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Nepan Editora

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Tânia Mara Rezende Machado - UFAC
Diálogos sobre história, cultura e linguagens

Organização
Francisco Bento da Silva
Sérgio Roberto Gomes de Souza

Nepan Editora
Rio Branco - Acre
2018
Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas - Nepan
Todos os trabalhos reunidos nesta edição são de responsabilidade de seus autores.

Projeto Gráfico e Arte final: Marcelo Ishii


Diagramação: Marcelo Ishii

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


D536
Diálogos sobre história, cultura e linguagens / organização Francisco Bento
da Silva, Sérgio Roberto Gomes de Souza. – Rio Branco: Nepan, 2018.
190p. : il.

ISBN: 978-85-68914-42-7

1. Memórias. 2. Linguagem e cultura. 3. Identidade social. 4. Amazônia –


História. I. Silva, Francisco Bento da. II. Souza, Sérgio Roberto Gomes de. III.
Título.

CDD: 306
Bibliotecária Maria do Socorro de O. Cordeiro – CRB 11/667
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO................................................................. 7

O BOLIVIAN SYNDICATE NOS LIVROS


DIDÁTICOS DE HISTÓRIA DO ACRE .....................11
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

UMA ANÁLISE DO PROCESSO DE


PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYHUASCA NO
BRASIL...................................................................................25
Geovânia Corrêa Barros

ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE SINCRETISMO


RELIGIOSO EM RELIGIÕES E GRUPOS
AYAHUASQUEIROS..........................................................57
Wladimyr Sena Araújo

E TEM LETRA? A POLITICA PRESENTE NAS


COMPOSIÇÕES DE HEAVY METAL A PARTIR
DE TRABALHOS DAS BANDAS NAPALM DEATH,
SACRED REICH E SEPULTURA: UM ESTUDO DE
CASO.......................................................................................81
Wlisses James de Farias Silva

GILBERTO FREYRE E O LUSOTROPICALISMO


COLONIAL: REPRESENTAÇÕES SOBRE
O BRASIL NA MÚSICA E NA CULTURA EM CABO
VERDE...................................................................................95
Francisco Bento da Silva
PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS DE ESCRITOS
HISTORIOGRÁFICOS SOBRE AS AMAZÔNIAS
ENTRE AS DÉCADAS DE 1950 A 2000.....................115
Daniel da Silva Klein

O FAZER-SE DO MOVIMENTO DE
MULHERESCAMPONESAS DO ACRE: 30 ANOS DE
ORGANIZAÇÃO E LUTAS............................................135
Teresa Almeida Cruz

SERINGUEIROS, GLOBALIZAÇÃO E A HISTÓRIA:


NECESSIDADE DE NOVOS PARADIGMAS?.........150
José Sávio da Costa Maia

CLIMA, ALIMENTAÇÃO E BEBIDA COMO CAUSAS


DE DOENÇAS NO ACRE TERRITORIAL...............166
Sérgio Roberto Gomes de Souza

SOBRE OS AUTORES......................................................188
APRESENTAÇÃO

A pretensão é que este livro seja o primeiro de uma série denomi-


nada “Diálogos sobre História, Cultura e Linguagens”, com periodicidade
anual, sob a responsabilidade da área de História do Centro de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH/UFAC). A
proposta foi constituída a partir de diálogos desenvolvidos por professo-
res/pesquisadores, que compreenderam a importância de articular e divul-
gar saberes advindos de pesquisas e produções acadêmicas que em grande
parte são invisibilizadas, em decorrência da ausência de instrumentos que
propiciem suas circulações.
Nessa primeira edição não se pode falar da existência de um eixo
temático, um eixo norteador para a elaboração dos capítulos que com-
põem a obra. A multiplicidade de abordagens, expressa as diferentes linhas
de pesquisas trabalhadas pelos professores/pesquisadores que participam
como autores.
Assim, no primeiro capítulo, Nedy Bianca Medeiros de Albuquer-
que problematiza com enfoques sobre o Bolivian Syndicate, presentes em
obras historiográficas produzidas no Acre. Para tanto, usa como referên-
cias livros didáticos que tratam sobre a temática. Atente-se, no entanto,
para algumas importantes observações feitas pela autora, principalmente
no que concerne a vastidão de elementos envolvidos na configuração da
historiografia acreana e sua relação com o que categoriza como “acria-
nistas”, cujas significações parecem ser bem maiores que a naturalidade e
formação dos seus autores.
Na sequência, Geovânia Corrêa Barros analisa o processo de pa-
trimonialização da Ayahuasca. Seus escritos são construídos a partir de
recortes discursivos de agentes inseridos nesse processo, bem como de


análises que abordam as complexidades em torno da patrimonialização da


ayahuasca no Brasil.
No terceiro capítulo, Wladimyr Sena Araújo desenvolve uma série
de análises sobre sincretismo, em religiões e grupos ayahuasqueiros. Em
suas construções, caracteriza a denominação ayahuasca enquanto uma
palavra advinda da língua quéchua, definindo seu significado enquanto
“vinho dos mortos”, “vinho das almas”, “vinho dos espíritos”. Explica,
posteriormente, que se trata de uma substância feita com a decocção de
um cipó (Banisteriopsis caapi) e de uma folha (Psychotria viridis) e utilizada
ritualisticamente por comunidades indígenas, caboclos/vegetalistas, religi-
ões brasileiras e grupos neo – ayahuasqueiros.
Wlisses James de Farias e Silva escreve o quarto capítulo. Utiliza
como fontes para suas análises composições de três diferentes bandas,
adeptas dos subestilos de heavy metal denominados: thrash metal e grind core.
Dialogando com as letras das composições, relaciona-as com aspectos da
política e da economia global considerando, para tanto, o contexto históri-
8 co em que foram produzidas e divulgadas por seus autores.
• O quinto capítulo traz o texto “Gilberto Freyre e o lusotropicalismo
colonial: representações do Brasil na música e na cultura em Cabo Verde”,
de autoria de Francisco Bento da Silva. Em seus escritos, o autor transi-
ta entre mundos luso-africano-brasileiro, nas fronteiras do colonialismo
português e suas ramificações históricas e identitarias que transitam em
lados atlânticos com suas heranças e influencias. Partindo dos escritos
do lusófono Gilberto Freyre sobre Cabo Verde, faz uma abordagem das
representações criadas por intelectuais caboverdianos (musica, literatura e
pintura) em busca de uma identidade nacional que desse ao arquipélago
suporte imagético de um dia alçar à condição de seu “irmão” maior que
se desgarrou de Portugal no século XIX. Assim, Cabo Verde é retratado
como um “brasilzinho” tropical, de alegria, cores e integração.
No sexto capítulo, Daniel da Silva Klein trata sobre perspectivas
metodológicas de escritos historiográficos sobre as Amazônias. O autor
desenvolve uma investigação narrativa a respeito de determinados aspec-
tos da historiografia amazônica, dialogando com autores que escreveram
sobre a temática, no período que vai de 1950 a 2000. O objetivo é demons-

Sumário


trar que, em meio à diversidade de intenções desses autores, ocorreram


mobilizações com vistas à ampliação dos debates, envolvendo temas e
abordagens sobre essa região do Brasil.
Tereza Almeida Cruz escreve o sétimo capítulo. Nele, procura fazer
abordagens acerca da constituição do Movimento de Mulheres Campo-
nesas do Acre que, desde 1988, iniciou o seu processo de formação a
partir da resistência cotidiana das mulheres da floresta. Inspirada em E. P.
Thompson pensa os grupos sociais como possuidores de uma identida-
de própria, autônoma. Assim, trabalha com a perspectiva que as “classes
inferiores” são protagonistas de sua própria história. Nesta perspectiva,
investiga como os modos de vida das mulheres camponesas foram consti-
tuindo resistências que, com a colaboração da Comissão Pastoral da Terra
e da Rede Acreana de Mulheres, foram se articulando e se organizando,
de forma a dar visibilidade ao movimento destas mulheres que lutam pela
cidadania e construção de novas relações sociais entre os seres humanos e
destes com a natureza.
9 No oitavo capítulo, José Sávio da Costa Maia propõe processos de
• problematização com conceitos, categorias e interpretações sedimentadas
ou amplamente aceitos nas ciências sociais que, segundo o autor, neces-
sitam de redefinições, ou podem ser, simplesmente, abandonados; assim
como outras precisam ser criados. Em sua concepção, alteram-se mais
ou menos drasticamente as acepções de tempo e espaço, envolvendo as
noções de lugar, espaço, território e fronteiras, presente e passado, próxi-
mo e remoto, arcaico e moderno, contemporâneo e não contemporâneo.
Neste contexto, os conceitos de nação, sociedade nacional, estado-nação,
mercado, planejamento, trabalho, produção, produtividade, lucratividade,
racionalidade, emprego, desemprego, pobreza, miséria, e outros parecem
exigir precisões e reformulações.
Por fim, no nono capítulo, Sérgio Roberto Gomes de Souza dialoga
com abordagens presentes em relatórios de prefeitos departamentais e
jornais editados no então Território Federal do Acre, nas duas primeiras
décadas do século XX, sobre a etiologia das diversas doenças que se ma-
nifestavam na localidade. Nos escritos que compõem o texto, aparecem
diversos diálogos/problemas envolvendo o clima e hábitos da população,

Sumário


temas que, repetidamente, são relacionados com os quadros mórbidos


existentes.
Rio Branco, 25 de outubro de 2018
Francisco Bento da Silva
Sérgio Roberto Gomes de Souza

10

Sumário
O BOLIVIAN SYNDICATE NOS
LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
DO ACRE

Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

Para dialogar a respeito da historiografia acriana e Bolivian Syndicate,


devemos esclarecer quais os significados aqui atribuídos a essas expres-
sões. Neste sentido, introdutoriamente, não se há de perder a vastidão
de elementos envolvidos na configuração da historiografia acriana e sua
relação com aquilo que classificamos como “acrianistas”, porquanto seja
maior que a naturalidade e formação dos seus autores. De tal modo, não
se restringe a historiografia acriana a exclusividade dos historiadores. A
nosso ver, compreende textos cujas temáticas tenham como cerne as ter-
ras, sujeitos sociais, movimentos ou demais elementos concernentes ao
Acre, não se limitando, portanto, ao critério geográfico da produção, quer
por terem sido feitas, ou não, em solo acriano, ou mesmo por autores que
tenham nascido e/ou vivido em terras “acrianas”. Em analogia ao termo
“brasilianistas”, adequado seria pensarmos em “acrianistas” e concatená-
-lo a produção historiográfica sobre o Acre.
Corroborando a ideia de “acrianistas”, observa-se que as fontes
aqui utilizadas estão permeadas de indivíduos e trabalhos nem sempre
nascidos ou produzidos no Acre, mas, que se dedicaram a pensá-lo. Isto
porque, os referenciais de nossa análise foram a tríade de livros didáticos:
“Acre: uma história em construção (1985)”, elaborado pelos historiadores
Valdir de Oliveira Calixto, José Dourado de Souza e Josué Fernandes de
Souza; “História do Acre (1992)” e “História do Acre: novos temas, no-
vas abordagens (2002), de autoria de Carlos Alberto Alves de Souza. Para
confrontação de dados, foram examinadas as teses de doutorado de Mary
Allegretti e de Eduardo de A. Carneiro, obras clássicas como “Formação
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

Histórica do Acre” de Leandro Tocantins e “A conquista do deserto oci-


dental: subsídios para a história do território do Acre” de Craveiro Costa,
além de uma publicação mais recente, denominada “Acre, a Sibéria tropi-
cal: desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910” de Francisco Bento
da Silva.
Feito isto, alertamos que não se tem a pretensão ao esgotamen-
to dos debates sobre a historiografia acriana, posto que, embora tenha
multiplicidade temática, o nosso enfoque recaia tão somente sobre o Boli-
vian Syndicate. A esse, em regra, os autores dedicam apenas curtas linhas e
poucos parágrafos. Em linhas gerais, há de se recordar que na formação
dos estados nacionais sul-americanos, no decurso do século XIX, a área
territorial do Acre era considerada propriedade da Bolívia, situação refe-
rendada entre o Império Brasileiro e o governo boliviano, por ocasião da
Guerra do Paraguai, com a assinatura do Tratado de Ayacucho (1867).
No entanto, por dificuldades de administração e exploração dos
recursos naturais existentes em terras acrianas, o governo boliviano, na
12 virada do século XIX para o XX, constituiu a proposta de arrendamento
• daquela região a grupo de investidores internacionais, tendo características
semelhantes as chartered companies1, passando a ser denominado de Bolivian
Syndicate. Entrementes, desde a década de 1870 o Acre passou a ser ocu-
pado por brasileiros que ali trabalhavam na extração do látex da Hevea
brasiliensis, situação chancelada pelos interesses do governo provincial e
depois estadual do Amazonas. Assim a criação do Bolivian Syndicate afetava
negócios e a soberania da Amazônia brasileira, motivando tratativas diplo-
máticas em espectro formal e extraoficial a fim de dissuadir a execução do
empreendimento. E a este respeito dividimos o desenvolvimento do arti-
go na crítica do Bolivian Syndicate nos livros didáticos e em outras fontes.

1 Nos autores estudados para elaboração do presente texto, há menções e divergências quanto ao
Bolivian Syndicate como uma chartered company. No caso específico desse texto considera-se
importante tal referência, tendo como referência que o modelo das “companhias de cartas” ou
“companhias majestáticas” assentava-se na ideia básica de concessão de terras para exploração, sem
intervenções administrativas direta dos países que as entregavam em concessão.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

DIÁLOGOS HISTORIOGRÁFICOS SOBRE O


BOLIVIAN SYNDICATE

José D’Assunção Barros2 nos orienta a pensarmos às fontes histó-


ricas ponderando o lugar de produção e os seus produtores, porquanto
as intencionalidades e o tempo vivido sejam sentidos na escrita historio-
gráfica, de tal forma, que contribua para processos de dessacralização do
monumento.
Desta feita, para o desenvolvimento de análises sobre a produção
historiográfica dos livros didáticos acrianos, é importante recordar que
a obra “Acre: uma história em construção” 3, editado pela Fundação de
Desenvolvimento de Recursos Humanos, da Cultura e do Desporto do
Estado do Acre, foi publicação de 1985, com posterior distribuição para
as escolas públicas do estado. Já o livro “História do Acre”, cujo público
alvo era o “primeiro grau”, conforme consta em seu subtítulo teve como
responsável pela edição o livreiro M. M. Paim, que o publicou em parceria
com o autor, Carlos Alberto Alves de Souza, em 1992 4. Ressalte-se que
13 boa parte da primeira edição da obra foi recolhida por ordem judicial,
• devido a associação do Coronel Mâncio Lima como mandante de “corre-
rias”, ou seja, de ataques para aprisionamento e extermínio da população
indígena, ocorrido no município homônimo, durante o ano de 19135.
Em meio à batalha judicial movida pelos descendentes do referido
coronel contra o editor e o autor da obra, a alternativa para sua circulação
foi encontrada mediante a supressão do nome de Mâncio Lima.
Litígios judiciais a parte, o terceiro livro didático, também de autoria
de Alves de Souza, caracteriza-se enquanto uma revisão, atualização e am-
pliação da obra contenciosa. O diferencial é que, no lugar do personagem
histórico polêmico, figura a irônica designação de “Coronel Correrinha”.
Outro diferencial do terceiro livro foi que coube ao autor a exclusiva res-
ponsabilidade de edição. A obra foi publicada com o título de “História
do Acre: novos temas, novas abordagens”, no ano de 20026. Observe-se
2 Barros, A fonte histórica e seu lugar de produção, 2012, pp. 407- 429.
3 Calixto; Souza; Souza, Acre: uma história em construção, 1985, p. 118.
4 Souza, História do Acre, 1992.
5 Souza, História do Acre, 1992, p. 38.
6 Souza, História do Acre: novos temas, novas abordagens, 2002.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

que, a partir de então, foram feitas diversas reimpressões e circulação con-


tinuada.
Nas abordagens feitas em “Acre: uma história em construção” veri-
fica-se que o espaço destinado ao Bolivian Syndicate é de apenas um elemen-
to, dentro de uma das dez unidades da obra. A temática ocupa pouco mais
de uma página, embora existam breves menções em outras passagens do
texto. Nesse único tópico, que consta em sua página 118, lê-se no sétimo
item: “O capital monopolista internacional aperta o cerco: o Bolivian Syndi-
cate”. Abaixo dele, surge a assertiva de que a propositura de arrendamento
do Acre ao sindicato teria sido uma ideia do embaixador Felix Aramayo,
representante diplomático da Bolívia em Londres, que a apresentou a Pan-
do, presidente boliviano a época, obtendo sua aquiescência. Alegaram os
autores que, com antecipada negociação entre Aramayo e os investidores,
coube ao Congresso Boliviano à aprovação, em dezembro de 1901, de um
contrato previamente estabelecido entre as partes. Igualmente afirmam
que:
14 [...] grandes banqueiros faziam parte do negócio, inclusive
• Emilin Roosevelt, primo do presidente norte-americano
Franklin D. Roosevelt. Consta que até o Departamento
de Estado do governo norte-americano influenciou
diretamente na negociata.7

Em seguida Calixto, Fernandes de Souza e Dourado de Souza des-


tacam o que consideram como pontos mais importantes do Bolivian Syndi-
cate, informando que a sede seria em “Nova Iorque”, cabendo ao sindicato
a “administração fiscal no Território do Acre”, tendo como capital inicial
500 mil libras esterlinas, com remessa de 40% dos lucros aos investidores
internacionais e a outra parte ao governo boliviano, além da obrigatorie-
dade de desenvolver estudos para ligar, por ferrovia ou canal os rios Acre,
Orton e Madre de Dios.
Estes escritores asseveraram, também, que os embaixadores de
Peru e Brasil externaram junto aos Ministérios das Relações Exteriores
dos Estados Unidos e da Inglaterra, o descontentamento de brasileiros

7 Calixto; Souza; Souza, Acre: uma história em construção, 1985, p. 118.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

e de peruanos quanto ao acordo. Na sequência, encerraram o ponto de


modo rápido, afirmando que assim estavam constituídas as circunstâncias
indicativas de quem venceria o conflito, partindo então para o arrazoado
em torno da luta de classes e dos conflitos de interesse entre investidores,
corpos diplomáticos, seringueiros e praças bolivianos, conforme se pode
ler na transcrição do último parágrafo do mencionado item:
Estavam criadas as condições indicadoras sobre quem
venceria essa disputa. Cabe, daqui para frente, avaliar o
desfecho da questão. As manobras, as conspirações, as
contradições do capitalismo, ardiladas e montadas pela
usura do lucro - acabariam levando ao confronto sangrento
aqueles que, pelo papel que exerciam na produção, nada
tinham a ver com os interesses de uma classe antagônica à
sua: seringueiros e soldados bolivianos. Sim, porque foram
essas duas categorias sócio-profissionais que pagaram com
suas vidas as ambições, arbitrariedades e frivolidades de
mercenários, banqueiros e diplomatas que se compraziam
15 com as tradicionais trocas de brindes dos gabinetes.8

De tal forma que, em sete parágrafos e pouco mais de trinta linhas,
há comentários rápidos sobre o Bolivian Syndicate, sem ao menos analisar
ou incorrer na qualificação deste como chartered company, ignorando a clas-
sificação atribuída por Tocantins ao sindicato9.
No entanto, mais curioso é notar que, não obstante a análise de
fundo marxista aqui exposta, o espaço dedicado à biografia e aos feitos de
Luiz Galvez Rodrigues de Arias – tanto como responsável pela criação do
Estado Independente do Acre, quanto como denunciante das negociações
para o arrendamento das terras acrianas - é bem mais amplo do que o de-
dicado ao nosso objeto de estudo.
Na obra de Calixto, Fernandes de Souza e Dourado de Souza pi-
toresca é a maneira como se descreve a personalidade de Galvez, a quem
se destinou todo o quarto item do capítulo em comento, denominado de
“Galvez: o homem certo para fomentar insurreições”, colaborando para a

8 Calixto; Souza; Souza, Acre: uma história em construção, 1985, p. 119.


9 Tocantins, Formação Histórica do Acre, 2001, p.47.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

construção da figura de herói romântico e referenciando Tocantins como


base para obtenção deste perfil:
No processo de acirramento das contradições entre as classes do-
minantes, a contra-espionagem de uma das partes desvendou o sigiloso
plano. É aí que aparece mais um personagem da História do Acre: Luiz
Galvez Rodrigues de Arias, espanhol nascido em Cádis. Leandro Tocan-
tins menciona Galvez como filho de pais pertencentes à antiga nobreza
espanhola. Com formação superior na área de Direito, atingira o posto
de diplomata em Roma e Buenos Aires. Em meio a evolução dos acon-
tecimentos, aportou em Manaus esse culto cidadão ibérico. Seu preparo
intelectual assegurou-lhe os empregos de redator do Jornal do Amazonas,
assim como o de taquígrafo do Legislativo amazonense e do Consulado
boliviano. Estabelecida essa “abertura”, Galvez cuidou de pôr-se a par da
realidade que o cercava, ação que não lhe foi difícil devido ao exercício do
ofício de jornalista. 10
De maneira que somos levados a crer na ausência de desconheci-
16 mento dos autores sobre a classificação de Tocantins ao Bolivian Syndicate
• como chartered company, o que chama atenção à escolha pelo conteúdo a ser
enfatizado. Logo, vê-se a predileção pela personalidade do herói.
Mais emblemático se tornam os silêncios e, mesmo, o que foi es-
crito na obra “Acre: uma história em construção”, ao recordarmos que a
tríade autoral – Valdir de Oliveira Calixto, Josué Fernandes de Souza, José
Dourado de Souza – compunha-se por membros do quadro docentes da
Universidade Federal do Acre. 11 Neste sentido, impossível não identificar
reduzida problematização e diálogo sobre o Bolivian Syndicate, ainda que a
luz de um discurso de orientação marxista, em que se inserem de modo
muito incipiente a perspectiva da luta de classes no ensino de História do
Acre, nas escolas de “primeiro e segundo graus” acrianas, ao longo das
décadas de 1980 e 1990.
10 Calixto; Souza; Souza. Acre: uma história em construção, 1985. p. 113.
11 Embora Josué Fernandes de Souza já tenha ido a óbito, quando de seu falecimento ainda
integrava formalmente os quadros efetivos da UFAC. Valdir de Oliveira Calixto atualmente é
aposentado. Ao passo que Carlos Alberto Alves de Souza e José Dourado de Souza continuam
em atividades docentes na IFES. Destaque-se que dentre os quatro professores aqui mencionados,
somente Calixto não nasceu e se formou no Acre.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

Por sua vez, em “História do Acre”, primeiro dos dois livros didáticos
produzidos por Carlos Alberto Alves de Souza, lançado em 1992, o Boli-
vian Syndicate ocupa um item específico, distribuído em vinte e quatro pa-
rágrafos, no espaço de duas laudas. Em Alves de Souza o Bolivian Syndicate
é introduzido como decorrência da “derrota da expedição dos poetas”,
acrescido da suposta conclusão do “embaixador boliviano na Inglaterra,
Félix Aramayo”, quanto às dificuldades de gestão das terras acrianas devi-
do falta de recursos financeiros e militares, o que o teria levado a apresen-
tar o arrendamento do Acre a empresários ingleses e norte-americanos,
conforme se lê:
A ideia de arrendar o Acre foi aceita pelo presidente
boliviano José Manuel Pando. Formou-se um grupo de
grandes empresários da Inglaterra e dos Estados Unidos,
a fim de fecharem negócio com a Bolívia a respeito
do arrendamento do Acre. Esse grupo de empresários
chamava-se Bolivian Syndicate, podendo vir a ser o novo
dono das riquezas acrianas.
17 O contrato de arrendamento do Acre foi assinado entre a

Bolívia e o Bolivian Syndicate, no dia 11 de julho de 1901.
As assinaturas foram do Embaixador Félix Aramayo, da
Bolívia, e de Frederich Wilinfred Whitridge, da empresa
Car Whitrig, dos Estados Unidos.12

À narrativa da criação do Bolivian Syndicate, feita por Alves de Sou-


za, seguia-se a enumeração dos aspectos mais relevantes (a seu ver) do
empreendimento, com ênfase no local em que se constituía sua sede e o
território a ser administrado no âmbito fiscal, acrescido do quantitativo e
da composição inicial do capital, bem como dos poderes que lhe foram
atribuídos e do prazo de duração do contrato. Além disso, foram feitas
referências às permissões de livre navegação nos rios acrianos e da organi-
zação de navios de guerra para defesa da região.
Alves de Souza prosseguiu discorrendo sobre os protestos exter-
nados pelos governos brasileiro e peruano, embora o Brasil reconhecesse
o direito de propriedade boliviano sobre o Acre. Assevera o autor que o

12 Souza, História do Acre, 1992, p. 73.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

interesse brasileiro sobre o Acre motivava-se pelas rendas auferidas com


a borracha e porque “suas fronteiras ficariam ameaçadas por grandes po-
tências, como os Estados Unidos e Inglaterra”. 13
O historiador apontou, ainda sobre o Bolivian Syndicate, o distrato,
mediante a convocatória para a aquisição do Acre, feita pelo governo bra-
sileiro ao boliviano, aduzido da negatória dos Estados Unidos da América
de participação no contrato e a suposta pressão do “Tio Sam” para o
encerramento deste:
Os Estados Unidos querendo o apoio do Brasil em suas
intervenções armadas nos países da América Central
convenceu a Bolívia a desfazer o contrato assinado com
o Bolivian Syndicate. A Bolívia desfez o contrato, mas quem
pagou a indenização foi o Brasil. Antes de desfazer o
contrato de arrendamento do Acre com o Bolivian Syndicate,
o governo boliviano enviou para o Acre um novo delegado,
conhecido pelo nome de D. Lino Romero, chegando na
região acriana a 2 de abril de 1902, no sentido de preparar a
18 região a ser entregue ao Bolivian Syndicate [...]. 14

Carlos Alberto Alves de Souza lançou “História do Acre: novos te-
mas, nova abordagem” dez anos depois do seu primeiro livro didático,
apresentando na capa do segundo um informativo que o caracterizava
como “revisado, atualizado e ampliado”. No entanto, a destinação tinha
se alterado, em lugar de ter como público o “primeiro grau” destinava-se
aos acadêmicos de História, perpassando o ensino médio e o fundamental.
Apesar destes aspectos, bem como da apresentação gráfica de me-
lhor elaboração e com maior volume de páginas, concernente aos conte-
údos do Bolivian Syndicate se repete o mesmo texto, com idêntica grafia e
quantidade de parágrafos nos exemplares de 1992 a 2002. As duas únicas
alterações entre o livro de 1992 e 2002 tangentes ao Bolivian Syndicate ocor-
rem na supressão da parte final de pedaços do terceiro parágrafo e no
décimo quarto, logo após a menção das oito características importantes

13 Souza, História do Acre, 1992, p. 73.


14 Souza, História do Acre, 1992, p. 74.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

do contrato. Para melhor compreensão, abaixo são reproduzidos os dois


parágrafos com destaque em negrito das parcelas “recortadas”:
A ideia de arrendar o Acre foi aceita pelo presidente
boliviano José Manuel Pando. Formou-se um grupo de
grandes empresários da Inglaterra e dos Estados Unidos,
a fim de fecharem negócio com a Bolívia a respeito
do arrendamento do Acre. Esse grupo de empresários
chamava-se Bolivian Syndicate, podendo vir a ser o novo
dono das riquezas acrianas.15
Quando a notícia da assinatura do contrato espalhou-se
pelo mundo, o Brasil e o Peru reagiram. O Peru, a partir
deste momento, começou a mostrar interesse pelo Acre,
principalmente pela região do Vale do Juruá, onde os seus
“caucheiros” trabalhavam na extração do leite do caucho.
O Brasil reconhecia o direito boliviano de proprietário do
Acre, mas não aceitava que a Bolívia fizesse tal acordo com
o Bolivian Syndicate, pois grande parte das riquezas saídas do
Acre não mais lhe pertenceria, como os lucros obtidos
19 dos impostos sobre a borracha, e, suas fronteiras
• ficariam ameaçadas por grandes potências, como Estados
Unidos e Inglaterra.16

Diante disto, verifica-se que no segundo livro didático de Alves de


Souza, quanto ao Bolivian Syndicate, não ocorreu “ampliação” de conteúdo.
Ao contrário, aconteceu redução. A “revisão” foi feita unicamente com
a eliminação de fragmentos do texto. A “nova abordagem”, nesse item
específico, se caracterizou pela retirada de interpretações do autor sobre o
tema. Acrescenta-se a isto que, em nenhum momento das obras de 1992
ou de 2002 existam menções a classificação do Bolivian Syndicate como
chartered company.
O não dito e os silenciamentos são simbólicos do lugar de produção
de sua obra e das predileções temáticas de Alves de Souza, de forma tal
que o Bolivian Syndicate é apresentado do ensino fundamental ao acadêmico
como elemento abstrato, desconexo de um contexto internacional de ne-

15 Souza, História do Acre, 1992, p. 73.


16 Souza, História do Acre, 1992, p. 74.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

ocolonialismo, que marcou a passagem do XIX ao XX. Não há discussão


acerca do pagamento do distrato do Bolivian Syndicate, ou concatenação
disto com o teor da carta constitucional brasileira de 189117 e sua influên-
cia na geopolítica de então. Igualmente não se dialoga quanto à obtenção
dos valores pagos na ruptura do contrato, como forma de indenização aos
empreendedores e aos mediadores disto.18
Do mesmo modo, se verifica nas duas obras de Alves de Souza que
em passagens antecedentes ao item sobre o Bolivian Syndicate, há alusão às
preocupações do governo amazonense pela não efetivação do empreendi-
mento. Contudo, na abordagem do tema, fica marcado o reconhecimento
do Acre como propriedade boliviana pelo governo republicano brasileiro,
mas, oposição ao arrendamento. Conduzindo ao entendimento de que os
interesses dos governos brasileiros e do estado do Amazonas se coaduna-
vam de forma pacífica.
Porém, nem nos livros didáticos de Alves de Souza ou nos escri-
tos de Calixto, Dourado de Souza e Fernandes de Souza se menciona
20 o processo movido pelo Amazonas, ante ao governo federal, em que se
• solicitou o ressarcimento dos gastos com a “Questão do Acre”. Esta lide
judicial foi motivada porque o Acre, após sua anexação, passou a ser ad-
ministrado diretamente pela União (que por consequência auferia renda
oriunda da tributação sobre a área)19. Outra aproximação entre as obras
de Alves de Souza e “Acre: uma história em construção” é a ausência de
diálogos sobre chartered company.
Por fim, recordando que a elaboração do material didático decorre
de pesquisas em distintas fontes, inclusive de leituras de teses20 e disserta-
ções, ponto de intersecção mais curioso entre as obras de Alves de Souza
e “Acre: uma história em construção”, centra-se no fato de que nenhuma
delas resultou de trabalho de mestrado ou doutorado, apesar dos autores

17 Andrade; Limoeiro, Rui Barbosa e a política externa brasileira, 2013.


18 Bandeira, O Barão de Rothschild e “A Questão do Acre”, 2000.
19 Ferreira Reis, A Questão do Acre, 1937.
20 Tal qual atesta o próprio Carlos Alberto Alves de Souza em seus dois livros didáticos ao arrolar
nas referências bibliográficas sua tese, apresentada em 1996 na PUC/SP, denominada Varadouros
da Liberdade: empates no modo de vida dos seringueiros de Brasiléia – Acre.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

terem carreiras nas graduações de licenciatura e bacharelado do curso de


História da Universidade Federal do Acre.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como principais pontos de intersecção entre as três obras didáticas


analisadas, observamos o uso de obras sacralizadas como fontes, forma-
ção acadêmica e atuação profissional dos autores. Neste sentido, ficou evi-
dente a influência da escrita da iHi história a partir dos autores Leandro
Tocantins e Craveiro Costa, com a aceitação destes escritos como verda-
des absolutas, sem confrontação de dados com outras fontes, a exemplo
de periódicos de circulação nacional, publicados à época dos eventos. Por-
quanto os autores de livros didáticos reproduzam o discurso romantizado
de Tocantins sobre a chegada de Galvez ao Brasil a partir da segunda me-
tade da década de 1890, ao passo que o Jornal do Brasil, publicado na capital
federal no primeiro quinquênio daquela década noticiasse Galvez como
secretário e depois como proprietário da empresa de jogos denominada
21
Frontão Brasileiro. 21
• Os autores foram graduados em História pela Universidade Federal
do Acre, a exceção de Calixto. Todos lecionaram nos cursos de licenciatu-
ra e bacharelado em História daquela instituição federal de ensino supe-
rior (José Dourado de Souza e Carlos Alberto Alves de Souza ainda são
professores daquela Ifes). Curiosamente, se verifica tratamento do tema
vinculado à atuação heróica da persona de Galvez na obra composta pela
tríade Calixto, Dourado e Souza, embora o livro tenha uma linha historio-
gráfica dita marxista. Enquanto que nos livros de Carlos Alberto Alves de
Souza há pela editoração e títulos notória inspiração na nova história, con-
tudo, o Bolivian Syndicate mereceu a mesma atenção e redação em ambos,
sem problematização aprofundada e alicerçada em Tocantins.
Por essa perspectiva, compreende-se que, ao abordarem o Bolivian
Syndicate, os três livros tenham consonância, caracterizando uma preferên-
cia didática por manter a memória histórica construída da anexação do

21 A este respeito ler: ALBUQUERQUE, Nedy Bianca Medeiros de. A cavalo dado não se olham
os dentes: O Bolivian Syndicate e a Questão do Acre na imprensa (1890 a 1909). São Paulo: USP,
2015. 207 f.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

Acre ao Brasil como ato patriótico, vinculado quase que exclusivamente a


luta para ser brasileiro, desenvolvida por seringueiros que aqui se encon-
travam, dissociando dos interesses financeiros e dos bastidores da política
internacional, da construção de fronteiras e identidade nacional do Brasil
República neófita a época. Tornando evidente, novamente a exceção de
Calixto, a predileção dos autores por estudar e problematizar o Acre como
estado da federação brasileira e suas disputas de terras urbanas e rurais, em
detrimento da transição do Acre entre a propriedade boliviana/peruana
como território pertencente ao Brasil.
É inadequado falar em divergências nas três obras sobre o nosso
tema pesquisado, visto que se embasam nas mesmas fontes secundárias.
Contudo, suas distinções são quanto aos momentos históricos em que fo-
ram escritas e publicadas, assim como as formas de edição e distribuição.
Se por um lado Acre: uma história em construção é fruto da redemocratização
e dos projetos sociais e culturais vinculados a gestão Nabor Júnior, primei-
ro governador eleito após os anos de ditadura civil-militar brasileira, por
22 isso sendo publicação de 1985 da Fundação Cultural a ser distribuída nas
• escolas da rede pública.
O primeiro livro de Carlos Alberto Alves de Souza, publicado na
década de 1990, é projeto pessoal, feito sob editoração do livreiro Manuel
Paim, com inspiração na História Nova, sobretudo nos “ingleses”, alicer-
çado nos diálogos e produções historiográficas feitas a luz dos professo-
res e ideias do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. O livro ganhou notoriedade pela censura sofrida e
pela disputa judicial envolvendo o uso do nome de personagem histórico
posteriormente denominado de “Coronel Correrinha”, e comprá-lo era
mais do que um ato preparatório para o então único vestibular do Acre
(período em que só existia a UFAC como ensino superior), configurando
ato de insubordinação, de crítica histórica e social.
Já nos anos 2000, com a modernização do História do Acre, em
seus “novos temas” e “novas abordagens”, com capa verde, fotografia
nova, maior volume e melhor qualidade no projeto gráfico, sob edição
e publicação de exclusiva responsabilidade de Carlos Alberto, verifica-se
uma atualização de conteúdos que não contemplaram o Bolivian Syndicate.

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

Depreendendo-se também nesta obra a predileção temática por assun-


tos contemporâneos, em desfavor dos anos da incorporação territorial do
Acre ao Brasil.
De tal modo, nos causando a sensação de sacralização de temas
centenários na historiografia acriana, negando questionamentos e conso-
lidando a ideia de uma identidade social e cultural alicerçada em clássicos
acrianistas de Craveiro Costa e Leandro Tocantins, em visões dos ven-
cedores, com culto a personalidades de Galvez e Plácido de Castro, em
desfavor de reflexões sobre anexação do Acre na perspectiva do que Jim
Sharpe chamou de History from below, entendemos que tal detrimento seja
na UFAC fruto de nossas preocupações com a História do Tempo Pre-
sente, predileção pelo trabalho com algumas fontes e metodologias, sobre-
tudo da História Oral, acrescido das dificuldades de acesso e lida com os
arquivos. Porém, a medida em que este artigo pretendeu acender a chama
dos debates sobre a historiografia acriana a partir de temas mais distantes,
a propositura que aqui se enfatiza é da continuidade dos diálogos e refle-
23 xões sobre o que e como estamos produzindo histórias, há ainda muito o
• que fazer.
REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Nedy Bianca Medeiros de. A cavalo dado não se olham


os dentes: O Bolivian Syndicate e a Questão do Acre na imprensa (1890 a
1909). São Paulo: USP, 2015. 207 f.
ANDRADE, José H. Fischel de; LIMOEIRO, Danilo. Rui Barbosa e a política
externa brasileira: Considerações sobre a Questão acriana e o Tratado de
Petrópolis (1903). Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v 46,
n.1, junho de 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S0034-73292003000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em
03 abr. 2013.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Barão de Rothschild e “A Questão do
Acre”. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 43, n. 2, Dec.
2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S003473292000000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 03 abr. 2013.
BARROS, José D’Assunção. A fonte histórica e seu lugar de produção.
In: Caderno de Pesquisa do CDHIS/UFU. v. 25, n.2, jul./dez. 2012. p. 407-

Sumário
Nedy Bianca Medeiros Albuquerque

429. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/


view/15209/11834> Acesso em: 04 mar. 2013.
CALIXTO, Valdir de Oliveira; SOUZA, Josué Fernandes de; SOUZA, José
Dourado de. Acre: uma história em construção. Rio Branco: Fundação Cultural,
1985. P. 118
FERREIRA REIS, Arthur Cezar. A Questão do Acre. Manaus: Typographia
Phenix, 1937.
SOUZA, Carlos Alberto Alves de. História do Acre. M. M. Paim Representação
e Comércio: Rio Branco, 1992.
SOUZA, Carlos Alberto Alves de. História do Acre: novos temas, novas
abordagens. Rio Branco, 2002.
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. 4.ed. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2001. V. 2. p.47

24

Sumário
UMA ANÁLISE DO PROCESSO
DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA
AYHUASCA NO BRASIL

Geovânia Corrêa Barros

Nesse capítulo, vamos tratar, a partir de recortes discursivos dos


agentes, as complexidades em torno do processo de patrimonialização
da ayahuasca no Brasil e tecer algumas considerações advindas da nos-
sa pesquisa de tese. Para comportar o espaço delimitado a este capítulo,
utilizaremos partes do campo empírico que são relevantes aos processos
de reinterpretação, regulamentação, tornados objeto de estudo, e que tam-
bém são tratados, pois, no âmbito de um campo22 definido, são tomados
como campo de forças e campo de luta simbólica, onde estão em disputa
significados e representações. Da luta simbólica aí estabelecida num cam-
po de concorrência e competições (representações, percepções do social
e sistemas de classificações que nunca são elaborações de forma neutras)
fará parte todo um conjunto de processos de atribuição de significados
que se configuram como formas culturais de apropriação simbólica e que
definem um dado projeto de construção social.
Nesta perspectiva, podemos falar de contextos múltiplos e sujeitos
múltiplos. o centro da discussão é a luta simbólica que se estabelece a par-
tir da atribuição de novos sentidos e significações à ayahuasca, bem como
sobre os processos citados. Tal postura metodológica implica em “des-

22 A necessidade de interpretar as disputas pela posse da tradição das quais participam as linhas, os
centros e os movimentos religiosos que usam a ayahuasca levou-nos a utilizar o conceito de campo,
como formulado por Bourdieu, que o define como uma “estrutura de relações objetivas” entre
as posições ocupadas por agentes, que determinam a forma das interações (objetivos, interesses,
formas de poder ou disputas socialmente instituídas) (BOURDIEU, 1989, p. 66). A agregação dessa
abordagem inclui à análise a variável das relações de poder, que vem complementar a proposta
analítica de Elias (2000).
Geovânia Corrêa Barros

materializar” o campo, em tratar sua problemática como inserida em um


contexto de relações de sujeitos entre si, de culturas entre si, privilegiando,
assim, representações e construções culturais no processo de reconheci-
mento público da ayahuasca. Estes processos envolvem diversos atores:
representantes dos grupos religiosos, o Estado, grupos e indivíduos exter-
nos ao campo, identificados com a utilização da ayahuasca no estado do
Acre, no Brasil e no mundo
Os dois processos – o de reconhecimento social e estatal através
da regulamentação judicial e o de patrimonialização da ayahuasca - são
potencialmente interessantes para analisar as disputas entre os grupos de
atores que ocupam posições de maior ou menor prestígio/legitimação no
campo e ajudam também a compreender as direções dos processos sociais
decorrentes do estabelecimento de configurações diferenciadas (no senti-
do proposto por Elias23) e a dialética do intencionado/não intencionado
pelos atores.
O campo ayahuasqueiro é uma abstração conceitual aqui construída
26 como um objeto submetido a controles internos e externos (o controle
• estatal sobre substâncias psicotrópicas). De certo modo, o uso da ayahuas-
ca24 é um dos casos da série de substâncias cujo uso experimenta pressões
sociais para a regulamentação. Outras dessa série seriam o álcool (em
determinado período da história, foi estabelecida a lei seca, e agora seu
uso é regulamentado em interface com o comportamento no trânsito), a
nicotina (objeto de campanhas estatais que regulamentam e inibem seu
uso em lugares públicos), a maconha, dentre outras.
As situações, discursos, eventos e discussões trazidas aqui têm de-

23 De acordo com Elias (2005): Redes configuracionais ou figuracionais são redes de


interdependência moldadas por formas estruturais e específicas e caracterizadas por serem flexíveis
e sujeitas a constantes transformações.
24 O termo ayahuasca está sendo usado aqui “de modo genérico para manter a uniformidade
do texto e a harmonia com a nomenclatura utilizada nos atos oficiais do CONAD” (Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas), órgão normativo do Sistema Nacional de Políticas Públicas
sobre Drogas (SISNAD), antigo Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN); dos grupos
ayahuasqueiros e do Inventário Nacional de Referências Culturais dos “Usos Rituais da Ayahuasca”
(relatório final), INRC da Ayahuasca do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/
IPHAN. Para se ter uma discussão ampliada se pode acessar a tese (BARROS, 2016), pois, este
artigo não comporta as diversas discussões teóricas sobre termos utilizados.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

monstrado os conflitos, a posição, o papel desempenhado pelos atores


sociais envolvidos no processo de patrimonialização da ayahuasca. Sendo
assim, o objetivo do artigo é discutir alguns dos resultados da pesquisa
de tese e demonstrar que as tipologias construídas resultam das figura-
ções histórico-sociais, lutas simbólicas e identidades sociais construídas
ao longo do processo histórico de formação dos centros religiosos no
Acre.A partir da perspectiva bourdieusiana, questionam-se, percebem-se,
verificam-se conceitos, programas, avaliações, análises técnicas, sistemas
de classificação como, por exemplo, uso religioso e uso não religioso; cam-
po originário, tradicional ou neoayahuasqueirocomo instrumentos de uma
dada forma de perceber e expressar o mundo e, simultaneamente, instru-
mentos de intervenção política.
O presente artigo visa contribuir para o conhecimento dos proces-
sos em pauta mediante às transformações culturais, e de expansão que o
campo ayahuasqueiro vem passando. Na II Conferencia Internacional da
Ayahauasca, uma questão expressou bem esse tipo de debate envolvendo
27 os diversos atores sociais e pesquisadores “Quem é o dono da Ayahuas-
• ca”? Os pesquisadores ressaltaram em seus trabalhos o uso terapêutico
da ayahuasca, demonstrando ser esse um tema polêmico. Como criar o
consenso entre os usuários para garantir o uso regulamentado pelo Estado
e como reconhecer o uso da ayahuasca como um bem cultural, patrimo-
nializável?Em suma, a formação da diversidade social ayahuasqueira e as
dinâmicas sócio-culturais destes processos demonstram a complexa rede
de configurações sociais caracterizadas pelas novas modalidades de uso
da ayahuasca, o que alguns autores tem denominado de ”globalização da
ayahuasca” 25. Sendo assim, o artigo foi construído a partir de recortes
discursivos em que se analisou as problemáticas em torno do processo de
patrimonialização da ayahuasca.
PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA:
TRADIÇÃO X MODERNIDADE

O processo de pedido de patrimonialização movimentou os ato-


25 Reginato (2010) fala da globalização do uso da ayahuasca; Otero dos Santos (2010) refere-
se a “diversidades de ayahuascas”; Labate & Feeney (2012) tratam do tema expansão e
internacionalização da ayahuasca.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

res sociais envolvidos com a questão do registro no campo tradicional


ayahuasqueiro do Acre desde abril de 2008. As instituições da adminis-
tração pública municipais e estaduais, órgãos da cultura do Acre, o meio
científico, políticos como a deputada federal do Acre, Perpétua Almeida
(PCdoB), e seus assessores, debateram calorosamente em uma série de
articulações e formaram um grupo de interesse em torno do tema, cons-
truindo uma aliança com os grupos tradicionais do Acre. Esta situação
inusitada em casos de patrimonialização no Estado do Acre constitui um
exemplo polêmico para a análise do contorno que assume e do caráter,
também múltiplo, dos significados das representações simbólicas adotadas
pelos diversos atores envolvidos de acordo com a sua posição no campo.
A ideia de fazer o pedido de reconhecimento nasceu, portanto, de
uma articulação do campo religioso ayahuasqueiro com a esfera política,
quando os grupos tradicionais da ayahuasca no Acre são fortalecidos em
uma aliança política local para a consolidação de uma ação intencionada e
definida, a de efetivar o registro da ayahuasca como patrimônio imaterial
28 da cultura brasileira. A ideia inicial consistiu em considerar o trabalho dos
• mestres fundadores e o que eles desenvolveram no Acre, nessa região da
Amazônia Ocidental, como um patrimônio cultural do Brasil, da cultura
do povo brasileiro. O processo de discussão que culminou na solicitação
dos grupos tradicionais foi resultado de um consenso entre os articulado-
res integrados na câmara temática26, caracterizado por um forte vínculo
político no nível local.
O processo de patrimonialização vem se desenrolando no momen-
to entre 2008 e dias atuais, uma vez que os resultados do Relatório Final
foram concluídos e seguem para as fases posteriores de identificação e
implementação do registro.Dentre as questões formuladas na análise do
processo aqui focalizado podemos citar as seguintes: o que a patrimoniali-
zação da ayahuasca significa em termos na estrutura do campo dos grupos
religiosos ayahuaqueiros? Qual os resultados intencionados e não inten-
cionados pelas comunidades tradicionais ayahuasqueiras? Qual o papel das
comunidades culturais ayahuasqueiras no processo? Qual a problemática
26 Em 2007 foi criada, no âmbito do Conselho Municipal de Políticas Culturais, da Fundação
Garibaldi Brasil (Rio Branco), a Câmara Temática das Culturas Ayahuasqueiras.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

que se instaura na questão da salvaguarda das tradições ayahuasqueiras?


Que bens culturais serão registrados e patrimonializados?
A partir do campo empírico, as entrevistas com os dois principais
articuladores do processo, realizadas separadamente, Marcos Vinícius das
Neves e Antônio Alves, foram determinantes para entendermos as ques-
tões e problemas levantados pelo processo de patrimonialização, como,
por exemplo, as questões enumeradas acima, e, particularmente, a questão
da participação das comunidades religiosas e dos diversos agentes sociais
envolvidos. Na visão do primeiro, há “evidentes sinais da oportunidade e
importância desse registro”. 27 Defensor dessa ideia, ele destaca os muitos
avanços que essas comunidades ayahuasqueiras tradicionais acreanas con-
quistaram nos últimos tempos. Segundo Neves, o movimento para que a
ayahuasca fosse reconhecida como patrimônio cultural imaterial no Esta-
do se iniciou na gestão do governador Jorge Viana (PT), quando o gover-
no do Estado do Acre e a Prefeitura de Rio Branco desenvolveram ações
de reconhecimento e valorização das comunidades religiosas ayahuasquei-
29 ras como políticas públicas. 28
• O elenco de medidas citadas foram: em 2005, a criação da primeira
Área de Proteção Ambiental (APA) do Estado do Acre; em setembro de
2006, o tombamento do CICLU (Alto Santo) por decretos simultâneos do
governador e do prefeito como patrimônio histórico e cultural do Acre
e de Rio Branco em 2010, ocasião em que foi realizado o “Seminário
das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca”. Ao final desse evento, os
fundadores das três comunidades religiosas foram homenageados pela As-
sembléia Legislativa do Acre, que concedeu a cada um o título de Cidadão
Acreano. Dessa forma, o Alto Santo já tinha uma iniciativa nesse sentido,
de ter o reconhecimento do patrimônio histórico material. As obras ma-
teriais que existem naquele local, como a casa de Mestre Irineu, a sede, o
local em que se realiza o feitio e até mesmo o túmulo em que jaz, ao lado
de dois companheiros, Leôncio Gomes da Silva e José das Neves, já ha-
viam sido reconhecidos pelo patrimônio municipal e estadual.
De acordo com Antônio Alves, articulador importante desse pro-
27 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.
28 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

cesso, jornalista, escritor e representante do CICLU - Alto Santo, a ideia


de “patrimonializar, registrar” surgiu, a partir de um grupo de pessoas e
por iniciativa de Marcos Vinícius. Inicialmente, Alves se reporta à articu-
lação política feita através da assessoria da deputada Perpétua Almeida,
que tem assessores da UDV, observando que coube a ela que “fizesse as
iniciativas, reunisse as pessoas e começasse a pensar nesse assunto, fizesse
alguma coisa a respeito”. 29 Segundo ele: “[...] Foram feitas as primeiras
reuniões para fechar uma ideia, de um texto, de uma carta e quando veio a
ocasião da visita do ministro Gilberto Gil ao Acre, então acelerou-se essa
elaboração para aproveitar a vinda dele aqui e entregar a carta diretamente
ao ministro. 30
Os entrevistados citados consideram que o atual processo tende a
ser de longa duração. Cabe destacar na fala abaixo o que é considerado
importante nele:
Se levar vinte anos o processo de registro, não tem
problema. O importante é que está havendo discussão,
30 o debate, está havendo pesquisa, está havendo elaboração
• de conhecimento a respeito do tema. Elaboração no âmbito
do debate antropológico cultural e não de um debate apenas
jurídico ou policial. 31

Neves observa o fato histórico das relações políticas mantidas no


tempo de Mestre Irineu, em que muitos governantes se aproximaram des-
sas comunidades “para usufruir dos benefícios eleitorais, mas não havia
lugar para eles dentro da configuração do estado”. Ele aponta uma mu-
dança significativa no governo Jorge Viana:
[...] Acho que foi um acúmulo de uma nova experiência
política, de relações das comunidades do Daime com os
vários níveis do Estado Brasileiro que levou a chegarmos
a este ponto: Vamos pedir o reconhecimento da ayahuasca
como patrimônio cultural do Brasil? Vamos. Mas como
vamos fazer isso? Aí começa o problema, não queremos

29 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.


30 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.
31 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

ser misturados. Vai tombar o quê? Quem vai ser dono


disso? Como vai funcionar isso tudo? Aí começou uma
série de questionamentos e desafios… e aí a gente começou
uma nova caminhada na busca de solucionar esses novos
desafios, caminhada que ainda está acontecendo, né? 32

A partir dessas colocações, a aliança política do Estado com as co-


munidades tradicionais ayahuasqueiras é um fato determinante no proces-
so, no desenho das posições diferenciadas no campo e quanto à legitimi-
dade e reconhecimento estatal dos grupos tradicionais do Acre, os quais
são bem representativos, não tanto em termos de números de membros
filiados, mas em termos de capital cultural e político. Segundo entrevista
com Neves, na gestão do governo Jorge Viana, as comunidades ayahuas-
queiras foram valorizadas ao lado de outras comunidades, sendo o proces-
so de patrimonialização da ayahuasca uma estratégia para tirar a questão
da ayahuasca do âmbito do Ministério da Justiça e do CONAD e passar
para o Ministério da Cultura.
31 No atual processo fiquei muito surpreso quando percebi
• que em 92, na Carta de Princípios, na elaboração da
Carta de Princípios, apesar de eu não ter acompanhado
o processo, saber pouco dos bastidores disso, o resultado
muito singular foi a construção de um consenso entre
grupos, o primeiro e até agora, único, porque o próprio
processo de patrimonialização, no fundo, ele é o único
consenso. Mas como fazer isso, é que não se tem um
acordo. Então foi quando começou essa busca de construir
um novo consenso em torno desse objetivo estratégico que
era tirar a questão da ayahuasca do âmbito do Ministério da
Justiça e do CONAD e passar para o Ministério da Cultura,
que deveria ser o lugar desde sempre. Até aí foi possível
construir o consenso que era interessante, que é importante
e que deveria ser um objetivo comum a todos”. 33

O processo de patrimonialização via IPHAN é a continuação de um


processo de reconhecimento que já vinha ocorrendo no plano estadual e
32 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.
33 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

municipal. Como mostra Neves (2015), a iniciativa de se criar uma câma-


ra de culturas ayahuasqueiras no Conselho Municipal de Cultura de Rio
Branco foi determinante para as discussões e articulações em torno da
questão do patrimônio histórico.
O papel da “Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras” tem ge-
rado um reconhecimento público nos âmbitos municipal e estadual. Se-
gundo Neves, no início, o que parecia depender de uma decisão externa
(Estado), se transforma em uma dificuldade interna ao campo dos grupos
ayahuasqueiros. Nas interrelações sociais, o processo de patrimonializa-
ção tem gerado polêmicas e controvérsias envolvendo representantes dos
grupos ayahuasqueiros tradicionais, neoayahuasqueiros, pesquisadores,
demais especialistas e representantes do Estado. Nesse trecho da entre-
vista, Neves (2015) expõe a problemática, demonstrando as posições dife-
renciadas dos atores envolvidos e a polêmica em torno da classificação do
campo ayahuasqueiro em três troncos:
Quando começamos a discutir de que maneira fazer isso,
32 aí começaram a emergir, então, os dissensos, né? Como
• é que vai colocar todo mundo num pacote só, se
somos tão diferentes? E colocar todos num pacote só
é inaceitável para todos. O que é mais curioso, não é que
muitas vezes se fala que os grupos daqui do Acre querem ser
os donos do Daime, da ayahuasca, e não aceitam costumes,
práticas, seja o que for, que vêm de outros grupos e tudo.
Mas, curiosamente, essa resistência também veio de outros
grupos, além dos grupos daqui. Né? O próprio CEFLURIS
se mostrou muito reticente em participar, por conta das
suas próprias características especificas, né? Independente
de quais sejam. A mesma coisa se deve dizer em relação aos
grupos indígenas que se sentiram, em alguma medida,
excluídos do processo. Então, qual foi a tentativa que a
gente fez, então, de buscar uma maneira de diferenciar no
interior deste grande arco ayahuasqueiro, os segmentos
que pudessem dialogar minimamente entre si? A tentativa
de estabelecer um diálogo comum a todos se desdobrou
na segmentação, na qual eles se sintam confortáveis para
dialogar dentro dos segmentos e a partir daí nos grandes

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

segmentos entre si. Foi quando a gente propôs os


troncos, os três troncos ayahuasqueiros: o tronco
originário dos povos indígenas, com uma diversidade
absurda dentro dele, porém mais simples, porque
dentro dessas comunidades indígenas a aceitação
das diferenças é muito mais tranquila [Por mais que
seja complexa, difícil de ser feita essa classificação,
a aceitação política interna é fácil de conseguir]; os
grupos tradicionais, que eu acho hoje, que devia ter
chamado de tradicionalistas, e não tradicionais… isso
surgiu depois, […] que seriam os grupos daqui, a
partir dos três mestres fundadores; e o dos Ecléticos.
E aí para minha surpresa, eu achava que o pessoal do
CEFLURIS ia ficar feliz da vida de ser iniciador de um
tronco inteiro completo porque na prática foram eles que
fizeram essa transposição da floresta para o resto do Brasil
e do mundo […] que abriram isso para o mundo todo e
começaram a receber influências outras que deu origem
a essa outra mega diversidade que tem. Porque pensam
33
eles que eles deveriam ser tradicionais também, porque

são amazônicos, porque surgiram aqui, porque até hoje,
CEFLURIS, Mestre Irineu, Raimundo Irineu Serra, né?
Então, eles, não conseguiam assimilar a possibilidade de
serem diferenciados desse grupo daqui. O que é engraçado,
até, porque os grupos daqui, passaram tanto tempo negando
eles, que me parecia óbvio, até, que eles mesmo quisessem
ser considerados diferentes, mas para minha surpresa, não
foi o que aconteceu. 34

O processo de patrimonialização da ayahuasca mobiliza uma com-


plexificação da rede de interdependências em que atuam os grupos religio-
sos e não religiosos que se reúnem em torno da ayahuasca35. A intenção
dos grupos religiosos ayahuasqueiros de demandar do Estado a patrimo-

34 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.


35 Para normatizar o uso da ayahuasca foi realizado, o CONAD realizou um Seminário em 2006,
com a participação dos grupos usuários da ayahuasca. Na ocasião, as entidades ayahuasqueiras
foram cadastradas e identificadas através das linhas, ou seja, da diferenciação simbólica ritualística
e originária de cada segmento religioso, ficando assim classificadas: linha do Mestre Raimundo

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

nialização da ayahuasca os coloca em uma rede de interdependência muito


mais ampla do que aquela em que atuavam antes, visibilizando tensões e
cismas dos diversos grupos do campo ayahuasqueiro mais geral. Sobre a
reestruturação do campo ayahuasqueiro, Neves (2015) expõe que o pedi-
do resultou de “uma articulação política de quem estava dialogando, não
foi uma exclusão proposital” dos outros atores sociais do campo, como o
ICEFLU e comunidades indígenas.
A amplificação do campo referido se deve ao ingresso de novos ato-
res sociais no processo de patrimonialização vindos do campo dos origi-
nários e dos ecléticos ou neoayahuasqueiros localizados em centros urba-
nos do Brasil. Aos atores da configuração inicial, aquela em que acontece o
processo de normatização da ayahuasca no Brasil, juntam-se os atores do
campo dos originários, os quais se enunciam como os verdadeiros detentores
do conhecimento cultural e tradicional do uso da ayahuasca. Mais uma vez emergem
os conflitos relativos ao uso e à posse legítima da tradição (conflitos de poder
simbólico).O discurso de Neves é emblemático ao narrar sua conversa
34 com Alex Polari, representante do ICEFLU:

[...] então, foi uma longuíssima conversa com Alex,
tentando mostrar para ele, as vantagens que o CEFLURIS
teria ao abraçar essa classificação, porque eles iam ser
líderes do tronco deles e os tradicionalistas iam ficar muito
mais confortáveis vendo o CEFLURIS liderar um outro
campo, só que o campo neoayahuasqueiro também tem
problemas... Também ficou difícil para o CEFLURIS liderar
um campo que, sob o qual, ele não tem hegemonia…”.36

Segundo Neves (2015), os conflitos referidos emergem dadas as in-


satisfações geradas pelo processo de patrimonialização como resultados
do processo de formação histórica dessas comunidades que acabaram se

Irineu Serra (Alto Santo); linha do Padrinho Sebastião Mota de Melo; linha do Mestre José Gabriel
da Costa (União do Vegetal) e outras linhas. A partir da instituição do Grupo Multidisciplinar de
Trabalho – GMT, organizado pelo CONAD, a primeira preocupação do GMT foi distinguir o
uso religioso, considerado legal, do uso não religioso (Barros, Tradição e modernidade no campo
Ayahuasqueiro, 2016).
36 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.

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Geovânia Corrêa Barros

diferenciando tanto, ao ponto de umas não conseguirem mais dialogar com as ou-
tras.
A intensificação da diversidade social do campo ayahuasqueiro sur-
ge como resultado não planejado do processo aqui focalizado, como uma
dificuldade em termos da relação entre a ampliação das redes configura-
cionais e seu controle por parte dos atores do campo religioso ayahuas-
queiro, traduzido na questão formulada por Neves (2015) nos seguintes
termos: “Como é que vai colocar todo mundo num pacote só, se so-
mos tão diferentes?”
Para Neves, configura-se, por exemplo, a emergência de se estabele-
cer um ‘consenso internacional’, referente ao uso da ayahuasca em diver-
sas comunidades indígenas na América Latina, na Amazônia e no Acre.
Conforme explica:
[…] a questão da ayahuasca entre os povos indígenas é
muito mais ampla – panamazônica e plurinacional – e não
está restrita aos grupos indígenas da Amazônia brasileira.
35 Assim, a inserção dos índios neste processo de inventário,
• sem dúvida, aumentou muito sua complexidade, extensão
e implicações. 37

Há uma diferenciação entre o uso da ayahuasca nas comunidades


indígenas, considerado como não religioso, e não sendo, portanto, uma
questão judicializada no processo de normatização. No processo de patri-
monialização, a entrada dos atores indígenas, em busca dos benefícios es-
perados em termos de políticas públicas e reconhecimento social, entram
em cena, o que não havia sido previsto pelos grupos do campo religioso
ayahuasqueiro, reconhecidos por defender o uso da ayahuasca apenas em
rituais religiosos.
A diversidade social do campo ayahuasqueiro configura-se quan-
do os grupos que não participaram do pedido original queixaram-se ao
IPHAN de serem excluídos do processo pelos grupos do campo religio-
so ayahuasqueiro tradicional, fato que fomentou ainda mais as diferenças
políticas entre os diversos atores envolvidos. Segundo Neves (2015), as

37 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

principais divergências e configurações dos grupos ayahuasqueiros são


marcadas pela falta de consenso. O processo teria sido “mais célere, mais
fácil”, se a construção do consenso tivesse sido ampla e abarcado mais
elementos dessa diversidade cultural interna da ayahuasca. Dessa forma,
o dissenso constitui algo não planejado, um obstáculo, Neves considera
que o diálogo do campo dos tradicionais com o campo dos originários
“[…] é mais tranquilo. Falta para os originários a maturidade de saber o
lugar da ayahuasca para eles. E aí eles têm dificuldades de conversar com
os tradicionais”. 38 O segundo passo, a partir daí, seria obter o registro
da ayahausca como Patrimônio Cultural da Humanidade, considerandoa
configuração“no arco pan-ayahuasqueiro, pan-amazônico, que vem desde
lá da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, não é uma ação para o
governo brasileiro. Deveria ser uma ação conjunta desses países amazôni-
cos com a participação dessas outras comunidades indígenas...”
Os desdobramentos do processo de patrimonialização visibiliza o
não intencionado pelos atores do campo tradicional que assinaram a carta
36 dirigida ao então Ministro da Cultura, em abril de 2008. Isso fez com que
• as entidades solicitantes iniciais adotassem um outro encaminhamento,
em 10.9.2014, por meio de uma carta protocolada ao IPHAN, assinada
também pelo atual governador do Estado do Acre (Sebastião Afonso Via-
na Neves) e o prefeito do Município de Rio Branco (Marcus Alexandre
Médici Aguiar Viana da Silva), na qual declaram que “passados quase seis
anos e cumprida a etapa inicial do processo de registro”, uma nova solici-
tação foi necessária para ter “informação e avaliação do andamento do
referido processo”.
Vejamos um trecho do novo encaminhamento:
[...] reconhecemos que o título de nossa solicitação inicial,
referindo-se ao registro do ‘uso da Ayahuasca em rituais
religiosos’ pode remeter a um fenômeno amplo, cobrindo
um vasto território e período de tempo. Consideramos,
entretanto, que a breve descrição das práticas culturais
a serem registradas as situa num período histórico
breve, meados do século passado, e num território

38 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.

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Geovânia Corrêa Barros

restrito e bem delimitado, a Amazônia Ocidental,


especificamente os estados de Acre e Rondônia, bem
como um conjunto de bens de fácil identificação,
pois inseridos na biografia dos mestres fundadores
e nos costumes das comunidades em que eles
desenvolveram as doutrinas religiosas que usam a
Ayahuasca […] (negrito nosso). 39

Afirma-se, então, mais uma vez a ação intencionada dos solicitantes


de forma mais esclarecida:
[…] Nosso desejo é simples: de que seja oficialmente
reconhecido o que já existe de fato, ou seja, que as práticas
culturais derivadas do uso da Ayahuasca em rituais
religiosos introduzidas no universo cultural brasileiro pelos
Mestres Irineu Serra, Daniel de Mattos e Gabriel da Costa
em meados do século 20 na Amazônia Ocidental sejam
consideradas parte do patrimônio do povo brasileiro. 40

Esse segundo encaminhamento apresenta, de modo subjacente, a proposta de


37
• que os grupos originários– o dos indígenas – que teriam “pegado carona” no
pedido inicial de patrimonizalização da ayahuasca encaminhado pelos gru-
pos religiosos ayahuasqueiros, sejam retirados da rede configuracional a
ser considerada pelo IPHAN. Nesse sentido, apresentam alguns exemplos
ilustrativos de casos de patrimonialização que podem originar demandas
de pesquisas sobre origens remotas do que se quer patrimonializado, mas
sem que o processo se alongue.
A segunda carta foi referenciada pelos grupos tradicionais “como
complementação ao pedido original de Registro da Ayahuasca, apontando
para uma nova constituição de território, tempo e comunidades a serem
focadas pelo processo de instrução técnica”.41 A intenção manifesta des-
ta segunda proposição foi obter “maior celeridade do processo”, pois, a
intenção não desejada dos atores, conforme afirmado, resulta em uma si-
tuação em que:

39 Carta Protocolada ao IPHAN/2014.


40 Carta Protocolada ao IPHAN/2014.
41 Cf. Memória Reunião Ayahuasca/IPHAN, 25 de março de 2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

[...] os representantes temem que ao ampliar o campo


de pesquisa as comunidades indígenas e outros tipos
de uso da bebida para além das comunidades apontadas
o IPHAN perca foco do registro pedido inicialmente,
e por consequência que o processo de Registro demore
demasiadamente. 42

Na síntesedessa reunião ocorrida em Brasília (25.3.2015), outras


questões sobre a especificidade dos cultos e rituais das linhagens dos re-
presentantes foram apresentadas:
Os representantes afirmaram que as linhagens de culto
que seguiram Mestre Irineu, Mestre Gabriel e Mestre
Daniel constituem as bases mais sólidas para a instrução do
processo de Registro. Neste caso as comunidades indígenas
seriam referidas como originárias e essas linhagens como as
comunidades tradicionais de referência para o processo. 43

A reivindicação de inclusão dos grupos indígenas usuários da ayahuas-


38 ca, autodefinidos como originários aparece na síntese dessa reunião (docu-
• mento cedido pela Câmara Temática), como fator determinante para a
tomada de posição da presidente do IPHAN, Jurema de Sousa Machado,
que considerou o tema complexo do ponto de vista da atuação institucio-
nal. O superintendente do IPHAN no Acre esclareceu que o processo não
esteve parado ao longo desses anos e que a Câmara Setorial do Patrimônio
Imaterial solicitou mais informações para que possa deliberar sobre a per-
tinência do pedido e, sobretudo, que também fosse pautada a questão dos
usos da ayahuasca em comunidades indígenas.
A questão de “qual o lugar da ayahuasca” remete ao fato de que
os indivíduos atribuem sentidos e valores diferenciados a seus territórios,
práticas sociais ou visões de mundo, e consequentemente, a partir daí,
apresentam interesses diversos, e muitas vezes opostos. Nos argumentos
apresentados nesse discurso, fica explícito que o maior desafio hoje, no
atual processo de registro, consiste em conseguir fazer os grupos “discuti-
rem entre si, colocar essa pauta na mesa”. O processo do inventário “gera
42 Cf. Memória Reunião Ayahuasca/IPHAN, 25 de março de 2015.
43 Cf. Memória Reunião Ayahuasca/IPHAN, 25 de março de 2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

uma ação política contínua, pois traz a necessidade de diálogo”, embora


cada grupo siga o seu caminho, reconheceu que já se “saiu daquela coisa
velada que consiste nas cismas, tensões entre os grupos. 44
A nosso ver, as dinâmicas de interrelações sociais entre os grupos
ayahuasqueiros evidenciadas pelos processos aqui analisados, pelos en-
contros, seminários, documentos produzidos pelos grupos demonstram
as posições sociais diferenciadas em torno de seus interesses, relativas à
construção de suas identidades sociais.
O processo em sua própria natureza é permeado de tensõessobre as
ambiguidades do conceito de patrimônio cultural e sua construção social.
Há tensão entre os significados, sentidos sociais (costumes), e normas téc-
nicas e burocráticas que orientam a ação do estado, elas se manifestam de
várias maneiras, por exemplo, nesse caso, os grupos tradicionais respon-
sabilizam o IPHAN pela morosidade do processo, contestando as regras
de registro oficialmente estabelecidas, pelo fato de o objeto do patrimônio
não se adequar aos requisitos exigidos ou formulados. Em nossa interpre-
39 tação, os valores e concepções divergentes que orientam as práticas dos
• grupos, têm uma implicação decisiva para a definição do bem cultural e
para a ação do Estado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O QUE VAI SER
PATRIMONIALIZADO?
“Não é a cultura que tem que se adequar às
regras. As regras é que têm que se adequar à
cultura, se ampliar, se modificar de acordo com
elas” (Antônio Alves).

A política de preservação do patrimônio imaterial brasileiro é recente, instituída


pelo Decreto Federal nº 3551, criado em 4 de agosto de 2000. Um elemento importante
a destacar desse decreto, segundo Amaral, é “que durante muito tempo os elaboradores
do decreto cogitaram inserir no texto do instrumento legal uma conceituação sobre bens
culturais imateriais”. 45 Em suas próprias palavras
[...] para “se ter uma ideia, das oito propostas de documento

44 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.


45 Amaral, Patrimônio cultural e a garantia de direitos intelectuais indígenas, 2014, p. 131.

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Geovânia Corrêa Barros

legal formuladas durante os trabalhos da Comissão e do


GTPI (Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Imaterial) que
tenhamos conhecimento, até a sétima versão (sexta Minuta
de Decreto) havia uma conceituação inserida no texto do
documento. 46

Segundo ele, ela foi excluída com a intenção de deixar o texto do


decreto mais enxuto. No documento referido a proposta de conceituação
do tema se deu da seguinte forma:
Entende-se por bens culturais de natureza imaterial
as criações culturais de caráter dinâmico e processual
(saberes, modos de fazer, festas, celebrações, folguedos,
linguagens verbais, musicais, performáticas e iconográficas,
conjuntos de práticas culturais coletivas, concentradas em
determinados espaços), fundadas na tradição e manifestadas
por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão
de sua identidade cultural e social. Para os efeitos desse
Decreto toma-se tradição no seu sentido etimológico de
40 ‘dizer através do tempo’, significando práticas produtivas,
• rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas,
mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o
passado. 47

Na aplicação dessa ação institucional para identificar, registrar e sal-


vaguardar os bens culturais da ayahuasca, a problemática inicial era como
isso poderia ser feito no contexto dos grupos ayahuasqueiros, enquanto
religião ou cultura (conhecimento tradicional). Polemizando questiona-
mentos e dúvidas, o sociólogo e pesquisador Juarez Bomfim questionou
em 2011:
[...] o que registrar e onde registrar? O preparo (feitio)
da bebida ayahuasca, no Livro dos Saberes? Os rituais
religiosos, no Livro das Celebrações? Os hinos, salmos
e chamadas no Livro das Formas de Expressão? Ou os
santuários religiosos no Livro dos Lugares? 48

46 Amaral, Patrimônio cultural e a garantia de direitos intelectuais indígenas, 2014, p. 131.


47 Arquivos do IPHAN/Documentos do GTPI apud AMARAL, 2014 p.131.
48 Bonfim, Declarar a ayahuasca patrimônio imaterial da cultura brasileira, 2011.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

A ação intencionada do CICLU - Alto Santo e dos outros centros


representados seria na direção de obter o reconhecimento da ayahuasca e
de seus usos rituais enquanto parte da formação cultural brasileira. Explica
Alves que esse fato, para a prática, ou, para o dia a dia dessas comuni-
dades, será importante, por tratar-se de “um reconhecimento que pode
ser uma espécie de documento, carteira de identidade, reconhecimento
de utilidade pública”49 necessário para que as comunidades possam “se
afirmar, aprovar seus projetos, relacionar-se com o Estado, com as ou-
tras denominações religiosas, com a comunidade e com a sociedade em
geral”. 50 Vejo esse documento definido como “um reconhecimento de
utilidade pública” relacionado ao âmbito das interrelações sociais e redes
de interdependências configuradas no campo ayahuasqueiro próprias da
modernidade. Ainda segundo Alves, “no dia a dia das comunidades pouco
muda, porque a prática que elas desenvolvem cabe a elas mesmas continu-
ar se desenvolvendo com ou sem ajuda, com ou sem reconhecimento por
parte do Estado”. 51
41 É o que vemos no trecho de entrevista com Alves, abaixo trazido:

Uma vez que sem o reconhecimento e muitas vezes
enfrentando resistências que elas têm se mantido ativas e
vivas ao longo dos últimos cem anos. Então não acredito
que a patrimonialização dos produtos culturais, isso é
importante insistir, há uma compreensão de diversas
pessoas, inclusive de pessoas do IPHAN, que nós estamos
pedindo a patrimonialização do registro do uso ritual
da ayahuasca, não é isso. Nós sabemos que uma religião
não pode ser declarada patrimônio cultural. Mas nós
consideramos que, em torno do uso ritual da ayahuasca, se
gerou uma série de produtos culturais, uma série de práticas,
procedimentos, rituais, lugares, conhecimentos, técnicas,
habilidades, artes, enfim, um conjunto de valores culturais
que são contribuições significativas à cultura da Amazônia
e do Brasil. Nós queremos, nosso pedido vai no sentido
de reconhecer a formação cultural dessas comunidades

49 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.


50 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.
51 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

como parte da formação cultural brasileira, e acho que


essa patrimonialização, o registro dessas formações
culturais, dessas contribuições à variedade, à diversidade
cultural do Brasil, pode sem dúvida beneficiar não só as
comunidades existentes, mas até as futuras, as que vierem a
ser criadas porque vão estar associadas a uma tradição que
é reconhecida (grifo nosso). 52

Para Alves, a matéria abarca um âmbito ainda indefinido “do que


pode, do que deve e do que é adequado ser patrimonializado”.53 Reco-
nhece a complexidade do tema, considerando que, o próprio processo
de patrimonialização, e, a ideia de produto cultural, bem cultural a ser
patrimonializado, ainda é muito restrita no Brasil, tendo apenas dez anos
de experiência nesse tipo de registro de patrimônio. Faz-se imprescindível
esclarecer que “diversamente de outras representações coletivas, o sentido
patrimonial dos conhecimentos, expressões culturais e artefatos patrimo-
niais – considerados em sentido estrito, não emana diretamente das prá-
ticas disseminadas em determinado meio social”. 54 Apesar de derivarem
42
• destas, “são  instituídos por um complexo processo de atribuição de valor
que ocorre no âmbito da esfera pública”55, com referência ao conjunto de
instituições de representação e participação da sociedade civil no espaço
político administrativo do Estado.  Sendo assim, a atribuição “de valor pa-
trimonial a determinado artefacto ou prática cultural é feita em nome do
interesse público, fundamenta-se no conhecimento acadêmico e obedece
a preceitos jurídicos e administrativos específicos”. 56
Retornando a Alves:
[...] ainda vai ser necessário […] o próprio IPHAN
pode aproveitar a oportunidade das dificuldades de
patrimonializaçaão de registro das culturas ayahuasqueiras,
para elaborar, para ampliar os seus conceitos e seu
instrumental de reconhecimento de bens imateriais, porque

52 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.


53 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.
54 Arantes, Patrimônio Cultural, 2012, p. 111.
55 Arantes, Patrimônio Cultural, 2012, p. 111.
56 Arantes, Patrimônio Cultural, 2012, p. 111.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

a própria palavra bens a serem inventariados já remete


a uma espécie de cópia imaterial do que é o patrimônio
material. O patrimônio material precisa de bens, precisa de
objetos a serem descritos e patrimonializados. O patrimônio
imaterial pode descrever não objetos ou produtos, mas
processos, fluxos, coisas que são demasiadamente etéreas,
difíceis de delimitar, ao contrário dos objetos, que são
facilmente delimitáveis. Então, acho que o não objeto, que é
próprio da cultura imaterial, é mais um “subjecto”. Quando
se trata de reconhecer, é uma dificuldade, apresenta uma
dificuldade enorme de abordagem, e essa dificuldade, é
uma oportunidade muito grande de enriquecer a ciência
nacional. Eu acho que antropólogos, arquitetos, sociólogos
ou qualquer tipo de profissional que se debruça sobre o
patrimônio imaterial tem que rever a sua formação e o
seu arcabouço conceitual, os paradigmas da sua ciência
para poder olhar para a cultura com olhos novos, com
um olhar novo e não com um olhar de um instrumental
teórico desenvolvido no século XIX e metade do século
43
XX, que é a ciência que nós temos hoje e que se ensina

nas universidades. O que a ayahuasca está oferecendo ao
Brasil é uma oportunidade de aprendizado, que é triste se
for desperdiçado. O prejuízo não é tanto das comunidades
tradicionais, que vão continuar desenvolvendo e atualizando
sua tradição, mas, enfim, das outras comunidades do Brasil
afora, que poderiam receber um novo olhar por parte do
estado brasileiro, revivido, reformulado, reformatado pela
experiência de olhar para esse objeto novo, esse sujeito novo
que é a ayahuasca. Novo para o Estado brasileiro; para a
cultura, pro povo, ele é bastante antigo. Uma oportunidade,
acho isso interessante (grifo nosso). 57

Nossa hipótese de interpretação do processo de patrimonialização


da ayahuasca, demandado pelos grupos tradicionais do campo religioso
ayahusaqueiro, é que sua direção é uma combinação de resultados inten-
cionados e não intencionados. A mudança de instância de consideração
– saindo do CONAD, da judicialização, para o IPHAN, para a de patri-
57 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

monialização em termos de contribuição cultural – seria o resultado inten-


cionado. As tensões geradas pelas demandas dos grupos originários e dos
neoayahuasqueiros, por suas demandas de ampliação do reconhecimento
dos usos extra-religiosos da ayahuasca, seria um dos resultados não inten-
cionados do processo aqui analisado.
A primeira demanda encaminhada pelos grupos do campo religioso
ayahuasqueiro dos tradicionais seria a de patrimonializar o processo histó-
rico e cultural da formação da cultura ayahuasqueira no Acre, da tradição
religiosa fundada por Mestre Irineu, Mestre Daniel e Mestre Gabriel. O se-
gundo pedido encaminhado ao IPHAN é modificado, no sentido de reco-
nhecer às pressões dos grupos originários e neoayahuasqueiros, e esclarecer a
solicitação de reconhecimento da ayahuasca como processos e elementos
formadores do universo simbólico, linguagens, ciência da ayahuasca, o que
se constituiria como patrimônio cultural brasileiro. No segundo pedido os
grupos tradicionais, reafirmam
[...] que o uso da Ayahuasca em rituais religiosos vem das
44 tradições imemoriais dos povos originários da Amazônia,
• na região em que hoje ainda vivem esses povos ou seus
remanescentes, incidindo sobre os territórios de vários
países. Também não desconhecemos o uso religioso da
Ayahuasca por novas comunidades e organizações que se
formaram nos últimos 40 anos em todo o território brasileiro
e diversos países em todos os continentes. Consideramos,
entretanto, que a pesquisa sobre a imensa variedade de
usos da Ayahuasca, ancestrais ou contemporâneos, não
prejudica nem é prejudicada pelo eventual registro das
tradições especificadas em nossa solicitação inicial. 58

Instaura-se a polêmica sobre a propriedade de se considerar que o


uso da ayahuasca pelos povos indígenas possui outro contexto sociocultu-
ral e seria um caso a ser considerado pelo IPHAN como outro processo
de demanda de patrimonialização. Para Neves, as demandas de inclusão
na patrimonialização dos usos dos grupos indígenas corresponderia a uma
nova configuração, ligada à ampliação da escala considerada para o campo

58 Carta Protocolada ao IPHAN/2014.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

internacional, incluindo populações e grupos de vários países que formam


“um arco pan ayahuasqueiro, pan amazônico”59 ,englobando a Venezuela,
a Colômbia, o Equador, o Peru, a Bolívia, principalmente aqueles que
ocupam a área mais próxima da Cordilheira dos Andes. A argumentação
de Neves é de que se justificaria a separação dos processos pelo fato de
que a cultura ayahuasqueira acreana, embora herdeira dessa configuração,
resultaria de uma ressignificação cujo recorte é a passagem de uma cultura
internacional para uma cultura brasileira.
Ressaltamos novamente que no caso do patrimônio cultural, do
ponto de vista institucional, é essencial “o caráter externo do processo
de atribuição de valor patrimonial às dinâmicas sociais locais” que trazem
“implicações diretas sobre a participação das comunidades culturais nos
inventários e na identificação dos bens patrimoniais”. 60 Para Arantes, “o
patrimônio é construção social”, e para compreender essa “prática como
fato social”, temos que “indagar qual é o seu objeto e quais as agências e
agentes que a põem em marcha; em que condições e quadro institucional
45 ela ocorre; e que valores mobiliza”. Essas questões são fundamentais e
• “exigem reflexão ancorada na investigação empírica e na consideração das
circunstâncias em que os problemas se configuram”. 61
A entrada em cena dos grupos indígenas aumenta a complexidade
da questão da patrimonialização envolvendo os grupos indígenas é tema
da presente problemática inserida nesse processo. Segundo entrevista de
Neves: “Os índios ayahuasqueiros aqui da região do Acre passaram para
os fundadores do Daime e do Vegetal o conhecimento do uso dessa bebi-
da, que também ocorre no Peru, Bolívia e Equador”.62 O processo de re-
gistro apresenta controvérsias, segue na direção de políticas de construção
de consensos ( como foi o pedido ao IPHAN, O Encontro da Diversidade
Ayahuasqueira) , as quais envolvem tensões, como visto nas interrelações
dos grupos ayahuasqueiros do campo tradicional com os atores do campo

59 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015;


60 Arantes, Patrimônio Cultural, 2012, p. 120.
61 Arantes, Patrimônio Cultural, 2012, p. 120.
62 Neves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 15/04/2015.

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Geovânia Corrêa Barros

dos ecléticos ,neo-ayahuasqueiros eoriginários. As próprias comunidades


tradicionais reconhecem que o uso da ayahuasca é de origem indígena.
A cultura indígena caracteriza-se por sua diversidade63 - há diversos
povos indígenas e troncos linguísticos, de ambientes culturais e origens
culturais diversos, que utilizam a ayahauasca, seu uso se espalha por toda
região dos Andes, Equador, Venezuela. Por essas características, a ideia
inicial dos grupos tradicionalistas sobre o tombamento não incluiu as na-
ções indígenas, indicando que seria mais apropriado para isso um inventá-
rio especifico sobre o campo, que teria por base levantamentos e pesquisas
das origens indígenas e seu contexto histórico, pois formam uma outra
ampla rede de configuração social. A passagem do uso da ayahuasca da s
comunidades indígenas para as comunidades não indígenas é referendado
por um uso diferenciado, o que foi objeto de reconhecimento pelo Estado
brasileiro, sendo legitimado o uso religioso da ayahuasca.
O processo histórico e cultural, cujos personagens foram Mestre
Irineu, Mestre Daniel e Mestre Gabriel, fundou um tipo de trabalho espi-
46 ritual ou uma religiosidade cristã, popular, nordestina, que pode ser consi-
• derada como patrimônio cultural imaterial. Não apenas são detentoras da
memória viva da formação da doutrina as comunidades tradicionais que se
reportam ao ethos ou habitus das pessoas que conviveram com os fundado-
res, além da herança oral, memória, experiências, preservam testemunhos,
documentos, fotografias. Sobretudo, as comunidades tradicionais têm res-
saltado que permanecem na mesma prática do ritual, costumes, linguagens
do período de formação das doutrinas. A cultura ayahuasqueira do campo
tradicional incorporou a cultura indígena e a ressignificou em uma cultura
própria. O processo de patrimonialização da ayahuasca em curso enfrenta
a amplitude e diversidade de elementos a serem patrimonializados, como
vemos na fala de Alves abaixo citada:

63 No Estado do Acre, o uso é generalizado entre grupos indígenas e seringueiros. De acordo com
Andréa Martini (2015, p.10), há cerca de quinze grupos indígenas com informações oficiais (FEM,
2010), dentre eles: Kontanawa, Yaminawa, Shanenawa, Shawadawa, Ashaninka, Nawa, Madija,
Manchineri, Yawanawa, Apolima Arara, Puyanawa, Katuquina, HuniKuin. Além disso, a autora
destaca que a ayahuasca, denominada regionalmente cipó, jagube e mariri, é comumente utilizada
entre populações ribeirinhas, agricultores e seringueiros. “Não se trata, nesse caso, de um uso
religioso, embora contenha registros de religiosidade” (MARTINI, 2015, p.10).

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

[...] ainda tem um conjunto de coisas, eu costumo dar


como exemplo, a prática da União do Vegetal de utilizar em
algumas de suas reuniões, músicas de cancioneiro popular.
Ora, não é uma cultura produzida pela UDV, entretanto, ali
dentro, se escuta, por exemplo, cantorias do Nordeste que
estão esquecidas, desvalorizadas, cujo registro se perdeu
e que, no âmbito da UDV, elas permanecem. Você tem
aí é feito um recorte de produção cultural de uma região
do Brasil que nenhuma outra instituição produziu essa
preservação, esse recorte e incorporou ao seu cabedal.
Se essas contribuições podem permanecer no âmbito
da vida cultural nacional é porque a União do Vegetal as
resgatou e conserva e vivencia, porque ninguém mais fez
isso com eficácia, com um tipo de olhar, com um tipo de
uso que a UDV fez [...] Os tais bens patrimonializáveis
que o IPHAN procura […] pode ser reconhecido aí dentro.
Aí, esse mundo de coisas que eu digo que vai desde o
conhecimento da biodiversidade até a produção de móveis
de arquitetura até a produção de música e cosmologia
47
[...] o campo de pesquisa é amplo não existe uma rede

suficientemente grande que cubra esse mar de cultura que
existe na comunidade da ayahuasca. Qualquer rede que
você lançar vai pescar alguma coisa. 64

Como resultados não planejados do processo aqui focalizado, está a am-


pliação da rede de configurações referidas à ayahuasca e as dificuldades que essa
diversidade social representa para o IPHAN na delimitação do campo religioso
ayahuasqueiro. Mesmo delimitando o campo ao dos grupos tradicionais do Acre,
observamos uma grande diversidade, a próxima etapa de identificação e definição
do bem imaterial,mostra a complexidade desse processo. Um momento em que
as lutas pela legitimidade e reconhecimento envolve a constituição de redes mais
complexas de interdependências. Conforme entrevista com Facundes (2016), Ele
lembra que alguns países já reconheceram a ayahuasca como parte do patrimônio
deles, como o Peru. “No Brasil o processo travou por razões que não justifi-
cam: deve incluir ou não os índios? Deve incluir ou não os “outros” usos
de ayahuasca? etc. Uma forma de travar um processo de reconhecimento
64 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

cultural é tentar reconhecer as infinitas formas que um fenômeno pode


assumir em dada realidade”. Em sua análise, ele também vai observar as
interrelações sociais entre os dois processos de normatização e patrimo-
nialização, reconhecendo que “o tema do reconhecimento da diversidade
cultural é objeto de tratados internacionais e de muitos estudos, com o
objetivo de impedir que minorias religiosas sejam sufocadas pelo modo de
vida da maioria dominante”:
O ato de inscrever a ayahuasca como parte do patrimônio
cultural brasileiro seria mais um ato de reconhecimento da
identidade de uma minoria religiosa do Brasil. Em si
mesmo, ele possibilitaria maior possibilidade de a geração
do amanhã saber que na Amazônia brasileira nasceram
algumas religiões com base em tradições indígenas pré-
colombianas. Não creio que aumentaria significativamente
a liberdade religiosa do uso da ayahuasca, mas seria mais
um argumento a seu favor.65 

Quando perguntamos a representantes do campo religioso ayahuas-


48
• queiro tradicional quais os bens a obterem na patrimonialização e se, ne-
cessariamente, teriam que ser comuns a todas as outras tradições, tivemos
respostas como esta, que citamos a título de ilustração do ponto acima:
Pode ser que sim, pode ser que não, não sei. Acho que
têm comunidades que têm uma determinada prática que
outra não tem. Mas isso não significa que essa prática, por
existir em uma comunidade e em outras não, que ela não
deve ser reconhecida. O que faz com que uma contribuição
seja reconhecida como contribuição importante à cultura
brasileira não é a quantidade de pessoas de comunidades
ou a generalização do seu uso. Às vezes há contribuições
que são extremamente minoritárias. Uma comunidade
que faz aquilo. Mas ela está tão profundamente incrustada
na matriz de uma contribuição cultural que ela influencia
outras práticas de outras comunidades mesmo que não a
façam. Então, eu acho que as regras de patrimonializaçao
podem ser revistas. Não é a cultura que tem que se adequar

65 Facundes, Roteiro de questões concedidas a Geovania Barros em 11/03/2016, p. 03.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

às regras, as regras é que têm que se adequar à cultura, se


ampliar, se modificar de acordo com elas. Se de repente
você faz uma série de regras para patrimonialização e você
vê que coisas importantes vão ficar de fora dela, então
muda a regra, muda os critérios porque esses critérios são
insuficientes. Se adequar à realidade. Eu acho que se você
tem uma rede muito pequena você vai pescar pouco peixe.
Amplia a sua rede, afina a malha dela pra pegar peixes mais
miúdos. Os deleuzianos tem uma discussão entre o que é
molar e o que é molecular. Tem coisas e processos que são
moleculares. Eles são muito miúdos, então, se espalham
no comportamento e na vida social. E tem coisas que são
molares são grandes e pesadas são institucionalizadas (grifo
nosso). 66

A defesa vista acima, de que todos os centros que fazem o uso da


ayahuasca no Brasil seriam beneficiados, aponta para a necessidade de re-
conhecer que todos os centros são herdeiros dessa prática religiosa, em
49
que o registro do processo histórico seria uma referência cultural reconhe-
• cida como um patrimônio imaterial, como expressão cultural significativa
na cultura nacional. O que implica em suspender hierarquias, definições de
ortodoxia e de heterodoxia no campo religioso ayahuasqueiro.
Essa suspensão de estruturações e sistemas de posições no campo
está implícita no próprio sentido elusivo do termo patrimonialização, que
deveria servir, de acordo com Alves:
[...] para o reconhecimento de identidades e de afirmação
de formas diferentes de estar no mundo, de formações
culturais e históricas e reconhecimento de seu valor, de
seu passado, da sua experiência do que você produziu ao
longo de séculos, mas ela não pode servir, ela não serve,
e ela é burra quando ela serve para apropriar-se de algo e
retirar algo de outro, dizer isso é meu e não é seu. Então,
nacionalismo, quando cai nisso, ele é uma armadilha, então
o fato de ser reconhecido, patrimonializado, pertencente
à pátria, patrimônio é da pátria, não é privatizado, não é
retirado dos outros, não é objeto de motim, que você se

66 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

apropria e guarda exclusivamente pra si e impede os outros


de chegarem perto. Então, nesse sentido, também o que
vale pra fora vale pra dentro. A comunidade que tem o seu
bem cultural patrimonializado, ela não detém exclusividade
sobre aquilo, ela pode até obter um reconhecimento de
autoria e que, portanto, gera determinados direitos, mas
essa ideia de propriedade, não só propriedade material
mas a propriedade intelectual, mais ainda propriedade
cultural, ela precisa ser encarada com muito cuidado para
não gerar supressão de direitos nem para as comunidades
criadoras de conhecimento nem para as comunidades que
necessitam daqueles conhecimentos e que legitimamente
podem acessá-lo. Acho que se tem uma comunidade que
descobriu a cura do câncer, essa comunidade não pode, o
restante da humanidade não pode utilizar-se dessa cura do
câncer sem reconhecer os direitos dessa comunidade que
descobriu, que criou, que inventou aquele conhecimento.
Mas, ao mesmo tempo, não é ético, essa comunidade
não deve, não é lícito que ela retenha para si uma coisa
50
que vai beneficiar a humanidade inteira. Então, ela é uma

comunidade não humana? Os laços de solidariedade
dessa comunidade com o restante da humanidade foram
rompidos, por que eles foram comercializados, por que eles
foram declarados propriedade? Então, esse conhecimento
é dessa comunidade e é também da humanidade, porque
essa comunidade é parte da humanidade. Então há uma
discussão de direitos aí que é bastante delicada, fina, porque
não se pode desrespeitar direitos individuais nem coletivos,
comunitários nem humanitários. Então é uma discussão
que precisa ter sensibilidade e generosidade ela não pode
ser feita com atitude gananciosa. A patrimonialização da
ayahuasca não visa garantir os direitos da comunidade
tradicional. Nós não estamos pedindo que nosso direito
seja reconhecido. Nós estamos oferecendo ao Brasil um
conhecimento que nós desenvolvemos dizendo, isso
pertence a todos os brasileiros. Se não quiserem, pior pro
Brasil, não é pior pra nós, não. Vamos continuar com a
nossa cultura, nossa ciência, nosso patrimônio. Se o Brasil

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

não quiser reconhecer e lançar mão desse patrimônio como


sendo patrimônio dele, problema do Brasil, não é nosso. 67

Essa é uma outra questão fundamental acerca do assunto, pois não


se patrimonializa os centros, e sim os bens intangíveis que são coletivos.
Segundo Araújo (2015), o maior ganho da patrimonialização consistiria
em obter uma legitimidade maior diante das instituições públicas “essen-
cialmente no que diz respeito aos problemas anteriores que se teve com a
ayahuasca, do ponto de vista da sua proibição de uso”. Também encontra-
mos no discurso desse entrevistado a percepção das interrelações sociais
entre os dois processos:
Através do inventário, o reconhecimento público é um
dos instrumentos jurídicos e políticos que as comunidades
podem ter e mostrar: olha nós fomos reconhecidos dentro
do Brasil, as nossas práticas, como algo que é registrado
pelo IPHAN. Porque essas comunidades, esses grupos
foram muito humilhados durante décadas; seja por
instituições públicas sejam por grupos de pessoas. Então
51
• é um aspecto que se ganha. O outro são as políticas de
salvaguarda na qual essa questão é apenas uma delas. Por
exemplo, educação patrimonial dentro das comunidades,
valorização dos aspectos culturais como salmos, hinos, a
questão própria artística dentro; a questão da salvaguarda
do entorno das comunidades. Nós temos hoje; vou te dar o
exemplo, o Irineu Serra ali, eles estão dentro de uma APA,
então, o que que está sendo feito pra proteger o entorno
das comunidades? Isso são políticas de salvaguarda. A
política de salvaguarda, ela não está encerrada, dentro do
bem em si, mas da articulação desse bem com outros; com
outros bens ou com outras coisas que podem afetar esse
bem, então eu diria que é fundamentalmente isso.68

Outros esclarecimentos foram essenciais, sobre a definição dos bens


a serem registrados nesse processo. Segundo entrevista com com o antro-
pólogo Wladimir Sena Araújo, membro da equipe do INRC, ele informou

67 Alves, Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015.


68 Araújo, Entrevista concedida a Geovania Barros em 03/07/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

que a equipe conseguiu listar alguns “e sabe-se que não foi suficiente, por-
que essa etapa de aprofundamento dos bens, ela vai se dar na etapa seguin-
te”. Segundo ele, o papel da equipe, na momento da fase de levantamento
do INRC Ayahuascafoi de identificar e indicar os bens, “mas não apontou
qual o bem deveria ser registrado. Ele explica:
Por quê? Aí, vem a grande questão, porque nós achamos,
chegamos a um consenso, de que, quem tem que definir
esse bem são os atores e não a gente. Como aconteceu
em Xapuri. A gente fez um grande encontro com os
seringueiros com as pessoas da cidade para eles definirem
qual o bem que eles gostariam que fosse inventariado; que
fosse patrimonializado, digamos assim. Nós não decidimos
isso. E nós nem temos o poder para fazer isso. Seria antiético
de cada um dos profissionais fazer isso. Então eu sugeri que
houvesse um encontro, a própria câmara temática ela pode
puxar essa discussão; chamar representantes indígenas
também e dizer: e aí, qual vai ser o bem que a gente vai
colocar para o registro? Então, aonde a gente pode ir foi
52
• até a identificação dos bens. Essa discussão da definição do
bem que vai ser patrimonializado ou registrado, essa é uma
discussão que tem que ser feita ou com os atores ou com
os representantes dos atores dessas instituições ou desses
grupos indígenas ou comunidades. 69

O presente artigo teve um enfoque nos discursos de atores sociais


envolvidos no campo empírico, trazemos aqui alguns problemas e proble-
máticas inseridos no debate sobre o processo de patrimonializacão, para
isso, privilegiei alguns recortes discursivos para mostrar como o processo
é carregado de disputas, de lutas e de reinvenções que gira em torno do
que é tradicional e moderno. A partir dos recortes surgem modelos de hie-
rarquização, sistemas classificatórios que permeiam o debate e a polêmi-
ca instaurada envolvendo a construção de identidades sociais dos grupos
ayahuasqueiros. Esses foram considerados como construções simbólicas
discursivas.
Para a análise das relações entre os grupos que formam o campo re-

69 Araújo, Entrevista concedida a Geovania Barros em 03/07/2015.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

ligioso ayahuasqueiro, uma questão que se colocou se referia a qual noção


utilizaríamos para unificar os outros atores, os classificados como não tra-
dicionais. A expansão da ayahuasca para os meios urbanos ganha notorie-
dade com o trabalho de Labate (2004), que relata o surgimento de novos e
polêmicos personagens, chamando-os de “neo-ayahuasqueiros” (ayahuas-
queiros independentes). Eles emergem no cenário dos grandes centros
urbanos e colocam em curso práticas que representam “novas modalidades
de consumo da ayahuasca”70 A expressão acima mencionada aparece várias
vezes, com sentidos diversos, tanto no interior dos discursos dos atores
envolvidos, quanto em conceitos enunciados pelos vários autores. Quem
são os novos atores que entram no campo ayahuasqueiro a partir de 1971,
após a morte do Mestre Irineu, período marcado por medo, tensões e dis-
putas no grupo de seus seguidores e, ainda, pela visibilização midiática das
primeiras transgressões, noticiadas na imprensa de modo estigmatizante em
relação ao daime. Por outro lado, não se de trata de estabelecer critérios
mínimos sobre o que é ou o que não é tradicional, na medida em que a
identidade do grupo tradicional não é tradicional por si mesma, senão na
53 medida em que os sujeitos políticos assim o leiam e assim se representem,

entrando em lutas classificativas efetuadas pelos grupos sociais que, não
sendo neutras, ordenam o social e, dando-lhe sentido, tornam inteligível o
espaço a ser desvendado. 71
Uma última consideração a respeito do processo atual de patrimo-
nialização é sobre suas etapas subsequentes, a identificação e o registro
dos bens, nas quais a definição dos bens imateriais a serem patrimoniali-
zados será feita com a participação das comunidades de detentores, como
também será decidida a inclusão ou exclusão das comunidades indígenas
do processo. A atual conjuntura implica na instalação de uma zona de
indefinição a respeito do que pode, do que deve e do que é adequado ser
patrimonializado.
Sobre essa questão do que patrimonializar, o dirigente da Arca da
Montanha Azul, que se considera como pertencendo ao campo neo-
ayahuasqueiro, fez considerações essenciais que certamente serão discuti-
das pelas comunidades e pela equipe de especialistas e IPHAN. Algumas
70 Labate, A Reinvenção do uso da Ayahuasca nos centros urbanos, 2004, p. 92.
71 Chartier, A História Cultural, 1990, p. 17.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

questões levantadas por Bandeira de Mello (2016) foram fundamentais


para demonstrar a complexidade do tema, com relação ao que vai ser feito
nessas atividades posteriores, isto é, do que vai ser registrado:
Acho perfeitamente justo e importante patrimonializar
Mestre Irineu, Frei Daniel e o Mestre Gabriel,
nossos digníssimos patriarcas e pioneiros. Mas, quem
consideraremos seus legítimos representantes e quem
não? Quem introduziu o bailado na Barquinha foi Mestre
Antônio Geraldo. Ele entrará ou não? Ele tem quantidade
imensa de Salmos e músicas de Parque (bailado). E os índios
com sua rica cultura, com trabalhos cuja sofisticação nada
fica a dever em riqueza cultural aos das igrejas clássicas? E
os Neo-Ayahuasqueiros com sua imensa riqueza cultural?
E todos os que receberam hinos depois deles? Padrinho
Sebastião, Luís Mendes e muitos outros? Nossa belíssimas
músicas (da Arca), recebidas na força da ayahuasca? Novas
e revolucionárias metodologias e pesquisas em múltiplas
casas que surgiram mais recentemente? Novas maneiras
de compreender o significado da ayahuasca e de preparar-
54
se para sua ingestão? E os hinos recebidos por pessoas de

outros países a partir da ayahuasca levada por brasileiros?
E os maravilhosos desenhos e escritos realizados durante
as cerimônias na Arca, coletados ao longo de muitos anos,
talvez mais de uma década, como exemplos de arte realizada
a partir de estados holotrópicos de consciência que, além do
importante valor estético, atestam as mudanças psicológicas
para melhor que as pessoas alcançam por meio da ayahuasca
em cerimônia multirreligiosa que envolve elementos dos
três troncos e outros ingredientes espirituais que eles não
possuem? Etc., etc. Tenho medo de monopólios. Como
congelar a Ayahuasca, em processo, em desdobramentos,
como um rio que corre com águas sempre renovadas,
como Vinho Novo que necessita constantemente de Odres
Novos, em formulações fechadas, limitadas e limitadoras,
que correm o risco de engessar o que deve ser uma aventura
criativa com experiências sempre diversas em um caminho
de aprendizado sem fim? 72 

72 Melo, Entrevista concedida a Geovania Barros em 24/03/2016.

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

REFERÊNCIAS

AMARAL, Leandro Ribeiro do. Patrimônio cultural e a garantia de direitos


intelectuais indígenas: construção de sentido a partir da experiência Huni
kuin. Dissertação de Mestrado. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, 2014.
ARAÚJO, Wladimir Sena. Breves apontamentos sobre o continuum do uso
da ayahuascaIn: IPHAN. INRC – Inventário Nacional de Referências cul-
turais dos “usos rituais da ayahuasca”. Acre, 2015.
ARANTES, Antônio A. Patrimônio Cultural. In: SOUZA LIMA, Antônio
(Org.) Antropologia e Direitos: temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio
de Janeiro/Brasília: Contra CAPA/LACED/Associação Brasileira de Antropo-
logia, 2012.
BARROS, Geovânia Corrêa. Tradição e Modernidade no Campo Ayahuas-
queiro: uma análise a partir dos processos de regulamentação e patri-
monialização da ayahuasca no Brasil no período de 1985/2016. Campina
Grande: UFCG, 2016, 343 p. Tese (Doutorado), Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande,
55 2016.
• BOMFIM, Juarez Duarte. Declarar ayahuasca patrimônio imaterial da cul-
tura brasileira. Desafios frente as dificuldades e limitações de atender os
critérios do Iphan. Disponível em http://culturarb.blogspot.com/2011/06/
declarar-ayahuasca-patrimonio-imaterial.html. Acessado em 29/09/2015.
BURLAMAQUI, Flávia. História política recente da ayahuasca (1991-2012).
2015.
CHARTIER, Roger. A história cultural - entre práticas e representações. Rio de
janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: so-
ciologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
IPHAN. INRC – Inventário Nacional de Referências culturais dos “usos
rituais da ayahuasca”. Acre: 2015.
LABATE, Beatriz. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos.
Campinas: Mercado das Letras. 2004.

ENTREVISTAS:

Sumário
Geovânia Corrêa Barros

ALVES, Antônio. Entrevista concedida a Geovania Barros em 01/07/2015, Rio


Branco, 2015.
ARAÚJO, Wladimyr. Entrevista concedida a Geovania Barros em 03/07/2015,
Rio Branco.
FACUNDES, Jair. Roteiro de questões concedidas a Geovania Barros em
11/03/2016, Rio Branco.
MELO, Phillipe Bandeira de. Entrevista concedida a Geovania Barros em
24/03/2016
NEVES, Marcos Vinicius. Entrevista concedida a Geovania Barros em
15/04/2015.

56

Sumário
ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE
SINCRETISMO RELIGIOSO
EM RELIGIÕES E GRUPOS
AYAHUASQUEIROS

Wladimyr Sena Araújo

Pierre Sanchis (1995) apresenta de forma elogiável, uma discussão


acerca do sincretismo, tendo como pano de fundo o espaço luso – brasi-
leiro. Ele inicia seu texto comentando que a noção de sincretismo sempre
deu bastante trabalho para os teóricos, principalmente no que concerne a
própria definição do termo. Para alguns, sincretismo soa como “mistura”,
algo que não é “puro”. Portanto, “pureza”, “mistura” e “sincretismo” se-
riam conceitos etnocêntricos. 73
Sincretismo, para ele, não se restringe somente ao fenômeno religio-
so, mas está manifestado na própria cultura, onde identidades se articulam
simetricamente e assimetricamente. Exemplo disso são aquelas que estão
inseridas em um campo religioso e em um campo profano. 74 O processo
no qual ocorre o sincretismo religioso, segundo o autor, se dá de forma
desigual ou desarmônica entre duas culturas, duas religiões, uma religião e
uma cultura. Isto resulta na hierarquia e, conseqüentemente, em relações
de poder. Mas sincretismo é bem mais do que relações de poder, isto por-
que estas relações são apenas uma das facetas na qual resultam o seu rico
processo.
O processo sincrético é polivalente o suficiente para acolher
as mais diversas cristalizações, sem que a multiplicidade
das pesquisas se encontre nunca condenada à repetição

73 Sanchis, As Tramas Sincréticas da História, 1996, p. 123.


74 Sanchis, As Tramas Sincréticas da História, 1996, p. 125.
Wladimyr Sena Araújo

ou à aplicação sistemática de um mecanismo sincrético


particular, uma vez descoberto. 75

Sempre existiu uma tentativa de definir o sincretismo de forma ab-


soluta. Mas as concepções de sincretismo são tão variadas, assim como são
variados os processos que podem definir uma religião como sincrética, no
sentido antropológico do termo. Entretanto, faz-se necessário entender
em que contexto falamos deste fenômeno no seio de uma religião ou cul-
tura específica. A fórmula universal para aplicar a um fenômeno, designa-
do tecnicamente, pode ferir em grandes proporções o processo histórico
que o levou a ser construído.
O sincretismo entre católicos e religiões afro, será
provavelmente bem diferente se partir do povo – de – santo
ou do grupo de Agentes Negros da Pastoral Católica que,
está se esforçando por criar um quadro ideológico e cultual
no qual lhes seria possível se definirem como negros. Para
uns e outros, o sistema matriz, poderá ser invertido. E
nada impede que os dois sistemas possam se reinterpretar
58
• mutuamente, sem que exista mais algum sistema matriz. 76

Algumas práticas religiosas encaradas por muitas pessoas como


“puras” são sincréticas, como é o caso do catolicismo, que sofreu influên-
cias de outras religiões e de filosofias. No caso do cristianismo, este
[...] já foi analisado como religião sincrética. Nascida na
confluência de três correntes religiosas e/ou filosóficas: o
judaísmo, ele mesmo fruto do sincretismo do caldeamento
cultural do Médio Oriente, Grécia Clássica e helenismo
tardio. No entanto, a concepção cristã de homem e de
sua relação com Deus trazia uma ruptura anti – sincrética.
No interior do mundo cristão, pelo menos ocidental, o
catolicismo parece-me o único por evidenciar esta marca,
sincrética por natureza e, sincrética por vocação.77

O autor fala ainda dos santuários, igrejas, capelas ou paróquias como

75 Sanchis, As Tramas Sincréticas da História, 1996, p. 126.


76 Sanchis, As Tramas Sincréticas da História, 1995, pp. 126-127.
77 Sanchis, As Tramas Sincréticas da História, 1995, pp. 127-128.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

pontos de identidades locais, de onde irradiam as identidades cristãs. Dos


templos obtemos o culto e, junto com ele, a marca fiel da doutrina cristã.
Para ele, sincretismo abraça, na verdade, uma discussão sobre identidade
religiosa.
Nesse jogo histórico de cruzamentos de identidades
religiosas, será preciso distinguir dois níveis analíticos: em
primeiro, o das instituições religiosas que afirmam a sua
diferença e reivindicam a sua especificidade; em segundo, o
da vivência efetiva dos fiéis. 78

A vivência religiosa de que fala Sanchis pode ser colocada de duas


formas. A primeira, um processo de religiosidade decorrente da partici-
pação do indivíduo em uma religião. A segunda evidencia a participação
do sujeito em rituais de várias instituições religiosas. Neste sentido, o an-
tropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1994) chamou a atenção para dois
tipos de sistema: o “sistema religioso” empregado por M. Gutierrez no
qual religiões do tipo do catolicismo, possuem símbolos de identidades
59 universais reconhecíveis e, aquilo que Brandão nominou de “sistema de

sentidos”, ou seja, a combinação de elementos simbólicos, pelo indivíduo,
de vários indivíduos sem ter vínculo a nenhuma, aceitando as práticas de
cada uma, mas sem estar ligado diretamente a elas. Ainda assim, lembra-
mos àqueles que, uma vez pertencentes a religiões ecléticas, participam vez
por outra de cultos de religiões diversas que tenham a ver ou não com o
composto simbólico da sua.
Abaixo, discorreremos sobre conceitos antropológicos de sincretis-
mo para religiões ayahuasqueiras. Queremos deixar claro que estas noções
foram cunhadas por estudiosos. Portanto, constitui um olhar de pesquisa
que necessariamente pode não ser consenso, mas é importante expor de
que maneira aqueles que pesquisaram religiões ayahuasqueiras se manifes-
taram sobre o assunto.
SANTO DAIME

Alguns estudiosos enquadraram algumas religiões usuárias de

78 Sanchis, As Tramas Sincréticas da História, 1995, p. 132.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

ayahuasca como ecléticas. Segundo a literatura antropológica este ecletis-


mo propicia ao indivíduo uma experiência que se dá
[...] por uma operação [...] através da qual são ecleticamente
reaproximados, sobrepostos, e/ou refundidos elementos
oriundos das várias tradições, nativas e importadas, que a
mobilidade geográfica das pessoas e dos produtos culturais
põe hoje à sua disposição. Novas entidades coletivas
apontam no horizonte dessas operações, mas elas tendem,
em regra, a serem transconfessionais, ameaçando desde
já, nesse sentido, redesenhar nessas sociedades centrais o
mapa do campo religioso contemporâneo. Parece possível
esperar das conseqüências desse fenômeno uns efeitos
de transformações mais radicais que as do tradicional
‘sincretismo brasileiro’. 79

Para Goulart80, o Santo Daime abriga uma série de valores de religi-


ões distintas como aspectos do catolicismo popular, kardecismo, religiões
afro e, também, do xamanismo, sendo este último elemento decorrente
60 das práticas caboclas ou mestiças.

A autora agrega o uso do Daime ao modelo de curandeirismo ama-
zônico. A mesma expõe que o culto rompe com a antiga tradição do uso
do chá e a proximidade do xamanismo mestiço é muito mais evidente do
que o xamanismo indígena. O fato é que a sua pesquisa tenta resgatar as
origens do culto e evidencia também a formação de um calendário ritual
da religião do Santo Daime. Ainda assim, busca relacionar o surgimento
desta “linha” com as mudanças no mundo rural brasileiro. Posteriormente
a este tipo de análise, Goulart volta a sua atenção para a formação do Cen-
tro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra e após dis-
cutir a formação da dissidência daimista evidencia o conceito de daimista
do sul, o qual, em outras palavras por nós traduzidas, seriam pessoas de
classe média urbana que tiveram pouco ou nenhum contato com o meio
rural. Estes eram influenciados por modelos alternativos da década de 70.
O pesquisador Fernando La Roque Couto81 reconhece o Santo Dai-
79 Sanchis, As Tramas Sincréticas da História, 1995, p. 134.
80 Goulart, As Raízes Culturais do Santo Daime.
81 Couto, Santos e Xamãs, 1989.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

me como uma religião que contém práticas religiosas diversas, mas a sua
ênfase repousa na argumentação de que a mesma é uma religião xamânica.
Segundo a sua concepção haveria dentro deste sistema um xamanismo
coletivo e todos os participantes seriam “xamãs em potencial”. O mesmo
acaba por definir também o xamã como um “especialista do trânsito entre
o aqui e o lá, o corpo e o espírito”. 82
A sua idéia acerca de xamanismo entre o damistas tem início, se-
gundo ele, com a iniciação de Raimundo Irineu Serra. A forma como foi
concebida a sua iniciação associa-se com a abstinência de xamãs de socie-
dades indígenas. Prossegue colocando tanto Irineu Serra como Sebastião
Mota como xamãs. Ainda assim, afirma que cada neófito que ingressa na
doutrina passa por este processo, que produz em cada um deles uma trans-
formação, ou morte simbólica e uma reorientação espiritual.
Os membros desse sistema religioso são como aprendizes
de xamã, ou xamãs em potencial. Embora existam os
comandantes do trabalho, a atividade xamânica não é
61 exclusividade de alguns iniciados, como nas sociedades
• indígenas em geral, e a prática ritual é o aprendizado desta
arte do êxtase, À parte, a vocação xamânica, todos tem
participação ativa no ritual. A coletividade do culto pode,
através da técnica de concentração e acesso aos cânticos, que
são a principal ferramenta para as viagens extáticas, ‘voar’
pelo Astral com característica de xamã viajante ou servir
como aparelho para a recepção de seres, com características
do xamã possesso. O batalhão formado faz um xamanismo
coletivo, específico dessa linha de trabalho. 83

Enfim, o autor conclui que o Santo Daime tem uma grande influên-
cia da cultura ameríndia devido o hábito de uso da substância sagrada, o
que caracterizou toda a sua discussão do Santo Daime com o xamanismo
indígena. Entretanto, não nega que existam influências de outras práticas
religiosas tal é o caso de características afro – brasileiras ou do catolicismo.
Esta questão do xamanismo já vem sendo estudada desde a década
de 80 do século passado por alguns pesquisadores, com destaque para
82 Cemin, Ordem, Xamanismo e Dádiva, 2001, p. 51.
83 Couto, Santos e Xamãs, 1989, p. 195.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

Clodomir Monteiro da Silva. 84 O autor procurou relacionar em seu tra-


balho o culto do Santo Daime a um contexto macro- social amazônico.
Neste caminho, Monteiro da Silva enfocou as mudanças estruturais que
a cidade de Rio Branco e arredores haviam passado e como se constituiu
esta religião na primeira metade do século XX.
Monteiro da Silva estabelece duas distinções de transe em seu tra-
balho. Por um lado o “transe xamânico individual”, por outro o “transe
xamânico coletivo”. Ao falar de transe o mesmo está se referindo ao pro-
cesso de “miração” que para Véra Fróes nada mais é do que um estado
na qual a pessoa pode ter vidências, visões que intensificam cores e que
possibilitam uma sensibilidade maior dos canais sensórios. Pode ser con-
siderado, também, uma viagem ao interior humano, fazendo com que o
Daime desperte o inconsciente coletivo. 85.
A idéia de “xamanismo coletivo” também foi comungada pela an-
tropóloga Arneide Bandeira Cemin86. Segundo a estudiosa, a terminologia
faz parte de seu suporte técnico de “sistema daimista”. Tal concepção foi
62 inspirada no conceito de Monteiro da Silva acerca do Sistema de Jurami-
• dan, que envolve todos os grupos ligados à linha do fundador do Santo
Daime.
Segundo ela a relação com a substância se diferencia de outras regi-
ões da Amazônia, como é o caso do uso por parte de caboclos e vegetalis-
tas do Peru. No seu entendimento, esses indivíduos tem uma relação mais
direta com a cura, sendo esta uma das principais características deste tipo
de xamanismo mestiço.87
Por outro lado, o “Sistema Daimista” envolve cultos organizados,
são “ritos de ordem” que reúnem inúmeras pessoas. Além de concordar
com a idéia de Couto, alerta que este tipo de xamanismo tem uma hierar-
quia e é justamente este fator que permite considerá-lo como uma religião
de ordem. Prossegue a antropóloga:
Mestre Irineu é um “eleito” pelo sagrado para a continuação

84 Monteiro da Silva, O Palácio de Juramidan, 1985.


85 Fernandes, História do Povo Juramidan, 1986, pp. 25 a 26.
86 Cemin, Ordem, Xamanismo e Dádiva, 1998.
87 Luna, A Barquinha, 1995.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

de sua permanência no mundo, portanto, o ponto de


partida de vista do “sistema”, os adeptos só podem realizar
o seu potencial xamânico se estiverem sintonizados ao
Mestre. Nesse esquema, a viagem xamânica do adepto é
“dádiva” do Mestre ao discípulo perfeitamente integrado e,
deste modo, “merecedor”. 88

O sistema daimista, para ela, é parte da tradição xamânica ayahuas-


queira, designada pela autora como “cultura da floresta”. Cemin, ao se re-
ferir a xamanismo na religião por ela estudada,opta pelo termo “xamanis-
mo de excorporação”, referindo-se ao tipo de êxtase que os adeptos tem
ao ir a outras dimensões da cosmologia envolvida. Justifica a sua afirmação
pelo fato de que outras práticas de êxtase – como a incorporação – não
serem corriqueiras nos locais por ela estudados.
A idéia de “xamanismo de excorporação” parte do pressuposto de
Baldus para o qual o êxtase ocorre através de duas formas: através de
viagens a outras dimensões e outro pela possessão. É de Baldus que a pes-
63
quisadora resgata a idéia de xamanismo de excorporação e incorporação.
• Neste caso, o seu trabalho vai ao encontro do pensamento de
BRUNELLI 89 e LAGROU 90, pelo qual o xamanismo não é produto pri-
vado de xamãs, mas da experiência religiosa geral expressa em um sistema.
No caso daimista envolve três aspectos fundamentais: 1 – a bebida; 2 – a
doutrina; 3 – o relato mítico. O ponto crucial deste sistema é a dádiva entre
os seres humanos e o divino.
A tentativa interessante de Cemin consiste em relacionar no CECLU
e CICLU o pensamento xamânico à magia divina, isto é, ligar o xamanis-
mo à filosofia do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. Diante
desta afirmativa, justifica o fato do xamanismo de “excorporação” ade-
quar-se ao esoterismo encontrado no Círculo Esotérico da Comunhão do
Pensamento. 91
O trabalho de Alberto Groisman92 enfatiza o conceito de ecletismo
88 Cemin, Ordem, Xamanismo e Dádiva, 1998, p. 52.
89 Brunelli, Xamanismo aos Xamãs, 1993.
90 Lagrou, Xamanismo e Representações entre os Kaxinawá, 1993.
91 Cemin, Ordem, Xamanismo e Dádiva, 1998, pp. 108-109.
92 Groisman, Eu Venho da Floresta, 1991; Groisman. Santo Daime, 1993.

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religioso, tendo como ponto focal a noção de práxis – xamânica. Segundo


o autor, o Santo Daime não pode ser enquadrado tipicamente enquanto
xamanismo, mas como uma religião que tem dentro de sua doutrina uma
práxis – xamânica.
A sua proposta admite que a base deste fenômeno surgido no Acre
tem origens indígenas. A práxis – xamânica, nos Centros que praticam este
tipo de Atividade, adota através de seus membros uma dinâmica de rela-
ções com características de grupos indígenas da região, bem como carac-
terísticas do catolicismo popular, religiões afro – brasileiras, kardecismo,
filosofia do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento e também da
ordem Rosa Cruz.93 Temos, portanto, o encontro de elementos indígenas,
africanos e europeus na formação da doutrina daimista.
Groisman enumera sete aspectos que mantém relações profundas
do xamanismo indígena para religiões que fazem o uso da ayahuasca. São
elas:
1) uso de substâncias sagradas – o surgimento destas religiões tem o seu
64 vínculo ligado diretamente ao uso da ayahuasca. Para que o indivíduo faça
• o uso é necessário obedecer a recomendações e regras para consumi-la
em espaços sagrados. Estas envolvem a proibição de relações sexuais dias
antes e depois da beberagem, bem como a proibição do uso de bebidas
alcoólicas neste mesmo espaço de tempo.
Segundo Macrae94 esta dieta é uma herança xamânica de Povos
Indígenas, bem como de caboclos/ vegetalistas que mantinham e ainda
mantém abstinência para fazer o uso da ayahuasca. Sendo assim, uma das
principais finalidades da dieta é a de realizar a limpeza do organismo e do
espírito. Para isso as pessoas devem fazer o uso de alimentos leves e evitar
o álcool, isto porque seguindo estes passamos pode-se ter o desencadea-
mento de um estado ampliado de consciência.95
2) Morte simbólica e revelação – o auto conhecimento é o resultado des-
ta busca interior que culmina no fardamento. Ao se fardar a pessoa passa

93 Macrae, Guiado pela Lua, 1992.


94 Macrae, Guiado pela Lua, 1992.
95 Macrae, Guiado pela Lua, 1992, pp. 33-34.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

a ter uma nova forma de vida manifestada através de uma nova conduta
moral que fará parte de seu dia- à – dia.
3) Alianças e personificação dos “espíritos” – os espíritos podem vir de
planos diferentes para prestar auxílio nos trabalhos rituais (o autor trata,
neste caso, da religião daimista).
4) Doença e cura – constituem os dois lados de uma mesma moeda.
Uma doença pode debilitar fisicamente uma pessoa, mas no processo de
cura, entidades são evocadas para livrar o indivíduo de alguma enfermi-
dade. Na maioria dos casos, quando uma pessoa apresenta uma doença,
existe um pensamento coletivo de que por trás de uma enfermidade existe
uma causa espiritual. Este sentido assemelha-se bastante ao pensamento
Zande estudado pelo antropólogo Evans – Pritchard, em sua obra: “Bru-
xaria, Oráculos e Magia entre os Azande” (1976), fala da analogia das duas
flechas na qual um pensamento corriqueiro tem a sua causa última no lado
espiritual, especialmente a doença.
Neste sentido, a antropóloga Maria Cristina Peláez96, ao estudar uma
65 comunidade daimista em Florianópolis, procurou analisar as representa-
• ções acerca de saúde, doença e cura na doutrina do Santo Daime. Na sua
concepção, a cura entre os daimistas é sempre uma “cura espiritual” e
curar-se espiritualmente é “curar-se na doutrina”, o qual envolve não só
um tratamento físico de doenças, mas também transformações da vida co-
tidiana, como por exemplo: personalidade, concepção corporal, concep-
ções de trabalho, relações familiares, relações com a sociedade e relações
com a natureza. 97
5) Guerra mística – em religiões ayahuasqueiras este aspecto tem a
sua validade, pois existem entidades de luz e seres trevosos. Somente para
exemplificar, na religião da linha de Mestre Daniel, há uma batalha cons-
tante entre os seres de luz versus os seres considerados inferiores. Há, portanto,
uma finalidade de conversão durante os rituais realizados.
6) Os dois lados do mundo – uma realidade visível supõe sempre uma
outra invisível. A forma como o indivíduo caminha diante do visível terá
o seu reflexo no invisível e vice – versa.
96 Peláez, No Mundo se Cura Tudo, 1997.
97 Peláez, No Mundo se Cura Tudo, 1997, p. 94.

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Wladimyr Sena Araújo

7) Tradução e mediação – existe uma forte relação dos líderes dessas


religiões com um xamã de uma sociedade indígena no sentido de que estes
traduzem realidades do “mundo invisível” para o grupo envolvido. Estes
líderes são os principais agentes que tentam estabelecer o equilíbrio dos
espaços que dirigem, relacionando os seres dos planos cosmológicos dife-
rentes com o adepto ou praticante.
Essas semelhanças, entretanto, não supõem que estas religiões se-
jam xamânicas. Em primeiro lugar, a sua principal diferença para o sistema
xamânico é a noção de êxtase. Enquanto o xamã conduz a viagem para
o bem-estar da comunidade, os integrantes daimistas, por exemplo, asso-
ciam a viagem ao autoconhecimento. Em segundo lugar, está a formação
cosmológica de cada um dos grupos e o processo histórico da construção
de cada um.
Walter Dias Júnior (1992) atenta para o desenvolvimento do culto
daimista em contextos fora da Amazônia. Considera essa expansão a ou-
tros locais extrarregionais, como uma possibilidade de integração do culto
66 a uma realidade nacional, um movimento religioso, segundo ele, abrigando
• “errantes da Nova Era”.98 Segundo a sua concepção,
Esse movimento retira-lhe o caráter de culto de resistência
cultural, conferindo-lhe a característica de mobilidade,
tanto espacial (através do processo de expansão), quanto
simbólica (com a realização de novos sincretismos). 99

O seu trabalho aponta que uma das conseqüências da expansão do


Santo Daime, expresso através do CEFLURIS, é o fato dele abrigar diver-
sas influências de práticas religiosas e filosóficas dentro de um culto, na
medida em que esses elementos são apenas mais um na busca da espiritua-
lidade. Essa abertura a outras práticas, acrescenta, permitiu uma mobilida-
de, um deslocamento a outros contextos culturais sem perder, entretanto,
a sua própria identidade. 100
Desta forma, é possível encontrar, segundo depoimento por ele co-
letados, uma relação com práticas orientais como o budismo, ioga, umban-
98 Dias Jr., O Império de Juramidan nas Batalhas do Astral, 1992, p. 155.
99 Dias Jr., O Império de Juramidan nas Batalhas do Astral, 1992, p. 156.
100 Dias Jr., O Império de Juramidan nas Batalhas do Astral, 1992, pp. 165 – 166.

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da, dentre outras. Essas incorporações de outros valores só se torna possí-


vel, segundo o autor, pelo espaço aberto que o culto permite, representando
desta maneira, um constante ressurgir de elementos simbólicos.
Essa idéia de espaço aberto encontra-se presente desde o momento
de ressignificação do culto do Santo Daime pelo Padrinho Sebastião. Isto
representava uma possibilidade alternativa da religião e antes de tudo da
comunidade, o que motivou pessoas ligadas a movimentos de contra –
cultura. Desta forma na Colônia Cinco Mil, no início da década de 70, era
possível observar um interesse maior por parte de pessoas pertencentes à
classe média, principalmente jovens do Brasil e do exterior, que buscavam
um novo estilo de vida.
Chegaram mochileiros, médicos, psicólogos, antropólogos,
jornalistas e pessoas doentes, muitas vezes desiludidas pelos
médicos, pois, segundo diziam, o Santo Daime poderia
curá-las. Alguns ficaram vivendo na comunidade, outros
retornaram aos seus lugares de origem, contribuindo para a
expansão da doutrina por todo o País. 101
67
• Para MacRae (1992), esses grupos de pessoas tiveram papel impor-
tante para a expansão das idéias de Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião
para outras regiões rurais e urbanas. Desta forma passamos a ter um novo
tipo de adepto, oriundo de camadas médias urbanas e, embora pratican-
do os rituais que nasceram na Amazônia Ocidental devemos frisar que o
contexto físico e social acabou interferindo em “determinadas práticas
e concepções” expressas na doutrina daimista. 102 Desta forma, uma das
características apontadas pelo autor refere-se à maneira como os adeptos
passaram, a partir de então, a se relacionar com a natureza. De um lado,
observam-se os adeptos da floresta amazônica onde tinham pouco con-
tato com a sociedade maior, o que constituiu os primórdios da Colônia
Cinco Mil e do Céu do Mapiá, local para onde muitos desses daimistas se
deslocaram seguindo o Padrinho Sebastião para juntos formarem a “Nova
Jerusalém das Matas”. Por outro lado, o jovem da classe média que ingres-
sou na doutrina daimista é,
101 Peláez, Interpretação sobre cura espiritual no Santo Daime, 1997, p. 94.
102 MacRae, Guiado pela lua, 1992, p. 131.

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[...] frequentemente educado em boas escolas, dentro dos


padrões racionalistas e iluministas, ignora completamente a
cultura amazônica e suas concepções sobre o sobrenatural.
Em vez de seres da floresta, seu repertório espiritual
é povoado por discos voadores, seres extraterrestres,
cristais, pirâmides, chamas violetas, lamas tibetanos, iogues,
orixás, ensinamentos de Carlos Castañeda, e de outros
exorcismos. A natureza é concebida como intrinsecamente
boa, contanto que se respeite o “equilíbrio ecológico”; e os
índios são os bons selvagens, que detém segredos capazes
de salvar o planeta. 103

Tal concepção também é aceita pela antropóloga Soibelman104, que


fez um estudo sobre religiões e grupos que fazem a ingestão do chá sagra-
do na cidade do Rio de Janeiro. A sua pesquisa enfoca como grupos de
cariocas fazem o uso e como recriam os rituais ayahuasqueiros tradicionais
e como eles interpretam esses rituais oriundos da Amazônia.
A autora atenta para uma diferença fundamental, a de que as inser-
68 ções de novos elementos aos trabalhos espirituais estão ligadas a valores e
• classes sociais diferentes. Se por um lado, em algumas destas religiões no
Acre a classe média não é hegemônica, por outro ela já faz sentido nestes
núcleos estabelecidos no Rio de Janeiro.
A antropóloga Maria Gabriela Jahnel Araújo (1998) escreveu uma
dissertação inovadora nos estudos acerca de grupos usuários de ayahuas-
ca. A autora fez uma pesquisa acerca do universo simbólico dos seringuei-
ros, especificamente os que estão localizados no Alto Juruá.
Verifica ainda os processos no qual alguns seringueiros foram ini-
ciados com a ayahuasca, muitas vezes de maneira solitária, sem auxílio de
terceiros durante o processo de aprendizagem. O fato é que muitos desses
seringueiros são considerados curadores e outros como ela aponta no seu
trabalho apreenderam novos símbolos de religiões ayahuasqueiras como é
o caso da prática curandeira com a doutrina do Santo Daime, incorporan-
do o conteúdo cristão deixado por Raimundo Irineu Serra. Desta forma,

103 MacRae, Guiado pela lua, 1992, p. 132.


104 Soibelman, My Father and my Mother. 1995.

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Wladimyr Sena Araújo

[...] é possível perceber no Alto Juruá muitas influências da


doutrina do Santo Daime entre alguns praticantes de rituais
com a ayahuasca. Ali está presente o respeito pelo Mestre
Irineu, o costume de cantar hinos e a presença de uma vela
acesa. Também foi incorporado o nome Daime para se
referir à bebida. O acompanhamento resume-se ao violão.
Não há bailado, seus participantes permanecem sentados
ou deitados em suas redes. 105

Aspectos do Santo Daime somam-se a composições de cunho pes-


soal ou de cantores populares que exaltam a floresta e a natureza. É im-
portante frisar que alguns seringueiros fazem composições próprias atra-
vés do uso da ayahuasca e ainda outros a “receberem” hinos do Astral. O
uso da substância é familiar, mas há o desejo de construir uma igreja no
meio da floresta. 106
UNIÃO DO VEGETAL (UDV)

O conceito de englobamento foi proposto pelo antropólogo Sérgio


69 Brissac (1999) para tentar compreender melhor a União do Vegetal. Para

isso, o pesquisador realizou uma etnografia do Núcleo Alto das Cordilhei-
ras situado em Campinas, São Paulo. Partindo desta etnografia, ele retratou
o modelo organizacional, a narrativa histórica e a experiência simbólica
sendo, este último aspecto o pressuposto do seu conceito de englobamento.
A hoasca, como assim é designado o enteógeno pelos adeptos da
UDV, é o centro de toda a estrutura ritual da União do Vegetal e a expe-
riência individual constitui um discurso necessário para o que ele designa
por “vivência simbólica através da burracheira”. Essas vivências, todavia,
envolvem elementos da vida do sujeito bem como a visão de mundo da
UDV que, por sua vez, contempla elementos do catolicismo popular, es-
piritismo kardecista, xamanismo amazônico e religiões afro – brasileiras.
Alerta o autor para a noção de sincretismo.
Sabemos que o conceito de sincretismo é problemático, e
que pode ser compreendido de diversas maneiras, algumas

105 Araújo, Entre Almas, Encantos e Cipós, 1997, p. 101.


106 Araújo, Entre Almas, Encantos e Cipós, 1997, p. 102.

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delas trazendo em seu bojo uma certa carga valorativa,


expressando uma depreciação do sincrético em relação
ao “puro”, ou, inversamente,exaltando o “sincretismo
brasileiro” como sinal de convivência pacífica multicultural.
107

Porém, as vivências dos adeptos são importantes porque exaltam


experiências semelhantes àquelas que são características do movimento da
Nova Era.108 Através dos relatos coletados durante a pesquisa de campo,
o antropólogo julgou insuficiente o conceito de sincretismo para pensar
a UDV porque este não dá conta daquilo que ocorre durante a “força da
burracheira”, a qual a experiência individual é “englobada” à UDV. Pros-
segue:
[...] o englobamento (...) é bem distinto de uma bricolage de
um hipotético sujeito que, em seu individualismo moderno,
escolhe a seu bel prazer entre as mercadorias expostas nas
prateleiras dos supermercados religiosos, construindo a sua
do – it – yourself religion. (...) O elemento nesse englobamento,
70
que identifico como próprio da experiência dos discípulos

da UDV, é que ele dá a força da burracheira. Esta se
mostra como um tufão que, na força de seu movimento
centrípeto, aproxima-se de uma província simbólica distinta
e a engloba em seu redemoinho. Tal imagem que utilizo,
busca expressar um forçado dinamismo autógeno dessa
incorporação e, neste caso, até mesmo a velocidade com
ela se dá, em meio à intensidade do estado alterado de
consciência suscitado pela ingestão do chá hoasca. 109

Por fim, o englobamento na força da burracheira é justificado histo-


ricamente pela trajetória de José Gabriel Costa, o fundador desta religião
que passou por diversos cultos religiosos brasileiros. Traços destes cultos
são encontrados nesta religião onde cada pessoa soma as suas experiências
simbólicas individuais com a hoasca à estrutura da União do Vegetal.

107 Brissac, A Estrela do Norte Iluminando até o Sul, 1998, p. 131.


108 Amaral, Sincretismo em Movimento, 1999.
109 Amaral, Sincretismo em Movimento, 1999, p. 135.

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Wladimyr Sena Araújo

LINHA DE MESTRE DANIEL

Em 1945 Daniel Pereira de Mattos, negro, oriundo do Maranhão,


instituiu uma religião criada na zona rural de Rio Branco (seringal Santa
Cecília) distinta das demais apresentadas nas seções anteriores.
Definida como uma religião que segue princípios franciscanos, a
mesma incorpora elementos advindos do Catolicismo, Kardecismo, Um-
banda, Tambor de Mina, Xamanismo indígena, assim como aspectos das
filosofias do Círculo Esotério da Comunhão do Pensamento, Ordem Rosa
Cruz e, em alguns casos, da Maçonaria.
A diversidade simbólica e ritualística apresentada em diversos con-
textos religiosos aponta para um rico quadro de representações que foram
re-significados e ganham vitalidade quando manifestados e devidamente
articulados nos ritos.
Diversos autores passaram a tentar compreender este fenômeno
religioso e no âmbito do debate sobre sincretismo acabaram elaborando
conceitos para dialogar com estas ricas realidades como veremos a seguir.
71
• COSMOLOGIA EM CONSTRUÇÃO

A ideia de Cosmologia em Construção é decorrente do processo de


pesquisa de campo iniciada no ano de 1993 no Centro Espírita e Culto de
Oração Casa de Jesus Fonte de Luz com finalidade de elaborar uma etno-
grafia sobre a linha religiosa de Daniel Pereira de Mattos. 110
Por cosmologia em construção denominamos um conjunto e prá-
ticas religiosas que tendem a formar uma doutrina específica onde existe
uma grande velocidade na reelaboração simbólica de práticas religiosas
que recombinadas produzem algo novo e dinâmico. Estas mudanças, por
sua vez, não estão desvinculadas de sua essência (que discutiremos em tópico a
seguir). Diante desta afirmativa:
a) é necessário repensar o sincretismo através de uma visão mais
flexível, por isso apresentamos o termo Cosmologia em Construção (em-
bora sabendo que todas estão em construção) como uma metáfora para
flexibilizar noções teóricas sugeridas por outros autores;
110 Araújo, Navegando nas Águas do Mar Sagrado, 1997; Araújo, Navegando nas Águas do Mar
Sagrado, 1999.

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b) as características centrais para pensar este tipo de religião estão


em práticas religiosas que dão aos adeptos um norte, uma visão de mundo
onde novos elementos simbólicos foram incorporadas durante a sua tra-
jetória histórica;
c) neste sentido, é necessário observar este espaço religioso como
uma colcha de retalhos onde cada um deles está bordado de símbolos.
Esses lugares, por sua vez, são costurados com a dupla linha da razão e da
sensibilidade;
d) a cosmologia em construção compreende um conjunto de prá-
ticas religiosas que tendem a formar uma religião específica onde existe
uma grande velocidade na incorporação e retirada de elementos simbó-
licos das práticas religiosas e filosóficas que combinadas compõem a sua
cosmologia;
e) nesta cosmologia em construção um símbolo abre possibilidade
para a remissão de um outro símbolos. Isto consiste naquilo que denomi-
namos por eco simbólico;
72 f) o ato, a ação dramática pode revelar espíritos ou entidades. A
• aparência destes pode também ser manifestada no gestual, caracterizando
atitudes e comportamentos. Tais gestos enquadram-se no esquema cultu-
ral do grupo e muitas vezes os códigos variam de lugar para lugar;
g) o eco simbólico reflete uma idéia e esta idéia abre possibilidade
para a simbolização de outra, ressoando, reproduzindo-se ou repercutindo
ao longe, no espaço e no tempo.
Além disso, o hinário torna-se outro reforço para tal afirmativa, uma
vez que os praticantes e adeptos não tratam o hinário de forma completa.
Suas letras são repassadas a eles como instruções.
A composição simbólica desta linha doutrinária está elaborada, em
parte, pela proposta de Mestre Daniel, bem como pela visão de mun-
do destes líderes religiosos que são provenientes de lugares distintos e
de culturas diversas. Portanto, os Centros oriundos de Daniel tornam-se
“aglutinadores de cultura”. Mas o termo “aglutinador” por si só não basta.
Eles acabam se tornando ordenadores de elementos culturais, constituin-
do algo autêntico, novo e dinâmico.
Essa ressignificação parte dos êxtases que levaram os dirigentes a

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Wladimyr Sena Araújo

outros planos cosmológicos. Assim sendo, as visões desses lugares mí-


ticos são encontradas também em outras manifestações, como é o caso
da arquitetura. As viagens consistem nas mirações que eles tiveram para
as construções simbólicas dos espaços porque foram nelas que os líderes
apreenderam imagens sagradas. Essas revelações justificam um agregado
de símbolos que foram incorporados no decorrer de décadas.
O homem religioso da linha deixada por Daniel Pereira de Mattos
está imerso em símbolos e está marcado consciente ou inconscientemente
por eles. Esses lugares do espaço são notadamente marcados por expe-
riências individuais ou coletivas durante um longo período de atividades
religiosas.
Os rituais desta religião marcam profundamente o reencontro de
características indígenas, européia e africana. Os rituais funcionam como
manifestação dessas culturas que estão presentes, por exemplo, nas preces,
miração e incorporação. Enfim, o reencontro marca a permanente cons-
trução das cosmologias dos centros oriundos da linha de Daniel.
73 É preciso observar que durante os rituais, os adeptos e praticantes
• dinamizam o processo de reelaboração simbólica. Neste sentido, levamos
em consideração a experiência de cada um no processo ritualístico da casa.
A religiosidade de cada pessoa também é um fator de construção da mis-
são, uma vez que as pessoas têm também experiências individuais no todo
coletivo e estas, por sua vez, refletem no mundo cotidiano.
COSMOLOGIA EM TRANSFORMAÇÃO

Na sua dissertação de mestrado em antropologia intitulada “O Ca-


minho da Salvação: a Barquinha” (tradução nossa), Carsten Balzer111 pro-
põe o conceito de “cosmologia em transformação”.
No trabalho, o pesquisador faz uma análise etnográfica acerca do
Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz e no capí-
tulo cinco chamado por ele de “A salvação toda é mais do que a soma das
partes”, que está a chave para compreender o conceito que perpassa todo
o trabalho. Ele expõe que:
para prender o elemento sincretizador de uma religião, que
111 Balzer, Wege Zum Heil, 2003.

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Wladimyr Sena Araújo

é parte de outro sincretismo e que é originário de outras


religiões sincretizadas, parece assim ociosa o modo que se
faz novamente a abertura e o que se põe de um para o outro
é algo como numa caixa com bonecas russas. 112

Prosseguindo o capítulo, começa a estabelecer um debate em torno


das semelhanças e diferenças das religiões amazônicas, formada por índios
e caboclos e também da relação e diferenciação das religiões afro – bra-
sileiras, euro – brasileiras e daquelas mais próximas a esse contexto de
discussão como é o caso do Santo Daime e da União do Vegetal.
Descarta a possibilidade de tradução do Centro Espírita e Culto
de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz como “colagem” e “mistura”. Re-
pensar o sincretismo, neste caso, sugere observar algumas especificidades,
dentre as quais a “cura” que o indivíduo teve e a sua adesão ao “caminho
da salvação”, a qual foi destacado no trabalho como “transformação”.
É uma transformação que envolve, antes de mais nada, “o espírito, a
mente e a pessoa”, que são ligadas ao rito, que para o autor é a base para a
74 transformação dos indivíduos que são ligados ao uso do daime. A religião
• adéqua elementos fundamentais para o desenvolvimento dessa transfor-
mação através do (1) hinário recebido pelo fundador; (2) oração como ca-
racterística que liga o centro pesquisado aos cultos da igreja católica; (3) o
trabalho com espíritos curadores, característicos das religiões afro – brasi-
leiras; (4) elementos do esoterismo, especificamente do Círculo Esotérico
da Comunhão do Pensamento; (5) o uso da ayahuasca de origem indígena;
(6) alguma manifestação que é adaptada do Kardecismo. 113
Para ele, é necessário curar-se para se firmar no “caminho da salva-
ção”. Essa transformação interior só é possível através do contínuo tra-
balho espiritual junto à missão deixada por Daniel Pereira de Mattos. Por
outro lado, a própria cura torna-se o caminho da salvação. Estes se ligam
à transformação da missão, bem como a transformação do indivíduo ao
ingerir o daime. Finalizando com suas palavras a missão
[...] mostra que transformação e criatividade estão postas
no processo religioso. (...) esta religião não nasceu apenas
112 Balzer, Wege Zum Heil, 2003, p. 203.
113 Balzer, Wege Zum Heil, 2003, p. 208.

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Wladimyr Sena Araújo

com circunstância histórica acreana e das semelhantes


circunstâncias postas hoje nessa aliança, mas que ela,
além disso, o é por causa de sua missão (salvação pela
transformação e transformação pela salvação) e das
características de sua concepção de mundo (multiplicidade
e transformação imanente) uma extraordinária e singular
religião. 114

HIBRIDISMO RELIGIOSO

Ricardo Assarice dos Santos115, em sua dissertação intitulada A Hí-


brida Barquinha: uma revisão da história, das principais influências religiosas e dos ri-
tuais fundamentais também faz uma abordagem sobre sincretismo, optando
pela utilização da terminologia de hibridismo para dar conta da realidade
da Barquinha.
Santos parte do pressuposto acertado de que os pesquisadores que
se dedicam aos estudos sobre a linha de Mestre Daniel se deparam com
complexidade simbólica e cultural dos centros religiosos seguidores da
75 missão de Daniel Pereira de Mattos que não constituem um “caos reli-
• gioso”, mas uma forma particular da realidade.116 Utiliza o conceito de
hibridismo cunhado por Burke117, no qual não ocorrem fronteiras tão cul-
turais tão nítidas ou firmes entre os grupos, permitindo uma maleabilidade
sujeita a transformações.
Neste sentido, o autor apóia – se na tríade artefatos, práticas e repre-
sentações apresentado por Burke, sendo que, para o primeiro elemento es-
tão inclusos igrejas, imagens, gravuras, textos. Sendo assim, a hibridização
de imagens relaciona-se a esquemas culturais e “afinidades” e “convergên-
cias” sobre imagens provenientes de várias tradições. 118
Quanto às práticas, ele estabeleceu como elementos de referências
a música e os diversos aspectos referentes a linguagem e que aparecem

114 Balzer, Wege Zum Heil, 2003, p. 203, p. 225.


115 Santos, A Híbrida Barquinha, 2017.
116 Santos, A Híbrida Barquinha, 2017.
117 Burke, Hibridismo Cultural, 2003.
118 Santos. A Híbrida Barquinha, 2017.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

de forma nítida e acentuada durante os rituais realizados nas Barquinhas


existentes.
Na visão de Burke, as formas híbridas são resultados de encontros
múltiplos sucessivos e não de um único encontro. Nestas práticas híbri-
das, conforme Santos, ocorrem encontros com seres advindos de planos
míticos do mar, terra, seres do astral, santos missionários, anjos e uma
infinidade de referências que podem ser observadas.
Burke afirma que nestas práticas ocorre uma “circularidade cultural”
e que é neste contexto de mobilidade de referências simbólicas e culturais
que acontece esta transplantação que são encontradas nos ritos.
As representações simbólicas constituem também a expressão de
aspectos advindos de culturas diferentes e que aparecem no âmbito do
contexto desta religião.
CONCEITO ABERTO EM GRUPOS
NEOAYAHUASQUEIROS

Surgiu através da pesquisa de Labate (1999) onde o objetivo foi o


76

de investigar os novos usos da ayahuasca. Ela designou o seu trabalho de
“A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos”. Esta “rein-
venção” foi constada à partir das observações sobre novas formações de
grupos urbanos que aliam a bebida à meditação oriental, terapias corpo-
rais, atendimentos psicoterapêuticos e a manifestações artísticas como o
teatro, a música e a pintura.
Para ela os neo – ayahuasqueiros
[...] vivem uma tensão entre, por um lado, rejeitar os
modelos “tradicionais” de consumo da bebida e, por
outro, não cair no uso “profano” de drogas. São então
forjados, fabricados novos tipos de rituais e elaborados
discursiva e simbolicamente referenciais filosóficos,
existenciais, terapêuticos e até mesmo religiosos comuns a
cada nova unidade. Cada uma destas se relaciona direta ou
indiretamente entre si e com o sistema maior. 119

A sua hipótese é a de que existe uma reinvenção contínua das for-

119 Labate, A Reinvenção da Ayahuasca nos Centros Urbanos, 1999, p. 07.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

mas de utilização da bebida e as atividades que a envolvem, relacionan-


do-as a um movimento maior que para alguns pode ser denominado de
“neo – esoterismo urbano”, “Nova Consciência Religiosa”, “Nova Era”
ou mesmo “Nebulosa Místico Esotérica”. O que vale a pena ressaltar é
que esses neoayahuasqueiros ligam-se a novas redes terapêuticas e neo-
xamânicas e a ayahuasca torna-se um projeto de autoconhecimento e de
aperfeiçoamento pessoal.
Labate centra os seus esforços em um espaço da cidade de São Paulo
nominado de “Caminho do Coração”. Este local, na época, era coordena-
do por um líder terapêutico chamado de Janderson. O mesmo participou
de várias religiões e filosofias, desde aquelas que envolvem os cultos afros,
orientais e amazônicos, como é o caso do Santo Daime. Apoiando-se em
Camurça (s/d: 06) a mesma verifica que a trajetória individual de Jander-
son compreende uma maneira de sincretismo que por sua vez,
[...] caracteriza-se por um estilo de itinerância, de
errância pelas religiões, uma adesão religiosa “instável”,
77 aproveitando tudo que há de “bom nas religiões” para
• compor “uma religiosidade experiencial individual”. Soares
estuda um fenômeno que denomina “nova consciência
religiosa”: um tipo de experimentalismo cultural e religioso,
um revival de interesse pelas práticas alternativas. O autor
também identifica a transitoriedade como constituinte
fundamental deste fenômeno. Soares elege expressões
como “nomadismo religioso” e “peregrino”. (...) O
religioso alternativo brasileiro tende a reconhecer na sua
própria busca “a essência de sua utopia e a natureza de sua
devoção”. 120

O grupo estudado por ela pode ser reconhecido como um dos que
detém um conceito aberto inclusivo que, por sua vez, possibilita reconhe-
cer termos peculiares aos grupos neo – ayahuasqueiros tais como flui-
dez neo – ayahuasqueira, no sentido de que a dinâmica operada durante
as sessões, a incorporação de símbolos, as vivências, as práticas orientais

120 Labate, A Reinvenção da Ayahuasca nos Centros Urbanos, 1999, p. 205.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

somadas ao daime, a psicologia e o fluxo de pessoas e informações são


extremamente velozes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O movimento ayahuasqueiro, que teve o seu desenvolvimento a


partir da década de 20 do Século XX com a criação do Centro de Regene-
ração e Fé (CRF) e de religiões brasileiras usuárias de ayahuasca: linha dai-
mista (1930), linha de Daniel Pereira de Mattos (1945) e linha de Gabriel
Costa (1961) constituem as etapas iniciais de formação deste movimento.
A criação destas religiões já agregou em seu bojo práticas simbólicas
com referências distintas que traduzem não apenas aspectos simbólicos
advindos de práticas religiosas e filosóficas, mas a experiência individual
dos líderes religiosos e adeptos.
Desta forma, tornou-se inevitável que muitos dos estudos efetuados
em religiões e grupos ayahuasqueiros a partir da década de 80 do Século
XX por pesquisadores do Brasil e Exterior não passassem por este campo
78
clássico do estudo de religiões: o sincretismo.
• As diversas opiniões sobre o assunto manifestada em forma de con-
ceitos nos mostra que há uma diversidade de discursos para tratar o tema
e que são elaborados, na grande maioria dos casos, como forma de dar
uma resposta a própria proposta de investigação (etnografia, cura, rituais,
representações simbólicas, expansão de cultos para outros contextos geo-
gráficos, dentre outros).
Consideramos que este debate não está encerrado, visto a dinâmica
apresentada nas religiões e grupos usuários deste enteógeno, e possibilita
ainda intervenções conceituais não apontadas neste texto e outras que po-
dem reforçar e aprimorar aqueles já apresentados neste documento.
REFERÊNCIAS

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com o sagrado. In CAROZZI, Maria Júlia et al (org.). A Nova Era no Mercosul.
Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1999.
ARAÚJO, Maria Gabriela Jahnel. Entre Almas, Encantes e Cipós. Campinas:
IFCH/Unicamp, 1998.

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando nas Águas do Mar Sagrado: história,


cosmologia e ritual no Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus
Fonte de Luz. Campinas: IFCH/Unicamp, 1997 (dissertação de Mestrado
em Antropologia Social).
_______. Navegando nas Águas do Mar Sagrado: história, cosmologia e
ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
BALZER, Carsten. Wege Zum Heil: Die Barquinha. Ein religiöses Rettun-
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BRISSAC, Sérgio Góes Telles. A Estrela do Norte Iluminando até o Sul.
Uma Etnografia da União do Vegetal em Contexto Urbano. Rio de Janeiro:
Museu Nacional/UFRJ, 1998 (dissertação de Mestrado em Antropologia Social).
BRUNELLI, Gillio. Do Xamanismo aos Xamãs: estratégias Tupi – Mondé
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• CEMIN, Arneide Bandeira. Ordem, Xamanismo e Dádiva – o Poder do San-
to Daime. São Paulo: USP, 1998 (tese de Doutorado em Antropologia Social).
_____________________. Ordem, Xamanismo e Dádiva – o Poder do San-
to Daime. São Paulo: Terceira Margem, 2001.
COUTO, Fernando de La Roque. Santos e Xamãs: estudo do uso ritualizado
da ayahuasca por caboclos da Amazônia. Brasília: UnB, 1989 (dissertação de
Mestrado em Antropologia Social).
DIAS JR., Walter. O Império de Juramidam nas Batalhas do Astral – uma
cartografia do imaginário no culto do Santo Daime. São Paulo: PUC, 1992
(dissertação de Mestrado em Ciências Sociais).
EVANS – PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande.
Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FERNANDES, Vera Fróes. História do Povo Juramidan: introdução à cul-
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GOULART, Sandra. As Raízes Culturais do Santo Daime. São Paulo: USP,
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GROISMAN, Alberto. Eu Venho da Floresta: ecletismo e práxis xamânica
no Céu do Mapiá. Florianópolis: UFSC, 1991 (dissertação de Mestrado).

Sumário
Wladimyr Sena Araújo

_________________. Santo Daime: notas sobre a ‘luz xamânica’ da Rainha da


Floresta. In LANGDON, Esther Jean. (org.) Novas Perspectivas sobre Xama-
nismo no Brasil. Florianópolis: UFSC, 1993.
LABATE, Beatriz Caiuby. A Reinvenção da Ayahuasca nos Centros Urba-
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LABATE, Beatriz Caiuby e ARAÚJO, Wladimyr Sena (orgs). O Uso Ritual da
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LAGROU, Elsje. Xamanismo e Representação entre os Kaxinawá. In
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LUNA, Luís Eduardo. A Barquinha: uma nova religião de Rio Branco, na
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concurso de professor adjunto do Departamento de Antropologia Social da
UFSC).
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ca no Culto do Santo Daime. São Paulo: Brasiliense, 1992.
80 MONTEIRO DA SILVA, Clodomir. O Palácio de Juramidan. O Santo Dai-
• me: um ritual de transcendência e despoluição. Recife: UFPE, 1985 (disser-
tação de Mestrado em Antropologia Cultural)
PELÁEZ, Maria Cristina. No Mundo se Cura Tudo. Interpretações sobre a
“Cura Espiritual” no Santo Daime. Florianópolis: UFSC,1997 (dissertação de
Mestrado em Antropologia Social).
SANCHIS, Pierre. As Tramas Sincréticas da História. In Revista Brasileira de
Ciências Sociais. Ano 10, 28, 1995.
SANTOS, Ricardo Assarice. A Híbrida Barquinha: uma revisão da história,
das principais influências religiosas e dos rituais fundamentais. São Paulo:
PUC, 2017 (dissertação de Mestrado em Ciências da Religião).
SOIBELMAN, Tania. My Father and my Mother: show me your Beauty. Ri-
tual Use of Ayahuasca in Rio de Janeiro. Califórnia: Institute of Integral Studies,
1995 (maester of Social and Cultural Antropology).

Sumário
E TEM LETRA? A POLITICA
PRESENTE NAS COMPOSIÇÕES
DE HEAVY METAL A PARTIR
DE TRABALHOS DAS BANDAS
NAPALM DEATH, SACRED REICH E
SEPULTURA: UM ESTUDO DE CASO

Wlisses James de Farias Silva

O mundo Ocidental passou por profundas modificações na segun-


da metade do século XX, modificações essas que se expressam de ma-
neira bastante contundente no campo econômico. Entre os anos de 1950
a 1970, por exemplo, ocorreu o aumento da produção industrial e um
crescimento econômico médio de cerca de 4%. Os novos indicadores eco-
nômicos foram importantes para a implementação de políticas que tinham
por referência promover o que se denominou como “estado de bem estar
social”, ou welfarestate. 121
Como consequência dessas novas diretrizes, o nível de vida dos
trabalhadores melhorou, consideravelmente, em significativa parcela do
mundo ocidental, propiciando o aumento do poder de compra e promo-
vendo uma série de transformações sociais e culturais, tendo como princi-
pais protagonistas os jovens nascidos no período imediato do pós-guerra.
122
Esses jovens, beneficiados com as já mencionadas melhorias, passam
a ter acesso às universidades e a reivindicar outras pautas, até então ador-
mecidas pelas dificuldades econômicas e sociais que a geração de seus pais
havia vivido.
Tal situação perdura até a crise do petróleo, na década de 1970,
quando o mundo ocidental começa a sentir os efeitos dos problemas eco-

121 Silva, Heavy Metal no Brasil, 2015, p. 121.


122 Esse crescimento da população europeia no pós-guerra ficou conhecido como “baby boom”.
Wlisses James de Farias Silva

nômicos decorrentes, o que termina por contribuir para o desmonte das


políticas que edificaram o estado de bem estar social na Europa Ocidental
e Estados Unidos. Como consequência desse movimento, o desempre-
go cresce a uma taxa aproximada de 4,2% no início da década de 1970,
atingindo o patamar de 9,2% no final da década de 1980, na Comunidade
Europeia. 123
A crise terminou por constituir um ambiente favorável ao retorno
de ideias liberais advindas, principalmente, de economistas contrários ao
estado de bem estar social, caso de Friederich Von Hayek e Milton Fried-
man, ambos agraciados com o Nobel de Economia, respectivamente, em
1974 e 1976. É nesse contexto que ocorre a ascensão de políticos defen-
sores das agendas liberais e do desmonte do estado de bem estar social.
Em meio à crise e as mudança de diretrizes políticas no ocidente,
entre o fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, surge o Heavy Metal e sua
evolução para a NWOBHM124, estilo musical caracterizado pela predomi-
nância de guitarras elétricas, da distorção e do barulho como elementos
82 principais. Esse estilo viria a se fundir, no decorrer da década de 1980,
• com elementos de outros estilos musicais produzindo, como consequên-
cia, subestilos que se pretende analisar no decurso desse trabalho. Como
referências, serão analisados os trabalhos de três bandas expoentes, que
surgiram em três continentes diferentes e que, através de suas músicas e
letras, mostram fragmentos da visão de mundo de parcela da juventude
que se percebe imersa nessa nova crise pela qual passava o mundo.
Com o passar dos anos, o heavy metal sofre a influência de diversos
outros estilos musicais, a exemplo do folk, punk e hard core, e subdivide-se
em uma grande variedade de subestilos, tornando-se um gênero bastante
heterogêneo dentro da cena musical, ao ponto de, segundo Campoy, tor-
nar-se “[...] simplesmente impossível especificar todos os metais do heavy
metal. A segmentação do estilo, se analisada a criatividade das bandas na
etiquetagem dos seus sons, parece não ter fim”. 125
Neste artigo, serão analisadas três bandas de uma variação do heavy

123 Silva, Heavy Metal no Brasil, 2015, p. 96.


124 New Wave of British Heavy Metal em tradução livre
125 Campoy. Trevas sobre a luz, 2010, p. 31.

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

metal denominada de metal extremo, que consiste em uma variação mais


barulhenta, suja e pesada do estilo, tendo algumas de suas subdivisões de-
nominadas como death metal 126, black metal 127, grind 128, doon 129, thrash meta
l130, além de uma série de outras subdivisões.
As bandas que serão abordadas nesse trabalho são oriundas de dois
continentes, a Europa e a América. São elas: banda Napalm Death do conti-
nente europeu, tendo como país de origem a Inglaterra; banda Sacred Reich
da América do Norte, oriunda dos Estados Unidos, e a banda Sepultura,
da América do Sul, tendo como país de origem o Brasil. A perspectiva é
analisar uma composição de cada, enfatizando suas características musi-
cais, o contexto histórico de suas composições e a relação com a história
e a política do período. As músicas analisadas serão: da banda Napalm De-
ath, From Slavement to Obliteration131; da banda Sacred Reich, Surf Nicarágua132
e da banda Sepultura Refuse\Resist133. As músicas mencionadas constam,
respectivamente, nos LP’s From Slavement to Obliteration134, Surf Nicarágua135
e Chaos A.D136.
83 Como primeira analise deste artigo, vamos abordar a música From
• Slavement to Obliteration, da banda Napalm death. Oriunda da Inglaterra, a
banda é considerada umas das pioneiras no grindcore, estilo que se caracte-
riza por uma brutal mistura do que há de mais violento em termos sono-
ros no punk, hardcore e heavy metal, gerando uma verdadeira massa sonora,
muitas vezes ininteligível aos ouvidos dos leigos ao estilo. Formada nos
anos 1980, a banda calçou sua trajetória musical baseada nesses estilos e
em letras com críticas sociais, evidenciando uma influência do punk rock
126 Metal morte, em tradução livre.
127 Metal negro, em tradução livre.
128 Moído, em tradução livre.
129 Destruição, em tradução livre.
130 Metal porrada, em tradução livre.
131 Da escravidão para a obliteração, em tradução livre do autor. Em relação ao sentido da palavra
obliteração, usaremos neste trabalho o sinônimo dado no dicionário Aurélio de português onde
consta os sinônimos destruir, eliminar, suprimir, fazer esquecer. (2010,pg.1489).
132 Surfando na Nicarágua, em tradução livre.
133 Refute\Resista, em tradução livre.
134 Eareche records, U.K, (1988).
135 Metal Blade records. (1988).
136 Roadrunner records. (1993).

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

inglês dos anos 1970 e 1980, tomando emprestadas as guitarras distorcidas


e poderosas do heavy metal, com a bateria rápida e caótica do hardcore. O
resultado foi “[...] uma densa combinação de black metal, hardcore e thrash
metal, acelerado ao ponto da divisão dos átomos e da autodestruição”. 137
Já Bukszpan, ao tratar sobre o grindcore, ressalta que:
Os mais extremos fornecedores da última abordagem
foram as bandas que tocavam um novo estilo chamado
grind-core. Napalm Death funda este movimento em seu
disco de estréia, Scum, contendo trinta músicas, algumas
delas mal chegando há um minuto.138

Contando com uma grande variação em sua formação, o Napalm


Death começa sua carreira nos anos 1980, e tem seus trabalhos iniciais
lançados pelo pequeno selo Earache139 Records, do Reino Unido, selo que
também foi responsável por lançar o segundo LP da banda, intitulado
From Slavement to Obliteration, no ano de 1988. Nessa época, o Napalm Death
contava com a seguinte formação: Lee Dorian (vocal), Bill Steer (guitarra),
Shane Embury (baixo) e Mick Harris (bateria). 140
84
• Contendo 22 músicas, o disco é apresentado através de uma caótica
capa, na qual se destaca um desenho feito pelo artista Mark Sikora, onde
se ver cadáveres e pessoas com expressão de dor ao fundo, com desta-
que para uma face humana com as mãos levadas a frente, demonstrando
agonia e perplexidade. É importante lembrar que esse disco é de 1988,
período em que as políticas de destruição do welfarestate, capitaneadas por
Margareth Thatcher, estavam no auge no Reino Unido. Ressalte-se que a
vitória da então Primeira-Ministra sobre a greve dos mineiros141, elevou a
política do desmonte do estado de bem estar social ao seu auge. Os ho-
mens comuns, os trabalhadores no Reino Unido, estavam colhendo sua
maior derrota, desde a edificação das políticas do pós-guerra.
Como cidadãos comuns da Inglaterra, os membros da banda Napalm
Death refletiram em seu som e suas letras a dor, agonia e perplexidade de
137 Christie. Heavy Metal, 2010, p. 240.
138 Bukszpan, The encyclopedia of heavy metal, 2003, p. 169.
139 Dor de ouvido, em tradução livre
140 Uma das características da banda e ter uma constante mudança de membros em sua formação.
141 Nesta época, o sindicato dos mineiros representava a mais importante organização de
trabalhadores do Reino Unido.

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

parcela da sociedade, diante desses duros novos tempos que estavam pre-
senciando. Tal sentimento parece ser representado pela melancólica capa
do LP. De uma maneira ou de outra, as 22 músicas do disco refletem esses
sentimentos nessa era de incertezas que o mundo ocidental passava no
período. Mas, para efeito deste artigo será abordada somente uma música,
a faixa título, colocada como a décima segunda na sequência do disco.
Do ponto de vista sonoro, a faixa começa cadenciada, com um po-
deroso riff 142 de guitarra e uma bateria arrastada, que, juntos, vão ditando o
ritmo da música em uma crescente, até desbancar numa caótica avalanche
sonora, tendo á frente um vocal disforme e gritado, conhecido entre os
adeptos do heavy metal como “gutural”. Toda essa explosão sonora dura
apenas 1 minuto e 36 segundos.143 Em relação à letra, o titulo já nos trás
uma referência a crítica construída, em relação ao período em que a banda
vivenciava. Na primeira estrofe da letra, podemos ver os seguintes versos:
Comprometido com uma vida de escravidão
Nas fábricas que nossas próprias mãos construíram
Onde temos que trabalhar duas vezes o enxerto
85 Antes de ganhar as mercadorias que já arrastamos para

criar.144

Tais palavras nos remetem inicialmente ao quotidiano de uma fábri-


ca, onde prevalece a repetição enfadonha das tarefas. A fábrica, segundo
a compreensão da banda, foi construída pelas mãos dos operários que,
ironicamente, fabricam os produtos que eles mesmos pagam para consu-
mir, utilizando-se, para tanto, dos salários recebidos em decorrência do
trabalho na fábrica. Na segunda estrofe temos:
Para consumir todas as coisas materiais
Está acima da compaixão humana
Como competir com o nosso homem do companheiro
Na licitação para uma posição mais forte.145

142 Riffs podem ser definidos como pequenas ideias composicionais que servem como base
harmônica na música. In: Ribeiro. A Fúria da Melancolia, 2010.
143 Uma das características mais marcantes do grindcore são a intensidade e a duração das músicas
que raramente ultrapassam dois ou três minutos.
144 From Slavement to Obliteration, composição presente no LP intitulado From Slavement to
Obliteration, da banda Napalm Death, 1988.
145 From Slavement to Obliteration, composição presente no LP intitulado From Slavement to

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

Neste trecho, a banda salienta a necessidade de competição que o


homem comum se vê forçado a fazer dentro da própria fábrica, estenden-
do essa competição para toda a sociedade capitalista onde, para ter direito
ao consumo, precisa superar outros e competir sem compaixão, em uma
representação do darwinismo social. Por fim, na última estrofe, a banda
nos diz:
Em nossa busca implacável para a prosperidade
Tornamo-nos as ferramentas da nossa própria opressão
Formando a espinha dorsal de uma sociedade
Que prospera na divisão de massa
Da escravidão...
Para obliteração...146

Nessa última estrofe, a banda faz uma referência mordaz ao mito da


prosperidade na sociedade capitalista, mito esse que é imposto a partir de
um grande aparato midiático e ideológico, além de fazer uma referência à
divisão do povo, que é incentivada por esse mesmo sistema. Na sequência
86 do artigo, será analisada a composição de outro grupo de heavy metal, do
• subestilo chamado de thrash metal, a banda Sacred Reich.
Após a new wave of british heavy metal, o metal se globaliza e passa por
algumas modificações, principalmente com a influência sofrida das novas
bandas que vem da América do Norte que, em conjunto, criam um novo
estilo de heavy metal, mais violento que o tradicional. Esse novo estilo
ficou conhecido como thrash metal.147
O estilo tem como característica canções com introduções mais lon-
gas, uma fervorosa mistura de punk, rock progressivo e heavy metal, este
estilo cunha novos termos ao metal, caso do headbanger 148, usado para
nominar os adeptos do estilo, e mosh, para definir a forma como o público
“dançava” nos shows.
Capitaneados por bandas como Metallica, Slayer, Exodus e Anthrax,

Obliteration, da banda Napalm Death, 1988.


146 From Slavement to Obliteration, composição presente no LP intitulado From Slavement to
Obliteration, da banda Napalm Death, 1988.
147 Metal porrada, em tradução livre.
148 Batedor de cabeça, em tradução livre.

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

por exemplo, esse estilo rapidamente se espalha por toda a América do


Norte, alcançando também os demais continentes com sua explosão de
energia e letras ácidas. Dando continuidade a este trabalho, escolhemos
duas músicas de duas bandas representantes deste estilo para analisar.
Oriunda do estado do Arizona, nos Estados Unidos, a banda Sacred
Reich inicia suas atividades no ano de 1985. Em 1988 lança um EP 149
considerado um clássico: “Surf Nicarágua”.150 À época do lançamento, a
banda contava com Greg Hall na bateria, Phil Bind no baixo e vocal, Jason
Bainey na guitarra base e Willey Abnett na guitarra solo, seguindo o estilo
de heavy metal chamado de thrash metal.
A banda tem como característica apresentar letras ácidas, com críti-
ca social, abordando temas como racismo, intolerância e as ações da polí-
tica norte americana no mundo, sempre com uma dose de bom humor e
sarcasmo. A capa do EP, ilustrada por Paul Stottler,151 nos traz um surfista
estilizado, usando calção e capacete militares, carregando uma bomba en-
quanto surfa uma onda, em uma clara referência ao belicismo norte-ame-
87 ricano. A capa é emoldurada com caveiras humanas, em uma analogia as
• mortes que este tipo de intervenção sempre traz.
A música título do álbum, “Surf Nicarágua”, aborda um tema recor-
rente na política externa norte-americana: as intervenções políticas e mili-
tares em países latino-americanos, neste caso, destacando as ações exter-
nas do governo dos Estados Unidos para desestabilizar a Nicarágua, país
da América Central que no final dos anos 1970 e início dos 1980, ocupa
parte dos interesses americanos por ter feito uma revolução e elevado um
governo de esquerda ao poder.
No sentido musical, após uma introdução curta reproduzindo sons
de gaivotas, nos remetendo a praia e oceano, a canção segue a linha rápida
e pesada do thrash metal, com um grande destaque para as guitarras e seus

149 A sigla “EP” vem do termo em inglês “extended play” e significa uma obra musical que contém
mais músicas do que um “single”. Daí o termo “extended”, indicando que o EP é um “single”
estendido, com mais faixas. Normalmente possuem de 4 a 6 faixas, posicionando-se como um
intermediário entre um “single” e um álbum (que, em geral, possui de 10 a 12 faixas ). Informações
disponíveis no endereço eletrônico: http://www.voxmusicstudio.com.br.
150 Sacred Reich, surf Nicarágua, Metal Blade Records, EP, 1988.
151 https://whiplash.net/materias/biografias/038630-sacredreich.html

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

riffs poderosos, uma bateria rápida, além de uma grande variação rítmica
e de tempo no decorrer dos quatro minutos e quarenta segundos da mú-
sica.152
Na parte lírica, a música é escrita pelo vocalista Phil Bind e possui
contundentes posicionamentos políticos, expressando opiniões mescladas
com doses de ironia sobre o modus operandi das ações Norte Americanos
nos países da América Latina, além da propaganda ideológica que o gover-
no estadunidense tenta impor para o cidadão comum de seu pais. Neste
aspecto, vamos aos versos da canção:
Eu conheço um lugar
Onde está tudo a ir
Eles pagarão para você matar
Se você tiver dezoito anos de idade
Primeiro você vai precisar de um corte de cabelo
E, em seguida, algumas roupas novas
Eles vão colocar você em uma selva
Para jogar G.I. Joe.153
88
• Na primeira estrofe da letra, os autores começam com um tom de
ironia, como se estivessem em um anúncio de empregos, procurando jo-
vens para um novo “serviço”. 154 Tratando a situação com certa dose de
humor, a banda fala aos jovens que há certas imposições para o trabalho,
mas, apresenta como “vantagem” o fato de que, além de receber, o jovem
ainda poderá ganhar roupas novas,155 ir para uma selva e ainda brincar de
um famoso brinquedo, bastante popular nos Estados Unidos do começo
dos anos 1980.
Logo em seguida, a letra continua com seu refrão:
Você luta pela democracia
E o “modo americano”
Mas você não está em seu país
“O que estou fazendo aqui?” você diz
152 Diferente do grindcore, o thrash metal se caracteriza por músicas mais longas.
153 Surf Nicarágua, composição presente no EP intitulado, Surf Nicarágua, da banda Sacred
Reich, 1988.
154 Vale lembrar aqui que, neste período histórico, os Estados Unidos estavam sob a égide de
Ronald Reagan e suas políticas neoliberais, levando o país a um crescente índice de desemprego.
155 Ironia em relação ao uniforme.

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

Mas agora é tarde demais


Você está entrando em Manágua
Se você tivesse trazido sua prancha
Você poderia surfar na Nicarágua.156

Neste trecho da música, vemos uma clara referência ao chamado


american way of life, conhecida propaganda ideológica estadunidense que
visa naturalizar a idéia de que as intervenções patrocinadas pelos Estados
Unidos são sempre para levar a liberdade e a democracia para as mais
diversas regiões do mundo, vendendo a perspectiva de que a visão de de-
mocracia liberal norte americana seja um valor universal.
Em outro momento desse refrão, há um sentimento de arrependi-
mento no personagem da letra, quando se vê diante de um país estrangei-
ro, em um conflito do qual não entende. Esse sentimento é imediatamente
retaliado, ao ser lembrado que já é tarde demais, que os Estados Unidos
já estão em Manágua157, e que o mesmo deveria aproveitar, no caso, se
divertir com o surf, demonstrando a ironia pensada pelos autores da letra.
Em seguida, nos próximos versos, o personagem da letra começa a
89 duvidar a a se questionar:
• O que é isso que estamos lutando para
Qual é o nosso objetivo final
Para forçar as nossas idéias
Direito goela abaixo
Intervenção americana
Cresce Mais Fundo todos os dias
A situação se agrava
Mais soldados no caminho.158

Aqui os autores da letra fazem uma crítica direta ao belicismo do


governo de seu país, que tenta, a todo custo, manter a hegemonia sobre o
mundo, através da imposição de sua vontade aos países que não se enqua-
dram em seu modo de ver as coisas. Os versos dessa estrofe são fechados
com uma constatação pessimista, no caso, a de que a política governa-
mental estadunidense não mudará, e que mais soldados estarão a caminho,
156 Surf Nicarágua, composição presente no EP intitulado, Surf Nicarágua, da banda Sacred
Reich, 1988.
157 Capital da Nicarágua.
158 Surf Nicarágua, composição presente no EP intitulado, Surf Nicarágua, da banda Sacred

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

numa clara alusão de que a Nicarágua não é o único alvo. Na sequência,


erros da política do passado são relembrados com os seguintes versos:
Lições que aprendemos
São fáceis de esquecer
Dicas do Vietnã
Como em breve todos nós esqueceremos
Primeiro vamos enviar assessores
E depois ir as tropas
Outro conflito inútil
Outra chance para perder.

No trecho final da música, os autores fazem uma referência ao modus


operandi norte americano no passado, lembrando claramente da política de-
senvolvida no Vietnã, criticando a forma como rapidamente a sociedade
esquece esses erros e se questiona da inutilidade do envolvimento nesses
conflitos ao redor do mundo.
A música pesada no Brasil remonta aos anos 1970 e tem como pio-
90 neiras bandas como A Bolha, O Terço, Casa das Máquinas, Patrulha do
• Espaço, Made in Brazil, entre outras. Com o passar do tempo, e através
das influencias vindas da Europa e Estados Unidos, o estilo se desenvolve
e se consolida para um determinado público, mantendo uma rede de fan-
zines e revistas,159 além de um público fiel que se torna conhecido do país
através do festival Rock in Rio de 1985.160
O heavy metal no Brasil começa seu desenvolvimento após o fim
da ditadura militar, que durou de 1964 até 1985, enfrentando problemas
de aceitação, tanto por parte da direita mais conservadora, quanto da es-
querda, seja ela moderada ou radical, ao ponto de que o então candidato
a presidente pelo colégio eleitoral Tancredo Neves, fazer a seguinte decla-

Reich, 1988.
159 Tendo como pioneiros os fanzines Rock Brigade, que depois virou revista, editado em São
Paulo e a revista Metal, editada no Rio de Janeiro. Ambas as publicações já estão fora de circulação.
160 Festival de rock ocorrido no Rio de Janeiro que em seu cast contou com algumas das mais
importantes bandas de heavy metal da época como Iron Maiden, AC\DC, Scorpions, Ozzy
Osbourne, etc.

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

ração: “[...] a minha juventude, a juventude por quem eu tenho apreço e


admiração, não é a do Rock in Rio”. 161
A rejeição ao heavy metal pela esquerda e pela direita, se dava por
motivos diferentes. A direita o recusava por uma questão de comporta-
mento moral, pois o visual agressivo, usando couro e camisetas pretas com
desenhos que remetiam a violência e a critica á religião, além dos cabelos
longos usados por seus fãs do sexo masculino, não eram bem vistos para
os padrões morais dos brasileiros mais á direita, bem como pela esquerda.
Embora em campos ideológicos/políticos opostos, ambos, rejeitavam o
heavy metal por identificá-lo como um produto da cultura norte america-
na, imposta ao Brasil pelo imperialismo estadunidense. 162
Fundada na cidade brasileira de Belo Horizonte, no ano de 1983, o
Sepultura se torna, dentro do heavy metal, a primeira banda fora dos EUA
e da Europa a romper a barreira mercadológica e se estabelecer como uma
referência mundial do gênero, vendendo cerca de 25 milhões de cópias e
sendo aclamada por público e crítica. Segundo Wiederhorn e Turman: “O
91 Sepultura acabou se tornando a mais inovadora e influente banda fora dos
• Estados Unidos”. 163
Lançado no ano de 1993, o álbum Chaos A.D conta em sua forma-
ção com Max Cavalera no vocal e guitarras, Andreas Kisser nas guitarras,
Paulo Junior no baixo e Igor Cavalera na bateria. O disco chegou a vender
mais de um milhão de cópias no mundo e foi considerado pela revista
norte-americana Rolling Stones como um dos 40 melhores discos de metal
de todos os tempos, ficando na vigésima posição.
Gravado entre os anos de 1992 e 1993 nos Rock Field Studios, S. Wa-
les, Inglaterra, o disco é o sexto trabalho de estúdio da banda, trazendo
em sua capa a ilustração do artista Michael Whelanonde. A mesma trás a
representação de um corpo enrolado em ataduras de cabeça pra baixo, cer-
cado de produtos eletrônicos e de mãos humanas desesperadas, tentando
alcançá-lo.
Tal imagem é uma representação da agonia do homem moderno,

161 Barreiros, 1966-1985: o ano que o Brasil recomeçou, 2005, p.


162 Silva, Heavy Metal no Brasil, 2015, pp. 123-154.
163 Wiederhorn; Tuman, Barulho infernal, 2015, p. 268.

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

sufocado e oprimido, amarrado, impotente perante um mundo cheio de


misérias e imposições culturais, consumistas e de comportamentos, além
de nos apontar a enorme solidão desse homem, amordaçado e de cabeça
pra baixo, tentando sobreviver a essa realidade.
A letra da música Refuse\resist é baseada em uma critica à socieda-
de contemporânea, onde governos agem como algozes e opressores da
própria população, gerando assim tumultos e conflitos em todo o mundo,
lançando a humanidade em um constante estado de violência e guerras,
como veremos a seguir:
Recuse/Resista
Caos depois de Cristo
Tanques nas ruas
Confrontando a polícia
Sangrando os plebeus.164

A estrofe começa com um chamamento á luta e a resistência, e se-


gue descrevendo conflitos, sem, contudo, nominá-los. Faz referencias a
92 repressão governamental através de tanques, confronto com autoridades

do Estado e suas consequências, representadas pelo ultimo verso, onde
cita o sangramento dos plebeus, numa clara referencia de que nesses con-
flitos, sempre é a população civil que mais morre e sofre as consequências.
A descrição dos conflitos segue nos versos seguintes:
Multidão furiosa
Queimando carros
Derramamento de sangue se inicia
Quem irá sobreviver?165

O caos continua nos versos seguintes, com a descrição de ações co-


muns em conflitos de rua, caso da destruição de carros, o sangue derrama-
do, a fúria da multidão descontrolada e a consequente repressão, causando
mortes e dor. A letra continua:
Caos depois de cristo
Exército em cerco

164 Refuse, resist, composição presente no LP intitulado, Chaos ad, da banda Sepultura, 1993.
165 Refuse, resist, composição presente no LP intitulado, Chaos ad, da banda Sepultura, 1993.

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

Alarme total
Estou cansado disto.

Nesse momento, a banda faz referencia ao tempo, no sentido de


que há um caos depois de Cristo, expressando o fato de que após a vinda
de cristo, as coisas ficam um caos, ao contrário do que os pregoeiros da
religião propagam. Em relação ao controle, a letra continua:
Dentro do estado
A guerra é criada
Terra de ninguém
Que merda é essa?
Recuse, resista, recuse
Caos depois de cristo
Desordem desencadeada
Começando a queimar
Começando a linchar.166

Aqui, os autores fazem uma referência aos conflitos criados pelo


93 poder, representados pelos estados dominantes. Dialoga com o conflito
• entre Israel e Palestina, um dos grandes pontos de tensão no mundo atual,
e também trata sobre a instabilidade política da época. Na última estrofe,
a letra nos diz:
Silêncio significa morte
Permaneça de pé
Medo interno
Seu pior inimigo
Recuse, resista
Recuse, resista.167

No final, percebe-se um chamamento à resistência, a luta contra as


injustiças e seus agentes, convocando as pessoas a ficarem de pé e con-
frontarem seus algozes.
Ao analisar essas três composições observa-se que, apesar dos pre-
conceitos sofridos, os artistas de heavy metal e seus subestilos conseguem,
sim, ao seu modo, inserirem-se nas discussões e problemas atuais de sua
166 Refuse, resist, composição presente no LP intitulado, Chaos ad, da banda Sepultura, 1993.
167 Refuse, resist, composição presente no LP intitulado, Chaos ad, da banda Sepultura, 1993.

Sumário
Wlisses James de Farias Silva

sociedade, emitindo suas opiniões e abordando temáticas que podem ser


objetos de debates, em síntese, e dialogando com o problema que norteou
a construção desse artigo: as composições de heavy metal têm letra sim!
REFERÊNCIAS

BARREIROS, E. 1966 -1985: o ano que o Brasil recomeçou. Rio de Janeiro:


Ediouro, 2005.
BUKSZPAN, D. The encyclopedia of heavy metal/Syerling publishing
Co., Inc. New York. 2003.
CAMPOY, L. C. Trevas Sobre a Luz: O underground do heavy metal extre-
mo no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010.
CHRISTIE, I. Heavy Metal: a história completa. São Paulo: Saraiva, 2010.
RIBEIRO, H. L. da Fúria à Melancolia: a dinâmica das identidades na cena
rock underground de Aracajú. Aracajú: Editora UFS, 2010.
SILVA, W. J. F. Heavy Metal no Brasil: uma breve história social (década de
1980). São Paulo: Editora Biblioteca24horas, 2015.
WIEDERHORN, J.; TURMAN K. [tradução Denise Chinem] Barulho Infer-
94 nal: a história definitiva do heavy metal. São Paulo: Conrad Editora do Brasil,
• 2015.

Sumário
GILBERTO FREYRE E O
LUSOTROPICALISMO COLONIAL:
REPRESENTAÇÕES SOBRE O
BRASIL NA MÚSICA E NA CULTURA
EM CABO VERDE168

Francisco Bento da Silva

Em outubro de 1951 o já afamado intelectual brasileiro Gilberto


Freyre chega ao arquipélago de Cabo Verde, então colônia portuguesa des-
de o século XV e que conquistou sua independência somente em 05 de
julho de 1975169. Sua viagem fazia parte de um convite feito por Sarmento
Rodrigues, ministro do Ultramar de Portugal e alem de Portugal, as suas
visitas mais importantes se deram também nas colônias do Império lu-
sitano espalhadas pela Ásia e África. Meses depois, o editorial do jornal
O Século de Portugal, de 27 de setembro de 1951, dizia que a viagem de
Freyre deveria ser vista como “expressão de uma nova política portuguesa
do nosso problema imperial”170. No contexto do pós-guerra, vozes antico-
loniais ganharam força e visibilidade durante a chama “Guerra Fria” e as
potencias coloniais queriam a todo custo manter seus domínios conquis-
tados nos séculos anteriores como era o caso de Portugal.
A viagem fazia parte ainda de um empreendimento de interesse pes-
soal do autor, patrocinado naquele momento pelo estado colonial lusitano,
que projetava a escrita de um novo volume da obra intitulada O mundo que o
português criou, segundo o referido jornal. Esta obra já tinha sido publicada
em 1940, onde o autor pernambucano já flertava abertamente com louva-

168 Texto apresentado originalmente no XI Simpósio Linguagens e Identidades, realizado em


Porto Velho entre os dias 20 e 24 de novembro de 2017 na UNIR.
169 Fonte: Governo de Cabo Verde, disponível em: https://goo.gl/sHtNks, acesso em 20 de
outubro 2017.
170 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 407.
Francisco Bento da Silva

ções ao colonialismo português do passado e do presente. Desta forma,


o estado colonial lusitano e o escritor brasileiro se irmanam em interesses
e crenças voltadas para a tentativa de manutenção das antigas relações de
dependência entre a metrópole e suas colônias.
Em um tom analítico mais critico e áspero sobre esta viagem por
terras do Império português, o professor português João Medina afirma
que:
Recorrendo ao grande mestre heterodoxo pernambucano,
o “Estado Novo” salazarista ocorria-se, dest’arte, de uma
ideologia legitimadora do seu colonialismo, pretensamente
imune de qualquer forma de racismo, baseado na
argumentação oportuna usada pelo sociólogo brasileiro
para explicar a gênese da sociedade do Brasil, e que passaria
a ser formulada em termos de álibi para a recusa portuguesa
em descolonizar os seus territórios coloniais em África
[Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e
Moçambique] e na Ásia [Índia Portuguesa, Timor]. 171
96
• Temos então o afamado construtor da mestiçagem condoreira e do
lusotropicalismo brasileiros colocando sua imagem e sua escrita a serviço
dos interesses coloniais do Estado Novo português (1933/1974), que teve
em linha de frente os ditadores Antonio Salazar e Marcelo Caetano por
cerca de quatro décadas. O modelo freyriano de interpretação sobre a for-
mação da sociedade brasileira lançado em Casa Grande & Senzala torna-se
icônico para os interesses coloniais lusitanos, segundo João Medina.
Para Medina, “a viagem às colónias lusas a convite do governo de
Salazar, em 1951-52, seria a ocasião para rever, actualizar e ampliar a sua
nova visão lusotropicalista de um imenso Portugal transcontinental e mul-
tirracial”. 172 A memória colonizadora oficial e o passado imperial de Por-
tugal pareciam ter a necessidade de passarem por uma reatualização no
pós-guerra. E Freyre se torna a pessoa certa para dar verniz sociológico à
causa do passado lusitano e da sua herança que ainda teimava em existir,

171 Medina, Gilberto Freyre contestado, 2000, pp. 48 - 49.


172 Medina, Gilberto Freyre contestado, 2000, p. 53.

Sumário
Francisco Bento da Silva

construindo uma narrativa que possibilitasse o colonizado aderir ao “re-


trato do colonizador”173
Antiga colônia portuguesa, que se libertou logo após o fim da di-
tadura em Portugal em meados dos anos de 1970, Cabo Verde é um pais
insular situado na costa do continente africano, formado por um conjunto
de dez ilhas (vide Imagem 01, a seguir). Destas, nove são habitadas e na Ilha
de Santiago fica a capital do país, a cidade de Praia, com cerca de 131 mil
habitantes e o país todo com aproximadamente 434.263 mil habitantes e
uma população emigrada maior que aquela vivendo no país174.
Na então colônia lusitana, em principio dos anos de 1950, Gilberto
Freyre é recebido pelo governador-geral, um médico e militar do exército
de Portugal. Ali ele visita as Ilhas de São Tiago, do Sal e de São Vicente.
As suas impressões inaugurais são de comparações com os “sertões do
Nordeste” brasileiro, notadamente quando fala das terras “ásperas” e “ári-
das” da então colônia insular portuguesa. 175 Percebe-se a generalização do
“Nordeste brasileiro” – tão complexo e diverso na sua geografia – que na
97 ocasião serve aos propósitos de busca de similitudes tropicais e lusitanas
• por parte do escritor pernambucano.

173 Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, 1967.


174 Fonte: Governo de Cabo Verde, disponível em: https://goo.gl/sHtNks, acesso em 20 de
outubro 2017.
175 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 279.

Sumário
Francisco Bento da Silva

Imagem 01: Mapa geopolítico de Cabo Verde

98 Fonte: https://goo.gl/ufgtmh, acesso em 20/10/17.



Os contatos do sociólogo com parte da população das ilhas são
marcados por atos solenes e informais. Com as autoridades coloniais ge-
ralmente predominam o tom formal e as conversas sobre questões admi-
nistrativas e informações sobre problemas enfrentados pela elite de poder
na ilha ligada a status quo colonial: advogados, médicos militares, religiosos,
comerciantes e diretores de escolas. Mas também há contatos com “lavra-
dores, pescadores e horticultores”, onde ele diz também aprender sobre
coisas e problemas das ilhas cabo-verdianas. 176. Há também espaço para
encontros com intelectuais cabo-verdianos, que ele nomeia como poetas
e romancistas: Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Daniel Felipe e José Osório
de Oliveira. Por onde passa o brasileiro é recebido com rapapés e nesse
périplo por terras coloniais tornadas lusitanas porta sempre uma “avidez
de homenagens e honrarias oficiais”177 que lhe parece satisfazer o ego de
intelectual renomado no mundo do imperialismo português.
176 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 279.
177 Medina, Gilberto Freyre contestado, 2000, p. 50.

Sumário
Francisco Bento da Silva

Em Cabo Verde visita clubes recreativos e associações culturais lo-


cais, onde profere um discurso de chegada no Clube de São Vicente em
que compara abertamente o nordeste brasileiro com Cabo Verde e diz: “em
Cabo Verde um brasileiro está ainda no Brasil estando em Portugal” 178. É
interessante que o escritor faz questão de enfatizar que ali são terras portu-
guesas, que Cabo Verde é Portugal, e em nenhum momento ele lança olhar
critico sobre o colonialismo ali exercido pelos portugueses desde séculos
anteriores. E nem podia e nem queria fazer algo nesta direção, tanto por ide-
ologia como por gratidão ao governo ditatorial lusitano que o patrocinava.
Sua imagem, sua escrita e seu prestigio estavam ali para reforçar o colonia-
lismo português que se encontrava em crise após o fim da Segunda Guerra
e o contexto descolonizador de movimentos de libertação que colocaram em
xeque os antigos imperialismos globais179.
Mas segundo Fernando Arenas, “esta visita era aguardada com gran-
de expectativa por parte da intelectualidade cabo-verdiana aglutinada em
torno da revista Claridade180, dado o impacto que teve a produção literá-
99 ria e intelectual nordestina numa consciência nacionalista cabo-verdiana
• em gestação”181. Junto a isto havia uma espécie de entusiasmo e ansiedade
exemplar pelo fato do Brasil ter sido até então a única colônia a se libertar
de Portugal no século anterior, que proporcionou a esta intelectualidade
local traçar paralelos históricos, geográficos e identitarios com o país sul-
-americano. Ou melhor dizendo, com parte do Brasil: a região nordeste
narrada através dos seus autores regionalista lidos pelos cabo-verdianos.
Conforme Dulce Almada Duarte daí vem o:
“alumbramento” provocado pela literatura brasileira, a qual
se deve à identificação dos claridosos com uma literatura
que, para além de uma temática baseada numa situação
ecológica e social afim, era o desemborcar de um processo
cultural comum ao Brasil e a Cabo Verde. O Nordeste

178 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 221.


179 Hobsbawm, A era dos extremos, 1995, p. 248.
180 A revista circulou em Cabo Verde entre 1936 e 1966 de maneira esporádica com nove edições
publicadas, tendo como principais nomes na sua condução Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge
Barbosa. Fonte: https://bit.ly/2PCLRab, acesso em 31 de outubro de 2017.
181 Arenas, Reverberações lusotropicais, 2010.

Sumário
Francisco Bento da Silva

com suas secas e os seus êxodos, as suas frustrações,


surgia como um eco longínquo e amplificador de gritos de
revoltas que morriam nas gargantas dos homens das ilhas,
mas o Nordeste revela-se igualmente aos claridosos com a
região onde desabrochou o sistema patriarcal, agrário e
escravocrata no Brasil, criando um espaço psicológico que
foi, tal como em Cabo Verde, o produto da reelaboração
de dados culturais provenientes da Europa e da África.
Por isso, a literatura do Nordeste foi, para os escritores da
Claridade, a referencia cultural que lhes faltava e que não
podiam encontrar na literatura portuguesa. 182

Contudo, o resultado dessa visita parece não ter sido o esperado


pela elite local que atuava contra o colonialismo através do fazer artístico
e da militância intelectual por vias pacificas. Gilberto Freyre não foi ao
arquipélago para questionar a situação colonial, dar apoio aos sentimentos
de autonomia e nem provocar mais fissuras e sim,
O périplo euro-afro-asiático de Gilberto Freyre influiu
100 na solidificação do seu arcabouço epistemológico, assim
• como no reforço ideológico e simbólico do fascismo-
colonialismo português na cena mundial dada à apropriação
parcial e estratégica das teses do pensador brasileiro pelo
regime salazarista, numa altura em que Portugal era objecto
de isolamento diplomático crescente na cena internacional
em virtude do anacronismo do seu império colonial em
pleno auge independentista do pós-guerra em África, Ásia
e no Médio Oriente (...) As teses gilbertianas que celebram
a miscigenação e a mestiçagem cultural, porém, não foram
de início bem aceites pelo regime de António de Oliveira
Salazar, e quando foram entre os anos 50 e 60, foi de
maneira pontual, uma vez que ideologia e política colonial
portuguesas assentavam em princípios ostensivamente
eurocêntricas e racistas. 183

No seu afã de homem a serviço dos interesses coloniais do salaza-


rismo, o escritor reforça as semelhanças ao realçar aspectos da natureza e
182 Duarte, 1986, p. 08 apud Massini, Modernidade e marginalidade geográfica 1990.
183 Arenas, Reverberações lusotropicais, 2010.

Sumário
Francisco Bento da Silva

cultura local, como se Brasil e Cabo Verde formassem comunidades parale-


las184: ilhas ensolaradas, vegetação “brasileira do nordeste”, com sol mais
tropical que o do Brasil e águas azuis do Atlântico banhando Cabo Verde
185
. Logo em seguida ele sai do encanto tropical e fala dos ilhéus, que te-
riam também uma composição étnica parecida com a do Brasil: mestiça
e integrada, parecendo haver naquele arquipélago a mesma “democracia
racial” que o autor viu no Brasil, de forma velada em Casa Grande e Senzala
(1933) e em tom mais enfático em Ordem e progresso (1957). Contudo, ele
procura destacar a cultura local em “formação”. Neste campo das seme-
lhanças, ele parece ter o olhar direcionado para aproximações e não aos
contrastes. Vê o Brasil e a brasilidade nos gestos, nos sorrisos, na forma de
falar, no cantar, no dançar e até no futebol praticado pelos locais. 186Cabo
Verde torna-se para Gilberto Freyre um “brasilzinho” tropical em for-
mação, carregado de afetos ou “um Ceará desgarrado” e de população
diaspórica, como ele afirmará nessa sua visita. Parecia mesmo que ele não
tinha saído do seu nordeste inventado, que para ele era sinônimo de bra-
101 silidade regionalista.
• Se existiam essas semelhanças elogiosas, na visão do autor brasilei-
ro, ocorriam também contrastes marcados pela peculiaridade local e pelas
questões de fundo histórico-temporal de formação do Brasil e Cabo Ver-
de, como veremos mais adiante. Só o que permanece inabalável e o que sai
“enriquecido [é] o meu lusismo”187.
A MÚSICA DE CABO: “BRASILIDADE”,
IMAGINAÇÕES E INTERSEÇÕES CULTURAIS

Nas visitas aos clubes locais (juventude, culturais, intelectuais, recre-


ativos), Gilberto Freyre afirma ter dançado a morna, um dos mais conhe-
cidos gêneros musicais cabo-verdianos, que no seu olhar é “docemente
parenta de danças brasileiras”188. Aqui, de maneira direta, ele mergulha

184 Anderson, Comunidades Imaginadas, 2008.


185 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 211.
186 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 221.
187 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 221.
188 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 222.

Sumário
Francisco Bento da Silva

na sua escrita de uma história adocicada, “visual, imagístico e sensual”189


daquilo que lhe parecia familiar nos trópicos de origem colonial lusitana.
Segundo estudiosos da musica cabo-verdiana como Eugenio Tavares, a
Morna surgiu no século XIX na Ilha de São Vicente e depois se espalhou
pelas outras ilhas e refletiria a alma e a psicologia do povo de Cabo Verde
em tons românticos e saudosistas190.
Mas esta explicação não é consensual, pois segundo Brígida Évora
(2010),
De acordo com a tradição, a morna surgiu na ilha da
Boavista, sendo a mais antiga a morna “Brada Maria” mas a
sua origem é muito discutida no seio dos autores: para uns
a morna terá sido introduzida por marinheiros estrangeiros
dado a semelhança que existe com “mornes” dos mestiços
da Martinica; para outros, como o Gilberto Freire, a morna
é originária das Antilhas enquanto José Lopes considera-a
de origem inglesa, ou seja, vinda do verbo ‘to mourn’ que
significa lamentar191.
102
• A Morna é cantada na língua crioula cabo-verdiana192 e “os temas
interpretados exprimem muitas vezes o sentimento de quem sofre, ama,
idealiza, lamenta, sonha, tem uma vida dura e problemática. (....) Para tocar
as Mornas geralmente são utilizados instrumentos como a viola, o cavaqui-
nho, a rabeca e a guitarra”193.
Este gênero musical, juntamente com a Coladera, o Batuque e o Funa-
ná projetaram musical e culturalmente Cabo Verde para além mar na dé-
cada de 1990 e, em paralelo, a divulgação da língua crioula cabo-verdiana,
que Freyre tachou como “dialeto repugnante” quando visitou as ilhas do
atual país nos anos de 1950. 194 Isso porque na época colonial o crioulo
era classificado como um “português mal falado” e dialeto das classes
189 Albuquerque Júnior, Por uma história Acre, 2014, p. 119.
190 Tavares apud Barros, “As sombras da claridade, 2008, p. 17.
191 Tavares apud Barros, “As sobras da claridade, 2008, p. 37.
192 O crioulo cabo-verdiano ainda luta para se afirmar como língua oficial junto com o português.
Mas desde 2009 o ALUPEC (Alfabeto Unificado Para Escrita do Crioulo) está institucionalizado
pelo governo do país. Fonte: https://goo.gl/vDrR9d, acesso em 25 de outubro de 2017.
193 Barros, Contributo de Bulimundo na música tradicional caboverdiana, 2017, p. 17.
194 Arenas, Reverberações lusotropicais, 2008.

Sumário
Francisco Bento da Silva

mais baixas. Ou seja, a “ideia de ‘Português mal falado’ se radicava no


preconceito, expresso por alguns autores desde o século XIX, de que os
falantes de Crioulo não eram capazes de imitar os portugueses” 195 e falar
“bonito” e “correto”. É nesta língua, que ainda hoje luta para se afirmar
institucionalmente, que a cultura cabo-verdiana se expressou através de
uma literatura e de uma musicalidade de base nacional antes mesmo da
independência.
Gilberto Freyre procede então neste aspecto com a prática de “des-
valorização do colonizado”, conforme expressa Albert Memmi (1967).
Para este intelectual africano, “esse aviltamento do colonizado (...) essas
acusações, esses julgamentos irremediavelmente negativos, são sempre
proferidos com referencia à metrópole” 196 tida como superior em todos
os sentidos ao espaço colonial e sociedades sobre as quais exerce a do-
minação. Esse olhar etnocêntrico e carregado de lusitanidade também se
mostra quando ele diz que em Cabo Verde não há “arte popular que seja
característica do arquipélago (...) nenhum prato regional que me pareces-
103 se uma daquelas contribuições para o bem-estar da humanidade”. 197 Era
• então nas suas elucubrações um arquipélago muito africano, pouco portu-
guês e distante de suas concepções de tropicologia.
E através de duas mornas de Cabo Verde intento trazer uma discus-
são acerca das representações sobre o Brasil feitas pelos compositores
e músicos daquele país insular. E ao mesmo tempo, discutir como eles
procuram nas suas letras marcar semelhanças do seu país com o distante
Brasil. Distante geograficamente dos cabo-verdianos, mas próximo nos
imaginários sobre ele que vinham sendo construídos desde meados dos
anos de 1920/1930 e que foram reatualizados/reforçados pela visita de
Freyre a Cabo Verde em 1951.
Flora Sussekind198, em seu livro O Brasil não é longe daqui faz um
estudo de algumas obras literárias e de narrativas de viagens ao interior
do Brasil, e diz que o titulo da obra foi inspirado numa musica alemã do

195 Iltec, Diversidade linguística na escola portuguesa, 2017, p. 02.


196 Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, 1967, p. 67.
197 Freyre, Um brasileiro em terras portuguesas, 1953, p. 306.
198 Sussekind, O Brasil não é longe daqui, 2000.

Sumário
Francisco Bento da Silva

século XIX, que convidava os germânicos a migrarem para o país sul-a-


mericano em busca de novas oportunidades. A letra sugeria, diz a autora,
“deslocamentos reais e paisagens imaginadas”. 199 Se os alemães queriam
encontrar o Brasil da canção nos deslocamentos migratórios do XIX, os
cabo-verdianos parecem querer encontrar o Brasil no seu próprio país a
partir do fazer artístico e criativo inspirados em escritores “nordestinos”,
da mesma forma que Gilberto Freyre “viu” lá o Brasil em sua viagem et-
nocêntrica marcada pela ideologia colonialista.
Temos então duas musicas que se enquadram nessa perspectiva que
aponto acima. A primeira delas é a música Brasil (nos sonho azul), de au-
toria do musico e compositor de Cabo Verde Francisco Xavier da Cruz
(1905/1958), mais conhecido como B. Leza, grande nome deste gênero
musical conhecido como Morna. A segunda canção é a música intitulada
Carnaval de São Vicente, que tem como autor o compositor Pedro Mointeir
Rodrigues. Ambas ficaram mais conhecidas recentemente para alem do
arquipélago, respectivamente nas vozes das cantoras Nancy Vieira e Ce-
104 sária Évora.
• A professora e jornalista Gláucia Nogueira, autora de diversos tex-
tos e livros sobre a história da musica de Cabo Verde, em artigo intitulado
Brasilin, Cabo Verdão, aponta que:
O escritor Baltazar Lopes da Silva, por sua vez, ao escrever
sobre o compositor B. Léza no jornal Voz di Povo, em 1981,
fala da grande influência brasileira na juventude cabo-
verdiana dos anos 20 e 30, que adoptou novos estilos,
maneiras de falar, músicas e danças – o Carnaval, por
exemplo, que até então era o tradicional entrudo português,
passa a contar com desfiles. 200

Isto parece apontar de maneira contundente que estes artistas e inte-


lectuais de Cabo Verde foram de alguma forma ao longo da primeira me-
tade do século XX influenciados nas suas produções, seus lirismos e seus
afetos pela musica, cultura e literatura brasileira. E Gilberto Freyre, nas
suas duas viagens a Cabo Verde, legou sua imagem de sociólogo renoma-
199 Sussekind, O Brasil não é longe daqui, 2000, p. 21.
200 Nogueira, Brasilin, 2007, p. 75.

Sumário
Francisco Bento da Silva

do e estudioso do Brasil como um caldeamento de encontros diaspóricos


de brancos e negros, com gentes nativas.
Freyre fixou certa projeção do Brasil em Cabo Verde, que foi de
alguma forma absorvida e reproduzida pela intelectualidade local. A “bra-
silidade” cultural e identitaria do Brasil autônomo parecia se apresentar
como o modelo a ser seguido em escala menor por Cabo Verde em busca
de sua também “caboverdianidade”, que em alguns locais ora se negava a
África, ora Portugal como portadores da desejada “autenticidade”. 201 O
irmão mais novo – fragmentado em diversas ilhas – tinha nessa busca da
invenção identitária unificada pela mestiçagem e hibridismo, o mais velho
como espelho paradigmático. E a língua crioula, renegada por Freyre e com
tensões locais, vai ser o elemento de expressão dessa identidade nacional
através da literatura e da musica.
A seguir temos um quadro com as duas letras escritas na língua criou-
la de Cabo Verde. As traduções das duas musicas para o português foram
cortesia de José Monteiro, cabo-verdiano que gentilmente atendeu meu
105 apelo via e-mail e que mantém um site sobre musica, cultura e tradução de
• crioulo cabo-verdiano para o português (caboindex.com). Não foi possí-
vel saber com precisão as datas em que cada compositor escreveu ambas
as letras. No caso de B. Leza, segundo Gláucia Nogueira, a afinidade dele
com a musica brasileira era enorme: “fica também explícita na letra de
Brasil, alusiva provavelmente à visita a Cabo Verde do sociólogo Gilberto
Freire, no início dos anos 50. Mas também nas muitas marchas de carnaval
que compôs, na mais perfeita tradição daquelas produzidas à época no Rio
de Janeiro”.202 . Ou seja, a visita de Freyre é a inspiração/homenagem de
B. Leza ao escritor e ao Brasil, país com qual ele já mantinha intima ligação
através da musica e da literatura desde final dos anos de 1920.
Já para a música de Pedro Rodrigues, há também uma indetermina-
ção da data se que torna menos compreensiva devido ele ainda estar vivo
e residir desde criança em Angola com suas identidades hibridizadas e
diaspóricas203. Mas Gláucia Nogueira, em email ao autor do texto diz que a

201 Almada, Caboverdianidade & Tropicalismo, 1992; Arenas, Reverberações lusotropicais, 2010.
202 Nogueira, Brasilin, 2007, p. 76.
203 O compositor Pedro Rodrigues nasceu na Ilha do Fogo e se mudou para Angola com a família

Sumário
Francisco Bento da Silva

primeira gravação da canção é de Cesária Évora no ano de 1999 e, prova-


velmente, a composição deve ter ocorrido no período próximo da Inde-
pendência de Cabo Verde, nos anos de 1970. Algo que tem fundamento,
pois em recente entrevista à TV cabo-verdiana, Pedro Rodrigues diz que
escreveu sua primeira musica em 1969204. Sendo este ano então o marco
que ele estabeleceu na sua memória como inicio da sua carreira de compo-
sitor diaspórico, que olha para a Ilha de São Vicente a partir do continente
africano. Sua imaginação é distanciada, no máximo de um visitante, que
busca expressar aspectos culturais dessa “identidade” cabo-verdiana sinte-
tizada em um aspecto cultural e festivo sintetizada em uma das dez ilhas.

106

aos 07 anos de idade, país onde vive até hoje. Fonte: entrevista de Pedro Rodrigues à RCT TV,
Televisão de Cabo Verde, em 15 de maio de 2016. Disponível em: https://bit.ly/2Lpzrjm, acesso
em 02 de novembro de 2017.
204 O compositor Pedro Rodrigues nasceu na Ilha do Fogo e se mudou para Angola com a família
aos 07 anos de idade, país onde vive até hoje. Fonte: entrevista de Pedro Rodrigues à RCT TV,
Televisão de Cabo Verde, em 15 de maio de 2016. Disponível em: https://bit.ly/2Lpzrjm, acesso
em 02 de novembro de 2017.

Sumário
Francisco Bento da Silva

Quadro I – Letras das musicas Brasil (nos sonho azul) e Carnaval de São
Vicente
Brasil (Nos Sonho Azul) Carnaval de São Vicente
Voz: Nancy Vieira Voz: Cesária Évora
Compositor: B. Leza Letra e musica: Pedro M. Rodrigues
Bem conchê ess terra morena J’a’m conchia São Vicente
Ondê que cada criola é um serena Na sê ligria na sê sabura
Bem, q’ês nos céu tambê é de anil Ma ‘m ca pud fazê ideia
Êss nos terra piquinina S’na carnaval era mas sab
É um padacinho di Brasil
Eu já conhecia São Vicente
Vem conhecer essa terra morena Sua alegria e seu sabor
Onde cada crioula é uma sereia Mas não fazia ideia
Vem, que o nosso céu também é de anil Que durante o carnaval era melhor
Esta nossa terra pequenina
São Vicente é um brasilin
É um pedacinho do Brasil Chei di ligria chei di cor
Ness três dia di loucura
Brasil, qui nos tudo tem na peito Ca ten guerra ê carnaval
Brasil, qui no ta sinti na sangue Ness morabeza sen igual
Brasil, bo é nos irmão
Sim c’ma nos bo é morena São Vicente é um brasilzinho
Brasil no crebu txeu, no crebu txeu, di coração Cheio de alegria e cheio de cor
Nesses três dias de loucura
Brasil, que todos temos no peito Não tem brigas pois é carnaval
107 Nessa fraternidade sem igual
Brasil, que sentimos no sangue
• Brasil, tu és nosso irmão
Assim como nós, tu és moreno Nô ten un fistinha mas sossego
Brasil, te queremos muito, te queremos de coração Ca bô exitá bô podê entrá
Coque e bafa ca ta faltá
Vento qui ta bem di sul Hôje é dia di carnaval
Ta trazê na ses cantos acenos di Brasil
Temos uma festinha tão sossegada
Si no ca ta bai, es ca ta dixanu
Não hesite, você pode participar
Brasil bo é nos sonho
Tem muita comida e muita bebida
Bo é nos sonho azul
Hoje é dia de carnaval
Os ventos que vêm do Sul 
São Vicente é um brasilin
Trazem nos seus cantos, acenos do Brasil
Chei di ligria chei di cor
Se não formos, não nos deixam
Ness três dia di loucura
Brasil, tu és o nosso sonho
Ca ten guerra ê carnaval
Tu és o nosso sonho azul
Ness morabeza sen igual
Fonte: https://goo.gl/WXnWWt
Fonte: https://bit.ly/1A2YTkF

Na letra de B. Leza ele procura realçar as semelhanças entre natu-


reza e gentes do Brasil e de Cabo Verde. A terra lá e cá é morena, o céu
das ilhas também é de anil indicando que é igual ao do Brasil. É um pais
diminuto, mas que é um “pedacinho” do Brasil. Os sentidos de pedaço
podem ser interpretados de maneira polissêmica: no sentido de compara-

Sumário
Francisco Bento da Silva

ção territorial entre os dois países, que torna Cabo Verde diminuto frente
ao Brasil continental. Pode ser um pedaço afetivo, de países com culturas
parecidas, de laços fraternais e de parentesco. Também poderia ser enten-
dido Cabo Verde como um pedacinho de natureza do Brasil do litoral e
das representações tropicais: terra paradisíaca, céu azul, mar azul, gente
amorenada pelas misturas étnicas e pelo sol constante que se projeta em
ambos os territórios.
O Brasil imaginado por B. Leza poderia então ser encontrado em
Cabo Verde. Assim, ele se abraça a Gilberto Freyre na mesma narrativa
discursiva de uma natureza idílica e tropical. Essa aproximação se torna
mais intensa se levarmos em consideração o que seria o titulo original da
musica: “Gilberto Freyre”. Esta é uma possibilidade recente lançada pela
pesquisadora Gláucia Nogueira. Diz ela, “acredito que essa música tinha
o título original “Gilberto Freire”, por haver na Sociedade Portuguesa de
Autores o registro de uma composição de B. Léza com esse título (aliás,
grafado errado. Está escrito ‘Gilberto Freira’)”. 205 
108 Os cabo-verdianos carregariam então este Brasil metonímico e ima-
• ginado no peito, no sangue e no coração como algo denso e duradouro. O
Brasil é Cabo Verde e Cabo verde é o Brasil. Um sonho distante e próxi-
mo, marcado pelo azul das águas do Atlântico e pelo anilado do céu tropi-
cal que uniria o Brasil ao Cabo Verde. Quase que concomitante à viagem
do sociólogo pernambucano, B. Leza abraça então as representações de
Gilberto Freyre quando este querendo exaltar a sua “tese” da tropicologia,
da mestiçagem convergente e da obra que “o português criou” destaca
aproximações geo-culturais entre a antiga colônia portuguesa na América
e aquela ainda colônia na África.
Na letra da musica de Pedro Rodrigues temos na primeira estrofe
alguém de outra ilha que chega à Ilha de São Vicente durante a semana
de carnaval e fica encantado com a festa popular. O eu lírico que chega,
parece ser o próprio autor, nascido na Ilha do Fogo e desde criança um
emigrado que vive em Angola até hoje. A única estrofe em que o Brasil
é destacado é a segunda, que se repete como quarta estrofe. Isso porque
o carnaval de São Vicente, narrado como “festa sem igual”, “sossegada”
205 Conversa via e-mail com o autor deste texto, datada de 31 de outubro de 2017.

Sumário
Francisco Bento da Silva

e de “fartura” só pode ser comparado em perspectiva ao do Brasil. Nos


três dias de “loucura”, a ilha se torna uma “brasilizinho”, cheio de alegria
e colorido. Há aí uma dupla representação: sobre o Brasil enquanto uma
comunidade imaginada pelos de fora e sobre o carnaval do Brasil em parti-
cular, que o desta ilha de Cabo Verde imitaria, reproduziria, se tornando
durante os três dias de festa um pequeno Brasil (Brasilin). Como bem diz
Anderson (2008), as “comunidades se distinguem não por sua falsidade/
autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas”. 206 E o estilo ima-
ginativo é algo aproxima Cabo Verde e Brasil nestas comparações de duas
letras musicais produzidas ainda na vivência do colonialismo.
Como bem aponta de maneira poética Gláucia Nogueira no titu-
lo de seu artigo, o afeto no uso do diminutivo brasilin para se referir ao
seu próprio país serve para engrandecer o pequeno Cabo Verde. Ao ser
brasilin, torna-se cabo-verdão. Mas também, como defende Sérgio Buarque
de Holanda, o sufixo inho da língua portuguesa serviu no Brasil para criar
afetos e intimidades expandidas, onde as relações informais sobrepujam
109 a formalidade e dão origem ao homem cordial. Ou como ele bem diz: “É a
• maneira de fazê-los [pessoas e objetos] mais acessíveis aos sentidos e também
de aproximá-los do coração”. 207 Desta forma, Cabo Verde e Brasil são
irmãos cordiais de povos mestiçados e culturas assemelhadas.
REPERCUSSÕES E O LEGADO:
REPRESENTAÇÕES IMAGÉTICAS
CONTEMPORÂNEAS

Uma das muitas versões audiovisual disponível no canal youtube da


musica Brasil, Nôs sonho azul conta com quase quatro mil visualizações e
foi postada em janeiro de 2015 e tem como interprete a cantora Nancy
Vieira208. Não é um vídeo oficial da produção do álbum musical No Amá
(2012) 209, contudo, imagens da cantora aparecem sobrepostas às imagens
206 Anderson, Comunidades imaginadas, 2008, p. 33.
207 Holanda, Raízes do Brasil, 1976, p. 108.
208 Disponível em: https://goo.gl/WXnWWt. Postado em por JSM CV Music em janeiro de
2015. Acessado pela ultima vez em 31 de agosto de 2018.
209 Na mesma plataforma, a versão oficial da gravadora Lusáfrica é cantada tendo apenas a capa
do álbum em destaque e conta com mais de 08 mil visualizações. Disponível em: https://bit.
ly/2NOY2Al, acesso em 31 de agosto de 2018.

Sumário
Francisco Bento da Silva

da cidade do Rio de Janeiro e seus pontos turísticos mais conhecidos:


praias e Cristo Redentor alem de mulheres em fantasias de carnaval e ho-
mens da bateria de uma escola de samba. Cabo Verde aparece também
no mesmo vídeo com a imagem de uma praia e o mar azul em destaque.
Natureza e carnaval unem imageticamente os dois países na imaginação
de quem produziu o vídeo, reatualizando Gilberto Freyre e B. Leza nas
redes sociais.
No mesmo canal, a música Carnaval de São Vicente alcança quase 800
mil visualizações desde quando foi postada em 2010 em um dos muitos
vídeos disponíveis210. Em grande medida, essa maior visibilidade tem a ver
com a intérprete da canção, a cantora Cesária Évora (1941/2011) que se
tornou muito conhecida e a mais famosa cantora cabo-verdiana para alem
das ilhas daquele país na virada do século XX para o XXI. Cesária Évora
gravou a musica em seu álbum de 1999, intitulado Café Atlântico do selo
Lusáfrica. No vídeo citado, as imagens que se alternam são da cantora
com as paisagens da Ilha de São Vicente (mar, céu, montanhas e a cidade)
110 e parte da população nas ruas durante o carnaval local, realçando os desfi-
• les e a alegria coletiva. Sobre esta ilha, Gilberto Freyre diz que a achou de
população mais alegre, com “alguma coisa de baiano e até de carioca. De
malandro, portanto”211.
A seguir temos um quadro (Imagem 02) pintado em 2008 pelo artis-
ta plástico cabo-verdiano Antônio Firmino. Na pintura aparecem juntos
Gilberto Freyre, B. Leza e Baltazar Lopes212. É um encontro hipotético do
trio, imaginado, que não ocorreu quando Freyre visita pela segunda vez
Cabo Verde. Atrás de cada artista, aparecem suas obras mais significativas
pintadas: De Gilberto Freyre, sua obra seminal Casa Grande & Senzala é
mostrada em varias traduções, que parece querer explicitar a importância
210 Vídeo disponível em: https://bit.ly/1A2YTkF, acesso em 31 de agosto de 2018.
211 Freyre, Aventura e rotina, 1999, p. 270.
212 A matéria sobre a pintura foi publicada no jornal on line português O Tornado, datado de
11 de dezembro de 2016. Abaixo da pintura, temos a seguinte legenda: “B. Leza, Gilberto Freyre
e Baltasar Lopes ‘Nhô Baltas’, segundo Antonio Firmino. Três ‘cromos’ da Lusofonia, que na
realidade se encontraram mesmo, na passagem de Freyre pelo Mindelo nos anos 30 do século
passado, mais tarde registrada em vários dos seus livros (ex: “Aventura e rotina”). Celebrando
o encontro co Gilberto Freyre, B. Leza viria a compor a morna ‘Brasil’”. Fonte: https://bit.
ly/2LSFMUW, acesso em 31 de agosto de 2018.

Sumário
Francisco Bento da Silva

e reconhecimento do intelectual perante o mundo. O poeta e compositor


B. Leza, ao centro e com violão, torna-se a expressão lírica da poesia e da
musica cabo-verdiana, no seu gênero conhecido como Morna. Radicado
em Portugal, B. Leza já era bastante conhecido e admirador da musica
brasileira e argentina. Na década de 1930 publicou seu primeiro livro inti-
tulado Partícula da lira Cabo-Verdiana e também uma obra de poemas cha-
mada Flores murchas. Baltasar Lopes – autor do romance Chiquinho (1947)
– congregou em torno da revista Claridade parte da intelectualidade de
Cabo Verde e esta revista é destacada ao fundo de seu retrato pintado por
Antônio Firmino.
Imagem 02: Quadro de Antônio Firmino

111

Fonte: https://goo.gl/oZEk2B, acesso em 07 de novembro de 2017.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gilberto Freyre esforça-se para defender a ideia de vidas paralelas


e sincrônicas espalhadas pelo antigo Império português e suas colônias
ao redor do mundo no século XX, tendo o Brasil, desgarrado da tutela
lusitana no século XIX, permanecido como exemplo maior “do mundo
que o português criou”. Carregado de brasilidade e de lusofonia, o soci-

Sumário
Francisco Bento da Silva

ólogo viajante vê Brasil e Portugal aonde vai no mundo colonial mantido


pela metrópole. Na visão freyriana, a ex-colônia e colônias parecem de-
ver tributo cultural, histórico e “civilizacional” ao grande construtor desse
mundo colonial criado e tutelado pelo chamado Império português, que
naquele momento apenas sombreava a glória do passado. Para alem da
questão da nacionalidade, parece haver a defesa daquilo que Anderson
vai chamar de Comunidade imaginada, integrada principalmente pela língua
portuguesa, pela cultura eurocêntrica e pela religião cristã.
O intelectual cabo-verdiano Baltasar Lopes, ao tomar conhecimento
da obra de Gilberto Freyre sobre suas andanças pelas colônias lusitanas,
incluindo Cabo Verde, lançada no Brasil em 1953 sob o título de Aventura
e rotina (1953), resolve responder o renomado sociólogo brasileiro através
das ondas sonoras da Radio Barlavento. São seis palestras proferidas entre
os dias 12 de maio e 23 de junho de 1956, depois publicadas no mesmo
ano em um folheto intitulado Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. 213
Baltasar Lopes diz que o “Messias desiludiu-nos”. 214 Por si só a
112 sua frase é reveladora. O “messias” Gilberto Freyre teria desiludido um
• sujeito coletivo expresso na fala de Lopes. Quem é o sujeito plural por ele
expressado? Podem ser os cabo-verdianos em geral e em particular os in-
telectuais do arquipélago com os quais Freyre teve contato, que pareciam
então querer ou esperar do famoso escritor uma narrativa ufanista e talvez
laudatória de Cabo Verde, ou apenas da “realidade” local que se adequasse
aos desejos nacionalistas. Há desagrado pois, segundo Lopes, Freyre foi
superficial e ligeiro nas suas análises sobre Cabo Verde e sua cultura. Na
verdade, teria o brasileiro “apenas arranhado” o litoral de três das dez
ilhas. A crítica envolvia também o tom depreciativo com que Freyre tratou
da culinária local e do crioulo cabo-verdiano, alem de ver de forma exage-
rada o “africanismo continental” em todo lugar (musica, dança e religião)
e uma “esterilidade cultural” dos cabo-verdianos. 215
Ou seja, ao não ver as marcas da herança lusitana impregnada nas
falas, nos gestos, nas crenças, nas musicas, no perfil étnico e nas comidas

213 Medina, Gilberto Freyre contestado, 2000, p. 57.


214 Medina, Gilberto Freyre contestado, 2000, p. 59.
215 Medina, Gilberto Freyre contestado, 2000, p. 59.

Sumário
Francisco Bento da Silva

dos ilhéus cabo-verdianos, Freyre parece atestar que o “atraso” local era
obra da “deficiente” atuação colonizadora que não conseguiu aportugue-
sar o suficiente as gentes locais das camadas mais pobres ainda muito
“africanóides” segundo Freyre (1953). Talvez por isso tenha restado a ele a
correlação de Cabo Verde com os trópicos do Brasiçl, com o seu nordeste
afetuoso, do que com a Europa portuguesa. Porem, uma “terra portugue-
sa” sem identidade própria, que não deveria ter autonomia e em escala de
grandeza (cultural, geográfica, econômica e social) muito inferior do Brasil
ao qual se queria comparar e era comparado.
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113 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a ori-

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Sumário
Francisco Bento da Silva

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114 colônias portuguesas como álibi colonial do salazarismo”, pp. 48/61. Revista
• USP, São Paulo, nº 45, março/maio, 2000.
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do coloniza-
dor. São Paulo: Paz e Terra, 1967.
NOGUEIRA, Gláucia. “Brasilin: Cabo Verdão”, pp. 73/83. In: NOGUEIRA, G.
Noticias que fazem história – A música de Cabo Verde pela imprensa ao
longo do século XX. S. Ed.: Praia, 2007.
SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. Rio
de Janeiro: Companhia das Letras, 2000.
Francisco Bento da Silva: Possui doutorado em História pela UFPR (2010) e
professor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (UFAC) e do Mestrado em
Letras: Linguagem e Identidade (UFAC

Sumário
PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS
DE ESCRITOS HISTORIOGRÁFICOS
SOBRE AS AMAZÔNIAS ENTRE AS
DÉCADAS DE 1950 A 2000

Daniel da Silva Klein

O primeiro autor a entrar no debate foi José Moreira Brandão Cas-


telo Branco Sobrinho216 que elaborou, em seu tempo, pesquisas pioneiras
que foram deliberadamente usadas por outros, sem as devidas referências.
O esquecimento, nesse caso, é um empreendimento político, tendo em
vista que seus trabalhos são compostos, basicamente, por artigos que fo-
ram publicados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB,
ou seja, tinham circulação restrita. Numa historiografia voltada para as
descobertas de fatos, seus dados, escritos em revistas guardadas em algu-
mas poucas bibliotecas, serviram de manancial para que outros pudessem
municiar suas publicações.
Diferentemente de Sobrinho, Arthur Cezar Ferreira Reis217 foi e é
lembrado por seus artigos e livros. Ele é reconhecidamente um pesquisa-
dor de mão cheia e sua obra seria discutida ao longo das décadas justa-
mente por isso, mas, ele foi além. Reis soube utilizar o cenário da ditadura
militar e os poderes das elites locais a seu favor, ou seja, a divulgação e
circulação de “A Amazônia e a cobiça internacional”, dentre outros, foi
resultado, em grande medida, dessa relação.
Roberto Santos218 e Pedro Martinello219 são dois pensadores que
marcaram, talvez, a maior guinada nesse trajeto. Entendemos que há escri-
tos historiográficos sobre as Amazônias antes e depois deles, isso porque
216 Castelo Branco Sobrinho, Descobrimento das terras da região acreana, 1958.
217 Reis, A Amazônia e a cobiça internacional, 1960.
218 Santos, História econômica da Amazônia, 1980.
219 Martinello, A batalha da borracha na segunda guerra mundial, 1985.
Daniel da Silva Klein

as análises que elaboram sobre tempo, espaço e, principalmente, economia


foram cruciais para se compreender as formações sociais desses lugares.
Essa importância toda é medida, justamente, pelas pesquisas que
vieram depois, que se colocavam frontalmente contra um olhar mais eco-
nômico. Muitos falharam nessa leitura crítica de Santos e Martinello, mas
outros conseguiram seus propósitos. Carlos Alberto Alves de Souza, Car-
los Walter Porto Gonçalves e Franciane Gama Lacerda são alguns desses
expoentes. Seus trabalhos entram aqui, justamente, por contribuírem para
a os debates sobre os modos de vida dos povos amazônicos.
Obviamente que nem todos os autores que entram na investigação
são historiadores formados, muitos deles são diletantes, por assim dizer.
Além disso, não há entre eles uma articulação de movimento que os uma,
ou seja, não formam uma escola. Mas podemos utilizar o questionamen-
to que faz Marcos Cezar de Freitas a respeito da historiografia brasileira:
qual a dimensão política dos seus conteúdos, métodos e práticas? Isso se
levarmos em conta aquilo que ele diz, de que a “historiografia pode ser
116 entendida como o locus de investigação no qual a política (diluída ou mar-
• ginalizada) manifesta-se nas práticas discursivas dos historiadores”. 220
Nesse sentido, podemos dizer que o pano de fundo é tornar eviden-
te, justamente, a articulação entre as responsabilidades dos autores e as
questões teóricas e metodológicas expressas nos seus textos, que são re-
sultado desse processo que visa entender o passado das Amazônias. Longe
de desvirtuar as interpretações sobre esses tempos idos, as posições polí-
ticas desses pensadores somente ampliam as problematizações e aclaram
ainda mais os olhares acerca desses contextos.
A hipótese é que o movimento de abertura metodológica desses
escritos historiográficos foi gradual e trouxe em seu bojo as fraturas pro-
vocadas pelas escolhas de cada historiador, que foram deixando de lado
temporalidades, individualidades e tramas estruturais. A proposta é de-
monstrar, narrativamente, como esses rastros, cacos e silêncios, ao invés
de enfraquecerem essa abertura constante, a fortaleceram.

220 Freitas, Por uma história da historiografia brasileira, 2007, p. 09.

Sumário
Daniel da Silva Klein

A AMAZÔNIA, SEUS HERÓIS E LUGARES


IMPORTANTES

Durante décadas a historiografia da Amazônia procurou datas cívi-


cas, acontecimentos politicamente marcantes e a identificação de lugares
importantes. Palco de uma ocupação destemida, orientada pelo ideal de
expansão da fronteira brasileira, a Amazônia foi vista como uma região
para onde iam os fortes, aqueles que deveriam amansar a terra em favor
da civilização.
Um dos historiadores que melhor se firmou nessa corrente foi Le-
andro Tocantins. Em sua principal obra, “Formação Histórica do Acre”,
defende a tese de que o Acre, um dos estados da Amazônia brasileira,
presenciou a chegada de um grande fluxo populacional no final do século
XIX, que formou um ciclo econômico
[...] em escalas e intensidade notáveis, que traduza o
desbravamento e a fixação humana dentro das formas
apontadas por J. F. Normano, esse ciclo é o da borracha. E
117 nele, o Acre, seu quartel-general, a ser palco de um intenso
• surto de ocupação humana e de exploração de recursos
naturais, quando os bolivianos ainda não haviam lá chegado
com os seus pioneers. 221

A fala de Tocantins exalta o desbravamento da floresta em favor


da produção e comércio da borracha, destacando aí a forte presença da
ocupação humana no fomento desse movimento econômico. O ponto de
seus argumentos, não só desta passagem, é de que os brasileiros chegaram
antes dos bolivianos na ocupação do Acre.
Tocantins destaca em seu texto, feitos e acontecimentos que evi-
denciam a tenacidade, a primazia e a superioridade dos brasileiros frente
aos bolivianos. Diferentemente dessa posição temos, por outro lado, um
historiador que procura heróis na precariedade. Sua narrativa descreve o
desbravamento de parte da Amazônia por homens que a muito custo en-
frentaram regiões desabitadas, a pobreza material e as longas distâncias
percorridas nos rios caudalosos. Esse autor trata-se do juiz federal José
Moreira Brandão Castelo Branco Sobrinho.
221 Tocantins, Formação histórica do Acre, 2001, p. 192.

Sumário
Daniel da Silva Klein

Entre o final da década de 1940 e início de 1950, Sobrinho escreveu


uma série de artigos para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro -
IHGB, onde faz emergir uma narrativa viva sobre a ocupação dos rios
no vale amazônico. Atuando como juiz no Acre durante anos, chegou a
ser aliado de Guilhermino Bastos no início da década de 1930. Bastos era
sócio da N & Maia e Companhia, a mais rica empresa seringalista daquelas
terras. 222Talvez por conta de seu trabalho e dessas amizades, Sobrinho
teve acesso a fontes que os outros historiadores da região só foram ter
bem depois da década de 1990 como relatórios dos governadores amazo-
nenses do início do século XX, do intendente boliviano no Acre em 1899
e dos seus primeiros prefeitos departamentais brasileiros. Além disso, esse
autor tratou de recolher uma série de depoimentos de algumas pessoas
que chamava de fundadores do Acre223, ou seja, lançando mão de métodos
de pesquisa pioneiros para seu contexto de escrita.
Em um de seus artigos, o historiador demonstra que a ocupação
do Vale do Rio Purus, uma das zonas de maior produtividade do ciclo
118 da borracha, se deu somente a partir de 1878 e mesmo assim de maneira
• bastante irregular. Até aquela data poucos viajantes tinham percorrido a
região como João Gabriel de Carvalho. 224
Sobrinho se dedicou especialmente a um desses viajantes, Manuel
Urbano da Encarnação, a quem literalmente presta uma homenagem nar-
rativa ao descrever seus feitos. Entre as décadas de 1840 e 1870, Manuel
Urbano explorou praticamente sozinho o Purus, encontrando naquele rio,
basicamente, populações indígenas com quem mantinham trocas comer-
ciais. Diz que Urbano era um negro de ascendência indígena, capaz de
falar diversas línguas.
Urbano guiou vários viajantes europeus ao longo da bacia do Pu-
rus, como Willian Chandless na década de 1860. Chandless usou dos co-
nhecimentos de Urbano para fazer um dos primeiros mapas geográficos
daquela região. Com a ajuda de seus filhos, Gil Braz e Leonel, Manuel Ur-
222 Klein, A borracha no Acre, 2013.
223 Castelo Branco Sobrinho menciona, por exemplo, que fez entrevista com essas pessoas,
citando inclusive Neutel Maia, a quem dedica o título de fundador da capital do Acre, Rio Branco.
In: Sobrinho, O rio Acre, 1958, p. 130.
224 Castelo Branco Sobrinho, Descobrimento das terras da região acreana, 1958, pp. 296 a 297.

Sumário
Daniel da Silva Klein

bano abriu seringais vindo a falecer na década de 1890. Uma das vilas que
fundou foi Canutama, que se transformou em um entreposto comercial a
partir de 1880. 225Os textos de Sobrinho trazem uma chave para compre-
endermos o processo de ocupação da Amazônia na fronteira de expansão
da exploração da borracha: de que o Vale do Rio Purus, incluindo aí o
de seu maior tributário, o Acre, foi ocupado tardiamente em comparação
com outras regiões da Amazônia.
Em 1882 o ciclo da borracha já era uma realidade para determina-
dos lugares, impulsionando o crescimento das cidades de Manaus e Be-
lém. Nessa data, porém, o Acre começava a ser ocupado com aquilo que
Sobrinho chama de barracas demonstradoras de posse, ou seja, ao longo
do rio os seringalistas abriam um seringal e colocavam na clareira sede da
propriedade um trabalhador, que ficava ali montando o empreendimento
até que fosse lentamente ocupado.
Os cenários que vão emergindo da ocupação dos rios Purus e Acre,
nos textos de Sobrinho, são, muitas vezes, contrastantes com os que nos
119 apresentam Tocantins e outros autores. Segundo ele em 1886 os povoa-
• dores de toda essa região eram muito poucos, encontrando-se em agrupa-
mentos de famílias
[...] só às margens dos rios, e a grande distância uma das
outras, constituindo centros de exploração da goma elástica,
com algum plantio de arroz, cana de açúcar e bananeiras
existindo ainda em lugares inexplorados ou errantes os
antigos moradores das selvas. 226

Sobrinho diz, portanto, que na década de 1880 o vale do Purus e


seus afluentes eram pouco habitados e seus moradores ficavam isolados
uns dos outros. Além disso, os exploradores da borracha conviviam ainda
com algumas tribos indígenas, a crônica pobreza material e as dificuldades
de navegação.
Interessa notar aqui que o tema de Sobrinho são os feitos heróicos
dos brasileiros dentro da aventura de ocupação de uma dada região da
Amazônia no ciclo da borracha. Há, porém, um diferencial em sua narra-
225 Castelo Branco Sobrinho, Descobrimento das terras da região acreana, 1958, pp. 23 a 25.
226 Castelo Branco Sobrinho, Descobrimento das terras da região acreana, 1958, p. 135.

Sumário
Daniel da Silva Klein

tiva. Ao demonstrar a precariedade e a demora dessa ocupação, Sobrinho


procura dar ênfase ao heroísmo dos seus primeiros moradores em enfren-
tar problemas dos mais diversos tipos.
OCUPAR PARA NÃO ENTEGRAR: A LUTA
CONTRA A COBIÇA INTERNACIONAL

Dentro de um debate do regime militar, a historiografia amazônica


continuou entendendo que o norte do Brasil era a última fronteira do país.
A partir da década de 1960, principalmente, essa historiografia passou a
valorizar as riquezas da Amazônia em nome da proteção dos bens nacio-
nais e a problematizar o fim da economia da borracha.
A principal voz da historiografia amazônica nos tempos militares
foi Arthur Cezar Ferreira Reis (1960). Pode-se afirmar que Reis aprofun-
dou as questões acerca da economia da borracha, superando os limites de
uma simples história política. Mas ele não chegou a tocar nos problemas
centrais da cadeia de aviamento, suas relações hierarquizadas ou a desor-
denada concessão de crédito entre aviadores e seringalistas.
120

Os silêncios de Arthur Reis em relação aos problemas da cadeia de
aviamento devem-se ao fato de que ele não estava somente compromis-
sado com os membros da elite econômica e política da Amazônia, mas,
com a do Brasil como um todo. Ocupou cargos importantes do governo
federal no governo de Getúlio Vargas na década de 1950; foi também o
primeiro governador do Amazonas no período após o golpe militar de
1964, nomeado por Humberto Alencar Castelo Branco; era sócio do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro e diretor de diversos programas da
ditadura, como a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia. 227
Arthur Reis era não só um intelectual que tinha se transformado, a
partir da década de 1960, em referência nos estudos amazônicos, mas um
agente ativo das elites regionais no cenário nacional brasileiro. Nesse con-
texto, compreende-se que, justamente para não afrontar seus pares é que a
avaliação que faz do ciclo da borracha não toca em questões problemáticas
da cadeia de aviamento.

227 Vilhaça, Arthur Cezar Ferreira Reis, 2010; Pacheco, A narrativa heróico-nacionalista de Arthur
Reis, 2012, p. 01.

Sumário
Daniel da Silva Klein

Um de seus trabalhos mais famosos foi “A Amazônia e a cobiça in-


ternacional”228, onde avalia, em parte, a crise do ciclo da borracha, a partir
da premissa de que o Brasil foi dilapidado. Nesse texto, Reis demonstra
como foi o processo de aclimatação das seringueiras na Ásia, de que forma
foram plantadas em fazendas de criação e como sua produtividade cresceu
entre o final do século XIX e a primeira década do XX.
Segundo suas observações, em 1914 a produção brasileira de bor-
racha estava estagnada em pouco mais de 30.000 toneladas, enquanto que
a asiática ultrapassava mais de 70.000. Para Reis essa superação do Brasil
no mercado internacional da borracha, só foi possível devido a uma per-
versão intelectual orientada pelo colonialismo das nações ricas do mundo.
Ele diz que essa perversão colonialista projetou no século XIX os
grandes jardins de aclimatação da seringueira silvestre amazônica, de onde
surgiram as mudas que, posteriormente, foram levadas para a Ásia e possi-
bilitaram o surgimento das fazendas de cultivo dessa planta.
A essa perversão intelectual foi somada uma lógica diplomática ‘sem
121 entranhas nos seus desígnios políticos’ por parte das nações imperialistas,
• que enviaram para a Amazônia uma série de cientistas e aventureiros para
roubarem mudas de seringueiras. Nas palavras do autor, a partir dessa ló-
gica diplomática comprovou-se
[...] muito do que se sabia com segurança. Apuraram muito
do que nada se sabia. Nesse afã, entraram pelas portas
largas das franquias que lhes eram proporcionadas sob a
segurança de seus objetivos espirituais e serviram ao apetite
de suas pátrias. Ligavam-se às ideias de superioridade de
raças, que teriam missão civilizadora a cumprir sobre os
povos subdesenvolvidos dos outros continentes. 229

Esses cientistas e aventureiros foram os braços do imperialismo e,


para Reis, os brasileiros nessa conjuntura foram vítimas. Segundo o autor,
a produção de borracha na Ásia nasce dessa prospecção intelectual colo-
nialista e perversa.
É lógico que Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Japão e com-
228 Reis, A Amazônia e a cobiça internacional, 1960.
229 Reis, A Amazônia e a cobiça internacional, 1960, p. 03.

Sumário
Daniel da Silva Klein

panhia limitada agiam pelo globo como aves de rapina, mas o historiador
não fala muito da conivência dos seringalistas, aviadores e políticos da
Amazônia para com esse saque. Permanece em grande parte mudo a res-
peito desse tema, isso sem falar que não dedica espaço para com a própria
organização hierárquica da cadeia de aviamento e das rotinas estafantes de
trabalho impostas aos seringueiros.
Seu silêncio demonstra que não era interessante elaborar uma crítica
a determinados elementos da cadeia de aviamento, tendo em vista que
se assim procedesse poderia atacar seus pares, logo, aqueles que o sus-
tentavam no poder. Pode-se atenuar essa afirmativa, porém, se situarmos
alguns aspectos das críticas que Reis tece às elites amazônicas.
Segundo Pacheco, Arthur Reis reconhecia que a lógica de ocupação
da Amazônia orientava-se por um ideal de acampamento, onde a econo-
mia se mantinha a partir da condição de exportadora de produtos primá-
rios. Pacheco diz que o autor creditava a essa condição o atraso econômico
e social da Amazônia230.
122 No mais entendia que os planos governamentais para a Amazônia
• não tinham continuidade e que havia uma inação por parte das elites locais
em superar sua condição dependente, o que era evidência da falta de um
empenho maior em prol da nação. 231 Como podemos notar as críticas de
Reis, ainda assim, direcionam-se para entidades genéricas, planos impesso-
ais e a inaptidão por parte das elites em assumirem um nacionalismo ade-
quado, ou seja, que não se oriente por uma economia agrário-exportadora.
A ECONOMIA DA AMAZÔNIA

A partir da década de 1980 surge uma série de trabalhos que pro-


blematizam a formação econômica da Amazônia. Esse enfoque historio-
gráfico tenta superar as visões de uma determinada historiografia política
e centram-se em um debate sobre a estrutura geral dos movimentos eco-
nômicos dessa região antes e depois daquilo que se convencionou chamar
de ciclo da borracha.
Não é demais lembrar que essa historiografia inspirou-se, também,

230 Pacheco, As perspectivas meta-históricas de Arthur Reis, 2012, p. 103.


231 Pacheco, A narrativa heróico-nacionalista de Arthur Reis, 2012, pp. 107-108.

Sumário
Daniel da Silva Klein

no celebre trabalho de Caio Prado Junior232 e em toda uma tradição mar-


xista que pensava a história economia do Brasil 233. Nesse sentido o pri-
meiro estudo que se dedicou a uma análise demorada sobre a borracha foi
o do economista paraense Roberto Santos234. Seu estudo descreve como
a cadeia de aviamento se constituiu ao longo do século XIX, a maneira
como dominou a produção e o comércio da borracha na Amazônia e de
que forma não foi capaz de superar a produtividade asiática.
Para Santos, o ciclo da borracha foi o período em que a produção da
borracha, baseada no látex da seringueira, ocupou quase toda a economia
da Amazônia brasileira e teve como característica duas fases: a) a primeira
dominada pela tendência de alta no crescimento produtivo, que por alguns
anos foi abalada por curtos períodos de oscilação entre 1840 e 1910; b) e
a segunda em que há uma acentuada decadência produtiva, que é seguida
por uma estagnação a partir de 1910 e segue até 1940.235 Nos tempos áure-
os da borracha o autor diz que o sistema de créditos da cadeia de aviamen-
to era custoso demais, hierarquizava suas partes através da dívida e estava
123 dominado pelo capital especulativo.
• Esse capital especulativo investiu seus recursos na cadeia até o mo-
mento em que ela poderia fornecer algum retorno financeiro, mas quando
a Ásia começou a despontar no cenário internacional, esses financistas
abandonaram a Amazônia. Sem poder de financiamento e com a produti-
vidade asiática crescendo cada vez mais, os agentes da cadeia de aviamento
entraram em falência. 236
O processo de concessão de créditos na Amazônia tinha uma traje-
tória que remontava ao início de sua colonização. O autor diz que no Grão
Pará o uso da moeda não era corrente, tendo sido instituído somente em
232 Júnior, História econômica do Brasil, 1998.
233 Não é demais lembrar que esse debate sobre as estruturas econômicas do país foi pensado por
autores de outras vertentes, citamos: Furtado, A formação econômica do Brasil, 2003.
234 Santos, História Econômica da Amazônia, 1980.
235 Tanto Roberto Santos quanto Pedro Martinello (especialmente este) discutem que o ciclo
da borracha se encerra, a rigor, na década de 1940. Entre 1942 e 1946 o que existe é um surto
ocasionado pela compra da produção brasileira por parte dos Estados Unidos. Não é o foco deste
trabalho abordar essa diferenciação, mas, fica aqui o registro. In: Santos, História Econômica da
Amazônia, 1980, pp. 11-15.
236 Santos, História Econômica da Amazônia, 1980, pp. 232-235.

Sumário
Daniel da Silva Klein

1749. Nesse período um regime de crédito tomava conta das empresas


coletoras de drogas do sertão, onde os trabalhadores retiravam da floresta
temperos, carnes, peles e recebiam em troca mercadorias para o sustento.
Nas palavras de Roberto Santos essas transações eram uma espécie de
crédito sem dinheiro que os ribeirinhos chamavam de aviamento. 237
Como as coletas de drogas do sertão eram insipientes no vale ama-
zônico, o aviamento era ele também muito restrito. Com o crescimento
da exploração da borracha, porém, esse sistema de crédito foi retomado
e ampliado pelas elites econômicas regionais. Santos diz que houve uma
coordenação entre investidores internacionais e comerciantes da Amazô-
nia no sentido de se financiar a exploração da borracha, havendo uma
introdução de recursos para que trabalhadores fossem levados a produzir
borracha nos seringais.
Mas essa introdução monetária passou por uma filtragem, tendo
em vista que os investidores internacionais compravam borracha de atra-
vessadores locais pagando com dinheiro. Estes adquiriam borracha com
124 aviamento e seus fornecedores davam vazão a esse sistema de crédito, que
• era na segunda metade do século XIX uma prática secular, tradicional e
adaptada às hierarquias sociais amazônicas do ciclo da borracha. 238
Roberto Santos nos informa que o aviamento era um sistema pro-
dutivo e comercial que garantia aos membros dominantes da rede uma
posição de superioridade perante os demais trabalhadores da economia
regional, porque era usado para organizar também a pesca e a agricultura
na região. Os seringueiros vindos do Nordeste, que eram contratados para
trabalharem na extração da borracha, formaram a base produtiva e da
exploração do aviamento. Nas palavras do autor alguns seringueiros até
recebiam estímulo monetário em dinheiro, mas
[...] ficava de tal forma isolado, pela própria disposição
geográfica das atividades produtivas regionais, que seu
vínculo com o ‘barracão’ se tornava exclusivo e ele perdia
quase totalmente a liberdade de usar o que ganhava. Nessas

237 Santos, História Econômica da Amazônia, 1980, p. 156.


238 Santos, História Econômica da Amazônia, 1980, p. 157.

Sumário
Daniel da Silva Klein

condições, a grande função desempenhada pela moeda


seguia sendo a prestação de serviços de cálculo. 239

A cadeia do aviamento prendia os agentes da rede uns aos outros


porque havia uma série de contratos formais entre seus organizadores, os
seringalistas e seringueiros. Grosso modo a cadeia de aviamento era or-
ganizada entre as empresas seringalistas, que tinham seringais e vendiam
borracha exclusivamente para uma casa aviadora local, que levava borra-
cha para alguma casa aviadora de Manaus ou Belém e nessas capitais os
produtos eram negociados com as casas exportadoras.
Esses agentes eram os controladores do sistema e o dinheiro só
circulava em abundância entre as casas exportadoras e as aviadoras de
Manaus e Belém. As demais recebiam pela borracha fornecida algum re-
curso monetário e gêneros industrializados, que chegavam às mãos dos
seringueiros através dos seringalistas. Os trabalhadores seringueiros não
possuíam terras, porque extraiam e produziam borracha nos seringais, lu-
gares em que trabalhavam para os seringalistas, que pagavam pela bor-
125 racha com gêneros do aviamento. A partir do que diz Roberto Santos,

podemos montar uma estrutura para explicar esse primeiro modelo de
aviamento (figura 1).
Através desse esboço, podemos perceber que as casas exportadoras
eram as financiadoras da cadeia de aviamento, os aviadores eram os atra-
vessadores e os seringueiros os produtores, a base de sustentação dessa
rede hierarquizada. Os seringueiros possuíam sua força de trabalho, os
aviadores de segunda linha detinham a propriedade dos seringais, os de
primeira linha forneciam basicamente o aviamento de toda a cadeia e as
casas exportadoras vendiam borracha no mercado internacional.

239 Santos, História Econômica da Amazônia, 1980, p. 158.

Sumário
Daniel da Silva Klein

Figura 1: A cadeia de aviamento tradicional, vale amazônico, Brasil, 1890 – 1910.

Fonte: SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. História econômica da Amazônia: 1820-


1920. São Paulo: T.A. Queiroz, 1980, p. 160. O desenho da tabela é uma leitura.

Santos explica que a cadeia de aviamento era ela mesma a geradora


de renda dos mandatários da Amazônia e não a borracha em si, porque
eles se ancoravam na exploração dos trabalhadores seringueiros. Ele diz
que essa renda
[...] resultava de extorquir do seringueiro, até o ponto de
126 intolerância fisiológica, o máximo de rendimento com o
• mínimo de pagamento. O excedente era compartilhado
pela rede de ‘aviadores’, transportadores, pelo governo, etc.
inclusive pelos industriais. 240

A borracha era apenas o produto dessa exploração, que se organiza-


va de uma forma altamente hierarquizada e interdependente. Monetaria-
mente o ciclo da borracha entrou em falência a partir da década de 1910,
não conseguindo superar a produtividade asiática. Muitos dos agentes
mandatários dessa rede entraram em falência, mas a maioria deles con-
seguiu se sustentar, porque a própria cadeia de aviamento não dependia
em si do mercado internacional, mas, em grande parte, da exploração do
trabalho seringueiro.
Após Roberto Santos ter lançado seu estudo, Pedro Martinello de-
fendeu, junto a Universidade de São Paulo – USP, sua tese de doutorado
em História Econômica, intitulada: “A batalha da borracha na segunda
guerra mundial e suas consequências para o vale amazônico”, elaboran-

240 Santos, História Econômica da Amazônia, 1980, p. 162.

Sumário
Daniel da Silva Klein

do uma discussão na qual se percebe uma avaliação sobre a cadeia de


aviamento. A sua ideia era de que essa rede se caracterizava pelo trabalho
compulsório dos seringueiros. 241
Seu texto dialogava, portanto, com as posições de Roberto Santos.
Entre ambos havia uma diferença tênue, mas, crucial, porque Santos per-
cebia que a cadeia de aviamento era um movimento econômico oriun-
do das relações sociais internas da Amazônia e que se inseriu dentro de
um contexto maior de exploração da borracha no mercado internacional.
Martinello entende, por sua vez, que a instalação das empresas gumíferas
no vale amazônico se deve ao fato de que na segunda metade do século
XIX os países centrais do globo consolidaram suas economias monopo-
listas, com seus grandes trustes e que demandavam matérias-primas de
países periféricos, no caso a borracha do Brasil. Nas suas palavras esses
países periféricos eram
Importantes escoadouros para sua produção industrial,
estas novas economias dependentes desempenhavam papel
127 decisivo na produção de capitais nas metrópoles, pois o
• expediente usado pelo capitalismo era o de investir capitais
na indústria extrativa e bloquear o surgimento de qualquer
indústria interna. Destarte, estavam garantidos, por um
lado, o mercado para os seus produtos manufaturados e,
de outra parte, o fornecimento das matérias-primas de que
tanto careciam. 242

Para Pedro Martinello a cadeia de aviamento e o ciclo da borracha


eram uma parte desse complexo mundial de exploração, que era operado
pelos países centrais do mundo em favor de seus trustes empresariais.
Nesse sentido a cadeia de aviamento era um braço de fornecimento local
de matérias-primas para as industriais automobilísticas, pneumáticas e de
plásticos em geral.
Mas apesar dessa oposição, os dois reconheciam, por exemplo, que
o capital financista de toda a cadeia de aviamento era fornecido por gran-
des empresas da Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, França e outros

241 Martinello, A batalha da borracha, 1985, p. 251.


242 Martinello, A batalha da borracha, 1985, p. 25.

Sumário
Daniel da Silva Klein

grandes países. Martinello cita como exemplo as companhias de navega-


ção do Amazonas, que eram controladas por duas grandes empresas in-
glesas, a The Amazon Steam Navigation Company e a The Amazon River Stean
Navigation. Ambas eram responsáveis de levar a borracha dos portos bra-
sileiros para o mercado internacional. 243
Martinello explica que as casas exportadoras, cujo capital era es-
trangeiro, compravam borracha dos atravessadores e pagavam suas contas
com letras de crédito, que só eram quitadas após noventa dias, período em
que os produtos já tinham sido vendidos. Essas operações até causaram
certas resistências por parte dos atravessadores, que passaram eles mes-
mos a embarcar borracha por alguns períodos para o exterior. Essas ope-
rações, porém, eram deficitárias porque as casas exportadoras faziam com
que o preço da borracha no mercado internacional entrasse em queda. 244
Isso se deve ao fato de que a cadeia de aviamento, até o período
áureo do ciclo da borracha, era extremamente hierarquizada, sendo con-
trolada de perto pelas casas exportadoras. Para Martinello, a cadeia de
128 aviamento se organizava da mesma forma que Santos havia traçado expli-
• cando com mais ênfase o seu foco, no caso, a exploração do trabalho com-
pulsório dos seringueiros. Segundo ele, como a cadeia era extremamente
vinculada ao controle do capital externo, a renda para seus agentes con-
troladores regionais era gerada através do controle dos produtos aviados,
que tinham um filtro peculiar.
Como o dinheiro circulava somente entre os atravessadores de pri-
meira linha e as casas exportadoras, os demais agentes tinham que conse-
guir renda remetendo produtos aviados para as camadas inferiores. Esses
produtos sofriam uma série de especulações ao longo da cadeia:
O elevado custo nos fretes de cabotagem e os preços e
lucros altíssimos exigidos pelos comerciantes sulistas
encareciam sobremaneira as mercadorias entradas na
Amazônia. O comerciante, por seu turno, calculava seus
preços com uma margem de juros e lucros excessivos; o
mesmo faziam os aviadores com os seringalistas que, por

243 Martinello, A batalha da borracha, 1985, p. 31.


244 Martinello, A batalha da borracha, 1985, p. 31.

Sumário
Daniel da Silva Klein

sua vez, carregavam sem comiseração, nos preços, sobre


o seringueiro – extrator – o derradeiro destinatário desta
cadeia de exploração e iniquidades destes intermediários
sem escrúpulos. 245

De uma maneira geral, Martinello nos diz que os empresários atra-


vessadores de Manaus e Belém eram explorados pelas casas exportadoras
de capital monopolista. As casas aviadoras tinham que conseguir renda, o
que faziam explorando os seringalistas que, por sua vez, arrochavam os
seringueiros, base dessa cadeia.
Esse texto de Martinello, porém, aprofunda o termo ciclo da bor-
racha ao dedicar especial atenção para aquilo que o seu autor defende ser
um surto produtivo, os acordos de Washington assinados entre os Estados
Unidos e o Brasil. Tais acordos garantiam a compra de toda a borracha
brasileira no período da Segunda Guerra e terminaram no ano de 1946.
Durante esse lapso, segundo ele, a produção gumífera brasileira cresceu, a
rede produtiva foi incrementada com a contratação dos soldados da bor-
129 racha e a cadeia de aviamento desse produto voltou a ter força no cenário
• nacional. 246
Tanto Roberto Santos quanto Pedro Martinello apresentam uma
análise macrossocial da cadeia de aviamento, demonstrando sua lógica e
a maneira como a hierarquia da exploração seguia pela rede comercial até
chegar em sua base, os seringueiros. A esses textos pioneiros, seguiu-se
uma verdadeira escola de história econômica da Amazônia, marcando
quase duas décadas de pesquisas sobre a região. 247
SOCIEDADE E CULTURA: OS MODOS DE VIDA
NA AMAZÔNIA

Na década de 1990, dentro de um debate sobre E. P. Thompson que


se espraiava pelas academias de história pelo Brasil, uma geração de histo-
riadores deu outro impulso às pesquisas sobre a Amazônia, trabalhando

245 Martinello, A batalha da borracha, 1985, p. 35.


246 Martinello, A batalha da borracha, 1985, pp. 32-34.
247 Lembrando que o último desta lista, Warren Dean, enquadra-se mais como um estudo de
história ambiental. In: Dean, A luta pela borracha no Brasil, 1989; Lima, Capitalismo e extrativismo,
1994; Weinstein, The Amazon rubber bom, 1983.

Sumário
Daniel da Silva Klein

temas em torno da constituição dos modos de vida das populações dessa


região. Esse movimento perdura, basicamente, até a década de 2000, tendo
em vista que ano após ano o termo experiência social é usado em disser-
tações e teses, que focam essa parte do Brasil.
Nesse movimento surge o estudo do professor Carlos Alberto Al-
ves de Souza248, que trata os seringueiros da região de Brasiléia no Acre
como um grupo que ao longo de sua trajetória criou uma cultura na qual
as relações sociais possibilitaram o surgimento de uma experiência signifi-
cativa de resistência, os empates. A partir da década de 1970 essas experi-
ências, segundo Souza, foram vividas por seringueiros “em seus trabalhos,
em suas festas, em suas fugas, em suas relações sociais de meeiros, em suas
famílias, em seus passeios, em sua medicina tradicional, em suas lutas pela
educação”. 249
Souza demonstra que, com a chegada dos empreendedores do cen-
tro-sul do país, vindos para o Acre com o intuito de investir seus capitais
na abertura de fazendas, é que os seringueiros passaram, de fato, a usar os
130 empates para frearem o avanço da pecuária. Essa maneira de resistir, que
• já fazia parte do modo de vida dos seringueiros, consistia no impedimento
das derrubadas, queimadas e expulsões de famílias inteiras de suas coloca-
ções, por parte de peões e capatazes, a mando dos fazendeiros. 250
O texto discute ainda a criação do Sindicato dos Trabalhadores Ru-
rais de Brasileira nesse tempo de lutas, a participação de mulheres e crian-
ças no processo de resistência, a reação dos pecuaristas e os assassinatos
que se seguiram. Souza traz a tona um debate que levanta temas e meto-
dologias de pesquisa diferentes daquelas que vinham sendo postas em prá-
tica pela historiografia amazônica, tanto que seu trabalho tem como fonte
básica as entrevistas com os próprios sujeitos envolvidos com as tramas
das historias que conta.
Outro autor que deu uma contribuição inestimável para os estudos
dos trabalhadores seringueiros foi Carlos Walter Porto Gonçalves. Geó-
grafo e docente da Universidade Federal Fluminense, Gonçalves lançou o

248 Souza, Varadouros da liberdade, 1996.


249 Souza, Varadouros da liberdade, 1996, pp. 5-6.
250 Souza, Varadouros da liberdade, 1996, pp. 5-6.

Sumário
Daniel da Silva Klein

grande volume “Geografando, nos varadouros do mundo”251 onde defen-


de a ideia de que, através de seus modos de vida, os seringueiros foram ca-
pazes de modificar a territorialidade seringalista, o seringal, e transformar
em territorialidade seringueira, as reservas extrativistas.
Gonçalves afirma que a territorialidade seringalista dominou o ciclo
da borracha, porque os donos dos seringais tratavam essas propriedades
como verdadeiros complexos fabris e submetiam os seringueiros a uma
condição de endividamento constante. Para ele havia inclusive uma lingua-
gem de identificação dos partícipes dos seringais que era muito próxima
das usadas em uma fábrica: os seringalistas eram chamados de patrões, os
seringueiros de fregueses e a extração do látex para produção de borracha
era o fabrico. Ainda
a territorialidade seringalista se aproxima de uma
manufatura típica dos primórdios da revolução industrial.
Afinal, trata-se de manter sob coordenação o trabalho de
múltiplos trabalhadores com uma finalidade explícita de
produzir um valor de uso que não tinha nenhum uso para
131
• os envolvidos diretamente na sua extração. 252

A borracha produzida pelo seringueiro não gerava recursos que fos-


sem suficientes para sua manutenção satisfatória. Os trabalhadores fica-
vam somente com aquilo que garantia sua sobrevida mínima e a renda de
toda a cadeia de aviamento, em última instância, era fruto da exploração
desse grupo social.
A transformação desse complexo de exploração, o seringal, nas re-
servas extrativistas deu-se, a partir daquilo que diz o autor, dentro de um
processo de lutas, onde os empates foram se aperfeiçoando, a resistência
contra as derrubadas foram melhoradas e a politização dos seringueiros se
ampliou ao longo da década de 1980. 253
Até mesmo as pesquisas sobre o ciclo da borracha se voltaram para
temas que envolvem os modos de vida. Essa guinada pode ser vista nos
estudos de Franciane Gama Lacerda acerca dos confrontos vivenciados

251 Gonçalves, Geografando nos varadouros do mundo, 2003.


252 Gonçalves, Geografando nos varadouros do mundo, 2003, p. 106.
253 Gonçalves, Geografando nos varadouros do mundo, 2003, pp. 450-455.

Sumário
Daniel da Silva Klein

pelos nordestinos que se mudaram para o Pará no final do século XIX e


início do XX.
Lacerda procura dar voz aos mais diversos sentimentos dos serin-
gueiros nesse período, dando atenção aos seus medos e representações
sobre a floresta. Nesse sentido, tenta expor, também, como esse grupo
heterogêneo lidou com as políticas paternalistas de auxílio social e com os
projetos de assentamento em seringais. 254
Sem ter acesso a qualquer entrevista com os indivíduos que pesqui-
sa, a autora busca a fala dos seringueiros em alguns processos judiciais,
notícias de jornal, documentos e órgãos públicos e queixas policiais. Essas
fontes oferecem, em sua visão, um acesso privilegiado às falas dos migran-
tes nordestinos no Pará:
Esse corpus documental permitiu perceber a complexidade
dessas muitas relações sociais na medida em que, para
além da figura de pobres vitimas da seca, como não raro
o migrante cearense é representado, vemos mulheres e
crianças dando rumo próprio a suas vidas, mesmo que isso
132
• nem sempre correspondesse aos seus anseios de uma vida
melhor. 255

Nessa frase podemos perceber como os documentos judiciais (no


caso aí um corpus que vai além desse tipo de documentação) foram lidos
para se compreender os modos de vida dos trabalhadores da Amazônia
no ciclo da borracha, principalmente os nordestinos vindos para a região
fugindo da seca no nordeste.
Essa revisão poderia ser ampliada, tendo em vista que têm surgido
inclusive programas de pós-graduação em história nas universidades pú-
blicas da Amazônia que apontam para outros caminhos e interpretações
possíveis. O que se percebe é a nítida ampliação de temas vislumbrados
pela historiografia amazônica com os estudos sobre os modos de vida das
populações tradicionais da região.

254 Lacerda, Migrantes cearenses no Pará, 2006.


255 Lacerda, Migrantes cearenses no Pará, 2006, p. 06.

Sumário
Daniel da Silva Klein

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de não formarem uma corrente historiográfica, esses escritos


questionaram, dentro de suas respectivas posições responsáveis, o grande
tema envolvendo o ciclo da borracha. Desde aqueles que procuravam os
heróis da cadeia de aviamento até as análises sobre os modos de vida dos
seringueiros, todos dedicaram seus esforços a compreender essa realidade
de fundo econômico.
É certo que a força de uma história econômica da borracha se as-
sentou na década de 1980, mas sua herança perdurou até mesmo com as
pesquisas sobre os modos de vida. Esses trabalhos não abandonaram o
ciclo da borracha, pois trouxeram a tona seu cotidiano e o que aconteceu
após seus tempos áureos. O sujeito coletivo privilegiado passou a ser o
seringueiro.
Nesse sentido a operação de abertura gradual da historiografia ama-
zônica ainda está acontecendo. Os silêncios dos autores aqui discutidos,
enfim, os limites das suas escolhas somente ampliam esse processo e nem
133 mesmo o ciclo da borracha é um tema esgotado.

REFERÊNCIAS

DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história eco-


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Sumário
Daniel da Silva Klein

KLEIN, Daniel da Silva. Historiografia amazônica em perspectiva: aspectos


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PACHECO, Alexandre. As perspectivas meta-históricas de Arthur Reis em
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WEINSTEIN, Bárbara. The Amazon rubber boom. 1850-1920. Stanford:
Stanford University Press, 1983.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

O FAZER-SE DO MOVIMENTO DE
MULHERESCAMPONESAS DO ACRE:
30 ANOS DE ORGANIZAÇÃO E
LUTAS

Teresa Almeida Cruz

As mulheres, como outros grupos sociais, ao longo da história fo-


ram silenciadas, marginalizadas, excluídas, como analisa Michelle Perrot.
256
Todavia, elas estavam presentes em todos os momentos históricos. No
caso do Estado do Acre não é diferente. Elas estão presentes de diferen-
tes formas desde o início da formação da sociedade acreana, nas aldeias
indígenas, na constituição dos seringais, mas foram esquecidas pela his-
135
• toriografia tradicional ou quando são lembradas são vistas como objeto
de disputa, compra ou prêmios, como analisa Wolff. 257 Portanto, é uma
questão de olhar.
O nosso olhar de militante deste movimento há 25 anos, é inspirado
em E. P. Thompson, que compreende a formação da classe operária ingle-
sa na sua constituição histórica, pois “ela estava presente ao seu próprio
fazer-se”. 258, leva-nos a discutir a trajetória de organização das Mulheres
Camponesas do Acre a partir de seus modos de vida, inicialmente iden-
tificados como de mulheres trabalhadoras rurais que foram constituindo
a resistência com a colaboração da Comissão Pastoral da Terra, da Rede
Acreana de Mulheres e Homens e do Grupo de Pesquisa e Extensão em
Sistemas Agroflorestais do Acre (Pesacre), foram se articulando e se or-
ganizando de forma a dar visibilidade ao movimento das mulheres traba-
lhadoras rurais que lutam pela cidadania e construção de novas relações

256 Perrot, Os excluídos da história, 1988, p. 332.


257 Wolff, Mulheres da floresta, 1999.
258 Thompson, A formação da classe operária inglesa, 1987, p. 09.

Sumário
sociais de gênero e destes com a natureza. Assim forjaram uma identidade
coletiva criada pelo próprio movimento, tornando-se novas personagens
na cena histórica acreana, constituindo-se nestas lutas por direitos a partir
da experiência cotidiana.
Mais uma vez nos inspiramos em Thompson, pois destacamos nes-
te texto a experiência humana, considerada por ele, como o “termo ausen-
te” na obra de Marx. Na crítica que ele faz ao estruturalismo de Althusser,
outro historiador inglês, afirma que:
O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que
falta: “experiência humana”. É esse exatamente o termo que
Althusser e seus seguidores desejam expulsar, sob injúrias,
do clube do pensamento, como o nome de “empirismo”.
Os homens e mulheres também retornam como sujeitos,
dentro deste termo – não como sujeitos autônomos,
“indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam
suas situações e relações produtivas determinadas como
necessidades e interesses e como antagonismos, e em
seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua
cultura (as duas outras expressões excluídas pela prática
teórica) das mais complexas maneiras (sim “relativamente
autônomas”) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre,
através das estruturas de classe resultantes) agem por sua
vez, sobre sua situação determinada. 259

Procuramos analisar a constituição da resistência e identidade co-


letiva das mulheres trabalhadoras rurais dos vales do Acre e Médio Pu-
rus (Boca do Acre e Pauini/AM) a partir de suas experiências cotidianas,
considerando as “temporalidades diferenciadas” dos modos de vidas de
colonas, seringueiras e ribeirinhas, na perspectiva de Walter Benjamin -
pois, como ele afirma, “a história é objeto de uma construção cujo lugar
não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras”
260
- incorporando as mais variadas matizes de experiências sociais dessas
mulheres, vividas intensamente, constituindo valores, práticas e tradições
que formam a sua consciência não só participando de Sindicatos e Parti-
259 Thompson, A miséria da teoria, 1981, p. 182.
260 Benjamin, Magia e técnica, arte e política, 1994, p. 229.
Teresa Almeida Cruz

dos Políticos, mas em todas as dimensões do cotidiano, pois como aborda


E. P. Thompson, sua consciência de classe,
[...] é a forma como essas experiências são tratadas em
termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de
valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência
aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a
sua consciência de classe (...) o partido, a seita ou o teórico
que desvenda a consciência de classe, não como ela é, mas
como deveria ser. 261

Isto nos impede de estudar as experiências vivenciadas pelas mulhe-


res, pelos sujeitos sociais, impondo esquemas estruturalistas inadequados
a um estudo de culturas sem um “diálogo constante entre teoria e evidên-
cia”.
Este fazer-se do Movimento de Mulheres Camponesas Acre, que
passa a identificar-se com este nome só em 2004, iniciou-se de forma mais
organizada a partir de 1988, como Grupos Autônomos de Mulheres Tra-
137 balhadoras Rurais com a colaboração do Setor Mulher da Comissão Pas-
• toral da Terra (CPT) e da Rede Acreana de Mulheres e Homens também
criados neste mesmo ano.
Estes grupos desenvolviam atividades produtivas (hortas comuni-
tárias, remédios caseiros, corte e costura, produção de doces, de sabão,
de artesanato, etc) e formativas (direitos das mulheres, saúde, formação
política, gênero, etc.).
Por outro lado, o Setor Mulher da CPT e a Rede Acreana de Mulhe-
res e Homens promoviam o intercâmbio de experiências entre os grupos
de diferentes regiões do Acre e do Sul do Amazonas. Neste sentido, as
mulheres dos grupos da BR 317 (sentido Rio Branco – Boca do Acre),
onde começou a formação dos grupos assessorados pela CPT, estiveram
em outros municípios do Acre (Brasiléia, Epitaciolândia, Plácido de Cas-
tro, Senador Guiomard) e do sul do Amazonas (Boca do Acre e Pauini),
relatando a sua experiência de organização e incentivando a formação de
novos grupos, inclusive de mulheres ribeirinhas.
Outra forma de articular as experiências de organizações das mulhe-
261 Thompson, A formação da classe operária inglesa, 1987, p. 10.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

res trabalhadoras rurais realizadas pela CPT e a Rede Acreana de Mulheres


e Homens (que acompanhava mais as mulheres sindicalizadas, incentivan-
do a criação de Secretarias de Mulheres nos Sindicatos de Trabalhadoras
Rurais - STRs) foi a realização de Encontro Estaduais de Mulheres Traba-
lhadoras Rurais, inspirado na experiência do Movimento de Mulheres Tra-
balhadoras Rurais (MMTR) do Nordeste brasileiro. O primeiro aconteceu
em1989 com a participação de 46 mulheres de municípios do Acre e do
Sul do Amazonas, contando com a participação e assessoria de trabalha-
doras rurais do sertão central da Paraíba e da Federação de Trabalhadores
da Agricultura do Pernambuco (FETAPE).
Por outro lado, ao longo da década de 1990 as mulheres trabalha-
doras rurais do Acre participaram de encontros nacionais de mulheres
trabalhadoras rurais e a participar da Articulação Nacional de Mulheres
Trabalhadoras Rurais (ANMTR), criada em 1995. Inicialmente foi a Maria
Alvenásio Ferreira (Meire) da Associação de Grupos de Mulheres Tra-
balhadoras (AGMTR) da BR 317 quem representou o Acre na ANM-
138 TR. Esta participação favoreceu a articulação das lutas estaduais com as
• nacionais e ampliou consideravelmente a visão de mundo das mulheres
que participaram desta Articulação como revela a experiência de Sandra
Arruda Tavares:
Olha, eu participo da coordenação da Articulação Nacional
das Mulheres. A gente se reuni três vezes por ano em
Brasília, onde a gente vai tá lá discutindo as demandas
do Estado, da comunidade, dos Estados e decidir, tomar
decisões do que a gente vai fazer pra melhorar e ter aquela
troca de ideias. E também vou estar fazendo um curso
em Belém de saúde preventiva da mulher. Era pra gente
ficar cinco dias. Também participamos de oficinas DST.
Também é um projeto nacional do Ministério da Saúde.
Participei agora pouco de um Encontro Latino-Americano
não só de mulheres mais de organização do campo. Era
curso para agente multiplicador e curso de formação pra
formadores da América Latina. Foi em São Paulo. E vários
outros. Participo também da Consulta Popular. A gente
se reuni mais em São Paulo, na Assembleia Nacional da

Sumário
Teresa Almeida Cruz

Consulta, dias 14 e 15 desse mês. Também teve a grande


mobilização das mulheres rurais, mulheres trabalhadoras
rurais que foi em março, 13 ao dia 17 de março de 2000.
A gente acampou em Brasília e conseguimos reunir 3.250
mulheres para reivindicar nossos direitos. Foi também um
momento de estudo, de informação...262

Este relato de Sandra mostra um pouco das atividades de formação


e das lutas das trabalhadoras rurais não só em níveis estadual e nacional,
mas também latino americano, fortalecendo as lutas em todos os níveis e
ampliando as redes de sociabilidade e de poder destas mulheres que vão
se constituindo nestas lutas por direitos, por melhores condições de vida e
por novas relações entre os seres humanos.
Também a narrativa de Sandra aborda o acampamento nacional de
mulheres trabalhadoras rurais, do qual participaram várias companheiras
do Acre, lutando pela garantia dos direitos previdenciários. Aliás, ao longo
da década de 1990 as trabalhadoras rurais do Acre participaram de todas
139
as lutas nacionais: caravanas, acampamentos, entre outras, na luta pelos
• direitos previdenciários e por vida digna no campo.
Por outro lado, no Estado, crescia o número de grupo de mulhe-
res autônomos e também a organização das mulheres sindicalizadas em
secretarias dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Em 1996 é criada a
Comissão Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais (CEMTRAC), com
os objetivos de coordenar o programa de gênero da FETACRE; estimular
a criação das Comissões de Mulheres nos STRs; garantir a participação
das mulheres nos eventos promovidos pela FETACRE; elaborar políticas
e estratégias para a superação de todas as formas de discriminação e situ-
ação de desigualdades dos trabalhadores rurais; capacitar as mulheres para
ampliar a sua participação e intervenção no movimento sindical. Nos seus
trabalhos, a CEMTRAC também se empenha na Campanha de Documen-
tação das Mulheres Trabalhadoras Rurais.
Por outro lado, as mulheres indígenas percebendo que só os ho-
mens participavam no movimento indígena resolveram organizar o Gru-
po de Mulheres Indígenas da União das Nações Indígenas (UNI), em
262 Tavares, entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz. Rio Branco, julho de 2000.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

1997. Realizaram Encontros de Mulheres Indígenas em alguns municí-


pios. Também, em parceria com o Estado, desenvolveram um trabalho
de revitalização das culturas indígenas com vários povos, sobretudo, re-
tomando a prática tradicional do artesanato e buscando mercado para os
produtos artesanais, aumentando a renda das comunidades e melhorando
a qualidade de vida das mesmas. Também incentivavam a participação das
mulheres no movimento indígena.
Toda esta riqueza dos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais
e indígenas estava desarticulada. Neste sentido, em 1997 foi realizado o V
Encontro Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Acre e Sul do
Amazonas, promovido pela AGMTR, CEMTRAC, CPT, Rede Acreana de
Mulheres e Homens e PESACRE, objetivando refletir sobre a participa-
ção política das trabalhadoras; trocar experiências e articular as organiza-
ções e lutas das trabalhadoras do Acre e sul do Amazonas (Pauini e Boca
do Acre); definir propostas de lutas e estabelecer uma rede de articulação
entre as entidades que desenvolvem trabalhos com mulheres no Estado e
140 a nível nacional. O lema do encontro foi: “Participando sem medo de ser
• mulher”.
Assim este encontro, em sintonia com a ANMTR, gerou a Articu-
lação Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais (AEMTR), constituída
por representantes da AGMTR - BR 317, CEMTRAC, Parteiras Tradi-
cionais de Xapuri, Grupos de Mulheres de Brasiléia, mulheres do Projeto
RECA e ASPRUVE, Grupo de Mulheres Indígenas da UNI, Associação
de Mulheres Hei de Vencer (AMHV) - BR 364, Associação de Mulheres
Nova Esperança (AMNE) - Boca do Acre e Grupos de Mulheres Ribei-
rinhas de Pauini, Amazonas. Na ocasião, foram estabelecidas quatro ban-
deiras de lutas: campanha de documentação, campanha de divulgação e
exigência dos direitos previdenciários, campanha de sindicalização e for-
mação/ capacitação. Este encontro contou com a participação de quase
70 mulheres trabalhadoras da floresta e com a assessoria de Gessi Terezi-
nha Bonês da ANMTR.263
No Estado do Acre, a principal atuação da AEMTR foram as cam-
263 Este parágrafo foi escrito baseado em informações contidas no relatório do 5º Encontro
Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais. Rio Branco, 06 a 08 de junho de 1997.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

panhas de documentação e divulgação dos direitos previdenciários, tendo


como marca o lançamento da campanha de documentação da mulher tra-
balhadora rural, em sintonia com a programação da ANMTR, realizada
no dia 12 de agosto de 1997 - Dia Nacional de Luta Contra a Violência
no Campo e pela Reforma Agrária (em memória de Margarida Alves) - na
Caminhada pela Cidadania, com a participação de umas 200 mulheres na
capital do Acre. Este evento chamou a atenção dos moradores de Rio
Branco, tendo cobertura da imprensa local264. A Maria Alvenásio Ferreira
(Meire), primeira coordenadora da AEMTR, comenta esse dia tão signi-
ficativo:
Aquele lançamento foi uma coisa muito importante pra
mim, porque eu lembro que, naqueles dia, a gente até
mesmo se distacou no caminhão, viemo bater aqui. Todo
mundo se empenhou, veio muitas mulheres também de
todos os lugares aí. Se encontremo aqui, daqui da periferia.
E Fizemo uma revolução que encheu a rua de gente e
saimo caminhando até ali o centro, né? E eu fiquei muito
141 satisfeita com aquilo, porque foi um início, né, um bom

início de assim de preocupação, de mostrar ao povo da
mídia que nós tamo se preocupando com as documentação
de muitos, né? Como até mesmo ver que o Projeto Cidadão
começou a fazer um trabalho lá, mas creio que ainda falta
muitos lugares a ser, a desejar a fazer, principalmente das
zonas rurais que tem dificuldade muito de chegar até aqui.
Tem muitos seringais aí que tem a família quase inteira
que não tem documento nenhum. Todo mundo sabe que
o documento é um registro que mais na frente garante
os nossos direitos, vamo dizer: uma aposentadoria, um
benefício. Sem os documentos nós tamo quase sem direito
a nada, hoje em dia. E isso aí pra mim foi muito satisfatório
em termo daquele trabalho que nós tava fazendo265.

Esta campanha da documentação foi desenvolvida em parceria com


o Projeto Cidadão do Tribunal de Justiça do Estado do Acre que foi ao
interior tirar documentos de mulheres e homens nas colônias, seringais e
264 Cruz, Mulheres trabalhadoras rurais em movimento, 2010.
265 Ferreira, entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz. Rio Branco, 02 de outubro de 2001.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

margens de rios. Ao mesmo tempo, as lideranças do movimento iam in-


formando as mulheres a respeito dos seus direitos de aposentadoria aos 55
anos e do salário maternidade. Desta forma, ampliou-se consideravelmen-
te a quantidade de mulheres que acessaram estes benefícios, melhorando
as suas condições de vida. Para algumas mulheres, isto significou ter o seu
próprio dinheiro na mão pela primeira vez, podendo decidir o que fazer
com ele, promovendo a sua autonomia, o que favorece o enfrentamento
contra a violência contra a mulher.
A Articulação Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais também
promoveu o I Encontro Interestadual de Mulheres Trabalhadoras da Flo-
resta (Acre e Rondônia), de 03 a 05 de setembro/1998, em Rio Branco,
que avaliou o desenvolvimento da Campanha de Documentação nos dois
Estados, aprofundou o tema saúde da mulher, redefiniu o funcionamento
da AEMTR bem como preparou a participação das mulheres ao I Encon-
tro Internacional de Mulheres da Floresta.266
Este I Encontro Internacional de Mulheres da Floresta que acon-
142 teceu em dezembro de 1998, foi organizado pelo Movimento Articulado
• de Mulheres da Floresta (MAMA), que nasceu de uma iniciativa da Rede
Acreana de Mulheres e Homens que articulou o apoio e a integração do
PESACRE, CPT, Comissão Pró-índio (CPI), Centro de Trabalhadores da
Amazônia (CTA), Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação
Popular (CDDHEP), FETACRE, Conselho Nacional dos Seringueiros
(CNS), UNI, Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Projeto Aquiry,
visando abrir um espaço de discussão para as mulheres da floresta amazô-
nica, que ao longo da história acreana têm sido silenciadas, marginalizadas.
Este I Encontro Internacional de Mulheres da Floresta Amazônica,
que teve como tema “mulher, meio ambiente e desenvolvimento”, obje-
tivou dar visibilidade às lutas dessas mulheres que vivem embrenhadas na
floresta e construir dados sobre a sua situação para exigir políticas públicas
voltadas para os seus interesses.
O encontro contou com a participação de 180 mulheres da floresta
dos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará,
266 AEMTR. Relatório do I Encontro Interestadual de Mulheres Trabalhadoras da Floresta. Rio
Branco/AC, 3 a 5 de setembro de 1998.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

Rondônia, Roraima e Tocantins. Foi o primeiro a reunir a diversidade da


mulher amazônida. E ainda foi prestigiado com a presença de representan-
tes do Equador, além de parcerias de organizações feministas nacionais,
movimentos de mulheres trabalhadoras, organizações sindicais, agências
de cooperação nacionais e internacionais e entidades de assessoria.
No início do século XXI, os Grupos específicos de Mulheres senti-
ram que a ANMTR, que era composta por mulheres do Movimento Sem
Terra (MST), das organizações sindicais, dos grupos autônomos, do Mo-
vimento de Atingidos por Barragens (MAB) e da CPT,não conseguia aten-
der as suas necessidades. Então, após dois anos de intensos debates para
ter mais autonomia, em março de 2004, em Brasília, em um congresso na-
cional, criaram o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil (MMC).
As mulheres camponesas são: agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeiri-
nhas, posseiras, boias-frias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras
de coco, pescadoras artesanais, sem-terra, assentadas... “Mulheres índias,
negras, descendentes de europeus. Somos a soma da diversidade do nosso
143 país. Pertencemos à classe trabalhadora, lutamos pela causa feminista e
• pela transformação da sociedade”.
Neste contexto, o MMC nasce com uma identidade bem definida
que foi constituída nas lutas históricas destas mulheres: movimento autô-
nomo, feminista, socialista, lutando pela libertação das mulheres na pers-
pectiva de construção de uma nova sociedade baseada em novas relações
dos seres humanos e destes com a natureza. Portanto, a ação política do
MMC entra em confronto com a sociedade capitalista, machista e racista.
As mulheres trabalhadoras rurais do Acre, sobretudo as que parti-
cipavam dos grupos autônomos, participaram deste congresso nacional
que gestou o MMC. E estes grupos passaram a assumir a nova identidade
de Movimento de Mulheres Camponesas para fortalecer as lutas de forma
mais autônoma. Neste sentido, foram reforçados os grupos de base dos
municípios de Rio Branco, Acrelândia, Senador Guiomar, Bujari e Plácido
de Castro. Neste novo momento, lamentavelmente, os grupos de mulhe-
res do Sul do Amazonas já não estavam mais participando desta articula-
ção com as mulheres do Acre.
Dentre as bandeiras de luta do MMC destacam-se o projeto de agri-

Sumário
Teresa Almeida Cruz

cultura camponesa agroecológica e a produção de alimentos saudáveis.


Em 2007 foi lançada a campanha da produção de alimentos saudáveis a
nível nacional e o Estado realizou esta campanha em vários municípios,
tendo apoio da população da cidade que precisa adquirir e consumir pro-
dutos sem venenos.
Esta proposta da agroecologia e junto com ela a defesa das semen-
tes crioulas, como patrimônio da humanidade (uma luta da Via Campe-
sina, do qual o MMC faz parte) entra em confronto com o modelo do
agronegócio, das sementes transgênicas. Mesmo encontrando resistências,
às vezes até na própria família, as camponesas do Acre vão tecendo esta
prática agroecológica que é um “resgate” das práticas indígenas e campo-
nesas tradicionais que leva em consideração o meio ambiente e a saúde das
pessoas que trabalham no campo. A coordenadora do MMC do Bujari fala
um pouco desta sua experiência no MMC:
Para mim o MMC é tudo. É de fundamental importância
neste movimento. Aprendi a valorizar mais a mãe terra,
144 nossa água, nossa semente crioula e especialmente a vida
• está inserida em todas estas necessidades: terra, água,
semente. Sem elas não existe futuro, não existe planeta
terra. O MMC nestes 25 anos vem lutando por esses e
outros direitos das mulheres do campo. E como já diz o
nosso lema: “Fortalecer a luta em defesa da vida. Quando?
Todos os dias267.

Esta luta do MMC em defesa da vida é a sua marca maior ao longo


de sua história no Acree no Brasil. Em 2013 o MMC realizou o I Encon-
tro de Mulheres Camponesas do Acre para celebrar os seus 25 anos de
história com a presença de cerca de 150 mulheres, contando com a par-
ticipação de representantes do Governo do Estado.O Jornal da TV Acre
destacou a participação e fala da secretaria de Mulheres do Estado, Conci-
ta Maia:  “Estamos juntas para reafirmar a importância que essa categoria
tem para a sociedade. Para outras mulheres e toda a população urbana. São
elas que nos nutrem. São elas que cuidam da produção ambientalmente

267 Branco, entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz. Rio Branco, 2014.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

correta. Com toda a preocupação na qualidade dos alimentos que consu-


mimos”268.
Em 2013 também as camponesas do Acre participaram do I En-
contro Nacional de Mulheres Camponesas em Brasília. Este evento reno-
vou as energias das companheiras do Estado que voltaram mais animadas
para fortalecer o trabalho de base e luta pela defesa da vida. O lema do
encontro foi: “Na sociedade que a gente quer basta de violência contra a
mulher”.
Atualmente, no Acre, em sintonia com a caminhada nacional, está
se desenvolvendo um forte trabalho de desenvolvimento de uma agricul-
tura camponesa e agroecológica, em parceria com a Universidade Federal
do Acre (Ufac), fortalecendo a produção de alimentos saudáveis. Neste
sentido, uma das lideranças do MMC Acre, Terezinha de Jesus Araújo, 66
anos, destaca:
Porque a mulher camponesa ela já é uma guardiã da
floresta. O que que a gente faz? Nós cuidamos muito bem
145 dos nossos mananciais de água, a nossa plantação de horta.
• Quando a gente trabalha com a horta, não só com a horta,
mas com as frutas assim no caso da horticultura, a gente
luta com essas coisas sem ter agrotóxico, é um alimento
saudável que a gente tem. Porque é assim, para não agredir a
natureza você tem que fazer tudo saudável, sem agrotóxico,
sem ter aqueles produtos químicos. Então, a gente cuida
assim das nossas plantações com muito cuidado. 269

Realmente, como analisa Terezinha, a mulher camponesa é uma


“guardiã da floresta”, pois ela cuida muito bem da floresta, dos mananciais
de água, da agricultura, da horta, do pomar, produzindo alimentos sem
veneno numa ótica de cuidado com a natureza e os seres humanos de
forma contrária à produção do agronegócio que utiliza veneno, que des-
trói o meio ambiente e a saúde das pessoas que consomem os alimentos
produzidos pela agroindústria.

268 Disponível em: http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2013/11/movimento-de-mulheres-


camponesas-comemora-25-anos-no-acre.html.. Acessado em: 02/11/2014.
269 Araújo, entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz. Rio Branco, 2017.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

Por outro lado, essa produção de alimentos saudáveis, sobretudo,


frutas, legumes e verduras tem sido comercializado em feiras nos municí-
pios de Bujari, Rio Branco e Plácido de Castro, melhorando consideravel-
mente a renda familiar e, sobretudo, promovendo a autonomia financeira
das mulheres camponesas, o que, também, favorece o enfrentamento à
violência contra a mulher.
Lamentavelmente, o Estado do Acre está entre os primeiros do país
no índice de violência contra a mulher, sobretudo, o estupro. Do ponto de
vista histórico, é umaherança do processo de ocupação do Acre no final
do século XIX, quando foram organizadas correrias270. As mulheres indí-
genas que foram capturadas eram estupradas e oferecidas como “troféus”
aos seringueiros que participavam destas expedições genocidas, “possuin-
do-as” como suas mulheres.
O MMC em parceria com a Secretaria de Política para Mulheres do
Estado tem sido incansável no enfrentamento e combate a todas as for-
mas de violência contra as mulheres, promovendo oficinas sobre os direi-
146 tos da mulher e a Lei Maria da Penha. Nos campos e nas florestas, é mais
• difícil ouvir o grito de socorro da mulher que sofre violência. Por isso, o
MMC tem abraçado com garra esta causa também promovendo também
a autonomia das mulheres através de sua participação em feiras de produ-
tos agroecológicos e formação de gênero/feminismo para construção de
outras relações entre mulheres e homens.
O MMC, desde 2004, tem assumido de forma mais explícita uma
postura feminista. Desde os primórdios da humanidade, as mulheres rea-
giram ao domínio masculino. Elas não foram passivas, mas se rebelaram
de diferentes maneiras, tecendo resistências invisíveis ao patriarcado. Nes-
se sentido, conforme analisa Ana de Miguel (1995), o feminismo sempre
existiu. No sentido mais amplo do termo, sempre que as mulheres, indivi-
dual ou coletivamente, questionam o seu injusto “destino” sob o patriar-
cado e reivindicam uma situação diferente, uma vida melhor. Há também
o feminismo de uma forma mais específica, que se constitui nos diferentes

270 Expedições organizadas por seringalistas que contavam com a presença de seringueiros que
atacavam as malocas indígenas, matando os homens e aprisionando mulheres e crianças, para tomar
contar dos territórios indígenas a fim de abrir as estradas de seringa para a produção da borracha.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

momentos históricos em que as mulheres chegaram a articular, tanto na


teoria como na prática, um conjunto coerente de reivindicações e se orga-
nizaram para consegui-las. Embora o sistema patriarcal ainda esteja vivo
no mundo contemporâneo, é importante ressaltar que sempre as mulheres
reagiram, se contrapuseram a este domínio de diferentes modos. 271
Portanto, é preciso pensar o feminismo no plural, pois existem di-
ferentes tipos de feminismos: feminismo pré-moderno, feminismo mo-
derno, feminismo contemporâneo, feminismo liberal, feminismo radical,
feminismo socialista, feminismo negro, feminismo de base, entre outros.
Cada um com uma postura teórica e política diferente, dependendo do
contexto histórico e dos interesses que defende.
O MMC desde sua criação na década de 1980, sempre teve práti-
cas feministas pautadas na libertação e direitos das mulheres camponesas.
Entretanto, nos últimos anos tem se preocupado em definir e teorizar o
seu feminismo que é compreendido como o feminismo camponês e po-
pular. Nesse sentido, desde 2015 tem realizado seminários internacionais
147 sobre feminismo camponês e popular com a participação de camponesas
• do Peru, da Bolívia, Chile e Paraguai na perspectiva de aprofundar o que
significa este feminismo que está em processo de construção prática e teó-
rica. Nesta perspectiva, Rosângela Piovizani Cordeiro, uma das principais
lideranças do MMC a nível nacional analisa:
Esse é um desafio que eu acho que a gente está num estágio
muito interessante hoje, porque a gente se coloca como
feminista, camponesa, popular e socialista. Mas grande
parte dessas palavras, que tem uma carga muito grande
por trás disso, de não só de conceito, mas de posição
política, de rumo e tudo. Falta elaborar isso melhor. [...]
Feminismo é claro que é a libertação das mulheres, mas
sendo camponês ela tem de fato uma relação muito grande
com a terra, com a agroecologia, com as sementes, e com
o modo de vida como um todo. Ser feminista não é ir para
a rua e somente está nas passeatas ou tirando roupas, não.
É está discutindo um projeto de vida a partir do campo, da
comunidade, a partir da sua família, na construção de novas

271 Miguel, Feminismo, 1995, p. 217.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

relações, no cuidado e na preservação das sementes. E isto


é um feminismo para nós do MMC, que temos que ter essa
coisa muito ligada a gente, à produção, à reprodução da
vida como um todo. Então, não é só um feminismo das
ruas, é também das ruas, mas ele tem que está baseado no
cotidiano da vida das mulheres, ele não pode se distanciar
disso de jeito nenhum, e construir isso a partir da base das
mulheres. Não adianta eu querer fazer a luta nas ruas se
eu não consigo fazer a luta dentro de casa, com a minha
vizinha que sofre violência. Tem que fazer em todos os
espaços. 272

O “fazer-se” do feminismo camponês e popular do Estado do Acre


parte da base, dos campos e das florestas, desenvolvendo uma agricultura
camponesa e agroecológica na produção de alimentos saudáveis e utiliza-
ção das ervas medicinais para a saúde; ele se faz nas lutas contra a reforma
da previdência e garantia dos direitos previdenciários já conquistados; no
enfrentamento à violência contra as mulheres e na construção de novas
148 relações sociais de gênero entre os seres humanos e destes com a natureza.
• Enfim, ao longo desses 30 anos de história as mulheres camponesas
do Acre gestaram suas organizações específicas na luta pelos direitos em
defesa da vida, culminando na criação do MMC em 2004, enfatizando as
práticas feministas discutidas acima. Elas se tornaram reconhecidas na so-
ciedade acreana como um sujeito social que luta por uma nova sociedade
baseada em novas relações entre mulheres e homens e destes com o meio
ambiente.
REFERÊNCIAS

CRUZ, Teresa Almeida. Mulheres trabalhadoras rurais em movimento:


Uma história de resistência. Vales do Acre e Médio Purus/ 1988-1998. Rio
Branco: Edufac, 2010. 186p.
______. Resistência e luta das mulheres da floresta – Vales do Acre e Mé-
dio Purus. Rio Branco: Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour,
2000.

272 Cordeiro, entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz. Luziânia, GO, 2015.

Sumário
Teresa Almeida Cruz

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Pau-


lo Rouanet, 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 229. (Obras Escolhidas, v. 1)
MIGUEL, Ana de. Feminismos. In: 10 palabras clave sobre mujer. Navarra:
EVD, 1995. p. 217.
PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisio-
neiros. Tradução: Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 332 p.
THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liber-
dade. V. I 3ª ed. Tradução de Denise Bottmann.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
204 p. (Oficinas da História)
______. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro:
Zahar, 1981.
______. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicio-
nal. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
WOLFF, Cristina Sheibe. Mulheres da floresta: uma história – Alto Juruá,
Acre (1890-1945). São Paulo: Hucitec, 1999. 291 p.

FONTES ORAIS

149
ARAÚJO, Terezinha de Jesus. Entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz. Rio
• Branco, 2017.
CORDEIRO, Rosangela Piovizani. Entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz.
Luziânia, GO, 2015.
BRANCO, Geovana Nascimento Castelo. Entrevista concedida a Teresa Almei-
da Cruz. Rio Branco, 2014.
FERREIRA, Maria Alvenásio. Entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz. Rio
Branco, 02 de outubro de 2001.
TAVARES, Sandra Arruda. Entrevista concedida a Teresa Almeida Cruz. Rio
Branco, julho de 2000.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

SERINGUEIROS, GLOBALIZAÇÃO
E A HISTÓRIA: NECESSIDADE DE
NOVOS PARADIGMAS?

José Sávio da Costa Maia


“Os filósofos não podem se isolar
contra a ciência. Ela não apenas
ampliou e transformou enormemen-
te nossa visão da vida e do univer-
so; também revolucionou as regras
segundo as quais opera o intelecto”.
(Claude Lévi-Strauss)

Escreve o poeta Maiakovski: “O mar da história é agitado, as amea-


150
• ças e as guerras havemos de enfrentá-las, rompê-las ao meio, cortando-as
como uma quilha corta as ondas”. Entendo esse fragmento como muito
apropriado para servir de estímulo a essa travessia, que ora me proponho,
qual seja, aventurar-me num diálogo no campo da História.
Diante de um tempo tão fértil em produzir teorias controversas,
contraditórias e ambíguas, que variam do debate sobre o fim da história,
ao advento de uma nova era de prosperidade; de uma decadência do oci-
dente, como professa Spengler 273, a uma época de ouro do capitalismo,
como induz a leitura de Fukuyama274; de um curto século, como teoriza
Hobsbawm275, ao longo século de Arrighi276, ambos se referindo ao sécu-
lo XX; do catastrofismo, da depressão econômica e social, das guerras,
dos genocídios, a uma promessa de prosperidade, desenvolvimento ou, da

273 Spengler, A decadência do Ocidente, 1982.


274 Fukuyama, O fim da história e o último homem, 1992.
275 Hobsbawm, A era dos extremos, 2002.
276 Arrighi, O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. São Paulo: UNESP/
Contraponto, 1996. 

Sumário
conclamação sobre “um outro mundo possível”, do Fórum Social Mun-
dial, situações enfim, produtoras de complexidades.
São muitas as tonalidades com que se tenta ilustrar o mundo con-
temporâneo e, embora todas utilizem a mesma matéria-prima, ou seja, as
relações socioeconômicas, socioculturais e políticas que se desenvolvem
nas mais variadas partes do planeta, os resultados são multiplicidades e
ambivalências.
Visões que apresentam os piores receios, ou as melhores esperanças
para a humanidade, permeiam o campo da História. Não é fácil encontrar
uma quilha forte o suficiente para romper esse mar tão revolto, mas não se
pode, todavia, deixar prevalecer o medo e a falta de vontade, ou mesmo, o
pessimismo de não tentar atravessá-lo. Adotar qualquer outra atitude seria
antidialético.
Diante de contexto tão convulsionado por estranhamentos e dile-
mas, não nos cabe discutir se a História, como ela foi exprimida até agora,
está certa ou errada. Devemos naturalmente entender que ela obedeceu
às condicionantes vivenciadas por seus atores, sujeitos, objetos, contin-
gências históricas temporais, espaciais, conjunturas econômicas, políticas,
enfim, de um universo plural tanto mental como econômico, político e
sociocultural.
O que levou teóricos como Hegel, Droysem, Nietzsche e Croce a
romper com o mito da objetividade, que predominava entre os discípulos
de Ranke, não pode ser desconsiderado em qualquer análise historiográ-
fica. As narrativas ou metanarrativas, em que pese, por exemplo, a crítica
aguda de Lévi-Strauss, de que são “esquemas fraudulentos”, que os fatos
históricos não são “dados”, mas antes, são “constituídos” pelo próprio
historiador; que ela não é ciência mesmo que tenha um “método”, mesmo
com tudo isso, ele conclui enfocando a importância dela para tal, “graças
a suas operações de inventariação”. 277
Sem querer alongar a permanência num campo repleto de diversida-
de como esse, temos que reconhecer a tarefa do historiador, pertença ele
a qualquer tipo de concepção, represente-a dentro do padrão quaternário;
do historicismo; seja relativista; seja construtor de memorização; busque a
277 Paz, Na poética da História, 1996, p. 148.
José Sávio da Costa Maia

razão; seja mítico, quaisquer dessas atitudes que venha a adotar, todas elas
contribuem enfim, para a formação de um corpus onde se pode abstrair
lições, outras formulações, articular enunciados, ou mesmo estabelecer a
vontade de verdade, entendendo a verdade como porosa, passível de ser
atravessada por outras verdades. Paz desenvolve assim esse contexto:
Na cultura clássica, o discurso verdadeiro é pronunciado
por quem tem o direito de pronunciá-lo e de acordo com
um dado ritual. Discurso profético, ele trama o destino
dos homens e remete a verdade ao discurso a quem o
pronuncia. Mais tarde, a verdade desloca-se para o que se
diz, distanciando-se do ato ritualizado e situando-se no
sentido, na forma ou no objeto do discurso. Mas é a partir
do Renascimento que vemos o desenvolvimento de uma
nova vontade de saber, marcada pela observação, medição
e classificação do objeto. Ao sujeito conhecedor impõe-se
uma posição, isto é, uma forma específica do olhar que
garanta a verificabilidade e a utilidade do conhecimento. 278

152 E completa:

A verdade científica difere da verdade clássica tanto pelos
objetos como, principalmente, pelas técnicas que utiliza.
A ciência econômica, por exemplo, apóia-se na razão; a
ciência penal, na sociologia, psicologia e psiquiatria. E a
ciência histórica, por sua vez, nesta exata contribuição de
múltiplas técnicas de saberes. Qual seja, em face de nova
vontade de verdade – profunda e incontrolável – todo
conhecimento contemporâneo faz-se ciência. 279

TENTANDO ENTENDER A POROSIDADE DOS


CONCEITOS E A TRANSCULTURALIDADE

O mundo contemporâneo está sendo abalado por transformações


de amplas proporções, intensas e profundas. Está sendo atravessado por
uma ruptura histórica de alcance universal, por suas implicações práticas e
teóricas. É como se fosse um terremoto inesperado e avassalador, provo-

278 Paz, Na poética da História, 1996, p. 154.


279 Paz, Na poética da História, 1996, p. 154.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

cando transformações mais ou menos radicais em modos de vida e traba-


lho, formas de sociabilidade e ideais, hábitos e expectativas, explicações e
ilusões. Octávio Ianni traduz assim esses eventos:
Fala-se em novo mapa do mundo, ‘mundo sem fronteiras,
desterritorialização, planeta terra, aldeia global, mundo
virtual, “dissolução da geografia, “Fim da história”. Tudo
o que parecia estável, transforma-se, recria-se ou dissolve-
se. Nada permanece. E o que permanece já não é a mesma
coisa. Modifica-se os significados das coisas, gentes e
ideias. Alteram-se as relações do presente e do passado; e o
futuro parece ainda mais incerto. Ao lado da exacerbação
do presente, real e virtual, tudo o mais parece esfumar-se,
como se fosse imaginação, fantasia ou alucinação.280

O importante é não perder de vista as mudanças e as reações de-


sencadeadas por elas, para não confundirmos desenvolvimento técno-
-científico, com cultura. O primeiro tem relação direta com a quantidade,
enquanto o segundo pressupõe qualidade. É muito diferente o mundo
153
• movido a vapor, do mundo movido pelo motor à explosão ou a turbina.
O mundo do carvão e da lenha, e o mundo do petróleo, do gás e dos
minerais raros. Só que mais importante ainda, e esse deve ser o papel do
historiador: não perder de vista que a construção desses novos momentos,
dessas novas tecnologias produtivas e reprodutivas, pois elas são cons-
truções intrinsecamente ligadas às ações coletivas, distinguindo também
como esses “coletivos” interagem com os novos ambientes propiciados
pelas inovações técnicas.
O que leva um historiador a posicionar-se de forma otimista e outro
de forma pessimista quando analisam os mesmos períodos, no mesmo es-
paço geográfico, habitado pelos mesmos agentes socioculturais, é que nos
motiva a também tentarmos compreender esses lócus, pois, a(s) contradito-
riedade(s) dessa forma apresentada, certamente, merece outras incursões.
Incursões que penetrem nas dobras, nas cavidades, mais recônditas, com
vistas a revelar as intencionalidades, os focos do discurso e a natureza das
interpretações.

280 Ianni, A era do globalismo, 1997, pp. 3-4.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

Até porque, em alguma medida, todas as formas de pensamento


estão sendo desafiadas pela ruptura histórica em curso. É o que ocorre
com a Economia, a Política, a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, a
Demografia, a Geografia e a própria História, sem esquecer a Filosofia e
as Artes. Todas essas formas de pensamento estão sendo desafiadas pelas
modificações reais e imaginárias em curso nos modos de vida e trabalho,
nas formas de sociabilidade e ideais, nos hábitos e expectativas, nas expli-
cações e ilusões.
Um exemplo pode ser apreciado no trabalho que desenvolvi para
a obtenção do título de mestre: Seringueiros Brasileiros e suas Travessias
para a Bolívia: A Formação de Novos Modos de Vida Num Espaço de
Litígio (1985 – 1995), pois ali identifiquei que se fossemos nos apegar a
historiografia regional, nada mais poderia ser acrescentado ou subtraído
sobre a vida dos seringueiros e suas andanças. Está dito como certo que os
seringueiros expulsos dos seringais brasileiros sem outra alternativa pos-
sível, simplesmente, atravessavam a fronteira e passavam a cortar seringa
154 em território estrangeiro (Bolívia), ou migravam para a periferia das cida-
• des mais próximas para viverem do subemprego e formarem os bairros
periféricos destas.
Realmente, posto dessa forma, desaparecia todas as possibilidades,
as alternativas para outras interpretações. Nem sequer se tinha, anterior-
mente, a preocupação de analisar a condição de ser estrangeiro, de es-
tar em outro país. Muito menos se discutia o reconhecimento do espaço
fronteiriço, como espaço ambivalente, onde são possíveis o encontro e o
desencontro, as tensões e os conflitos, articulações e possibilidades, onde
seu encantamento reside possivelmente, no desencontro de temporalida-
des históricas, pois os grupos que ali se constroem, mesmo considerando
as aproximações territoriais, estão situados diversamente no tempo.
No entanto, há conceitos, categorias e interpretações sedimentadas
ou amplamente aceitos nas ciências sociais que necessitam de redefinições,
ou podem ser simplesmente abandonados; assim como outros precisam
ser criados. Alteram-se mais ou menos drasticamente as acepções de tem-
po e espaço, envolvendo as noções de lugar, espaço, território e fronteiras,
presente e passado, próximo e remoto, arcaico e moderno, contemporâ-

Sumário
José Sávio da Costa Maia

neo e não contemporâneo. Os conceitos de nação, sociedade nacional,


estado-nação, mercado, planejamento, trabalho, produção, produtividade,
lucratividade, racionalidade, emprego, desemprego, pobreza, miséria, e ou-
tros parecem exigir precisões e reformulações.
Esse é o clima em que se pesquisa e debate dilemas, tais como: inte-
gração e fragmentação, identidade e diversidade, nacionalismo e cosmopo-
litismo, sociedade civil nacional e sociedade civil mundial, neoliberalismo e
neo-socialismo, relativismo e universalismo.
Se fossemos refletir sobre esse terremoto em curso, que abala as
estruturas do pensamento contemporâneo, mesmo identificando os que
são indiferentes a essas mudanças, seríamos levados a admitir que, pra-
ticamente estamos obrigados a agir, sentir, pensar e fabular, para negá-lo
ou reconhecê-lo. A rigor, a ruptura histórica e a ruptura epistemológica,
combinada ou não, é algo que tem ocorrido em vários momentos ao longo
dos tempos modernos, causando impasses e desenvolvimentos.
Como estou passando por janelas que entreabrem possibilidades de
155 enxergarmos a “crise da modernidade”, cabem alguns comentários acerca
• das rupturas geradas a partir de seu “surgimento”. Em forma breve, é pos-
sível reconhecer que a modernidade se inaugura com os Grandes Desco-
brimentos Marítimos, a Renascença e a Reforma Protestante, sem esque-
cer a relevância do Novo Mundo no contraponto com o Velho Mundo.
Aí estão Vasco da Gama, Colombo, Vespúcio e Fernando de Magalhães,
Copérnico, Galileu e Kepler, Maquiavel, Bacon, Giordano Bruno, Descar-
tes, Vico, Shakespeare, Camões e Cervantes. Seria possível enumerar hipó-
teses, interpretações e criações, envolvendo as ciências naturais e sociais,
tanto quanto a filosofia e as artes, por meio das quais se demonstra que
os séculos XVI e XVII assistiram a uma fundamental ruptura histórica e
epistemológica, assinalando a gênese de alguns parâmetros fundamentais
da modernidade.
É possível demonstrar que a transição do século XVIII para o sé-
culo XIX também ocorre compreendendo uma ruptura simultaneamente
histórica e epistemológica. A Revolução Industrial Inglesa e a Revolução
Francesa, as Guerras Napoleônicas e a descolonização do Novo Mundo,
simultaneamente ao Iluminismo e à Enciclopédia. Essa é a época de Vol-

Sumário
José Sávio da Costa Maia

taire, Diderot, Rousseau, Kant, Hegel, Goethe, Beethoven, Adam Smith,


Ricardo, Saint-Simon e tantos outros.
Em fins do século XIX e início do século XX, novamente transfor-
mam-se os quadros sociais e mentais de uns e outros, a partir de hipóteses,
interpretações e criações, além de práticas, que se manifestam desde as
metrópoles europeias. Ocorre a partilha da África, organizam-se e deli-
mitam-se os imperialismos, desenvolvem-se as geoeconomias e as geopo-
líticas da França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Inglaterra, Rússia, Japão e
Estados Unidos. Simultaneamente estão sendo iniciadas ou desenvolvidas
criações tais como a fenomenologia de Husserl, a teoria da relatividade de
Einstein, a psicanálise de Freud, o impressionismo na pintura, música e
literatura, a filosofia da linguagem de Wittgenstein; e outras criações cien-
tíficas, filosóficas e artísticas; sem esquecer a sociologia de Weber, a busca
do tempo perdido de Proust e os escritos filosóficos de Bérgson e William
James, como assinala Ianni. 281
Apresentada essa retrospectiva, talvez (seja possível inferir) caiba
156 afirmar que algo semelhante está ocorrendo no fim do século XX e início
• do XXI. Está em curso uma ruptura simultaneamente histórica e epis-
temológica, abalando mais ou menos profundamente os quadros sociais
e mentais de referência de indivíduos e coletividades, em quase todo o
mundo. Alguns indícios desse clima estão presentes em escritos de Nor-
bert Elias, Fernand Braudel, Immanuel Wallenstein, Samir Amin, Frédéric
Jameson, Zygmunt Bauman, Edgar Morin, Octávio Ianni, Milton Santos,
George Steiner, dentre outros, que muitas vezes recuperam intuições, frag-
mentos ou mesmo premonições surpreendentes de autores do passado,
próximos ou remotos.
É fato de difícil contestação que todos, em todo o mundo, a des-
peito de suas convicções ou opções, estão colocados diante de dilemas e
perspectivas suscitados pela transnacionalização, planetarização, mundiali-
zação, internacionalização ou globalização das coisas, gentes e ideias.
No caso do seringueiro, como estou tentando apresentá-lo, esses di-
lemas e essas fronteiras se estabelecem no seu próprio ser. Embora o ter-
mo seringueiro seja utilizado na nossa historiografia como uma categoria
281 Ianni, A globalização e o retorno da Questão Nacional, 2000.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

homogênea, fundadora de um estereótipo cultural praticamente imutável,


de caráter quase genético, como seres naturais imbuídos de identidade
exclusiva, o ser seringueiro que consigo apreender é caracterizado pela
mobilidade, pela flexibilidade e pela porosidade. O estar seringueiro, geral-
mente suscita a imagem do não ser seringueiro, ou ainda, a negação do ter
sido seringueiro. Tudo isso interagindo, formando situações complexas e
contraditórias.
Quando está vivendo nas cidades, por exemplo, ele precisa negar a
condição de ser e ter sido seringueiro, para garantir articulações com os
fazeres urbanos. Porém, mais tarde é preciso afirmá-lo, para poder garan-
tir aposentadoria do FUNRURAL, ou negá-lo, novamente, para não ser
estereotipado como representação do atraso (em relação à modernidade),
da inoperância, da degenerescência física, moral e até, estética. Na Reserva
Extrativista é preciso reafirmar novamente sua condição de seringueiro,
refazendo todo um círculo, para garantir espaço no outro modo de vida
que começa a se construir.
157 O espaço fronteiriço é, portanto, portador de ambivalências huma-
• nas, de transições dos fluxos e dos fixos, dos espaços internos e externos
no sentido da história. Milton Santos, diz que:
A História é sem fim, está sempre se refazendo. Pois como
sabemos um resultado hoje é também um processo que
amanhã vai tornar-se outra situação e toda situação é do
ponto de vista estático um resultado, e do ponto de vista
dinâmico, um processo. Numa situação em movimento, os
atores não tem o mesmo ritmo, movem-se segundo ritmos
adversos. Portanto, se tomarmos apenas o momento,
perdemos a noção do todo em movimento. Os cortes do
tempo nos dão situações em um determinado momento.
Não captam o movimento, são apenas uma fotografia. Já
o movimento é diacrônico, e sem isso não há história. Não
haveria dialética se o movimento dos elementos se desse de
maneira sincrônica.282

Embora este trabalho não tenha a pretensão de uma revisão his-

282 Santos, Metamorfoses do espaço habitado, 1997, p. 05.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

toriográfica, haja vista que a perspectiva é exprimir as inter-relações, do


viver dos seringueiros da fronteira do Estado do Acre com a Bolívia e,
principalmente expressar uma rejeição à ideia de progresso, opondo-se
à forma como vêem os liberais, faz-se mister ressaltar que pretendemos
continuar dialogando com as categorias do Modo de Produção, mesmo
estando ciente dos perigos que incorremos, por este tratar-se de um con-
ceito generalizante que, comumente, homogeneíza espaços e formações
sociais, complexas e heterogêneas. Mas, o próprio Foucault, admite:
É impossível, nos dias atuais, escrever história sem usar
toda uma série de conceitos ligados direta ou indiretamente,
ao pensamento de Marx, e sem se situar no horizonte de
pensamento que foi por ele definido e descrito. Poderíamos
nos perguntar que diferença há, em última análise, entre ser
um historiador e ser um marxista. 283

Como nos identificamos com a História política e por entendermos


que o avanço do capitalismo, no seu caráter concentrador, exclusivista e
158 excludente, vem contribuído tenazmente, para agravar as condições de
• vida das populações que estou em contato, tanto no que diz respeito ao
espaço geo-ambiental, como as suas relações socioculturais, é que enten-
do como muito importante para nortear minhas atitudes, essa reflexão de
Raymond Williams:
Queremos mais, muito mais que a falência caótica de uma
ordem imposta simplesmente por ser uma alternativa. O
desafio, portanto, é a necessária complexidade. Durante
minha vida eu fui empurrado (...) da simplicidade para a
complexidade, e ainda me sinto empurrado para uma e
para outra. Mas todos os argumentos da experiência e da
história deixam agora bem clara a minha decisão – que
seja decisão geral. Só por caminhos muito complexos, e
seguindo com confiança na direção de sociedades muito
complexas, é que poderemos derrotar o imperialismo e o
capitalismo e começar a construir uma porção de sociedade

283 Foucault, apud Foster, 1999.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

que liberarão e aproveitarão nossas verdadeiras energias, no


momento ameaçadas. 284

Atendendo a esse forte chamamento, espero afastar qualquer pos-


sibilidade de análise que tenha como base à importação de conceitos
utilizados para outras situações, que dificilmente se aplicariam aos movi-
mentos, ora observados nas regiões fronteiriças do Brasil com a Bolívia.
Até mesmo porque, identificamos nessa região uma negação severa ao
reconhecimento espacial moderno de que o planeta todo esteja compar-
timentado (conhecido e ocupado). A compartimentação espacial moder-
na é fragorosamente desconhecida nessa região. Situações aqui observa-
das figuram como ininteligíveis para quem conhece as estruturas agrárias
e fundiárias de outras regiões. Os imensos espaços reivindicados pelos
grandes proprietários, até bem pouco tempo eram desconhecidos até por
eles mesmos. As dificuldades de deslocamento nas florestas impediam sua
demarcação. Só com o avanço da tecnologia, via comandos por satélite,
como o Gerador de Posição por Satélite (GPS) é que se conseguiu melhor
159 visibilidade territorial e demarcatória, o que não significa ainda, controle

e ocupação. Em milhares de hectares permanece a posse sem ocupação.
Portanto, será fundamental, numa tentativa de compreender as arti-
culações socioculturais dessa região, dialogar com suas necessidades, com
seu jeito de resolver os problemas, com seus desejos e sonhos. É o mínimo
que podemos fazer para não adotarmos a postura de vanguardistas, líde-
res, ou assemelhados, querendo aplicar receitas e fórmulas mágicas, contra
uma população que mesmo a duras penas, vem reproduzindo sua cultura,
sua tradição, seu modo de viver.
Tudo o que foi dito interage com outras lições, como por exemplo,
essa de José de Souza Martins285, onde ele afirma: “A fronteira tem caráter
litúrgico e sacrificial, porque nela o outro é degradado para, desse modo,
viabilizar a existência de quem o domina, subjuga e explora”.
Os modos de vida cultivados por esses seringueiros é o que pode-
mos entender como a ciência e a consciência com que o homem ocupa o

284 Willians, apud Sader, 1992, p. 87.


285 Martins, Fronteira: a degradação do Outro nos Confins do Humano, 1997.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

espaço e o tempo com sua morada histórica. Pois, o homem culto é aquele
que cultiva essa ciência e essa consciência, portanto, não constitui tarefa
fácil compreender as formas de reprodução social que se estabelecem nes-
ses espaços geo-ambientais destas fronteiras. Não seria demais, também,
pensar no sentido com que Thompson discute o conceito de experiência,
entendendo-a como algo que “é determinada pelo ser social”. Na miséria
da Teoria, discutindo o “Termo Ausente: Experiência”, Thompson (1981)
adverte:
Creio que descobrimos uma coisa, de significação ainda
maior para todo o projeto do socialismo. Introduzi, algumas
páginas atrás, outro termo médio necessário, “cultura”. E
verificamos que, com “experiência” e “cultura”, estamos
num ponto de junção de outro tipo. Pois as pessoas não
experimentam sua própria experiência apenas como ideias,
no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou
(como supõem alguns praticantes teóricos) como instinto
proletário etc. Elas também experimentam suas experiências
160 como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura,
• como normas, obrigações familiares e de parentesco, e
reciprocidades, como valores ou (através de formas mais
elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. Essa
metade da cultura (e é uma metade completa) pode ser
descrita como consciência afetiva e moral.

Dessa forma o homem que se esgueira pela mata, o seringueiro-


-coletor é um homem que vive a sua experiência e vivencia outras experi-
ências. Não constitui novidade que, mesmo na solidão da mata, ele goste
de ouvir o rádio de pilha e de comer carnes enlatadas, fumar cigarros
industrializados e torcer por times de futebol do Rio de Janeiro e São
Paulo sem nunca ter vislumbrado a possibilidade de deslocamento até lá.
Só o faz, porque de alguma forma isso lhe foi passado e consequente-
mente, assimilado. Todos esses, sabemos nós, são produtos claramente
distantes do seu microcosmo. Esses focos de interculturalidades, todavia,
nos remetem à discussão sobre a validade da interpretação corrente de
que vivemos num mundo que apresenta como característica principal, sua
divisão em dois movimentos sociais e culturais, que parecem estar em per-

Sumário
José Sávio da Costa Maia

manente oposição: o primeiro, apontando com o apoio massivo dos meios


de comunicação, para a ideia de mundialização; e o segundo, apresentando
uma tendência à revalorização do que é local, próprio e específico de cada
povo, grupo social, geração, raça, sexo, tradição cultural e/ou religiosa.
Stuart Hall desenvolve assim essa questão:
En primer lugar, si es verdad que, en el siglo XX, grandes
masas de personas consumen y disfrutan de los productos
de nuestra moderna industria cultural, entonces desprende
que entre el público que consume tales productos hay
un número considerable de obreros. Ahora bien, si las
formas y relaciones de las que depende la participación
en esta clase de “cultura” suministrada comercialmente,
son puramente manipulatorias y envilecidas, entonces las
personas que las consume y disfrutan están ellas mismas
envilecidas por estas actividades o viven en un estado
permanente de “falsa conciencia”. Deben de ser “tontos
culturales” incapaces de ver que lo que les están dando
es una forma actualizada del opio del pueblo. Puede que
161
• este juicio nos haga sentir correctos, decentes y satisfechos
de nosotros mismos por haber denunciado a los agentes
de la manipulación y el engaño de las masas, es decir, a
las industrias culturales capitalistas: pero no sé si este
parecer puede sobrevivir mucho tiempo como explicación
suficiente de las relaciones culturales; y aún menos como
perspectiva socialista de la cultura y la naturaleza de la clase
obrera. En última instancia, el concepto del pueblo como
fuerza puramente pasiva es una perspectiva profundamente
no socialista. 286

É certo que se estendermos o olhar para as disputas comerciais, ter-


ritoriais, étnicas, religiosas, dentre outras, em que se engalfinha boa parte
da humanidade, fica fácil perceber que a mesma capacidade que a hu-
manidade tem de “mundializar”, ela também o desenvolve na capacidade
de provocar conflitos e estranhamento. Não nos ocorre gratuitamente, a
recomendação de Castoriadis287, numa de suas últimas entrevistas, diz que
286 Hall, apud Samuel, 1984, pp. 99-100.
287 Castoriadis, apud Bauman, 1999, p. 11.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

“o problema da condição contemporânea de nossa civilização é que ela


parou de questionar-se”. Por isso é que o capitalismo, observado em pers-
pectiva histórica de longa duração, logo se revela como modo de produção
e processo civilizatório. Criando e recriando, dissolvendo e transfigurando,
modos de vida e trabalho, formas de sociabilidade e ideias, instituições ju-
rídicas e políticas e principalmente, estilos de pensamento. Bauman indica
que:
A visão de mundo disseminada, intencionalmente ou não,
nas mensagens transmitidas hoje em dia pela elite culta é a
de um tempo sem dimensão histórica, um tempo achatado,
plano, ou um tempo giratório, continuamente reciclado,
que vai e que vem mas não muda muito de posição, tempo
de repetições, que quanto mais muda mais é a mesma coisa.
Não se trata de uma mensagem que perdeu o sentido da
sua própria historicidade – é uma mensagem que nega a
história.288

Mesmo Bauman expressando essa concepção de poder, ela não pre-


162
• enche melhor as interculturalidades do que a ideia de diagrama apresenta-
da por Foucault. Segundo Deleuze:
Quando Foucault invoca a noção de diagrama, é pensando
as nossas sociedades modernas (de disciplina), onde o
poder opera um enquadramento de todo o campo: se existe
modelo, é o modelo da “peste”, que enquadra a cidade
e contamina e se estende até o mínimo detalhe. Mas, se
consideramos as antigas sociedades (de soberania), vê se
que elas também possuem diagramas, embora com outras
matérias e outras funções: também nelas uma força se exerce
sobre outras forças – mais para realizar um levantamento
prévio do que para combinar e compor; mais para dividir as
massas do que para recortar o detalhe; mais para exilar do
que para enquadrar (é o modelo da lepra) [...].289

A guisa de conclusão reitero minha determinação, na busca da com-


preensão das articulações, dos fios de cada borda dessa imensa rede de
288 Bauman, Em busca da Política, 2000, p. 130.
289 Deleuze, Foucault, 1998, p. 44.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

interculturalidades e transculturalismos em que estamos inseridos. Frank


e Fuentes apontam:
[...] a “luta de classes”, em grande parte do terceiro mundo,
continua e até se intensifica, mas toma forma ou se
expressa por meio de muitos movimentos sociais, além da
forma clássica de forças de trabalho (sindical) versus capital
e “seu” estado. Estes movimentos sociais e organizações
populares representam outros instrumentos e expressões
da luta das populações contra a exploração e opressão e por
sua sobrevivência e identidade, dentro de uma sociedade
complexa e dependente em que esses movimentos
constituem esforços e instrumentos de potenciação
democrática. No terceiro mundo, a região, a localidade,
a residência, a ocupação, a estratificação, a raça, a cor, a
etnicidade, a linguagem, a religião, etc., de forma individual
e combinações complexas, são elementos e instrumentos
de dominação e libertação. Os movimentos sociais e a “luta
de classes” que, inevitavelmente, estes expressam, também
163 devem refletir sua estrutura e este processo econômico,
• político, social e cultural complexo.290

Seguindo a tese de que vivemos em um mundo onde a modernidade


se generalizou trazendo consigo uma crise de civilização, só podemos nos
inserir neste a partir de uma intenção de superação da crise sem pensar
em catastrofismos ou cataclismos. Inferir que o mundo caminha para a
autodestruição é objeto da ficção, na mesma proporção do que pode ser
dito de sua recuperação inexorável a partir da técno-ciência. Se vivemos
mesmo uma crise de paradigmas, nada melhor do que repensar os fenô-
menos naturais no interior de um horizonte histórico e valorizar a noção
de complexidade, abrindo um diálogo com as ciências sociais e históricas,
como sugere Theotônio dos Santos, pois o homem continua a existir e a
exibir sua diversidade cultural.

290 Gunder Frank; Fuentes, Des teses acerca dos movimentos sociais, 1989, pp. 32-33.

Sumário
José Sávio da Costa Maia

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José Sávio da Costa Maia

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165

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

CLIMA, ALIMENTAÇÃO E BEBIDA


COMO CAUSAS DE DOENÇAS NO
ACRE TERRITORIAL

Sérgio Roberto Gomes de Souza

O clima e o meio ambiente integram as diversas teias narrativas que


inventaram a “Amazônia”. Nesse contexto, se desenvolveu uma estreita
relação entre o que se denominou como “clima tropical” e uma diversi-
dade de quadros nosológicos. Nos trópicos inventados, permearam pre-
ceitos vinculados ao determinismo climático, darwinismo social e evolu-
cionismo. Ao tratar sobre o tema, o historiador Júlio Cesar Schweickardt
166 nos chama atenção para outro importante fator, no caso, que a tropicali-
• dade trazia “uma ambiguidade entre paraíso e inferno, entre exuberante e
opressão”. 291
As características climáticas definidas na rota da colonização, mui-
to contribuíram para a representação da Amazônia enquanto um espaço
tropical por excelência, local de prevalência do calor, umidade, floresta,
abundância de água e uma diversidade de animais e insetos. Também a
delineou como retrátil à presença humana. Recorrendo novamente ao his-
toriador Júlio Cesar Schweickardt, percebe-se que se constituiu uma ima-
gem romântica de que “a natureza tropical como espaço de não cultura
é um paraíso, mas se transforma em inferno com a presença do homem,
quando este é invadido por pragas e doenças”. 292
Por essa perspectiva, percebe-se que a denominação “trópicos” não
é utilizada somente para designar um determinado espaço. O termo tem
diversas significações, a exemplo da concepção de que o clima quente e
úmido envolve pessoas e doenças. Assim, é possível dizer que a natureza

291 Schweickardt, As doenças tropicais e o Saneamento no Estado do Amazonas, 2011, p. 45.


292 Schweickardt, As doenças tropicais e o Saneamento no Estado do Amazonas, 2011, p. 47.

Sumário
tropical foi também formadora da identidade européia, considerando que
os aspectos negativos a ela associados, expressavam-se de maneira contrá-
ria nas regiões de clima temperado. Assim, além de calor, umidade, insetos
e doenças, os trópicos também passaram a ser representados enquanto
espaços de “barbárie”, onde imperava a absoluta ausência de “civilidade”.
293
Euclides da Cunha, ao tratar sobre os habitantes da Amazônia, ressalta
que, já em 1762, o bispo do Grão Pará, Fr. João de São José, havia feito o
registro de que a raiz dos vícios da terra era a preguiça, resumindo algumas
comportamentos que seriam corriqueiros na região: “lascívia, bebedice e
furto”.294 Na sequência, utilizando como referência os escritos de Russel
Wallace, afirma que os mesmos traduziam o que disse o mencionado re-
ligioso no século XVIII, considerando que a sociedade amazônica passa-
va aos olhos desse último viajante, “bebendo, dançando e mentindo”.295
Nesse caso, é importante observar o que diz Albert Memmi, para quem
“toda a vez que o colonizador afirma em sua linguagem que o colonizado
é fisicamente e moralmente fraco ele está sugerindo que esta fraqueza
precisa de proteção. 296
Dialogar com múltiplas abordagens sobre o tema, tendo como re-
ferência o Território Federal do Acre nas duas primeiras décadas do século
XX, constitui-se no principal objetivo desse capítulo. Nos escritos que
compõem o texto, diálogos/problemas envolvendo o clima e hábitos da
população, aparecem como pressupostos dos principais debates sobre os
quadros nosológicos existentes na região.
ABORDAGENS SOBRE O CLIMA

Raphael Augusto da Cunha Mattos chegou ao Acre no dia 17 de


agosto de 1904, para tomar posse como prefeito do Departamento do
Alto Acre, após realizar o longo trajeto que separava a cidade do Rio de
Janeiro do povoado de Rio Branco, em uma viagem que classificou como
“longa e penosa”. 297 No dia seguinte ao seu desembarque tratou de ins-
293 Schweickardt, As doenças tropicais e o Saneamento no Estado do Amazonas, 2011.
294 Cunha, Terra sem História, 1999, p. 11.
295 Cunha, Terra sem História, 1999, p. 11.
296 Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, 1977, p. 82.
297 Mattos, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre, 1905, p. 03.
Sérgio Roberto Gomes de Souza

talar a sede da prefeitura. A princípio intencionava fazê-lo em Xapuri,


distante cerca de 200 km de Rio Branco, o que terminou não se concre-
tizando devido ao período de vazante das águas e às péssimas condições
de navegabilidade do rio Acre, à época, única via de acesso. 298 Sua opção
inicial por Xapuri, e não Rio Branco, para a sede do Departamento que
ia administrar, decorreu da crença pessoal de que os quadros mórbidos
na localidade eram mais amenos, se comparados aos de outros povoados
existentes no Território:
Como já conhecesse pessoalmente as terras banhadas pelo
rio Acre e estivesse, portanto, habilitado a fazer juízo seguro
do respectivo clima que é o mais insalubre possível, a partir
da Capital Federal tinha em mente constituir em Xapuri a
sede do meu governo, pois ali se fazem sentir com menos
intensidade as febres de mau caráter, o beribéri e outras
enfermidades que tanto dizimam a população do Acre. 299

A definição do clima do Território como insalubre aparece na parte


168 introdutória do relatório que Cunha Mattos publicou no final de 1904, no
• qual fez questão de expressar que suas abordagens sobre o tema derivaram
dos escritos do médico de 5ª classe, Dr. Manoel de Marsilac Motta, que
prestava serviços à Prefeitura. No documento que produziu e serviu como
referência ao prefeito, Marsilac Motta afirmou que não compreendia que a
umidade e o calor característicos da Amazônia fossem causadores diretos
das doenças, mas:
[...] um fator que propiciava condições eminentemente
favoráveis à vida das organizações inferiores, responsáveis
por um grande número de moléstias infectuosas (sic),
tornando o estado sanitário do Acre insalubérrimo quase
todo ele. 300

Este preceito diferenciava-se de concepções que defendiam uma


ação direta das condições climáticas sobre os organismos dos indivíduos,
fragilizando-os e expondo-os a uma diversidade de doenças. O historiador
298 Mattos, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre, 1905, p. 04.
299 Mattos, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre, 1905, p. 03.
300 Mattos, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre, 1905, p. 12.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

Sidney Chalhoub, por exemplo, destacou as conclusões do médico inglês


Roberto Dundas, autor de um tratado sobre febres, publicado no ano de
1852, após ter residido e trabalhado na Bahia. Na obra, o médico tratou
sobre a impossibilidade de habitantes de zonas temperadas aclimatarem-
-se nas regiões tropicais, devido ao fato de que em países de clima quente
a secreção proveniente do sistema capilar externo se tornaria incessante
e profusa, enquanto a secreção originada nos rins diminuiria na mesma
proporção. Assim, quando expostos ao calor intenso sofreriam danos em
seus sistemas capilares, que se tornariam enfraquecidos devido à excitação
provocada pela transpiração profunda. 301
Como visto anteriormente, Marsilac Motta abordava o tema por ou-
tra perspectiva. Compreendia que o clima não se constituía em fator etio-
patogênico302 de qualquer entidade mórbida. Porém, as condições de calor
e umidade, características da Amazônia, eram propícias à proliferação de
“organizações inferiores”, estas sim, as verdadeiras responsáveis pelas do-
enças que se disseminavam entre os moradores da região. No caso, a deno-
169 minação “organizações inferiores” suscita dúvidas sobre seu significado.
• Uma possibilidade é de que seja a evidência de uma aproximação com a
microbiologia, cujos preceitos passaram a circular com maior efetividade a
partir da segunda metade do século XIX. Na Amazônia, produções cien-
tíficas que usaram como referência a mencionada área de conhecimento
podem ser encontradas a partir do início do final do século XIX e início
do século XX, a exemplo do relatório do Serviço Sanitário do Estado do
Amazonas datado de 1902 e publicado no ano de 1903, pelo então dire-
tor do órgão, médico Alfredo da Matta. O texto do citado documento
abordou diversos aspectos da situação epidemiológica da região utilizan-
do, para tanto, longas citações dos estudos realizados no ano de 1901pelo

301 Chalhoub, Cidade Febril, 1996, p. 79.


302 A expressão fez parte do texto utilizado pelo professor e médico Carlos Chagas na Aula
Inaugural proferida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro para estudantes da cadeira de
Medicina Tropical, no dia 14 de setembro de 1926. Segundo o mesmo: O clima não constitui
fator etiopatogênico direto de qualquer entidade mórbida bem definida, mas, por ele, a doença se
transforma e modifica, e dele se originam as variantes nosológicas apreciáveis nas diversas regiões
da terra. In: Faculdade de Medicina Tropical – Cadeira de Medicina Tropical. Aula inaugural do
professor Carlos Chagas, no Pavilhão Miguel Couto, a 14 de setembro de 1926, p. 04.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, Emílio Ribas. O relatório, pos-


teriormente, foi publicado com o título: “O mosquito como agente de
propagação da febre amarela”. 303
Observando as medidas de “ordem higiênica” que Marsilac Motta
sugeriu que fossem adotadas para minimizar as ações do clima, destacan-
do-se entre elas a “sanificação do solo pelo estabelecimento da drenagem
metódica e larga” 304, percebe-se que as proposições não vinham acom-
panhadas de nenhuma referência de combate ao anopheles, o que suscitou
o questionamento se as formulações do médico não se fundamentavam
em preceitos do século XIX defendidos por médicos partidários das con-
cepções infeccionistas, para quem o surgimento das moléstias também
guardava relação com a existência de pântanos e poças de água imundas
e estagnadas, locais de emanações de miasmas. 305 As fontes encontradas
e analisadas não foram suficientes para, especificamente nesse trabalho,
sugerir qual ou quais pressupostos teóricos teriam mais diretamente in-
fluenciado o “médico de 5ª classe”.
170 Entre os relatórios analisados, o de Cunha Mattos foi o único onde
• o clima do Acre foi caracterizado como insalubre. Nos demais, percebe-se
um movimento inverso, com as autoridades departamentais esforçando-se
para apresentá-lo como benigno e adaptável. O prefeito do Departamento
do Alto Purus, Cândido José Mariano, por exemplo, ao defender que o
governo federal criasse incentivos para viabilizar políticas de imigração
para o Território, afirmou ser o clima na região “perfeitamente suportável
ao europeu como ao indígena, a par da uberdade espantosa do solo, que
fornece ao imigrante que para aqui queira vir, vida fácil e compensadora”.
306
Candido Mariano reforçaria esta concepção em seu relatório de 1906,
no qual destacou as “facilidades” de adaptação à região, que o clima pro-
piciava:
Ao contrário das falsas correntes de opinião formuladas
no Sul da República e no estrangeiro, sobre a inclemência

303 Schweickardt, Ciência, Nação e Região, 2011.


304 Mattos, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre, 1905, p. 12.
305 Chalhoub, Cidade Febril, 1996, p. 66.
306 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1905, p. 11.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

do clima no interior do Amazonas e especialmente


do Território do Acre, pode-se afirmar, sem receio de
contestação, que o mesmo se presta, como outro qualquer,
à vida vegetativa, trate-se do filho da região ou trate-se do
oriundo de outras paragens. 307

Consta, inclusive, no documento uma rebuscada explicação, elabo-


rada com o intuito de legitimar suas assertivas:
A temperatura na zona banhada pelos altos rios, já nas
proximidades das suas fontes, de 6º de latitude para o
sul, é por demais benigna e os grandes calores equatoriais
são atenuados pela forte evaporação das águas, que, em
abundância, irrigam o solo e pela vastidão das florestas que
o cobrem. 308

Candido Mariano voltou a defender o clima em seu relatório de


1908. Desta vez, valendo-se de informações repassadas pelos médicos Se-
bastião Libanio e Candido Libanio, irmãos que se sucederam na Diretoria
171 de Higiene do Departamento.309 Para tanto, construiu um demonstrativo
• do quantitativo de óbitos ocorridos entre os anos de 1907 e 1908, cruzan-
do estes dados com o número aproximado de habitantes do Alto Purus:
[...] durante os anos de 1907 e 1908 faleceram nesta cidade
40 pessoas, sendo 14 para o ano de 1907 e 26 para o ano de
1908. No primeiro caso, a população era de 1.026 pessoas e
no segundo de 2.137, o que contabilizaria uma mortalidade
de 14 por mil, aproximadamente. 310

De acordo com o prefeito, os resultados demonstravam que, pro-


porcionalmente, o quantitativo de óbitos ocorridos no Departamento do

307 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1906, p. 33.


308 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1906, p. 33.
309 A cidade de Sena Madureira, sob o ponto de vista sanitário, estava a cargo de uma Diretoria
de Higiene Pública, dirigida, de 1º de outubro de 1906 a 1º de abril de 1908 pelo Dr. Samuel
Libanio, substituído, na última data, pelo Dr. Candido Libanio. In: LOUREIRO, José Souto. O
Brazil Acreano. Manaus, Gráfica Lorena, 2004, p. 19.
310 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1908, p. 45.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

Alto Purus ficava abaixo de outras regiões caracterizadas como “civiliza-


das”, o que confirmaria a baixa morbidade da região. 311
Nomeado prefeito interino do Departamento do Alto Acre, entre
os anos de 1906 a 1907, José Plácido de Castro fez severas críticas aos que
caracterizavam o Acre como “antro da morte, a região malsinada, aonde
muitos vão e de onde poucos tornam”. 312 No período em que esteve no
cargo não exaltou a pureza do clima, como fizera Candido Mariano, mas,
também, não o culpou exclusivamente pelos problemas de saúde que exis-
tiam, preferindo justificar que os quadros mórbidos resultavam de “causas
múltiplas, muitas delas sempre desprezadas e que é preciso tê-las em linha
de conta” 313 Entre o que denominou com “causas múltiplas”, ressaltou
o fato de a população acreana ser composta por “indivíduos vindos de
zonas flageladas pelas secas, aqui chegando já em condições de extrema
miséria psicológica” 314, situação agravada em decorrência da forma como
eram transportados para a Amazônia. Amontoados inicialmente em na-
vios e depois em embarcações denominadas como “chatas”, adequadas
172 para a navegação em rios de pouca profundidade, padeciam com a péssi-
• ma alimentação que recebiam a bordo, ficando propensos a contrair diver-
sas moléstias sendo a varíola, a disenteria e o sarampo, as mais comuns. 315
A defesa do clima não ficou restrita a documentos oficiais, fazendo-
-se também presente nas páginas dos jornais publicados nos Departamen-
tos. Em sua edição de nº 17, do dia 04 de novembro de 1906, O Cruzeiro
do Sul divulgou um extenso texto tratando sobre os motivos que levavam
muitos a caluniarem o clima, caracterizando essas ações como parte de
uma sórdida estratégia para evitar concorrência na exploração econômica
do Território:
Quem quer que percorra a extensíssima zona que forma
o Departamento do alto Juruá, seja touriste na cata de
impressões, seja homem de ciência demandando mais
descobertas na flora e fauna amazônica, seja aventureiro

311 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1908, p. 45.


312 Castro, Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Augusto Tavares de Lyra, 2005, p. 234.
313 Castro, Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Augusto Tavares de Lyra, 2005, p. 234.
314 Castro, Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Augusto Tavares de Lyra, 2005, p. 235.
315 Castro, Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Augusto Tavares de Lyra, 2005, p. 234.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

em busca de rápida fortuna, ao derramar o olhar


perscrutador por estas matas e por estes rios, não pode ver
sem uma profunda tristeza o despovoamento e o lastimável
abandono em que está toda a região, tão rica e tão grande
que contém superfície e riqueza para um vasto e opulento
Estado. A desídia de alguns, o cálculo interesseiro de
outros cuja fantástica opulência imaginada gera pretensões
descabidas, fazem muitos maldizerem o clima da região
com o intuito de afastar a concorrência na exploração das
riquezas. O embuste de quase todos são causas a combater
energicamente.316

Abordagens bem parecidas constam nos relatórios da Comissão de


Obras Federais (COF). Segundo a historiadora Maria José Bezerra, a COF
foi criada durante o governo do presidente da República Afonso Pena,
através do Decreto nº 6.405, de 08 de março de 1907. O principal intuito
do governo federal, através deste ato, teria sido acalmar seringalistas e
comerciantes do Acre que defendiam a autonomia do Território.317 Cons-
173 tituíam-se em atribuições da COF: abertura de estradas, desobstrução de
• rios, construção de obras públicas e a defesa militar do Território. 318 In-

316 O Cruzeiro do Sul, 04 de novembro de 1906, ano I, nº 17, p. 01.


317 A relação da Comissão recém-criada com as Prefeituras Departamentais não foi harmoniosa,
sendo muitas vezes marcada por disputas por recursos, como pode ser observado nas afirmações
feitas pelo prefeito do Departamento do Alto Purus, Candido Mariano, no ano de 1908: “Sobre a
momentosa questão de recursos às Prefeituras [...] a solução mais prática, no caso presente, seria a de
duplicar, ou triplicar, a verba que atualmente lhes é entregue para a despesa, sem prejuízo da dotação
da Comissão Federal de Obras, que assim ficaria isenta de auxiliar diretamente os Departamentos,
opinião corrente no Território” (MARIANO, 1908, p. 40). Frise-se que as obras iniciadas pela COF
parecem não ter tido continuidade, o que terminou por se tornar objeto de denúncias por parte
da imprensa local, que questionou a eficácia das ações, considerando principalmente o volume
de recursos que supostamente estariam ao dispor da Comissão. Exemplo disso encontra-se em
publicação do jornal O Cruzeiro do Sul na edição de nº 163, do ano de 1911, período em que os
trabalhos da referida Comissão já haviam sido suspensos e os trabalhadores dispensados: “Sabe-
se, embora aqui se lhe não encontram vestígios outros que não uma serraria em mal estado, uma
quantidade enorme de instrumentos de engenharia, a maior parte já imprestáveis e lugares onde se
diz que em tempos foram abertos varadouros, que por esta região passou uma célebre Comissão
Federal de Obras, dispondo da respeitável verba de seis mil contos de réis destinados à realização
de melhoramentos no Território do Acre”. Jornal O Cruzeiro do Sul, 18 de junho de 1911, ano
VI, nº 163, p. 01.
318 Bezerra, Invenção do Acre, 2006, p. 76.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

teressa-nos no relatório produzido pelo órgão no ano de 1907, posterior-


mente enviado ao então Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Augus-
to Tavares de Lyra 319 , as informações sobre o estado sanitário da cidade
de Cruzeiro do Sul, no Alto Juruá, construídas a partir do quadro clínico
dos seus trabalhadores, divididos entre “pessoal superior” e “pessoal in-
ferior”.320 Dessa forma, não constam referências a respeito dos demais
habitantes da cidade e muito menos aos que viviam e trabalhavam nos
seringais. O signatário do documento foi o engenheiro-chefe, Antônio
Manoel Bueno de Andrade.321
Bueno de Andrade, como passou a ser tratado na região o engenhei-
ro chefe da COF, definiu como bom o quadro sanitário entre seus subor-
dinados, considerando que apenas dois óbitos ocorreram e, ainda assim,
devido a moléstias contraídas em outras localidades. Os óbitos aos quais
se referiu foram de um operário e da esposa de um dos chefes de serviço.
Segundo consta: “vitimou o operário uma tuberculose adquirida no Rio
de Janeiro e a senhora um padecimento cardíaco, agravado por parto”. 322
174 O número reduzido de óbitos foi explicado como consequência da eficá-
• cia das medidas higiênicas e o poder dos meios profiláticos, somados às
benesses decorrentes do clima da região: “O clima em Cruzeiro do Sul é
incontestavelmente bom e muito tem influído para o estado sanitário de
todo o pessoal da comissão, que é excelente”. 323
No diálogo construído com os Relatórios das Prefeituras Departa-
mentais e outros documentos oficiais, observa-se a não preponderância
de concepções ortodoxas que atribuíssem única e exclusivamente ao clima

319 Lyra, Relatório Apresentado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, 1908, p. 03.
320 Eram caracterizados como “pessoal superior” os engenheiros e seus auxiliares, administradores,
contadores e chefes de almoxarife. Como “pessoal inferior” denominava-se os mateiros,
responsáveis por aberturas de picadas no interior da floresta, carregadores etc. In: Lyra, Relatório
Apresentado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, 1908, pp. 30-32.
321 A chegada de Bueno de Andrade e seus auxiliares a Cruzeiro do Sul ocorreu no dia 02 de
maio de 1907, sendo registrada pelo jornal O Cruzeiro do Sul na sua edição de nº 43. Entre outros
aspectos, destacou o periódico que a comissão vinha “desempenhar uma missão de consideráveis
vantagens para esta imensa e geralmente desconhecida região”. In: O Cruzeiro do Sul, 03 de maio
de 1907, ano II, nº 43, p. 02.
322 Lyra, Relatório Apresentado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, 1908, p. 35.
323 Lyra, Relatório Apresentado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, 1908, p. 35.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

os quadros mórbidos existentes no então Território do Acre, durante a


primeira década do século XX. No geral, era imputada bem menos culpa
a este que a outros fatores como má alimentação, consumo excessivo de
álcool, recursos a outras “artes de curar” e ausência de assistência médica.
O que se percebe é um movimento inverso, com a maioria dos prefeitos
tentando inserir em seus relatos o máximo de informações que ajudas-
sem a desconstruir a imagem da malignidade do clima local, preceito que,
quando divulgado, se constituía em forte empecilho para a empresa gu-
mífera em processo de expansão e necessitando de mão-de-obra para a
coleta do látex e produção da borracha.
ALIMENTAÇÃO RUIM E CONSUMO
EXCESSIVO DE ÁLCOOL

O consumo de conservas e alimentos deteriorados, juntamente com


a ingestão abusiva de bebidas alcoólicas, são fatores que aparecem com
frequência nos Relatórios das Prefeituras Departamentais e da COF, como
responsáveis pelos problemas de saúde dos habitantes do Território do
175

Acre, na primeira década do século XX. Os exemplos são os mais di-
versos, como se observa nas explicações do engenheiro-chefe da COF,
Antônio Bueno de Andrade, que afirmou ter sido, juntamente com seus
subordinados, acometido por várias doenças nos “primeiros tempos” de
suas chegadas à Cruzeiro do Sul em decorrência da alimentação, composta
quase exclusivamente de conservas. 324
Em um trecho do relatório de 1905, do prefeito do Alto Purus Can-
dido Mariano, percebe-se que, após o clima ser isento de qualquer respon-
sabilidade pelos quadros mórbidos existentes no Departamento, foram
enumerados os três fatores que mais contribuíam para a proliferação das
moléstias que atacavam impiedosamente a população: os hábitos alimen-
tares, os tratamentos empíricos e o uso excessivo do álcool325. Quanto aos
hábitos alimentares, o prefeito condenou a dieta da maioria dos habitantes,
que tinham por costume restringir “a satisfação de seus apetites ao uso de
conservas, nem sempre em bom estado de conservação, ocasionando mo-

324 Lyra, Relatório Apresentado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, 1908, p. 03.
325 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1905, p. 11.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

léstias do aparelho gastrointestinal, debilitando o organismo e originando


complicações mórbidas de caráter grave”. 326
Cunha Mattos, prefeito do Alto Acre, ressaltou que era fato re-
conhecido o péssimo sistema de alimentação existente no Território do
Acre, “onde o pão e a carne verde, raríssimas vezes figuravam, mas, onde
sempre havia uma grande difusão de conservas más, carne seca, farinha,
feijão e arroz deteriorados”327
No Departamento do Alto Juruá o prefeito Gregório Thaumaturgo
de Azevedo, ao tratar sobre os “problemas de higiene” em seu relatório do
ano de 1905, ressaltou a ocorrência de 49 óbitos no povoado de Cruzeiro
do Sul.328 O prefeito isentou o clima de qualquer responsabilidade, negan-
do com veemência que fosse insalubre, remetendo a culpa aos alimentos
consumidos pela população. Segundo ele: “Os gêneros alimentícios que
os fornecedores enviavam, em geral, não eram de boa qualidade e com
o acondicionamento nos porões dos navios chegavam deteriorados à re-
gião”.329
176 Note-se que era comum na Amazônia, a venda de conservas e ou-
• tros gêneros alimentícios em situação imprópria para o consumo. Pro-
dutos comercializados sem nenhum escrúpulo, a partir de empresas com
sede em Belém e Manaus, circulavam de forma intensa por seringais e
núcleos urbanos, constituindo-se no principal item da dieta alimentar de
seus habitantes. Registros dos mais diversos podem ser encontrados so-
bre essas práticas, a exemplo dos que constam no relatório publicado em
1910, por Oswaldo Cruz, intitulado: Madeira Mamoré Railway Company:
Considerações Gerais Sobre as Condições Sanitárias do Rio Madeira:
É deficientíssima e péssima a alimentação dos seringueiros
[...]. Os que melhor se alimentam fazem uso de conservas
que vêm em grande parte de Manaus e do Pará. Estas
conservas são vendidas sem escrúpulo e em grade parte
deterioradas. E a fraude vai a tal ponto que as casas de
importação de conservas têm um empregado denominado

326 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1905, p. 11.


327 Mattos, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre, 1905, p. 19.
328 O Cruzeiro do Sul, 10 de junho de 1906, edição nº 06, ano I, p. 02.
329 O Cruzeiro do Sul, 10 de junho de 1906, edição nº 06, ano I, p. 02.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

caixeiro de solda e cujo mister consiste em furar as latas


deformadas pelos gases da fermentação devidos ao
desenvolvimento, sobretudo, dos bactérios produtores das
infecções e intoxicações alimentares [...]. Tive a ocasião de
conversar com um dono de seringal do rio Jacy-Paraná que
me declarou com a maior ingenuidade, que a jabá (carne
seca) podre não vai para o rio tem de ser adquirida pelos
seus empregados por preços incríveis. 330

A solução para o problema, anunciada por algumas autoridades do


Território do Acre, foi incentivar a população a adquirir novos hábitos
alimentares. Experiências das mais diversas sobre o assunto foram regis-
tradas. Em Cruzeiro do Sul, por exemplo, o já citado engenheiro-chefe da
Comissão de Obras Federais disse ter dado início a uma plantação de le-
gumes e hortaliças nas proximidades de sua residência, tendo obtido tanto
sucesso que passou a fornecer alimentos para a cozinha de todos os seus
subordinados. 331 Sem nenhuma prudência, garantiu que a nova dieta pro-
vocara mudanças imediatas entre os trabalhadores que prestavam serviços
177

à Comissão, afirmando peremptoriamente que: “sensivelmente melhorou
a saúde geral: os casos de beribéri desapareceram e passam-se dias sem
nenhum caso de doença”. 332 Não tardou para que o engenheiro-chefe
concluísse que a má fama da região era consequência dos alimentos de má
qualidade ingeridos pela população, e não do clima, já que era suficiente
para conseguir um espaço higiênico que se desmatasse uma vasta área.
Esta ação, por si só, seria suficiente para tornar Cruzeiro do Sul perfei-
tamente adaptável para pessoas originadas das mais diversas localidades.
Cunha Mattos optou por adquirir para o Departamento do Alto
Acre uma padaria e gado, para abater de duas a três vezes por semana. O
consumo de pão fresco e carne verde, no entanto, constituía-se em privilé-
gio, uma vez que esses alimentos eram acessíveis apenas para os funcioná-
rios da Prefeitura. Os resultados das medidas adotadas foram devidamente
registrados pelo prefeito:

330 Cruz, Considerações gerais sobre as condições sanitárias do rio Madeira, 1910, p. 13.
331 Lyra, Relatório Apresentado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, 1908, p. 35.
332 Lyra, Relatório Apresentado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, 1908, p. 35.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

A despeito de um trabalho insano e de muita força de


vontade, consegui o que desejava e assim é que poucos dias
após a instalação da Prefeitura os funcionários públicos
passaram a ter o que anteriormente não havia com
grande vantagem para o estado sanitário que melhorou
consideravelmente. 333

Medidas para poucos, resultados para poucos, como se observa no


trecho do relatório onde constam registros sobre óbitos ocorridos entre
auxiliares do prefeito e os demais habitantes do Alto Acre:
Com pesar não pequeno consigno o passamento de mais
de um dos concidadãos que com grande soma de sacrifícios
me acompanharam da capital Federal para exercerem nesse
Departamento, empregos públicos. Jacob Beck Junior e
Figueiredo Neves, ambos funcionários do Ministério da
Fazenda, empregados como encarregado e escrivão do
posto fiscal do Abunã, após longa e penosa marcha por
terra para chegarem ao posto que lhes fora confiado, o que
178 não lograram fazer, enfermaram gravemente e de regresso
• à Manaus faleceram em viagem. Com relação aos óbitos
ocorridos entre os povos do Departamento, impossível me
é precisar o algarismo, podendo, entretanto, afirmar que foi
muito grande a mortalidade. 334

Sucessores de Cunha Mattos também tentaram implantar políticas


que possibilitassem à população do Departamento do Alto Acre, ou pelo
menos parte dela, acesso a outros alimentos que não conservas ou carne
seca. De acordo com o advogado Josias Lima, o Capitão Odilon Pratagy
Braziliense, quando no exercício interino do cargo de prefeito, propôs a
criação de uma colônia agrícola para onde seriam enviados sentenciados
de Fernando de Noronha. Para viabilizar tal medida, foi assinado um de-
creto de desapropriação de todas as terras “marginais do rio Acre” e seus
afluentes, concedendo-as gratuitamente a todo aquele que quisesse se de-
dicar ao plantio de jerimum, melancia, quiabo, maxixe e melão. A intenção
de Odilon Pratagy, conforme disse Josias Lima, era “abastecer o mercado
333 Mattos, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre, 1905, p. 19.
334 Mattos, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre, 1905, p. 19.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

de Rio Branco de modo a determinar a baixa de gêneros de outros países,


notadamente a conserva”.335
E não ficou só nisso. O prefeito do Alto Purus, Candido Mariano,
fez constar em seu relatório de 1908 a inauguração de um Mercado Públi-
co na cidade de Sena Madureira, no dia 21 de abril do mesmo ano (foto 01).
O estabelecimento foi descrito como um centro comercial que facilitava
a compra e venda de substâncias alimentícias, entre elas, carne verde de
boa qualidade, seja de gado ou de animais silvestres e uma farta oferta de
frutas, doces, bebidas diversas e caldo de cana. 336 O Mercado, segundo o
prefeito, deveria preencher todos os fins para os quais havia sido criado,
facilitando o acesso da população a outros alimentos que não conservas,
farinha de mandioca e carne seca, o que poderia influenciar diretamente
nas condições sanitárias do Departamento. 337
Foto 01: Mercado Municipal de Sena Madureira, inaugurado no ano de 1908

179

Fonte: Acervo do Arquivo Nacional: Código de Referência BR AN, RIO O2. 0.


FOT.480. Vistas da cidade de Sena Madureira – Acre.

Observando publicações de jornais posteriores a inauguração do


Mercado, no entanto, percebe-se a existência de contradições entre a

335 Lima, Os prefeitos do Território do Acre, 1906, p. 15.


336 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1908, p. 55.
337 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1908, p. 55.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

fartura de gêneros alimentícios propalada e os constantes problemas de


abastecimento com os quais conviviam os moradores da cidade, princi-
palmente em períodos de estiagem, quando ocorria a vazante dos rios e
as embarcações de grande e médio porte encontravam dificuldades para
navegar. Exemplo disso pode ser encontrado em nota publicada na edição
de nº 55 do jornal O Alto Purus, no dia 14 de março de 1909:
Estamos em meio março quase, e quer dizer isto que não
estamos longe da plenitude do verão, com a vazante de
nossos rios. A baixa das águas, reduzindo consideravelmente
o volume dos rios, dificulta a navegação em geral. Aqui
no Iaco, chegamos ao ponto de não poderem as lanchas
transpor a corredeira que fica nas proximidades de sua foz,
e então, entramos no regime das canoas, visto como não
temos lanchas apropriadas (...). Não sofrerá a população,
como em o ano passado a falta de mercadorias? Pois é bem
de ver os preços dos gêneros, já de si caros, transportados
em viagens de 14 a 18 dias por canoas tripuladas por quatro,
180 cinco, seis homens, ganhando de 15$000 a 20$000 réis por
• dia. Quem estas linhas escreve comprou, em novembro do
ano passado, uma lata de leite, do tipo comum, pela quantia
de 4$000 réis e uma caixa de batatas por 50$000!!!Chegamos
ao ponto de não se ter, absolutamente pão, arroz, biscoitos
e outros gêneros indispensáveis à vida.338

Se os médicos e autoridades públicas afirmavam que a alimentação


dos habitantes do Território do Acre era deficiente, o quadro agravava-se
ainda mais, segundo eles, devido ao consumo excessivo de álcool, sendo
a cachaça, possivelmente por ser financeiramente mais acessível, a bebida
mais consumida. Não se sabe se no Acre era difundida a ideia de que se
bebia para “matar o bicho” 339, mas o prefeito do Alto Purus, Cândido
Mariano, afirmou em seu Relatório de 1905, que era comum o uso da

338 De Urgência, jornal O Alto Purus, Sena Madureira-AC, 14 de março de 1909, ano II, nº55,
p. 02.
339 Expressão utilizada de forma corriqueira por trabalhadores da cidade do Rio de Janeiro,
no início do século XX. Sobre o tema ver: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim:
o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque, Campinas – SP, Editora da
Unicamp, 2001, pp. 247 a 255.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

aguardente com fins terapêuticos, creditando a crença ao fato de que a


“ignorância de todos os moradores condu-los (sic) a supor que o álcool in-
gerido continuamente premune-os de muitas moléstias”. 340 Nos registros
feitos pelo padre francês naturalizado brasileiro, Jean-Baptiste Parrissier,
durante viagem realizada ao rio Juruá no ano de 1897, consta a descrição
do que o religioso denominou como as “cinco pragas” que afligiam os
moradores da localidade, sendo a primeira delas a bebida:
Não conseguindo encontrar nas práticas religiosas de
uma verdadeira religião, pelo menos não mais do que suas
superstições vãs e diabólicas, as consolações que todo
homem procura para suas penas aqui na terra, os daqui
foram procurar fora, e não encontraram nada melhor do
que o álcool. É a verdadeira praga, é o flagelo da religião.
É algo inacreditável a quantidade de cachaça que é bebida
nos rios pelos seringueiros. Eles estão tão entregues a ela,
que poderíamos pensar que ela se tornou seu pão de cada
dia. 341
181
• Várias foram as tentativas desenvolvidas por prefeitos dos Depar-
tamentos, com intuito de resolver o problema do consumo excessivo de
álcool. No Alto Purus, Cândido Mariano sugeriu que fossem cobrados
mais impostos sobre o produto e realizada uma ampla campanha antial-
coólica, justificando que esses cuidados deveriam ser priorizados pela
administração pública “com vistas ao engrandecimento moral e material
do Território”. 342 Além do acréscimo dos tributos, medidas repressivas
contra os que abusavam do uso do álcool também foram adotadas, sendo
registrados vários casos de prisão por embriaguez. Somente no ano de
1911 foram detidas na cidade de Sena Madureira 36 pessoas, acusadas pela
prática deste “delito”.
No Alto Juruá, o prefeito João Virgolino de Alencar fez publicar no
jornal O Cruzeiro do Sul, do dia 07 de abril de 1907, o Decreto de nº 59, que
tributava a venda a retalho da cachaça e de outras bebidas alcoólicas. Para

340 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1905, p. 11.


341 Parrissier, Seis meses no país da borracha, 2009, pp. 45-46.
342 Mariano, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Purus, 1905, p. 11.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

tanto, considerou que o uso de aguardentes era responsável “por sérios


prejuízos à sociedade, quer pelo aniquilamento gradual do indivíduo, na
sua energia física e na integridade moral, quer pela desorganização da fa-
mília e degenerescência da prole”.343 Outro argumento utilizado para justi-
ficar a nova Lei, diz respeito a supostas desordens e crimes registrados no
Departamento, em decorrência da embriaguez, o que gerava a necessidade
de intervenções efetivas por parte do poder público, principalmente “em
uma sociedade em começo de organização”. O Decreto tinha o seguinte
teor:
O Exmo. Sr. Dr. João Virgolino de Alencar, usando da
autorização que lhe confere o artigo 4º do decreto nº 5.188,
de 07 de abril de 1904 do governo federal, decreta:
Art. 1º Estabelecer o imposto de 1:000$000 (um conto de
réis) por ano, pago de uma só vez, para qualquer casa de
negócio, barracão ou batelão que vender cachaça ou outras
bebidas a retalho.
Art. 2º O negociante licenciado para o fim de explorar
182 este ramo de comércio responderá a polícia por qualquer
• desordem provocada por indivíduos alcoolizados dentro
do estabelecimento.
Art. 3º O negociante não licenciado que vender ocultamente
cachaça ou outras bebidas alcoólicas será multado em
500$000 e, na reincidência em 1:000$000.
Art. 4º A licença será requerida à Prefeitura, devendo
instruir a petição um atestado do juiz de paz, ou
delegado da circunscrição, em que prove não ter dado no
estabelecimento desordem alguma. 344

Quatro edições após a publicação do referido Decreto, o jornal O


Cruzeiro do Sul divulgou nova matéria sobre o tema. Dessa vez o objeti-
vo foi informar que o intuito do prefeito do Departamento, ao tributar
pesadamente a venda de cachaça e outras bebidas alcoólicas, proibindo
inclusive suas comercializações em quantidade inferior a uma garrafa, não
tinha por objetivo criar uma nova fonte de renda, mas, visava, fundamen-

343 O Cruzeiro do Sul, 07 de abril de 1907, nº 39, ano II, p. 01.


344 O Cruzeiro do Sul, 07 de abril de 1907, nº 39, ano II, p. 01.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

talmente, “golpear um mal enraizado e altamente nocivo ao indivíduo e a


sociedade”.345
Cruzadas antialcoólicas também foram organizadas no Departa-
mento do Alto Acre. Em sua edição de nº 18, publicada no ano de 1911,
o jornal Folha do Acre anunciou a “alvissareira” ação desenvolvida pela
polícia do Território na cidade de Rio Branco, contra embriagados que
“praticavam impunemente abusos com flagrante ofensa à moral pública e
ao decoro social, atos que se repetiam à luz do dia, deixando seriamente
apreensiva e profundamente constrangida a população ordeira”.346
Mas nem todos concordaram com as medidas tomadas pelos pre-
feitos departamentais, como se observa em artigo publicado pelo Jornal
do Comércio, editado na cidade de Manaus, reproduzido pelo acreano O
Cruzeiro do Sul, em sua edição de nº 46, de 02 de junho de 1907. O texto,
que tinha por título “Comércio Prejudicado”, expressa a insatisfação dos
comerciantes amazonenses com as restrições impostas à venda e consu-
mo de bebidas alcoólicas nos Departamentos do Acre, ressaltando que as
183 proibições tinham caráter violento, traziam prejuízos para o comércio e
• ainda separavam os seringueiros de um de seus “poucos prazeres”:
Não desconhecemos que o alcoolismo é um dos males mais
funestos à vida interior da Amazônia. Mas, não é lícito nem
fica bem a um espírito lúcido, para refrear a vagabundagem
e o vandalismo, que têm a sua punição exata no nosso
Código, atacar a um dos ramos do comércio do interior e
que constitui no trabalho cruel e fatigante da goma elástica,
um elemento inseparável do seringueiro.347

Considerando, no entanto, o cenário relatado pelo já citado padre


Parrissier, os comerciantes de Manaus poderiam ficar tranquilos, pois a
possibilidade das medidas tomadas pelos prefeitos departamentais obte-
rem sucesso seria mínima. Utilizando os cearenses residentes no Território
como referência, o padre não economizou em ironias quando relatou, no
ano de 1897, o suposto apetite que tinham por cachaça. Segundo ele:

345 O Cruzeiro do Sul, 03 de maio de 1907, ano II, nº 43, p. 03.


346 Folha do Acre, 01 de janeiro de 1911, ano I, nº 18, p. 01.
347 O Cruzeiro do Sul, 02 de junho de 1927, ano II, nº 46, p. 01.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

O cearense, em particular, poderia ficar tranquilamente sem


comer desde que tivesse cachaça para beber à vontade. Ele
vende até sua última camisa para ter o que beber, e quando
ele não tem mais nada para vender ele venderá a si próprio,
o que o torna escravo até o fim de seus dias, mas ele tem
cachaça para beber!

Ressalte-se que não faltaram ameaças aos que consumiam aguar-


dente com maior avidez. Em uma noite, quando falava para moradores
da região do Juruá sobre Nossa Senhora de Lourdes, o religioso foi in-
terrompido por um dos participantes da conversa, que lhe questionou os
motivos da Virgem não aparecer entre eles, tendo Parrissier lhe dado a
seguinte explicação:
[...] não lhe perguntei, mas estou certo de que uma das
causas pelas quais a virgem não aparece aqui é que vocês
bebem cachaça demais e a Virgem não gosta de bêbados.
Vejam isso! E sobre a tela aparece um horrível quadro do
inferno. Isto aqui é para os bêbados, para os ladrões e para
184 outras pessoas desta espécie. 348 (PARRISIER, 2009, p. 14).

Os prefeitos e autoridades sanitárias do Território do Acre, na pri-
meira década do século XX, expressaram concepções parecidas, quando
abordaram os supostos impactos negativos que os hábitos alimentares e
o consumo excessivo de álcool causavam no organismo dos indivíduos.
Esses fatores foram utilizados para explicar o estado insalubre do Terri-
tório, caracterizado por intensos quadros mórbidos. Nas abordagens que
desenvolveram sobre as doenças que se manifestavam, em decorrência
da debilidade dos organismos, duas aparecem com maior frequência nos
relatórios das Prefeituras Departamentais e nas páginas dos periódicos
editados no Território, no período citado: o impaludismo e a varíola, trans-
formados em objetos de diversas intervenções desenvolvidas pelo poder
público, com o intuito de conter suas propagações.

348 Parrissier, Seis meses no país da borracha, 2009, p. 14.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

REFERÊNCIAS
Relatórios oficiais

CASTRO, José Plácido de. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Augusto
Tavares de Lyra, DD. Ministro da Justiça, por J. Plácido de Castro, Prefei-
to Interino – 1906 – 1907. In: CASTRO, Genesco de. O Estado independente
do Acre e J. Plácido de Castro: excertos históricos. Brasília: Senado Federal, 2005.
CHAGAS, Carlos. Aula Inaugural do Professor Carlos Chagas, no Pavilhão
Miguel Couto. Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Cadeira
de Medicina Tropical, 1926.
CRUZ, Oswaldo Gonçalves. Considerações Geraes sobre as Condições Sa-
nitárias do rio Madeira, pelo Dr. Oswaldo Gonçalves Cruz. Rio de Janeiro:
Papelaria Americana, 1910.
LYRA, Augusto Tavares de. Relatório apresentado pelo Ministro da Justiça e
Negócios Interiores, Augusto Tavares de Lyra, em março de 1908. Volume
I, Justiça Interior e Contabilidade.
MARIANO, Cândido José. Relatório do Prefeito do Alto Purus apresen-
tado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em 19 de agosto de
185 1905, pelo prefeito Cândido José Mariano. Anexo H.InBRAZIL. Ministério
• da Justiça e Negócios Interiores. Relatório apresentado ao presidente dos Esta-
dos Unidos do Brasil pelo ministro Dr. J. J. Seabra. Volume II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1905. Disponível em <http.crl.edu/edu/bsd/bsd/u1893/
contents.html>, acesso em 22de janeiro de 2009.
__________, Cândido José. Relatório do Prefeito do Alto Purus apresen-
tado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em 19 de agosto de
1906, pelo prefeito Cândido José Mariano. Anexo H.InBRAZIL. Ministério
da Justiça e Negócios Interiores. Relatório apresentado ao presidente dos Esta-
dos Unidos do Brasil pelo ministro Dr. J. J. Seabra. Volume II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1906. Disponível em <http.crl.edu/edu/bsd/bsd/u1893/
contents.html>, acesso em 22de janeiro de 2009.
__________, Cândido José. Relatório do Prefeito do Alto Purus apresen-
tado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Augusto Tavares de
Lyra, em 30 de janeiro de 1908, pelo prefeito Cândido José Mariano. Anexo
H.InBRAZIL. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Relatório apresentado
ao presidente dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro Dr. J. J. Seabra. Volume
II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908.Disponível em <http.crl.edu/edu/
bsd/bsd/u1893/contents.html>, acesso em 22de janeiro de 2009.

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

MATTOS, Raphael Augusto da Cunha. Relatório da Prefeitura do Departa-


mento do Alto Acre relativo ao período decorrido entre 18de agosto e 31
de dezembro de 1904. Anexo H. InBRAZIL. Ministério da Justiça e Negócios
Interiores. Relatório apresentado ao presidente dos Estados Unidos do Brazil
pelo ministro Dr. J. J. Seabra. Volume II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, mar-
ço de 1905. Disponível em <http.crl.edu/edu/bsd/bsd/u1893/contents.html>,
acesso em 22de janeiro de 2009.

Periódicos
O Cruzeiro do Sul, 04 de novembro de 1906, ano I, nº 17.
O Cruzeiro do Sul, 18 de junho de 1911, ano VI, nº 163.
O Cruzeiro do Sul, 03 de maio de 1907, ano II, nº 43.
O Cruzeiro do Sul, 10 de junho de 1906, ano I, nº 06.
O Alto Purus, 14 de março de 1909, ano II, nº 55.
O Cruzeiro do Sul, 07 de abril de 1907, ano II, nº 39.
O Cruzeiro do Sul, 03 de maio de 1907, ano II, nº 43.
Folha do Acre, 01 de janeiro de 1911, ano I, nº 18.
186 O Cruzeiro do Sul, 02 de junho de 1927, ano II, nº 46.

Bibliografia
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalha-
dores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas – SP: Editora da Uni-
camp, 2001.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços Epidemias na Corte Imperial.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CUNHA, Euclides. A margem da história. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 1999.
BEZERRA, Maria José. Invenções do Acre: de território a estado – um olhar
social. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2006. Dói: 1011606/T.8.2006.
tde-11072007-105457.
LIMA, Josias. Os prefeitos do Território do Acre: sua autopsia moral. Ma-
naus: Livraria e Typ. Universal, 1906.
LOUREIRO, José Souto. O Brazil Acreano. Manaus, Gráfica Lorena, 2004.
PARRISSIER, Jean-Baptiste. Seis meses no país da borracha, ou excursão
apostólica ao rio Juruá. In: CUNHA, Manoela Carneiro da.Tastevin, Parrissier:

Sumário
Sérgio Roberto Gomes de Souza

Fontes sobre índios e seringueiros do Alto Juruá. Rio de Janeiro: Museu do índio,
2009.
MEMMI, A. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
SCHWEICKARDT, Júlio César. As doenças tropicais e o Saneamento no
Estado do Amazonas, 1890, 1830. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011

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Sumário
SOBRE OS AUTORES

Nedy Bianca Medeiros Albuquerque


Doutora em História Pela Universidade de São Paulo e professora
da área de História da Universidade Federal do Acre.
Geovânia Corrêa Barros
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de Campina Grande.
Wladimyr Sena Araújo
Mestre em Antropologia Social e doutorando em História Social e
do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas.
Wlisses James de Farias Silva
Doutor em História pela Universidade de São Paulo e professor da
área de História da Universidade Federal do Acre.
Francisco Bento da Silva
Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e profes-
sor da área de História da Universidade Federal do Acre e do Programa de
Pós-Graduação em Letras: Linguagens e Identidade.
Daniel da Silva Klein
Doutor em História pela Universidade de São Paulo e professor da
área de História da Universidade Federal do Acre.
Sérgio Roberto Gomes de Souza

Teresa Almeida Cruz


Pós-Doutorada em História pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina e professora da área de História da Universidade Federal do Acre.
José Sávio da Costa Maia
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e professor da área de História da Universidade Federal do Acre.
Sérgio Roberto Gomes de Souza
Doutor em História pela Universidade de São Paulo e professor da
área de História da Universidade Federal do Acre.

189

Sumário
ISBN

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