimensões. A estas, o escultor
conseguiu atribuir um naturalismo evidente, e onde se verifica a tentativa de conferir
pequenos traços individualizantes, não obstante a uniformização decorrente de um
gosto de época.
Qualquer tentativa de identificar as individualidades aqui representadas leva-nos
ao caminho do insucesso, por quanto elas são, essencialmente, personagens-tipo,
destinadas, apenas, a marcar, pelas fisionomias e atributos, categorias sociais, idades e
géneros.
Entre as figuras religiosas, encontram-se homens e mulheres, do clero secular e
do clero regular: um bispo; um cardeal (sendo esta a primeira representação que se
conhece na arte medieval portuguesa); monges; monjas; um franciscano e uma clarissa,;
outros frades e outras freiras. Apresentamos apenas as que se encontram melhor
conservadas.

620
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Um bispo e um cardeal.

Molduras da arca de tumular


de D. Fernando

Fotos: CVF

Bustos de três figuras do clero


regular.
Molduras da arca de tumular de D.
Fernando

Fotos: CVF

Duas figuras
de religiosos.
Molduras da
arca de
tumular de D.
Fernando

Fotos: CVF

Também constam figuras da sociedade laica, jovens de ambos os sexos, eles


com os cabelos não muito longos e elas, muitas vezes, com diademas de flores ou
pedras preciosas; homens adultos, de longas barbas e cabelos; outros, cujos chapéus
não nos permitem identificar a que grupo sócio-profissional pertencem, enfim, os
retratos-tipo daqueles que constituem uma sociedade heterogénea, organizada e
hierarquizada.

621
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Três figuras da sociedade laica.


Molduras da arca de tumular de D.
Fernando Foto: CVF
Foto: José Pessoa/DDF/IPM Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Três figuras da sociedade laica.


Molduras da arca de tumular de D.
Fernando
Fotos: CVF

Busto de homem com chapéu.


Moldura da arca tumular de D. Fernando.
Foto: CVF

622
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Por isso, eles são, em nossa opinião, representações que dão corpo à imagem da
sociedade tardo-medieval portuguesa como um todo, comum, de resto, às sociedades
de outros países cristãos da mesma época. Lamentavelmente, muitas destas figuras
encontram-se danificadas, umas com perda parcial de matéria e outras já quase
imperceptíveis.
Nas faces internas mais exteriores de todas as molduras, vemos uma espécie de
frisos ou bandas, preenchidas com minúsculas rosetas, dispostas sequencialmente, e
que, sempre que atingem o vértice de um lóbulo, transformam-se em pequenos rostos
humanos ou zoomórficos. Esta sequência de rosetas é semelhante à que também
decora o rebordo da tampa, onde se alternam com outras flores de diferente recorte.
Os lóbulos inferiores, bem como todos os espaços vazios que ladeiam a
totalidade das molduras (as circulares da tampa, ou as polilobadas da arca), foram
preenchidos, maioritariamente, com figuras pertencentes a um universo marginal,
normalmente fantástico, mas também ao mundo real, como teremos oportunidades de
melhor especificar e desenvolver adiante.
A leitura iconográfica que propomos para este túmulo inicia-se na tampa do
túmulo, onde, naturalmente, se dispõem as personagens mais importantes, constituindo
os eixos centrais e de ligação com os restantes elementos.
A figura de D. Fernando consta, como já vimos, num dos lados do túmulo,
ladeado por dois outros homens, fazendo-lhes correspondência directa, do outro lado,
as figuras de Cristo, ladeado por São Pedro e São Paulo, os dois pilares da Igreja.
Esta representação do rei simboliza, materialmente, o representante secular de
Deus sobre a terra, o monarca que recebe a sua linhagem marcada pelo selo divino e
que mantém uma relação especial com a divindade, um “ministro de Deus”. Ele é o
verdadeiro chefe do seu reino, implicando a total obediência dos seus súbditos, isto é,
da grande “massa social”, de cristãos e minorias religiosas, constituintes do corpo social
do reino, sob a protecção e controlo do rei. O rei é, como temos vindo sublinhar, o
chefe por excelência, inclusive, a cabeça que comanda todo o corpo social.
A representação de Cristo, na sua relação com a imagem de D. Fernando, vem
lembrar que ele é o Rei de todos os Reis, aquele que verdadeiramente confere poderes
sagrados aos soberanos da terra e ao papa, ladeado por S. Pedro e S. Paulo, aos quais se
juntam, fora das molduras, as figuras do Leão e da Águia e dos dois anjos, sublinhando a

623
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

simbologia cristológica. Trata-se, pois, da representação de uma ideia simplificada e


genérica da Monarquia Divina, ou da Corte Celestial.
Aqui não se optou por representar o rei entronizado e acompanhado das
insígnias do poder, mas a cabeça de um jovem coroado, inserido num clípeo. Ou seja,
um “retrato” idealizado, privilegiando-se a cabeça do soberano como parte mais nobre
do seu corpo dual, “que era visto à imagem de um corpo místico de Deus, atribuindo-
lhe nessa acepção o valor de símbolo cristológico”11, como se entende da obra de João
de Salisbúria, o famoso Policraticus.
Assim vemos, também, a representação de Cristo, cuja iconografia se limita à
cabeça. Porém, para que fosse perceptível o verdadeiro papel de ambos na sua relação
com os restantes elementos, no que se refere à manutenção da ordem, da justiça e da
protecção devida aos súbitos por um, e aos cristãos em geral, por outro, não foi
necessário recorrer a retratos de maior aparato cenográfico.
Neste caso, a relação hierárquica entre as duas figuras e as restantes personagens
representadas no túmulo, é definida pelas igualmente hierárquicas relações entre o baixo
e o alto e entre o central e o lateral, de acordo com os seus respectivos entendimentos de
importância na cultura e mentalidades medievais. Cristo e D. Fernando são os bustos
antropomórficos mais altos e mais centrais de toda a composição, correspondendo, por
isso mesmo, a duas personagens tutelares nos seus poderes.
De facto, como já referimos, não é nova esta ideia de vincular conceitos e
imagens aplicados e reconhecidos a Cristo aos conceitos e imagens dos monarcas
medievais portugueses, inseridos, claro está, numa tendência mais ampla que se
verificava por todos os reinos da Cristandade, desde há longos anos12.
Do ponto de vista iconológico, a associação que é possível estabelecer entre um
e outro lado da tampa do sarcófago relaciona-se com os conceitos de “espada
temporal” e de “espada espiritual”13. Estas assentam no fundamento cristológico do

11 Cf. Carla Serapicos SILVÉRIO, op. cit., 2004, p. 49. Veja-se, ainda, a este respeito A.
GUREVITCH, As Categorias da Cultura Medieval, Lisboa, Caminho, 1990, pp. 71-77.
12 Veja-se cap. 1.1.4 da I Parte.
13 Sobre o conceito de “espada espiritual”, personificada nos bispos de cada reino, e de

“espada temporal, personificada nos reis cristãos, Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., 1999,
p.11, refere “De servicio a la espada espiritual, puesto que, quien asume la espada temporal, ejerce
um poder de orientación, sugerencia o estímulo ante el Ministerio de Dios – el obispo – y como
prueba de la honra a sua Iglesia. De igual modo, el acto de servicio a Dios deberá inducirle a
prometer, guardar e hacer guardar sus mandamientos; como los reyes bíblicos que en el pasado
aplacaron la ira de Yavé, destruyeron la idolatría y acompañaron su acción el levantamiento del
Templo: Salomón y Josías”.

624
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

duplo poder, temporal e espiritual, definido no Decreto de Graciano (1120-1140), uma das
obras mais divulgadas no Ocidente medieval e considerada doutrina oficial, ou fonte,
por excelência, do direito canónico. Nas muitas cópias dos séculos XIII e XIV do
Decretum Gratiani existe, sempre, pelo menos uma iluminura onde se representa Cristo
em majestade a conferir a investidura do seu poder ao papa e ao imperador14. Estes
conceitos foram sublinhados alguns anos mais tarde na bula Una Sanctam do papa
Bonifácio VIII, expedida em 1302, e destinada a esclarecer o papel regulador do papa,
sucessor de S. Pedro e vigário de Cristo. Para Bonifácio VIII a cabeça da Igreja é Cristo,
e o corpo da Igreja é um só e indivisível, tutelado pelo Papa. Inspirando-se nos
Evangelhos, argumenta: “esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da
Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a igreja enquanto
que a primeira deve ser usada pela igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o
temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada
deve estar subordinada à outra espada; a autoridade deve ser submissa à autoridade espiritual”15.
De acordo com a teologia política da época, a realeza apresentava-se como uma
instituição de origem divina, possuidora de uma inquestionável protecção teológico-
religiosa16. Ora, nos finais do século XIV, a “espada espiritual”, a que D. Fernando
reconhece verdadeira autoridade é, antes de mais, a de Cristo, e depois... a do papa.
Não podemos esquecer que os anos de reinado de D. Fernando correspondem
aos tempos conturbados dos papas de Avinhão e, por fim, ao Grande Cisma (1378),
perante a dualidade de pontífices aos quais o monarca português oscilou
constantemente no seu apoio, ao sabor dos interesses políticos de cada momento. É,
pois, essencialmente, a Cristo/Deus, que D. Fernando deve a sua função no mundo do
homens.
Não podemos, nem devemos esquecer, também, que o reinado de D. Fernando
(1367-1383) foi contemporâneo do de Carlos V de França, o “Sage Roi” (1364-1380), a
quem se deve a encomenda e o empenhamento pessoal na redacção do famoso Songe du
Verger, obra onde são particularmente defendidas as prerrogativas da autoridade real

14 Sobre a iconografía judiciária na Idade Média e, em particular, sobre as iluminuras das

muitas cópias do Decreto de Graciano veja Robert JACOB, Images de la Justice. Essai sur
l’IconographieJjudiciaire du Moyen Age à l’Âge Classique, Paris, Le Léopard d’Or, 1994, pp. 9-49.
15 Cf. Enrique GALLEGO BLANCO, “Relaciones entre la Iglesia y el Estado en la Edad

Media”, Revista de Occidente, Madrid, 1973, pp. 283-285.


16 Sobre estes e outros conceitos associados ao poder régio na Baixa Idade Média

peninsular veja-se José Manuel NIETO SORIA, op. cit., 1988.

625
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

face ao poder eclesiástico, tão caras ao monarca de França. Parece-nos difícil aceitar que
o soberano português fosse alheio à sua existência e, sobretudo, alheio a uma política
que tendia a generalizar-se, nas monarquias ocidentais, de procura e verdadeira
afirmação da autoridade real face aos poderes do papa, especialmente neste período
conturbado para a Cátedra de São Pedro17. Na verdade, a consciência da necessidade de
afirmação de um poder régio de origem divina, sem necessidade de intermediários, já
havia sido suficientemente valorizada no século XIII, em contexto peninsular, por
Afonso X, o Sábio18.
Neste túmulo, vemos como o rei pretendeu sublinhar que o seu poder é
recebido directamente de Cristo/Deus. É a Ele que D. Fernando deve a coroa e a
obediência e só a Ele deverá entregar o poder de que foi investido (pela graça de Deus)
na hora da morte, sem intermediários, isto é, sem interferência da Santa Sé. Não é
novo. A não submissão ao papa por parte do rei português, chefe de um reino que foi
colocado pelo seu fundador na dependência de Roma, quando os interesses apontavam
no sentido de uma libertação do jugo tentacular do império castelhano-leonês,
encontrou diferentes contornos ao longo dos sucessivos reinados, culminando, no
reinado de D. Pedro I, pai de D. Fernando, com a promulgação do designado beneplácido
régio, lei que obrigava a que todas as determinações papais só adquirissem força de lei no
país após o consentimento e aprovação do rei português.
A verdade é que, durante longo tempo, os monarcas medievais portugueses,
apesar da existência de conflitos mais ou menos agudos com a Igreja nacional, e perante
as consequências que esses conflitos tiveram nas relações da monarquia com a Santa Sé,
não puderam nunca descurar o representante máximo de Cristo, e esperaram sempre
obter a sua bênção para bem governarem.
Esta é uma realidade que se verifica com um constância muito precisa entre o
século XII e meados do século XIII. José Varandas, ao abordar as relações de D.
Sancho II com a Santa Sé, refere que “por um lado era o rei do papado, o representante
legítimo ditado pelo testamento de seu pai e vassalo da Santa Sé, e que por isso devia
obediência e respeito ao que o governante da Cristandade determinasse. Por outro lado
era o rei do reino, o soberano apoiado por um conjunto de conselheiros esclarecidos,

17 Cf. Walter ULMAN, Principios de Gobierno y Política en la Edad Media, Madrid, Alianza

Editorial, 1985, pp. 61-89.


18 Como sublinha F. Joseph O’CALLAGHAN, El Rey Sabio. El Reinado de Alfonso de Castilla,

Sevilla, 1996, pp. 46-47.

626
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

que lhe apontavam o rumo. Mas tal como houvera sucedido a seu pai, Sancho não se
podia dar ao luxo de voltar as costas ao representante máximo de Cristo e governar o
reino sem a sua bênção. A posição e os interesses de Portugal necessitavam da
protecção da Santa Sé e a legitimidade do rei, a sua auctoritas e a sua dignitas precisavam
do mesmo apoio”19.
A promulgação do beneplácido régio mostra, porém, uma clara evolução no que se
refere a esse difícil, mas necessário equilíbrio, de apoios e de relações vassálicas e como,
cada vez mais, o Estado, através do eficaz exercício do seu poder, substitui a Igreja nas
relações com os súbditos. D. Pedro assumiu-se, com esta nova determinação, como
digno e legítimo representante de Deus sobre a Terra, como chefe da Igreja nacional,
num período que se adivinhava difícil para o papado, após a transferência da sede de
Roma para Avinhão20.
Ora, o tempo em que D. Fernando I governou é já diferente daquele que tinha
caracterizado o tempo dos primeiros reis de Portugal, seus antecessores. O rei já não
era o rei do papado, mostrando que a evolução das relações entre monarquia e Igreja,
em Portugal, seguiam o mesmo curso que se verificava noutros países, nomeadamente
em França, onde a um tempo profundamente marcado pela figura carismática de São
Luís, monarca que tanto se apoiou no poder papal, evoluiu-se para um maior e mais
claro afastamento entre estes dois poderes, verificável tanto com Filipe IV o Belo, como
depois com Carlos V, contemporâneo de D. Fernando I.
A verdade é que, e como temos vindo a sublinhar, o reinado de D. Fernando
corresponde ao período mais acentuado de fraqueza da autoridade da Cúria papal,
como tão bem espelhou Fernão Lopes na sua Crónica de El-Rei Fernando, onde se evoca
“a dramática cisão interna, então ocorrida na Igreja, sob o signo de uma alegórica
desvirtualização do corpo especial da Cristandade”21. O próprio monarca oscilou nos
seus apoios, ora pelo papa de Roma, ora pelo de Avinhão, ao sabor dos interesses
portugueses. Estes faziam-se nas várias guerras que desencadeou e, colocar-se ao lado
de um ou de outro papa, era simples forma, quase que descartável, de dizer quais eram
os seus amigos, sendo que os malogrados ingleses estiveram sempre nas suas
preferências.

19 José VARANDAS, op. cit., 2003, p. 448.


20 Cf. Luís Urbano AFONSO, op. cit., 2003, pp. 49-50.
21 Carla Serapicos SILVÉRIO, op. cit., 2004, p. 25.

627
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Por isso, nesta iconografia de rei muito cristão, e de rei como cabeça tutelar e
indiscutível de todo o universo social português, é com Cristo/Deus que D. Fernando
estabelece uma relação directa, representado à mesma altura e no mesmo eixo de
centralidade da tampa do sarcófago, um de cada lado, tutelando, vigiando e
controlando, ou seja, detendo poderes hegemónicos, sobre esferas de influência com
diferentes delimitações. D. Fernando I é aqui o vicarius Dei.
Neste sentido, representa-se a imagem de um corpo social terreno, através das
muitas figuras (bustos) da arca, como imagens individualizadas que, em conjunto, se
tornam um todo social, regido por uma única cabeça, e onde todos os membros
cooperam e são necessários para a sua saúde22, reproduzindo a forma como a sociedade
medieval se via a si mesma, ou seja, uma forma organicista, tal como é defendida no
Livro II das Partidas de Afonso X23. Não é, por isso, de estranhar que o ideólogo deste
túmulo assim o entendesse: se os “dois corpos do rei” simbolizavam a unidade do
poder e da sociedade terrena, o lugar onde o “corpo social” do rei era guardado até à
ressurreição final, o moimento, constituía o lugar privilegiado para relembrar esse papel
que cabe aos monarcas.
Perante a mensagem desta obra, não podemos deixar de estabelecer relações
com obras anteriores, onde essa mesma identificação se verifica, de maneira muito
especial. Referimo-nos às representações de Cristo e de D. Pedro I, patentes nos túmulos
de Alcobaça, pertencentes a este último monarca e a D. Inês de Castro.
Como já tivemos oportunidade de referir, a propósito da leitura iconográfica da
Roda da Vida/Roda da Fortuna do túmulo de D. Pedro I, José Custódio Vieira da Silva
foi o primeiro historiador a propor que a leitura destes dois complexos monumentos
funerários deveria ser feita em conjunto e de acordo com a sua primitiva localização ou
posicionamentos originais, pois existem mútuos reenvios de mensagens. Luís Urbano
Afonso, no seu já muito citado estudo sobre o tema das Idades do Homem, corroborou a
ideia e acrescentou, ainda, a relação tipológica, iconográfica e iconológica, entre a figura
de D. Pedro entronizado, que domina ao centro superior da Roda, com a figura de Cristo
Juíz, igualmente entronizado, na cena do Juízo Final, no facial dos pés do túmulo de D.
Inês de Castro.

22 Cf. IDEM, ibidem, p. 23.


23 Cf. José MATTOSO, op. cit., 5ªed., vol. I, 1995, pp. 127-128.

628
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

D. Pedro I entronizado, no
Cristo Juiz. lóbulo superior da Roda da
Cena do Juízo Final.
Vida.
Testeira do túmulo de D. Inês
Testeira do Túmulo de D. Pedro.
de Castro.
Apud O Panteão Régio do Mosteiro de
Apud O Panteão Régio do Mosteiro
Alcobaça, p. 90.
de Alcobaça, p. 79.

Para este último autor, a figura entronizada, vestida com manto traçado à frente,
e que segurava outrora uma espada ou um ceptro, no túmulo de D. Pedro, é inspirada
ou, pelos menos, procura que o observador estabeleça uma relação com a figura de
Cristo Juíz do túmulo de D. Inês. As semelhanças são muitas, não obstante o mau
estado de conservação da figura do alegado D. Pedro: idênticas posturas, frontais e
hieráticas, lugares centrais e assumidamente tutelares que ocupam no centro das
composições respectivas.
A representação de D. Pedro difere das figuras que normalmente ocupam este
mesmo lugar nas Rodas da Vida ou nas Rodas da Fortuna, onde é habitual estar presente
“o esplendor do seu poder, destacando-se o brilho das regalia”, enquanto que, neste
caso, “aquilo que podemos ver na figura de D. Pedro é a consciência da brevidade da
vida terrena, fruto dos caprichos da Fortuna. Efectivamente, é possível ver que a mão
esquerda de D. Pedro, em vez de estar levantada, aponta para baixo com o indicador na
direcção da figura da Fortuna e na direcção do seu próprio cadáver (...). Em todo o
caso, é certo que a imagem de D. Pedro visa estabelecer uma analogia visual, e
conceptual, com a figura de Cristo no Juízo Final do túmulo de D. Inês de Castro.
Neste caso a figura de Cristo segura uma espada na mão direita, da qual hoje em dia
apenas se vê o punho e a guarda da lâmina, enquanto que a mão esquerda, de palma
aberta, está estendida para baixo, na direcção do Juízo Final. Estabelece-se, pois, uma
importante analogia entre as duas imagens, que apresentam, o mesmo tipo de
indumentária, o mesmo tipo de pregas, o mesmo tipo de poses, frontais e rígidas, e o
mesmo tipo de gestos”24.

24 Luís Urbano AFONSO, op. cit., 2003, p. 47-48.

629
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Acentua-se, pois, a imagem de Rei à semelhança de Cristo, em especial no que


se refere ao pleno direito do exercício da justiça (tão caro da D. Pedro...), como já o
havia notado o referido autor, que conclui, afirmando: “Por outras palavras, o
fundamento para o rei aplicar a justiça na Terra é dado pelo paralelo com a figura de
Cristo no Juízo Final. Assim, entre ambas as figuras e, entre ambas as dimensões, existe
uma relação de hemologia”25.
Ao rei cabe a missão de assegurar a ordem das coisas sensíveis, repudiando e
combatendo toda a forma de pecado e assegurando a estrutura organicista da sociedade,
no topo da qual está o monarca, enquanto vigário de Deus.
O céu, por seu lado, era imaginado como uma espécie de Estado com a sua
cúria celeste, em que cada anjo, cada apóstolo ou cada santo, pertencia a um ordo e
realizava uma função. Cristo (tal como o representa frequentemente a arte românica)
usava coroa imperial ou real, e segurava o ceptro ou a espada da justiça. Por outro lado,
o rei terreno era concebido como “imagem de Cristo”, e a paz e a justiça deveriam ser
asseguradas por ele, tal como acontecia no céu. “Tal reprocidad e intercambio de
símbolos se justificaba en razón de la unidad sustancial entre a orden natural y el
sobrenatural, siendo éste considerado como una perfección de una realidad que en
aquél sólo se halla incoada o reproducida con mejor o peor fortuna”26. No final dos
tempos voltará Cristo a reinar pessoalmente, mas, entretanto, o reino está prefigurado
nos que transformam a Verdade em vida27.
Melhor percebemos, assim, que desta forma subtil de identificação entre o
poder do rei e o poder de Cristo, nos túmulos de D. Pedro e de D. Inês de Castro, não
foi preciso esperar muito para evoluir para a forma de identificação mais explícita,
como a que se verifica no túmulo de D. Fernando I. Tal não corresponde a uma
situação inusitada ou surpreendente. Ela representa o corolário da evolução conceptual
e imagética dos representantes máximos do poder temporal, verificável tanto em
Portugal, como noutros reinos cristãos de então.
Como temos vindo a tentar demonstrar, a iconografia do poder régio, na sua
gradual evolução, mostra-nos como, pelo menos desde o reinado de D. Afonso IV, se
procuraram formas de propaganda através da imagem, que pretendem atribuir ao rei
uma semelhança próxima ou quase directa com as imagens próprias de Cristus Rex,

25 IDEM, ibidem, p. 49.


26 Manuel GARCÍA-PELAYO, op. cit., 1959, pp. 153-154.

630
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

acentuando, assim, a ideia de monarquia de direito divino e do rei como vicarius Dei, ao
qual todos os estratos sociais estão subordinados, incluindo os representantes do poder
espiritual em cada reino. Para melhor sublinhar esta ideia, o rei assume prerrogativas
próprias dos sacerdotes, na sua imagem de Rex et sacerdos, como a que vimos na análise
do selo que representa D. Afonso IV a presidir e a tomar papel activo na condução de
uma cerimónia religiosa na Sé de Lisboa.
Quando o objectivo foi representar, simplesmente, o poder régio, a arte
portuguesa da segunda metade do século XIV recorreu a fórmulas iconográficas que
visavam estabelecer paralelos entre as representações de Cristo, como Senhor e Juiz,
que assegura a tutela dos destinos da humanidade, com representações do rei temporal,
soberano e tutelador dos destinos e da ordem social do seu povo.
São imagens que exprimem, visualmente, os conceitos de auctoritas, potestas e, em
alguns casos, de maiestas, conceitos inerentes, também, às representações de Cristo Juiz.
A dualidade de poderes, presente na mentalidade medieval, fica perfeitamente
demonstrada no traçado conceptual deste túmulo, pertencente a um rei que se viu a si
mesmo como cabeça de um corpo complexo e heterogéneo, do qual ele determinou a
sua condução e a sua manutenção – mesmo quando a consciência pessoal contrariava
estas noções, por desvarios cometidos em vida, importava, antes de tudo, fazer crer que
assim era28.
Todas as figuras do túmulo, a que já nos referimos, encontram-se inseridas em
espaços delimitados por molduras, ora circulares, ora polilobadas. Este processo de
organização do espaço onde se distribuem destina-se, por um lado, a dar destaque ao

27 IDEM, ibidem, p. 165.


28 No processo de criação da “memória” não era imprescindível a existência de uma plena
coincidência entre o real e o imaginado. Importante era não deixar visíveis, para a sociedade
contemporânea e para a posteridade, sinais de debilidade, de vícios e de pecados. Como refere José
Manuel NIETO SORIA, op. cit., 1988, pp. 38-43para Maquiavel, governar era fazer crer. Era um
problema de propaganda e de opinião pública. É também verdade, que ao longo da Idade Média
não existiu nada conhecido como propaganda, sendo este conceito bastante moderno. No entanto,
as formas de actuação que muitas vezes seguiram são perfeitamente enquadráveis no que hoje se
engloba nesse termo. A propaganda religiosa e a propaganda política permaneceram unidas durante
a Baixa Idade Média, sendo uma característica essencial dos fundamentos ideológicos do poder
régio durante esta época. A iconografia dos túmulos régios revela bem essa intenção de “fazer
crer”, pois, “bien entendido que lo essencial reside en cuidar en las imágenes sepulcrales el
concepto de muerte perfecta donde lo esencial y decisivo consiste en no descuidar el curriculum mortis.
En especial en aquellos años de bajo medievo donde la reflexión sobre el curriculum mortis es una
forma de alejar los fantasmas que puedan alterar la imagen del curriculum vitae”. Cf. Manuel NÚÑEZ
RODRÍGUEZ, “La muerte y su efecto vanitas en la hora de la individualidad”, Morte e Sociedade no
Noroeste Peninsular, V e VI Semanas Galegas de Historia., Santiago de Compostela, Universidade de
Santiago de Compostela, p 32.

631
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

que é mais importante e, por outro, a demonstrar que constituem parte de universos
organizados e bem estruturados: o reino celestial e o reino terreno. Verifica-se, porém,
que neste túmulo, nem todas as figuras se limitam aos espaços devidamente delimitados
e enquadrados, mas ocupam, também, e com extraordinária abundância, espaços
diferentes, que poder-se-iam dizer “livres”. É aqui, neste vasto “universo” que escapa,
ou procura escapar, aos poderes tutelares, menos controlado, que habitam estranhas
personagens pertencentes a esse “maravilhoso mundo medieval”.
O seu número e variedade constituem, sem dúvida, um dos aspectos mais
interessantes e curiosos deste monumento, especialmente se tivermos em conta que é a
primeira vez que aparecem representados num túmulo medieval português, e que não
mais voltarão a surgir, com estas características, com esta diversidade e com este
ineditismo..
Estranhos na sua orgânica corporal, parecem saídos de algum pesadelo
fantasmagórico, de um conto gótico, ou de uma floresta assombrada. Mas, nem por
isso, deixam de ser fascinantes… Pelo contrário. A sua hibridez resulta, em alguns
casos, da junção de várias partes de corpos de animais e, noutros, de cabeças e braços
humanos com troncos e membros de várias espécies do reino animal ou vegetal.
Eles são, claramente, a transposição para a pedra do repertório das droleries dos
livros iluminados, mas não só. Em tudo medievais e em tudo góticas, estas estranhas
personagens têm ecos prévios em esculturas do mundo ocidental. Citemos apenas
alguns exemplos mais relevantes: os quadrilóbulos das jambas do Portal dos Livreiros
(1278 -1300) da Catedral de Rouen, tão bem analisados por Michael Camille; as mísulas
da Sala da Grande Audiência no Palácio dos Papas de Avinhão (séc. XIV); o famoso
claustro do mosteiro cisterciense de Santes Creus29, (século XIV, Tarragona, Espanha),
e com ecos em Portugal, nomeadamente nas mísulas do portal ocidental da Sé de
Évora); o retrocoro (trascoro) da Catedral de Toledo30, como já havia chamado a atenção
Gérad Pradalié31, ou, ainda, e com claras semelhanças com algumas figuras do túmulo

29 As obras do claustro de Santes Creus iniciaram-se em 1313, por determinação régia, e


contaram, entre os seus artífices, com os conhecidos mestres escultores Pere de Bonneuil e Reinard
des Fonoll.
30 Cf. J. GUDIOL RICART, La Catedral de Toledo (Los Monumentos Cardinales de España, II),

Madrid, pp. 42-43, pp. 66-70 e 153-154.


31 “O retrocoro (trascoro) da mesma catedral apresenta numerosas figuras com cabeça

humana e corpo de animal, tal como no túmulo do rei português”. Cf. Gérad PRADALIÉ, op. cit.,
2ªed., 1992, p. 114.

632
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

de D. Fernando, os monstros do cadeiral da Catedral de Colónia32. Estes exemplos,


entre tantos outros, vêm demonstrar que a gramática decorativa do túmulo de D.
Fernando I não é nova33. O que é novidade é a sua aplicação a um túmulo trecentista
português.

Três dos muitos quadrilóbos com figuras fantásticas que decoram o Portal dos Livreiros da Catedral de Rouen
(França). c. 1278-1300. Fotos: CVF.

Pormenor e uma das mísulas da Sala


da Grande Audiência do Palácio Papal
de Avinhão.
Séc. XIV.
Apud Le Palais des Papes, Avignon, 1998, p.
51.

32 Começado em 1308, foi colocado na capela-mor em 1311. Trata-se do maior cadeiral


gótico da Alemanha, constituído por 104 assentos. Entre os assentos individuais foram esculpidas
figuras grotescas com ampla decoração de folhagens, animais e pessoas. Da mesma forma, as
misericórdias são decoradas com animais, figuras humanas e muitas criaturas fabulosas, que não se
limitam a ser retratadas estaticamente, mas em pleno movimento e acção, ora dançando, lutando,
rezando, ora mostrando afectos. Nos painéis maiores, representam-se cenas do Antigo Testamento
e das Parábolas de Cristo, assim como cenas de antigas sagas de crença popular. Cf. Arnold
WOLFF, The Cologne Cathedral, Colónia, Verlarg Kölner Dom, 1999, pp. 16-17.
33 Voltaremos a estas comparações nas Notas Complementares, em capítulo dedicado aos

aspectos formais de alguns túmulos pertencentes à família real.

633
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor de algumas das figuras grotescas dos capitéis do Claustro do Mosteiro de Santes Creus
(Tarragona, Espanha). Apud Francesca Español, El Gótico Catalán, p. 51.

A posição dos diversos autores que ao longo


da história se debruçaram sobre os temas
fantásticos na arte medieval, sofreu significativas
alterações. Émile Male, por exemplo, referindo-se
ao significado dos monstros dos Portal dos Livreiros
(Rouen), afirmou a inutilidade de lhes procurar
significado, e conclui – “Se alguma vez as obras
foram isentas de pensamento, esta é uma delas”34.
A única motivação dos artistas seria, pois, a de
preencher espaços vazios, para os quais, figuras
Pormenor do cadeiral gótico da
catedral de Colónia. 1308-1311. Apud constituídas por membros tão díspares e adaptá-
Sculpture. The Great Art of the Middle Ages
from the Fifth Century to the Fifteenth veis se ajustavam perfeitamente ao intuito.
Century, vol. II, p. 191.

Já recentemente, num dos mais interessantes estudos de Michael Camille, o


autor dedica amplas páginas às estranhas figuras deste portal, e encontra-lhes profundo

34 Émile MÂLE, L’Art Religieux du XIIIe Siècle en France, Paris, [reed.], Librairie Armand

Colin, 1993, pp. 121-125.

634
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

significado, enquanto expressões alegóricas da perigosidade da imaginação humana e do


poder que lhe é inerente35.
No túmulo de D. Fernando, estes elementos desempenham uma função moral,
ou moralizadora, talvez não em si mesmos enquanto elementos individualizados, mas
em conjunto e relacionados com as figuras dos medalhões, tal como acontece com as
fguras bizarras das margens dos manuscritos iluminados. Na mesma esteira de
significados encontra-se a única cena historiada dos faciais maiores da arca – o famoso
alquimista ou físico36.
Não sabemos se a disposição das várias figuras híbridas é realmente arbitrária ou
se obedeceu a critérios de importância de acordo com os seus significados simbólicos.
Antes de descrevermos e analisarmos estas “criaturas” semi-humanas e semi-
animais, importa referir que neste túmulo existe, ainda, uma outra categoria de
estranhas figuras, sobre as quais não nos detivemos aquando do nosso primeiro estudo,
e que também nunca foram identificadas ou analisadas pelos autores que nos
antecederam. Referimo-nos aos oito rostos híbridos que servem de sustentação, como
se fossem mísulas, dos escudos da arca tumular, e outros quatro, de menor tamanho e
diferente morfologia, discretamente colocados nas extremidades superiores e inferiores
da arca.
Aquilo que os diferencia, substancialmente, dos restantes monstros, é o facto de
possuírem uma componente vegetal na sua orgânica. Alguns são homens barbados;
outros, porém, são leões ou gatos, mas todos têm algo em comum: das suas orelhas
saem hastes com longas folhas recortadas, lobuladas e perfuradas, que se estendem
pelas secções laterais inferiores dos escudos dos Manuéis. As suas caracterizações são
magníficas, bem como a qualidade escultórica dos elementos vegetalistas.

35 Cf. Michael CAMILLE, Images dans les Marges aux Limites de l’Art Médieval, Paris,
Gallimard, [ed. francesa], 1997, pp. 119-130.
36 Santarém era, por tradição, durante toda a Idade Média, a cidade onde alguns dos nossos

monarcas buscaram a ajuda de reputados médicos, experientes na tradição herdada dos Árabes.
Terá sido o caso de D. Sancho I, que aí passou os últimos meses da sua vida; de D. Sancho II, que
se dirigiu a esta cidade por repetidas vezes a partir de 1217, conhecendo-se, para este período, as
identidades de alguns médicos seus que aí o trataram: dois cónegos de Lamego; dois mestres de
Évora, um de Lisboa e um do Porto. Santarém, era, por isso, o local mais reputado para tratamento
de enfermidades difíceis e, a essa tradição não deverá ter sido alheio o facto de um dos mais
conhecidos médicos e teólogos medievais portugueses, São Frei Gil (de Santarém), ter sido frade do
Convento de São Domingos desta cidade. Neste contexto medicinal, existe, todavia, uma
importante componente “esotérica”, que também se associa a Santarém e em especial à figura de
São Frei Gil, médico do corpo e das almas”, iniciado nas ciências obscuras nas grutas de Toledo,
quando se dirigia para a Universidade de Paris.

635
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Estes seres antropo-fitomórficos e zoo-fitomórficos mais não são do que as


representações dos enigmáticos e heterogéneos Green Men, na designação britânica, tal
como os classificou Lady Raglan em 1939, ou homens verdes, se quisermos traduzir, tão
comuns na arte medieval anglo-saxónica, a decorar capitéis, frisos ou mísulas, mas
também presentes nas manifestações artísticas de outros universos geográficos, da
Europa à Índia, tornando-se particularmente presentes na arte portuguesa do
Manuelino.
Paulo Pereira, a quem se deve o maior número de reflexões sobre este tema em
Portugal, alertou para a diferença entre o green man e o homem selvagem ou homines
sylvestre, diferentes não apenas na morfologia, mas também nos significados. Apesar de
poderem ser agrupados na mesma família, possuem conotações simbólicas
diferenciadas, mais abrangentes no caso dos green men37.
Graças à sua diversidade, não podemos atribuir aos green men um simbolismo
único, variando, certamente, de acordo com as fisionomias e os locais onde foram
representados.
Em Inglaterra, Mike Harding, poeta e autodidacta, tem vindo a recolher imagens
de todos os green men conhecidos e de outros que veio a descobrir, nas muitas
deambulações efectuadas, classificando-os por categorias38. Mas esta temática conta
hoje com outros estudos, de âmbito académico, como é exemplo o livro de Kathleen
Basford39, ou a recente publicação de Marcia MacDermott40.
Os oitos que vemos a preencher os lóbulos inferiores das molduras da arca
tumular parecem figuras de suporte e, todas elas, patenteiam expressões grotescas e
pouco afáveis, quer na sua vertente antropomórfica, quer enquanto felinos41, como se
nos advertissem para não chegarmos perto, não tocarmos. Sugerem-nos ser, por isso,
personagens defensivas e simultaneamente atacantes.

37 Cf. Paulo PEREIRA, op. cit., 2004, p. 189. Veja-se, ainda, o estudo de Fernando António
BAPTISTA PEREIRA, “Et in áurea aetate ego… Notas sobre a representação dos Homens
Silvestres na arte portuguesa dos séculos XV e XVI”, El Dorado, Lisboa, 4 Elementos, 1982, pp. 58-
66.
38 Entre algumas publicações de Mike HARDING sobre este tema, veja-se um pequeno

mas sugestivo livro de divulgação, A Little Book of The Green Man, Londres, Aurun Press Ltd, 1998.
39 Kathleen BASFORD, The Green Man, P.S. Brewer, 1978.
40 Marcia MACDERMORTT, Explore Green Man, Heart of Albion Press, 2003.
41 A representação de gatos e, sobretudo, leões, parcialmente constituídos por folhagens,

são muito comuns em conjunto com as representações humanas do mesmo tipo.

636
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Algumas das “figuras de suporte” dos escudos da


arca tumular. Fotos: CVF

Já os pequenos homens verdes das extremidades da arca, para além de


apresentarem as longas folhagens a saírem-lhes dos ouvidos, possuem outras, mais
desenvolvidas, crescendo-lhes das faces, dos olhos ou da boca, num figurino sempre
perturbador. São figuras que passam despercebidas entre a imensidão de personagens e
decorações da arca, mas que um olhar mais atento acaba por ser surpreendido com a
sua bizarra presença.

637
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Green men (Homens verdes), com folhagem a


sair das faces e dos olhos.
Extremidades da arca tumular de D. Fernando.
Ainda subsiste outra de tipologia idêntica, mas muito
deteriorada.
Fotos: CVF

Green men (Homens verdes). Uma das figuras Extremidades da arca tumular de D. Fernando I.
regurgita as folhas; a outra possui os cabelos Foto: CVF
compostos por duas hastes de folhagens.

Estas últimas, com características


diferentes das primeiras, lembram as
representações do green man trecentista
do cadeiral da igreja de St. Martin de
Thompson (Norfolk, Inglaterra), pela
Green Man. Cadeiral da Igreja de St. Martin (Thompson, pequenez e forma como, estrategica-
Norfolk). Segunda metade do séc. XIV.

mente, se adaptam a um espaço triangular.


As estranhas figuras alegóricas dos green men, que têm atravessado a arte
ocidental e oriental, desde a Antiguidade, poderão simbolizar, segundo Paulo Pereira,
uma alegoria do tempo, também relacionadas com os ciclos das colheitas, o que pode
muito bem justificar a sua abundância na igreja de S. João Baptista de Tomar, cujo
orago se liga às festas solsticiais42. Na Idade Média, pelo menos em Inglaterra, sabe-se

42 Cf. Paulo PEREIRA, op. cit., 2004, p. 189.

638
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

que certas personagens chamadas green men, saíam em procissão, cobertas por
folhagens43.
A recordação do tempo cíclico num monumento funerário não deixa de fazer
todo o sentido, aliás, já havia sido representado na Roda da Vida/Roda da Fortuna do
túmulo de D. Pedro I. A verdade é que o Green Man, porque constituído por matéria
vegetal, talvez melhor do que qualquer outra imagem, ilustra o princípio da morte e
corrupção do corpo, da ressurreição e do renascimento44.
As suas origens são pagãs, sem dúvida, mas a mensagem que ilustram mantém-
se viva ao longo dos séculos em que o Cristianismo nasceu e se desenvolveu,
coabitando e incorporando as composições com iconografia religiosa e cristã por
excelência, sem que pareçam ter sido considerados uma afronta para as autoridades
clericais, e muito menos para os fiéis. Talvez isso ajude a compreender porque na
estranha Rosslyn Chapel (Edinburgh, Escócia), fundada pelo cavaleiro templário
William Sinclair, ainda hoje se possam contemplar cento e três Green Men e apenas uma
imagem de Jesus, situação ainda mais compreensível se tivermos em conta que figuras
como estas também foram esculpidas nas igrejas templárias de Jerusalém no século
XII45.
Mas mesmo sem ligações ao alegado mundo hermético dos templários, estas
figuras estão demasiado presentes na arte medieval, algumas ocupando posições de
relevo, para que descuremos as interrogações sobre o seu significado.
É claro que em países como a Inglaterra, a Escócia ou a França, onde o
imaginário pagão associado às florestas deixou raízes tão profundas e conheceu
revitalizações tão significativas em épocas sucessivas, estando sempre presente nos mais
famosos romances de cavalaria, o terreno era mais propício à sua divulgação. Dos
muitos exemplos existentes, especialmente no Reino Unido, reproduzimos aqui apenas
três, datados do século XIV.

43 Cf. Mike HARDING, op. cit., 1998, p. 13.


44 IDEM, ibidem, p. 13.
45 Informação confirmada por Andrew Sinclair, autor da obra The Templars and the Grail, a

Mike Harding, quando este o interrogou sobre a hipótese de uma ligação entre as representações do
green man e as obras dos templários. A dúvida surgiu na mente do autor ao confrontar-se com um
símbolo templário numa das chaves da abóbada da igreja de St. Mary de York (actual York Arts
Center), junto com outra onde se representa o green man.

639
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Green Man. Chave de Abóbada. Eaton Green Man. Chave de Abóbada da Green Man. Chave de abóbada de St
under Haywood, Shropshire (Inglaterra). Catedral de Ely, (Inglaterra). Mary’s Church (York, Inglaterra)

Quem quer que tenha sido o autor do túmulo de


D. Fernando, possuía, certamente, um caderno de
esboços notável, com desenhos muito variados, e que
reflectem influências estranhas ao temário comum da
arte portuguesa deste tempo, mas muito chegados a
temas e modelos francamente comuns em Inglaterra,
no que se refere à iconografia que temos vindo a
descrever, e também a Itália, no que respeita à
iconografia franciscana da testeira do túmulo. Refira-
se, ainda, que a presença de rostos com folhagens não
seria apanágio único do caderno deste mestre escultor,
Mascaras de folhagens ou green man, pois no mais famoso caderno de esboços medieval,
desenhados por Vilard de Honnecourt
numa das páginas do seu Álbum. pertencente a Vilard de Honnecourt, estas personagens
Séc. XIII. Paris, BNF. Dep. des
Manuscripts, 19013. também estão presentes.
No que se refere às outras figuras híbridas do túmulo, as que se distribuem nos
espaços “livres” da parte inferior da arca, constatamos que correspondem, certamente,
ao mundo inferior, ao sub-mundo, remetendo a nossa imaginação para visões do
Inferno, onde o fogo é eternamente ateado, o lugar de muitos terrores que povoam o
imaginário medieval. São todas constituídas por partes de diferentes animais e, à
excepção de uma, todas elas cospem línguas de fogo. Vejamos as suas morfologias.
No registo inferior da arca, estas estranhas formas de dragões alados têm,
normalmente, corpos de lagarto, cabeças de serpente ou de leão, asas de pássaro ou,
num dos casos, asas de morcego. São figuras rasteiras que fazem arder o espaço em que
se movem, soltando poderosas línguas de fogo, como tão bem se pode constatar numa
das faces longas da arca, contrariamente ao que se passa na outra face, em que a
extrema erosão das superfícies, já mal permite detectar estes elementos iconográficos.

640
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Figura híbrida bicéfala. Face longa da arca tumular de D. Figura híbrida. Face longa da arca tumular de D. Fernando I
Fernando I (lado esquerdo). Foto: CVF (lado esquerdo). Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

Figura híbrida. Face longa da arca tumular de D. Fernando I Duas figuras híbridas afrontadas. Face longa da arca
(esquerdo). Foto: CVF tumular de D. Fernando I (lado direito). Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

A excepção à presença das línguas de fogo é feita pelas figuras de dois curiosos
dragões alados, que entrelaçam os longos pescoços e afrontam as cabeças de leões.
Na parte superior da arca, as figuras diferem destas últimas pelo facto de
possuírem, maioritariamente, características antropomórficas.
A figura única que
permanece arreigada ao
universo totalmente
zoomórfico é constituída
por cabeça de leão, virando-
se frontal e
ameaçadoramente para o
observador, tem corpo
enrugado e duas majestosas
Figura híbrida da parte superior da arca tumular asas de pássaro, totalmente
de D. Fernando I (lado direito). Foto: José Pessoa/DDF/IMP

641
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

abertas.
As três restantes seguem idêntico esquema compositivo, e revelam-se as mais
espectaculares de todo o conjunto, todas elas marcadas por carácter guerreiro, violento
e ameaçador, mas não sem que haja algum sentido burlesco. Na face longa do lado
direito, a única figura que se deixa ver (a outra foi destruída pelo o rombo feito na arca,
segundo se conta, pelas tropas francesas, a fim de saquearem o espólio aí existente), é
composta por corpo de insecto, patas de cabra, asas de pássaro, tronco e cabeça
antropóides. Tem o corpo virado para a direita, e o tronco e a cabeça em completa
torção para a esquerda, vestido com uma camisa de mangas arregaçadas, cujas pregas se
movem em função da torção corporal, enquanto que a cabeça é coberta por elmo
cónico e pontiagudo. Levanta com uma das mãos um escudo, com vestígios de
decoração em baixo-relevo e, com a outra, uma lança, captando-se o momento exacto
em que vai desferir a lançada.

Figura antropomórfica da
parte superior da arca
tumular de D. Fernando I
(lado direito).

Foto: José Pessoa/DDF/IMP

Esta figura revela-se tão surpreendente no naturalismo e na caracterização de


movimento que, dificilmente, lhe conseguimos ser-lhe indiferentes.
No lado esquerdo da arca, também no registo superior, outras duas imagens de
guerreiros híbridos envolvem-se num estranha luta, entre si, ou com algum inimigo
imaginário.
Uma delas apresenta o corpo coberto por vasta camada de pelos, tem dorso e
patas de cavalo, mas os membros superiores e a cabeça são humanos. Das costas saem
duas grandes asas, abertas e repletas de penas. O rosto é muito bem definido, apresen-

642
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

tando barba anelada, e


cobrindo a cabeça com gorro
cónico. Um dos braços está
erguido e esticado
horizontalmente, mostrando-
se no preciso momento em
que vai arremessar o que
Figura antropomórfica do registo superior da arca tumular parece ser uma pedra,
de D. Fernando I (lado esquerdo). Foto: José Pessoa/DDF/IMP
enquanto segura, com a outra
mão, o escudo decorado com
uma cabeça de leão com que
protege o rosto e parte do
corpo.
A tipologia decorativa deste escudo, bem como do
que é usado pela figura anteriormente descrita, encontra
paralelos muito próximos em iluminuras
contemporâneas desta obra, como pode ser exemplo,
entre outros, um dos fólios iluminados das Grandes
Chroniques de Charles V. Saliente-se, porém, que outras
figuras híbridas esculpidas em obras anteriores ao
túmulo de D. Fernando, possuem idêntico escudo,
Grandes Chroniques de Charles V. como veremos nas Notas Complementares deste estudo.
BNF, FR 2813, fol. 4.

A segunda figura deste


registo não deixa de
apresentar semelhanças com
a que acabámos de descrever:
tem um corpo escamado de
insecto, patas de ave, cauda
de cavalo, asas de pássaro,
cabeça e braços humanos.
Figura antropomórfica do registo superior da arca tumular Novamente, com rosto
de D. Fernando I (lado esquerdo). Foto: José Pessoa/DDF/IMP
barbado e ostentando barrete

643
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

cónico, vira a cabeça no sentido contrário ao do corpo. Ergue ameaçadoramente o


braço com que segura a espada, enquanto o outro segura e agita um lenço, como se
com ele se quisesse defender, quiçá da pedra que a outra figura pretende lançar.
Todas, de um modo geral, se assemelham às imagens dos milenares centauros,
mas com uma hibridez acentuada. O mesmo já havia sido conseguido nas figuras que
compõem as jambas dos Portal dos Livreiros da Catedral de Rouen, que, como defende
Baltrusaitis, vêm complicar ainda mais um tema típico dos bestiários do século XII46.
Mantêm, no entanto, a fisionomia dos centauros, bem como a típica atitude activa e
violenta masculina, que faz destes seres míticos o contraponto das Sereias (passivas,
sedutoras, femininas). Eles são, na arte gótica, como haviam sido na arte românica,
símbolo da brutalidade desenfreada e da sensualidade intempestiva47. Enfim, símbolos
do vício e do pecado, imagens de convite à reflexão sobre estes temas.
Outras figuras, igualmente curiosas e monstruosas, povoam os espaços livres da
tampa sepulcral, mas sem atingirem o volume das que temos vindo a descrever. Estas,
revelam uma perfeita inspiração nos modelos que encontramos em numerosas
iluminuras de manuscritos góticos.

Duas figuras híbridas da tampa da arca


tumular.
Foto: CVF.

Como já havíamos notado no nosso primeiro estudo sobre este túmulo, para
além dos aspectos plásticos comuns e da atitude agressiva destas últimas figuras,
importa salientar um elemento que também é comum a quase todas as que são
parcialmente humanas: cobrem as cabeças com chapéus ou gorros, que podem ser

46Cf. BALTRUSAITIS, Réveils et Prodiges, Paris, Flamarion, 1988, p. 163.


47 Cf. Manuel GUERRA, Simbologia Romanica. El Cristianismo y otras Religiones en el Arte
Românico, Madrid, Fundacón Universitaria Española, 1993, pp. 271-273.

644
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

identificados com os que eram comummente usados pelos judeus medievais – o pilleus
cornutus (chapéu bicudo ou redondo com extremidade bicuda), ou turbantes e chapéus
de pala levantada e extremidade pontiaguda48. Este elemento poderia ser meramente
ocasional e destituído de importância, não fosse o facto do pretenso alquimista
apresentar, também, o que sugere ser o pilleus cornutus. Embora chapéus como estes
apareçam a cobrir as cabeças de alquimistas e físicos em iluminuras medievais, sem que
se possa afirmar tratarem-se sempre de judeus, o facto de ser a única peça de vestuário
que a figura ostenta não deixa de ser significativo49.

Alquimista preso
na sua “câmara
secreta”.

Registo superior da
arca tumular de D.
Fernando I (lado
esquerdo)

Foto:
José
Pessoa/DDF/IPM
(antes da limpeza e
restauro do túmulo)

48 Idênticos aos chapéus que podemos ver em representações de judeus figurados em

muitas iluminuras dos séculos XIV e XV, como são exemplos os que ilustram um interessante
fresco da igreja de Thröl (Arnoldstein, Carintia); numa Bíblia iluminada (Paris -1240, fl. 124); numa
Crucificação iluminada da Biblia Pauperum (c. 1358), Viena, cod. 370, fl. 20, ou na cabeça da figura de
S. José, em relevo esculpido no altar-mor do mosteiro beneditino de Cismar (c. 1310-1320). Para
visualização destes e de outros exemplos veja-se, Heinz SCHREDCKENBERG, The Jews in
Christian Arte. An Illustrated History, Continuun/New York, 1996, pp. 64, 73, 137. Sobre a
iconografia dos judeus em Portugal veja-se o recente estudo de Luís Urbano AFONSO, “The
cultural construction of the Jews in late medieval Portugal: Contributions to a reevaluation”,
Mitteilungen der Carl Justi Vereinigung, vol. 13, 2001, pp. 22-46.
49 A realização do IV Concílio de Latrão (com início a 11 de Novembro de 1215), durante

o pontificado de Inocêncio III, visou questões relacionadas com as minorias religiosas, judeus e
muçulmanos, saldando-se em claro prejuízo para os primeiros, que se viram, consequentemente,
ainda mais discriminados, no mundo europeu tardo-medieval. Das disposições dedicadas aos judeus
saíram leis como as da proibição de saírem das suas casas durante os dias da Semana Santa, a
obrigação de usar roupas especiais que os distinguissem dos cristãos, ou a proibição de ocupar
cargos públicos (leis 67-70).

645
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A cena do alquimista, observada por outros autores como um dos mais antigos
quadros representativos desta “ciência obscura”50 e geradora de interesses vários, de
aliciantes e condenações, revela-se, nesta obra, com uma tal riqueza de detalhes que a
sua importância para a compreensão do conteúdo iconográfico do túmulo só pode ser
relevante.
O alquimista parece estar nu, sentado numa bela cadeira com espaldar, e segura
com uma das mãos o Ovo ou Vaso dos Filósofos, (símbolo da Pedra Filosofal) enquanto o
observa. Está preso, pelo pescoço, por uma corda que se liga a um pesado cepo,
segurando-a com a outra mão, e chamando, assim, a nossa atenção para esse facto.
Atrás de si, prateleiras com vasos, frascos, uma ampulheta e um almofariz, materializam
o cenário de um laboratório de alquimia, um retrato das enigmáticas “câmaras secretas”.

Pormenor do alquimista.

Foto: CVF (depois da limpeza e restauro do túmulo)

Entre a alquimia metalúrgica e a alquimia do elixir ou alquimia da vida eterna, a sua


existência foi uma realidade incontestável que suscitou os interesses mais díspares. Reis
e papas tinham alquimistas nas suas cortes, e o universo das ordens religiosas e dos
grandes teólogos também não lhes foi alheio. As ordens religiosas, em especial os

50 Veja-se Manuel J. GANDRA, “Filosofia Hermética”, As Tentações de Bosch ou o Eterno


Retorno, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga/ Lisboa Capital Europeia da Cultura, 1994, pp.
130-131. Porém, já em 1875, Joaquim Possidónio da SILVA, “Crónica”, op. cit., 1875, p.96, chamara
a atenção para esta cena e para o seu eventual significado: “Nos intervallos que ha entre os escudos
e os circulos dentro dos quaes occupam o espaço, foram esculpidas figuras grotestas de singular
composição, notando-se um alchimista sentado em uma poltrona mirando um frasco, porém está

646
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Mendicantes, contam-se entre os grupos que mais interesse manifestaram pela alquimia,
tentando percebê-la e explorá-la, mesmo quando o objectivo era a sua condenação.
Esta surpreendente e inédita cena insere-se, certamente, no âmbito dos muitos
debates em torno da alquimia (quaestio de alchimia), presentes no mundo latino medieval
durante os séculos XIII e XIV, e em que participaram teólogos e pensadores de
nomeada, como Alberto Magno, Tomás de Aquino, São Boaventura, Roger Bacon, ou
Egidio Romano51.
A alquimia era entendida como “arte-filosófica”52, enquadrando as suas operações
em reflexões científico- religiosas, a par da prática experimental, diferente, por isso, dos
conceitos filosófico-naturalistas e medicinais de orientação aristotélica e de teor
eminentemente doutrinário.
O seu objectivo máximo era o aperfeiçoamento da matéria criada, um projecto
com evidentes conotações religiosas, o que conduziu os praticantes a auto dominarem-
se co-criadores, ou colaboradores de Deus, no seu projecto de restabelecer a perfeição
dos corpos.
Criticados e acusados de insistir em “missões impossíveis” – imitar a natureza
enquanto criação divina – foram vistos como burlões e perigosos falsários. As ordens
religiosas condenaram-na e o papa João XXII proibiu o estudo e a prática da alquimia
em 1317, através da emissão da Bula Spondent quas non exhibent, não surtindo, porém, os
efeitos esperados. Em pleno séc. XIV, o inquisidor Nicolás Eymeric, acusa-os de
falsários e de pactuarem com o demónio, ao mesmo tempo que juristas consideram
legítima a arte transmutatória, sempre que se pratique sob o controlo do príncipe.
Desta forma, ao longo do séc. XIV, assiste-se ao declínio da alquimia
metalúrgica e a continuidade do interesse pela alquimia vocacionada para a busca da
vida eterna, a partir das perspectivas abertas por Roger Bacon (Secretum secretorum). Os
franciscanos, em especial os Espirituais, no seu programa de profunda renovatio religiosa,

prezo a uma corrente que do pescoço termina a um cêpo que se vê aos seus pés, afim de que os
seus malefícios não possam ser nocivos aos homens”.
51 Veja-se Gilbert DAHAN, Les Intellectuels Chrétiens et les Juifs au Moyen Âge, Paris Editions

du Cerf, 1990.
52 Sobre a alquimia no mundo latino medieval veja-se, entre outros estudos, o artigo de

Chiara CRISCIANI, “La ciencia oculta”, El Mundo Medieval, nº 4, Barcelona, 2001, pp. 33-39 e ainda
C. CRISCIANI e A. Paravicini BAGLIANI, ed., Alchimia e medicina nel medioevo, 2003.

647
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

encontram lugar proeminente na lista dos interessados pela alquimia, em especial pela
sua vertente terapêutica53.
Aceites por uns e com profunda suspeição por outros, o seu mundo
movimenta-se entre a aceitação e a condenação. Ora, o alquimista presente neste
túmulo não é um homem livre, a praticar tranquilamente a sua arte entre quatro
paredes. Está preso, o que logo induz a uma situação condenatória. Acresce ainda o
facto de se tratar, provavelmente, de um judeu. Tanto os alquimistas, enquanto grupo
profissional, como os judeus, enquanto grupo social, são vistos com suspeição neste
conturbado séc. XIV, e acarretam consigo ideias sobre um mundo hermético, um
mundo fechado e secreto, tradutor de incompreensão e de intolerância.
Como já referimos, os reis medievais também tinham alquimistas nas suas
cortes, aqueles cuja actividade estava sob “o controle do príncipe”, da mesma forma
que alguns judeus possuíam cargos importantes nas cortes, quer como físicos, quer em
cargos administrativos, como provam os estudos sobre as cortes portuguesas54. Mas
estes são excepções. Todos os restantes, faziam parte de grupos pretensamente
controlados pelo rei (os seus judeus), mas não ilibados de desconfianças e de
sentimentos hostis por parte da população maioritariamente cristã.
Parece-nos clara a intenção de satirizar os “outros”, os “impuros”, aqueles que,
enquanto minorias “suportáveis” dentro do quadro social, nunca serão totalmente
aceites. A sátira não se justifica apenas com a cena do alquimista (judeu?) aprisionado à
sua própria obsessão pela transmutação e simbolizando a condenação de uma ciência
obscura e símbolo das “más ciências”, capazes de causar danos, mas também na
presença dos monstros, mutações de humanos em demónios e outras criaturas
infernais, de caras grotescas e, algumas, com chapéus de judeus55.

53 Chiara CRISCIANI, “La ciencia oculta”, op. cit., 2001, pp. 38-39. Não deixa de ser

relevante o facto desta cena ter sido representada numa obra realizada em Santarém e para figurar
num convento desta cidade. Como já havia notado Manuel J. GANDRA, “Subsídio para o
inventário das coordenadas mítico-herméticas subjacentes à hagiografia de S. Frei Gil de Santarém”,
S. Frei Gil de Santarém e a sua Época, catálogo de exposição, Santarém, Câmara Municipal de
Santarém, 1997, p. 67, esta cena poderá estar relacionada com a pervivência de uma tradição
hermético–alquimica em Santarém, cujos ecos remontam, pelo menos, à instalação de S. Frei Gil de
Santarém no convento dominicano desta urbe.
54 Veja-se a respeito da presença de judeus nas cortes portuguesas medievais o clássico

estudo de Maria José FERRO, Os Judeus em Portugal no Século XIV, Lisboa, Guimarães Editores,
1979.
55 As caricaturas anti-semíticas ganham expressão nos séculos XIII e XIV através de

imagens compósitas e burlescas, com caras pautadas por uma fealdade propositada, onde não

648
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Talvez se procure associar, assim, os comportamentos deste grupo étnico-


religioso a tais caricaturas, já que aos judeus, em determinados momentos, não lhes foi
reconhecida a condição de seres humanos, mas sim de bestas, “mais cruéis que lobos”,
“mais raivosos que hienas”, “diabos do inferno”, como refere J. Delumeau acerca da
visão sobre os judeus na Baixa Idade Média56. Estão, pois, conotados com o ser
irrationalis et bestialis, e não com rationalis et humanus, situação agravada com o clima
provocado pelo Grande Cisma, como defende Manuel Núñez57. “A obsessão opressora
do Anticristo e o medo do fim do mundo associavam o judeu com o terror
escatológico que impele o “povo de Deus” a partir da segunda metade do século XIV,
o que aumentava a aversão para com o “irmão mais velho”, contra o que fora
primeiramente eleito para ser em seguida execrado, como fora Caím, o condenado a
uma vida nómada”58.
Desta forma, as figuras que se encontram fora dos medalhões, seres híbridos de
uma marginália sobre o “marginal”, podem ser entendidos, em nossa opinião, como uma
iconografia de alteridade, ilustrações de uma sátira de degradação moral, um alerta para
a presença do monstro entre nós. O monstro, ou monstros, praticantes das “más
ciências”, heréticos, difusores dos vícios e das pragas, bem como os híbridos,
representados aqui através de muitos monstros, eles serão, com as suas manhas, o
“outro” causador de todos os males – o repudiado e canalizador de todos os ódios,
contra os quais é preciso estar em constante alerta.
Os monstros, como reflexo dos medos ante o desconhecido, ou como ameaças
invisíveis mas presentes na sociedade organizada, contam com longa tradição no
universo social medieval. Como bem definiu Luís Krus, “Os monstros são um convite
à reflexão sobre a ordem divina. Nos mapas medievais têm a categoria de marginais
geográficos. Povoam o mundo exterior à cristandade: os confins da Ásia e da África, o

faltam os narizes arqueados e chapéus característicos dos israelitas, como podemos ver em códices
iluminados, esculturas em pedra e madeira (especialmente nas misericórdias dos cadeirais).
56 Expressões retiradas do Mistério da Paixão de Arnaoul Gréban (antes de 1452), citadas na

obra de Jean DELUMEAU, História do Medo no Ocidente, 1300-1800, São Paulo, Companhia das
Letras, [reed.], 1989, p. 284.
57 Veja-se o estudo de Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Iconografia de uma

marginalidade: o repúdio do «Outro»”, Signum. Revista da Abrem, Associação Brasileira de Estudos


Medievais, nº 2, 2000, pp. 43-78. Também J. DELUMEAU, op. cit., ed. 1989, pp. 283-286, havia
estabelecido a ligação entre o endurecimento doutrinal anti-judeu com a longa crise da Igreja no
séc. XIV, chamando a atenção para a posição mais “encarniçada” das ordens mendicantes como
agentes de propaganda anti-semita.
58 Manuel NÚÑEZ RODRÍGUEZ, “Iconografia de uma marginalidade…”, op. cit., 2000,

p. 53.

649
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

quarto continente desconhecido, os Antípodas. Estão como os povos situados para


além do antigo Limes do universo romano. E como eles são perigosos, porque podem
invadir o espaço cristianizado. Preenchem durante a alta Idade Média o imaginário de
um Ocidente sitiado e frequentemente invadido”59.
A compreensão dos monstros na Baixa Idade Média não se revela
particularmente diferente da que a que caracterizou os tempos altimedievais.
Continuam a povoar a “marginalidade” das representações, especialmente detectáveis
quando os vimos a ocupar os limites espaciais dos fólios iluminados, ou a preencher
espaços sobejantes de composições escultóricas. Eles permanecem como elementos
que incitam à reflexão sobre a ordem divina, pela ameaça que representam à sociedade
humana organizada e tutelada por Deus e pelos seus ministros, bem como pelos
senhores do poder temporal. Ainda que ocultos e praticamente incontroláveis,
escondidos na obscuridade de um mundo de trevas (tal como o alquimista se “esconde”
na sua câmara secreta…), o homem medieval sabe que eles (os vícios) estão presentes,
prontos ao incitamento para caminhos desviantes, ou à obsessão pelos ideais
materialistas e megalómanos, como o de transformar simples metais em ouro,
procurando alterar a ordem divina.
Eles são, em si mesmo, a imagem do próprio pecado e, representá-los, mais não
é que a esconjuração do medo. É preciso estar atento, é preciso ter consciência da sua
existência, é preciso, ainda, enfrentá-los e combatê-los, não criando espaço e
oportunidades para a sua manifestação, isto é, não fugindo do bom caminho das
virtudes cristãs, não cair na tentação do pecado, mesmo que este se revele nas suas
formas mais maravilhosas e enganadoras.
Neste sentido, a presença do alquimista acorrentado, tem o seu sentido, não
obstante o carácter inédito, bem como a vasta panóplia de monstruosidades
perturbadoras que se espraiam um pouco por todos os espaços exteriores às molduras,
pois as suas figuras assustadoras e o medo provocado pelo desconhecido, enfim, pelos
que não compreendemos (o “outro”), incitam à reflexão e à admiração dos bons
exemplos.
Nessa prática de alerta, controlo e combate, estão os reis cristãos, polarizadores
e garantes da manutenção da ortodoxia religiosa nos seus reinos, enquanto dignos

59Cf. Luís KRUS, “O tempo, a natureza e a sociedade”, Os Descobrimentos Portugueses e a


Europa do Renascimento. “A Voz da Terra Ansiando Pelo Mar”. Antecedentes dos Descobrimentos, XVII

650
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

representantes de Deus sobre a terra, através da exemplaridade das suas virtudes,


através, enfim, das suas continuadas manifestações de fé. As prerrogativas da pessoa do
rei implicavam a manutenção da paz e da justiça e a arbitragem de conflitos sociais,
impondo-se decisivamente à desordem60, mas, também, princípios de autoridade
religiosa-teológica, funcionando com “espelhos” do divino.
D. Fernando, ao mandar representar cenas da Vida e Milagres de S. Francisco de
Assis na testeira do seu túmulo (como veremos mais adiante) e, ainda, ao sepultar-se
vestido com o hábito franciscano, demonstra bem qual a imagem que lhe serviu de
ideal. O rei expressa, assim, a vontade de ficar conotado com a imagem de rei muito
cristão (le roi très chrétien), conceito especialmente aplicado ao rei francês Luís IX (1245), e
compreendido desde então como pauta modelar para os príncipes cristãos.
Assim, a iconografia das faces laterais, e da face menor correspondente aos
pés da arca funerária, pretende, não apenas afirmar as linhagens de que descende o
rei, mas, também, exprimir conceitos político-teológicos da monarquia medieval e
valorizar o papel do rei, que deve o poder a Cristo e com ele partilha uma missão
divina. A iconografia da cabeceira do túmulo, entendemos, exprime a devoção
pessoal de D. Fernando I para com São Francisco de Assis, em cuja Ordem o rei
havia professado como irmão terceiro, tornando-se forma de demonstrar que a
imitação de Cristo é, também, um dos principais papéis que cabe aos monarcas, na
busca de uma identificação com Christus Rex, proclamada e procurada desde sempre
pelas monarquias cristãs e que conheceu exemplos tão excepcionais como São Luís
de França.
Dada a complexidade das mensagens simbólicas deste túmulo, não tanto as que
se prendem com a iconografia que explora as cenas da Vida e Milagres de São Francisco de
Assis, mas as cenas que preenchem as restantes faces do sarcófago, mais crípticas na sua
leitura, acreditamos que o ideólogo ou ideólogos desta obra, tenham sido religiosos,
provavelmente do clero regular e, com maior probabilidade ainda, franciscanos, cuja
proximidade ao rei era maior, talvez mesmo um dos seus confessores.
É difícil que aceitemos tratar-se de uma obra cuja definição do programa
iconográfico seja fruto da imaginação e criatividade do rei, mesmo que este o definisse
em linhas gerais. Ainda que fosse conhecedor das directrizes bíblicas e do pensamento

Exposição de Arte Ciência e Cultura, Lisboa, 1983, p. 249.


60 Veja-se José MATTOSO, op. cit., 5ªed., vol. I, 1995, p. 78.

651
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

religioso e estivesse a par das tendências da moral do seu tempo e, inclusive, do que
então se defendia nos Espelhos dos Príncipes, a estruturação interna da obra e as
ligações que se estabelecem entre as muitas personagens apontam, muito claramente,
para a mente de um clérigo de elevado nível cultural.
Nos estudos de História da Arte medieval, mesmo quando se identifica
documentalmente o encomendador e o artífice, no caso de uma encomenda laica,
encontramos, quase sempre, dificuldade em identificar a quem se deve a formulação
dos programas iconográficos. Se este problema não se coloca em obras cujo tema, ou
temas, pertencem ao universo do temário mais comum da arte cristã (Anunciação,
Calvário, etc.), podendo-se atribuir a composição ao próprio artista, que, segundo o seu
nível de conhecimentos e perícia técnica, o reproduzia com maiores ou menores
alterações, quando se tratam de obras de maior complexidade, porém, esta situação não
se afigura tão linear.
Em Portugal, entre o escassíssimo universo documental para a escultura
funerária do século XIV, o contrato firmado entre o Arcebispo de Braga D. Gonçalo
Pereira e os mestres escultores Pero e Telo Garcia (11 de Junho de 1334), permite
perceber a participação do encomendador na produção do seu monumento funerário:
…um moimento e sua coberta, que devem lavrar, aperfazer e afigurar, assi de figuras como de signais,
por aquela guisa que o Arcebispo mandar…61 Neste caso, sendo Gonçalo Pereira um
arcebispo, quem melhor do que ele próprio para definir o programa iconográfico do
seu moimento?
Também Luís Afonso veio recentemente demonstrar, de forma cabal, que a
concepção do programa iconográfico dos túmulos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro
também teve por base ideológica as directrizes dadas pelos monges de Alcobaça, e que,
inclusive, estes terão posto à disposição dos artífices algumas obras e respectiva
iconografia existente no scriptorium dessa abadia62.
Estes dois raros, mas muito importantes exemplos, demonstram bem como a
arte funerária produzida para grandes personalidades, na sua qualidade de “arte da
memória”, compreendia programas iconográficos definidos por personalidades com
profundos conhecimentos exegéticos, bem como conhecimentos sobre as correntes e

61 Cf. Alberto FEIO, “Dois Sepulcros Medievais e seus Artistas”, Biblos, vol. I, Coimbra,

1925, separata.
62 Cf. Luís Urbano AFONSO, op. cit., 2003, pp. 76-90.

652
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

tendências religiosas mais actuais, ainda que os pudessem formular em conjunto com o
encomendador.
Vários autores têm vindo a demonstrar como o papel exercido pelos
confessores dos monarcas se revelou de extrema importância ao longo de toda a Idade
Média e, como “durante século XIV, os franciscanos parecem ter monopolizado, de
facto, esta função”63. Franciscanos eram os confessores de D. Afonso IV, D. Pedro I e
D. Fernando I. Este último rei contou com Fr. Fernando de Astorga e Fr. Vasco
Pereira, como seus confessores e, ainda, Fr. Martinho (1369-1381)64.
Podemos colocar a hipótese de Fr. Martinho, ou de outro franciscano com forte
influência junto do rei entre os anos de 1381 e 1383, poder ter sido o ideólogo deste
monumento funerário, ainda que admitamos a insuficiência dos nossos conhecimentos
relativamente à sua formação, percurso intelectual e pensamento.
No caso do túmulo de D. Fernando I, julgamos poder afirmar que se conjuga a
relação entre um iconólogo que muito bem soube delinear as estratégias para a
afirmação de uma boa memória do rei, e um escultor (ou escultores), dotado não
apenas de grande perícia técnica na arte de lavrar o brando calcário de Santarém, mas
também munido de um rico caderno de desenhos, onde dominam influências da arte
produzida noutros países, trazendo impressionantes novidades a uma obra portuguesa.
Talvez o relevo social do ideólogo desta obra, bem como a excelência do artífice
contratado, possam justificar a representação de ambos na tampa do túmulo, à esquerda
e à direita do encomendador, D. Fernando I. Entre tantos elementos e temas inéditos
que aqui se encontram, este seria apenas mais um, justificando-se, provavelmente, pela
participação do próprio rei na elaboração da iconografia da sua memória tumular que,
em tudo, revela modernidade e arrojo.
Neste túmulo D. Fernando coloca em evidência o entendimento das duas
esferas (ou espadas) do poder: o espiritual e o temporal, sendo o primeiro tutelado por
Cristo e o segundo por ele próprio. Inserida numa concepção organicista do poder e da
sociedade, esta estruturação dos temas aqui presentes resume bem o que temos vindo a
desenvolver relativamente aos fundamentos ideológicos das iconografias do poder real
e à própria ideia que D. Fernando tinha da sua função. Na proximidade da morte, deixa
testemunho de quem são os verdadeiros poderes e qual a sua relação hierárquica, indo

63 Rita Costa GOMES, A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média, Lisboa, Difel,
1995, p. 119.

653
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

de encontro ao que também deixou expresso no texto do seu testamento de 1378: (…)
considerando Nos dito Rey como nenhũa cousa é mays certa que a morte e nenhũa mays dovydosa que a
ora em que há de vynr e temendo o Juízo muy espantoso daquel alto Rey celestial e princepe e senhor de
todolos Reis en que há de vinr Julgar todolos que no mundo criou (…)65.
Revela também, e muito, o cuidado posto na propaganda de si próprio e das
linhagens de que descende. Não se trata, pois, de uma memória voltada para o passado,
ou seja, não pretende mostrar à sociedade do seu tempo que com ele se encerra uma
dinastia. Pelo contrário, a afirmação muito clara da sua legitimidade, através da presença
impositiva da heráldica de D. Constança Manuel, é apenas forma de sublinhar o que já
havia expresso por escrito quanto à bastardia dos filhos de Inês de Castro, enfatizando,
assim, o direito legítimo da sua filha D. Beatriz para assumir o trono de Portugal. É
pois, uma verdadeira obra de propaganda régia.

64 Cf. IDEM, ibidem, pp. 117-119.


65 Apud Salvador Dias ARNAUT, A Crise Nacional dos Fins do Século XIV. A Sucessão de D.
Fernando, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1960, p. 291.

654
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

5. ESTRATÉGIAS PARA O ALÉM: OS TEMAS ICONOGRÁFICOS COMO ARGUMENTAÇÃO DE


DEFESA PARA UMA “NOVA VIDA”

5.1 Cristo. Da Maiestas Domini ao Cristo sofredor


As representações de Cristo, esculpidas nas faces dos sarcófagos de algumas das
personagens de que aqui nos ocupamos, obedecem a critérios de valor e evoluem
segundo o próprio desenvolvimento do sentimento religioso, entre os séculos XII a
XIV. Critério de valor, na medida em que esta é a principal iconografia da arte cristã e,
logo, aquela que melhor serve os interesses de quem a faz representar, adequando o
discurso e a forma, em alguns casos, a mensagens subliminares. Por outro lado, a
diferenciação que se verifica nas iconografias relativas a Cristo é, tendencialmente, a
expressão da evolução artística que se baliza entre a arte do Românico, até meados do
século XIII, e a afirmação da estética gótica, acompanhando o desenvolvimento e as
mutações da religiosidade e da piedade nestes tempos, especialmente proporcionadas
pelo advento e a implantação das Ordens Mendicantes.
Assim, em dois dos primeiros monumentos funerários pertencentes a elementos
da família real portuguesa, ambos do século XIII, a iconografia de Cristo em Majestade
(Cristo Pantocrator), ladeado pelos símbolos dos Evangelistas e pelos Apóstolos, ocupa as
faces longas dos respectivos sarcófagos; já no século XIV, embora o tema tenha
continuidade, a sua apresentação responde a diferentes formulários, desaparecendo a
rigidez e severidade do Pantocrator, para ganhar nova e visível humanidade. Assiste-se,
igualmente, à profusão de outro tema amplamente expressivo dos novos valores
espirituais: o Calvário1. Por sua vez, o ineditismo que caracteriza o aparecimento de uma
cena do Juízo Final num dos túmulos trecentistas portugueses, tema essencialmente
românico, não significa a adopção de uma estética anacrónica na representação de Cristo
e das restantes personagens envolvidas na cena, mas a sua caracterização conforme aos
canônes representativos góticos.

1 Na tumulária portuguesa, o tema do Calvário só tem representatividade no século XIV,

situação distinta do que caracteriza a iconografia funerária espanhola, onde vários são os
monumentos funerários do século XIII em que podemos encontrar este tema. Veja-se, entre outras
obras sobre a escultura gótica de âmbito funerário em Espanha, Ángela FRANCO MATA, op. cit.,
1998, pp. 394-531 e Rocio SÁNCHEZ AMEIJEIRAS, Investigaciones Iconográficas sobre la Escultura
Funeraria del Siglo XIII en Castilla y León, Tese de Doutoramento, publicada em microfichas pelo
Servicio de Publicaciones de la Universidad de Santiago de Compostela, 1994.

655
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Para melhor compreendermos as opções dos encomendadores, bem como a


evolução da iconografia de Cristo nos túmulos da família real portuguesa da primeira
dinastia, importa que os analisemos, caso a caso, e nas relações que se podem
estabelecer entre si, bem como com outras obras, nacionais e internacionais.
Não constituindo um tema exclusivo da tumulária realizada para membros da
família real, a presença de representações de Cristo antecede os sarcófagos portugueses
do século XIII, encontrando-se, pelo menos, numa importante obra do século XI. José
Mattoso havia já sublinhado que os monges do século XI insistiram no paralelismo
entre a liturgia eclesiástica e a liturgia celeste, e atribuíram um papel fundamental ao
Tetramorfo que rodeia a visão de Cristo em majestade. “A sua identificação com os
quatro evangelistas significa que o Cristo redentor não se isola no Céu, pelo contrário,
comunica com os homens por meio da Palavra. A este movimento, por assim dizer
descendente, do texto bíblico, do Céu para a Terra, corresponde o movimento
ascendente da Liturgia, da Terra para o Céu. Por isso, são extremamente significativas as
representações iconográficas que põem estes dois planos em paralelo”2. O autor aponta
a existência, em Portugal, de uma obra que é bem o testemunho do entendimento destes
conceitos: o túmulo de São Martinho de Dume da Sé de Braga3. Não voltaremos a
encontrar um paralelismo tão claro entre estas duas ideias em qualquer sarcófago
medieval que nos tenha chegado4.
Em dois túmulos do século XIII, pertencentes à família real portuguesa e
constituindo os dois mais antigos monumentos funerários portugueses com jacentes (de
D. Urraca – c. 1220-1223 e de D. Rodrigo Sanches c. 1245), encontramos o tema do

2 José MATTOSO, “O culto dos mortos no fim do século XI”, O reino dos Mortos na Idade

Média peninsular, dir. José Mattoso, Lisboa, Sá da Costa, 1995, p. 85.


3 “Na face virada para os fiéis está representada a Liturgia terrestre, tendo ao centro um

oficiante de mãos erguidas e paramentado, com todos os participantes que o acompanham de


ambos os lados, à esquerda e à direita. Na tampa do túmulo, vê-se Cristo em majestade no centro de
um círculo sustentado por dois anjos e ladeado dos quatro evangelistas com corpo de homem e
cabeça de animal, tal como no Apocalipse. É evidente o propósito de acentuar o paralelismo das
duas cenas”. José MATTOSO, “O culto dos mortos...”, ibidem, p. 85. Sobre este túmulo veja-se,
ainda, Mário Jorge BARROCA, “10. Sarcófago de S. Martinho de Dume”, Nos Confins da Idade
Média, Arte Portuguesa Séculos XII-XV, Cat. de Exposição (Europália 1992), Lisboa, Instituto
Português de Museus, 1992, pp. 101-102 e IDEM, “Cenas de passamento e de lamentação na
Escultura Funerária Medieval Portuguesa”, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, IIª
Série, vol. XIV, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1997, pp. 566-567 (com
bibliografia anterior).
4 Este túmulo é ainda alvo de acesas discussões, mas parece ter sido obra única, uma vez

que não existe outro exemplo semelhante. Aguardamos o resultado de actuais e futuras
investigações de outros autores.

656
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Cristo em Majestade, envolvido pela mandorla mística (signo da sua glória de


Ressuscitado), e ladeado pelos quatro animais, símbolos dos quatro Evangelista,
conforme à descrição do livro do Apocalipse (Apoc., 4:47). Não existe, todavia, nas duas
referidas obras, quaisquer referências à liturgia, ou seja, nada se refere ao tema
eucarístico, tema este que estará presente em monumentos funerários de reis e rainhas
portugueses, cerca de um século depois, mas noutro contexto muito distinto e também
sem a relação com o Cristo do Apocalipse.
Assim, no túmulo de D. Urraca e também no de D. Rodrigo Sanches, Cristo
acompanhado pelos símbolos dos Evangelistas ocupa, ou a posição central ou, então, o
lugar hierarquicamente mais importante na distribuição dos temas nas arcas tumulares (a
cabeceira), e encontra-se, assim, entre os Apóstolos, ou no seu alinhamento.
Entendemos, pois, que a mensagem que aqui se transmite não difere
substancialmente da que José Mattoso interpretou relativamente ao sarcófago de S.
Martinho de Dume: Cristo também não se isola no Céu e a sua Palavra chega aos
homens, não apenas através dos Evangelhos, mas através dos Apóstolos que a fazem
chegar também aos pecadores, infiéis e pagãos, dos quatro cantos do mundo.
Esta é a mensagem que se transmite na grande maioria dos tímpanos dos portais
românicos da Cristandade, conhecendo exemplos tão notáveis e desenvolvidos
iconograficamente, como o da Igreja da Madalena de Vezelay (c. 1140 - Borgonha,
França), até versões mais singelas, como as que encontramos em alguns tímpanos de
igrejas românicas portuguesas (S. Pedro de Rates, Sepins, Ansiães e Bravães), mas
também noutros países. A vastidão de exemplos europeus leva-nos a não fazer qualquer
enumeração, mais ou menos exaustiva, pelo que citamos somente alguns casos e a eles
juntamos exemplos de túmulos e de frontais de altares.
Nestes túmulos portugueses do século XIII, o que nos é dado a ver é uma
versão mais simplificada do tema, onde muitas personagens são suprimidas, cingindo-se
ao essencial: Cristo não possui a face grave e de certo modo ameaçadora que vemos em
cenas do Juízo Final de outras composições românicas, de que o exemplo mais
expressivo é o do portal da igreja francesa de S. Lázaro de Autun (c. 1146), mas sim,
uma figura que reflecte a serenidade absoluta, símbolo da ordem que reina no mundo
celeste. Deve ser interpretado, em nossa opinião, como a Aparição de Cristo Ressuscitado
aos Apóstolos, os quais recebem do Senhor a missão de evangelizar o mundo. Ou seja,

657
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

trata-se de uma transcrição para a pedra da vocação universal da Igreja, simbolizada na


vocação dos Apóstolos enviados por Cristo para levar a Sua palavra aos homens.
Na obra de Vezelay, os gestos rituais dos Apóstolos, bem como a presença de
filactérias e da total uniformização das fisionomias, pouco expressivas mas não
totalmente austeras, indicam que esta obra de arte românica participa já do humanismo
incipiente de um período de transição e de evolução estética, em que o Proto-Gótico
dava, então, os seus primeiros e bons frutos nas construções parisienses e em Chartres.
Mais perto, encontramos duas obras de elevada qualidade plástica com o tema de
Cristo Pantocrator sobre um friso com os Apóstolos (divididos por arcarias torreadas) nos
tímpanos dos portais românicos da igreja de Carrión de los Condes e da igreja de S.
Pedro de Moarves, ambos na região palentina, e datados do último quartel do século
XII5. Duas obras de referência da arte românica peninsular, de uma estética muito mais
evoluída e grandiloquente que a que encontramos nos túmulos portugueses, mas que,
por isso mesmo, não podem deixar de ter servido de exemplo mnemónico para muitos
artistas, quer conseguissem, quer não, reproduzi-los com perícias técnica, nos diferentes
tipos de obras (tímpanos, altares, túmulos, etc...) que tiveram em mãos.
O tema é essencialmente românico e sintetiza, como já vimos, os programas
iconográficos de um imenso número de tímpanos de portais do século XII. Estas
composições encontram paralelismos na tumulária coeva de outros países,
nomeadamente em Espanha, de que se pode citar o túmulo da rainha D. Branca de
Navarra (mulher de Sancho II, o Desejado e mãe de Afonso VIII de Castela), falecida em
1156 e sepultada na igreja de Santa Maria la Real de Nágera (La Rioja). Cristo Pantocrator,
ladeado pelos símbolos dos Evangelistas e pelos Apóstolos é o tema que ocupa uma das
faces da tampa sepulcral deste magnífico túmulo do terceiro quartel do século XII.
Também o túmulo de San Juan de Ortega, na igreja com o mesmo nome (Burgos), do
último terço do século XII, contém na face longa da arca sepulcral, ao centro, Cristo em
Majestade ladeado pelo Tetramorfo e acompanhado pelos Doze Apóstolos, divididos seis a seis,
inseridos em arcarias de volta perfeita, rematadas por estruturas arquitectónicas que
aludem à morfologia da imaginária Jerusalém Celeste6.

5 Sobre estes dois portais românicos veja-se, entre outros estudos, Miguel Angel GÁRCIA

GUINEA, El Românico en Palencia, Paléncia, Diputación Provincial de Paléncia, 1997, pp. 161-170.
6 Cf. Maria Concepción PORRAS GIL, “Sepulcro de San Juan de Ortega”, Las Edades del

Hombre. Memórias y Esplendores (Cat. de Exposição), Catedral de Palencia, Palencia, 1999, pp. 49-50.

658
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A escultura funerária espanhola do século XIII também regista o mesmo tema,


como sé exemplo o túmulo de um nobre (não identificado) da família do cavaleiro Tello
Telléz de Manezes, fundador do Mosteiro de Trianos, em 1182, com os apóstolos
emparelhados sob arcarias trilobadas, seguindo o mesmo esquema que se verifica no
túmulo de Afonso Téllez de Meneses (†1230), na igreja do mosteiro cisterciense de
Palazuelos (Vallodolid), ambos derivados da iconografia do Portal do Sarmental da
Catedral de Burgos7.

Túmulo de D. Branca de Navarra.


Terceiro quartel do séc. XII. Mármore.Igreja da Colegiada de Santa Maria la Real, Nájera.
Apud Gloria TREVIÑO, Santa Maria la Real de Nájera, 1998, p. 21.

Túmulo de San Juan de Ortega.


Último terço do século XII. Pedra calcária. Cripta da igreja de San Juan de Ortega (Burgos),
Espanha. Apud Las Edades del Hombre, 1999, p. 49

7 Cf. Ángela FRANCO MATA, op. cit., 1998, p. 419; Clementina Julia ARA GIL, op. cit.,
1977, pp. 32-34; Rocío SÁNCHEZ AMEIJEIRAS, op. cit., 1994, p. 155; Francisco ANTÒN,
Monasterios Medievales de la Provincia de Valladolid, 2.ª ed., Valladolid, pp. 229-230.

659
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Maiestas Domini ladeada


pelos doze Apóstolos.
Frontal de altar. Igreja de
Notre-Dame de Avenas.
Séc. XII.
Apud Sculpture. The Great Art of
the Middle Ages from the Fifth
Century to the Fifteenth Century, p.
66.

Este é um tema também comum à escultura e à pintura retabulares, ou de


frontais de altares. São bons exemplos o frontal de altar de Notre-Dame de Avenas
(Borgonha), de meados do século XII; o paramento de altar de S. Martinho da igreja de
S. Martí de IX (Catalunha), dos inícios do século XII, ou, ainda, um relevo da Basílica de
Saint-Denis, representando os Apóstolos (in disputatione), divididos por arcos e
identificados por atributos, livros e filactérias, datado de meados da mesma centúria,
revelador de fortes paralelismos (ao nível das formas de representação, e não tanto
formais) com o que se representa na face longa do túmulo de D. Rodrigo Sanches.

Paramento de altar de S. Martinho.


Primeiro quartel do século XII.
Prov. da igreja de S. Martí de Ix
(Catalunha, Espanha).
Museu Nacional de Arte da Catalunha.
Apud Le Monde Roman. Premier langage de
l’Europe, Zodiaque, 1998, p. 152

Relevo dos Apóstolos. Meados do séc. XII. Basílica de Saint-Denis. Apud Sculpture, p. 67

660
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

É certo que o tema de Cristo entre os Apóstolos e com a presença dos Evangelistas
(quer por representação antropomórfica, quer através do Tetramorfo), persiste na arte
gótica, em especial na escultura tumular. Mas a plástica empresta-lhes um carácter
diferente, mais naturalista, mais humano e mais “vivo”, do que aquele que vemos nos
dois túmulos supracitados. É este o tema que vemos a decorar uma das faces longas do
túmulo da Rainha Santa Isabel, prolongando-se alguns elementos (os Evangelistas) para as
faces da cabeceira e dos pés. Mas o que aí vemos tem já um carácter marcadamente
gótico, no tratamento das figuras e na própria representação de Cristo.
No túmulo de D. Urraca, os Apóstolos que preenchem as faces longas estão
inseridos em arcos de volta perfeita assentes em colunas capitelizadas e sem decoração.
Estão sentados, com as pernas abertas, em posição frontal (posição majestática), só
contrariada, em algumas figuras, pela ligeira torção das cabeças. Seguram livros ou
filactérias, actualmente sem qualquer legenda.

Seis Apóstolos sob arcaria. Face longa do túmulo de D. Urraca.


c. 1220-1223.
Sala dos Túmulos da Igreja do Mosteiro de Alcobaça.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

661
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenores da outra face longa do túmulo de D.


Urraca, decorada com os restantes seis Apóstolos, de
que apenas se pode contemplar parte da figura de um
e parte das pernas dos restantes cinco.
Fotos: PAF (esquerda); Henrique Ruas (direita) Apud José
Custódio Viera da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de
Alcobaça, p. 59.

No túmulo de D. Rodrigo Sanches, os Apóstolos encontram-se igualmente


divididos por arcadas do mesmo perfil, mas agora assentes em colunas com capitéis
decorados. Estão de pé, e estabelecem diálogos entre si, à maneira dos Apóstolos do
citado relevo de Saint-Denis e dos frisos dos portais de Carrión e de Moarves.

Maiestas Domini entre os Apóstolos. Face longa do túmulo de D. Rodrigo Sanches. Meados do séc. XIV (d. 1245).
Mosteiro de S. Salvador de Grijó (Claustro). Foto: PAF.
4

Pormenores dos Apóstolos do túmulo de D. Rodrigo


Sanches. Fotos: PAF

662
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Cristo em Majestade (Pantocrator), no túmulo de D.


Rodrigo Sanches)
Foto: PAF

Quanto à representação de Cristo numa das faces largas do túmulo de D. Rodrigo


Sanches, ele é a figura central que divide ao meio o Apostolado (a que se junta uma figura
de rei elevando o número dos representados para catorze), enquanto no túmulo de D.
Urraca, pelo gigantismo das figuras, o Apostolado divide-se pelas duas faces largas da arca
tumular, separados “ao meio” pela figura de Cristo, na testeira.

Cristo em Majestade (Pantocrator).


Testeira do úmulo de D.Urraca.
Foto: PAF

663
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Tetramorfo. Figuras que ladeiam a mandorla da Maiestas Domini. Túmulo de Urraca. Fotos: PAF.

Em ambos os túmulos, Cristo é representado dentro da mandorla, em forma de


amêndoa no túmulo de Rodrigo Sanches, e em forma de quadrifólio no de D. Urraca.
Ambas as formas da mandorla encontram inúmeros paralelismos com outras do
universo da escultura românica internacional e nacional.
Os aspectos plásticos de todas estas figuras dos dois túmulos não são apenas
relevantes para a compreensão da datação, mas também para a sua inserção no quadro
geral da iconografia românica. Ainda que tornemos a eles nas Notas Complementares
da nossa dissertação, gostaríamos, desde já, de chamar a atenção para algumas questões.
No túmulo de D. Urraca não são tanto os rostos dos Apóstolos, de Cristo e das demais
figuras que constituem elementos dignos de nota (revelando-se muito idênticos entre si
e diferindo apenas no tamanho e no tipo de cabeleiras e/ou barbas), mas sim os
pregueados das suas indumentárias. Seguindo um esquema idêntico ao que vemos nos

664
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

trajos da estátua jacente da rainha, também as restantes figuras são cobertas por
roupagens cujos pregueados se desenvolvem de forma acentuadamente irrealista8,
especialmente sobre as pernas, ombros e braços, como se fossem placas metálicas,
estáticas, estratificadas, e quase planas, ora em V, ora em semicírculo, tornando-se
especialmente expressivas no contraste que exercem com as pregas verticais e lineares
da parte central das túnicas.
Em todas as figuras, incluindo as da secção dos pés do túmulo (cena da
Lamentação) a que nos referiremos noutro capítulo, e à excepção da estátua jacente,
possuem, aos pés, como se fosse uma faixa ou fita de tecido maleável colocado na
horizontal, um espaço destinado a colocar, provavelmente, uma legenda, que
identificasse cada uma das personagens. Elemento idêntico encontra-se no Cristo em
Majestade proveniente da muito destruída igreja românica de Sahagún (Leão, Espanha),
disposta sobre os tornozelos da figura9. Admitimos, no entanto, que qualquer
comparação entre a estética desta obra com a do túmulo de D. Urraca é,
necessariamente forçada, e que o cotejo com outras obras deve ser realizado com maior
acuidade. Assim o tentaremos fazer em capítulo a ela dedicado.

Maiestas Domini.
Relevo de um provável frontal de Altar da Igreja românica
de Sahagún. Séc. XII. Colecção particular.
Apud El Tímpano Românico, p. 213

8 O exemplo máximo do irrealismo das indumentárias de Cristo ou dos Apóstolos na arte


românica é, talvez, o que vemos no tímpano de S. Lázaro de Autun, o que contribui,
significativamente, para conferir à figura de Cristo um carácter ainda mais sobrenatural e quase
fantasmagórico, logo, menos humano. Aqui, onde não se pode falar de arcaísmo do escultor,
buscou-se, deliberadamente, subordinar a técnica à ideologia da mensagem.
9 Sobre esta obra veja-se o recente estudo de José Luís Senra GABRIEL Y GALÁN, “Una

olvidada Maiestas Domini procedente del monasterio benedictino de Sahagún”, coord. Rocío
Sanches Ameijeiras y José Luis Senra Gabriel y Galán, El Tímpano Románico. Imágenes, Estructuras y
Audiencias, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2003, pp. 211-229.

665
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

O estilo das figuras do túmulo de D. Rodrigo Sanches liga-se a figurinos


igualmente românicos, mas diferentes dos do túmulo de D. Urraca, diríamos mesmo,
mais vulgares. As figuras dos Apóstolos, representados de pé, são mais esguias, com
cabelos e barbas curtos, enormes orelhas (que não deixam de ser uma marca de autor),
túnicas e mantos muitos cingidos ao corpo e que terminam pouco abaixo dos joelhos,
panejamentos com pregas verticais e oblíquas, mais fluidas na parte inferior das vestes e
mais “naturalistas” dos que as que descrevemos para o anterior túmulo. A escala é
também menor, cabendo todo o Apostolado e a Maiestas Domini na mesma face longa e
frontal da arca.
Se o alinhamento,
a integração nas
arquitecturas e a própria
gestualidade dos
Apóstolos nos recorda o
relevo de Saint-Denis e
os frisos dos portais de
Carrión e de Moarves,
já o figurino destas
figuras, estreito (quase
Frontal de altar da igreja de Santa Maria de Taüll. Séc. XII. que comprimido) está
Madeira policromada. Museu de Arte da Catalunha.
Apud Sculpture. The Great Art of the Middle Ages from the Fifth Century to the Fifteenth mais próximo dos
Century, p. 86
Apóstolos do frontal de altar da igreja
de Santa Maria de Taüll. O Cristo,
entronizado e coroado, inserido na
amêndoa mística e ladeado pelo
Tetramorfo, segue os esquemas mais
comuns das representações
escultóricas deste tema,
reproduzidos desde a Alta Idade
Média, e de que são conhecidos
Maiestas domini. Testeita do túmulo de Agilberto.
Finais do século VII. Jouarre. exemplos a Maiestas Domini da
Apud Sculpture. The Great Art of the Middle Ages from the
Fifth Century to the Fifteenth Century, p. 17 testeira do túmulo de Agilberto, dos

666
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

finais do século VII e o ainda conhecido relevo de Saint-Sernin de Toulouse, mantendo-


se uma ampla continuidade na arte dos séculos XII e XIII, de que é, talvez, o melhor
exemplo, o Cristo do já referido frontal de altar de Santa Maria Taüll.
As duas representações de Cristo dos túmulos portugueses apresentam gestos
formais e de aparato - com uma mão seguram um livro (o Livro da Vida) e com outra
viram a palma para o observador (este gesto só pode ser verdadeiramente confirmado
no Cristo do túmulo de D. Urraca, embora tudo indique a prévia existência do mesmo
gesto no túmulo de D. Rodrigo Sanches), “num gesto de poder, representativo da
autoridade que lhe advém da Palavra que na sua boca tem a força criadora da Vida”10.
Estes dois Cristos ducentistas são, sem margem para dúvida, a representação da
Majestas Domini, o Cristo distante, inacessível, mas presente, o Cristo Apocalíptico dos anos
do Românico, que através da Missão dos Apóstolos faz chegar a Palavra redentora e
divina aos fiéis, mas também um Cristo Juiz e Rei (como denuncia a coroa na cabeça da
figura do túmulo de D. Rodrigo Sanches).
Um outro túmulo do século
XIII, pertencente ao panteão de
Alcobaça, mas sem que possamos
identificar o nome do infante português
que nele foi inumado (um dos filhos de
D. Afonso II?), apresenta idêntica
decoração à da arca do monumento
funerário da rainha D. Urraca. Catorze
figuras individualizadas, sentadas e
frontais, dividem-se entre si por meio de
arcos de volta perfeita que assentam em
colunas lisas e capitéis, seguram livros e
Túmulo de um infante não identificado (filho de D. filactérias com as mãos, preenchendo
Afonso II e de D. Urraca ?)
Séc. XIII. Sala dos Túmulos do Mosteiro de Alcobaça. Séc. três das quatro faces da arca feral.
XIII. Pedra calacária.
Apud José C. Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Apenas uma se distingue e facilmente se
Alcobaça, p.51.
Foto: Henrique Ruas

José Custódio Vieira da SILVA, op. cit., 2003, p. 60. A inspiração subjacente à presença do
10

Livro da Vida nas mãos de Cristo, em cenas alusivas ao julgamento das almas relaciona-se uma
passagem do Evangelho de São Lucas: Alegrai-vos, pois vossos nomes estão inscritos no céu. (Lc, 10. 20).

667
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

identifica por apresentar como atributo iconográfico uma dupla chave, tratando-se, por
isso, de uma representação de São Pedro.

Pormenores da figura do Apostolado. Túmulo de um infante não identificado. Sala dos Túmulos (Alcobaça).
Fotos: PAF.

As doze figuras, dispostas seis a seis, nas duas faces longas, representam os Doze
Apóstolos. Esta teoria é dividida a meio pela iconografia da cabeceira, onde se representa
Cristo em Majestade, ladeado pelos símbolos apocalípticos dos quatro Evangelistas,
representados na face que hoje não se deixa ver11, e seguindo, assim, o mesmo esquema
do túmulo de D. Urraca.
A outra face estreita apresenta duas figuras, em tudo idênticas às caracterizações
fisionómicas, posturas e indumentárias das figuras dos Apóstolos. Estas têm sido
interpretadas como sendo familiares do defunto12, e, mais recentemente, como uma
provável representação da Anunciação13.

11Apesar de hoje não podermos confirmar, uma vez que esta face correspondente à
cabeceira do túmulo se encontra encostada a um dos muros do panteão setecentista alcobacense,
Vergílio Correia, que terá visto este túmulo noutra posição, descreve a cena aí representada: “A
arquinha de um dos 3 infantes desconhecidos tumulados no Panteon real alcobacense apresenta o
perímetro escavado de nichos sob arcadas de volta plena, ocupados por figuras sentadas de
apóstolos de grossos corpos atarracados e grandes cabeças barbadas ou glabras, com comas
abundantes, segurando ou ostentando livros e filactérias. No topo da cabeceira, o mais largo, vê-se
uma representação do Salvador em glória, Cristo pantokrator dentro de auréola quadrilobada, ladeado
pelos animais simbólicos do tetramorfos”. Vergílio CORREIA, op. cit., vol. III, Coimbra, Universidade,
1953, pp. 26-27.
12 Manuel Luís REAL, “Alcobaça”, op. cit., vol. I, 1986, p. 82
13 Cf. José Custódio Vieira da SILVA, op. cit., 2003, pp. 50-52.

668
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Testeira do túmulo do infante não identificado.


Foto: PAF.

Em nossa opinião, a presença da filactéria e do livro nas mãos das respectivas


personagens retrai a hipótese de serem representações de familiares do infante, na
medida em que estes são atributos vulgarmente identificativos de personagens bíblicas
(apóstolos, profetas, mártires, etc…), e muito raramente de personagens laicas,
especialmente neste enquadramento e caracterização, tão semelhante ao dos restantes
Apóstolos. E quem seriam os familiares? O rei e a rainha? A serem, porque não usam
coroa, tal como vemos nas representações do D. Afonso II e de sua mulher, no túmulo
desta última?
Quanto à hipótese de ser uma Anunciação, vários são os elementos que nos levam
a colocar interrogações a esta proposta. A figura da esquerda, que segura filactéria, e que
poderia ser identificada como São Gabriel, apresenta barba e bigode e não possui asas,
caracterização anómala para um arcanjo (muito embora se pudesse filiar no mesmo tipo
de representações que encontramos nos portais das igrejas de Bravães e de Rubiães,
como identificou C. A. Ferreira de Almeida); está sentado (tal como todas as demais
figuras lavradas nesta arca), contrariando a sua posição tradicional na iconografia cristã
românica e gótica em que é representado de pé, ou esvoaçante, nos aposentos da
Virgem Maria; não exerce os gestos típicos desta personagem angélica, que levanta uma
das mãos e aponta com o dedo para anunciar a novidade, encontrando-se, aqui,
totalmente estática e frontal, limitando-se a segurar com ambas as mãos a filactéria, num
gesto idêntico ao de outros Apóstolos da arca, mas sem estabelecer qualquer relação
comunicativa com a (dita) Virgem. Não corresponde, por isso, nem à descrição da cena
nas diferentes fontes escritas (Lc I, 26-28, 31-33; textos apócrifos: Proto-Evangelho de
Tiago e Evangelho da Infância), nem aos esquemas tradicionais da iconografia românica (e

669
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

também gótica) deste tema14. Quanto à segunda personagem, apesar não possuir nem
barba nem bigode, nada nos permite identificá-la como uma figura feminina, porquanto
ela é, e muito, idêntica a outras que constituem o Apostolado, isto é, a um conjunto de
doze homens.
Sem podermos fazer afirmações quanto à identificação destas duas personagens,
não gostaríamos de deixar de levantar uma hipótese que nos pareceu possível: poderão
estas duas figuras representar os dois profetas escatológicos – Ezequiel e Elias? Algumas
obras da arte medieval associam os dois profetas a cenas do Juízo Final, como é exemplo
o portal ocidental e central da Catedral de León, como bem identificou e relacionou
Ângela Franco Mata15. Apesar de nenhum outro atributo individualizar estas duas
figuras do túmulo, relacionando-as com os profetas ou com quaisquer outras
personagens religiosas ou laicas, a presença da filactéria e do livro são atributos que
encontramos vulgarmente nas mãos de profetas, sendo que o livro também pode ser um
dos atributos de Ezequiel (a este profeta se atribui um dos livros da Bíblia), ou a
filactéria, que poderia comportar a legenda Porta clausa est, non aperietur. Esta hipótese é,
portanto, e apenas, mais um contributo para reflexão, sem que possamos fazer
afirmações conclusivas.
Por tudo o que temos vindo a descrever, as representações de Cristo destes
túmulos românicos (ainda que não possamos confirmar a representação da testeira do
túmulo do infante) são muito diferentes das imagens de Cristo da nossa tumulária
trecentista, imbuídos de humanidade, de pietas e até do pathos gótico que, pelas suas
dores, pelo seu sofrimento, redime a humanidade ao abrir as portas da Salvação.
As três representações de Cristo lavradas no túmulo de D. Isabel de Aragão
distribuem-se por duas faces da arca tumular. Na testeira, representa-se o Calvário, tema
ausente da nossa tumulária românica, mas frequente nos túmulos góticos, sobretudo na
sua relação com o tema da Anunciação. Ao centro, e sob um arco de volta perfeita,
distribuem-se três figuras lavradas em alto-relevo: Cristo com as mãos e os pés pregados
na alta cruz, tem a cabeça pendente para a direita, coroada de espinhos e os olhos
fechados.

14 Cf. Marc THOUMIEU, Dictionnaire d’Iconographie Romane, Zodiaque, 3.ª ed., 1998, pp. 33-

34. Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, A Anunciação na Arte Medieval Portuguesa. Estudo
Iconográfico, Porto, Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
1983, e Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário Jorge BARROCA, op. cit., 2002, pp. 188-194.
15 Cf. Ângela FRANCO MATA, op. cit., 1998, pp. 217-224.

670
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Testeira do túmulo de D. Isabel de Aragão (Rainha Santa). c. 1330. Pedra calcária policromada. Prov. Igreja de Santa
Clara-a-Velha de Coimbra. Santa Clara-a-Nova de Coimbra. Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

O seu corpo não é esquelético nem está contorcido, não nos transmitindo, assim,
a mesma sensação de horror e compaixão que suscita a visão do conhecido Cristo Negro
do Museu Nacional Machado de Castro, proveniente do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra, obra igualmente trecentista e verdadeiramente notável. Este, porém, não deixa
de ser um apelo à contemplação e à reflexão sobre a dor e a morte sacrificial do
Redentor, longe do hieratismo mudo de alguns dos Cristos crucificados dos anos do
Românico. À direita da Cruz, e olhando para o rosto morto de seu filho, a Virgem Maria
mantém-se estática, com os braços descaídos e as duas mãos juntas, num gesto que
traduz o sofrimento perante uma dor implacável – a morte16. À esquerda, São João
Evangelista, o discípulo preferido de Cristo, segura com uma das mãos o seu Evangelho e
com a outra, erguida e aberta, dirige o nosso olhar para o Cristo Crucificado.
Fórmula simplificada de Calvário, restrita às três principais personagens, foi assim
que os escultores góticos representaram, maioritariamente, o fim da vida terrena de
Cristo nos túmulos góticos portugueses.
Encontramos idêntica composição na secção dos pés da arca tumular de D.
Fernão Sanches, filho bastardo de D. Dinis, embora, neste exemplo, a figura de Cristo se
aproxime mais das representações marcadas por intenso pathos, conseguido através do
excessivo alongamento e emagrecimento do corpo e da sua contorção, e os gestos da

16 François GARNIER, op. cit., vol. I, 1982, pp. 102-103.

671
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Virgem e de São João sejam mais expressivos, nomeadamente neste último, onde lhe
reconhecemos a retórica gestual do sofrimento, através da colocação da palma da mão
contra a face17.

Calvário. Testeira do
túmulo de D. Fernão
Sanches, filho bastardo
de D. Dinis.
Séc. XIV.
Prov. Igreja de São
Domingos de Santarém.
Museu Arqueológico do
Carmo.
Foto: José
Pessoa/DDF/IPM

Também no túmulo de D. Martim Afonso Chichorro, filho bastardo de D.


Afonso III (e igualmente na secção dos pés da arca feral), apesar da deterioração e da
perda de matéria que actualmente se verifica, confirma-se a presença de um Calvário,
embora não possamos aferir sobre os atributos e gestos das personagens.

Calvário.
Secção dos pés da arca
tumular de D. Martim
Afonso Chicorro, filho
bastardo de D. Afonso III.
Séc. XIV.
Foto: Museu Municipal de
Santarém (cortesia)

17 IDEM, ibidem, pp. 181-183.

672
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Fora do âmbito da família real, acrescente-se, ainda, o Calvário lavrado numa das
testeiras do túmulo do bispo D. Afonso Pires, sepultado na igreja de S. Pedro de
Balsemão (séc. XIV).
Nos monumentos funerários de Fernão Sanches e de Martim Afonso Chichorro,
as cenas do Calvário opõem-se às que se representam, nas testeiras das respectivas arcas,
cenas relacionadas com a concepção ou com a infância de Jesus. A sua leitura, não pode
deixar de ser feita em conjunto.
No túmulo de Fernão Sanches representa-se a Anunciação, com a Virgem Maria e
o Arcanjo São Gabriel em perfeita comunicação, separados entre si por um bojudo jarrão
com lírios, símbolo da virgindade de Maria, muito semelhante à representação do
mesmo tema numa das faces menores do túmulo de D. Leonor Afonso, filha bastarda
de D. Afonso III, embora, neste último, se invertam os lugares onde as figuras são
colocadas e se revelem algumas diferenças como, por exemplo, no gesto de São Gabriel,
que agora se dirige para filactéria que contém a mensagem, e não no sentido da figura da
Virgem.

Anunciação.
Secção dos pés da arca
tumular de D. Fernão
Sanches.
Foto:
José Pessoa/DDF/IPM

673
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Anunciação
Secção dos pés da arca
tumular de D. Leonor Afonso
c. 1319/1325.
Igreja de Santa Clara de
Santarém
Foto: PAF

No túmulo de D. Fernão Sanches, o mensageiro de Deus segura com uma das


mãos a filactéria onde deveria estar inscrito AVE MARIA, e ergue a outra, apontando
com o indicador, num “gesto oratório”, semelhante aos das antigas estátuas dos
filósofos da Antiguidade, a fim de sublinhar as suas palavras. Maria, trajando à moda da
corte do século XIV, deixa visível o ventre proeminente, fazendo com que este
momento adquira um duplo sentido. Assim, ao mesmo tempo que recebe o anúncio e
aceita a sua missão para ser mãe do Filho de Deus, realiza-se plenamente a Concepção
(Encarnação), revelada aqui pela acentuada volumetria do ventre, à maneira das Virgens
do Ó trecentistas18. Relembramos que esta forma de representação encontra em Portugal
outros exemplos, como o do grupo da Anunciação da Igreja de São João de Tarouca, que
conjuga uma imagem de São Grabriel com outra da Virgem do Ó, e, ainda, o grupo da
Anunciação da Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho, ambos do
século XIV.
Como prelúdio da Redenção, a Anunciação é um tema coerente com o âmbito
funerário das suas estruturas em que estes dois exemplos se inserem.

18 O imediatismo da mensagem poderá relacionar-se com a descrição da Anunciação na

Legenda Dourada, acrescentada de palavras e de gestos que não encontramos nos Evangelhos: Maria
estendendo as suas mãos e levantando os olhos para o céu respondeu ao anjo:” Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se
em mim segundo a tua palavra” e (…) imediatamente a Virgem concebeu no seu seio o Filho de Deus enquanto Deus
verdadeiro e enquanto verdadeiro homem e desde aquele preciso momento nele o recém engendrado existiu na plenitude
de sabedoria e de poder que teve até aos seus trinta anos (…). Cf. J. VORAGINE, La Legenda Dorada, vol. I,
ed. Madrid., Alianza Forma, 1995, pp. 214-215.

674
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

No túmulo de
Martim Afonso Chichorro,
em vez da Anunciação
representa-se A Virgem com
o Menino, na versão
Glikofilousa (Virgem de
Ternura): Maria, em posição
sedente sobre um trono-
banco, olha para o Filho,
ainda criança, que se
Virgem com o Menino. Testeira do túmulo de D. Martim Afonso Chichorro.
Séc. XIV. Foto: Museu Municipal de Santarém (cortesia) encontra de pé sobre uma
das pernas da mãe, estabelecendo, com ele, uma relação maternal muito próxima e
afectiva. A Virgem segura um fruto (talvez uma maçã, simbolizando Maria como nova
Eva, que oferece o fruto da Salvação; talvez uma romã, símbolo da unidade dos fiéis da
Igreja Católica), enquanto o Menino Jesus segura com uma das mãos o Globo Universal,
símbolo de poder, de soberania e de eternidade.
Tanto a Anunciação como a Virgem com o Menino são temas relativos à vida da
Virgem, mas também à infância de Jesus. Dos seus primeiros momentos como Verbo
encarnado no ventre de Maria, aos diferentes momentos da sua infância, estas imagens
reflectem a ideia de início de um percurso que termina com a Crucificação (ou Calvário),
o fim da vida terrena de Cristo, mas também o início da Glória, a porta para Redenção
da Humanidade. Colocados nos topos das arcas tumulares, estes temas sublinham a
ideia de início e de fim, o alfa e o ómega, Jesus como começo e fim de todas as coisas.
Trata-se, pois, de uma mensagem de reflexão para todos os cristãos, sobre o sacrifício
do Deus Redentor, garantia da própria salvação, a esperança para os fiéis, cujas almas
partem para a viagem no Além, apropriada, como tal, à iconografia funerária.
Retomemos agora a iconografia de Cristo das faces da arca tumular da Rainha
Santa Isabel. Numa das faces longas, ao centro do grupo do Apostolado, Cristo encontra-
se de pé, virado frontalmente para o observador; tem a cabeça aureolada com nimbo
simples (e não cruciforme como é mais comum), cabelos longos, a caírem-lhe em duas
madeixas, sobre os ombros e o peito; barba e bigode anelado; cobre parte do corpo com
um manto, deixando o peito e a parte inferior das pernas e pés desnudos; estende e abre

675
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

uma das mãos (a outra encontra-se destruída, pelo que não podemos fazer afirmações
sobre o gesto anteriormente exercido).

Cristo Ressuscitado entre os Apóstolos. Face longa do túmulo de D. Isabel de Aragão. Foto: José Pessoa/DDF/IPM.

A nudez do peito e dos pés, bem como a postura das mãos, permitem revelar o
que as roupagens e os gestos das imagens românicas ocultam: as chagas da Paixão. Este
é, portanto, o Cristo Ressuscitado que se revela aos Apóstolos, seus companheiros
terrenos, mostrando-lhes os sinais do seu martírio, e que se revela à humanidade como
testemunho da possibilidade de Redenção. Este tema é, pois, a afirmação da crença na
salvação e na redenção através da morte e do Juízo Final protagonizado por Cristo.
A mesma intencionalidade subjaz à concepção iconográfica do terceiro Cristo
deste túmulo, lavrado na testeira, entre o Calvário e o símbolo iconográfico do
evangelista Mateus. Aqui, porém, Cristo encontra-se entronizado sobre alto pedestal,

Cristo em Majestade, mostrando as chagas da Paixão.


Testeira do túmulo de D. Isabel de Aragão.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

veste túnica cingida na cintura e manto que prende no peito com firmal idêntico aos que
vemos nos mantos dos apóstolos da face longa. O que o equipara à imagem cristológica
anterior é o facto de, originalmente, ter as duas mãos levantadas e abertas para mostrar
as chagas.
Esta última imagem reproduz, embora de forma mais singela, o tema que mestre
Mateo, nos finais do século XII, esculpiu no tímpano do Pórtico da Gloria da Catedral
de Santiago de Compostela. Na obra compostelana, o imenso Cristo, que marca o centro
do tímpano, encontra-se entronizado e coroado, mostrando a totalidade das chagas,
através do mesmo artifício da semi-nudez do corpo e das mãos abertas e viradas para os
fiéis; ladeiam-no os quatro símbolos dos Evangelistas e uma corte de anjos que seguram
e apresentam os instrumentos da Paixão (as arma Christi). Relevadora das transformações
da religiosidade que se fizeram sentir a partir de meados dessa centúria, esta composição
enaltece a humanização das figuras divinas. Como sublinha Manuel Castiñeiras
Gonzáles, a propósito desta obra, o antigo Pantocrator, solene e juiz, dá agora lugar a
imagens emotivas e sofredoras que tentam mostrar a natureza humana de Cristo, com o
objectivo de captar mais a benevolência que o terror das audiências19.
Tanto o Cristo do Pórtico da Glória, como as três imagens do túmulo da Rainha
Santa dão resposta visual ao culto do Corpo de Cristo, emergente no século XII como
tão bem testemunha o célebre hino composto por São Bernardo de Claraval (Rhythmica
oratio ad anum quodlibet membrorum Christi patiensis et a cruce pendentis) 20, e desenvolvendo-se
durante o século XIII, converten-se em imagens devocionais que pretendem mostrar
aos fiéis dos anos do Gótico, um Cristo sofredor, consubstancial da condição humana,
que lhes exibe as chagas do sacrifício do corpo.
Várias são as obras portuguesas do século XIV que testemunham,
inequivocamente, este culto do corpo de Cristo, insistindo nas suas penas e na
humanidade do seu ser. Na secção dos pés do túmulo do bispo D. Pedro IV (c. 1340 -Sé
de Évora), representa-se, também, Cristo em Majestade, deixando ver as chagas abertas no
torso semi-desnudo, e levantando os dois braços e as mãos com a mesma
intencionalidade. Aqui, porém, optou-se pela clássica representação, dentro da

19 Cf. Manuel Antonio CASTIÑEIRAS GONZÁLES, “La persuasión como motivo central

del discurso: la boca del infierno de Santiago de Barbadelo y el Cristo de las llagas del Pórtico de la
Gloria”, El Tímpano Românico. Imágenes, Estructuras y Audiencias, coord. Rocío Sanches Ameijeiras y
José Luis Senra Gabriel y Galán,Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2003, p. 246.
20 IDEM, ibidem, pp. 248-249.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

mandorla, ladeado pelos quatro símbolos do Tetramorfo, e por conferir à representação


um carácter austero, mais conforme aos figurinos românicos.
Com maior intensidade dramática, refiram-se importantes obras como o Cristo de
um retábulo pétreo do Museu Machado de Castro21, datado de meados do século XIV
(original da Capela de S. João, às Lajes), ou ainda, atingindo o clímax do patético
trecentista, o Cristo Morto do mesmo museu coimbrão.
O tema de Cristo em Majestade, a revelar as
chagas da Paixão, foi igualmente reproduzido na
imaginária da época, como testemunham duas obras
pertencentes ao Museu Nacional de Arte Antiga, da
segunda metade do século XIV, em que alguns dos
aspectos plásticos acentuam a visualização das chagas22.
Refira-se, ainda, uma interessante imagem do Museu
Municipal de Santarém, da mesma centúria.
Mesmo o Cristo Juiz do túmulo de D. Inês de Castro
(cena do Juízo Final), entronizado, e com um aspecto
majestático e severo, é diferente dos Cristos dos
túmulos de D. Urraca e de D. Rodrigo Sanches, pela
profunda relação que estabelece com o drama da
Paixão, em especial com a Crucificação (apresentada na
Cristo em Majestade. Séc. XIV. testeira do mesmo monumento), através da exibição
Pedra calcária com vestígios de
policromia (e repintes). Museu das chagas, abertas no seu torso semi-desnudo, e com
Nacional de Arte Antiga. Inv. n.º
1050 Esc. os muitos instrumentos da Paixão apresentados por
Foto: José Pessoa/DDF/IPM
uma plêiade de anjos. Sobre este caso, não nos detere-
mos por agora, pois será tratado no âmbito de outro capítulo.
Este é, pois, o Cristo humano que chega ao coração dos fiéis pela via das
emoções e dos afectos e não tanto pela via da razão; é, enfim, o resultado da imagem de
Jesus advogada pelo Mendicantes, em especial pelos franciscanos, que tanto valorizaram

21Cf. Reinaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, p. 38.


22Reinaldo dos SANTOS, ibidem, p. 35; Carla Varela FERNANDES, Imaginária Coimbrã dos
Anos do Gótico, Lisboa, Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, 1997, p. 182; Maria João Vilhena de CARVALHO, “43. Cristo
em Majestade”, O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal (1300-1500), catálogo de exposição,
Lisboa, IPM, 2000, p. 241.

678
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

a Paixão e as chagas de Cristo, não fosse o seu fundador o primeiro estigmatizado do


Cristianismo.
De forma consciente e intencional, deixámos para o fim a abordagem a três das
faces da arca tumular de D. Inês de Castro. Este, como o túmulo de D. Pedro I,
concentra, em si, uma multiplicidade de significados simbólicos que devem ser lidos em
conjunto, como já tivemos oportunidade de sublinhar, pelo que separar os vários temas
poderá parecer redutor para a sua compreensão global. Julgamos, todavia, tal como já
justificámos relativamente ao tema da Roda da Vida/Roda da Fortuna, que alguns destes
temas não deixam de funcionar autonomamente nas suas intenções; isto é, parece-nos
que o túmulo de D. Inês de Castro possui mensagens autónomas, iconológimente
legíveis, mesmo que o túmulo de D. Pedro I nunca tivesse sido executado.
Para além dos atributos da estátua jacente, a que já nos referimos em capítulos
anteriores, e, ainda, das cenas constituintes do Juízo final e do significado das figuras de
sustentação do monumento, a que nos referiremos em capítulos que lhes consignámos,
a decoração das restantes três faces da arca sepulcral, todas alusivas a cenas da Vida de
Jesus Cristo (Infância e Paixão) devem ser aqui revistas, não apenas pela leitura iconográfica
imediata, situação que conta já com os contributos de vários autores, mas também na
relação que se pode estabelecer entre a conhecida história que se narra nas várias cenas
com a história da personagem que aí foi sepultada, mesmo que subtilmente, como já
haviam avançado outros autores.
Todas as cenas que se desenrolam nas duas faces longas e na testeira da arca são
de um extraordinário expressionismo e narrativismo, imbuídas de emoção tocante,
revelando a evolução da arte medieval portuguesa no sentido do naturalismo. Assim, e
no que se refere à iconografia de Cristo na escultura funerária portuguesa durante a
vigência da primeira dinastia portuguesa, este túmulo representa o corolário da evolução
das esquemáticas e simbólicas imagens da Majestade de Cristo, para a imagem plenamente
gótica do Cristo humano e sofredor, humilhado e martirizado.
Revela-se aqui toda a humanidade de Jesus, desde o momento do seu
nascimento, até aos últimos instantes da sua vida terrena. São, sem dúvida, cenas do
mais profundo sentimento religioso, tão naturalistas nas fisionomias das personagens,
tão detalhadamente ilustradas nos seus muitos pormenores, que seria impossível, à
época, como ainda hoje o é, ficarmos indiferentes à ternura dos pais de Jesus no seu
nascimento, à sua aflição na tentativa de o salvarem da Matança dos Inocentes, à traição do

679
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

apóstolo Judas e ao horror do seu suicídio e condenação eterna, às dores lancinantes


infligidas pela flagelação, sendo quase possível ouvirmos os chicotes rasgarem o ar e
macerarem o corpo esquelético e indefeso de Jesus, bem como os seus passos arrastados
e combalentes a caminho do Calvário e, por fim, solidarizarmo-nos com a revolta pela
injustiça da sua morte, e centramos os nossos olhares no desfalecimento da Virgem, que
aos pés das cruz não suporta mais a dor e é amparada pelas Santas Mulheres.
Todo o crescendo do espectáculo do sofrimento é aqui retratado com grande
arrojo, com total conhecimento do poder das imagens sobre os diferentes públicos.
Nada é deixado ao acaso, porque os artífices e os responsáveis pelo soberbo programa
iconográfico dos dois túmulos sabiam que, através destas imagens, se conseguia
exprimir mais rapidamente o verdadeiro sentido do sacrifício de Cristo do que em
muitas palavras escritas ou pronunciadas, ou, como antes, em imagens marcadas pelo
simbolismo e pouco concertadas com a realidade humana. Se, ainda hoje, as sentimos
como imagens tocantes, imaginemos o efeito que terão tido sobre os homens e
mulheres do século XIV...
Passemos então em revista, de forma breve, as doze cenas da Infância e Paixão de
Cristo no túmulo de D. Inês, que se desenrolam nas duas faces longas e na testeira do
sarcófago, divididas por gabletes de riquíssima e variada decoração escultórico-
arquitectónica.

Face da arca onde se ilustram cenas da Infância de Jesus. Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Os estragos infligidos ao túmulo aquando das Invasões Francesas já não nos


permitem visualizar a primeira cena desta narrativa, correspondendo, originalmente, à
Anunciação, o que nos obriga a começar a leitura da história pelo momento do
nascimento de Jesus (Natividade).

680
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Podemos observar a Virgem Maria


recostada sobre a cama, com uma das mãos a
apoiar a cabeça, e São José, sentado aos seus
pés, e igualmente adormecido, enquanto uma
figura muito deteriorada emerge do fundo do
quarto. Esta tipologia iconográfica do
nascimento de Jesus está de acordo com o
modelo bizantino e não com o ocidental, em
que a Natividade se converte, simplesmente,
numa cena de adoração23.
Apesar de algumas diferenças, como a
presença do menino a ser amamentado pela
Anunciação (muito mutilada).
2.ª edícula de uma das faces longas do Virgem e a presença dos animais do Presépio, o
túmulo de D. Inês de Castro.
Foto: Pessoa/DDF/IPM modelo iconográfico usado pelo escultor não se
afasta muito do que podemos ver num dos painéis de um retábulo pertencente ao
Museu Cluny (Paris), datado do século XIV, em especial alguns pormenores de cenário,
como são as cortinas atrás da cabeceira da cama.
Na cena seguinte, representa-se a
Epifania, com Cristo sobre os joelhos da
mãe, posto para adoração dos Magos que
vêm prestar homenagem ao Salvador, de
acordo com o descrito no Evangelho de São
Mateus (2: 1-12), embora este evangelista
não os refira como reis. Os Magos foram
posteriormente convertidos nos reis das
três partes do Mundo, correspondendo
também às três raças do género humano
que vieram adorar o salvador. Pela sua
diferenciação fisionómica, representam
Natividade. Séc. XIV. Musée National du Moyen Âge também as três idades da vida24.
(Cluny). Têmpera sobre madeira. Inv. n.º 7726.

23 Cf. Louis RÉAU, op. cit., t. 1, vol. II, 1996, p. 229.


24 IDEM, ibidem, pp. 251-252.

681
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Epifania. 3.ª edícula de uma das faces Epifania.


longas do túmulo de D. Inês de Castro. Livro de Horas de Jeanne d’Evreux. (1324-1328)
Foto: José Pessoa/DDF/IPM Jean Pucelle
Metropolitan Museum of Art (The Cloisters), Nova York.

Assim, nesta cena, semelhante a tantas outras representações da Epifania,


Belchior, o ancião, prostra-se diante da Virgem que apresenta o Menino sobre o colo,
rendendo-lhe homenagem e adoração, pois reconhecem-no como o Rei dos reis (rex
regum). Gaspar, o jovem imberbe, estabelece um diálogo com Baltazar, ambos de pé.
Ainda que a iconografia da Epifania se revele algo padronizada, não gostaríamos de
deixar de apontar as semelhanças que se podem notar entre esta composição do túmulo
e a que Jean Pucelle (activo em Paris entre 1320 e 1350) usou numa das iluminuras do
Livro de Horas de Jeanne d’Evreux. Não será a única cena com paralelos com as
composições do pintor francês, e com esta obra em particular, que se registam ao longo
das cenas do Paixão neste túmulo, como veremos.

682
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

A terceira cena dá início ao drama da


narrativa, correspondendo à ordem dada por
Heródes para a execução do que ficou conhecido
por Matança dos Inocentes. A cena é muito “crua”,
despojada de detalhes e caracterizações especiais,
restringindo-se às três figuras. Herodes, coroado e
entronizado, dirige-se aos dois soldados que se
encontram diante de si, em pé, e ostentando
uniformes militares, situação que se percebe
claramente através dos gestos e da inclinação do
corpo do rei. A sua iconografia é, em tudo, a de um
monarca medieval: das indumentárias aos gestos
(pernas traçadas em atitud royale), à presença da
Ordem para a Matança dos Inocentes. espada, alçada sobre o ombro, invocando o poder
4.ª edícula de uma das faces longas do túmulo
de D. Inês de Castro. de exercer a justiça, proferindo aqui a sua sentença.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

No nicho seguinte, segue-se a representação da Fuga para o Egipto, com São José,
de pé, a conduzir o jumento que transporta a Virgem e o Menino, olhando-a
ternamente, como que a transmitir segurança e confiança. Segundo o Evangelho de
Mateus, a sagrada família saiu durante a noite (profungit in tenebris), dirigindo-se para o
Egipto porque, desde tempos remotos, era o lugar preferencial de refúgio dos hebreus
em apuros25.
As cenas da Infância terminam com o sexto nicho desta face longa onde se
representou a Apresentação de Cristo no Templo ou Circuncisão. A figura do Menino já
desapareceu, mas ainda podemos contemplar as outras duas personagens que se
encontram no interior do templo, a Virgem e o Sacerdote, de pé, em frente ao altar.

25 IDEM, ibidem, p. 286.

683
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Fuga para o Egipto e Apresentação de Jesus no


Templo (ou Circuncisão).
5.ª e 6.ª edículas de uma das faces longas da arca
tumular de D. Inês de Castro.
Apud José Custódio Vieira da SILVA, O Panteão
Régio do Mosteiro de Alcobaça, p. 82.
Foto: Henrique Ruas

Na face oposta do sarcófago, a história prossegue já com momentos da vida


adulta de Cristo, em especial com os passos da Paixão. A leitura é efectuada da direita
para a esquerda, como meio de fazer confluir a narrativa na cabeceira do sarcófago.
Assim, a primeira cena introduz-nos no ambiente e acontecimentos vividos durante a
Última Ceia de Cristo com os Apóstolos em Jerusalém, momento em que se anuncia e
simultaneamente se inicia o ciclo da Paixão.

Última Ceia (à direita) e Oração no


Monte das Oliveiras (à esquerda).
1.ª e 2.ª edículas de uma das faces longas
da arca tumular de D. Inês de Castro.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Apesar de se encontrar muito deteriorada, especialmente na parte superior,


correspondente às cabeças das figuras, ainda é possível perceber nesta cena a
organização e distribuição das mesmas. Note-se que, nesta face, existe uma maior

684
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

complexidade das composições de uma forma geral, quer pelo maior número de
personagens, quer pela variedade e riqueza dos cenários.
Cristo e os Apóstolos distribuem-se apertadamente num dos lados da mesa
rectangular e coberta com toalha, ficando de frente para o observador, à excepção de
um elemento (Judas), que se destaca de todos os outros, ao ter sido colocado no lado
contrário da mesa, mais perto do público, mas numa posição rasteira, algo escondida,
denunciando a culpa, aquando das solenes palavras proferidas por Jesus, a respeito da
traição de um dos Apóstolos. Toda a sua caracterização eleva a suspeita. A Última Ceia
não é apenas um momento de despedida e de revelação, mas também a instituição de
um dos principais sacramentos cristãos: a comunhão eucarística
Refira-se que esta não é a primeira iconografia da Última Ceia em túmulos
trecentistas portugueses, contando-se, entre os que nos chegaram, o túmulo de João
Gordo, na Sé do Porto, e o do bispo D. Afonso Pires, na Igreja de S. Pedro de
Balsemão (Lamego). Estas diferem substancialmente da que é representada no túmulo
de D. Inês de Castro, pelo esquematismo das composições, onde faltou a capacidade de
criar planos distintos para melhor distribuir as figuras e conferir-lhes maior naturalismo
(ressalve-se que o túmulo do bispo foi esculpido em granito, o que não proporciona a
criação de escultura de elevada qualidade). A verdade é que agrupar treze figuras em
torno de uma mesa, tornando-as visíveis e identificáveis, não se afigurou como solução
fácil para um grande número de artífices medievais, dando origem a representações com
total ausência de perspectiva, pouco verosímeis, em que a forma da mesa determinou a
maneira como eram distribuídas as personagens, sendo a mesa rectangular aquela que
mais dificuldades colocava. No caso da obra que aqui analisamos, a mesa é rectangular,
o que, uma vez mais, abona em favor do seu autor, pela solução que conseguiu criar.
No nicho seguinte, a representação da Agonia no Horto, ou Oração no Monte das
Oliveiras, propõe, pelo imobilismo das personagens, um claro sentido introspectivo do
dilema e combate moral que a personagem aí vive: Cristo ajoelhado e com as mãos em
prece, trava a dura luta interior, domando o medo do sofrimento e da morte, a mais
dura das tentações, dirigindo-se a Deus e aceitando o seu Destino conforme à Sua
vontade. Nesta batalha entre a carne e o espírito, recebe consolação de um anjo descido
do Céu e nele “suspenso”, enquanto os três Apóstolos, adormecidos sob a copa das
árvores (oliveiras), estão alheados do que ali ocorria.

685
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Na cena seguinte, o aglomerado de personagens num espaço exíguo é por


demais evidente. Mesmo assim, o escultor soube dispor as figuras de maneira a
conceber quatro momentos distintos de uma mesma situação: o Beijo de Judas, que
demonstra, através dos gestos íntimos entre as duas personagens, não apenas a traição
que é feita por meio de um gesto conotado vulgarmente com o amor, mas também a
serenidade de Cristo ao viver a confirmação da revelação feita aos Apóstolos no decurso
da Última Ceia. A Prisão de Jesus é simbolizada pela presença de um soldado barrigudo,
armado com espada e escudo que, imediatamente, e com visível tranquilidade, ergue um
dos braço para o deter. Atrás de Jesus e de Judas, arrumam-se, quase invisíveis, o
Apóstolo Pedro, imediatamente atrás da cabeça de Cristo, e dois soldados, um dos quais,
Malco, que inclina a cabeça e leva uma das mãos ao lugar da ferida feita por Pedro,
quando este lhe cortou uma das orelhas.
Por fim, e também em primeiro plano, uma das figuras mais curiosas deste
túmulo, constitui o desfecho da traição... pelo menos para o traidor: Judas enforcado
numa árvore (figueira), tem a cabeça de lado, os olhos fechados e a língua sai-lhe da
boca. Tem o ventre rasgado longitudinalmente, de onde lhe caiem os intestinos, que
aqui figuram em semicírculos concêntricos, e um demónio rouba-lhe a alma ao corpo,
não pela boca, como é mais habitual, mas através deste corte na barriga. A alminha de
Judas é uma pequena figura desesperada, de que só se vê a cabeça e os braços, como
indica o gesto das mãos a puxar as madeixas de cabelo. Esta iconografia do suicídio de
Judas corresponde a um compromisso entre a descrição da morte do Escariotes do
Evangelho de São Mateus (27: 3-10), com a descrição que São Lucas faz nos Actos do
Apóstolos. “Cedo procuraram os comentadores harmonizar os dois textos, alegando que
a corda, com o peso do suicida, se partira, ou o ramo da árvore se quebrara, e que Judas,
ao tombar desamparo sobre a rocha, rasgara o ventre e perdera a vida”26. Existem
outros exemplos desta tipologia iconográfica, desde o século XII, em diferentes países,
como dá conta Flávio Gonçalves27. É, contudo, a primeira vez que a vemos na arte
medieval portuguesa.

26 Flávio GONÇALVES, “O Suicídio de Judas na Arte Portuguesa”, Museu, 2.ª série, n.º 4,
Junho de 1962, separata, p. 5.
27 IDEM, ibidem, p. 7.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Pormenor do soldado
romano e da figura de
1. Beijo de Judas (Prisão de Cristo) e Suicídio de Judas (à direita). Judas enforcado com
2. Pilatos Lava as Mãos (à esquerda). alma a ser resgatada
3.ª e 4.ª edículas de uma das faces longas da arca do túmulo de D. Inês de por um demónio.
Castro. Foto: PAF
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Jesus é então conduzido ao tribunal civil dos Romanos, presidido pelo procurador
da Judeia, Pôncio Pilatos. Escoltado por diversas personagens, dispõe-se de frente para
o procurador romano que, à maneira de Heródes, na cena do outro facial do túmulo, se
encontra majestaticamente sentado. Perante a decisão que se vê obrigado a tomar, sob
pressão dos Judeus que também aí se encontram, Pilatos “lava as mãos”, como se vê
pela presença de uma figura que lhe traz um jarro com água, e outra que sustenta com as
mãos uma bacia, remetendo, assim, a decisão final da condenação ou da libertação, para
os representantes máximos da comunidade judaica. Mais uma vez se nota a habilidade
do autor desta composição na organização das cenas, criando diferentes planos que
colocam em evidência as figuras principais e, em segundo plano, outras, secundárias,
esculpindo-lhes apenas as cabeças e partes dos corpos.
A intensidade do drama acentua-se na cena seguinte, correspondente à Flagelação.
Cristo está preso a um pelourinho de gaiola, e não a uma coluna, como seria de esperar.
Mais uma vez, se pode afirmar, perante elementos como estes (e que constitui apenas
mais uma das novidades iconográficas deste túmulo), não ter sido alheio aos escultores
desta obra as vantagens de representar um instrumento de castigo mais próximo
daqueles que se podiam ver nas vilas e cidades da Idade Média, procurando, assim, uma
maior identificação entre a História e o presente e, também, entre Cristo e os homens.

687
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Procuraram ainda, através da intensa torção dos


corpos dos algozes e da fragilidade confrangedora de
Cristo, dotar toda a cena de grande naturalismo e de
sentido patético, e criar um momento de intensa
violência que inspira consternação perante aquele que é
injustamente castigado.
A composição, apesar de dotada de uma estética
totalmente gótica, revela importantes afinidades com a
representação românica do mesmo tema num baixo-
relevo da fachada da igreja de Saint-Gilles-du-Gard (séc.
XII). Existem, no entanto, outros paralelos iconográficos
mais importantes e mais próximos temporalmente que
importa referir. Francesca Español28, nas investigações
Flagelação. que tem vindo a desenvolver sobre o escultor catalão
5.ª edícula de uma das faces longas da
arca do túmulo de D. Inês de Jaume Cascalls de Berga, autor de muitas e notáveis espa-
Castro.Foto: José Pessoa/DDF/IPM
ço da antiga Coroa de Aragão, chama a
atenção para um dos painéis do retábulo
de Cornellà de Conflent, já desalojado do
seu suporte inicial e que actualmente
integra o acervo do Museu Frederic Marès
(Barcelona), onde foi representada a
Flagelação.
A autora não só o identifica como
sendo da mão de Cascalls (como as
analogias plásticas cabalmente o
demonstram), mas também sublinha a
novidade do dramatismo que é conferida à
Flagelação cena, através da torção dos corpos, com o
Fragmento de um dos painéis do retábulo de Cornellà de
Conflent. c.1345. Jaume Cascalls. Museu Federic Marès de Cristo em contraposto e a com pernas em
(Barcelona). Apud Francesca Español, “Jaume Cascalls
revisitado…”, p. 73. torno da coluna, bem como das expres-

Cf. Francesca ESPAÑOL, “Jaume Cascalls revisitado: nuevas consideraciones y obras”,


28

Locus Amoenus, nº2, 1996, pp. 65-84.

688
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

sões faciais dos intervenientes, o que faz distinguir este painel de muitos outros que
compõem o retábulo de Cornellà. E se maioria dos autores havia sublinhado a presença
de uma estética e de uma composição especialmente inspirada nos marfins franceses e
na pintura italiana para todos os painéis do retábulo, F. Español, ainda que aceite a
primeira fonte de inspiração e refute a inspiração na iconografia e estética da pintura
italiana, por considerá-la menos “agitada” e dramática que a obra catalã, encontrou, pelo
menos no que se refere à Flagelação, um paralelo mais acentuado nas composições das
iluminuras inglesas. Dá, para isso, importantes exemplos, como a Flagelação do Saltério
Luttrell ou as iluminuras do designado “grupo Peterborough”29.

Flagelação. Saltério Luttrell. Londres. British Library, Add. 42130, fl. 92v.

Ora não podemos deixar de notar semelhanças interessantes entre a composição


da Flagelação do painel do retábulo de Cornellà de Conflent e a que vemos no túmulo de
D. Inês, assim como não podemos deixar de perceber a mesma validade das
comparações com as iluminuras do Norte da Europa, designadamente com o tema
homónimo do Saltério de Luttrell. É verdade que a obra portuguesa acentua ainda mais
o dramatismo da cena e as figuras são, talvez, as mais expressivas de todo o conjunto
das cenas da Paixão. Mas se repararmos com atenção no movimento “suspenso” do
algoz da esquerda, que vemos na composição do Saltério inglês, facilmente constatamos
as semelhanças óbvias com, pelos menos um dos algozes da cena do túmulo, mais ainda
que com o do painel de Cornellà de Conflent (que não obstante a perda de matéria,
ainda permite perceber a posição do corpo da figura).
A terminar os nichos historiados desta face da arca, a cena que representa Jesus a
Caminho do Calvário mantém presa a atenção do observador, pela forma como é captado

29 IDEM, ibidem, pp 72-76.

689
III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

o momento em que Ele, já flagelado e com o corpo cada vez mais esquelético,
carregando uma imensa e pesada Cruz sobre um dos ombros, pára para olhar e dirigir-se
ao grupo das mulheres que o seguem, em particular a Virgem Maria.
Esta, inserida num grupo de figuras com rostos semi-cobertos pelos mantos,
num gesto discreto de piedade e amor, segura um dos braços da Cruz, procurando
aliviar-lhe a dor e o sofrimento no caminho da morte. À frente segue um soldado
romano, precedido por uma figura de criança que segura os cravos da Cruz.
Encontramos novamente paralelos entre esta composição e as iluminuras
inglesas e francesas da primeira metade do século XIV. O pathos acentuado que
transmite o corpo quase nu e macerado de Cristo, bem como o gesto da Virgem a tocar
a cruz com uma das mãos, segue muito de perto o modelo que encontramos no tema
homónimo numa das iluminuras do denominado “grupo Peterborough”, enquanto que
no Cristo a Caminho do Calvário do Livro de Horas de Jeanne d’Evreux (Jean Pucelle), gestos
como o do torção da cabeça de Cristo para trás, olhando para a Virgem, ou a inserção
da figura central num conjunto mais vasto de personagens que a precedem, apresentam
também alguns paralelos com a composição tumular.

Cristo a Caminho do Calvário Cristo a Caminho do Calvário


5.ª e 6.ª edículas de uma das faces longas Saltério Peterborough. c.1304-1321.
da arca do túmulo de D. Inês de Castro. Corpus Christi College (Cambridge). Ms. 53, f. 14r.
Foto: José Pessoa/DDF/IPM

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Cristo a Caminho do Calvário


Livro de Horas de Jeanne d’Evreux. (1324-1328)
Jean Pucelle
Metropolitan Museum of Art (The Cloisters), Nova York.

Todas estas edículas historiadas são divididas entre si por estreitos nichos, em
jeito de torres gabletadas, onde se inserem figuras de profetas e antigos reis bíblicos,
cada um com uma filactéria que o identificaria (hoje já não é possível fazê-lo e não
sabemos se algum dia o foi). Tratar-se-ão, muito provavelmente, das representações dos
profetas que anunciaram a vinda do Salvador, e dos reis do Antigo Testamento que o
prefiguram.
O público que percorre com o olhar a sequência das cenas da Paixão é, então,
conduzido para a cabeceira do túmulo, onde, num quadro de superiores dimensões, na
secção correspondente à arca, se representa o Calvário.
Conhecemos, é certo, outras representações do Calvário em arcas tumulares
portuguesas do século XIV, como são os já referidos exemplos os túmulos da Rainha
Santa ou de D. Fernão Sanches. Mas nenhum é tão desenvolvido e nenhum é tão
expressivo e emotivo como o que se releva na arca tumular de D. Inês de Castro.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Calvário. Testeira da arca tumular de D. Inês de Castro. Foto: José Pessoa/DDF/IPM

Corolário e motivo maior da vinda de Jesus ao mundo dos homens, esta cena
assume, aqui, uma extraordinária vocação emotiva e catequética. Todo o cenário e a
forma como se organizam as personagens, fazem-nos pensar nas representações teatrais
(Mistérios) que então se faziam nas igrejas e catedrais, especialmente durante a Semana
Santa, não sendo de todo impossível que estas tenham influenciado a estética global da
composição da cabeceira do túmulo, bem como de algumas cenas das faces laterais,
como já havia aludido Flávio Gonçalves, a propósito da iconografia do Suicídio de Judas30.
Na parte superior deste cenário, a simular um céu repleto de entidades angélicas
envoltas em nuvens (muitas já desaparecidas), e segurando toalhas para limpar o sangue
de Cristo, vemos também a figura antropomorfizada do Sol, à direita de Cristo (em lugar
de honra), à que, originalmente, deveria corresponder a figuração da Lua. Pretendeu-se,

30 “A frequência destes Judas dependurados, de barriga aberta e de alma a ser conduzida por

demónios, justifica-se pela acção que o teatro da época exerceu sobre os artistas. Divulgados durante
o século XIV, os mistérios atingem o apogeu nos séculos XV e XVI, contribuindo bastante para a
formação da mentalidade das populações”. Cf. Flávio Gonçalves, “O suicídio de Judas...”, op. cit.,
1962, p. 12.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

desta forma, dar destaque ao eclipse descrito nos Evangelhos, ocorrido ao meio-dia de
sexta-feira.
Em baixo, e ladeados por dois nichos onde se enquadram dois profetas,
reproduz-se o topo do Gólgota, tendo atrás de si um palácio acastelado que simboliza
Jerusalém. Em primeiro plano, distribuem-se dez personagens: ao centro, pendente de
uma grande cruz, cujo braço vertical superior possui inscrição epigráfica gravada numa
fita que nele se enrola, a figura algo contorcida e magra de Jesus pontua o eixo da
composição. Já lhe falta a cabeça e os braços, mas o tratamento plástico do corpo não
deixa de ser notável.
De um e outro lado da cruz onde está Cristo, erguem-se as duas cruzes, mais
pequenas, onde estão o Bom e o Mau Ladrão, com idêntica postura dos braços e das
pernas, dificultando, assim, a identificação entre ambos, mas que a disposição, à direita e
à esquerda de Cristo, deverá bastar para que os identifiquemos.
Na extremidade esquerda da composição, encontra-se figurado um soldado,
segurando com uma das mãos o escudo, e com a outra uma arma (espécie de maça),
com que vai partir as pernas ao ladrão que se encontra crucificado junto de si.
Do outro lado da cruz que se supõe ser a do Bom Ladrão, agrupam-se três
mulheres, cuja caracterização lhes confere, em nossa opinião, a categoria de melhor
trecho compositivo de todo o túmulo, revelador de um notável entendimento plástico e
concepção artística: Maria, já sem conseguir suportar estoicamente o sofrimento,
desfalece31, caindo, e é amparada pelas Santas Mulheres. O seu corpo parece agora sem
vida, totalmente abandonado ao inconsciente, concentrando em si a maior parte do
pathos que marca toda a cena. O sentido estático conferido aos corpos das outras duas
mulheres, com os olhares virados para o solo e com os véus que cobrem as suas cabeças
a pender, acentuam o sentido descendente que normalmente se atribui à caracterização
da tristeza e da dor. Esta é, de facto, e como já havia sublinhado Reinaldo dos Santos,
uma das mais belas e impressionantes páginas deste grande “livro de horas” de
calcário32.

31 É a primeira vez na arte medieval portuguesa que encontramos a representação da Virgem

Maria a desfalecer aos pés da cruz, numa cena do Calvário. Como bem nos sugeriu o Prof. Doutor
Fernando António Baptista Pereira, este é um tema que surge, inicialmente, na arte italiana, e de que
é bom exemplo um crucifixo do acervo da National Gallery de Londres, datado de 1272-1285
(NG6361), passando depois à arte francesa e também peninsular.
32 Reynaldo dos SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, pp. 28-29.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Do outro lado de Cristo Crucificado, e junto ao Mau Ladrão, vemos, em primeiro


lugar, São João Evangelista, o discípulo preferido e a quem Jesus confiou sua Mãe, com as
mãos cruzadas sobre o peito. A figura está muito incompleta, faltando-lhe a cabeça e
parte do corpo, mas a sua localização e gestos permitem identificá-lo facilmente. Junta-
se-lhe as figuras de um centurião e de José de Arimateia.
A alusão de Reinaldo dos Santos aos livros de horas medievais sugere um palpite
que, na verdade, se confirma. Mais uma vez, entendemos que o Calvário representado
por Jean Pucelle no Livro de Horas de Jeanne d’Evreux, pode ter constituído a fonte de
inspiração para esta cena do túmulo.
Ainda que esta nossa proposta não
vá no sentido de uma cópia directa (situação
que só seria viável na existência de gravuras,
o que só se verificaria alguns anos mais
tarde), julgamos que é possível ter havido
uma difusão dos modelos do grande
iluminador francês, cuja qualidade técnica e
requinte plástico suscitou a maior
admiração dos seus clientes e, certamente,
dos seus pares.
A disposição dos três crucificados, a
posição em que Cristo é colocado na cruz e,
sobretudo, a cena do desfalecimento da
Virgem (ainda que na iluminura esta seja
Calvário.
Livro de Horas de Jeanne d’Evreux 1324-1328. amparada por São João Baptista e o autor da
Metropolitan Museum of Art (The Cloisters) Nova
York.

cena do túmulo tenha optado por colocá-lo à direita, junto do grupo dos homens),
apresentam importantes pontos de comparação e sugerem um referente iconográfico de
inspiração que deve ser tido em conta
Talvez esta aproximação composicional e iconográfica que se verifica, quer às
iluminuras inglesas, quer às francesas, em especial à obra de Jean Pucelle, represente
mais um indicador, para juntar a outros avançados por Luís Urbano Afonso, de que as
obras de Alcobaça em muito são subsidiárias da iluminura dos séculos XIII e XIV e,

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

talvez, que na sua elaboração possam ter participado, se não artífices ingleses ou
franceses, quiçá catalães (também fortemente influenciados pela arte dos livros
iluminados parisienses e ingleses, bem como pelos marfins franceses, e como se verifica
nos retábulos de pedra que se produziram na centúria de Trezentos na Antiga Coroa de
Aragão), trazendo consigo modelos tipológicos que conseguiram desenvolver e até
aperfeiçoar.
Não queremos com esta proposta retirar crédito às de outros investigadores que
entenderam estes dois túmulos como resultado de uma oficina portuguesa (desde
Vergílio Correia)33, certamente coimbrã34, possível no seguimento de uma arte que se

33 O autor entende que esta obra se inscreve na tradição que vem do Sul (Lisboa),

“nitidamente desligada da evolução contemporânea de Coimbra”. Cf. Vergílio CORREIA, op. cit.,
1924, pp. 34-35.
34 Diogo de MACEDO, “Os Túmulos de Alcobaça” Ocidente, Lisboa, s.d., separata, p.8),

defendeu que os túmulos “foram delineados por um artista francês e esculpidos por vários mestres
portugueses, de boa oficina, ainda que sujeitos ao risco inicial do seu inventor ignorado (…)”. Já
Lourenço Chaves de ALMEIDA, Os Túmulos de Alcobaça e os Artistas de Coimbra, Lisboa, Junta de
Província da Estremadura, 1944, pp. 14-15, defendeu a autoria portuguesa (coimbrã). Reinaldo dos
SANTOS, op. cit., vol. I, 1948, pp. 21-28, ainda que aceite que “muito nestas duas obras é novo e
desusado dentro da evolução precedente da escultura nacional, e até da própria arte peninsular” e
que a “exuberância da decoração figurativa e ornamental das arcas, a composição do Juízo Final de
inspiração iconográfica francesa, rica como a dos tímpanos de uma catedral, a originalidade da
rosácea, que tão logicamente decora as fachadas das igrejas como raramente – caso único – se
inscreve no quadro do sarcófago, tudo é excepcional”, ainda assim, entendeu que “qualquer que seja
o seu autor – francês, espanhol ou português – é dentro da evolução da escultura nacional que o
temos que incorporar, porque foi aqui que obra foi concebida e realizada na sequência de uma
evolução que prepara e explica a sua arte original, sem afinidades directas com protótipos
peninsulares ou franceses, que justifiquem integrá-los numa evolução artística estranha”. Pedro
DIAS, “A arte portuguesa nos séculos XIII, XIV e XV”, História de Portugal, dir. José Hermano
Saraiva, vol. III, Lisboa, Alfa, 1983, pp. 305 e 311, afirmou que são “certamente, obra de nacional,
indiscutivelmente o melhor escultor do tempo, que teve para a sua execução as melhores condições
de trabalho possíveis então, dada a vontade do monarca de conseguir duas sepulturas à medida da
sua paixão e da sua raiva. A escultura gótica nacional evoluciona regularmente a partir de meados do
século XIII, dá um salto qualitativo importante com a vinda de Mestre Pero, para servir D. Isabel de
Aragão, e atinge o seu ponto mais alto com a execução dos magníficos mausoléus de D. Pedro e D.
Inês”. Mas o mesmo autor, três anos depois (op. cit., vol. IV, 1986, p. 128), colocou a hipótese de
outra nacionalidade para a autoria dos dois túmulos, sublinhando que “não podemos pôr de lado a
possibilidade de o seu autor ser estrangeiro, um francês, pois em muitos aspectos o que se vê em
Alcobaça encontra paralelos ou protótipos em diversos pontos do Centro e Sudeste de França”,
dando como exemplos o retábulo com cenas da Paixão do Museu de Cluny (c.1350) e fragmentos do
túmulo de Carlos V, ou mesmo, e ainda anterior a estas obras, alguns elementos da fachada da
Catedral de Chartres. Francisco Pato de MACEDO e Maria José GOULÃO, “Os túmulos de D.
Pedro e D. Inês”, História da Arte Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores,
1995, p. 446, entendem haver participação de mestres das oficinas de Coimbra, pelo facto da pedra
em que foram lavrados os túmulos ser oriunda das pedreiras desta região, e defendem a existência
de mãos diferentes que se reflectem visivelmente no trabalho final Já Paulo PEREIRA, 2000 anos de
Arte em Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p. 187, defendeu que os lavrantes pudessem ter
sido, eventualmente, estrangeiros, enquanto que José Custódio Vieira da SILVA, “Os túmulos de D.
Pedro...”, op. cit., 2000, p. 371, ainda que afirme que “a autoria destes dois túmulos continua

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

havia transformado a partir da presença de Mestre Pero à frente de uma oficina de


imaginária e de tumulária. É bem provável que artífices portugueses tenham participado
nesta empreitada, mas, também, nada invalida que possa ter havido a colaboração de
artífices estrangeiros, que consigo trouxeram novas tipologias iconográficas, de
influência setentrional, mesmo que fossem oriundos de um dos reinos da Península
(provavelmente da coroa de Aragão).
Talvez esta hipótese justifique o facto de não encontrarmos nenhum outro
túmulo posterior, nem sequer imagens de altar, que reproduzam figurinos idênticos aos
que foram usados nas muitas figuras destes dois monumentos. Não é preciso uma
análise muito apurada para que percebamos que os rostos das personagens que integram
as edículas das arcas tumulares obedecem a um figurino específico, como resultado, não
apenas da estética própria da época, mas como marca de autor ou de oficina. É verdade
também, que os muito variados modelos e o trabalho “filigranoso” das micro-
arquitecturas dos nichos não têm nem precedentes nem continuação em obras
posteriores. Ora perante o extraordinário resultado final, seria de esperar que o escultor,
ou escultores, recebessem outras encomendas (como sucedeu, de resto, com o túmulo
da Rainha Santa, que deu origem a muitas outras obras de outros tantos clientes). Mas
tal não parece ter acontecido. Isto é, não fez escola. É provável, por isso, que alguns dos
mestres que aqui trabalharam tenham regressado aos seus países de origem, cumprido
que estava o contrato para a realização destas duas magníficas obras.
Perante a grandeza das intenções do rei, nenhuma despesa seria demais para
mandar erguer os monumentos funerários que visavam a exaltação da sua amada
assassinada, bem como a exaltação de si próprio. Então, porque não aceitarmos a
contratação dos serviços de escultores estrangeiros, que, por isso mesmo, trariam
formas novas a duas obras que se queriam diferentes de tudo o que até aí se havia feito e
com uma grandiosidade que ainda hoje surpreende? Coordenados pelos eruditos
monges de Alcobaça, dispondo, inclusive, de livros iluminados do scriptorium do

mergulhada no mais completo desconhecimento”, concluiu que “estamos em crer, porém, que
poderá ter sido uma dupla de escultores eventualmente portuguesa”, à semelhança do que
aconteceram com o túmulo de D. Gonçalo Pereira. Mário Jorge BARROCA, (Carlos Alberto
Ferreira de ALMEIDA e Mário BARROCA, op. cit., 2002, pp. 236-237), colocou a hipótese de uma
realização devida à parceria de mestres estrangeiros que realizaram “um monumento único, sem
antecedentes e sem continuidade”, e apesar de não rejeitar em absoluto a participação portuguesa,
sublinha que “também os argumentos do «espírito nacional» que se plasmaria na sua arte, que tanto
agradaram à nossa historiografia num passado recente, não se afiguram decisivos para garantir a
origem portuguesa do(s) seu(s) autor(es)”.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

mosteiro (como comprova o já muito citado e recente estudo de Luís Urbano Afonso),
trazendo consigo uma plástica nova e modelos iconográficos diferentes, e sem
“constrangimentos de orçamento”, o resultado final só poderia ser de excepcional
qualidade.
Assim, e ainda que a participação portuguesa seja possível de equacionar,
maiores são os motivos que nos levam a defender a participação estrangeira nestas
obras, quer esta seja espanhola, francesa ou mesmo inglesa.
No que se refere à escolha do programa iconográfico alusivo à Vida de Cristo,
com especial ênfase na sua Paixão, não deverá ser entendido apenas como desejo de D.
Pedro em glorificar a imagem da sua amada, atribuindo ao monumental túmulo que lhe
mandou lavrar a principal iconografia do Cristianismo, e relegando para o seu as cenas
da Vida e Martírio de São Bartolomeu, claramente de importância inferior, ainda que,
certamente, relevante. A presença destes temas, onde o Calvário comporta aqui uma
dimensão e sentido trágico sem precedentes na arte tumular portuguesa, justifica que
aceitemos ter havido a intenção de expressar uma subtil comparação entre o martírio de
Cristo e o sacrifício de Inês, conferindo-lhe, desta forma, “contornos de martírio
santificado”35.
A morte de Inês de Castro foi uma “má morte”, sem tempo para confissões ou
sacramentos eucarísticos, ao contrário da de D. Pedro, preparada e assistida, como tão
bem quis que ficasse registado através da iconografia escolhida para a secção
correspondente aos pés da sua arca funerária. Morte considerada injusta, violenta,
justificada pelas estranhas Razões de Estado, ela não deixa de se poder assemelhar com
a morte de Jesus, onde prevaleceu a incompreensão dos seus mandatários, sacrificando-
se o Bem, encarnado pelo Salvador, em benefício da manutenção da ordem política e
religiosa estabelecida.
Ao adquirir estes contornos de martírio santificado, a punição exemplar a que
foram sujeitos os carrascos de Inês, mais não pareceria do que o justo e pleno exercício
da justiça, perfeitamente justificada segundo a compreensão do seu mandatário,
havendo, pois, um paralelo entre Cristo Juíz, que reina no Além, e que podemos ver no

35 Francisco Pato MACEDO e Maria José GOULÃO, “Os túmulos de D. Pedro e D. Inês”,

op. cit., 1995, p. 449 já havia aludido para esta intenção ao referir que, “Nos frontais do túmulo de D.
Inês, um conjunto de cenas hagiográficas centradas na Vida de Cristo constitui um ciclo de vida e de
morte, destinado com toda a certeza, a estabelecer analogia simbólica com a vida da tumulada”.

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III. ICONOLOGIA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA

Juízo Final da testeira do túmulo, e D. Pedro I, reinante na terra, com poder vindo
directamente de Deus e com a incumbência de praticar a justiça, algo a que este reinado
ficou particularmente vinculado.
Esta procura de uma imagem próxima da santidade para D. Inês de Castro é
perceptível, igualmente, na estátua jacente, espelho de um modelo perfeito de virtudes
cívicas e religiosas, cuja alma é digna de ser amparada e transportada por um grande
número de anjos, bem como na presença da dama, já na qualidade de ressuscitada, a
assistir ao desenrolar dos acontecimentos no dia do Juízo Final.

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