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EDITORA FIEL DA
MISSÃO EVANGÉLICA LITERÁRIA
Caixa Postal 81
12201-970 São José dos Campos - SP
“S enhor, Tu conheces todas as minhas fraquezas,
toda a minha insensatez, meus pecados, minha completa
incapacidade. Mas aqui estou. Oh! toma-me; faze de
mim segundo a tua vontade; envia-me onde quiseres,
faze comigo o que teus olhos vêem ser o melhor, e apenas
deixa-me sentir que Tu estás comigo, que Tu me amas e
me usas, e Tu serás glorificado pelas tuas obras feitas
através de mim!”
PREFÁCIO ................................................................................................................................. 7
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................11
PRÓLOGO.................................................................................................................................................... 13
1 COMO TUDO COMEÇOU ............................................................................................. 15
PARTE 1 - MADEIRA
2 A CHEGADA EM MADEIRA ..................................................................................................... 25
3 O CHAMADO DE DEUS ............................................................................................... 31
4 TEMPO DE PLANTAR E DE COLHER........................................................................ 39
5 A TEMPESTADE SE APROXIMA ................................................................................ 49
6 NASCE UMA IGREJA ..................................................................................................... 63
7 A TEMPESTADE DESABA ........................................................................................... 69
8 RENASCIDA DAS CINZAS ............................................................................................ 81
INTERLÚDIO
9 UMA PAUSA E UMA PESSOA ..................................................................................... 93
PARTE 2 - BRASIL
10 A ESCOLHA É FEITA ................................................................................................... 105
11 A TERRA DA CRUZ SEM CRISTO .......................................................................... 111
12 UMA PORTA ABERTA ............................................................................................................... 121
13 GERNHEIM........................................................................................................................................ 127
14 VENHA E AJUDE-NOS ................................................................................................. 133
15 OPOSIÇÃO E ENCORAJAMENTO .............................................................................. 139
16 EXPANSÃO ALÉM DO RIO ........................................................................................ 149
17 TRABALHOS COROADOS COM SUCESSO ............................................................. 157
18 UM NOVO AJUDANTE E UM NOVO LAR ............................................................ 167
19 LIDANDO COM OS PROBLEMAS .............................................................................. 173
20 UMA PAUSA BEM MERECIDA ................................................................................. 181
21 ATIVIDADE RENOVADA NO RIO .............................................................................. 189
22 ALICERÇANDO A IGREJA NO RECIFE ..................................................................... 199
23 ÚLTIMOS DIAS NO BRASIL...................................................................................... 213
W. B. Forsyth
Wiveliscombe.
Dezembro de 1988
PRÓLOGO
N o segundo domingo de agosto de 1846, uma missa aconteceu
na rústica capital da ilha da Madeira, Funchal, em honra à padroeira,
Nossa Senhora do Monte. Era um evento anual, mas naquele ano a
excitação entre os devotos foi extremamente exaltada. A catedral
estava lotada e a multidão se aglomerava até mesmo na praça em
frente. Do altar, o cônego da catedral discursava para a multidão,
incitando-a a ter atitudes mais violentas. O clima começava a ficar
bastante tenso. Havia murmurinhos nervosos (o veneno do ódio faná-
tico) crescendo em volume, conforme o discurso se aproximava de
seu final. A multidão impaciente esperava o sinal para agir. Do lado de
fora, na praça, o sinal foi dado: um foguete zuniu no ar e explodiu com
um barulho que podia ser ouvido por toda a cidade; e suas reverbera-
ções foram realmente ecoadas por todo o país. O dia de São Bartolo-
meu, em Madeira, havia chegado. Liderados pelo cônego, ainda em
suas vestimentas sacerdotais, a multidão lançava-se para a praça da
catedral e continuava seguindo pelas ruas estreitas em direção ao
subúrbio de Santa Luzia. Frases ensaiadas eram cantadas por todos:
“Longa vida à Nossa Senhora do Monte”; “Morte aos calvinistas”;
“Longa vida à Santa Madre Igreja”; “Morte aos leitores da Bíblia”;
“Morte a Kalley – o Lobo da Escócia”.
14 JORNADA NO IMPÉRIO
de sua vida. Depois, foi chamado para outra viagem, mas recusou,
felizmente, como se verificou mais tarde, visto que o navio no qual
deveria ter ido perdeu-se no meio de uma tempestade. Esta foi a
segunda vez que escapou da morte. Certa vez, quase morrera afogado,
ainda garoto, quando nadava junto de outros meninos, no rio Clyde.
Naquela ocasião, ele se encontrava em dificuldades e foi salvo por
alguém que passava por ali.
PASSOS RUMO À FÉ
O Dr. Kalley começou a emergir do conhecimento incompleto a
partir do momento em que se estabeleceu como médico em Kilmar-
nock,Ayrshire, em 1832, onde, apesar de sua juventude, logo conseguiu
ter uma reputação de excelente cirurgião. Socialmente ele também
tinha sucesso. Era extrovertido e um amante dos esportes – muito
popular em todas as festas, de forma que logo recebeu o apelido de “o
médico dançarino de Kilmarnock”. Era ainda um ateísta e fazia ques-
tão de mostrar isto a todos, mas sua nova experiência como médico
iria penetrar naquilo que ele considerava ser inquestionável – sua au-
toconfissão como pagão. Certa vez, um paciente o impressionou muito;
era um homem humilde e muito pobre, embora fosse rico em fé, e ele
testemunhou para o doutor a respeito da graça salvadora de Jesus
Cristo. Não havia dúvidas a respeito da sinceridade daquele homem e
da realidade de sua fé em Cristo.
Outra impressão mais forte ainda foi deixada no doutor pelo
testemunho de uma paciente, uma mulher também muito pobre,
morrendo de câncer. Sua fé triunfante no meio de tanta miséria e dor
impressionou o jovem médico mais do que ele queria admitir. Ela
suportou suas provações de pobreza e dor não meramente com
serenidade, mas com regozijo! O quarto onde ela estava poderia estar
precisando das coisas mais básicas, mas para o doutor, quando fazia
suas freqüentes visitas, o quarto parecia ter uma qualidade etérea,
algo que sua mente científica não podia explicar. O Senhor que está
nos céus fazia sua presença e glória ser uma realidade para sua humilde
serva, no momento das terríveis dores. O seu testemunho balançou os
18 JORNADA NO IMPÉRIO
A ILHA DA MADEIRA
Madeira foi descoberta por João Gonçalves Zarco, em 1419, um
dos intrépidos marinheiros da famosa escola de navegação em Sa-
gres, Portugal, fundada e supervisionada pelo Príncipe Henrique, o
Navegador (1349-1460). A tradição diz que o Príncipe Henrique ou-
viu sobre a “ilha paradisíaca” de uma forma extraordinária. Um lendário
casal inglês, Robert e Ann, foi impedido por seus pais de continuar
com seu romance. Eles decidiram fugir do país e embarcar para o
continente. Porém, fortes tempestades tiraram o navio de seu curso, e
eles finalmente foram parar na costa da ilha de Madeira. Eles haviam
descoberto um paraíso, tão maravilhosas eram as belezas naturais:
montanhas, florestas, flores, pássaros, etc. Junto dos marinheiros eles
exploraram o interior da ilha, mas, ao retornarem para a costa, desco-
briram que o barco deles havia sido carregado por uma tempestade.
Os marinheiros então iniciaram o árduo trabalho de preparar algum
tipo de embarcação que fosse própria para o alto-mar, mas o romance
do jovem casal foi de vida curta. Ambos morreram em pouco tempo,
um logo após o outro, e foram enterrados pelos marinheiros num lugar
que agora é o porto de Machico. A tripulação finalmente se lançou ao
mar, mas foram logo capturados por piratas bárbaros. Porém um de-
les conseguiu escapar das mãos dos piratas e chegou a Portugal. Ele
informou o Príncipe Henrique da descoberta, e como resultado, a ex-
pedição de Zarco foi montada.
Zarco não encontrou qualquer habitante na ilha; apenas densas
florestas cobriam as grandes montanhas vulcânicas. Ele decidiu dar
um nome bem descritivo à ilha, Madeira. Um outro desses exploradores
do mar também tinha ligações bem próximas com Madeira. Cristóvão
A CHEGADA EM MADEIRA 27
ORDENAÇÃO AO MINISTÉRIO
Em 30 de janeiro de 1839, o Dr. Kalley escreveu, da ilha da Ma-
deira: “Vai ser meu trabalho levantar o padrão da verdade. Eu gosta-
ria tanto de fazer isso de uma vez… pois não considero essencial a
permissão de qualquer grupo de homens, antes de pregar as boas-
novas da salvação para as almas que estão sucumbindo. A mensagem
é de Deus, e não dos homens, e a permissão necessária é, portanto, a
permissão de Deus, e esta me parece tão claramente dada por sua
Palavra que eu não teria qualquer hesitação neste assunto. Mas tais
são os pontos de vista e sentimentos de meus conterrâneos, que pou-
cos participariam, a menos que eu fosse oficialmente ordenado… como
sou extremamente avesso a qualquer coisa que possa arruinar minha
própria utilidade, prefiro fazer-me tudo para com todos, com o fim de,
por todos os modos, salvar alguns – assim como também considero a
ordenação desejável, ainda que não essencial para a pregação, e como
seria muito interessante poder administrar o batismo e a Ceia do Se-
nhor – que segundo meu ponto de vista atual eu não estaria autorizado
a fazer como um leigo, estaria disposto a ir à Inglaterra nesta prima-
vera, fazer um curso de estudos, se for necessário, para eu poder ser
ordenado e, então, retornar para este lugar… quanto ao corpo de
cristãos do qual eu poderia desejar a ordenação, considero de pouca
importância se eles apenas mantiverem as grandes verdades essenci-
ais e me permitirem liberdade para ser guiado por meus próprios pon-
tos de vista em assuntos menores da Palavra de Deus”.
No dia seguinte, ele escreveu para a Sociedade Missionária de
Londres. A minuta do Comitê de Candidatos da SML, datada de 25 de
março de 1839, diz: “Foi lida uma carta do Dr. R. R. Kalley, médico,
datada de 1o de fevereiro de 1839, remetida de Funchal. Nesta, ele
oferece seus serviços como agente desta Sociedade, para trabalhar
em Madeira. Os membros deste Comitê devem, portanto, considerar
aquele lugar dentro da esfera de serviço e solicitar a ordenação do
Dr. Kalley como pregador do evangelho, tanto para seus conterrâne-
os quanto para os portugueses residentes na ilha. Resolução:
O CHAMADO DE DEUS 33
A SITUAÇÃO EM MADEIRA
O que o Dr. Kalley quis dizer ao declarar que “Madeira está viva,
esticando suas mãos para o evangelho” e, também, na Grã-Bretanha,
“preparei-me com esforço para as obrigações que provavelmente me
aguardariam ao retornar para Madeira”? Obviamente ele imaginava
que em seu retorno da cerimônia de ordenação, seu ministério cresceria
consideravelmente e se estenderia além dos limites da colônia britânica.
A colônia britânica em Madeira, assim como outros enclaves além-
mar, era muito gregária e isolada das outras. Tais colônias procuravam
manter o modo de vida britânico, mesmo que em outra cultura. O
“clube da cidade” e o “clube de campo”, com seus bares e recreações
– críquete, futebol, tênis – eram igualmente privativos. A igreja com
seus cultos em inglês, seus próprios capelães e ministros e seu
exclusivismo religioso era completamente britânica e profundamente
nula de visão missionária. O contato com os “nativos”, os madeirenses,
era o mínimo possível – apenas negócios e, somente em circunstâncias
excepcionais, social.Amaior parte dos britânicos sequer se preocupava
em aprender a língua local. Havia um contato, no entanto, que não
podia ser evitado, com os servos. Todas as casas tinham seus servos,
“nativos”, e a relação entre senhor e servos tinha de existir.
Os Kalleys também tinham seus servos, madeirenses camponeses.
A CATEDRAL EM FUNCHAL - SÉCULO XVIII
O CHAMADO DE DEUS 37
Para eles estes servos não eram apenas posses, seres ignorantes e
estúpidos, um mal necessário e às vezes conveniente para uma conversa
durante o chá! Para eles, os servos eram seres humanos e deveriam
ser tratados como tais. Dr. Kalley, com seu conhecimento de latim,
facilmente aprendeu a língua deles, o português, e começou a se
comunicar com eles e a entender suas necessidades. Ele estava
aterrorizado com a ignorância e superstição deles. Nenhum sabia ler
ou escrever, e sua religião havia degenerado para um paganismo
cristianizado. Em sua volta para Madeira, o Dr. Kalley estava pronto
para agir. A situação dos madeirenses era desesperadora em todos os
sentidos. Estavam num tempo de recessão econômica. A indústria do
açúcar, antes o suporte principal da economia da ilha, estava agora
em declínio. As vinhas, conhecidas mundialmente pela excelência dos
vinhos ali produzidos, não eram capazes de sustentar a situação
sozinhas. As autoridades em Lisboa haviam proibido a manufatura de
qualquer produto na ilha; todos os manufaturados deveriam ser
importados. Móveis de vime e bordados eram trabalhos que os
madeirenses ainda não tinham direito de executar. Os camponeses
levavam uma vida miserável cultivando os terraços nos íngremes
flancos das montanhas. Os poucos que tinham a felicidade de possuir
uma vaca não podiam colocá-la para pastar, uma impossibilidade em
montanhas tão altas, de forma que elas tinham de ficar presas em
cabanas. Avida era muito difícil para eles. Viviam isolados até mesmo
uns dos outros. Não havia estradas; as trilhas serpenteavam seu
caminho pelas perigosas e íngremes montanhas, geralmente seguindo
os canais de irrigação. A pobreza era abundante, assim como os males
associados a ela, tais como a ignorância e as doenças. Tal pobreza
opressiva tocou o Dr. Kalley profundamente, porém o que mais o
comoveu foi a completa ausência da genuína religião. Aurgência desta
necessidade constituía seu chamado missionário para o serviço em
Madeira.
Madeira, assim como os Açores, era inabitada quando os portu-
gueses a descobriram. Eles a colonizaram e levaram consigo seu pró-
prio tipo de catolicismo romano. Basicamente, ele diferia do catolicismo
medieval no resto da Europa. Os mouros, durante os séculos em que
dominaram a Península Ibérica, introduziram um elemento de fatalis-
38 JORNADA NO IMPÉRIO
TRABALHO MÉDICO
Foi em Santa Luzia, no Caminho do Monte, no ano seguinte, que
ele abriu a clínica, a qual mais tarde foi ampliada para um “hospital
caseiro” com doze leitos. Ele rapidamente ganhou fama como o médico
da ilha, tendo como paciente até mesmo o bispo da Igreja Católica
Romana. Tratava a todos, ricos e pobres. Como ele mesmo disse
certa vez, o preço cobrado dos pacientes ricos era muito alto, mas isto
servia para dois propósitos: desencorajava os ricos de procurarem
sua assistência profissional – havia outros dois médicos britânicos na
cidade – de modo que ele tinha mais tempo para tratar dos pobres; e
também o provia com fundos para que tivesse condições financeiras
de tratar os pacientes mais pobres. Estes ele tratava gratuitamente:
40 JORNADA NO IMPÉRIO
UM LÍDER GRACIOSO
Certa vez, quando a saúde do doutor estava adversamente afetada
pelo esforço de uma atividade tão intensa, seus amigos o persuadiram
a descansar nas montanhas, uma viagem de seis horas saindo de
Funchal. As notícias rapidamente se espalharam a respeito de onde
ele estava, e as pessoas logo começaram a se juntar atrás do doutor.
A certa altura, num lugar chamado São Jorge, 1500 pessoas se
reuniram para ouvi-lo falar sobre as Escrituras. Outro acontecimento
interessante é que o padre da paróquia local intrepidamente anunciou
a reunião do púlpito e deu ao doutor sua cooperação incondicional!
Mais tarde, quando o padre foi acusado de colaborar com o “estrangeiro
herege”, ele se defendeu dizendo: “Longe do Dr. Kalley ter falado
qualquer coisa ofensiva ou ilegal naquela ocasião, ele leu extensivamente
a Bíblia Sagrada e não falou nada contra o que a Santa Igreja Católica
Apostólica Romana nos ensina a acreditar”. O “bom doutor” não era
um fanático intolerante. Se um paciente no hospital desejasse a visita
de um padre, a permissão para tal era dada instantaneamente.
Ele também não negligenciava seus conterrâneos, mas conduzia
regularmente, ainda que informalmente, cultos para eles. Na falta de
um ministro da Igreja da Escócia, ele, como um ministro ordenado,
presidia a celebração bienal da Ceia do Senhor.
O doutor tinha uma personalidade bastante enérgica, ainda que
sempre graciosa. Sua constituição física e comportamento digno
fizeram dele um líder natural. Ele era um típico escocês, engenhoso,
asperamente independente, resoluto em suas ações e honesto em todo
o seu procedimento. Sua fé era franca e sóbria, forjada não nos
corredores das faculdades teológicas, e sim nos problemas práticos
da vida cotidiana. Seu professor havia sido o Espírito Santo, e seu
livro-texto a Bíblia. E também era um ótimo aluno: tinha uma mente
42 JORNADA NO IMPÉRIO
DIAS AGITADOS
Estes dias agitados são descritos por alguém que também passou
por eles: “Em 1842, especialmente no verão e no outono, as pessoas
vinham em grandes quantidades para ouvir a leitura das Escrituras e
também a explicação do texto lido; muitas delas caminhavam até dez
ou doze horas e escalavam montanhas de quase três mil metros de
altura! As reuniões eram solenes, os ouvintes escutavam tudo com
incansável atenção, uma mão era vista limpando uma lágrima que
caía, e às vezes havia uma expressão geral e audível de admiração.
Este era especialmente o caso quando o assunto era o amor de Deus
em não poupar seu próprio Filho, mas entregá-Lo para morrer pelos
pecados de todo o mundo, e o amor de Cristo em voluntariamente
tomar para si mesmo a ira e maldição que nós merecemos. Por muitos
meses, eu acredito, não havia menos que mil pessoas presentes em
cada domingo; geralmente elas excediam a duas mil pessoas;
ocasionalmente alcançava três mil, e em pelo menos uma ocasião
foram contadas cerca de cinco mil pessoas. Nesta última ocasião
mencionada, setenta Novos Testamentos foram vendidos, e muitos
que pretendiam comprar saíram desapontados. Estas reuniões eram a
céu aberto. Imagine o interesse que tal acontecimento trouxe neste
país católico!”
“Em alguns lugares, quando as pessoas andavam pelas estradas
ou descansavam um pouco do trabalho no campo, os assuntos comuns
das conversas cotidianas eram a Palavra de Deus, o amor do Senhor
Jesus Cristo, a paz de Deus, a esperança da glória, a insensatez da
adoração às imagens, a inutilidade das penitências. Muitas vezes,
durante a semana, os hinos de domingo eram ouvidos entre os campos
e vinhedos; e havia muita pesquisa nas Escrituras a fim de conhecer o
que o Senhor declara sobre muitos assuntos que eram trazidos até
eles.”
O Dr. Kalley explica como este avivamento foi trazido naqueles
dias: “O tratamento médico gratuito induziu muitos a nos visitarem e
experimentarem os benefícios que tanto apreciavam. Conseqüente-
mente, tratavam-me como um velho amigo. Quando conversava com
TEMPO DE PLANTAR E DE COLHER 47
UM TESTEMUNHO PÚBLICO
Em 25 de maio de 1841, uma expressão de gratidão ao Dr. Kalley
por seus esforços filantrópicos a favor dos pobres, doentes e analfa-
betos foi registrada na ata de uma reunião do Conselho Municipal em
Funchal. A ata dizia: “Esta Câmara foi informada através do Adminis-
trador do Conselho, em um documento oficial com data de hoje, que
Robert Reid Kalley, cidadão britânico e doutor em medicina, tem con-
50 JORNADA NO IMPÉRIO
PRESSÕES CRESCENTES
Ainda que a gratidão estivesse sendo expressa publicamente, os
protestos contra a expansão missionária do doutor estavam crescendo.
O bispo de Madeira, que não só era paciente do “bom doutor” como
também um amigo pessoal, alertou-lhe que uma carta havia sido
recebida de Lisboa, advertindo que “deveriam ser imediatamente
interrompidas todas as atividades médicas e educacionais que pusessem
em risco a lei e a ordem”. Aquilo, obviamente, se referia ao Dr. Kalley!
A carta pode também ter incluído um decreto promulgado pela Igreja
Católica Romana em Portugal:
“Qualquer um que faltar com respeito à religião oficial do reino, a
Igreja Católica Apostólica Romana, deverá ser condenado à prisão
pelo período de um a três anos e a uma multa proporcional à sua
renda, em cada um dos seguintes casos:
1 Contrariar a já citada religião publicamente, em qualquer dog-
ma, ato ou objeto de adoração, por um ato ou palavra ou publi-
cação em qualquer forma;
2 Tentar, pelos mesmos meios, propagar doutrinas contrárias aos
dogmas católicos definidos pela igreja;
A TEMPESTADE SE A PROXIMA 51
O BISPO E O JUIZ
O doutor não estava completamente sem amigos que procurassem
defendê-lo. Certo número de clérigos da ala mais moderada com os
quais o Dr. Kalley tinha um relacionamento amigável, preparou um
documento, assinado por todos eles, defendendo-o contra as acusações.
O vigário geral levou o documento ao doutor para seus comentários e
apreciação. Ele havia sido mal escrito, e boa parte expressava-se
numa linguagem que ele provavelmente não aprovaria. Uma declaração
era definitivamente equivocada – que o doutor pregava a mesma
mensagem pregada pelos clérigos em seus púlpitos! Ele e o vigário
geral tentaram reescrever o documento, mas não obtiveram sucesso.
A Sra. Margareth Kalley escreveu em seu diário: “Robert pensa que
aquele documento não deveria ser assinado nem enviado. Ele e o
vigário estão tentando reescrevê-lo. Eu acho que o tempo da livre
propagação do evangelho está chegando ao fim”. O doutor enviou ao
52 JORNADA NO IMPÉRIO
CRENTES ENCARCERADOS
Em 11 de janeiro de 1843, um professor, sua esposa e filho foram
detidos, acusados de desobediência civil e condenados a quatro meses
A TEMPESTADE SE A PROXIMA 55
do doutor. O que leu foi muito perturbador, pois não conseguia achar
base bíblica para as tradições romanas nas quais lhe haviam ensinado
a crer. Virando as páginas do Novo Testamento, ele descobriu as
epístolas de Pedro – Pedro, o primeiro papa! Pedro certamente
esclareceria a verdade e lhe tiraria as dúvidas; mas, para seu assombro,
descobriu que o evangelho de Pedro concordava completamente com
o de Paulo e dos outros escritores do Novo Testamento. Ele ouviu o
Dr. Kalley pregando sobre o novo nascimento e, pouco depois,
experimentou o novo nascimento. Ele era agora um crente, mas sua
esposa e filha, ainda que o amassem, não seguiriam sua liderança
espiritual; elas permaneceram fiéis à Igreja Católica. Os padres
inicialmente tentaram persuadir Arsênio a voltar à igreja; quando isto
não mostrou qualquer resultado, eles instituíram uma violenta
perseguição contra ele. Porém, ele não somente fora convertido, como
também pregava o evangelho aos outros com resultados incríveis.
Sua completa dedicação à causa do evangelho e a conseqüente
identificação com humildes crentes resultaram na perda de todos os
seus antigos amigos. Mesmo sendo perseguido, incitou Dr. Kalley a
continuar com seu ministério e não abandonar o rebanho. Ele sabia
que era bem provável que chegasse um dia quando os fiéis teriam que
fugir da ilha, mas tal dia ainda não havia chegado!
Com a conversão de Arsênio, a perseguição aos crentes foi ainda
mais intensificada. Em torno de vinte e seis “hereges” foram
aprisionados, e um deles, rico fazendeiro, foi deportado para a África
Ocidental Portuguesa, por causa de Cristo. Na prisão, junto aos
delinqüentes, assassinos e outros tipos de criminosos, os crentes deram
um bom testemunho de sua inabalável fé em Cristo. Receberam grande
conforto da Palavra de Deus e dos hinos preparados pelo Dr. Kalley
para eles.
Maria Joaquina Alves, mãe de sete filhos, foi presa e acusada de
apostasia, heresia e blasfêmia. Após dezesseis meses, foi levada a
julgamento para responder às acusações feitas contra ela. A última
acusação, blasfêmia, foi escolhida para receber atenção especial.
“Você acredita”, eles perguntaram, “que a hóstia consagrada é o
verdadeiro corpo, o verdadeiro sangue, a alma humana e divindade de
Cristo?” Sua vida dependia da resposta que ela desse, mas firme e
A TEMPESTADE SE A PROXIMA 57
O DOUTOR NA PRISÃO
O ministério do Dr. Kalley estava agora severamente restrito.
Não podia mais tratar dos pobres, suas escolas foram interditadas, e,
finalmente, foi proibido de continuar pregando. Explicou ele, em agosto
de 1845, à Assembléia Geral da Igreja Livre da Escócia, que ocorreu
em Inverness: “Quase ao mesmo tempo da promulgação da lei que
afetou meu trabalho como médico, outra ordem oficial foi dada pelo
tribunal em Lisboa. Ela declarava que era ato criminoso um cidadão
britânico ensinar doutrinas contrárias à religião oficial do Estado, com
a participação de portugueses. Após receber uma cópia desta ordem,
não me senti livre para continuar meus encontros com os irmãos
portugueses, e cessei de ministrar para eles publicamente”.
A igreja e o Estado conspiravam contra o “bom doutor”. Mais de
uma vez, as autoridades oficiais invadiram sua casa durante os
encontros que ele fazia ali, e, finalmente, com base numa lei sancionada
pela Inquisição, em 1603, contra todas as heresias, as autoridades
aprisionaram Dr. Kalley. Visto que o crime cometido era passível de
pena de morte, lhe foi negada a fiança. Em conseqüência disso, houve
uma grande onda de protestos. A Igreja Livre da Escócia, a Sociedade
Missionária de Londres, juntamente com outras instituições britânicas,
assim como pessoas individualmente, combinaram seus esforços para
assegurar a libertação do Dr. Kalley. Estes esforços foram, no entanto,
sem sucesso. As autoridades portuguesas se recusaram a ceder à
58 JORNADA NO IMPÉRIO
ARAINHA E AS BÍBLIAS
Em outubro, o bispo de Madeira, Dom Januário Vicente Camacho,
publicou uma carta pastoral para ser lida em todos os púlpitos. Esta
declarava que as Bíblias distribuídas na ilha, ainda que fossem a versão
da Igreja Católica Romana, traduzidas da Vulgata pelo Padre Antônio
Pereira de Figueiredo, eram falsas; eram na verdade uma imitação do
texto autorizado! O Dr. Kalley havia tomado o cuidado de pedir para
a Sociedade Bíblica esta versão católica, sem os livros Apócrifos, ao
invés da versão protestante, traduzida por João Ferreira de Almeida, a
fim de assegurar aos madeirenses que a Bíblia distribuída por ele era
a versão autorizada pela Igreja Católica. O bispo condenou a leitura
da Bíblia e excomungou, conseqüentemente, qualquer um que a
60 JORNADA NO IMPÉRIO
UMA TRÉGUA
Com alguma relutância o governo britânico cedeu à pressão e
interveio à favor do doutor, através do Embaixador Britânico em Lisboa,
Lord Howard de Walden. A Corte de Apelação do reino de Portugal
resolveu, em 12 de dezembro de 1843, que a recusa em aceitar fiança
foi ilegal, assim como a prisão e detenção do doutor. Os britânicos
alegaram que o Dr. Kalley, sendo um cidadão britânico residente em
Funchal, não havia de forma alguma infringido qualquer artigo do
Tratado de 1842. Em vista da decisão da Corte de Lisboa, Dr. Kalley
foi libertado da prisão. Ele ficara confinado por seis meses.
Uma vez que sua prisão havia sido considerada ilegal e não
recebera acusação alguma, ele retornou a suas atividades normais.
No entanto, se ausentou de Funchal por um certo período, quando ele
e sua esposa se mudaram para um local afastado nas montanhas,
Quinta das Ameixeiras. Isto permitiu que concentrasse seus dons
pastorais numa congregação em grande crescimento nas montanhas,
em Santo Antônio da Serra. Este local logo se tornaria um dos mais
importantes centros de fé evangélica na ilha. Dr. Kalley escreveu:
A TEMPESTADE SE A PROXIMA 61
O NOVO PASTOR
O Reverendo Hewitson era um jovem extraordinário. Como um
estudante em Edimburgo, ele recebeu as mais altas honras acadêmicas,
mas, ao se esforçar tanto, sua saúde, que nunca fora robusta, sofreu
um grande baque. Não era só um intelectual, mas um rapaz
profundamente espiritual. Certa vez, ele escreveu: “Ser cristão
evangélico vem do coração, do espírito, não da erudição; tem glória
não proveniente de homens, e sim de Deus – se Cristo está em nós,
então as evidências de sua graciosa presença não são confusas ou
ilegíveis – a fé que faz a vida também ilumina, porque fé é precisamente
a graça do Salvador que habita em nós, de forma que o Salvador é
nossa vida, e esta vida é a luz dos homens”.
Apesar da frágil saúde, ele implorou à igreja que o ordenasse e lhe
concedesse um local para fazer o trabalho missionário. Finalmente,
foi decidido que Madeira era o local adequado, e ele foi devidamente
ordenado em novembro de 1844, pelo Presbitério de Edimburgo, da
Igreja Livre da Escócia. A Igreja Livre, desta forma, assumiu a juris-
dição do trabalho missionário em Madeira. O Reverendo Hewitson
foi a Lisboa onde permaneceu por três meses, a fim de aprender
português, e lá encontrou o Dr. Kalley. Mais tarde, o próprio doutor
confessou que seu jovem colega “começou com grande zelo e amor o
trabalho para o qual Deus graciosamente, e de maneira tão extraordi-
nária, o havia preparado. Sua presença foi providencial. Que o Senhor
NASCE UMA IGREJA 65
AIGREJA É ESTABELECIDA
AIGREJA SOBATAQUE
Em outubro de 1845, o ritmo da perseguição foi consideravelmente
avançado. Os crentes estavam sujeitos ao tormento crescente por
parte de seus vizinhos, empregadores e autoridades.
O Sr. Hewitson descreveu a terrível situação num relatório para a
Comissão Colonial da Igreja Livre da Escócia: “As pessoas de Serra
ainda estão presas, e não há qualquer certeza sobre quando serão
levadas a julgamento. O número de crentes aprisionados por lerem a
Palavra de Deus é de vinte e oito. Seis deles foram pegos algumas
semanas atrás. O seu crime foi o de se reunirem numa noite de domingo
para mútua edificação através da leitura da Bíblia e oração. Outros
três foram presos ao mesmo tempo, mas acabaram sendo libertados
quando a ilegalidade de sua prisão foi provada. Outra família de três
pessoas recebeu um aviso de que seria sentenciada a sete anos de
deportação na África e ainda teria de pagar uma pesada multa. Eles
fugiram para Demarara antes da publicação da sentença. Aqueles
que têm abraçado a fé cristã, com raras exceções, estão suportando
firmes, apesar dos ataques violentos de seus perseguidores. Estou
certo de que há muitos outros que lêem a Bíblia secretamente e cuja
única esperança de salvação é a fé em Jesus Cristo, mas aos tais falta
coragem para declarar isto abertamente. Apenas Elias confessou sua
fé publicamente, mas havia sete mil que não se dobraram a Baal! Eles
adoravam o verdadeiro Deus em segredo”.
A saúde do Sr. Hewitson deteriorava-se progressivamente, ele
sobrecarregava a si mesmo. Também a ordem para a sua expulsão
não poderia ser adiada por muito tempo. Na verdade, ela se tornou
inevitável quando foi convertido um homem mau, empregado pelos
padres para liderar o mais violento ataque dos perseguidores. Tal ato
da graça de Deus foi anátema para seus empregadores. O destino do
Sr. Hewitson estava selado – expulsão como um “indesejável”. Dr.
Kalley, que retornara recentemente da Escócia, recomendou
veementemente a seu colega que partisse de Madeira o mais rápido
possível. Embora relutante, o Sr. Hewitson embarcou para a Escócia
68 JORNADA NO IMPÉRIO
CAPÍTULO 7
ATEMPESTADE DESABA
O Supremo Tribunal em Lisboa agora ordenava que muitos dos
crentes detidos na prisão fossem libertados. Tal ato de clemência serviu
apenas para incendiar ainda mais os perseguidores, de forma que,
por volta de agosto de 1846, a tempestade alcançou sua fúria completa.
A imprensa pró-católica incitava o uso da violência para controlar a
ameaça atribuída aos “calvinistas hereges”. O Imperial declarou serem
o chicote, o tronco ou até mesmo o enforcamento, os únicos argumentos
que os camponeses poderiam entender. Foi sugerido que houvesse
outra “Noite de São Bartolomeu” – a noite quando, na França, milhares
de huguenotes foram massacrados. O clero incitava a multidão a
cometer atrocidades, e os crentes eram cruelmente atacados,
espancados com porretes e, em muitos casos, deixados neste estado
para morrer. Suas casas foram incendiadas, e os seus bens, saqueados.
Os perseguidores clamavam que não havia qualquer lei protetora dos
“calvinistas”, e as autoridades não intervinham. Os perpetradores da
violência nunca foram punidos.
Os cemitérios foram fechados para os crentes. O primeiro
convertido de Dr. Kalley, Antônio Fernandes da Gama, morreu e seu
enterro foi proibido. Em vão a comunidade britânica suplicou às
autoridades eclesiásticas permissão para enterrá-lo no cemitério
70 JORNADA NO IMPÉRIO
privado deles. Elas diziam que ele deveria servir de exemplo, sendo
enterrado numa encruzilhada, de forma que seu túmulo fosse profanado
pelos pés de todos os passantes!
Muitos da colônia britânica simpatizavam com Dr. Kalley e
admiravam grandemente o trabalho que ele fazia pelos pobres. Setenta
e sete deles assinaram uma petição endereçada ao Lord Howard de
Walden, em Lisboa: “Nós, signatários, cidadãos britânicos, ouvimos
que certas acusações serão feitas pelo governador de Madeira para o
governo de Lisboa contra o nosso estimado conterrâneo, Dr. Robert
Reid Kalley. Sabendo que tais acusações podem afetar a permanência
dele na ilha, consideramos tal fato uma calamidade para os habitantes
em geral e especialmente para aqueles mais pobres. Portanto,
desejamos informar Vossa Excelência de nossa estima pelo Dr. Kalley
como pessoa e de nossa verdadeira apreciação por sua benevolência
desinteressada e incansável em prover educação, tanto secular quanto
religiosa, para os pobres, assim como em fornecer-lhes tratamento
médico gratuito…”
AS ACUSAÇÕES DO BISPO
As acusações citadas foram encaminhadas para Lisboa pelo
próprio bispo. Ele as compilou num panfleto intitulado Uma Visão
Histórica do Proselitismo Anticatólico Praticado pelo Dr. Robert
Reid Kalley, Médico Inglês, na Ilha da Madeira, desde 1838 até
Agora. A publicação foi largamente distribuída numa tentativa de
conseguir a simpatia tanto das autoridades religiosas quanto das
seculares e abrir caminho para os meios violentos que estavam para
ser utilizados, com a finalidade de silenciar o doutor e assegurar sua
expulsão de Madeira. O doutor respondeu, tanto em Funchal quanto
em Lisboa, publicando sua defesa, também na forma de panfleto, A
Exposição dos Fatos, e expressou-se em termos incisivos, porém
educados.
Em seu panfleto, o bispo resumia as acusações contra o Dr. Kal-
ley. Este era acusado de protestantismo, presbiterianismo, calvinismo,
fanatismo; foi culpado de proselitismo desinibido, de maneira tanto
A TEMPESTADE DESABA 71
AVIOLÊNCIA DA MULTIDÃO
Em 2 de agosto, na casa da Srta. Rutherford, uma inglesa cuja
casa situava-se à rua Quinta das Angústias, um grupo de aproximada-
mente trinta madeirenses, liderados por Arsênio, encontrou-se para
orar e ler uma carta do Reverendo Hewitson. Viviam com a Srta.
Rutherford duas irmãs suas, das quais uma estava seriamente doente.
Conforme a reunião terminava, um problema começava lá fora, na
A TEMPESTADE DESABA 73
lei. Por trás de tudo isso estava o Cônego Telles e outros clérigos
incitando o ódio e violência. A Sra. Kalley e outras mulheres acharam
refúgio no consulado britânico. O cônsul, deliberadamente, escolheu
se ausentar por um período e passar este tempo em sua casa de campo
nas montanhas! No sábado, dia 8, ficou muito claro ao Dr. Kalley que
ele não poderia contar com qualquer tipo proteção, portuguesa ou
britânica. Com ajuda de amigos, ele procurou bloquear todas as janelas
e portas. O chefe de polícia tinha enviado um destacamento policial
para guardar o portão que dava para o quintal e a casa propriamente
dita, mas o doutor os ouviu discutindo com um grupo de homens
mascarados, se o ataque deveria começar lá e naquela mesma hora
ou se deveriam esperar o sinal que eles já haviam planejado! Às duas
horas da madrugada, ferrolhos e barras foram verificados, e o doutor
se disfarçou de camponês. Seus amigos insistiram em que ele deveria
escapar imediatamente. Ele escalou um muro nos fundos, desceu num
vinhedo e subiu a colina para uma casa segura. Seus amigos o seguiram
pelo muro e depois se dispersaram.
AFUGA
A busca pelo doutor continuou implacavelmente. Ele havia
encontrado refúgio na casa de dois irmãos, seus convertidos, na Quinta
da Boa Vista. Sua vida estava em perigo; era preciso encontrar um
meio de colocá-lo a bordo de um navio britânico ancorado no porto e
com destino às Índias Ocidentais. O cônsul pensava que Dr. Kalley
deveria ser escoltado pelo governador e uma companhia de soldados,
da cidade até o local de embarque e desembarque na praia. Quando
ouviu esta idéia, a Sra. Kalley se opôs. Corretamente, ela acreditava
que em tal companhia seu marido estaria em perigo ainda maior – o
governador era seu inimigo declarado, os soldados eram traiçoeiros, e
a multidão estava sedenta pelo sangue do doutor. Nem sua esposa
78 JORNADA NO IMPÉRIO
nem seus amigos poderiam concordar com tal plano; então, inventaram
um engenhoso, mas extremamente perigoso, método de fuga. Em
Funchal havia várias formas de transporte: um tipo de trenó puxado
por bois, uma padiola levada por carregadores, e a rede, presa numa
vara de madeira e carregada em revezamento pelos carregadores –
método geralmente utilizado para transportar de um lugar para outro,
pessoas doentes. Uma rede foi obtida e com extrema dificuldade
conseguiram contratar os carregadores. Dr. Kalley foi disfarçado como
uma mulher velha e doente! Quando ele estava na rede, foi possível
um disfarce completo pelo costume da cobrir os doentes dos pés à
cabeça com um lençol. Os carregadores estavam desconfiados.
Suspeitavam que estivessem carregando um falso paciente, e um dos
bem pesados! Por mais de uma vez eles colocaram a rede no chão e
disseram que não continuariam a andar. Por todo o tempo, enquanto
atravessavam a cidade, passaram por aglomerações de pessoas
discutindo os eventos daquele dia. A multidão estava certa de que o
doutor havia conseguido chegar até o consulado britânico, de forma
que se aglomerou lá, exigindo que o doutor fosse entregue nas mãos
deles. Um dos carregadores desistiu do trabalho, exatamente quando
estavam dentro do campo de visão da multidão, e a situação começou
a se tornar desesperadora. Outro carregador foi compelido a assumir
aquele lugar, e a jornada para a praia seguiu em frente. Durante a
demora em conseguir outro carregador, alguém notou que o servo do
Dr. Kalley estava ajudando a carregar a rede. Os gritos vieram logo
em seguida: “Kalley! Kalley!” Os gritos ecoaram por todas as ruas,
mas, na confusão que se seguiu, os carregadores foram capazes de
chegar à praia, antes que a multidão saísse em perseguição a eles. O
barco que levava até o navio estava esperando, e a rede foi colocada
nele. Minutos depois, a turba frustrada, andando pela praia, assistiu o
barco sendo levado em direção ao navio.
Enquanto isso, aqueles que ainda estavam ao redor do consulado
continuavam em grande agitação. Insistentemente, exigiam que o Dr.
Kalley fosse trazido de seu esconderijo até eles. Invadiram o pátio do
consulado e ergueram as vozes: “Fogo! Tragam fogo!” A perigosa
situação foi colocada sob controle pelo capitão do navio que havia
chegado para conversar com o cônsul a respeito do Dr. Kalley. Com
A TEMPESTADE DESABA 79
OS CRENTES FOGEM
Havia apenas uma opção para aquelas almas atribuladas por amor
a Jesus Cristo: a fuga da ilha. Por coincidência, ao tempo destas
demonstrações de fanatismo e intolerância em Madeira, os britânicos
recrutavam trabalhadores para as lavouras de cana-de-açúcar nas
Índias Ocidentais. Os escravos tinham sido libertos, e era difícil
conseguir a força de trabalho necessária. Madeira era um dos portos
no qual ancoravam os navios especialmente fretados para esta
finalidade, a fim de trazer os trabalhadores necessários para o Caribe.
Como a fúria inicial da perseguição começou a diminuir, no fim de
agosto, o navio William, de Glasgow, ancorou na baía. Os arranjos
necessários foram feitos para que à noite, os barcos do navio pegassem
secretamente os refugiados, nos calmos braços do mar ao longo da
costa, e os transportasse até o navio. Eles escapavam com suas vidas,
mas tudo o que possuíam tinha de ser deixado para trás. Estavam tão
maltrapilhos que a tripulação lhes deu roupas melhores. Dentre estes
madeirenses havia alguns que, como Saulo de Tarso, uma vez pensaram
estar fazendo o serviço de Deus, ao perseguirem os leitores da Bíblia,
mas que, através do testemunho silencioso e inabalável dos perseguidos,
acabaram sendo ganhos para a fé, e agora eles próprios eram vítimas
da perseguição!
Quando o William navegou para as Índias Ocidentais, em 23 de
agosto, mais de 200 crentes se apinhavam a bordo. Abandonar sua
terra natal tão repentina e inesperadamente lhes partiu o coração,
mas estavam juntos, unidos no sofrimento pelo amor de Cristo e cheios
de esperança de que no Novo Mundo, para o qual estavam indo, seriam
livres para adorar a Deus de acordo com os ditames de suas
consciências. Alguns dias depois, mais de 500 de seus irmãos os
seguiram a bordo do Lord Seaton. Nos meses que se seguiram, as
autoridades proveram os emigrantes protestantes com vistos de saída
RENASCIDA DAS CINZAS... 83
ILLINOIS
Em novembro de 1848, num domingo, um grupo de aproximada-
mente 100 madeirenses desembarcou em Baltimore. Eles foram
recebidos entusiasticamente, ganhando roupas quentes para o inver-
no e alojamentos. O presbítero Francisco de Souza Jardim escreveu:
“Apenas pela intervenção de nosso bom Deus, após todas as perse-
guições que já temos sofrido por causa do evangelho, e isto em nossa
própria terra, podemos agora ser recebidos de braços abertos numa
terra estranha e ter todas as nossas necessidades supridas”.
A Sociedade Protestante Americana fez ainda mais. Enviou um
representante para Trindade, o Reverendo Manoel G. Gonçalves. Ele
88 JORNADA NO IMPÉRIO
__________________________________
IRLANDA
A crise de escassez de batatas na Irlanda tinha começado em
1842 e devastou todo o país. Cinco anos depois, como conseqüência
de tal desastre, pobreza, fome, doenças e profunda miséria ainda
94 JORNADA NO IMPÉRIO
PALESTINA
Após a morte de sua esposa, o doutor estava livre para fazer algo
que há muito tempo desejava fazer: explorar a Palestina. Desde sua
conversão e da época de seus estudos a respeito da profecia, ele
ansiava o dia em que poderia estar na mesma terra que Deus escolheu
para seu povo, os judeus.
Na Terra Santa, viajou extensivamente e tornou-se uma autorida-
de em sua história, geografia e costumes. Parte do tempo, acompanhou
um amigo missionário escocês. Dr. William M. Thomson, autor do
livro The Land and the Book. Ele passou algum tempo em Safed,
possivelmente a “cidade edificada sobre um monte” a que Nosso Se-
nhor se refere no Sermão do Monte. Ela foi construída numa montanha,
96 JORNADA NO IMPÉRIO
tentativa de encontrar a cura para sua doença, mas agora estava com
seu pai e sua irmã mais velha, Sarah Poulton Wilson, em Beirute. Dr.
Kalley não podia fazer nada pelo jovem, que morreu pouco tempo
depois. Entretanto, como resultado da visita, o doutor tornou-se mais
próximo da família Wilson, e especialmente de Sarah. Ela ouvira sobre
a perseguição em Madeira e estava mais que interessada em encontrar
o médico missionário envolvido naquilo tudo. Dr. Kalley retornou para
a Inglaterra no mesmo navio que os Wilsons, e durante a viagem, ele
e Sarah estavam freqüentemente na companhia um do outro,
conversando. Sua amizade cresceu e logo se tornou amor, e em
dezembro de 1852 casaram-se na Igreja Congregacional de Albany
Road, em Torquay.
A vida tomou uma nova dimensão. Toda a sua vida e ministério
foram enriquecidos. E dificilmente poderia ter sido de outra forma, já
que a Sra. Sarah Kalley tinha uma personalidade talentosa e irresisti-
velmente atrativa. Ela exercia grande influência em todos que a co-
nheciam. Sarah Poulton Kalley e Robert Reid Kalley se completavam.
Há alguns casais cujas vidas são tão entrelaçadas que é impossível
separá-las, como por exemplo, Priscila e Áquila, nas Escrituras. Um
nunca é mencionado sem o outro. Após o casamento, aconteceu o
mesmo com Sarah e Robert: eles eram inseparáveis. A biografia dele
torna-se então a biografia deles.
Sarah nasceu em Nottingham, em 1825. Seu pai, William Wilson,
era um rico industrial, e sua mãe, também chamada Sarah, era irmã
de um famoso político do período Vitoriano, Samuel Morley. Sua mãe
morreu quando ela era ainda jovem, e seus primeiros anos foram vivi-
dos, em parte, em sua própria casa e, em parte, com os parentes de
sua mãe, os Morleys, em Londres. Desde sua infância, mostrava um
entusiasmo genuíno pela vida: transbordava de vitalidade e de um ví-
vido humor. Mesmo quando mais velha, esta característica
permaneceria inalterada. Ela manteve seu prazer juvenil pela vida e,
mesmo idosa, ainda atraía jovens para perto de si. Era muito inteligen-
te e, como pertencia a uma família rica, fora muito bem educada,
falando fluentemente tanto francês quanto alemão, tendo viajado ex-
tensivamente por todo o continente europeu. Seus dons artísticos eram
muitos: música, poesia, pintura – era talentosa em tudo isso. Algumas
98 JORNADA NO IMPÉRIO
UM NOVO COMEÇO
Durante os dois anos imediatamente posteriores ao casamento, o
doutor e sua esposa fizeram aquela que seria sua última visita aos
madeirenses, nas Índias Ocidentais e na América do Norte. Em am-
bos os lugares, tiveram uma arrebatadora recepção. Em Trindade, no
Caribe, onde a maioria dos crentes agora vivia, o doutor conduziu
cultos, estudos bíblicos e, com sua esposa, visitou os crentes individu-
almente em suas casas. O amor fraternal estava completamente em
evidência. Dr. Kalley e seu rebanho tinham sofrido juntos em Madei-
ra, e os laços do amor mútuo e estima os mantinham próximos.
Em Illinois, a recepção foi igualmente cordial. Os madeirenses
declararam feriado de um dia para celebrar a chegada de seu amado
pastor. Foi um dia de grandes festividades – culto de ação de graças
com louvores e hinos, festejos e também lágrimas de alegria. Dr. Kalley
se engajou em intensivas atividades, tanto pastorais quanto
evangelísticas, enquanto a Sra. Kalley ensinava piano aos jovens, e
mantinha aulas regulares de canto para toda a congregação. Ela
acreditava corretamente que a verdadeira igreja é aquela que canta e
cujo canto congregacional deveria ser da mais alta qualidade possível.
Como resultado destes meses de trabalho tão dedicado, a igreja cresceu
consideravelmente.
Enquanto isso, vendo pessoalmente as bênçãos desfrutadas por
estes madeirenses, antes perseguidos, mas agora alegremente
assentados em sua terra prometida, o doutor intensificou seus esforços
para atrair a Illinois o remanescente de seu rebanho que ainda sofria
em Madeira. Muitos emigraram, com as despesas da viagem pagas
pelo doutor e seus amigos americanos. Dr. Kalley insistia que era um
dever sagrado destes madeirenses que falavam português fazer o nome
de Cristo conhecido em toda parte do mundo onde se falava português.
Ele próprio deu o exemplo, pois foi quando estava em Springfield,
Illinois, que considerou seriamente a possibilidade de servir em outros
campos missionários. Com a sua idade, beirando os cinqüenta, outros
homens ficariam contentes em se aposentar, mas a natureza dinâmica
do doutor não permitiria que ele descansasse. Em uma carta para
100 JORNADA NO IMPÉRIO
RIO DE JANEIRO
Ao desembarcarem, os Kalleys contrataram um veículo e
percorreram a cidade na esperança de encontrar uma casa adequada
que pudessem alugar. Não tendo sucesso nisso, hospedaram-se num
hotel chamado Pharoux, de frente para o mar, não muito longe do
ponto de desembarque. A agitação e tensão da manhã tinham sugado
todas as energias deles. Durante a ancoragem do Great Western na
baía, a cidade parecia tão bonita, contudo, uma olhada mais de perto,
à medida que andavam pelas ruas, lhes deu uma impressão bem
diferente e desagradável. Estavam desiludidos – as coisas não eram
do jeito que esperavam que fossem. A cidade era decepcionante,
embora o lugar fosse atrativo com suas quatro montanhas e vales
entre elas, e suas terras baixas. Em todo lugar havia igrejas e prédios
monásticos feios e de aparência desagradável, pertencentes às
diferentes ordens religiosas. Eles cobriam as montanhas e se
espalhavam pelas praças abaixo. Padres, monges e frades eram muito
108 JORNADA NO IMPÉRIO
FIXANDO RESIDÊNCIA
Fixar residência no Rio de Janeiro era mais difícil do que haviam
pensado. Nem mesmo suas experiências no Oriente Próximo e nas
Índias Ocidentais tinham lhes preparado para o choque cultural que
experimentaram na capital do Brasil. O calor, os odores, a
predominância de escravos africanos, o trânsito de cavalos, mulas,
veículos públicos, carruagens, pedestres de todos os lados, atropelando-
se nas ruas estreitas – tudo era desconcertante, decepcionante,
desencorajador... Eles tinham cartas de apresentação dirigidas a várias
pessoas, tanto britânicos quanto brasileiros, e as entregaram
pessoalmente. Cada um destes novos conhecidos foi presenteado com
um relógio de ouro, trazido da Inglaterra especialmente para este
propósito! Enquanto prosseguiam com este trabalho, acabaram
conhecendo alguém que se tornaria um amigo íntimo deles e que
também seria de grande ajuda: o Dr. José Martins da Cruz Jobim, um
senador, médico do imperador, diretor de instituições médicas. Eles
aprenderiam com ele uma característica da cultura brasileira – a
importância de ter amigos em altas posições. Um brasileiro faz qualquer
coisa em favor de um amigo!
CAPÍTULO 11
ATERRA DA CRUZ
SEM CRISTO
O s Kalleys permaneceram no Brasil por vinte e um anos, e ao
ficar, fizeram tudo aquilo que os outros falharam em fazer no passado,
isto é, plantar a cruz do Cristo vivo na “terra da cruz sem Cristo” – e
isto de uma forma firme e duradoura.
Uma “cruz sem Cristo”? Para entender exatamente o que esta
frase quer dizer é necessário pesquisar brevemente a história, e, ao
fazer isto, sair da história dos Kalleys.
Por 500 anos, do século oito ao treze, os mouros ocuparam Portugal,
e a cruz era subserviente à lua crescente [símbolo do islamismo].
Com a derrota e expulsão dos mouros, a cruz vitoriosa tornou-se um
símbolo nacional como o próprio estandarte real. Esta cruz, no entanto,
era feita apenas de materiais extrabíblicos, ou seja, tradições
eclesiásticas. Padres e monges moldaram-na e, então, instilaram sua
imagem na mente das pessoas. Cristo estava na cruz apenas na forma
de um crucifixo, como uma figura que estava morrendo, tão patética
que era capaz apenas de causar sentimentos de pena. Cristo, como
uma viva realidade, era desconhecido. Além da cruz, na mente das
pessoas, Ele também existia no céu, mas como uma figura remota,
112 JORNADA NO IMPÉRIO
ACRUZ É IMPLANTADA
O objetivo dos portugueses em empreender suas grandes viagens
de exploração no século dezesseis não era meramente achar e clamar
novos territórios para a Coroa, mas também implantar a cruz nestas
terras. Uma viagem de descobrimento era uma cruzada. A militância
tão característica do islamismo era agora o fator dominante da cruz
exaltada. A cruz de oito pontas dos Cavaleiros do Santo Sepulcro,
agora a ordem militar de Cristo, resplandecia em seu vermelho brilhante
nas velas das caravelas que carregavam os exploradores. Uma fé
fanática pela cruz queimava na alma destes homens, e eles acreditavam
que a mesma credulidade deveria ser introduzida nas almas dos pagãos
que eles conquistavam, ainda que para isso fosse necessário o uso da
espada.
Quando, em 1500, Pedro Álvares Cabral navegou de Tagus, no
comando de uma pequena frota de navios, comissionado para implantar
uma colônia portuguesa em Calcutá, o vento e as correntes marinhas
o levaram a uma costa desconhecida, que mais tarde se mostrou ser o
Brasil. Fiel à sua fé, ele chamou a primeira montanha que apareceu
A TERRA DA CRUZ SEM CRISTO 113
ponto de pensar que nós brasileiros – quase todos de nós, até mesmo
aqueles de São Paulo e do Rio Grande do Sul, como nossos primos
negros – somos realmente um povo latino e, ainda menos exatamente,
cristão… Nós somos concordantes de que o catolicismo foi um fator
poderoso na integração do Brasil, mas um catolicismo que, em seus
contatos, na Península Ibérica, com as religiões africanas, adquiriu
uma cor mais escura, mais mulata. Desta forma, ele próprio se adap-
tou às condições de vida nos trópicos e ao nosso povo de origem
mestiça. As portas dos santuários se abriram completamente para
admitir ídolos africanos disfarçados como São Cosme e Damião, as
figuras negras de São Benedito e Santa Efigênia, Nossa Senhora do
Rosário de pele escura e outros santos negros que tomaram seus
lugares ao lado de Santo Antônio, querubins com cabelos dourados,
em uma fraternização que sobrepujou aquela encontrada entre os
humanos. Santos e anjos, tradicionalmente loiros, foram forçados a
imitar o povo, tornando-se mais como eles, os parentes de negros e
mulatos. Nas mãos de nossos escultores de imagens, até mesmo Nossa
Senhora tomou traços mulatos para si, algumas vezes simulando a
pele e adquirindo os seios de uma mãe negra. E a imagem mais popu-
lar no Brasil é a de um judeu escuro, abatido, com cabelo preto ou
castanho; o cabelo e a barba não são loiros como nas representações
históricas ou ortodoxas do Redentor no Norte da Europa. Se os pa-
dres tivessem insistido em impor às pessoas os santos loiros, talvez
afastassem um grande número de brasileiros do catolicismo, e pode-
ria ter surgido ao redor dos altares e dos santos um clima de frieza e
indiferença, assim como ocorreu ao redor do trono dos imperadores e
regentes loiros. Há indícios de verdade na improvável alegação de
que o primeiro imperador perdeu o trono por não ser um brasileiro
nativo, e o segundo, por não ser mulato”. O catolicismo havia sido
mesclado com raízes pagãs, estas contaminando aquele. O Dr. e a
Sra. Kalley podem não ter compreendido isto completamente quando
desembarcaram, mas logo entenderam, ao se estabelecerem no Bra-
sil.
A TERRA DA CRUZ SEM CRISTO 115
TOLERÂNCIA OFICIAL
Nos círculos oficiais, o espírito de tolerância prevalecia. Estava
na moda ser tolerante. As nações protestantes, Inglaterra e Prússia,
haviam destronado Napoleão e protegido o trono português nas mãos
da família Bragança. A Inglaterra contribuíra decisivamente para a
independência brasileira. O protestantismo, ao menos em teoria, senão
na prática, estava em ascendência. Muitos dos clérigos nativos eram
liberais, como Kidder descobriu em suas viagens como vendedor de
livros. Eles se auto-intitulavam discípulos de Jansênio, um teólogo
holandês que expunha livre e plenamente as doutrinas de Sto.
Agostinho. Seu dogma tornou-se um estudo básico nos seminários do
Rio e Recife. Os clérigos treinados nestas escolas eram favoráveis à
distribuição irrestrita da Palavra de Deus e prontamente se
encarregaram de doar as cópias das Escrituras que Kidder deixara
com eles. Infelizmente havia uma forte mistura de padres e prelados
UMA PORTA ABERTA 123
AATITUDE DO IMPERADOR
Dois outros fatores que pesavam muito em favor do evangelho
eram a atitude do jovem imperador e a política de imigração de seu
governo. Dom Pedro II tinha sido proclamado imperador quando seu
pai foi deposto. Ele nascera no Brasil, e o povo o aceitava como um
verdadeiro brasileiro; e, sob a tutela de Feijó, cresceu o amor de D.
Pedro II por seu povo e seu país. Ele era um governante sábio e
tolerante, interessado no bem-estar de toda a nação. Professava ser
católico romano, mas tinha grande aversão por Roma. Simpatizava
profundamente com o movimento que procurava romper com o
Vaticano e deixava, assim, a igreja livre para sua verdadeira missão
de ministrar às necessidades espirituais do povo. Era essencialmente
um estudante das artes e ciências, e isto pode ter contribuído para seu
profundo desprezo pela mensagem da igreja oficial. Acreditava num
124 JORNADA NO IMPÉRIO
PETRÓPOLIS
Os Kalleys tinham sido assegurados por conhecidos brasileiros
de que certamente achariam na cidade vizinha, Petrópolis, situada no
alto das Montanhas dos Órgãos, aquilo que não encontraram no Rio.
O Rio de Janeiro não era exatamente o lugar mais saudável para se
viver: o saneamento básico era inexistente, a água era escassa, o
clima pesado e úmido, e com a chegada da estação quente, de outubro
a março, ele se tornaria sufocante. A febre amarela e a febre tifóide
vinham fazendo inúmeras vítimas, especialmente entre os moradores
britânicos. As lápides no cemitério britânico no distrito de Gambôa
testificavam eloqüentemente o perigo de se residir em um clima tão
prejudicial.
Petrópolis fora construída alguns anos antes com o propósito de
ser residência de verão do imperador e sua corte. Sua localização nas
montanhas atrás do Rio era ideal: um clima agradável, belas paisagens,
e situada no principal caminho entre a capital do Estado e Minas
Gerais, com sua riqueza proveniente do ouro e das pedras preciosas.
A cidade era bastante espaçosa, livre de toda a sujeira característica
do Rio de Janeiro, e parecia mais uma capital que o próprio Rio. Os
departamentos governamentais eram localizados em prédios bem
planejados; o palácio do imperador era muito imponente e a aristocracia
havia construído para si palácios residenciais. Era uma cidade
agradável para se fixar residência. Era lá também que o impacto da
política de imigração do governo foi mais aparente – trabalhadores
alemães e suíços juntaram-se naquele local, morando em fileiras de
humildes cabanas. Havia até mesmo uma Igreja Luterana Alemã, uma
concessão aos recém-chegados.
Os Kalleys finalmente ouviram o conselho de amigos brasileiros e
GERNHEIM 129
PEQUENOS COMEÇOS
O Brasil, em toda a sua vastidão e profundas necessidades,
permanecia aberto ante eles, mas agora que os Kalleys estavam
acomodados, como poderiam iniciar sua missão? Começaram
exatamente onde estavam, na situação em que se encontravam. Os
filhos das famílias protestantes, suíças e alemãs, assim como os filhos
dos britânicos e americanos, precisavam de uma escola dominical onde
pudessem aprender as histórias da Bíblia.Alguns dias após sua chegada,
em 19 de agosto, a Sra. Kalley juntou os filhos do embaixador
americano e os de uma família inglesa, em um cômodo em Gernheim,
gentilmente emprestado pelo próprio embaixador, e lhes contou a
história de Jonas.
Assim como o poderoso Rio Amazonas tem seu início nas altas
nascentes dos Andes peruanos, o poderoso rio de águas vivas que
agora corre livremente pelo Brasil teve seu início naquela pequena
reunião em Petrópolis.Amissão dos Kalleys no Brasil havia começado.
Daquele domingo em diante a escola foi crescendo, e, uma vez que os
Kalleys tomaram posse de seu novo lar, foi seguido um padrão
estabelecido. Primeiro, as crianças alemãs se encontravam às três
GERNHEIM 131
RESPOSTA IMEDIATA
Houve uma resposta imediata, porém inesperada, à carta que Dr.
Kalley enviara aos crentes madeirenses em Illinois. Um homem inglês,
William Drayton Pitt, que, quando garoto, freqüentava as aulas de
134 JORNADA NO IMPÉRIO
O CUSTO DO CHAMADO
O doutor tinha sido bastante específico em seu convite aos crentes
VENHA E AJUDE- NOS 135
OSAJUDANTES DA MADEIRA
O PRIMEIRO CONVERTIDO
A abordagem usada pelo doutor em seu trabalho missionário con-
tinuou a ser cuidadosa, e ele decidiu que limitaria suas atividades ao
que fosse permitido por lei. Os cultos não-católicos poderiam ser con-
duzidos em alemão ou inglês para as congregações que consistissem
de pessoas destas nacionalidades, mas não havia qualquer lei proibin-
do, dentro dos limites do lar, conversas informais em português a respeito
de assuntos religiosos. Resultados positivos, no entanto, começaram a
aparecer. O Dr. Kalley batizou seu primeiro convertido, um portugu-
ês, José Pereira de Souza Lauro.
Embora o doutor pertencesse à Igreja da Escócia, e em Madeira
tivesse sido um presbítero da Igreja Escocesa, no Brasil ele apenas
batizaria os crentes, e faria isso pelo método da aspersão. As igrejas
brasileiras fundadas por ele seguiriam sua liderança: apenas aqueles
que professassem fé em Cristo eram batizados e recebidos como
membros da igreja. Anos mais tarde, e após muita discussão, membros
de outras igrejas protestantes que haviam sido batizados na infância
foram recebidos como membros mesmo sem ter de passar por outro
batismo, mas em um ponto o Dr. Kalley era inflexível – convertidos
da Igreja Romana deveriam receber novo batismo. E com isto as
igrejas concordaram.
Imediatamente após sua conversão e batismo, José Lauro começou
a testificar sua nova fé, lendo e explicando a Bíblia para grupos de
amigos e vizinhos. Ele alcançou pessoas além de seu próprio círculo
de amigos e vendeu uma Bíblia para duas mulheres aristocratas da
corte do imperador.
AIGREJA FLUMINENSE
Mais tarde, quando a estação quente de 1858 aproximava-se do
OPOSIÇÃO E ENCORAJAMENTO 141
O DOUTOR E A CONSTITUIÇÃO
O Sr. Stuart informou o doutor da situação. Em resposta às
acusações, o Dr. Kalley informou o Sr. Stuart que não tinha sido o
instrumento para a conversão de qualquer brasileiro em Petrópolis –
as duas mulheres já eram convertidas quando ele as conheceu; e que,
enquanto manteve reuniões informais em sua própria casa, não
realizara nenhum culto formal em português. O doutor anexou à sua
carta uma cópia do veredicto de três importantes juristas brasileiros,
e suas respostas a onze perguntas que lhes havia feito, com vistas a
esclarecer o significado da constituição brasileira. As perguntas, de
natureza retórica com exceção da última, embora expressas em
termos simples e diretos, progrediu inexoravelmente para o clímax, a
interpretação crucial dos Artigos 276 e 277 da Constituição Brasileira.
Estas perguntas, tão lógicas e tão persuasivas, revelam a sagacidade
mental do doutor:
5 Caso tal cidadão decida seguir uma religião que não seja aquela
oficial do Estado, ele é um criminoso, um apóstata, um blasfe-
mador, etc.?
OSATOS DO IMPERADOR
Apesar da atitude oficial, a situação não melhorou. Dois pacientes
do doutor morreram, e as autoridades locais se recusaram a aceitar o
atestado de óbito assinado pelo doutor. Mais problemas para os crentes
foram aparecendo, e duas aristocratas do local foram tão ameaçadas
que decidiram deixar Petrópolis. Os Kalleys começaram a sentir que
também teriam de ir embora. Eles estavam confiantes, no entanto,
que, mesmo se tivessem de deixar o país, o futuro do evangelho estava
garantido; a semente plantada continuaria a render frutos. As coisas
estavam ruins quando o inesperado aconteceu. O próprio imperador
interveio!
Ele fez uma visita aos Kalleys em Gernheim, em 28 de fevereiro
de 1860. Infelizmente o doutor estava doente, confinado em sua cama,
e incapaz de vê-lo. A Sra. Kalley, no entanto, o recebeu e assegurou-
lhe de que seu marido ficaria feliz em recebê-lo assim que se
recuperasse. Rumores se espalharam de que o imperador exigira que
os Kalleys deixassem o país! Alguns dias depois Dom Pedro
novamente visitou os Kalleys. Ostensivamente, ele disse que desejava
conversar com o doutor sobre a Terra Santa, mas na verdade estava
assegurando ao casal que defenderia a completa liberdade religiosa
dentro do império. Ele convidou o doutor ao palácio para dar à família
real e aos outros nobres uma palestra esclarecedora sobre a Palestina.
Os resultados destes gestos de amizade do imperador foram vistos
imediatamente. Membros da aristocracia e políticos passaram a visitar
os Kalleys em Gernheim, entre eles o proeminente senador Jobim.
Eles eram tantos que, em uma carta para seu pai, Sarah Kalley nem
sequer mencionou a todos pelos nomes. Muitos se tornaram firmes
amigos dos Kalleys e continuaram a sê-lo, mesmo quando eles
finalmente se mudaram para o Rio. É interessante notar que estes
contatos iniciais entre Dom Pedro II e os Kalleys ocorreram ao mesmo
tempo que chegou em Petrópolis, com sua comitiva, o núncio apostólico
– o mesmo homem que exercera toda a sua autoridade para silenciar
e expulsar o doutor.
O novo embaixador americano, General Watson Webb, era
OPOSIÇÃO E ENCORAJAMENTO 147
SALVADOR
Um dos mais corajosos destes apóstolos do século dezenove era
Thomas Goulart, espanhol de nascença e membro da Igreja Flumi-
nense. Dr. Kalley, agora associado ao trabalho de venda de livros
com o recém-chegado agente da Sociedade Bíblica Britânica e Es-
trangeira, enviou Goulart para Salvador, capital do Estado da Bahia.
Salvador era a “Atenas” do Brasil colonial, centro tanto da cultura
quanto da religião, cidade na qual se dizia haver tantas igrejas quanto
os dias do ano. Muitas delas são preciosidades da arquitetura barroca,
ricamente adornadas, em alguns casos até mesmo com ouro! A cida-
de foi a primeira capital do Brasil, o centro do mercado escravista e,
como tal, um lugar de tradições profundamente arraigadas e de gran-
150 JORNADA NO IMPÉRIO
A CONVERSÃO DE BERNARDINO
A conversão de Bernardino G. da Silva ilustra as táticas seguidas
pelos membros da Igreja Fluminense que tinham a mente voltada para
o trabalho missionário. Bernardino morava de frente ao mar, em San-
ta Luzia, distrito do Rio de Janeiro. Era um homem próspero, dono de
dois negócios, um açougue e um armazém. Um de seus clientes tinha
um vizinho que trabalhava com Jardim, no estaleiro, e àquele homem
Jardim pregou o evangelho. Toda noite, o homem contava ao seu vizi-
nho tudo o que Jardim lhe dissera durante o dia, e o amigo por sua vez
contava tudo a Bernardino. Este tinha uma Bíblia e diariamente exa-
minava suas páginas para descobrir se o evangelho era como Jardim
declarava. Logo chegaram ao estaleiro notícias de que em Santa Lu-
zia havia uma alma interessada no evangelho, então, Jardim foi conhecer
a loja, no domingo seguinte, enquanto Bernardino vendia camisas a
um cliente. Jardim perguntou se ele tinha uma Bíblia e se costumava
lê-la. Relutantemente, até mesmo temeroso, Bernardino confessou
ter uma Bíblia e que, sim, ele a lia. Estava esperando ser acusado de
algum crime e até mesmo preso! Mas, ao invés disso, Jardim pergun-
tou se ele acreditava na Bíblia e, se acreditava, porque não guardava
o dia do Senhor, ao abrir sua loja no domingo. Bernardino deu as
desculpas de sempre: seus concorrentes abriam as lojas no domingo;
era o dia de maior movimento; se ele deixasse de abrir aos domingos,
152 JORNADA NO IMPÉRIO
nal. A polícia apareceu, mas não fez nenhuma tentativa para deter a
violência. Pedras choveram no telhado e foram atiradas nas janelas.
A certa altura, a multidão tentou invadir a casa. Felizmente esta tinha
sido construída numa rocha bem acima da estrada e chegava-se nela
através de uma escada feita na própria pedra, de forma que uma
garrafa bem mirada, atirada de cima, acertou a parede derrubando
cacos de vidro sobre as pessoas que tentavam atacar. Isto indubita-
velmente salvou os crentes de serem severamente maltratados. Um
inspetor de polícia apareceu, silenciou a multidão e pediu, de modo
cortês, para falar com o Dr. Kalley pessoalmente. O pedido foi aten-
dido e como resultado dois policiais foram deixados de guarda na porta
e a multidão foi dispersa. Havia, no entanto, mais problemas, pois as
casas dos crentes tinham sido bastante danificadas pela multidão.
Mais tarde, cenas parecidas foram testemunhadas do outro lado
da Baía de Guanabara, em Niterói, onde a pregação do evangelho
estava atraindo grandes multidões. Lá, em 1864, a multidão se tornou
tão violenta que somente a intervenção direta da polícia, com as espadas
desembainhadas, impediu que o Dr. e a Sra. Kalley fossem linchados.
Neste caso, um dos desordeiros foi preso, mas depois libertado sem
receber qualquer punição. O Dr. Kalley fez uma reclamação formal
com os embaixadores britânico e americano e com o chefe de polícia.
Ele também conversou pessoalmente com o governador do Estado, o
que resultou na implementação de uma política de repreensão severa
de tais distúrbios. A ordem foi restaurada e os encontros passaram a
ocorrer sem mais nenhuma outra perturbação.
Estes incidentes serviram como exemplos para a violência das
multidões contra os protestantes evangélicos nos anos seguintes. Os
fanáticos, geralmente os próprios padres, incitavam a população à
violência, até que o Estado foi pressionado o suficiente para intervir.
Prisões simbólicas foram feitas, entretanto, os desordeiros presos sai-
ram impunes. A Igreja Católica Romana era a igreja oficial, mas era a
política do Estado mantê-la subordinada. Em círculos oficiais, a Igreja
Católica não era popular, mas tratava-se de uma organização muito
poderosa para ser contrariada, a não ser por razões constitucionais.
Os crentes jamais pressionariam, sob quaisquer circunstâncias, pela
condenação de seus perseguidores: os crentes oravam por eles e pro-
156 JORNADA NO IMPÉRIO
A COMPOSIÇÃO DE HINOS
Uma das maiores contribuições dos Kalleys à Igreja Fluminense,
na realidade, à igreja como um todo no Brasil, foi o livro de hinos
chamado Salmos e Hinos, o qual ainda hoje é um dos melhores e
mais populares hinários no país. Tanto o doutor quanto sua esposa
traduziram os hinos do inglês ou do alemão, e também eles próprios
escreveram hinos. O Dr. Kalley escreveu seu primeiro hino em
Madeira, no verão de 1842, e aquele foi seguido por outros,
notavelmente um, composto na prisão, em 1843: “Aqui nós sofremos
aflições e dores”. É provável que ele tenha finalizado a composição
deste hino enquanto, no convés do S.S. William, observava as densas
nuvens de fumaça, em Santa Luzia, subindo dos restos de sua
propriedade e da outra fogueira de Bíblias incendiadas na praça central
da cidade!
Como o doutor era escocês, suas traduções foram tomadas do
Saltério Escocês, mas, em seu casamento com Sarah, uma inglesa e
congregacionalista, as traduções e composições de novos hinos se
tornaram mais freqüentes. “Dentre os dois, a Sra. Kalley possuía o
maior talento poético”, afirmou o Reverendo Edward Moreira em sua
curta biografia dos Kalleys. “Em suas composições, o Dr. Kalley
sempre preocupava-se com a doutrina. Sua esposa, por outro lado,
adornava e ilustrava a doutrina com sua capacidade poética. O casal
compôs os primeiros hinos em português a provarem o teste do tempo.
Seus precursores, missionários aos portugueses no Extremo Oriente,
compuseram hinos que são puramente de valor histórico. Os hinos
escritos pelo casal ainda são cantados com entusiasmo e unção.”
O primeiro livro de hinos, publicado em 1861, apenas três anos
após a fundação da Igreja Fluminense, continha cinqüenta composições,
sendo dezoito salmos e trinta e dois hinos comuns. Este livro foi usado
pela primeira vez em 17 de novembro sob o título de Salmos e Hinos,
com as seguintes palavras adicionais: “Para o uso daqueles que amam
nosso Senhor Jesus Cristo”. A igreja estava agora preparada para a
adoração – tinha as Escrituras e um hinário. Três anos depois outros
seis hinos foram incluídos na coleção.
162 JORNADA NO IMPÉRIO
SR. HOLDEN
Dr. Kalley finalmente encontrou o que mais desejava – um
experiente e dedicado ajudante, Richard Holden. O doutor o descobriu
onde menos esperava – no Brasil! Em uma de suas cartas, o doutor
descreve como tudo aconteceu: “Em 1862, estando bastante adoentado,
fui obrigado a voltar à Europa. Sete meses depois, tendo me recuperado
o suficiente – não precisava mais das muletas – viajei pela Grã-
Bretanha na tentativa de encontrar alguém, um verdadeiro servo do
Senhor, que pudesse me ajudar em meus trabalhos pastorais no Rio
de Janeiro. No entanto, não obtive sucesso… Em setembro de 1863,
UM NOVO AJUDANTE E UM NOVO LAR 169
não apenas por suas políticas dentro da igreja (considerando que ele
já havia sido um presbiteriano e agora era um congregacionalista
praticante) mas também por seu método de trabalho missionário. Eles
o consideravam muito “tímido” e diziam que deveria haver mais
publicidade, um estilo de pregação do evangelho mais público e aberto,
até mesmo ao ponto da confrontação. O doutor insistia em que muita
publicidade era algo imprudente, como ele mesmo descobriu a alto
custo em Madeira. Lá as autoridades eclesiásticas tiveram sucesso
em fechar todas as suas atividades na ilha: primeiro seu trabalho médico,
depois, as escolas, e finalmente, sua pregação. Ele preferia seu próprio
método: a disseminação das Escrituras discretamente, através dos
vendedores de livros e da pregação nos lares e em locais de encontro.
Ainda assim houve perseguição, mas não através de fortes ataques
da religião oficial por parte do doutor. Seu conselho aos outros era:
“Esqueça que a pessoa com quem você está conversando é uma
católica romana que deve entender que a missa, a confissão, o
purgatório e o papa estão completamente errados – uma preocupação
intelectual deste tipo nunca levará aquela pessoa à salvação – e lide
com ela como uma pecadora, precisando da salvação que somente
Cristo pode dar através do seu sacrifício. Ela, então, será ensinada
sobre Deus e preparada para a ‘Casa de Glória’ ”.
Numa tentativa de esclarecer sua posição, o doutor procurou e
conseguiu um horário para conversar com o editor do Apóstolo, o
jornal católico romano mais agressivo nos ataques contra o doutor.
Mas, ao invés de melhorar a situação, a conversa apenas serviu para
que os artigos principais do jornal se tornassem mais mordazes do que
nunca. Através das colunas na imprensa diária, o doutor continuava a
defender seus pontos de vista, baseando-os, como era de costume,
somente na Bíblia.
O doutor não era de maneira alguma “tímido”, mas, como um
engenhoso escocês e um experiente missionário, ele praticou e
defendeu a precaução. As intimidações continuariam a vir até ele,
mas viriam sempre sem convite: não iria provocá-las deliberada-
mente.
LIDANDO COM OS PROBLEMAS 175
ESCRAVIDÃO
Ninguém poderia viver no Rio, nem mesmo os Kalleys, sem estar
completamente ciente da escravidão – o tráfico de seres humanos. A
maior parte da população da cidade era de escravos. No auge do
tráfico escravista, entre vinte e trinta mil escravos eram importados e
vendidos no mercado carioca. O outro grande mercado de escravos
era Salvador, na Bahia.
Os intrépidos marinheiros portugueses, enviados pelo Príncipe
Henrique, o Navegador, para explorar a costa Oeste da África, tinham
trazido o primeiro lote de escravos para Portugal. Zurrara, o historiador
do século quinze, descreve em vívida linguagem a chegada deles em
Algarve e as angustiantes cenas que se passaram quando foram
distribuídos entre os amigos do príncipe – esposas foram separadas
de seus maridos, filhos foram arrancados de suas mães, e as famílias,
fragmentadas; os soluços, os lamentos, a agonia – e o príncipe
despreocupado, montado em seu cavalo, confortando a si mesmo com
o pensamento de que embora tivesse sido obrigado a escravizar seus
corpos, salvara suas almas da perdição eterna, já que eles tinham sido
batizados e se tornado “cristãos”! Naquele infame dia, 8 de agosto de
1444, o tráfico de escravos começou em Portugal, e o Brasil se tornou
seu mercado mais frutífero.
Depois que a Grã-Bretanha libertou os escravos em suas colônias,
principalmente nas Índias Ocidentais, ela pressionou seu aliado Portugal
para fazer o mesmo. Em 1831, uma lei foi aprovada no parlamento
brasileiro proibindo a importação de escravos, embora o tráfico
continuasse ilegalmente. A marinha britânica patrulhava os mares e
interceptava todo navio que carregava escravos; a carga humana era
colocada sob a bandeira britânica e declarada livre. Em 1871, a lei do
Ventre Livre seria aprovada. Os filhos de escravos que nascessem a
partir desta data seriam nascidos livres. E, finalmente, em 1888, a
filha do imperador, Princesa Isabel, assinaria o decreto libertando todos
os escravos do império. Isto, no entanto, ainda estava no futuro, se
considerarmos o ponto em que estamos agora, nesta história.
No tempo do Dr. Kalley, os escravos eram uma indicação da
176 JORNADA NO IMPÉRIO
dos dons que o Criador deu às pobres criaturas, que de maneira alguma
diferem daquele que as comprou.”
O doutor falou diretamente ao dono de escravos: “Para você, o
escravo é seu próximo, e está sob o grande mandamento: ‘Amarás o
teu próximo como a ti mesmo’. Você gostaria que outra pessoa o
tratasse como um escravo? O comércio de animais é legítimo… mas
até mesmo eles devem ser bem tratados. O escravo não é filho de seu
dono, e não serve seu senhor com amor ou prazer; ele trabalha como
um animal, sem receber qualquer recompensa por seu trabalho;
trabalha apenas porque teme a ameaça das pancadas do cruel e
desumano tratamento por parte daquele que o roubou de sua liberdade.
Você, que faz estas coisas, é inimigo de Cristo e não pode ser membro
da igreja dEle, do Jesus que nos redimiu da maldição, nos deu liberdade
e nos fez filhos de Deus (Romanos 8.15,16)”.
O resultado do debate não foi registrado, mas é claro que o pastor
julgou o dono de escravos indigno de ser membro da igreja, e com
este regulamento a igreja estava de completo acordo.
ATEMPESTADE SEAPROXIMA
A esta altura o pastor auxiliar, Reverendo Richard Holden, de-
monstrava seu verdadeiro valor. Sob sua orientação, a Sociedade Bíblica
melhorou em eficiência, e na Igreja Fluminense ele aliviou o Dr. Kal-
ley de muitas tarefas onerosas. Os brasileiros o descreveriam com
uma única palavra: simpático – uma pessoa sincera, amável, bem dis-
posta, demasiadamente generosa e cheia de compaixão. Richard
Holden era tudo isso – um verdadeiro e experimentado amigo para os
Kalleys e um dedicado pastor de almas para a igreja. Os brasileiros o
amavam, mas sua afeição não diminuía de forma alguma o amor e
veneração pelo Dr. Kalley e sua esposa, “Dona Sarah”. Foi uma feliz
combinação e um ministério grandemente abençoado. Havia, no en-
tanto, uma tempestade, começando no horizonte: a fraca saúde do Dr.
Kalley e a influência dos ensinamentos de John Nelson Darby, funda-
dor do movimento Irmãos de Plymouth, sobre Richard Holden.
Então, no início de dezembro de 1866, a Sra. Kalley soube da
LIDANDO COM OS PROBLEMAS 179
Meca. O único lamento do Dr. Kalley era seu árabe não ser suficiente
para conversar com eles sobre a Bíblia e Cristo! Após quase dez
semanas de navegação, desembarcaram em Beirute, local que para
ambos guardava memórias de acontecimentos significativos de vinte
anos antes. Eles visitaram Damasco e as ruínas de Baalbec. Lá, o Dr.
Kalley sofreu um acidente que felizmente não teve maiores
conseqüências: foi coiceado por um cavalo.
Em Beirute, renovaram sua amizade com o Dr. W. M. Thomson,
um missionário na Síria e na Palestina, e sob sua orientação planejaram
a viagem pela Terra Santa. Naquela época, quando se queria realizar
viagens desta natureza, com conforto e relativa segurança, era
necessário fazer cuidadosa preparação. Bons cavalos de montaria,
mulas de carga, equipamentos de camping, incluindo tendas, tinham
de ser comprados, e, não menos importante, os serviços de um bom
guia tinham de ser contratados. Tudo isto acarretava consideráveis
gastos e consumo de tempo no atentar para os detalhes.
Eles viajaram ao sul por Sidom e Tiro e seguiram para a Galiléia,
acampando cada noite e descansando do calor ardente do dia. O
progresso era lento, mas agora estavam seguindo os passos do Mestre
e havia muito para ver e aprender. Em Nazaré, ficaram emocionados
ao encontrarem um trabalho missionário bem estabelecido e foram
afortunados em ouvir um sermão pregado por um famoso ministro
congregacional da Grã-Bretanha. Visitaram notáveis locais do Novo
Testamento – o Mar da Galiléia, o Monte das Bem-Aventuranças,
Cafarnaum, Corazim. Com o Novo Testamento em mãos, mergulharam
na atmosfera e história de tão sagrado território. Enquanto naquela
região, aproveitaram a oportunidade para ir a Safed, onde o doutor
passara vários meses numa visita anterior, mas infelizmente não
encontraram ninguém que recordasse de sua estadia entre eles. Os
Kalleys continuaram seguindo ao sul, passando por Samaria e Belém
e, finalmente, por Jerusalém. Sua primeira impressão da cidade foi
um choque, pois muito dela estava em ruínas, e tudo parecia sujo e
abandonado. Conforme a estada deles foi se prolongando, descobriram
que ela tinha certa aura que nunca tinham experimentado em nenhum
outro lugar; para eles aquela se tornou a Cidade Santa. Ela foi
explorada, saboreada e desfrutada. Todo o tempo, na verdade em
UMA PAUSA BEM MERECIDA 185
ATIVIDADE CONSTANTE
No calor e alvoroço do Rio, e com o peso do trabalho, a saúde do
Dr. Kalley continuou a dar sinais de preocupação à sua esposa e
amigos. Próximo do fim de julho, eles deixaram o Rio por um breve
período. Viajaram na recém-inaugurada estrada de ferro para
Palmeiras, um lindo local situado no alto da Serra do Mar, bem longe
do calor escaldante do Rio. Mesmo lá, o doutor não se permitiu uma
folga de seu zelo evangelístico. Ele registrou ter falado “para um grupo
de pessoas de cor, dos quais nove foram ao hotel naquela noite para
ouvir mais do evangelho”. No dia seguinte, conversou com o chefe da
estação, e à noite este homem, acompanhado de mais sete, veio para
192 JORNADA NO IMPÉRIO
uma visita ou para morar lá, tinham a firme convicção de que deveri-
am pregar o evangelho para seus compatriotas”.
A Sra. Kalley acrescentou seu testemunho: “Durante nossas
viagens, o que talvez mais tenha me tocado, em meu amado marido,
foi seu impressionante poder de lidar com almas em todas as
circunstâncias possíveis. Eu freqüentemente marcava o tempo, e, a
partir do momento que alguém viesse a ele com qualquer tipo de
pergunta, em três minutos ele já se engajava em uma conversa cristã
muito próxima, e, embora a pessoa parecesse surpresa ou intrigada,
não me lembro de uma única vez em que tenha ficado ressentida.
Sempre foi assim, por toda a sua longa vida. Eu muitas vezes sentia
que este dom especial residiu em seu poder de lidar de forma muito
próxima com as pessoas. Geralmente, ele era apenas um membro
silencioso da sociedade comum, mas numa conversa face-a-face ele
nunca pareceu ter qualquer dificuldade em falar com a mais profunda
retidão em favor de seu Senhor”.
A CIDADE DE RECIFE
Recife, assim chamada devido ao recife que segue paralelo à costa
naquele ponto do oceano, era uma cidade de 50.000 habitantes no
meio do século dezenove. O porto, construído em oposição a uma
brecha no recife, era excelente mesmo com sua entrada estreita, mas
que dava para um ancoradouro amplo e seguro, além de ser um dos
mais movimentados do Brasil. Infelizmente, a cidade havia se
degenerado numa favela; pouco de sua glória passada ainda restava,
as ruas não tinham pavimentação, com o esgoto no meio delas, correndo
a céu aberto. Algumas ruas, próximas do centro da cidade, tinham
sobrados com fachadas de ladrilho português e sacadas no andar
202 JORNADA NO IMPÉRIO
O POVO DE RECIFE
E como era o povo em geral? Conhecidos como nortistas, viviam
não apenas na própria cidade de Recife, mas também dispersos pelo
interior, no sertão, numa vasta área cobrindo diversos Estados –
Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. O Dr.
Gilberto Freire, um dos mais importantes intelectuais brasileiros, ele
mesmo um nortista, declarou que o Brasil não faz parte da América
Latina. Ele baseou sua afirmação no fato de que o brasileiro, em
contraste com os habitantes dos outros países sul-americanos, é o
produto da miscigenação de três diferentes raças: a indígena da floresta
tropical – os habitantes originais; a portuguesa – os conquistadores; e
a escrava africana – a mão-de-obra importada. No resto da América
do Sul, tal mistura de raças não aconteceu; eles eram essencialmente
de origem latina, com um toque de sangue inca nos países voltados
para o Pacífico. Freire ainda disse que os nortistas mantinham suas
origens raciais quase intactas; o processo de embranquecimento
ocorrido no século dezenove passou incólume por eles, uma vez que
os imigrantes europeus – suíços, alemães, italianos – se estabeleceram
no fértil e próspero Sul do país. Os nortistas são de um espírito
ferozmente independente, como foi mostrado quando expulsaram os
invasores holandeses no século dezessete. Citando Freire: “A vitória
fez nascer neles o espírito nacionalista e motivador tão característico
dos pernambucanos”. Nos anos seguintes, o mesmo espírito turbulento
e independente foi a causa de muitas revoltas e levantes políticos. Por
exemplo, um ano antes da declaração de independência do Brasil, em
1822, os pernambucanos já tinham concluído um tratado com as
autoridades portuguesas para que elas abdicassem de todos os seus
direitos e retirassem seus exércitos! Isto por si mesmo já constitui
uma declaração virtual de independência – Pernambuco não fazia
mais parte da colônia portuguesa – e os mais radicais se esforçavam
para declarar Pernambuco independente do Brasil também!
Outro fator contribuiu para a independência e dureza dos nortistas
– a rispidez do clima e do ambiente. Todo o sertão sempre foi assolado
por um ciclo de secas, ocorrendo mais ou menos a cada década. Por
204 JORNADA NO IMPÉRIO
dois, três ou até mesmo quatro anos, nenhuma gota de chuva caía,
ocorria uma quebra na safra e nada era colhido. Isto significava para
eles grande fome e a sobrevivência apenas dos mais fortes. Após
duas estações sem chuva, e minguadas as esperanças de uma colheita,
os sertanejos iniciavam sua longa jornada, centenas de quilômetros
em direção às cidades costeiras. Durante o percurso muitas crianças
morriam, e os poucos miseráveis que sobravam do que antes era uma
grande família, emagrecidos a pele e osso, se arrastavam pelos
caminhos.
vizinhos. O tom dos hinos era tão vívido, e as palavras tão fáceis de
entender, que apenas pelo cantar dos hinos o evangelho já era pregado.
Gradualmente, a congregação cresceu em número.
PERSEGUIÇÃO
A venda de livros não era fácil; demandava perseverança. Vianna
ia de casa em casa, de rua a rua, ao mercado, na verdade ele ia para
qualquer lugar onde houvesse pessoas. À medida que o tempo passava,
Vianna estendia seu trabalho de venda de livros para locais bem no
interior do Estado. Lá, nas províncias, assim como na cidade, ele sofria.
Era constantemente perseguido.As multidões proferiam insultos contra
ele, agarravam sua bolsa e espalhavam seus livros pelo chão e, então,
os destruíam, pisando sobre eles e atirando-os no meio da sujeira. Sob
a instigação do padre local, a polícia ainda confiscou todos os livros
que lhe restaram, passaram a fazer vistas grossas à violência da
multidão e até encarceraram o intrépido vendedor. As pessoas foram
proibidas, sob pena de excomunhão, de lerem a Bíblia ou até mesmo
de possuírem uma. A palavra “Protestante” era usada com bons
resultados. Se pronunciada lenta e deliberadamente transmitia uma
expressão de ódio sem paralelos.
A perseguição seguiu o mesmo padrão que o próprio Dr. Kalley
experimentara em Madeira. Quando se tornou óbvio que as ameaças
de excomunhão não conseguiam dissuadir a todos de lerem a Bíblia, o
clérigo tentou provar que a Bíblia era falsa. Para eles, a única Bíblia
legítima era a versão católica romana, traduzida do latim e com a
aprovação das autoridades eclesiásticas. Eles declararam não haver
necessidade de os leigos lerem a Bíblia, pois o único intérprete das
Escrituras era a Santa Madre Igreja, e nela se poderia confiar para
transmitir qualquer conhecimento bíblico que as pessoas comuns
precisassem. Se qualquer outra informação fosse desejada, então, o
padre poderia ser perguntado. Em qualquer caso, eles argumentavam,
a Bíblia era lida todos os dias na missa, portanto, ao participar dela, o
povo já estaria ouvindo o evangelho. Nenhuma menção foi feita ao
fato de que a missa era toda em latim!
206 JORNADA NO IMPÉRIO
CULTOS SUSPENSOS
O Dr. Kalley aceitara o pedido de Vianna para visitar o Recife,
mas a perseguição ameaçava fechar a igreja antes de sua chegada.
Um inspetor de polícia invadiu brutalmente um dos cultos e ordenou
que todas as reuniões deste tipo cessassem imediatamente. Em vão,
Vianna apelou ao chefe de polícia: o homem se recusou a intervir.
Vianna levou o caso ao governador do Estado, e, quando este se recu-
sou a garantir o direito constitucional de liberdade de culto, Vianna
ameaçou apelar às autoridades imperiais no Rio de Janeiro. Não era
mais possível ter cultos: a polícia tinha lacrado as portas do salão onde
eles se reuniam. O Sr. Rockwell Smith tinha, a esta altura, aprendido
português e estava pronto para começar a pregar. Ele conversou pes-
soalmente com o governador e lhe foram asseguradas quatro coisas:
a Constituição lhe garantia absoluta liberdade para propagar suas idéias
religiosas; ele poderia dirigir cultos em prédios sem semelhança com
uma igreja; quando convidado, poderia ajudar nas escolas públicas;
poderia ter cultos domésticos em sua própria casa. Enquanto na pre-
sença do governador, o Sr. Rockwell Smith aproveitou a oportunidade
para defender a causa de Vianna, de forma que poucas semanas an-
tes da chegada do Dr. Kalley a proibição foi revogada. A congregação
estava então pronta para voltar às suas atividades normais.
Todos estes incidentes despertaram o interesse público.Aimprensa
publicou manchetes sobre a ação arbitrária da polícia, e o boletim dos
jesuítas vituperou Vianna e todos os seus trabalhos. Uma vez que,
dentre outras coisas, Vianna foi acusado de caluniar a Virgem, alguém
no Rio esboçou um manifesto doutrinário das crenças protestantes,
que um jornal no Recife publicou com muito prazer. Os maçons e o
bispo se envolveram numa calorosa discussão. Tal publicidade foi boa
para o evangelho e preparou o caminho para a visita do Dr. Kalley.
AVISITA DO DOUTOR
Havia apenas um modo de viajar do Rio para Recife, que era de
ALICERÇANDO A IGREJA NO RECIFE 209
navio, visto que não havia estrada ligando as duas cidades. Os navios
a vapor navegavam de porto em porto, facilitando grandemente tanto
o comércio quanto as viagens. Em 20 de setembro de 1873, os Kalleys
embarcaram no Rio e oito dias depois chegaram no Recife. Não era
fácil encontrar acomodações; não havia hotéis na cidade e todas as
casas para hóspedes eram desonrosas. Quando ouviram falar destas
dificuldades, os missionários americanos imediatamente ofereceram
hospitalidade.
A pequena congregação em Recife reunia-se, naquele tempo, na
oficina de um artesão, Alexandre Soares. A forma como os hinos
eram cantados angustiavam a Sra. Kalley – lentamente, fora do tom,
com notas erradas, mas, ainda assim, com grande prazer! Ela começou
a remediar a situação – árdua tarefa! A primeira atitude do Dr. Kalley
foi ministrar aos crentes, que eram em torno de trinta pessoas. Ele
pregou e ensinou em todas as oportunidades que surgiram. Com Vianna
e sua esposa, os Kalleys compilaram uma lista de candidatos ao batismo
– a primeira assembléia da igreja em Recife. Durante os dias seguintes,
conversaram com os candidatos um por um, e, finalmente, chegaram
à conclusão que apenas doze deles estavam prontos para o batismo.
Uma minuta, registrando a decisão e os doze nomes, foi feita. O Dr.
Kalley visitou formalmente as autoridades municipais para conversar
sobre o registro de casamentos de não-católicos; visitou também o
cônsul britânico, Capitão Doyle, e, ainda, a Srta. Davies, que mantinha
uma casa para hóspedes ingleses. Olhando apenas para sua tarefa
principal, fazer Cristo conhecido em Recife, ele passou a pensar nas
várias possibilidades nas quais a tarefa poderia ser executada. Ele
pediu à Srta. Davies para usar sua casa como o ponto de suas palestras
aos britânicos e americanos sobre a Terra Santa. Em torno de quarenta
pessoas ouviram o doutor falar sobre a Palestina e, conseqüentemente,
sobre algumas verdades do evangelho também. O doutor procurou
meios de repetir sua palestra em português para o grande público. A
dificuldade era encontrar um local suficientemente espaçoso.
Finalmente, conseguiu dar sua palestra em um teatro, e, uma vez que
a palestra fora largamente divulgada, o prédio ficou lotado.
Uma das figuras mais proeminentes na literatura e política, Dr.
Vincente Ferrer de Barros Wanderley Araújo, estava presente na pla-
210 JORNADA NO IMPÉRIO
A IGREJA É ORGANIZADA
Dos doze candidatos aceitos para o batismo, três casais estavam
vivendo juntos sem serem casados. Antes do batismo, precisavam
legalizar sua situação. Então, exercitando o direito que a lei brasileira
lhe dava, o Dr. Kalley, na posição de pastor, conduziu a cerimônia de
casamento e legalizou os documentos com as autoridades. Em 19 de
outubro de 1873, o Dr. Kalley organizou a congregação em igreja, a
Igreja Evangélica Pernambucana, a primeira igreja evangélica de
nativos no Nordeste do Brasil, e a segunda do país. Naquele dia, os
doze foram batizados. Imediatamente depois dos batismos e da
organização formal da nova igreja, a Ceia do Senhor foi celebrada, e
os convertidos foram iniciados na verdadeira “comunhão dos santos”.
Com toda esta divulgação e atividade, era evidente que um espa-
ço maior para a igreja seria urgentemente necessário. Uma casa muito
maior foi alugada e mobiliada com o essencial, com a finalidade de
realizar os cultos ali. Durante a semana, o Dr. Kalley conduziu outra
cerimônia de casamento: dois daqueles recentemente batizados se
casaram. Ele, mais tarde, descreveu o que aconteceu: “O salão esta-
ALICERÇANDO A IGREJA NO RECIFE 211
TERESÓPOLIS
Quase no fim do ano de 1874, as pressões do trabalho, combina-
das com o calor opressivo da cidade, obrigaram os Kalleys a fazerem
uma nova parada. Foram para Teresópolis, na Serra dos Órgãos, ao
oeste de Petrópolis, onde um rico e sociável inglês, o Sr. Lowe, cons-
truíra “chalés de férias” em sua vasta propriedade. A viagem até lá
era ainda mais cansativa que aquela para Petrópolis, pois não havia
ÚLTIMOS DIAS NO BRASIL 215
CRISE NO BRASIL
Depois de algumas semanas, retornaram para casa. 1875 provava
ser um ano difícil para o Brasil. A história brasileira é marcada por
tempos de crise, e 1875 era mais um deles. O país ainda cambaleava
pela longa Guerra do Paraguai (1864-1870), uma luta que custara ao
país milhares de vidas e que quase o levou à bancarrota. Vários grupos
pressionavam e faziam sua influência ser sentida de forma cada vez
216 JORNADA NO IMPÉRIO
HOSPITALIDADE
Os Kalleys não tinham filhos deles mesmos e, nesta época, tinham
adotado um menino brasileiro, João Gomes da Rocha; mais tarde,
adotaram uma menina, Silvânia Azara, ou Sia, como era chamada em
casa. Havia um fluxo constante de convidados e hóspedes naquela
casa tão hospitaleira: no almoço, vendedores de livros ou pessoas
ÚLTIMOS DIAS NO BRASIL 217
CONVERSAS MEMORÁVEIS
Foi em sua casa, no entanto, que os Kalleys fizeram sua mais
valiosa contribuição para o trabalho em Edimburgo. Eles recebiam
visitas a qualquer hora, e a Sra. Kalley excedia como anfitriã. Os
estudantes eram especialmente atraídos, e, nos sábados à noite, a sala
de visitas ficava cheia de jovens. As conversas fluíam livremente e
eram sempre canalizadas, sem qualquer esforço, para assuntos
espirituais. Embora a personalidade atraente da Sra. Kalley cativasse
maior atenção naquelas reuniões caseiras, o doutor sempre tinha alguma
participação especial nelas. A Sra. Kalley escreveu: “Em nossas
alegres noites de sábado, em Campo Verde, muitos amigos queridos
amavam se aproximar da cadeira de meu marido, e eu não duvido que
os anjos, e o Senhor dos anjos, se regozijavam ao ouvir as calmas e
inesquecíveis conversas. Um por um, frente a frente, e de forma muito
sincera, era o método especial de fazer o trabalho de seu Mestre,
embora certamente não fosse o único”. Ela ainda disse: “Geralmente
ficava admirada da maneira como as palavras dele eram relembradas
após vários anos, palavras que poderíamos ter considerado banais”.
Um caso em particular ilustra muito bem este fato.
Em uma carta à MME, o Dr. Kalley escreveu: “Passei um verão
no Líbano (1852) e, enquanto estive lá, devotei de quatro a cinco ho-
ras diariamente visitando os doentes, suprindo-os com os remédios
necessários; muitos vinham de longas distâncias. Raramente fui às
casas de meus pacientes, mas fiz exceção no caso de um jovem ra-
paz, empregado numa fábrica de seda. A mãe deste jovem sofria de
hidropisia, razão pela qual, além de outros remédios, a puncionei. Seu
filho estava presente nestas ocasiões. Deixei a Síria logo depois disto
e nunca mais vi minha paciente, nem sequer ouvi notícia de seu filho,
isso até algumas semanas atrás, quando recebi dele uma carta, escri-
CAMPO VERDE 223
AQUESTÃO DO BATISMO
No Brasil, o caso tinha sido questionado e debatido. O Dr. Kalley
ou sua esposa (ele um presbiteriano e ela uma congregacionalista)
alguma vez procuraram ser rebatizados de acordo com o costume do
batismo dos crentes que eles mesmos estabeleceram na igreja do
Brasil? Em 1837, respondendo a um questionário enviado pela
Sociedade Missionária de Londres, ele escreveu a respeito do batismo:
CAMPO VERDE 225
A MORTE DE VIANNA
Os relatórios das extensivas viagens de Vianna para vender livros
continuavam a chegar ao Dr. Kalley. Embora o tempo cobrasse o
preço de sua saúde, seu zelo continuava inabalável. Ele persistia em
NOVIDADES DO BRASIL 233
igreja apelou que o Dr. Kalley ajudasse entre seus amigos e conhecidos
a levantar fundos para o projeto, e os esforços do doutor tornaram-se
iguais às ofertas sacrificiais da congregação como um todo. Para o
doutor, um independente, era estranho levantar recursos financeiros –
ele nunca havia feito isso antes!
Em 11 de junho de 1885, um dos presbíteros da igreja, Bernardino
Guilherme da Silva, escreveu: “Hoje a pedra fundamental do novo
prédio foi assentada com todas a formalidades verdadeiramente cristãs
[em oposição a todas as formalidades não-bíblicas dos católicos em
tais ocasiões]. Nem toda a igreja estava presente, apenas os membros
do comitê de construção e os presbíteros… Oração foi oferecida e
subiu aos céus como perfume agradável, com o incenso do nome de
nosso maravilhoso Redentor, Nosso Senhor Jesus Cristo. Um bom
número de pessoas que estava passando viu o que acontecia, mas
nenhuma gritou: ‘Bíblias, Bíblias’, o nome popular e depreciativo pelo
qual chamavam os crentes. O Reverendo Santos parece amadurecer
dia após dia nas coisas de Deus; merece estar em nossa mais alta
estima, uma vez que trabalha incansavelmente para o bem da igreja e
do mundo”.
A inauguração do novo prédio ocorreu em 4 de abril de 1886,
quando acabaram os distúrbios resultantes dos três dias de carnaval
na cidade. Durantes estes dias, como ainda ocorre agora, nada de
natureza solene ou cerimonial pode acontecer; toda a população se
entrega às festanças, farra e dança nas ruas. Na semana anterior, as
últimas reuniões de oração e louvor foram celebradas na Travessa
das Partilhas, com ações de graças a Deus pelas bênçãos recebidas
pela igreja durante os vinte e dois anos em que adoraram ali. As ceri-
mônias de abertura foram bem divulgadas por convites na imprensa.
O presbítero, Bernardino, novamente escreveu ao doutor: “No culto
da manhã, três ministros ocuparam o púlpito. O culto começou às dez
da manhã e foi até a uma hora da tarde. Estávamos preocupados que
a voz do Reverendo Santos não agüentasse; ele tinha tantas coisas
que queria dizer. Falou sobre a história da igreja, leu Os Vinte e Oito
Artigos de Fé, para informar a todos as doutrinas de nossa fé, e
pregou um sermão. Deus lhe deu uma ajuda especial; ele ficou no
púlpito por duas horas e meia! O coral cantou hinos apropriados, pre-
NOVIDADES DO BRASIL 235
“ISTO É A MORTE”
No dia 1o de janeiro de 1888, um domingo, ele reuniu toda a família
– sua esposa, Marianne Pitt e os empregados de sua casa – para
238 JORNADA NO IMPÉRIO
TRIBUTOS AO DOUTOR
Os tributos ao doutor surgiram de todos os lados, demonstrando
que muitos amigos e colaboradores se lembravam do “bom doutor”,
“pastor fiel”. Para muitos, ele era seu pai na fé, e para outros, seu
cooperador no trabalho do Senhor.
Talvez fragmentos de um artigo da edição de maio de 1888, da
revista da Missão Médica, de Edimburgo, resuma a grande
consideração tida pelo Dr. Kalley: “Não há prova mais convincente
da preciosidade e poder de um ministério evangélico do que o simples
registro da vida de trabalho de homens, cujos ensinamentos são
resultado da pergunta: ‘O que dizem as Escrituras?’, e não do
questionamento: ‘O que tu pensas?’; homens cujo princípio
predominante da mensagem é: ‘Cristo morreu, uma única vez, pelos
pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus (1 Pe
3.18)’”.
LÁPIDE E PLACA DE HOMENAGEM,
NO CEMITÉRIO, EM EDIMBURGO
MISSÃO CUMPRIDA 241
“Ela talvez não tivesse idéia da boa influência que sempre exercia
sobre mim e, eu acredito, sobre todos quanto estiveram em contato
com ela.”
“Ela nunca fraquejava, e, mesmo nos piores momentos, sua medida
de brilhante humor nunca falhava em diminuir a tristeza.”
“As notícias tristes haviam chegado – tristes para muitos – para
aqueles que conheciam e amavam a Sra. Kalley; aos alunos que
sempre irão respeitá-la; àqueles que trabalharam sob sua influência
no Brasil; aos seus filhos espirituais em ambos os hemisférios… ela
era tão cheia de vida… tão amável, tão abundante em piedade e boas
obras.”
“Tão grande foi a influência pessoal exercida pelo Dr. e pela Sra.
Kalley sobre a vida dos cristãos brasileiros, que toda a história subse-
qüente das igrejas evangélicas foi moldada e dirigida por isso. Estas
igrejas não coincidem com nenhuma denominação em particular da
Grã-Bretanha, mas têm características peculiares. Elas seguem os
passos da antiga fé dos Puritanos… os hinos usados foram escritos e
traduzidos quase todos pelo Dr. e pela Sra. Kalley. A grande conside-
ração, chegando ao ponto da veneração, dos velhos membros das
igrejas que conheceram pessoalmente tanto o Dr. quanto a Sra. Kal-
ley é realmente espantosa, e esta veneração foi transmitida aos
membros mais jovens das igrejas de forma marcante, assim estes
nomes são familiares aos brasileiros, como o de Wesley, na Inglater-
ra.”
Do Conselho da Missão Ajuda para o Brasil veio uma breve
declaração sobre a provação que se abatera sobre a missão com a
perda da Sra. Kalley e quanto ao novo senso de responsabilidade com
o qual decidira continuar o trabalho: “A Sra. Kalley era a alma deste
Conselho. Foi ao redor dela que todos os outros membros se reuniram.
A intensidade de seu interesse em tudo o que se relacionava com o
bem-estar espiritual do Brasil, o entusiasmo que ela devotava à
manutenção e extensão da missão a qual ajudara a fundar, e o sucesso
com o qual trabalhou para introduzir seu próprio zelo auto-sacrificial
em seu amplo círculo de amigos eram inspiração e estímulo constante
para seus conselheiros e colaboradores do conselho… Portanto, eles
honestamente esperam ver estimulados os que conheceram a Sra.
248 JORNADA NO IMPÉRIO
EAGORA?
Em Madeira ainda existem quatro igrejas que devem sua existência
ao ministério do Dr. Kalley. São as Igrejas Presbiterianas em Funchal,
Louro (um subúrbio de Funchal), Machico e Ribeira Brava. Elas fazem
parte da Assembléia Presbiteriana em Lisboa. No momento em que
estas páginas são escritas, as igrejas têm um ministro, um brasileiro e
não possuem qualquer ligação com a Igreja Livre da Escócia.
Em Illinois, as igrejas em Jacksonville e Springfield se fundiram na
Igreja Presbiteriana nos EUA. Foi perdida sua identidade portuguesa.
No Brasil, as igrejas de Kalley se expandiram na União das Igre-
jas Evangélicas Congregacionais do Brasil, totalizando 700 igrejas.
Embora a maioria delas esteja no eixo Rio – Pernambuco, a União
tem igrejas em quase todos os Estados do Brasil.
Na Grã-Bretanha, a Missão Ajuda para o Brasil foi incorporada,
em 1913, na recém-formada União Evangélica da América do Sul, e
alguns missionários ainda servem nas igrejas congregacionais no Brasil,
em ministérios especializados, principalmente na educação teológica.
A Igreja Fluminense no Rio de Janeiro continua a manter a Missão
Evangelizadora do Brasil e Portugal. Esta missão, na virada do século
passado, fundou uma dezena de igrejas em Portugal, a maioria da
quais agora fazem parte da Assembléia Presbiteriana em Lisboa. O
restante, em Ponte de Sor, Lisboa e Paio Pires, se uniram para formar
a União das Igrejas Evangélicas Congregacionais de Portugal. A
Missão Evangelizadora ainda mantém seu interesse nestas igrejas,
assim como, mais recentemente, a British Evangelical Fellowship of
Congregational Churches.
APÊNDICE 1
DECLARAÇÃO FEITA PELO PRIMEIRO GRUPO DE
MADEIRENSES LEVADOS DETRINDADE PARA NOVAIORQUE
AGOSTO DE 1848
Nós, os signatários, todos naturais de Madeira, nascemos e fomos
educados na Igreja Católica Romana. Sempre foi nosso costume par-
ticipar das missas, confissão dos pecados, das diversas cerimônias,
jejuns e festivais da igreja católica. Não conhecíamos outra forma de
adoração, pois nenhum de nós tinha visto ou ouvido a Palavra de Deus,
até então. Não sabíamos que um livro chamado Bíblia existia, no qual
a história de Jesus e dos apóstolos é contada, até que o Dr. Kalley
veio para Madeira. Lendo a Bíblia que ele nos deu, aprendemos, des-
de a primeira vez que colocamos nossos olhos sobre aquelas páginas,
que só podemos ser salvos pelo sangue de Jesus, e não pelas missas,
penitências e purgatório. Aprendemos que nem a Virgem ou os san-
tos são nossos mediadores, porque há somente um Mediador entre
Deus e os homens, Cristo Jesus. Quando começamos a nos regozijar
em Cristo Jesus como nosso Mediador e a ler as Escrituras com ale-
250 JORNADA NO IMPÉRIO
gria, fomos proibidos de ler a Bíblia, pela Igreja Católica e pelo Esta-
do. Os padres começaram a confiscar nossas Bíblias e queimá-las.
Muitos leitores da Bíblia foram aprisionados. Alguns permaneceram
na prisão por dois ou três anos. Fomos despejados de nossas casas e
terras, tivemos de dormir nas cavernas e vaguear pelas montanhas,
porque lemos a Palavra de Deus e porque desejamos viver de acordo
com seus preceitos, e por nenhuma outra razão. Fomos compelidos
pelos padres e pelo governador do Estado a fugirmos do país e aban-
donarmos tudo quanto possuíamos – casas, terras, posses. Perdemos
tudo o que tínhamos e estamos num país estrangeiro. Econtramo-nos
preparados para testificar a verdade destes relatos perante todo o
mundo.
(Assinado por sessenta madeirenses de todas as idades.)
APÊNDICE 2
“C om que freqüência, o verdadeiro seguidor do Senhor Jesus
contempla e ouve que bons campos, centros férteis de testemunho do
evangelho e de esforços pacientes para conduzir almas preciosas ao
rebanho de Cristo, se tornam – no curso de poucos anos de existência
feliz e próspera – invadidos, transtornados, desordenados e destruídos
pela atividade de influências sutis de doutrinas pseudo-religiosas, so-
ciais e políticas que se opõem ao sublime, purificador e iluminador
poder da Palavra de Deus?”
“A verdadeira Igreja de Jesus Cristo é essencialmente, por causa
de sua natureza regenerada, um corpo exclusivo; ela está no mundo,
mas não é do mundo. Mas a falsa igreja cristã, em todas as suas
subdivisões, está sujeita ao ataque do poder que se transforma em
‘anjo de luz’ e que, na realidade, é um ‘leão que ruge procurando
alguém para devorar’. Portanto, temos de esperar o novo céu e a
nova terra prometidos, onde jamais haverá maldição, porque o
adversário será lançado fora para sempre.”