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CÔNEGO SCHMID

CONTOS DE . SCHMID

Adaptacão de
J. PIMENTEL Pl TO

E DTTÓRA
&AO PAULO - k u •
DO BRASIL
Co o a rlD c-lr • •1�1aa
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aelt·• - Per1alaaa - Reelte - S•l•aeor - kto 4• I•••I.,(
B. Berl•••t• - GotA■ia- Caritl�• - l'IGrla■opoll, - )'. 41ear,

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lNDICE A Cruz de Madeira . . . . . . . 9

A Imagem Milagrosa . . . . . . 33

A Pombinha Branca ....... 57

A Capelinha da Floresta .... 87

O Canário . . . . . . . . . . . . . . 101

O Pirilampo . . . . . . . . . . . . 131

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A CRUZ DE MADEIRA

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A senhora Dutilleul. descendente de uma nobre
e antiga família, tendo perdido o marido, vivia isolada
cm seu castelo, onde dividia o tempo entre as preces,
à meditação e o amparo aos infelizes das redondezas.
Era nas obras de caridade e de auxílio ao próximo que
empregava as suas riquezas, de sorte que, com o correr
do tempo, conquistou a estima e a admiração da vizi­
nhança, que nela encontrava sempre o apoio de que
necessitava.
Sucedeu certa vez que a senhora Dutilleul, em
virtude de importantes negócios, que reclamavam a
sua presença. foi obrigada a deixar o castelo, permane­
cendo durante alguns dias na cidade próxima. Na
véspera de seu regresso ao castelo, resolveu aproveitar
o belíssimo dia de primavera que então se iniciava, para
dar um passeio pela cidade.
Era um domingo, e como o sol e o céu azul vol­
tassem depois de longos e tristonhos dias de chuva,
por tôda a parte se viam camponeses alegres, nos seus
pitorescos trajes· multicores. Chegava a senhora Du­
tilleul quase ao fim da rua por onde se saía da cidade,
quando lhe ocorreu visitar a principal igreja da cidade,
a qual não ficava muito distante dali. Imaginou que
não poderia encontrar melhor oportunidade para seme­
lhante visita, uma vez que, num dia daqueles, certa­
mente o povo estaria pelas ruas ou no campo, de modo
que nem ela iria perturbar a ninguém, nem a ela a pre­
sença de muita gente impediria de tranqüilamente
observar as maravilhas arquitetônicas do templo.
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12 C O N E G U S C H M I D

Realmente, quando penetrou no templo, notou


que êste se achava deserto, ouvindo-se apenas o leve
ruído de seus passos e um ou outro som distante, coa­
do através dos vitrais dás imensas janelas. Pôde assim,
com todo o vagar, entregar-se aos seus pensamentos e
orações, ao mesmo tempo que admirava a pureza das
imagens dos santos e a majestade interna do templo.
Longo tempo permaneceu de joelhos diante de um al­
tar, imaginando quantos séculos não teriam sido neces­
sários, quantas canseiras, quanta dedicação não teria
exigido a elevação daquele monumento para que ali
pudessem ir pela primeira vez O!. fiéis fazerem as suas
preces ao Criador.
Depois se levantou e foi observar outras partes da
igreja, o altar-mor, os altares menores, as veneráveis
pinturas murais. Em seguida visitou o túmulo dos
bispos e pessoas notáveis pela sua virtude, cuja piedosa
existência se achava resumida naquelas antigas inscri­
ções em caracteres góticos. Não havia por ali, pelo me­
nos aparentemente, um único ser vivo, e por isso seus
passos ressoavam longamente pelas abóbadas.
Assim corriam as horas, quando a senhora Dutil­
leul, ao penetrar numa das capelas laterais, viu de joe­
lhos nos degraus do altar uma pobre menina de uns
oito anos de idade, inteiramente trajada de prêto. Com
os olhos fitas na imagem que tinha diante de si, as mãos
postas, rezava com tanto fervor, que não notou a apro­
ximação da senhora Dutilleul; e as grossas lágrimas,
que lhe rolavam pelo rosto, emprestavam-lhe urna ex­
pressãu de indefinível pureza e resignação.
No primeiro momento, não quis a senhora Dutí!­
leul perturbar as preces da inocente criatura, e ali dei-
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CONTOS DE~ SCHMID lS

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H CONEOO SCHMID

xou-se ficar a contemplá-la, muda e im6vel, sem saber


que fizesse. Por fim animou-se e se aproximou da me­
nina, batendo-lhe de leve no ombro:
- Estás bem triste, minha boa menina! . . . Que
tens? . . . Por que choras? . . .
A pequena, sobressaltou-se, pois igualmente se
julgava sozinha; voltou para a senhora Dutilleul os seus
pobres olhos vermelhos de chorar, e a custo lhe respon­
deu:
- Ah!... Estou bem triste, sim senhora. Há
um ano perdi meu pai; e agora, ainda há oito dias, foi
o entêrro de minha mãe! ...
- Por que rezavas com todo aquêle fervor?
- Eu pedia a Deus que se compadecesse de
mim. Ainda moro na casa que era de meus pais, mas
o proprietário já pediu a casa, e amanhã terei que ir
embora. Eu tenho alguns parentes e espero que algum
dêles me leve para a sua companhia. O senhor padre,
que muitas vêzes ia visitar minha mãe, quando ela es­
tava de cama, já lhes disse que era obrigação dêles me
receberem cm casa; mas até agora nenhum se resolveu
a incumbir-se de minha educação. É que são todos po­
bres, e eu decerto iria ser muito pesada para êles ...
- Pobre menina! - disse a senhora Dutilleul
- Compreendo agora por que estás tão triste.
- É verdade - replicou a garotinha - que
estou triste. Mas as orações me fizeram tanto bem, que
já me simo mais consolada.
As palavras da ,inocente criatura, com os olhos
cheios de lágrimas e o coração cheio de fé, enternece­
ram ainda mais a nobre senhora, que lhe disse:
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CONTOS DE SCHMID li

Creio que Deus ouviu as tuas preces, minha


menina Vem comigo.
Onde a senhora quer levar-me? - perguntou
a pequena, meio assustada. - É preciso que eu volte
para casa.
- Vem comigo. Conheço bem o padre a que te
referes. Vamos à casa dêle, combinar um modo pelo
qual eu te possa ser útil.
Dizendo isso, tomou a menina pela mão e se en­
caminharam para a casa do cura. :Êste era já um homem
idoso, de aparência venerável, e ficou bastante surpre­
endido ao ver entrar a senhora, trazendo a menina pela
mão. A senhora Dutilleul contou-lhe em poucas pala­
vras o que acabara de passar-se, e depois disso, pedindo
para falar em particular com o sacerdote, explicou-lhe:
- Tenho a intenção de levar esta criança comi­
go. Meus filhos morreram quando ainda eram peque­
nos, de modo que a esta menina poderei consagrar todo
o amor que sentia por êles. No entanto, desejo saber se
o senhor e os parentes da pequena órfã concordarão
comigo, e se esta é realmente merecedora de tudo qu:m­
to pretendo fazer por ela.
O venerável padre levantou as mãos para o céu,
e exclamou:
- Louvada seja a Providênd:; Divina! A senho­
ra não poderá fazer ohra de melhor caridade do que
esta. Além do mais, esta criança é dócil e meiga, filha
de pais modestos, sim, mas gente muito honesta, reli­
tiosa e verdadeiramente cristã. Queriam dar à filha
única, a pequena Sofia, uma educação muito boa; infe­
lizmente não a puderam completar. Nunca poderei
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16 Cô N E G O S C H M I D

esquecer as palavras e a expressão da pobre mãe mo­


ribu:�da, quando a fui ver pela última vez: "Deus todo
poderoso, Vós lhe servireis de pai; Vós lhe dareis outra
mãe. Disso tenho plena convicção, e por isso morrerei
tranqüila" ... Veja, pois, minha senhora, que as pala­
vras da santa mulher foram verdadeiramente proféticas.
E a visita que �le, nas alturas, determinou que a senho­
ra fizesse à cidade, era sem dúvida para poder propor­
cionar o encontro com a pequena Sofia! Bendita seja
a vontade divina!
Então o digno cura chamou a pequena órfã, que
ficara em outro quarto, e disse-lhe:
- Ouve, Sofia. Esta senhora, tão respeitável
pela sua piedade e bom coração, quer te servir de mãe.
É um grande benefício que Deus nos concede. Estás
disposta a acompanhá-la? Serás para ela uma filha de­
dicada?
- Sim, senhor! - respondeu Sofia, que não ca­
bia em si de contente.
- Como vês, minha filha - continuou o padre
- Deus tem cuidado de ti, e já havia determinado a
esta senhora que viesse à cidade, antes mesmo que fale­
cesse a tua pobre mãe. Ama, pois, a Deus, acima <!•
tôdas as coisas, tenha sempre fé nesse Deus bom, justo
e misericordioso. Obedece sempre a tua nova mãe,
sem te esqueceres d'Aquêle lá de cima; füe te há de
proteger no futuro, assim como acaba de te proteger
agora.
Em seguida o cura mandou chamar os parentes de
Sofia e lhes expôs o que, com a sua aprovação pretendia
fazer a senhora Dutilleul. Ninguém se opôs a que a
senhora Dutilleul levasse a menina; pelo contrário,
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CONTOS DE S CH M I D 17

mostraram-se todos muito contentes. E mais contentes


ainda f�caram ao saberem que a boa senhora lev�ria a
pequena como se encontrava, isto é, que a modesta
herança da mãe de Sofia ficaria para êles. Sofia só pe­
diu para levar, como lembrança, os livros de orações
que pertenceram a sua mãe, o que lhe foi concedido
de muito boa vontade.
No dia seguinte, muito cedo, a senhora Dutilleul
e Sofia tomaram o carro e se dirigiram para o castelo
da nobre senhora. Lá chegadas, a senhora Dutilleul
fêz com que Sofia sentasse a seu lado e serviu-lhe o al­
môço. Depois levou-a para um bonito quartinho e
lhe disse:
- Êste é o teu quarto. Cuida dêle com cari­
nho. E à noite, quando vieres para cá, dorme bem e
não te esqueças de apagar a vela.
O carinho de sua benfeitora e a bondade de
Deus faziam com que a infeliz Sofia se sentisse conm
que num sonho; de modo que à noite adormeceu tran­
qüilamente, murmurando as suas preces de reconheci­
mento. De manhã, ao despertar, outros motivos de
contentamento a esperavam. É que sempre morar;:1
numa casinha escura de uma rua estreita, por cuj::s
janelas jamais o sol entrava ao romper do dia; enquan­
to que ali, logo ao nascer, o sol vinha beijar-lhe as cor­
tinas do quarto, anunciando-lhe a hora do despertar.
Ela levantou-se logo e pôs-se a admirar aquêle espetá­
culo de primavera em todo o seu esplendor. O jardim
e a horta estendiam-se ao pé do castelo, co:n as sua�
fôlhas verdes e flôres multicolorida�.
De um lado descortinava, numa ligeira clevaçãC'
do terreno, o pomar; de outro d·;:scobria viias perdida:
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18 CONEGO SCHMID

na distância, ricos campos de trigo, prados floridos e


coroados por montes arredondados. Então Sofia ajoe­
lhou-se, para novamente agradecer a Deus por tudo
quanto lhe havia proporcionado, justamente no mo­
mento em que se sentira mais desamparada.
A senhora Dutilleul foi para Sofia uma verdadeira
mãe; mas por outro lado não se pode negar que a garô­
ta lhe dedicava sincero amor filial, estando 5empre dis­
posta a satisfazê-la nos menores desejos. Quantas e
quantas vêzes não saiu correndo para buscar o que sua
nova mamãe queria, antes mesmo que esta acabasse de
manifestar a sua vontade. Era, pois, perfeitamente na­
tural que a senhora Dutilleul lhe dedicasse cada V:!Z
maior estima.
Havia perto do castelo uma escola que, graças ao
auxílio da castelã, prosperava cada vez mais. E assim,
embora a pequena Sofia já soubesse ler e escrever, ia as­
sim mesmo à escola, para completar a sua instrução,
e aprender princípios religiosos, os quais eram minis­
trados pelo padre, que visitava freqüentemente a casa
de ensino.
Nas horas em que não se dedicava aos estudos,
Sofia era obrigada a ocupar-se de afazeres domésticos,
como cozinhar, coser e arrumar a casa; uma ou outra
vez ia trabalhar no jardim, tudo para familiarizar-se
com a vida laboriosa e ativa que deveria ter. Nos mo­
mentos de folga, ia aos aposentos da senhora Dutilleul
e ali permanecia conversando, ao mesmo tempo que
aprendia costuras e bordados.
Assim se passaram muitos e muitos anos, de tran­
qüilidade e bem-estar, .sem que contrariedades de maior
vulto viessem pert11rbar a vida no castelo. Um dia,
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CONTOS DE SCHMID 1J

porém, a senhora Dutilleul caiu doente. Sofia ficou


muito apreensiva, e passou a cuidar de sua benfeitora,
como se se tratasse de sua verdadeira mãe. Procurava
contentar a doente nas menores coisas, andava nas
pontas dos pés para não fazer barulho e perturbar o
repouso da enfêrma. Era, pois, perfeitamente natural
que a senhora Dutilleul não quisesse outra enfermeira
a não ser Sofia, que chegava a passar longas noites :1
sua cabeceira, quando a moléstia parecia agravar-se.
Fazia já muito tempo que a pobre senhora não mais
abandonava o leito; mas Sofia mostrava-se incansável,
o que a castelã sabia devidamente apreciar.
Em certa noite muito fria de inverno, sentindo-se
a doente muito mal, desejou tomar uma xícara de chá.
Sofia foi à cozinha prepará-la, voltando logo depois, a
tremer de frio. A senhora Dutilleul tomou o chá com
visível dificuldade e ao devolver a xícara, disse a Sofia:
- Minha cara Sofia: tens cuidado tão bem de
mim como o faria a melhor das filhas. Por isso Deus
te há de recompensar, e eu também te serei reconhe­
cida. A amizade não conhece o interêsse; entretanto,
para te provar que não sou uma ingrata, pensei em ti
no testamento. Quando eu morrer receberás uma
quantia suficiente para que possas casar e viver sem
dificuldades.
Sofia chorava ao ouvi-la falar em tais têrmos e
lhe suplicava que não se referisse àquele funesto mo­
mento; mas a senhora Dutilleul lhe respondeu:
- Não chores, minha filha; a morte não é tão
terrível como se pensa. Ao contrário, é uma amiga que
abre as portas do céu, de modo que desde já me sinto
feliz, pois em breve irei ver Aquêle que s6 conheço pela
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Fé. Que a tua piedade seja sempre sincera, minha boa
Sofia! Que Jesus te ensine sempre a escolher o bem e
repelir o mal, e assim, quando chegar a tua hora, hás
de reconhecer que a morte é doce. Não há nada de hor­
rível em deixar esta, para se chegar a uma vida melhor.
A senhora Dutilleul calou-se por um momento.
Ela segurava um crucifixo de madeira, que beijava com
ardor e ternura. Depois prosseguiu:
- Agora s6 vejo a imagem de Jesus; mas dentro
em pouco, oh! felicidade!, estarei em sua presença.
:Êste símbolo, ainda que bem diferente da realidade,
faz lembrar os sacrifícios e as torruras por que antes
:Êle passou, para finalmente inclinar a cabeça, empali­
decer e morrer. Os momentos mais doces de minha
vida foram aquêles em que passei a admirar o seu exem­
plo, o seu amor infinito. Não há salvação sem a Fé, e
graças a esta é que Ble nunca nos abandona na adver­
sidade.
Dizia Ble a seus discípulos: "Na casa de meu Pai
há muitas moradas. Se não fôsse assim, não vos diria:
vou preparar-vos ali um lugar".
Creio que o meu lugar está reservado; meu Deus
para lá me chama.
A senhora Dutilleul ainda quis continuar, mas
lhe faltavam as fôrças; e s6 conseguiu murmurar com
voz quase extinta:
- Meu Deus, entrego minha alma em vossas
- 1
maos ....
A pobre Sofia foi acordar os criados e mandou
chamar o padre. Uma hora depois aquela santa mulht:r
fechava definitivamente os olhos, para imensa tristez,1
de Sofia, que por ela chorou como antes chorara a perda
ela sua mãezinha tão cedo âesaparecida.

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CONTOS DE SCH MI D 21

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23 CONEGO SCHMID

A senhora Dutilleul não era apenas respeitada na


localidade; era verdadeiramente venerada pelos seus
dotes de coração. Por isso ao entêrro acorreu uma ver­
dadeira multidão, formada de pessoas sinceramente
penalizadas com a morte da sua benfeitora.
Quando as cerimônias do sepultamento termina­
ram, reuniram-se os parentes para abrir o testamento.
Verificou-se que havia um legado para Sofia: eram dois
mil escudos, que lhe seriam entregues como dote, no dia
do casamei::ito. Mas os juros dêsse dinheiro ela os iria re­
cebendo, enquanto não se casasse. Além disso, ficava a
pequena autorizada a escolher, dentre as coisas que ha­
viam pertencido à falecida, uma jóia ou objeto, como
lembrança.
Alguns parentes da senhora Dutilleul arregalaram
muito os olhos quando ouviram a leitura dessa passa­
gem do testamento; via-se o descontentamento estam­
pado em muitos rostos. As môças, em particular, já
antecipadamente choravam a perda de alguma das mais
preciosas jóias da tia; e assim, fazendo-se de amáveis,
diziam a Sofia:
- Escolhe êste magnífico vestido de sêda com
brocados! É o vestido de casamento de nossa querida
titia, não há nada mais lindo. Poderias guardá-lo para
o teu casamento.
O senhor Buisson, no entanto, um dos parentes,
capitão já de certa idade, homem honesto e justo, inter­
veio:
- :Êste vestido não serve para Sofia, não quei­
ram zombar da jovem. E depois, vocês não têm que dar
opinião. Ela que escolha o que muito bem entender!
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CONTOS DE SCHMtD 23

As môças zangaram-se com êle, mas não desisti­


ram do seu intento, fazendo todo o possível para que
Sofia escolhesse qualquer objeto insignificante, avalian­
do-o sempre por muito mais, para influenciar na esco­
lha que ela deveria fazer.
Aturdida com tantos e tão contraditórios conse­
lhos, Sofia não sabia que responder. O testamenteiro,
vendo as dificuldade� em que ela se encontrava, tomou
a palavra e disse:
- Cumpro o meu dever, protegendo uma órfã.
Há entre os bens da falecida jóias e objetos de grande
valor; e como no testamento está escrito que a senhora
Dutilleul queria deixar à sua filha adotiva um objeto
de valor, que lhe pudesse servir numa ocasião difícil,
quero dar à môça tempo para refletir. Ela que volte
amanhã, para dizer-me o que quer.
Tudo indicava que haveria novas disputas. A co­
zinheira falava a Sofia que escolhesse um anel de bri­
lhantes ou um colar de pérolas, enquanto que o velho
jardineiro lhe dizia que o pequeno retrato da falecida,
ei;castoado de ouro e cravejado de brilhantes era o que
ela devia pretender como lembrança.
No dia seguinte, de manhã, reuniram-se novamen­
te os herdeiros, a maior parte dêles dispostos a ofere­
cer o máximo de resistência, principalmente as môças,
que olhavam Sofia com maus olhos. Esta, no entanto,
dirigindo-lhes a palavra, disse-lhes:
- Eu desejo uma lembrança de minha benfeito­
ra, minhas caras senhoras, mas não me preocupo com o
valor que possa ter. Pretendo um objeto a que a fale­
cida tenha dedicado especial estima. Já não merecia o
legado da grande importância que me destinou; mas,
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24 CONEGO SCHM ID

como tenho o direito de escolher ainda um objeto, que=


roque me seja dada a pequena cruz de madeira, o últi­
mo objetoque ela tinha nas mãos ao morrer. É êsse
o objetoque para mim representa maior valor. Faz-me
lembrar das suas últimas palavras; seguindo-as, tenho
a certeza deque a bênção da minha última mãe descerá
do alto do céu sôbre mim.
O que Sofia acabava de dizer, foi recebido com
alívio e satisfação por todos os presentes,que não pou­
param elogios pela devoção da môça, embora por den­
tro zombassem da sua simplicidade.
- És uma grande tola, - disse-lhe depois a cozi­
nheira. - Porque não escolheste um objeto de valor?
Não viaque estava te fazendo sinais de longe? Depois
poderias ficar também com a cruz, pois é claro que nin­
guém se importaria com objeto cão insignificante.
O velho jardineiro, porém, aprovou-lhe a escolha:
- Deus te abençôe, boa menina. Tens alma de­
vota e reconhecida. Esta cruz há de trazer-te mais feli­
cidade do que tôdas as pérolas e brilhantes que por
acaso escolhesses. Ouve bem o que digo, e verás!
Sofia guardou cuidadosamente a cruz de madeira
no armário, considerando-a como o mais precioso objeto
que possuía. E enquanto que a modéstia da sua escolha
lhe fazia bem ao espírito, o egoísmo dos parentes nobres
da falecida proporcionou-lhes mais disputas e aborreci­
mentos do que prazer.
Mais ou menos um ano antes da morte da senhora
Dutilleul, o filho do jardineiro do castelo manifestara
a idéia de pedir Sofia em casamento. Era um jovem
honesto e bem educado.. Como já não tivesse mãe,
foi ao pai que confiou os seus projetos, osquais fornm
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CONTOS DE SCHMID 25

logo aprovados. O jardineiro, por seu turno, tratou de


comunicar a nova à patroa, a qual, conhecendo a incli­
nação de Sofia pelo rapaz, concordou inteiramente com
o projeto.
- Você deu a seu filho uma boa educação, ensi­
nando-lhe desde pequeno a amar a Deus, a gostar da
ordem e do trabalho, da honestidade e da moderação.
Não me oponho, pois, a que se case com Sofia; ao con­
trário, isso me causa muita satisfação. Entretanto,
acho bom que Guilherme passe algum tempo na cidade,
aperfeiçoando-se na horticultura, arte tão procurada
atualmente. Se, quando êle voltar, ambos mantiverem
as mesmas intenções, assistirei com prazer e como se­
gunda mãe, ao casamento de Sofia.
Semelhante resposta a todos agradou. A senhora
Dutilleul deu algum dinheiro ao rapaz, para as despesas
de viagem, além de uma boa carta de recomendações;
assim, êle partiu. Morrendo a senhora, e não sabendo
Sofia para onde ir, convidou-a o jardineiro a que fôsse
para sua casa, onde a môça também lhe poderia ser útil.
Quando Guilherme voltou, realizou-se o esperado casa­
mento, acontecimento cuja felicidade só foi perturbada
pela irreparável ausência da benfeitora de ambos. Por
isso, após a cerimônia religiosa, foram os dois visitar o
túmulo da senhora Dutilleul, o qual já fôra pela manhã
enfeitado de flôres pelo Guilherme.
Sofia e Guilherme passaram a viver muito felizes
em companhia do velho jardineiro; mas, como esta vida
nunca está livre de dissabores, três anos mais tarde o
bom velho falecia, e os dois ficaram sós.
Para maior infelicidade, um ano após a morte do
pai, Guilherme, caindo de uma árvore, quebrou um
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26 CONEGO SCHMID

braço e sofreu grande abalo interno, de modo que não


mais pôde continuar no seu ofício de jardineiro e hor­
ticultor. Os novos donos do castelo eram gente muito
má, de modo que o preveniram de que deveria deixar o
castelo ao cabo de três meses, recebendo uma pensão
módica, um pouco de lenha e trigo.
- Perder assim o trabalho - disse êle muito
triste - é acontecimento para desanimar. Como tra­
taremos dos filhas que Deus nos deu?
- Tenhamos confiança em Deus - respondeu
Sofia - Êle não nos há de desamparar. Não existe de­
sespêro para quem crê em Deus.
Depois combinaram o que haviam de fazer. Como
na vila próxima não existisse uma única loja de arma­
rinhos e miudezas, resolveram abrir uma, para o que
seria preciso comprar uma pequena casa.
- Creio que o braço quebrado não há de impe­
dir-me de trabalhar no balcão - disse êle.
- Quanto a mim - respondeu a espôsa - con­
to ganhar algu ma coisa fazendo costuras e outros traba­
lhos que me foram ensinados pela senhora Dutilleul.
Havia justamente na vila uma casa que se prestava
para o fim que ambos tinham em vista; por isso resol­
veram comprá-la. Mas como se achasse em mau esta­
do, era indispensável fazer uma boa reforma, e esta,
mais o preço da casa, exigiriam muito dinheiro. Por
outro lado cumpria pagar, em primeiro lugar as despe­
sas feitas com a moléstia de Guilherme, com a qual se
gastara não pequena importância.
Em todo o caso, havia os dois mil escudos de Sofia,
que se achavam depositados com um comerciante d3
cidade. Mas sucedeu que o homem se recusou a devol-
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CONTr - DE SCHMID 2'1

ver o dinheiro dizendo que, de acôrdo com o contrato,


só estaria obrigado a pagá-los dentro de um ano.
Com isso a situação do casal tornou-se ainda mais
difícil. Felizmente um rico camponês propôs-se a em•
prestar o dinheiro por doze meses; e, como era de espe­
rar, Sofia e Guilherme aceitaram a oferta, ficando-lhe
muitíssimo reconhecidos.
Depois de reformada, a casa apresenrnva um as­
pecto muito alegre e acolhedor. Para ela mudou-se a
família. Logo a loja recebeu variado sortimento; e co­
mo o trato que os donos dispensavam aos fregueses fôs­
se dos mais amáveis, a freguesia aumentava, reconhecen­
do que os preços cobrados eram realmente muito módi­
cos. Entendia Guilherme ser preferível contentar-se
com pequenos lucros em negócio honesto, a pretender
enriquecer-se de um dia para outro. E agindo sempre
dessa forma, reconquistara a felicidade perdida com o
desastre, em virtude do qual ficara sem o emprêgo.
Infelizmente durou pouco êsse período de tran­
qüilidade. Antes que decorresse um ano, o comercian­
te em cujas mãos se achavam m, dois mil escudos de
Sofia, foi à falência, isto é, perdeu tudo o que tinha,
como resultado de seus maus negócios.
Assim que soube de tal notícia, apressou-se a pro­
curar Guilherme o camponês que lhe emprestara os mil
escudos. Estava transtornado, feito um maluco com a
idéia de que poderia não receber o seu rico dinheiro, e
passou a dizer pesados desaforos ao casal, revelando-se
o tal como realmente era, simples sujeito ganancioso,
incapaz de um pouquinho de humanidade, sem o me­
nor \'estígio de amor ao próximo. E diante do c::isal.
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28 CONEGO SCHMID

que absolutamente nada fizera para merecer semelhante


tratamento, declarou em alto e bom som, que, se no dia
do vencimento da dívida não recebesse tostão por tos­
tão o seu precioso dinheirinho, trataria imediatamente
de mandar vender tudo o que havia ali: mercadorias,
casa, móveis e até mesmo as camas que encontrasse.
Triste futuro viam diante de si Guilherme e Sofia,
que agora se confiavam às mãos de Deus, certos de que
não ficariam desamparados nas horas difíceis, que ràpi­
damente se aproximavam.
Na véspera do dia fatal, Sofia retirou-se para um
quartinho abandonado da casa, para poder livremente
entregar-se aos seus pensamentos e orações, e chorar à
vontade. Com o coração aflito, apertava contra o peito
a cruz de madeira que pertencera à senhora Dutilleul,
rogando a Deus que a socoresse e amparasse naquela
terrível situação.
Pôs-se de joelhos e orou fervorosamente, implo­
rando ao Altíssimo que tivesse compaixão do marido
quase inválido e das crianças, que mal algum haviam
feito para merecer tão grande castigo:
- Senhor, que há de ser das crianças? S6 em
pensar nisso me sangra o coração. Meu Deus, se fôr pos­
sível, afastai de meus pobres filhos o triste futuro que
os espera! - e assim dizendo, começou a soluçar e a
verter lágrimas, que em breve lhe molharam todo o ros­
to. Assim permaneceu durante longo tempo; e, afinal,
certa de que Deus sabe o que faz, acabou por consolar­
-se e encher-se de esperanças.
Levantou-se e procurou guardar a cruz no lugar de
onde a tirara; mas notou que lhe caíra um pedacinho
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CONTOS DE SCHMID 29

de um dos lados. Temendo que a cruz estivesse que­


brada, levou-a para junto da janela, onde a claridade
lhe permitiria mais detido exame. E então, com grande
suprêsa, notou que grandes cintilações provinham lá
de dentro! ...
É que por detrás da cruz havia umas molazinhas
quase imperceptíveis, às quais, uma vez tocadas, per­
mitiam que a cruz se abrisse, revelando o seu interior,
onde se achava oculta uma cruz de ouro cravejada de
belíssimos brilhantes. Sofia, que se acostumara a ver
brilhantes em casa de sua protetora, não pôde deixar de
reconhecer que aquêles eram verdadeiros. Então tor­
nou a cair de joelhos, soluçando:
- Ó meu Deus justo, ó meu Deus misericor­
dioso! Ainda uma vez me ouvistes as súplicas! Que
estas lágrimas que derramo sejam o tributo do meu reco­
nhecimento! ...
Depois se levantou e saiu correndo, à procura do
marido, que se achava noutro quarto, tristemente sen­
tado, com o filho menor nos joelhos. Surpreendido
com tão extraordinária nova, levantou as mãos para o
céu e exclamou:
- Senhor Deus, que inesperado socorro! Esta
cruz vale muito dinheiro; agora podemos pagar nos­
sas dívidas, e nossos filhos não ficarão na miséria, sem
ter onde morar!
Depois os dois esposos se abraçaram, chamaram
os filhos para junto dêles, explicando-lhes o milagre
que deviam ao Senhor. Assim todos se puseram de joe­
lhos, de mãos postas, e oraram a Deus pela salvação que
Ele lhes proporcionara.
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30 CONEGO SCHMID

No dia seguinte Sofia partiu para a cidade, e o seu


primeiro cuidado foi procurar o cura, aquêle mesmo
que a protegera na ocasião da morte de sua mãe. Sofi::i
explicou ao venerável ancião de cabelos brancos o que
lhe sucedera desde o comêço das suas aflições, acaban­
do por contar-lhe a feliz descoberta da cruz de diaman­
tes oculta no envoltório de madeira.
- Sim, Deus sempre nos estende a mão na infeli­
cidade; ninguém o implora em vão. Desde a mais tenra
idade êle tem sido para ti um pai cheio de ternura e de
bondade. Continua com tua fé inabalável n':Êle e em
seu Divino Filho, cumpre os seus mandamentos, cria
teus filhos nos mesmos sentimentos e :Êle te há de sal­
var de todos os perigos, de tôdas as desgraças!
- Mas - perguntou Sofia - posso considerar
esta cruz como de minha propriedade? Não cometo
uma injustiça para com os herdeiros de minha proteto­
ra? Pois êste é sem dúvida, o mais precioso dos objetos
deixados pela senhora Dutilleul ...
- Esta cruz te pertence - replicou o bom cura.
- É provável que a própria senhora Dutilleul ignoras-
se a existência desta riqueza oculta no interior da tosca
cruz de madeira, pois se trata de um antigo objeto de
família, que passava de pais a filhos. Em todo o caso, a
sua última vontade era deixar-te a mais preciosa das
suas jóias. Se o amor e o desinterêsse te fizeram esco­
lher um objeto aparentemente sem valor, Deus apro­
vou a tua idéia, ou melhor, inspirou-te na tua generosa
escolha. São muito grandes os brilhantes desta cruz;
devem valer muito dinheiro. Vende a cruz, paga tuas
dívidas e põe o resto de lado, pois te poderá servir em
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C O N TO S DE S C H M I D 31

outra dificuldade. Quanto à cruz de madeira, conserva-a


sempre contigo, para que passe a teus filhos, como a
mais preciosa das relíquias da família.
O devoto ancião colocou novamente a jóia de bri­
lhantes no interior da cruz de madeira, fechou as molas
e disse:
- Quem poderia desconfiar da riqueza que ela
encerra? O mesmo acontece com os nossos desgostos,
que nos aparecem como infelicidades, mas que no en­
tanto contém um bem mais precioso que o ouro e os
diamantes. Esta é a idéia que nos deve confortar na
adversidade, fazendo-nos abençoar os males que Deus
nos manda; pois um dia desaparecerá o envólucro rústi­
co, aparecendo o que lá dentro existe, em todo o seu
esplendor.
O bom sacerdote tinha um parente ourives, de
sorte que, como a idade não lhe permitisse andar sem
muitas canseiras, mandou-o chamar. O homem veio,
examinou a cruz e declarou que era realmente de subido
preço. Valia três mil escudos, e êle próprio estava pron­
to a comprá-la: daria mil adiantadamente, e os restantes
dois mil seriam pagos em prestações.
Como Sofia não fizesse segrêdo da sua feliz desco­
berta, a notícia logo se espalhou, indo chegar aos ouvi­
dos dos herdeiros da senhora Dutilleul. �stes se reuni­
r....,, muito irritados; estavam dispostos a denunciar
Sofia à justiça, declarando que se apossara de uma ri­
queza que não lhe pertencia.
Mas o senhor Brisson, sabendo disso, procurou-os
para dizer:
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12 CONEGO SCHMID

- Deixem-se de reclamações e de lamúrias! Con­


siderem-se felizes que ninguém saiba o que se passa
aqui. Se vocês todos não perderam ainda completamente
a cabeça, ouçam o que lhes digo: mesmo que na ocasião
da partilha vocês soubessem que a cruz de madeira con­
tinha semelhante tesouro, não poderiam impedir que
Sofia a escolhesse. Em todo o caso, é justo que não ti­
vessem feito semelhante descoberta. Estão perfeita­
mente castigados da pouca piedade e respeito que mani­
festaram por ocasião da morte da santa mulher, assim
como pela indiferença manifestada quanto à pobre ór­
fã. Vocês caçoaram de Sofia, porque escolheu um obje­
to sem v.alor; agora cabe a ela alegrar-se com a desco­
berta feita. Fiquem calados, pois, caso contrário, ain­
da por cima terão que sofrer as conseqüências de qual­
quer atitude irrefletida.
Embora profundamente contrariados, desistiram
os parentes da denúncia que pretendiam apresentar, de
modo que Sofia não sofreu o menor aborrecimento. E
antes de voltar para casa, mais uma vez resolveu voltar
ao altar, onde pela primeira vez se encontrara com a sua
protetora, orando à memória desta e agradecendo a
Deus, que nunca desampara os que n'Êle têm fé, os
que cumprem religiosamente os seus mandamentos.

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A IMAGEM MILAGROSA

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Existiu há muitos e muitos anos uma pobre mu:
lher que vivia numa cabana às margens do Danúbio.
Perdera, fazia pouco tempo, o marido, jovem pescador,
ficando sàmente com o filho, um bonito menino de cin­
co anos de idade, chamado Augusto.
Teodora - êsse era o seu nome - criava o filho
em devoção, ensinando-lhe as melhores virtudes. Sua
principal preocupação consistia em que o rapazinho
pudesse mais tarde seguir a profissão do pai, cujos apa­
relhos e instrumentos de pesca eram cuidadosamenre
guardados. Guardados, sim, apesar de que o barco, que
ficava virado perto da cabana, fôsse constante motivo
para que a pobre Teodora estivesse constantemente
recordando a imagem do espôso, tão cedo desaparecido.
Teodora, à parte os afazeres domésticos, precisava
ganhar a vida, e assim era que empregava todo o tem­
po possível fabricand0 rêdes de pesca, que ela fazia
com perfeição. Quanto a Augusto, embora ainda tão
pequeno, procurava fazer tôdas as vontades da mãe,
para compensá-la dos esforços a que se via obrigada pa­
ra sustentar a família, pois o certo era que a infeliz se­
nhora não poucas vêzes permanecia até meia-noite, à
luz da lamparina, incansàvelmente trabalhando.
Certa vez, pouco tempo após a morte do marido,
um irmão dêste veio visitar Teodora, trazendo-lhe uma
bela e brilhante carpa. Ela, lembrando-se do finado.
pôs-se a chorar, pois não acreditava que ainda pudess,
ver em casa tão belo peixe.
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38 CONEGO SCBMID

- Não chore, mamãe - disse o pequeno Augus:


to - quando fôr grande, hei de pescar muito peixe
para a senhora.
Mesmo com os olhos cheios de lágrimas, a mãe não
pôde deixar de sorrir:
- Sim, meu Deus, fôstes v6s que tudo fizeste.
solação na velhice. Seja bom e honesto como seu pai,
que eu serei a mais feliz das mães.
Em certa manhã de outono, enquanto a mãe se en­
tregava à tarefa de terminar uma grande rêde, que con­
tava entregar naquele mesmo d.ia, o menino recolhia
num bosque das redond�zas frutinhos de faia, com os
quais pretendia fabricar óleo ordinário para acender as
candeias durante as longas noites de inverno O peque­
no ficava contente sempre que conseguia encher o ces­
tinho. Nessa manhã já conseguira fazer boa provisão
de frutos, pois não perdera tempo.
Perto do meio-dia, Augusto se achava cansado e
com fome. Por isso sua mãe o fêz almoçar em baixo de
uma grande faia, que ficava perto da cabana. Seu al­
môço constou de uma tigela de leite com uma grossa
fatia do saboroso pão feito em casa.
Terminado êsse almôço, Teodora disse ao filho:
- Deite aqui nesta sombra e descanse um pm:co.
Se você dormir, quando terminar meu serviço virei
aqui acordá-lo.
Momentos depois Augusto dormia profundamen­
te e a mãe, depois de contemplar por algum tempo
aquela linda cabecinha ornada de cabelos crespos, reti­
rou-se para o interior da cabana.
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CONTOS DE SCHMID n
Teodora foi continuar a rêde e trabalhou sem pa­
rar até terminar o serviço. Assim se passaram muitas
horas, que lhe pareceram minutos, de tal forma se
achava ela dedicada à tarefa. Quando por fim a termi­
nou, saiu para acordar Augusto. Mas não o encontrou.
- Naturalmente meu anjo saiu para colhêr mais
frutos - pensou ela, despreocupada. Não podia supor
que qualquer desgraça pudesse suceder ao garôto.
Voltou para a choça, tratou dos afazeres que ain­
da esperavam por ela, tudo isso mais ou menos mecâni­
camente, e sem se preocupar com o filho, que certamen­
te chegaria de um momento para outro.
Mas o menino não chegava. De modo que Teo­
dora, já um pouco apreensiva, saiu para procurá-lo. O
bosque era bastante extenso, de sorte que a boa mulher
teve que andar muito. Por fim, já meio desesperada,
começou a gritar pelo filho. Ninguém lhe respondeu.
Então o seu desespêro atingiu o máximo. Teria o
menino esquecido a recomendação que lhe dera, de não
se aproximar do rio? Ao pensar nisso, estremeceu. En­
tão tomou a deliberação de correr à vila mais próxima.
Suas lágrimas logo atraíram seu irmão, além de grande
número de pessoas, que se mostravam tristes. Mas nin­
guém conseguiu dar-lhe informações sôbre a criança. E
embora todos se dessem ao trabalho de procurar o me­
nino pelos bosques e vilas da redondeza, caiu a noite
sem que se encontrasse o menor vestígio de Augusto.
- Se êle se afogou no Danúbio - disse um de�
sastrado camponês - haveremos de encontrar o cor­
po. Conhecemos perfeitamente o rio, de modo que o
cadáver será fatalmente depositado na areia, perto de
um grande carvalho, q\.lC não fica longe daqui.
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111 CONEOO SCHMTD

Naturalmente que a mãe estremeceu ao ouvir se�


melhantes palavras e, voltando para casa, chorou du­
rante tôda a noite. Logo ao amanhecer, correu até o
do filho, mas nada encontrou. Ali tornou a voltar vá­
rias vêzes, em dias seguidos. Os pescadores que passa­
vam por aquêle lugar em suas canoas, acostumaram-se
a vê-la constantemente, ora descendo, ora subindo o
rio.
Por fim Teodora perdeu as esperanças de encon­
trá-lo vivo ou morto, concentrando-se na sua tristeza.
Em tão pouco tempo, perder o marido e o filho! Algu­
mas vêzes se consolava, pensando que, se assim fôra,
tinha sido a vontade de Deus. Outras vêzes a si pró­
pria se acusava de não ter dedicado mais tempo ao pe­
queno, tão inexperiente, tão desprotegido! E a gente
da aldeia, os vizinhos, os conhecidos, quando a viam
passar, inteiramente de luto, murmuravam uns para os
outros:
- Coitada da Teodora, não há de levar muito
tempo que não siga o marido e o filho! ...
O cura da aldeia, um excelente homem, já bem
idoso, tomava todo o interêsse pelos seus paroquianos,
visitando-os e consolando-os nas horas difíceis. Já esti­
vera muitas vêzes na cabana de Teodora, de modo que
ficou muito preocupado quando a viu certa vez na igre­
ja, abatida como estava. Assim foi que a mandou cha­
mar; queria conversar com ela, depois da missa. Teo­
dora atendeu, e foi vê-lo na casa paroquial. O padre
estava sentado à escrivaninha, escrevendo. Pediu-lhe
que se sentasse, enqu:into terminava um registro já
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CONTOS DE SCHMID 39

iniciado. Enquanto esperava, pôs-se Teodora a con­


templar um quadro que se encontrava na parede. Im­
pressionada pela pintura, que representava a mãe de
Deus, chorando a perda do Filho Amado, ficou com os
olhos marejados de lágrimas. O bom padre percebeu-o
e dirigiu-se a ela:
- Minha boa Teodora, eis um exemplo bem con­
solador. Examine bem o quadro: simboliza ao mesmo
tempo uma dor profunda e uma piedosa resignação.
São os olhos cheios de lágrimas que representam a tris­
teza e ao mesmo tempo as mãos postas, que exprimem
a fé em Deus. Tome o quadro e leve-o: servirá para con­
sôlo nas horas de angústia, lembrando ainda que o pró­
prio Cristo não chegou à glória senão pelo sacrifício. A
Mãe do Senhor seguiu-lhe o exemplo, pois outro cami­
nho não existe para se chegar ao céu.
Teodora ouviu-o com grande emoção, sem tirar os
olhos da pintura. Depois declarou-se resolvida a seguir
o exemplo:
- Senhor, seja feita a vossa vontade, e não a mi­
nha!
Logo depois retirava-se Teodora para sua chou­
pana, levando a piedosa imagem. Foi então que lhe
veio à idéia abrir uma cavidade no tronco da árvore sob
a qual pela última vez vira o filho, e ali colocar a ima­
gem, que serviria de eterna lembrança do seu qi;erido
Augusto, misteriosamente desaparecido.
Comunicou a idéia ao padre, que não pôde deixar
de aprová-la, ajudando-a no que pôde, isto é, escreven­
do atrás da imagem o nome de Augusto e a data do seu
desaparecimento. Depois foi a imagem colocada na
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&e CIONEGO SCBMID

cavidade feita no tronco da árvore, como lembrança do


filho e como prova de fé e de confiança cm Deu.a.
* * *
Enquanto a mãe aflita chorava a morte de AuguS:
to, êste fazia uma viagem de mais de cem léguas. Che­
gara a grande cidade de Viena e vivia cm perfeita saúde
numa soberba casa, quase tão bela quanto um palácio.
Andava muito bem vestido, e, o que é mais, recebia
uma excelente educação. Essa mudança de sorte, no en­
tanto, dera-se de modo muito simples, e naturalmente.
Quando acordou, em baixo da grande árvore de
que já falamos, apanhou o cestinho, esfregou os olhos
ainda meio sonolentos, e saiu de nôvo à procura de fru­
tos de faia. Com êstes enchera quase completamente o
cêsto, mas como ainda não estivesse contente com a co­
lheita, continuou a andar, chegando às margens do Da­
núbio. Ali se achavam muitas famílias, ricas e pobres.
Eram passageiros de um navio, que tinham descido à
terra, enquanto a embarcação recebia um carregamento.
Entre essas pessoas havia um bando de crianças, as
quais logo se aproximaram de Augusto, curiosas por
que levaria o menino naquele cêsto.
- Que frutos esquisitos! - exclamou a pequena
Antônia, encantadora menina, mais ou menos da ida­
de de Augusto. Estava elegantemente vestida, e não
era nada acanhada nem cheia de si.
- Não há nada de extraordinário nestes fruti­
nhos, que são de faia, e servem para comer. Quer expe­
rimentar?
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C01'TOS DE SCHMID ,1

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'2 CONEGO SCHMID

Logo distribuía boa quantidade de frutos a tôdas


as crianças, mostrando-se muito contente por se achar
no meio daquela menino.da alegre. A bem dizer, nunca
se sentira tão feliz em sua vida, pois raras vêzes tivera
ocasião de brincar com outras crianças, pois só as havia
na vila, onde êle ia poucas vêzes. Brincou bastante com
meninos e meninas, os quais repartiram com êle as pe­
ras e ameixas que traziam.
Depois teve vontade de visitar a embarcação,
aquela casa flutuante, que para êle era uma grande no­
vidade, uma vez que jamais vira um navio. As crianças
o levaram a bordo; quanto a Antônia, conduziu-o ao
camarote de seus pais, um dos mais luxuosos da embar­
cação.
- Oh! ... - exclamou Augusto maravilhado -
E.ste quarto aqui é bem mais bonito que minha casa!
Antônia e as outras crianças passaram a mostrar­
-lhe os brinquedos que levavam. Augusto nunca vira
tanta coisa bonita e engenhosa, de modo que se esque­
ceu de voltar para casa, enquanto era tempo. Sim,
porque nesse meio tempo o navio partiu, descendo
majestosamente o rio.
Ningu.Em a bordo prc:aava grande atenção ao me­
nino. Os passageiros que já se encontravam a bordo,
ju!::;.iram que se tratava do filho de algum nôvo passa­
r�iro e os passageiros que entraram naquela parada jul­
g;:r:.1m que êle pertencia a alguma familia que viera de
longe. Foi só à tarde, quando o menino começou a cho­
rar, pois queria voltar para junto da mãe, que notaram
a presença de uma criança a mais a bordo. Todos fica­
ram surpreendidos e houve grande alvorôço no navio.
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CO N TO S D E S C H M T D 43

Alguns lamentavam a pobre mãe, outros 5e divertiam


com a presença do inesperado companheiro de viagem.
Quanto aos marinheiros, estavam zangadíssimos, e que­
riam que o menino descesse no primeiro pôrto.
Apareceu o comandante do navio e perguntou ao
memno:
- De que cidade é você? De que vila?
- Não sou de nenhuma cidade, não senhor. Não
sou de nenhuma vila.
- Ora esta! - exclamou o capitão, muito zan­
gado. De qualquer maneira, você deve morar em al­
guma casa! ...
- Minha casa fica perto da vila.
- Perfeitamente - respondeu o capitão.
Mas, que vila é essa, como se chama?
- Minha mãe nunca falou de outro modo. Ela
dizia: agora está dando meio-dia na vila. . . amanhã
vamos à vila ...
- Como se chamam seus pais? - insistiu o ca•
pitão, que já começava a perder a paciência.
Minha mãe chama-se Teodora. Meu pai já
morreu.
Sim, está bem. Sua mãe se chama Teodora;
mas, qual é o seu sobrenome?
- Ela não tem outro nome; diz que é Teodora,
e é quanto chega.
Viu logo o capitão que não conseguiria qualquer
informação a mais, de criança tão inexperiente. Estava
muito aborrecido, e, como nada mais tivesse a fazer,
exclamou:
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« CONEGO SCHMID

- Melhor seria que o cuco te levasse para outro


lugar, não para aqui!
Ao que o bobinho do Augusto respondeu ingênua�
mente:
- Não foi o cuco que me trouxe, não. Eu nunca
o vi, mas já o ouvi cantar na primavera!
Não houve quem não deixasse de rir da resposta,
a despeito do visível embaraço do comandante. O Da­
núbio atravessava nessa ocasião um país de densas flo­
restas, não se percebendo uma única casa em redor. Ao
cair do sol, porém, avistou-se a tôrre de uma igreja. Era
intenção do capitão deixar o menino nessa localidade,
para que algu ém se incumbisse de o entregar à mãe.
Mas o senhor Wahl, pai de Antônia, a isso se ôpos;
tratava-se de um rico comerciante, que transportava na
embarcação pratarias e objetos preciosos, e que, como
os demais passageiros do navio, fugia do inimigo, pois
nessa ocasião uma terrível guerra devastava a Alema­
nha.
- Gostaria imensamente que o pequeno fôsse
entregu e à mãe - disse êle. - Mas isso, no momento,
não é possível. O inimigo aproxima-se ràpidamente do
navio, e algu mas horas que perdêssemos poderiam ser
fatais; correríamos o risco de cair-lhe nas mãos, per­
dendo tudo quanto possuímos. Pelo amot de Deus,
continue a viagem!
Inquieto como estava, desejava o sr. Wahl que se
navl!gasse também à noite. E como os marinheiros res­
pondessem que isso não se constumava fazer, retorquiu
que pagaria uma boa gratificação à tripulação inteira,
para que não se fizesse nenhuma parada. De tal modo
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CONTOS DE SCHMID '5

se navegou durante tôda a noite, à suave claridade da


Lua.
Ao romper do dia, passaram por uma povoação
edificada à margem do rio. Aproveitou-se o capitão da
oportunidade para pedir aos camponeses que recebes­
sem o menino e o conservassem, enquanto tratariam de
procurar saber quem era a sua mãe. Mas os campone­
ses lhe responderam que, pobres como eram, mal
tinham com que alimentar os seus próprios filhos, de
modo que não poderiam receber mais uma criança em
suas casas.
Logo depois, se avistou, não muito distante da
margem, as casas de uma cidade de certas proporções.
Ia o capitão determinar que se fizesse uma parada,
para que êle próprio fôsse à terra, à procura do juiz ou
do cura do lugar, para que um dêles ficasse com o
menino sob sua guarda, quando se aproximou o sr.
Wahl e lhe disse:
- Está ouvindo?. . . É o troar dos canhões. O
inimigo está perto; se pararmos um instante, estare­
mos perdidos! ...
O capitão, que temia ter que ficar com o menino,
não quis ouvir o passageiro, de modo que estava pres­
tes a começar uma grande discussão, quando a espôsa
do sr. Wahl interveio; chegou-se ao ouvido do marido
e lhe disse:
- Meu caro, por que não tomamos conta desta
infeliz criança? Com isso faríamos uma obra de cari­
dade e resolveríamos o caso.
O sr. Wahl aprovou imediatamente a idéia, e pa­
ra que todos ouvissem, declarou bem alto:
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C8 CôNEGO SCHMID

- Abram tôdas as velas. Quanto à criança, le­


vo-a comigo e me encarrego de tudo quanto vier a ne­
cessitar no futuro.
Todos ficaram satisfeitíssimos com semelhante
declaração, não sendo poucos os passageiros que vie­
ram a felicitar o sr. Wahl pela resolução que acabava
de tomar.
Felizmente conseguiram chegar a Viena sem maio­
res contratempos. O sr. Wahl comprou uma grande
casa, que mandou caprichosamente mobiliar; ali passou
a família a residir, e o sr. Wabl entregou-se ao comér­
cio, que era a sua profissão.
Foram contratados professôres para Antônia; e
como Augusto residisse com êles e fôsse quase da mes­
ma idade que a menina, assistia igualmente às aulas.
Logo fêz grandes progressos, revelando uma extraordi­
nária inteligência. Mostrando-se, igualmente, obedien­
te e de ótimos sentimentos religiosos, em breve era
considerado como verdadeiro filho pelo sr. Wahl.
Mais tarde, e com satisfação, notou o dono da
casa que o peqneno tinha grande gôsto pelo comércio.
Matriculou-o, pois, numa escola especializada, e admi­
tiu-o na sua casa comercial, como auxiliar.
A incansável atividade e a honestidade de Augus­
to muito contribuíram para que os negócios prosperas­
sem. Por isso, o sr. Wahl pensou em recompensá-lo,
tornando-o seu sócio. E como a pequena Antônia fôsse
então uma encantadora môça, o sr. Wahl casou-a com
Augusto.
Quando a guerra terminou, tanto o sr. Wahl co­
mo seu genro receberam do imperador títulos de nobre-
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CONTOS DE SCHMID ff

za, pelos grandes serviços prestados ao país durante o


conflito armado.
Algu ns anos mais tarde, morrendo os pais de An­
tônia, resolveu Augusto deixar o comércio e comprar
uma propriedade na Baviera ou Suábia. Com as devas­
tações causadas pela guerra as terras da região tinham
baixado muito de preço, de modo que o môço esperava
fazer um bom negócio naquelas redondezas.
Assim o fêz, adquirindo uma propriedade que
muito lhe agradou, o belo castelo que ali havia encon­
trava-se em ruínas. Por isso mandou fazer os conser­
tos necessários, voltando a seguir a Viena, a fim de
buscar a espôsa e os filhos.
Quando Antônia chegou, por tôda parte encon­
trou misérias e ruínas. Muitas casas da vila tinham
vindo abaixo, enquanto grande número de outras amea­
çava desabar.
- Ah, pobre gente! - disse ela. - É preciso
ajudar êstes infelizes!
Alegrou-se Augusto ao ver que as idéias da espô­
sa concordavam com as suas, e tudo fêz para socorrer
�s habitantes das proximidades. Deu-lhes madeira pa­
ra as edificações, emprestou-lhes dinheiro, comprou
gado e sementes para distribuir entre os mais necessi­
tados.
Em breve o castelo se achava rodeado de casas
novas e asseadas, assim como de campos cultivados e
pastagens cheias de gado.
Os camponeses não cessavam de elogiar o nôvo
proprietário daquelas terras; mas êste respondia:
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'8 CôNEGO SCHMID

- De menino pobre que eu era, Deus me fêz rico


e feliz. Seria um ingrato se não procurasse repartir um
pouco do que tenho com os que têm necessidade de
auxílio. Alegra-me ver que contribuí para o bem-estar
de todos quantos me rodeiam. Não há maior felicidade
no mundo do que tornar felizes os nossos semelhantes.
* * *
Enquanto Augusto crescia, prosperava e enrique­
oa em Viena, tornando-se grande senhor, sua mãe, a
boa Teodora, passava por muitas amarguras. Pouco
tempo depois do desaparecimento de Augusto, a guer­
ra levou a devastação e a miséria à região em que ela
morava. De repente a floresta foi ocupada por solda­
dos inimigos, de modo que a infeliz mulher teve que
fugir, indo procurar abrigo em casa de seu irmão, que
morava na vila.
Mas a casa do irmão em breve se reduziu a cinzas,
e assim, enquanto êle ia procurar emprêgo em casa de
um pescador, Teodora recolheu-se à casa de outra irmã,
que tinha muitos filhos. Foi muito bem recebida e
passou a tomar conta dos sobrinhos pequenos.
Assim viveram as duas irmãs durante muitos anos,
consolando-se uma à outra, até que um dia receberam
dn terra natal uma carta do irmão, na qual se anunciava
a morte da espôsa e o casamento das duas filhas; dêsse
modo, pedia a Teodora que fôsse morar com êle, para
tomar conta da casa.
Teodora atendeu ao pedido. E mal chegou à vila,
encaminhou-se para a floresta, com a intenção de visi­
tar a faia, sob a qual pela última vez vira o seu querido
Augusto.
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eo N T o s D B s e H M I D 49

Mas, que tristeza! Como estava tudo mudado!


Não mais se conhecia o atalho que levava à sua cabana;
o solo estava inteiramente coberto de mato. Grandes
árvores, com ramos colossais tinham substituído as
matas e os arbustos. Havia muito tempo desaparecera
o vestígio de sua miserável cabana, e nem mesmo foi
possível descobrir a faia em que ficara o piedoso qua­
dro.
- Mesmo que eu não encontre o quadro - pen­
sava ela - ao menos hei de reconhecer o tronco, pela
abertura que nêle fiz.
- Não perca tempo - disse-lhe um velho que
andava catando lenha na floresta. Há muito tempo que
a árvore caiu. O mesmo que sucedeu à vila, aconteceu
à floresta. Os que deixamos crianças, são hoje homens
feitos, os que eram homens tornaram-se velhos; quase
todos os velhos daquele tempo não existem mais. As
árvores velhas dão lugar às novas. Tudo passa depressa
neste mundo, e os homens ainda mais depressa do que
as árvores. Não temos morada certa na terra; espere­
mos por aquêle que nos espera no céu
O senhor de Wahlheim, isto é. Augusto, que tal
título recebera do imperador da Austria, morava a al­
guma distância daquele lugar. Mas a floresta fazia
parte das terras que comprara. Um dia foi até a flo­
resta, acompanhar a distribuição de lenha que se fazia
aos pobres, para que pudessem aquecer-se no inverno.
Sendo muitas as árvores velhas a cortar. êlc queria es­
tar presente. Poderia, ao mesmo tempo, verificar se :­
distribuição era feita como se Jcvia, de moJo que cad:­
um recebesse ,l sua p:1rte.
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50 CôNEGO SCHMID

Mandou reunir todos os chefes de família em de­


terminado ponto, e pessoalmente ia dando ora uma
árvore a um, ora um tronco a outro. Como o irmão de
Teodora não tivesse podido vir, Teodora veio em seu
lugar, e apressou-se a ir pedir desculpas ao proprietá­
rio, explicando que o chefe da casa estava de cama.
O senhor de Wahlheim estava bem longe de ima­
ginar que a idosa mulher, tão pobremente vestida era
sua mãe. E por seu lado, Teodora jamais poderia supor
que o belo e robusto rapaz que tinha pela frente, era
simplesmente seu filho. De modo que recebeu, como
os demais, a árvore que lhe coube na distribuição.
O guarda das matas fêz comentários, dizendo que
as faias deveriam ser guardadas para o senhor; para os
pobres seriam mais que suficientes outras árvores de
inferior qualidade. Mas o senhor de Wahlheim, muito
severo, replicou:
- Não devemos dar aos pobres apenas o que não
presta, as coisas de qualidade inferior; devemos, isso
sim, é repartir com êles o que tivermos de melhor, prin­
cipalmente nas ocasiões difíceis. Assim, esta faia per­
tencerá à irmã do doente. Deverá ser derrubada, cor­
tada e transportada à casa dêste, tudo por minha con­
ta. Os lenhadores que cortem esta em primeiro lugar;
a lenha de que preciso, ficará para depois.
E em seguida afastou-se, para não ouvir os agra­
decimentos de Teodora. Esta, porém, o seguiu com
os olhos e exclamou:
- Que Deus abençoe êste senhor!
A mãe e o filho, que se haviam visto naquele mes�
mo lugar, vinte e seis anos antes, encontraram-se de
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CONTOS D E SC H M I D 51

nôvo, sem se reconhecerem, e teriam outra vez ficado


separados, talvez para sempre, se a Providência não
determinasse o contrário.
Logo dois lenhadores se puseram a cortar a faia.
A árvore caiu com grande estrépito, e de repente os
dois homens se puseram a gritar:
- Um milagre! Um verdadeiro milagre!
É que, com a queda, rompera-se o tronco, fazen­
do aparecer o quadro, que ficara oculto pela casca e o
musgo que lhe cresceram por cima. As côres do quadro
ainda estavam muito vivas e bem conservadas; brilha­
vam aos raios do sol. Mas os lenhadores eram moços,
e nada sabiam a respeito da hist6ria da gravura, não
podendo compreender como pudesse a imagem de Nos­
sa Senhora encontrar-se no interior da árvore. Se não
havia nenhuma abertura por onde alguém a tivesse po­
dido colocar naquele lugar, era claro que se tratava de
um milagre.
Atraído pelos gritos proferidos pelos lenhadores,
aproximou-se o senhor de Wahlheim, que se encontra­
va a pequena distância, ocupado ainda com a distri­
buição das árvores. Tomou o quadro e pôs-se a exami­
ná-lo atentamente.
- Com efeito - declarou - é muito bonito.
Pode-se mesmo dizer que é um primor. O desenho e
as côres são de muito bom gôsto, parecem provir de
mãos de mestre. Mas é fácil adivinhar como se encon­
tra o quadro no interior da árvore. Alguma devota pes­
soa cavou o lugar na casca, a qual, crescendo, veio ;1
encobrir a pintura ...
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52 CONEGO SCBMID

Apenas acabava de examinar a pintura, quando


lhe ocorreu virá-la, para ver o que havia do outro la­
do. E então uma súbita palidez o invadiu. Pôs-se a
tremer, e teve que apoiar-se a um tronco, para não cair.
- Na verdade - pensou - isto é deveras sur­
preendente! ...
É que nas costas da imagem se achavam escritas
as palavras seguintes:
"No dia dez de outubro do ano de 1850. vi
embaixo desta árvore, pela última vez, meu filho
Augusto, de cinco anos e três meses de idade.
Deus esteja com êle, onde se encontrar, e ampare
sua inconsolável mãe.
Teodora Sommer".
Aquelas palavras tiveram o dom de despertar as
lembranças de Augusto. Era êle, sem dúvida algum::,
a criança perdida: o nome e a data concordavam per­
feitamente. Fôra sua mãe, sem a menor dúvida, quem
colocara a imagem naquele lugar ...
Enquanto êle assim pensava, sua mãe corria-lhe
ao encontro. Ela ficara no bosque à espera de uma
vizinha, e a notícia da descoberta da imagem correra
com extraordinária rapidez. De modo que correu ao
lugar onde se encontrava o dono daquelas terras e lhe
suplicou:
- Por favor, meu senhor: dê-me a imagem. Ela
me pertence. Veja que meu nome deve estar escrito
atrás; foi o senhor cura que o escreveu, com o seu pró­
prio punho! . . . Ah! - disse ela, chorando - quan-
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CONTOS DE SCHMID 5S

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54 CONEGO SCRMID

tas vêzes passei por debaixo desta árvore. sem poder


reconhecê-la!. . . Ó meu querido Augusto, ainda te
vejo no mesmo lugar em que te deixei dormindo! ..•
As lágrimas e os soluços cortaram a voz da pobre
mulher. O senhor de Wahlheim, que, vendo o nome
de sua mãe escrito atrás da imagem já se emocionara
bastante, sentiu que o coração lhe batia impaciente.
Estava para se atirar aos braços dela, dar-se a conhecer,
imediatamente. Mas depois lhe ocorreu que a súbita
alegria poderia ser-lhe fatal. E então procurou conter­
-se. Tomou-a afetuosamente pelo braço e a consolou,
dizendo que seu filho vivia, que êle próprio o conhe­
cia. . . Depois de tais preparativos, julgou que por fim
podia dizer quem era:
- Sou eu o Augusto, aquêle que a senhora per­
deu há tanto tempo! ....
- Tu?!. .. - exclamou Teodora, atirando-se
aos braços dêle, sem conseguir pronunciar nem mais
uma palavra.
Ambos ficaram assim, longamente apertados. Tô­
das as pessoas presentes se comoveram e não puderam
reter as lágrimas. Por fim Augusto falou:
- Minha boa mãe - disse, por fim o senhor de
Wahlheim - Deus ouviu suas preces, 'Êle nunca me
abandonou. E.le a consolou, como consolou a Maria,
restituindo-me a minha mãe, para bem dizer, tirando­
-me dentre os mortos. Foi debaixo desta árvore que
nos separamos e é no mesmo lugar que E.le nos reúne.
Deus sabe o que faz.
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CONTOS DE SCHMID 55

Oh, sim! ... Ele sabe o que faz, e tudo o que


faz, faz bem feito!. . . Minha cega ternura teria impe­
dido de te educar como o merecias. Deus te confiou a
outras mãos, separou-me de ti por muito tempo, para
a minha e a tua felicidade. :Êle hoje te restitui a mim
para sempre, para que sejas o sustentáculo e o consôlo
da minha velhice. Ou melhor, para que sejas o prote­
tor de tôda esta região! ...
A felicidade de Teodora e do filho eram impos­
síveis de descrever. Todos os camponeses tinham
acudido para serem testemunhas do inacreditável espe­
táculo.
O senhor de Wahlhcim incumbiu o guarda da
floresta de ir dizer ao irmão de Teodora que esta só vol­
taria no dia seguinte e que levaria seu filho com ela.
Depois determinou que viesse a carruagem, ajudou a
mãe a subir, e sentou-se a seu lado, seguindo ambos
para o castelo.
Um nôvo contentamento esperava a boa Teodora.
Estava envergonhada de apresentar-se tão pobremente
vestida diante da nora, que era urna nobre dama. Mas
esta correu a abraçá-la, considerando-se felicíssima por
conhecer a mãe de seu marido. Teodora já chorava de
alegria, mas julgou morrer de contentamento, quando
chegou a conhecer os dois netos, Fernando e Maria.
- Minha tristeza - disse ela - era outrora in­
dizível; mas minha alegria é agora ainda maior. S6
consigo chorar e agradecer a Deus. Deus de bondade,
que sabe transformar o sofrimento em alegria: que é
que poderemos esperar de VÓ5 lá no céu?
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IC CONEOO SCHMID

No dia seguinte, o s,-nhor de Wahlheim mandou


aprestar a carruagem e foi com a mãe visitar o tio. Teo­
dora ficou com o doente até que êste se restabelecesse;
depois voltou para o castelo, onde· ficou para sempre.
Augusto e Antônia mandaram vir para o castelo
o irmão e a irmã de Teodora, e dêles se ocuparam com
carinho. Também procuraram saber de que necessita­
vam todos os demais parentes, oferecendo-lhes tudo
quanto precisavam, para se sentirem amparados e feli­
zes.
E por fim Augusto colocou na sua sala o pequeno
quadro milagroso, para lembrar a todos o que pode a
fé e a confiança em Deus. Ser-lhe fiel na ventura como
na infelicidade, é o melhor caminho a seguir nesta vida.

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A POMBINHA BRANCA

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Vivia em um antigo castelo situado entre monta­
nhas e chamado Falkenburgo, o bravo e generoso cava­
leiro Teobaldo. Os fracos e oprimidos, por longe que
estivessem, podiam sempre contar com a sua proteção,
pois a maior satisfação do cavaleiro consistia em fazer
feliz aquela pobre gente. Por seu lado, D. Otília, espôsa
de Teobaldo, era a benfeitora dos pobres, e andava pe­
las suas cabanas, visitando os doentes, distribuindo
remédios e auxílios.
O casal tinha uma filha, Inês, graciosa mocinha
de seus dezoito anos, a qual, tendo saído aos pais, jul­
gava-se muito feliz quando podia prestar algum serviço
a alguém.
As três excelentes criaturas eram verdadeiramen­
te veneradas por quantos as conheciam, e não era de
espantar que gozassem da mais completa felicidade, pois
Deus ouvia as preces que todos os protegidos de Teo­
baldo faziam pela paz e tranqüilidade do cavaleiro e
sua família.
Em certo dia 'de verão, D. Otília e Inês Ja�am de­
pois do almôço para um passeio pelo jardim e a horta
do castelo, e ora observavam os rubros botões de rosa
prestes a desabrochar, ora as deliciosas cerejas de côres
tão vivas. Sentaram-se as duas sob uma árvore que ha­
via no meio do jardim e puseram-se a contemplar as
gôtas dágua do repuxo, que caíam brilhantemente ilu­
minadas pelo sol. Assim ficariam mais tempo, se um
súbito barulho, perto do caramanchão, não viesse que-
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80 CONEGO SCHMlD

brar a doce harmonia de um canto de cigarra, pousada


em alguma árvore: distante.
Sobressaltaram-se e, procurando saber a causa do
barulho, notaram que se tratava de um pássaro que
pretendera entrar no caramar:chão, mas logo se afasta­
ra, ao ver D. Otília e a filha. Decerto seria um passa­
rinho que fugia das garras de algum falcão; e, de fato,
na atrapalhação em que vinha, foi ocultar-se atrás de
D. Otília.
- Olha, mamãe, é uma pombinha branca como
a neve, que acaba de se esconder atrás da senhora! -
exclamou a mocinha.
D. Otília observou:
- Vou mandar assá-la para o seu jantar.
- Assá-la!? - perguntou Inês, admirada e tris;
te, recolhendo a assustada ave, como que para prote­
gê-la contra os perigos que a ameaçavam. - Oh, não,
mãezinha, a senhora está brincando, não é? Se o pobre
passarinho veio refugiar-se comigo, como podc:rei dei­
xá-lo matar! Olhe como é bonito: branco como a ne­
ve, com os pezinhos vermelhos de coral. Ouça como
bate depressa o seu coraçãozinho! Pobre pombinha!
Olha para mim com um olhar tão suplicante, tão cheio
de inocência! Parece dizer: "Não me faça mal".
Em vista dos propósitos da filha, D. Otília disse­
-lhe que a levasse para dentro t: lhe desse de comer.
Também mandou fazer para a pomba uma gaiola pin­
tada <le verde e vermelho, a qual, depois de terminada,
foi posta num canto do quarto de Inês, para receber a
sua pequenina moradora de penas tão alvas.
Inês tratava carinhosamente da pombinha, dand�
-lhe diàriamente comida e água, limpando-lhe a gaiola
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CO NTO S DE S r: H M l D 61

com capricho. Com isso o passarinho se acostumou tan­


to a ela, tornou-se tão manso, que, aberta a portinhola.
vinha depressa pousar nos ombros da sua protetora, o1.
comer o alpiste que esta oferecia na concha da mão.
Dentro de pouco tempo nem mesmo fechar a por­
ta da gaiola era preciso: a pombinha saía. voava, depois
voltava sossegadamente para a sua morada. E de ma­
nhã, bem cedinho, vinha pousar sôbre a sua düna, para
avisá-la de que eram horas de se levantar.
Um dia Inês, que ainda estava com bastante sono,
aborreceu-se com o pássaro, e disse à mãe:
- Mamãe, hei de fozer de modo que ela não me
venha acordar tão cedo. A noite, antes de me deitar,
fecharei a porta da gaiola.
- Não, minha filha. É bom que você se habitue
a levantar cedo. É um costume que faz muito bem à
saúde e torna o espírito mais tranqüilo durante o resto
do dia. Depois, não seria uma vergonha para você le­
vantar mais tarde do que a pombinha?
A lição não podia ser mais apropriada, pois dali
por diante Inês nuc� :::ais deixou de levantar-se bem
cedo.
De outra feita, estava a menina à janela, enquanto
o pássaro comia migalhas de pão a seus pés. Mas de
repente voou e foi-se empoleirar na beirada do telhado.
Inês assustou-se, julgando que perderia a sua compa­
nheira; mas a mãe a aconselhou a que chamasse pelo
passarinho. 1;:ste obedeceu prontamente.
- Veja, minha filha, como ela sabe obedecer. F.
assim que você deve ser para sua mãe.
E desde aguêle dia Inês tornou-se ainda mais obe­
di<:nte do que anteriormente.
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62 CONEGO SCHMID

Em outra ocasião a pombinha, que já andava livre­


mente sôlta pelo jardim, pousou junto do tanque, para
beber água, saltando graciosamente de pedra em pedra,
para não sujar as patinhas.
- Inês, repare o cuidado que ela tem com o seu
asseio. . . As meninas nem sempre fazem assim . . . -
disse D. Otília, olhando para o vestido de Inês. É que
êste estava um pouco sujo de barro do regador, ali
encostado um pouco antes. Inês corou e daí por dian­
te procurou ter mais cuidado consigo.
Tempos depois, Inês deixou o castelo, para fazer
uma viagem em companhia da mãe. Quando voltou, a
pombinha veio fazer-lhe mil demonstrações de alegria.
- Enquanto a menina estêve fora - contou
uma empregada - fazia pena ver a tristeza do pobre
passarinho. Andava por tôda a parte procurando a sua
dona.
- É verdade - respondeu Inês - ela não po­
deria deixar de me ser reconhecida, pois fui eu que a
protegi contra os perigos, quem lhe dou comida e mo­
rada.
- E você, minha filha, também sabe ser sempre
reconhecida? Agradece a Deus, por tudo o que :Êle
lhe dá? Não deixe que um simples animalzinho a en­
vergonhe, mostrando-se melhor do que você!
Com efeito, nem sempre sabia Inês agradecer a
Deus os bens que lhe proporcionava; mas daquela data
em diante, aprendeu uma lição.
- Minha boa pombinha - disse um dia Inês
ao passarinho - muito tenho aprendido contigo, devo­
•te muito.
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CONTOS DE SCHMID 83

E foi D. Otília quem respondeu:


- Muitas coisas mais poderá você aprender com
ela. Esta pombinha branca é a própria imagem da do­
çura e da inocência. É simples, pura, sem fingimentos.
Por isso, Jesus disse: "Sejam simples como as pom­
bas!" Deus permita que todos po�sam dizer de minha
Inês: "É inocente e simples como as pombas!"
E seus desejos foram satisfeitos.
* * *
Uma grande quadrilha de bandidos invadira o
país. Teobaldo e seus homens lhe haviam dado caça
por montes e vales, até que por fim acabaram destro­
çando o bando de criminosos.
Tinha acabado de voltar dêsse feliz empreendi­
mento e estava justamente rodeado da espôsa e da fi­
lha, contando-lhes as várias peripécias que terminaram
pela prisão de grande número de bandidos e pela fuga
dos restantes, quando viu entrar uma senhora vestida
de prêto, trazendo pela mão uma jovem, igualmente
de luto.
Como já fôsse noite, as luzes se achavam �::esas,
de modo que as duas, ao entrarem, vestidas de negro,
pareciam ainda mais pálidas do que realmente o esta­
vam. O cavaleiro e sua mulher levantaram-se para re­
ceber a desconhecida, que avançou para o dono do cas­
telo, dizendo-lhe:
- Deus esteja contigo, generoso cavaleiro. Em­
bora nunca tivesse a oportunidade de encontrar-te, co­
nheço perfeitamente a tua fama, e sei que não é inutil­
mente que venho procurar proteção. Eu sou Rosalinda
de Hohenburgo e esta menina é Ema, minha filha. Tal­
vez já conheças a causa de minha aflição: meu marido.
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84 CONEGO SCHMID

Aldrich, morreu dos ferimentos que recebeu na guer­


ra, e creio que era bem conhecido pelo bem que pro
curava fazer aos infelizes. Deixou-nos pouca coisa, mas
que nos chega perfeitamente para viver: campos férteis
de um lado, florestas do outro lado do castelo.
Agora dois vizinhos nossos, de comum acôrdo,
querem apoderar-se, cada um de uma dessas partes de
nossas propriedades, e para tanto inventaram diversos
pretexteis. Outrora se diziam amigos de meu marido,
mas agora que Aldrich morreu, querem deixar-me
apenas c-om o castelo. Como poderei viver assim? Meu
pobre espôso bem que o previa. Foram estas as suas
últimas palavras: "Espera em Deus e põe tua confian­
ça no cavaleiro Teobaldo; ninguém ousará fazer-te o
menor mal". Generoso cavaleiro, espero que confir­
mes as palavras de meu marido, que se algum dia fôs­
ses infeliz, certamente haveria quem protegesse tua fa­
mília, como agora podes proteger a minha.
A pequena Ema chegou-se para perto de Teobaldo
e disse-lhe:
- Senhor, não nos desampares!
Enquanto que Inês, impressionada com o que
acabara de passar-se, acercou-se do pai para acrescen­
tar:
- Espero que papai se comova. Papai sabe que
a pombinha quando perseguida pela ave de rapina, aqui
encontrou proteção, de mamãe e de mim; não devemos
repelir os que procuram asilo em nossa casa.
Então Teobaldo respondeu:
- Não te preocupes, minha pequena Inês. Hei
de defender as duas perseguidas, que ora nos procurnm,
se Deus quiser. Se antes nada dizia, é que estava re-
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CONTOS DE SCHMID 65

fletindo nos meios que haveria de-empregar para socor­


rer a sra. Rosalinda e sua filha.
Dizendo isso, pediu às visitantes que se sentas­
sem, e lhe explicassem melhor o que se passava; depois
convidou-as a ficar no castelo enquanto êle iria tratar
dos interêsses das suas hóspedes.
Inês ficou muito contente, pois Ema iria passar
uns dias em sua companhia. Levou-a a tôda a parte, ao
jardim, à horta, mostrou-lhe o quarto de dormir, a pom­
binha branca. De modo que em breve estavam as duas
muito boas amigas, porque verificaram que tinham
nascido com os mesmos bons sentimentos, sendo igual­
mente educadas no temor de Deus.
Dali a cinco dias, regressou Teobaldo:
- Excelente notícia! - exclamou êle - Os teus
inimigos desistiram das suas injustas pretensões e a
contenda está liquidada. Pouca atenção teriam dado a
minhas palavras, se eu não os houvesse ameaçado; de
forma que lhes disse claramente que declararia guerra
a quem tivesse a audácia de fazer mal à sra. Rosalinda
e sua filha, e êles prometeram que não mais as impor­
tunariam. Consola-te, nobre senhora, que não mais cei­
farão teus campos, jamais tocarão numa única árvore
de tuas florestas.
Rosalinda, cheia de agradecimentos, alegre como
estava, nem sabia como agradecer ao seu salvador:
- Que Deus possa recompensar-te, meu genero­
so senhor! Que o Senhor proteja tua família! - e na­
da mais conseguiu dizer. A emoção a impedia de falar,
mas Teobaldo compreendeu perfeitamente tudo quan
to ela pretendia dizer.

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16 CÔNEGO SCHMID

Chegando o momento da partida, fêz Rosalinda


os preparativos para o regresso ao seu castelo. As duas
meninas choraram muito ao se separarem. Inês que­
ria dar uma lembrança à amiga, e como Ema sempre
manifestasse o desejo de ter uma pombinha,' Inês re­
solveu presenteá-la com :J. sua. Foi buscar o pássaro,
apertou-o contra o coração, e entre lágrimas o entregou
à amiga. Deu-lhe também a bonita gaiola, fazendo-lhe
minuciosas recomendações, como se se tratasse de uma
sua filha que partia.
No entanto, depois que Ema se despediu, Inês
ficou muito triste e se arrependeu de ter dado o passa­
rinho.
- Antes eu lhe tivesse dado os meus brincos -
disse ela à mãe.
- Você poderá dá-los em outra ocasião. Mas,
não <."ra possível fazer um presente melhor. Uma lem­
brança de valor talvez não a agradasse tanto, e poderia
humilhá-la. Oferecendo uma coisa de que você tanto
gosta, provou-lhe que lhe tem amizade. Não se arre­
penda do que fêz. Como bem sabe, seu pai teria dado
a vida para socorrer a pobre viúva. É bonito de sua par­
te ter dado à órfã o que ela mais desejava, embora se
tratasse de um pássaro de que você tanto gostava.
Quem não aprende cedo a se sacrificar pelos outros não
tonta com a proteção de Deus.
Com tranqüilidade e alegria passaram a viver em
seu castelo D. Rosalinda e sua filha. O castelo era cons­
truído num lugar muito ap:-azível, que ficava na encosta
de uma montanha, e ali costumavam às vêzes, bater via­
jantes para pedir pousada.
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CONTOS DE SCHMID 6'1

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r CONEOO SCHMID

Certa tarde chegaram ao castelo dois estrangeiros,


vestidos de romeiros, com sua roupa pardo-escura.
Traziam grossos bordões em que se apoiavam, e exi­
biam os chapéus enfeitados de conchas de todos os ro­
mell'os.
Depois que o guarda-portão os anunciou, D. Rosa­
linda mandou-os entrar para a sala térrea, onde lhes t0i
servida a ceia, acompanhada de um bom copo de vinho.
Depois que os estrangeiros terminaram a refeição,
D. Rosalinda, acompanhada da filha, desceu para vê-los.
Logo os romeiros passaram a contar muita coisa curio­
sa a respeito da Terra Santa. Tôda a gente do castelo
os ouvia atentamente, mas era Ema a mais emocionada
de todos, e até se lhe notavam lágrimas no seu rosto
de criança; ela sentia não poder ir pessoalmente visitar
aquêles santos lugares
- Minha filha -disse-lhe D. Rosalinda -pode­
mos a qualquer hora nos transportarmos para êsses lu­
gares e visitar o país das oliveiras, o Calvário, o Santo
Sepulcro: basta ler asslduamente o Evangelho.
Assim se passavam as horas da noite, quando. por
uma referência qualquer, os dois romeiros fizeram
grande� elogios ao cavaleiro Teobal<lo.
- Se o castelo de Falkenburgo não fôsse tão dis­
tante - acrescentou um dêles - e se eu tivesse a cer•
teza de encontrar o bravo cavaleiro, com grande pra­
zer passaria por lá, somente para conhecê-lo e cumpri­
mentá-lo.
A dona do castelo, porém, explicou-lhes que na­
quela ocasião não seria nada difícil encontrar o cava­
leiro; e quanto à distância, podia ser muitíssimo encur­
tada, se êles tomassem um caminho que ela conhecia.
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CONTOS DE SCHMID 69

Regozijaram-se muito os romeiros com a notícia e


resolveram, que no dia seguinte se poriam a caminho de
Falkenburgo. Ema e sua mãe gostaram da idéia, por­
que poderiam mandar algumas lembranças aos seus
amigos e protetores do castelo vh:inho. Em seguida
foram todos dormir.
No dia seguinte bem cedo partiram os dois pere­
grinos, acompanhados por um dos criados do castelo,
o qual estava incumbido de mostrar o caminho. Apro­
veitou-se Ema da oporrunidade para depois de dar
uma moeda de prata a cada um dos romeiros, pedir-lhes
que dissessem a Inês que a pombinha ia passando muito
bem.
Os romeiros partiram; pouca atenção davam ao
guia, e a princípio marcharam em silêncio. Depois que
atravessaram uma montanha escarpada, porém, passa­
ram a conversar cm italiano. O rapaz que os acompa­
nhava, embora fôsse conhecido no castelo por Lie­
nhardt, e falasse perfeitamente o alemão, era de ori­
gem italiana, conhecia bem esta língua, sendo seu ver­
dadeiro nome Leonardo. De modo que prestou bem
atenção ao que diziam seus companheiros de viagem,
satisfeito por ouvir falar sua língua materna.
E graças a isso, descobriu que não se tratava de
verdadeiros romeiros, não lhes sendo aquela região tão
desconhecida quanto diziam. Estavam disfarçados como
romeiros, mas não passavam de bandidos pertencentes
à quadrilha dispersada pelo cavaleiro Teobaldo, e ar­
diam de impaciência por tirar uma desforra. Com
aquela aparência de piedosos e santos contavam pene­
trar no castelo de Falkenburgo, pedir agasalho, e à noi­
te, lev.antar-se-iam para assassinar o cavaleiro, a mulher
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'10 CONEGO SCHMID

e a filha. Depois liqüidariam os outros ocupantes, sa:


queando o castelo, e ateando-lhe fogo, para reduzi-lo a
cinzas.
Assim foi que, quando avistaram ao longe, entre
as montanhas azuladas, o vulto de Falkenburgo, o mais
velho dos bandidos, chamado Lupo, disse ao seu com­
panheiro:
- Lá está a caverna do homem que tanto mal
fêz à nossa gente! É preciso que êle morra nos mais
,.
crue1s tormentos 1....
Ao que respondeu Orso, o outro bandido:
-· O projeto é bastante audacioso e se nossos
planos falharem, ai de nós! Mas em compensação, as
riquezas que nos esperam servirão para nos animar. Va­
le a pena arriscar!
- Liqüidar com o sujeito é para mim mais im­
portante do que apoderar-me de seus tesouros, embo­
ra não diga que despreze a êstes. Se formos bem suce­
didos, ficaremos muito ricos. Escuta bem, Orso: ves­
tiremos os ricos trajes de Teobaldo. Tu usarás o seu
cordão de ouro; eu ficarei com a cruz cravejada de bri­
lhantes. Depois, com tôdas as riquezas que arrecadar­
mos, iremos para outros países, onde seremos recebi­
dos como grandes senhores!
- Tudo isso está muito bem - replicou Orso
- mas o diabo é que tudo deve dar certo, como com-
binamos.
- O quê? Estás com mêdo, por acaso? Não é
perfeito o nosso plano? Não temos gente de confiança
pelas redondezas? Bastará acender três luzes na janela
do quarto dos romeiros, que logo virão em nosso auxílio
sete dos mais robustos -:ompanheiros. Havemos de
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CONTOS DE SCHMTD '11

fazê-los entrar pela porta do jardim, que é fácil de abrir


por dentro. Além disso, um dêles conhece perfeita­
mente todos os recantos do castelo. E é claro que nós,
sendo nove, bem armados e prevenidos daremos per­
feitamente conta de homens que dormem. Não tenho
a menor dúvida: seremos bem sucedidos.
O bom Leonardo estava frio de terror ao ouvir
semelhantes palavras; mas se mostrava muito despreo­
cupado, fingindo não entender uma única palavra do
que diziam os dois bandidos. Assobiava, colhia flôres
da beira do caminho, caminhava sem dizer palavra.
Tomara a resolução de acompanhar os dois até Falken­
burgo, para poder contar ao dono do castelo os infer­
nais planos dos falsos romeiros.
Foi então que um dos bandidos tropeçou e quase
afundou num precipício. Se isso não aconteceu, foi
simplesmente por ter a sua roupa ficado prêsa a uns
arbustos das bordas do abismo. Mas o incidente ser­
viu para revelar por baixo da roupa de romeiro, uns
trajes vermelhos e uma couraça polida de ferro. O ou­
tro, correndo para socorrer o companheiro, dei.'!:ou
cair um punhal, que imediatamente foi escondido. Mas
Leonardo fingiu nada ter percebido, e assim prossegui­
ram viagem.
Dentro em pouco chegaram perto de outro terrí­
vel abismo, no fundo do qual corria um rio, cujas águas
tinham sido muito aumentadas pelas chuvas dos últi­
mos dias. Servia de ponte um longo pinheiro; era uma
passagem excessivamente estreita. Então o bandido
mais velho disse ao outro:
- Pode ser que êste rapaz tenha visto a minha
armadura e o teu punhal; talvez esteja desconfiado.
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'12 CONEGO SCHMID

Quando atravessarmos a ponte, dar-lhe-emos um em­


purrão, para que caia no abismo. Assim estaremos em
maior segurança.
Ouvindo aquilo, o pobre Leonardo tremia de
mêdo; parou a pequena distância do precipício, e excla­
mou, espavorido:
- Eu não ouso atravessar essa passagem. Senti­
ria vertigens!
Mas o bandido mais velho replicou:
- Ora essa, meu rapaz! Não tenhas mêdo. Vem
cá, que te carrego! ...
Leonardo recuava, recuava, até que atingiu o
bosque. Ali chegando, pôs-se a dizer em voz chorosa:
- Por favor, deixe-me!. .. Ddxe-me, pelo
amor de Deus!. .. Poderíamos cair os dois juntos. E
depois, como conseguiria eu voltar? Deixe-me voltar
para casa. Os senhores não precisarão mais de guia;
o atalho continua logo ali adiante e o castelo não fica
longe daqui! ...
O bandido mais môço atribuía o terror de Leo­
nardo à visão do precipício. Disse ao companheiro, co­
mo sempre, falando em italiano:
- Que eu caia no abismo se êste palerma viu a
arma ou a couraça; embora tivesse visto, não entende
a nossa língua, de modo que não saberá quais são os
nossos projetos. E além do mais, se entendesse, o que
eu duvido muito, quem iria acreditar cm suas palavras?
Deixa que se vá o pobre diabo!. . . Repara como está
branco o poltrão!. . .
- Está bem - acudiu o outro- está bem. Mas,
para maior garantia, vamos derrubar esta ponte, de
modo que, se o sujeito descobriu nossos planos, não
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CONTOS DE SCHMID 73

poderá dar com a língua nos dentes e prejudicar nos­


sos projetos. Ali está Falkenburgo; não existe em lé­
guas ao redor uma única ponte que lhe sirva de passa­
gem, para chegar ao castelo e daí estragar-nos com a
festa.
Em seguida, tomando de seus bordões, deixaram
que o rapaz se fôsse embora. Quando chegaram ao
outro lado do abismo, disse um dêlcs:
- Tinha razão aquêle palerma; é uma passagem
verdadeiramente perigosa. Além disso, a madeira dês­
te pinheiro está meio podre, e ainda poderá al guém
que passar por aqui, despenhar-se no precipício ...
Para que isso não aconteça - acrescentou, com um
riso mau - vamos dar cabo desta ponte perigosa.
Assim falando, tirou do lugar o pinheiro, fazen­
do-o precipitar-se no fundo do abismo, onde as águ as
da torrente o levaram. Puseram-se de nôvo a cami­
nho, desaparecendo por detrá� de um rochedo. Quan­
to a Lonardo desatou em desabalada carreira, para ir
contar a D. Rosalinda o que ouvira, revelando os sinis-.
tros planos dos falsos romeiros.
* * *
A nobre senhora encontrava-se bem tranqüila em,
seu castelo, e nem por sombra poderia supor quais os
perigos que ameaçavam seu protetor e sua família.
Ema não se cansava de repetir as narrativas dos dois
romeiros, e, trabalhando perto da mãe, fazia-lhe cons7
tantes perguntas sôbre o que ouvira na noite anterior.,
À tarde, abrandando o calor, descera.n ambas para d
vale, a fim de visitar os trigais. Estes se mostravam-
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.,. eo N E G o s e H M I D

magnificamente desenvolvidos, prometendo excelente


colheita.
Assim aproveitavam a tranqüilidade da tarde,
quando viram chegar Leonardo, espavorido e quase sem
fôlego, gritando de longe:
- Ai, que desgraça, minha senhora! Que triste
, • 1
noucia ....
E depois, quando chegou mais perto:
- Os dois romeiros . . . para os quais servi de
guia . . . não são romeiros, não ... , são bandidos! ...
Querem assassinar o cavaleiro Teobaldo e tôda a gente
do castelo!.. . Querem roubar tudo e pôr fôgo à ca­
sa! ...
Mais não pôde dizer, tão cansado e sem fôlego se
encontrava. Caiu por terra sem sentidos, e ali ficou
muito tempo antes de voltar a si. D. Rosalinda e Ema
atarantadas e trêmulas, mal sabiam que fazer. Por fim
a senhora exclamou:
- Minha filha: corre depressa ao castelo, reúne
. todos os criados. Dize-lhes que arreiem os cavalos,
que vão à tóda brida a Falkenburgo, mesmo com o sa­
crifício dos animais.
Ema chegou ao castelo em poucos instantes, reu­
nindo imediatamente todos os criados, aos quais trans­
mitiu as ordens de sua mãe. Todos se puseram a lasti­
mar, como se êles próprios se achassem em perigo.
Logo depois chegava D. Rosalinda, acompanhada
de Leonardo, que lhe explicara melhor tudo quanto ou­
vira durante o trajeto.
- Que estão vocês fazendo aí, que não montam
imediatamente e não se põem a caminho? Vamos, não
há tempo a perder! ...
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CONTOS DE SCHMID 71

É impossível minha se­


nhora - respondeu o antigo
escudeiro de Aldrich - os dois
malfeitores já devem estar _rpui-

�2


'- r

to longe; talvez já tenham che­


gado a Falkenburgo; enquanto
que nós teremos que percorrer
quinze léguas para lá chegar.
Além do mais, já é noite e as es­
tradas estão quase inutilizadas
pelas chuvas. Com o melhor ca-
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78 CONEGO SCHMID

valo do mundo ninguém chegaria a Falkenburgo antes


da madrugada. Nossos cavalos são todos da lavoura,
os corcéis de batalha foram todos vendidos depois da
mone do senhor Aldrich. Mas mesmo que não o fôs­
sem, pouco adiantaria; não há um só cavalo em todo
o país que aguentasse ir até lá no tempo necessário.
A pobre senhora torcia as mãos de desespêro, e
exclamava, sem cessar:
- Oh! Meu Deus! Minha querida Ema, roga a
Deus que destrua o projeto dos bandidos! E vocês,
quaisquer que sejam as dificuldades, que fazem que
não se põem a caminho? Uma única palavra chegaria
para salvar Teobaldo e sua família. Tu, Martinho -
acrescentou, falando a um criado mais môço - que és
jovem e tens boas pernas, vai depressa. Vai pelo ata­
lho que conheço, que assim encurtarás o percurso de
um têrço; dou-te cem florins, se o fizeres.
- É impossível, minha senhora - respondeu o
criado - quem é que poderia achar o caminho com
esta escuridão, no meio do mato, tendo ainda que atra­
•ressar um precipício medonho?
- E depois - acrescentou Leonardo, cheio de
tristeza - a ponte sôbre o precipício foi destruída. Se­
riam precisas asas para atravessar aquêle ponto.
- ASAS! - repetiu Ema, a quem de repente
ocorrera uma idéia. - O cavaleiro Teobaldo recomen­
dou-me que mantivesse prêsa a pombinha nos primei­
ros tempos, pois em caso contrário ela voltaria a Fal­
kenburgo!. . . Vamos atar-lhe um bilhete ao pescoço,
que ela se incumbirá de dar o aviso!
- Louvado seja Deus! - exclamou D. Rosalin­
da - Deus atendeu aos nossos rogos. Minha querida
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CONTOS DE SCHMJD .,.,

Ema, foi um anJo quem te inspirou tão engenhosa


idéia; vamos pô-la imediatamente em execução! ...
Enquanto D Rosalinda escrevia o recado, Ema
foi buscar o passáro, a cujo pescoço se atou o precioso
bilhete. Em seguida seguiram todos para o terraço, on­
de foi dada liberdade à pombinha. Esta, assim que se
viu livre das mãos da menina, começou por ganhar al­
tura. Depois voou para cá e para lá, um pouco deso­
rientada; finalmente encontrou o rumo desejado, e pôs­
-se a voar na direção de Falkenburgo. Tinham todos
estado em silêncio durante aquêles instantes de incer­
teza; agora uma súbita alegria invadia os corações da
quantos apreciaram a cena. Faltava apenas fazer votos
e preces para que a ave chegasse a tempo ao castelo de
Falkenburgo: e se pode garantir que nunca nenhum
navio carregado de ouro, ao deixar o pôrto, foi acompa­
nhado com mais ardentes desejos de boa viagem.
Não obstante D. Rosalinda e a filha sempre per­
maneciam na maior inquietação. Chegaria a pomba a
Falkenburgo? E se caísse nas garras de algu ma ave de
rapina? Se não suportasse a viagem? Se chegasse mui­
to tarde? Se não pudesse entrar no castelo?
Assim ficaram as duas longamente fitando o céu
na direção do castelo vizinho, e mergu lhadas nas suas
dúvidas e meditações. De modo que notaram, de re­
pente, um grande clarão no céu ... Seria um incêndio�
Teriam os bandidos?. . . Não, não era um incêndio,
era simplesmente a lua cheia que acabava de aparecer
por detrás das florestas distantes.
Mais tarde resolveram recolher-se. Mas pouco ou
nada conseguiram dormir. E finalmente o dia nasceu.
Ambas voltaram os olhos para o céu esperando de Deu!!
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'11 CONEGO SCHMID

que nada de mau tivesse deixado acontecer aos amigos


distantes.
* * *
Já sabiam D. Rosalinda e a filha que os bandidos
não haviam reduzido a cinzas o castelo de Falken­
burgo; mas sua inquietação permanecia a respeito da
vida do cavaleiro e sua família. Com que alegria rece­
beriam naquele momento notícias de seus bons ami­
gos! Porque, como era natural, não poderiam nem ao
menos imaginar o que sucedera em Falkenburgo no
decorrer da noite anterior. Eis o que aconteceu:
Na véspera, à tarde tinham ido alegremente para
mesa o cavaleiro Teobaldo, D. Otília e a jovem Inês. O
sol despedia os seus últimos raios, quando lhe vieram
anunciar a chegada dos dois romeiros. O cavaleiro deu
ordens para que os recebessem. E acrescentou:
- Depois du jantar irei vê-los. Convém que lhes
sirvam garrafas de vinho, para que soltem a língua e
se mostrem dispostos a falar bastante.
Tcobaldo e a mulher estavam longe de imaginar
que horrível desgraça os ameaçava, quando de repente,
Inês exclamou admirada:
- Olhem, olhem, a minha pombinha!
De fato, ali se achava o passarinho, pousado na
janela, de asas abertas, batendo com o bico na vidraça,
como que pedindo que a abrissem.
- Vejam que traz alguma coisa amarrada ao pes­
coço - acrescentou a mãe. - Ah! É um pedaço de
papel enrolado! Se não me engano, é uma carta. Que
idéia têm estas crianças ...
O cavaleiro examinou o papel com tôda a atenção.
Por fora liam-se as seguintes palavras: "LEIA IME-
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CONTOS DE SCHMID 79

DIATAMENTE". :Êle abriu, correu os olhos no que


havia escrito ali e mudou de côr.
- Que houve? - perguntaram, quase ao mes­
mo tempo a mãe e a filha, muito assustadas.
Teobaldo leu em voz alta:

"Mui nobre senhor: os dois romeiros que de­


vem chegar esta tarde ao vosso castelo são dois
bandidos da grande quadrilha por vós dispersada.
O mais velho chama-se Lupo e o mais môço, Orso.
Trazem couraças e punhais escondidos por baixo
da roupa de romeiro. Esta noite tentarão assassi­
nar o nobre cavaleiro, bem como todos quantos aí
se encontrarem. O fito dêles é saquear o castelo
para em seguida reduzi-lo a cinzas. Com vossas
magníficas roupas, vosso cordão de ouro e vossa
cruz craveiada de brilhantes pretendem passar, de
então por diante, por grandes senhores. Três ve­
las acesas na ;ane_la do quarto dos romeiros será o
sinal para que outros bandidos venham em auxílio
déles, quando todo o castelo estiver mergulhado
no silêncio da noite, sendo que os dois bandidos
fantasiados de romeiros se encarregarão de abrir a
porta do iardim para os companheiros de fora.
Deus queira que a pombinha chegue a tempo e
que todos se salvem! Envio-lhe o aviso dêste mo­
do porque não dispunha de outro meio. Mande
imediatamente avisar que se salvaram, servindo-se
de um portador a cavalo. Sua reconhecida.
Rosa/inda".
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80 CôNEGO SCHMID

- Ó Deus de bondade! Que milagre! - disse


D. Otília muito comovida. A pomba é uma mensa­
geira do céu, como aquela que levou a Noé na arca, o
ramo de oliveira. Graças vos sejam rendidas, meu
Deus!
Teobaldo não perdeu tempo. Disse à mulher e à
filha que entrassem num quarto vizinho, vestiu a cou­
raça, mandou chamar servidores para perto de si e em
seguida deu ordem para que mandassem subir os romei­
ros.
Entraram êstes na sala, com maneiras humildes,
fazendo respeitosas reverências. Lupo, com fingida
polidez e sorrisos bem ensaiados, avançou uns passos e
declarou:
- Generoso cavaleiro, viemos do castelo de
Hohenburgo, onde os seus habitantes nos incumbiram
de saudar-vo:;, bem como à vossa família. Considera­
mo-nos felizes por conhecer pessoalmente o ilustre ho­
mem, cujas façanhas heróicas são hoje conhecidas em
todo o mundo, que é adorado pelas viúvas, pelos ór­
fãos, pelos desprotegidos. Dona Rosalinda não cessa
de elogiar-vos. Sua filha Ema é um verdadeiro anjo,
que chorava de emoção quando lhe fizemos a narrativa
da nossa romaria. Recomendou-nos a môça que dissés­
semos que a pombinha gozava de boa saúde.
O cavaleiro Teobaldo, ouvindo aquelas lisonjas e
sabendo, como sabia, o que se escondia por detr�� de
tão gentis palavras, dirigiu-se gravemente aos visitames
e perguntou-lhes:
- Quem são vocês?
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CO NTOS D E SC H M I D 81

- N6s somos pobres romeiros - respondeu


Lupo. - Vimos a Terra Santa e voltamos para a Turín­
gia, onde nascemos.
- Como se chamam? - tornou Teobaldo..
- Eu me chamo Herman - disse Lupa.
Êste aqui ( e apontou o companheiro) é meu jovem
primo Burckard.
- Que querem vocês no castelo?
- Pedimos agasalho por uma noite - disseram
ambos, inclinando-se. - Amanhã, ao romper da alva,
haveremos de part:r. Como ficarão contentes os nos­
sos, quando nos virem regressar!
- Mentira! - gritou o cavaleiro em voz trove­
jante. - Tu, meu bandido, chama-te Lupa; o jovem
patife é Orso. Não vêm de Terra Santa alguma, não
são romeiros nem são de Turíngia alguma! São simples
assassinos e incer,diários. Não vieram procurar agasa­
lho, mas assassinar os habitantes daqui, saquear e in­
cendiar o castelo. Por isso, irão receber a recompensa
que merecem. Então? Queriam usar minhas roupas.
exibir minhas condecorações, meu cordão de ouro, não
é?
Fêz uma pausa. Depois se dirigiu aos guardas:
- Vamos: arranquem as roupas dêstes patifes,
tirem essas falsas vestimentas, para que apareçam os
seus verdadeiros trajes! Desarmem-nos e levem-nos
para a enxovia da tôrre!
Os criados obedeceram, de modo que por baixo
das roupagens de romeiros surgiram as couraças e os
punhais de que se achavam armados. A seguir os leva­
ram, aos empurrões, para a prisão do castelo, isso de-

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82 CONEGO SCHMID

pois que o dono do castelo lhes atirou no rosto as pala­


vras que mereciam, pelo seu vil procedimento.
Quando se viram a sós, voltou-se o bandido mais
jovem para o companheiro:
- Como é que o cavaleiro pôde saber de nossos
projetos, em todos os seus pormenores? :Êle sabe até o
que dissemos quando viemos para cá, até que preten­
díamos usar suas roupas e passar por nobres cavaleiros!
Teria o rapaz que nos acompanhou compreendido a nos­
sa língua, apressando-se em nos denunciar?
- Compreender, podia - respondeu Lupo. -
Mas chegar ao castelo é que não chegou. Não despre­
guei os olhos da ponte levadiça, e posso garantir que
ninguém entrou no castelo depois de nós. A menos que
êle tenha entrado pela janela. . . O fato é que em tu­
do isto há qualquer coisa de extraordinário. Teobaldo
deve ter partes com o diabo. - Depois proferiu uma
série de pragas e maldições contra o dono do castelo,
contra todos quantos ali viviam. - Maldito! Foi a cau­
sa de nossa desgraça!
É que Lupo, endurecido no crime, não se dava
conta de que, êle sim, durante a vida causara inúmeras
infelicidades com os crimes que cometera. Quanto ao
bandido mais jovem, pôs-se a arrancar os cabelos e a
lamentar-se:
- Ah!. . . Se eu ao menos tivesse deixado de
acreditar em tuas promessas! Prometidas honrarias e
riquezas; e agora, não sei que terrível destino me espe­
ra! . . . Bem que uma voz cá dentro me dizia que de­
via recuar, se não quisesse ser castigado por meus cri­
mes!. . . Dos tesouros que me apoderei, nada mais
resta; se eu tivesse preferido viver honradamente Jo
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CONTOS DE SC
HMID �

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84 C0NEGO SCHMTD

trabalho, estaria agora bem tranqüilo, em minha aldeia,


sem ter nada o que temer!
Enquanto os bandidos assim se exprimiam, Teo­
baldo tomava as suas medidas para agarrar os cúmpli­
ces, que deveriam chegar à noite. Distribuiu os seus
homens de forma conveniente e, à hora marcada, man­
dou acender as três luzes na janela do quarto destinado
aos romeiros. Assim preparados, ficaram em silêncio,
esperando. Já havia passado a meia-noite, e os homens
do castelo começavem a perder a paciência. Seria um
trabalho perdido, se os bandidos descofiassem de al­
guma coisa.
- Tenho a idéia de disfarçar-me de romeiro -
disse o guarda-portão. - Assim mais fàcilrnente os as­
saltantes cairão na cilada; com essa vestimenta, pensa­
rão que sou um dêles.
Saiu para voltar logo depois, devidamente disfar­
çado, trazendo na cabeça um chapéu enfeitado de con­
chas, recomendando aos companheiros que se escon­
dessem por detrás das colunas e esperassem. Por fim
ouviram bater de leve na portinha do jardim. O guar­
da-portão foi abri-la.
- Chegamos a tempo? - perguntou um dos
bandidos que ali estavam.
- Sim; chegaram a tempo. Mas não falem, e
entrem todos. Quanto menos ruído, melhor - sussur­
rou o guarda-portão.
Deslizaram uns atrás dos outros. Estavam todos
armados de punhais, traziam enxôfre e tochas para atear
fogo ao castelo. Quando o guarda-portão fechou o por­
tão, fêz um sinal para os seus companheiros, que esta­
vam escondidos atrás das colunas. Eles se precipita-
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CONTOS DE SCHMID 115

ram sôbre os bandidos, que, desprevenidos, nada pu­


deram fazer. Enquanto Teobaldo chegou, acompanha­
do do restante dos seus homens, foram os assaltantes
acorrentados e trancafiados na prisão.
Por seu lado, D. Rosalinda e Ema esperavam an­
siosas e mesmos bastante inquietas, que chegassem notí­
cias de Falkenburgo. Mais de vinte vêzes a jovem subiu
ao alto da tôrre, para ver se se aproximava algum men­
sageiro. E nada! Já era de tarde quando percebeu ao
longe uma carruagem escoltada por grande número de
cavaleiros. Cheia de satisfação, correu a avisar a mãe:
- Mamãe!... Mamãe!... São êles mesmos
que vêm!.. . Tenho a certeza de que são êles mes­
mos!...
De fato, Teobaldo, Otília e Inês tinham-se pôsto
a caminho para irem pessoalmente levar a Hohenburgo
a feliz notícia da sua salvação. Logo que o cavaleiro
avistou D. Rosalinda e a filha, apeou do cavalo.D. Otí­
lia e Inês desceram da carruagem e vieram cumprimen­
tar e agradecer às suas benfeitoras, tudo isso no meio
de tais transportes de alegria que mal se pode descre­
ver. A satisfação fazia com que dirigissem, uns aos
outros, mil perguntas, enquanto subiam a encosta que
ia terminar no castelo.
O acontecimento foi festejado por um grande
banquete. Leonardo, que servia a mesa, foi obrigado a
repetir tudo quanto sabia. Contou tudo minuciosamen­
te, acrescentando que escapara com vida graças ao ban­
dido mais môço, e portanto, pedia que a êste fôsse des­
tinado o castigo mais suave.
No fim do banquete, Teobaldo ergueu sua taça
para saudar Ema, declarando que, sem a feliz idéia da
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M CONEGO SCHMID

menina, não saberia o que a êle e a família teria suce­


dido. Ema respondeu com modéstia, declarando que
nido se devia à Inês, que se privara da pombinha, para
agradar à amiga.
Tomou então a palavra a dona do castelo, dizendo
que deviam em primeiro lugar agradecer a Deus e de­
pois a Leonardo, que tanto fêz, e até arriscou a vida
para salvar a família de Teobaldo.
- Sim - disse o bravo cavaleiro, apresentando
uma taça a Leonardo - bebamos à noss:1 saúde. É pre­
ciso que sejas elevado um dia a escudeiro, pois o teu
coração fiel te faz digno do direito da nobreza.
- E ao bom cavaleiro Aldrich - acrescentou
D. Otília, devemos lágrimas de reconhecimento, por ter
rido a piedosa e feliz idéia de trazer para junto de si
êste bom Leonardo, que Deus sempre proteja!
Enquanto isso, Inês levantara-se da mesa e desa­
parecera. Dentro de pouco, apresentava a pombinha
branca, que trouxera de Falkenburgo. E entregou à
amiga a avezinha, que trazia no bico um ramo de oli­
veira de ouro.
- Minha querida Ema - disse D. Otília - acei­
te êste ramo de oliveira, como lembrança da nossa sal­
vação. Foi minha mãe que mo deu, para recompensar
o meu zêlo. Agora quero que o guarde, como lem­
brança dêste dia feliz.
Estavam todos comovidos. E então, por sugestão
da dona do castelo, resolveram encerrar as comemora­
ções, elevando em conjunto preces ao Senhor, que os
s:1lvara no momento preciso em que se arriscavam a
sofrer grandes e irreparáveis desgraças.
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A CAPELINHA DA FLORESTA

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Conrado Ehrlieb, môço robusto e cheio de vida,
depois de terminar com êxito o aprendizado de funilei­
ro, viajara três anos, para aperfeiçoar-se em seu ofício.
Simples, mas decentemente trajado, caminhava
pela estrada, trazendo às costas uma pesada malinha e
nas mãos um grosso bordão. Assim viajara horas e ho­
ras, até que se embrenhou numa espêssa floresta. Inu­
tilmente tentou atravessá-la. Por muito tempo errou
por entre as árvores, sem encontrar o menor vestígio
de estrada ou atalho. E o sol já se ia escondendo por
detrás das montanhas vizinhas, quando avistou a tôrre
de uma pequena capela, meio oculta pelos ramos de
um grupo de pinheiros.
Encaminhou-se para aquêle lado, atingindo um
pequeno atalho, que o levou à porta da igrejinha edi­
ficada numa pequena elevação do terreno. Foi então
que se lembrou das palavras, que seu pai sempre repe­
tia: "Se depender de ti, meu filho, nunca passes por
uma igreja aberta sem entrar e fazer as tuas orações''.
Assim foi que Conrado penetrou na capelinha,
cuja porta se achava aberta. E ao deparar com as som­
brias abóbadas, com as paredes enegrecidas pelo tem­
po, sentiu-se súbito voltar a anos, a séculos atrás.
Reinava o mai,; absoluto silêncio no interior do
pequenino templo. Conrado dirigiu-se ao altar-mor, e
ali fêz a Deus uma ardente súplica. Ia retirar-se, para o
que pretendia recolher a malinha e o bordão, que lhe
haviam ficado ao lado, quando, ao levantar os olhos,
notou na semi-obscuridade uma linda pintura. Che-
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90 CONEGO SCHMIC.

gando mais perco, viu sôbre o altar um bonito livro de


missa, encadernado de marroquim vermelho, com bor­
das douradas. Tomou-o nas mãos, abriu-o, e qual não
foi a sua suprêssa, ao ler, na primeira página, o seu pró­
prio nome, escrito pelo seu próprio punho!
Sem compreender nem acreditar no que seus
olhos viam, percorreu todo o livro, reparando nas ima­
gens dos santos e nas orações ali contidas, rujas passa­
gens êle as conhecia tão bem. Sem dúvida que o livro
lhe era familiar; mas, como viera parar ali, no meio
daquela espêssa floresta, em cima do altar-mor de uma
pequena igreja desconhecida? Isso Conrado não conse­
guia entender.
Mil recordações da infância lhe vieram então ao
espírito; e um desejo ardente de rever a família, ou
pelo menos de ter notícias dela se apoderou de c;ua
alma, enquanto que lágrimas abundantes lhe corriam
pelas faces.
- Ó meu Deus, que bons pais me destes! -
exclamou êle. - Como eram felizes os dias que passava
junto dêles e de minha irmã! E quanto tempo se pas­
sou depois dessa desastrosa guerra que nos levou para
fora da pátria e nos separou uns dos outros! Há anos
minha mãe morreu na miséria, e suas mãos, que me
<leram êstc livro, repousam hoje imóveis na sepultura.
E meu pai, de quem há anos não tenho notícias? Teria
morrido também, depois de tantos sofrimentos? Por
onde andará minha irmã? Estará viva ainda? Nada
sei. Isolado das pessoas que amo, ando só pelo mundo.
Ah, meu Deus, se meus parentes ainda vivem, levai-me
depressa para junto dêles!
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co��TOS DE SCHMID 91

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82 CONEGO SCHMID

Assim orou Conrado durante muito tempo, de­


pois, levantou-se, disse consigo:
- Não me atrevo a levar êste livro comigo; não
sei se ainda posso considerá-lo como sendo meu. Tal­
vez alguém o esquecesse aqui e volte para buscá-lo. O
melhor é sentar-me e esperar.
Efetivamente, pouco depois de tais palavras, no­
tou que entrara no templo uma menina de seus dezes­
seis anos. Havia nela um todo de simplicidade, e embo­
ra suas roupas fôssem pobres, eram asseadas. Aproxi­
mou-se do altar, com profundo respeito, e depois excla­
mou, num suspiro:
-Quanto sofro por havê-lo perdido, meu Deus!
Era tudo quanto tinha de mais precioso neste mundo!
Dispunha-se então a partir, quando Conrado, cuja
presença ali ela não percebera, aproximou-se e lhe dis­
se, mostrando-lhe o livro:
- Foi sem dúvida a menina quem esqueceu êste
livro sôbre o altar?
- Fui, sim senhor - respondeu a jovem, mui­
to contente. - Pode ver que na primeira página está
escrito "Conrado Ehrlieb".
- Pelo que vejo, êste livro tem para a menina
um valor muito grande. Seria indiscreção de minha
parte perguntar-lhe por quê? O nome de Conrado
Ehrlieb é muito meu conhecido. Posso dar-lhe notícia
dessa pessoa, se quiser.
- Seria um grande favor, uma grande bondade
sua - respondeu o jovem. - Conrado Ehrlieb é pa­
rente meu; muitos viajantes me têm dito que o viram
em diferentes localidades, mas infelizmente tais notí-
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CONTOS DF, SCHMID 93

cias jamais puderam ser confirmadas; talvez se tratasse


de outra pessoa, com o mesmo nome. Por isso, acho
que lhe devo contar parte de minha história; assim
saberemos se é mesmo o Conrado que o senhor co­
nhece.
E começou:
- Meu pai estava empregado do outro lado do
Reno. Sobreveio a guerra, o país foi ocupado pelas
tropas inimigas, e êle foi obrigado a abandonar o país.
Seu chefe, que também perdera tudo quanto possuía,
estava impossibilitado de ajudá-lo, e no meio de tantas
desgraças e sofrimentos, faleceu minha mãe.
Ficamos numa situação bastante difícil. O faleci­
mento da espôsa foi para meu pai um golpe terrível.
Ficando só com as duas crianças, como poderia êle con­
tinuar a viagem em busca de emprêgo?
E como um habitante da localidade, um honesto
caldeireiro, que não tinha filhos, se oferecesse para
ficar com meu irmão sob sua guarda, meu pai aceitou
e continuou a viagem, levando-me em sua companhia.
Pusemo-nos a caminho, fomos para muito longe.
Mas logo meu pai caiu doente, falecendo em poucos
dias. Quanto a mim, ainda muito pequena, fiquei só,
mas ainda tive a felicidade de ser recolhida por uma
viúva, senhora boa e carinhosa, que tomou conta de
mim. Desde então passaram-se dez anos; e nunca mais
tive notícias de meu irmão.
Foi assim que meu pai, embora já muito fraco, pe­
diu, na mesma noite em que morreu, para falar com o
dono da casa em que estávamos morando. Quando êste
o atendeu, pediu-lhe que comunicasse o seu falecimentr
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IM CôNF.GO SCH'1TO

ao filho e lhe transmitisse a sua bênção, suplicando ao


caldeireiro que se fizesse protetor do rapaz. O enderê­
ço de meu irmão foi escrito num papel; mas uma desas­
trada empregada, ao fazer a limpeza, dias depois, pen­
sando que aquilo nada valesse, queimou o papel. Meu
Deus! Quantas e quantas vêzes não pensei em meu
irmão!
Então Conrado, com voz trêmula e olhos cheios
de lágrimas, interrompeu-a:
- Oh, como são maravilhosos os caminhos de
Deus! ... Minha cara menina! Diga-me: o seu nome,
por acaso, não é Luísa?
- Chamo-me Luísa Ehrlieb, sim senhor - res­
pondeu ela com surprêsa.
- Olhe então bem para mim, Luísa, e que a
minha mão aperte a sua. Quem escreveu seu nome
neste livro fui eu, êsse é o meu nome. Sou eu o seu
irmão Conrado!
A menina custava acreditar no que ouvia; estava
tão comovida quanto o irmão, e juntos derramavam
lágrimas de contentamento. E assim foi que rende­
ram graças à Providência, que lhes proporcionara o
tão almejado encontro. Depois Conrado prosseguiu:
- Minha boa irmã, ainda me lembro do momen­
to em que me despedi de você. Uma família estrangei­
ra, que, como nós, fugia do inimigo, ofereceu a meu
pai para levá-la de carro até a cidade próxima. Meu
pai, vendo como você estava cansada, aceitou, e conti­
nuou o resto do caminho a pé. Parece que ainda a vejo,
tôda contente, subir para a bonita carruagem, enquan­
to que eu chorava por a ver partir tão depressa. Você
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CONTOS DE SCHMID 95

era bem pequena; mas, como cresceu depois! Como


me sinto feliz por encontrá-la de nôvo, tão mõça, tão
cheia de saúde! Jamais poderia reconhecê-la, minha
irmã. Louvado seja Deus, que enfim nos tomou a
reunir!
Ah! - cotinuou êle - quantos sentimentos se
agitam em mim neste momento: o contentamento de
havê-la encontrado, a tristeza de saher que, conforme c:u
pensava, meu pai já não existe. Você não pode imagi­
nar quantos sofrimentos padeci durante todos êstes
anos, principalmente quando me vinham dizer que meu
pai me abandonara, que s6 quisera ficar livre de mim,
e por isso me confiara ao caldeireiro.
Agora vejo que eu é quem tinha razão, quando
não acreditava em semelhantes palavras. Só você sabe
o quanto nosso pai era bom e religioso.
- Quem melhor do que eu pode saber disso? -
replicou Luísa. - Nunca me esquecerei da noite em
que êle morreu. Chamou-me à sua cabeceira, e como
me comoveram as suas últimas palavras! Parece-me
ainda vê-lo a dar-me a sua bênção com a mão moribun­
da e aquêle semblante, que não mais parecia perten­
cer a êste mundo, que era a imagem de um santo!
- Ainda há pouco, ao passar por esta igrejinha,
lembrei-me dêle, que sempre me dizia: "Nunca pas­
ses num lugar consagrado a Deus sem entrar". E na
derradeira vez em que passamos por um dêsses sagra­
dos lugares, entra.mos juntos. Meu pai fêz as suas ora­
ções e depois me disse: "É provável que eu não viva
muito tempo mais, que me vejas hoje pela última vez.
Que os meus últimos conselhos te fiquem gravados no
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te CONEGO SCHMTD

coração e não te esqueças de ser o arrimo de tua irmã,


repartindo com ela o fruto do teu trabalho. Dá-me a
tua mão, Conrado; prometes-me o que te peço?"
Mandou-me ajoelhar, ergueu os olhos para o céu
e deu-me a sua bênção. Depois que nos levantamos,
4braçou-me cc.,m ternura, deu-me o pouco de dinheiro
:fe que podia dispor e só conseguiu pronunciar estas
palavras: "Que Deus esteja contigo!"
Hoje, quando entrei nesta capela, tôdas essas re­
cordações me assaltaram o espírito; pareceu-me ainda
vê-lo ajoelhado, rezando. Oh, como me sinto feliz ao
saber que meu pai não se esquecera de mim! Que na
hora da morte me abençoou!
- Sim, meu querido irmão, Deus é milagroso.
Foi êle quem me fêz vir aqui e esquecer o livro de ora­
ções sôbre o altar. Foi Êle quem dirigiu para cá os
seus passos, quem o fêz esperar até que eu voltasse.
Êle quis reunir diante do altar os dois irmãos há tanto
tempo separados. Rendamos graças a Êle, pelo que
acaba de fazer, prometamos voltar aqui muitas vêzes,
pela graça de nos haver reunido!
Assim fizeram. Depois Conrado perguntou à
irmã:
- Mas diga-me uma coisa, Luísa: Como veio
você aqui? Não tem mêdo de vir sozinha ao meio des­
ta espêssa floresta?
- Não estamos tão longe de lugares habitados.
O bosque acaba muito perto daqui e o caminho da
capelinha é bastante freqüentado. Esta igrejinha é o
lugar de minha predileção. Quando faz bom tempo,
na primavera e no verão, é êste o meu passeio preferi-
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CONTOS OE SCHM[D 97

do Também venh() aos domingos e nos dias de sema­


na, quando me sobra tempo depois do trabalho. O
caminho é muito bonito, e como é agradável caminhar
por baixo destas �-vores imensas! Quase sempre vem
comigo uma de m:1 ilias amigas, filha de um respeitável
homem do lugar; não veio hoje, por estar muito ocupa-
da. Sempre u,agd,·êste livro de orações, e o sei quase de
cor. Muitas vêzes nesta capela pedi a Deus para encon­
trar meu irmão. Agora vejo que não foi por acaso que
o esqueci aqui; foi Deus quem o quis, para me trazer
ao encontro de meu querido irmão.
- Pois eu estava um pouco preocupado por en­
contrar-me perdido no meio da floresta, e no entanto,
foi graças a isso que pude rever minha irmã. Eis como
Deus transforba as nossas tristezas em fontes de ale­
gria! Mas, onde é que você mora, minha irmã?
- Pertri daqui, do outro lado do morro, numa
aldeia chamac\a Schoemborn; é onde reside· a digna se­
nhora que rrié adotou. Não tem filhos; é a viúva de
um rico negociante. Estima-me como se fôsse sua filha
- explicou Luísa. - Mas, vamos para casa. Minha
nova mãe há de ficar muito contente ao conhecer meu
irmão, cuja sorte tantas vêzes lamentamos e chora­
mos juntas.
Logo se puseram a caminho. Conrado, embora
estivesse muito cansado, não consentiu que a irmã lhe
carregasse ;a mala. Foram conversando sôbre mil pe­
quenas coi.;as, e assim chegaram à aldeia em que Luísa
residia. />t mãe adotiva desta ficou muito espantada ao
ver a jovr.m chegar acompanhada de um estrangeiro.
mas em compensação foi inexprimível a satisfação qul'
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98 CONEGO SCHl\41D

sentiu ao saber que se tratava do irmão de Luísa. Cus­


tava-lhe crer em acontecimento tão extraordinário.
Logo se viram os dois irmão� cercados de grande
número de curiosos. Uns diziam:
- Não se pode negar: é ben:i o irmão de Luísa.
Olhem como os dois se parecem!
Mas outros se mostravam incrtxlulos, sacudiam a
cabeça e diziam que não se devia confiar nas palawas
de um desconhecido. No entanto tôdas as dúvidas de•
sapareceram quando Conrado, tirando do bôlso o seu
certificado de aprendiz e um atestado assinado pelo
nrra, exibiu tais documentos a quantos pusessem em
dúvida a sua identidade.
A contentação da mãe adotiva de Luísa era muito
grande, e lágrimas de ternura lhe vieI'l'im aos olhos ao
conhecer o modo milagroso pelo qual <1s dois irmãos se
encontraram. Chamou Conrado e disse-lhe.
- Tinha a intenção de deixar "!Sta casa para
Luísa, pois vejo que cresce ajuizada, não' tem os modos
feios, nem a má conduta de tantas mocinhas que só
pensam em vestidos e divertimentos. Mas, isso não há
de impedir de fazer alguma coisa por você, bravo Con­
rado. Deus me proporcionou a riqueza para que tives­
se meios suficientes para fazer o bem e tornar felizes os
meus semelhantes. O caldeireiro da vila morreu há
alguns meses, sua casa está à venda. Vou comprá-la
para você, se se sente com vontade de d.mtinuar no
seu ofício, a contemo de todos.
Essas palavras foram ditas na presençc.1 de muitas
pessoas, e, de bôca, em bôca foram parar nos ouvidos
dos parentes da digna viúva, todos êles muito ricos,
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CONTOS DE SCHMID 99

mas gente muito interesseira. Logo se apressaram a


visitar a nobre senhora, aconselhando-a a desistir do
projeto. Ela, todavia, não voltou atrás, e graças a isso,
Conrado pôde entqgar-se ao seu trabalho, tornando-se
em pouco um do�. profissionais mais conceituados do
lugar. Casando-sl, tempos depois, com uma boa mô­
ça de fortuna, tey.; felicidade ainda mais completa.
Por seu lado, casou-se Luísa com um honesto ra­
paz, encontrando as venturas a que tinha direito pelas
suas virtudes.
Pr6spero como estava, não se esqueceu Conrado
do caldeireiro que dêle cuidara, que lhe ensinara o
ofício. Não se limitou a escrever-lhe agradecendo por
todos os benefícios recebidos. Sabendo que o bom
homem, enfraquecido pela idade, não mais podia traba­
lhar; que perdera a mulher e não tinha o suficiente
para viver corA confôrto, pois muito perdera com a
guerra, decidiu-se a ir buscá-lo. Instalou-o em sua
casa, e cuidava dêle com o mesmo respeito, amor e de­
dicação que se devem a um verdadeiro pai. Luísa
sempre se comportou como filha submissa t: dedicada
para com a sua mãe adotiva. De modo que, quando
esta e o velho caldeireiro conversavam, costumavam
dizer:
- Deus não nos deu filhos, mas os que adotamos
nos fazem tão felizes, como se fôssem verdadeiros. Na­
da pode e!.ceder os cuidados que nos dispensam, as
alegrias que nos proporcionam.
Conrado e Luísa fizeram restaurar a antiga capela,
enfeitavam-na com flôres, e nos quatro cantos desta
plantaram quatro tílias. Mandaram igualmente lim-
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100 C O N E GO S C H M I D

par a pintura que ali existia, cujas côres se achavam


um pouco desmaiadas pelo tempo; disso incumbiram
hábil pintor, que se ofereceu para 1:estaurá-la reconhe­
cendo o valor da obra.
A capela tornou-se admiráve� por sua alvura;
através dos cristais das vidraças a vistn repousava sôbre
o verde frescor das tílias que a sombreavam. O altar
tinha o brilho do mármore. Tudo quanto o ornava era
rico e simples, mas nada igualava o encanto do qua­
dro da parede. A frescura do colorido, a graça e a bele­
za do desenho deixavam uma doce impressão na alma.
Representava o quadro a Santa Família: Nossa Se­
nhora sentada à porta da choupana, com o Menino Je­
sus ao colo. São José apresentava ao menino um cesti­
nho de frutos. Ambos olhavam com ternura para o
Divino Filho, e o menino, de mão post, s, parecia con­
templa;:: o céu com recolhimento. Em baixo do quadro
se liam, em letras de ouro, as seguintes p.:Javras:
"A união, o trabalho, o amor e a piedade
são os elementos da verdadeira felicidade".

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O CANÁRIO

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I

No ano de 1793, época em que na França tanta�


e tantas famílias es�avarn de luto ou na mais completa
miséria, vivia em P:"ris a família d'Erlau. O sr. d'Erlau
era um homem de Lom gênio e grande nobreza de alma.
Era casado com uma excelente e amável senhora, e ti­
nha dois filhos, Carlos e Lina, que eram a fiel imagem
de seus pais. Logo que irrompeu a luta, que à Europa
tanto custou em sangue e lágrimas, o sr. d'Erlau dei­
xou a capital, recolhendo-se com a família a uma pe­
quena propriedade que possuía entre o Reno e os
Vosges.
Ali, na maior solidão passaram a viver no castelo
rodeado de rochedos, férteis campos, vinhedos e árvores
frutíferas. Alegraram-se os habitantes da vila próxima
por os verem ali residindo, pois, ordinàriamente, só
permaneciam 'fi..> castelo umas poucas semanas durante
o ano. É que o sr. d'Erlau não se cansava de fazer o
bem a seus semelhantes. Por outro lado, se aquela re­
gião antes já era um verdadeiro jardim, tantos cuida­
dos lhe dedicou o dono do castelo, que se transformou
num paraíso.
O sr. d'Erlau considerava-se feliz, rodeado dos fi­
lhos e da espôsa, e como tivesse bastante tempo dispo­
nível, empregava-o na instrução das crianças, a quem
igualmente, transmitia os princípios religiosos, que con­
siderava indispensáveis à formação das almas. A se­
nhora d'Erlau companilhava dos sentimentos do mari­
do, e como acompanhasse as lições dos pequenos, não
raras vêzes dizia algumas palavras de confôrto, inspira­
Jas pelo seu coração de mãe.
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104 CONEGO SCHMID

Além dos conhecimentos religiosos, outros trans­


mitia o sr. d'Erlau a seus filhos, sem desprezar os que
servem de pura recreação, e que concorrem para as pu­
ras alegrias da vida. Tanto êle como a espôsa tocavam
muito bem piano; por isso, dava1, lições de piano a
Carlos, e de canto a Lina.
Estavam no fim do inverno, estação em que a
música era o deleite principal de tôdas as tardes. O sr.
d'Erlau imaginara uma pequena composição religiosa,
a que adaptara uma terna melodia, ensaiando os filhos
em segrêdo, para fazerem uma surprêsa à mãe, que de­
dicava bom tempo às suas leituras. Assim, quando na­
quela tarde a sra. d'Erlau chegou à sala, Carlos sentou­
-se ao piano e começou a tocar, acompanhando a irmã,
que dizia os seguintes versinhos:

Como és sábia, ó Providênci•!


Eu tenho plena confiança
Em teu divinos decretos.
Admiro-te a potência,
Abençôo-te a clemência,
Que me inspira os meus afetos.

A noite em abr;go certo


Trata Deus de minha sorte;
De manhã, quando desperto,
Sou feliz, sinto-me forte.
Pai terno e caritativo,
'P.le vela o meu futuro;
Os dias, meditativo,
Passo em descanso seguro!
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SC H M l D 105
CON TOS DE

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106 C ô N E G O S C H M I Il

A senhora d'Erlau ficou muito comovida ao ou�


vir a delicada composição. Nunca um concêrto lhe de­
ra tanto prazer, nem mesmo os que assistira nos palá­
cios dos príncipes.
- Sim - exclamou ela, abraçando os filhos -
que Deus vele sempre por vocês, como o fêz até hoje! ...
Mal acabava ela de pronunciar tais palavras e eis
que a porta se abre, dando entrada a um bando de
gente armada. O comandante tinha grandes bigodes e
espêssas sobrancelhas, sob as quais brilhavam negros
olhos ameaçadores. Vinham prender o sr. d'Erlau, que
foi recolhido à prisão da cidade, acusado, de ser par­
tidário do rei e inimigo da liberdade.
De nada adiantaram as súplicas e as lágrimas da
espôsa e dos filhos, cruelmente repelidos. O sr. d'Er­
lau teve que seguir à fôrça e mal teve tempo de reunir
alguns objetos para levar à prisão.
Entregues à tristeza, quase desesperados, a espôsa
e os filhos custaram a acalmar-se. Por fim, a mãe co­
brou um pouco de ânimo.
- Tenhamos confiança em Deus, meus filhos, -
disse ela a Carlos e Lina - É :Êle quem nos manda êstc
castigo, para experimentar-nos. :Êle há de nos dar as
fôrças necessárias para suportá-lo, e nos há de fazer sair
bem daquilo que agora nos parece uma grande infeli­
cidade. Seja feita a sua vontade!
I I
Logo que se retirou a gente que viera prender o
sr. d'Erlau, sua digna espôsa pensou nos meios que
poderia empregar para salvá-lo. Foi à cidade apresen­
tar-se aos juízes e levou o nome de todos os habitantes
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CONTOS DE SC H M I D 107

das vizinhanças para que servissem de testemunhas de


que seu marido vivia vida tranqüila e retirada; não se
ocupava de negócios públicos nem dêles falava a nin­
guém. De nada valeram suas súplicas e rogos. Os juí­
zes permaneceram impassíveis, não permitindo nem
mesmo que ela fôsse ver o marido na prisão, e ainda
lhes ouviu dizer que o sr. d'Erlau dentro de poucos
dias subiria ao cadafalso.
Quando, três dias depois, voltou para o castelo,
encontrou-o cheio de soldados. Tinham-lhe confiscado
os bens e saqueado a casa, transformando-a em quartel.
Expulsaram-na quando pretendeu entrar, chorando,
sem ao menos ter notícias dos filhos. Todos os empre­
gados da casa tinham sido dispersados; era já bem tar­
de e ela nem sabia onde passar a noite, quando encon­
trou o seu velho servidor Ricardo, que lhe disse:
- Minha boa senhora, são grandes os riscos que
corre. No seu desespêro, declarou que tudo o que fa.
ziam era uma escandalosa injustiça, uma grande cruel­
dade. Não há tempo a perder, é preciso fugir imedia­
tamente. É a única salvação que lhe resta; seria peri­
gosíssimo tentar escondê-la. Não pode salvar seu ma­
rido e se ficar mais tempo nestas paragens, pode consi­
derar-se perdida. Seus filhos estão em minha casa. Ve­
nha vê-los. Meu irmão, que é pescador do Reno, já está
prevenido. Eu a acompanharei esta noite à casa dêle;
assim a senhora poderá atravessar o rio e pelo menos
ficará salva.
A senhora d'Erlau foi à casa de Ricardo, que mo­
rava pouco além da vila. Mas ali nôvo desgôsto a espe­
rava. Lina caíra doente no dia de sua partida, tamanho
fôra o seu desespêro e terror. Quando a mãe chegou,
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108 CONEGO SCHMID

estava com uma febre violenta, a ponto de não reconhe:


cer as pessoas que a cercavam. A senhora d'Erlau que­
ria à viva fôrça cuidar da filha; mas o médico que desta
estava tratando, disse-lhe que a pequena tinha pouros
momentos de vida, e que a presença da mãe em nada
poderia valer-lhe. Melhor seria que procurasse salvar­
-se a si própria.
Com o coração despedaçado, e o rosto banhado
em lágrimas, a carinhosa mãe, pálida e trêmula, estava
junto da cabeceira da filha e não se dispunha a partir.
O médico empenhou-se de nôvo para que ela se fôsse,
tomando-a docemente pelo braço e procurando levá-la
para fora do quarto. Mas, imediatamente, entrando a
soluçar, avançou para a filha, apertando-a entre os bra­
ços e exclamando, inteiramente tomada pela dor:
- Não, minha filha, não te posso abandonar.
Minha vida nada significa; quero morrer contigo.
O velho Ricardo e sua mulher suplicaram-lhe que
partisse sem demora e lhe prometeram velar pela me­
nina, como se fôsse filha dêles.
- É noite - disse Ricardo - Com a escuridão
a senhora pode perfeitamente fugir. De minuto a mi­
nuto aumenta o perigo. Não é só a sua vida que se
acha ameaçada; é a de minha mulher, é a minha, pois
está proibido, sob pena de morte, ter estranhos à noite
em casa, sem prevenir a polícia.
- Se é assim, minha boa e cara Lina - disse a
senhora d'Erlau, tôda chorosa - em nada mais te pos­
so ser útil. E como minha permanência aqui ainda po­
deria levar ao patíbulo êstes bons servidores, eu te dei­
xo sob a guarda de Deus. Vai para a morada da paz,
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CONTOS DE S C H M I D 109

onde a inocência deixa de sofrer, ficarás onde os cora­


ções que se amam nunca se separam.
O pequeno Carlos, que estava ao lado da mãe,
tomou, soluçando, a mão de Lina e disse-lhe:
- Fica contente, minha querida Lina. Tu vais
ser um anjo lá no céu. Lá estarás melhor do que aqui
na Terra, onde somos obrigados a viver sobressaltados.
Oh! Como eu quisera que fôsses conosco!
Então a senhora d'Erlau partiu. O fiel Ricardo
havia preparado as coisas mais necessárias para a via­
gem e saiu com elas carregando, abrindo o caminho. A
senhora d'Erlau o seguia, transportando um embrulho
embaixo do braço e trazendo o filho arrastado pela
mão.
Os três marchavam silenciosamente. A noite es­
tava horrível. Zunia uma ventania terrível, e a chuva
encharcava as vestes e os sapatos dos fugitivos.
- Esta chuva e esta ventania - disse por fim
Ricardo - são socorros da Providência, que nos prote­
ge contra os nossos perseguidores. Eis como o que nos
parece horrível tantas vêzes serve para trazer-nos o
bem.
Finalmente chegaram à casa do velho pescador.
Entraram numa salinha enegrecida, tristemente ilumi­
nada pela luz de um lampeão. O honesto pescador aco­
lheu com simplicidade a senhora d'Erlau e o filho. En­
quanto o ancião transportava o barco para o Reno, sua
mulher oferecia um pouco de sopa, pão e vinho aos hós­
pedes; mas êstes tremendo de frio e de mêdo, mal pu­
deram provar o que lhes era oferecido. Voltaram Ri­
cardo e seu irmão para a choupana e conduziram os
dois fugitivos para a margem do rio.
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110 C ô N E G O S C H M I D

A lua estava na quarto crescente, e de vez em


gi1ando aparecia por entre as nuvens, como que para
moderar o horror do furacão. A nobre senhora sentia
um frio glacial quando se viu, altas horas da noite, en­
tre as águas do rio, cuja correnteza, aumentada pela
tempestade, era ainda mais impetuosa. Mas cumpria
atravessar aquelas águas, custasse o que custasse. Ri­
cardo e seu irmão pediram-lhe que tivesse ânimo, di­
zendo que Deus haveria de ajudá-los na travessia.
Finalmente chegaram à outra margem. Ricardo
se despediu e entregou à senhora D'Erlau o que conse­
guira salvar durante o saque do castelo: um relógio de
ouro e um par de brincos com pedras preciosas. Além
disso, entregou à senhora um punhado de moedas de
ouro, tendo a delicadeza de não dizer que aquêle era
um presente seu. Beijou a mão da senhora d'Erlau, de­
satando a chorar quando se despediu de Carlos:
- Oh! minha querida e boa ama! Já estou velho,
e creio que esta é a última vez em que vejo o sr. Carlos.
Em nada mais lhe posso ser útil. Meus Deus há de
incumbir-se de protegê-los!

III
Felizmente a senhora d'Erlau atingira a margem
oposta e estava finalmente mais sossegada. Mas não
podia permanecer ali, principalmente porque o teatro
de guerra se aproximava cada vez mais. Com as indi­
cações de Ricardo, dirigiu-se para a Suíça. Os seus par­
cos recursos iam-se esgotando muito depressa. Fize­
ram-lhe ver que a vida era muito cara naquelas regiões,
aconselhando-a a ir para a Suábia. Depois de andar de
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CON TO S D C SCH M I D 111

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l12 C ,'.) N E C O S e H M T D

um lado para outro, resolveu fixar residência no Tirol,


a cujas fronteiras logo chegou.
Em caminho, uma dessas pessoas caridosas, que
gostam de passar a vida sendo úteis à humanidade, in­
dicou-lhe a casa de um tirolês, que de bom grado a rece­
beria em sua casa. Sem perda de tempo, recolheu ela
as suas coisas, tomando um guia, que se incumbiu de
levá-la através de montes e vales. Depois de longa ca­
minhada, disse-lhe.o guia:
- Ali esta Schwarzenfels! É onde mora o bom
velhinho que a receberá em sua casa!
Estavam no alto de um monte, e a aldeia se er­
guia a seus pés. A boa senhora suspirou e pôs-se a
descer por um atalho, que levava ao pé da montanha.
O velho tirolês, que já os esperava, veio recebê­
-los, acompanhado de outro homem idoso. Sua fisio­
nomia risonha e benévola era mais agradável do que a
postiça polidez da gente da cidade. Para demonstrar o
respeito que tinha pela estranha que iria receber em
sua casa, envergara a casaca cinzenta dos domingos,
com o colête vermelho e o chapéu verde, com uma pena
de galo, distintivos característicos da região. Disse êle:
- Que Deus abençoe a sua vinda, nobre senhora!
Estou satisfeitíssimo cm poder recebê-la em minhi>. ca­
sa, juntamente com seu filho.
A boa tirolesa apresentou-se vestida com muito
asseio e apesar dos cabelos brancos, conservava a pele
rosada e fresca da juventude. Estava de pé no umbral
da porta, e quando a senhora d'Erlau se aproximou,
deu dois passos e disse-lhe:
- Que Deus esteja com a senhora, nobre dama!
A refeição está quase pronta; mas será preciso que a
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CO NTOS D E SC HM I D 113

senhora se contente com pouca coisa: em nossa casa


pouco mais há que pão, leite, manteiga e batatas.
O tirolês levou a senhora d'Erlau ao quarto que
lhe estava destinado. Era um aposento simples e con­
fortável, de modo que a hóspede agradeceu a Deus por
lhe haver proporcionado aquêle abrigo.
IV
Nos dias imediatos, ela arrumou suas coisas con­
forme as circunstâncias em que se encontrava. Prepa­
rava pessoalmente a comida e o resto do tempo passav11
a bordar e a coser, trabalhos êstes que sempre lhe ren­
diam alguma coisa. Porém, o que mais a preocupava
era ver o filho sem ocupação. !le já começara a apren­
der latim, podendo a mãe continuar a instruí-lo; mas
faltavam-lhe os livros, qu� ali não era possível conse­
guir.
Certa manhã estava ela a pensar nesse nôvo pro­
blema, quando a chamou à realidade o toque do sino
da capela próxima. A boa tirolesa veio dizer-lhe que o
cura da vila situada do outro lado da montanha viera
dizer missa na aldeia.
A senhora d'Erlau aprontou-se e dirigiu-se à cape­
la, acompanhada do filho. O cura fêz um pequeno ser­
mão que muito a comoveu. Depois da missa foi ela
conversar com o sacerdote, verificando que se tratava
de um homem instruído, piedoso e amável. Prometeu
arranjar livros para o menino, dando-lhe aulas diárias.
se o menino pudesse todos os dias atravessar a montao­
nha e ir à sua casa.
Carlos aceitou o oferecimento com satisfação e
logo que se viu ocupado, sentiu-se mais alegre e feliz.
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114 C ô N E G O S C H M. T D

Apenas acabava de almoçar, punha-se a caminho da


casa do bom padre. Quando, porém, começava a cho­
ver d.ias e d.ias seguidos, o pequeno nada tinha com que
se d.istrair. A senho1a d'Erlau pensava em conseguir pa­
ra o filho uma diversão que ao mesmo tempo represen­
tasse um trabalho.
No Tirol criam-se muitos canários, dêles se
ocupando muitas pessoas, que depois os vendem a
outros países. O próprio dono de casa possuía um vivei­
ro dos referido!. pássaros. Como não fôssem caros, e
lembrando-se de que Carlos, em outros tempos, sem­
pre possuía um daqueles pássaros, pediu a sua mãe
que lhe comprasse um.
- Ao menos - d.isse êle - teremos no meio
destas montanhas alguma coisa que lembrará nossa
pátria.
A boa mãe logo lhe fêz a vontade. Carlos esco­
lheu um canário muito bonito, parecido com um que
pertencera à sua querida Llna.
Em breve o pass.irinho ficou tão manso, que vi­
nha comer nas mãos do menino e bicar a perna do dono,
enquanto êste se achava escrevendo. Às vêzes, mesmo,
voava para fora· de casa o que punha Carlos bastante
assustado, pois receava que a avezinha não mais vol­
tasse. Mas era temor infundado, porque o canário não
deixava de voltar para · a gaiola. Pouco tempo depois
se pôs o passarinho a cantar.
- É preciso ensinar-lhe uma bonita cantiga -
d.isse o velho tirolês.
Carlos pensou que o homem estivesse brincando.
Ainda não sabia que é possível ensinar os pássaros a
cantar. O tirolês tomou de uma pequena flauta de mar-
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CONTOS DE SCHMTD 115

fim e tocou uma pequena ária campestre, dizendo ao


menino que fizesse o mesmo. A criança, que tinha
grande devoção pela música, tocou o que ouvira. As­
sim procedeu dia após dia, até que o canário acabou
por imitá-lo perfeitamente. Depois resolveu ensinar­
-lhe a música composta por seu pai, aquela mesma que
fôra executada para a senhora d'Erlau momentos antes
de lhe virem prender o marido. Com essa distração
passava os longos dias de chuva, durante os quais esta­
va impedido de sair. Não obstante, a melodia servia
para recordar à senhora o marido distante, do qual não
tinha a menor notícia certa. Só os jornais da França
algumas vêzes Ih� traziam umas vagas e incompletas re­
ferências; era o cura quem lhe transmitia essas notícias,
através de Carlos, quando voltava das aulas.
Uma tarde voltou o menino para casa com um
pacote de jornais. O sr. cura, que não tinha podido
lê-los, mandou-os para que a própria senhora d'Erlau
verificasse se havia alguma boa notícia. Começou a
pobre senhora a percorrer àvidamente as primeiras co­
lunas, e com efeito, encontrou certas notícias que lhe
davam esperanças de poder em breve voltar para casa.
Na última página, porém, encontrou uma longa lista
dos fidalgos que haviam sido executados em França,
por se mostrarem partidários da realeza. E imagine-se
o estado de espírito da infeliz senhora, ao deparar, en­
tre os executados o nome do marido!
O jornal tremeu-lhe nas mãos; e depois, c.:omo se
um raio a atingisse, caiu no chão desmaiada. Foi muito
difícil fazê-la voltar a si, e mesmo depois que o conse­
guiram, mostrava-se tão doente, que o médico receava
não poder salvá-la.
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116 C ô N E G O S C A M l D

O pobre Carlos, que não saía da cabeceira, ema­


grecia a olhos vistos. E o velho tirolês sacudia a cabe­
ça, temendo que a senhora e mesmo talvez a criança
não conseguissem ver as primeiras manifestações da
primavera próxima.
V
Embora a senhora d'Erlau tivesse deixado a pá­
tria sem maiores contrariedades, nem por isso descan­
sou o fiel Ricardo. É que o preocupava a sorte de seu
amo, e era preciso pensar no que seria possível fazer
para salvá-lo.
Logo no dia seguinte dirigiu-se à cidade, onde se
encontrava seu filho Roberto, que fôra obrigado a ser­
vir no exército. O bravo e esperto rapaz estava quase à
porta da prisão do senhor d'Erlau, de modo que Ricar­
do teve a idéia de, por intermédio do filho, tentar a
salvação do prisioneiro. Vários projetos foram discuti­
dos entre ambos, mas infelizmente nenhum poderia ser
pôsto em prática. Em todo o caso, ficou estabelecido
que Roberto se aproveitaria da primeira oportunidade
que surgisse, para libertar o senhor d'Erlau. Assim de­
corriam os dias, e, embora fôsse grande a ansiedade, a
ocasião oportuna não aparecia nunca.
º
Por fim, foi o senhor d Erlau condenado à mor­
te. A sentença seria executada no dia seguinte, pela
manhã. O infeliz prisioneiro, que antes não pudera
apresentar a sua defesa, estava no esct:ro da cela, pois
nem mesmo uma luz lhe fôra dada. :E:le pensava na mu­
lher e nos filhos e era só por êles que sofria, não tendo
recebido a menor notícia da família, desde que fôra
prêso. Apesar de tudo, porém, a sua resignação reli­
giosa não o abandonava, e nem mesmo se desesperou
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CO NTOS DE SC H M I D 117

quando lhe vieram ler a sua sentença de morte. Nessa


ocasião voltou os olhos para o céu e disse, resignado:
- Seja feita a vossa vontade, meu Deus, e não a
minha! ...
Desde êsse momento os seus pensamentos se vol­
taram para o Senhor.
- Onde irei buscar consolação? - dizia êle -
Quem me há de socorrer nesta última noite, senão Vós,
meu Pai Celeste? Tudo quanto acontece é por vossa
vontade; que ela seja feita, então. Fazei de mim e dos
meus, Senhor, o que vos aprouver.
Estava o senhor d'Erlau absorto nas suas medita­
ções, quando de súbito lhe chegou aos ouvidos um
grande barulho, que se fazia lá fora. E a seguir a por­
ta da prisão se abriu com estrondo, entrando por ela a
dentro grandes rolos de fumaça, através da qual se no­
tavam os clarões de um incêndio. Depois surgiu um
jovem militar, que disse ràpidamente ao prisioneiro:
- Pelo amor de Deus, salve-se!
Era Roberto, o filho de Ricardo. Por causa da
imprudência de alguns soldados, estava em chamas a
ala da prisão em que se encontravam os prisioneiros.
Os soldados, para se porem mais à vontade, haviam
tirado as fardas, e procuravam apagar o incêndio. As­
sim foi que o jovem Roberto se aproveitou do momen­
to de confusão, apanhou a roupa e as armas de um com­
panheiro e correu à cela do sr. d'Erlau. �ste logo ves­
tiu a farda, colocando à cabeça um quepe com penacho;
enquanto isso Roberto lhe apertava o cinturão.
A grande barba do senhor d'Erlau emprestava-lhe
um ar muito imponente, de modo que avançou por en-
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118 C O N E G O S C H M I D

tre as cinzas e os soldados, ordenando que lhe abrissem


caminho, no que foi prontamente atendido. De tal
modo ganhou a rua, onde Roberto lhe disse:
- Vá imediatamente ter com meu pai, que o es­
pera em casa de meu tio, velho pescador do Reno.
Assim fêz o fugitivo, e com tôda a arrogância, co­
rno se realmente fôsse o ferrabraz que parecia, ia com
a maior arrogância dêste mundo, gritando a quantos en­
contrava pela frente:
- Vamos! ... Afastem-se! ... Deixem-me pas­
sar! ...
Ninguém teve, pois, a idéia de fazê-lo parar, e em
pouco tempo chegava à casa do •1elho pescador, que
imediatamente lhe abriu a porta. Mas a princípio fi­
cou com mêdo, julgando que fôsse algum soldado com
ordem de prendê-los, a êle e ao irmão. Quando verifi­
cou que era o senhor d'Erlau, achou tudo muito diver­
tido, e deu graças a Deus, que proporcionara a seu
hóspede a oportunidade de evadir-se.
Ricardo estava na casa, de modo que veio atirar­
-se aos braços do senhor, quase chorando de alegria.
Contou-lhe então o que fizera para que a senhora
d'Erlau fugisse com o filho. Quanto à menina, essa es­
tivera mesmo muito doente, mas já se restabelecera. De
fato, mal o explicava, veio Lina atirar-se aos braços do
pai, quase sem poder falar, tamanha era a sua felicida­
de naquele instante.
Depois dêsses primeiros momentos dedicados a
tão doces emoções, o senhor d'Erlau apressou a par­
tida; pretendia fugir aquela mesma noite, abandonando
um país que não lhe oferecia a menor segurança, que
se tornara um covil de salteadores. Pediu para atra-
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eONTOS DE SeHM I D 119

vessar o rio no mesmo barco em qut: haviam tugido sua


espôsa e o filho. Logo que escureceu, partiu, acompa­
nhado da filha e dos seus protetores.
Na frente ia o velho pescador, depois o senhor
d'Erlau e a filha, e finalmente Ricardo. Chegaram à
margem, onde se encontrava amarrado o barco. De re­
pente ouviram lá atrás alguns tiros e os gritos de
"Pega"! "Pega"!
O incêndio fôra fàcilmente extinto, de modo que
o desaparecimento do senhor d'Erlau depressa fôra
notado. Os soldados, como era natural, deram pela
folta da farda e das armas de seu companheiro, e sai­
ram no encalço do prisioneiro.
Os gritos se ouviam cada vez mais próximos; os
fugitivos estavam gelados de terror. Mas isso não os
impediu de saltar para o barco e fugir, empregando nos
remos tôda a fôrça, que a difícil situação lhes <lava. O
velho pescador, sem tempo de embarcar, escondeu-se
por detrás das árvores, para que os soldados não sou­
bessem que havia favorecido aquela fuga.
Estavam a uns cinco ou seis metros da margem,
quando os seus perseguidores ali chegaram, disparando
tiros contra a embarcação que se afastava. Na cruel
aflição pelo que podia acontecer, o senhor d'Erlau man­
dou que Lina se deitasse, e enquanto isso, êle e Ricar­
do remavam com dobrada energia. Uma bala atraves­
sou o chapéu do senhor d'Erlau, outra veio achatar-se
contra um dos remos de Ricardo. Além do mais, o
bote ia tão pesado, que quase afundava. Mas, feliz­
mente, chegaram à outra margem.
Estavam salvos. Pularam fora do barco e caíram
os três de joelhos, de mãos postas, agradecendo a Deus
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120 C O N E G O S r:' H M T D

por tê-los salvos. Depois se sentaram num velho tronco


de árvore, pois precisavam descansar um pouco do es­
fôrço despendido na travessia. Logo que se sentiram
com fôrças, puseram-se em marcha, em direção das
montanhas da Suábia, de cujos inúmeros bosques de
pinheiros se tirou o nome de "Floresta Negra".
VI
O que mais desejava o senhor d'Erlau era encon­
trar a mulher e o filho. Ricardo conhecia na Floresta
Negra um bom camponês, para cuja casa se dirigiram
os viajantes. Pretendiam colhêr informações e descan­
sar alguns dias. Mas o senhor d'Erlau estava tão im­
paciente, que insistiu em partir no mesmo dia.
- Não ficarei tranqüilo - disse êle ao compa­
nheiro - enquanto não encontrar minha mulher e Car­
los. Dizes, meu bom Ricardo, que êles, com tôda a
certeza, foram para a Suíça. Como, porém, haverei de
descobri-los? Lina não pode fazer tão longa caminhada
a pé, e por outro lado, não tenho recursos para alugar
uma carruagem.
Foi então que Ricardo sacou da algibeira uma bôl­
sa recheada de ouro, despejando o conteúdo sôbre a
mesa.
- O senhor não está tão pobre quanto imagina
- respondeu-lhe Ricardo - Isto lhe pertence.
O senhor d'Erlau estava por demais surpreendido
para poder responder, e olhava, ora para o seu fiel ser­
vidor, ora para a pequena fortuna que se achava sôbre a
mesa.
- Quando meu amo era rico - explicou Ricar­
do - auxiliou muita gente, deu muito dinheiro em-
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CONTO� nE SCHMTD 121

prestado. Pois o ouro que tão generosamente empres­


tou, eu fui pouco a pouco recolhendo de nôvo, en­
quanto o senhor se achava na prisão. E, embora en­
contrasse muitos ingratos, também deparei com gente
honesta e agradecida, que não só pagou o que devia,
mas ainda acrescentou alguma coisa, como prova de
reconhecimento e de amizade para com meu amo.
O senhor d'Erlau contou o dinheiro; era uma boa
soma. Depois levantou os olhos para o céu, em sinal
de gratidão.
- Teremos que economizar - disse depois. -
Mas sempre dá perfeitamente para irmos à Suíça.
Ricardo, então, ocupou-se dos preparativos, e em­
pregando uma parte do dinheiro, comprou um pequeno
carro puxado por um cavalo. Coberto o veículo com
uma lona, para que Lina tivesse onde abrigar-se, pouco
depois ganhavam a estrada. Ricardo ia quase sempre a
pé, ao lado do animal; a menina, que não suportaria a
caminhada, e o senhor d'Erlau, cujas fôrças estavam
abaladas com a longa permanência na prisão, iam aco­
modados no interior do carro.
Chegaram, então, à Suíça. Mas, como ali não con­
seguissem a menor notícia da senhora d'Erlau, volta­
ram para a Suábia, onde foram obrigados a permane­
cer alguns dias, pois a viagem contribuíra para cansar
ainda mais o senhor d'Erlau, que acabou por cair de
cama.
Alugaram um quarto e uma cozinha. Ricardo
comprou os utensílios necessários e passou a cuidar do
doente e da casa. Lina, embora muito jovem ajudava-o
no que podia. Longos dias estêve o senhor d'Erlau im­
possibilitado de sair da cama. Depois, aos poucos, foi
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122 CO N E G O S C H M l D

melhorando, até que já conseguia manter-se fora do


leito boa parte do dia. Lina procurava meios de ale­
grar o pai, e chegava ao ponto de inventar pratos e qui­
tutes, para lhe dar alguma satisfação. Em outras oca­
siões surpreendia-o com uma nova modinha, ou com
uma boa notícia. Por seu lado, o pai não deixava de
manifestar-lhe contentamento.
Um dia, como fôsse a data de seu aniversário, foi
Lina à igreja próxima; queria rezar pelo restabeleci­
mento do pai e pela conservação da mãe e de Carlos.
Chegando em casa, viu na janela um grande ramalhete
feito com flôres de que ela mais gostava. Perto das
flôres encontrava-se uma pequena gaiola, dentro da
qual saltitava um canário amarelo, de topete, muito
parecido com o que tivera na Alsácia. Ficou muito con­
tente com tais presentes, que lhe recordavam os felizes
dias do passado. E as lágrimas lhe brotaram dos olhos,
quando foi abraçar e agradacer ao pai, pela delicada
lembrança.
- É tudo quanto lhe posso dar, minha filha -
disse-lhe êste. - Em outros tempos, a data de seu ani­
versário era dia de festa para tôda a vila. Hoje deve­
mos comemorá-lo segundo a nossa situação e as nossas
posses.
Ricardo havia preparado um almôço melhor que
o do costume, e quando foi sentar-se à mesa, ao lado
de seu amo, abriu uma garrafa de vinho, que trouxera
da Alsácia. Era um momento de alegria; mas o· senhor
d'Erlau não podia esquecer-se dos ausentes:
- Onde estarão a estas horas sua mãe e seu ir­
mão? - perguntou êle, com tristeza. Sabe Deus o
que devem ter sofrido! Uma mulher e um menino,
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CONTOS DE SC HMID 123

sem proteção e sem recursos, a quantos perigos estarão


expostos? Quem sabe se ainda poderemos comemorar
todos juntos o seu aniversário, minha querida filha?
Eu receio . . . eu receio...
Lina, no entanto, interrompeu o pai:
- Console-se, meu pai; Deus, que nos protegeu
até agora, não nos há de abandonar daqui por diante.
Não foi à-toa que nos salvou de tantos perigos. Com
certeza vela por êles, como tem velado dor nós.
- É verdade - acrescentou Ricardo. - É ver­
dade.
Não pôde prosseguir, pois se achava muito emo­
cionado. Ficaram algu ns instantes em silêncio, e eis
que, quando menos se esperava, o canarinho da gaiola
se pôs a cantar. A cantar aquela melodia, que come­
çava assim:
Como és sábia, ó Providência,
Eu tenho plena confiança.
Em teus divinos decretos ...
Lina prestou bem atenção e depois disse, cheia
de admiração, juntando as mãos:
- Céus, que ouço? É a melodia com que Carlos
me acompanhava ao piano! É a modinha que cantáva­
mos, meu pai, quando o vieram prender!
O senhor d'Erlau e Ricardo não queriam acredi­
tar no que ouviam; tinham os olhos presos no canário,
que, no entanto repetiu ainda três vêzes a mesma me­
lodia.
- Eis o que é para admirar! - exclamou, por
fim, o senhor d'Erlau - Ó meu Deus, vós me quereis
ensinar a achar minha mulher e meu filho, pois só êles
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12' CONEGO SCHMID

poderiam ter ensinado êste passarinho! Dize-me, Ri­


cardo, como conseguiste o canário?
Ricardo respondeu que o comprara de um peque­
no úrolês.
- Corre já! - exclamou o senhor d'Erlau - Vé
se encontra o garôto!
Ricardo saiu imediatamente. Mas ficou quase o
dia todo fora, enquanto o senhor d'Erlau e Lina fica­
ram em casa, ardendo de impaciência, fazendo tôda a
espécie de suposições a respeito das circunstâncias que
teriam levado a senhora d'Erlau ao ponto de vender o
passarinho. Chegaram mesmo a pensar que tivesse
morrido, o mesmo se dando com Carlos, deixando na
terra, como única lembrança, o canarinho cantador.
Finalmente chegou Ricardo, acompanhado do
pequeno tirolês. Interrogaram o menino, mas êste na­
da pôde dizer a respeito do canário, a não ser que o
comprara no Tirol, de um jovem camponês. Quanto à
senhora d'Erlau, não a conhecia; apenas sabia da exis­
tência de uma senhora estrangeira, que chegara ao seu
país, acompanhada de um menino. Os traços que lhe
descreviam eram mais ou menos o dessa desconhecida
e de seu filho. Acrescentou ainda que vira a senhora
na igreja, por diversas vêzes, e que o pequeno também
lá ia à tarde, receber lições do senhor cura.
A descrição feita pelo pequeno camponês, quanto
aos modos e às feições dos desconhecidos estrangeiros
foi tão bem feita, que o senhor d'Erlau não hesitou,
em afimar:
- São êles mesmos! São êles mesmos, não se
pode duvidar!
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CO N T O S D E S C H 1\1 I D 125

E depois de agradecerem a Deus pela feliz ocor­


rência, pediram ao pequeno que lhe dissesse onde fica­
va o lugar a que se referira, e qual o caminho que se
devia tomar para ali chegar. Deram uma moeda de
prata ao pequeno tirolês e começaram os preparativos
para a viagem.
No dia seguinte partiram para o Tirol, levando
também o canário, cuja gaiola foi suspensa num dos
arcos que servia para sustentar a coberta do carro.
VII
O senhor d'Erlau e seus companheiros chegaram,
sem maiores contratempos à cidade, em cujas proximi­
dades se encontrava a aldeia de Schwarzenfelds. Na es­
trada encontrou-se com um jovem pastor que confir­
mou inteiramente tudo quanto lhe dissera o pequeno
tirolês:
- É verdade - disse o pastor - não há dúvida
que são verdadeiras as informações.
E o cura lhe informou que a boa senhora andava
sempre triste e de luto. Acreditava que seu marido ha­
via morrido. Lera a relação dos nobres executados na
França, de modo que sofrera um abalo muito grave,
caindo de cama. Parecia difícil conseguir salvá-la. mas
em todo o caso, parecia que então o pior já havia pas­
sado. Aos poucos ia recobrando a saúde, embora des­
de o choque recebido nunca mais tivesse um momento
de alegria.
O senhor d'Erlau muito se espantou ao saber que
fôra publicada a falsa notícia de sua morte; mas, depois
de pensar melhor, pensou no que podia ser a causa do
engano do jornal: talvez se esquecessem de riscar seu
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126 CONEGO SCHMID

nome da relação há tanto tempo pronta; ou então,


quem sabe, teriam deixado o seu nome propositalmente
incluído na lista, para se livrarem das responsabilida­
des de o terem deixado fugir.
O senhor d'Erlau, mostrou-se, como era natural,
muito aborrecido com os sofrimentos sofridos pela es­
pôsa ao ter conhecimento da falsa notícia. Pretendia
ir imediatamente ao encontro da infeliz senhora. Mas
o cura entendeu que um choque daquela natureza po­
deria ser-lhe prejudicial, devido ao estado de saúde da
senhora d'Erlau. Resolveu acompanhar o seu visitante
até a aldeia, para mostrar a casa, aconselhando que se
devia tomar muito cuidado ao preparar o espírito da
enfêrma.
Quando chegaram ao alto da montanha, avista­
ram ao longe, no vale, entre os ramos do pinheiral, a
aldeia em que viviam a senhora d'Erlau e o filho. Indi­
cou precisamente a casa, para onde se dirigiu o fiel
Ricardo.
A senhora d'Erlau achava-se sentada diante da
lareira. A chama vacilante iluminava o quarto, pois já
era quase noite. Entretinha-se com um bordado, en­
quanto que o pequeno Carlos lia em voz alta. Ao ver
entrar o antigo servidor, deu um grito de alegria e cor­
reu ao seu encontro. Ricardo foi recebido como se fôs­
se um verdadeiro pai.
A mãe do menino pediu a Ricardo que se sentas­
-se junto dela. Estava tomada de emoção, e mal podia
falar. Só depois de alguns minutos é que conseguiu
dizer-lhe:
- Meu caro Ricardo, bem triste são as circuns­
tâncias em que nos tornamos a encontrar. Decerto já
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CONTOS DE SCHMID 127

sabes da morte do melhor dos maridos. . . E Lina? ...


- perguntou a pobre mãe, com ansiedade - Que é
feito dela?. . . Morreu também? ...
- Console-se, minha senhora. A pequena está
viva, e mais do que isso, goza de excelente saúde. Foi
sàmente para decidi-la a partir que o médico resolveu
dizer que estava desenganada.
- Mas, então - tornou a senhora - por que a
deixaste tão longe, cercada de tantos inimigos, corren­
do os maiores riscos? Por que não a trouxeste junto?
Como tiveste coragem de vir só?
Tôdas essas perguntas foram feitas quase ao mes­
mo tempo, de modo que Ricardo teve que esperar para
responder:
- Mas, quem foi que disse que ... ia responden­
do êle, quando a porta se abriu de nôvo para dar entra­
da à pequena Lina, que veio atirar-se aos braços da mãe.
Carlos também se precipitou, de modo que ali
ficaram os três, mudos, com os olhos cheios de lágri­
mas, matando naqueles doces momentos a imensa sau­
dade de tão longa separação.
No entanto, depois dos primeiros instantes, vol­
tou a tristeza a dominar a pobre dama. Levantando os.
olhos para o céu, disse, cheia de amargura: ,
- Ah, meu bom Deus, por que não permitistes·
que meu marido fôsse salvo, para que a nossa alegria
fôsse completa? - E voltando-se para os filhos, final­
mente reunidos, disse em voz chorosa: - Meus pobre,.
filhos, que poderei fazer por vocês, eu, uma pobre
viúva doente?
Conforme fôra combinado, Ricardo não podia
dar-lhe a notícia de que seu m�riào ainda estava vivo .
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128 CONEGO SCHMID

isso para evitar um choque que poderia ser de más con­


seqüências. No entanto, notou que a senhora d'Erlau,
recuperando a filha, já estava mais calma. Por isso
passou a conversar sôbre o marido de sua antiga patroa;
e esta, pelo tom da palestra, desconfiou de alguma
coisa.
- Meus Deus - exclamou ela - meu marido
ainda viv1: e deve estar aqui por perto!. . . Venham,
venham meus filhos, corramos ao encontro dêle. O
senhor d'Erlau, que se encontrava atrás da porta e ou­
vira tudo quanto diziam, deu alguns passos e final­
mente apareceu, para grande alegria da família. A
senhora d'Erlau, que tanto chorava a sua morte, sentiu
uma sensação particular. E trêmula, sem acreditar no
que se passava, exclamou, cheia de reconhecimento:
- Ó meu Deus, quanta alegria não nos estará
reservada no céu, se mesmo na terra nos proporcionais
momentos como êste?
A feliz família passou uma noite deliciosa, com­
parecendo às comemorações do reencontro, não ape­
nas o fiel Ricardo, mas ainda o cura e o velho tirolês,
dono da casa.
No dia seguinte foi Ricardo buscar o canário que
servira de instrumento da Providência, o qual ficara em
casa do cura. Carlos contou que muito chorara a per­
da do passarinho. f:sce, em virtude dos transtornos
causados pela moléstia da senhora d'Erlau, aproveita­
ra-se de um descuido, e, encontrando a porta da gaiola
aberta, desaparecera. Naturalmente o pequeno tirolês o
prendera no alçapão e, felizmente para a farru1ia d'Er­
lau, vendeu-o ao Ricardo, no dia do aniversário de
Lina.
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CONTOS DE SCHMID 129

A senhora escutou encantada a narrativa que lhe


faziam, e não pôde deixar de acrescentar:
- Sim, meu Deus, fôstes vós que tudo fizeste.
Vós vos servistes dêste passarinho para indicar a meu
marido, onde eu me encontrava. Sem que êle.chegasse,
naturalmente eu morreria de desgôsto durante o inver­
no que se aproxima.
- Não tive boa idéia - interveio Carlos - ao
ensinar ao canário justamente aquela melodia? Olhe,
estava bem longe de pensar que, em lugar de ficar tris­
te, devia encher-me de:: alegria por ter perdido o passa­
rinho. É que Deus propositalmente fêz com que êle
fugisse, para ir contar a meu pai onde nós nos encon­
trávamos. Agora compreendo como a Providência nos
dá pequenas tristezas, para depois transformá-las em
grandes alegrias.
- Tens razão, meu caro Carlos - respondeu-
-lhe o pai - Assim é, também, que Deus nos tirou a
fortuna, para dar-nos outra maior, que é a de nos en­
contrarmos juntos sob a sua proteção.
Depois se descobriu outro aspecto interessante
do caso: é que Carlos incumbira um jovem pastor de
procurar o canário perdido. E o rapaz, tendo-o encon­
trado, em lugar de restituí-lo ao dono, como deveria,
resolveu vendê-lo. Mostrou-se muito confuso ao saber
que sua má ação fôra descoberta a lé guas de distância, e
jurou nunca mais proceder mal, convencido de que na­
da se pode fazer escondido, sem que algum dia se venha
a descobrir.
O senhor d'Erlau resolveu passar o inverno no
vale de Schwarzenfelds: ficou com a família na casa do
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130 C ô N E G O S C H M I D

velho tirolês, enquanto que Ricardo se alojou numa


cabana vizinha.
O canário voltou para a sua antiga gaiola, e todos
os dias Lina tinha o cuidado de trocar a água do passá­
ro, dando-lhe os alimentos de que mais gostava. Pode­
-se dizer que nem mesmo durante o período mais rigo­
roso do inverno lhe faltaram uma só vez as ervas fres­
cas que tanto eram de seu agrado. Parecendo compre­
ender, o canário cantava a melodia salvadora, no qüe
era acompanhado pelos membros da família, sendo tu­
do motivos para novas consolações:
- Queremos ter confiança - diziam - nesse
Deus que tão milagrosamente nos salvou; 'Êle que até
agora nos protegeu, sem dúvida que sempre velará por
n6s, por piores que sejam as dificuldades do futuro!
E o bom Ricardo comentava:
- Sempre fico com muita pena, quando vejo
êsses pobres passarinhos que andam lá fora na neve e
fazem lembrar as palavras do Senhor: "Vejam os pás­
saros do céu; êles não recolhem no celeiro, e portanto
o seu Pai Celeste os nutre. E vós não sois mais excelen­
tes do que êles?"
Passou-se o inverno. E finalmente, depois de pas­
sar por tantas privações, de sofrer tantos desgostos,
teve a família a felicidade de voltar para a França. on­
de conseguiu recuperar uma parte de seus bens.
O senhor d'Erlau e a espôsa regozijaram-se com
isso, porque, voltando a ser ricos, poderiam provar,
como o provaram fartamente, o seu inteiro reconheci­
mc:nto às pessoas que, como Ricardo, os ampararam e
socorreram nos momentos de infortúnio.
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O PIRILAMPO

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Era uma vez uma pobre mulher, chamada Maria,
que depois de um longo dia de trabalho, achava-se
sentada junto à janela de sua casa, contemplando o
pomar que se estendia diante de seus olhos. Fôra um
dia muito quente de verão, de modo que, tendo-se de­
dicado desde cedo ao trabalho, estava mais cansada que
de costume.
O sol começava a declinar no horizonte, e a pobre
criatura pensava, muito triste, em seu destino; o pe­
queno Fernando, seu filho de seis anos de idade, estava
encostado à mãe, fazendo-lhe companhia.
Depois de algum tempo, durante o qual nenhum
dos dois falou, a pobre senhora levantou-se para dar
ao filho uma xícara de leite. O menino começou a
beber e sua mãe, que também se sentara à mesa, debru­
çou a cabeça sôbre os braços cruzados e pôs-se a cho­
rar. Até então Fernando estivera apenas quieto e tris­
te; mas, ouvindo os soluços da mãe, deixou de lado o
leite, e começou a chorar também.
Qual a causa de tão grande tristeza?
É que Maria ficará viúva havia pouco tempo.
João, seu marido, morrera na primavera anterior. Era
um môço muito estimado na vila; graças à sua persis­
tência no trabalho, conseguira reunir algumas econo­
mias, que serviram como parte de pagamento na com­
pra, da choupana em que agora se encontravam Maria
t: o pequeno Fernando.
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134 C O N E G O S C H M I D

A compra, porém, não só lhe absorveu tudo


quando guardara, mas ainda o obrigou a contrair algu­
mas dívidas, que contava pagar aos poucos; ficaria en­
tão, com aquela pequena propriedade, na qual teriam
abrigo seguro a mulher, com quem se casara há pouco
tempo.
Os seus planos, no entanto, não puderam ser in­
teiramente postos em prática. É que irrompeu na vila
uma grande epidemia, que matou muita gente. João
também caiu de cama, atacado da moléstia, e por mais
que Maria se desvelasse, tudo foi inútil; poucos dias
depois falecia o marido, ficando ela e o pequeno deses­
perados e sem proteção.
A moléstia de João consumira o pouco dinheiro
de que o casal dispunha. E por cúmulo da infelicidade,
Maria viu-se ameaçada de perder a choupana e o pe­
queno pomar que a cercava.
João trabalhara durante muito tempo para um
rico proprietário, o qual, em sinal de recompensa pelo
esfôrço do empregado, emprestara-lhe oitocentos fran­
cos, sem o que não teria êle o necessário para adquirir a
choupana. João se comprometera a pagar cem francos
por ano ao seu protetor.
Os pagamentos tinham sido todos feitos com a
maior pontualidade, e faltava apenas a última presta­
ção, quando a morte veio surpreender o pobre homem,
deixando sua mulher em sérias dificuldades. Dificulda­
des, não porque lhe fôsse impossível durante todo o
ano que ainda teria pela frente, reunir a soma necessá­
ria para pagar o restante da dívida; mas porque, coIP
a epidemia, falecera igualmente o proprietário que
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CONTOS DE SCHMID 135

emprestara o dinheiro ao marido e seus herdeiros exi­


giam o pagamento da importância total de oitocentos
francos.
Foi inútil que Maria jurasse e garantisse que já
estava quase tudo pago, que só faltavam cem francos.
Não podia apresentar recibo ou qualquer outra prova,
de modo que, ou pagava os oitocentos francos ou a sua
pequena propriedade seria vendida para saldar a dívida
do espôso. Foi justamente o que aconteceu; e, recor­
rendo à justiça, decidiu o juiz que tinham inteira razão.
E portanto, no dia seguinte, a casa seria penhorada e
ela, que já perdera o marido, ficaria também sem ao
menos ter onde morar.
Por isso é que a pobre Maria, olhando o céu da­
quela tarde, se mostrava tão triste. Por isso desatou a
chorar quando viu o pequeno Fernando tomando leite.
É que seria aquela a última noite que passaria na sua
cabana. No dia seguinte a sua propriedape seria ven­
dida em leilão para o pagamento da dívida, e ela, deses­
perada não sabia o que fazer.
Fernando, que via a mãe chorar, mesmo sem en­
tender muito bem de que se tratava, pôs-se a chorar
também. Mas, de repente, chegou-se a ela e lhe disse:
- Mamãe, não fique triste. Não chore mais.
Lembre-se do que papai dizia, quando estava doente,
para morrer: "Deus é o protetor das viúvas e pai dos
órfãos. Em tôdas as dificuldades, rezem a :Êle: :Êle há
de velar por vocês, não haverá de os abandonar". Não
era assim que êle falava?
- É, sim, meu filho - disse Maria, a quem
semelhante lembrança não deixava de consolar um
pouco.
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136 CONEGO SCHMID

- Então, por que é que mamãe chora tanto,


Reze a Deus, que Êle nos há de socorrer ... No tempo
em que eu andava pelo mato com papai, que ia cortar
lenha, não chorava muito tempo, quando me aconte­
cia alguma coisa. Se eu tinha fome, ou se algum espi­
nho me entrava no pé, ia logo para perto dêle. E en­
tão êle deixava o machado e me dava um pedaço de
pão ou me arrancava o espinho que doía. Nosso Senhor
é como meu pai, tem o coração bor,1. Não é mau como
o homem que nos repeliu, quando pedimos para ficar
aqui . . . Mamãe, está vendo a lua e as estrêlas? É
tudo d'Êle, papai me dizia isto. Não chore, mamãe;
reze a Êle. Eu também vou rezar, que assim Êle nos­
atende.
- Tens razão, meu filho - disse ela, muito tris­
te, mas abraçando o filho, que soubera confortá-la com
palavras que não seriam de esperar de uma criança as­
sim tão pequena.
Maria ajoelhou-se, juntou as· mãos e começou a
rezar em voz que o filho pudesse ouvir. E êste, também
de joelhos e de mãos postas, repetia as palavras da
mamãe, orando com grande fervor:
- Ó Padre Nosso, ouvi a prece de uma pobre
mãe aflita, de um órfão desamparado! Não temos so­
corro algum neste mundo, mas Vós sois todo poderoso
e por isso vos invocamos na nossa aflição. Livrai-nos,
Senhor, dos males que nos afligem e não permitais que
a injustiça nos arranque desta choupana, que não tería­
mos fôrças para resistir. Não permitais, Senhor, que o
nosso coração se despedace ainda mais, como decerto
acontecerá, quando chegarmos ao alto da colina e pela
última vez enxergarmos êste teto que nos abriga hoje.
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r:QNTOS DE SCHMID 37

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138 CONEGO SCHMID

Ensinai-nos, Senhor, a aproveitar os nossos sofrimen­


tos. Fazei com que encontremos um asilo, por menor
que seja; seremos felizes se o vosso espírito estiver
conosco.
Ao terminar aquelas palavras, Maria sentia-se tão
comovida que não pôde dizer mais nada. Voltou os
olhos para os céus e ali ficou numa expressão contem­
plativa, que ao mesmo tempo era de dor e de espernn•
ça. Fernando, que se pusera de pé, olhava pela janela.
De repente gritou:
- Olhe, mamãe, olhe! É uma pequenina estrêla
que se move, olhe!. . . Agora subiu. ! . Desce mais
para perto de nós!. . . A estrelinha vem entrando pela
janela, mamãe!. . . Olhe como é bo!lita! ...
- É um pirilampo ou vagalume, meu filho -
disse a mãe. De dia parecia um bichinho comum; mas
à noite brilha muito, como você está vendo.
- Posso pegar, mamãe? Êle queima a gente
com aquela luzinha?
- Não, não queima, meu filho - disse ela dian•
te de tamanha ingenuidade, e sorrindo, apesar da sua
imensa aflição. - Não queima. Você pode pegar à
vontade; é uma luzinha fria, pode pegar sem receio.
Fernando não esperou mais. Correu atrás do
vagalume que penetrara no quarto e caíra no chão. Mas
não conseguia apanhá-lo, pois o bichinho meteu-se por
debaixo de um grande armário e aquêles bracinhos
curtos não conseguiam atingir o ponto em que se en­
contrava o vagalume.
- Eu o estou vendo daqui, mamãe - disse o
garôto - Está encostado à parede. Mas não consigo
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CONTOS DE SCHMID 139

alcançá-lo, porque meu braço é muito curto. Como


brilha!
- Espere um pouco, meu filho - respondeu a
mãe. - Logo êle há de sair daí e então você poderá
pegá-lo.
Fernando esperou um pouco. Mas estava impa­
ciente por deitar a mão ao vagalume, de modo que su­
plicou à mãe:
- Ajude-me, mamãezinha, ajude-me! Faça-o
sair dali . . . Ou então afaste um pouco o armário,
que eu então o alcanço ...
Maria levantou-se para satisfazer o filho, e, com
um pouco de esfôrço conseguiu arredar o armário. O
menino pegou o inseto, meio receoso, a princípio, mas
assim mesmo começou a examiná-lo. O mais curioso de
tudo foi que, ao afastar o armário da parede, alguma
coisa caiu lá atrás, produzindo um pequeno ruído.
Maria abaixou-se para ver de que se tratava e acabou
por apanhar uma espécie de caderneta, com anotações e
documentos. Que seria?
Pôs-se logo a examinar o achado junto à chama da
lamparina, pois já estava bem escuro, e não pôde evi­
tar um grito de surprêsa e satisfação. Era o caderno
de notas sôbre os negócios do marido. Ali se achavam
anotadas as prestações por êle pagas ao rico proprietá­
rio que lhe emprestara os oitocentos francos. E havia
entre as fôlhas um documento assinado pelo referido
proprietário; dizia o papel:
"Declaro que no dia de São Martinho ajustei con­
tas com o João Bium, o qual agora me deve somente
cem francos".
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140 C ô N E G O S C H M T D

Era a salvação tão ansiosamente esperada pela in­


feliz viúva; era a prova que lhe faltava para mostrar
aos herdeiros que seu marido devia apenas os cem fran­
cos, conforme ela lhes dissera. Era Deus, enfim, que
mandara aquêle vagalume, para indicar onde haviam
ficado as contas do marido, os documentos de que ela
precisava para salvar o abrigo do filho, que, sem isso,
logo no dia seguinte não mais teria onde morar. Por
isso ela ergueu os olhos para o alto, em sinal de grati­
dão ao Criador. Depois abraçou e beijou o filho, mal
se contendo de alegria pc::lo verdadeiro milagre que
acabara de acontecer.
E o pequeno Fernando, a quem ela explicam a
significação do achado, respondeu-lhe, muito orgu­
lhoso:
Fui eu, hem, mamãe? Fui eu que descobri.
Se eu não pedis!'>e para afastar o armário, a senhora não
teria descoberto o papel ...
- Sim, meu querido filho, foi- você. Mas foi
principalmente Deus, que te mandou o bonito bichinho,
para que tivéssemos a oportunidade de afastar o armá­
rio e descobrir a caderneta. A Êle é que devemos agra­
decer, a êsse Deus de bondade, que tão prontamente
atendeu as nossas preces. Foi Deus quem nos mandou
o pirilampo, meu filho.
Era tamanha a satisfação de Maria, que ela mal
pôde dormir aquela noite. Queria que o dia rompesse
depressa, e as horas custavam a passar. Finalmente
nasceu o sol. E então Maria saiu apressadamente, diri-
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CvNTOS DE SCH Ml D 141

giando-se à moradia do juiz,


que talvez nem tivesse
levantado ainda, tão cedo
era.
Mas estava. E logo, re­
conhecendo a letra do fale­
cido proprietário, bem co­
mo o valor do documento, 1

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]42 C ô N E G O S C H M I D

mandou imediatamente chamar o principal herdeiro, o


que mais questão fizera de receber a importância total
de oitocentos francos, pouco se importando que, com
semelhante exigência, uma pobre viúva e um órfão
ainda tão criança, fôssem para rua, e ficassem sem
abrigo.
O herdeiro veio imediatamente, e o juiz lhe expôs
o sucedido, mostrando-lhe o documento assinado pelo
proprietário que emprestara o dinheiro e que reconhe­
cia ter recebido setecentos francos, uma vez que decla­
rava só ter direito a mais cem. O herdeiro estava con­
fuso, sem saber o que falar. Por fim, arrependido do
que fizera, exclamou:
- Há aqui, sem dúvida alguma, o dedo da Pro­
vidência. Perdoe-me, senhora Maria, pelo modo por
que a tratei, pelas tristezas e aborrecimentos que lhe
causei. E para compensá-la de tudo, faço-lhe presente
dos restantes cem francos. Vejo que Deus a quis sal­
var; de minha parte, quero fazer o que estiver ao meu
alcance. Não me deve mais nada, senhora Maria. Po­
de ficar sossegada. E se para o futuro vier a precisar de
alguma coisa, procure-me, que terei prazer em ajudá-la.
Estou vendo que tem confiança em Deus e essa con­
fiança é mais preciosa do que todo o ouro do mundo.
Se minha mulher ficasse viúva - prosseguiu o
herdeiro - se não tivesse quem a amparasse, como eu
me sentiria feliz se soubesse desde já que Deus a sal­
varia, como salvou a senhora, dona Maria!
- Espere em Deus - rematou o juiz - siga o
exemplo desta piedosa viúva; antes de tudo procure o
reino de Deus e a sua justiça, que tudo o mais lhe será
concedido como recompensa.
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