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Vicente Themudo Lessa

J O Ã O C A LV I N O
(1509-1564)

SUA VIDA E SUA OBRA


À memória imperecível de seus estimados professores

Dr. John Rockwell Smith


Eduardo Carlos Pereira
e
Remigio de Cerqueira Leite

Homenagem do

AUTOR
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
EDITORA MONERGISMO
Brasília, DF, Brasil
Sítio: www.editoramonergismo.com.br

1a edição, 2010
Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto e Túlio Costa Leite

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lessa, Vicent Themudo


João Calvino: Sua Vida e Sua Obra / Vicente Themudo Lessa – Brasília, DF:
Editora Monergismo, 2010.
ISBN 978-85-62478-45-1
1. Calvino, João, 1509-1564 2. Reforma 3. História

CDD 230
Sumário

PREFÁCIO À EDIÇÃO DE 2010


AO LEITOR
CAPÍTULO I. SÍNTESE INTRODUTÓRIA
CAPÍTULO II. MOCIDADE DE CALVINO
CAPÍTULO III. EM PARIS
CAPÍTULO IV. NO SEMINÁRIO
CAPÍTULO V. NOVO RUMO
CAPÍTULO VI. DE NOVO EM PARIS
CAPÍTULO VII. CALVINO FUGITIVO
CAPÍTULO VIII. O ANO DOS CARTAZES
CAPÍTULO IX. AS INSTITUTAS
CAPÍTULO X. PEREGRINAÇÃO PELA ITÁLIA
CAPÍTULO XI. A CONQUISTA DE GENEBRA
CAPÍTULO XII. PRIMEIRA RESIDÊNCIA EM GENEBRA
CAPÍTULO XIII. BANIMENTO
CAPÍTULO XIV. EM ESTRASBURGO
CAPÍTULO XV. UM TRIÊNIO FECUNDO
CAPÍTULO XVI. GENEBRA NA AUSÊNCIA DE CALVINO
CAPÍTULO XVII. REGRESSO DE CALVINO
CAPÍTULO XVIII. TRABALHOS LITERÁRIOS DE CALVINO
CAPÍTULO XIX. EXPERIÊNCIAS DE CALVINO
CAPÍTULO XX. CONFLITOS E AMARGURAS
CAPÍTULO XXI. LUTAS DE CALVINO E DE GENEBRA
CAPÍTULO XXII. O CASO SERVETO – PRIMEIRA FASE
CAPÍTULO XXIII. AINDA O CASO SERVETO – SEGUNDA FASE
CAPÍTULO XXIV. O ESPÍRITO DE INTOLERÂNCIA
CAPÍTULO XXV. NA FRANÇA E NA INGLATERRA
CAPÍTULO XXVI. INFLUÊNCIA DE CALVINO
CAPÍTULO XXVII. NA FRANÇA E EM GENEBRA
CAPÍTULO XXVIII. O DOUTRINADOR
CAPÍTULO XXIX. CARÁTER E HÁBITOS DE CALVINO
CAPÍTULO XXX. ÚLTIMOS DIAS DE CALVINO
CAPÍTULO XXXI. CALÚNIAS A PROPÓSITO DA MORTE DO REFORMADOR
CAPÍTULO XXXII. CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA. OBRAS CONSULTADAS
SOBRE O AUTOR
PREFÁCIO À EDIÇÃO DE 2010

“… deixemos desfilar o varão que tornou insigne


o nome de Genebra”.[1]

Quando eu era estudante do curso secundário (curso “Clássico”, do colegial) em Rio


Claro, SP), fui incumbido de apresentar aos jovens da União da Mocidade Presbiteriana um
trabalho sobre João Calvino. Fiz pesquisa, escrevi um artigo e o apresentei numa reunião
da UMP.
Assim que terminou a reunião, um aluno ultimanista do Seminário de Campinas,
criado como eu na I. P. de Rio Claro, procurou-me com ar interrogativo, e me perguntou:
“Onde você encontrou tantos dados sobre a Reforma, principalmente sobre os precursores
da Reforma?” Eu lhe respondi: “Ali na biblioteca da UMP, no livro de Vicente Themudo[2]
Lessa”.
Realmente é de admirar quanta informação contém o livro que na edição que ora
tenho em mãos (da Casa Editora Presbiteriana, sem data), traz o título: Calvino, 1509-1564,
Sua Vida e Sua Obra.

O livro não é produto de novato, nem de livre-atirador, nem de alguém amarrado por
ideias fixas. É obra de um homem sério, honesto, equilibrado, criterioso e competente.
Ministro presbiteriano, aderiu ao movimento separatista de 1903, vindo a ser ministro da
Igreja Presbiteriana Independente. Sempre mostrou em seus escritos, muito citados, postura
nobre e pronunciamentos judiciosos. Na breve apresentação do autor feita na edição acima
referida, consta que Vicente Themudo Lessa foi “Sócio efetivo do Instituto Histórico de
São Paulo e correspondente dos Institutos Históricos de Pernambuco, Paraíba, Espírito
Santo e Santa Catarina”. Em sua palavra “Ao Leitor”, Lessa declara que traçou outros
“perfis” e produziu outros “estudos… sobre vultos e eventos da Reforma”. Recorreu a
fontes insuspeitas. Faz ele referência a numerosos personagens livre-pensadores e católicos
romanos que deixaram testemunhos positivos, elogiosos, sobre a pessoa e a obra de João
Calvino. A “Palavra ao Leitor” e a “Bibliografia” dão indícios claros desse fato. Vicente
Themudo Lessa fez grande contribuição à história do protestantismo em geral e do
presbiterianismo brasileiro. Haja vista sua monumental obra intitulada “Annaes da 1ª.
Egreja Presbyteriana de São Paulo (1863-1903), edição da 1ª. Egreja Presbyteriana
Independente de São Paulo, São Paulo, 1934”.
A obra de Lessa sobre João Calvino é abrangente: dá informações sobre os
antecedentes da Reforma (sobre o ambiente geral sócio-político-religioso, e sobre pré-
reformadores ou precursores da Reforma); não poupa informações sobre as várias fases da
preparação de Calvino, da infância em diante; registra uma relação das numerosas e
variadas obras escritas pelo Reformador, fazendo uso de uma classificação feita pelo
importante historiador Phillip Schaff; trata com proficiência do problema relacionado com
Serveto; dá o devido tratamento a calúnias sofridas pelo Reformador, reduzindo as críticas
à proporção correta; narra inspiradores e desafiadores fatos, dados, atos e atitudes de
Calvino nos dias que antecederam sua morte; e registra edificantes testemunhos de Calvino
e de outros que deixam para os pósteros um rastro de luz digno de ser seguido e um
estimulante exemplo para os cristãos em geral e para os pastores em particular.
Quem ainda não leu, leia a preciosa obra de Vicente Themudo Lessa, que a Editora
Monergismo em boa hora reedita. Não é a obra sobre um Reformador, ponto. É o relato
fidedigno de um fiel ministro do Evangelho do Senhor Jesus Cristo, apreciado pelos que o
conhecem, não só como importante teólogo, latinista, pai do francês moderno, prolífico
escritor, primoroso exegeta, mas também um fiel, visitador e amoroso pstor.

Rev. Odayr Olivetti


AO LEITOR

A Reforma do século XVI, foi, antes de tudo, um verdadeiro


despertamento religioso, que repercutiu até no seio da Igreja Romana
promovendo a Contra-Reforma e melhorando a condição moral do Papado,
fato este por todos reconhecido.
Lutero e Melanchton na Alemanha, Zuínglio e Calvino na Suíça e John
Knox na Escócia são tidos como os principais reformadores. Eram vultos de
cultura, humanistas e teólogos, homens de coragem, de ação e de fé, que
arriscaram suas vidas pelo ideal de uma Igreja firmada nos sãos princípios
do Cristianismo; homens piedosos e de moral austera, a despeito do zelo de
adversários, que tentam atrair sobre eles o ódio universal.
Um deles, João Calvino, é o objeto de nosso estudo neste ensaio,
trabalho que nos tomou mais de dois anos, devido a interrupções
continuadas. É um dos personagens mais notáveis do movimento religioso do
século XVI. Frases de admiração por ele tem sido colhidas não só no grêmio
do protestantismo como de livres pensadores e até mesmo de católicos
romanos – de pensadores, historiadores e críticos de vários países como
Scaligero, De Thou, Amyraut, Bossuet, Richard Simon, Pierre Bayle,
Montesquieu, Voltaire, Rousseau, D’Alembert, Guizot, Mignet, Michelet,
Martin, Renan, Dorner, Baxter, Farrar, etc.
Muito tem sido escrito sobre o chamado “Papa de Genebra”, sendo
não pequeno o número de biógrafos de feição benigna ou adversa. Em nossa
língua, porém, nenhuma obra foi publicada a seu respeito.
Forte entre nós é o prejuízo contra o teólogo francês. Para isso tem
concorrido em boa parte vários de nossos compêndios didáticos, que se
expendem em conceitos tendenciosos e pessimistas, não o poupando a crítica
parcial e impiedosa.
Como todos os mortais, teve Calvino os seus defeitos. Sua
personalidade, contudo, destaca-se de maneira relevante. Intelecto vigoroso,
escritor correto, teólogo emérito, filósofo austero, mestre esclarecido,
exegeta notável, seu caráter adquire aspecto empolgante em muitos
respeitos. Muitos o caluniaram, mas a crítica judiciosa tem reduzido a justas
proporções os argumentos produzidos. Isso tentaremos demonstrar no
decurso destas páginas.
Outros perfis temos traçado e estudos temos feito sobre vultos e
eventos da Reforma, que surgirão a seu tempo se a oportunidade o permitir.
Por enquanto deixemos desfilar o varão que tornou insigne o nome de
Genebra.
CAPÍTULO I. SÍNTESE INTRODUTÓRIA

O mundo no tempo de Calvino. Transformações efetuadas. Na segunda metade do


século XV. A Renascença. A imprensa. A Reforma, sua significação e seus
precursores. Na Inglaterra – Occam e Wycliffe. Na Boêmia – Huss, Jerônimo e os
hussitas. Na Itália – Arnaldo de Bréscia e Savonarola. Necessidade reconhecida de
uma reforma na Igreja. A crise do Papado e os concílios reformadores. Julio II e Leão
X. Lutero e a Reforma. A Contra-Reforma.

Quando Calvino apareceu não havia muito que o mundo despertara do


longo torpor da Idade Média.
Durante séculos pagara a humanidade oneroso tributo de lágrimas e
dores. Foram de opressão e tirania aqueles dias. Como escravo gemia o povo,
movido à voz do exator. A invasão dos bárbaros semeara a crueldade e
inundara de sangue a terra espezinhada.
Novos poderes se iam constituindo sobre as ruínas de passadas glórias
para logo se fragmentarem. Eram sonhos de ambição e guerras de conquista
em sucessão ininterrupta.
Em plena Idade Média surgiu o teuto Carlos Magno, a figura
culminante de todo aquele período, a cujo aceno o mundo pareceu acordar
por um momento. Guerreiro, legislador, administrador, deu braço forte à
Igreja e protegeu as letras. Seus sucessores porém não lhe herdaram as
qualidades varonis; o império se abismou em franca decadência. Adveio
então o feudalismo, que se tornou na Europa o regime social. Conservavam
os reis a dignidade apenas. O poder estava nas mãos dos bispos e barões
como senhores feudatários e, ao império político, sucedia o império
eclesiástico. Reis e príncipes curvavam-se ante o pontífice romano, que
organizava as cruzadas do Oriente e mantinha o prestígio mediante as
indulgências e as bulas de excomunhão. A ignorância dominava. As ciências
e as letras refugiavam-se nos claustros e nos gabinetes dos raros estudiosos.
Mesmo entre o clero, a classe privilegiada, era a instrução assaz restrita.
A Idade Média veio a ser igualmente uma época de fermentação. Na
onda opressora formou-se a resistência que ia elaborar a nova sociedade. O
fator germânico com suas fortes qualidades étnicas unia-se ao elemento latino
para gerar nos povos o sentimento de liberdade e de independência,
apanágios gloriosos do gênero humano.
A segunda metade do século que precedeu o nascimento de Calvino foi
o momento providencialmente determinado para o despertar das nações. Era
o arrebol de uma nova civilização. As hordas do Crescente, em avanço
decisivo, após décadas de ameaças e sobressaltos constantes, vingaram as
fronteiras bizantinas e Maomé II assentou-se, em 1453, no trono de
Constantino, o feliz propugnador da religião cristã. Largas consequências
sobrevieram daí. As grandes repúblicas comerciais da Itália, como Florença,
Gênova e Veneza, com os seus doges e gonfaloneiros, perderam o esplendor
com a supressão das escalas do Levante em poder dos otomanos. A
preponderância marítima e comercial passou então às nações ocidentais, que
desferiram largo surto. Era a época das grandes descobertas marítimas,
iniciadas aliás pela escola de Sagres. Vasco da Gama descobria o caminho
das Índias. Colombo oferecia às Espanhas o Novo Mundo. Cabral doava aos
portugueses o Brasil e os ingleses entravam na posse das terras árticas.
Fernão de Magalhães, pouco depois, efetuava a circunavegação do globo.
O comércio e a navegação tomavam grande impulso ante as novas
conquistas, sem embargo da opressão a que se iam submeter os povos
subjugados. Invenções como a da bússola e a da pólvora emprestavam
valioso concurso a nova situação que se esboçava.
Mas a invasão muçulmana não estimulou somente o comércio das
nações ocidentais. Elemento de maior valia na transformação da sociedade
foi a emigração dos sábios gregos, que trouxeram consigo preciosos tesouros
literários, nos velhos manuscritos gregos e latinos. Primeiramente buscavam
a Itália, de onde não havia desaparecido o pendor pelos estudos e pelas artes
clássicas. Buscavam as universidades, davam preleções e difundiam o amor
pelos antigos estudos. A corrente penetrou na França e na Alemanha, na
península hispânica e na Inglaterra, na Suíça e na Holanda. Era a renascença
das letras e das artes adormecidas nas longas trevas da idade medieval. E não
faltaram espíritos brilhantes na cultura do humanismo como Ariosto e
Machiavel, na Itália; Rabelais e Montaigne, na França; Reuchlin e
Melanchton, na Alemanha; Thomas More e Colet, na Inglaterra; Erasmo e
Zuínglio, na Suíça – para citar somente alguns.
Entre os papas que fizeram o papel de Mecenas, com o seu apoio ao
movimento das letras, citam-se Nicolau V, contemporâneo da revolução
bizantina, que estipendiava copistas, tradutores e colecionadores e acolhia em
Roma os sábios exilados; Júlio II, o papa belicoso; e Leão X, o brilhante
pontífice dos primeiros dias do século XVI, século ao qual foi legado o seu
nome. Em Florença, Cosme de Médicis e Lourenço, o Magnífico, fulguravam
também como patronos das artes; na Inglaterra, Henrique VIII e, na França,
Francisco I, eram outros tantos incentivadores do movimento clássico. Rafael
e Miguel Ângelo, Celini e Leonardo, Donatello, Bramante e Ticiano, Ribera e
Murilo, Rubens e Rembrandt, Holbein e Alberto Dürer, na pintura, na
escultura e na arquitetura elevaram os países em que nasceram, naqueles dias
de despertamento artístico e literário.
A Renascença vinha dar expansão à sede do saber na transmissão do
conhecimento dos antigos e no anseio de descobertas em outras direções. Por
um lado tendia a exaltar o cristianismo. O gosto pelos clássicos levava ao
estudo das sagradas letras nas línguas originais e na pesquisa dos ensinos dos
Santos Padres. Humanistas, como Reuchlin, implantavam o gosto pelo
hebraico, a língua do Antigo Testamento; Erasmo de Roterdã e Melanchton
conseguiam o mesmo em relação ao grego e ao Novo Testamento. Não foram
poucos os que, atraídos às fontes originais, tiveram uma melhor concepção do
valor da religião cristã em sua elevada espiritualidade, determinando isso
verdadeiras conversões.
Por outro lado, a tendência conduzia ao antigo pensamento grego e, na
Itália, a Renascença ostentou fortes laivos de paganismo, que se refletiram até
na brilhante sociedade de Júlio II e Leão X.
Outro fator, na transformação da sociedade contemporânea, viu-se na
descoberta da imprensa, pelo alemão Gutenberg, justamente na época em que
eram restaurados os estudos clássicos. Em 1455, segundo alguns, dois anos
depois da ascensão de Maomé II, era impresso o primeiro livro – a Bíblia –
digno realmente de figurar na primeira plana, como o Livro dos Livros que é.
O precioso invento divulgou-se em breve por toda a Europa civilizada. Só em
Veneza se abriram duzentos estabelecimentos tipográficos, entre os quais a
afamada tipografia Aldina.[3]
Intensificava-se a sede por tantos anos sopitada. Até então os
manuscritos, nas mãos dos copistas e encerrados nos mosteiros e nas
universidades, eram patrimônio dos raros privilegiados. A imprensa,
vulgarizando o saber, expunha as valiosas coleções ao alcance popular.
Com a Renascença, surgiu um movimento de mais alcance na evolução
social que se elaborava. Foi a Reforma religiosa que explodiu no primeiro
quartel do século XVI e da qual veio a ser Calvino figura preeminente.
Mas a Reforma teve os seus precursores como os tivera igualmente a
Renascença na Itália, na França, na Alemanha e em outros países, sendo
Petrarca e Bocácio do número destes pioneiros das letras. Não foi o
renascimento operado num momento como alguns o poderão supor. O
contato com os mestres bizantinos e a proteção dada às letras constituíram a
causa ocasional ou, melhor, a fase ascensional da Renascença.
Assim com a Reforma religiosa.
Era uma aspiração de longos séculos, um desejo de comunhão mais
íntima com Deus, um ideal abrigado nos corações piedosos. Tais pessoas
viam com tristeza a Igreja se afastar da simplicidade dos tempos apostólicos e
da espiritualidade dos dias primitivos.
A aliança com o império pagão marcou o início de semelhante
divergência. Acomodações fizeram-se para atrair os novos convertidos,
toleraram-se práticas do paganismo, adaptaram-se seus templos ao culto
cristão e assimilaram-se não poucos dos seus ritos. A Igreja mundanizou-se.
Os sacerdotes encheram-se de riquezas. A ambição do domínio de honras e
poderes foi caminho seguro para a retirada progressiva da espiritualidade
cristã. Um cerimonial pomposo fazia lembrar o paganismo em declínio. As
lutas entre o sacerdócio e o império, representados nos partidos guelfo e
gibelino, davam a Igreja uma atitude de facção política.
Nos longos séculos do período medieval faziam-se ouvir, a espaços,
vozes e protestos contra as irregularidades, inovações e abusos que
conspurcavam a religião, alteravam o dogma e chocavam as mentes piedosas.
As páginas da história eclesiástica registram estes protestos e
consignam estas notas tidas, por vezes, como desvios de ortodoxia, quando
não expressavam senão clamores da consciência magoada.
Ter, porém, a ousadia de erguer um protesto, era incidir na culpa de
heresia e incorrer nas penas rigorosas do poder eclesiástico.
Tal aconteceu, no quarto século, com Joviniano, monge milanês, que
insistia na necessidade de uma viva comunhão com Deus e condenava certas
práticas da Igreja, que tendiam ao formalismo. Foi excomungado e banido.
Não teve melhor fortuna o sacerdote gaulês Vigilâncio, seu contemporâneo,
que se opôs ao culto dos santos e das relíquias.
Cláudio, bispo de Turim, no século IX, ergueu sua voz contra as
inovações do culto cristão. Foi tido como o protestante do seu tempo.
Pedro de Bruys, do Languedoc, no século XII, foi outro a clamar
vivamente contra os abusos de doutrina. Foi levado às chamas pelo povo
excitado pelo clero. Deixou discípulos – os petrobrussianos. Do mesmo
modo, naqueles dias, Henrique, monge de Cluny, iniciou suas campanhas
missionárias contra os erros da Igreja. Foi atirado nas prisões e acabou ali a
existência. Seus adeptos tomaram o nome de henriquianos.
Movimento mais acentuado foi o dos valdenses, dos vales do
Piemonte, que vivem até os nossos dias. Pedro Valdo, rico negociante de
Lião, despojou-se das riquezas, como se deu pouco depois com Francisco de
Assis, traduziu a Bíblia para o vernáculo, fez-se evangelizador por
autorização de Alexandre III, a qual porém lhe foi logo retirada, sendo depois
tido como herege e excomungado em 1184 pelo Concílio de Verona. Pregava
a simplicidade primitiva do cristianismo. Os valdenses, seus discípulos,
seguiram-lhe os passos e filiaram-se ao grande cortejo dos que dissentiram do
rumo que a Igreja ia tomando. Pedro Valdo veio a ser o Francisco de Assis do
Protestantismo pelo ideal de pobreza que mantinha.
Os albigenses, exterminados pela Igreja no século XIII e tidos como
heréticos, eram acusados de rejeitar o purgatório, o culto dos santos e das
imagens, a missa, a confissão, as orações pelos mortos, o poder temporal dos
papas. Condenavam as riquezas do clero e os abusos da Igreja. Embora
tivessem traços de maniqueísmo, eram puros nos costumes.
Como os valdenses e albigenses, petrobrussianos e henriquianos, houve
outros movimentos espirituais, todos obedecendo à mesma corrente, mais ou
menos.
Tal foi o pietismo e também a obra dos místicos nos séculos XIV e
XV, Kempis e Tauler entre os quais. A Imitação de Cristo e a Teologia
Germânica elevavam a alma a Deus, despertando vivos sentimentos
religiosos.
Teólogos como Wessel, Goch e Wesel foram outros tantos arautos da
verdade evangélica.
Os franciscanos espirituais, os beguinos e begardos, os Irmãos da Vida
Comum – eram tendências na mesma direção.
Movimentos mais pronunciados surgiram em vários países. A
Inglaterra tivera em seu seio o Doctor Singularis et Invencibilis, Guilherme
de Occam (1280-1347), chefe dos nominalistas e membro notável da ordem
franciscana. Proclamou a soberania das Escrituras em matéria de fé e foi
excomungado. Suas obras exerceram grande influência sobre os reformadores
mais tarde.
Mais além foi Wycliffe (1324-1383), realista e platônico, cognominado
o Doctor Evangelicus, sacerdote inglês, doutor em teologia e professor da
universidade de Oxford. Defendeu os direitos da coroa contra as pretensões
papalinas. Escreveu a Pobreza de Cristo, livro em que punha em contraste a
riqueza das ordens religiosas com a pobreza do Salvador. Atacou os frades e
erros teológicos da Igreja, como a transubstanciação e as indulgências.
Traduziu a Bíblia para o inglês. Seus continuadores, os lolardos, semearam,
naqueles dias, a verdade evangélica na Inglaterra.
A posteridade fez justiça ao corajoso teólogo de Oxford, apelidando-o
de “Estrela d’Alva” da Reforma, mas o Concílio de Constança amaldiçoou
sua memória e determinou que seus ossos fossem exumados e reduzidos a
cinzas.
Os lolardos tiveram seguidores e, nas páginas do martirológio inglês,
figuram os nomes de Sawtre, Thorpe, Badby, Lord Cobham, e outros mais.
A Boêmia foi outro vasto campo de protestos contra os abusos
eclesiásticos.
Primeiro foi o monge agostinho Conrado de Waldhausen, pregador de
Viena, que atacou as indulgências, as ordens monásticas e a vida irregular do
clero. Depois veio Milicz, da Morávia, teólogo e jurista, vice-chanceler do
imperador Carlos IV. Abundou nos mesmos temas de Waldhausen e fundou
em Praga uma escola teológica para o estudo da Bíblia. A inquisição o
perseguiu e fê-lo terminar os dias no cárcere. Matias de Janov foi a terceira
testemunha. Fez-se exímio na ciência teológica em Praga e em Paris, donde o
seu apelido de Magister Parisiensis. Seus escritos exerceram profunda
influência. Advogava o sacerdócio universal dos fiéis, que veio a ser o
princípio fundamental da Reforma do século XVI.
Mas o grande herói nacional da Boêmia foi o tcheco John Huss (1369-
1415). Campeão religioso e político de sua terra, luminar do povo eslavo
como patriota e reformador. Seu nome é respeitado na sua prátia por todos,
indistintamente.
John Huss, como sacerdote católico, foi pregador na corte, confessor da
rainha e reitor da universidade de Praga. Remodelou a língua tcheca.
Como Wycliffe, é contado entre os precursores da Reforma e tido
como reformador. Seus princípios religiosos foram condenados pelo Concílio
de Constança, que o atirou às chamas sem a mínima piedade.
Um ano depois foi a vez do suplício do seu discípulo Jerônimo de
Praga (1365-1416), o Cavaleiro da Boêmia. A seguir, abriu-se o longo
período das guerras hussitas em que fulguraram os gênios de Zizka, o
guerreiro cego, e de Procópio, o Hércules da Boêmia.
O Concílio de Constança tratou igualmente da questão do cálice
eucarístico.
Antes mesmo de decidir a sorte de John Huss, o famoso concílio
determinou vedar aos leigos o uso da comunhão nas duas espécies – sub
utraque forma. O dogma da transubstanciação levara os Padres a temerem
alguma profanação na distribuição do cálice. Uma gota vertida no chão seria
grave irreverência.
Em defesa da retirada do cálice, valeram-se os teólogos da doutrina da
concomitantia, advogada pelo grande Tomás de Aquino, que sustentava
achar-se presente a pessoa inteira do Redentor em qualquer das partes dos
elementos, quer no pão, quer no vinho. Aquele, pois, que participa só do pão
ou hóstia, recebe o Cristo todo, tanto a carne como o sangue, na opinião do
Doctor Angelicus. Fazia-se, portanto, desnecessária a distribuição do cálice
aos leigos.
A proibição do cálice ao povo continua em voga na Igreja Romana até
os nossos dias. A Igreja Grega porém não participa de tal opinião e o mesmo
o faz a Igreja Protestante. A comunhão ou eucaristia, nestes dois ramos do
cristianismo, é distribuída nas duas espécies, de acordo com o ensino da
Bíblia e a prática da igreja católica até o Concílio de Constança.
A inovação adotada provocou a tremenda guerra hussita que se
prolongou por muitos anos e que vinha a ser mais um protesto contra uma
decisão tido como errônea, mas estabelecida pela igreja.
A Itália produziu também os seus reformadores e mártires como o povo
inglês e o povo eslavo. Arnaldo de Bréscia (1100-1155), eclesiástico italiano,
salientou-se como reformador religioso e político e denunciou as riquezas e
as demais irregularidades do clero, em confronto com a Igreja Apostólica. Foi
enforcado, sendo o cadáver entregue às chamas e as cinzas lançadas ao Tibre.
Ante a promessa de ser sagrado imperador pelo pontífice Adriano IV,
prestou-se Frederico Barbarroxa a mandar executar o agitador. Mais digno de
menção ainda é o dominicano Savonarola (1452-1498), outro famoso
agitador religioso na corte dos Médicis, cujos abusos ele profligava. Pleiteava
a favor da comunhão nas duas espécies, como o haviam feito os hussitas;
combatia o tráfico das indulgências, como Lutero e Zuínglio o fizeram
depois; negava a supremacia do papa e, em jatos de eloquência, descrevia os
erros da época. Alexandre VI tentou-o debalde com o chapéu de cardeal. Por
último foi impelido à fogueira, como Arnaldo, e suas cinzas foram levadas
pelo Arno. O sombrio Bórgia havia sentenciado: “É preciso que seja
exterminado ainda mesmo quando fosse um João Batista”.
Todas estas vozes de comunidades, seitas e indivíduos indicavam a
direção do vento – a necessidade de uma reforma na Igreja em profunda
derrocada.
“Reforma na cabeça e nos membros” – era o brado que se ouvia na
Europa cristã. Reis e príncipes uniam-se ao clamor. A situação do papado na
Idade Média era assaz desoladora. Qualquer tratado de História o dá a
conhecer. Homens sem a devida vocação religiosa ascendiam ao Trono
Pontifício – ambiciosos, profanos, viciosos, corruptos, perversos – uma
verdadeira execração, em suma. Assim foi na maior parte do século X, no
período da Pornocracia, como o denominam alguns historiadores, a época das
Teodoras e Marózias.
Nos séculos XIV e XV manifestou-se outra séria crise do papado.
Primeiro foi o chamado “Cativeiro Babilônico da Igreja” (1305-1377). A
sede pontifícia foi transferida para Avinhão, graças à política de Felipe, o
Belo, rei da França. Em seguida, registrou-se o “Cisma do Ocidente” (1378-
1449), em que dois e três sucessores de S. Pedro cingiam a tiara a um tempo,
anatematizando-se mutuamente. Era uma verdadeira anarquia eclesiástica.
Até as nações estavam eclesiasticamente divididas, uma sendo por um papa,
outras dando apoio a um dos pontífices rivais. Foram outros setenta anos de
amarguras.
Reuniram-se então os chamados Concílios Reformadores, para sanar as
irregularidades da Igreja.
Tomou assento, primeiramente, o Concílio reformador de Pisa (1409).
Foi seu empenho terminar o cisma, depondo os papas rivais – Gregório XII
de Roma e Benedito XIII de Avinhão – e elegendo Alexandre V em lugar de
ambos. O efeito foi nulo. Em vez de um, três papas reinaram – Alexandre e
os dois que haviam sido depostos.
Mas o eleito de Pisa, já septuagenário, morreu no ano seguinte em
Bolonha, envenenado, ao que se diz, por Baltazar Cossa, que cingiu a tiara
sob o nome de João XXIII, um dos papas de mais triste memória pela sua
vida desregrada, pelo que veio a ser deposto pelo Concílio de Constança.
Talvez, pelo seu viver abominável, desde então (e já se vão cinco séculos)
nenhum pontífice se resolveu a tomar o nome de João, o nome mais cotado
até hoje no pontificado.
Continuando a reinar três papas, reuniu-se novo concílio reformador, o
de Constança (1414-1418). Prevalecia, então, a teoria galicana, segundo a
qual o papa estava subordinado ao concílio geral. Contra João XXIII
apareceram cerca de setenta acusações, entre as quais as de envenenador,
simoníaco, adúltero, perjuro, incestuoso e cruel – em virtude do que foi
deposto do pontificado. Entrara na cidade imperial rodeado de fausto e de
grandeza e teve de fugir disfarçado em postilhão.
O Concílio tentou, de vez, encerrar o Cisma do Ocidente, depondo não
só João – o envenenador – como Gregório e Benedito, que continuavam a
reinar, a despeito da decisão de Pisa. Foi então eleito Martinho V, da
poderosa família dos Colonas, mas somente com a eleição de Nicolau V, em
1447, e a abdicação de Félix V, em 1449, é que o mal ficou sanado.
Estes concílios, denominados reformadores, pouco adiantaram ao fim
que tinham em vista. Os costumes desregrados e os abusos eclesiásticos se
fizeram ainda sentir. Ao raiar do século XVI – século bafejado pela
Renascença e pela Reforma – ocupava a cadeira de S. Pedro o famoso
Alexandre VI (1492-1503), de triste memória, que encheu a medida dos
papas abomináveis. Envenenador, incestuoso e dissoluto, abafou nas chamas
os protestos veementes de Savonarola contra o mal existente na Igreja nos
seus dias. Alguns o denominavam de Catilina dos Papas.
Júlio II (1503-1513) mal se interessou pela espiritualidade da Igreja.
Foi patrono das artes e das letras e pouco religioso. De índole belicosa, levou
a guerra à Itália e à França. Excomungou a Luiz XII, que promovera a
reunião de um concílio em Pisa para o suspender de suas funções (1512). Por
isso, o enérgico Júlio II reúne o Concílio de Latrão, que anula os atos de Pisa,
desliga os súditos de Luiz XII do juramento de obediência e incita Henrique
VIII contra a França.
Por fim reina Leão X (1513-1521). Ideias pagãs se haviam introduzido
na Itália com o espírito da Renascença, semeando o ceticismo em larga
escala. Era tal a impiedade reinante, que o 5º Concílio de Latrão (1512-1517)
se viu na contingência de reafirmar a doutrina da imortalidade da alma.
“Mesmo aqueles que acreditavam no ensino da Igreja encaravam os heróis da
antiguidade pagã como modelos de virtude e tesouros de sabedoria,
igualando-os, senão elevando-os acima dos profetas e apóstolos”.[4]
Erasmo de Roterdã fizera rir a Europa com sua temível sátira O Elogio
da Loucura, em que lançava o ridículo sobre os frades. Por outro lado, com a
sua tradução grega do Novo Testamento (1516), estimulava a muitos no
estudo das sagradas letras, levando-os ao confronto do ensino da Igreja com
as doutrinas do cristianismo primitivo. Foi um dos propulsores da Reforma,
mas não chegou a adotá-la pelo seu conhecido apego ao comodismo. Leão X,
rodeado de seu cortejo brilhante de artistas e letrados, pouco se incomodava
com a decadência espiritual de seus dias. Querendo levar a termo a
construção da famosa basílica de S. Pedro, deu grande impulso ao
escandaloso comércio das indulgências, de que o exemplo mais curioso foi
visto na missão do dominicano Tetzel. O frade alemão percorria as
populações pondo em almoeda as bênçãos celestiais.
Se porventura, apregoava o monge, houvesse alguma pessoa tão ousada
que tivesse atentado contra a pureza da Virgem Maria – a nódoa de tal pecado
desaparecia com a aquisição de uma das famosas indulgências. Tal hipérbole
o frade a empregava a título somente de encarecer o valor da mercadoria.
Foi a desfaçatez do frade dominicano que provocou a resistência de
Martinho Lutero. O frade agostinho não saiu a campo estimulado pelo ciúme
por haver sido preterida a sua ordem no rendoso negócio das indulgências.
Isso tem sido afirmado levianamente por certos escritores apaixonados ou
tendenciosos.
A luta espiritual de Lutero datava de alguns anos. Debalde procurara
libertar-se de suas culpas, seguindo o caminho estreito das penitências. O
geral de sua ordem, o piedoso Staupitz, encaminhara-o aos pés de Cristo e ao
exame das Escrituras. A sua consciência esclarecida pela verdade bíblica –
que leva a confiar somente no sangue de Cristo para a justificação do pecador
– é que o induziu a lançar o protesto contra a blasfêmia de Tetzel quando
anunciava a remissão das culpas a preço de indulgências, invalidando por
esta forma o sacrifício do Calvário.
Viu-se, então, a 31 de outubro de 1517, na afixação das célebres teses à
porta da catedral de Wittenberg, o início do movimento reformador que, em
1529, em Spira, tomou o nome histórico de Protestantismo.
E enquanto o monge Lutero acendia na Alemanha o facho da Reforma,
simultaneamente o cura Zuínglio, teólogo e humanista, fazia o mesmo na
Suíça alemã, ignorando o que se passava no país vizinho.
Foi apenas o começo.
Na Alemanha, formaram, ao lado de Lutero, o sábio Melanchton,
Justus Jonas, Spalatino, Brentz, Capito, Bugenhagen, Bucer e tantos outros;
na França, Le Fèvre, Olivétan, Viret, Farel, Calvino, Beza – alguns dos quais
se transferem depois para a Suíça; na Inglaterra, Cranmer, Fisher, Latimer,
Tyndale, Ridley; na Escócia, John Knox; na Suíça, Zuínglio, Ecolampádio,
Bullinger e os reformadores franceses. Na Holanda, na Polônia, na Hungria,
na Escandinávia, na Itália, na Espanha – por toda a Europa em suma – o
movimento teve repercussão, larga em alguns países, restrita em outros.
Mesmo em Portugal o diplomata e historiador Damião de Góis, amigo de
Erasmo, Lutero e Melanchton, teve de ajustar contas com o Tribunal do
Santo Ofício.
Leão X, que a princípio imaginara ser aquilo apenas uma contenda de
frades, expediu por fim a bula de excomunhão contra o monge da Alemanha.
Roma arregimentou-se e provocou a Contra-Reforma.
O Concílio de Trento (1545-1563) assestou-se as suas baterias,
definindo de novo o credo e equiparando à Bíblia a Tradição como seguro
recurso para consolidar as novas doutrinas impugnadas pela Reforma. A
disciplinada milícia da Companhia de Jesus, organizada naqueles dias,
prestou ao trono de Roma os mais assinalados serviços. Acenderam-se as
fogueiras da Inquisição. Guerra de extermínio foi decretada contra a Reforma
do século XVI.
Ao aceno do Pontífice, moveu-se o braço secular. Reis e príncipes
acudiram ao urgente chamamento. O sangue dos mártires correu em
profusão.
Carlos V e Fernando I são súditos fiéis do Papa, que procuram debalde
entravar o movimento reformador na Alemanha. Filipe II transforma os
Países Baixos em um vale de lágrimas e de sangue, e sufoca nos autos de fé
os dissidentes da Espanha. Francisco I, Catarina de Médicis e seus filhos,
nomeadamente o fanático Carlos IX, iniciam a longa série de guerras
religiosas na França, que tem a sua culminância no massacre dos huguenotes,
na noite de S. Bartolomeu, que abate cem mil vítimas e acende luminárias em
Roma.
Na Inglaterra, Henrique VIII – o “Defensor da Fé”, segundo Leão X –
revolta-se não só contra o Papa, mas contra a Reforma; e se eliminam
católicos como Thomas More, que se não submetem ao seu despotismo,
extermina em maior número protestantes que não aceitam seus Artigos
baseados no credo de Roma. Sua filha Maria, a Sanguinária, digna esposa do
sombrio Filipe II, o Demônio do Meio-Dia, assiste, sem vacilar, ao crepitar
das fogueiras da Inglaterra contra os que se insurgem ante as doutrinas
divergentes de Roma.
A Reforma foi transmissora de muitos serviços à sociedade de seu
tempo. A própria igreja romana revestiu-se de maior compostura desde então.
Houve mais cuidado na escolha dos papas e a cadeira de Roma não foi mais
conspurcada pela eleição de pontífices indesejáveis como João X, João XXIII
e Alexandre VI.
Esta sintética exposição nos conduz ao tempo de Calvino, cuja
personalidade e cuja obra vão ser agora destacadas.
CAPÍTULO II. MOCIDADE DE CALVINO
Nascimento e origem. Sua família. Primeiros estudos em Noyon. Benefícios
eclesiásticos auferidos.

O reformador francês, João Calvino, teve o seu berço na cidade de


Noyon, Picardia, aos 10 de julho de 1509.
Era Noyon cidade episcopal, povoada de igrejas e conventos e onde
padres e frades moviam-se em plena liberdade. Por isso a denominavam de
Noyon – a “Santa”.
Sua mãe, Joana Lefranc, de Cambrai, de família burguesa, distinguia-se
pela formosura e, sobretudo, por uma verdadeira piedade. Timóteo,
Agostinho, Crisóstomo, Gregório Nazianzeno, Wesley e muitos outros
homens da Igreja tiveram igualmente a ventura de possuir mães piedosas, que
souberam incutir fervorosos estímulos nos seus espíritos jovens. E assim
Loides e Eunices, Mônicas, Antusas, Nonas, Joanas e Suzanas têm sido
portadoras de bênçãos para a Igreja de todos os tempos.
Era o nome do seu pai Geraldo Chauvin, que se pronuncia Cauvin no
dialeto picardo, conforme anota Ferdinand Rossignol no seu livro Les
Protestants ilustres (Paris, 1862). O nome Calvino, usado pelo reformador,
era a forma derivada do latim Calvinus. Também usou algumas vezes do
anagrama Alcuino.
A família era de origem normanda. Os ascendentes haviam sido
barqueiros do Oise. O avô de Calvino fora tanoeiro em Pont-l’Evêque.
Geraldo distinguia-se pelo tom austero, característico que se refletiu no
seu ilustre filho. Não seguiu a humilde profissão de seus maiores no Oise.
Teve a sorte de entrar na burguesia. Fez-se íntimo com as melhores famílias.
Conseguiu a nomeação de notário apostólico, passando em seguida a notário
e promotor do cabido, procurador-fiscal do condado e secretário do bispo
Charles de Hangest, que o tratava com muitas atenções. Veio a ser, como diz
Lefranc, uma espécie de factotum do clero em Noyon. A acumulação de
cargos porém era mais honrosa do que lucrativa. Nem por viver adstrito à
Igreja, perdeu o característico de independência que o qualificou. Mais tarde
rompeu com o cabido de Noyon.
Geraldo tornou-se pai de quatro filhos – Carlos, João (Calvino),
Antônio e Francisco, além de duas filhas, uma por nome Maria e outra, que
se consorciou em Noyon e cujo nome se ignora. Supõe-se que esta
permaneceu fiel à igreja romana. Francisco morreu na infância. Maria e
Antônio mais tarde foram se reunir a Calvino, em Genebra. Carlos, o
primogênito, seguiu a carreira eclesiástica e morreu moço, em 1537, sendo
excluído da comunhão da igreja em 1531, por questões de disciplina e de
doutrina. Foi-lhe negada sepultura em terreno sagrado, sendo inumado no
local em que os condenados eram levados à força. Fora capelão da catedral e
cura de Roupy.
Drelincourt, que escreveu, em 1667, em Genebra, uma defesa contra
acusações atiradas a Calvino, estuda também a situação de Carlos, irmão do
reformador. Acha que recebeu ele alguns lampejos da verdade evangélica,
embora não tivesse tido a coragem de fazer abertamente uma profissão de fé,
como seu irmão João. No fato de haver Carlos recusado o sacramento à hora
extrema, ele via não um sinal de impiedade, antes entendia ser fruto do seu
testemunho em discordar do ensino doutrinário da Igreja sobre aquele ponto.
Guizet, no seu livro sobre S. Luís e Calvino, é mais rigoroso que
Drelincourt e parece concordar com aqueles que mantinham a opinião de
haver o sacerdote morrido na impiedade. Pensa ser um grande erro classificá-
lo entre os protestantes. A. Bossert, no seu livro sobre Calvino (Paris, 1906),
mostra-se favorável ao acusado. Julga contudo que não passava de um
revoltado contra a Igreja.
Antônio seguiu também a carreira eclesiástica e foi capelão em
Tournerolle e mais tarde em Traversy. Depois abraçou a fé evangélica com
sua irmã Maria. Fez-se livreiro em Genebra e veio a ser membro do Conselho
dos Duzentos (1558), como do Conselho dos Sessenta (1570). Faleceu em
1573. Ele e seus cinco filhos vieram a ser os herdeiros dos parcos bens do
reformador.
Calvino fez seus primeiros estudos em Noyon com seus irmãos Carlos
e Antônio. A carreira eclesiástica era julgada ser a mais apropriada para se
galgarem, por meio dela, os elevados degraus da escala social. Geraldo
ambicionava alta posição para a família, ele que já subira acima dos seus
antepassados na sociedade em que vivia. A índole piedosa de Joana, que
desejava consagrar seus filhos ao Senhor, vinha favorecer os arrojados planos
de seu marido. Por isso Carlos e João foram consagrados ao serviço da Igreja.
Antônio se lhes uniu também.
Calvino acompanhava sua mãe às procissões e visitava as relíquias,
recebendo assim o ensino da Igreja a que estava incorporado.
Como estudante se avantajava aos seus companheiros. De compleição
débil, feição pálida, organismo delicado, era o seu rosto iluminado por aquele
olhar brilhante que sempre o distinguia e determinava a vivacidade de sua
inteligência e a firmeza de seu caráter.
Jacques Desmay, doutor da Sorbona, que escreveu sobre Calvino as
suas Remarques, faz alusão ao belo espírito do estudante, à prontidão natural
em conceber ideias e à mente engenhosa no estudo das letras.
Como o estudo do colégio fosse insuficiente, obteve Geraldo, graças às
suas boas relações, que o menino participasse de lições particulares que eram
ministradas por um hábil preceptor aos filhos do senhor de Montmor, fidalgo
aparentado com o bispo Carlos de Hangest.
Calvino não se esqueceu dos serviços que lhe prestaram os Montmors,
em cujo seio recebeu educação clássica e adquiriu maneiras polidas e certo ar
aristocrático. Seu primeiro livro, Comentário sobre Sêneca, foi dedicado a
um dos seus nobres condiscípulos, Cláudio de Hangest, abade de St. Eloi. A
dedicatória assim expressava: “Educado como filho em vossa casa, dedicado
aos mesmos estudos, a primeira instrução que recebi foi derivada de vossa
nobre família”.
Contudo, a instrução recebida em casa do fidalgo pelo jovem Calvino
não o era inteiramente a título de favor, que veio a consistir somente na
privança com a digna família e no preceptor comum. Observa Teodoro de
Beza, na sua Vida de Calvino, que o menino, embora pensionista na casa dos
Montmors, tinha as despesas satisfeitas por seu pai.
Como se destinava à profissão sacerdotal, Geraldo obteve para ele um
benefício eclesiástico. Informa Desmay, em suas pesquisas nos registros de
Noyon, que João Calvino conseguiu uma porção de renda da capela de La
Gesine, consagrada à Virgem e estabelecida na catedral de Noyon. Calvino
tinha apenas doze anos (1521) ao ser nomeado capelão pelo bispo, que lhe
aplicou a tonsura na véspera do Corpus Christi, tornando-se assim, pelo ato
simbólico, membro do clero, embora não viesse a possuir todas as ordens
sacerdotais, limitando-se apenas à da tonsura, a única que recebeu na igreja
romana. Para auferir os lucros do benefício eclesiástico, teria Calvino de
celebrar missas na sua capela. Não tendo, porém, plenas ordens sacerdotais,
via-se obrigado a remunerar o celebrante que fizesse as suas vezes.
Aos dezoito anos (1527) recebeu outro encargo eclesiástico, o curato
de S. Martinho de Marteville. Em 1529 resignou a primeira capelania em
favor de seu irmão mais novo e trocou o benefício de Marteville pelo de
Pont-l’Evêque, terra de seu progenitor. Em 1534, ao sair da França, abriu
mão deste último benefício.
Em Pont-l’Evêque, chegou a pregar algumas vezes, mas não ministrou
os sacramentos pelo motivo acima dito, de possuir somente ordens de
tonsura.
Estes dois encargos eclesiásticos, que lhes foram alcançados por seu
pai, tinham um fim em vista, que era a obtenção de recursos para prosseguir
nos estudos.
Aos que censuram Calvino por haver alcançado, tão moço ainda,
encargos eclesiásticos é conveniente lembrar que tal era a praxe da Igreja
naquela época. Odet de Chatillon foi cardeal aos dezesseis anos; João XI,
filho do papa Sérgio III e da célebre Marosia, foi eleito aos vinte e cinco para
a cadeira de S. Pedro; João XVII, neto da famosa cortesã, fez-se eleger papa
aos dezoito anos; Leão X, o papa reinante no momento de explodir a
Reforma, fora criado arcebispo de Aix aos cinco anos e cardeal aos dezesseis.
São estes alguns espécimens apenas. Os benefícios eclesiásticos
auferidos por Calvino, aos doze anos e aos dezoito anos, nada eram em
comparação com os fatos acima alegados.
CAPÍTULO III. EM PARIS

Motivo da retirada de Noyon. Acusação sem fundamento de Bolsec sobre a mocidade


licenciosa de Calvino e o estigma da flor de lis. Observações de Schaff. Reflexões de
Doumergue sobre o mesmo assunto e autoridades por eles invocadas. Tirocínio de
Calvino no colégio de La Marche em Paris. Sua posição entre os criadores da língua
francesa. Papel semelhante de Wycliffe na Inglaterra e de Lutero na Alemanha.
Outros testemunhos sobre Calvino como literato.

No ano de 1523 irrompeu a peste em Noyon. Flagelo semelhante


espalhava o terror e muitos apressavam-se a fugir dos lugares assolados. Tal
se verificou em Noyon quando vários membros do Capítulo da Catedral
solicitaram permissão para se ausentarem da cidade.
Geraldo, que antevia para seu filho um futuro brilhante, temeu pela
sorte do menino e enviou uma petição ao Capítulo, requerendo licença para o
jovem capelão de La Gesine sair de Noyon, enquanto durasse o flagelo, indo
para onde melhor lhe parecesse, sem que por isso viesse a ser prejudicado no
benefício eclesiástico que lhe fora conferido.
Tanto Desmay, nas suas Remarques sur la vie de Jean Calvin tirées des
Registres de Noyon, lieu de sa naissance, (Rouen, 1621), como Jacques Le
Vasseur, nos Annales de l’église cathedrale de Noyon, (p. 1160), fazem
referência a este fato. A citação é de J. A. Wylie (History of Protestantism,
vol. II, p. 147).
Ambos são insuspeitos, visto como eram hostis ao reformador.
Devido à posição que ocupou, não faltaram adversários que
procurassem, em seus livros, deturpar a memória de Calvino e muitas das
calúnias então formuladas ainda são hoje invocadas pelos partidários de
credos contrários.
Uma delas consistia em mostrar o desamor de Calvino para com suas
ovelhas, abandonando o rebanho por causa da peste. Esqueceram-se, porém,
de notar que o capelão era um menino de quatorze anos apenas, sem
responsabilidades, um tímido estudante, ainda impossibilitado de exercer as
funções de seu ofício sacerdotal.
O mesmo Le Vasseur dos Annales, chama a atenção ao fato, sem
dúvida pueril, do aparecimento de um enxame de moscas por ocasião do
nascimento do menino – “presságio indubitável de que um dia seria ele
maldizente e caluniador” (!).
Acusação mais grave foi produzida por Bolsec, frade carmelita francês,
que depois deixou o hábito, estudou medicina, abraçou a Reforma, e mais
tarde rompeu com Calvino e foi banido em virtude de seus erros teológicos.
Voltou então à igreja romana. Para satisfazer sua vingança e ajudar ao mesmo
tempo ao clero de Lyão, publicou uma vida de Calvino em 1577, treze anos
depois da morte deste. Escreveu igualmente, em 1585, uma biografia de
Teodoro de Beza. Em ambas deixa extravasar o fel de sua amargura contra os
dois reformadores. É um tecido de calúnias e escândalos que tem merecido a
justa repulsa da crítica desapaixonada. Todavia tem sido tais obras reeditadas
e citadas malevolamente por adversários encarniçados. Calvino é por ele
assim descrito: “um homem que se destacou acima de quantos viveram neste
mundo como ambicioso, impudente, arrogante, cruel, malicioso, vingativo e
ignorante”.[5]
Foi o ex-carmelita o autor da vil calúnia de haver sido Calvino
surpreendido e convencido do pecado de sodomia, estando a pique de perecer
na fogueira, que fora a pena comum de tal crime, se não fora a piedade do
bispo de Noyon, que comutou a sentença. Foi então marcado com a “flor de
liz” nas espáduas, a ferro em brasa, vendo-se obrigado a fugir de sua terra
cheio de vergonha e confusão.[6]
Referindo o caso, o erudito historiador eclesiástico Dr. Ph. Schaff, no
seu 1º vol. da The Swiss Reformation, (p. 303) observa não haver Bolsec
produzido nenhum documento comprobativo de sua terrível acusação,
limitando-se a dizer que o secretário do Concílio de Genebra, Berthelier,
tendo ido a Noyon fazer indagações sobre a mocidade de Calvino, viu lá
documentos que atestavam tal desgraça.
A história da “flor de lis”, reproduzida até os nossos dias, não resiste a
uma crítica severa. Kampschulte, escritor católico, citado por Schaff,[7]
considera-a indigna de refutação. Drelincourt, pastor em Charenton, publicou
em 1667, em Genebra uma obra: La defense de Calvin contre l’outrage fait à
sa memoire, em que refuta o tratado póstumo do Cardeal de Richelieu, o qual
renova as acusações de Bolsec. É obra considerada de valor, a do pastor
Charenton.
Como Bolsec e Richelieu, V. Audin escreveu sobre Calvino (1841)
obra em dois volumes, também cheia de amargura, “um Bolsec redivivo”. No
mesmo espírito, publicou ele a história de Lutero em três volumes (1839).
Observa Schaff que a obra de Audin é rejeitada e virtualmente refutada por
católicos desapaixonados, como Kampschulte, Cornelius e Funk.
Fruto do mesmo espírito sectário, vem a ser o mito do suicídio de
Lutero, revivido em 1890 por Majunke e Honef, sacerdotes católicos.
Ainda sobre as intrigas de Bolsec, ouçamos um trecho de Schaff à
página citada: “A história ou é uma vil calúnia ou se originou de confundir-se
o reformador com um jovem de igual nome – Jean Cauvin – capelão da
mesma igreja de Noyon, o qual parece haver sido punido por alguma
imoralidade de espécie diferente – “pour avoir retenue en sa maison une
femme de mauvais gouvernement” – no ano de 1550, isto é, cerca de vinte
anos mais tarde, e que não havia sido herético, mas faleceu como “bom
católico”, como o assegura Le Vasseur (Annales de Noyon), p. 1170, citado
por Lefranc, “Jeunesse de Calvin” (p. 182).
Outras invenções também circularam sobre Calvino, como, por
exemplo: “a de ter ele nascido de uma concubina de um sacerdote”, que
“tinha o hábito de glutonaria”, que “em Orleans furtara um copo de prata”.[8]
A retidão de sua vida é a refutação de tudo isso.
Irrisória é a declaração de Bolsec, em seu tendencioso livro, quando
afirma, deslavadamente, que Calvino era “sobretudo ignorante”. Laingey, que
traduziu para o latim a obra malsinada, comentando-a, assim parafraseia o
antigo carmelita, dizendo de Calvino tais barbaridades: “Este monstro tinha
apenas provado a gramática na ponta dos lábios” (?). Analisando a acusação,
o competente E. Doumergue registrou: “Evidentemente, quando se chega a
tratar Calvino de ignorante, pode-se muito bem chamá-lo de sodomita. Um
não é mais falso do que o outro e os dois qualificativos permitem igualmente
demonstrar a impudência inepta dos caluniadores”.[9] Cita também o pseudo
protestante Galiffe, que rende homenagem a Bolsec, mas que sobre o caso do
ferro em brasa assim se pronuncia: “Quanto ao que se afirma de suas
aventuras em Noyon, nada sei absolutamente e, conseguintemente, não as
quero admitir nem negar”. Referindo-se ao sacerdote Desmay e ao cônego Le
Vasseur, já citados, analistas de Noyon, sobre a existência de dois indivíduos
naquela cidade com o mesmo nome – um o herege João Calvino, outro o
sacerdote João Calvino – assim observa: “No ano de 1550 havia nos mesmos
registros uma outra sentença de condenação contra um capelão vigário que
tinha o mesmo nome – Jean Calvin. Este segundo João Calvino tinha
introduzido em sua paróquia uma mulher de maus costumes e havia sido
condenado a ser fustigado com varas na prisão”.[10] Diz Doumergue que
facilmente se confundiram as duas entidades. E caridosamente atribuíram a
Calvino as aventuras do sacerdote seu homônimo. A mesma observação
sobre os dois homens faz Le Vasseur, dando porém graças a Deus “por não
haver o sacerdote Calvino mudado de religião a despeito de sua vida
libertina”.[11]
Conta ainda Doumergue existir na Alemanha uma biblioteca de origem
católica destinada a continuar a obra de Janssen, o historiador que mais
atacou a Reforma alemã, sendo sua história a última palavra da ciência
ultramontana mais apaixonada. Os trabalhos de explicação e complemento
foram postos sob a direção de L. Pastor, muito conhecido em sua
especialidade. Cada seção particular é confiada a um douto ultramontano,
sendo o primeiro fascículo publicado em 1898, pelo Dr. N. Paulus, que
escreveu sobre a morte de Lutero, afirmando não serem dignos de crédito os
rumores sobre o suicídio do antigo monge alemão. Paulus não dá crédito às
acusações sobre a mocidade de Calvino em Noyon, como o fazem também
Kampschulte, Lefranc e P. Masson. Finalmente, nas páginas aludidas, E.
Doumergue cita um artigo de uma revista dos padres jesuítas, fundada em
1898, o qual deixa bem claro nada haver digno de confiança nas acusações
contra Calvino, crendo o articulista originar-se tudo na confusão resultante da
coincidência curiosa da existência dos dois Calvinos de Noyon, um dos quais,
“o padre capelão da Catedral, incorreu em várias condenações por
imoralidade, sendo fustigado com varas sob a custódia do Capítulo, e
finalmente vindo a morrer…”.[12]
Como ficou estabelecido no começo deste capítulo, o flagelo da peste é
que afastou Calvino da sua Noyon. Era um fiel súdito da igreja romana,
adstrito a todas as práticas de sua igreja, e que ia, em outro meio, prosseguir
nos seus estudos tendo diante dos olhos a carreira sacerdotal. Não era, pois,
um adolescente cheio de vícios, assinalado com estigma infamante, tendo
apenas quatorze anos de idade. Levava consigo a licença ou permissão do
Capítulo da Catedral. Masson, Kampschulte, Paulus e a revista dos jesuítas
de França – conforme citamos – são pela inocência de Calvino.
Em Noyon, cursara as aulas do College des Capettes, assim chamado
devido às mantas (capas) usadas pelos escolares. Agora é Paris o centro dos
seus estudos. Vai em companhia dos jovens Montmors, que também se
dirigem à capital da França com o mesmo intuito. Um deles, Cláudio, é o
futuro abade de St. Eloi, a quem Calvino dedicará, mais tarde, seu primeiro
livro, o Comentário sobre o livro de Sêneca – De Clementia – conforme foi
mencionado no CAPÍTULO precedente.
Foi isso em agosto de 1523. Calvino entregou-se, com afinco, aos
estudos no acreditado colégio de La Marche. Teve a sorte de encontrar, entre
os professores, o erudito Maturin Cordier, pedagogo por índole, latinista e
retórico. Uma simpatia mútua ligou o professor de cinquenta anos ao
discípulo de quatorze. Aquele jovem de feições pálidas – diz um historiador
–, de pequena estatura, mas de olhar penetrante e face inteligente, não podia
deixar de prender a atenção do mestre experimentado. Nas horas de recreio, o
menino deixava os condiscípulos para buscar a companhia proveitosa do
preceptor.
Maturin era distinto humanista e soube com rara perícia infundir, no
estudante picardo, o amor pela Renascença, pelo que veio a se tornar familiar
de Cícero e dos bons autores de literatura de Roma. Com o douto mestre,
aprendeu a pensar e a escrever e latim.
O conhecimento dos clássicos despertou no mancebo o gosto pelo
cultivo da própria língua nativa. Daí o vir a ser Calvino considerado entre os
principais escritores franceses do seu tempo.
Cícero serviu-lhe de modelo, diz Bungener no seu livro Calvin, sa vie,
son oeuvre et ses écrits. O grande orador romano era, no entender dele, o
melhor mestre para quem se quisesse fazer ouvir na França. “Montaigne
também o sentiu, porém mais tarde; ele achou a língua francesa já dotada,
graças à perícia de Calvino, de tudo quanto este moço estudioso havia tirado
de Cícero – exatidão, sabedoria, harmonia no ouvido e no espírito. O
estudante de dezesseis anos não exigia, provavelmente, ainda de Cícero senão
aquele belo latim que se admira nas suas primeiras obras; mas cedo se
concluiria que, estudar assim o latim, era estudar ou antes criar o francês.
Quando uma língua chegou ao ponto da nossa, então todo o homem de gênio
é alistado, sábio ou não, entre os obreiros que nela trabalham. Calvino foi o
grande obreiro desta metade do século e o próprio Bossuet confirmou-lhe a
posse de glória. “Lutero, diz este, conseguiu seus triunfos de viva voz; porém
a pena de Calvino é mais correta … Um e outro eram inexcedíveis em falar a
língua de seu país”. O século XVI – continua Bungener – já lhe havia feito
plena justiça, mesmo pela boca de seus inimigos. Étienne Pasquier afirmou:
“Calvino era bom escritor, ao qual nossa língua muito deve”. Nenhum
daqueles que o ultrapassaram, diz Raemond, o excederam em escrever bem, e
poucos, desde então, têm-se aproximado daquela beleza e facilidade de
linguagem que ele possuía.[13]
Aliás, os reformadores prestaram excelentes serviços à linguagem do
respectivo país, numa época em que a estrutura da língua não estava ainda
bem estabelecida.
A respeito da tradução da Bíblia de Lutero, assim se expressa Lindsay
no seu livro A Reforma, (p. 19): “O alemão, antes do tempo de Lutero, assim
como o inglês antes de Chaucer, era um agregado de dialetos; e, de fato, a
Bíblia de Lutero é que fez a língua alemã, pois que tem servido desde então
como que de modelo e o seu estilo tem sido imitado por todos os autores
alemães; a prosa foi, portanto, tornando-se gradualmente uniforme, os
dialetos foram ficando para trás e a linguagem adquiriu uma unidade que
resistiu àquela onda de separação que passou depois por toda a Alemanha”.
A propósito de Wycliffe, ouçamos J. A. Wylie em sua valiosa obra
History of Protestantism (vol. I, p. 11): “A versão da Bíblia de Wycliffe
prestou outros serviços, além da esfera religiosa em que foi preeminente.
Poderosamente, contribuiu para a formação da língua inglesa, no sentido do
aperfeiçoamento de sua estrutura e da extensão do seu vocabulário…
Wycliffe foi chamado o pai ou criador da prosa inglesa, como Chaucer é
chamado o da poesia inglesa”. E Lechler, no seu livro Johan Von Wycliffe:
“A tradução de Wycliffe marca uma época tão importante no
desenvolvimento da língua inglesa como a tradução de Lutero na língua
alemã”. (p. 222)
Ainda a respeito de Calvino, na língua francesa, temos o testemunho do
judicioso Schaff, obra citada (págs. 265 e 266 ): “A influência de Calvino não
se limitou à esfera moral e religiosa; vai também ao desenvolvimento
intelectual e literário da França. Ele ocupa uma posição preeminente na
história da língua francesa como Lutero, em maior grau ainda, na história da
língua alemã. Lutero deu aos alemães, no seu próprio vernáculo, uma versão
da Bíblia, um catecismo e um hinário. Calvino não traduziu as Escrituras
(embora de seus comentários se pudesse construir uma versão toleravelmente
completa) e seu catecismo e alguns salmos versificados nunca se tornaram
populares; ele, porém, escreveu em francês clássico e latim clássico,
sobrepujando em ambas as línguas os escritores contemporâneos. Educado na
Renascença, em lugar de cair no ciceronismo pedantesco de Bembo, tornou a
velha língua romana subserviente do pensamento cristão e elevou a língua
francesa à dignidade de um dos principais órgãos da civilização moderna,
notável pela direitura, clareza, precisão, vivacidade e elegância. A literatura e
a língua francesa moderna datam de Calvino e de seu contemporâneo
Rabelais. Estes dois homens, tão inteiramente diferentes, refletem os
extremos opostos do caráter francês… Calvino criou o estilo teológico e
polêmico, estilo que se adapta a discussões e visa instruir e convencer;
Rabelais, o secular, que tem por fim deleitar e entreter. Calvino modelou as
armas com que Bousset e os grandes teólogos católicos–romanos do século
XVII pregaram com simplicidade o evangelho do Novo Testamento”.
Faguet, na sua Petit histoire de La literature française classifica-o de
“grande escritor”. No seu livro Seizième siècle, Études Littéraires, diz o
seguinte o mesmo crítico: “Calvino foi um grande escritor. Diria mesmo que
foi o maior escritor do século XVI, se tivesse eu em mais estima o estilo
propriamente dito. O estilo é uma coisa e a palavra é outra. São duas artes, a
de escrever e a de falar. Se estivesse eu mais convencido daquilo que digo,
declararia que o estilo de Calvino é o maior estilo do século XVI, porque é
ele o que, em sua austeridade, em seu garbo, em seu rigor, em seu aspecto
correto e castiço, se afasta o mais possível do estilo falado. Mas tenho uma
fraqueza pelos escritores que, ao escreverem, possuem qualquer coisa das
liberdades e das graças espontâneas da palavra, e Montaigne e Rabelais ainda
mais me seduzirão sempre com esse encanto vitorioso. É-me preciso
reconhecer ainda que o estilo de Calvino, de todos os estilos do século XVI, é
o que possui mais estilo… Calvino deixou modelos de estilos de exposição
didática, belos exemplos do estilo de discussão; e não deixou, por vezes, de
atender à grandeza. Como sua reforma religiosa teve a maior influência sobre
a correção da disciplina religiosa católica, seu estilo também não deixou de
contribuir para a emenda do estilo eclesiástico da França” (págs. 188 e 194).
Bem longe iríamos, citando opiniões sobre a capacidade de Calvino
como escritor abalizado. Andamos mesmo antecipadamente neste capítulo
visto que o estamos considerando como estudante em Paris.
Vamos contudo fazer alusão ainda a P. S. Jacob, bibliófilo, editor das
obras francesas de Calvino, que classificou o estilo do reformador de
“simples, corrente, elegante, lúcido, engenhoso, animado, variando de formas
e de tons. Começou ele a fixar a língua francesa na prosa como Clemente
Marot na poesia”. É o pastor G. Goguel, no seu livro sobre Calvino (p. 56),
que faz a referência.
CAPÍTULO IV. NO SEMINÁRIO

Maturin Cordier. Em Montaigu. Agudeza de intelecto, austeridade de costumes e vida


piedosa do estudante Calvino. Inicio da Reforma na França. Papel de Le Fèvre.
Briçonnet e seus auxiliares em Meaux na obra da Reforma. Primeiras perseguições e
primeiros mártires na França. Suplício de Berquin.

Maturin Cordier, o hábil preceptor de Calvino, merece ainda algumas


palavras. Doumergue considera-o o primeiro pedagogo daquele tempo e o
fundador da pedagogia moderna. Sabia amar a infância e fazer-se dela
amado. Soube ele infundir no discípulo dileto o gosto pelos estudos clássicos.
Calvino, agradecido pelo muito que lhe devia, dedicou-lhe mais tarde o seu
Comentário da 1ª Epístola aos Tessalonicenses, em que dizia, entre outras
coisas: “Quando menino, instruído apenas nos rudimentos de latim, fui
enviado a Paris por meu pai. Fostes-me concedido por Deus como meu
preceptor por pouco tempo, bastante, porém, para me ensinardes o verdadeiro
método de aprender e de tirar dele o maior proveito. A preparação que recebi
de vós habilitou-me de tal maneira que, todo o progresso que depois obtive,
com justiça a vós o refiro. E quero deixar o testemunho disso à posteridade.
Se ela tirar algum benefício de meus escritos, saiba ao menos que em parte o
derivou de vós”.[14]
Maturin lecionou, depois, no Colégio de Navarra, em Nevers e
Bordéus. Abraçando mais tarde o protestantismo, foi chamado pelo antigo
discípulo para Suíça, onde continuou como perceptor em Genebra, Neuchatel
e Lausanne. Residia nesta última cidade quando Calvino produziu o citado
Comentário, em 1550. Foi o diretor do Colégio de Genebra. Cordier, aos
oitenta e cinco anos, publicou seu último livro – Colloques – que veio a ser
usado nas escolas por séculos. Morreu poucos meses depois de Calvino, no
mesmo ano de 1564. Schaff denomina-o de Rollin do século XVI.
Havia dois seminários em Paris – a Sorbona e o Colégio de Montaigu,
do qual era diretor o famoso Noel Beda, depois síndico da Faculdade de
Teologia de Paris. Noel era também conhecido por Bedier.
Terminados os estudos humanistas no colégio de La Marche, entrou
Calvino, em 1526, no de Montaigu, a cursar filosofia e teologia, visto estar
destinado à carreira eclesiástica.
Erasmo e Rabelais haviam também sido alunos do mesmo seminário e,
no ano seguinte ao da saída de Calvino, 1528, assentou-se aos pés dos
mesmos preceptores um discípulo já amadurecido em anos, que deveria ser
terrível antagonista das doutrinas do futuro reformador de Genebra. Era o
espanhol Inácio de Loyola. Calvino orçava pelos dezoito anos, Inácio pelos
trinta e seis.
Em Montaigu, o seminarista não desmentiu o colegial de La Marche.
Seu zelo e aplicação foram notórios. Na sede de conhecimentos,
esquecia-se, por vezes, da própria refeição. Quando todos dormiam, os
vizinhos observavam até alta noite uma luz bruxuleante na câmara do
estudante, atestado das vigílias no afã pelo saber.
Se o mancebo tornava-se notável pela aplicação aos estudos, não
menos digno de nota se tornou pela sua moral austera e pelos seus
sentimentos religiosos. Beza, seu biógrafo, assim o descreve: “Quanto aos
costumes, era assaz consciencioso, inimigo dos vícios e muito consagrado ao
serviço de Deus, a que se sentia chamado”.[15] Florimond de Raemond,
escritor católico, assim o pinta: “De organismo delicado, possuía um intelecto
vigoroso e ativo, pronto na réplica, ousado no ataque”.[16]
A disciplina do seminário era severa, a alimentação parca, a higiene
descurada, as horas de trabalho e de exercícios religiosos iam das cinco da
manhã às oito da noite, havendo apenas duas horas de recreio e hora e meia
de descanso. Duas horas por dia, antes do jantar e da ceia, eram consagradas
à argumentação e debates, exercícios que muito fortaleceram o raciocínio do
futuro polemista.
L. Abelous, no seu livro Les pères de la reformation (p. 189), apresenta
nestes termos o seminarista de Montaigu: “Ali se distinguiu, como sempre,
pelo amor ao trabalho e pelas raras qualidades de espírito. Ultrapassava todos
os seus condiscípulos e encontravam-se, no seu caráter, traços que denotavam
o que viria a ser um dia. A severidade de sua moral entrevia a severidade da
doutrina. O mancebo anunciava o homem que começaria sempre por exigir,
de si mesmo, o que reclamava dos outros. Os divertimentos dos camaradas
não tinham, para ele, atração, suas leviandades ou loucuras encontravam nele
um rígido censor”.
É por isso que o autor dos Annales de Noyon pretende que os colegas
de Calvino o apelidavam de “caso acusativo”, pelo tom austero que o
caracterizava.[17]
Religioso por vocação, sua presença na celebração da missa e de outros
atos religiosos era sempre notada, observando jejuns e preceitos, venerando
os santos e aderindo a todo o ensino da Igreja. Seus professores, diz Wylie
(vol. II, p. 150), fundavam nele as maiores esperanças. Um jovem tão
aplicado, tão severo, tão religioso – pensavam – viria a ocupar posição de
destaque. Prognosticavam-lhe não um simples curato ou prelazia, mas o
chapéu cardinalício.
A notícia do seu progresso nos estudos, diz Guizot, atingiu a Noyon.
Foi então que seu pai conseguiu-lhe um novo benefício eclesiástico, o curato
de Marteville, a que já nos referimos.[18]
Entre os professores de Montaigu havia um teólogo espanhol,
discípulo ferrenho de Aristóteles e partidário de um catolicismo estreito. De
aparência ríspida, tinha, no fundo, um coração afetuoso. A fama do estudante
havia-o precedido e o professor começou a observá-lo com atenção e veio a
amá-lo com carinho. “Que gênio admirável!” – dizia ele do discípulo. Cedo
ultrapassou Calvino os companheiros e o referido professor promoveu-o na
classe de filosofia, sem que tivesse a idade exigida. A despeito de sua
austeridade, o jovem estudante soube granjear amigos e admiradores entre os
condiscípulos. Odiava toda a sorte de impureza. Em sua opinião, a coroa da
mocidade repousava na castidade, o centro de todas as virtudes.[19]
E era um moço de tão rígida moral, que Bolsec quis atribuir o estigma
da “flor de lis!” O católico F. de Raemond, já citado, informa que afetava ele
a maior austeridade nos costumes e cultivava a sociedade de poucas pessoas.
Noel Beda, o terrível adversário da Reforma, notando o viver austero e
religioso de Calvino, deu o seu testemunho de que, por muito tempo, “nem
Montaigu nem a Sorbona haviam visto um seminarista tão piedoso”.[20]
Aplicado à teologia, deleitava-se em Scotus, Boaventura e,
especialmente, em Aquino. Não viesse a ser um reformador, como aconteceu,
e teria sido um ardente discípulo do Doctor Angelicus. Não foi debalde que o
apelidaram de Aquino do Protestantismo.
Mas na época em que o jovem Calvino se aplicava ao estudo em Paris
(1524–1527), a semente da Reforma começava a ser lançada na França com
as lutas consequentes como era de supor.
Para elucidação da mudança que se operou na vida de Calvino, é
conveniente apresentar uma ligeira síntese dos fatos ocorridos.
Foi a cidade de Meaux, onde mais adiante teria de fulgir o verbo de
Bossuet, a primeira cidade francesa que ouviu abertamente as doutrinas da
Reforma, isso no ano em que Lutero comparecia ante a Dieta de Worms
(1521).
Jacques Le Fèvre d’Étaples ou Faber Stapulensis, consoante o seu
nome latino, foi o pioneiro do movimento. Foram ao ponto de denominá-lo
de “pai do protestantismo francês”, título que, afinal, razoavelmente não lhe
cabe, visto como, a despeito de suas simpatias pela Reforma, não aderiu à
mesma abertamente, conservando-se fiel à Igreja Romana. Foi, porém, um
dos arautos do grande movimento religioso. Como Calvino, era da região da
Picardia, de Étaples, nascido talvez em 1455. Era humanista, filósofo e
teólogo, um erudito em suma. Seus conhecimentos foram aproveitados na
universidade de Paris como um dos professores da notável corporação.
Devoto em extremo, passava horas diante da imagem de Maria e não faltava
nunca ao sacrifício da missa e demais cerimônias religiosas.
No ano em que nasceu Calvino (1509), publicou ele o Quintuplex
Psalterium, que continha a sua versão dos Salmos em quatro colunas
paralelas e mais uma, que vinha a ser a sua versão revista do poema
devocional. Vivia então Le Fèvre na abadia de St. Germain des Prés, da qual
era abade o famoso Briçonnet, seu discípulo, mais tarde bispo de Meaux, para
cuja diocese atraiu o velho mestre.
Depois do Psalterio, publicou seus comentários sobre as epístolas
paulinas, os evangelhos e as epístolas católicas, em diferentes épocas. Seu
comentário paulino apresentava doutrinas evangélicas pelo que Doumergue
aplicou à semelhante obra o título de “primeiro livro protestante”.
O ensaio crítico – De Maria Magdalena – em que provava a existência
de três Marias: a Madalena, a pecadora, e a irmã de Lázaro, contra a doutrina
tradicional de uma só e a mesma pessoa, expô-lo às iras da Sorbona, que, por
denúncia Noel Beda, qualificou de herético o tratado, condenado por sua vez
pelo Parlamento, em 1521.
No mesmo ano de 1521, a Sorbona, ainda por iniciativa de Noel Beda,
pronunciou-se contra os escritos de Lutero e Melanchton. Este último
qualificou a medida como sendo um “decreto furioso dos teologastros de
Paris”. A França, dizia, era infeliz com semelhantes doutores. Mas em Paris,
até então, a simpatia pela Reforma fazia-se sentir apenas entre os eruditos,
devido à afinidade entre a Renascença e a Reforma. Entre eles, se encontrava
o medico do rei, Guilherme Cop, cujos filhos foram condiscípulos de Calvino
em Montaigu. A presença do mancebo era frequente no seio da família Cop,
sendo provável que ali recebesse impressões do movimento de que mais
adiante viria a ser ardente corifeu.
Le Fèvre contava bons amigos da corte e Francisco I o favorecia contra
os ataques da Sorbona.
Em 1523 publicou ele a sua tradução do Novo Testamento em francês,
em quatro partes, mas o Antigo Testamento só foi lançado em 1528. Era em
oitavo a publicação e estava ao alcance popular. Seria o caminho para a
revolução religiosa.
A Sorbona levantou-se contra a Bíblia de Le Fèvre. Entendia ser
perniciosa a tradução do sagrado livro do latim para o francês, pelo que
foram condenadas às chamas, em 1525, as porções publicadas do Novo
Testamento, inquinadas de favorecer a doutrina luterana.
Le Fèvre fugiu, então, para EEstrasburgo, mas o rei, seu amigo,
nomeou-o bibliotecário do castelo de Blois e encarregou-o da educação de
seu terceiro filho, Carlos de Orléans. A perseguição contra ele, em 1525, fora
em seguida ao desastre de Pávia, quando Francisco I fora aprisionado por
Carlos V e conduzido a Madri.
Foi em Blois que traduziu Le Fèvre o Antigo Testamento, indo depois,
para maior segurança, refugiar-se na corte de Margarida de Navarra, sua
protetora e irmã do rei. Aí veio a falecer em 1536. Era um espírito cordato
qual Melanchton. Em seus escritos, professa doutrinas reformadas, mas não
tinha a coragem de se apartar da velha obediência. Por isso A. Bossert prefere
considerá-lo “um humanista nas sagradas letras, antes que um reformador”.
Diz-se que, no leito de morte, mostrou-se pesaroso pela timidez que havia
manifestado.
Voltando porém a Meaux, em 1521, vamos encontrar a diocese
ocupada pelo ex-abade Briçonnet. Cheio de zelo pela pureza dos costumes,
buscou reformar o clero de sua diocese. Lembrou-se então de chamar o seu
velho preceptor e recluso em St. Germain, Le Fèvre, a quem fez de seu
vigário geral, protegendo-o assim das fúrias da Sorbona. Aliás, Le Fèvre,
pelos seus merecimentos, tivera sempre bons protetores – Luiz XII, Francisco
I, Margarida, Briçonnet.
O novo bispo chamou também outros professores e sacerdotes que não
pertenciam ao seu clero, no afã da reforma dos costumes e da repressão dos
escândalos nos limites da diocese. Sobressaía a todos os discípulos de Le
Fèvre, Guilherme Farel, de Gap, que propendia abertamente para as novas
ideias. Contava cerca de trinta anos então e teria ainda meio século diante de
si para trabalhar em prol da Reforma na França, sua pátria, e principalmente
na Suíça. Entre outros apontavam-se ainda Miguel de Arande, Geraldo
Roussel e Francisco Vatable. Cercado de tão bons elementos que, do púlpito,
pregavam a sã moral, o próprio bispo começou a proclamar as doutrinas
evangélicas e a semear, na sua diocese, gratuitamente, os Evangelhos
traduzidos por Le Fèvre. Dir-se-ia, por momentos, que a cidade de Meaux
teria de ser a Wittenberg francesa.
Como que prevendo, porém, a própria falta de firmeza, recomendava
Briçonnet do púlpito aos seus diocesanos que não o imitassem, caso viesse
ele a mudar de opinião.
O movimento foi sério. Muitas conversões se realizaram e diz G. de
Félice que, na primeira metade do século XVI, todos os adversários de Roma
eram proverbialmente designados pelo nome de “heréticos de Meaux”.
Veio contudo a reação católica, de que a Sorbona era o reflexo. A
regente, Luísa de Sabóia, governava em nome de Francisco I, seu filho,
prisioneiro em Madri. Fazia coro com os perseguidores. O mesmo não se
dava com a irmã do rei, Margarida de Valois, ou de Orléans mais
propriamente, em cuja corte achou Le Fèvre refúgio seguro. Era amiga
decidida da Reforma. Casara-se em 1509 com o duque de Aleçon e em 1527
com Henrique d’Albret, rei de Navarra. Sua corte era o refúgio dos
perseguidos. Roussel foi seu capelão.
A perseguição veio a ser rígida contra os conversos de Meaux e
Briçonnet viu-se forçado a recuar. Leclerc, um deles, sofreu o martírio em
Metz. Pavanes, discípulo de Le Fèvre, ao qual Crespin chamou de “homem
íntegro e de grande sinceridade”, foi queimado vivo na praça da Grève, a
mesma praça em que tempos depois ergueu-se a guilhotina. Foi o protomártir.
As execuções multiplicaram-se. Luiz de Berquin, de nobre estirpe, foi
das vítimas mais notáveis. Dele escreveu Teodoro de Beza, que teria sido o
Lutero da França, se tivesse encontrado em Francisco I, um segundo Eleitor
da Saxônia. Provinha do Artois, de tronco ilustre. Pelo seu caráter ilibado e
pela natureza de costumes, impunha-se à admiração de todos. A leitura da
Bíblia levou-o a afastar-se das práticas da Igreja dominante. Os doutores da
Sorbona, cuja ignorância era patente, aliaram-se contra ele e não se
aquietaram enquanto não o deitaram a perder. O rei, que antipatizava com os
padres da Sorbona estimava Berquin, protegeu-o por muito tempo. Corajoso,
fazia publicações originais ou traduções de Lutero e Melanchton, arrostando
as iras de Noel Beda e seus comparsas. Três vezes foi preso, mas a amizade
de Francisco I fazia com lhe fossem abertas as portas da prisão. Erasmo
apreciava-o e não cessava de lhe aconselhar prudência, mas Berquin, firme
no entusiasmo de suas crenças, de nada se temia. Por fim, extraiu doze
proposições dos livros de Beda e seus confrades, apontando-as ao rei como
heréticas e imorais. Então foi preso pela quarta vez. Seus inimigos
aproveitaram a ausência do rei e o condenaram ao suplício. Berquin
conservou até o fim a mesma intrepidez. Vestiu-se de trajes de gala, como se
se encaminhasse a um festim. Interpelado, respondeu: “Não terei de
apresentar-me hoje em uma corte – não na de Francisco – mas na do monarca
do Universo?”
Era o dia 10 de dezembro de 1529. Referindo à cena, segundo
depoimento de testemunha ocular, disse o sábio Erasmo: “Quando o carrasco,
com a voz rouquenha, leu-lhe a sentença de morte, as suas feições não se
alteraram de modo algum. Caminhava a passos firmes. Não era o
embrutecimento de um criminoso endurecido: era a serenidade, a paz de uma
consciência limpa”. Citando as palavras de Erasmo supra referidas, G. de
Félice, na sua História dos Protestantes na França, p. 35, assim descreve a
execução do mártir conduzido à fogueira da praça Grève: “Berquin pediu
para falar ao povo, mas ninguém ouviu o que ele disse, porque os monges
fizeram com que a plebe, com a algazarra, sobrepujasse a sua voz. Foi dessa
maneira que a Sorbona de 1529 deu à Comuna de Paris de 1793 o exemplo
cobarde de sufocar, no cadafalso, as palavras sagradas dos que iam morrer.
Após a execução, o doutor Merlin, grande penitenciário, disse em alta voz,
em presença do povo, que há mais de cem anos talvez ninguém, na França,
houvesse morrido como melhor cristão”.
CAPÍTULO V. NOVO RUMO
Conjecturas sobre o tempo e o lugar da conversão de Calvino. Opinião de D’Aubigné
e de Beza. Ação de Olivétan. Lutas espirituais de Calvino, que se entrega ao estudo do
direito em Orléans e depois em Bourges. Convivência com Melchior Wolmar.

Calvino não possuía o gênio expansivo de Lutero, que deixou muita


coisa escrita sobre si mesmo. De natural concentrado, não é muito o que se
sabe a seu respeito. Vê-se em dificuldade o narrador que procura descrever a
sua vida.
Ponto de alto interesse é a sua conversão ao movimento reformador do
século XVI.
Apenas de passagem, alude Calvino ao evento importante de sua vida,
no prefácio ao Comentário dos Salmos, quando afirma que, escravo
obstinado das superstições do Papado, não lhe teria sido fácil arrancar-se do
abismo se Deus não o tivesse subjugado por uma súbita conversão, tornando
o seu coração obediente à Palavra Divina.
Fala, portanto, de uma “conversão súbita”. Nada diz porém em relação
ao tempo, nem refere os passos que o levaram a isso. Desmay e Raemond,
escritores católicos, falam diversamente a respeito. O primeiro entende que
foi em Orléans, onde “um apóstata jacobino, de nacionalidade alemã, o
desviou da fé”; o segundo julga que, em Bourges, é que ele provou o “sabor
da heresia”. A citação de ambos é referida em Bungener (Calvin, p. 26).
Mérle D’Aubigné, porém, procedendo a investigações, informa de
modo diferente. Para ele, foi em 1527, em Paris e no tempo em que cursava o
seminário de Montaigu. Beza afirma haver sido Calvino iniciado por
Olivétan, “na verdadeira religião”, antes de partir para Orléans.
Naquela época o movimento reformador na França já estava se
tornando conhecido, desde o seu ponto de partida em Meaux e graças às
pregações do próprio bispo Briçonnet, de Le Fèvre, Farel, Roussel e outros
mais.
Em 1524, na praça da Grève, ardera a fogueira de Pavanes e em 1527
acentuava-se a perseguição contra o nobre Berquin. Foi neste mesmo ano que
uma grande multidão presenciou, na citada praça, o suplício do protonotário
Nicolau Doullon, votado às chamas como Pavanes.
Ora, estas coisas não se passavam em algum lugar ignorado, mas ali
mesmo, em Paris e, provavelmente, teriam chegado aos ouvidos do
seminarista.
As relações de Calvino com o movimento evangélico atribuem-se,
geralmente, à instrumentalidade de Olivétan.
Pierre Robert Olivétan era também de Noyon e seu parente, um tanto
mais velho em idade, não sendo sabido ao certo data de seu nascimento. Foi
um dos primeiros a pregar em Genebra. Perseguido, fixou-se em Neuchâtel,
onde traduziu a Bíblia para o francês, por solicitação dos valdenses, servindo-
se da recente versão de Le Fèvre e fazendo-a publicar no ano de 1535.
Traduziu do hebraico o Antigo Testamento e o Novo do grego, línguas em
que era versado. Le Fèvre fizera a sua versão do latim. A de Olivétan foi
depois melhorada por Calvino e recebida em todas as igrejas protestantes em
que a língua francesa era falada. Tornou-se por muito tempo a base de todas
as revisões francesas. Olivétan terminou seus dias em Ferrara, em 1538,
depois de haver permanecido algum tempo entre os valdenses do Piemonte.
Morreu envenenado segundo alguns autores.
Olivétan visitou o seu parente em Montaigu e praticaram ambos sobre
as novas ideias religiosas. Não se pense, porém, que o estudante fosse
aceitando facilmente as teorias de seu primo. Recebeu-as com suspeita, de
acordo com a austeridade e calma que o caracterizavam. Travavam vivos
debates e Calvino entrou em profundos conflitos espirituais.
Terrificado, prostrava-se diante dos santos, na capela, para que
intercedessem por sua alma perturbada com tais inovações; ao passo que, em
sua câmara, Olivétan caía igualmente aos pés de Cristo rogando pela alma de
Calvino.
Não foram intensas como as de Lutero as lutas espirituais do
reformador francês. Entende, porém, D’Aubigné, que veio a alcançar a fé
pelo mesmo caminho trabalhoso de Agostinho e Farel, Lutero e Paulo de
Tarso.
Calvino concordou com Olivétan em como havia muitas religiões
falsas e somente uma verdadeira. Mas as falsas, dizia o propagandista, são
invenções dos homens e ensinam que somos salvos por nossas boas obras; a
verdadeira vem Deus e por ela a salvação é concedida livremente do alto.
Calvino sentiu-se ofendido com a observação e dessentiu do seu
parente.
As angústias do seminarista não passaram despercebidas aos
professores de Montaigu. O intolerante teólogo espanhol viu com horror o
perigo espiritual que ameaçava o seu jovem amigo, no qual concentrava tão
fundas esperanças. Entraram com ele em conversação e aconselharam-no a
dirigir-se ao confessor em absoluta submissão a Igreja.
Calvino foi obediente aos seus superiores. Seguindo os passos do
diretor espiritual, recorreu à intercessão dos santos para que abrandassem a
ira do Eterno que caía sobre ele. Voltou às páginas de Aquino e Scotus.
Procurou distrair-se com os seus colegas. Tudo, porém, em vão. Sua alma
debatia-se em lutas espirituais. Recorreu às Escrituras, segundo o conselho de
Olivétan. Descobriu nelas Cristo como o Salvador e sua alma sentiu paz. A
mesma Bíblia, que apaziguara a consciência de Lutero e de Zuínglio, foi para
Calvino a mensageira da paz. Pelo mesmo caminho os três grandes
reformadores chegaram aos pés da cruz, conhecendo que o resgate da alma
não provinha do mérito imperfeito de nossa boas obras, mas do sangue
precioso da expiação realizada por Cristo.
Uma coisa, porém, o embaraçava. Vacilava em fugir da comunhão da
Igreja tradicional. E assim permaneceu nela por algum tempo, ainda até que o
desenrolar das circunstâncias determinasse o rompimento final.
As notícias de suas lutas espirituais e de suas relações com Olivétan
chegaram a Noyon. Sua mãe havia morrido e seu pai havia passado a
segundas núpcias. A mudança que ia se operando no filho contrariava
sobremodo as esperanças de Geraldo, que já antevira as futuras glórias da
carreira eclesiástica de Calvino.
Escreveu, então, ao filho, determinando que fosse para Orléans e
encetasse estudos de direito. De qualquer maneira entrevia-lhe uma carreira
brilhante, na jurisprudência agora, uma vez que a da teologia parecia fora de
cogitações.
Geraldo também se achou em desavença com o capítulo de Noyon. Por
isso entendem alguns que foi essa a causa determinante da evolução que se
operou, desviando a carreira do filho. A opinião de D’Aubigné porém é que
foi a mudança de ideias no filho que decidiu a mudança de parecer no pai e
não o contrário disso. “Tirando o filho dos estudos teológicos, desejava
subtraí-lo à heresia; porém enganou-se. Não havia Lutero, a princípio,
estudado direito em Erfurt? Não deveria Calvino, pelo mesmo estudo,
adquirir melhor preparo para a carreira do reformador do que para a do
sacerdócio?”[21]
No prefácio ao seu Comentário dos Salmos, assim relata Calvino o
incidente, chamando a atenção para os desejos do pai: “Meu pai,
considerando que a ciência das leis comumente enriquece àqueles que a
seguem, mudou de parecer ante semelhante previsão. Foi esta a razão porque
deixei os estudos de filosofia e fui aprender jurisprudência, esforçando-me
fielmente por obedecer a meu pai. Deus, todavia, por sua providência secreta,
fez-me tomar rumo diferente”.
Parece não haver muita harmonia entre a conclusão de D’Aubigné e a
observação de Calvino, que talvez quisesse representar apenas um lado da
questão. Para ele o pretexto era excelente para se libertar do seminário.
De acordo com as resoluções tomadas, em 1528 fixou-se Calvino em
Orléans, às margens do Loire, cidade que datava dos dias do imperador
Aureliano, seu ilustre fundador. Orléans e Bourges possuíam escolas de
direito de maior importância que a de Paris.
A universidade de Orléans datava do começo do século XVI. Nela, o
douto Erasmo havia professado o latim e o sábio Reuchlin o hebraico.
Quando Calvino penetrou nos seus umbrais, refulgia na universidade o
famoso Pierre de l’Étoile – Petrus Stella – cognominado o príncipe dos
juristas, que veio depois a ser conselheiro do Parlamento de Paris. Havia na
Faculdade oito professores – cinco para o direito canônico, três para o direito
civil.
Do êxito dos esforços do novo estudante de direito dá testemunho
Florimond de Raemond, já citado em outros lugares, historiador católico:
“Distinguia-se por um espírito ativo e uma grande memória, por uma grande
destreza e vivacidade em recolher as lições e discursos que seus mestres
proferiam e que depois confiava à escrita, com facilidade maravilhosa e
beleza de linguagem, deixando sobressair muitos conceitos e transportes de
um belo espírito”.[22]
Os estudantes dividiam-se por províncias, a que também chamavam
nações. Logo o elegeram, pelos seus talentos, procurador de sua nação – a
Picardia. Em breve, o moço jurista conseguiu uma vitória, a reconquista de
certos privilégios de que seus coprovincianos haviam sido espoliados. Como
isso não lisonjearia o velho Geraldo, que agora não entrevia mais a púrpura,
porém, nos seus sonhos paternais, diz Wylie, talvez visse, no mancebo de
esperanças tão brilhantes, um futuro chanceler da França!…[23].
Mas Pierre de l’Étoile, com todo o seu saber, professava as velhas
teorias em que Calvino e a França do seu tempo foram instruídos – “que era
dever do magistrado punir as ofensas contra a religião do mesmo modo que
os crimes contra o estado. O ladrão que roubava a bolsa deveria ser enforcado
e o herege, que roubava o céu aos fieis, deveria perecer nas chamas”. Era isso
que dava força à Inquisição e que de alguma sorte contribuiu para a fogueira
de Serveto pelas autoridades de Genebra. Muitos anos teriam de decorrer até
que a doutrina acima, já consignada havia mil anos no código de Justiniano,
caísse do seu pedestal. Étoile, apesar de contrário à Reforma e de conhecer a
inclinação de Calvino, afeiçoou-se-lhe em extremo, qual se dera com o
teólogo espanhol de Montaigu.
Em Orléans, Calvino contraiu outras valiosas amizades entre as quais a
da família Daniel, na qual tinha um condiscípulo, Francisco Daniel, que mais
tarde lhe confiou a educação de um filho. Por algum tempo a família Daniel
era como se fosse a sua própria família. Estas relações de valia que manteve,
em Orléans e Bourges, mostram não ser ele o personagem solitário e sombrio
da lenda que se formou de seus tempos de estudante. Nicolau Du Chemin foi
outro condiscípulo dileto.
Os progressos de Calvino foram tais que, em certo dia, Pierre de
l’Étoile convidou-o a dar uma aula em seu lugar. Fê-lo com tanto brilho que
provocou a admiração de todos. Daí em diante, por várias vezes foi chamado
a suprir a falta de professores.
Em meados de 1529 Calvino trocou Orléans por Bourges, no intuito de
melhor se aperfeiçoar na ciência do direito. Seus mestres ofereceram-lhe, por
unanimidade, o grau de doutor em direito, livre de emolumentos, o que ele
por modéstia recusou.
As circunstâncias lhe seriam ali mais favoráveis. Bourges pertencia ao
ducado de Berry, doado por Francisco I à sua irmã Margarida de Angoulême
ou de Navarra e duquesa de Berry, a amiga dedicada da Reforma. Veio, por
isso, a constituir-se em asilo dos perseguidos da Sorbona e do Parlamento. A
universidade de Bourges havia sido uma criação de Luiz XI em homenagem
à cidade de seu nascimento. Em abril de 1529, Francisco I convidou para
professor de jurisprudência o famoso milanês André Alciati, humanista e
jurista, e um dos principais da ciência do direito romano. Foi esta a razão do
êxodo de Calvino de Orléans. O jurisconsulto notável atraía a mocidade
estudiosa à cidade de Luiz XI.
O entusiasmo de Calvino era tal, relata Teodoro de Beza, que como
estudante prolongava os estudos até meia noite. Ao despertar, permanecia
ainda algum tempo no leito, rememorando as lições da véspera.
Entre os refugiados de Bourges enumerava-se o luterano Melchior
Wolmar, protegido de Margarida. Era cultor do helenismo e Francisco I o
havia atraído primeiramente a Orléans ao que parece. Particularmente,
ensinava o grego do Novo Testamento aos que tinham prazer nisso. Com ele,
iniciou-se Calvino no estudo da língua grega, com o ardor com que se
entregara ao da língua latina com Maturin Cordier. Ao grego do Novo
testamento aplicou-se também com avidez o primo de Olivétan, no afã com
que se empenhava no estudo das Sagradas Letras. A Melchior Wolmar
dedicou em 1546 o seu Comentário da 2ª Epistola aos Coríntios, em sinal da
cordialidade que entre os dois reinava. Na universidade de Bourges havia
diversos estudantes alemães que professavam ideias luteranas na época em
que o estudante de Noyon se assentava aos pés de Alciati e de Wolmar.
Segundo Schaff, Calvino estudou também o hebraico com o referido
professor luterano, que teve assento nas universidades de Orléans e de
Bourges e depois na de Tubingen, cidade onde faleceu em 1561.
Florimond de Raemond, ao qual aludimos, insinua haver sido Melchior
Wolmar o que instilou a “peçonha da heresia” em Calvino, mas nem este nem
Beza fazem alusão ao fato. É certo, contudo, que Melchior o fortaleceu nas
crenças evangélicas em que fora ele instruído por Olivétan em Paris.
D’Aubigné, que é muito minucioso sobre Calvino, põe em Orléans o
começo das relações entre este e Wolmar, e não em Bourges como outros o
fazem. Aliás, os dados da vida de Calvino, no período de seus estudos, são
assaz contraditórios em vários autores.
Prosseguindo em seus estudos de direito em Bourges, Calvino fazia
também progressos na carreira evangélica. Além disso, durante o tirocínio em
Orléans, sua voz se elevara na proclamação da verdade evangélica no seio de
famílias que o convidavam, para ouvir suas exposições doutrinárias cheias de
unção e saber. Em Bourges, seu progresso foi mais acentuado. Wolmar,
segundo D’Aubigné, veio a ser para ele um novo Staupitz, conduzindo-o
melhor aos pés de Cristo. Em certo dia, o professor luterano foi mesmo ao
ponto de mostrar-lhe as responsabilidades, induzindo-o a consagrar-se ao
ministério da pregação evangélica. Mas Calvino hesitava. Temia os encargos
e não estava ainda decidido a romper definitivamente com a Igreja
tradicional. Naquele tempo, muitos assim pensavam. Padres, bispos e
doutores pregavam o Evangelho dentro da Igreja, sem quererem, todavia,
romper com a velha situação. Briçonnet e Le Fèvre eram exemplos disse.
Bourges, sob o regime de Margarida, convertia-se agora em outra
Meaux dos tempos do entusiasmo evangélico de Briçonnet. Pregava-se ali o
Evangelho e um dos pregadores era o próprio capelão da rainha, Miguel
Arande. Calvino continuou a receber convites para expor as novas doutrinas
no seio de famílias. Neste mister, adquiriu certa popularidade. Ia pregar até
Ligniéres, dez léguas além, recebendo elogios do fidalgo da terra, que se
sentia mais edificado com a pregação dele, do que em ouvir os dos padres e
frades que o costumavam visitar.
Foi na sua estadia em Bourges, que veio a conhecer Teodoro de Beza,
de dez anos então, que para ali fora a estudos sob as vistas de Melchior
Wolmar. Esse menino teria de ser seu discípulo, sucessor e biógrafo.
CAPÍTULO VI. DE NOVO EM PARIS

Em Noyon e em Paris. Novos estudos. A primeira obra de Calvino. Três reformadores


amigos das letras. Como Calvino atingiu o ministério. A ação especial dos
reformadores comparada ao ministério dos profetas. Rumor produzido pelo discurso
de Nicolau Cop. Tempo de residência em Paris.

Não foi longa a permanência de Calvino em Orléans e Bourges – de


1528 a 1529 ou mesmo a 1531, sendo alguns autores. Neste período teria ido
duas vezes a Noyon, da primeira vez em maio de 1528, numa grave
enfermidade de seu pai; da segunda, logo depois da morte deste, ocorrida em
1529 conforme D’Aubigné, em 1531 (26 de maio), na narrativa de outros
biógrafos e historiadores.
Sua visita a Noyon não passou sem interesse. A fama de seu nome
havia ecoado no rincão nativo. Muitos desejaram ouvi-lo. Cláudio de
Hangest, da família Montmor, seu antigo condiscípulo, é agora abade de St.
Eloi e ofereceu-lhe a capelania de Pont l’Evéque em troca da de Marteville, e
ele resigna a de La Gesine em favor de seu irmão Antônio. Desmay, (Vie de
Calvin, págs. 40-42), citado por D’Aubigné, dá para isso a data de 30 de abril
de 1529.
Calvino prega em Pont l’Evéque a grandes assistências. Alguns de seus
ouvintes são depois perseguidos e processados pelo Parlamento, sendo
condenados às chamas na praça pública de Noyon, pelo que se viram
forçados a buscar no exílio a salvação. Deste número eram Laurent,
Cristopher Lefèvre, Lancelot de Montigny, Jacques Bernardy, Corneille de
Villette, Nicholas Neret, Labbè, Claude Dupré e Nicholas Picot, cunhado de
Antônio Calvino.
Indo habitar pela segunda vez em Paris, dedica-se de novo aos estudos,
residindo no Colégio Fortet. Alista-se entre os discípulos de grego de Pierre
Danés e entre os de hebraico de Vatable. “Paris era um centro de onde a luz
emanava; por isso Calvino é induzido a deixar Noyon, Bourges e Orléans e a
dirigir-se para ali” (D’ Aubigné).
Seus conhecimentos iam em progresso constante. Os estudos clássicos
eram a sua maior preocupação. Em Paris devotou-se ao estudo das línguas
originais das Escrituras e absorveu-se ainda em estudos teológicos. Residiu,
também, por algum tempo, em companhia do rico mercador Étienne de la
Forge, um dos mártires da Reforma na França, em 1535. Naquela habitação
havia reuniões secretas, presididas por Calvino muitas vezes. Mostrava-se
firme no terreno teológico e arguto na polêmica.
Em 1532, publicou a sua primeira obra – o Comentário ao livro de
Sêneca, De Clementia – de que enviou um exemplar ao douto Erasmo,
residente em Basileia, que também havia popularizado as obras do filósofo
estoico. Como já foi observado, era o livro dedicado ao abade de St. Eloi,
Cláudio Hangest, seu antigo condiscípulo de Noyon. Pondera Guizot (obra
citada, p. 163) que, três anos depois, Erasmo recebeu em sua casa o jovem
Calvino, que lhe fora apresentado por Bucer. Após ligeira palestra, o fino
observador teria dito ao ouvido de Bucer: “Vejo erguer-se dentro da Igreja
um terrível açoite contra a mesma Igreja”.
O livro de Sêneca era um apelo à clemência de Nero. Daí, muitos veem,
no comentário de Calvino, um apelo indireto seu à tolerância de Francisco I.
Guizot é deste número. Outros, porém, não percebem no livro esse tom
apologético de que ele usou mais tarde nas suas Institutas.
É obra de puro humanismo, elaborada aos vinte e dois anos, em que o
jovem escritor revela a sua perícia no grego e, sobretudo, no latim, bem como
habilidade exegética e são raciocínio.
Três dos principais reformadores foram, de início, apaixonados
humanistas. Zuínglio, Melanchton e Calvino são os seus nomes. Os três
foram admiradores do príncipe dos humanistas, o sábio de Roterdã, que
preparou o caminho para a Reforma com as suas sátiras, que atraíam o
ridículo sobre os monges e punham ao vivo as chagas da Igreja. Seu livro
humorístico – O Elogio da Loucura – dá prova disso. Seu Novo Testamento
grego foi porém o maior serviço prestado por ele à Reforma. E todavia, no
momento oportuno, recuou da linha de batalha, preferindo o cultivo das letras
e a tranquilidade de seus estudos. No conceito que se tornou popular –
“Erasmo pôs o ovo que Lutero deveria chocar”.
Não assim ocorreu com os três humanistas seus admiradores.
Membro do clero, como Erasmo, rompeu Zuínglio com a velha ordem
de coisas e foi o propulsor da Reforma na Suíça alemã. Calvino veio a ser
jurista e teólogo – o campeão do movimento na Suíça francesa e o
jurisconsulto da Reforma. Melanchton, o Preceptor da Alemanha, pedagogo
e teólogo, era um simples leigo. Não pertencia ao clero de Roma nem
tampouco se incorporou ao da Reforma. Profundo, contudo, foi o seu saber
teológico e valioso o concurso que prestou às letras e ao movimento
reformador do seu século. Era uma espécie de estadista e diplomata na causa
em que empenhou a sua vida. Ele e Calvino foram os maiores teólogos do
círculo dos primitivos reformadores.
Calvino viu coroados os seus estudos de jurisprudência com o grau de
licenciado ou bacharel em direito, pela universidade de Orléans em 14 de
fevereiro de 1531 ou 1532, pois, que há referências às duas épocas em
autores diferentes, conforme se depreende de Schaff (Swiss Reformation, vol.
1. p. 306). Quando Henrique VIII enviou às universidades e aos sábios do
continente europeu a sua célebre consulta sobre o divórcio, Calvino foi
também ouvido e emitiu parecer desfavorável.
Ele e os principais reformadores foram homens devotados a uma
missão especial. O ministério deles era um caso esporádico como os dos
antigos profetas. Surgiram na ocasião precisa, escolhidos pela Providência
para benefício da Igreja. Quase todos eram membros do clero de Roma:
Lutero, Zuínglio, John Knox, Bucer, Ecolampádio, Crammer, Jonas,
Bugenhagem, Brenz e outros.
Calvino teve apenas as ordens de tonsura e, em 1536, foi eleito pastor e
professor de teologia em Genebra pelos presbíteros e pelos magistrados com
o assentimento do povo. Schaff compara a sua eleição à dos grandes bispos
da igreja primitiva como Cipriano, Ambrósio e Agostinho – escolhidos pela
aclamação popular. Não consta mesmo que fosse introduzido solenemente
pela oração e imposição das mãos, qual se deu com Farel e Viret, consoante o
uso apostólico e a praxe das igrejas reformadas.
Seu ministério evangélico teve, porém, os sinais da aprovação divina na
missão de responsabilidade que teve de exercer.
Ouçamos, a propósito, um trecho do erudito historiador Schaff: “De
onde Calvino e os outros reformadores derivaram autoridade para reformar a
velha Igreja Católica e fundar novas igrejas? Atribuímos isso a um caso
especial de vocação e adaptação divina. Os reformadores não pertenciam à
ordem regular do sacerdócio, mas à classe irregular dos profetas, que Deus
chamava diretamente, por Seu Espírito, do arado ou redil, na oficina ou no
gabinete. É assim que ele desperta os gênios da poesia ou da arte, da ciência
ou do terreno das invenções e descobertas. Todos os dons excelentes
procedem de Deus; mas o dote do gênio é excepcional e não pode ser
transmitido por descendência ordinária… O próprio Paulo foi chamado fora
de tempo e não impetrou de Pedro ou de outro apostolo a ordenação, mas
derivou diretamente de Deus a sua autoridade provada num ministério
fecundo”.[24]
Notável, também, é o caso citado de Melanchton, o grande pensador da
Alemanha e um dos maiores talentos da Reforma, ao qual consultavam reis e
príncipes – teólogo consumado e hábil diplomata e, contudo, um mero leigo.
O ano de 1533 foi decisivo na vida de Calvino.
Nicolau Cop, seu antigo condiscípulo, filho de Guilherme Cop, de
nacionalidade suíça e médico da casa real, foi eleito, em outubro, reitor da
universidade de Paris e teve de fazer a oração inaugural no dia de Todos os
Santos, perante uma grande assembleia na igreja dos Maturinos.
O discurso provocou viva agitação. Era uma espécie de manifesto da
Reforma, à qual o reitor era simpático. Encarecia o valor da fé na salvação da
alma, que era o dom gratuito de Deus e não recompensa das boas obras. Era
um discurso acadêmico, notável pelo fundo e pela forma, mas pelo lado
doutrinário evidenciava-se nele a orientação evangélica. Cop fazia, além
disso, referências à única mediação e intercessão de Cristo, muito embora a
solenidade se efetuasse no dia de Todos os Santos.
Alguns franciscanos exaltados deram logo o brado de alarme. A
Sorbona e o Parlamento reuniram-se para ouvir o caso e o confiado reitor saiu
da universidade acompanhado de seu séquito para responder perante o
Parlamento. De caminho, porém, um amigo bem informado mandou-lhe
aviso de que ia ele em busca da morte. Cop, assim advertido, dali mesmo se
escapuliu e foi procurar asilo em Basileia, seu berço nativo. Os inimigos não
puderam conter a decepção e foi estabelecido um prêmio de trezentas coroas
a quem o apresentasse vivo ou morto. Como teremos de ver agora, o ruidoso
discurso do reitor teria de influir decisivamente na vida de Calvino.
Relativamente ao tempo da permanência em Paris por esta época, os
dados são incertos e confusos. Bungener (p. 34) afirma haver impossibilidade
em precisar as datas: “Uma carta escrita por ele, de Paris, é datada de julho de
1529. É em Paris que o vemos ainda em 1532 e tudo parece indicar que
passou aí estes três anos, se não inteiros, ao menos em grande parte”. Com
este ano de 1529 concorda D’Aubigné. A. Bossert e outros dão o ano de
1531. De Paris teria voltado a Orléans a fim de graduar-se em jurisprudência,
continuando a residir na capital.
CAPÍTULO VII. CALVINO FUGITIVO

Peregrinações de Calvino. Em Angoulême e Nérac. Encontro com Le Fèvre.


Margarida de Angoulême. Rompimento definitivo em Noyon. Em Poitiers. Em Paris.

Correu em Paris o boato de que a João Calvino cabia a responsabilidade


do discurso do reitor, por ele elaborado. Trataram então de capturá-lo no
colégio Fortet, para encerrá-lo na Conciergerie. Mas seus amigos desceram-
no por meio de lençóis atados à janela de seu quarto e os beleguins não mais
o encontraram. Escapou-se, como Paulo em Damasco, e foi refugiar-se em
casa de um vinhateiro, num dos arrabaldes da cidade, de onde saiu disfarçado
para o castelo do senhor de Hazeville, nas proximidades de Nantes, não
muito longe de Paris, e ali permaneceu várias semanas.
Seus perseguidores, não o achando na câmara que ocupava, deram
busca minuciosa, apoderaram-se de vários documentos e papéis
comprometedores, que expuseram a sérios perigos e até à morte vários
amigos do jovem reformador.
Do castelo de Hazeville tomou Calvino o rumo do sul. Atravessou os
vales da Touraine, passou às florestas do Poitou e dirigiu-se a Saintonge e
Angoumois, em demanda de Angoulême, berço de Margarida de Navarra.
Em uma das ruas principais – mais tarde denominada de Genebra, em
homenagem ao reformador – erguia-se a confortável mansão da família Du
Tillet, um dos membros da qual era o cônego Luiz Du Tillet, cura de Claix,
amigo secreto da Reforma.
Ali demorou-se o fugitivo por alguns meses, desde os últimos dias
daquele ano de 1533. Aquele refúgio veio a ser para ele um arremedo do
Wartburgo de Lutero. Rica era a biblioteca da casa, de três a quatro mil
volumes, número considerável para a época. Desta sorte Calvino via-se no
seu elemento, rodeado de bons livros. Entregou-se com ardor aos estudos e o
cônego com ele tomava lições de grego. Escrevendo a seu amigo Daniel, de
Orléans, encarece a bênção que Deus lhe concedera naquele asilo de
Angoulême, cidade que ele denominava de Doxopolis, em suas cartas.
Examinando, na farta livraria, as obras apologéticas, diz-se que
concebeu então a ideia de escrever sua obra prima, as Institutas, de tom
apologético também.
Alguns mesmo entendem que foi ali que iniciou o seu trabalho.
Florimond de Raemond, no seu livro contra as heresias, estabelece que foi
aquela biblioteca a forja do novo Vulcano: “Foi ali que teceu o fio das suas
Institutas, que podemos chamar o Alcorão ou Talmude da heresia”.
Em Angoulême, fez relações com membros do clero e, a pedido de Du
Tillet, escreveu vários formulários de sermões para serem usados na ocasião
da missa paroquial. O próprio Florimond atesta que, naquele retiro, “vivia em
boa estima e reputação, querido de todos os que amavam as letras”.
Em abril de 1534, dirigiu-se a Nérac, onde refulgia a corte de
Margarida, no intuito de visitar o octogenário, Le Fèvre que, segundo
Teodoro de Beza, acolheu o fugitivo com singular prazer, antecedendo nele
um instrumento para o estabelecimento do reino de Deus na França. Foi o
único encontro que tiveram. Calvino sentiu-se profundamente edificado com
a presença veneranda do doutor de Étaples, por cuja influência fora atraído
Farel ao movimento reformador.
Em outro capítulo, algo foi dito a respeito de Margarida de Navarra.
Tracemos agora um ligeiro esboço sobre sua vida.
Foram seus pais Carlos de Orléans e Luíza de Saboya, filha de Luiz
XII. Era irmã mais velha de Francisco I, de França. Desposou-se em
primeiras núpcias, em 1509, com o duque de Alençon, que faleceu na época
do desastre de Pávia (1525), em que Francisco I foi aprisionado, passando a
regência a Luíza de Saboya, sua mãe. Foi seu segundo esposo Henrique
d’Albret, rei de Navarra, em 1527, do qual teve Joanna D’Albret, que se
casou com Antônio de Bourbon e veio a ser mãe de Henrique IV, de França.
Em Nérac, tinha sua residência. Amiga decidida da Reforma, não
chegou a abjurar formalmente. Desde 1521 lia a Bíblia, que lhe era explicada
pelo venerando Le Fèvre. Sua corte veio a ser refúgio dos sábios teólogos
perseguidos pelo Parlamento como Le Frève, Marot, Des Périer, Du Moulin,
Toussaint e o próprio Calvino. Roussel era seu capelão, outro amigo da
Reforma. Margarida ordenou que a missa fosse celebrada no vernáculo e não
permitia a adoração da hóstia. A comunhão era distribuída nas duas espécies.
Propagandista das ideias reformadas, alimentou por algum tempo esperança
na conversão de sua mãe Luíza e de seu irmão Francisco que, em certo
momento, pareciam tender para a Reforma. O rei chegou mesmo a assistir a
algumas reuniões privadas dirigidas por Miguel de Arante. Mas suas
simpatias não resistiram às injunções da política do seu reino. Permitiu que se
acendessem fogueiras e que muitas vítimas fossem sacrificadas pela causa da
Reforma. Margarida, porém, conseguiu salvar muitos. Francisco e sua mãe
eram em extremo mundanos para se impressionarem devidamente com as
coisas da religião.
É curioso notar que, depois do desastre de Pávia, no qual teve sua culpa
o duque de Alençon, que morreu de vergonha por causa disso, Margarida,
então viúva, esteve em risco de esposar o imperador Carlos V. Isso não se
realizou ante a oposição de Francisco, que fora prisioneiro de Carlos e a ele
preferiu Henrique D’Albret. Se tal consórcio se houvera conseguido, é
possível que a influência de Margarida tivesse amenizado as disposições do
imperador, adversário ferrenho da Reforma.
Margarida cultivou as letras e a teologia e ocupou lugar na literatura
francesa. Aplicou-se ao estudo do italiano, espanhol, alemão, latim, hebraico
e, aos quarenta anos, estudava o grego. Produziu comédias, alegorias, cartas,
diálogos, fábulas, poesias. Publicou também o Heptameron (novelas) e um
livro de poesias – Margaridas da Margarida das Princesas – que era o
epíteto que lhe dava seu irmão muito amado, o rei da França, pelo livramento
do qual muito ela se empenhou durante o cativeiro de Madri, acompanhando-
o naqueles momentos de amargura. Seu livro religioso – Miroir de l’âme
pêcheresse – em que reconhecia a Jesus Cristo como único intercessor e
salvador, foi tido por suspeito pelos teólogos de Paris, mau grado da defesa
do livro pelo reitor da universidade, Nicolau Cop, que se tornou mal visto e
teve de se refugiar, pouco depois, em Basiléia, como ficou descrito, por haver
preferido o célebre discurso do dia de Todos os Santos. Margarida era
francamente protestante de espírito e protegia abertamente os reformados –
diz R. Allier em sua Anthologie protestante française, p. 8.
Diversos foram os passos de Calvino neste ano de 1531, havendo
contradição nos autores quanto à sequência exata dos acontecimentos – uns
antecedendo, outros pospondo fatos.
Neste ano completava ele os seus vinte e cinco anos, que era a idade
canônica para receber ordenação. A sorte ia ser lançada – ou sacerdote
romano ou partidário decidido da Reforma.
Calvino achou-se, portanto, em Noyon para a partida decisiva. Até
então estivera unido à Igreja Romana e não pensara em um rompimento
definitivo. Muitos contemporâneos, leigos e membros do clero, iam
permanecendo na velha ordem de coisas, embora simpatizando com as ideias
reformadas. A uns faltava a coragem de enfrentar a situação como se dera
com Briçonnet, bispo de Meaux, que recuara. Outros, como Roussel, capelão
de Margarida, que aceitou um bispado, contentavam-se com reformas apenas.
Praticando com Calvino em Nérac, não puderam chegar a um acordo.
Entendia Calvino que a Igreja deveria voltar à antiga pureza; Roussel
contentar-se-ia em reformar os abusos mais clamorosos. Le Fèvre pertencia à
classe dos tímidos.
Calvino, até então, não pensava em ser um reformador nem em tomar
parte preeminente na causa da Reforma. As suas aptidões naturais e as
sequência dos acontecimentos é que o impeliram a isso. Era até ali um
estudioso e preferia o retiro do seu gabinete a uma posição de
responsabilidade.
Não acreditando, porém, que a Igreja dominante viesse a estabelecer
reformas radicais, tais os abusos da época, em que a religião se ia afastando
cada vez mais do cristianismo primitivo, Calvino, como se conclui das atas
de Le Vasseur, em 4 de maio de 1534, renunciou aos dois benefícios
eclesiásticos – a capelania de La Gesine e o curato de Pont l’Éveque, o
primeiro dos quais resignara em favor de seu irmão Antônio.
Esta livre renúncia daqueles benefícios é mais uma refutação à
imputação caluniosa já aludida, de haver sido Calvino estigmatizado com
ferro em brasa pelo seu desregramento moral. Era o rompimento definitivo
com a Igreja de Roma.
Divulgada a sua decisão, começaram as perseguições contra o suposto
herege. Em 26 de maio, os registros do Capítulo de Noyon mencionam sua
prisão, relaxada em 3 de junho. Dois dias depois foi de novo aprisionado,
mas logo o libertaram do cárcere.
Mesmo em Noyon, não se cansou de propagar as doutrinas evangélicas
obtendo, a simpatia de membros de sua família, de amigos e até de membros
do clero.
É também deste ano a sua viagem de propaganda ao Poitou, disfarçado
com o nome de Charles d’Espeville, indo acompanhado de seu amigo Du
Tillet, que então adotou o nome de Hautmont.
D’Aubigné data esta excursão como anterior à ida a Noyon, enquanto
outros a fazem ocorrer depois.
Em Poitiers, mostrava-se a gruta de Calvino onde então celebrara várias
reuniões com seus adeptos. Conta-se que, estando ali um dia com vários
correligionários, um deles argumentou em favor da missa, pelo fato de ser ela
celebrada em toda a cristandade. A isso respondeu mostrando a Bíblia: “A
minha missa é esta”. E erguendo os olhos ao céu continuou: “Senhor, se no
dia de juízo me repreender por não haver assistido à missa e por tê-la
abandonado, eu te direi com muita razão – Senhor, tu não me recomendaste
isto! Eis tua lei; eis aqui a Escritura que tu me deste: nela não encontrei outro
sacrifício senão o que se consumou no altar da cruz”.[25]
Na referida gruta, Calvino celebrou a santa ceia com seus amigos.
Neste ano de 1534, mais uma vez, se nota a presença de Calvino em
Paris. Margarida obtivera de seu irmão alguma complacência a favor dos
luteranos e conseguira ainda mesmo que se pusesse uma pedra em cima do
processo de Calvino, no caso do discurso do reitor, cuja inspiração fora
atribuída ao futuro reformador.
Foi nesta viagem a Paris que Calvino se encontrou, pela primeira vez,
com Miguel Serveto, que acabava de editar em Hagenau, Alsácia, seu famoso
livro contra Trindade. Espírito irrequieto, o médico espanhol fora a Basileia e
ali sustentara a sua tese contra Ecolampádio. Vindo a Paris, lança um desafio
a Calvino. Era um ataque a um dos dogmas fundamentais da Igreja, comum a
Roma e à Reforma.
Calvino aceitou o cartel e designou o colóquio para uma casa no
arrabalde de Santo Antônio. Serveto não compareceu porém ao ajuste. Talvez
o detivesse o receio de complicações prováveis. Era aquele um tempo de
suspeitas e perseguições.
CAPÍTULO VIII. O ANO DOS CARTAZES

Calvino publica seu primeiro tratado teológico. Posição e caráter de Francisco I.


Dupla atitude dos partidários da Reforma. Missão de Fèret. Os cartazes e suas
consequências. Fúria perseguidora do rei. O dia 21 de janeiro fatídico para a França.

Naquele ano de tanta agitação, como fora o de 1534, Calvino


encontrava tempo para escrever o seu primeiro tratado teológico, em sua
passagem por Orléans, cidade onde se diplomara em direito.
Psychopannychia era o título. Consistia em um estudo sobre a imortalidade
da alma, em que combatia a doutrina de certos anabatistas sobre o sono da
alma no período entre a morte e a ressurreição. A Escritura Sagrada era o
apoio para a sua refutação e repelia, assim, a suspeita de heresia sobre o
ponto em relação aos protestantes, muitas vezes confundidos com os
anabatistas.
O ano de 1534 também ficou notável por ser aquele em que Inácio de
Loyola, em 15 de agosto, em Montmartre, instituiu a ordem dos jesuítas, o
mais eficaz instrumento da Contra-Reforma. Foi também o ano em que Paulo
III cingiu a tiara, excomungou Henrique VIII e estabeleceu, na Itália, a
Inquisição.
A obra de Reforma, que encontrara terreno propício na Alemanha e na
Suíça, não alcançou na França o mesmo êxito.
Francisco I (1494-1547), amigo da Renascença, como sua irmã,
cultivava as letras e mostrou-se a princípio também favorável à Reforma, que
considerava como uma luta da inteligência contra a ignorância. Detestava o
atraso dos frades e o desleixo do clero e chegou a proteger Le Fèvre, Berquin
e outros amigos do movimento reformador. Mas era frívolo, mundano,
irresoluto, autoritário e deixava-se sugestionar facilmente. Seu caráter moral
era revestido de muitas falhas.
Como político, viveu sempre em rivalidade com o imperador Carlos V
da Alemanha, com o qual competira na esperança de obter a coroa imperial.
Derrotado em Pávia, escreveu a sua mãe Luíza de Saboya, declarando que
nada lhe restava senão a honra e a vida, versão autêntica da legendária frase –
“tudo perdeu-se menos a honra”. Prisioneiro em Madri, assinou o tratado em
que cedia a Burgundia.
Sob o ponto de vista religioso, foi vacilante, como também nas suas
relações políticas em referência a outros países. Ora aliava-se aos príncipes
protestantes alemães, na Liga de Schmalkalden, para enfraquecer o
imperador, ora perseguia os protestantes para fortalecer a aliança com o Papa.
A sugestões de Margarida, sua irmã, permitia que Roussel, Courault e
Berthaud pregassem em Paris e protegia os reformados. Por instigação de
Montmorency, Duprat e Tournon, opunha-se-lhes vivamente.
Em tudo superficial, não lhe agradava o caráter profundamente
espiritual da Reforma.
Naquele ano de 1534, uma circunstância veio torná-lo decididamente
adversário do movimento reformador. Notavam-se, na França, duas atitudes
em relação à Reforma. Havia os chamados contemporizadores, que se
contentavam com uma reforma moderadora e punham sua esperança no rei,
em Margarida, na aliança com os protestantes da Alemanha e com Henrique
VIII. Não queriam ofender nem escandalizar e aguardavam, pacientemente, o
desfecho dos acontecimentos.
Os outros eram os radicais ou escriturísticos, que não esperavam, como
os primeiros, nos recursos da diplomacia e nem desejavam aliança com o
Papa e os bispos. Queriam romper com todos os abusos e inovações da Igreja.
Os dois partidos não chegavam a um acordo e determinaram enviar um
emissário à Suíça, onde habitavam vários refugiados da França como Farel,
Viret, Olivétan, Froment, Saunier, a ver qual o melhor partido seguir.
Fèret foi emissário escolhido. Era serventuário da farmácia do rei,
cristão sincero, mas exaltado.
Na Suíça, a situação era bem diferente da França e em vários cantões as
ideias novas sobre religião haviam encontrado segura acolhida. O culto
católico romano havia sido abolido em diversos lugares, sendo substituído
pela forma protestante. Na França, a Sorbona e o Parlamento estavam em
vigilância e por várias vezes na praça de Gréve havia sido acesa a fogueira
purificadora da heresia.
Farel, um dos consultados, entendeu que os seus correligionários
franceses deveriam usar as medidas radicais como na Suíça. A consequência
de tudo é que Fèret trouxe da Suíça uma multidão de publicações violentas,
impressas em Neuchâtel, em que a missa, principalmente, era atacada; as
quais deveriam ser espalhadas por toda a França. O Papa, os cardeais e os
bispos não eram poupados.
Era um meio violento de propaganda, uma obra demolidora e os mais
sensatos se opunham ao expediente.
O dia 18 de outubro de 1534 tornou-se famoso na história das
perseguições. Ao amanhecer, os moradores de Paris encontraram afixados em
todas as ruas e praças, nos muros, nas paredes e nas portas das casas e igrejas,
cartazes encimados pelo titulo: “Artigos verdadeiros sobre grandes,
intoleráveis e horríveis abusos da missa papal, que se acha em direta oposição
à Santa Ceia do Senhor Jesus Cristo, Nosso único Mediador e Salvador”.
A isso seguiam-se conceitos sobre a doutrina no mesmo teor de
amarguras. A conclusão assim dizia: “Em uma palavra: a verdade os ameaça,
a verdade os persegue, a verdade os atemoriza, mas é a verdade que, em
breve, há de destruir o seu reino para sempre”. A autoria dos dizeres é
imputada por muitos a Farel, outros autores o negam.
Foi tal a profusão de cartazes e tão terríveis as suas consequências, que
aquele ano ficou conhecido na história como o “Ano dos Cartazes”.
No próprio aposento do rei, que se achava então no castelo de Blois,
afixaram um dos cartazes subversivos, sendo a responsabilidade atribuída a
um corista do palácio, entusiasta da Reforma.
As consequências foram tremendas. O rei explodiu de cólera. Via
naquilo um desrespeito não só à Igreja estabelecida como à autoridade real.
A situação foi grandemente explorada. O cardeal de Tournon e
Montmorency, futuro condestável, souberam insinuar-se no ânimo do rei,
facilmente sugestionável. Francisco, rei da França, naquela ocasião em
aliança com os príncipes protestantes da Alemanha, estava também em boa
paz com o Papa e um ano antes havia negociado o casamento do Delfim, o
futuro Henrique II, com Catarina de Médicis, sobrinha do papa Clemente VII
( Júlio de Médicis).
Espalharam-se boatos de conspiração luterana. Os padres e frades
açularam o povo e por toda a parte ouvia-se o brado – “morram os heréticos!”
As prisões regurgitaram. O juiz do crime, Morin, o mesmo que dera
caça a Calvino meses antes, não tinha sossego no meio de tantos processos.
Muita gente procurou na fuga a salvação.
Sinistras fogueiras se acenderam na praça de Gréve. De 10 de
novembro de 1534 a 5 de maio de 1535 nada menos de vinte e quatro
protestantes foram queimados como uma satisfação pela ofensa dos cartazes.
Era um prelúdio do S. Bartolomeu, em que teria de figurar como protagonista
um neto de Francisco I, Carlos IX, de França.
Em 21 de janeiro de 1535, Paris inteiro contemplou uma cerimônia
curiosa. Era uma procissão de desagravo, do Louvre à Notre Dame. A
imagem de Santa Genoveva, padroeira da cidade, foi transportada, a que se
seguiam muitas relíquias raras também levadas em procissão. Simão
Fontaine, cronista da época, invocado por G. de Félice[26], assim descreve a
multidão que se viu nas ruas: “Não havia sequer uma ponta de pau ou de
pedra ressaltando dos muros que não estivesse ocupada, contanto que aí
houvesse lugar para uma pessoa. Os tetos estavam cobertos de gente, grandes
e pequenos, e dir-se-ia que as ruas eram calçadas de cabeças humanas”.
Sob um rico pálio, via se o bispo de Paris, Jean Du Bellay, trazendo a
hóstia. Era o pálio conduzido pelo Delfim de França e pelos duques de
Orleáns, de Vendôme e de Angoulême, que eram os principais personagens
do reino. Atrás seguia-se o rei, em ato de penitência, de cabeça descoberta,
ladeado pelos cardeais de Bourbon e de Lorena e empunhando uma tocha.
Arcebispos, bispos, sacerdotes, príncipes, embaixadores, membros da
Universidade e do Parlamento, corporações e confrarias compunham o longo
cortejo.
Ouvida a missa na catedral, foi servido um jantar no palácio episcopal
ao rei e à família real. Depois disso, em um trono adrede preparado, sentou-se
o soberano rodeado dos grandes da corte e declarou solenemente guerra à
heresia, que não toleraria nem nos seus próprios filhos, que seriam castigados
impiedosamente. A isso apressou-se Montmorency a sugestionar o rei:
“Deveis começar por vossa irmã”. Francisco replicou: “Tal é o amor que ela
me tem que só crerá naquilo que eu desejar”.
O partido clerical não podia tolerar Margarida com sua simpatia pela
Reforma e um ano antes um franciscano chegara a dizer, em pleno púlpito,
que a rainha de Navarra merecia ser posta dentro de um saco e lançada no
fundo de um rio. O rei, então, tomou as dores por ela e falou mesmo em
aplicar ao frade a pena desejada para sua irmã.[27]
Nesse mesmo dia de solene desagravo, seis luteranos foram queimados
vivos em sinistro auto de fé, ao estilo da inquisição de Espanha.
Ouçamos, em G. de Félice, a descrição da cena terrífica: “Aos que se
mostraram mais firmes já se tinha de antemão cortado a língua, a fim de
evitar que uma palavra de fé ou uma oração saindo do meio das chamas
viessem perturbar a consciência dos carrascos. Esses pobres homens tinham
sido suspensos a uma forca móvel que, elevando-se e abaixando-se
alternativamente, os metia na fogueira e os retirava em seguida, até que
ficassem inteiramente consumidos. Era esse o chamado suplício da estrapa.
O cruel imperador de Roma, que desejava que suas vítimas se sentissem
morrer, não se tinha lembrado de coisa semelhante e a inquisição de Espanha
concedia, aos sarracenos e aos judeus, o favor de serem queimados mais
depressa”.[28]
Observa Félix Bungener[29], que as seis fogueiras – em uma das quais
foi sacrificado Étienne de la Forge, o abastado hospedeiro de Calvino –
haviam sido acendidas em lugares diferentes e que o rei, ao voltar do Louvre,
visitara os diversos pontos de suplício, notando a coragem das vítimas.
Guizot, porém, crê que não há testemunho dos escritores contemporâneos
quanto à visita do rei a tais lugares.
O certo é que a reivindicação da Igreja se fez sentir pela
instrumentalidade de um rei de costumes dissolutos, armado de um santo zelo
pela verdade, no seu entender.
Não ficou nisso o escrúpulo do monarca. Um edito foi publicado,
ordenado o extermínio dos hereges. Os que os ocultassem seriam votados à
pena de morte e os denunciadores teriam a quarta parte dos bens das vítimas.
Mas ainda, Francisco I jactava-se de ser protetor das letras e amigo da
Renascença e da liberdade. E, todavia, a instigações da Sorbona, em 13 de
janeiro, baixou um decreto abolindo a imprensa por servir de propaganda à
heresia; proibindo, sob pena de morte, a impressão de qualquer livro.
Envergonhado depois com tal decreto, seis semanas adiante, em 26 de
fevereiro, protelou indefinidamente a execução da medida.[30]
As perseguições contra os reformados foram notáveis na França e a
igreja reformada francesa é conhecida como a igreja que caminhou “sob o
peso da cruz de Cristo”.
Francisco viu-se em apuros para explicar aos príncipes protestantes
alemães, seus aliados, a sanha de sua perseguição. Não se pejou de faltar à
verdade, dizendo que o rigor não for contra os luteranos e sim contra os
fanáticos anabatistas, inimigos da ordem social, também punidos na
Alemanha com rigor.
Margarida muito se entristeceu e a custo conseguiu de seu irmão o
livramento de três dos seus pregadores – Roussel, Berthaud e Courault.
Francisco concedeu, apenas, que saíssem da prisão para o claustro. Os dois
primeiros fraquearam e permaneceram fiéis a Roma. Courault escapou do
convento na primeira oportunidade e foi refugiar-se em Basiléia. Entre os
mártires da época contam-se Du Bourg, o negociante; Millon, paralítico;
Valeton, o ansioso inquiridor; Poille e muito mais.
Grande foi o número dos que trataram de procurar asilo na Suíça. Entre
outros homens ilustres que então abandonaram a França, cita-se Maturin
Cordier, o sábio perceptor do Colégio La Marche, que era agora franco amigo
da Reforma.
O reinado de Francisco I marcou apenas prelúdio do sofrimento da
“igreja sob o peso da cruz”. Os huguenotes teriam de continuar a gemer sob o
flagelo das tribulações nos reinados subsequentes. A série das perseguições
culmina no reinado de Luiz XVI, com a revogação do Edito de Nantes,
desastrada medida política do famoso “Rei – Sol”.
O dia 21 de janeiro tornou-se fatídico na França. Em 1535 Francisco I
inaugurava, solenemente, nova era de perseguições; em 1793 o inofensivo
Luiz XVI arrostava no patíbulo as consequências da loucura desenfreada do
seu povo; em 1871 a mesma cidade de Paris, que presenciara as duas datas,
se viu forçada a capitular ante a demonstração possante do povo alemão.
CAPÍTULO IX. AS INSTITUTAS

Passos de Calvino ao sair da França com Du Tillet. Basileia e seus varões ilustres.
Preparação das Institutas. A edição original. Edições sucessivas. Línguas em que foi
publicada. Plano do livro. Elogio da obra. Parecer de Brunetière. Análise de prefácio
das Institutas.

Para melhor inteligência, resumamos os incidentes da vida de Calvino


naquele ano de 1534, de tantas peregrinações e de terríveis perseguições,
pormenores estes que nem sempre são postos em ordem pelos biógrafos do
reformador e em vários dos quais já nos temos referido de passagem.
No começo do ano, ei-lo em Angoulême, no remanso hospitaleiro do
cônego Du Tillet, entregue a estudos proveitosos, no convívio de pessoas
distintas. Vemo-lo, então, em Nérac, na corte de Margarida, confabulando
com Le Fèvre. Em maio, renuncia formalmente, em Noyon, o catolicismo
romano, no seio do qual, por alguns anos, tivera como alvo o sacerdócio.
Paris recebe-o de novo por um momento apenas. Há o primeiro contato com
Serveto. Breve iria estalar a tempestade de outubro e Francisco I não o
pouparia, certamente. Sua missão estava em início e a Providência o
resguarda. Por isso, em julho, pelos cálculos de Wyllie, despede-se da grande
capital e vai a Angoulême dar o adeus ao cônego seu amigo, que, entretanto,
o acompanha e com ele permanece até o mês de agosto de 1537, quando
regressa à França e ao serviço do papa. Demoram-se um tanto em Poitiers
como foi descrito, mas, temendo pela segurança, vão a Orléans, onde Calvino
edita a Psychopannychia. Não há sossego, todavia. As nuvens tornam-se mais
espessas. Atravessam a região da Lorena e buscam a fronteira, acompanhados
de dois criados. Nos arredores de Metz, um deles foge com a bagagem e um
dos animais. Chegam a EEstrasburgo onde, em casa de Bucer, teólogo
luterano, encontram a mais fraternal acolhida. Além disso, Estrasbusgo é uma
conquista da Reforma, uma nova Wittenberg, uma cidade de refúgio para os
protestantes perseguidos.
Mas o destino o impele para diante e o abrigo temporário de Calvino
será em Basileia, outra cidade de refúgio, terra de humanistas, letrados e
teólogos. Aí encerra o ciclo de longos dias o príncipe dos humanistas,
Erasmo de Roterdã. Froben, o impressor famoso, ali vive também. Entre os
teólogos da Reforma estão Capito e Simão Grynaeus, figuras brilhantes da
universidade daquela terra progressista. Quatro anos antes extinguira-se, em
Basileia, a luz de Ecolampádio, consumido de pesar pela morte de Zuínglio, e
Oswaldo Myconius ocupava com brilho o lugar vago. A cidade hospitaleira
acolhera, dez anos antes, Guilherme Farel e mais tarde recebia, do mesmo
modo, Cop e Courault, emigrados de França. Em Basileia, prosseguiu
Calvino os estudos de hebraico aos pés da Simão Grynaeus, a quem dedicou
mais tarde (1539) seu comentário aos Romanos, e relacionou-se com o douto
Bullinger, de Zurique, o sucessor do preclaro Zuínglio.
Segundo os melhores cálculos, a chegada de Calvino a Basileia
verificou-se em princípios de 1535.
Alojado em casa de uma distinta matrona, Catarina Klein, no arrabalde
Santo Albano, ali ficou mais de um ano em laborioso isolamento. Era este o
ideal de sua vida, a tranquilidade do gabinete e o doce convívio dos livros.
Não foi sem custo que se resolveu a trocar as delícias dos estudos pela vida
agitada de reformador. Seu comodismo teve de ser sacrificado. Erasmo não
quis fazer o mesmo. Por isso sua glória foi menor.
Foi no retiro de Basileia que produziu a Instituição da Religião Cristã,
também conhecida por Institutas. Como o célebre tratado de Justiniano era
um resumo ou compilação das leis romanas, as Institutas de Calvino
constituíam uma admirável exposição sintética dos princípios fundamentais
do cristianismo.
Foi considerada obra de valor da Reforma. O professor Kampschulte,
abalizado escritor católico, reconhece que Calvino bem merecia o confronto e
acrescenta que o livro contém trechos dignos de serem emparelhados com os
melhores escritos de Pascal ou Bossuet. Foi também um novo Tomás de
Aquino entre os reformadores. Aliás, era o Doctor Angelicus um de seus
mestres prediletos nos dias do seminário, em Paris.
A afamada obra de Calvino foi concluída em 1535 e impressa em
março de 1536. O plano do livro estava amadurecido na mente do escritor. Já
foi citado Florimond de Raemond, quase contemporâneo de Calvino, autor do
livro Histoire de la naissance, progrès e décadence de l’hérésie, que entende
haver sido Angoulême a forja em que o novo Vulcano produziu as suas
estranhas opiniões.
Guizot e outros historiadores acham também que, na copiosa biblioteca
do cônego Luiz Du Tillet teria ele encontrado material suficiente naqueles
meses de retiro. Concebida a ideia a talvez mesmo principiada a obra em
Augoulême, teria tido a mesma ampla realização na placidez de Basileia,
livre dos sobressaltos em que vivia constantemente no país natal.
As Institutas são precedidas de uma epístola dedicatória, consagrada a
Francisco I, rei da França, datada do décimo dia antes das calendas de
setembro, isto é, de 23 de agosto de 1535.
Tem-se agitado a questão a respeito da linguagem original da primeira
edição. A opinião antiga inclinava-se a favor de uma edição francesa, da qual
nenhuma copia presentemente existe. Haag, Luiz Bonnet, Guizot e vários
outros propendiam para aquele lado. A crítica recente, com Kampschulte,
Jules Bonnet, Rilliet, Williston Walter e Doumergue, parece ter dito a última
palavra pronunciando-se a favor de um original latino, que é a edição que se
conhece e da qual, segundo a notícia introdutória à versão inglesa de 1845, de
Edinburgo, o número de exemplares conhecidos não iria além de meia dúzia.
A própria Biblioteca de Genebra possuía, então, apenas um exemplar
mutilado.
Doumergue, citado por C. H. Irwing, (John Calvin, 1909, p. 26),
chegou a semelhante conclusão baseado na edição francesa de Calvino de
1541, que é, sem dúvida, a sua primeira edição nesta língua. Nela, diz
Calvino: “Com este fim compus o presente livro. E primeiramente o pus em
latim… mas depois desejando transmitir o que havia nele de proveitoso à
nossa nação francesa, vim a traduzi-lo em nossa língua”. E Doumergue
argumenta: “Concluímos não só que a edição latina de 1536 é a primeira
edição das Institutas Cristãs, como também ainda é material e moralmente
impossível que assim não tenha sido”.
Esta primeira edição latina trazia por título – Christiana Religionis
Institutio… Joanne Calvino Nouiodunensi autore. Basileae MDXXXVI,
Colophon: Basileae per Thomam Platteru & Balthasarem Lasium, mense
Martio, ano 1536. 8 vo, pp. 541.
Era uma edição resumida de pouco mais de 500 páginas, contando
apenas seus capítulos:
I – Da Lei (explicação do Decálogo)
II – Da Fé (explicação do Símbolo dos Apóstolos)
III– Da Oração (explicação da Oração Dominical)
IV – Dos Sacramentos (o Batismo e a Santa Ceia)
V – Dos Sacramentos (demonstração da não razão de ser dos cinco
sacramentos acrescentados pela igreja romana)
VI – Da Liberdade Cristã (poder eclesiástico, administração civil,
etc.).
As demais edições latinas traziam por título Instituito Christianae
Religionis.
A segunda edição apareceu em 1539, em Estrasburgo, e é arranjada de
modo mais sistemático, sendo os seis capítulos subdivididos em dezessete.
Calvino agora era professor. O livro trazia então 434 páginas, in folio. A
terceira é de 1543, ainda de Estrasburgo, in folio, 505 páginas. Foi também
melhorada e a distribuição é feita em vinte e um capítulos. E edições latinas
foram sucessivamente publicadas em 1545, 1559, 1561, 1576, 1584, etc. O
latim era usualmente conhecido e empregado naquele século.
A primeira edição francesa data de 1541, tradução do próprio Calvino,
a que se seguiriam edições frequentes em 1545, 1551, 1553, 1554, 1557,
1560, 1561 (duas neste ano), 1562, etc.
A tradução italiana surgiu em 1557; a inglesa, em 1561; a espanhola,
por Cypriano de Valera, em 1597; a alemã, no mesmo ano.
Foi traduzida também para outras línguas – o holandês, o grego, o
húngaro, o árabe, etc., tudo isso atestando a popularidade alcançada pelo
livro.
A edição latina definitiva do autor é a de 1559, quatro a cinco vezes
maior que a primitiva e dividida em quatro livros, e cada livro em certo
número de capítulos, e cada capítulo em seções. São oitenta capítulos ao
todo. A edição francesa de 1560 é tida igualmente como a definitiva,
modelada pela latina de 1559.
Interessante, porém, é de notar que, a despeito do desenvolvimento da
matéria nas edições sucessivas, o elemento essencial vem na primeira edição
de 1536. Tudo o mais é ampliação da matéria original.
Calvino desenvolve, sistematicamente, o seu bem lançado livro em
torno do Credo dos Apóstolos. A primeira parte ou primeiro livro encara o
primeiro artigo do Credo: “Creio em Deus Pai, Todo Poderoso”. Discute o
conhecimento de Deus, o Criador. Trata, portanto, da Teologia propriamente
dita. São dezoito capítulos bem desenvolvidos em que se estuda o
conhecimento de Deus e o de nós mesmos; a necessidade de Deus e a
natureza do seu culto como oposto à idolatria; a trindade na unidade e a
criação do universo; a criação do homem, seu estado original; a doutrina da
Providência.
O segundo livro, em dezessete capítulos, corresponde ao segundo artigo
do credo: “Creio em Jesus Cristo, seu único Filho”. Tem referência, portanto,
à Cristologia. Trata de Deus como Redentor. Estuda a queda do gênero
humano e o seu estado de miséria e ruína; expõe a lei moral e mostra a
incapacidade do homem para se salvar por meio dela; apresenta o Filho de
Deus nas duas naturezas como o único e supremo mediador; estuda-o na
tríplice função do ofício medianeiro como profeta, sacerdote e rei. O terceiro
livro, em vinte e cinto capítulos, trata do Espírito Santo e da aplicação da
obra redentora de Cristo. Encara, pois, a questão de Soteriologia no artigo do
Credo: “Creio no Espírito Santo”. Estuda o modo de obter a graça de Cristo,
os benefícios por ela conferidos e os efeitos resultantes. Os benefícios de
Cristo nos são comunicados através do Espírito Santo. Com isso define a fé e
o arrependimento. Estuda questão da penitência segundo os escolásticos, bem
como as indulgências e o purgatório. Desenvolve a teoria da vida cristã.
Analisa a doutrina da justificação pela fé e a questão das obras; harmoniza a
Lei com o Evangelho e trata a liberdade cristã da oração. Finalmente, faz um
estudo da livre graça na eleição. São quatro capítulos mostrando a doutrina da
eleição eterna, em virtude da qual uns são predestinados para a salvação e
outros voltados à ruína, doutrina que procura basear nas páginas da Escritura,
ao mesmo tempo que visa refutar os ataques lançados contra a doutrina e
justificar a reprovação dos ímpios.
É a predestinação uma das características do seu sistema teológico,
doutrina sobre a qual volumes têm sido escritos. Santo Agostinho advogou a
doutrina nos seus dias e muitos debates, desde então, se têm travado sobre o
ponto. Mencionamos apenas o fato sem nos demorarmos sobre isso.
O quarto livro contém vinte capítulos e verte em torno do quarto artigo
do Credo: “Creio na Santa Igreja Católica”. Estuda, pois, as questões que se
prendem à doutrina da igreja e dos sacramentos. Doze capítulos são
consagrados propriamente a mostrar qual seja a verdadeira igreja, seus
ministros, seu governo e disciplina, seus concílios e sua autoridade. Neles se
estabelece o contraste apresentado pela igreja romana. Um capítulo examina
os votos monásticos. Seis são consagrados aos Sacramentos. O último
capítulo encara a questão do governo civil.
Os maiores elogios se fizeram em várias épocas à peça notável
produzida por Calvino aos vinte e seis anos, e que é classificada entre as
grandes produções do espírito humano.
Sua erudição é bem patente, observa C. H. Irwin.[31] Basta lembrar
alguns dos autores invocados por Calvino para que vejamos a sua
familiaridade com os clássicos e os doutores da Igreja: Aristóteles, Platão,
Cícero, Virgílio, Lucrécio, Diágoras, Suetônio, Sêneca, Plutarco, Xenofonte,
Ovídio, Juvenal, Horácio, Homero, Plauto, Lactâncio, Galeno, Euzébio,
Josefo, Justino, Agostinho, Tertuliano e outros.
Wylie (Hist. of Protestantism, vol. II, p. 227), passando em revista
obras do gênero das Institutas como a Cidade de Deus, de Agostinho, o livro
das Sentenças, de Lombardo, e a Summa de Aquino – entende que o trabalho
de Calvino excede a todas elas.
Entre as produções da Reforma a mesma cousa se dá. Os Loci
Communes, de Melanchton (1521), estavam ainda adstritos aos moldes
medievos, a despeito do vigor do livro. Em 1525 apareceu o Commentarius
de vera et falsa religione, de Zuínglio, livro também de valor, mas deficiente
como um corpo formal de teologia. A Confissão de Augsburgo (1530) não
excede os limites de uma confissão de fé, a despeito de figurar nela o gênio
de Melanchton. As Institutas, na opinião do citado autor, salientam-se a um
tempo como uma confissão de fé, um sistema de exegese, um corpo de
polêmica e uma apologia. Calvino introduz o leitor na cidadela central,
apresentando-lhe as doutrinas ensinadas por Deus e o Rio da Vida, que é o
Espírito Santo. Esta cidade é a Jerusalém Celestial, a cidade do Deus vivo.
G. de Félice, na História dos Protestantes na França, p. 53, assim se
expressa: “Foi este o primeiro monumento teológico e literário da Reforma
francesa. Pode-se disputar sobre as ideias de Calvino, mas não se lhe pode
contestar o gênio. Logo que propôs as suas premissas, que correspondem ao
nível intelectual e moral da época, ele a sustentou com um vigor e lógica
incomparável. Seu sistema é completo. Espalhando-se ao longo, pelas
escolas, pelos castelos dos grandes, pelas casas dos burgueses, pela oficina do
povo, a Instituição tornou-se o mais poderoso dos pregadores. Ao redor desse
livro agrupam-se os reformadores como em torno de um estandarte. Aí
encontram tudo – doutrina, disciplina, organização eclesiástica – e o
apologista dos mártires foi o legislador dos filhos deles”.
Vamos transcrever de C. H. Irwin, (p. 73 e seguintes), alguns trechos de
um artigo de Brunetière, conhecido escritor católico. Tinha por título – A
obra literária de Calvino e saiu na Revue des Deux Mondes, em 1900. “Há
uma reforma puramente francesa que, de origem, nada ou pouco deve à
reforma inglesa ou alemã… Não era política, como na Inglaterra, ou social,
como na Alemanha, mas religiosa e teológica e moral, precedendo-as mesmo
até. Foi em 1517 que Lutero afixou suas teses em Wittenberg, mas o
comentário latino dos Salmos pelo nosso Le Fèvre d’Etaples data de 1512 e
de Le Fèvre a Calvino – 1512 a 1536 – podemos traçar, em documentos
franceses, o progresso e a evolução lógica de um protestantismo
exclusivamente francês”.
Sobre as Institutas, assim se pronuncia: “Certamente não temos em
nossa língua outro modelo de vivacidade e raciocínio, ou de argumento de tal
precisão e propriedade de termos ou de brevidade e concisão… a paráfrase do
Decálogo é, neste sentido, uma das coisas mais requintadas da língua
francesa. Como Lutero, ao traduzir a Bíblia, Calvino, ao traduzir as Institutas
para a sua língua nacional, estabeleceu entre nós e ele e entre os que terão de
vir depois – uma comunhão, se posso assim dizer, e um contato que só
poderão ser interrompidos ao terminar a nossa língua… As Institutas
constituem o primeiro de nossos livros que mereceu ser chamado clássico.
Sobrepuja o romance ou a poesia de Rabelais pela severidade de sua
composição, pelo modo com que a concepção do todo determina a natureza e
a escolha dos pormenores”.
Acrescenta, ainda, Brunetière que ninguém mais do que Calvino
contribuiu para restringir o mundo no declínio para o paganismo e pensa que,
no caso de heresias, a de Calvino não foi de todo inútil, mesmo para a própria
Igreja.
Mas a despeito dos elogios e do alvoroço em torno das Institutas, a
igreja romana deu-lhe o acolhimento que era de esperar. A Sorbona condenou
o livro às chamas, e Florimond de Raemond denominou-as de “Talmude e
Alcorão da heresia”. Diz Schaff que foi o livro mais perseguido do século
XVII.
Não é justo passar adiante sem algumas palavras sobre a epístola a
Francisco I, anteposta ao livro como prefácio.
Temos presente a edição inglesa das Institutas, tradução de Henry
Beveridge, de 1854, de Edinburgo, e nela a epístola ocupa 25 páginas. Tem
por epígrafe – A Sua Majestade cristianíssima, o muito poderoso e ilustre
monarca Francisco, rei de França, seu soberano – João Calvino deseja a
paz e salvação em Cristo.
As Institutas, conforme vimos, tinham um caráter acentuadamente
apologético. As doutrinas cristãs expostas pelo reformador francês versam
em torno dos quatro grandes artigos do Credo Apostólico, indício certo de
que a Reforma não vinha apregoar um novo Evangelho, mas reafirmar o
Credo antigo, omitindo apenas as inovações introduzidas na igreja desde o
tempos que se seguiram à era apostólica. A epístola é de tom francamente
apologético.
É sabido que Francisco I não se impunha pela integridade de caráter e,
quando moveu perseguição, no “ano dos cartazes”, se viu assaz embaraçado
para explicar a sua atitude perante os príncipes reformados da Alemanha,
com os quais mantinha aliança. Tributando pouco escrúpulo à verdade,
desculpou-se declarando que o castigo visara apenas fanáticos anabatistas,
perturbadores da ordem social, o que não era exato. As fogueiras de Paris
teriam consumido o próprio Calvino se houvesse sido achado ao alcance do
soberano.
Declara o reformador ao seu rei e soberano sua intenção ao escrever as
Institutas. Tinha em vista apresentar os rudimentos aos interessados na
religião. Porém, ante o furor dos homens maus nas perseguições da época,
expunha o sumário da doutrina impugnada e, ao mesmo tempo, uma
confissão da fé perseguida. Não pleiteava em favor de si mesmo para
regressar ao país de origem. Defendia a causa comum de todos os fiéis, a
causa de Cristo, que parecia em desespero naquele reino, tal o furor dos
adversários.
Calvino não pede favor ou tolerância para a igreja oprimida, que ele
entende estar com a verdade. Convida o próprio Rei a abraçar a causa da
justiça, por meio de uma verdadeira conversão. A causa era digna de atenção
e investigação por parte do soberano, autoridade por Deus constituída, que,
no caso vertente, deveria examinar a fé dos perseguidos a fim de protegê-los
de injustiças.
Faz um rápido sumário da fé reformada, que se resume na salvação por
Jesus Cristo somente. Repeliam apenas o que se achava em desacordo com
esse grande dogma. Por isso eram tão malvistos e desprezados. Seu grande
crime consistia em quererem aderir sinceramente à ideia fundamental do
cristianismo.
Mostra então que o clero acusador e incitador das agressões tinha em
vista apenas o interesse pessoal. Não visava o bem real da Igreja. Temia
perder a influência que exercia e daí clamor que se levantava contra os pobres
reformados.
Passa, então, Calvino a responder aos argumentos levantados pelos
adversários ferrenhos.
Primeiramente, impugnavam a religião reformada pelo fato de a
qualificarem de nova religião. Responde a isso, dizendo que tal acusação
seria grande injúria ao próprio Deus. Eles não pregavam um novo Evangelho,
senão a palavra de Deus proferida na antiguidade. Não duvida, porém, que
isso fosse verdade em relação aos adversários, visto que Cristo e seu
Evangelho como que eram novos para eles.
Em segundo lugar, achavam-na duvidosa e incerta. Calvino atribui o
argumento à ignorância dos adversários, que se achavam na posição daqueles
de quem falou o profeta Isaías, quando disse que o boi e o jumento
conheciam seu possuidor, mas o homens de Israel não conheciam o seu Deus.
A falta de conhecimento da verdadeira doutrina é que produzia tal objeção.
Queriam também milagres por parte dos reformadores. Não havia
necessidade de provas semelhantes, porquanto o Evangelho que pregavam
fora confirmado com sinais e prodígios por Cristo e seus discípulos. Milagres
modernos atribuídos aos santos, milagres frívolos e ridículos por vezes, é que
não se tornavam necessários à confirmação da nova doutrina já merecedora
de toda a confiança.
Outra objeção a que responde é a de estarem os reformadores em
contradição com os Padres da Igreja. Calvino contesta isso formalmente,
citando os mesmos Padres e revertendo o argumento. Em contradição com
eles é que estava a Igreja Romana, como passa a provar. Damos apenas uma
pequena amostra de suas citações.
Sobre o abster-se alguém de comer carne na quaresma, cita ele
Espiridião, que afirmava fazer isso livremente quando os outros se
abstinham, isso pelo fato de ser ele um cristão. Sobre o culto das imagens,
cita Epifânio, que ensinava ser horrenda abominação ver-se uma imagem de
Cristo ou de um santo num templo cristão. Sobre a transubstanciação, cita o
papa Gelásio, que ensinava que a substância do pão e do vinho permaneciam
no sacramento como a natureza humana continuava unida à divina em Jesus
Cristo. Cita outro Padre, Agostinho, que ensinava ser teoria arrojada afirmar
qualquer doutrina sem o claro testemunho da Escritura. Outro Padre,
Pafnutius, manifestava-se contra o celibato do clero.
E assim por diante ia Calvino expondo um longo testemunho dos
Padres da antiguidade na condenação de certas doutrinas preconizadas na
Igreja.
Fere, ainda, outro ponto delicado. Acusavam a nova doutrina de lançar
perturbação nos espíritos e causar dissenssões na sociedade. Calvino prova
ser isso uma característica da verdade no despertar da consciência, ao
contrário do erro que se insinua surdamente. Cristo e seus discípulos foram
tidos como sediciosos e perturbadores da ordem social.
Termina a sua apologia apelando à consciência do Rei, a que lesse, com
calma, a profissão de fé que lhe era dirigida, na esperança de que os
perseguidos reconquistassem o favor real. Mas, se ao contrário, as detrações
dos maus impedissem o rei a ouvir a defesa dos acusados, que seriam então
votados como ovelhas no matadouro – na paciência viriam eles a possuir suas
almas, esperando o socorro do Senhor, que se mostraria a seu tempo para
libertar os pobres de suas aflições e punir os desprezadores, agora exaltados
em tanta segurança. “O Senhor, Rei dos Reis – termina ele – estabeleça vosso
trono em justiça e vosso cetro em equidade”.
Tal foi o célebre prefácio das Institutas, tido por Bungener como o
primeiro trecho eloquente de literatura que a língua francesa possuiu.
Calvino, habilmente, censura ao rei sua intolerância, apelando para um juízo
mais seguro. Vários autores, porém, entendem que o apaixonado e frívolo
soberano não se deu ao trabalho de correr os olhos na epístola. Se não o fez, é
certo que por toda a Europa foi lido o ousado testemunho do reformador
francês, que adquiriu justo renome com as suas Institutas, obra em que
trabalhou toda a sua vida, remodelando-a constantemente, edição após
edição.
Schaff classifica a epístola de Calvino como um dos três prefácios
imortais em literatura – o de De Thou, na História da França; o de
Casaubon, no Polybius; e o de Calvino, que considera superior em
importância e interesse.[32]
CAPÍTULO X. PEREGRINAÇÃO PELA ITÁLIA

Na corte de Ferrara. A duquesa Renata e seu esposo Hércules. Influência de Calvino


no ânimo da duquesa. Reação de Hércules contra Renata. O castelo de Montargis.
Vestígios da passagem de Calvino na Itália. Última visita à França.

Findo o trabalho exaustivo das Institutas, partiu Calvino de Basileia,


projetando uma excursão pela Itália, em companhia de seu amigo de
Angoulême, Luiz Du Tillet. A corte de Ferrara, onde vivia a princesa Renata
ou Renné, de França, foi o ponto ao qual se dirigiram.
A duquesa Renata (1510 – 1575) era filha de Luiz XII e Ana de
Bretanha e teria reinado em França se não tivesse em vigor a lei sálica, que
excluía do trono os herdeiros do sexo feminino. Cultora da Renascença,
possuía Renata certo grau de erudição, conhecendo o grego e o latim,
matemáticas, astronomia, filosofia e teologia. Ainda menina, propuseram sua
aliança matrimonial com Carlos de Áustria, o futuro Carlos V, projeto que se
desfez. Escapou também de ser esposo do famoso Henrique VIII. Foi ainda
noiva do marquês de Brandeburgo. Por fim, aos dezessete anos, Francisco I,
seu primo, desposou-a com o duque de Ferrara, Hércules de Este, filho de
Lucrécia Bórgia.
Renata vivera sob a influência de sua prima Margarida de Navarra e
com ela aprendeu a amar a Reforma. Foi mesmo mais firme do que a irmã de
Francisco I, porquanto Margarida, não se desfez das tradições do século,
morrendo na velha igreja, na qualidade de abadessa. Renata também teve de
enfrentar perseguições, mas terminou seus dias professando a fé reformada.
Na corte de Ferrara iam buscar asilo muitos franceses ilustres. O
humanismo atraía para ali muita gente distinta. Hércules de Este, duque de
Ferrara e de Módena, era protetor das letras como sua esposa e a pequena
corte tornou-se uma das mais brilhantes da Itália. Clemente Marot, exímio
poeta francês, foi um dos que se acolheram àquele cenáculo notável e ocupou
por algum tempo o lugar de secretário da duquesa. Era amigo da Reforma e
por isso esteve encarcerado mais de uma vez, mas não tinha a constância dos
mártires e nem a firmeza de convicções. Gozou de certa privança na corte
francesa. Era também amigo de Calvino, que prefaciou sua edição de
cinquenta salmos, ensaio lírico de grande popularidade, condenado porém
pela Sorbona. Membros notáveis do clero italiano como os cardeais
Contarini, Bembo e Sadoleto foram, por sua vez, familiares dos duques de
Ferrara.
Calvino viajava incógnito e usou em Ferrara o nome de Charles de
Espeville. Já seu nome se ia tornando bastante conhecido e o expunha a
perseguições. A duquesa Renata, que era amiga decidida da Reforma,
acolheu-o benignamente e fez do reformador o seu diretor espiritual, e com
ele se correspondeu por toda a vida.
A última carta de Calvino foi dirigida à duquesa, então em França, em
4 de abril de 1564, um pouco antes somente do falecimento do reformador.
A demora de Calvino em Ferrara foi muito curta, dois meses talvez, em
fins de 1535. Segundo Irwin, ocorreu isso de fevereiro a abril de 1536. Sua
presença foi o bastante para decidir a adesão de várias pessoas da corte à
causa da Reforma, entre os quais Madame de Soubise, antiga governanta da
duquesa; Jean de Parthenay, senhor de Soubise e sua esposa; Antônio de Pons
e o barão de Mirambeau. Cedo porém, advieram amarguras a Calvino na
corte de Ferrara. Se a duquesa era amiga da Renascença e da Reforma, não se
dava o mesmo com o duque, seu esposo. Amigo da Renascença, era súdito
fiel do Papa e entrou logo a perseguir os refugiados protestantes. Calvino viu-
se então forçado a retirar-se
Hércules era aliado de Carlos V e temia desgostá-lo e também ao
Pontífice. Daí o seu zelo religioso excitado por conveniências políticas. Seu
acordo com o Papa levou-o a expelir de Ferrara os adeptos do movimento
reformador. Marot buscou asilo em Veneza e Renata foi obrigada a separar-se
de Madame Soubise, à qual estimava como se fora sua mãe.
Hércules enquanto viveu, contrariou os sentimentos religiosos da
generosa duquesa. Em 1550 a Inquisição foi estabelecida em Ferrara. Não
podendo modificar a crença da esposa, o duque invocou o auxílio de
Henrique II, bem como a da Inquisição, que a encerrou, como herética, no
castelo de Este e a perseguida princesa teve de ceder em vários pontos.
Obrigaram-na a ouvir missa e comungar e retiraram de suas vistas duas
filhas, que foram recolhidas a um convento.
Por morte de Hércules, em outubro de 1559, passou ela a reger o
ducado na ausência de seu filho Alfonso. Este, porém, de acordo com Pio IV,
deu-lhe, à escolha, o exílio ou a abjuração. Optou pelo exílio, indo refugiar-se
na França, a princípio em Paris e depois no seu castelo de Montargis.
Tia de Francisco II e sogra do duque de Guise, o encarniçado
adversário dos protestantes, ainda assim fez do seu castelo um asilo seguro
para os oprimidos de sua religião, a que aderira com mais firmeza depois da
morte de Hércules.
Em 1562 foi o castelo sitiado pelo seu próprio neto Henrique de Guise,
que a intimou a entregar os asilados. Ao mensageiro enviado respondeu com
firmeza: “ Tomai cuidado no que fazeis; sabei que a não ser o rei, ninguém
poderá ditar a minha vontade; se executais as vossas ameaças, serei a
primeira a aparecer na brecha e verei se sereis demasiado ousado para matar a
filha de um Rei, cuja morte o céu e a terra vingariam em vós e nos vossos
descendentes”.[33]
A seu pedido, Calvino enviou a Montargis um pastor reformado, F.
Morel, homem distinto. Em referência à posição de Calvino como
conselheiro espiritual de Renata, assim se exprime Guizot na mesma obra: “
Não hesito em afirmar que os grandes bispos católicos, que, no século XVII,
dirigiram a consciência dos mais poderosos homens de França, não
cumpriram essa difícil tarefa com mais firmeza cristã, sábia justiça e
conhecimento do mundo do que Calvino para com a duquesa de Ferrara. E
não era a duquesa a única pessoa a respeito de quem desempenhou ele este
dever de pastor cristão. Sua correspondência mostra que exerceu semelhante
influência, em espírito elevado judicioso, sobre as consciências de muitos
protestantes”.[34]
A duquesa achava-se em Paris na noite de São Bartolomeu, de que
felizmente escapou, conseguindo salvar algumas vítimas. Terminou sua
carreira em 12 de junho de 1575, na fé reformada. Seu testemunho, diz
Bungener, é uma das mais belas páginas da história da piedade protestante.
Deformada no corpo, mas forte no espírito, deu provas de coragem e
patriotismo. Em Ferrara, socorreu os franceses, em 1557, no desastre militar
de seu genro, o duque de Guise, salvando-os de perecer à falta de recursos. E,
quando os intendentes do palácio censuravam tal excesso de despesas,
excusava-se a nobre princesa, dizendo que, se não fosse a lei sálica, seriam
eles seus súditos e por isso era de seu dever socorrê-los. Montargis veio a ser
uma das cidadelas dos huguenotes na opressão despótica dos reis de França.
Vejamos, porém, a missão de Calvino na Itália. Nos curtos dois meses
de sua estada em Ferrara, não somente a duquesa como vários nobres
tomaram posição decisiva ao lado da Reforma e sua influência foi tal que o
duque Hércules, por conveniências políticas e por subserviência à Igreja,
moveu oposição ao reformador e aos seus correligionários, que se viram
forçados a sair do ducado.
Em outro capítulo fizemos referências às calúnias de Bolsec, fruto de pura
malevolência, quando falou da mocidade desregrada de Calvino, fato que
resta provar. Mencionando a viagem deste à Itália, dá o evento como
realizado ao sair ele de Noyon, corrido de vitupério. Conta, então, Bolsec
haver Calvino recebido uma esmola da duquesa ao passar por ali. Eis como
muitas vezes se escreve a história!
Há muitas tradições, algumas sem fundamento, sobre a retirada de
Calvino da Itália. Conta Muratori, citado por Bungener (p. 112), haver sido
ele preso em Ferrara, caindo nas mãos da Inquisição, que o levou a Bolonha,
sendo no caminho arrebatado por cavaleiros mascarados, como no caso de
Lutero em Wartburgo. Mas a isso nenhuma referência faz Calvino, a não ser
que, reservado como sempre, tivesse omitido o incidente em suas notas. Diz-
se haver também passado por Módena, visitando os Castelvetro, que mais
adiante se refugiaram em Genebra.
É mais certa a sua visita ao Piemonte. Ali encontrou vários amigos da
Reforma e pregou no vale de Grana, perto de Coni, onde foi apedrejado. Em
Saluces, não teve melhor recepção, indo dali ao Pignerol. No vale de Aosta,
muitos se alegraram com sua visita. Não se alojou porém na cidade, mas
numa granja, que ainda hoje[35] é conhecida pelo nome de Granja de Calvino.
Ali o abrigou a família Vandau.
Mas o bispo de Aosta, Pedro Gazzini, era um espírito reacionário. A
partir de 1528, nada menos de doze nobres do país haviam sido decapitados
como luteranos pela denúncia do bispo, além de quatro colportores vindos de
Genebra, que haviam sido torturados e executados depois.[36]
Suspeitavam da visita de Calvino, que teve de bater em retirada com
alguns de seus companheiros. Uma antiga narrativa informa que o conde de
Chalons, marechal de Aosta, chegou a ir ao encalço do fugitivo, de espada
em punho, disposto a acometê-lo. Calvino teve de galgar montanhas,
atravessar torrentes, colear precipícios para escapar à fúria do inimigo.
Guizot, na sua Vida de S. Luiz e Calvino (p. 208), estampa uma gravura
representando o reformador a transpor um desses temerosos passos alpinos na
ocasião referida.
A lembrança da perseguição de Calvino não ficou lançada no olvido.
Cedo, em 1541, no centro da cidade de Aosta, pátria do grande Anselmo de
Cantuária, uma cruz de pedra foi erguida, em cujo pedestal era lida a seguinte
inscrição: “Hanc Calvini fuga erexit anno MDXLI. Religionis constantia
reparavit anno MDCXLI. Civium pietas renovavit et adornavit anno
MDCCCXLI”. Explicava a epígrafe que aquela cruz erigida em 1541, em
memória da fuga de Calvino, havia sido restaurada em 1741 e renovada em
1841 pela piedade dos cidadãos.
Repelido da Itália, Calvino regressou à França, indo a Noyon pela
ultima vez. Seu intento era viver tranquilamente em Basileia ou Estrasburgo,
pois ainda não fora elevado à posição de responsabilidade que veio depois a
ocupar. Em Basileia separou-se de seu amigo Du Tillet. Foi então a Noyon,
onde se demorou um pouco, aparentemente não encontrando oposição. Mais
uma vez pregou na terra natal as doutrinas da Reforma e conquistou
prosélitos. Pôs em ordem os seus negócios e dispôs-se a levar consigo para
Basileia os dois irmãos que lhe restavam em Noyon – Maria e Antônio – ao
qual, em tempo, havia ele transferido a capelania de La Gésine.. Foram viver
juntos em Genebra depois disso. Antônio sobreviveu-lhe. Foi ele o
amanuense de Calvino na última carta à duquesa de Ferrara.
CAPÍTULO XI. A CONQUISTA DE GENEBRA

Genebra na história. – Lutas políticas. – Aliança com Friburgo e Berna. – Instituições


democráticas de Genebra. – Cantões reformados e cantões católicos. – Ação de Farel
na conquista da Suíça francesa. – Papel de Saunier. – Conflitos religiosos. – Froment
e Viret entram em ação. – Cenas iconoclásticas e descoberta de fraudes pias. –
Genebra adota o culto reformado.

A história de Genebra data de séculos.


Julio Cesar menciona-a já nos seus famosos comentários. Tinha a sua
sorte então entre os alóbrogos, sendo depois incorporada ao império por
aquele insigne capitão. No século V, era uma das cidades dos burgúndios.
Passou depois aos godos, caiu sob o domínio dos franceses e veio a ser
incluída nos domínios de Carlos Magno. Na derrocada da soberania
carlovíngia, foi incorporada ao santo império romano e constituída em cidade
episcopal, nos dias de Conrado II, sendo o bispo considerado príncipe do
império. Passou este, desde 1215, a ser eleito pelo capítulo e diretamente a
ser nomeado pelo papa, de 1418 em diante. Mesmo antes desta época, o povo
partilhava do governo com o bispo e Ardentius, um deles, contemporâneo do
grande S. Bernardo, obtivera de Frederico Barbarroxa a confirmação da
partilha do poder entre o bispo e o povo. Os condes de Saboia ambicionavam,
também, o domínio e por isso Ardentius foi tido por alguns como o
verdadeiro fundador da independência da cidade.
Ademar Fabri, bispo em 1385, intentou fortalecer os princípios
advogados por Ardentius e dois anos depois foram codificadas as franquias
ou Magna Carta de Genebra, código que estabelecia os direitos da cidade.
Como consequência, a autoridade episcopal gozava do título de príncipe de
Genebra, cunhava moeda e fixava impostos; mas, tinha de jurar observância
aos direitos e privilégios do povo prescritos no código.
O bispo tinha por vassalo o vidomne ou vice dominus, autoridade civil,
instalada no seu castelo do Ródano, ficando o vidomnato enfeudado ao
condado de Saboia, em 1290. Os condes e, mais tarde, duques de Saboia
confiavam o cargo a um dos oficiais. A vigilância da cidade, a execução de
sentenças e outros encargos estavam sob a alçada do vidomme.
Os duques de Sabóia, porém, não cessavam de reivindicar os seus
direitos sobre a cidade de Genebra e daí frequentes conflitos entre eles, o
bispo e o povo. Pelo meado do século V, Roma procurou um meio de sanar o
dissídio, assenhoreando-se da eleição dos bispos, até então realizada pelo
capítulo e confirmada pelo povo. Por conseguinte, os bispos eleitos passaram
a ser do ramo mais novo da casa de Saboia. A diocese de Genebra constituiu-
se, por isso, numa sorte de apanágio da corte saboiana. Diminuíam assim, os
partidos em rixa. O do bispo veio a ser o mesmo de Saboia e pretendia a
subordinação completa de Genebra. O do povo aspirava a independência, à
imitação dos cantões da Suíça, como república livre. Era, pois, republicano o
partido popular.
Em 1451, Amadeu VIII, de Saboia, que veio a ser o antipapa Félix V,
conseguiu o bispado para seu neto Pedro, de dez anos apenas. O
administrador deste último violou os privilégios do povo, provocando a
resistência popular. Antes de atingir a idade canônica, morreu o jovem Pedro,
sucedendo-lhe seu irmão Luiz, também menor. E assim se sucedem os bispos
da casa de Saboia. Em 1484, Francisco de Saboia assume o episcopado, em
1495 Felipe reveste-se da mitra. Em 1513 Carlos III, de Sabóia, faz
invalidar, por Leão X, a eleição livre e regular do cônego Aimé de Giugius
para elevar ao sólio episcopal João de Saboia, filho natural de Francisco de
Saboia, um dos bispos antecessores. João fez transbordar o cálice da
indignação popular. Cedeu ao duque a jurisdição temporal e abriu-lhe as
portas de Genebra. O povo revoltou-se, vendo quebrados os privilégios
outorgados pelo antigo código. Os patriotas foram perseguidos em toda a
linha. O síndico Filiberto foi degolado e Amié Lavrier pagou com a vida seu
patriotismo. Bezançon Hugues fugiu e Bonivard foi feito prisioneiro por dois
anos no castelo de Grolée. O duque Carlos dava leis em Genebra e os dois
partidos estavam vigilantes – o do duque ou dos mamelucos, e do povo, o dos
confederados ou eidgenessen, de onde, segundo alguns, se originou o termo
huguenote.
O bispo João viu-se determinado a abandonar a sede episcopal, sendo
sucedido por Pedro de la Baume, que não se sentia bem em Genebra e pouco
ali aparecia. Foi o último dos bispos da época e o bispado se extinguiu por si
mesmo, antes do decreto oficial de supressão.
Filiberto havia feito aliança, em 1519, com o cantão de Friburgo. A sua
derrota e morte naquele ano tornaram o pacto sem efeito. Mas Bezançon
Hugues, outro chefe do partido confederado ou republicano, conseguiu
renovar, em 1526, a aliança com Friburgo e ainda com o cantão de Berna. A
vitória do partido republicano sacudiu o jugo do duque de Saboia, que ainda
lutou conseguindo a adesão de Friburgo, que estava ao lado dos católicos. A
aliança de Berna era mais segura. Berna abraçara o protestantismo e Genebra,
e seu tempo, veio a participar das mesmas ideias.
Convém, agora, ter uma ideia das instituições democráticas de Genebra.
Segundo um antigo uso, todos os cidadãos e burgueses se reuniam duas vezes
por ano em assembleia ou Conselho Geral, no claustro da Catedral, em
janeiro, para a eleição dos quatro síndicos e, em novembro, para a do tenente
da justiça e seus assessores. O conselho podia reunir-se também
extraordinariamente. Aos síndicos pertencia a justiça criminal e, em suas
mãos, os bispos prestavam juramento de fidelidade à constituição da cidade.
Havia também o Pequeno Conselho, de vinte cinco membros
designados pelo Conselho Geral, e constituído dos quatro síndicos do ano,
dos quatro do ano precedente, do tesoureiro e de mais dezesseis cidadãos. Em
certos casos, podia o número de cidadãos subir a mais trinta e cinco, de
distritos diferentes. Tornava-se, então, o Conselho dos Sessenta. Observa
Bossert que o Pequeno Conselho estava reservado aos cidadãos, isto é, a
burgueses filhos de burgueses. A qualidade de cidadão era uma espécie de
dupla burguesia.
O Pequeno Conselho era uma espécie de comissão executiva à qual
estavam subordinados todos os negócios civis e políticos.
Em consequência da aliança com Berna e Friburgo, em 1526, foi criada
uma nova instituição em Genebra, à semelhança do que se dava naqueles
cantões. Era o Conselho dos Duzentos, poder intermediário entre o Conselho
Geral e o Pequeno Conselho, mais permanente que o primeiro e mais
importante que o segundo. À nova instituição foram transferidos alguns
poderes do Conselho Geral, entre eles a eleição do Pequeno Conselho.
Estabeleceu-se, então, a ordem ascendente nos negócios a serem tratados.
Primeiramente, teria de agir o Pequeno Conselho e, por último, o Conselho
Geral.
Em 1527 as armas de Saboia foram retiradas do castelo da ilha de
Ródano, sendo o vidommato confiado ao tenente da justiça. O domínio de
Saboia chegava ao seu declínio e, em 19 de junho de 1530, o duque teve de
assinar o tratado de S. Julião, em virtude do qual se comprometia a não se
envolver mais nos negócios de Genebra. Assim, pois, estava Genebra como
república independente, aliada à Confederação Suíça, passando por
vicissitudes diversas. Abraçando a Reforma, foi chamada no tempo de
Calvino de Roma do Protestantismo, e deu leis ao mundo protestante. Foi
república democrática e aristocrática.
Em 1602, os duques de Saboia deram uma última investida, sem nada
conseguirem, sendo sua independência garantida pela França, por Berna e por
Zurique. Em 1798, foi incorporada à França e somente na remodelação da
carta da Europa, em 1815, é que passou propriamente a fazer parte da
Confederação Suíça, tendo vivido até aí como república aliada, porém
independente.
Na época em que Genebra punha de lado o jugo de Saboia estava em
plena efervescência a questão religiosa. Alguns cantões suíços haviam
abraçado a Reforma. Zwinglio fora o campeão da Suíça alemã, sendo o
cantão de Zurique o primeiro a filiar-se ao movimento reformador. Em
seguida, Berna, o mais aristocrático dos cantões, deu o passo no mesmo
sentido, em consequência da célebre Disputa de Berna, em janeiro de 1528.
Depois veio Basileia, onde brilhava a lâmpada de Ecolampádio, o segundo
reformador em importância na Suíça alemã. Glarius, S. Gallus, Schaffausen,
Appenzell, Torgau, os Grisões, e outros, foram se incorporando à onda
religiosa. A reforma, promovida por Zwinglio, penetrou mesmo em alguns
pontos da Alemanha e dos vales italianos.
Vários cantões, porém, conservaram-se fieis à igreja romana, à frente
dos quais Friburgo se alistava. Entre eles, contavam-se os cantões florestais,
em número de cinco: Uri, Schwiz, Unterwalden, Lucerna e Zug, onde se
formou a reação católica em liga com Fernando de Áustria, que teve, como
consequência, a tragédia de Cappel, em que Zwinglio pereceu em 1531, no
seu posto de capelão militar.
Na conquista da Suíça francesa não pode ser omitido o nome de
Guilherme Farel (1489 – 1565), ao qual já temos feito referências. Francês,
do Delfinado, oriundo de família nobre, destinava-se à carreira das armas,
mas preferiu a das letras. Convertido à religião reformada, pela influência de
Le Févre, entregou-se abertamente ao trabalho de evangelização, vindo a ser
um dos reformadores mais intrépidos e mais populares. A princípio, fez
propaganda da Reforma em Meaux, em Gap, sua terra, e em outros lugares da
França. Perseguido, transportou-se para a Suíça, indo ter a Basileia, onde
recebeu de Ecolampádio generosa acolhida, sendo por ele consagrado ao
santo ministério. Visitou Zurique e Constança e uniu-se a Zwinglio e
Myconius. Enviado ao principado de Montbéliard, ali pregou por certo tempo
até que a oposição clerical o impeliu para Estrasburgo, em que permaneceu
mais de ano. Voltando a Basileia, recebeu um apelo do cantão de Berna, que
havia abraçado a Reforma, tornando-se pregador ativo sob proteção dos
berneses, que o mandaram a Aigle, no sopé dos Alpes, e a outros pontos do
cantão. Em 1529 ei-lo em Morat. Depois percorre a Jura Bernes em viagem
de evangelização. Vai a Neuchâtel e faz sucesso. Em 1530, numa coluna da
velha basílica da cidade, foi inscrito que a idolatria havia sido abolida em 23
de outubro. Conquistou, em seguida, Valengin e Orbe, onde angariou a
adesão do jovem Pedro Viret, personagem que iria ocupar lugar honroso
entre os pastores reformados.
Genebra, conquistando sua independência política em 1530, conservou-
se fiel à Igreja de Roma. Em 1532 apregoou-se na cidade uma venda de
indulgências, que produziu certa comoção, como se dera em outros lugares.
O diligente Farel não quis perder a oportunidade e, no mês de outubro,
entrou em Genebra em companhia de Antônio Saunier, seu compatriota e
colaborador. Logo, a atenção do povo se concentrou nos pregadores e o
conselho episcopal citou os dois homens a darem conta de suas doutrinas.
Mas os padres, ao grito selvagem: “Ao Ródano! Ao Ródano!”
assaltaram os forasteiros, conseguindo o síndico salvá-los a custo, escapando-
se eles, pelo lago, para o cantão de Vaud. Um tiro de arcabuz,
providencialmente falho, ia tirando a vida de Farel, pela instrumentalidade de
um servo do grande vigário de Genebra.
Os reformadores não desanimaram. No mês seguinte, apareceu o jovem
pastor Froment, outro compatriota de Farel que soube valer-se de um meio
estratégico para propagar a Reforma em Genebra. Fez-se anunciar como
mestre-escola para meninos e adultos, prometendo ensinar a ler dentro de um
mês. Também aplicava remédios aos enfermos, tudo gratuitamente. Foi
grande a clientela. Na escola, ditava textos bíblicos com os quais a Igreja
estava em contradição e, curando as dores físicas, indicava também o
remédio aos males espirituais. Os padres provocaram imediata reação. Eles
mesmos dispersavam as assembleias e excitavam os fanáticos à perseguição.
Os magistrados, temendo motins mais sérios, proibiam as preleções de
Froment, que se viu forçado a buscar refúgio em Vaud, deixando porém, em
Genebra, um pequeno rebanho evangélico.
Meses depois, em março de 1533, Farel reaparecia na liça, desta vez
fortalecido pelo governo bernês. A aliança entre os dois estados levou os de
Berna a solicitarem de Genebra liberdade para a pregação do Evangelho.
Froment não se fez esperar também e, dentro em breve, Viret se uniu ao dois
companheiros na conquista de Genebra para a Reforma. A eloquência de
Farel obrava prodígios a par de sua ousadia. As conquistas eram patentes.
Mas a reação católica se ia, por sua vez, operando. Um dominicano, Guy
Furbity, doutor da Sorbona, havia pregado violentamente em Genebra contra
os luteranos no advento de 1533, provocando uma resposta de Froment,
contra o qual se levantou o Conselho, banindo-o. Mas os de Berna
protestaram, considerando como um caso pessoal as invectivas de Furbity do
púlpito e pedindo sua prisão. Furbity foi trazido perante o Conselho e, em
consequência disso, os pregadores empenharam-se com ele numa discussão
religiosa, que se prolongou por vários dias, com proveito para a causa da
Reforma.
Em 1º de março de 1534, Farel pregava no convento de Rive com
grande aceitação. Padres e monges começaram a abandonar a Igreja e alguns
deles contraíram matrimônio. Froment, comentando a situação, observa que
muitos censuravam uma tal determinação, tolerando, entretanto, que
vivessem em estado de concubinato. Em nossos dias a censura é a mesma.
Tolera-se o concubinato dos padres; há escândalo porém quando um deles
contrai matrimônio pelos meios legais.
No verão de 1534, o bispo Baume, que desde o ano anterior se
estabelecera em Annecy, unido ao duque de Saboia, tomou armas contra a
cidade para se opor à invasão do protestantismo. A luta foi tremenda, mas a
igreja romana ia perdendo terreno a olhos vistos. No fim do ano, o Conselho
ainda reconhecia a autoridade episcopal, mas, um terço da população abraçou
a Reforma e a aliança de Berna era cada vez mais intensa diante do ataque
feito a Genebra.
Entretanto, adversários mesquinhos recorreram a um ardil para se
libertarem dos três pregadores – Farel, Froment e Viret. Subornaram a
cozinheira, que preparou uma sopa envenenada para os três, mas somente o
último provou dela. Ficou em estado grave mas foi salvo e a cozinheira, que
veio a ser executada pelos magistrados, confessou que fora aliciada por dois
clérigos.
Em meados de 1535, de 30 de maio a 24 de junho, com o apoio do
Conselho, na grande sala do convento franciscano de Rive, uma prolongada
discussão, ao uso da época, travou-se, vendo-se, do lado dos católicos o
dominicano Chappuis e o doutor de Sorbona, Careli; e Farel e Viret do outro
lado. Os magistrados hesitavam ainda entre Berna e Friburgo, isto é, entre o
protestantismo e o romanismo. Mas, a discussão foi decisiva e os campeões
de Roma declararam-se vencidos e aderiram à Reforma. [37]
Em 8 de agosto, Farel pregou vitoriosamente na catedral de S. Pedro. O
povo, excitado, entregou-se a cenas iconoclásticas, dignas de censura por
certo. Doumergue assim se expressa sobre o caso: “Os católicos romanos
falam das profanações e dos vandalismos ocorridos na queda do catolicismo.
Nisso há razão. Mas, esquecem-se de notar as descobertas trazidas à luz na
derrocada, as farsas empregadas para levar imagens a cantar, nas noites de
Natal, por meio de tubos acionados pelo vento. Um suposto cérebro de S.
Pedro, venerado por séculos, foi descoberto não passar de uma peça de
“pedra pomes”![38]
Entre fraudes pias e falsas relíquias, então descobertas, estava um braço
de Santo Antônio, muito milagroso. Verificou-se não ser um braço humano,
mas uma canela de veado. As imagens que faziam ouvir a voz, por meio de
tubos mecânicos, eram as de S. Nazário, S. Pantaleão e S. Celso. O
conhecimento de tais fraudes – aliás tão frequentes mesmo em nossos dias –
concorreu para enfraquecer a causa de Roma.
Em 10 de agosto, o Conselho dos Duzentos aboliu a missa, premido
pela opinião popular, embora ainda contragosto. Farel, na ocasião, se
pronunciara com todo o ímpeto de sua eloquência poderosa. Em 27 do
mesmo mês, foi decretado que o culto reformado deveria substituir o culto
católico e Farel e seus amigos puderam, desde então, pregar o Evangelho
livremente. Ainda se viram cenas iconoclásticas e muitos padres,
envergonhados com as fraudes pias reveladas e com as próprias torpezas que
foram descobertas, tomaram o rumo de Saboia. Farel, Viret, Froment e
Saunier, os quatro pregadores reformados, foram postos em evidência. Todos
eles eram franceses assim como Calvino e, desta sorte, a França protestante
teve papel de importância na conquista da Suíça francesa.
O dia 21 de maio de 1536 foi um dia memorável em Genebra. Na
catedral de S. Pedro, reuniu-se o Conselho Geral e foi lida uma moção do
Pequeno Conselho, já retificada pelo Conselho dos Duzentos. Era a
confirmação solene da medida de 27 de agosto do ano precedente. Era um
domingo. Foi decidido, por unanimidade, a aceitação da religião reformada e
a supressão do culto de Roma. De mãos erguidas, os cidadãos tomaram o
compromisso de adotar o Evangelho como norma de vida. Segunda resolução
veio completar a primeira. Foi decretado o ensino obrigatório e sem
dispêndio para o povo. Assim, ao mesmo tempo, instituíam-se a Igreja e a
Escola. O convento dos franciscanos de Rive foi organizado em escola e
seminário, e o pastor Saunier foi posto à frente do corpo de professores. Um
dos benefícios trazidos pela Reforma, e por todos reconhecido, foi o
desenvolvimento da instrução popular. O convento de Santa Clara foi
transformado em hospital. As rendas eclesiásticas destinaram-se a obras de
educação e beneficência. O povo era aquinhoado com aquela riqueza até
então inútil. Lutero, Melanchton e Calvino, entre os reformadores,
salientaram-se pelo amor à causa da instrução. O segundo deles mereceu o
honroso qualificativo de preceptor da Alemanha – Precetor Germaniae.
CAPÍTULO XII. PRIMEIRA RESIDÊNCIA EM
GENEBRA

Lápide comemorativa – Preceitos de moral em Genebra – Conquista de Calvino por


Farel – Testemunho de Calvino a respeito – Apostasia do cônego Du Tillet – Postos
confiados a Calvino em Genebra – Debates em Lausane e conquista de Vaud –
Confissão de fé.

Na transição de Roma para a Reforma e na luta pela sua autonomia,


Genebra curtira horas de amargura. Intenso fora o incêndio da guerra civil
promovida pelo duque e pelo bispo, e grande veio a ser a transformação
operada no governo civil e religioso. Numa placa comemorativa da adoção da
Reforma, em 1536, lia-se a seguinte inscrição: “Em memória da graça que
Deus nos fez de haver sacudido o jugo do Anticristo, abolido a superstição e
recobrado a nossa liberdade”.
Até o ano de 1798 permaneceu a placa no muro da municipalidade,
sendo então depositada na biblioteca pública. No jubileu de 1835 foi a lápide
colocada na catedral de S. Pedro encimada por epígrafe ainda mais
significativa: “ Este monumento, consagrado outrora pela piedade de nossos
pais, foi restabelecido e posto neste santo lugar no mês de agosto de
MDCCCXXXV, em memória da Reforma em Genebra, ocorrida três séculos
antes na bondade de Deus e pela dedicação de quatro estrangeiros piedosos,
nossos grandes reformadores – Farel, Froment, Viret e Calvino”. A medalha
então cunhada para comemorar o evento trazia as efígies de Farel, Calvino,
Viret e Beza, que foi o sucessor do grande reformador de Genebra.
Em 4 de dezembro de 1535, o Conselho dos Duzentos decidiu que as
moedas deveriam trazer uma nova divisa – Post tenebras lucem (spero). Era
uma esperança ante a nova ordem social, que logo se converteu em realidade
com a adoção de uma nova divisa: Post tenebras lux.
Com as reformas introduzidas em Genebra, os Conselhos dirigentes
representavam, simultaneamente, a Igreja e o Estado, e a lei religiosa aliava-
se à lei civil.
Farel, para consolidação da nova ordem de coisas, escreveu e fez
promulgar uma singela confissão de fé, que se limitava a condenar os erros
de Roma e a prometer uma vida de conformidade com a moral evangélica. As
horas e as normas do culto público foram estabelecidas, bem como a
observância do domingo.
Como teremos de referir em tempo, antes de Farel e de Calvino havia
regras severas de moral, como se dava em vários estados da confederação
suíça. Farel, à frente de Genebra, esforçou-se por manter uma austera
disciplina. Foram adotadas penas severas contra os blasfemadores e os que
tomavam em vão o santo nome de Deus, bem assim contra as danças
desonestas, canções licenciosas e outros abusos.
Genebra, na época de que estamos tratando, não era ainda cidade de
renome e sua população orçava entre doze e quinze mil habitantes apenas.
Desaparecera o prestígio do duque de Saboia, caíra o bispado, surgira a
independência política e religiosa. Havia agora necessidade de uma sábia
organização civil e eclesiástica. A moral deixava muito a desejar. Tudo
estava por fazer. Farel era homem de ação e ousadia. Faltava-lhe, porém,
capacidade administrativa e ele consumia as suas vigílias na preocupação de
suas responsabilidades. Como restabelecer a ordem no caos produzido pela
revolução?
Passavam-se dois meses desde a grande assembleia de 26 de maio,
quando, em uma noite de julho, alvissareira nova chegou aos ouvidos do
mestre Guilherme Farel. Estava de pernoite, numa das hospedarias de
Genebra, um forasteiro merecedor de sua atenção. Este viajante singular era
João Calvino, de Noyon, o autor das Institutas.
Farel sente um impulso estranho. Parece-lhe ter ao alcance o homem
destinado pela Providência para o renome de Genebra. O judicioso autor das
Institutas seria a mente organizadora e o talento administrativo de que tanto
se necessitava.
Era Calvino, de fato, o forasteiro que se apeara de uma carruagem
vinda das bandas de França. Terminada a excursão pela Itália, volvera pela
ultima vez a Noyon, onde encontrou apenas Antônio e Maria, seus irmãos,
que lhe deram notícia do recente falecimento do irmão mais velho, Carlos,
que havia sido cura de Roupy. Segundo o testemunho de Antônio e Maria[39],
Carlos morrera confessando o nome de Cristo, na esperança do Evangelho e
por isso os padres, exasperados, o haviam sepultado como um condenado,
entre as quatro colunas que constituíam o pedestal da forca. Assim pensava
Drelincourt, citado no 2º capítulo desta obra, embora Guizot não seja do
mesmo parecer.
Calvino, então, levou de companhia os dois irmãos que lhe restavam
em Noyon. Devido à guerra entre Carlos V e Francisco I, as estradas da
Champanha e da Lorena estavam tomadas de forças militares e para ir a
Basileia e Estrasburgo teve de atravessar a região do Bresse para atingir o
Ródano, por Genebra e, dali se dirigir a Basileia, por Lausane e Berna. Foi a
Providência que o levou a aquele desvio em sua rota.
Ao saltar da carruagem, viu-o seu amigo Du Tillet, seu companheiro
em Ferrara e que agora estava em Genebra. Foi ele que o levou a uma
estalagem e correu a dar a nova a Farel.
O encontro dos dois franceses teve o seu tanto de dramático e
emocionante.
Farel expõe a situação moral e religiosa de Genebra e apela para que o
moço reformador faça daquela cidade o seu centro de ação. Calvino resiste
por todos os modos. Alega as suas preferências. Não nascera para lutas. Era
homem de gabinete e entendia que poderia prestar seus serviços à Reforma,
como o havia feito até então; como um franco atirador. Porém, sem
responsabilidades, escrevendo livros e entregando-se a estudos, que
aproveitassem à Igreja e à ordem social.
Farel porfia e esgota todos os argumentos sem nada conseguir. Por fim,
recorre a um meio supremo. Ergue-se na angústia de sua alma, na premência
da situação em que Genebra se encontrava, no seu entender. Levanta a mão
sobre o letrado obstinado, e, na atitude dos antigos profetas, impreca sobre
ele a maldição dos Céus: “Teus estudos, exclama, são um pretexto! Eu porém
te declaro que, se te recusas a associar-te ao meu trabalho, Deus te
amaldiçoará por teres procurado os teus interesses de preferência aos de
Cristo!”
Do encontro providencial, há um quadro muito expressivo, que vem
ilustrando as biografias do reformador, e nestas páginas o reproduzimos.
Farel, em aflição ergue a destra sobre Calvino, que se sente vencido. Ao
fundo dois personagens se destacam, provavelmente Antônio Calvino e
Maria.
Calvino viu-se dominado pelo gesto de Farel, que era mais velho do
que ele vinte anos, e por fim assentiu.
Vamos ouvir suas próprias palavras no prefacio à edição dos Salmos,
que extraímos da edição de Edimburgo, de 1845, publicação da Calvin
traslation society : “E eu havia resolvido continuar na mesma intimidade e
obscuridade até que afinal Guilherme Farel me deteve em Genebra, não tanto
por via de conselho e exortação como por tremenda imprecação, que me
pareceu como se Deus tivesse baixado do Céu a sua mão para me deter.
Visto, em consequência da guerra estar impedido o caminho mais direto a
Estrasburgo, para onde intentava eu ir, resolvi passar apressadamente por
Genebra, demorando-me nela apenas uma noite. Pouco antes, o papismo
havia sido dali repelido, graças aos esforços da excelente pessoa que acima
nomeei e de Pedro Viret. Mas, a situação não estava bem definida e a cidade
fora entregue a facções perigosas e ímpias. Então, um indivíduo, que agora
vilmente apostatou e voltou para os papistas, descobriu-se e fez o caso de
outros conhecido. A isso, Farel, abrasado de zelo extraordinário para o
progresso do Evangelho, imediatamente tocou-me em todas as fibras para me
deter. E depois de ser informado de que meu coração se inclinava aos estudos
privados, visto como eu evitava outras empresas, achando que nada obtinha
por meio de súplicas, passou a dirigir uma imprecação, pedindo a Deus que
amaldiçoasse o meu retiro e tranquilidade dos meus estudos tão idolatrados,
caso eu me retirasse e lhe recusasse a assistência em necessidade tão urgente.
Tal imprecação feriu-me de terror e desisti da jornada que havia
empreendido. Mas, consciente da minha natural modéstia e timidez, não
desejava ficar debaixo do compromisso no desempenho de um cargo
especial”.
A propósito da vitória de Farel, desenvolve Schaff o seguinte
comentário:. “Farel deu a Reforma a Genebra e deu Calvino a Genebra – dois
presentes que coroaram a sua obra e imortalizaram seu nome como um dos
maiores benfeitores daquela cidade e do cristianismo reformado. Calvino foi
preordenado para Genebra e Genebra a Calvino. Ambos haviam feito segura
“sua vocação e eleição”. Ele achou, na cidade do lago Lemano, uma
república vacilante, uma fé titubeante, uma igreja nascente. Deixou em lugar
disso a Gibraltar do Protestantismo, uma escola de igrejas e nações”.[40]
A referência de Calvino, nas linhas supra, nas citações do prefácio dos
salmos, a um indivíduo que voltara ao papismo entende-se com o cônego
Luiz Du Tillet, o grande amigo de Calvino, que lhe franqueara em
Angoulême a sua escolhida biblioteca, “a forja onde o novo Vulcano
esboçara na bigorna as estranhas opiniões, que depois veio a publicar” – no
dizer de Florimond de Raemond. Fora ele, Du Tillet, que correra a dar a Farel
a denúncia da passagem de Calvino por Genebra, tornando-se assim um dos
instrumentos da Providência para que seu amigo permanecesse em Genebra.
E, todavia, o antigo cônego voltou atrás. Faltara-lhe a perseverança de
Calvino e não o animara a coragem de Farel. Depois de algum tempo em
Genebra, voltou ao seu retiro de Angoulême e ao aconchego de sua rica
biblioteca. Apostatou da religião reformada e voltou a desfrutar os benefícios
eclesiásticos na França. Por isso, são tão severos os conceitos do reformador
sobre o incidente.
Calvino deu-se por vencido, mas dirigiu-se primeiro a Basileia, para
desempenhar-se de certo compromisso. Em fins de agosto, ei-lo
definitivamente em Genebra. Condescendeu a princípio, em ser apenas
professor das Sagradas Letras, por meio de preleções bíblicas na Catedral de
S. Pedro, consagrada já ao culto reformado. Em 5 de setembro, deu ele a
primeira lição sobre as epístolas paulinas perante númerosa assistência. Na
narrativa de Guizot, teria Calvino iniciado as suas prédicas em 1º de
setembro.
O reformador francês foi eleito professor de teologia ou das Sagradas
Letras e pastor evangélico, mediante sufrágio popular, pelo concurso dos
presbíteros da igreja, do Conselho e de todo o povo reunido, eleição
semelhante a de Cipriano, Ambrósio e Agostinho, nos dias primitivos do
cristianismo. Tinha então vinte e sete anos e um nome feito.
Schaff observa, porém, que não há informação positiva se a eleição foi
confirmada pela oração e imposição das mãos, como nos casos de Farel e
Viret. A princípio, como ficou notado, ele aceitou apenas o cargo de
professor. Somente depois resolveu-se também ao pastorado.
Ha um registro curioso nos anais de Genebra. No referido 5 de
setembro, o secretário inseriu então a nota: “Mestre Guilherme Farel fez ver a
necessidade desta exposição começada em S. Pedro por aquele francês . Por
isso pediu que o tratassem de conservar e que se providenciasse sobre a sua
manutenção”. O “francês” (para o qual o secretário parece mostrar-se tão
indiferente) havia de exaltar a cidade onde fora acolhido. Outro registro, de
13 de fevereiro de 1537, insere que até ali nenhum salário lhe fora concedido.
Dão-lhe, pois, nesta ocasião, seis escudos de ouro.
Alojaram-no no Bourg-de-Four, numa casa de esquina, formada pela
rua Chaudronniers e os edifícios do hospital. Quando, mais tarde, o cardeal
Sadoleto visitou Genebra e perguntou onde “ficava o palácio de Calvino,
ficou admirado de ver a modesta habitação de onde esse homem estendia
para tão longe a sua influência”.[41]
Dentro de um mês Calvino ficou ainda mais em evidência. A Reforma
ia exercendo sua influência em boa parte da Suíça alemã e francesa. Como
em Zurique, Berna, Neuchâtel e outros pontos, penetrou o movimento
reformador na região de Vaud, que os berneses haviam arrebatado ao duque
de Saboia. Mas Lausane, a cidade episcopal, conservava sua fidelidade a
Roma, como se dera em Genebra. Ajustou-se, portanto, à feição dos tempos,
por determinação do governo bernês, uma série de conferências entre
católicos e protestantes para se decidir a sorte da cidade. A justa se deu na
catedral, perante auditório númeroso, e se prolongou por oito dias, desde 1º
de outubro daquele ano de 1536, ou melhor, desde o dia 2, porquanto na
véspera Farel ocupava o púlpito, preparando os ânimos para a luta teológica
em que se iam empenhar.

Do lado de Roma, dirigiram os debates um dominicano, três ou quatro


sacerdotes, um médico francês e um mestre-escola. Os defensores da
Reforma eram em número menor, mas três homens competentes viam-se à
frente dos debates – Farel, Viret e Calvino. A parte principal da discussão
coube a Farel, como o mais velho e o mais conhecido de todos. Somente no
quarto dia Calvino entrou na arena, sobre a questão eucarística, replicando a
um orador que acusava os protestantes de desprezarem o testemunho dos
Santos Padres. Forte em patrologia Calvino, provou, por citações claras e
definidas de Tertuliano, Crisóstomo e Agostinho, que estes Padres não
conheciam o sacrifício da missa nem a doutrina da transubstanciação. E,
passando dos Padres às Escrituras, exprimiu-se com tal clareza e precisão que
o franciscano Jean Tandy, no mesmo momento, usou da palavra declarando-
se convertido à religião reformada e, pedindo perdão ao povo ao qual
induzira ao erro, rogou ao Senhor que concedesse a mesma graça a muitos
presentes. E logo depôs o hábito monástico, para assombro de muitos.[42]
O debate de Lausane assinalou a conquista de Vaud para o campo
reformado.
De regresso a Genebra, Calvino não teve remédio senão aceitar o posto
que lhe havia sido destinado ao lado dos pastores evangélicos da cidade.
Farel havia já esboçado alguns ligeiros artigos de fé para a igreja de Genebra.
Associado a Calvino, redigem agora os dois uma confissão mais extensa, em
21 artigos, de que daremos apenas o resumo. Estes artigos, para servirem de
regulamento à Igreja de Genebra, foram aprovados pelo Grande Conselho, ou
dos Duzentos, em 10 de novembro do mesmo ano. Foram, em seguida,
confiados ao Pequeno Conselho, para estudo, sendo definitivamente aceitos e
votados em 15 de janeiro de 1537.
Os 21 artigos assim se expressam: 1. Sobre a Bíblia, a única regra de
fé. II. Sobre a ideia de Deus. Um Deus único, adorado em espírito. Nada de
imagens nos templos, de acordo com a lei divina. III. A Lei de Deus.
Suficiência da lei como regra de vida. Apresentação do decálogo no texto de
Êxodo. IV. O homem em sua natureza. Cego, corrompido e perverso,
necessita de luz divina para ser encaminhado à obediência. V. O homem
condenado. Consequência resultante do artigo precedente. VI. Salvação em
Cristo. Designado pelo Pai Celestial para a restauração à comunhão.
Apresentação do Credo dos Apóstolos. VII. Justiça em Cristo. Reconciliação
e purificação por meio dele. VIII. Regeneração em Cristo. Libertação do
pecado por obra do Espírito Santo. IX. Remissão dos pecados. Confiança
plena em Cristo e na sua justiça. O demérito de nossas boas obras. X. A graça
de Deus. Todos os benefícios nos são concedidos pela graça divina
independente dos nossos méritos. As nossas boas obras tornam-se-lhe
agradáveis, todavia. XI. A fé. Confiança nas promessas divinas. XII.
Invocação e intercessão. Somente a Deus, por Cristo. XIII. Oração. Nula
quando não procede do coração. Modelo: a Oração Dominical. XIV.
Sacramentos. Exercícios da fé. Dois apenas: o Batismo e a Ceia. XV. O
Batismo. Sinal externo da adoção no Reino, extensivo às crianças igualmente.
XVI. A Ceia. Comunhão espiritual com o sangue e o corpo de Cristo. XVII
Tradições humanas. Somente são legítimas as regras baseadas na Palavra de
Deus. XVIII. Igreja. Muitas igrejas no mundo, mas única Igreja – a dos
verdadeiros fiéis – cuja nota é a pregação do evangelho em sua pureza. XIX.
Excomunhão. Medida salutar para a pureza da Igreja. XX. Ministros da
palavra. Derivam sua autoridade da Palavra Divina. Devem ser fiéis na
instrução e na apascentação do rebanho de Deus. XXI. A autoridade civil.
Ordenança divina que merece respeito em tudo o que não contraria os
mandamentos do Eterno.
CAPÍTULO XIII. BANIMENTO

O catecismo de Calvino. Artigos e regulamentos de disciplina em Genebra.


Ideias da época. Leis austeras de então. O partido dos Libertinos. Influência
de Berna. Pastores e outros vultos de Genebra: Courault, Viret, Froment,
Caroli, Saunier, Cordier. Banimento de Farel e Calvino.

Além da Confissão de Fé por todos recebida, Calvino redigiu um


Catecismo, destinado a menores, que era um resumo das Institutas, em forma
de perguntas e respostas, na revisão do qual se empenhou por várias vezes.
Na opinião de Bungener[43], era uma verdadeira confissão de fé, rigorosa na
doutrina e simples no entendimento. Trata das promessas e de tudo o que se
relaciona com a fé, da obediência e da sua relação para com as obras, das
necessidades que nos são peculiares e do que respeita à oração. Esta terceira
parte encerra onze capítulos, mostrando a importância que o reformador
consagrava à oração. A quarta parte trata da Bíblia, do ministério e dos
sacramentos. Calvino omite, no Catecismo, a questão da predestinação, a que
dá tanta importância em outras obras suas. Foi tal a sua popularidade que foi
posto em uso nas igrejas reformadas da França até a revogação do Edito de
Nantes.
Com a Confissão de Fé, o Conselho de Genebra adotou um conjunto de
artigos concernentes ao governo e disciplina da igreja. “Não era uma
legislação completa”, diz Bungener. “Os regulamentos morais, que vinham
juntos à Confissão de Fé, visavam consagrar o princípio e não intentavam
segui-lo em todas as suas aplicações. Mas o princípio foi votado, sendo isso o
que os reformadores desejavam. O governo foi investido pelo Grande
Conselho do direito de investigar e punir todas as infrações das leis cristãs; os
pastores ficaram com o direito de produzir todos os regulamentos que
julgassem necessários, de assinalar aos magistrados os delitos, de incentivar a
punição. Os representantes do povo abdicavam em seu nome nas mãos dos
chefes da Igreja, desde agora investidos legalmente de toda a autoridade do
Evangelho e identificando-se com os chefes temporais na manutenção da lei”.
Era estabelecer a confusão entre os dois poderes, o temporal e o
espiritual, que foi o açoite da idade média. Neste ponto, os reformadores não
passaram ainda do limite dos costumes da sua época, não estavam adiante do
seu século. O gládio da lei civil tinha de reforçar a disciplina da Igreja.
Os regulamentos – ou Articuli de regimine Ecclesiae – logo
provocaram a discussão, porquanto entendiam alguns que os pastores nada
tinham que ver com a vida privada dos cidadãos. Rompendo com o duque e
com o bispo, achavam que, no gozo de sua independência política, poderiam
também desfrutar a liberdade dos costumes.
Foi esta a grande luta em que se viram empenhados Calvino e seus
companheiros. Em carta a Bullinger, citada por Guizot, dizia o reformador:
“Estamos expostos às mais sérias dificuldades, porquanto o povo, sacudindo
o jugo dos sacerdotes, entende que se libertou de toda a autoridade neste
mundo. Muitos dos cidadãos exclamam: ‘O conhecimento dos Evangelhos
nos é suficiente; sabemos como os devemos ler e nada tendes que ver com os
nossos atos’. Coisa difícil a reconstrução da Igreja! Teremos de lutar contra
as piores paixões da carne e do sangue”.[44]
O ideal de Calvino era o Estado cristão, nos pormenores como no
conjunto das leis, responsável, perante Deus, por todos os atos dos cidadãos.
Equivalia, pois, ao Estado-Igreja, regulando o exercício prático da fé,
forçando o crente, em virtude da fé coletiva, a praticar o que deveria fazer
movido pela fé individual.
Os regulamentos e o conjunto das leis morais e religiosas foram
definitivamente aprovados em 16 de janeiro de 1537. Houve, contudo,
algumas modificações ligeiras.
Não se deve, porém, atribuir a Calvino a paternidade de todos os
regulamentos severos de Genebra, como fazem muitos espíritos imbuídos de
preconceitos contra o chamado “Papa de Genebra”. A disciplina de Genebra
não estava muito em desacordo com a de outros estados suíços e, mesmo no
tempo dos duques de Saboia e dos bispos, havia leis severas, embora nem
sempre fossem aplicadas com rigor. Os costumes da época eram assaz
licenciosos e havia necessidade de leis austeras. O erro de Calvino era o erro
do seu século em recorrer à autoridade civil para reforçar a disciplina
eclesiástica.
Vamos dar alguns exemplos da austeridade das leis naqueles dias. Em
Zurique, exigia-se a assistência de todas as pessoas ao culto público às horas
prescritas. Sob pena de multa, era proibido jurar, jogar dados ou cartas; o
adultério era punido com prisão ou exílio. Em Basileia, era também
obrigatória a assistência aos cultos públicos. Nos distritos pertencentes ao
governo de Berna, as danças eram proibidas – “à exceção de três danças
honestas no dia das bodas”, e as esposas infieis eram submetidas ao regime
de pão e água durante cinco dias. Mesmo na legislação anterior a Calvino, em
Genebra, conheciam-se quatro leis relativas a jogos de azar (1503, 1506,
1510, 1511), quatro contra as danças (1484, 1487, 1492, 1516). Tinha havido
leis contra os costumes dissolutos, a embriaguez, blasfêmias, e outros pontos.
Quando acusavam a Calvino de exigir muito, perguntava ele se seria
permitido praticar no regime evangélico, o que era proibido no domínio de
uma igreja corrompida.
As chamadas leis suntuárias, restringindo o luxo e as despesas, eram
também admitidas em outros países, na Inglaterra e na França por exemplo.
Houve quem censurasse, nos dias de Calvino, a ordem que havia de que
ninguém deveria ocupar o leito por enfermo, pelo espaço de três dias, sem
mandar vir um pastor. Bungener (p. 153, obra citada) nota que em 1860, na
cidade de Roma, sob pena de multa de cem escudos, os hoteleiros eram
obrigados também a chamar um confessor para os hóspedes enfermos por
mais de três dias.
As leis de Genebra eram austeras, e nem os próprios síndicos e
conselheiros e homens de destaque escapavam às suas penas, como Ami
Curtet e Mathieu Manlich. Certo indivíduo acusado de perjúrio foi içado a
uma escada por algumas horas, tendo a mão direita ligada ao alto. Um
adúltero e sua cúmplice foram condenados a passear juntos na cidade; um
jogador obstinado foi exibido, tendo as cartas penduradas ao pescoço; uma
cabeleireira, que havia penteado imodestamente uma jovem esposa, foi
condenada a dois dias de prisão; também eram punidos os pais que privavam
seus filhos da escola.
Assim corria a vida em Genebra. Em meados de 1537 foi notado que
muita gente se abstivera de prestar juramento à Confissão de Fé, pelo que o
Conselho dos Duzentos, em 29 de julho, ordenou que os recalcitrantes se
apresentassem na Catedral para a solenidade do juramento. Em 12 de
novembro, outra resolução do Concílio determinava que os que se
recusassem a fazê-lo deveriam ser banidos do território de Genebra. Mas os
recalcitrantes eram tantos, que a lei não veio a ser executada.
Os reformadores experimentavam, entretanto, frequentes
contrariedades no seu intento de corrigir os maus costumes da cidade.
Em fevereiro daquele ano dois anabatistas – André Benoit e Hermann
de Liége – apareceram em Genebra com ideias subversivas, requerendo uma
disputa com os reformadores. Os Libertinos olhavam com simpatia para eles.
O Conselho recusou a princípio mas cedeu e por dois dias se estendeu a
discussão, pendendo a vitória para o lado de Calvino. O Conselho decretou o
banimento dos dois perturbadores.
Os homens, que se opunham aos reformadores, constituíam uma facção
política e religiosa. Eram denominados Libertinos devido às suas teorias
exageradas de liberdade, pois havendo eles adquirido a liberdade política e
religiosa de Genebra – livre então do duque e do bispo, não se queriam
sujeitar às novas leis votadas. Tinham o seu tanto de anarquistas. Em religião,
tomaram o nome de espirituais e professavam ideias panteístas. Anos depois,
Serveto aliava-se perfeitamente com eles, que se colocaram então ao lado do
ousado anti-trinitário. Os Libertinos, tanto da facção política como da
religiosa, fizeram liga para se opor às tendências dos pastores de Genebra.
Filberto Berthelier, Perrin e Troillet eram os principais entre os do partido
político; Quintin e Poquet eram os chefes dos Libertinos espirituais.
Foram os dois grupos os que se empenharam na conspiração que em
breve ia surgir. Nas eleições de fevereiro de 1538, os adversários fizeram
nada menos de três síndicos e obtiveram maioria do Conselho. O Conselho
dos Duzentos logo determinou que o púlpito não fizesse alusão aos negócios
da república
Em 31 de março, reuniu-se em Lausane um sínodo sob a influência do
governo bernês, que quis impor à Genebra a adoção de certas práticas
seguidas em Berna, como, por exemplo, o uso do pão sem fermento na
comunhão, quando em Genebra era empregado o pão ordinário; o uso de
batistérios nas igrejas, que Farel havia abolido; a observância de quatro
festividades: a Encarnação, o Natal, a Circuncisão e Ascenção, quando em
Genebra havia apenas a observância do dia do Senhor, ou domingo. Lausane
estava sob a dependência dos berneses e votou segundo a intenção deles. Mas
Farel e Calvino apelaram para o próximo sínodo de Zurique e, ao regressarem
a Genebra, pediram que nada se alterasse até a convocação de Zurique.
Entre os pastores de Genebra, cumpre lembrar o nome de Elias
Courault. Era um antigo monge agostinho, que abraçara a Reforma e pregara
no Louvre perante Francisco I, em 1533, sob os auspícios de Margarida de
Navarra.
Perseguido, veio para Basileia e foi substituir Viret em Genebra. Era já
velho e cego quando veio a reação contra os pregadores reformados. Com a
veemência que o caracterizava, atacou os atos do Conselho de Genebra, pelo
que foi preso, mas solto por intervenção de Calvino. Seis dias depois, foi
banido de Genebra, indo morrer como pastor em Orbe.
Viret, que havia ajudado a conquistar Genebra para a Reforma, tomou
parte no debate de Lausane (1536) e foi nomeado pastor da cidade, onde
exerceu o cargo por vinte e dois anos como pastor e professor. Foi também
pregador em Genebra e em vários pontos da França – Nimes, Montpellier,
Lião, Orange. Faleceu em Orthez, em 1571. Escreveu muito. Era suíço, de
Orbe.
Froment, que também foi reformador em Genebra, era francês, como
Farel, mas depois abandonou o ministério para ser notário em Genebra. O
procedimento irregular da esposa concorreu para o seu fracasso ministerial.
Caroli, que era doutor da Sorbona e abraçara a Reforma em Genebra,
foi um dos pastores de Lausane, mas hostilizou Calvino e Farel no sínodo que
ali se reuniu, acusando-os, sem base, da heresia do arianismo. Por fim, voltou
à igreja romana.
Saunier, reitor da escola criada em Genebra, foi substituído em 1538
pelo antigo professor de Calvino no colégio de La Marche, Marthurin
Cordier, que mais tarde, residiu em Neuchâtel e Lausane e voltou a Genebra,
onde faleceu aos 85 anos, pouco depois de Calvino, aos 8 de setembro de
1564.
Os Libertinos, na sua oposição aos reformadores, tinham em parte o
apoio de Berna, que se opunha às medidas radicais de Genebra.
A prisão do velho Courault não intimidou os seus colegas Farel e
Calvino, que continuaram a pregar contra o Conselho. Os adversários
levavam a oposição ao ponto de fazer chegar aos ouvidos dos pregadores o
grito ameaçador: “Ao Ródano! Ao Ródano!”
Aproximava-se a Páscoa e os dois homens receberam ordem de realizar
a comunhão segundo o rito bernês.
Para amargura dos reformadores, nas noites que deveriam preceder à
administração da comunhão, organizaram-se mascaradas, parodiando as
cenas do Evangelho, acompanhadas de danças, canções, excessos de todo
gênero, para gáudio dos espíritos profanos e pesar para os de ânimo sincero.
Chegou o domingo de Páscoa, 21 de abril, e Farel subiu ao púlpito de
S. Gervásio, enquanto Calvino aparecia em S. Pedro. Imensa era a
assistência, vendo-se muitos membros do partido Libertino nos dois templos.
Os dois pregadores, ao contrário do que se esperava, recusaram-se a celebrar
a Santa Ceia, alegando para isso, o estado espiritual dos comungantes.
Espírito profano de tal natureza era indigno de comungantes sinceros.
Inaudito foi o alvoroço e até espadas saíram da bainha. À tarde Calvino
pregou também no Convento de Rive, no meio das mesmas ameaças.
A oposição que Calvino encontrou em 1538, teria de repetir-se quinze
anos depois na mesma catedral de S. Pedro, em 1553. A seu tempo o
veremos.
No dia seguinte, reuniu-se o Conselho dos Duzentos e decretou o
banimento dos três ministros dentro de três dias. Ao ser informado, Calvino
exclamou: “Muito bem! É melhor servir a Deus do que os homens. Se
buscássemos agradar aos homens, fraco seria o nosso galardão; servimos,
porém, a um Senhor mais elevado, que não retirará de nós a recompensa!”
Os adversários dos reformadores saudaram com regozijo a notícia do
banimento e muitos católicos exultaram também. Para os Libertinos era uma
nova queda do regime clerical.
Foram logo estabelecidas as medidas do sínodo de Lausane. Convém
notar, porém, que a recusa dos pregadores, em referência à comunhão, foi
devida somente ao espírito profano dos comungantes e não por se terem de
conformar com o rito bernês, o que para eles era coisa secundária.
CAPÍTULO XIV. EM ESTRASBURGO

Peregrinação de Farel e Calvino. Farel em Neuchâtel. Posição e importância


de Estrasburgo. Mathias Zell, o pioneiro da Reforma. Três vultos de
destaque. Acolhimento recebido por Calvino. Aspectos de seu pastorado em
Estrasburgo.

Como vimos, os ânimos exaltados de Genebra determinaram o


banimento dos reformadores. Primeiro fora o ancião Couralt, vergado ao peso
dos anos, cego e debilitado. Deixou-se ficar ali mesmo pelas margens do
Lemano, fora dos limites de Genebra. Foi a Thonon, sendo eleito pastor em
Orbe, a pátria de Viret. Aos 4 de outubro falecia.
Trilhando por sua vez, a senda amarga do exílio, Farel e Calvino
atingiram Lausane, cidade onde exercia Viret o Pastorado. Berna foi outro
ponto da escala, não sendo, porém, os dois homens acolhidos com a devida
simpatia. Vão, então, a Zurique, sendo recebidos pelo sínodo reunido naquela
cidade. Schaff refere que os dois emigrados reconheceram que haviam sido
demasiadamente rígidos e consentiam agora na restauração dos batistérios,
usança que haviam retirado de Genebra, e na admissão do pão sem fermento
para a comunhão, segundo o uso bernês. Insistiam, todavia, na disciplina, na
divisão da igreja em paróquias e em outros pontos ainda. Bullinger, o
sucessor de Zwinglio em Zurique, intentou pleitear a causa de ambos perante
Berna e Genebra. A primeira mostrou-se favorável, mas a última confirmou,
em 26 de maio, o banimento. Finalmente, detiveram-se em Basileia. Simão
Grynaeus, humanista e professor de teologia, mostrou-se muito benigno para
com os exilados. Veio a ser uma das vítimas da peste em 1541.
A sorte de Farel decidiu-se por então, porquanto aceitou o pastorado de
Neuchâtel, onde decorreu grande parte de seu ministério, falecendo ali aos 76
anos, em 1565, no ano seguinte ao da morte de Calvino. Três séculos depois,
em 1865, deu-se em Neuchâtel a inauguração de sua estátua.
Mais dois meses e deixou Calvino a cidade onde elaborara as Institutas.
Vem agora a seu estágio de três anos em Estrasburgo, a antiga Argentoratum
dos romanos, cidade que servia de elo de conexão entre a Alemanha, a França
e a Suíça, bem como entre o luteranismo e o zwinglianismo. Coube-lhe
também o nome de “Nova Jerusalém” por haver servido de abrigo aos
perseguidos do protestantismo. Entre os refugiados franceses, naquele
albergue de esperança, contaram-se Le Fèvre, Lambert, Farel, Rousseau,
Arande e Calvino. Capito deu a Estrasburgo o nome de “refúgio dos irmãos
asilados”, os de Zurique chamaram-na de “Antioquia da Reforma”,
Florimond de Raemond apelidou-a de “retiro e ponto de encontro dos
luteranos e zwinglianos sob o domínio de Bucer e refúgio daqueles que eram
banidos da França”.
Alta era a reputação de Estrasburgo, ao tempo em que procurou
Calvino aquele retiro. Jacques Pannier, em recente opúsculo – Calvin a
Strasbourg (Estrasburgo, 1925), expende-se em considerações sobre o papel
então exercido pela nobre cidade Alsáciana. Cita Scaligero, que observa não
haver lugar em que os senadores tenham sido achados mais dignos de honra.
O rei da França solicitou a aliança da cidade e teve ao seu serviço bom
número de lansquenets estrasburguenses, adestrados soldados de infantaria.
Matias Zell, Cellius em latim, (1477-1548), Alsáciano, foi o pioneiro da
Reforma em Estrasburgo, secundado depois por Wolfgang Capito, Gaspar
Hedio, Niger e Martinho Bucer, o mais notável de todos. Zell abraçara a
carreira eclesiástica e tornou-se afamado pregador popular. Teólogo
aprovado, ocupara uma cátedra na universidade de Friburgo, da qual veio a
ser reitor. Em Estrasburgo, a pátria de Tauler, nome respeitado entre os
místicos, achou ele um campo propício para a sementeira das ideias
reformadas, datando de 1521 o inicio de sua obra de reformador, ao tempo
em que Lutero fazia retinir o clarim em Wittenberg. Zell foi o primeiro
sacerdote de Estrasburgo a celebrar a missa no vernáculo e a distribuir a
comunhão nas duas espécies. Releva ponderar que o nome de Farel também
se inscreveu nos fundamentos da Estrasburgo evangélica. Em 1525, o ardente
missionário gaulês devotou-se à propaganda, por um ano, na cidade.
No momento em que Calvino fixou domicílio na nova Wittenberg, três
homens notáveis concorriam para o brilho da cidade Alsáciana. O primeiro
deles era a personificação do estadista e converteu-se em ornamento do
protestantismo nascente. Jacques ou Jacob Sturm era o seu nome. É
conhecido o papel desenvolvido pela Reforma na causa da instrução popular.
Sturm, como estadista de raça, devotou sua atenção a este ramo da
administração, criando escolas primárias, aulas de latim e cursos superiores.
Deu início a uma biblioteca, por ele dotada ricamente. Consagrou seus
talentos e sua influência à cidade que lhe deu o berço. Jurista e homem de
estado, gozava da amizade de Francisco I e Carlos V; o eleitor palatino, Luiz
V, consultou-o sobre a reorganização da universidade de Heidelberg. Durante
sua judiciosa administração, a cidade prosperou notavelmente e a obra da
Reforma foi estabelecida por meios sábios e prudentes, sem conflito de
opiniões, coisa tão frequente naqueles dias. Havia sido colega de estudos do
teólogo Mateus Zell. Por sua morte mereceu o título de “Pai da Pátria” e um
monumento honra a sua memória tão justamente acatada.
O outro nome de valor ligado a Estrasburgo, ao tempo de Calvino, era
João Sturm. Nada, porém, tinha de comum com o seu homônimo, a não ser o
nome ilustre que ele também soube honrar. Era natural do Luxemburgo, dois
anos mais velho que o reformador de Genebra, ao passo que seu homônimo
precedera de vinte anos o nascimento do lidador de Noyon. Se Jacques Sturm
era o administrador que deu lustre a Estrasburgo, João foi o pedagogo que
secundou os braços do grande corifeu. Calvino conhecera-o em Paris, em
1529, como professor no Colégio de França. Em 1537, foi chamado a
Estrasburgo como educador, dando então grande impulso à causa da
instrução tão favorecida pelo outro Sturm. Era também adepto da Reforma.
Voelmel, diretor do Ginásio de Francfurt, qualificou-o como “o maior
pedagogo dos tempos modernos”.
A terceira figura contemporânea de Calvino na cidade da Alsácia foi
Martinho Bucer. Dele diz Pannier, já citado: “O que foi João Sturm na Escola
e Jacques Sturm no Estado, o mesmo o foi Bucer na Igreja. Sempre unidos,
estes três astros de primeira grandeza formam, no céu de Estrasburgo, uma
brilhante constelação”. Referindo-se ao caráter da Reforma naquela parte da
Alemanha, nota que teve a sua feição peculiar. “Nem luterana, nem fabriciana
a princípio (embora Lutero fosse ali apreciado e Le Fèvre bem acolhido), a
Reforma em Estrasburgo não se tornou calvinista – foi ‘buceriana’ e Calvino
também ‘buceriano’ em muitos respeitos”.
Bucer, como Lutero, que era mais velho do que ele, havia abraçado a
vida monástica, convertendo-se depois em ardente partidário do movimento
reformador. Tinha mais dezoito anos que Calvino. Teólogo de valor, assinou
em Berna, em 1537, com João Sturm, a confissão de fé das igrejas francesas.
Foi ele o elaborador da Confissão Tetrapolitana, tendo Capito como seu
assistente. Era uma variante da famosa Confissão de Augsburgo apresentada
ao imperador. Chamou-se “tetrapolitana” como representando o concurso de
quatro cidades do sul da Alemanha, suspeitas de ideias zwinglianas. Eram
elas Estrasburgo, Constança, Lindau e Memmingen. Bucer tomou parte nas
principais assembleias religiosas do seu tempo, em que se ajustaram e
acomodaram muitos pontos de doutrina. Como o advento de Eduardo VI, foi
convidado a Inglaterra pelo arcebispo Cranmer e nomeado professor de
teologia em Cambridge e doutor da universidade, sendo recebido com a
consideração a que tinha direito. Morreu naquele país. Com a subida de
Maria, a Sanguinária, ao trono inglês, acenderam-se as chamas da
perseguição, sendo exumados e incinerados os ossos do teólogo
estrasburguense.
Caracterizados rapidamente os três homens de escol, vejamos agora o
acolhimento e a ação do exilado de Genebra no triênio decorrido de setembro
de 1538 a setembro de 1541.
Seja dito, porém, que não era a primeira vez que João Calvino
transpunha os umbrais da culta cidade onde Gutenberg fizera os primeiros
ensaios e em que foram impressas as primitivas edições da Bíblia. Não nos
esqueçamos de sua visita de 1535 – o “ano dos Cartazes” – em companhia de
Du Tillet, naquela implacável perseguição de Francisco I, indo daí para
Basileia, onde se consagrou a trabalhos intelectuais, corrigindo as provas e
prefaciando a Bíblia de seu primo Olivétan e elaborando as Institutas, em que
se revelou escritor de raça. Em 1536, sai outra vez de França, em demanda de
Estrasburgo, em companhia de Antônio Calvino e de Maria. Mas a
Providência o detém em Genebra pelo aceno de Farel. Após o banimento, em
julho de 1538, de Basileia faz curta visita a Estrasburgo, regressando pouco
depois. Então Farel o deixa, aceitando o cargo que lhe oferecem em
Neuchâtel. Ao seu velho amigo, o cônego de Angoulême, Du Tillet, escreve
naquela jornada de Estrasburgo, relatando que fizera a visita a solicitações de
Bucer e de Capito. Sente-se, agora, livre do peso da responsabilidade de
Genebra e temia aceitar novos encargos. Bucer e seu companheiro, porém,
não o querem deixar no sossego almejado, no retiro dos estudos para que
mostrava Calvino tanta inclinação, sendo Basileia lugar tão próprio para isso.
Bucer insiste e renova a cena de Farel: “Deus apanhará o servo rebelde como
lançou mão de Jonas!” Assustado com a ameaça, eis Calvino em setembro de
novo em Estrasburgo. Tem vinte e nove anos e um nome feito. As Institutas
lhe haviam determinado justa celebridade. Bucer recebe-o no seu lar, cuja
hospitalidade passou a provérbio. Pedro Mártir, seu comensal tempos depois,
assim dizia:. “A casa de Bucer assemelha-se a um albergue, nela não vi senão
assuntos de edificação. Sua mesa não é brilhante e nem vulgar. A escolha dos
alimentos não é feita em atenção aos dias. Ele agradece a Deus em nome de
Cristo. Antes e depois da refeição é lida uma passagem das Santas
Escrituras”.
Apenas chegado, em 8 de setembro, pregou Calvino o seu primeiro
sermão. De dois modos refulgiu em Estrasburgo – na Igreja e na Escola – sob
os auspícios dos dois vultos de destaque: Martinho Bucer e João Sturm. A
sua atividade eclesiástica exerceu-se em favor dos refugiados franceses, que
ali viviam – mil e quinhentos talvez. Deles o constituíram pastor e o
Conselho da cidade designou como sede, por último, a igreja dos
dominicanos, havendo antes sido as reuniões celebradas em outros pontos.
Durante os primeiros quatro meses foi Calvino exclusivamente pastor,
diz Pannier. Para os refugiados em questão era o novo pregador uma
verdadeira bênção. Tinham quem lhes pregasse em francês. A recente
tradução de Olivétan, em que colaborara, tem agora papel saliente na
ministração do ensino religioso.
O pastorado de Calvino tornou-se digno de registro. Não foi um
simples pregador como Farel anos antes. Foi um verdadeiro organizador,.de
acordo com a índole que o caracterizava. Além dos franceses, refugiados
italianos se unem à igreja de Calvino. O próprio João Sturm filia-se ao grupo
e preenche as funções de tesoureiro. Aos poucos é introduzida a disciplina e
ordem que se faziam necessárias.
Para a instrução religiosa serve-se do seu útil. Catecismo publicado no
ano precedente. Seguindo os passos de Lutero, deu ele atenção especial ao
cântico sagrado. Era apreciador de harpa, mas, austero como sempre, achava
suficiente na igreja “o canto simples e puro, no coração e nos lábios, na
língua vulgar”. Dois princípios adotava ele sobre o ponto: canto pela
assembleia, canto na língua vernácula. Lutero não excluía o latim. Quanto à
espécie de hinos, opinava pelos salmos. Compôs, então, versões métricas de
vários salmos, do Cântico de Simeão e do Decálogo. Adotou depois o saltério
de Clemente Marot, exímio poeta francês, que residiu em Ferrara e em
Genebra. A primeira edição de Calvino, dos cânticos, compunha-se de sete
salmos seus e oito de Marot, tendo por título: Alcuns psalmes et cantiques
mys em chant – A Strasburg, 1539. O único exemplar conhecido jaz na
biblioteca nacional de Munique. Lutero havia feito do Salmo 46 a
“Marselhesa da Reforma” o “ Ein fest Burg ist unser Gott” – ou Castelo forte
é nosso Deus. Calvino também pôs em metro o mesmo salmo, do qual vamos
citar o primeiro verso extraído de Pannier:

“Nostre Dieu nous est ferme appuy,


Auquel arons em nostre ennuy
Vertu, forteresse et seur confort
Present refuge et três bom port.
Donc certaine asseurance aurons,
Mesmes quand la terre verrons
Par tremblent se descrocher.
Et mons em la mer se cacher”.

Preparou, outrossim, Calvino uma liturgia para o culto, que depois


introduziu em Genebra e passou a outras igrejas. Amigo da disciplina, quis
evitar a irregularidade que então se dava nos conventículos anabatistas. Eis a
substância que extraímos do citado Pannier, que nos dá a ordem seguida no
culto público: “Invocação, confissão de pecados, palavras para tranquilizar as
consciências, absolvição; canto de cinco mandamentos pela assembleia, canto
dos restantes mandamentos. Sobe então o pastor ao púlpito, deixando a mesa
de comunhão; faz a oração, que termina pelo Pai Nosso; prega o sermão e
depois eleva uma oração litúrgica com paráfrase do Pater. Depois canta-se
um salmo e o pastor dá a bênção”.
Compenetrado da solenidade dos deveres pastorais, Calvino não se
descuidava das visitas aos diferentes bairros, nas ruas estreitas e ao longo dos
canais, confortando os refugiados, atendendo aos necessitados e
recomendando aos diáconos o cuidado dos pobres e dos enfermos. No
púlpito, o seu esforço é notório.
Muitos acudiram às lições de teologia de Calvino em Estrasburgo, que
deu preleções sobre o Evangelho de S. João, a Epístola aos Romanos e outros
livros bíblicos. Teve de se opor a vários debates, um dos quais com o
perturbador Caroli, que o atacara injustamente sobre a Trindade, em Lausane,
e queria fazer agora o mesmo.
CAPÍTULO XV. UM TRIÊNIO FECUNDO

Calvino como diplomata. Sua presença nas Conferências de Francfurt,


Hagenau, Worms e Ratisbona. Casamento. Serviços a Estrasburgo e
benefícios derivados dali.

A nova residência de Calvino deu-lhe oportunidade para se tornar


melhor conhecido no mundo protestante. Era o tempo de lutas políticas e
religiosas, e Carlos V e Francisco I assentiram por vezes, na convocação de
assembleias religiosas ao lado das reuniões das Dietas do império, no
interesse da paz religiosa. Houve, pois, encontros entre teólogos protestantes
e católicos, com o fim de estabelecerem entre si vários acordos ou modus-
vivendi, no intuito de amenizar a situação entre várias correntes doutrinárias.
Ora, nestes colóquios ou ajustes, Calvino participou durante sua residência
ocasional na Alemanha, revelando então qualidades de um verdadeiro
diplomata.
A primeira destas assembleias teve assento em Francfurt, sobre o
Meno, em fevereiro de 1539. Desejava o imperador que os príncipes
protestantes alemães estudassem algum meio de conciliação. O rei da França,
ora em paz com o imperador, ansiava também por algum acordo semelhante.
A rainha Margarida de Navarra correspondera-se com o reformador
francês através de Sleida, historiador e estadista. Mas, Calvino depositava
confiança nos dois soberanos em questão.
O teólogo francês esteve presente em Francfurt, em companhia de João
Sturm, tendo em vista o interesse das igrejas suíças. O imperador foi
representado pelo arcebispo Eldo, de Lunden. Foram longos os debates e os
resultados quase nulos. Combinou-se numa trégua de quinze meses, findos os
quais deveriam, de novo, reunir-se os delegados.
Calvino e Melanchton encontraram-se, então, pela primeira vez, ambos
humanistas e teólogos, dois dos vultos mais potentes da Reforma – este
representando o ramo luterano, aquele o reformado propriamente dito.
Os dois grandes homens viveram sempre em paz. As ideias de
Melanchton sobre a Santa Ceia aproximavam-se mais das opiniões de
Calvino do que das de Lutero; mesmo sobre outros pontos, não andavam
distanciados um do outro. Melanchton era tímido e Calvino arrojado. A
amizade dos dois servia para corrigir defeitos de ambos.
Bungener (p. 45) registra um trecho emocionante de Calvino sobre
Melanchton, no seu livro contra Heshusius: “ Ó Filipe Melanchton! Pois a ti
me dirijo, tu que estás agora com Cristo ao pé de Deus, enquanto olhamos
para o Alto até que sejamos recolhidos contigo na mansão beatífica. Cem
vezes me disseste quando, fatigado de trabalhos e aborrecimentos, repousavas
a fronte sobre o meu lado – praza a Deus, que eu morresse reclinado a esse
seio! Quanto a mim, mais tarde, cem vezes desejei que assim acontecesse.
Certamente terias sido mais ousado nas lutas, mais corajoso em repelir a
inveja e a calúnia. Então, também teria sido suprimida a malícia de muitos,
cuja audácia crescera na proporção do que eles chamavam a tua fraqueza”.
Calvino e Melanchton encontraram-se em Francfurt, Worms e
Ratisbona e mantiveram longa correspondência. Calvino e Lutero, porém,
nunca se viram e uma carta que ele enviou ao antigo monge, por intermédio
de Melanchton, este, por timidez, não a fez chegar a seu destino.
Os adversários da Reforma costumam citar trechos dos reformadores,
em que procuram salientar que eles não primavam entre si pela caridade
evangélica. O certo, porém, é que Lutero e Calvino formaram excelente juízo
um do outro. Escrevendo a seu amigo Farel, dizia Calvino: “Bucer recebeu
uma carta de Lutero em que se lia: ‘Saúda a Sturm e a Calvino, cujos livros li
com singular prazer’. E Calvino, considerando que nem todas as suas
opiniões agradavam ao teólogo de Wittenberg, comenta assim o fato: ‘Vede,
pois, a candura de Lutero! Que razão existe para alguns se separarem dele tão
obstinadamente?’”.[45]
Mais tarde, Lutero toma a pena contra os zwinglianos na questão da
eucaristia. Apesar da linguagem forte, Calvino, discordando, escreve, fazendo
dele a apologia: “Ó Bullinger, escreve ele ao sucessor de Zwinglio, eu te
conjuro a não te esqueceres quão eminente homem é Lutero e de que dotes
tem sido investido!… ainda que ele me tratasse de demônio, eu não cessaria
de tê-lo em grande estima, de reconhecer nele um ilustre servo de Deus”.[46]
A imediata assembleia de teólogos foi a de Hagenau, em junho de
1540, presidia pelo rei Fernando, irmão do imperador e futuro detentor do
império. Os protestantes estiveram representados por Osiander, Capito,
Calvino, Brenz, Cruciger e Myconius. Os católicos tiveram a presença dos
teólogos Faber, Eck e Cochlaeus. Houve apenas medidas preliminares.
Fernando adiou-a para outubro, para a cidade de Worms, visto não estarem
presentes os priíncipes protestantes.
A conferência de Worms foi mais importante, sob a presidência do
cardeal Granvella, sendo Eck, Cochlaeus, Nansea e Pelargus os outros
representantes dos católicos; Melanchton, Calvino, Bucer e Cruciger o eram
do lado da Reforma. Teve o nome de Primeiro Colóquio de Worms. Foi
apresentada a Confissão de Augsburgo, edição recente, que não foi aceita
pelos católicos, sob a alegação de ser diferente da primitiva. A diferença era
de redação apenas e foi mais uma vez mudada a assembleia para o ano
seguinte, para Rosenburgo (Ratisbona)
Houve discussões acaloradas em Worms e Calvino granjeou de
Melanchton e dos teólogos luteranos o qualificativo de “teólogo por
excelência”, graças à erudição que então mostrou. Em Ratisbona, na Baviera,
a conferência abriu-se em janeiro, continuando em abril, sob a presidência de
Frederico, eleitor palatino, e de Granvella. A Reforma foi representada por
Melanchton, reconhecido pela sua habilidade diplomática. Outros
representantes do movimento reformador foram Pistorius, Bucer e Calvino,
que era delegado de Estrasburgo. Eck, o antigo contendor de Lutero, Groper,
Pflug, compareceram do lado dos católicos e ainda os dois enviados de Paulo
III – o núncio Morone e o cardeal Contarini.
Combinou-se na adoção do Interim de Ratisbona. Era um acordo entre
as partes contendentes e deveria prevalecer até a reunião de um Concílio
Geral.. Três foram os Interins nas lutas da Reforma: o de Ratisbona, em
1541; o de Augsburgo, em 1547; e o de Leipzig, em 1548.
A despeito do intransigente Eck, houve certa combinação sobre a
doutrina da justificação, mas nenhuma quanto à disciplina, sacramentos, e
outros pontos.
O legado do Papa, Contarini (1483-1542), revelou-se um espírito
liberal. De importante família veneziana, era espírito conciliador. Ao lado de
Caraffa, Sadoleto e Pole, elaborou projetos de reforma, visando extirpar
abusos na Igreja. Fez concessões aos protestantes em Ratisbona. Concordava
até certo ponto com a doutrina da justificação sobre a qual deixou um tratado.
Os acordos realizados em tais ocasiões não eram de todo satisfatórios.
Tal se verificou, por exemplo, em Ratisbona, na reunião de que estamos
falando.
Calvino manifestou-se com agrado a respeito de Pflug e Gropper, mas a
atitude arrogante de Eck deixou-o mal impressionado. Irritante e apaixonado,
o impertinente teólogo teve, durante a assembleia, em 10 de maio, um insulto
apoplético, de que contudo escapou. Na questão da transubstanciação, o
antigo opositor de Lutero mostrara principalmente a sua intransigência. Daí
resultou o mal que lhe sobreveio. Quando aos dois representantes do Papa –
Morone e Contarini – afigurava-se a Calvino que ambos estimariam a
subjugação da Reforma: o segundo, porém, fá-lo-ia sem efusão de sangue.
O imperador encerrou a Dieta em 28 de julho, prometendo interferir
diante do Papa para a convocação de um concílio ecumênico, que decidisse
as controvérsias teológicas.
Durante o interregno de Estrasburgo, valeu-se Calvino da oportunidade
para a continuação de seus estudos e a publicação de novas obras. Assim é
que tirou a segunda edição latina das Institutas; publicou o comentário sobre
a epístola aos Romanos, dedicado a Grynaeus, pastor em Basileia; editou o
tratado sobre a Ceia do Senhor, a mais suave de suas obras de controvérsia; e
a versão da Bíblia de seu primo Olivétan, por ele revista e corrigida.
Tudo isso representava grande soma de esforços. As citadas
publicações, as assembleias em que tomou parte na Alemanha, o pastorado e
o professorado em Estrasburgo – tudo isso mostrava o zelo e a diligência de
Calvino, não obstante ser débil e franzino no físico.
Do tempo de sua residência na Alemanha, data-se ainda o seu
casamento, que se realizou em agosto de 1540. Contava então trinta e um
anos de idade.
De Lutero, contam adversários poucos escrupulosos que abandonou a
sua igreja devido ao seu casamento com uma freira, como se tivera sido
movido por sentimentos menos dignos e não houvesse razões de consciência
ao considerar os velhos erros da Igreja.
Ora, é fato sabido que as Escrituras preceituam o casamento do clero,
no Velho e no Novo Testamento. Jesus Cristo e seus apóstolos não deram
mandamento em contrário e S. Paulo ensina, claramente, que os bispos
devem ser casados, vivendo irrepreensíveis, governando bem sua própria
casa, tendo seus filhos sujeição com toda a modéstia (I. Epístola de S. Paulo a
Timóteo, cap. 3, v. 2 e 4). Somente no século XI é que, no pontificado de
Gregório VII (1073), o celibato clerical foi proposto como dogma, como
medida de disciplina eclesiástica, determinando a Igreja proibir o que Cristo e
seus apóstolos permitiram.
Era uma medida política, tendo em vista fazer do clero uma casta
separada da sociedade. Mas o dogma não podia transformar as tendências
naturais e daí as irregularidades no procedimento moral do clero desde então.
A Igreja quis corrigir as Escrituras, reputando-se mais sábia, mas errou como
era de se esperar. A Bíblia conhece a natureza humana.
Ora, Lutero rompeu com a Igreja Romana aos 31 de outubro de 1517,
quando afixou à porta da catedral de Todos os Santos as suas famosas teses.
Contava trinta e quatro anos de idade. Era de presumir que então realizasse o
seu casamento, a prevalecerem os motivos vulgarmente apontados. Mas seu
consórcio somente se efetuou em 1525, oito anos mais tarde, quando homem
maduro, de quase quarenta e dois anos de idade. Catarina von Bora, de
família distinta, havia já abandonado a vida conventual quando tomou estado.
Onde o crime de Lutero no casamento feito com todas as formalidades
legais?
Zwinglio, o reformador da Suíça alemã, foi sacerdote como Lutero.
Contraiu também, licitamente o matrimônio aos trinta e nove anos, com uma
senhora já viúva, com três filhos – Ana Reinhardt – mais velha do que ele.
Calvino, como Zwinglio, desposou-se por sua vez com uma senhora
viúva, mãe de três filhos. Idelette de Bure (ou von Buren) era dos Países
Baixos, da Gelderlândia, viúva de Jean Stordeur (ou Storder), anabatista
preeminente, de Liège, convertido de suas ideias pelo próprio Calvino, sendo
que falecera da peste reinante. Era ela dotada de bons sentimentos e de
verdadeira piedade, excelente auxiliar no ministério de seu marido. De
compleição doentia, viveu apenas nove anos depois do segundo casamento,
falecendo em 1549. Os consistórios de Neuchâtel e Valengin, Suíça,
enviaram delegados a Estrasburgo por ocasião do casamento, sendo então
Calvino muito considerado e distinguido.
Até estabelecer-se em Estrasburgo, não pensara Calvino em contrair
aliança matrimonial. Sua austeridade em tudo o acompanhava. Como jurista
que era e não apenas teólogo, reprovou abertamente o duplo casamento do
Landgrave de Hesse, Filipe, e interpretava o texto de S. Paulo a Timóteo
sobre o casamento dos bispos, como admitindo o matrimônio uma só vez
para os ministros de Deus. Coerente com esse princípio, não passou a
segundas núpcias, embora contasse somente quarenta anos por ocasião do
falecimento de Idelette.
Calvino só a instâncias de amigos, de Bucer principalmente e de Farel,
é que se decidiu a tomar estado. É para notar que este último deu somente o
mesmo passo aos sessenta e nove anos, pelo que foi vivamente censurado por
Calvino. Os amigos do reformador, que se empenhavam no seu casamento,
propuseram-lhe uma senhora nova e rica, da alta sociedade de Estrasburgo.
Ele porém olhava, antes de tudo, aos dotes de coração, uma mulher segundo a
Bíblia. Daí o decidir-se pela viúva Idelette, com a qual se desposou em
agosto de 1540, não se sabendo o dia exato. Alguns datam de setembro a
cerimônia. Poucos dados existem sobre a vida conjugal de Calvino. O que se
sabe, contudo, é bastante para afirmar que anos de paz e de felicidade foram
aqueles curtos anos do lar de Calvino. Idelette foi-lhe excelente coadjuvante
no ministério. Embora austero, era Calvino de natural afetuoso. Suas cartas
expressam a ternura e o respeito que consagrava à companheira de seus dias.
Deus concedeu apenas um filho a Calvino, este mesmo falecido em tenra
idade. Bonnet afirma que a descendência foi de três, mas Schaff demonstra
estar o mesmo em erro e cita Audin e Colladon, que são concordes em
admitir que houve um filho apenas.
Não foram poucos os serviços prestados a Estrasburgo durante os três
anos de residência na cidade. Observa Pannier que a igreja de Estrasburgo foi
a primeira fundada por Calvino somente, porquanto no Poitou nem em
alguma terra francesa, onde havia pregado o Evangelho, estabeleceu ele
igreja regular e em Genebra já encontrara igreja organizada. Em Estrasburgo,
Roussel, Farel e Le Fèvre, franceses como Calvino, haviam estado por um
tempo; nada porém haviam organizado. Mas a instituição de Calvino em
Estrasburgo serviu de modelo a muitas igrejas de França – de Meaux, a de
Paris e a de várias outras cidades. Na expressão de Pannier, foi a igreja de
Estrasburgo “o protótipo de todas as igrejas reformadas da França no século
XVI” (p. 53).
Durante sua estada na cidade Alsáciana, muito proveito colheu da
convivência com o experiente Bucer, sob o ponto de vista dogmático e como
organizador. Sua doutrina sobre a eucaristia era de cunho Buceriano, diz
Pannier. Calvino, porém, formulou-a superiormente com a lucidez
inteiramente francesa de seu intelecto e a riqueza de seu vocabulário
humanista, quer no latim ciceroniano, quer no puro vernáculo. Aludindo à
evolução sofrida na estrutura da teologia calvinista, na carreira do teólogo de
Genebra, concede Pannier que haja sido ela erasmiana em seu início;
fabriciana (de Le Fèvre) no curso dos estudos em Paris, Orléans e Bourges;
buceriana, em Estrasburgo, mas sobretudo bíblica. E, todavia, Bucer não
chegou a fazer escola, mas, graças a ele, Calvino saiu de Estrasburgo mais
calvinista do que era, na opinião do citado escritor. A influência de Farel –
homem impetuoso e impulsivo – tendia a fazer de Calvino um lutador; a de
Bucer a de torná-lo calmo, moderado e refletido.
No ponto de vista político, Calvino muito lucrou no seu interregno de
Estrasburgo. Tomando parte em assembleias religiosas, percorrendo algumas
cidades da Alemanha, estando em contato com reis e príncipes, nobres e
teólogos, adquiriu larga visão. Kampschulte, historiador católico, bem o
definiu (I, p. 322) na seguinte citação encontrada em Pannier: “Seu horizonte
ali se estendeu, sua ciência se aprofundou. Havia necessidade destes três anos
de estudos para fazer dele o poderoso reformador, o legislador que, de
regresso a Genebra, se teria de manter contra todos os ataques”.
Calvino auferiu benefícios de sua permanência em Estrasburgo, e
também os conferiu à adiantada cidade. Como hábil mestre, suas lições eram
ouvidas com não pequeno interesse por alemães, italianos e franceses, por
meio dos quais sua influência se estendia. E se refulgiu na cadeira de mestre,
na Escola, na Igreja prestou serviços que já assinalamos.
Genebra, por sua vez, é credora de Estrasburgo por aquele triênio de
experiências de Calvino. O Calvino que ela de novo recebeu era mais calmo e
amadurecido, mais apto para executar a grande obra que a Providência lhe
traçara.
CAPÍTULO XVI. GENEBRA NA AUSÊNCIA DE
CALVINO

Conspiração da Igreja de Roma contra Genebra. Escolha de Sadoleto para dirigir a


hábil investida. Apreciação sobre o mesmo. Sua epístola a Genebra. Réplica magistral
de Calvino. Provas imediatas da ternura de Roma como “mãe carinhosa”. A situação
difícil de Genebra. Medidas concertadas para o regresso de Calvino.

Num estudo sobre a vida de Calvino não pode ser omitida a


interferência oficiosa do cardeal Sadoleto nos negócios religiosos de Genebra
durante a ausência do reformador.
O banimento súbito de Calvino e de Farel havia chamado a atenção de
Roma para a excelente oportunidade que se abria. Sua vigilância é constante.
Não há ponto fraco que deixe de ser atacado.
Vivia ainda Pedro de La Baume, o último bispo católico de Genebra,
apeado do poder pelas autoridades, quando se dera a libertação política e
religiosa da cidade. Elevado recentemente ao cardinalato, ao dar-se a retirada
de Calvino surgiu-lhe de novo a esperança de recuperar o bispado perdido.
Obteve assim cartas de Paulo III e, para a realização de seu alvo, conseguiu
uma reunião dos prelados das dioceses vizinhas de Lião, Vienne, Lausane,
Bensançon, Turim, Langres e Carpentras, sob a presidência do cardeal do
Tournon, arcebispo de Lião, perseguidor encarniçado dos valdenses e
favorito de Francisco I. Auxiliava-o no plano João Fipipe, o principal
promotor do banimento de Calvino.
A situação moral de Genebra em nada melhorara. O Conselho, em
verdade, lavrara novos editais de reforma para dar a entender que o povo
viveria muito bem sem os ministros banidos, mas a cidade não fazia grande
caso das leis.
Marcourt e Morand, os dois novos pregadores, não tinham a influência
de Calvino e Farel.
Saunier e Marthurin Cordier haviam sido banidos do lugar de regentes
da Escola, ficando assim a instrução popular interrompida por algum tempo.
O conciliábulo papista, representado naquelas dioceses e naqueles
prelados, valeu-se da habilidade do cardeal Sadoleto, que merece algumas
palavras de apresentação.
Jacopo Sadoleto era italiano, de Módena, nascido em 1477, e membro
distinto do clero. Cônego de S. Lourenço, gozou da alta estima de Leão X, do
qual foi secretário em companhia do futuro cardeal Bembo. Humanista
conspícuo, foi nomeado pelo brilhante Médicis para a diocese de Carpentras,
perto de Avinhão, em 1517. Clemente VII fez também de Sadoleto seu
secretário por algum tempo. Paulo III elevou-o ao cardinalato em 1536.
Homem erudito escrevia em latim admiravelmente. Possuidor de qualidades
diplomáticas, foram elas aproveitadas por Carlos V e Francisco I e pelos
pontífices da época. Espírito liberal, gozava da simpatia dos reformadores
com alguns dos quais se correspondia, como Bucer, Sturm e Melanchton.
Uma carta a este último, assim terminava: “Adeus, sapientíssimo
Melanchton, fazei-me participante do vosso melhor afeto”. Quando Francisco
I perseguia os valdenses, encontraram estes por parte de Sadoleto a maior
benevolência. Ele e seus colegas Contarini e Bembo, todos contemporâneos,
eram benvistos pelos reformadores.
As qualidades de espírito e as habilidades diplomáticas de Sadoleto é
que fizeram dele o homem escolhido pelo conventículo, que pretendia a
reconquista de Genebra para Roma e em proveito de Pedro de La Baume.
O antigo secretário dos papas soube usar da sua aprimorada pena para
dirigir famosa epístola “ao senado e ao povo de Genebra”, com o fito de
chamá-los à obediência do pontífice e aos carinhos maternais da igreja de
Roma.
Dos registros do conselho de Genebra há indícios do conciliábulo de
Lião: “entende-se que os bispos, tanto o cardeal de Tournon como o antigo
bispo de Genebra, o de Lausane e outros, conspiram contra a cidade e fazem
reuniões em Lião”.[47]
Foi em pouco tempo que os fatos acima se cumpriram. Calvino
estabeleceu-se em Estrasburgo, em setembro de 1538, e seis meses depois,
em março de 1539, era lida em Genebra a epístola do cardeal. O conselho
decidiu que oportunamente fosse dada uma resposta.
Sadoleto, segundo Bungener, era um dos melhores homens da Igreja
Romana e um dos mais instruídos. “E sábio, é piedoso, é pródigo; professa
por Melanchton verdadeira amizade; cruza a cada momento o grande
caminho da Reforma; lisonjeia agradavelmente os católicos e todavia ilude
desagradavelmente os protestantes, conservando-se católico, bispo, cardeal,
pronto a escrever, sendo necessário, contra aqueles dos quais parece estar
bem próximo”.[48]
Era comodista à feição de Erasmo. Deleitava-se, intimamente, no
conforto e na segurança de uma “igreja infalível”, no seio da qual queria
viver em paz, fazendo-se de todos amigo.
Sadoleto sabe, em sua amável epístola, lisonjear os ânimos de Genebra.
Mostra a sua velha simpatia pela cidade, desde que, pela vontade de Deus,
fora eleito bispo de Carpentras. Não pode deixar de exaltar Genebra, as suas
instituições, a sua nobreza, as suas esperanças. Detém-se, porém, em lastimar
os males que sobrevieram a uma república digna de melhor sorte, males que
atribui à Reforma e aos seus propagadores, sem contudo aludir abertamente a
Calvino ou a qualquer outra figura de relevo. Em sua habilidade diplomática,
cita as Escrituras e S. Paulo, tão familiar aos protestantes. Exalta a Cristo e
discorre sobre a justificação pela fé.
Nada dizendo sobre fraquezas da Igreja Romana, trata somente de
exaltá-la, apontando-a como a sede e a base da autoridade, contra a qual se
têm eles rebelado. Fala com vivas cores, da misericórdia de Deus e da
caridade da Igreja e termina a sua exortação com uma lance de retórica,
imaginando perante o tribunal divino, dois indivíduos a fazerem exposição de
sua vida. Um é católico e fiel, a despeito das imperfeições da Igreja; o outro,
um promotor da reforma e dos males daí resultantes, o qual terá de sujeitar-se
às consequências de sua desobediência. Recorre então aos argumentos
habituais dos defensores da Igreja dos papas. “Se nossos costumes, insinua,
vos tem contristado, se o brilho da Igreja tem sido obscurecido pelas faltas de
alguns dos nossos, que isso não vos leve à revolta. Podereis odiar-nos se o
Evangelho o permitir; mas de modo algum o fareis à Palavra Santa e à nossa
doutrina porquanto está escrito: “Fazei o que vos disserem”.
O partido católico de Genebra fez grande cabedal da carta de Sadoleto.
O Conselho não se apressou a respondê-la e os pastores não se atreveram a
fazê-lo. Não faltou, porém, quem mandasse um exemplar da carta a Calvino,
que era a pessoa mais competente para uma resposta condigna.
O valente reformador não se fez rogar. Pondo de parte os
ressentimentos contra Genebra, no curto espaço de seis dias replicou a
Sadoleto em termos tais, com tal clareza e incisão, que o hábil diplomata
perdeu a graça de replicar. Impressa em latim, em setembro, apareceu em
janeiro segunda edição com uma tradução francesa: “Epistre de Jacques
Sadolet, Cardinal, envoueé ou Senat et Peuple de Genève, par laquele il
tasche lês reduire soubs la puissance de l’Evèsque de Rome. Avec la
Response de Jehan Calvin. Translatées du latin em François. Imprimé à
Genève par Michel Du Bois, 1540. Reimprimé à Genève par le soins de M.
Gustave Reviliod, chez I. G. Fick, 1860”.
A epístola de Sadoleto era de 48 páginas, a resposta de Calvino
compreendia 152, nada menos. O reformador começa também em termos
diplomáticos, louvando a perícia epistolar do seu contendor e admirando o
seu interesse repentino pela sorte de Genebra.
Tomando a defesa, na parte que lhe competia, havendo sido acusado de
se haver desviado do grêmio de Roma por um gesto de ambição e de soberba,
mostra o equívoco manifesto de seu adversário: “De certo vos enganais,
crendo que, por ambição ou por orgulho, deixamos a Igreja Romana. Se eu
tivesse querido enriquecer-me e cumular-me de honras e benefícios, não me
separaria do vosso partido. Teria ficado como cônego de Noyon… Nossas
paróquias dão-nos o estritamente necessário; temos a paga de quarenta a
cinquenta escudos; damos aos pobres a renda dos conventos e dos bispos – tal
é a nossa recompensa temporal”. Em outro ponto defende os de Genebra da
acusação do cardeal. Haviam eles voltado à verdadeira doutrina do
Evangelho e a isso Sadoleto chamava abandonar a Deus! Haviam repelido a
tirania papal e eram censurados como se se houvessem separado da Igreja!
Eram acusados de contradizer os Santos Padres quando estavam mais de
acordo com eles que os seus adversários! Sadoleto, estava ele certo, sabia
disso muito bem. Nada mais desejava do que ver restaurada a Igreja primitiva
conspurcada pelo Papa e sua facção. “Se o papa quiser rejeitar todas as
cerimônias não mencionadas em vossa epístola, estaremos prontos a buscar a
sua face. Mas para que seja possível a fusão das duas Igrejas será preciso
abandonar todas as superstições ajuntadas ao Evangelho pelas invenções
humanas, a saber: a presença real, a omissão do cálice, o purgatório, as
missas pelos mortos, a salvação por dinheiro, a confissão auricular, a
diferença de viandas, o celibato dos padres. De tudo isso nada disseste,
porquanto formam o abismo que vos separa de nós!”
Calvino dá um rápido esboço das condições em que os reformadores
haviam encontrado as escolas e os púlpitos, dos sermões sem espiritualidade
e das superstições e fraudes pias. Qual o crime então de substituir tudo aquilo
pelo ensino puro da palavra de Deus!
Entra ainda em diversas citações bíblicas sobre a justificação pela fé, a
mediação exclusiva de Cristo, o culto a Deus, a Ceia do Senhor, o ministério,
a Igreja e outros pontos.
Calvino termina a sua bem lançada resposta parodiando a Prosopopéia
invocada pelo cardeal. Imagina-se comparecendo perante o tribunal de Cristo
e assim pleiteando: “Contemplei Cristo lançado em esquecimento, como
elemento improfícuo – que teria eu de fazer? Observei o Evangelho poluído
pela superstição – que faria? Vi a Palavra Divina voluntariamente ignorada e
escondida – como proceder? Se não deve ser considerado traidor aquele que,
vendo os soldados dispersos, toma a insígnia do capitão, reúne-os e
restabelece a ordem – seria eu traidor por haver erguido da Igreja debandada
a velha bandeira de Cristo? Eis que não se trata de uma nova e estranha
flâmula, ó Cristo, mas do teu nobre estandarte!”
São estas as ideias resumidas da réplica de Calvino conforme colhemos
em vários autores (Wylie, vol.II, págs. 292 e 283; L. Abelous, p. 249; A.
Bossert, págs. 110-114; F. Bungener, págs. 194-196; Guizot, págs. 233-235).
Sadoleto foi infeliz em um de seus argumentos pelo menos.
Escrevendo, em março de 1539, a sua célebre carta apologética da Igreja de
Roma, refere-se ao carinho e afeto da mãe comum dos fiéis, e entretanto, no
seguinte mês de abril, a “mãe carinhosa” fazia arder nas chamas da fogueira a
dois habitantes de Genebra na vizinha Saboia, - um em Anecy e outro em
Chambery. Jean Lambert, protestante e genebrense, foi a vítima de
Chambery. Os padres não permitiram que se fizesse processo legal e
tornaram o mais tremendo possível o sacrifício da vítima. Eis como Bungener
comentou semelhante evento: “Vede o que eram, a algumas léguas de
Genebra, os ministros dessa mãe “doce e compassiva”, cujo retrato Sadoleto
apresentava aos genebrenses, conjurando-os a que voltassem aos braços
maternais!”
Sadoleto havia perdido uma boa ocasião de se tornar silencioso. A
resposta de Calvino foi lida com interesse nos principais centros de cultura.
Lutero acolheu-a com entusiasmo, expressando-se na sua linguagem
característica: “Eis um escrito que tem pés e mãos. Alegro-me ao ver Deus
suscitar homens assim. Continuarão e terminarão, com o auxilio do Senhor, a
obra que eu encetei contra o Anticristo”.
O serviço espontâneo prestado a Genebra por Calvino concorreu em
muito para apressar o seu regresso. Cada vez mais se acentuava a necessidade
de um homem em tais condições para o progresso da república.
Em Genebra continuava a reinar o mesmo espírito de turbulência e de
insubordinação às leis.
Na ausência de Calvino foram reforçados certos regulamentos na
repressão dos costumes. Assim é que, em 22 de fevereiro de 1539, os avisos
recomendavam a observância do domingo, em que todos deveriam ir ouvir a
Palavra de Deus; a proibição das blasfêmias, do jogo, danças, e outras
práticas inconvenientes. Os chefes de família eram obrigados a permitir que
os servos assistissem o culto público e assim por diante. Havia penas severas
contra os recalcitrantes.
Dificuldades administrativas surgiram também. O partido bernês era o
dominante. Quatro ou cinco localidades da margem esquerda do Reno
pertencentes a Genebra estavam encravadas no território de Berna, que
compreendia os distritos do Chablais, do Vaudox e do Gex situados em redor
do lago Lemano; eram elas disputadas pelos de Berna como prêmio de
serviços prestados. Os delegados de Genebra enviados a Berna para estudar o
litígio foram, contudo, acusados de traição, como tramando contra os
interesses da república. Um dos implicados teve de subir ao patíbulo. Era
João Filipe, um dos que haviam concorrido para o exílio dos pastores e que
conspirara, no conclave de Lião, em favor do antigo bispo La Baume. Seus
pares o haviam deixado cair da graça. Favorecia os negócios de Berna à custa
do sacrifício de Genebra. Condenado a exílio perpétuo excitou um motim
pelo que foi preso e decapitado, isso na ausência de Calvino.
Desde setembro de 1540 começaram os do Conselho a formular planos
para a revogação do banimento de Calvino, que, pela experiência de suas
primeiras relações com Genebra, bem se apercebia da nova responsabilidade
que lhe estava iminente. Em correspondência com Farel e Viret, exprimia
frequentemente seus temores. Ao último escrevia: “Tu me dizes que devo ir a
Genebra; deverias dizer ao suplício (ad crucem). Valeria mais sofrer de uma
vez do que transitar pela câmara da tortura (in illa carnificina).[49]
Em outubro, foi um emissário a Estrasburgo, quando Calvino estava de
partida para a conferência de Worms. Hesita ele e acha melhor convidarem a
Viret. Tem receios e dúvidas sobre a conveniência de seu regresso.
Novo emissário dirige-se a Worms em nome dos três Conselhos de
Genebra. Levam também avisos e pareceres dos pastores e Conselhos de
Neuchâtel e Berna. Basileia, Zurique e até Estrasburgo são do mesmo modo
de pensar. Um dos primeiros argumentos era a posição excepcional de
Genebra, posto avançado da Reforma, a um lado da França e da Itália, como
centro missionário e refúgio dos perseguidos.
Depois do Colóquio de Ratisbona em 1541, Calvino afinal decidiu-se
ao sacrifício. Em 13 de setembro, cerca de três anos e meio desde o
banimento, entrava de novo o reformador francês na cidade. Os registros
públicos notaram o fato bem como o seu pedido ao conselho, a que baixasse
regulamentos para a boa marcha da Igreja de Genebra.
No intervalo, o piedoso Viret havia auxiliado os fiéis de Genebra
ficando ali um semestre. A Igreja de Estrasburgo dera permissão a Calvino,
mas é bom notar que, quando ele ali se havia fixado, Bucer havia recorrido a
argumentos quase semelhantes aos de Farel, para deter o moço francês em
Genebra. Quanto a Farel, que já dobrara o cabo dos cinquenta anos, a Igreja
Neuchâtel não consentiria em se apartar dele.
Calvino tinha apenas trinta e três anos quando se abriu a fase definitiva
de seu ministério em Genebra. Teria de ficar naquele posto de sacrifício por
quase vinte e quatro anos ainda, durante os quais não mais dali saiu, a não ser
em curtas excursões. Naquele longo período, observa Lindsay[50], os
historiadores o tem comparado a individualidades de mente bem diversa.
Segundo uns, foi Licurgo de Genebra; para outros, foi um ditador romano,
um novo Hildebrando ou um califa muçulmano. O certo é que fez uma
grande obra e passou a vida em incessante atividade, apesar de viver sempre
doente, sofrendo muito de dores de cabeça e do terrível açoite da asma.
CAPÍTULO XVII. REGRESSO DE CALVINO

Por menores sobre o regresso de Calvino. Medidas tomadas pelo Conselho de


Genebra e delegados enviados. Relutância de Estrasburgo. Revogação do banimento.
Genebra toma medidas para o conforto de Calvino. Partidos de Genebra na ausência
de Calvino. Viret em Genebra. As “Ordenanças”. Quatro classes de oficiais na Igreja.
Duas corporações eclesiásticas e atribuições de ambas. As bases do presbiterianismo
em Calvino e o modelo de Genebra. As cerimônias do culto. Zelo pela moralidade
pública.

No capítulo precedente, falamos resumidamente do regresso de


Calvino a Genebra. Vamos agora pormenorizar melhor os fatos. O povo da
cidade fora o primeiro a reclamar a volta do reformador, ao ver a desordem e
indisciplina reinantes. Então, os Síndicos e o Conselho de Genebra, em data
de 22 de outubro de 1540, enviaram-lhe significativa epístola, concitando-o a
voltar “ao antigo lugar e ministério”. Isso era feito, diziam, “da parte do
Pequeno Conselho, do Grande e do Geral”… “considerando que nosso povo
grandemente vos deseja”.[51]
Schaff nos informa de que os primeiros passos se deram logo em 1539,
no ano seguinte ao do banimento, sendo a tentativa renovada em fevereiro de
1540 e decidida em 21 de setembro do mesmo ano. Em 13 de outubro Michel
Du Bois foi mandado a Calvino como portador de uma carta do Grande
conselho. A 19, o Conselho dos Duzentos resolveu empregar ainda maiores
esforços e, em 22, foram despachados Ami Perrin e Louis Dufour, levando
consigo a carta acima mencionada. Recorreram ainda ao concurso de Farel,
por intervenção do qual, anos antes, fora obtida a cooperação de Calvino em
Genebra. Este não se fez rogar e de Neuchâtel, onde residia, choveram cartas
para Estrasburgo. Ele mesmo foi em pessoa à cidade Alsaciana a fim de
persuadir a Bucer e Capito da necessidade e conveniência do regresso de
Calvino. Dufour, o delegado de Genebra, alongou-se até Worms, onde
Calvino se encontrava como deputado de Estrasburgo no colóquio ali
reunido, entregando-lhe a já citada mensagem, em cujo selo vinha o moto:
Post tenebras spero lucem (Jó. 17.12).
Calvino comoveu-se até as lágrimas. Mas os homens representativos da
Reforma como Bucer, Capito, Sturm, Grynoeus, julgavam indispensável em
Estrasburgo a presença de Calvino, como representante da Igreja Protestante
francesa e sua figura principal, como professor de teologia que era, atraindo
estudantes da Alemanha, França e Itália, que partiam depois como
evangelistas para os respectivos países. A não ser Melanchton, ninguém
então poderia ser a ele comparado. Afinal, as autoridades e os pastores de
Estrasburgo permitiriam a retirada, por algum tempo somente. Schaff (p.
482), no 2° volume da Swiss Reformation, manda examinar Herminjard, vol.
VI, 335 e 356 e o vol. VII, 227, a propósito da larga correspondência trocada
sobre o regresso de Calvino a Genebra.
Em 1° de maio de 1541, o Conselho de Genebra revogou o decreto de
23 de abril de 1538, que bania da cidade Farel, Calvino e Saunier, agora
reconhecidos como “homens de bem e tementes a Deus”. A 26, solicitam o
empenho de Basileia, Zurique e da própria Estrasburgo para que lhes seja
restituído o reformador, coisa não sem dificuldade conseguida. O banimento
de Saunier havia sido um pouco depois do decreto contra Farel e Calvino.
Nos passos que foram tomados para a volta de Calvino, é digno de nota
a atitude por ele mantida. Foi vencido pela consciência do dever e relutou
muito, temendo as responsabilidades. Nunca, porém, nas cartas que dirigia a
Genebra e a seus amigos, exigia retratação ou humilhação por parte dos
adversários ante os agravos que recebera. Tão pouco solicita vantagens
econômicas de espécie alguma. Com razão, arguira ele a Sadoleto quando, na
réplica, afirmara que, se procurasse vantagens materiais, não se apartaria do
grêmio em que estava o cardeal.
Em atenção aos merecimentos de Calvino, trataram de acomodá-lo
decentemente. Para isso, o conselho adquiriu uma propriedade para servir de
presbitério, em que o pastor pudesse viver de modo confortável. Primeiro
residiu por dois anos numa casa que pertencera ao abade de Bourmont e,
depois, na propriedade do “senhor de Fresneville”, adquirida pelo conselho,
mesmo ao pé da casa acima referida. Estavam situadas perto da catedral de S.
Pedro, à rua dos Cônegos, que depois tomou o nome de rua Calvino,
correspondendo aos números 11 e 13, não há muitas décadas.
Nos registros do Conselho de Genebra, em tudo minucioso, consta a
aquisição de uma casa com jardim para a habitação de “Mestre Calvino,
homem de grande erudição e idôneo para a edificação da Igreja Cristã”.
Dizia o registro que, atendendo-se às grandes despesas que ele viria a
ter com a hospedagem de forasteiros de visita à cidade, teria um salário anual
de quinhentos florins, doze medidas de trigo e duas cubas de vinho. Fizeram-
lhe as despesas da viagem e foram ao ponto de providenciar para que se lhe
fizesse uma nova capa e lhe preparassem um púlpito mais baixo, na catedral,
para que melhor o pudessem apreciar. Convém lembrar o seguinte trecho de
Beza, a propósito da recondução de Calvino: “Foi recebido com singular
afeto por aquele pobre povo, que reconhecia sua falta e se mostrava ávido de
escutar o fiel pastor, pelo que não o cessaram de importunar, até que o
induziram ao regresso. Por fim, as autoridades de Estrasburgo consentiram
nisso, determinando todavia, que seria sempre conservado o seu direito de
cidadania entre eles. Solicitaram também que continuasse a receber as rendas
de sua prebenda como professor de teologia. Como, porém, era homem cheio
de desprendimento para com suas coisas deste mundo, não o conseguiram
persuadir a que aceitasse um ceitil sequer”.
Guizot, à p. 257, de seu livro sobre S. Luiz e Calvino, cita esse período
de Beza, que salienta o desinteresse de Calvino, mostrando-o bem diverso do
modo por que o descrevem seus adversários.
De viagem para Genebra, deteve-se Calvino alguns dias em Basileia,
onde escrevera as suas Institutas, e do mesmo modo em Neuchâtel, com
Farel, o valente companheiro, concorrendo para solver dificuldades no
ministério do seu velho amigo. Guilherme Farel não fora esquecido em
Genebra, onde possuía muitos admiradores, conhecidos pelo nome de
guilhermistas. Na revogação do banimento de Calvino, Farel fora também
contemplado e a cidade muito folgaria em vê-lo de novo no seu grêmio.
Neuchâtel, porém não consentiria em se separar dele.
Quanto à atitude de Estrasburgo para com o reformador, é toda ela
digna de respeito. Não queriam cedê-lo a Genebra como ficou dito, senão
temporariamente. Conservaram-lhe os direitos de cidadania que lhe haviam
conferido e queriam outorgar-lhe os benefícios da prebenda de professor.
Uma carta aos síndicos de Genebra, em nome dos pastores de Estrasburgo,
assim dizia: “Finalmente, Calvino segue, instrumento eleito de Deus e
incomparável que é, com o qual nenhum outro neste século se pode por em
confronto, caso a comparação se efetuasse”. Dizia ainda, que a cessão seria
“temporária”, apenas. Por sua vez, o Conselho de Estrasburgo escreveu no
mesmo sentido ao de Genebra, que respondeu que Calvino não poderia mais
ser dispensado.
O nobre reformador se assentava de novo em Genebra para serenar os
ânimos, restabelecer a paz e reformar os costumes, salvando a cidade da
anarquia reinante.
É bom recordar que, em sua ausência, três partidos se formaram em
antagonismo. Havia, primeiro, o partido do governo, hostil aos reformadores.
Eram chamados articulantes esses partidários por causa dos 21 artigos do
tratado bernês, negociado pelos três conselheiros e deputados de Genebra,
Ami Chapeaurouge, Jean Lulli e Monathon. Por ele a Igreja ficava sujeita ao
Estado e estabelecia-se o protetorado de Berna, que se traduzia praticamente
em soberania.
Mas a ordem não pode ser mantida em Genebra. Faliu a causa da
instrução, o púlpito perdeu sua força, os novos pregadores caíram em
desprezo, negligenciou-se o cuidado pastoral, desordens eram frequentes nas
ruas, o vício proliferava, a imoralidade era patente, imperava a anarquia nos
costumes.
O povo, então, clamou contra o acordo bernês, o Conselho dos
Duzentos não se quis submeter ao mesmo e os de Berna protestaram,
exigindo a confirmação do tratado. Mas o povo exigiu a prisão dos três
deputados negociadores do acordo, que conseguiram escapar e foram
alcançados pela sentença de morte como traidores à República. O sopro da
desgraça abateu-se sobre os quatro síndicos que haviam promovido o
banimento dos reformadores, pelo que o povo viu nisso a mão da
Providência. Assim é que o principal deles, João Filipe, ao qual já nos
referimos no capítulo anterior, foi decapitado por homicídio e sedição, em 10
de junho de 1540; Chapeaurouge e Lullin foram sentenciados a morte; o
quarto síndico, Richardet, morreu em consequência de ficar maltratado na
fuga.
O segundo partido em Genebra era dos católicos, fomentado pelo
antigo bispo La Baume, Sadoleto e outros próceres. O banimento de Calvino
e Farel despertara a cobiça de Roma, e membros do clero regular e secular
regressaram a Genebra, de Saboia e vários lugares da França. A famosa
réplica de Calvino, já aludida, destruiu-lhes, porém, todas as esperanças.
O terceiro partido genebrense era o dos guilhermistas, assim
denominado por causa de Guilherme Farel. Era a facção amiga dos
reformadores. Foi ela que pugnou pelo seu regresso, e mantinha com ele
correspondência, principalmente com Farel.
As medidas tomadas para a volta de Calvino convenceram-no de que
era a indicação da Providência. Disposto ao sacrifício, escreveu a Farel: “Cor
neum velut mactatum Domino in sacrificiu, offero” – “Ofereço a Deus o meu
coração imolado em sacrifício”. Um selo de Calvino apresenta este moto, diz
Schaff, tendo a mão por emblema, oferecendo a Deus um coração. É um
característico de sua piedade.
Referimos em outro local haver cedido Lausane, por algum tempo, a
Genebra, o piedoso Viret. Calvino, de volta, quis ter ao pé de si,
permanentemente, o pastor de Lausane e ainda o seu velho amigo de
Neuchâtel, como colaboradores efetivos. Mas Farel não obteve permissão
para isso. Berna consentiu, todavia, que Viret prolongasse a sua residência
em Genebra até junho do ano seguinte (1542).
Desta sorte, enquanto Calvino fazia ouvir a sua voz em S. Pedro, Viret
subia ao púlpito de S. Gervásio como Farel outrora fizera.
O primeiro ato de Calvino foi convocar o povo à presença do Senhor.
Senado e povo acurvaram-se e o erudito pastor falou sobre os sinais dos
tempos, as guerras e calamidades que então assolavam a Europa e as
perseguições contra o fiel povo de Deus. Distribuiu-se o sacramento entre os
fieis.
Reentrando em Genebra a 13 de setembro, dois dias depois
compareceu perante o conselho e apresentou excusas da demora no regresso.
Ao mesmo tempo, requereu a nomeação de uma comissão para formular o
código eclesiástico, que deveria reger a Igreja de Genebra. Foram eleitos seis
conselheiros, sendo quatro do Pequeno Conselho e dois do Grande, os quais
deveriam esboçar as leis de harmonia com Calvino e os pregadores seus
colegas. No dia 16, a comissão deu inicio à sua obra.
Dez dias depois foi o projeto, contendo cento e sessenta e oito artigos,
apresentado ao Pequeno Conselho, que o discutiu e emendou durante um mês
inteiro, terminando o trabalho em 27 de outubro. Aos 9 de novembro, foi
submetido à aprovação do Conselho dos Duzentos e, a 20, ao Conselho
Geral. Houve ainda algumas emendas e a votação definitiva verificou-se em 2
de janeiro de 1542.
Na frase de Bungener, é desse dia que data legalmente a “república
calvinista”.[52] Dois mil cidadãos deram os seus votos naquela assembleia.
“Ordenanças eclesiásticas” foi o nome conferido a esse conjunto de
leis.
Calvino deu à Igreja de Genebra uma constituição democrática e
republicana com a constituição civil que regia o Estado, procurando cingir-se
o mais possível aos princípios do governo da Igreja estabelecido nas
Escrituras.
As “Ordenanças” reconheciam quatro classes de ofícios eclesiásticos.
Primeiro, vinham os Pastores, também denominados superintendentes e
bispos. Cumpria-lhes administrar a palavra e os sacramentos e exercer, com
os presbíteros, a disciplina eclesiástica. Os aspirantes ou candidatos ao
ministério deveriam ser examinados pela corporação dos pastores sobre a
doutrina e a capacidade de transmiti-la, bem como sobre o procedimento
moral. A escolha e aprovação dos candidatos partia dos pastores, mas o
conselho enviava alguns de seus membros para assistir ao exame. A
ordenação fazia-se pela imposição das mãos e oração, segundo o costume
apostólico. Quando o exame era aprovado, anunciava-se nos púlpitos no
domingo seguinte. Marcava-se prazo até o domingo imediato, para que, se
houvesse alguma coisa contra o candidato, fosse ela comunicada a um dos
síndicos. Só então podia ser ele instalado publicamente. Teria também de
prestar juramento perante o Conselho. Portanto, na eleição dos pastores, não
somente tomava parte a corporação dos ministros, como o povo tinha de dar
seu consentimento, cabendo a nomeação aos magistrados. Os ministros
tinham de dar conta de seus atos perante as conferências trimestrais e eram
também responsáveis perante o Consistório e o Conselho. Faltas de caráter
civil podiam levá-los a ser destituídos pelos magistrados. As demais faltas
teriam de passar pela alçada da corporação dos pastores ou pelo consistório.
A segunda ordem de oficiais era a dos Professores ou “Doutores” (Ef.
4.11). Os mestres das escolas e os professores de teologia, formando estes
uma ordem mais elevada, faziam parte da classe. Não tomavam parte na
disciplina nem na administração dos sacramentos e sim, apenas, na instrução
religiosa. Logo após o banimento de Calvino e Farel, quiseram os
magistrados que Saunier e Marthurin Cordier celebrassem a comunhão
segundo o rito bernês, sendo destituídos por se recusarem a isso.
Compunha-se a terceira classe, dos presbíteros ou anciãos. Tinham a
seu cargo a disciplina em conjunto com os pastores. Calvino, que lançou as
bases do presbiterianismo, estabelecia a distinção presbiteriana entre
presbíteros docentes ou que ensinam e governam, e regentes ou que regem
somente.
A quarta e última classe era a dos Diáconos, dividida em dois grupos
– o dos procuradores, os que velavam pelos bens dos pobres nas
necessidades a que estavam expostos; e o dos hospitaleiros, a quem incumbia
cuidar especialmente dos enfermos. Eram também nomeados pela junta da
cidade.
Duas corporações velavam pela guarda da Igreja de Genebra – a
Venerável Companhia dos Pastores e o Consistório. A primeira compunha-se
de todos os pastores da cidade e do distrito de Genebra, bem como dos
professores de teologia. Incumbia-lhe a superintendência dos negócios
eclesiásticos, especialmente na educação do ministério, cuja instalação, como
vimos, dependia do consentimento da congregação e do governo civil. Não
tinha poder político.
O Consistório ou presbitério era uma corporação mista de clérigos e
leigos. Possuía influência mais ampla do que a Companhia dos Pastores, que
só possuía feição eclesiástica. O Consistório compreendia os pastores e doze
leigos nomeados pelo Conselho de Estado, mediante consulta ou aviso prévio
dos pastores, sendo depois a nomeação confirmada pela corporação dos
Duzentos. Estes leigos ou anciãos eram eleitos por um ano, podendo ser
reconduzidos os que dessem bom testemunho de sua aptidão. Para constituir
o grupo dos doze, dois eram tirados do Pequeno Conselho, quatro dos
Sessenta, e seis dos Duzentos.
O principal papel do Consistório era o de velar pelas ordenanças
eclesiásticas e pela manutenção da disciplina, como tribunal de costumes que
era, reprimindo todas as desordens morais. Na eleição destes anciãos eram
respeitados os direitos do povo. Depois de escolhidos os nomes e
proclamados na Igreja, os membros desta eram convidados a apresentar,
dentro de certo prazo, quaisquer objeções contra a escolha dos mesmos.
Este tribunal de costumes reunia-se todas as quintas feiras para
examinar os casos disciplinares. Não dispunha porém de força material para
forçar os indiciados ao comparecimento ou para a execução de sentenças.
Isso competia ao Conselho, que tomava as providências urgidas no momento.
O poder espiritual do Consistório demonstrava-se no direito da excomunhão,
pena que não traz consigo o sentido odioso em que é tida na Igreja Romana.
Calvino, diz Bungener (p. 249), a isso não associa nenhuma ideia
mística de reprovação, de condenação; toma-a no sentido primitivo,
apostólico. Excomungar é eliminar da comunhão dos fieis e interdizer o
culpado privando-o do uso da Ceia do Senhor.
A excomunhão pesava sobre os que, sendo admoestados, não entravam
no caminho da correção; sobre os que se entregavam a doutrinas heterodoxas;
sobre os que cometiam graves faltas; sobre os que se afastavam dos cultos
públicos e da mesa da comunhão. Havia ainda para os recalcitrantes a pena
do banimento por um ano.
Ao Consistório cumpria, também, pronunciar-se nas questões que se
prendiam ao matrimônio. Calvino admitia o divórcio somente no caso de
adultério. As “Ordenanças” de Genebra cercavam o casamento de todas as
garantias, salvaguardando a sua santidade e indissolubilidade.
Calvino foi além de Zwinglio e Lutero na ideia da autonomia da Igreja.
Zwinglio, ao romper com a Igreja de Roma, concedia ao poder civil a
soberania em matéria religiosa; do mesmo modo, Lutero colocou a igreja
alemã sob a dependência dos reis e dos príncipes; Calvino, porém, reclamou
para a Igreja reformada, em matéria de doutrina e disciplina, a autonomia e
autoridade da igreja primitiva.
A despeito da resistência encontrada nos magistrados civis e das
concessões que, por vezes, se viu obrigado a fazer, Calvino obteve para a
Igreja de Genebra o direito de governo próprio, nas questões puramente
religiosas. Com as inovações e abusos introduzidos no decurso das gerações,
um abismo se firmara entre clérigos e leigos, repousando no clero todo o
poder eclesiástico. Calvino procurou sanar as inovações, investindo certos
leigos de autoridade eclesiástica, como nos dias apostólicos. Isso ele realizou
na restauração do presbiterato ou corpo de anciãos da igreja, os quais tinham
autoridade no consistório de Genebra, mesmo em superioridade de número.
Eles, em tais ocasiões, agiam como representantes do povo, no regime
democrático, fazendo assim desaparecer a barreira entre o clero e o povo.
A reforma de Calvino, sob o ponto de vista do governo eclesiástico, diz
L. Abelous,[53] resultou no regime presbiteriano, que veio a ser a norma das
igrejas reformadas da Suíça francesa e na França, na Holanda, na Escócia e
em várias partes dos Estados Unidos.
Relativamente ao culto em Genebra, ficou determinado que a
celebração da comunhão ficasse restringida aos templos, devendo ser
administrada apenas quatro vezes ao ano – na Páscoa, no Pentecostes, no
primeiro domingo de setembro e no domingo que precedia ao Natal. O
batismo, como ordenança eclesiástica que era, deveria ser praticado somente
pelos ministros, em nome da Trindade e com a simplicidade primitiva tal qual
é praticado atualmente nas igrejas evangélicas.
As cerimônias externas e as festividades religiosas foram banidas da
Igreja de Genebra. Por isso, não foram admitidas imagens nos templos para
que o culto espiritual não se transformasse num culto material. Calvino,
porém, admitiu um ritual litúrgico para maior solenidade no culto público. Ao
cântico sagrado deu ele valiosa atenção, pois que não lhe faltava o senso
estético da música. Imprimiu-se um certo número de salmos versificados por
Clemente Marot e acompanhados de anotações musicais. Na fixação da
liturgia, aproveitou ele muita coisa da igreja de Estrasburgo.
O ensino do catecismo, aos meninos, mereceu de Calvino a maior
atenção. Era ministrado até os dezesseis anos, idade prescrita para a admissão
à mesa da Eucaristia, mas isso somente depois de meticuloso exame.
A prédica tomou formas regulares – um ponto determinado para cada
sermão. Cada pregador tinha o seu templo onde entregava a mensagem
bíblica, mas desde 1542, por conselho de Calvino, começaram eles a
permutar entre si os púlpitos da cidade, alternadamente, para maior edificação
dos assistentes. Havia igualdade na classe dos pastores e nenhum privilégio
oficial distinguia o reformador dos pastores seus colegas. O casamento foi
cercado de todas as garantias, observando-se a cerimônia religiosa. O
divórcio era permitido apenas no caso de infidelidade ou adultério ou, ainda,
em caso de sevícias e maus tratos, pondo em risco a saúde e a vida da mulher.
No zelo pela instrução religiosa do povo, entendeu-se que todos
deveriam ser constrangidos a frequentar as reuniões dominicais, do mesmo
modo que os menores eram compelidos às escolas, devendo os pastores
vigiarem para que cada um comparecesse ao culto público. Para maior
vigilância, foi a cidade dividida em três distritos. Em nossos dias tal medida
seria tido como demasiado rigorosa, mas que se justificava então por
exigências de ordem moral e pelas ideias da época.
Calvino pregava regularmente uma semana inteira em cada quinzena,
três vezes por semana dava preleções teológicas; às quintas, era encontrado
na sessão do Consistório; e, às sextas, nas Companhia dos Pastores. Sua
atividade tornou-se proverbial. Sua correspondência era vasta.
A situação moral da cidade sofreu pronunciada modificação. As casas
de jogo foram objeto de interdição e a frequência às tavernas restringiu-se.
Tomaram-se medidas severas nos casos de ultraje à religião, bem como em
pontos que ofendiam a moral social nos excessos do beber e na depravação
dos costumes. Os próprios pastores estavam sujeitos ao rigor das leis no caso
de negligência dos deveres eclesiásticos ou de qualquer irregularidade no
viver.
CAPÍTULO XVIII. TRABALHOS LITERÁRIOS
DE CALVINO

Progresso da Reforma em Genebra com o regresso de


Calvino. O flagelo da peste. Atividade literária de Calvino.
O apelo dirigido a Carlos V. As observações à carta de
Paulo III. Enumeração dos assuntos sobre que versaram as
obras de Calvino. Número elevado de obras que produziu. O
Tratado sobre as Relíquias.

A causa da Reforma em Genebra tornou-se favorecida por ventos


bonançosos desde o regresso de Calvino. O monograma de Cristo (J.H.S.)
viu-se gravado nos edifícios públicos, bem como nas moedas e nas bandeiras.
O nome do Salvador do mundo era o tema dos discursos e proclamações
evangélicas.
O número de pastores aumentou. Entre eles destacavam-se, pela sua
espiritualidade, os nomes de Blanchet e De Geneston. Os sermões eram agora
melhor elaborados e a piedade multiplicava-se nos lares.
A causa da instrução progredia. Desde 1429 havia uma instituição
educativa fundada pela liberalidade do negociante Francisco de Versonnex,
onde se estudavam as artes liberais. Nas lutas libertadoras de 1534, foi o
prédio destruído, com outras construções vizinhas, na violência dos
combates. Dois anos depois, com a introdução da Reforma, tomou novo
impulso o departamento da instrução e o Colégio foi transferido para o antigo
convento dos franciscanos, sob a direção do pastor Saunier, como atrás ficou
notado. Com a primeira estadia de Calvino, seu antigo mestre Marthurin
Cordier, um dos melhores pedagogos do século, uniu-se a Saunier na
propagação da instrução popular. Todavia, Genebra perdeu os dois provectos
educadores, envolvidos no banimento de Farel e Calvino, vindo a instituição
a padecer grave detrimento. O reformador francês, ao fixar-se de novo em
Genebra, requisitou o concurso de Sebastião Castellion, educador a quem
conhecera em Estrasburgo. Castellion revelou-se depois heterodoxo,
rompendo por isso com Calvino, mas a obra da instrução foi se aperfeiçoando
em desenvolvimento crescente. O antigo Colégio converteu-se em Academia,
da qual Beza veio a ser reitor. Por fim, no andar dos tempos, transformou-se
em Universidade.
Com a supressão das casas de jogo e para livrar a muitos do convívio
das casas de bebidas, providenciou Calvino para a organização de clubes ou
associações em que os moços e pais de família se reuniam e discorriam sobre
pontos de interesse social. Em pouco tempo, elevava-se a quatro o número
daquelas associações. Vinham a ser um embrião das futuras Associações
Cristãs de Moços.
Apesar do rigor das leis e da severidade do Consistório em promover a
punição dos abusos, Genebra converteu-se em cidade de refúgio para os
perseguidos de vários países, que vinham em grande número acolher-se à
sombra da Reforma. Bungener, para exemplo, cita o caso de um refugiado
lionês[54] ao expressar a sua admiração pelo que via: “Como se é feliz ao
contemplar tão bela liberdade neste lugar”. A isso, uma mulher do povo,
descontente com a situação replicou: “Bela liberdade! Outrora nos obrigavam
a ir à missa; agora somos forçados a ouvir o sermão!”.[55] O exilado tinha
razão, a despeito da amargura da queixosa habitante de Genebra. Para ele,
que havia abraçado a nova doutrina, ser-lhe-ia possível servir ao seu Deus
com toda a liberdade de sua consciência. Quão era diferente isso da atmosfera
da França de então!
No ano seguinte ao do regresso de Calvino, pelo outono de 1542, a
peste, que assolara várias cidades do Reno, surgiu também na Suíça, não
fazendo exceção de Genebra. Calvino, escravo do dever, portou-se com a
coragem que o distinguia. Quando em Estrasburgo, em emergência idêntica,
não recusou o concurso em prol dos flagelados. O Conselho de Genebra
pediu à Companhia dos Pastores a assistência de um deles no hospital dos
pestosos. Calvino e Blanchet ofereceram espontaneamente os seus serviços.
Todavia, o Conselho não permitiu a colaboração imediata de Calvino,
atentando na preciosidade de sua vida. Em carta a Viret, relatando o
acontecido, dizia o reformador: “Uma vez que aceitamos tal posição, não
vejo motivo para que recuemos ao perigo”.[56]
Em breve Blanchet tombou no posto de sacrifício. O Conselho, de
novo, apela aos pastores e De Geneston e sua esposa acodem abnegadamente
ao hospital; ambos, porém, têm o mesmo destino de Blanchet. Os dois
pastores eram elementos de valor no ministério de Genebra. Quatro ministros
haviam recusado seus serviços, três dos quais haviam sido sacerdotes e mais
tarde foram banidos da cidade por indignos.
Lá no posto onde se achava, em Neuchâtel, o intrépido Farel visitava
diariamente os flagelados, ricos e pobres indistintamente. Aliás, naqueles dias
em que as epidemias assolavam várias cidades, os reformadores não fugiam
da senda do dever. Lutero, em Wittenberg, não procedeu de maneira diversa,
nem tampouco Zwinglio em Zurique, em 1519, quando esteve às portas da
eternidade acometido pelo flagelo.
Em Genebra, a desusada atividade de Calvino não o impedia de se
afastar dos livros e de produzir literatura, toda ela mostrando a eficiência do
escritor e pensador, bem como o denodado polemista.
Convém particularizar, na lista de suas obras, o seu másculo apelo
dirigido a Carlos V, em 1543, dois anos depois da revogação do exílio do
reformador. A atenção da Dieta, que se ia reunir em Spira, em fevereiro de
1544, é também invocada. O tratado, escrito em latim, tinha por título
Supplex exhortatio ad Caesarem Carolum V de necessitate reformandae
Ecclesiae. Calvino preparou-o em pouco tempo por sugestão de Martinho
Bucer, o teólogo de Estrasburgo. Apareceu também em francês e temos
diante dos olhos a tradução inglesa de Henry Beveridge: “The Necessity of
Reforming the Church”, Filadélfia – sem data. Os argumentos são vigorosos.
É um apelo a uma reforma indispensável na Igreja.
Três pontos Calvino estabelece. Primeiro, aponta os males existentes.
O culto prestado então a Deus é indevido. Devia ser um culto espiritual, a
Deus somente, mas era tributado às imagens nos altares e aos santos, aos
anjos e à Virgem, como se fossem tais criaturas associadas ao Criador.
Impugna, por isso, a distinção sutil do catolicismo romano nas variedades de
culto: latria, dulia, hiperdulia, conforme é o mesmo tributado a Deus, aos
Santos ou à Virgem. Também a Igreja está em erro quanto à fonte de onde é
obtida a salvação, que é apenas mediante a justificação pela fé em Jesus
Cristo e não pelos méritos pessoais de cada pecador.
Em segundo lugar, indica os remédios aos males apontados. Por
último, condena a política adotada, do adiamento indefinido de uma tão
necessária reforma. Calvino desce a discriminar, sinteticamente, os erros
comuns da doutrina praticada na Igreja.
O historiador Schaff considera o livrinho como uma peça de erudição e
um dos mais valiosos tratados de controvérsia daqueles dias.
Pela mesma época, mais ou menos, escreveu suas Observações à carta
de Paulo III ao citado imperador Carlos V, em que este é censurado pelo
pontífice por haver sido demasiado indulgente para com os luteranos e por
haver arrogado a si a missão de convocar um concílio geral.
Paulo III (Alexandre Farnese) era astuto e dissimulado e não primava
pela correção do proceder. Em benefício de um seu filho erigiu Parma e
Placencia em ducados. Havia sido casado e, como cardeal, assistiu a seis
pontífices do seu tempo. Elevou ao cardinalato dois dos seus netos, de 14 e
16 anos, respectivamente. No seu pontificado (1534-1549), foi constituída a
Ordem dos Jesuítas e o Concílio de Trento encetou os seus trabalhos. Por sua
iniciativa, o cardeal Sadoleto procurou persuadir os genebrenses, durante o
exílio de Calvino, a regressarem ao seio da igreja mãe, fato já referido em
outro capítulo.
Os trabalhos literários de Calvino foram múltiplos e variados e neles
desenvolveu o reformador assombrosa atividade. Levando-se em conta a
fragilidade de sua saúde, a relativa brevidade de sua vida e os intensos
afazeres como pastor, professor e estadista, mantendo além disso larga
correspondência, é de pasmar o número e o mérito das obras que escreveu,
pelas quais se equipara aos mais fecundos escritores eclesiásticos.
Algumas das suas obras já têm sido mencionadas no decurso destas
páginas e Schaff as divide em dez categorias, nada menos. Escritos
elaborados com vigor, clareza e elegância, em estilo castiço, no francês ou no
latim, línguas que lhe eram assaz familiares. Vamos enumerá-las, o que não
será sem proveito.
Em primeiro lugar, surgem os escritos exegéticos, comentários
preciosos da Palavra de Deus, o primeiro dos quais foi o da epístola aos
Romanos, preparado ainda em Estrasburgo (1539) e dedicado a Simon
Grynaeus, reformador em Basileia, e mestre de Calvino, no hebraico.
Escreveu comentários sobre todo o Novo Testamento, com exceção do
Apocalipse. Relativamente ao Antigo Testamento, suas considerações
versaram sobre os seguintes livros – o Pentateuco, Josué, Salmos, Isaías,
Jeremias, Ezequiel, Daniel e os Profetas Menores, além de homílias sobre Jó
e o 1º livro de Samuel. Seu derradeiro comentário foi o de Josué, já nos
últimos dias de vida. O de Ezequiel compreende apenas os vinte primeiros
capítulos e também pertence ao fim de sua carreira.
O editor escocês, em nota ao Comentário de Ezequiel, faz a seguinte
observação: “Depois de terminar esta última preleção (sobre o cap. 20), o
ilustre João Calvino – o Teólogo – que havia estado previamente enfermo,
começou a sentir-se tão fraco, que foi compelido a buscar o leito e não pôde
mais prosseguir na explicação de Ezequiel. Esta foi a razão de parar no cap.
20º e não terminar uma obra tão auspiciosamente começada”.[57]
Reuss, o principal editor das obras de Calvino, considera-o o maior
exegeta do século XVI. Farrar classifica-o como o principal exegeta e teólogo
da Reforma. Diestel vê nele o criador da exegese genuína. Schaff conclui que
os Comentários de Calvino não podem ser postos de parte, do mesmo modo
que as Homílias de Crisóstomo, o Gnomon de Bengel e a Exposição de
Matthew Henry. Os reformadores, em regra, produziram obras númerosas e
valiosas naqueles dias de intenso despertamento religioso. Para o judicioso
Schaff, foi Lutero o rei dos tradutores, como a Calvino coube em partilha o
cetro entre os comentadores.
Em segundo lugar, vêm os livros doutrinários, em cuja série as
Institutas ocupam a primazia. Na mesma ordem, destaca-se o seu popular
Catecismo, publicado em francês, em 1536, que obteve númerosas edições e
traduções no italiano, latim, espanhol, inglês, holandês, alemão, grego,
hebraico, etc. Schaff menciona três catecismos, respectivamente em 1537,
1545 e 1545.
À mesma categoria doutrinal pertencem o tratado sobre a Ceia do
Senhor (1541), o Consensus Tigurinus (1549), o Consensus Genevensis
(1552), e a Confessio Gallica (1559). Apareceram estes livros em latim e
francês.
Em terceiro lugar, estão os escritos polêmicos e apologéticos contra
antagonistas diversos. Visando a Igreja Romana, aparecem os seguintes
tratados – Resposta ao Cardeal Sadoleto (1539); Sobre o Livre Arbítrio,
contra Pighius, (1543); O Culto das Relíquias (1543); Contra a Sorbona
(1544); Exortação a Carlos V sobre a necessidade de uma reforma na Igreja
(referida com mais particularidade linhas atrás), (1543); Contra o Concílio de
Trento (1547).
Na luta contra os anabatistas, escreveu: Psychopannychia – sobre o
sono da alma (1534); Breve instrução contra os erros da seita dos
Anabatistas (1544).
Visando os Libertinos, de Genebra, dos quais padeceu muitas
amarguras, publicou Adversus fanaticam et furiosam sectam Libertinorum
qui se spirituales vocant (1545).
Os antitrinitários provocaram dele as seguintes publicações: Defensio
orthodoxae fidei S. Trinitatis adversus prodigiosos errores Serveti (1554);
Responsum ad quaestiones G. Blandatroe (1558); Adversus Valentinum
Gentilem (1561); Responsum ad nobiles Fratres Polonos de controvérsia
Mediatoris (1561); Brevis admonitio ad Fratres Polonos ne triplicem in Deo
essentiam pro tribus personis imaginando três sibi Deos fabricent (1563).
Em defesa da predestinação, escreveu contra Bolsec e Castellion (1554
e 1557).
Sobre a controvérsia eucarística, escreveu contra o luterano Joaquim
Westphal duas defesas (Defensiones) da sã doutrina (1555 e 1556) e uma
Admonitio ultima (1557). Relativamente ao mesmo tópico, produziu, contra
Heshusius, a Dilucida explicatio sanae doctrina de vera participatione carnis
et sanguinis Christi in sacra Coena (1561).
Em quarto lugar, aparecem os escritos litúrgicos e eclesiásticos como
decorre da presente lista; Ordenanças da Igreja de Genebra (1537); Projetos
de ordenanças eclesiásticas (1541); Fórmula do juramento prescrita aos
ministros (1542); Ordem do casamento (1545); Visitação de igrejas (1546);
Ordem do Batismo (1551); Ordenanças eclesiásticas e Leis Acadêmicas
(1561); Orações litúrgicas.
Na quinta categoria, estão os sermões e homílias. É assaz númerosa a
lista para que a pormenorizemos. No apêndice ao Comentário de Josué, que
temos presente, edição escocesa de H. Beveridge, há também uma relação
circunstanciada das obras do reformador, vindo especificada a coleção de
sermões, que deu muitos volumes. Informa Goguel que com as homílias
populares, a começar em Angoulême e Saintonge, e seus discursos que
precederam e seguiram o período de 1549 a 1560, pode ser avaliado em três
mil o número de escritos deste gênero que dele possuímos.[58]
Em sexto lugar, figuram os pequenos tratados, que o reformador fez
surgir em várias ocasiões. Esta coleção de opúsculos é igualmente númerosa.
A seguir, temos uma série de Conselhos sobre assuntos polêmicos e
doutrinários. Em oitavo lugar, salientam-se as Cartas de Calvino, que
compreendem 10 volumes, nada menos. Era enorme a sua correspondência.
Os editores de Estrasburgo apresentam 427 destas cartas escritas por Calvino
ou a ele dirigidas.
No gênero poético, publicou um hino épico – Epinicion Cristo
cantatum (1541), versões métricas de vários salmos e um hino a Cristo.
Além disso, Calvino publicou, aos 23 anos, seu Comentário ao livro De
Clementia, de Sêneca, já citado nestas páginas. Em 1535, escreveu um
Prefácio à versão francesa da Bíblia de Olivétan. Em 1546, preparou a sua
tradução francesa dos Loci Communes, máscula produção de seu amigo
Melanchton.
O douto Schaff termina a nomenclatura da produção do reformador
francês, observando que o Adeus de Calvino ao Pequeno Conselho e aos
ministros de Genebra, em 1564, no leito de morte, “forma uma digna
conclusão dos trabalhos literários do extraordinário ensinador”.
Muita coisa de interessante figura na lista dos pequenos tratados, assaz
númerosa, como a Oração Acadêmica de Cop (1533), o tratado contra a
Astrologia (1549), outro sobre Certos escândalos (1550), etc. Da lista é
também a A excusa de João Calvino aos senhores nicodemistas sobre a
queixa que fazem de seu grande rigor. Singularmente curioso é o Tratado de
Calvino, mencionado linhas atrás, sobre o Culto das Relíquias. Tivemos
oportunidade de o ler juntamente com a Excusa aos nicodemistas, em um
volume com introdução e notas por Albert Autin, professor em Marselha,
editado em Paris em 1921. Escrito com o vigor usual, logo de início mostra
Calvino a insensatez de semelhante culto, porquanto, em vez de Roma propor
a imitação da vida de Cristo, dos santos e dos mártires, detém-se demasiado
na contemplação e veneração idólatra de ossos, vestes, cabelos, objetos de
uso comum e outras ninharias, expondo ao ridículo a santa religião do
Calvário. Mostra o número sem conta de tais relíquias, esparsas em muitos
santuários da cristandade católica romana. O campo é frutífero. Relicários se
multiplicam em templos diversos, fazendo-se disso um negócio rendoso.
Provar a autenticidade das relíquias é que seria trabalho hercúleo, pois muitas
delas se exibem em exemplares diversos, em pontos diferentes, disputando,
cada qual, ser a legítima relíquia.
Cristo ressuscitou e, todavia, não faltam coisas que lhe digam respeito
no vasto arquivo de relíquias. Dele exibem-se gotas de sangue em várias
igrejas, e até sangue misturado com água do lançaço que recebeu na cruz,
como se vê em S. João de Latrão. São vistos, nos museus de relíquias, o
berço de Belém, a coluna em que se apoiou no templo ao discutir com os
doutores e muitas coisas em suma; nem escapou à exibição a pele do
prepúcio que, em três lugares, se mostravam – em S. João de Latrão, em
Hildesheim, e na abadia de Charroux, na diocese de Poitiers, onde também se
encontravam dentes e cabelos de Cristo. Calvino menciona as igrejas em que
tais objetos se veneram e fez o mesmo em relação às relíquias da Virgem e
dos Santos. Iríamos longe se quiséssemos reproduzir todos os casos citados
por Calvino, mas a divulgação de seu livro não deixaria de ser muito curiosa.
Até leite da Virgem Maria é mostrado como autêntico em vários santuários,
bem como cabelos e peças de sua vestimenta. Para mostrar como uma mesma
relíquia pode multiplicar-se, entre muitos casos vamos citar o do apóstolo
Matias, cujo corpo é exposto em Pádua, em Roma e em Treves. Além dos
três corpos há, do mesmo apóstolo, mais uma cabeça e um braço em outros
lugares. De S. João Batista, há várias cabeças, e assim por diante. Os
fragmentos da cruz de Cristo, dispersos pelo mundo, dariam para um grande
carregamento de navio. Quem poderia garantir a legitimidade de tais objetos,
depois de tantos anos decorridos? Do mártir S. Sebastião, viam-se quatro
corpos completos em Roma, em Soisons, em Piligny e em Narbona e mais
duas cabeças em S. Pedro de Roma e em Tolosa, além de um braço em
Angers, outro em Tolosa, outro em Auvergne e mais um em Farez;
fragmentos menores eram venerados em outras igrejas.
Quatro séculos já se vão depois de Calvino e a indústria das relíquias
tende a multiplicar-se. Ainda há pouco o Santo Padre enviou ao Brasil um
relicário contendo um fragmento de osso de Santa Teresinha, a santa da
moda!
CAPÍTULO XIX. EXPERIÊNCIAS DE CALVINO

Têmpera combativa de Calvino. Sua competência para a missão que lhe estava
destinada. Capacidade intelectual e moral. Preconceitos sem base contra ele. Exagero
na concepção de sua autoridade em Genebra. Constituição do poder civil na república.
Princípios básicos de sua organização eclesiástica e análise das mesmas. O rigor da
disciplina de então.

Um homem de ação como Calvino, de convicções firmes, intrépido no


testemunho e vivo no ataque, não deixaria de ter adversários temíveis como
os que encontrou no seu caminho. A todos enfrentou de ânimo resoluto com
as armas da verdade. De natural austero, não se poupando a trabalhos, foi
rígido no acometimento e perseverante na luta. O zelo pela causa da justiça a
que se propunha não o abandonou nos embates em que se envolveu,
obedecendo à índole destemida.
Mestre em teologia, profundo em história eclesiástica e familiar dos
Santos Padres, filósofo, humanista de valor, exímio latinista e cultor do
grego, conhecedor do hebraico, um dos aperfeiçoadores da língua francesa,
era, além disso, perito em jurisprudência. Possuía o diploma de bacharel em
direito, conquistado em Orleáns, em cuja universidade, bem como na de
Bourges, fizera o tirocínio aos pés de mestres competentes como Pierre de
l’Etoile e Alciati. Em tudo estava aparelhado para a missão de lutador e de
condutor de homens.
Profundo conhecedor das Sagradas Letras, como o demonstrou nos
seus bem ordenados comentários, rígido moralista, homem de fé e de oração,
resoluto e enérgico, soube desempenhar-se cabalmente da missão de
responsabilidade que lhe confiara a Providência.
Mereceu ele o louvor e a apologia de escritores consagrados e de
pensadores eméritos no decurso das idades. Renan chegou a classificá-lo
como “o maior cristão do seu século”.
Seus adversários não o pouparam, porém, a começar da própria
Genebra. A Igreja Romana cobriu-o de anátemas e as fogueiras de Francisco
I o teriam consumido, se a sorte o tivesse posto ao alcance do frívolo
monarca. Ainda hoje o atinge o preconceito. É, para muitos, o heresiarca por
excelência, o reformador sombrio que se comprazia em torturar as suas
vítimas, homem sem coração e rancoroso, de costumes livres, como o pintam
em compêndios didáticos autores pouco escrupulosos, de ideias
preconcebidas.
Na bibliografia de Calvino, mencionada no capítulo precedente,
aparece a lista das obras de controvérsia em que visou os seus adversários e
as lutas de natureza doutrinária em que se atirou contra eles. Vamos analisar
as principais destas contendas em que o reformador intentou defender o
terreno da ortodoxia, de acordo com suas convicções.
Aliás, não foi ele o único a terçar armas naquela esfera particular.
Homens piedosos, em várias épocas, tiveram igualmente horas de amargura
nas pugnas da ortodoxia e da fé, como Justino e Irineu, Atanásio e Agostinho,
Bernardo, Wiccliffe, Savonarola e tantos outros.
Acusam-no os adversários de haver ele, Calvino, assumido em Genebra
a atitude de um déspota rígido e sem coração. O exagero é bem patente desde
que se examinem os anais da cidade. A sua autoridade moral, em Genebra, é
incontestável, mas o poder civil residia nos magistrados sempre prontos a
contrariar os desígnios do reformador, tanto antes como depois do banimento.
Já temos feito, neste estudo, várias alusões à condição de anarquia social que
reinava no pequeno estado ao tempo da primeira residência de Calvino. A
ação que então exerceu, na reforma dos costumes e repressão de abusos,
valeu-lhe o exílio de Estrasburgo, de um triênio proveitoso. Mas Genebra já
não podia passar sem Calvino e não cessaram os empenhos até que o
constrangeram a voltar em 1541.
Ele, porém, esboçou a sua plataforma, pedindo logo uma sábia
organização nos negócios eclesiásticos e uma severa repressão nos costumes.
A isso Genebra aquiesceu e a disciplina da igreja foi posta em ação.
Não levou muito tempo, e a reação começou a se operar contra as
reformas introduzidas. Daí grande parte das amarguras de Calvino.
Genebra, desde a emancipação do poder do bispo e do duque de
Saboia, constituiu-se em república autônoma. O governo civil assumiu a
autoridade episcopal, favorecendo a Reforma a princípio, contrariando-a
depois, sendo-lhe, em seguida, de novo favorável.
Segundo registra Schaff, a república compunha-se de todos os cidadãos
na idade legal, que se reuniam anualmente, em assembleia geral, em regra na
catedral de S. Pedro, para a confirmação das leis e eleição de oficiais.
O poder administrativo residia nos quatro síndicos. O legislativo
pertencia ao Conselho dos Sessenta, existente desde 1457, e ao dos Duzentos,
instituído em 1526, à imitação de Friburgo e Berna, a cujo grêmio se filiavam
também, por direito, os membros dos Sessenta. Em 1530, os Duzentos
arrogaram a si o direito de eleger o Pequeno Conselho ou o dos Vinte e
Cinco, até então escolhido pelos síndicos. O verdadeiro poder, diz citado
historiador, jazia nas mãos dos síndicos e do Pequeno Conselho, “que
formavam uma oligarquia com funções legislativas, executivas e judiciais”.
[59]

Calvino, portanto, não era o senhor de Genebra, no sentido absoluto,


nem o cabeça da república. Nem mesmo se alistou como cidadão de Genebra
senão em 1559, cinco anos apenas antes de sua morte. Como ficou dito linhas
atrás, sua autoridade era somente moral e intelectual. Sua voz era ouvida nos
importantes negócios de estado e, muitas vezes, seu parecer prevalecia.
Na organização eclesiástica de Genebra, contudo, teve Calvino parte
notável, valendo para isso os seus conhecimentos jurídicos. Em outra parte
foi explicada a natureza dessa organização, que o reformador baseou nos
seguintes princípios: 1° Autonomia da Igreja ou o direito de governo próprio,
sendo Cristo o único chefe ou cabeça. 2° Igualdade do clero, diferindo nisso
da hierarquia papal ou prelática. 3° Participação dos leigos no governo e
disciplina. 4° Exercício da disciplina pelos ministros e presbíteros eleitos pelo
povo. 5° União da Igreja e do Estado sob uma base teocrática o quanto
possível, ou separação quando o exigissem a pureza e a autonomia da Igreja.
Relativamente ao primeiro destes tópicos, temos a observar que a
Igreja Romana também reclamava autonomia, subordinada porém ao sumo
pontífice, chefe supremo da igreja visível. Os luteranos deixavam a igreja
sujeita aos poderes seculares e as congregações não tinham voz na escolha de
seus pastores. Mesmo na Suíça alemã, em que a igreja era mais democrática,
a autoridade principal se alojava no governo civil dos cantões. Na Inglaterra,
o supremo governo eclesiástico fora empolgado por Henrique VIII e, depois
dele, numa forma mais branda, pelo seus sucessores com a conivência dos
bispos. Em Genebra a autonomia da igreja era patente na gestão dos negócios
espirituais, assistindo ao povo o direito de eleger os seus pastores.
Em relação ao segundo ponto, Calvino, consoante Gerônimo e outros
escritores eclesiásticos, mantinha a identidade primitiva, entre presbíteros e
bispos, como constituindo o mesmo ofício. Observa o citado historiador, que
o reformador de Genebra não era de todo infenso ao exercício do episcopado
em largas regiões, desde que fossem observados os ensinos evangélicos.
Todavia, os princípios presbiterianos e congregacionalistas estavam mais no
seu ânimo do que os que regem o episcopalismo. Nas lutas do século XVII,
os calvinistas da Escócia, tornaram-se presbiterianos, e independentes ou
congregacionalistas na Inglaterra e na Nova Inglaterra ou América do Norte.
A política da igreja em Calvino, ia culminar na teocracia.
Teoricamente, distinguia claramente os dois poderes – o secular e o
espiritual. Comparava a igreja à alma e o estado ao corpo, desde que ao poder
eclesiástico incumbia a cura das almas e ao poder civil a provisão para a vida
transitória.
Admitia as Escrituras como a única regra de fé e prática, ao passo que a
teocracia papal baseava-se na lei canônica e nas tradições eclesiásticas. A
teocracia calvinista, apoiava-se principalmente, no Antigo Testamento, de
preferência ao Novo. Daí o seu tom de austeridade. Reconhecia apenas a
supremacia de Cristo e qualificava de anticristãs as pretensões do bispo de
Roma.
Calvino aceitava a origem divina do Estado e não somente da Igreja.
Os poderes civis eram independentes dos poderes eclesiásticos. A Igreja
Romana aspirava a primazia. Para Hildebrando a Igreja era o sol e o Estado a
lua, que refletia a luz recebida. Ele e Bonifácio VIII, entre outros, julgavam-
se no direito de depor os reis e desobrigar os súditos da obediência ao
monarca.
A teocracia de Calvino apoiava-se na soberania do povo cristão e no
sacerdócio universal dos crentes, em contraste com a ideia de Roma cuja
teocracia se fundava no domínio sacerdotal.
Na prática, observa ainda o citado historiador Schaff, os dois poderes
não se distinguiam tanto em Genebra, como se dava na teoria. Os pastores
criticavam, do púlpito, os atos do governo e os magistrados chamavam à
conta os ministros pelos seus sermões. O exercício da disciplina, fazia-se em
terreno comum, sendo o Consistório o poder que a punha em execução, um
conjunto de clérigos e leigos. O governo tinha à sua conta a côngrua dos
pastores e confirmava as nomeações e transferências nas paróquias. A Igreja
Reformada de Genebra vinha a ser, afinal, uma igreja oficial ou estabelecida.
A disciplina eclesiástica era um tanto severa, consoante a feição dos
tempos. Tinha por alvo a pureza e santidade da igreja. O rigor dela provocou
o banimento de Calvino, mas a ausência de medidas de tal gênero fez ver a
necessidade de leis repressivas e determinaram o regresso do reformador.
O ideal de Calvino era uma igreja sem mácula como S. Paulo a
concebia.[60] Sua disciplina rigorosa preparou o terreno em que, mais tarde, se
deveria expandir o puritanismo.
No capítulo XII do 4° livro das Institutas, ensinava ele que, como no
lar doméstico, uma igreja não pode subsistir sem o exercício da disciplina. A
negligência em aplicá-la, havia sido uma das causas de fracasso da Igreja
Romana naqueles dias.
Calvino desejava vê-la exercitada entre povo e o clero. A disciplina
contra os membros da igreja distribuía-se entre três graus, de acordo com o
preceito de Cristo: admoestação privada, advertência perante testemunhas ou
diante da igreja, e exclusão da mesa da comunhão.[61]
Igualmente tríplice, era o objeto visado: proteger a igreja da impureza
de costumes; preservar os seus membros da influência contaminadora de
indivíduos de vida desregrada; levar o recalcitrante ao arrependimento, no
intuito de restaurá-lo à comunhão dos fieis.
A excomunhão era exercida somente nos casos mais graves e não podia
ser administrada pelo pastor unicamente, mas pela corporação dos
presbíteros.
Era rigoroso na disciplina contra o clero.
Os pontos passíveis de disciplina eram múltiplos: adultério, furto, jogo,
blasfêmia, profanação, danças, leituras subversivas, modas extravagantes e
coisas de teor semelhante. As penas eram também rigorosas, indo de multas e
censuras públicas a prisão, banimento e eliminação pela morte em certos
casos. Citam-se vários processos de disciplina, como, por exemplo, a prisão
da esposa de Ami Perrin, pessoa de destaque, por excessos de danças; a de
três indivíduos, por fazerem zombaria durante o sermão; o fato de Bonivard,
amigo de Calvino, chamado perante o Consistório, por haver, no jogo de
dados apostado certa quantidade de vinho contra o poeta Clemente Marot.
Houve, também, penas capitais por determinação do Consistório, pelos
crimes de heresia, feitiçaria e outras transgressões.
Hoje não se pode fazer a apologia de tais excessos. Deve ser tida em
vista, contudo, ser aquela teoria então dominante, praticada na Igreja, herança
fatal da Idade Média, e continuada entre os católicos e protestantes até a
última parte do século XVIII.
Tolerância era virtude mal desenvolvida então.
As reformas da Igreja e a conservação de sua pureza foram a origem de
muitas amarguras para o austero reformador.
No próximo capítulo, começaremos a enumerá-las.
CAPÍTULO XX. CONFLITOS E AMARGURAS
Os dois partidos de Genebra: Patriotas e Libertinos. Padrão moral e religioso destes
últimos. Principais promotores na oposição levantada contra Calvino – Ami Perrin e
Favre. Desassombro de Calvino perante o Conselho dos Duzentos. Pierre Ameaux.
Vandel. Berthelier. Vitória de Calvino contra os Libertinos e benefícios auferidos por
Genebra com a atitude do reformador. Sábia orientação dada à administração de
Genebra.

Longo foi o conflito para o estabelecimento do sistema disciplinar de


Genebra. Nada menos de uma década, até 1555. Os adversários de Calvino
constituíam dois partidos: um político e outro religioso, e muitos deles eram
os velhos hostilizadores de 1538, que agora renovavam o ataque.
O partido político era o dos Patriotas ou Filhos de Genebra e
compunha-se dos que haviam trabalhado pela independência política e
mesmo pela Reforma, mas apenas por motivos políticos. Vários deles não
haviam tomado parte direta. Seus pais, contudo, o haviam feito. Os nomes de
Perrin, Berthelier, Ameaux, Vandel, Favre e outros, assinalam estas famílias
de destaque na sociedade local. Queriam liberdade sem as restrições que lhes
impunham as leis favorecidas por Calvino, a quem anatematizam bem como
aos refugiados da França – “os cães dos franceses” –, como os apelidavam.
Aceitariam, mais facilmente, o jugo ominoso dos duques de Saboia que a
disciplina evangélica de Calvino.
O outro partido, mais encarniçado ainda, era o dos Libertinos ou
Espirituais, que reviviam as doutrinas antinômicas da seita medieva dos
Irmãos do Espírito Livre, ramo dos Begardos, que tinham o seu centro em
Colônia e se emanciparam das leis da igreja e da moralidade.
Os Libertinos de Genebra tinham a sua origem imediata, segundo
Calvino, em Coppin de Yssel e Quintino de Hennegau e no ex-padre Pocquet,
que se haviam demorado em Genebra algum tempo. Considerava-os como a
mais perniciosa das seitas desde os tempos dos gnósticos e maniqueus e
pareciam realizar a profecia de Judas e da 2ª Epístola de Pedro. Os Libertinos
espirituais eram verdadeiros panteístas antinômicos. A liberdade espiritual
que advogavam os conduzia a licença e o seu espiritualismo degenerava em
materialismo carnal, na expressão de Schaff. Vamos citar as suas palavras:
“Ensinavam que havia apenas um espírito, o espírito de Deus, que vive em
todas as criaturas, que nada são sem ele. O pecado consiste, apenas, em mera
negação ou privação, ilusão ociosa que desaparece logo que é conhecida e
desprezada. Consiste a salvação no livramento do fantasma do pecado.
Satanás nem anjos existem, bons ou maus. Não acreditavam na história
evangélica. A crucificação e ressurreição de Cristo tinham apenas sentido
simbólico, mostrando que para nós não existe o pecado”[62].
Preceituavam a comunidade de bens e de mulheres, preconizando a
superioridade do casamento espiritual sobre o legal. Rejeitavam as Escrituras
como letra morta e punham apelidos nos apóstolos. Eram peritos na arte de
simular. Em tudo revelavam-se imbuídos de espírito profano.
A seita achou adeptos na França, onde conquistou cerca de quatro mil
aderentes. Quintino e Pocket alcançaram asilo em Nérac, na corte de
Margarida de Navarra, que os protegeu sem abraçar suas doutrinas. Chegou
até a mostrar-se magoada com os ataques de Calvino ao perigoso núcleo. Por
isso, sentiu-se ele forçado a justificar, perante ela, a razão do seu
antagonismo.
Era com gente tão profana e licenciosa que Calvino tinha de combater
pelo púlpito e pelo livro. Daí o rigor das leis. De entre o que publicou a
respeito, destaca-se o tratado: Contra a seita fantástica e furiosa dos
Libertinos que se dizem espirituais. Os que ainda hoje cobrem de estigma o
reformador francês ignoram, muitas vezes, tais minúcias.
Os Libertinos repudiavam toda a disciplina e cobriam de opróbrios o
reformador na sua passagem pelas ruas. Pronunciavam o seu nome de modo
tal, que o ouvido percebia Caim em vez de Calvino e até aos cães davam o
nome de Calvino na manifestação de seu rancor.
Acompanhando os biógrafos em geral, vamos agora mencionar
algumas das lutas de Calvino em suas diversas peripécias.
Deixando para depois os casos de Gruey e Serveto, vamos enumerar
vários outros bem característicos. Temos, pois, embora não em ordem
cronológica, o caso de Amin Perrin, personagem de destaque em Genebra,
um dos chefes do partido patriótico, que havia pugnado pelos interesses da
Reforma, embora fosse a isso impelido por motivos políticos. Havia sido um
dos delegados comissionados para fazer voltar Calvino do seu exilo. Também
pertencera ao grupo dos seis leigos designados para assistir aos ministros na
elaboração das Ordenanças e por algum tempo prestigiara Calvino. Era o
chefe militar da república, o capitão-general. A par de alguns méritos, era
jactancioso e frívolo como o reconhece o próprio Audin. Sua esposa,
Francisca, era filha de Favre, outro cidadão que participara das lutas políticas
de Genebra, mas que não primava pela correção dos costumes.
Apesar da severidade das leis, Favre, sua filha e genro compareceram a
certo baile tido como pouco edificante, pelo que foram recolhidos à prisão e
submetidos à decisão do Consistório, de acordo com o regulamento vigente.
Desde aquele momento Perrin constituiu-se em chefe da oposição contra
Calvino. Denunciou o Consistório e quis transferir para o Conselho o
domínio da disciplina eclesiástica, ao que se opôs formalmente Calvino, pois
tal medida seria anárquica, altamente irregular. A disciplina seria então letra
morta.
Favre, Perrin e sua esposa portaram-se inconvenientemente nestas
questões, como personagens de destaque que eram. Calvino e os ministros
eram atrozmente insultados. Por isso, o reformador não podia permitir o
desprestigio da causa em que empenhara a sua vida. A lei era igual para
todos, pelo que as penas caíram sobre os Favre, a despeito de suas riquezas e
posição social.
Entretanto, Perrin fora a Paris negociar um tratado de comércio.
Impensadamente, concertou com o cardeal Du Bellay a permanência de
tropas francesas em Genebra, sob o comando do próprio Perrin, o que foi tido
como assaz inconveniente, sendo até suspeito de traição à pátria. Em sua
ausência, a esposa e o sogro haviam incorrido em nova sentença do
Consistório por infração das leis em vigor. Perrin comparece
desabrigadamente perante o Conselho, ao regressar, e interrompe a sessão
indignado pelas censuras infligidas aos seus. Alega os serviços prestados à
república e a consideração a que tinha direito. Onde estaria, porém, o
prestígio da lei se os nobres fossem excluídos do rigor de suas penas?
O certo é que a suspeita de traição levou o Conselho a privá-lo do
comando militar, sendo enviado à prisão de onde foi solto meses depois com
sua mulher e sogro, em novembro de 1547.
Em 16 de dezembro, Calvino deu mais uma vez prova de sua coragem
desmedida. Os Libertinos haviam pedido uma reunião dos Duzentos de onde
esperavam tirar muito partido. Foi uma sessão tumultuosa. Vociferavam
contra os pastores, especialmente contra Calvino. Desembainhadas as
espadas, estava iminente um conflito.
Desatendendo ao conselho dos amigos, Calvino comparece sem armas
de defesa como era o seu costume. Apenas o avistam ouvem-se gritos
sediciosos e o ameaçam de morte. Estende os braços e encara resolutamente
os facciosos: “Sei que sou a causa principal de vossas discórdias, se
necessitais de sangue para apaziguá-las, tomai o meu!”
A calma e a coragem de Calvino desarmaram a assistência. Subiu os
degraus do recinto. Embainharam-se as espadas e serenaram-se os ânimos.
Toma, então, a palavra e prontifica-se a ir de novo para o exílio se
assim fosse preciso. Lembram-se todos das desordens ocorridas no primeiro
banimento e votam o esquecimento do passado.
Calvino vencia a partida contra o partido libertino.
Aproximava-se o Natal e era o tempo da comunhão. O reformador e
um dos seus colegas dirigiram-se aos magistrados, advertindo-os da
solenidade do momento e da necessidade de paz uns com os outros. Queriam
estender a mão a Perrin e solicitavam a reintegração dele no número dos
conselheiros. Em 16 de janeiro de 1548, restabeleceram-no no cargo e
mostrou ele querer viver em paz. Foi também readmitido no ofício militar,
que havia sido suprimido, e eleito primeiro síndico em fevereiro de 1549.
Isso, porém, infundiu novo alento nos seus partidários políticos. Nem
cessaram tão pouco as hostilidades contra o reformador. No caso Serveto,
Perrin se opôs a Calvino. Mais tarde se envolve numa conspiração para
exterminar os estrangeiros que se houvessem acolhido a Genebra por
questões de religião, bem como as pessoas que aceitassem as suas doutrinas.
Descoberta a conspiração, fugiram da cidade, sendo, contudo, julgados e
condenados a pena última cinco deles, os quais foram executados em efígie
em junho de 1555. Perrin fazia parte desse número e a sentença determinava
que fosse cortada a sua mão direita, a que empunhava o bastão de síndico.
Refugiados em Berna, os conspiradores, de longe, continuaram a fazer mal a
Calvino e a Genebra.
Outro caso apontado, embora de menos consequência, é o de Pierre
Ameaus, que era membro do conselho dos Duzentos e fabricante de cartas de
jogar. Era homem vicioso e inimigo de Calvino, da religião e da disciplina
austera de Genebra, que condenavam o seu gênero de vida. Sua esposa
adotara a doutrina do amor livre, pregada pelos Libertinos Espirituais, e
levava vida escandalosa, pelo que foi sentenciada à prisão e seu marido dela
se divorciou.
Esquentado pelo vinho em certa noite, murmurou contra Calvino e seus
colegas, bem como atacou os magistrados que os toleravam. Denunciado, foi
pelo Consistório condenado a multa, retratação e dois meses de prisão. Mas
os Duzentos desaprovaram a censura e o elegeram membro do Pequeno
Conselho. Contra isso Calvino e seus companheiros protestaram. Se as
acusações de Ameaux eram verdadeiras, os pastores deveriam ser julgados e
pronunciados. O Conselho reconsiderou o ato e condenou o indigitado a fazer
emenda honrosa, de tocha na mão, cabeça descoberta e confissão de culpa, de
joelhos.
Era ainda o prestígio da lei o que Calvino requeria e não mero
sentimento de rancor como talvez o vejam nisso seus adversários de todos os
tempos. O caso Ameaux ocorreu em 1546.
Pierre Vandel foi outro a se opor a Calvino. Havia sido do número dos
que concorreram para o banimento e, logo que o reformador se achou de
novo em Genebra, eis Vandel disposto a continuar no mesmo empenho
perseguidor. Era de figura atraente e de porte deslumbrante. Veio a servir de
síndico em 1548. De viver irregular, incorreu nas censuras do Consistório.
Entrou na conspiração de Perrin e participou de sua condenação.
Philiberto Berthelier constituiu-se no mais encarniçado inimigo de
Calvino. Fora seu pai um nobre patriota decapitado em 1519 nas lutas pela
independência de Genebra. O filho, porém, preeminente entre os Libertinos,
não herdou as nobres qualidades de seu progenitor. Era irreligioso e por vezes
causou amarguras ao Consistório, zombando de suas determinações.
Eliminado da comunhão da Igreja de Genebra, a despeito disso quis
participar da Santa Ceia por acinte a Calvino, que se opôs vivamente a este
ato de sacrilégio como mais adiante veremos. Na questão referente a Serveto,
tomou positivamente o lado deste e não perdeu nenhum ensejo de opor
entraves à carreira do reformador. Foi um dos que se esforçaram para que
fosse transferido ao Conselho o poder disciplinar atribuído ao Consistório.
Por último, fez parte da conspiração de Perrin já referida, participando da
mesma condenação por parte do conselho de Genebra, da qual escapou pela
fuga.
O ano de 1555 marcou o fim destas contendas com o enfraquecimento
do partido dos Libertinos. Genebra, afirma Schaff, saiu do conflito uma nova
cidade, num grau de prosperidade moral e espiritual que a colocou acima de
outras cidades cristãs por várias gerações.
A energia e a integridade de Calvino conseguiram tudo isso.
Tergiversar seria favorecer a licença e a dissolução dos costumes.
A transformação foi visível desde então. As igrejas povoaram-se e a
religião floresceu nos lares. Sentia-se por toda parte o fervor religioso. A
palavra de Deus era proclamada diariamente. Às sextas-feiras realizava-se,
em S. Pedro, uma conferência espiritual com testemunhos de experiência
religiosa, de tanto proveito que chegou a impressionar o núncio papal
Vergerius. Gaberel (I. 512) e Stahelin (I. 364), citados por Schaff, referem
uma carta de Vergerius, na qual há o seguinte trecho: “Todos os ministros e
muitos cidadãos assistem. Um dos pregadores lê e explica brevemente um
trecho das Escrituras. Outro expressa sua opinião sobre o assunto e qualquer
pessoa toma parte nisso, se assim o entende. Há nisso uma imitação do que
Paulo diz dos Coríntios. Recebi destes colóquios públicos bastante
edificação”.
A interferência de Calvino se fez sentir em toda a organização de
Genebra e não só na esfera moral e espiritual. A cidade progrediu debaixo de
seus conselhos. Cuidou-se da higiene e do asseio das habitações, das ruas e
dos mercados. Foi proibida a mendicância, sendo abertos um asilo e um
hospital. A ociosidade foi reprimida e providenciou-se para que todos
tivessem trabalho. Calvino chegou ao ponto de recomendar a indústria de
tecidos e de sedas, que concorreram em muito para o engrandecimento
material da cidade. Viram todos, por fim, a sabedoria da disciplina e das leis
estabelecidas em Genebra pela intransigência do reformador.
As amarguras de Calvino foram compensadas pela satisfação íntima
que experimentou ao ver os frutos e os magníficos resultados da obra em que
empreendeu na transformação moral e social de Genebra, atestada por muitos
que visitavam a cidade e conheciam a sua condição anterior. O saneamento
operado foi deveras notável e emprestou brilho magnífico ao caráter do
reformador.
Os que tomam o lado dos Libertinos e dos Patriotas, por oposição a
Calvino, estão longe de perceber a medida do patriotismo de tais partidários
exaltados. Pleiteando a dissolução dos costumes e a isenção de obediência às
leis em vigor, trabalhavam em prol da anarquia e da desordem social.
Exilados pela sua conspiração contra os refugiados de Genebra, aos
quais teciam calúnias e assacavam injúrias, não cessaram de maquinar os
principais cabeças como Perrin e Berthelier. Assim é que, em 1563, um ano
antes da morte de Calvino, os magistrados de Genebra tiveram conhecimento
de que projetavam tais “patriotas” nada menos que a entrega da cidade ao
duque de Saboia, o antigo dominador, do qual os genebrenses se haviam
libertado com tanto custo! Os magistrados haviam recebido dinheiro pelo
plano sugerido. Em tempo, porém, tomaram-se providências e o duque
desistiu do ataque. Bungener dá disso testemunho (p. 306, obra citada).
CAPÍTULO XXI. LUTAS DE CALVINO E DE
GENEBRA

O caso de Sebastião Castellion. As intrigas de Bolsec. O processo de Monnet. Jacques


Gruet.

As lutas de Calvino não foram somente no terreno da disciplina que,


uma vez estabelecida, tantos benefícios operou em Genebra.
Houve, também, as disputas doutrinárias. De índole combativa,
intransigente em suas opiniões religiosas, não podia admitir qualquer desvio
da ortodoxia que professava.
Há muita acusação em referência à intolerância de Calvino. Não é de
todo sem fundamento. Há porém atenuantes.
Um dos casos surgidos é o de Castálio, Castélio ou Castellion,
personagem que se tornou mais conhecido graças às suas relações e
contendas com o reformador francês.
Sebastião Castellion nascera em 1515, na Saboia, no Delfinado
segundo outros ou, ainda, perto de Mantua. Em 1540, achava-se em
Estrasburgo, onde se relacionou com Calvino, em cuja casa veio a residir. De
regresso, depois da revogação do banimento, este o tomou sob sua proteção,
convidando-o para a regência do colégio de Genebra, em substituição a
Marthurin Cordier.
Dado a estudos filológico, tornou-se competente em latim, grego e
hebraico. Escreveu bastante, fez duas versões do Pentateuco e traduziu os
Salmos e outros trechos poéticos do Antigo Testamento. Começou, em
Genebra, uma tradução latina da Bíblia, que terminou em Basileia em 1551,
dedicando-a a Eduardo VI, de Inglaterra. Calvino desaprovou a tradução,
feita ao gosto dos humanistas. Castellion substituíra certos termos por outros,
mais ao seu sabor – por exemplo, em vez de “batismus”, lotio; “genius”, em
lugar de angelus; “respublica”, substituindo ecclesia; “collegium”, em vez
de sinagoga; “senatus”, por presbiterium, etc. A tradução vinha assim
enfraquecer o sentido bíblico, na crítica de Calvino e Beza. Publicou,
também, em 1555, uma tradução francesa do livro sagrado. Era filólogo,
crítico, orador e poeta. Quis meter-se, igualmente, a teólogo e daí as
amarguras. Era um místico com tendências céticas.
Quando em Genebra, começou a discórdia com Calvino, que o tratou
com bondade. Não concordava com aquela severidade na disciplina, nem
com certas opiniões teológicas do reformador, principalmente em referência à
predestinação. Não aceitava, outrossim, a interpretação de Calvino sobre o
artigo do Credo em relação ao Hades e não acreditava na inspiração do
Cânticos dos Cânticos.
Por tudo isso, Calvino se opôs a que fosse nomeado pastor em
Genebra, mas promoveu-lhe aumento de salário no Colégio e, quando se quis
retirar para Lausane, deu-lhe excelentes cartas de recomendação. Castellion
voltou depois a Genebra e, publicamente, começou a acusar os pastores de
levarem vida irregular. Convencido de calúnia foi banido pelo Concilio.
Transferiu-se então para Basileia, em cuja universidade Calvino era
muito hostilizado. Em 1554 e 1555 vieram à luz cartas e acusações anônimas
contra o reformador, que foram atribuídas a Castellion, às quais Calvino e
Beza replicaram com muita veemência.
No negócio de Serveto, apareceu um livro contra Calvino, sob o
pseudônimo de Martinus Bellius, que se supôs ser o próprio Castellion.
Acham alguns, porém, que somente uma parte do livro era de sua autoria. O
livro condenava a prática das perseguições religiosas.
Castellion, segundo Schaff, concordava em essência com o
Pelagianismo e preparou terreno para o Socianismo. Morreu ainda moço, em
grande pobreza, pouco antes de Calvino, em 1563. Fausto Socino editou-lhe
as obras póstumas.
Caso mais grave que o de Castellion, é o de Bolsec. Jerônimo Bolsec
era parisiense e monge carmelita. Suspeito de heresia por causa de um
sermão pregado em Saint-Barthelemy, buscou refúgio, em 1545, na corte da
duquesa de Ferrara, que o acolheu com a bondade que lhe era usual, e fez
dele seu esmoler. Soube porém dissimular. Renée tinha-o por protestante e
ocupava-o como intermediário na correspondência com Calvino; o duque,
que era católico, tinha-o nesta categoria e servia-se dele como espião junto à
duquesa. Em Ferrara contraiu matrimônio e dedicou-se à profissão médica.
Pelo seu gênio violento, contudo, veio a ser, não muito depois, expelido da
corte da duquesa. Passou então a residir em território bernês, pondo-se ao
serviço do senhor de Falais, a três léguas de Genebra.
Em 1550 estabeleceu-se, nesta última cidade, como médico. Começou
a propender para a teologia e atacou a doutrina da predestinação. Denunciou
o Deus de Calvino como mentiroso e hipócrita, patrono de criminosos e pior
que Satanás. Em 8 de março do ano seguinte foi admoestado pela Venerável
Companhia e, particularmente, doutrinado por Calvino sem resultado algum.
Continuando no ataque, foi chamado à presença do Consistório, onde
perseverou no seu modo de pensar.
Em 16 de outubro, a situação do antigo carmelita se agravou. Era numa
daquelas sextas-feiras em que havia conferências em S. Pedro e tinham a
palavra os que a solicitavam. Pregava um orador sobre a predestinação, no
Evangelho de João, capítulo VII, v. 47, quando Bolsec o interrompeu,
dizendo que os homens não são salvos por terem sido eleitos, mas são eleitos
por terem fé. E continuou impugnando fortemente a doutrina. Nisso surgiu
Calvino e confundiu o aparteante com textos de Santo Agostinho e da
Escritura.
Não ficou nisso. O auditor de justiça, que estava presente, tratou de
conduzi-lo à prisão como perturbador da ordem. No mesmo dia os ministros
apresentaram ao Conselho uma lista de dezessete artigos a que deveria
responder o acusado, o qual, por seu turno, propôs a Calvino várias questões
exigindo uma resposta categórica.
Correu o processo e, para maior valia do julgamento, requereu o
Consistório uma consulta do Conselho às Igrejas de Zurique, Berna e
Basileia. Nela cinco erros teológicos eram imputados ao antigo carmelita: 1°,
Que a fé não depende da eleição, mas a eleição depende da fé. 2°, Que é uma
ofensa a Deus afirmar que a alguns deixa ele em cegueira, por isso ser do seu
agrado. 3°, Que Deus atrai a si todas as criaturas racionais e abandona
somente os que lhe opõem resistência. 4°, Que a graça divina é universal e
que uns não são mais do que outros predestinados à salvação. 5°, Que,
quando S. Paulo diz, em Efésios 1.5, que Deus nos elegeu em Cristo, eleição
não quer dizer salvação nesse caso, porém, eleição ao discipulado e
apostolado.
Com a circular, foram queixas de Calvino e seus colegas acusando
Bolsec com certa veemência, em termos que afetavam o caráter do acusado.
As respostas, observa Schaff,[63] não agradaram em tudo a Calvino,
embora a sentença fosse em seu favor. Os ministros de Zurique foram os
mais rigorosos e defenderam Zwinglio da acusação de Bolsec de haver ele
afirmado ser Deus o autor do pecado, no livro que havia escrito sobre a
Providência, e mostravam que o ardente reformador traçava o pecado à
corrupção da vontade. Em carta privada, Bullinger fazia sentir a Calvino a
necessidade de brandura, mostrando-lhe que muitos haviam recebido do
capítulo das Institutas sobre a predestinação impressão semelhante à de
Bolsec sobre o livro de Zwinglio. Myconius falou evasivamente, em nome da
igreja de Basileia. A resposta de Berna antecipava o espírito moderno de
tolerância.
A consequência destas respostas revelou-se no julgamento brando de
Bolsec, que foi apenas sentenciado a exilar-se do território de Genebra.
Estabeleceu-se pois em Tonon, Berna, de onde viera a palavra de tolerância,
mas seu espírito irrequieto determinou, por sua vez, o banimento deste lugar
em 1555. Removeu-se então para a França, onde procurou admissão no
ministério reformado, confessando os seus erros. Por fim, voltou à Igreja de
Roma e, para agradar aos seus antigos correligionários, escreveu dois
tremendos libelos contra o reformador: As Vidas de Calvino e Beza,
respectivamente. A primeira em 1577, treze anos após a morte do reformador,
a segunda em 1582. Morreu em Annecy, em 1584.
Os dois livros de Bolsec têm servido, desde então, de arma de combate
nas mãos dos adversários da Reforma. Seu valor histórico, porém, tem sido
mal apreciado por críticos imparciais, tanto protestantes como católicos. As
calúnias e infâmias são palpáveis. É um acervo de ódio e de rancor. Bungener
assim se expressa: “O antigo monge, voltando a ser católico, quis retribuir o
acolhimento no seio dos antigos irmãos. Nada imaginou de melhor que
submeter Calvino às mais ignóbeis calúnias. Há, porém, gente mais culpada
que Bolsec: são aqueles que continuam a se inspirar no seu livro e que
forçam historiadores sérios, católicos e protestantes, a repetir que eles
mentem. Desde o século XVI Papyre Masson e Raemond, ardentes inimigos
de Calvino, declararam falso tudo quanto Bolsec disse dos costumes deste.
No século XVII, Maimbourg, na sua Histoire du Calvinisme, rende,
abertamente, ao reformador, a mesma homenagem e o grave Ellies Du Pin
aconselha aos católicos a não caluniarem a pessoa do reformador por meio de
tais contos. Contos, realmente, em toda a força da palavra, porquanto Bolsec
não se dá em regra ao trabalho de aparentar verossimilhança às suas
narrativas. Dir-se-ia talvez que ele não quer senão representar, por diversão,
um mentiroso ainda mais desastrado que ousado. Quem imaginaria, por
exemplo, que ele tivesse tido a ideia de fazer de Calvino, “este grande
jejuador”, como disse Raemond, um comilão insaciável que açambarcava, no
mercado, os melhores bocados? Todo o livro é desta força. É o ódio atingido
não ao delírio, diremos, mas à estupidez, e nos voltamos ainda uma vez para
Drelincourt, o escritor que teve a paciência de refutar, uma a uma, todas as
invencionices de tal gênero”.[64]
Assim falou o criterioso Bungener. Para amostra do valor das
afirmações de Bolsec, basta dizer que o antigo frade qualificara o reformador
de ser “sobretudo ignorante”, quando é notória a fama de sua erudição. Foi
Bolsec o inventor do “estigma da flor de lis” impresso sobre Calvino pela sua
lubricidade, fato este já comentado em capítulo anterior, Foi ele, ainda, que
espalhou no seu livro a calúnia da retirada de Genebra do senhor De Falais,
por haver Calvino atentado contra a pureza da esposa deste nobre(!).
Bayle afirmou, no seu tempo, que Bolsec “seria inteiramente entregue
ao olvido se não se houvesse tornado famoso por certas obras satíricas (sobre
Calvino e Beza), que os monges e missionários citam ainda”. Observa Schaff
que Audin e Galiffe empreenderam a defesa de Bolsec, porém, foram
refutados por Henry L. Bordier no La France Protestante, II, 766 e na
L’école historique de Jerome Bolsec, Paris, 1880.[65]
Da mentira sempre resulta alguma coisa. As invenções de Bolsec
continuam a ser invocadas em nossos dias, em escritos tendenciosos, por
adversários apaixonados e pouco escrupulosos, alguns dos quais citam até a
qualidade de “protestante” no adversário de Calvino, ignorando ou fingindo
ignorar que foi, cheio de despeito, no espírito de rancoroso católico, que
produziu tais diatribes.
Antes de tratar do lamentável episódio de Serveto, vamos dizer algo
dos processos de Monnet e Gruet.
O caso de Raoul Monnet provocou menos ruído. Era um dos
recalcitrantes em relação à disciplina e filiava-se ao grupo dos Libertinos.
Havia desenhado ou feito desenhar uma série de estampas licenciosas,
representando cenas de Aretino e cenas bíblicas ignobilmente disfarçadas. A
esta coleção denominava, sacrilegamente, o “seu Novo Testamento”.
Deleitava-se em mostrá-la, sobretudo aos moços.
Feito o processo nos termos regulares, as autoridades de Genebra o
condenaram à morte, segundo a lei dos tempos. Sobre esse desfecho, citamos
as palavras de Bungener: “Os Libertinos não tentaram salvá-lo ou que o
crime lhes parecesse assaz grave, de modo a se comprometerem como se
fossem solidários; ou, no dizer de Bonivard, que Monet houvesse introduzido
a desordem e a desonra em casa de vários deles. Sua morte não foi, ao menos
na aparência, motivo para irritação”[66]
E no livro de G. Goguel, sobre Calvino, assim se diz: “O espírito da
época dominou os reformadores no tocante à questão. O direito de punir os
ultrajes feitos à divindade parecia inatacável e os próprios Libertinos se
preocupavam menos com a morte de seus amigos do que com os entraves às
dissoluções de todas as espécies, no procedimento imoral que lhes era
próprio. É assim que aprovaram a condenação à morte de um dos seus,
chamado Monnet, e que apressaram a execução da sentença. Que havia ele
feito para se tornar tão culpado? Havia levado a desordem à casa de seus
amigos. Tornara-se culpado num caso de gravuras, indignas profanações
públicas, de que havia formado um livro que, diante dele, foi queimado. Se os
Libertinos tivessem sido consequentes consigo mesmos, não teriam aprovado
a condenação de Monnet. Achavam-se, porém, sob a influência do espírito da
época”.[67]
De maior vulto foi o processo de Gruet, que se revestiu de dois
aspectos: religiosos e político.
Jacques Gruet havia sido cônego, mas professava ser incrédulo;
incredulidade filosófica, a princípio. Depois revelou-se blasfemo e
grosseiramente infiel, desprezando o cristianismo e toda a espécie de fé.
Um dia, foi encontrado no púlpito de S. Pedro um papel cheio de
injúrias contra Calvino e os pastores. Caíram sobre Gruet as suspeitas,
porquanto o haviam visto nas imediações do templo, sendo logo aprisionado.
Gruet era filho de Genebra, sendo seu pai notário público. Era um
Libertino do pior tipo, quer religioso, quer político. Anos antes, havia sido
suspeito de culpa na tentativa de envenenamento de Viret, em 1535.
Em Genebra, frequentava as tavernas e desafiava a disciplina
estabelecida. Escrevia versos contra Calvino e os refugiados na cidade,
versos mais malignos do que poéticos no dizer do próprio Audin.
Foi em 27 de junho de 1547 que apareceu o pasquim em S. Pedro. Uma
busca em sua casa determinou o encontro de cartas violentas contra os
pastores. Também foi achado um requerimento que ia apresentar ao Grande
Conselho, pedindo a supressão da disciplina e da lei contra os impudicos.
Igualmente, foi encontrada uma peça contendo as mais horríveis blasfêmias
contra Moisés e a Revelação, a Providência, o Espírito Santo, a imortalidade
e outros tópicos. Insinuava-se em tais escritos que a devassidão, o adultério e
o incesto eram tão naturais como o comer e o beber – o que constituía uma
derrocada social.
No terreno político, não foram leves as razões contra Gruet. Havia
denunciado Genebra perante a corte francesa, acusando Calvino de falar mal
dos príncipes. Uma carta, que foi descoberta na mesma ocasião, mostrava um
plano urdido pelos saboianos contra a segurança do Estado. Considerado
crime de alta traição, foi condenado sem apelo. Era na época das lutas contra
os Libertinos, das querelas de Perrin, Fabre e outros, a que se fez já alusão.
O tratamento infligido ao infeliz foi duríssimo, sendo-lhe até aplicada a
tortura para descobrirem-se os seus cúmplices, nada se conseguindo com
isso. Também o processo foi rápido, ficando terminado em um mês.
Eis, em Goguel, um estrato da sentença: “Nós, síndicos, etc., havendo
reconhecido que o livro de Gruet contém enormes blasfêmias relativas a
Deus, a Jesus Cristo, a Maria, aos profetas, aos Evangelhos… Havendo
reconhecido seu crime de lesa majestade contra a república, a fim de que a
vingança de Deus não permaneça sobre nós por termos suportado ou
dissimulado uma impiedade horrível e, ainda, para taparmos a boca a aqueles
que desejariam excusar ou encobrir tais enormidades e lhes mostrar o castigo
que merecem, condenamos Jacques Gruet a ter a cabeça decepada e seus
livros a serem queimados”[68]
Em 26 de julho, executou-se a sentença por crime religioso e político,
como materialista e demolidor do cristianismo. Como no caso de Serveto,
que vamos em seguida analisar, são patentes os vestígios da legislação
romana em que os ultrajes contra a divindade teriam de ser punidos.
A execução realizou-se para as bandas de Champel, onde Serveto teria
de ser supliciado. Os Libertinos tornaram-se em extremo irritados e mais de
vinte homens entraram numa conspiração para lançar ao Ródano Calvino e
seus colegas.
Três anos depois encontrou-se, na casa de Gruet, um manuscrito eivado
de blasfêmias. Segundo tal documento, as fábulas de Esopo seriam mais
razoáveis do que a própria Escritura.
CAPÍTULO XXII. O CASO SERVETO – PRIMEIRA
FASE

Rumor produzido em torno do caso. Paralelo entre os dois antagonistas. Nascimento e


educação de Serveto. Em Saragossa e Tolosa. Ao serviço de Quintana. Peregrinação.
Publicação do De Trinitatis Erroribus. – Sumário do livro e sensação produzida. Em
Paris e Lião. O médico e o geógrafo. A descoberta da circulação pulmonar do sangue.
Em Vienne. A Bíblia de Pagnini. O Christianismi Restitutio. Apreciação do livro. A
denúncia de Guilherme de Trie. O julgamento pelo tribunal de Vienne.

Clarão sinistro de tinge de um vermelho triste o firmamento de


Genebra. É o clarão da fogueira de Champel, o holocausto pungente de
Serveto.
Sombras espessas, porém, descem sobre a personalidade do Atanásio
do século XVI, no juízo de uma plêiade de livres pensadores e adversários
tenazes da Reforma. No conceito de tais julgadores, é Calvino o Torquemada
do protestantismo, um lúgubre carrasco, sem alma e coração.
A crítica impiedosa não admite atenuantes, olhando como subterfúgios
todos os argumentos invocados na defesa do austero reformador.
A própria Igreja Romana, encarnação suprema da intolerância, cobre-se
de mágoas ante o suplício do heresiarca espanhol, a pena de Begier e de
tantos outros corifeus, parecendo esquecer-se de que o tribunal inquisitorial
de Vienne já o havia condenado às chamas meses antes da decisão de
Genebra!
Serveto é um dos temas sobre o qual mais se tem escrito, talvez, entre
os tópicos da Reforma, principalmente nos últimos tempos. Favorável ou
desfavorável a Calvino, a literatura é vasta sobre o ponto.
No número de escritores, pró ou contra, salientam-se o próprio
Calvino, Beza, Bolsec, Castellion, entre os contemporâneos do incidente. As
atas do processo de Vienne foram publicadas pelo abade D’Artigny, em
1749; e as do processo de Genebra por A. Rilliet, em 1844. Produziram
também publicações sobre o tópico, em obras especiais ou em largos trechos
de seus livros, Mocheim Henry, Audin, Dyer, Stahelin, Amédée, Roset,
Trechsel, Tweedie, Saisset, Porter, Brunnemann, Willis, Pelayo, Punjer,
Dardier, Bloch, M. de la Roche, Linde, Velasco, e outros.
Entre os muitos biógrafos de Calvino que se expandem sobre o caso,
mencionamos Bungener, Guizot, Abelous, Doumerge, A. Bossert, Goguel e
Irwin. Os historiadores Schaff, Wylie, Hagenbach, além de outros, podem ser
consultados com proveito. Augusto Dide, antigo pastor e depois livre
pensador, escreveu recentemente um livro sobre o assunto, que é uma
apologia de Serveto e um ataque formidável a Calvino. O escritor, porém,
que mais se consagrou ao estudo desse tópico foi Henry Tollin, pastor da
igreja francesa reformada, em Magdeburgo.
O Dr. Tollin arvorou-se em campeão reivindicador da honra de
Serveto, consagrando a sua vida à reabilitação do autor de “De Trinitates
Erroribus”. Cerca de quarenta livros e tratados produziu sobre o tema.
Entende que Serveto foi muito mal compreendido por Calvino, ao qual,
na sua opinião, não era inferior em talento, e recorre a muitos argumentos no
intuito de provar que o seu constituinte não era o herege impenitente,
condenado como tal pelas autoridades de Genebra. No conceito de Schaff,
Tollin exagera os fatos, pondo suas próprias ideias do cérebro de Serveto.
Havendo lido vários dos autores citados, entre os quais Didde, e uma
das obras de Tollin, vamos fazer uma ligeira apreciação do debatido tema,
que tanto maculou o caráter de Calvino, e que levou o historiador Gibbon a
dizer que se sentia mais escandalizado com a execução de Serveto do que
com as hecatombes perpetradas nos autos de fé em Espanha e Portugal.
Michelet, Voltaire e Rosseau não pouparam também o Reformador.
Seja dito, antes de tudo, que os mais fortes assaltantes de Calvino, no
caso vertente, são os antitrinitários, bem como os céticos e livres pensadores
de todos os matizes, que pretendem julgar os fatos à luz dos tempos atuais,
deslembrados que o mundo, no século de Calvino, estava ainda meio
envolvido nas brumas provindas da idade medieval.
É digno de ver os contrastes e os paralelos entre os dois lutadores.
Eram ambos de talento, da mesma idade, possuídos de um ardente ideal,
inimigos do anticristo romano, pretendendo ambos reformar a Igreja, mas
com vistas diferentes.
Calvino era o construtor, o sistematizador das doutrinas da Reforma, o
campeão da ortodoxia, o continuador de Agostinho e de Paulo, o novo
Atanásio, na questão trinitária, o baluarte da fé. Serveto supunha-se um
reformador de vistas mais largas, propondo o seu Christianismi Restitutio.
Como observa James Candlish, na sua preleção sobre Calvino,[69]
Lutero, Melanchton, Zwinglio e os primeiros reformadores, protestando
contra a corrupção da doutrina e rejeitando as inovações do romanismo, não
podiam impedir que sua tentativa se revestisse de um aspecto negativo. Mas o
reformador de Genebra completou a obra iniciada por aqueles, dando ao
Protestantismo do ocidente uma constituição eclesiástica, que o habilitou a
resistir à reação católica logo sobrevinda. Deu à Reforma um caráter
consistente e uma feição acentuadamente positiva, organizando um corpo de
doutrina e uma rígida disciplina. Tudo isso foi conseguido pela sabedoria,
energia e perseverança indômita de João Calvino. As famosas Institutas,
publicadas no ano vigésimo sétimo de sua vida, constituíam já o penhor
daquela possante genialidade. O protestantismo não vinha a ser um mero
negativismo, mas a reafirmação do Cristianismo primitivo.
Na sua luta com Serveto, o tenaz reformador sustentava os dogmas
fundamentais, como se observa no assunto da Trindade e na verdadeira
concepção da relação de cada uma das pessoas trinitárias entre si.
Serveto era um perfeito demolidor com os seus conceitos panteístas e
sua posição antitrinitária. Insurgindo-se contra a velha ortodoxia, imaginava
um sistema doutrinário mais completo e mais bíblico, na sua hermenêutica
singular. Debalde quis chamar ao seu partido o douto Calvino e com ele
Bucer, Capito, Ecolampádio e outros próceres da Reforma. Na sua
imaginação doentia, julgava-se um novo Arcanjo Miguel destinado a
combater não só o Dragão de Roma, como o novo Simão mago personificado
em Calvino.
Vamos, em breve trecho, esboçar o perfil do ardente espanhol, digno
por certo de um quinhão mais glorioso do que aquele que lhe tocou em
partilha.
Relativamente à data e ao lugar de nascimento do antagonista de
Calvino, os dados não são uniformes. Seu pai, de estirpe ilustre, exercia a
profissão de notário em Aragão, cujo território nascera. Miguel Serveto
(Servetus em latim), perante o tribunal de Genebra, declarou-se aragonês, de
Vila Nueva, nascido em 1509, o mesmo ano do nascimento do seu contendor.
Em Vienne (Delfinado), deu-se como filho de Tudela, no antigo reino de
Navarra, e nascido em 1511. Foi a 29 de setembro a data do seu nascimento.
Tollin, seu ardoroso apologista, prefere estes últimos informes.
Serveto também se assinava Reves, que era o nome de sua mãe, ou o
seu próprio anagrama no entender de outros. Seu primeiro livro trazia a
indicação de ter sido escrito – “per Michaele Serveto, aliás Reves, ab
Aragonia Hispanum”.
De compleição débil, foi uma inteligência precoce. Diz um biógrafo
que, aos quatorze anos, possuía já conhecimento de latim, grego, hebraico,
filosofia e teologia.
Nesta idade, foi enviado a Saragossa, a um convento dominicano e
depois à universidade tendo em vista a carreira eclesiástica. Afeiçoou-se
então ao estudo da geografia, em que se tornou célebre.
De imaginação ardente e índole ativa, seus pais se inquietaram e o
mandaram para a França, para a universidade de Tolosa, em 1528,
inscrevendo-se nela como estudante de direito. Foi ali que se lhe deparou a
primeira cópia completa da Bíblia, a cujo estudo se entregou com deleite.
Tolosa era um novo Erfurt para o impetuoso mancebo espanhol.
Segundo Schaff, adotou ele o princípio da suficiência e da supremacia
das Escrituras, nas linhas da Reforma. Mas foi além do Protestantismo.
Rejeitou a ortodoxia ecumênica e fez do Apocalipse a base de suas
especulações.
Em Tolosa, Serveto travou conhecimento com os Loci Communes, de
Melanchton, e com outros autores protestantes como Lutero e Bucer, no
entender de Tollin.
Mas Serveto saíra da Espanha devido as suas inclinações liberais e
Tolosa, cidade inquisitorial, não era terreno propício as suas investigações.
Por isso, meses depois, entrou ao serviço do padre Quintana, confessor de
Carlos V, o qual passava por não ser hostil às ideias de Lutero.
Em companhia de Quintana, transportou-se à Itália e assistiu a
coroação do imperador pelo papa Clemente VII, em Bolonha, permanecendo
em terra papal de agosto de 1529 a março de 1530. Foi então à Alemanha
com o séquito imperial e assim presenciou os debates da famosa dieta de
Augsburgo, sendo um mocinho de dezenove anos somente. Foi ali que entrou
em relações com Melanchton e Bucer. Era, porém, quase desconhecido para
atrair então a atenção dos reformadores.
Serveto ia fugindo do julgo do papismo. Em Roma, pondera Abelous,
sentiu-se escandalizado com as homenagens rendidas ao pontífice. Também,
nunca se filiou ao Protestantismo, embora esposasse alguns dos seus
princípios. Em teologia, converteu-se em uma espécie de livre pensador, não
se submetendo a Roma, da qual, aliás, nunca se separou oficialmente, nem
tampouco às doutrinas da Reforma.
Insurgiu-se contra a ortodoxia dos concílios primitivos, desavindo-se
com os dois sistemas de doutrina.
De Augusburgo, no mesmo ano de 1530, dirigiu-se a Basileia,
deixando a proteção de Quintana. Ali residia o abalizado teólogo João
Ecolampádio, o grande amigo de Zwinglio. O jovem Serveto procurou-o,
patenteando-lhe suas ideias antitrinitárias. Por aquela época, se encontravam,
em Basileia, Bucer, Zwinglio e Bullinger, aos quais o célebre teólogo e
professor deu informações sobre o irrequieto espanhol, que negava a
Trindade e a eterna divindade de Jesus Cristo. A impressão recebida por esses
teólogos foi a mais desagradável possível. Serveto mostrava ânimo altivo e
arrogante.
Em Estrasburgo, visitou Bucer e Capito. Os dois teólogos reformados
não o conseguiram demover de seus princípios heterodoxos.
Sai então, à luz da publicidade, a sua primeira obra teológica: “De
Trinitatis Erroribus”, impressa em Hagenau, na Alsácia, mas sem o nome do
editor e o lugar da impressão. Continha o livro cento e vinte páginas e surgiu
em julho de 1531, sendo o autor de vinte e anos apenas.
Serveto mostrava, segundo Schaff, certo conhecimento da Bíblia, dos
padres antenicenos e dos teólogos escolásticos, no livro que acabava de
publicar. Era porém um ataque à fé ecumênica e tradicional sobre a doutrina
trinitária, pelo que escandalizou, com essa publicação, tanto aos católicos
como aos reformados. O citado escritor dá um sumário dos sete livros em que
se dividia a obra.
Serveto estuda, primeiro, a humanidade de Cristo por oposição aos
autores que principiam com o Logos, o qual não é identificado com o Filho
de Deus. Rejeita também a doutrina da comunicação dos atributos. No
segundo livro, trata do Logos, “que não é um ser metafísico, mas um oráculo;
a voz de Deus e a luz do mundo”. “Antes da encarnação, o Logos era o
próprio Deus falando; depois disso, o Logos é o Cristo que nos dá a revelação
de Deus”. No terceiro, há uma exposição da relação de Cristo para com o
Logos divino. No quarto livro, são discutidas as disposições ou
manifestações divinas. A ortodoxia Cristológica de duas naturezas em uma
pessoa é posta de lado. O quinto livro é uma exposição dos nomes hebraicos
de Deus. De passagem, ataca a doutrina luterana da justificação pela fé –
visto produzir indiferença pelas boas obras. O sexto livro apresenta Cristo
como a única fonte do verdadeiro conhecimento de Deus. O último livro
responde a objeções e determina um novo ataque à Trindade, doutrina que diz
ter sido introduzida simultaneamente com a do poder secular do papa.
Na obra, os trinitários são classificados como triteístas e ateus. Em uma
de suas cartas a Calvino, anos depois, chama o Deus dos trinitários de
Cérbero ou monstro de três cabeças.
Protestantes e Católicos condenaram o livro, que foi denunciado na
Dieta de Ratisbona, sendo proibida a sua circulação pelo imperador.
No ano seguinte (1532), Serveto publicou o seu “ Dialogorum de
Trinitade, Libri Duo” – dois diálogos sobre a Trindade em que se retratava,
classificando como pueris as suas doutrinas no livro anterior, embora não as
reconhecesse como falsas: “Non quia falsa sint, sed quia imperfecta, et
tanquam a parvula parvulis scripta…”.
Apenso à nova obra, vinha o seu tratado sobre a justificação: “De
justitia regni Christi”, em que rejeitava a justificação luterana e as teorias de
Lutero e Zwinglio sobre os sacramentos.
Guizot, no excelente livro sobre S. Luiz e Calvino, observa que, em sua
nova publicação, Serveto deixa mais a descoberto o panteísmo que já
transparecia na primeira.
O moço espanhol não era teólogo de profissão, embora profundamente
interessado em investigações religiosas. O rumor produzido pelos seus
primeiros ensaios teológicos e a oposição que encontrou, por parte da Igreja
Romana e dos teólogos da Reforma, forçaram-no a sair da Alemanha e da
Suíça, indo buscar um refúgio na França.
Em 1534 achava-se em Paris, onde pela primeira vez se encontrou com
o futuro antagonista João Calvino. Ambos eram moços e entusiastas.
Entraram logo em disputa teológica e Serveto desafiou o seu contendor para
uma discussão, que não se veio a realizar por não haver comparecido Serveto
à hora aprazada.
De paris foi a Lião, onde arranjou colocação como revisor de provas na
oficina dos famosos impressores Melchior e Gaspar Trechsel. Conhecidas as
suas várias aptidões, incumbiram-no de preparar uma nova edição da
geografia de Ptolomeu, que alcançou grande êxito, graças às notas e
acréscimos de Serveto. De tal importância foi o seu trabalho, que foi tido
Serveto como um dos criadores da geografia comparada e um dos precursores
de Humboldt, Ritter, d’Aville e Réclus.
Michael de Villeneuve ou Miguel de Villanova foi o nome que passou
a adotar em França, visto que as suas opiniões teológicas haviam prejudicado
o nome de Serveto.
Não foi somente como teólogo e geógrafo que conquistou reputação.
Angariando recursos, voltou a Paris e graduou-se em medicina, vindo a
adquirir grande fama como médico. Logo publicou o seu livro mais popular
sobre medicina, que alcançou quatro edições em dez anos. Era um tratado
sobre xaropes: “Syroporum universa ratia”.
Mas o que o tornou célebre foi a sua descoberta da circulação
pulmonar do sangue, antecedendo, em cerca de cem anos, o famoso Harvey,
que fez a mesma descoberta.
Em Paris, dedicou-se ao ensino da geografia e da astrologia na
universidade. Seus ataques violentos contra os médicos provocaram forte
reação de parte destes, que o denunciaram como herege, devido às suas
preleções sobre astrologia. Em réplica, publicou uma violenta “Dissertação
apologética sobre Astrologia”, acusando de ignorância os seus colegas
médicos. Mas o parlamento não lhe permitiu continuar nas preleções
astrológicas, nem nas predições fundadas nos astros.
De Paris, foi exercer a medicina em Avinhão, Charlieu, Lião e
finalmente em Vienne – no Delfinado.
O seu gênio irrequieto e temperamento impulsivo levaram-no a
envolver-se em polêmicas onde quer que estivesse.
Em Vienne, foi muito bem acolhido pelo Arcebispo Paumier, seu
antigo discípulo, que procurava atrair para aquela cidade homens
competentes como o médico e sábio espanhol. Estimulado pelo arcebispo,
publicou logo uma segunda edição de sua geografia de Ptolomeu,
devidamente corrigida, que foi dedicada ao seu protetor (1541).
De treze anos (1540-1553) foi a permanência de Serveto em Vienne,
porventura os mais tranquilos de sua agitada existência.
É que o médico Villanova fazia esquecer o teólogo Serveto do “De
Trinitatis Erroribus”. Estava em boas relações com o arcebispo e seu clero e,
aparentemente ao menos, se conformava com as prescrições da Igreja.
Em 1542 o diligente escritor publicou uma nova edição da Bíblia latina
do dominicano Sanctis Pagnini, enriquecida de notas e comentários que, no
entender de Dide, revelavam “um erudito de primeira ordem, um crítico de
extraordinária sagacidade de um teólogo atrevido e profundo”.
Na opinião de Schaff, Serveto antecipou a exegese moderna,
empregando o método típico em vez do alegórico. Às profecias, dá ele uma
aplicação imediata, referindo-se a Cristo somente em sentido remoto. Os
salmos messiânicos aplicam-se a Davi como tipo de Cristo. Antecipa
explicação racionalista da segunda parte de Isaías, identificando o “servo de
Jeová” com o rei Ciro. Para ele, o famoso capítulo 53 de Isaías não se
relaciona com o Messias e sim com o povo de Israel em aflição.
Augusto Dide, que tanto exalta o liberalismo de Serveto, considera-o o
verdadeiro pai do socianismo, uma espécie de Cristóvão Colombo, ficando
reservado a Lélio Socino o papel de Vespúcio.
As notas e comentários em questão foram condenados pela Igreja
Romana e lançados no Índex (1559).
Depois da Bíblia de Pagnini, o obstinado espanhol passou a compor o
“Christianismi Restitutio”, o seu mais ruidoso escrito teológico e que lhe
devia causar a ruína e, até certo ponto, deslustrar o brilho de Calvino.
É quando começa a correspondência entre os dois homens,
manifestando o teólogo de Genebra paciência por algum tempo.
Apenas terminado o livro, Serveto envia um exemplar a Calvino,
afirmando que teria este de ver “coisas estupendas, jamais ouvidas antes”. Ao
mesmo tempo, propunha três questões teológicas, a que o reformador
respondeu de um modo cortês.
Calvino havia dado uma resposta ortodoxa às perguntas de Serveto
que, com isto, não se conformou e procurou rebater a solução enviada.
Calvino replicou, encarando as objeções de Serveto e convidando-o a
consultar o que ele havia escrito sobre os tópicos nas suas “Institutas”. Este,
porém, não se deu por satisfeito e devolveu o exemplar de Calvino cheio de
anotações criticas e objeções à doutrina do autor.
Mandou o reformador uma última resposta com uma carta a Frelon,
que havia sido o mediador na questão. Nesta carta faz notar a arrogância do
seu contraditor que, em sua obstinação, lhe ia roubando o tempo precioso.
No mesmo dia (13 de fevereiro de 1546), escreveu a carta a Farel,
citada por L. Abelous no seu livro “Les peres de la Reformation” e por
muitos outros autores. “Serveto escreveu-me não há muito e à sua carta
ajuntou um volume de suas estravagâncias ostentadas com uma jactância de
Thrason e me compelindo a ver coisas maravilhosas e não ouvidas até então.
Disse que viria até aqui se isso fosse do meu agrado, mas não lhe quero
assegurar a minha garantia; se vier, e minha autoridade for suficiente, não
permitirei que saia daqui vivo”.[70]
Eram as primeiras nuvens que se acumulavam sobre a cabeça do
inovador. Quatro anos mais tarde, em 1º de setembro de 1548, Calvino se
dirigia quase no mesmo tom a Viret: “Suponho que leste o que escrevi a
Serveto. Não quero mais discutir com tal homem, terrivelmente obstinado e
herético. É certamente o caso de seguir o preceito do apostolo Paulo. É a ti
que agora ataca. Considera até que ponto te convém refutar as suas
extravagâncias. Daqui em diante ele nada mais arrancará de mim”.[71]
No seu livro, Serveto inseriu trinta de suas cartas a Calvino, sem as
respectivas datas contudo, e sem as réplicas de Calvino. Schaff, a quem nos
temos referido, no seu segundo volume sobre a Reforma na Suíça, conta que,
nestas cartas, transparecia o tom arrogante de Serveto, que se julgava superior
como teólogo a Calvino, acusando-o de ignorante e blasfemo na questão
trinitária.
Não havendo obtido mais resposta de Calvino, dirigiu-se a outros
ministros de Genebra. A Abel Poupin escreveu três epístolas insinuando que
os reformadores de Genebra tinham um evangelho sem um Deus, sem uma fé
verdadeira, sem boas obras; e que adoravam a um Cérbero de três cabeças.
Em sua última carta, prediz que teria de morrer como o seu Mestre pela causa
que esposava: “Mihi ob eam rem moriendum esse certe scio sed non
propteria animo deficior ut fiam discipulus similis preceptori”.
Sua profecia nefasta não estava longe de uma triste realização. Suas
teorias arrojadas apressavam o dia fatal.
Façamos, agora, algumas apreciações sobre a sua obra capital, que
surgiu em 1553, em Vienne do Delfinado, sem indicação do lugar da
publicação, nem da tipografia em que foi impressa, que era a do livreiro
Arnoullet. Trazia apenas a data e as iniciais do Autor – M. S. V., isto é,
Michael Servetus Villanovanus. Continha 734 páginas em oitavo. A edição
foi de oitocentos exemplares. Segundo outros, subiu a um milheiro. Quase
todos foram apreendidos e destruídos, restando atualmente duas cópias da
edição original, uma na Biblioteca Nacional de Paris, outra na antiga
Biblioteca Imperial de Vienne. Recentemente, foi descoberto um terceiro
exemplar pelo professor Turner, o qual se encontra na Biblioteca da
universidade de Edimburgo. O livro era dividido em seis partes, ou, melhor,
em sete, abrangendo o seguinte: a) uma edição revista dos sete livros que
acompanham a sua primeira produção teológica – “De Trinitatis Erroribus”,
agora condensados em cinco; b) os seus dois diálogos sobre a Trindade, que
vinham em apêndice ao livro primitivo; c) vinha então matéria nova,
ocupando aproximadamente dois terços do volume, sendo três livros sobre
“Fé e a justiça do reino de Cristo”; d) quatro livros sobre a “Regeneração e o
Reino e Cristo”; e) trinta cartas dirigidas a Calvino; f) sessenta sinais
característicos do Anticristo, e, g) finalmente uma “Apologia” a Melanchton
sobre o mistério da Trindade e sobre a antiga disciplina. “Christianismi
Restitutio” era o título do livro, título um tanto pretencioso, pois descobria a
intenção do autor de apresentar ao público um cristianismo restaurado,
expurgado dos erros de Roma e da Reforma.
Era, talvez, em oposição as célebres “Institutas” de Calvino.
O texto em Apocalipse 12.7 era a epígrafe da página, precedido do
texto em Daniel 12.1: “Naquele tempo se levantará Miguel, o grande
príncipe”. Devemos ter em vista que o nome do arcanjo era o mesmo de
batismo de Serveto. Era uma insinuação à posição que pretendia ocupar como
restaurador do verdadeiro cristianismo.
Schaff analisa a teologia de Serveto em suas diversas partes.
Em sua Cristologia, ensina que o Salvador não é gerado da primeira
pessoa, mas da essência do Deus indiviso e indivisível. O termo “Filho de
Deus” indica o homem Jesus e não o Logos. Jesus é verdadeiramente filho de
Deus, nascido da substância divina; nós o somos por adoção, pela graça. É
filho do Deus eterno, não o eterno filho de Deus; um invisível e eterno, outro
visível e temporal. Cristo não é constituído de duas naturezas. Não tem prévia
existência pessoal como uma segunda hypostasis. Data a sua personalidade
do momento da concepção e nascimento. Ao mesmo tempo Jesus, é
consubstancial em relação a Deus.
Como o esposo e a esposa são uma entidade na carne do seu filho,
assim Deus e o homem são um em Cristo. A carne de Cristo é celestial, sendo
nascido da mesma substância de Deus. Pela deificação da carne de Cristo,
Serveto materializa Deus – no entender de Schaff – e ao mesmo tempo,
destroi a real humanidade de Cristo e perde-se no labirinto de um misticismo
panteísta.
Como o livro em questão foi a causa da ruína do destemido batalhador,
não será ocioso continuarmos a acompanhar Schaff na análise das ideias
teológicas do autor, muito embora em rápida síntese.
Sobre o ramo da teologia propriamente dita, Serveto acreditava na
unidade, simplicidade e indivisibilidade do Ser Supremo, por oposição a
tripersonalidade do credo ortodoxo. Insurgindo-se contra Atanásio,
Agostinho, Damasceno e outros campeões do dogma da Trindade, quer
chamar ao seu partido Irineu, Tertuliano e outros padres antenicenos. A seu
ver, o Deus dos trinitários é um outro Cérbero, um monstro de três cabeças.
Tudo se resolve em três deuses, um dos quase veio a morrer. Distinguindo a
Trindade em abstrato, a soma iria a quatro deuses até.
Com Sabélio, ele admitia uma Trindade de revelação, mas não uma
Trindade de essência. Com Platão e os neo-platonistas, faz distinção entre o
mundo ideal e o real. Em Deus existem as ideias ou formas de todas as
coisas, que tomam o nome de Logos ou Sabedoria. A palavra ou Sabedoria de
Deus veio a ser o gérmen de que nasceu Cristo. Pode também ser considerada
a alma de Cristo, que compreende as ideias de todas as coisas. Tudo neste
mundo forma uma unidade em Deus, no qual tudo consiste. Identifica o
Espírito Santo com a Palavra, diferindo apenas na forma da existência divina,
não um terceiro ser metafísico, é o Espírito do próprio Deus. É também
chamado o Espírito de Cristo. O espírito do homem é uma centelha do
espírito divino. Deus insufla o seu espírito no homem – no nascimento e na
regeneração.
Em conexão, Serveto – “que estudava teologia como médico e
cirurgião, e medicina como teólogo” – passa a investigar o espírito vital no
homem e descreve, então, o processo da circulação do sangue, pertencendo-
lhe a glória de tal descoberta, que vem explicada no famoso livro que o
conduziu ao martírio e à imortalidade.
Serveto discute a processão do Espírito, diferindo dos Gregos e
Latinos. Procede tanto do Pai como do Filho – a datar porém do dia do
Pentecostes – do Pai através do Filho, que é a própria fonte do Espírito.
Sua concepção de Deus repousa num fundo panteísta.
“Ominia esse unum; quia omnia sunt unum in Deo; inquo consistunt”.
Tudo se resume na unidade, visto como todas as coisas constituem uma
unidade em Deus, que é substância de tudo. Na pedra, a divindade é a própria
pedra; no ouro, o próprio ouro, na madeira, a madeira; no homem, o mesmo
homem, no espírito, o espírito. “Deus reside no espírito e Deus é espírito; no
fogo, e é o fogo; na luz, e é luz; na mente, e é a própria mente”. Schaff
observa que o panteísmo do autor destoa do comum. É um “Cristopanteísmo”
em vez de um cosmopanteísmo; “não é o mundo o grande Deus, porém
Cristo é o grande Deus; o Cristo ideal, porquanto nega a eternidade do Cristo
real”.
Em antropologia, tende ao pelagianismo. Admite a hereditariedade do
pecado, mas não da culpa, divergindo de Pelágio no primeiro ponto. As
crenças não são responsáveis pelo pecado hereditário, pois não há culpa sem
noção do bem e do mal. Somente aos vinte anos começa a plena
responsabilidade, que torna possível o pecado atual. Isso ele deduzia de certas
passagens do Antigo Testamento, como Ex 30.14; 38.26, e outras.
Negava a predestinação absoluta e a escravidão da vontade. No estado
decaído, o homem tem vontade livre, razão e consciência, que o põem em
contacto com a graça divina. Considerava um grande erro a doutrina da
escravidão da vontade, que vinha a tornar os homens ociosos, desprezando a
oração e as boas obras. Deus dá a liberdade a todos, mas a nossa impiedade
converte a liberdade em servidão. A doutrina da depravação total é uma
blasfêmia.
Em soteriologia, rejeitava a justificação forense pela fé somente, como
sendo um injúria à doutrina da santificação. Pendendo um tanto para o
romanismo, ensinava a justificação pela fé e pelas obras, apelando para o
segundo capítulo de Tiago.
Tocante aos sacramentos, admitia dois como os reformados. Em
relação ao batismo, aceitava, com os romanistas, a regeneração batismal, mas
não considerava perdidas as crianças que morriam sem batismo, visto serem
resgatas pelo sangue de Cristo. Rejeitava, com os Anabatistas, o batismo
infantil, que encarava como doutrina diabólica.
Relativamente à Santa Ceia, declarava falsas aas teorias de Roma, de
Lutero e de Zwinglio, aproximando-se antes das teorias de Calvino. Aceitava
a presença espiritual de Cristo no sacramento. Os elementos são simbólicos,
não de um Cristo ausente, no entender de Zwinglio, mas de um Cristo
realmente presente. Ele é a cabeça ligada vitalmente aos membros, pelo que
não podemos separá-lo do corpo.
Negar sua presença real é destruir seu reino.
Serveto foi muito influenciado pelo Apocalipse, a que deu
interpretações fantásticas em alguns pontos. Entendia que havia chegado o
reino do Anticristo, obrigando a verdadeira Igreja ou o reino de Cristo a fugir
para o deserto, onde teria de permanecer por 1260 dias ou anos (Ap 12.6), do
ano 325 até 1585, quando seria o milênio. Três eventos contemporâneos
assinalaram a crise: o primeiro concílio de Nicéia, que constituiu a divindade
em três ídolos; a união da Igreja com o Estado, que fez do rei um monge; e o
estabelecimento do papado, que fez do bispo um rei. Não menos de sessenta
sinais ou distintivos do Anticristo descobre nos discursos de Cristo e em
outros lugares. Serveto prediz o fim próximo do reinado do Anticristo, pois a
batalha já estava iniciada, na qual ele próprio deveria cair antes de vir o
milênio, a fim de poder tomar parte na primeira ressurreição. Terminando
esta parte do seu livro, dogmatiza que todo aquele que acredita ser o papa o
Anticristo haverá de reconhecer como doutrina de demônios o artigo da
Trindade, o pedobatismo e os outros sacramentos do papismo.
Serveto era premilenarista, mas não no sentido material dos judeus.
Pondera o historiador Schaff que Calvino e Tollin representam os dois
extremos na apreciação ao último volume de Serveto. O primeiro considera o
livro como um caos de blasfêmias; o último encara o lado bom da obra.
Dorner e Trechsel comparam com a de Apolinário a Cristologia de Serveto.
Dado um esboço das opiniões teológicas do celebre médico espanhol, vamos
acompanhar os passos do seu famoso processo.
Antevendo o perigo a que se expunha, usara Serveto de toda a cautela
na publicação de seu livro. Mas o segredo seria divulgado e dois processos
teriam de sobrevir, oriundos, respectivamente de Roma e da Reforma; num
dos quais teria de ser oferecido em holocausto.
De Genebra, infelizmente, deveria partir a denúncia, que foi o ponto de
partida de amarguras infindas para os dois tenazes antagonistas – Calvino e
Serveto.
Uma polêmica epistolar se travara entre Arneys, zeloso católico de
Lião, e seu primo Guilherme de Trie, que se convertera às ideias da Reforma
e residia em Genebra. Arneys deseja que seu primo volte ao romanismo e
censura a falta de disciplina que reina em Genebra. De Trie replica em
defesa. Em Genebra, afirma, o vício e a blasfêmia são restringidos; ao passo
que, na França, a heresia é tolerada, porquanto, naquele país, vivia em
liberdade o autor da “Restitutio”. A seguir, denuncia o médico Villanova
como sendo o heresiarca Serveto, que habitava tranquilamente em Vienne,
em prova de que junta como peças do delito, algumas folhas do livro
impugnado e o nome do editor.
Arneys dá denúncia às autoridades católicas de Lião. Põem-se em
campo o cardeal de Tournon, arcebispo de Lião, e o inquisidor Ory. O
processo segue os seus trâmites. Novas cartas de Guilherme de Trie
documentam as provas da autoria do livro pelo doutor Villanova, que lançava
mão de todos os recursos para encobrir o delito. É, portanto, de Genebra, e de
mãos protestantes, que vem a documentação que arrasta Serveto ao tribunal
de Vienne.
Os inimigos de Calvino e historiadores das duas facções religiosas não
hesitam em lançar sobre o reformador a autoria da denúncia. Félix Bungener,
na sua Vida de Calvino, procura defender o reformador. As aparências são
realmente contra Calvino, sendo que Trie lhe servia de secretário. Mas não há
provas de que o teólogo de Genebra tivesse autorizado o seu amanuense a
fazer tal declaração, que bem poderia ser o fruto de um zelo pessoal, muito
embora as folhas do livro pertencessem a Calvino. O fato foi negado pelo
próprio Calvino e Bungener considera a palavra do grande homem como uma
garantia.
De fato, no seu livro Declaration pour maintenir la vraye foi,
publicado em Genebra, em 1554, à p. 54, Calvino confessa que deu a
denúncia ao magistrado de Genebra e declara que se o tivesse delatado ao
tribunal de Vienne não teria dificuldade em o confessar. E. Doumergue,
rebatendo as calúnias produzidas contra o reformador, refere o fato,
documentando-o.[72] Calvino era homem verdadeiro.
Sua intromissão na questão foi somente de um modo indireto. Assim é
que Schaff, Trechsel, Dyer e outros admitem essa participação indireta, visto
o caso de partir a denúncia de seu próprio secretário, que, privando com ele,
estaria muito bem a par da situação.
Doumergue chama a atenção a uma circunstância de ocasião, que
deveria trazer os ânimos exaltados. É que, ao publicar Serveto o seu ruidoso
livro, fazia a Inquisição arder nas chamas em Lião a cinco jovens discípulos
de Calvino, pregadores do evangelho, denominados os “cinco mártires de
Lião”. O cardeal de Tournon, protetor de Serveto, assaz havia concorrido
para a realização daquele auto de fé, e a excitação era grande em Genebra.
Isso animaria o zelo de Guilherme de Trie na denúncia apresentada,
provocado como fora pelo seu parente Arneys. Aqueles que intentam caluniar
a Calvino neste ponto, imaginam haver sido ele que excitou o seu secretário a
apresentar a fatal denúncia. É o que resta provar e Calvino, como vimos, nega
a hipótese. O simples fato de Guilherme de Trie estar bem informado dos
fatos mostra que não tinha necessidade de agir a estímulo de Calvino.
Em 15 de março de 1553 Serveto compareceu perante o tribunal de
Vienne, porém não se encontraram provas suficientes de culpa. Deu-se busca
em sua casa, mas havia ele tido tempo de fazer desaparecer documentos e
papéis comprometedores. Nada também se apurou na busca ao
estabelecimento do impressor Arnoullet.
Novos documentos foram requisitados de Genebra. Embora com
algumas dificuldades, Guilherme de Trie obteve de Calvino outras provas da
heterodoxia de Serveto, que provam ser este e o médico de Vienne uma
mesma pessoa, o autor do livro em debate. O cardeal de Tournon, o arcebispo
de Vienne, protetor do acusado, o inquisidor e as demais autoridades
eclesiásticas, antes as provas exibidas, deram ordem para a prisão do médico
e do editor de seu livro. Foi isso a 4 de abril.
Serveto não se mostrou amigo da verdade perante o tribunal vienense.
Recorreu a todos os subterfúgios para negar a sua identificação com Serveto.
Chegou a admitir que usara de tal nome em polêmica com o reformador, mas
que não era a pessoas em questão. Interrogado sobre sua vida, historiou
somente o que se referia a sua profissão de médico, escritor, etc., deixando
em silêncio tudo o que se relacionava com as controvérsias sobre religião.
O próprio Augusto Dide, seu fervoroso apologista, confessa que o
curriculum vitae por ele apresentado “peca por omissões voluntárias e
calculadas”. Mas o inquisidor astuto achou meio de comprometê-lo,
apresentando-lhe as páginas das “Institutas” anotadas pelo próprio Serveto,
em que atacava as doutrinas da igreja sobre o batismo. O “demônio da
teologia” – na frase do escritor Dide – arrastou-o.
Era a sua mania. Caiu facilmente no laço e “deu um passo para a
morte”. Não podia mais negar que Serveto e Villanova fossem entidades
diferentes.
Neste ponto, outra acusação produzem contra Calvino – a de entregar
ao tribunal de Vienne documentos confidenciais recebidos de Serveto. A
acusação também se desfaz. Convém analisar os fatos resumidamente.
Serveto negou sua identidade. De Trie passaria por mentiroso se não
apresentasse documentos comprobativos. Calvino vê-se em apuros – ou
fornecer as provas ou deixar passar o amigo por mentiroso. As provas eram o
texto autógrafo das cartas publicadas por Serveto no fim do seu livro
Restitutio, sob o título – Trinta cartas a João Calvino, pastor em Genebra.
Da comparação do autógrafo com o texto impresso, resultaria ser Serveto o
mesmo médico Villanova. De Trie seria absolvido de calúnia. As cartas não
eram confidenciais, pois haviam sido impressas e Calvino somente confiou o
autógrafo muito instado pelo amigo e para salvá-lo da desonra. Serveto não
teve escrúpulos em mentir perante os juízes de Vienne, negando com
lágrimas a sua identidade. Dizia ele também a verdade quando afirmou haver
escrito a Calvino sob sigilo? A crítica imparcial que o responda.
Três dias depois de preso, conseguiu Serveto evadir-se, iludindo a
vigilância do carcereiro. Debalde, foi procurado por toda parte.
O tribunal de Vienne alcançou descobrir a tipografia em que Arnoullet
imprimira a obra, em local diferente do seu estabelecimento. Pôde ainda
apreender a maior parte dos exemplares da Restitutio.
Apurada as provas suficientes da culpabilidade de Serveto, o tribunal
civil de Vienne (sem esperar a decisão do tribunal eclesiástico), em 17 de
junho, condenou o acusado, por culpa de heresia, a uma multa de mil libras
ao Delfim, e a ser queimado com os seus livros, a fogo lento até ser reduzido
a cinzas. Não sendo, porém, encontrado, foi queimado em efígie, no dia
assinalado, na praça de Charneve, com cinco fardos de seus livros inquinados
de heresia. Todos os seus bens foram confiscados.
O tribunal eclesiástico só deu a sua sentença em 23 de dezembro, dois
meses depois da execução em Charneve.
Os eclesiásticos de Vienne o classificaram de – maximus hereticus – e
pronunciaram sentença de condenação. Era o segundo veredictum da cidade
francesa.
A Igreja de Roma deve, portanto, ser a última a atirar a pedra contra
Calvino e a Reforma na condenação de Serveto.
CAPÍTULO XXIII. AINDA O CASO SERVETO –
SEGUNDA FASE

O processo suíço. Serveto detido em Genebra. Os libertinos manifestam-se favoráveis


a Serveto e hostis a Calvino. O incidente da catedral de S. Pedro. Os incidentes vários
do processo de Genebra. A consulta aos cantões reformados. Sentença e execução.
Juízo crítico.

Vamos agora ao processo suíço. Serveto, fugindo de Vienne foi ter a


Genebra. Livrava-se de Cila e ia ter a Caribdes.[73] Calvino chegou a
exclamar: “Não sei o que dizer, senão que foi acometido de fatal loucura que
o impeliu à ruína!”
Escapando de Vienne em 4 de abril, deteve-se na França pelo espaço
de três meses ainda, não se sabendo ao certo onde se refugiou.
Era seu intento passar à Espanha, mas, temendo pela sua segurança,
resolveu fixar-se em Nápoles e exercer, incógnito, a sua profissão naquela
cidade. Mas a fatalidade o conduziu a Genebra, onde se encontrou em 17 de
julho, indo hospedar-se às margens do lago, numa hospedaria – o Auberge de
La Rose.
São várias as conjecturas sobre a passagem de Serveto pela cidade
Suíça, onde pontificava o seu grande antagonista. Schaff pergunta se não
estaria ele aspirando a glória do martírio como insinuara em sua carta a
Poupin. Albert Rilliet, autor do Processo de Genebra contra Serveto, lança a
hipótese de um acordo tramado entre os inimigos de Calvino, os quais se
aproveitariam das lutas da ocasião para atirarem Serveto contra o adversário
comum, enfraquecendo assim o prestígio do reformador. Outros nada vêem
de anormal na passagem de Serveto por Genebra.
Alguns dizem ter sido ele detido em Genebra logo após a sua chegada à
cidade. O fato, porém, mais averiguado é que ali ficou em liberdade por
quase um mês.
Intentou depois passar a Zurique e fazia já os preparativos para isso,
quando se lembrou de assistir a um serviço religioso no domingo, 13 de
agosto. Sendo reconhecido, foi recolhido à prisão em nome do Conselho.
Calvino teve parte na prisão de Serveto, que foi detido por instigação
sua. Schaff é de parecer que foi um erro de juízo por parte de Calvino. O
indiciado não havia cometido nenhum delito em Genebra e poderia ter
escapado livremente. Mas o reformador estava grandemente impressionado
ante as ideias subversivas de Serveto, classificando-o entre os grandes
inimigos da Reforma. A propagação de suas opiniões na Suíça seria uma
terrível calamidade. Rilliet considera a prisão de Serveto como um ato de
justa defesa por parte de Calvino. O teólogo francês, nesta questão,
constituiu-se em um novo Atanásio, em uma espécie de guarda do dogma
sagrado da Trindade, tão violentamente atacado pelo médico e filósofo
espanhol.
Tem-se dito muito sobre a influência soberana de Calvino em Genebra
e que seu governo era uma “teocracia eclesiástica, estabelecida no meio de
uma república cristã”. Assevera, porém, Guizot, na obra já citada, que
semelhante afirmação é vaga e sem fundamento.
É certo que foi um dos reformadores de maior influência e sua
autoridade era profundamente acatada. Era frequentemente consultado sobre
assuntos vários por pessoas de consideração, mas o governo civil de Genebra
era distinto do governo eclesiástico.
Os magistrados civis reconheciam os direitos do Consistório de
Genebra, mas estavam prontos a resistir a qualquer ato que lhes parecia
exorbitante. Guizot refere existirem, nos registros do Conselho de Genebra,
muitas censuras a pastores, citando mesmo algumas dessas censuras. O
próprio Calvino foi admoestado várias vezes por haver em seus sermões
verberado atos do Conselho.
Calvino teve de envolver-se em muitas questões e experimentar
contrariedades em Genebra. A Reforma foi ali introduzida e, com ela, a
repressão dos costumes. Como em outros lugares, havia muita licenciosidade
e houve necessidade de serem adotadas medidas severas.
Existia em Genebra o partido dos Libertinos ou Liberais, ao qual não
faltava gente digna e bem-intencionada. Por outro lado havia nele muitas
pessoas de costumes licenciosos e prontas a revoltarem-se contra as medidas
do Consistório.
Os Libertinos eram, outrossim, demasiado liberais em suas ideias
religiosas, propendendo para o racionalismo e panteísmo. Daí as amargas
contendas de Calvino e seus companheiros. Às instigações do partido,
Calvino e Farel haviam sido expulsos por três anos, de 1538 a 1541.
Voltando, a instância do povo, não ficou isento de contendas. Por fim, a
vitória pendeu para o seu lado.
Esses fatos têm sido apontados em outros lugares no decurso desta
obra.
Justamente na ocasião do processo de Serveto em Genebra, Calvino
sustentava uma luta formidável contra os Libertinos. O Consistório havia, por
várias vezes, interdito a mesa da comunhão às pessoas indignas pela vida
desordenada que levavam. Era um ato de disciplina eclesiástica indispensável
à pureza dos costumes preconizada pela Reforma.
Berthelier., pertencente ao partido Libertino, fora excluído da
comunhão desde algum tempo. Achando oportuno, requereu ao Conselho que
se restaurasse o privilégio, o que foi obtido – porém de um modo ilegal, pois
o direito de excomunhão pertencia ao Consistório, que era um tribunal
eclesiástico, enquanto o Conselho era jurisdição civil. Houve, então, quem
propusesse que o direito de excomunhão fosse transferido do Consistório
para o Senado. Era a subversão da ordem social em Genebra e um fracasso
para a Reforma. Calvino percebeu o alcance e protestou. Veio o dia 3 de
setembro, que era dia de comunhão. A multidão apinhava-se na igreja de S.
Pedro, em cujo púlpito trovejava o verbo de Calvino.
Foi aquele um dos dias decisivos na história da Reforma. Berthelier,
restaurado pelo Conselho, queria participar da mesa sagrada com outros
membros do partido Libertino e, se isso acontecesse, Calvino e o Consistório
entrariam em descrédito. No fim do seu sermão, o corajoso pregador declarou
que mostraria o seu modo de agir caso alguma pessoa disciplinada pelo
Consistório tentasse partilhar da Santa Ceia, embora isso lhe tivesse de custar
a vida.
Consagrados os elementos pelo reformador, notou-se um movimento
por parte dos Libertinos como se intentassem eles, pela força, participar do
sagrado festim.
Deu-se então uma cena emocionante. Calvino cobriu com suas mãos os
elementos e bradou com voz retumbante: “Podereis cortar estas mãos e
decepar estes braços; tirai a minha vida e derramai o meu sangue; não
conseguireis, porém, forçar-me a dar as coisas santas aos profanos e a
desonrar a mesa do meu Deus!”
Foi como se um raio tivesse caído no meio da númerosa e seleta
assistência. Os arrogantes Libertinos, parecendo impelidos por força
invisível, foram se afastando cabisbaixos e a multidão abriu alas para a sua
retirada. Beza, citado por Wylie na valiosa obra History of Protestantism,
conta que a sagrada ordenança foi celebrada no mais profundo silêncio e
debaixo de um solene temor em toda a assistência como se a própria
divindade fizesse sentir a sua presença no momento.
Wylie aproxima entre si dois acontecimentos de valia na história da
Reforma – a coragem de Lutero na Dieta de Worms e o valor de Calvino na
Catedral de S. Pedro. “Eu não posso” – diz Lutero – “Eu não admito” –
responde Calvino. Um repele a tirania, outro subjuga a impiedade. “Em
ambos os casos o perigo era igual, em ambos os reformadores a fé e a
fortaleza eram iguais, e cada um salvou a Reforma em grave crise”.[74]
Pois bem, foi em semelhante crise da vida de Calvino, quando os seus
inimigos tinham nas mãos o poder, que se formulou o processo de Serveto. O
reformador era alvo de insultos pelas ruas e apontado por muitos como
herege. E a tremenda hostilidade continuou por dois anos ainda depois da
execução de seu contraditor.
O Pequeno Conselho dos Vinte e Cinco estava sob a influência dos
Libertinos, sendo Amy Perrin o principal síndico. O Conselho dos Duzentos
também se sentia debaixo da mesma influência. Foi perante o Pequeno
Conselho que ocorreu o processo, contando Serveto com a simpatia dos
Libertinos. É sobre essa corporação que, em última análise, cabe a
responsabilidade da sentença. Não fora a consulta às igrejas da Suíça e o
juízo do governo de Berna e, possivelmente, outra teria sido a decisão.
A responsabilidade de Calvino é somente moral pela sua acusação
veemente contra os erros teológicos do seu opositor. Não lhe cabe nenhuma
responsabilidade judicial.
A prisão de Serveto ocorreu em 13 de agosto daquele ano de 1553.
Segundo as leis de Genebra, o acusador tinha de ser preso com o acusado até
que a culpa fosse evidenciada. Por isso foi Calvino representado na prisão por
seu secretário íntimo Nicolau de La Fontaine, estudante de teologia, que teve
como advogado a Germano Colladon, jurista francês exilado em Genebra por
motivo de religião.
Em 15 de agosto, o Conselho dos Vinte e Cinco iniciou o julgamento
que se prolongou por dois meses. Entre os que tomaram assento, sem contudo
participar no julgamento, estava o inimigo de Calvino: Filiberto Berthelier.
La Fontaine apresentou trinta e oito artigos contra Serveto, os quais
haviam sido esboçados por Calvino. Neles eram apresentados os erros da
doutrina de Serveto, colhidos nos seus livros, especialmente no Christianismi
Restitutio.
Os artigos eram fortes e o acusado, em alguns deles, viu-se forçado a
contradizer-se e a dar respostas evasivas.
No dia 16, viram-se na arena os dois partidos que disputavam a
preponderância e nos quais Genebra estava dividida. Colladon, o acusador de
Serveto, representava a fé reformada; Berthelier era o agente do partido
Libertino. Berthelier empreendeu, neste dia, a defesa do acusado, defendendo
também as ideias por ele externadas. Seu empenho na questão não era tanto a
simpatia pelo filósofo. Era mais o desejo de ir contra o Consistório pelo qual
fora punido eclesiasticamente.
Nos dias 15, 17 e 21 Calvino foi convidado a tomar parte na acusação.
Feriu-se o debate entre os antagonistas. O Conselho convenceu-se de que as
acusações tinham fundamento e Nicolau foi dispensado da prisão. O processo
foi relegado ao procurador geral.
Os debates, em continuação, versaram sobre a doutrina da pessoa de
Cristo. O acusado ensinava que a pessoa do Filho de Deus não tinha
existência anterior à encarnação. Cristo existia desde a eternidade como ideia
apenas. O termo Filho de Deus aplicava-se a Cristo em referência à sua
humanidade.
Sobre a questão da substância divina, Serveto persistia em suas ideias
panteístas. Calvino interpela-o: “Se alguém ferisse o pavimento com os pés e
dissesse que estava tripudiando sobre o teu Deus, ó homem infeliz, não
ficarias horrorizado vendo a Majestade submetida a tal indignidade?” Em
réplica, o filósofo afirmou que não mantinha nenhuma dúvida em admitir que
tudo que estava ali presente vinha a ser da substância do próprio Deus.
Objetando-lhe ainda que, ante semelhante teoria, o Criador estaria
substancialmente mesmo no demônio, riu-se ele e respondeu: “Podereis
duvidar disso? Como máxima geral, admito que todas as coisas se resolvem
em parcelas de Deus e a natureza das coisas constitui o seu espírito
substancial”[75]
A impressão foi desagradável no Conselho.
Outra direção foi tomando o processo. O procurador geral preparou
nova acusação, contendo trinta artigos em que dava mais preeminência ao
lado político e social da questão. Serveto não era agora denunciado
principalmente como um herege mas, antes, como um perturbador da ordem
social. Rilliet, citado por Wylie, analisa a nova fase iniciada em 23 de agosto.
Entende que se houvesse somente a acusação de La Fontaine e de Calvino,
Serveto teria sido absolvido. Na última fase do processo, porém, predominou
a questão política e isso acarretou a perda do filósofo.
Nesse segundo ato da tragédia de Serveto, iniciado em 23 de agosto,
buscou este eximir-se dos novos artigos acusatórios, defendendo-se com
vantagem da suspeita de uma vida imoral.
Intentou negar que fosse um perturbador da ordem social e de que
tivesse vindo a Genebra com intento sinistro. Em petição, no dia 24, insistiu
na defesa e requereu que o soltassem da prisão.
O procurador tratou, por sua vez, de refutar os argumentos aduzidos
pelo indiciado. Este, por seu turno, procurou rebater as novas acusações.
O Pequeno Conselho havia solicitado do tribunal de Vienne
informações sobre o processo estabelecido contra o médico espanhol. Veio a
resposta com um pedido para reenviarem para lá o criminoso a fim de o
executarem nos termos do processo formulado. O Conselho recusou e o
próprio prisioneiro manifestou horror ante tal ideia. Preferiu ser julgado em
Genebra, onde esperava mais clemência. Infelizmente, sua esperança não
tinha fundamento. Em primeiro de setembro, o Conselho confrontou mais
uma vez os dois lutadores. O conflito entre o Consistório e o Conselho entrou
na sua fase mais aguda, porquanto foi neste dia que a corporação dos Vinte e
Cinco, contra o Consistório, permitira que Berthelier se aproximasse da mesa
da comunhão. No mesmo dia os debates prosseguiram na prisão.
Perrin e Berthelier tomaram, então, o lado de Serveto no debate oral
entre Calvino e este. Resolveram, por fim, submeter o caso às igrejas suíças,
esperando mais tolerância do lado delas. O Conselho, em seguida,
determinou que Calvino extraísse em latim, das obras de Serveto, os artigos
em objeção, palavra por palavra; que o acusado escrevesse sua defesa e
Calvino replicasse. Estes documentos seriam enviados às igrejas da Suíça, a
fim de que dessem o seu parecer.
No mesmo dia aquele homem extraordinário fez o extrato das trinta e
oito proposições com as devidas referências, mas sem nenhum comentário.
Isso, dois dias antes do tremendo conflito que teria de travar contra os
Libertinos, do qual sairia vitorioso.
Entretanto, Serveto tratava de defender as trinta e oito proposições
impugnadas. Sabendo dos ódios contra Calvino, encheu-se de coragem para
atacar sem piedade seu antagonista. Sua apologia era uma agressão
formidável ao Reformador, a quem qualificava de Simão Mago, mentiroso e
homicida.
A réplica de Calvino enchia vinte e três páginas in folio, sendo assinada
por todos os quatorze pastores de Genebra.
Os três documentos que deveriam ser enviados às igrejas foram
apresentados ao Pequeno Conselho no dia 5 de setembro. Os magistrados
permitiram que Serveto acrescentasse uma resposta à replica dos pastores.
No dia 15 o prisioneiro dirigiu mais uma petição ao Conselho.
Solicitava que lhe dessem um advogado, pedido muito razoável que não lhe
foi concedido. Reclamava, também, contra a penúria de roupa e outras coisas
de que tinha necessidade. Pedia ainda que sua causa fosse transferida para o
Conselho dos Duzentos, onde se pensa que ele tinha maiores simpatias. Mais
uma vez atacava Calvino, ao qual classificava de seu perseguidor. De posse
dos documentos fornecidos pelo Conselho, o acusado preparou sua última
resposta, anotando as linhas do memorial de Calvino e dos ministros de
Genebra. Perdeu então toda a compostura, investindo furiosamente contra
Calvino, a quem qualifica de miserável caluniador, hipócrita, Simão Mago,
mentiroso, etc. A resposta de Serveto assim concluía: “Mentis, mentis,
mentis, miserável caluniador!”[76]
Estas últimas notas chegaram ao Conselho em 18 de setembro. Calvino
achou inconveniente acrescentar alguma coisa, ficando com Serveto a última
palavra.
Estava terminando o debate entre os dois teólogos rivais. Cumpria à
Suíça protestante dar o seu veredictum.
No dia 19 o Conselho referiu o caso aos magistrados e pastores de
Berna, Zurique, Schaffhausen e Basileia. Dois dias depois, Jaquemoz Jernoz
foi despachado como emissário, levando consigo os documentos, que
compreendiam o debate teológico dos dois contendores, uma cópia da
Restitutio e as obras de Tertuliano e Irineu, as principais autoridades
patrísticas citadas pelos dois homens.
A 22, Serveto ainda uma vez se dirigiu ao Conselho, solicitando que
Calvino fosse chamado em juízo no intuito de responder aos artigos de
acusações que ele enviava. Como Schaff observa, Serveto agora parece
reconhecer a competência civil em matéria religiosa, o que antes condenava.
Apresentando sua queixa, assim expressa: “Peço, senhores, que meu
falso acusador seja punido pela lei de talião; que seus bens me sejam
adjudicados em troca do que perdi por sua causa; e que seja posto na prisão
ate que o juízo se pronuncie pela condenação à morte de um dos dois, ou por
qualquer outra punição”.[77]
O conselho não tomou conhecimento do pedido.
Em 10 de outubro, novo requerimento. Desta vez eram justas queixas
ante as privações que experimentava no cárcere. O regime das prisões
deixava muito a desejar naquele tempo e Serveto se queixava da falta de
asseio, da deficiência do vestuário, etc.
Finalmente, a 18, regressou Jaquemoz Jernoz com a resposta da Suíça.
Eram oito pareceres, quatro das igrejas e quatro dos magistrados civis. Todos
julgavam Serveto desfavoravelmente e prestigiavam Calvino e seus colegas.
Os de Berna diziam: “Rogamos ao Senhor que vos dê um espírito de
prudência, de conselho e de força, a fim de que ponhais a vossa e as outras
igrejas ao abrigo dessa peste e que, ao mesmo tempo, nada façais que pareça
indigno de uma magistrado cristão”. Basileia respondia: “Estamos certos de
que não vos faltarão prudência cristã, nem zelo santo para irdes ao encontro
de um mal, que tem levado já à ruína um grande número de almas”. Zurique
era mais decisivo : “Não permitireis que progrida a perniciosa e falsa
intenção do vosso prisioneiro, a qual é inteiramente contrária à religião cristã
e ocasiona graves escândalos”. Schaffhausen não respondeu com mais
brandura: “Estamos certos de que reprimireis, segundo vossa louvável
prudência, a tentativa de Serveto para que suas blasfêmias não corroam como
gangrena os membros de Cristo”.[78]
O juri, formado pelas igrejas e magistrados das quatro circunscrições,
era, portanto, desfavorável, em alto grau, ao malogrado teólogo. As respostas
indiretamente ditavam a condenação. Restava a vez de Genebra.
No dia 23, reuniu-se o Conselho para examinar os pareceres, não
chegando porém a um acordo, visto estarem ausentes vários membros da
corporação. A causa de Serveto estava perdida. Os Libertinos ficaram
desanimados ante a decisão de Berna que, dois anos antes, aconselhara
tolerância no caso de Bolsec.
Veio o dia decisivo, o fatal 26 de outubro. Amy Perrin presidia a
reunião. Empregou os últimos esforços para libertar o padecente.
Propôs, primeiramente, que fosse Serveto absolvido. Isso seria
equivalente à queda de Calvino. E ao predomíno dos Libertinos em Genebra.
Nada conseguindo, propôs que o acusado passasse a ser julgado pelo
Conselho dos Duzentos. Caiu também esta segunda proposta. Perin e mais
alguns retiraram-se do Conselho neste ponto.
Veio então a terrível sentença. Serveto foi condenado às chamas.
Calvino e seus colegas pleitearam pela mitigação do suplício – a espada em
lugar da fogueira – mas nada obtiveram. É, pois, sem razão que lançam sobre
Calvino a acusação de haver pleiteado a fogueira de Serveto, muito embora
achasse que o paciente era digno da morte pela sua impiedade. Foi ainda
acusado de haver requerido, para tornar o suplício mais atroz, que fosse
empregada madeira verde em vez de seca e também enxofre para asfixiar o
padecente. A calúnia é atribuída a Castellion. Não se pode provar isso de
Calvino, muito embora fosse uso em tais ocasiões recorrer-se a materiais que
abreviassem o suplício dos padecentes. A calúnia foi a ponto de dizer-se que
não podia o reformador conter o riso ao ver o seu antagonista marchar para o
suplício. Isso dispensa comentários.
Os juízes enumeraram os erros de Serveto que consistiam em apelidar a
Trindade de monstro de três cabeças, em blasfemar contra o Filho de Deus,
em qualificar o batismo infantil como invenção do demônio, e na persistência
final neste e em outros erros. A sentença assim concluía: “Nós te
condenamos, Miguel Serveto, a que sejas atado e conduzido a Champel,
amarrado a um poste e queimado vivo, juntamente com o teu livro até que
seja reduzido a cinzas o teu corpo. Assim findarás teus dias para exemplo de
outros que te venham a imitar. E ordenamos ao nosso Lugar-Tenente
providenciar para que esta sentença seja executada”[79].
Surgiu o nefasto 27 de outubro e só pela manhã comunicaram a
Serveto a pungente sentença. O efeito foi pavoroso. O aragonês estava longe
de esperar aquele desenlace. O seu temperamento impulsivo fez-se sentir.
Ficou como alucinado, em desespero, e clamou no idioma nativo:
Misericórdia, misericórdia!
Farel serviu-lhe de assistente desde então, acompanhando-o a
Champel. Procurou, sem resultado, convencê-lo do seu erro. Serveto queria
que lhe mostrassem uma passagem da Bíblia em que Cristo fosse chamado
Filho de Deus antes da sua encarnação.
Farel obteve um encontro dos dois adversários, a ver se seria mais
feliz. Calvino compareceu à prisão em companhia dos dois membros do
Conselho. Serveto pediu-lhe perdão das ofensas pessoais. O reformador
replicou-lhe que não guardava ressentimento contra ele, e passou a recordar
os esforços que havia empregado para reconduzi-lo ao bom caminho desde o
primeiro encontro em Paris, em 1534. Em seguida, passou a apontar os erros
do infeliz, exortando-o a solicitar o perdão de Deus.
Calvino mostrou-se um tanto duro em increpá-lo ainda desta vez. Via-
se nele o teólogo frio e austero, tendo diante de si um herege obstinado.
Retirou-se dali invocando a passagem da Epístola de Tito, cap.3. v.10 e 11.
Bungener, seu admirador, não deixa de censurar semelhante proceder.
Havia somente rigor ortodoxo, mas nenhuma palavra de simpatia em
momento tão precioso. A polêmica, em tais circunstâncias, nenhum conforto
trazia ao pobre condenado – antes o exasperaria mais.
Farel ainda foi mais duro porventura. Queria arrancar dele, até o
último instante, a palavra de retratação.
Pelas onze horas pôs-se a caminho o cortejo sinistro. Em frente ao paço
municipal, ouviu o condenado, do síndico Darlod, a leitura da sentença fatal.
Sentiu-se pela segunda vez horrorizado. Caiu de joelhos e pediu que o
justiçassem à espada e não pelo fogo: “A espada e não a fogueira ou me
arriscarei a perder a alma em desespero!”
Protestou, então, que se havia pecado fora por ignorância. Farel
conjurou-o de novo a confessar o seu crime para alcançar o perdão do Céu.
Ele, porém, não estava convencido dos seus erros teológicos.
Sem embargo, mostrou sinais de compunção. Bateu nos peitos, pediu
perdão a Deus, confessou ser Cristo o seu Salvador e pediu perdão aos seus
acusadores, mostrando traço de nobreza em momento tão solene.
Tranquilizou-se desde aquele instante, marchando para a fogueira com
a serenidade de um filósofo e mártir.
Eis, diante de nós, a pequena e encantadora colina de Champel, ao sul
de Genebra.
Sua memória passará à posteridade em notas de amargura. Eis a pilha
de madeira destinada ao holocausto.
Farel exorta a Serveto a recolher-se em oração e a solicitar as orações
da assistência.
É obedecido em silêncio. O executor liga ao poste a vítima, tendo ao
lado um exemplar do Christianismi Restitutio, o mesmo que serviu a
Colladon, um dos acusadores de Serveto.
Refere Goguel que este exemplar, meio consumido pelas chamas, foi
salvo da fogueira e é um dos raros que foram conservados. Hagenbach
informa que também uma cópia do De Trinitatis Erroribus foi lançada às
chamas.
Uma coroa de folhas coberta de enxofre cinge a fronte do réu, tendo
por alvo abreviar-lhe o suplício.
“Misericórdia!” – clama mais uma vez o desgraçado. E no instante
supremo, no meio do fumo e da agonia, brada em voz bem audível: “Jesus,
Filho do Deus Eterno, tem misericórdia de mim!”
Era, na expressão de Schaff, uma confissão de sua fé e de seu erro, que
o não o autorizava a dizer: “Filho eterno de Deus!”
“A dignidade do filósofo”, ajunta Guizot, “triunfou da franqueza do
homem; pois heroicamente e calmamente pereceu naquela fogueira, da qual
só o pensamento o enchia de horror a princípio”[80]
Ao meio dia a tragédia chegava ao seu termo. Restava um punhado de
cinzas, o suficiente para, de alguma sorte, ofuscar o brilho da personalidade
forte de Calvino.
Agora um ligeiro juízo crítico.
No entender do judicioso Guizot, “Serveto era o representante de um
sistema falso e superficial, embora revestido de uma aparência científica;
sistema destruidor da dignidade moral e individual bem como da ordem
moral da sociedade”. Por seu turno, “Calvino representava a boa causa, da
moralidade, da civilização, da ordem social”.
A personalidade de Serveto é digna de estudo. A Providência dotou-o
de alta capacidade intelectual; distinguindo-se ele como geógrafo, astrólogo,
médico, filósofo e teólogo. Era, porém, um tanto presunçoso, vaidoso e
frívolo. Quanto à vida privada, era de sãos costumes. Em outros pontos,
contudo, não revelou a mesma probidade, pois não hesitava em empregar
subterfúgios, faltando à verdade para encobrir seus erros teológicos. Nos
pontos de doutrina em que julgava os cristãos em erro, como no caso da
Trindade, por exemplo, sua linguagem era leviana e inconveniente, tendo às
vezes aparência de blasfêmia.
Era, porém, sincero em suas crenças, professando verdadeira devoção a
Jesus Cristo e uma certa piedade mística. Estava convencido de que lhe fora
confiada a missão de restaurar o Cristianismo, deturpado pelas doutrinas
falsas que apontou nos seus livros.
A responsabilidade da morte de Serveto tem sido lançada
insistentemente sobre os ombros de Calvino. Façamos sobre o tópico algumas
considerações.
Seja dito, antes de tudo, que a Igreja Romana é a menos competente
para condenar o procceder de Calvino, mesmo admitida a hipótese de que
fosse ele o único culpado. É ela a responsável pelos tormentos da Inquisição
e pelos rios de sangue que fez correr nas cruzadas contra os albigenses e
valdenses; ela que acendeu a fogueira de Huss e de Jerônimo e promoveu a
campanha de extermínio contra o nobre povo hussita; ela que massacrou os
huguenotes e preparou a noite de S. Bartolomeu e as Drangonadas; ela que
condenou o próprio Serveto em Vienne, de que só escapou pela fuga.
Não foi porém da Igreja de Roma que partiram os primeiros golpes
contra o reformador.
Aos primeiros ataques, de livres pensadores e refugiados italianos que
simpatizavam com as doutrinas de Serveto, viu-se Calvino obrigado a
publicar uma defesa de seu procedimento na triste questão, a qual trazia a
assinatura dos quinze pastores de Genebra e tinha por título: Fidelis expositio
errorum Michaelis Serveti ET brevis eorundem refutatio, etc. A tradução
francesa tinha como título: Declaration por maintenir la vraye foy etc, como
em outro lugar foi citado.
Bullinger fizera sentir a Calvino a necessidade de um tal escrito, em
que eram apontados e refutados os erros de Serveto e se justificava a
aplicação da pena capital nos casos de heresia. Em apoio da doutrina, citam-
se passagens do Antigo Testamento contra a blasfêmia e idolatria e os
exemplos dos piedosos reis de Israel no zelo pela pureza da verdade.
Aliás era a doutrina do seu século, transmitida pela igreja medieva. Os
reformadores vinham saindo das trevas daquelas eras e conservavam ainda
muitas práticas errôneas, das quais só se poderiam libertar no andar dos
séculos.
No juízo de L. Abelous, a Igreja Romana foi mais culpada do que o
reformador, pois nessa escola ele aprendeu que a heresia e a blasfêmia devem
ser punidas com a morte.[81]
Ainda mais, o ruído produzido em nossos tempos pelo sacrifício do
teólogo espanhol é uma homenagem rendida à Reforma, pois o que seria
permitido em Roma não poderiam tolerar em Genebra.
Pouco depois da mencionada publicação de Calvino e dos pastores de
Genebra em defesa da sentença de Serveto da punição da heresia, surgiu um
livro contrário, em defesa das liberdades religiosas, atribuído a Castellion,
mas trazendo o nome de Martinus Belliu.
Beza encarregou-se de lhe dar a resposta no tratado – De haereticis a
civile magistratu puniendis libellus, adversus Martini Belli farraginem ET
novorum Academicorum sectam – 1554. Defende a conduta de Genebra e
demonstra que a tolerância para com o erro resulta em indiferença para com a
verdade.
Como foi dito acima, Calvino e seu século não poderiam fazer nada de
melhor no caso de Serveto. Lutero e Zwinglio eram os mais brandos entre os
reformadores em matéria de tolerância e, todavia, deixaram alguma coisa a
desejar. Mesmo o doce Melanchton aprovou a sentença de Genebra. Farel,
Bullinger e Beza não pensavam de modo diferente. O predomínio da
intolerância se estendeu ainda pelo século XVII e só no seguinte século é que
as ideias mais generosas foram advindo felizmente. Curioso é de notar que o
próprio Bolsec, inimigo irreconciliável de Calvino, escrevendo a respeito de
Serveto, declarou que “era indigno de viver um herético tão monstruoso”.[82]
O mesmo Serveto requeria para Calvino a pena de morte perante os
magistrados de Genebra.
No decurso destas observações ficou estabelecido que a intervenção de
Calvino foi somente indireta. Wylie, analisando Rilliet de Candolle, que
escreveu sobre o processo de Genebra, dá ênfase aos seguintes pontos,
deduzidos da obra do citado autor: a) Pela sua posição em Genebra, como
presidente do Consistório, Calvino era obrigado a tomar parte na acusação de
Serveto; b) de si mesmo não tinha ele poder de salvar ou condenar o
indiciado; c) a opinião de que crimes semelhantes ao de Serveto deveriam
ser punidos com pena capital era a crença geral do Cristianismo naquela
época e Calvino, que não tinha podido caminhar adiante do seu século, já
havia dado este mesmo parecer sete anos antes de sua célebre carta a Farel
em 1546; d) o único partido que pleiteou pela absolvição de Serveto foi o dos
Libertinos, os quais tinham em vista a destruição da Reforma em Genebra; e)
o Conselho de Genebra tinha naquela ocasião acumulado os dois poderes,
civil e eclesiástico; f) a sentença do Conselho era baseada principalmente
pelo aspecto político e social do ensino de Serveto, que vinha perturbar a
ordem social, ponto este que muita gente ignora; g) finalmente salienta o fato
de haver Calvino se empenhado em favor de um gênero de morte mais
clemente para o malogrado filósofo.[83]
O Protestantismo de nossos dias reconhece a dureza de Calvino no caso
vertente e lastima a parte mesmo indireta que lhe coube na malfadada
empresa. Todavia, é unânime em tecer louvores ao seu engenho na obra
vigorosa da Reforma. Seu valor é reconhecido mesmo por autoridades que o
condenam fortemente no fatídico processo de Genebra. Assim é que o Dr.
Willes, autor de uma volumosa obra sobre Calvino e Serveto, em que deixa
ver as suas simpatias pelo infeliz campeão, assim se expressa à p. 514 do seu
livro citado por Schaff: “A despeito de tudo, Calvino deve ser considerado o
arauto real das liberdades modernas. Julgando incompatível a ignorância na
existência de um povo religioso livre, Calvino estabeleceu a escola ao lado da
igreja e pôs a educação ao alcance de todos. Tampouco desprezou a mais alta
cultura”.
Lastimamos com os protestantes modernos a sorte de Calvino, no caso
de Genebra, bem como a triste missão de Farel em atormentar o condenado
até o último momento na acusação da heresia.
Como tem transparecido no decorrer desta apreciação, a maior força
das acusações contra o reformador provém de serem feitas à luz do século
atual. Também a falta de conhecimento das peças autênticas do processo e
das leis então em vigor, ajunta o pastor Goguel, na sua Vida de Calvino, tem
concorrido para estas falsas apreciações. Não só o processo de Serveto, como
os processos de Gruet, Monet, Bolsec e outros se explicam perfeitamente pela
jurisprudência dos tempos.
Vamos terminar a nossa longa dissertação sobre o caso de Serveto,
invocando um autor moderno, o Rev. C. H. Irwin, no seu livro John Calvin –
The man and his work, publicado há poucos anos por ocasião do 4°
centenário do nascimento do reformador francês. Eis como ele se pronuncia à
p. 167: “Dizer, pois, que Calvino queimou Serveto é, pelo menos, exprimir
meia verdade. Calvino não era o único autor. Era um entre muitos. Como
representante da opinião protestante agiu em capacidade pública. Que Serveto
merecia a morte era a opinião geral da época e não um fato peculiar a
Calvino. Coleridge afirma que a morte de Serveto não era culpa
especialmente de Calvino, mas o opróbrio comum do cristianismo europeu.
Quanto à fogueira propriamente, Calvino fez oposição, advogando o cutelo
como um gênero de morte mais rápido e mais misericordioso”.
O que muita gente ignora, porém, é que o Protestantismo moderno
erigiu um monumento expiatório em Genebra, trezentos e cinquenta anos
depois do holocausto de Champel.
Partiu a ideia da Sociedade Histórica e Arqueológica de Genebra,
sendo os fundos coligidos por membros das igrejas presbiterianas da
Inglaterra e dos Estados Unidos, e das igrejas reformadas da Suíça, França e
Holanda.
Numa das faces do monumento vem o registro do nascimento e morte
de Miguel Serveto. Na outra lê-se a inscrição: “Filhos respeitosos e
reconhecidos de Calvino, nosso grande reformador, condenando porém um
erro que foi o do seu século, e firmemente ligados à liberdade de consciência
conforme os verdadeiros princípios da Reforma e do Evangelho, elevamos
este monumento expiatório aos XXVII de outubro de MCMIII”.
Na ocasião em que se tirou o véu ao monumento, fez-se ouvir o
professor E. Doumergue, de Montauban. Irwin registra essa parte do seu
discurso: “Suponde que amanhã as folhas diárias publicassem o seguinte: o
núncio papal, em Paris, chegou a Roma e Pio X informou-o de um projeto
que há muito alimentava em seu peito, referente à ereção de um monumento
em expiação aos massacres de S. Bartolomeu. Com esse intuito, em nome da
igreja, repudia a ação dela nas perseguições e intolerância dos séculos
passados, pelo que tem resolvido levantar em frente ao Louvre, à sombra de
St. Germain l’Auxerrois, cujo sino deu sinal para a terrível hecatombe, um
bloco de granito com esta simples inscrição: Em nome da igreja e da
Cristandade Católica – PECCAVIMUS. O monumento será patenteado no
próximo 24 de agosto – Que assombro isso não produziria no mundo inteiro!
Como não seriam arrebatados os jornais aos vendedores! Dificilmente crer-
se-ia a princípio em tal novidade. Que imenso prestígio não adviria à causa
de Roma! Seus inimigos mais encarniçados ficariam desarmados e o Livre
Pensamento não poderia mais reprová-la no caso da Inquisição. Os
Protestantes seriam compelidos a retirar as suas queixas no caso das
Dragonadas e da revogação do Edito de Nantes. Desde a Reforma do século
XVI, nenhuma revolução atingiria a tais consequências”.
Ainda a propósito, Irwin cita um debate no Ateneu de Madrid. Um dos
oradores atacava a intolerância de Roma, quando se ouviu um aparte
lembrando a questão de Serveto. “Isso”, disse ele, “interpreta o espírito do
Protestantismo. Faça a mesma coisa a Igreja de Roma. Expresse o seu pesar
pelos erros do passado. Erga um monumento expiatório no local ainda hoje
conhecido em Madrid como o Quemadero de La Cruz, onde os mártires da
Inquisição pereceram nas chamas!”
Roma é sempre a mesma e não praticará tal magnanimidade!
Genebra e Calvino, no século XVI, acenderam as fogueiras de Serveto,
Genebra e o Protestantismo do século XX erigiram o monumento de
Champel.
É a nobreza da Reforma que nos leva a dizer – Peccavimus. Isso
interpreta bem o espírito do Protestantismo, como disse o orador
madrilenho”.
CAPÍTULO XXIV. O ESPÍRITO DE
INTOLERÂNCIA

As tribulações de Calvino. A intolerância da Igreja em seu início. Teodósio, o Grande.


Inspiração da intolerância no Antigo Testamento. Males por ela produzidos. Opinião
de Bossuet e do Sílabus de Pio IX. O monumento expiatório de Genebra. Estátuas de
Serveto e sentimento que presidiu a ereção das mesmas. Roma sempre a mesma e
amostra disso produzida recentemente pelo Padre Lepicier. Calvino a ninguém
perseguiu pelo simples fato de ser católico romano.

Assaz foi dito sobre o caso Serveto tão frequentemente invocado,


havendo sido apresentados os vários aspectos da questão. Não é demais
chamar a atenção para o estado de espírito de Calvino em toda a sua vida
agitada.
O reformador francês não viveu uma existência tranquila, cultivando as
letras e pesquisando obras no retiro de seu gabinete, como era a aspiração de
sua mocidade. Muito ao contrário disso tem sido aqui assinalado.
O profeta Jeremias lastimou um dia o rigor do seu destino, sempre
perseguido pela corte de Jerusalém e tratado sem piedade, em troco de seu
zelo e amor pela verdade e pela integridade da religião. Em seu abatimento, o
profeta dos threnos[84] foi ao ponto de exclamar: “Porque saí eu do seio
materno para ver trabalho e dor e consumirem-se os meus dias na
confusão?”[85] E de outra feita não se pode conter: “Ai de mim, minha mãe,
porque me geraste varão de contenda, varão de discórdia, em toda a terra?”[86]
Calvino poderia bradar da mesma sorte, invocando Jeanne Lefranc, sua
piedosa e santa mãe.
Escrevendo a Wolff em 1555, e referindo-se às suas amarguras
constantes, chegou a dizer que mais valia ser queimado do que ser
incessantemente torturado como estava sendo verificado nas contendas em
que se via envolvido. Uma coisa o alentava, dizia, era a esperança de que a
morte em breve o aliviasse.
O seu período mais amargo foi o decorrido entre 1546 e 1555, o das
lutas contra os Libertinos e outros adversários que pretendiam derrocar a
disciplina de Genebra. Depois sobreveio uma paz relativa com a satisfação
experimentada ao ver a regeneração e o progresso da república a que
consagrara a sua vida, fato este registrado em outro capítulo.
Naqueles dias, como observa Bungener, os seus nervos estavam
debaixo de forte tensão, o que atenua, porventura, os momentos de
impaciência e as suas manifestações de intolerância. Eram seus trabalhos
diários como professor, pregador, escritor, homem, de estudos, conselheiro,
legislador, polemista. Vinham ainda, os ataques constantes de adversários
implacáveis, por palavras e por escritos. Era agredido com injúrias quando
atravessava as pontes de Genebra, ou perambulava nas ruas. Até debaixo de
suas janelas, por vezes, Libertinos, tomados de vinho, entoavam coplas
abomináveis ou vomitavam injúrias atrozes. Citemos as próprias palavras de
Bungener: “Acompanhai-o pelas ruas e ouvireis os assobios, de que tenho
falado. Aquele cão que se embaraça em vossas pernas ouve-se apelidá-lo de
Calvino, e o cão acode por que este é o nome que lhe deram!”
A isso acresciam os padecimentos diários com as frequentes
enfermidades, o longo sofrimento e morte de sua esposa, e tantos outros
cuidados e aflições.
E exigir-se-á de um homem tão atribulado, no físico e no moral, um
modelo de paciência e de tolerância!
Calvino fora educado na Igreja Romana, a cujo ministério se destinava,
e dela aprendeu a doutrina de que a heresia deveria ser tratada com o devido
rigor.
Nos primeiros séculos da Igreja, na era das perseguições, vultos
insignes como Justino, Tertuliano e Lactâncio, advogaram o princípio da
liberdade da consciência e o famoso edito de tolerância de Constantino (313),
facultando a livre profissão de fé religiosa, antecipava os tempos modernos.
No pensar de Schaff, a era das perseguições movidas pela Igreja teve
seu inicio no primeiro concílio ecumênico, o de Nicéia (325), quando Ário e
dois bispos egípcios foram banidos para a Ilíria. Nas lutas que se seguiram,
tanto ortodoxos como arianos professavam o mesmo princípio de intolerância
e o partido que estava no poder perseguia o seu contrário. Prisão, deposição,
exílio, eram disposições que se viam a cada passo.
Teodósio, o Grande (379-395), foi, depois de Constantino, ardoroso
adepto do Cristianismo e nos seus dias é que se efetuou oficialmente a união
entre a Igreja e o Estado, “sendo proibidos os sacrifícios aos deuses pagãos,
fechados os seus templos e arreadados os bens respectivos, abolidos os
oráculos e os mistérios e vedado o culto dos Lares e Penates”.[87] Em seu
livro Church and State, A. Taylor Innes advoga a mesma teoria, embora
geralmente atribua-se o fato à era de Constantino.
Pelo grande Teodósio foi promulgada a legislação penal contra a
heresia. Nada menos de quinze éditos publicou contra os heréticos,
principalmente contra os dissidentes da Trindade. Eram eles excluídos do
culto e dos empregos públicos e até, em certos casos, condenados a pena
capital. Seu rival, Máximo, pôs a lei em prática, aplicando a tortura e fazendo
morrer à espada o bispo Prisciliano, inclinado ao maniqueísmo. Com ele, seis
adeptos sofreram a mesma pena. O magnânimo Ambrósio de Milão e
Martinho de Tours protestaram contra a intolerância levada ao extremo pelo
déspota usurpador. Segundo Gibbon, “Teodósio considerava cada herege
como um revoltado contra os poderes do céu e da terra; por isso, cada um
desses poderes tinha o direito de exercer sua peculiar jurisdição sobre o corpo
e a alma do culpado”.[88]
Jerônimo não se mostrou oposto à pena capital da heresia, baseado no
Antigo Testamento, e o próprio Agostinho, oriundo do maniqueísmo,
justificava medidas rigorosas contra os donatistas e excluía do reino dos céus
os pequeninos sem batismo. Leão I aprovou a execução dos priscilianistas.
Aquino, com o peso da sua autoridade, classificou os heréticos como mais
criminosos do que os moedeiros falsos, não devendo escapar ao rigor da
espada da autoridade civil. Considerava a heresia como pior do que
assassínio, porquanto destruía a alma, e a lei canônica condenava às chamas
as pessoas convencidas de erros teológicos.
O ponto de apoio não era o Evangelho e sim a lei mosaica e o Antigo
Testamento, que puniam de morte a idolatria, a blasfêmia e outros desvios da
lei sagrada.
A união entre a Igreja e o Estado pôs em efeito a punição temporal da
heresia, cabendo contudo à Igreja a responsabilidade principal como
mandante. Os padres antinicenos tinham o mesmo horror à heterodoxia que
os pós-nicenos e os papas e os reformadores, mas limitavam-se à aplicação
das penas espirituais.
A intolerância levada ao extremo é que moveu Inocêncio III a
incentivar a cruzada contra os Albigenses e Valdenses; acendeu as fogueiras
dos altos de fé, acompanhadas de solenidades religiosas; inventou as torturas
infernais da Inquisição com a aprovação das autoridades eclesiásticas; fez o
cruel Duque de Alba exterminar cinquenta mil protestantes nos Países
Baixos; induziu Carlos IX ao massacre de S. Bartolomeu, em que cerca de
cem mil huguenotes receberam a coroa do martírio, sendo o morticínio
celebrado com júbilo e Te Deum em Roma pelo pontífice Gregório IX, que
mandou cunhar moeda para perpetuar o feito “heroico”.
Luiz XIV, seguindo a mesma senda estreita, revogou o Edito de Nantes
e determinou as terríveis perseguições contra os protestantes, executadas
pelos dragões reais e que por isso receberam a denominação de Dragonadas,
curioso modo de conversão pela violência. O proveito colhido foi o
despovoamento da França, muito embora o preclaro Bossuet houvesse
exaltado o Rei-Sol, comparando-o a Constantino, Teodósio, o Grande, e
Carlos Magno.
A intolerância da Igreja de Roma acendeu, ainda, as fogueiras da
Inglaterra pelo braço de Maria, a Sanguinária; reduziu a cinza Huss e
Jerônimo de Praga; fez arder Savonarola em Florença, e Aonio Paleario e
Giordano Bruno em Roma, bem como ao poeta brasileiro Antônio José, em
Lisboa, e a muitos outros patrícios nossos suspeitos de judaísmo.
Isso é uma pequena amostra dos furores da intolerância, que se o
permitissem as circunstâncias, continuaria a reeditar as mesmas cenas
inquisitoriais em nossos dias. A Igreja de Roma deveria ser a última a
condenar Calvino no caso de Serveto, porquanto ela mesma condenou às
chamas o antitrinitário e o queimou em efígie em Vienne e o teria reduzido a
cinzas se a fatalidade não o houvesse conduzido a Genebra. O mesmo espírito
de intolerância a caracteriza em nossos dias e o Sílabus de Pio IX classifica,
entre os erros do século, a doutrina da tolerância e da liberdade religiosa.
E. Doumergue, ilustre deão da Faculdade Livre de Teologia de
Montauban, que consagrou sua vida a pesquisas sobre a vida e a ação de
Calvino, sendo por isso autoridade incontestável na matéria, no seu bem
documentado livro Calomnies anti-protestantes, tomo I, Contre Calvin, dá-
nos trechos valiosos que provam que o espírito intolerante de Roma não
mudou até agora.
Cita ele, por exemplo, (p. 98) algumas linhas de Bossuet ao bispo de
Montauban, em 12 de novembro de 1700, em que a famosa Águia de Meaux
assim se expressa: “Declaro que sou e tenho sido sempre de opinião –
primeiro, que os príncipes podem constranger, por meio de leis penais, todos
os heréticos a se conformarem com a profissão e práticas da Igreja Católica;
segundo, que esta doutrina deve ser constante na Igreja, que, não somente
tem seguido, mas ainda solicitado dos príncipes ordenanças semelhantes”.
Mais moderno é o sílabus de Pio IX, século e meio adiante do
eloquente Bossuet, no qual documento se consubstancia a intolerância mais
restrita. Meio século depois, em pleno alvorecer do século XX, o mesmo
espírito retrógrado e obstinado se manifesta de modo claro.
É pelo tempo do 4° centenário de Calvino. Os protestantes de Genebra
poucos anos antes da comemoração, em 1903, erigiram um monumento
expiatório, a alguns passos do local onde se acendeu a fogueira de Serveto,
com significativa inscrição, que já demos em outro capítulo e aqui
reproduzimos: “Filhos respeitosos e reconhecidos de Calvino, nosso grande
reformador, mas condenado um erro que foi o do seu século, e firmemente
ligados à liberdade de consciência, segundo os verdadeiros princípios da
Reforma e do Evangelho, temos erigido este monumento expiatório em
XXVII de outubro de MCMIII”.
E o próprio Doumergue proferiu, entre outras palavras: “Nossos pais
foram homens, pecadores portanto. E, precisamente, graças ao respeito, ao
amor pelo Evangelho de Cristo, que eles inspiraram a seus filhos, estes
vieram a distinguir entre as maravilhas que o Evangelho conseguiu por seus
pais e as faltas que estes cometeram em contradição com o mesmo
Evangelho. Eis porque, em nome da solidariedade do sangue e da fé, os
protestantes reformados quiseram fazer emenda honrosa. Eles atestam,
certificam suas mágoas, sua humilhação, tanto mais sincera e dolorosa quanto
tem de filial”.
Por sua vez, os adversários de Calvino erigiram em várias ocasiões,
nada menos de três estátuas ao irrequieto aragonês. Uma delas, em Paris, foi
inspirada pelo agitador Rochefort; a de Anemasse, pelo livre pensador Dide,
que fora pastor em dias mais tranquilos; a terceira, finalmente, em Vienne,
onde Serveto foi processado pela Igreja de Roma.
A propósito, não podemos nos furtar à transcrição dos seguintes
conceitos de Doumergue no seu livro nomeado: “Quando nós, filhos
respeitosos e reconhecidos do reformador, fazemos publicamente o nosso
mea culpa pelo seu erro e sua falta, ninguém poderá duvidar da sinceridade
do nosso pesar e nossa tristeza. Quando os homens da Idade Média ou do
Livre Pensamento ostentam tal ardor em fazer o mea culpa dos outros, ao
glorificar o inimigo e a vítima do nosso reformador, não podemos deixar de
perquirir aquilo que mais os inspira – o “amor” a Serveto ou o “ódio” a
Calvino. Haveria um meio muito simples de tudo esclarecer. Que os homens
da Idade Média fizessem uma vez, entre si, o seu mea culpa de um crime
cometido pelos seus: os Inquisitores, os Papas, os Jesuítas. Que os homens do
Livre pensamento e da Revolução fizessem, do mesmo modo, o mea culpa de
um crime cometido por seus Pais, os revolucionários de 1793 ou de 1871. Até
então estaremos no direito de crer que, ante o horror dos crimes cometidos
pelos outros, há mais “ódio” contra os adversários do que “amor” pelo bem”.
Voltemos porém, ao ponto que íamos ferindo. Um ano depois da
comemoração do centenário de Calvino, apareceu em Roma (1910) a segunda
edição da obra do Padre Lepicier: De Stabilitate et progressu dogmatis
acompanhada de todos os louvores e aprovações possíveis. O autor é portador
de muitos títulos de prestígio: professor de teologia, membro influente de
quase todas as congregações, gozando da confiança do pontífice, além de
tudo.
Nesta obra moderna e favorecida pela aprovação papal, perguntas e
respostas são emitidas referentes à atitude da Igreja em face da heresia.
Doumergue apresenta vários trechos do original latino com a tradução
francesa ao lado. Não os transcrevemos na íntegra para poupar espaço. Vai
apenas uma síntese.
À pergunta se a Igreja Católica tem ainda hoje o direito de punir de
morte os heréticos, responde Lepicier que, se professarem eles publicamente
a heresia, ninguém poderá duvidar de que a Igreja os deva separar do seu
grêmio pela excomunhão e de eliminá-los do rol dos vivos.
À pergunta se S. Tomás tinha razão em dizer que não se deviam poupar
os heréticos menos que os falsários e malfeitores públicos, visto ser mais
grave alterar doutrinas que moedas, responde o teólogo ultramontano pela
afirmativa, confirmando o parecer do Doctor Angelicus. Deve ser o falsário
em doutrinas excomungado e morto para não arrastar outros à ruína pelo
contágio pestífero. Como não há mal em exterminar a besta fera, haverá um
bem em privar da vida o herege.
Em outro ponto afirma que à Igreja, como juiz, compete condenar o
culpado à morte, cabendo porém ao Estado o dever de executar a pena. Esta
doutrina é defendida com vários argumentos. A Igreja é “mãe carinhosa” e,
muitas vezes tem exercitado a misericórdia. Se a sociedade tem direito de
punir de morte o homicida, mesmo quando arrependido, porque negar-se à
Igreja o mesmo direito no caso de infidelidade? Tendo porém horror ao
sangue, vale-se do braço secular como executor.
Eis uma amostra, apenas, dos argumentos do livro em questão,
evidenciando que a Igreja Romana do século XX é a mesma da Idade Média,
do tempo das torturas, dos cárceres e das fogueiras, somente não o pondo em
prática por vivermos em outras eras. É a “mãe carinhosa” que reduz a cinzas
e a pó os “filhos queridos”.
Terminaremos o capítulo, lembrando uma observação de Bungener. O
sistema de Calvino sobre a punição dos hereges não atingia a todos os
heréticos como se dá na Igreja Romana, mas somente nos casos extremados.
Milhares de pessoas morreram pelo crime de professar a “religião dos
protestantes”, feridas pela mão de Roma. Jamais Calvino consentiu na morte
de um católico pelo simples fato de ser “católico romano”. Os Servetos, os
Gruets, os Monnets – homens de ideias subversivas, eis os atingidos – toda a
cristandade de então não os teria poupado.
Os críticos e adversários de Calvino não atentam nestas circunstâncias.
CAPÍTULO XXV. NA FRANÇA E NA
INGLATERRA

Na França e na Inglaterra. Perseguição na França. Influência de Calvino na Inglaterra


e seus conselhos a Somerset. Eduardo VI e suas simpatias ardentes pela Reforma. A
reação de Maria, a Sanguinária. Retrospecto sobre Henrique, VIII em que se prova o
erro de ser o mesmo classificado no número dos protestantes. Filipe II e a tragédia da
“Armada Invencível”.

À “cristianíssima” França estava reservada a missão inglória de enviar


à pira do sacrifício númerosos filhos da Reforma em várias épocas: em Paris
e nas províncias. Já foi citado o morticínio do ano dos “Cartazes”, nos dias de
Francisco I, no tempo de Calvino ainda na França. É também do tempo do
mesmo monarca o massacre dos valdenses, da Durance, em que foram
arrasadas vinte e duas cidades e aldeias, perecendo quatro mil pessoas e
sendo enviadas cerca de setecentas às galés.
No reinado de Henrique II, filho do precedente e esposo da famosa
Catharina de Médicis, sobrinha do pontífice Clemente VII, a onda da
intolerância não diminuiu. Catarina, Montmorensy, os Guises e o cardeal de
Lorena da mesma família, a célebre cortesã Diana de Poitiers e outros
comparsas eram inimigos irreconciliáveis da Reforma e o sangue dos mártires
não cessava de correr. O Edito de Chateaubriand, mandando destruir a
literatura evangélica, fazia lembrar os dias malsinados do imperador Décio,
promotor da sétima perseguição contra os cristãos, o qual empregou a mesma
tática. No curto governo de Francisco II, esposo de Maria de Guise, deu-se o
morticínio de Amboise, quando os huguenotes, convencidos afinal de sua
força, prepararam-se para resistir pelas armas, embora a contragosto de
Calvino.
Na regência de Catarina de Médicis, há a registrar novas hecatombes
de huguenotes em Vassy, em Paris, em Ruão, em Tolosa, na qual o número
de vítimas excedeu a 3.000. Refere Lindsay na sua obra A Reforma (p. 103)
que o morticínio de Tolosa foi comemorado pelos católicos romanos nos dois
séculos seguintes, em 1662 e 1762 e tê-lo-ia sido no terceiro centenário, se
Napoleão III não se houvesse oposto a isso.
Sucederam-se então as guerras religiosas da França, em número de
nove, nos dias de Catarina, quando regente, e de Carlos IX e Henrique III, as
quais culminaram no S. Bartolomeu (1572) de Carlos IX, e só terminaram na
promulgação do Edito de Nantes (1598), no reinado de Henrique IV.
No tempo de Calvino e na época subsequente, constituiu-se Genebra
em refúgio dos perseguidos e, quando acontecia encaminhar-se algum deles
para a França, o suplício o aguardava, como se deu entre outros casos, com
os cinco mártires de Lião, já citados nestas páginas e registrados por Crespin
na sua Histoire des Martyrs, cinco jovens ministros que haviam sido
ordenados em Lausane e levados à fogueira em 16 de maio de 1553, ano do
martírio de Serveto. O episódio trágico é referido em Bungener, à p. 260.
Calvino, impotente para livrá-los, dirigiu-lhes, entretanto, cartas de
verdadeiro conforto bem como a outros mártires de França.
A influência de Calvino ultrapassou os limites de Genebra a atingiu a
Inglaterra, Holanda e outros países, sem falar na França, seu país natal.
As relações do reformador coma Inglaterra tiveram início com a
ascenção de Eduardo VI e na regência de Lorde Somerset, tio do jovem
soberano. Ao Lorde protetor dedicou, em 1548, o comentário sobre a
primeira Epístola a Timóteo. Cita-se uma notável epístola de Calvino ao
regente em que expõe seu parecer sobre a transformação religiosa a ser
operada na Inglaterra.
Para melhor ciência do leitor, vamos dar a síntese do valioso
documento como apresenta Bungener à p. 363 do livro já referido: “Começa
felicitando o Regente por Deus lhe haver posto no coração tão grande obra.
Depositário de autoridade real, tem a faculdade de “reprimir pela espada” os
que se opuserem aos seus projetos; mas o grande recurso é proceder de sorte
que o Evangelho apresente todos os seus frutos de santidade e “aqueles que
fazem profissão do Evangelho sejam perfeitamente restaurados à imagem de
Deus”. Ora três coisas são para isso necessárias: pureza de doutrina,
extirpação de abusos, correção de vícios e de escândalos. Quanto ao primeiro
ponto, um princípio somente é realmente fecundo e para ele deve tender: é o
princípio da justificação pela fé. Mas a fecundidade deste princípio depende
da maneira pela qual é ele enunciado. Daí segue-se uma bela página sobre o
que deve ser ou não uma pregação verdadeiramente cristã. É preciso que o
povo seja “atingido ao vivo” e Calvino teme que tenha havido ainda na
Inglaterra “bem pouca pregação viva”. Ora “sabeis, Monsenhor, como S.
Paulo fala do fervor que se deve mostrar nos lábios dos bons ministros de
Deus, sem que se preocupem com ostentação de retórica para se fazerem
valer, mas que o Espírito de Deus se faça ouvir nas suas palavras”. Que haja,
pois, “boas trombetas que se anunciem no íntimo dos corações, porquanto
risco existe de não ser notado grande proveito na reforma que tendes feito,
por boa e santa que seja, a não ser que esta virtude de pregação seja
desenvolvida devidamente”.
“Sobre o segundo ponto – “abusos” – um único princípio deve ser
estabelecido. É a volta às Escrituras e às várias tradições apostólicas. Sem
lembrar Henrique VIII, que não podia diretamente ser tomado como ponto de
partida, Calvino recomenda que se proscreva tudo o que havia sido
conservado do catolicismo romano, todas as acomodações imaginadas entre o
romanismo e o Evangelho. “Nada que desagrade mais a Deus do que quando
queremos, pela prudência humana, moderar ou diminuir, adiantar ou recuar
além da sua vontade”. A Reforma deve ser a obra de Deus; se não for a
Palavra de Deus que determine soberanamente o que se deva conservar ou
abolir, a Reforma não virá a ser senão a obra do homem, frágil e vã como
toda a produção humana”.
Relativamente ao terceiro tópico – “vícios” – um só princípio ainda:
“reprimir tudo o que se puder reprimir, punir o que merecer punição”.
Somerset aprovou o programa e fez o possível por segui-lo. Os reveses
políticos que lhe sobrevieram não lhe quebrantaram o ânimo e demonstraram
que a religião era uma força íntima na sua vida. Por isso, Calvino o felicitou
pela firmeza e o animou a prosseguir. As Facções políticas, todavia,
conduziram ao cadafalso e piedoso duque.
O jovem Eduardo VI revelava-se, em tudo, uma precocidade. Os
mestres admiravam o seu discernimento intelectual. Suas preferências pela
Reforma nenhuma dúvida deixaram aos contemporâneos. Calvino dedicou-
lhe seus comentários sobre Isaías e as Epístolas Católicas e manteve com ele
correspondência em tom paternal. O pastor Des Gallars, que fora o portador
dos comentários dedicados ao rei, teve em Londres acolhimento benévolo e,
anos mais tarde, no reinado de Isabel,[89] quando a igreja francesa de Londres
pediu à Venerável Companhia de Genebra a colaboração de um pastor, foi
Des Gallars o designado e ali permaneceu por três anos cheio de honras e
atenções.
O primaz da Inglaterra, arcebispo Cranmer, manteve também
correspondência com o reformador, sugerindo planos para a consolidação da
obra da Reforma.
Eduardo VI faleceu aos 16 anos (1553) para a consternação seus
súbditos reformados. Por indicação sua, a sucessão deveria tocar a Joanna
Grey, que havia abraçado as crenças protestantes, mas a sorte foi favorável a
Maria, irmã mais velha do jovem soberano e filha de Catarina de Aragão.
Lady Grey teve como trono o cadafalso. Católica fervorosa, em pouco tempo
a nova rainha tratou da reconciliação com a Igreja de Roma. A influência
espanhola fez-se logo sentir, e efetuou-se em breve o consórcio da rainha
com o sombrio Filipe, filho do imperador Carlos V. De nefanda memória,
pela sua crueldade, veio a ser o soberano espanhol.
Operou-se a reação. Correu o sangue profusamente, reacenderam-se as
fogueiras de Henrique VIII e a infeliz rainha passou à história com o doloroso
epíteto de Maria, a “Sanguinária”. Avolumaram-se as páginas do martilógio
inglês com a submissão da Inglaterra, à qual o Cardeal Reginaldo Pole
absolveu em nome de Júlio II. Cranmer, Rogers, Ridley, Latimer, Hooper,
Ferrar e tantos outros nobres mártires foram reduzidos a cinzas. Os túmulos
de Fagio e Bucer, que haviam sido chamados à Inglaterra, no reinado
anterior, foram profanados, sendo lançados às chamas os despojos dos dois
teólogos de Estrasburgo.
E, já que falamos incidentemente na Inglaterra, não serão demais
algumas palavras sobre o tirano Henrique VIII (1491-1547), que é tido,
geralmente, como o fundador do Protestantismo no seu país e enquadrado no
rol dos protestantes. Entretanto tal atribuição não pode ser feita por
historiador que se preze de ser imparcial e consciencioso. Em boa fé, nada de
tal poderá ser afirmado. O conhecimento do que seja o protestantismo
também não admitirá semelhante juízo. E, todavia, aí estão compêndios de
história a assegurar constantemente a inverdade…
Atrabiliário e despótico, o sanguinário Tudor manifestou-se, no seu
governo, adversário ferrenho do protestantismo. Provemo-lo com fatos.
Quando Lutero iniciava a campanha de reforma, um de seus primeiros
tratados de combate tinha por título: O Cativeiro babilônico da Igreja.
Henrique VIII fez-se, então, de teólogo e campeão de Roma. Publicou contra
o monge de Wittenberg a Assertio septem sacramentorum, livro dedicado a
Leão X, no qual se mostrou familiar de Tomás de Aquino e dos recursos da
escolástica. O pontífice aprovou-o e recompensou o autor com título
pomposo de Fidei Defensor (1521), confirmado dois anos depois por
Clemente VII. O divórcio, que o alienou mais tarde das simpatias pontifícias,
foi sugerido ao rei pelo seu artificioso chanceler, o cardeal Wolsey,
contrariado por não haver cingido a tiara como esperava. De Clemente VII
contava Henrique com a anulação de seu casamento, mas a situação política
do papa não permitia que este se incompatibilizasse com Carlos V, sobrinho
de Catarina de Aragão, esposa de Henrique VIII.
Clamete chegou, mesmo, a redigir o documento da anulação,
confiando-o ao cardeal Campeggio, que levou oito meses na viagem, dando
margem a mudança de situação política. Tal documento foi somente “para
inglês ver”. Mostrou-o apenas ao rei e ao cardeal Wolsey, conforme instrução
de Clemente, tratando logo de consumi-lo[90].
Irritado com o logro, tratou Henrique de levar avante o seu projeto e
não parou, desde então, no caminho da violência. Guiado pelos seus
conselheiros, levou o Parlamento a decretar a supremacia real nos negócios
eclesiásticos. O clero inglês submeteu-se e o Ato de Submissão não só
reconhecia a supremacia real como o direito de promulgar leis e de receber as
rendas, até então, recolhidas à tesouraria pontifícia.
A igreja da Inglaterra continuou a ser “católica romana”; conservava as
mesmas doutrinas, governo e formas de culto. A diferença consistia apenas
em “ocupar o rei o lugar do papa”. O rei e o Parlamento se esforçavam por
conter o movimento da Reforma no país. Ficou de pé o antigo estatuto contra
os hereges, que continuariam a ser queimados como nos bons tempos das
relações com o papado.
Henrique desposou Anna Bolena com a sanção do Parlamento e do
arcebispo de Cantuária. Maria, filha de Catarina, foi declarada ilegítima e a
sucessão transmitida à princesa Isabel, filha de Ana. Seriam tidos como
traidores todos os que se não submetessem ao “Ato de Successão”.
A reação ao decreto se pronunciou em breve e, entre outros, o ilustre
Tomás Morus, nobre católico, e o bispo Fisher tiveram de subir ao cadafalso
por ser recusarem ao juramento da “Sucessão”.
Na questão do divórcio, à consulta feita pelo rei, deram opinião
favorável as universidades de Cambridge e Oxford, na Inglaterra; a francesa
da Sorbona; as italianas de Bolonha, Pádua, e Ferrara, compostas de
elementos católicos. No seio do protestantismo não obteve Henrique a mesma
aprovação. Lutero, Calvino, Zwinglio, Ecolampádio, Bucer, Grynoeus, sendo
consultados, deram parecer desfavorável.[91]
Em 1536, foram promulgados os Dez Artigos, credo doutrinário cujo
fundo era católico romano, preconizado a crença no culto das imagens dos
santos, da Virgem, na transubstanciação, na confissão, no purgatório, etc.,
pontos estes que a Reforma não adotava. Em 1539, promulgou o rei os Seis
Artigos, que ainda mais acentuavam a sua propensão para o credo de Roma.
Foi cominada a pena de morte aos que não se submetessem a tais pontos de
doutrina, pelo que o povo os denominou de Estatuto Sanguinário e Chicote de
Seis Cordas.
No seu governo atrabiliário, católicos e protestantes receberam a palma
do martírio, uns por não se curvarem ante o ato de Sucessão, outros por
motivos doutrinários. Cranmer, o arcebispo, e Cromwell,[92] o conselheiro
político do rei, alimentavam simpatias pela Reforma e fizeram o possível para
desviar, para ela, as atenções de Henrique VIII. Tudo debalde, porém.
A Reforma, portanto, recusa-se a aceitar o “presente” de Henrique
VIII, que Roma insiste em lhe conceder a todo o transe. Viveu e morreu
como católico romano, embora alienado do papa.
No reinado de seu sucessor imediato, Eduardo VI (1547-1553),
caminhou a Inglaterra na direção da Reforma. Cranmer viu-se em liberdade
para dar desenvolvimento às ideias protestantes. Teólogos reformados foram
chamados do continente como Bucer e Fagius, de Estrasburgo; Pedro Mártir,
de Florença; Bernardo Occhino, de Sienna. Aparecem o Livro de Homílias, o
Catecismo e o Livro de Oração Comum. Abolidos os Seis Artigos
sanguinários, surgiram os Quarenta e Dois, reduzidos a trinta e nove nos dias
de Isabel.
Com o advento de Maria (1553-58), deu-se a restauração católica, já
mencionada. Somente no reinado de Isabel (1558-1603) firmou-se o trinfo
definitivo da Reforma na Inglaterra.
Roma, então, pelo braço de Fillipe II, aparelhou a “Armada Invencível”
para esmagar a Inglaterra. Evolaram-se, porém, como o fumo, as esperanças
de Roma e de Filipe. Contra toda expectativa, a brilhante esquadra do Duque
de Medina-Sidôonia e do Duque de Parma, famosos capitães da época,
encontrou a mais formidável derrota, não obstante haver sido abençoada por
Sixto V, o pontífice reinante. Deus lutou pela Inglaterra por intermédio dos
elementos. “A tragédia da armada foi um poderoso sermão pregado ao Papa e
às nações protestantes, tendo por texto a salvação da Inglaterra pela mão
divina…”.
A própria Espanha confessou isso. Na Inglaterra e nos países
protestantes foram rendidas solenes ações de graças. Na Holanda foram
cunhadas medalhas comemorativas e Teodoro de Beza celebrou o feito em
versos latinos.
O cântico patriótico de Moisés e dos filhos de Israel poderia ser
repetido nas vasta extensão das praias da Inglaterra: “Cantai ao Senhor
porque sumamente se exaltou, lançou no mar o cavalo e o cavaleiro… O
inimigo dizia: “Perseguirei, alcançarei, repartirei os despojos, fartar-se-á a
minha alma deles, arrancarei a minha espada, a minha mão os destruirá”.
Assopraste com teu vento, o mar os cobriu: Afundaram-se como chumbo em
águas veementes”. (Êxodo 15.2, 9-10).
CAPÍTULO XXVI. INFLUÊNCIA DE CALVINO

Influência das ideias calvinistas na Inglaterra e Escócia, na Holanda e na Alemanha.


Entre os valdenses. Calvino, o consultor da Reforma na França. Os refugiados de
Genebra. Calúnias contra Calvino em representá-lo como instigador de sedições e
violências, testemunho baseado em cartas apócrifas. Interferência de Calvino em favor
dos oprimidos da frança.

No capítulo precedente, mencionamos a influência de Calvino na


Inglaterra, no efêmero reinado de Eduardo VI, quando seus conselhos e
sugestões foram tomados na devida consideração.
No reinado de Maria, muitos protestantes de destaque foram encontrar
asilo em Genebra, vários dos quais vieram a galgar elevadas posições no
reinado subsequente. Entre eles, se enumeravam os tradutores da versão da
Bíblia de Genebra, que muito veio a dever a Calvino e a Beza, e se tornou a
mais popular das versões inglesas até o meado do século seguinte, quando a
substituiu a versão de 1611.
No reinado de Isabel, a influência da teologia Calvinista não foi
pequena na Inglaterra, prolongando-se até os dias do Arcebispo Laud. As
Institutas tiveram larga popularidade no país e tornaram-se o texto clássico
nas universidades, sua autoridade não sendo inferior a de Lombardo e Aquino
na Idade Média. Nos “Artigos” de Lamberth (1595) e nos “Artigos
Irlandeses” do Arcebispo Usher (1615) é patente a influência calvinista na
doutrina da eleição.
Na Escócia, mais acentuada ainda foi a posição calvinista. O herói
nacional da Reforma, o piedoso João Knox, assentou-se aos pés de Calvino,
nos dias da “Sanguinária”, e tornou-se no dizer de Schaff, mais calvinista que
o próprio Calvino. Seu nome se emparelha com os dos reformadores mais
notáveis: Lutero, Zwinglio, Calvino e Melanchton.
A igreja de Genebra tornou-se o modelo da igreja da Escócia na
doutrina e no governo. Schaff, tantas vezes citado, refere-se da seguinte
maneira, à p. 819 do 2ª vol., sobre a reforma suíça: “No século dezessete, o
presbiterianismo escocês e o puritanismo inglês combinaram-se para uma
reforma mais radical e formularam os rigorosos princípios do calvinismo
puritano em doutrina, disciplina e culto. O padrão de Westminster de 1647
tem, desde então, regido as igrejas presbiterianas e, em parte, também as
congregacionais ou independentes, como as igrejas batistas regulares do
império britânico e dos Estados Unidos com as modificações exigidas pelo
progresso da teologia e da vida da igreja”.
Na Holanda, a influência de Genebra não foi coisa vã.
Duas eram as correntes teológicas da Reforma: a luterana e a
calvinista ou reformada. A segunda suplantou a primeira na Holanda e em
outros países, tornando-se a religião oficial da pátria do “Taciturno”.
O martirológio da Reforma, nos Países Baixos, assinalou considerável
porcentagem nos dias de Carlos V e Filipe II. No cálculo do doutor Schaff, o
número de vítimas sob a influência dos sobreditos monarcas espanhóis,
colunas da Igreja de Roma, excedeu ainda o dos mártires do cristianismo na
era das perseguições, nos três primeiros séculos, ao embate dos imperadores
pagãos. Quem diria que tal acontecesse.
A confissão Belga, de 1561, foi adotada como símbolo das igrejas
reformadas da Bélgica a da Holanda. Veio depois da reação do arminianismo,
mas o Sínodo de Dordrecht fez a vitória pender para o calvinismo. Os
cânones do referido concílio deram ênfase aos famosos “cinco pontos”:
decreto ou eleição incondicional, expiação limitada, depravação total, graça
irresistível, perseverança dos santos.
Na própria Alemanha, onde predominava o luteranismo, foi largo o
influxo da teologia calvinista. Pelo espaço de três anos colaborou Calvino no
edifício da Reforma na pátria da imprensa, no seu estágio de Estrasburgo. Foi
amigo de Melanchton e respeitador de Lutero. Tomou parte conspícua em
três dos “Colóquios” ou Conferências entre teólogos luteranos e católicos
romanos. Seu nome foi aposto à confissão de Augsburgo, depois de revista.
Era Calvino partidário de uma federação das igrejas suíças e luteranas,
mas elementos radicais apressaram a separação entre os dois ramos. A igreja
reformada firmou-se no Palatinado e o Eleitor Frederico III promoveu a
elaboração do Catecismo de Heidelberg, hábil produção de Oleviano,
discípulo de Calvino, e Ursino, discípulo de Merlanchthon. As igrejas
reformadas da Alemanha o adotaram, bem como as da Holanda, Suíça e
Hungria. A forma do calvinismo alemão sofreu alguma modificação, no dizer
do historiador referido, através da influência luterana.
No eleitorado de Brandenburgo, João Sigismundo (1613) adotou um
calvinismo moderado.
Os valdenses pertencem ao grupo de precursores do Protestantismo na
Idade Média. Pedro Valdo foi quase contemporâneo do Patriarca de Assis e
os dois aproximaram-se no ideal da “pobreza”. Grande foi o número de
adeptos, o pontífice Alexandre III chegou ao ponto de permitir as pregações
do antigo mercador de Lião, permissão depois retirada, ante o número
crescente de prosélitos, caindo sobre eles a excomunhão do Concilio de
Verona (1184). Não fosse o receio de nova defecção na igreja, e talvez ao
Poverello[93] esperasse igual sentença.
Francisco I oprimiu, cruelmente, os valdenses. As principais cidades do
Merindal e Cabrières, e mais vinte e oito vilas foram então destruídas. O
benigno cardeal Sadoleto intercedeu em favor deles, sem poder todavia
impedir o massacre, “Ces gens-là sont meilleurs que nous” (estas pessoas são
melhores que nós), disse então pleiteando a causa deles[94].
Os seguidores de Valdo aderiram à Reforma em 1532 e a Confissão
Valdense, baseada sobre a Galicana, é de fundo calvinista.
Na França, foi considerável a influência do Reformador.. Francês de
origem, somente em 1558 recebeu os foros de cidadão de Genebra. Na
França, fez seus estudos e abraçou a causa da Reforma. Foi no seu país de
origem que prestou os primeiros serviços à causa reformada e, não fosse a
perseguição de Francisco I, ao qual dedicou as notáveis Institutas, não
haveria talvez emigrado da pátria.
De Genebra tornou-se o consultor da Reforma na França e deu aos
huguenotes regras de doutrinas e governo. A Confissão Galicana de 1559
teve dele o seu primeiro esboço. Seu discípulo Chandieu desenvolveu-a,
sendo apresentada por Beza a Carlos IX, no Colóquio de Poissy, em 1561.
No sínodo de La Rochelle, dez anos depois, a referida Confissão levava as
assinaturas da rainha Joana de Navarra e de seu filho, depois Henrique IV da
França, dos príncipes de Condé e Nassau, de Coligny, Chatillon e outros
notáveis.
A igreja francesa fazia constantes apelos a Calvino, pedindo instrução e
conselho e também pregadores e pastores.
Escritores católicos, como Bossuet e outros, inculpam Calvino de ser o
responsável pelas guerras civis na França. A acusação não procede porquanto
os reformadores pregavam a Reforma pela palavra, no terreno das ideias e
nunca pela espada. A intolerância do papado explica melhor essas
campanhas.
Genebra constitui-se em refúgio dos perseguidos de outros países. No
começo daquele século contava a cidade doze mil almas, e treze mil em 1543.
De então até 1550 o número ascendeu para vinte mil. Da França, da Itália, da
Inglaterra, da Holanda, da Espanha afluíram os perseguidos em busca de um
lugar onde pudessem desfrutar a liberdade religiosa. Segundo Gaberel,
somente no reinado de Henrique II, quatrocentas famílias francesas ali se
estabeleceram. Entre os homens distintos de vários países, que se fixaram em
Genebra, contavam-se Cordier, Colladon, Etienne, Marot, Ochino, Caraccioli,
John Knox e Whittingham.
A influência moral de Calvino não se limitou às igrejas reformadas nos
países já citados. Fez-se notar, igualmente, na Polônia, Hungria, Boêmia e
Itália.
A propósito da interferência de Calvino nas igrejas da França, convém
acrescentar alguns pormenores.
A despeito de seu natural austero, Calvino era contrário aos meios
violentos na propaganda das doutrinas. Os seus adversários costumam citar
duas cartas do reformador dirigidas ao Marquês Du Poët, assaz deprimentes
para o caráter de quem as escreve. Voltaire – o cético, Audin, d’Artigny e
outros não cansam de multiplicar citações no intuito de aviltar o reformador.
Na primeira dessas cartas, de 8 de maio de 1547, costuma-se apontar um
trecho que fala do egoísmo do autor: “É preciso que cada um cuide do seu
interesse; eu tenho só negligenciado o meu, do que grandemente me
arrependo”. A segunda, datada de 13 de setembro de 1561, mostraria a
intolerância feroz num trecho como este: “Não errareis por certo em
desembaraçar o país de tratantes consumados que, em seus discursos,
exortam o povo a se ligar contra nós e intentam tratar de ilusão a nossa
crença. Monstros semelhantes devem ser suprimidos como o realizei aqui, na
execução do espanhol Miguel Serveto”.
Apesar do grande cadebal que os adversários de Calvino têm feito
destas cartas, Bungener (p.401) chega à conclusão de serem as mesmas
apócrifas. A letra não é a de Calvino nem de seus secretários conhecidos, o
estilo é diferente do seu e até erros ortográficos se encontram. O mais curioso
são os anacronismos patentes. Na primeira o Marquês é chamado de “Geral
da religião do Delfinado”, quando, naquela data (1547), ainda não havia
igreja organizada na região, havendo somente mártires obscuros, e o Marquês
era ainda católico romano. Na segunda (1561) é chamado “governador de
Montélimart e camareiro mor de Navarra”, dignidades de que Du Poët foi
revestido somente dezenove anos depois da morte de Calvino (1584). A
falsificação é patente. Não só Bungener mostra isso como o faz o competente
E. Doumergue (p. 37) em seu valioso opúsculo Calomnies contra Calvin.
Esta nota de fanatismo vulgar é contestada nas relações do reformador
para com o Protestantismo na França. Em sua carta o barão de Des Adrets,
(Bungener p. 402) condena fortemente as desordens de Lião: “É preciso que
vos esforceis e, sobretudo, corrijais um abuso em nada tolerável. É o de
pretenderem os soldados pilhar cálices, relicários e outros objetos dos
templos”. O violento barão, mais tarde. reconciliou-se com a igreja de Roma.
Quando a Reforma entrou no caminho da política, na França, Calvino
tornou-se a isso desfavorável. Os únicos combates e triunfos que lhe são
dignos – costumava dizer – são os sofrimentos de seus mártires, pagos já por
tantas conquistas.
Vem a propósito o que se deu na conspiração de Amboise, movimento
reacionário dos huguenotes contra a ferocidade dos Guises, (Designação
depreciativa que os católicos franceses deram aos protestantes, especialmente
aos calvinistas, e que estes adotaram.) contra a feracidade dos Guises, a qual
teve La Renaudie como chefe ostensivo, que pereceu em combate, e Condé
como instigador.
Calvino não concordou com a resistência, muito embora os adversários
vejam nele um incentivador da reação. Em carta a Coligny, condena os fatos:
“Antes perecêssemos todos cem vezes a expormos a igreja a tal opróbrio”. O
mesmo espírito manifesta nas duas animadoras epístolas Aos fiéis de França,
em junho e novembro de 1559. Nelas, a oprimida igreja francesa, “igreja sob
o peso da cruz”, é estimulada a combater apenas com as armas espirituais.
Quando o povo amotinado atacou a assembléia religiosa da rua de S.Jacques,
em Paris, perseguição que conduziu à fogueira vários dos fiéis, entre os quais
nobres damas, a exortação de Calvino não destoava de seu proceder anterior.
Isso não significava de sua parte desinteresse para com os perseguidos.
Vejamos, a respeito, uma das páginas de Guizot na sua Vida de
Calvino, p. 341: “A opinião de Calvino sobre a necessidade de submissão era
tão forte que, algumas vezes, dizia que um homem não deveria usar violência
mesmo para escapar da prisão ou salvar-se do martírio. Além disso, dizia, que
o martírio havia sido a poderosa contribuição para a vitória da igreja cristã
primitiva; e quando a causa de Deus exigia mártires, era de dever a
submissão. Esta demasiada severidade e o pio entusiasmo não o impediam,
porém, de usar de toda a influência ao alcance e empregar todos os recursos
morais e políticos a favor dos reformados perseguidos, prisioneiros e mesmo
às portas do martírio. Não se contentava em fazer o que estava em seu poder,
escrevendo, pregando, insistindo e pleiteando diante dos opressores; induzia
todos os governos favoráveis aos reformados, e capazes de exercer para com
eles influência benéfica, a interceder a favor dos mesmos. Enviava agentes,
auxilio legal, protetores indiretos, dinheiro e assistência de todo o gênero. E
quando se via impotente para desviar a perseguição ou diminuir-lhe a
intensidade, quando soava a hora do martírio, empregava todo o zelo cristão
em esforçar a coragem das vítimas, prodigalizando-lhes todas as provas de
simpatia, e levando-as a confiar em Deus e na Divina justiça. Os perseguidos
de Nimes, em 1537; os valdenses torturados e maltratados cruelmente na
Provença e no Delfinado em 1545; os fugitivos e mártires de Lião em 1552; a
igreja de Paris e as vítimas de ataques aos reformados na rua S. Jacques, em
1556 e 1557, e em muitos outros lugares e ocasiões; os fugitivos e mártires da
reforma francesa receberam de Calvino auxílio valoroso e conforto fraternal”.
Eis uma ideia da influência notável do Reformador.
CAPÍTULO XXVII. NA FRANÇA E EM
GENEBRA
Trabalhos literários de Calvino. Sua atuação na organização do Protestantismo
francês. Bases do seu sistema eclesiástico. As guerras de religião na França. Esfera de
ação de Calvino em Genebra. A Academia instituída.

Este capítulo é complemento necessário do precedente, ambos


demonstrando a atividade salutar do reformador de Genebra.
Os anos e os achaques não atenuaram os labores de Calvino. Trabalhou
até o fim, no meio de frequentes enfermidades e de lutas com adversários
ferrenhos, além dos afazeres ordinários.
Seus trabalhos literários avultam. Wylie classifica-os em noventa e seis
obras. E Gaberel observa que “sua saúde, quando veio ele a primeira vez a
seu futuro país, era tal que teria reduzido à inação qualquer homem vulgar.
Mas Calvino aprendia a subjugar os sofrimentos pelo domínio de sua
vontade. Exibia, em si, o fenômeno visto algumas vezes no caso dos grandes
capitães, aos quais, nas vésperas da batalha, voltava a saúde após
enfermidades perigosas; devendo-se notar, contudo, que o anormal, em tais
casos, era a condição normal de Calvino”.[95]
Sua influência, no terreno doutrinário, em vários países e seu interesse
na divulgação das ideias evangélicas, que adotara, são fatos estabelecidos.
Assim é que seu Catecismo foi dedicado às comunidades protestantes
nas províncias austríacas. O comentário sobre a epístola aos Hebreus
consagrou-o ele a Sigismundo Augusto, soberano da Polônia. A Suécia e a
Dinamarca não foram esquecidas na dedicatória do comentário dos Atos dos
Apóstolos -- na primeira parte ao rei Cristiano I, na segunda a seu filho
Frederico, conforme observa Wylie. Na edição que possuímos, contudo, a
dedicatória é feita ao príncipe Radziwill, chanceler da Lituânia. No
comentário aos Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, foi contemplado o
duque Cristóforo, do Wurtemberg, e assim por diante, sendo considerados em
todas as suas obras reis e príncipes de várias nações, bem como pessoas
nobres e distintas, e amigos que lhe eram caros, como Marthurin Cordier
entre outros.
Em referência a sua atuação na igreja francesa, bem poderia ser ele
apelidado de Apóstolo da França.
Até 1559, a igreja protestante francesa não possuía organização regular
e foi sob a inspiração de Calvino que se constituiu em Paris, em 25 de maio
daquele ano, o primeiro Sínodo nacional. Onze igrejas apenas estavam nele
foram representadas: as de Paris, St. Lô, Dieppe, Angers, Orléans, Tours,
Poitiers, Saintes, Marennas, Chatellerault, St. Jean d’Angély, sob a
presidência do pastor F. Morel.
Lançaram-se, então, as bases da reforma francesa, segundo o sistema
calvinista. “A Confissão de Fé compunha-se de quarenta artigos, diz G. de
Félice na História dos Protestantes de França, os quais abrangiam todos os
dogmas considerados como fundamentais no século XVI: Deus e sua
palavra, a Trindade, a queda do homem e seu estado de condenação, o
decreto de Deus para com os eleitos, a redenção gratuita em Jesus Cristo
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, a participação nesta graça pela fé
concedida pelo Espírito Santo, os característicos da verdadeira igreja, o
número e a significação dos sacramentos, etc.[96]
A disciplina continha também quarenta artigos. Mais tarde foi
desenvolvida, dividindo-se em quatorze sessões, abrangendo duzentos e vinte
artigos, conservando, porém a mesma redação e as ideias capitais.
A igreja local é o ponto de partida, tendo o seu culto regularizado pelo
consistório. Acima dela vem o Colóquio ou grupo de igrejas, representada,
cada uma, pelo pastor e um ancião ou presbítero. O Colóquio celebrava duas
reuniões anuais. Mais acima estava o Sínodo Provincial, constituído por um
grupo de Colóquios. Reunia-se uma vez por ano e cada igreja enviava ao
mesmo, o pastor e um presbítero. Elegia os pastores, sendo a escolha
ratificada pela igreja respectiva. Finalmente, vinha o Sínodo Nacional que se
pronunciava sobre os casos mais importantes. Cada sínodo provincial se fazia
representar nele por dois pastores e outros tantos presbíteros.
Foi Calvino o inspirador desta constituição eclesiástica, que serviu de
base ao presbiterianismo. Era um sistema de governo democrático. Os
presbíteros que tomavam parte nos concílios eram os representantes
imediatos do povo, eleitos pelas congregações religiosas.
Calvino não era em tudo fortemente oposto ao episcopado, desde que o
bispo fosse considerado como superintendente, como o indica a etimologia
do vocábulo. O erro consistia em considerar o ofício como um direito divino,
uma superioridade mística, sobre os ministros inferiores. Conforme
Bungener, Calvino, nas Institutas, deixava o episcopado à liberdade das
igrejas. Em carta a Sigismundo II, da Polônia, aconselhava o estabelecimento
de um episcopado polonês, no caso de rompimento com a igreja de Roma.
Dirigindo-se a Somerset, na Inglaterra, fala do ofício dos bispos e dos curas.
“Aceita o fato na Inglaterra porque já o episcopado estava ali em existência e
o aconselha na Polônia porquanto julga não poder ser de outro modo. Na
França não o admitia porém. A igreja reformada da França deveria ser uma
verdadeira república, austera, alheia a tudo o que a pudesse alterar na forma
ou enfraquecer no espírito”.[97]
Depois daquele primeiro sínodo francês as igrejas se multiplicaram por
todo o país. Não é um grupo humilde de plebeus sobre os quais desce a fúria
dos católicos reis da França, subservientes às inspirações do Pontífice. São
cidades e províncias e a fina flor da nobreza francesa. É a rainha de Navarra,
Margarida, irmã de Francisco I; é sua filha Joana e Antônio de Bourbon,
esposo desta; é a duquesa de Ferrara, filha de Luiz XII; é o príncipe de
Condé, é Anne de Bourg, é Coligny, um dos mais belos caracteres do seu
tempo, seu irmão Andelot e tantos outros.
O “homem de Genebra”, como chamavam a Calvino na corte francesa,
devia ficar satisfeito com o movimento que se operava na sua terra e para o
qual tanto concorria o seu prestígio pessoal.
Em 1561, dois anos após a formação do Sínodo Nacional, realizou-se o
famoso Colóquio de Poissy, convocado pela corte de França, que alimentava
a esperança de um acordo entre Roma e a Reforma. Calvino não compareceu,
mas o Conselho de Genebra nomeou Teodoro de Beza como seu enviado,
com valiosa carta de recomendação redigida por Calvino a Antônio de
Bourbon, rei de Navarra que, mais tarde, fraqueou em suas convicções, mas
na ocasião cerrava fileiras em torno dos protestantes. Tamanha era a erudição
e a eloquência de Beza que o cardeal de Lorena, adversário tenaz dos
huguenotes, chegou a exclamar: “Prouvera Deus que ele fosse mudo ou que
nós fossemos surdos!”[98]
Políticamente, não deu resultado a assembléia de Poissy, mas serviu
para mostrar a força do protestantismo no país. A pedido de Catarina, a
rainha mãe, Coligny forneceu uma lista das igrejas organizadas na França,
subindo já o número a duas mil e cinquenta, nada menos. Só no período de
1555 a 1563, trezentas igrejas se fundaram.
O número impressionou. Daí o Edito de janeiro de 1562, reconhecendo
aos hunguenotes certos direitos que, aliás, não vieram a ser respeitados. Daí o
massacre de Vassy, traiçoeira agressão contra o culto protestante, a que se
seguiram outros ataques a lugares de culto em Paris, Sens, Tolosa, Ruão, etc.
O famoso massacre de Vassy veio a ser o início das sangrentas guerras de
religião, em número de nove, que ensoparam desangue o solo da França e
que só terminaram com a ascensão de Henrique IV, de Navarra, e a
promulgação do Edito de Nantes, que se adiantou mais em princípios de
tolerância, diz Lindsay, do que qualquer outro edito do século XVI.
O príncipe de Navarra não tinha, porém, a constância de sua nobre
progenitora , Joana de Albret, e não hesitou em preferir o trono da França ao
opróbrio de Cristo. Abandonou os seus irmãos hunguenotes e,
calculadamente ,fez-se católico, entendendo que “Paris valia bem uma
missa!”
O edito de Nantes (1598) atenuava em alguma coisa a fraqueza de
Henrique IV. J. A. Bost, em seu Dicionário de História Eclesiástica, observa
que o decreto, embora estabelecendo o catolicismo como religião do estado,
assegurava aos reformados, em 92 artigos e mais 56 cláusulas secretas, a
liberdade de culto mediante certas reservas, bem como certa independência
política e muitos lugares de seguro abrigo.
Luiz XIII, por influência do clero, pelo edito de Nimes, em
1629, restringiu essas garantias, que foram sendo cada vez
mais reduzidas até que Luiz XIV, em 1685, revogou o pouco que restava do
prudente edito de Nantes, obrigando os protestantes a emigrar do reino com
grande detrimento para a nação, que se viu então privada de elementos de
maior valia que foram colaborar na grandeza de outros países. Luiz XV, por
intermédio de seu regente, pelo edito de 14 de maio de 1724, nos 18 artigos,
ordenava a pena de galés perpétua para os homens e de reclusão perpétua
para as mulheres que assistissem a exercícios religiosos estranhos à igreja
católica. Pena de morte decretava a lei contra os pregadores protestantes e de
galés contra os que lhes dessem auxílio ou os não denunciassem. À imitação
do decreto de Faraó, nos dias de Moisés, as parteiras teriam agora de avisar
os padres dos nascimentos ocorridos e todos os recém-nascidos teriam de ser
batizados catolicamente dentro de vinte e quatro horas, sob pena de serem
tratados os pais como relapsos. Só poderiam ser realizados casamentos
segundo os cânones da Igreja. Todos deveriam ir ao catecismo até os vinte
anos e assim por diante. Tressau, bispo de Nantes, foi o inspirador de tal
decreto, digno dos imperadores pagãos. Em uma palavra: todos seriam
obrigados a ser católicos sob pena de morte e de galés ou de reclusão
perpétua.
Luiz XV não se limitou a isso. Em 1745, baixou novas leis restritivas.
Nos lugares onde se demorasse um pastor protestante, teriam as ovelhas uma
multa de três mil libras. Quem não desse denúncia de assembléias
protestantes teria os seus bens confiscados. Miséria, galés e morte aos filhos
da Reforma! Era o cúmulo da intolerância.
Melhores tempos surgiram entretanto. Em 1787 Luiz XVI teve de
formular o Edito de Versailles, medida de tolerância, reconhecendo a
existência legal do Protestantismo. Partira a proposta do ilustre Lafayette na
Assembléia dos Notáveis.
A ação de Calvino, em Genebra, se estendia em variadas direções.
Observa Bungener que, além de teólogo, o antigo discípulo de Alciati era
também jurisconsulto. Não foram sem proveito os seus conhecimentos de
jurisprudência. Nos arquivos de Genebra, encontraram-se multidões de autos
por ele anotados. Nas questões civis, são dignos de menção sua sagacidade e
seu conhecimento das leis; nos negócios criminais, é notável a sua
severidade, principalmente para com aqueles que praticavam o mal, tendo
conhecimento do bem. Ao jurista une-se igualmente o diplomata. Em
negociações, a penetração e o conselho de Calvino não se podiam dispensar.
As missões mais delicadas, as cartas políticas de mais responsabilidade eram
confiadas à sabia redação de Calvino, como, por exemplo, as respostas dos
magistrados de Genebra ao duque de Sabóia e a Carlos IX, rebatendo
acusações contra a atuação de Genebra nos negócios religiosos.
Até nos negócios comuns, e mesmo nos ofícios e indústrias, era
indispensável o parecer de Calvino. Robert Étienne, o famoso impressor,
consultava-o e deveu boa parte do seu êxito aos conselhos do reformador.
Quando alguém se propunha a exercer em Genebra um novo oficio ou
profissão, o Conselho encaminhava à presença de Calvino a pessoa nisso
interessada, que exibia os seus produtos ou os executava à vista do
benemérito cidadão de Genebra. O parecer deste era ouvido respeitosamente
pelo Conselho.
Se aparecia um cirurgião para exercer em Genebra os seus serviços,
Calvino era convidado a assistir ao exame a que o Conselho submetia o
pretendente. Certo dia apareceu um dentista, propondo-se não só a extrair
dentes – a que se limitava então a arte – mas a restaurá-los. O reformador
confiou sou boca ao profissional, para experiência, e recomendou-o depois ao
Conselho. Em 1544, favoreceu a introdução de manufaturas de veludo e
outros tecidos, que vieram a ter grande cotação na França.
Sua diligência volvia-se até para regulamentos policiais. Nos mercados
não se poderiam fornecer gêneros deteriorados; estabeleceu regras de higiene
e asseio; nem se esqueceu também do serviço de proteção aos menores.
Coroa dos trabalhos de Calvino veio a ser o estabelecimento da
Academia de Genebra, alvo a que se dirigiam seus esforços continuados. O
antigo Colégio, a que Farel consagrara seu empenho, estava longe de
corresponder às necessidades da época pela deficiência de organização. A
estímulo de Calvino, o Conselho, desde 1552, adquirira terreno conveniente.
Por seis anos havia sido impossível dar começo às obras. Calvino então
promoveu uma subscrição nacional e o edifício começou a erguer-se. Deu-se
a inauguração em 5 de junho de 1559, numa segunda ferira, onze dias após a
organização do primeiro sínodo nacional na França.
Foi um dia solene nos anais de Genebra. Na inauguração, houve um
serviço religioso na Catedral de S. Pedro, sendo a oração proferida por
Calvino, que dirigiu a solenidade. Anunciada a escolha do primeiro reitor,
honra conferida a Teodoro de Beza, pronunciou o eleito notável discurso em
latim, terminando Calvino o serviço com ações de graças a Deus.
Os começos eram humildes. Cinco professores apenas formavam o
quadro: dois de teologia, um de hebraico, outro de grego e outro de filosofia.
Em seu discurso inaugural, Calvino prometera cursos de direito e medicina
para mais adiante. O de direito foi inaugurado um ano depois de sua morte.
Com o andar dos tempos a Academia tornou-se uma Universidade. O
reformador limitou-se a ensinar teologia no notável instituto.
A subscrição nacional produzira dez mil florins. Calvino foi visto por
vezes no meio dos operários, animando os trabalhos, apesar do seu precário
estado de saúde, ainda em convalescença de um sério ataque de febre quartã.
Na pedra angular do edifício, havia significativa inscrição em hebraico:
“O temor de Deus é o princípio da sabedoria”.
A Academia era verdadeira obra de Calvino. O edifício ainda se
conserva, embora com algumas modificações. Nele, admira-se a biblioteca do
grande homem, testemunha silenciosa de suas vigílias, de suas enfermidades,
de sua morte.
Escutemos ainda um trecho eloquente de Bungener, abalizado biógrafo
do reformador: “A verdadeira criação de Calvino é Genebra inteira. A
Academia é apenas uma parte, ligada ao todo fortemente, profundamente.
Genebra docente não era diferente de Genebra religiosa. Genebra religiosa
não se distinguia de Genebra moral e política. Calvino era tudo. Ia ser ela
conservada não só internamente, pela sua forte unidade, mas exteriormente,
pela persistência dos povos que buscavam nela aquele cuja fisionomia ficava
gravada na memória e cujo pensamento se confundia, no espírito, com o de
Genebra. O mundo protestante como o católico iam impor-lhe igualmente,
um pelo amor, outro pelo ódio, a obrigação de conservar-se ela como a
cidade de Calvino, à impossibilidade de ser outra coisa, se mais nada quisesse
ser”.[99]
A Academia de Genebra foi um verdadeiro sucesso. Mais de oitocentos
estudantes de teologia foram ali consagrados para a propagação do evangelho
na França e na Alemanha, na Itália, na Espanha, na Boemia, na Holanda, na
Inglaterra e na Escócia. Em períodos subseqüentes, foi a Academia de
Genebra honrada com a presença de ilustres homens da ciência que nela
ocuparam a cátedra, vultos como Causabon, Scaligero e Holtoman.
Em Genebra, fulguraram também Saussure, Bonnet, Pictet, Condolle e
Malan, para somente citar uns poucos.
Guizot aperfeiçoou seus conhecimentos naquele centro de luzes.
Naquele tempo entrara Genebra no domínio da França, mas observa o
historiador francês que o sistema educativo estabelecido por Calvino
continuava em vigor. Revoluções internas mudaram a face de Genebra, mas a
obra do reformador prosseguia.
Em referência ainda aos dias de Calvino em Genebra, Goguel[100]
chama a atenção para a multidão de oficinas tipográficas da cidade – trinta e
oito – em que duas mil pessoas se ocupavam na impressão de Bíblias e
literatura de controvérsia, obras estas que eram introduzidas nos países
vizinhos com risco de vida dos que se entregavam a aquele trabalho de
abnegação. Genebra, diz o citado biógrafo de Calvino, fez luzir bem alto a
sua lâmpada e tornou-se a grande escola das nações.
A prosperidade da república excitava o ciúme do clero de que eram
instrumentos dóceis o duque de Saboia e o monarca da França, que dirigiu ao
Conselho uma epístola cheia de queixas e ameaças. Referindo-se a Genebra,
dizia o pontífice Paulo IV ao duque de Saboia que “era no ninho que se devia
esmagar a cobra”.[101] Foi este papa o instituidor da Congregação do Índice.
Mas os anátemas pontifícios não conseguiram empanar o brilho da “Roma do
Protestantismo”.
CAPÍTULO XXVIII. O DOUTRINADOR

Influência do calvinismo na Reforma. Michel de Bay e as doutrinas agostinianas.


Confronto entre Inocêncio III e Calvino. Doutrinas características do calvinismo. Os
cinco pontos. A soberania de Deus. Lord Morley e o prof. Kuyper sobre o calvinismo.

No dizer de Bossert, “o calvinismo primitivo é o protestantismo


militante e martirizado”.
Foi o calvinismo, tão perseguido na França, o ramo protestante que
mais influiu no Cristianismo da Reforma. Santo Agostinho havia sido o
preferido entre os doutores da Igreja pelos teólogos protestantes, o que levou
os teólogos da Igreja Romana a fazerem estudos especiais sobre o famoso
bispo africano. A universidade de Louvain, nos Países Baixos, tornou-se o
centro de tais estudos na segunda parte do século da Reforma, sendo Michel
de Bay ou Baius, o que inaugurou tais estudos, tendo por alvo combater o
Protestantismo com suas próprias armas.
O certo é que Baius não encontrou heresia nos pontos fundamentais em
que os protestantes se apoiavam no grande bispo, como, por exemplo, na
doutrina da queda e da graça. Da escola do teólogo de Louvain saiu o
jansenismo, introduzido em Paris por Jansenius, no começo do século XVII.
Os jansenistas, porém, embora protestando submissão ao culto romano,
sustentavam, com os reformados, a mesma doutrinas sobre o ponto
fundamental da salvação. Bossert explica o jansenismo como um calvinismo
com pretensões a ortodoxia. Calvinistas e jansenistas, diz ele, mantém um
traço comum: a austeridade dos costumes; defrontaram-se, com um mesmo
inimigo: os jesuítas. Sucumbiram ambos aos golpes do absolutismo real.
Wylie, externando-se sobre a personalidade de Calvino e a influência
que exerceu no período de sua atividade, procura estabelecer um confronto
entre o reformador e o maior dos Papas, Inocêncio III. Por ser interessante o
paralelo, vamos traduzir nestas linhas o seu pensamento de abalizado
historiador do Protestantismo: “Inocêncio pretendia reger o mundo mediante
processos puramente espirituais e por sanções inteiramente divinas. Homem
de gênio compreensível, e incansável em atividade, escreveu cartas,
promulgou editos, convocou assembleias, aperfeiçoou a doutrina, decretando
a transubstanciação, e completou o seu governo mediante a Inquisição.
Graças a esse aparelhamento e, mais ainda, mediante a terrível ameaça do
interdito, fez-se o senhor de todos os tronos da Europa, sendo sua vontade
obedecida até aos mais remotos confins da Cristandade. João Calvino
afirmou, com Inocêncio, que a vontade de Deus, estabelecida na Escritura,
deveria ser a suprema lei do mundo. Mas os resultados que regulavam este
princípio entronizado em Roma eram inteiramente opostos aos que
dimanavam em Genebra pela operosidade de Calvino. Inocêncio derrubou
tronos; Calvino imprimiu-lhes firmeza e dignidade. O poder de Inocêncio
mergulhou as nações num estado de servidão; o de Calvino conduziu-as à
libertação. Inocêncio espalhou a semente do barbarismo; semeou Calvino o
germe da virtude e da inteligência. Qual o motivo de resultados tão diversos
em bases que pretendiam a mesma origem: no início, nos intuitos e no alvo?
Nisto, simplesmente: Inocêncio privou do uso da Palavra de Deus as nações,
pelo motivo de atribuir-se o ofício de intérprete infalível da mesma. Calvino
expôs o sagrado volume às vistas dos povos, assegurando a todos o direito do
livre exame. Mostrou-lhes, também, o caminho pelo qual deveriam chegar ao
conhecimento da verdadeira significação. Deste modo, Inocêncio fechava e
Calvino abria as comportas da influência divina no mundo. Mais breve:
Calvino dominava mediante Deus; Inocêncio, como se fora Deus”.[102]
Alto relevo ocupará sempre o reformador Calvino entre os moralistas e
ensinadores religiosos de todos os períodos.
Suas Institutas, seus judiciosos e opulentos Comentários, os sermões,
tratados e escritos diversos, fazem ver nele o homem bem diferente daquele
que é retratado pelos adversários ou por aqueles que o conhecem apenas de
modo perfunctório, eivados ainda de sombrio preconceito, derivado da leitura
de periódicos e de livros tendenciosos.
Ch. Irwin, já citado algumas vezes, que escreveu modernamente
atraente monografia sobre o teólogo de Genebra, expendeu interessantes
conceitos sobre o caráter dele como doutrinador. Vamos, por nossa vez,
apreciá-los em alguns pontos.
Um dos aspectos característicos da doutrina de Calvino é o da
predestinação. E, todavia, tal doutrina não lhe é peculiar. Foi Agostinho o seu
inspirador e, em um dos seus tratados, refere Calvino como o profundo
teólogo do norte da África era censurado por isso e como sabia responder
habilmente aos seus contraditores. Ambos, porém, tiveram mais alto
inspirador no apóstolo dos gentios, Paulo de Tarso. No oitavo capítulo da sua
epístola aos Romanos, encontramos o famoso reduto da doutrina calvinista:
“E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles
que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. Porque os que
dantes conheceu também os predestinou para serem conforme a imagem de
seu Filho; para que seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que
predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também
justificou; e aos que justificou a estes também glorificou” (Rm 8.28-30). No
capítulo nono da mesma epístola e no primeiro da epístola aos Efésios, a
referida doutrina é prescrita de modo inconfundível.
Tampouco a doutrina o absorvia demasiado conforme se supõe.
Comenta Bossert que, na primeira edição das Institutas, a predestinação dos
eleitos e dos reprovados não aparece de modo explícito. Parece que se foi
desenvolvendo aos poucos na mente de Calvino. Na edição de 1539 vem em
forma sistemática e na tradução francesa de 1541. Mais desenvolvida ainda
se expressa a edição latina de 1559 e na francesa de 1560.
Preceitua o dogma que todos os homens pecam e continuam a pecar,
merecendo por isso a condenação. Deus, porém, levado por um puro efeito de
sua benevolência, resolveu salvar certo número da multidão dos perdidos.
São estes os eleitos, que serão chamados oportunamente ao grêmio da igreja,
no seu aspecto visível ou invisível. As bases da eleição filiam-se na soberania
divina. Uns são eleitos, outros postos de lado. S. Paulo assim qualifica o
tópico: “O que Israel buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram e
os outros foram endurecidos” (Rm 11.7). A eleição é eterna, visto não estar
Deus subordinado aos limites do tempo; irresistível, porquanto nada se opõe
à vontade divina. A eleição se exercita na vocação, que pode ser externa ou
universal, no caso da extensão da pregação do evangelho a todas as nações, a
crentes e descrentes; interna ou particular, no caso dos fiéis que recebem a
iluminação interior quando chamados para a salvação.
O dogma da predestinação tem dado origem a muitos debates e sido
encarado sob vários aspectos pelos teólogos dos diferentes ramos em que a
Cristandade tem estado dividida. A doutrina é aceita com restrição por
alguns, ampliada por outros. Agostinho teve impugnadores. O monge
Gottschalk levou a doutrina à forma extrema, incluindo o elemento de
reprovação, e daí se originou violenta controvérsia em que se salientaram
Prudentius, Ratramnus, Scotus e outros. Na Idade Média, foi abraçada pelos
tomistas e rejeitada pelos scotistas. Anselmo, Lombardo, Bradwardini,
Wycliffe e Hus não lhe foram estranhos. Lutero, Zwinglio, Calvino, Knox e
outros reformadores reviveram-na. Nas suas diferentes formas –
infralapsarianismo, supralapsarianismo, universalismo hipotético etc., tem
abrasado as escolas. No sínodo de Dordrecht venceram os infralapsarianos,
sendo condenadas as doutrinas de Arminius. Não poucos têm pretendido
atenuar a doutrina, eliminando-lhe o caráter sombrio da reprovação dos
ímpios.
O sínodo holandês supra referido sancionou a forma moderada do
calvinismo. Foram estabelecidos os célebres Cinco Pontos do calvinismo:
decreto absoluto, contra eleição condicional; redenção particular, contra
expiação universal; depravação total contra graça comum suficiente ou
capacidade de salvação; graça irresistível, contra graça vencível;
perseverança dos santos, contra possibilidade de cair da graça.
As três doutrinas entre si relacionadas: predestinação, reprovação dos
ímpios e escravidão da vontade em contraposição à doutrina do livre arbítrio,
encontraram forte oposição de muitos. Observa, contudo, Irwin que não
constituíam elas o aspecto principal do ensino religioso de Calvino.
Lange assim se expande sobre a predestinação: “As duas grandes
pedras de tropeço que embaraçam o desenvolvimento teológico da doutrina
da predestinação eram, de um lado, a falsa concepção singular da presciência
divina, do outro, incapacidade de harmonizar a ideia da preordenação
absoluta com a ideia da justiça divina. Com respeito ao primeiro ponto, é
evidente que quando os arminianos admitem a presciência divina, mas negam
a preordenação, fazendo depender da fé e do arrependimento a eleição e a
reprovação, tornam insustentável a concepção deles da presciência de Deus,
porquanto a presciência divina é alguma coisa mais do que o conhecimento
profético do futuro. Em relação a Deus, conhecer e agir são atos idênticos. A
presciência de Deus é criadora. Há, consequentemente, entre presciência e
predestinação, a relação necessária de um termo geral para o específico. Com
respeito ao último ponto, a dificuldade tem sido solvida de vários modos, dos
quais são mais notáveis a chamada teoria da eleição nacional e a do
individualismo eclesiástico. A teoria da eleição nacional limita a eleição a
comunidades e nações; isto é, somente tais entidades são por Deus
predestinadas ao conhecimento da verdadeira religião e aos privilégios
externos do evangelho ou a privações de tais coisas. A teoria do
individualismo eclesiástico estende a predestinação ao homem individual,
não o fazendo em absoluto com respeito à eleição ou reprovação. É ainda
limitada à igreja visível e aos meios de graça. Ambas as teorias representam
verdadeiros fatos evangélicos e estão, conseguintemente, presentes de modo
implícito na doutrina calvinista da predestinação, como a formulou Calvino e
foi estabelecida na Confissão Galicana e na Belga, e um tanto mitigada na
Helvética e no Catecismo de Heidelberg”.[103]
Um dos pontos capitais, na teologia de Calvino, é a doutrina da
soberania de Deus, a que dedica largo espaço nas Institutas. Tal ensino,
levando a confiar na Providência, livra a alma de aflições e de cuidados. A
ideia da Paternidade Divina esta incluída na da Soberania. Ele a ensina de
modo bem enfático e confortador nas Institutas, e em várias de suas obras.
Era doutrina comum entre os reformadores, e Lutero consagrou-a no célebre
hino “Castelo forte é o nosso Deus”, baseado no salmo 46.
Outro aspecto importante no seu ensino era a teoria de um elevado
ideal do caráter. Devido ao fato de se baterem, Calvino e seus companheiros,
pela doutrina da justificação pela fé e não pelas obras, salvação gratuita pela
fé na expiação de Cristo – muito deturpada tem sido a posição dos
reformadores por adversários pouco escrupulosos. Eles não pregavam o
antinomismo, isto é, o desprezo dos mandamentos divinos, nem insinuavam
que a salvação estava garantida ao que cresse, qualquer que fosse a maneira
de viver. Não pregavam a salvação pelas obras, porquanto ninguém se poderá
salvar por seus méritos pessoais. Para um ato meritório que se encontre em
nós haverá mil atos maus que nos conduzam à perdição. Ensinavam, porém, a
prática das boas obras como prova da verdadeira fé. S. Paulo o inculcou em
notável passagem de sua epístola aos Efésios: “Porque pela graça é que sois
salvos mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras
para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Jesus Cristo
para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos
nelas” (Ef 2.8-10).
Lutero, no seu valioso tratado sobre a Liberdade Cristã, que vem
precedido de uma epístola a Leão X, afirma maravilhosamente o ponto em
questão. Torcem maliciosamente o seu pensamento os que os que insinuam
haver ele ensinado que deveríamos permanecer no pecado para que
abundasse a graça divina. O calvinismo com o luteranismo sustentavam que a
eleição era para uma vida de santidade. Os cristãos deveriam dar a nota na
sociedade por um caráter exemplar. Calvino, pois, sustentava a necessidade
de uma vida pura como prova da sinceridade cristã. O cristão deveria possuir
o sentimento da comunhão constante com Deus. Deveria usar de
benevolência para com o próximo, considerando em cada um o valor da
imagem divina. “Lembremo-nos de que não devemos considerar a
perversidade dos homens, mas devemos contemplar neles a imagem divina”.
Resumindo, a doutrina da Reforma, praticada hoje em dia nas igrejas
evangélicas, preceitua que devemos produzir boas obras, não para sermos
salvos por meio delas, mas em prova de já estarmos salvos pela fé nos
méritos de Cristo.
Conseguintemente, da doutrina da “soberania divina” resulta a da
responsabilidade do homem perante Deus.
Irwin cita Lord Morley no seu Oliver Cromwell, o qual assim se
exprime a certo trecho: “Nada menos do que formar no homem uma nova
natureza era o alvo de Calvino: regenerar o caráter, simplificar e consolidar a
fé religiosa. Adquirem ideia mesquinha de Calvino os que o julgam apenas
como pregador da justificação pela fé e inimigo da mediação sacerdotal. Seu
plano compreendia uma doutrina que se dirigia à própria raiz da relação do
homem com o plano universal de todas as coisas: uma ordem eclesiástica tão
intimamente firme como a de Roma; um sistema de disciplina moral tão
conciso e imperativo como o código de Napoleão. Sobre isso construiu uma
certa teoria do universo que por sua agência exerceu influência extraordinária
sobre o mundo. É uma teoria que, na aparência levaria o homem a mergulhar
no abismo do desespero e de fato tem sido responsável por muitas angústias
em corações humanos. Todavia, o calvinismo deu provas de ser um solo
magnífico para a formação de naturezas heroicas”.[104]
E o professor Kuyper, nas preleções de Princeton, em 1898, assim se
exprimiu: “Agora perguntaremos que teria sido da Europa e da América se,
no século XVI, a estrela do calvinismo não se houvesse subitamente erguido
no horizonte da Europa Ocidental? Neste caso, a Espanha teria esmagado os
Países Baixos. Na Inglaterra e Escócia, os Stuarts teriam levado a efeito seus
planos fatais. Na Suíça, o espírito não legitimamente sincero deveria ter
prevalecido… Todo o continente americano teria permanecido sujeito à
Espanha… Se o poder espanhol não tivesse sido quebrado pelo heroísmo do
espírito calvinista, a história dos Países Baixos, da Europa e do mundo teria
sido dolorosamente triste e sombria quanto agora, graças ao calvinismo, é
brilhante e inspiradora”.[105]
CAPÍTULO XXIX. CARÁTER E HÁBITOS DE
CALVINO

Apreciação do caráter de Calvino. Seu lado físico e intelectual. Sua sobriedade


admirada por estranhos. Afabilidade de maneiras a despeito de aparências contrárias.
Sua pretensa infalibilidade. Outras acusações sem base.

Schaff, expendendo-se em conceitos sobre a personalidade do


reformador, observa que o caráter de Calvino é daqueles que reclamam mais
respeito e admiração do que afeto. Tornam-se tais caracteres mais apreciáveis
porém, quando mais intimamente conhecidos. “Aqueles que julgam de seu
caráter e conduta, diz ele, pelo caso de Serveto, e de sua teologia pelo
decretum horriblile – veem as manchas do sol, mas não o próprio sol.
Levando em conta todas as suas falhas, deve ser julgado como um dos
maiores e melhores homens que Deus fez aparecer na história do
cristianismo”.[106]
Calvino tem sido diversamente apreciado por juízes competentes,
críticos severos e adversários irreconciliáveis. O cético Renan, dissentindo
muito embora os conceitos teológicos do doutrinador de Genebra, considera-
o como “o maior cristão do século em que viveu”. Foi qualificado de
“Aristóteles da Reforma”, de “Tomás de Aquino da Igreja Reformada”, de
“Licurgo da democracia cristã”, de “Papa de Genebra”. Como figura
eclesiástica, não faltou quem o comparasse a Gregório VII e a Inocêncio III.
Pierre Bayle disse dele: “Era o homem a quem Deus havia conferido
grandes talentos, muito espírito, juízo delicado, memória fiel, pena vigorosa,
eloquente e infatigável, grande saber, grande zelo pela verdade”. Emílio
Faguet, em seus Études Littéraires sobre o século XVI, p. 195, citando o
conceito acima, acrescenta: “Este juízo sóbrio e calmo de nosso caro Pierre
Bayle não deve ser reformado. Mostra-se justo. É incompleto. Calvino
mostrou-se um grande espírito que não foi diminuído nem desvirtuado e
poderia ter sido mais amável e mui provavelmente mais poderoso do que foi,
um coração magnânimo”.
Era Calvino de frágil presença corporal, de estatura mediana, franzino,
pálido, macilento, de saúde precária. A este retrato acrescenta-se que era de
feições firmemente cinzeladas, boca bem formada, barba ponteaguda, cabelos
negros, nariz preeminente, fronte espaçosa, olhos flamejantes.
No seu próprio entender, considerava-se tímido e pusilânime, mas era
daqueles que, temendo o perigo à distância, sabem encará-lo com ânimo e
vigor quando dele se aproximam. Seu valor aperfeiçoava-se na fraqueza
natural. Haja vista a sua atitude no conflito com o partido libertino e perante
os adversários de Genebra. Sua coragem sublimou-se na posição que tomou
na Catedral de S. Pedro, quando se opôs aos que, profanamente, queriam
participar dos elementos sagrados.
Seus dotes intelectuais eram notórios: memória tenaz, percepção viva,
entendimento agudo, raciocínio seguro, são juízo, manejo pleno da língua,
cultor emérito da Renascença, mestre no latim e no francês, sólido
argumentador, mente perfeitamente disciplinada.
Ordeiro e metódico nos hábitos trajava-se com asseio. Austero nos
costumes, mostrava-se severo para com os outros, mas para si não usava de
menos rigor. Dormia pouco e trabalhava muito. Era abstinente. Por muitos
anos limitava-se apenas a uma refeição diária. Schaff compara-o a um dos
profetas hebreus: um Elias cristão. Seu símbolo – já referido em outro local –
era o da mão oferecendo a Deus em holocausto um coração abrasado, em
chamas.
De ânimo impulsivo, levava às vezes o zelo à intolerância, como no
caso Serveto. Seus defeitos eram, todavia, atenuados por suas virtudes.
Lutando pelo ideal de uma Igreja pura aos olhos de Deus, não se poupava a
rigores. Era implacável para com os heréticos e pronto a erguer-se contra os
erros de doutrina e de costumes.
Não se deixava absorver pelos bens materiais. Rejeitou aumento de
estipêndio, recusava presentes e vivia com muita sobriedade. Em
Estrasburgo, seus proventos não lhe permitiam muitas regalias e teve de
admitir pensionistas em casa. Já foi referida a visita que lhe fez o cardeal
Sadoleto e o espanto de que foi tomado ao ver que o “Papa de Genebra” não
habitava num palácio episcopal e sim numa modesta habitação e, em vez de
um cortejo de servidores, era ele mesmo o porteiro que o saía a receber.
Conta-se do papa Pio IV que, ao ouvir a notícia da morte de Calvino,
rendeu-lhe tributo de admiração nestas palavras: “A força deste herege nisto
consistia: o dinheiro não tinha para ele a mínima atração. Se tivesse eu servos
tais, meus domínios se estenderiam de mar a mar”.[107]
Por sua morte deixou, apenas, no testamento, trezentas coroas, que
legou a seu irmão Antônio em boa parte, ficando o restante para fins
religiosos. Em prova de seu escrúpulo e do desprendimento sobre bens desta
vida, cita-se uma carta sua a Cristofer Piperin, referida à página 238 da obra
supra de Schaff, em que atesta nunca haver disposto de um ceitil do dinheiro
que lhe davam para fins beneficentes. Relata o caso de certo homem de
posição que morreu em sua casa e tinha confiado duas mil coroas à sua
guarda, sem nenhum documento. Vendo em perigo a vida do seu hóspede,
recusou continuar com o depósito, a despeito da insistência do enfermo.
Apenas, por sugestão sua, oitocentas coroas foram remetidas para socorro dos
refugiados de Estrasburgo. O restante foi distribuído, não por seu intermédio,
mas por meio de outras pessoas e não quis receber uma parte que o enfermo
lhe queria destinar. A carta assim termina: “Mas se durante a minha vida não
escapei à fama de ser um homem rico, a morte indicará por fim esta
imputação lançada ao meu caráter”.
Com efeito, o seu testamento provou a parcimônia de sua fortuna e a
imputação caluniosa de seus adversários. Bolsec, o carmelita que tanto o
caluniou, não perdeu o ensejo de assacar-lhe mais uma calúnia, a propósito
dessas duas mil coroas do hóspede moribundo, acusando o reformador de
apropriação indébita.
Sobre sua vida doméstica foi também caluniado bem como sobre o
trato social. Em outros capítulos temos referido estes fatos. Vamos porém
mencionar mais um trecho do judicioso Schaff, tantas vezes citado: “Tendo
sido ele, muitas vezes, acusado de frieza e falta de afeto social e doméstico;
isso, porém, muito injustamente. O capítulo de sua vida que trata de seu
casamento e vida doméstica, e as cartas da morte da esposa e do filho único
falam o contrário. A acusação provém de uma inferência errônea de sua
doutrina sombria da reprovação eterna; mas era ela repulsiva aos seus
próprios sentimentos, aliás ele não a chamaria de “decretum horrible”. Ensina
a experiência que, mesmo hoje, o calvinismo mais rígido não raras vezes se
une a uma disposição amável e doce. Calvino era austero, digno, reservado,
guardando à distância respeitável os estranhos; mas como observa Beza, era
jovial em sociedade, desculpando os defeitos da natureza humana. Tratava os
amigos como iguais, com franqueza e cortesia, e também com bondade
afetuosa. E todos eles dão testemunho deste fato, dedicados e fiéis como lhe
eram.
Os mártires franceses dirigiam-lhe cartas de gratidão pelo fato de terem
sido confortados no cárcere e na tortura ante a paciência e resignação
recebidas por suas palavras. Segundo Guizot, “ele conquistava afeto devotado
dos melhores homens e estima de todos sem que o mesmo os pudesse
agradar”. No testemunho de Tweedie, “possuía o poder secreto e inexplicável
de atrair os homens por laços que somente o pecado ou a morte separariam.
Eles recolhiam cada palavra que saía de seus lábios”. Entre os seus mais fiéis
amigos viam-se muitos homens e mulheres do seu século, de caracteres e
disposições diferentes como Farel, Viret, Beza, Bucer, Grynaeus, Bullinger,
Knox, Melanchton, a rainha Margarida, e a duquesa Renata. “Sua vasta
correspondência é um nobre monumento ao seu coração e intelecto, e uma
refutação suficiente a todas as calúnias”.[108]
Outra calúnia atribuída a Calvino é a de que se arrogava o dom da
infalibilidade.
Kampschulte, escritor católico, biógrafo do reformador, foi um dos
acusadores em tal matéria. Eis suas palavras, no vol. I, p. 276, citadas por
Doumergue: “Calvino declara, nos termos mais rudes, que sua concepção das
verdades cristãs é a única legítima. Chega a reclamar verdadeira
infalibilidade”.
O escritor católico cita, em prova, J. Bonnet, (Lettres françaises, I, p.
398). Eis as palavras de Kampschulte: “E nisto não devo ser acusado de
presunção – escreve, por exemplo, Calvino ao Senhor d'Aubeterre – como se
eu cuidasse ser mais sábio do que os outros.
Visto como Deus me fez a graça de me declarar o que seja bom ou
mau, necessário é que eu me cinja a esta regra”.
Eis o trecho acusatório do escritor católico. Ouçamos agora a defesa
produzida pelo abalisado Doumergue, que consagrou sua vida a estudos
especiais sobre Calvino.
A palavra declarar usada por Calvino não significa conhecimento ou
revelação sobrenatural. O contexto da carta indica somente que se trata da
vontade de Deus revelada na Escritura e assim feita conhecer a Calvino. Mas
o trecho, não considerado isoladamente, tem outro sentido. Eis o que diz
Calvino na mesma carta: “Confesso que seria enorme presunção de minha
parte fiar-me no meu próprio entendimento, cuidando ter melhor juízo que os
outros. Mas a questão não é de quem seja mais sábio por si… Deus desaprova
tudo o que não concorda com a sua vontade e onde haveremos de encontrar o
comprazer de Deus senão na Santa Escritura? Ora, se eu vejo uma coisa
contrária à Escritura, não devo fugir dela? Ora, até o ponto em que Deus me
concedeu a graça de ler e escutar pacientemente, necessário se torna que lhe
seja obediente”.[109]
Nada pois se poderá concluir da pretensão de infalibilidade imaginada
por Kampschulte.
O mais curioso, porém, é que embora escrita por Calvino, a famosa
carta era apenas uma minuta destinada a outrem. Estava Calvino no seu papel
de conselheiro. O jovem Aubeterre de alguma sorte o consultara em como
deveria escrever ao seu progenitor, que era contrário à doutrina reformada.
Calvino dá-lhe a minuta e ele encaminha a carta a seu pai como se fosse
escrita por ele mesmo. A firma seria dele, mas o pensamento de Calvino.
Duas provas temos em favor disso. Uma delas consiste no trecho da carta:
“Conquanto seja eu jovem e possivelmente inconstante…”.
A carta é de 1553, quando Calvino tinha 44 anos de idade. A segunda
prova consta de uma nota que vem apensa ao livro de Bonnet, no fim da
página citada: “Em anotação do punho de Charles de Jonviliers (o secretário
de Calvino): Calvino escreveu esta carta para um fidalgo chamado Aubeterre,
para que a enviasse a seu pai, que era contrário à Palavra, e isso no mês de
maio de 1553”.
Sem respeito a essas considerações, eis Kampschulte a fazer de
Calvino um orgulhoso consumado e despótico, com pretensões à
infalibilidade! São assim os juízos apressados…
Curiosa é ainda a outra referência de Doumergue sobre a acusação do
mesmo gênero no Courrier, folha ultramontana de Genebra, que se
aproveitou de trecho de outra carta de Calvino dirigida às autoridades de
Genebra: “Quanto a mim, magníficos senhores, estando certo na minha
consciência de que aquilo que tenho ensinado e escrito não se originou no
meu cérebro, mas o recebi de Deus, é preciso que o mantenha”.
E o Courrier comentou: “Eis um doutor que assegura ‘possuir’ sua
teologia de Deus e não do homem e que está resolvido a ‘mantê-la’: pretende
ou não ser infalível este homem?”
O jornal ultramontano, porém suprimiu a última parte do trecho de
Calvino, que dizia: “Se eu não quisesse ser traidor à verdade, como penso ter
já suficientemente respondido”.
Calvino, como no caso de Aubeterre, não está atribuindo a si os
sentimentos que lhe emprestam. O que quer significar é que a doutrina que
professa não vem do homem, mas da revelação de Deus na Bíblia.[110]
Tais são muitas das acusações não só contra Calvino, mas contra
Lutero, Zwinglio e outros reformadores. São comentários por vezes
apaixonados, precipitados, em torno de trechos isolados e muito desvirtuados
do sentido.
O valor moral de Calvino não diminui diante das insinuações
malévolas e mesquinhas de um Bolsec, de um Gallife, e outros escritores de
tal quilate, eivados de preconceitos mil, que nada de bom julgam poder
admitir em personagem que se divorcia da igreja dominante. “De Nazaré
pode sair coisa que boa seja?” – diziam os judeus do tempo de Cristo (Ev. de
S. João, 1.46).
Citaremos outra acusação. É a de haver Calvino ensinado que o povo
deveria ser conservado na condição de pobreza a fim de não se afastar do
caminho da obediência. Observa Doumergue que a nota acusatória foi
renovada por um professor da Faculdade Protestante de Teologia de Vienne.
O professor Loesch, a par de elogios ao reformador, apresenta o fato
censurável, no afã talvez de afetar imparcialidade de juízo. Mas Loesch citou
de segunda mão. Apoiou-se em Kampschulte (I, p. 430), adversário de
Calvino, embora até certo ponto imparcial na obra que escreveu. E, todavia,
deixou-se inspirar na obra de Gallife. Daí o deslize que manifesta em vários
tópicos, porquanto que Gallife se mostra em extremo apaixonado contra
Calvino, não vacilando em descer ao terreno da calúnia.
No tópico de Loesch, baseado em Kampschulte, verificou Doumergue
que este escritor teve de escudar-se nada menos que no suspeito Gallife.
Citemos, porém, Doumegue: “O texto de Kampschulte é por seu turno de
segunda mão; e o de Loesch é de terceira! Ele o recebeu de Kampschulte, que
o havia recebido de Gallife. De tal sorte que Kampschulte, cuja garantia não é
civil, não nos oferece senão outra garantia infinitamente menos civil ainda, de
um inimigo encarniçado, pessoal, de Calvino: Gallife!”[111]
Recorrendo à fonte referida, vê-se que o inimigo de Calvino dá como
prova, o fato de haver o reformador citado a tal frase por ocasião de um dos
processos de Filiberto Berthelier em Genebra. Uma simples afirmação sem
base!
Doumergue examinou os arquivos de Genebra sem resultado
satisfatório. Verificou porém haver Gallife cedido certos documentos à
Biblioteca Real de Paris, de que preparou um catálogo, anotando o qual
afirma, “entre os interrogatórios – encontrar-se o de Troillet, que diz haver
Calvino declarado ‘ser necessário conservar o povo na pobreza a fim de
torná-lo obediente e, mais ainda, que o Conselho Geral deveria ser
suprimido’”.
Daí se vê que a frase mencionada não resiste às provas de uma crítica
severa.
Há muitas impugnações ainda ao caráter de Calvino e que não as
produzimos por amor ao espaço. A tais acusações, de Faguet entre outros,
replica Doumergue documentadamente, como é de regra, no seu livro.
CAPÍTULO XXX. ÚLTIMOS DIAS DE CALVINO

Os padecimentos físicos de Calvino, nos seus últimos dias. Seus últimos


trabalhos. Derradeira visita à igreja. Seu testamento. O adeus de Calvino aos
magistrados de Genebra. Despedida de Farel. O dia 27 de maio de 1564. O
túmulo do Plain Palais. Apreciações sobre Calvino.

Calvino terminou com honra a missão que lhe impusera a Providência,


trabalhando até o último momento como servo fiel e vigilante.
Genebra foi o seu notável centro de ação. Metade quase de sua vida,
um quarto de século, ali permaneceu: Dois anos na sua primeira residência,
quando constrangido por Farel, de 1536 a 1538; mais vinte e três quando
solicitado a voltar pelo Conselho de Genebra, de setembro de 1541 a 27 de
maio de 1564, dia em que o Senhor o chamou à sua presença.
Não conheceu descanso nessa vida. Pastor, professor, homem de
estado, conselheiro, escritor – suas horas estavam sempre ocupadas. A isso
juntemos uma vida de lutas e controvérsias com adversários tenazes. Para
cúmulo, um físico atormentado por enfermidades frequentes.
O ano de 1564 marcou o termo de sua frutífera atividade. Foi aquele o
ano do nascimento de Shakespeare e de Galileu e da morte de Miguel
Ângelo. O ano fatal trouxe consigo o agravamento dos males do reformador.
Em 1559, quando se realizou a inauguração da Academia de Genebra, estava
Calvino em convalescença de um violento ataque de febre quartã, de cujas
consequências jamais se restabeleceu. A isto acrescentemos a tenaz
enxaqueca, que sempre o perseguia e o levava a passar vinte quatro horas
sem tomar alimento, e mais o doloroso mal de pedra e uma dispepsia que o
trazia debilitado. A este cortejo de sofrimentos havia a sobrecarga da gota e
de uma asma torturante que, só por si, torna desconfortável uma existência.
Todos estes incômodos se acentuaram naquele ano. Todavia, cumpria
todos os deveres, com a maior pontualidade, no púlpito, na Academia, no
Consistório, em toda a parte. Seus amigos viam isso com assombro e
solicitavam dele que poupasse as poucas forças que restavam. Queria ser
encontrado vigilante à hora da partida.
Em 2 de fevereiro de 1564 deu a sua última lição e, no domingo
seguinte, que era o dia 6, pregou o derradeiro sermão. Foi um esforço
supremo. Um violento acesso de tosse, provocado pela asma habitual, cortou-
lhe a palavra. O sangue aflorou-lhe aos lábios. Perceberam os fiéis que não
veriam mais no púlpito o pastor venerando.
Seguiram-se dias e semanas de indisível sofrimento em que o paciente
ostentava a coragem e resignação que aconselhava a mártires da Reforma, aos
quais se costumava dirigir nas vésperas de se encaminharem ao suplício. Em
10 de março, o Conselho ordenou preces públicas “pela saúde de Calvino,
indisposto deste muito e mesmo em perigo de vida”. Teria de ser uma agonia
de quatro meses, coroada de um firme testemunho de fé cristã.
O mais curioso é que neste período de amargo padecimento, a mente
do enfermo conservava todo o vigor, que se estendeu mesmo ao último
instante, trabalhando com os seus secretários e vindo a falecer em plena
lucidez. Vale a pena ouvir o depoimento de Teodoro de Beza, conforme
refere Bungener: “Não obstante isso, não cessou ele de trabalhar. Nessa
última enfermidade, traduziu do latim para o francês a Harmonia sobre
Moisés, fez a revisão da tradução de Gênesis, escreveu sobre o livro de Josué
e, finalmente, passou em revista e corrigiu a maior parte das anotações
francesas sobre o Novo Testamento, que outros haviam anteriormente
compendiado. Além disso não se poupou aos interesses da igreja,
respondendo por palavra e por escrito sempre que se fazia necessário; ainda
quando de nossa parte o exortávamos a ter mais cuidado de si mesmo.
Replicava ordinariamente que nada fazia de mais. Que tolerassem que Deus o
achasse sempre vigiando e trabalhando na sua obra conforme ele pudesse, até
o último suspiro”.[112]
Em 27 de março fez-se transportar à casa do Conselho. Levado por
dois assistentes galgou as escadas. Propôs ao senado a nomeação do novo
reitor e agradeceu a Suas Excelências as provas de bondade nesta última
doença. Disse, então, ser aquela a derradeira vez que ali o notariam. Todos
ficaram comovidos. Eis diante deles inválido, o ousado campeão que em
tantas ocasiões fizera sentir a sua notória coragem de cidadão e crente. Uma
semana mais tarde, em 2 de abril, domingo de Páscoa, foi também pela
derradeira vez à Igreja. Recebeu reverentemente das mãos de Beza os
elementos eucarísticos. Suas mãos trêmulas já não traduziam aquela energia
indomável, naquela mesma catedral, quando negara os elementos aos
sacrílegos Libertinos. Um raio de alegria iluminava agora a sua face e com
voz débil entoou o hino: “Despede, Senhor, o teu servo em paz”.
Em 25 de abril fez chamar o notário e ditou-lhe o testamento, que foi
assim prefaciado: “Em nome de Deus, amém. Eu, Pedro Chenalat, cidadão e
notário de Genebra, testemunho e declaro que fui chamado pelo respeitável
João Calvino, ministro da Palavra de Deus nesta igreja de Genebra e cidadão
do mesmo estado, o qual, estando enfermo no corpo, porém são na mente,
referiu-me que era seu intento executar o seu testamento e declarar sua última
vontade e pediu-me para recebê-lo e escrevê-lo conforme ele mesmo
declarasse e ditasse. Afirmo que, imediatamente o fiz, escrevendo palavra por
palavra como foi do seu agrado ditar e declarar; e que nada acrescentei ou
omiti de suas palavras, mas segui a forma por ele expressa”. Segue-se o
documento cheio de humildade e gratidão a Deus, em que reconhece sua
indignidade e deposita toda a confiança na eleição da graça e nos méritos
abundantes de Cristo, pondo de lado a controvérsia e esperando unidade e paz
no céu. Seu reduzido pecúlio, produto aproximativo da venda da biblioteca e
do mobiliário, legou-o a seu irmão Antônio Calvino e aos filhos deste,
fazendo uma pequena doação à caixa dos estudantes pobres e outra aos
estrangeiros necessitados. A propósito, comenta Goguel: “Tudo isso prova o
desinteresse deste homem que havia sido o árbitro da república de Genebra e
de uma parte da Europa ocidental. Sua fortuna não atingia a cifra de 255
escudos!”[113]
Dois dias depois do testamento quis despedir-se formalmente dos
Síndicos e do Conselho de Genebra, desejando mesmo ir até ali.
Conhecedores de seu desejo, não lhe permitiram o sacrifício. Para a
residência de Calvino se encaminharam então, no dia 27 de abril, com os
Síndicos, os Vinte e cinco senhores, com toda a pompa das cerimônias
públicas. Os registros conservaram o resumo do comovente “Adeus” de
Calvino, em palavras modestas, afetuosas, substanciosas porém, como tudo
quanto disse ou escreveu – refere Bungener. Fez referência às bênçãos de
Deus conferidas a Genebra e aos perigos de que a havia livrado. Outros
perigos sobreviriam, mas Deus viria em socorro, caso conservassem
fidelidade ao mesmo. Dessem os magistrados exemplos de fidelidade.
Poderia Genebra ser desonrada pelo procedimento daqueles que velavam por
ela?
Terminando, dirigiu Calvino fervorosa súplica recomendando à
proteção divina os nobres senhores. Depois pediu-lhes perdão de faltas que
contra eles houvesse cometido. Entre lágrimas apertaram-lhe a mão pela
última vez. A atitude da Calvino, então, era como a dos antigos patriarcas,
abençoando e dando os últimos conselhos à família ou à tribo.
O mensageiro celeste tardava em vir. Veio o 19 de maio, antevéspera
do Pentecostes, dia em que os pastores de Genebra costumavam reunir-se em
exercícios espirituais e se exortavam mutuamente admoestação fraternal.
Tomavam em seguida modesta refeição em comum. Determinou Calvino que
naquele dia a refeição fosse participada em sua casa e vinda a hora fez-se
conduzir à mesa. Perante os pastores de Genebra ali reunidos, usou destas
palavras: “Meus irmãos, pela derradeira vez vim ver-vos e depois disso não
me aproximarei jamais desta mesa”. Muitas coisas lhes disse ainda sobre a
gravidade dos seus padecimentos, dirigindo-lhes também conselhos salutares.
Fez, depois, com dificuldade, a oração e tocou apenas no alimento,
esforçando-se por conservar alegres os convidados. Mas seu estado era cada
vez mais precário e antes de terminar o repasto pediu que o reconduzissem ao
leito na câmara contígua. Procurando mostrar-se afável, ponderou: “Uma
parede entre nós não estorvará a nossa comunhão espiritual”. Dali não mais
saiu. Era o seu leito de morte.
No começo daquele mês, em 2 de maio, recebera ele uma carta do
velho Farel, já de setenta e cinco anos, um dos seus maiores amigos neste
mundo. Farel anunciava-lhe a visita. Calvino comoveu-se e ditou a resposta
ao venerável amigo. Assim terminava: “Não quero que por mim te fatigues.
Respiro com dificuldade e de instante a instante aguardo a hora em que me
falte o alento”.
Farel, porém, já se achava em marcha, a pé desde Neuchâtel. O
encontro dos velhos camaradas foi assaz comovedor. Farel quase
octogenário, ainda na liça, como que se revê, triste, mas confortado, no
ousado lutador, agora exausto. Era a sua obra. Sem o apelo veemente de
Farel, o forasteiro de 1536 não teria ficado em Genebra e Genebra não teria
sido o que era agora.
Desde o seu “Adeus” aos pastores de Genebra, antes mesmo, desde a
sua entrevista com Farel, foi o resto dos seus dias uma oração continuada.
Nos acessos mais violentos, nas dores mais intensas, exclamava com o
Salmista: “Emudeci; não abro a minha boca, pornquanto tu o fizeste”
(Salmos 39.9). E nas palavras de Isaías: “Como a pomba, eu gemia” (Is
38.14).
Por vezes, suspiros tomavam o lugar de palavras inteligíveis, mas o
expressivo olhar traduzia a intensidade de sua fé. A dispnéia produzida pela
asma tolhia-lhe a palavra. Muitas passagens da Escritura acudiam-lhe aos
lábios naquelas horas de agonia. Novo Francisco de Assis nos padecimentos,
aguardava com ansiedade a hora do livramento. “Até quando, Senhor?” –
parecia ser a sua divisa.
Surgiu, por fim, o 27 de maio, quando as portas eternas teriam de
receber mais um pecador redimido pelo sangue do Cordeiro. Naquele dia
pôde falar com mais desembaraço. Dormiu pacificamente até o pôr do sol.
Pelas oito horas, quando as trevas caíam sobre a face da terra, o valoroso
soldado das hostes do Senhor, ensarilhava as armas. Gaberel refere que no
momento extremo repetiu ele as palavras de S. Paulo: “Os sofrimentos da
presente vida não podem ser comparados com a glória vindoura”. Não pôde
acabar a última palavra.
Teodoro de Beza assim descreveu a cena: “Eu o havia deixado um
pouco antes, mas, à chamada dos servos, voltei imediatamente com um dos
irmãos. Notamos que havia passado desta vida e muito calmamente, sem
movimento de pés ou de mãos, sem mesmo soltar um suspiro. Não ficara
privado dos sentidos e nem inteiramente privado da palavra até o fim. Parecia
mais adormecido do que morto”.
Continuando a discorrer sobre seu mestre, assim diz: “Desta forma
voou para o céu, quando o sol penetrava no ocaso, o grande luminar que era a
lâmpada da Igreja. Pela noite e pelo dia seguinte imenso era o pesar e a
lamentação na cidade, porquanto a República perdera o seu mais sábio
cidadão e a Igreja o seu pastor fiel, a Academia um mestre incomparável.
Lamentavam todos a partida do pai comum e do melhor confortador abaixo
de Deus. A multidão se encaminhava à câmara funerária e dificilmente se
separava daquele corpo inanimado. Entre os visitantes estava o distinto
embaixador inglês na França, que havia ido a Genebra para travar
conhecimento com o célebre homem e desejava ver agora os seus despojos”.
[114]
O corpo foi envolvido em linho e depositado em um caixão de madeira.
Grande foi o acompanhamento como era de supor. No cemitério de Plain
Palais repousa o reformador, que havia expressamente proibido cerimônias e
honras fúnebres. Observa Schaff, na página citada, que o novo Moisés
desejava ser sepultado fora do alcance da idolatria, o que era consistente com
a sua teologia que humilha o homem e exalta Deus.
Calvino partiu desta vida com cinquenta e quatro anos, dez meses e
dezessete dias.
Uma pequena lápide com as simples iniciais J. C., erigida muito tempo
depois, em ocasião ignorada, assinalou o lugar presumido de sua sepultura.
Nos registros do Consistório uma simples linha indicava: “Chamado à
presença de Deus, no sábado, 27”.
Nenhum monumento, nenhuma inscrição, segundo seu desejo.
Contudo, compôs-lhe Beza um epitáfio em latim, a que denominou
Parentalia, isto é, no funeral de um pai, como o considerava. Eis as palavras
aqui reproduzidas:

“Romae ruentis terror ille maximus,


Quem mortuum lugent boni, horrescunt mali,
Ipsa a quo potuit virtutem discere virtus,
Cur adeo exiguo ignotoque in cespite clausus
Calvinus lateat, rogas?

Calvinum adsidue comitata modestia vivum,


Hoc tumulo manibus condidit ipsa suis.
O te beatum cespitem tanto hospite!
O cui invidere cuncta possint marmora!”[115]

Bungener assim comenta a singeleza da sepultura de Calvino: “Tem-se


visto estrangeiros tomados de indignação, vendo esta pequena lápide, que
aliás a contemplam com maior emoção do que se estivessem diante de um
rico mausoléu, marcando autenticamente o ponto. Este abandono do ser
perecível coloca-vos em face do ser pensante, vivo, imortal já na terra pelo
traço profundo e inefável que Deus lhe permitiu deixar aí… No meio da
decadência moderna, não há figura cuja contemplação acarrete ensinamento
mais útil, porque a nenhum outro homem se pode aplicar com mais justiça a
palavra do apóstolo: “Mostrou-se firme como se tivesse visto o invisível”. É
com tais palavras que termina o escritor sua vida de Calvino.
E o historiador Guizot assim também conclui o seu livro: “Ardente na
fé, puro nos motivos, austero na vida e poderoso nas obras, Calvino é um
daqueles que merecem grande fama. Três séculos nos separam dele, mas
impossível é examinar seu caráter e sua história sem que se experimente,
quando não seja afeto e simpatia, ao menos um profundo respeito e
admiração para com um dos grandes reformadores da Europa e um dos
grandes cristãos da França”.
No terceiro centenário da Reforma em Genebra, em 1835, cunhou-se
uma medalha comemorativa, tendo num lado a imagem de Calvino com o
nome e data de nascimento e da morte. No reverso, via-se o púlpito de
Calvino com o texto: “Conservou-se firme como se visse o invisível” (Hb
11.27), e a inscrição latina: “Corpore fractus: Animo potens: Fide victor:
Ecclesiae Reformator: Geneva Pastor et Tutamen”.[116]
No terceiro centenário do seu falecimento, em 1864, foi inaugurada
em Genebra a “Casa da Reforma”, nos moldes da Aliança Evangélica,
estabelecimento dedicado à pregação do Evangelho e ao impulso das causas
nobres.
No quarto centenário de Calvino, em 1909, houve novas
comemorações e muitas obras foram publicadas sobre o reformador. Entre
outras demonstrações, foi erigido o monumento expiatório de Serveto, na
planície de Champel, conforme ficou mencionado ao tratar-se do lamentável
episódio.
Débil na estrutura física, vigoroso porém na organização intelectual e
moral, simples no viver, austero nos costumes, indefesso no trabalho,
irredutível na fé, erudito no saber, nobre nas intenções, invulgar na coragem,
hábil no raciocínio — soube João Calvino, como poucos neste mundo,
redimir prudentemente o seu tempo e empregar o talento e os dons de que
fora dotado na glorificação do Criador e Redentor de sua alma. O emérito
doutrinador e piedoso homem de Deus ocupará sempre um lugar de destaque
entre os grandes vultos da Igreja, sem embargo dos anátemas que os
adversários de todos os tempos procuram fazer descer sobre sua memória
respeitável.
CAPÍTULO XXXI. CALÚNIAS A PROPÓSITO DA
MORTE DO REFORMADOR

Calúnias contra Ecolampádio e Lutero. Os primeiros rumores sobre a suposta


morte desesperada de Calvino. Calúnias de Surius, Bolsec, Haren,
Cudsemius, Audin, Renauld, Lemoyne. Pulverização do testemunho de
Haren. Testemunhos favoráveis de Mainburg e Nikolaus Paulus. Conclusões
de Doumergue.

Adversários impiedosos, no intuito de macular a memória de Calvino e


dos demais reformadores, não perdem ensejo de reeditar testemunhos
deprimentes, sem se darem ao trabalho de aferi-los pelo padrão de uma
crítica imparcial.
Caluniados na vida, são igualmente vilipendiados na morte, como se
tivessem o vale sombrio do desespero como a última etapa deste mundo.
Ânimos perversos inventaram o mito do suicídio de Ecolampádio,
reformador suíço, cujo corpo teria sido arrebatado pelo demônio. Do mesmo
teor é o suposto suicídio de Lutero, fábula novamente suscitada por Majunke,
padre ultramontano. Nem mesmo a morte trágica de Zwinglio, na batalha de
Cappel na qualidade de capelão militar, escapou à censura impenitente, sendo
tida como manifestação evidente do juízo de Deus.
Testemunhos semelhantes têm sido pulverizados, felizmente, para
confusão do fanatismo mesquinho.
Como era de supor, tão caluniado em vida, Calvino não escaparia da
suspeita de morte infamante, lenda que se desfaz ante os depoimentos de
narradores desapaixonados e imparciais. O primeiro destes rumores surgiu
em Lião, uma quinzena depois da morte do reformador. Estava ali por um
pouco a Corte francesa bem como o secretário do embaixador espanhol, o
qual escreveu sobre boatos que corriam a respeito da morte atribulada de
Calvino, tendo o cuidado, porém, de dizer que o fato era contestado por
muitos. Não demanda muito espaço para boatos se converterem em fatos.
Pouco depois Laurent Surius, da ordem dos cartuxos, em sua Histoire
universelle de 1500 a 1574, inseriu uma nota mais precisa, afirmando, sem
provas, haver morrido Calvino de uma enfermidade pedicular. Sem nenhum
pejo, escreveu no seu livro haver sido este o mais dissoluto entre os homens
dissolutos da cidade, de cérebro doentio, tendo mais aparência de um
demônio do Tártaro do que de um ser humano!
É o competente Doumergue que põe a descoberto estas afirmações
caluniosas de Surius. Aparece, pouco depois, em 1577, o livro de Bolsec, o
antigo monge carmelita que se propõe a narrar a vida e a morte de Calvino,
do qual era adversário rancoroso, livro que dedica ao arcebispo de Lião, e que
é um tecido visível de calúnias contra o reformador, obra repelida por
espíritos imparciais e por consciências retas.
É Bolsec o inventor da “flor de lis”, suposto estigma da mocidade de
Calvino. Valendo-se do fato conhecido do acúmulo de enfermidades que
afligiram os últimos dias do reformador, sem nenhum respeito pela verdade,
foi ao ponto de afirmar haver ele morrido de uma terrível enfermidade, roído
de vermes, suplício empregado por Deus na destruição de inimigos, como
Antíoco, Herodes, Maximiano, Honório, e outros. Teve ainda o desplante de
assegurar que, nos últimos momentos, invocava os demônios e maldizia a
hora em que se havia se dedicado aos estudos e aos escritos. Nenhuma
autoridade invoca, entretanto, para a confirmação de seu depoimento.
Era necessário, pois, testemunho mais valioso que o de Bolsec, no
intuito de denegrir a memória de Calvino.
E os jesuítas, hábeis como sempre, intentaram alguma coisa que
oferecesse mais verossimilhança. Apareceu diante deles o homem de que
necessitavam, na pessoa de Jean Haren, pregador reformado, mas que, novo
Bolsec, havia abjurado suas crenças evangélicas. Para gáudio dos
adversários, não faltam, em todos os tempos, apóstatas semelhantes. Mais de
um tem surgido em nossa terra. O testemunho deles, porém, é sempre
contraproducente.
Apostatando da fé que havia recebido de seus pais, Haren tornou-se
pensionário dos jesuítas e dócil instrumento deles. Reuniram pois uma grande
assistência em Antuérpia, em 9 de março de 1586, com o fim de ouvir uma
conferência do referido Jean Haren ou Harennius, conforme seu nome latino.
Falou este como se fosse autoridade no assunto, visto haver sido ministro
reformado. Descrevendo o fim de Calvino, alegou ter sido testemunha ocular
de sua morte em desespero, atormentado como se achava ele por moléstias
repugnantes. Disse mais que era ele de natural ambicioso, maligno, invejoso,
colérico, maldizente, atrevido, mentiroso e desconfiado.
Da descrição acima, fosse ela verdadeira, depreende-se quão odioso
seria o caráter do reformador, tão engrandecido aliás por outras bocas. A
conferência foi publicada em opúsculos para ter a circulação que se desejava.
A despeito de tudo, o testemunho de Haren veio a cair em descrédito,
de sorte que, no dizer de Doumergue, os panfletários modernos preferem
recorrer a outras fontes. Uma destas é Pedro Cudsemius, apóstata como
Bolsec e Haren, que publicou em 1609, um século depois do nascimento de
Calvino, um pequeno tratado sobre a situação desesperada de Calvino: De
desperata Calvini causa tractatus brevis.
Cudsemius não é mais nobre do que seus antecessores. Bem acolhido
pela cúria romana, começou a maldizer de Lutero que, no seu modo de
entender, havia proposto aos eclesiásticos um paraíso voluptuoso e por esse
“alegre evangelho” Calvino havia abandonado os benefícios eclesiásticos de
cuja posse fora investido. Reproduz as calúnias de Bolsec e de Haren e cita o
primeiro destes como testemunha ocular da morte de Calvino, quando é certo
que o ex-monge havia sido expulso de Genebra treze anos antes dessa data.
Refere-se ao segundo como pastor reformado, quando então já havia
apostatado.
Cudsemius, entretanto, que se baseia em testemunho tão frágil, é citado
como autoridade de valor. O pastor Bernardo Brantius refutou-o logo, ao qual
Cudsemius procurou ainda replicar.
Audin, que escreveu sobre Lutero, Henrique VIII, Leão X e o S.
Bartolomeu, sob o ponto de vista católico, deixou também uma Vida de
Calvino, na qual reedita as mesmas histórias inverossímeis sobre a morte do
reformador. Falando sobre esse ponto, mostra Audin a mesma tendência
notada em todos os que tentam deturpar a memória de Calvino.
Assim é que procura desvirtuar a narrativa de Beza sobre a morte e
sepultamento de Calvino, insinuando haver sido a cerimônia feita às pressas,
tendo havido empenho em ocultar o cadáver das vistas do público para que
não fosse divulgado o gênero da moléstia que vitimara o reformador.
Cudsemius é autoridade para ele. Consta pois haver sido o cadáver
envolvido em um lençol negro, sendo sepultado pelas oito da manhã.
Beza menciona, é certo, o lençol, sem especificar a cor do mesmo e
conta que o enterramento foi verificado pelas duas horas da tarde, não tendo
havido tal precipitação.
Também se refere Audin a certo estudante que se introduziu no
aposento mortuário e ergueu as roupas que cobriam o cadáver, observando
então a moléstia vergonhosa que causara a morte. O estudante de Audin é o
citado Haren ou Harennius, o conferencista de Antuérpia.
Menciona Doumergue outros deturpadores da verdade histórica, os que
enveredaram pela mesma trilha de Audin. Ernesto Renauld é um deles, no
seu livro La conquête protestante, 1900. Tratando de Calvino, confunde
lugares, datas e fatos, reproduz calúnias muitas vezes desfeitas e, referindo-se
à morte do reformador, afirma que se entregou ele a tais excessos que foi
vitimado pela sífilis (!). Também invoca a autoridade de Haren, a quem trata
pelo nome de Arènes, pondo em confusão fatos e dados a respeito do
estudante. O padre salesiano Lemoyne produziu também um livro muito ao
sabor dos que tem empenho em amesquinhar Calvino, livro aprovado pelas
autoridades eclesiásticas e publicado em 1877. Il Tiberio dela Svizera é o
título e por ele poderemos aquilatar do alcance da obra. O padre trata a
Calvino de celerado e dá-lhe outros epítetos do mesmo gênero.
Para resumir, o ponto central do testemunho dos adversários sobre a
morte de Calvino, que teria sido vitimado por moléstia infamante, volve em
torno do depoimento de Haren. Ora, Doumergue, na obra citada, examina o
testemunho, do ponto de vista severo da crítica histórica, e prova o nenhum
de tal depoimento.
Vamos extrair uma síntese de seus conceitos. Jean Haren nascera em
Valenciennes, em 1540. Seu pai, rico mercador, sofreu o martírio pela fé
evangélica em 1568. O filho fez-se pastor reformado, mas interesses pessoais
o atraíram para o lado dos adversários, de sorte que o depôs o Sínodo de
Delft, em 1584. Foi quando os jesuítas se apressaram a explorar a situação,
provocando a famosa conferência de Antuérpia e lançando à publicidade, em
1586, em várias línguas, o panfleto infamante como se fora valioso
documento de uma pena competente, não só por haver sido ministro
reformado, como igualmente testemunha ocular da morte de Calvino.
Conta Doumergue que, no mesmo ano de 1586, certo calvinista de
consideração, François Dujon, sujeitou o panfleto à severa análise. Provando
que o opúsculo saíra da mão dos jesuítas, observou que estes, na pressa da
divulgação, deixaram indícios de que haviam adulterado o pensamento do
conferencista, ao qual fazem-no falar na primeira pessoa e logo adiante na
terceira. Eis as palavras de Dujon em sua conclusão: “De começo temos a
observar que não foi Jean Haren que escreveu este discurso; mas que os
jesuítas, consideraram-se melhores e mais hábeis cozinheiros para fazer o seu
molho, tomaram para seu proveito, a direção da empresa. Eis porque, na
maioria do discurso, falam assim do autor: “ele disse, ele confessa”, e outros
termos semelhantes. Noutros lugares, porém, negligenciaram o estilo e
discorreram como se fosse o autor: “Sei muito bem”,”‘v”’,”‘na minha
presença”, etc. Donde isso, pergunto-vos, senão do fato que Jean Haren
forneceu aos jesuítas os bocados que eles depois enfeitaram e concertaram à
vontade?”
Assim, diz Doumergue, o panfleto do calvinista converteu-se na obra
de um pensionário dos jesuítas, uma colaboração de apóstata com os seus
novos protetores. Desta sorte saiu um texto misto, não se podendo saber, ao
certo, até que ponto o pensamento de Haren foi alterado pelos jesuítas.
O mesmo Dujon dá sua informação quanto à presença de Haren em
Genebra, ao qual conheceu naquela cidade, simples estudante. Põe ele em
dúvida a presença de Haren na câmara mortuária com bons fundamentos. É
mais um embuste à conta dos mesquinhos adversários. É muito inverossímil
que o corpo de Calvino fosse abandonado em um meio onde havia tantos que
o prezavam; ele, tão considerado pelos síndicos e demais autoridades, pelos
pastores e númerosos amigos que possuía. A notícia de sua morte correu
célere e não faltaria quem viesse fazer guarda prontamente ao corpo do morto
tão querido. Como poderia então, pela noite adiante, introduzir-se
furtivamente o fatídico estudante e notar as asquerosidades que aponta? Pura
inverosimilhança!
O mais curioso, em tudo isso, é o último testemunho do citado Haren,
depoimento esse que os adversários procuraram a todo o transe ocultar. É que
o instrumento dos jesuítas voltou a si da ignomínia em que havia caído.
Reconheceu os seus erros, e buscou voltar à fé reformada, publicando em
1610 um opúsculo: “La repentance de Jean Haren et son retour en l’Eglise
de Dieu, publiquement par luy rècitèe en l’eglise wallone à Wesel, en
presence du magnifique et sage magistrat du dit Lieu, le VII jour de mars,
1610”. O exemplar citado é da biblioteca de Haia. Outra edição saiu no
mesmo ano em Haia, de que há um exemplar na biblioteca de Gand. Contém,
a mais, uma carta de cinco páginas aos fiéis dos Países Baixos. Apareceu,
ainda, no referido ano, uma tradução holandesa, de que existe cópia na
biblioteca de Haia.
Algum tempo antes de seu regresso ao protestantismo, seus novos
correligionários católicos começaram a ter dele suspeitas, e o lançaram numa
prisão onde penou pelo espaço de oito anos. Os anos de encarceramento
fizeram-no refletir melhor sobre sua triste sorte, conduzindo-o ao
arrependimento. Na obra citada, La repentance de Jean Haren, lê-se que se
decidiu a confessar publicamente sua falta: “Senhores, ao sair de minha triste
prisão, onde fui detido por oito anos, violentamente, passando por esta cidade
de Wesel para ir ter com minha família, tomei a ousadia de vos saudar e
fazer ouvir coisas que concernem à honra e glória de Deus, à edificação de
sua igreja e à salvação de minha alma”.
Mais além, fere o ponto capital, em formal retratação: “Por fim,
senhores, suplicai a Deus por mim e, se alguém dentre vós possuir exemplar
de alguns livros que outrora fizeram imprimir em meu nome em várias
línguas, livros cheios de embuste, mentiras e falsas conjeturas, peço que
sejam queimados e reduzidos a cinzas”.
Observa, então, Doumergue, que a declaração de Haren de ser o livro
dele um acervo de embustes, livro publicado em seu próprio nome e em
várias línguas, confirma o acerto de Dujon de que a obra em questão era mais
o produto dos jesuítas que do próprio Haren.
Acontece que um bispo de Estrasburgo, Andréas Räss, no seu livro
Histoire des convertis, quis suscitar dúvidas sobre a retratação de Haren e o
seu regresso ao Protestantismo, bem como sobre o tratado que lhe foi
atribuído. Leu, é certo, o anúncio do livro, mas pôs em dúvida a sua
autenticidade. Contra o preconceito do bispo, porém, e contestando a sua
asserção, invoca Doumergue o testemunho das atas dos Sínodos valônicos. O
de Amsterdã, de 21 a 24 de abril de 1610, tendo conhecimento da situação de
Haren, deixou ao critério da igreja de Wesel a readmissão do mesmo Haren.
Quanto à volta ao ministério, julgou prudente um adiamento. O Sínodo de
Breda, em setembro daquele ano, convencido da sinceridade do
arrependimento, restaurou-o à comunhão, readmitindo-o ao mesmo tempo no
seu grêmio.
Todavia, por causa do seu passado, houve dificuldades por parte das
igrejas em ser incluído no pastorado militante, pelo que se tornou necessário
ao Sínodo tomar providências para o seu sustento, septuagenário já e sem
recursos. Isso consta das atas dos Sínodos reunidos em Dordrecht (1611), e
Zieriesée (1612). Ainda há referências a seu nome nos sínodos de Roterdã
(setembro de 1612) e de Delft (1613).
Eis, portanto, a que resulta o testemunho suspeito do bispo de
Estrasburgo quanto à autenticidade da retratação de Haren.
Ficam, por isso, reduzidos a pó os depoimentos sobre o suposto fim de
Calvino em consequência da moléstia repugnante, uma vez que a base
principal de tais testemunhos repousava sobre Jean Haren, que se retratou,
corajosamente, de seu anterior depoimento indigno, havendo sofrido um
encarceramento de oito anos desde que os seus correligionários ocasionais
começaram a perceber-lhe sua vacilação.
Para terminar este capítulo, fortalecendo os argumentos contra os
adversários de Calvino, vamos citar, de Doumergue, dois testemunhos
insuspeitos dos próprios ultramontanos. O primeiro é o do jesuíta Mainbourg
na sua Histoire du calvinisme, 1682, pp. 334-335, a propósito da morte do
reformador.
Ouçamos o historiador jesuíta: “Após haver sido fortemente
atormentado nos últimos sete anos de sua vida por muitas enfermidades
graves, que não lhe permitiam repouso, veio a morrer da sua asma e de uma
febre hética, no quinquagésimo sexto ano de sua vida, a 27 de maio de 1654,
em Genebra… Teodoro de Beza e os escritores huguenotes subsequentes
dizem que morreu pacificamente, louvando a Deus. Outros, ao contrário, e
mesmo alguns luteranos asseguram que morreu em desespero, praguejando e
blasfemando o nome de Deus, invocando os demônios com horríveis
imprecações e maldizendo sua vida e escritos. Quanto a mim, que aborreço o
exagero, sobretudo em história, que jamais o deveria tolerar, direi
francamente que, depois de haver lido os escritos daqueles que tem
acentuadamente o ar do panegírico ou da sátira, não condescendo nem com
uns nem com outros, vendo claramente que a paixão lhes faz dizer ou muito
bem ou muito mal. Acrescento mesmo – para mostrar que sou sincero e que o
ódio da heresia não me impede de fazer justiça aos heréticos – que não quero
acreditar no que se diz vulgarmente, que foi ele fustigado em sua mocidade e
teve a “flor de lis” por um crime infame e detestável”.
Vê-se, pois, que o Padre Mainbourg condena os exageros e não crê na
lenda da flor de lis tão invocada ainda em nossos dias por adversários sem
escrúpulos.
Mais positivo é o testemunho do ultracatólico Dr. Nikolaus Paulus,
também aduzido pelo crítico que temos citado. Eis o que diz sobre Bolsec:
“Sabe-se ainda a sombria narrativa que fez Jerônimo Bolsec, alguns anos
depois, em sua biografia, a respeito da morte de seu detestável adversário.
Um sábio imparcial, porém, abster-se-á de dar fé às afirmações sem provas
deste homem apaixonado”.
Referindo-se a Haren, diz ainda o mesmo panfletário católico, citado
no seu Luthers Lebensende, 1898, pp. 48-49: “É certo que Haren declarou
também que Calvino morrera em desespero: “O que eu posso afirmar, em
verdade, porque estava presente e meus olhos foram testemunhos de sua
morte”. Mas Francisco Junius replicou, imediatamente, não ser verdade que
Haren tivesse sido testemunha ocular da morte de Calvino. Certamente, quem
conhece o caráter equívoco de Haren, quem sabe que depois de haver sido
deposto de seu cargo de pastor reformado, 1584, pelo Sínodo de Delft e
excomungado por causa de suas agitações políticas, passou no ano seguinte
para a igreja católica e, alguns anos depois, voltou publicamente ao
calvinismo, tal pessoa deverá apreciar em seu valor real os dizeres deste
homem!”
Dois fatos ainda dignos de nota na obra do Dr. Paulus. Não só entende
que andou errado o bispo de Estrasburgo, já citado, quando duvidou do
regresso de Haren ao protestantismo como demonstrou, à evidência, o
absurdo do suicídio de Lutero espalhado por inimigos pouco escrupulosos.
Assim termina Doumergue a sua obra magistral Calomnies anti
protestantes, no tomo referente a Calvino, obra criteriosamente documentada:
“Que resta de todas essas calúnias? Nada, absolutamente nada. Eu me
engano, resta uma conclusão. Todas as vezes que conseguimos verificar uma
acusação, viemos a parar numa falsidade. As acusações que não pudemos
apurar não são senão e, com mais fortes razões, falsidades, ainda falsidades e
sempre falsidades – como a lenda do ferro em brasa, a falsa carta a Du Poët, a
falsa citação de Becanus, a falsa citação de Withaker, a falsa confissão de
Calvino, a falsa confissão de Wolmar, a falsa confissão de Bucer, a falsa
confissão de Teodoro de Beza, as falsas declarações de Bolsec e Haren. A
priori, e até uma demonstração absolutamente rigorosa, científica, do
contrário, todas as acusações dos panfletários católicos romanos e de sua
escola contra Calvino devem ser tidas como calúnias, repousando
inteiramente sobre falsidades”.
Assim falou um competente, que devotou sua vida ao reformador de
Genebra, revolvendo arquivos, frequentando bibliotecas, servindo-se por fim
dos recursos da crítica histórica para defender a memória do paladino
infatigável, que tudo sacrificou pela vitória do ideal que professava!
CAPÍTULO XXXII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Reforma na época do falecimento de Calvino. Influência da


Reforma e de Calvino nas ideias democráticas segundo Jellinek.
Opinião de Renan.

Quando Calvino terminou o ciclo de sua proveitosa atividade, haviam


já cerrado os olhos os grandes vultos da Reforma: Zwinglio, Lutero e
Melanchton. Farel viveu ainda um ano e João Knox mais oito. Na Alemanha,
mostrara-se infrutífera a resistência de Carlos V e a Paz de Augsburgo
estabelecera a tolerância (1555), sem embargo de ser apenas a igreja luterana
a privilegiada, sendo afirmado o princípio do cujus regio e jus religio, isto é,
de que a religião do povo seria a do seu rei. Era, contudo, uma vitória para a
Reforma, muito embora a exclusão dos calvinistas e a adoção daquela
máxima viessem a ser um dos motivos da famosa guerra dos Trinta Anos,
que tanto mal causou à pátria de Lutero. Os países escandinavos – Suécia,
Noruega e Dinamarca – cedo, também, se colocaram sob a égide luterana, na
qual se conservam até os nossos dias. Nos Países Baixos, na Inglaterra e na
Escócia a influência calvinista prevaleceu. Na França, as adesões foram
muitas, mas as perseguições dos reis “cristianíssimos” sufocaram o
movimento, culminando no S. Bartolomeu: a matança cruel dos huguenotes.
Adesões parciais se deram na Espanha, na Itália, na Hungria e em outros
países. A fúria da perseguição alastrou-se. A inquisição aparelhou seus
instrumentos de tortura e o clarão sinistro das fogueiras foi o argumento
poderoso que a igreja empregou para silenciar os dissidentes.
A igreja reformada ou calvinista desenvolveu-se numa esfera de ação
muito mais vasta do que a luterana como ficou demonstrado em outro
capítulo.
Calvino morreu ainda no meio das lutas da Reforma como se deu com
Lutero e os principais reformadores. Eles não criaram uma nova religião e
nunca a tal se propuseram. Apenas entenderam firmar a igreja nos velhos
princípios dos tempos apostólicos, rejeitando as inovações doutrinárias.
A Reforma semeou ideias liberais e democráticas, que germinaram
fortemente no terreno político, fato este que ninguém pode contestar. Em um
estudo de história constitucional moderna, o jurisconsulto alemão Jorge
Jellinek, professor da universidade de Heidelberg, demonstra que a famosa
declaração de direitos da revolução francesa não teve sua inspiração imediata
em Rousseau, como o pretendia o jurista francês Boutmy, nem mesmo em
Lafayette. Segundo o professor alemão, inspiraram-se os franceses de 1789
nas constituições americanas. As fontes a que recorreu Lafayette se
encontram na declaração de Virgínia e dos demais estados da América do
Norte, que hauriram tais ideias dos princípios puritanos levados consigo da
Inglaterra, sendo Roger Williams um dos seus expoentes.
O professor Larnaud, de Paris, referindo-se a este trabalho de Jellinek,
afirma o seguinte: “O que se supunha até agora uma obra da revolução não é,
realmente, senão um produto da Reforma e das lutas por ela geradas”.
O professor francês interpreta, em tais palavras, o pensamento de
Jellinek. O professor alemão vai mais além. Não somente traça a Reforma aos
princípios liberais da declaração francesa de 1789. Filia-os ao reformador
Calvino. Eis suas palavras à p. 202: “Acrescentarei que tenho remontado a
origem da Declaração não a Lutero, mas a Calvino – uma honra que não teria
deixado de reivindicar para o meu país, caso houvesse sido eu francês”.
Temos, no decurso destas páginas, citado vários testemunhos de
homens ilustres sobre a personalidade de Calvino. Vamos findar a nossa
tarefa, extraindo da A Reforma, de Lindsay (p .83), um depoimento de um
crítico insuspeito pelo fato de não ser calvinista: Ernesto Renan. Diz ele: “Era
Calvino um daqueles homens absolutos que parecem ter sido vazados de um
só jato no molde, e que se estudam por meio de um olhar. Uma carta, um
gesto é bastante para se formar deles um juízo… Não dava importância a
riquezas nem a títulos, nem a honras; indiferente às pompas, modesto no
viver, aparentemente humilde, tudo sacrificava ao desejo de tornar os outros
iguais a si. Excetuando Inácio de Loyola, não conheço outro homem que
pudesse rivalizar com ele nesses raros predicados. É surpreendente como um
homem cuja vida e cujos escritos atraem tão pouco as nossas simpatias se
tornasse o centro de um tão grande movimento e que suas palavras tão
ásperas, sua elocução tão severa, pudessem ter uma tão espantosa influência
sobre os espíritos de seus contemporâneos. Como se pode explicar, por
exemplo, que uma das mulheres mais distintas de seu tempo, Renata de
França que, no seu palácio de Ferrara, se via cercada dos mais brilhantes
talentos da Europa, se deixasse cativar por aquele severo doutrinador,
enveredando, por sua influência, numa senda que tão espinhosa lhe deveria
ter sido? Semelhantes vitórias só podem ser alcançadas por aqueles que
trabalham com sincera convicção. Sem manifestar aquele ardente desejo de
proucurar o bem dos outros que foi o que assegurou a Lutero o bom êxito de
seus trabalhos, sem possuir o encanto, a perigosa, posto que lânguida doçura
de S. Francisco de Salles, Calvino saiu vitorioso, numa época e num país em
que tudo anunciava uma reação contra o cristianismo, e isso simplesmente
por ser o maior cristão de seu tempo!”
Em relação a caracteres assim vasados, a Igreja não pode senão dizer
com o Salmista:

“Non nobis, Domine, no nobis, sed nomine tuo da gloriam”. (Sl CXV.
I).
BIBLIOGRAFIA. OBRAS CONSULTADAS

1. Félix Bungener, Calvin: sa vie, son oeuvre et ses écrits, Saint Diniz,
1863.
2. G. Goguel, Le Réformateur de la France et de Genève Jean Calvin,
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3. M. Guizot, Saint Louis and Calvin, London, s/d.
4. L. Abelous, Les Pères de la Réformation, Paris, 1879.
5. A. Bossert, Calvin, Paris, 1906.
6. C. H. Irwin, John Calvin, London, 1909.
7. Philip Schaff, The German Reformation, Edinburgh, 1888.
8. Philip Schaff, The Swiss Reformation, Edinburgh, 1893.
9. Prof. Candish, The Evangelical Succession, capítulo 1 (Calvin),
Edinburgh, 1883.
10. J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation in Europe
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11. J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the
sixteenth century, Glasgow, 1845.
12. George Park Fisher, History of the Christian Church, London,
1898.
13. K. R. Hagengach, History of the Reformation in Germany and
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14. Wilhelm Moeller, History of the Christian Church, London,
1912.
15. A. H. Newman, A Manual of Church History, Philadelphia,
1904.
16. J. A. Wylie, The History of Protestantism, London, s/d.
17. G. de Félice, História dos Protestantes da França, vertida do
francês, S. Paulo, 1896.
18. Prof. Kurtz, Church History, New York, s/d.
19. T. M. Lindsay, A Reforma, tradução do inglês, Lisboa, 1912.
20. Henry Cowan, Landmarks of Church History, Edinburgh,
1910.
21. Jean Augustin Bost, Dictionnaire d’Histoire Ecclésiastique,
Genéve, 1884.
22. Souvenirs de la Réformation, Toulouse, 1872.
23. Émile Faguet, Sizième siècle – Études Littéraires, Paris, s/d.
24. Raoul Allier, Anthologie protestante française, Paris, 1918.
25. Augusto Dide, Miguel Servet y Calvino, Valência, 1919.
26. Henry Tollin, Michel Servet, Paris, 1879.
27. Jacques Pannier, Recherches sur l’evolution religieuse de
Calvin jusqu’a sa conversion, Strasbourg, 1924.
28. Jacques Pannier, Calvin a Strasbourg, Strasbourg, 1925.
29. E. Doumergue, Calomnies anti-protestantes – Tome I – Contre
Calvin, Lausanne, 1912.
30. J. Calvin, Institutes of the Christian Religion, Tradução de H.
Beveridge, Edinburgh, 1845.
31. J. Calvin, The Necessity of Reforming the Church, Tradução de
H. Beveridge, Philadelphia, 1843.
32. J. Calvin, Traité des Reliques – suivi de l’Excuse a Messieurs
les Nicodémites – Introduction et notes par Albert Autin, Paris, 1921.
33. J. Calvin, Remarks on the letter of Pope Paul III, Tradução de
H. Beveridge, Philadelphia, 1843.
34. Oliveira Lima, História da Civilização, S. Paulo, 1921.
35. Jorge Jellinek, La declaración de los derechos del hombre y
del ciudadano, Traducción de Adlofo Posada, Madrid, 1908.
36. Encyclopoedia Britannica, 11ª Edição, New York, s/d.
SOBRE O AUTOR

Vicente do Rego Themudo Lessa (1874-1939), ou simplesmente Vicente


Themudo Lessa, como é geralmente referido, foi o primeiro historiador do
presbiterianismo brasileiro, tendo escrito um grande número de obras sobre o
assunto, entre elas o clássico Anais da 1ª Igreja Presbiteriana de São Paulo.
Ele participou do movimento que criou a Igreja Presbiteriana Independente
do Brasil.

[1]
Palavras finais da palavra “Ao Leitor” na obra em apreço.
[2]
Na referida edição é indevidamente eliminada a letra “h” de Themudo.
[3] Oliveira Lima, História da Civilização, p. 319.
[4]
G. P. Fisher, History of the Christian Church, p. 281.

[5]
Bolsec, Histoire de la vie, moeurs, actes, doctrine, constance, et mort de Jean Calvin, p. 12, apud
Schaff.
[6]
Obra citada, p. 28.
[7]
Kampschulte, Vol. I, 224, nota 2.
[8]
Lefranc, p. 52, apud Schaff.
[9]
E. Doumergue, Calomnies anti-protestantes, vol. I, Contre Calvin. Lausanne, 1912, p. 14 e
seguintes.
[10]
Doumergue, obra citada, p. 18.
[11]
Doumergue, ibidem.
[12]
Doumergue, p. 27.
[13] Bungener, págs. 21- 22.
[14] A. Bossert – Calvin, Paris, 1906, p. 18.
[15]
Beza – Colladon, XXI, 54, apud Schaff; A. Bossert, Calvin, p. 21.
[16]
History of the rise, progress and decline of the heresy of this age, apud Wylie, Vol. II, p. 148.
[17]
La Vasseur, p. 1158, apud D'Aubigné.
[18]
Guizot, St. Louis and Calvin, p. 155.
[19]
D'Aubigné, History of the Reformation in Europe in the time of Calvin, Vol. 1, p. 517.
[20]
D'Aubigné, Obra citada — Vol. 1, p. 518.
[21] D'Aubigné, Obra citada, Vol. I, págs. 537 e 538.
[22] J. A. Wylie, Obra citada, Vol II, p. 156.
[23] Apud Bungener, Obra citada, p. 25.
[24] Schaff, Obra citada, p. 316.
[25] G. de Félice, História dos Protestantes na França, livro I, p. 53.
[26] Obra citada, p. 47.
[27]
Obra citada, p. 44.
[28]
Ibidem, p. 48.
[29]
F. Burgener – Calvin, sa vie, son oeuvre, et ses écrits, p. 53.
[30]
Garnier, Histoire de France, Vol. XXVI, p. 1. Henri Martin, Historie de France, Vol. VIII, p. 223,
obras estas citadas por Guizot no seu livro sobre S. Luiz e Calvino, p. 168.
[31] Obra citada, p. 27.

[32] Schaff, Swiss Reformation, I, p. 332.


[33]
Guizot, obra citada, p. 204.
[34]
Guizot – ibidem, p. 207.
[35] À época em que o autor compôs esta obra.
[36] Bungener, obra citada, p. 115.
[37]
Wylie, History of Protestantism, Vol. 2, p. 272.
[38]
Irwin, obra citada, p. 48.
[39] D’Aubigné, The Reformation in Europe in the Time of Calvin, Vol. V, p. 532.
[40] Schaff, Swiss Reformation, Vol I, p. 358.
[41] G. Goguel, Lê Reformateur de la France et de Genève, Jean Calvin, p. 69.
[42] Bungener, obra citada, págs. 144-148.
[43] Idem, p. 148.
[44] Guizot, obra citada, p 219.
[45] Bungener, obra citada, p. 210.
[46] Ibidem, p. 211.
[47]
A. Bossert, obra citada, p. 107.
[48]
Bungener, obra citada, p. 189.
[49] A. Bossert, p. 121.
[50] Lindsay, A Reforma, págs. 76 e 77.
[51] Goguel, Le Reformateur Jean Calvin, p. 116
[52] Bungener, obra citada, p. 242.
[53] L. Abelous, obra citada, p. 259.
[54]
Lyon é uma importante cidade francesa [N. do E.].
[55]
Bungener, obra citada, p. 263.
[56]
Idem, p. 266.
[57] Calvin, Commentary on Ezequiel, Vol. II, p. 346, Edinburgh, 1850.
[58] Goguel, obra citada, p. 12.
[59] Schaff, Swiss Reformation, Vol. II, p. 463
[60]
S. Paulo, Ep. aos Efésios, cap. 5, v. 27.
[61]
S. Mateus, cap. 18, vv. 15-17.
[62] Schaff, Swiss Reformation, vol. II, p. 499.
[63] Schaff, obra citada, p. 617.
[64]
Boungener, obra citada, p. 319.
[65]
Schaff, obra citada, p. 619, nota.
[66]
Bungener, obra citada, p. 292.
[67]
Goguel, obra citada, p. 159.
[68] Goguel, obra citada, p. 158.
[69] The Evangelical Succession, capítulo sobre Calvin.
[70]
L. Abelous, obra citada, p. 275.
[71]
L. Abelous, ibidem.
[72] Doumergue, obra citada, p. 80 e seguintes.
[73]
Cila e Caribdes. Dois monstros, descritos na Odisséia de Homero, que permaneciam em lados
opostos do estreito de Messina. (N.do E.)
[74] Wylie, History of Protestantism, Vol. II, págs. 327 e 328.

[75] Schaff, Swiss Reformation, Vol. II, p. 772.


[76]
Schaff, obra citada, p. 778.
[77]
Wylie, obra citada, p. 334.
[78]
Bungener, obra citada, p. 339.
[79]
Schaff, obra citada, p. 782.
[80]
Guizot, obra citada, p. 325.
[81]
L. Abelous, obra citada, p. 288
[82]
L. Abelous, p. 288.
[83]
Wylie, obra citada, p.329.
[84]
Do grego threnos, que significa “lamento”, “gemido”. (N.do E.)
[85]
Jeremias 20.18.
[86]
Ibidem, cap. 15.10.
[87]
Oliveira Lima, História da Civilização, p. 211.
[88]
Apud Schaff, Vol. citado, p.696.
[89]
Elizabeth I (1533-1608), rainha da Inglaterra de 1558 até a sua morte. [N. do E.]
[90] Wylie, obra citada, p. 383 e seguintes.
[91]
Wylie, obra citada, p. 308.
[92]
Thomas Cromwell, Primeiro Duque de Essex (1485 –1540), Primeiro-Ministro de Henrique VIII,
de 1532 a 1540. [N. do E.]
[93]
Poverello, que significa “Pobrezinho”, era o diminutivo carinhoso pelo qual S. Francisco de Assis
era chamado. [N. do E.]
[94]
Bost. Dicc. de Histoire écclesiastique, art. Sadolet.
[95] Gaberel – Histoire de L’Église de Genève, Vol. 1, p. 398, apud Wylie.
[96] G. de Félice, Vol. 1, p. 83 e seguintes.
[97] Bungener, págs. 415 e 416.
[98] Bungener, p. 424.
[99] Bungener, obra citada, p. 446.
[100]
Goguel, obra citada, p. 194.
[101] Idem, p. 183.
[102] Wyllie, History of Protestantism, Vol. II, p. 347.
[103] Schaff, Religious Encyclopedia, art. Predestination.
[104]
Ch. Irwin, John Calvin, p. 194.
[105]
Idem, p. 200.
[106] Schaff, obra citada, Vol. II, p. 834.
[107] Schaff, obra citada, Vol. II, p. 839.
[108] Schaff, obra citada, Vol. II, págs. 840 e 841.
[109] E. Doumergue, obra citada, p. 111 e seguintes.
[110] Doumergue, idem, págs. 114 e 115.
[111] Ibidem, p. 121.
[112]
Bungener, obra citada, p. 454.
[113] Goguel, obra citada, p. 207.
[114] Schaff, obra citada, Vol. II, p. 823.
[115]
Tradução do poema por Vanderson Moura da Silva:

“Roma fugia dele com o maior terror,


Dos bons, o lamento; dos maus, o horror,
Recebe o morto, de quem pode a Virtude virtude aprender,
Mas por que embaixo de tão pequena e obscura porção de terra,
A Calvino se esconder?

A modéstia sempre acompanhou Calvino em vida,


Nesse túmulo tal condição sua é mantida,
A terra que o hospeda, ó quão abençoada!
Ó mármore, ó pedra invejada!”. [N. do E.]
[116]
Cuja tradução significa “Fraco na carne: Forte no espírito: Herói da fé: o Reformador da Igreja: o
Pastor e Protetor de Genebra. [N. do E.]

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