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DEI FRUCTUS

AMORIS

O FRUTO DO
AMOR DIVINO

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Sobre a autora

Amandha de Souza Campos é atriz, dramaturga e adaptadora de

textos teatrais. Também é bacharela em Artes Cênicas desde 2007,

com Especialização em História, Cultura e Sociedade pelo Centro

Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto - SP. Possui um estilo

de escrever e adaptar teatro muito peculiar, pois a maioria de seus

trabalhos são peças de cunho histórico, dado o seu profundo

conhecimento de História Antiga e Medieval. Já atuou em várias

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peças teatrais como atriz e Dei Fructus Amoris é seu segundo
trabalho publicado. Atualmente está desenvolvendo outros trabalhos
dramatúrgicos para o teatro e para a televisão.

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APRESENTAÇÃO

Dei Fructus Amoris (O Fruto do Amor Divino) é uma peça teatral

extremamente intrigante e repleta de magia e misticismo que

conta a história da saga do mais célebre e terrível feiticeiro que já

existiu no mundo: São Cipriano de Antioquia. A autora é uma

profunda conhecedora de História antiga e medieval e

especialmente em ocultismo, pois o seu talento para realizar esta

obra provém de anos e anos de estudos sobre o lendário

personagem que sempre causou medo e receio nas pessoas, tanto

nos tempos passados como nos tempos atuais. A peça nos traz uma

linda lição de amor e perdão divinos.

Amandha de Souza Campos é a segunda dramaturga da História

do Teatro mundial a ter feito uma obra que mais se aproximou da

realidade mística de São Cipriano de Antioquia e de todos os

outros personagens envolvidos na trama. O primeiro a relatar em

peça teatral a biografia de São Cipriano foi o dramaturgo espanhol

Calderón de La Barca no século XVI, com o seu El Magico

Prodigioso, porém ele não conseguiu mostrar em sua plenitude a

magia presente na história, como fez Amandha de Souza Campos

em sua obra Dei Fructus Amoris. Sem dúvida alguma esta peça

levará o público a presenciar uma emocionante história de amor e

uma intriga muito bem articulada entre os personagens com

temáticas que certamente levarão a vários questionamentos

religiosos e filosóficos na sociedade atual.

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DEI
FRUCTUS
AMORIS

O FRUTO DO
AMOR DIVINO

A saga da história do pior e mais temido feiticeiro


de todos os tempos, São Cipriano de Antioquia.

Drama Suspense em dois atos.

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Personagens:
1. Cipriano de Antioquia: feiticeiro
2. Aglaide: jovem advogado enamorado de Justina
3. Justina: noviça
4. Cibele: irmã mais jovem de Justina
5. Cledônia: mãe de Justina e de Cibele
6. Edésio: marido de Cledônia
7. Geta: escrava de Cledônia
8. Eusébio: bispo de Antioquia
9. Bruxa de Évora: feiticeira, ex-mestra de Cipriano
10. Irmã Auxiliadora: freira do convento de Justina
11. Ergamastro: chefe dos bispos de Antioquia
12. Diocleciano: Imperador romano
13. Justino: Procônsul romano
14. Atanásio: feiticeiro de Diocleciano
15. Eutolmo: juiz da Fenícia
16. Conselheiro do Imperador
17. Teotiso: cristão
18. Rufina: esposa de Teotiso
19. Lúcifer: príncipe dos demônios
20. Demônios: assistentes de Lúcifer
21. Miguel: chefe dos arcanjos
22. A Virgem Maria: mãe de Deus
23. Maria
24. Giberta
25. Adastreia: jovens bruxas aprisionadas no inferno
26. Dois sacristãos
27. Uma mulher
28. Um lacaio
29. Cristãos convertidos, soldados romanos, gentios e
carrascos.

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CENÁRIO

A peça se passa na antiga cidade de Antioquia, no


início do século IV d.C., sob o reinado do Imperador
Diocleciano. O espaço se divide em nove: casa de Cledônia,
gruta de Cipriano, gruta da bruxa de Évora, convento de
Justina, praça pública de Antioquia, praça pública de
Nicomédia, palácio romano de Nicomédia, igreja de
Nicomédia e calabouço do palácio de Nicomédia.
Em todo o espaço cênico, há um alçapão cenográfico
que serve para a entrada e saída de Cipriano, Lúcifer e os
Demônios.

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Primeiro

Ato

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Cena 1

Casa de Cledônia e Edésio. Justina está se preparando para receber


a visita de Aglaide, que a quer por himeneu.

Cledônia, Justina, Geta e Aglaide

Cledônia: Geta, vem cá por um instante.

(Geta, que estava arrumando Justina, se aproxima)

Cledônia: Serei breve. Hoje virá em nossa casa o jovem advogado


Aglaide e quero que deixes Justina bem apresentável, para que
impressione o mancebo que pedirá a mão de minha filha em
himeneu.

Geta: Mas, senhora, não achas que Justina é por demais jovem para
se casar?

Cledônia: Jovem o suficiente para gerar filhos saudáveis. Já se faz


hora dela se casar, pois eu mesma me casei com o seu pai quando
tinha treze anos. Esse mancebo me parece ser um homem muito
respeitável e honroso e tem bons antecedentes, sem falar que se
mostra muito apaixonado por minha filha. Estes já são motivos
suficientes para concretizar este himeneu.

Justina: Mas minha mãe, bem sabes que minha intenção é entrar
para um convento e me dedicar aos serviços de Deus.

Cledônia: Bem sabes também, minha filha, que a admiro por tua
forte religiosidade, tanto que foste a responsável pela conversão de
nossa família ao Cristianismo, mas acho muito exagerada tua
atitude de se trancafiar em um convento, pois és uma manceba
muito bela e teu futuro marido também o é. E, juntos, poderão ser
muito felizes, sem que isso venha te impedir de orar a Deus.

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(Batem à porta)

Geta: Deve ser ele.

Cledônia: (A Geta) Vá atender.

(Geta sai e volta com Aglaide)

Aglaide: É com muita honra, senhora Cledônia, que compareço à


tua casa para conhecer minha futura esposa.

Cledônia: Ora, eu é que estou lisonjeada. Fique à vontade. Geta,


sirva algo para o cavalheiro tomar.

Aglaide: Desculpe-me, mas dispenso cerimônias e quero logo


acertar o meu himeneu com tua filha. Nunca vi, em toda a minha
vida, uma manceba tão linda e tão formosa como ela.

Cledônia: Acho melhor deixá-los a sós. Venha, Geta, acompanhe-


me, por favor.

Justina: Não é preciso, minha mãe. É bom que fiques, para saber
minha verdadeira opinião sobre este himeneu.

Cledônia: Minha filha, sê prudente em tuas palavras, por favor.

Justina: Quero que saiba, jovem Aglaide, que minha intenção não é
a de me casar contigo, pois sou devota do Cristianismo e fiz
promessa de me entregar a Jesus Cristo e fazer a caridade neste
mundo. Portanto, mesmo que a intenção de meus pais seja a de que
eu me case contigo, digo que nada me removerá da ideia de entrar
para um convento e cumprir minha nobre missão.

Cledônia: (A Justina) Eu não posso acreditar naquilo que eu estou


ouvindo de minha própria filha!

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Aglaide: Mas Justina, sê minha esposa e te darei todo o amor que
carrego dentro do meu peito. Juro fazer de ti a mulher mais feliz
deste mundo. (Passa suavemente suas mãos no rosto de Justina)

Justina: O único amor a que aspiro é o amor divino. Vim a este


mundo para servir a Deus e aos meus irmãos necessitados. Jamais
poderei ser tua esposa e ceder a anseios carnais que não fazem parte
nem de meu corpo nem de minha alma! Eu renunciei ao sacramento
do matrimônio para me manter virgem e pura quando retornar ao
Céu e ficar perto de Deus.

Aglaide: Estás demasiadamente imbuída nesta maldita religião a


que chamam de Cristianismo! De que vale servir a Deus e renunciar
a tudo aquilo que ele nos ofereceu para gozarmos a felicidade
terrena deste mundo?
Justina: “Mais vale a alma do que as moedas que cabem na palma.”
Pois não sabes que está nas Escrituras que devemos renunciar a este
mundo para vivermos felizes no Reino dos Céus?

Cledônia: Teu pai, quando souber disto, mandará te açoitar, filha


indigna!

Justina: De pouco serviram todos os meus ensinamentos, minha


mãe, pois vejo que ainda és seduzida pelas ilusões da matéria!

Cledônia: (Dá um tapa no rosto de Justina e esta o recebe resignadamente)


Filha ingrata! Estás renegando o próprio sangue? Pois já que és
assim, some desta casa e torna-te logo uma freira, pois eu hei de
destinar Cibele ao jovem Aglaide, que me deverá desculpar deste
inconveniente! Mas não quero que apareças aqui nunca mais e, de
todos os bens a que tens direito, serás deserdada por mim e por teu
pai.

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Justina: Pouco me importam vossos bens e vosso dinheiro, pois de
nada me servem nesta vida! Vou partir para minha missão e hei de
orar muito para a salvação de vossas almas, que expiam um passado
de paganismo e satanismo!

Geta: Senhora Cledônia, não expulses tua filha de casa e nem


tampouco a deserdes. Não vês que é uma santa e que, através dela,
seremos dignos de louvar nosso Senhor?

Cledônia: Cala a boca, pois escravos não devem se intrometer na


conversa dos senhores. (A Justina) A partir de hoje, não és mais
minha filha. Geta, acompanha esta indigente, por favor.

(Geta, que está em prantos, acompanha Justina até a porta, que sai)

Cledônia: (A Aglaide) Hás de gostar muito de minha outra filha. É


mais nova que Justina e se chama Cibele. Esta, caro Aglaide, não é
rebelde como a outra.

Aglaide: Não, minha senhora. O amor que tenho por Justina não
pode ser substituído por mais ninguém! Com sua licença. (Sai)

Cledônia: Maldição! Tudo perdido por causa deste maldito Jesus


Cristo! (Pega um crucifixo de madeira que está na parede, fita-o por uns
instantes e o joga no fogo) Lá se vai outro bom partido pela porta por
causa desta maldita religião! O que está acontecendo com o povo
desta cidade e dos arredores de Antioquia, que se deixa seduzir
pelas prédicas daquele fanático de Jerusalém, a quem chamam de
Messias? Geta, manda colocarem fogo em tudo o que remeta àquele
impostor! Não quero nada nesta casa que lembre aquele agitador
político a quem o povo ignorante atribui poderes milagrosos. Eu
nunca me convenci de que ele fosse um Deus. Agora sei muito bem
a quem devo voltar a servir e louvar.

Geta: Sim, senhora!

(As duas saem)


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Cena 2

Gruta mágica de Cipriano. Ao fundo, vários objetos de magia


negra. No centro, uma enorme caldeira fumegante. Ambiente
escuro e tétrico, com pouca luminosidade. Aparece Cipriano,
segurando um cajado e com a cabeça coberta por uma túnica.

Cipriano e Aglaide

Cipriano: Sol em peixes e a Lua em escorpião! Boa ocasião para se


fazer um elixir. Deixa-me consultar meus engrimaços. Feitiço do
amor para jovens donzelas virgens. Deixa-me ver... Aqui está!
Toma-se o pêlo de dois gatos pretos quando cruzados na cópula
carnal e queima-se com alecrim do norte. Depois, junta-se a essência
de alfazema e pronto! A quem este elixir diabólico deverá, desta vez,
encantar, hein, meu senhor e meu Deus? (Toca-se o sino da entrada da
gruta) Quem se atreve a vir à gruta de Cipriano?
Já é quase meia-noite. Provavelmente, alguém muito corajoso!
Quem é o destemido a se infiltrar na casa de Satanás? (Bate o sino
com mais força) A pressa é parecida com a ferocidade das harpias,
pois sempre deixa o trabalho imperfeito! Quem quer que seja, seja
bem vindo à casa do demônio.

(Aglaide entra)

Cipriano: (Consulta sua bola de cristal) Hummm... Um jovem


mancebo destemido? Quanta audácia para pouca coragem! Pois
quem entra nesta gruta já se torna servo de Lúcifer. Sabes quem sou,
não sabes?

Aglaide: Sim. És o pior feiticeiro que já existiu na face da Terra e


venho pedir-te uma coisa que somente tu podes fazer.

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Cipriano: Hum... interessante! Pois sabes também que uma única
palavra minha pode transformar-te em estátua de pedra? Tu te
esqueceste de que sou pactuado com o príncipe dos demônios e que
isso para ele é tão fácil como esmagar uma formiga?

Aglaide: Sei que o teu poder das trevas pode aniquilar tudo o que é
vivo sobre a Terra e é por isso que venho pedir tua ajuda.

Cipriano: Nem é necessário me dizer o que procuras. (Consulta


novamente sua bola de cristal) Humm... Procuras uma joia rara, não
é? Queres o amor de Justina e, por ela ter negado teu desejo, vens
agora me pedir o seu amor através de meu chefe soberano.

Aglaide: Exatamente, senhor Cipriano, é este o meu propósito! Há


pouco saí da casa do rico comerciante Edésio e de sua esposa
Cledônia, onde fui pedir a mão de sua filha Justina em himeneu.
Mas, infelizmente, ela preferiu entrar para um convento a ter que se
casar comigo. Não compreendo o motivo pelo qual está trocando
um himeneu por outro, com o tal Senhor Jesus Cristo! Sua irmã se
dedica à magia e presta tributo à deusa Perséfone, assim como sua
mãe Cledônia as havia introduzido aos cultos pagãos. Justina, na
verdade, conseguiu converter a família toda ao Cristianismo, mas,
ao saber que eu era obstinado em tê-la como esposa, rogou à família,
por várias vezes, que a internassem em um convento para servir a
Jesus Cristo. Mesmo que o seu pedido tenha sido negado por seus
pais, continuou insistindo, até o dia em que fui acertar o himeneu.
Ela se rebelou contra a vontade de sua mãe e se recusou a se casar
comigo. Por isso, foi expulsa de casa. Maldito Jesus Cristo! Esse
Deus que professa a virtude nada mais fez do que roubar dos meus
braços a jovem que amo! Por isso, agora hei de ser o seu pior
inimigo e não medirei esforços para ter Justina como minha mulher.

Cipriano: Pelo que estou vendo, queres desvirginar uma donzela.


Encontrou a pessoa certa para tal intento. Mas quanto me darás para
recompensar este feito maligno?

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Aglaide: (Tira um saco de moedas da algibeira) Aqui estão algumas
economias que guardei durante muito tempo. Espero que sejam
suficientes para o começo.

Cipriano: (Pega o saco com violência e verifica a quantia) Isto é


muito pouco para agradar a mim e ao meu mestre. Mas, em se
tratando de desvirginar uma donzela, posso muito bem trabalhar
em teu caso com afinco, pois é de meu conhecimento que Justina é
muito religiosa, e muito me apraz transformar donzelas castas como
ela em mulheres sedentas de luxúria. Pois muito bem. (Cipriano dá
uma gargalhada tenebrosa, vai até a sua estante e pega um pequeno
frasco)
Dentro deste pequeno frasco existe um elixir que preparei com
sangue de dois morcegos em cópula carnal e misturei com um
pouco de sêmen de sapo preto. Esta substância deverá ser entregue
ao príncipe dos demônios num lugar ermo ao soar das doze
badaladas da igreja de Antioquia. Chama pelo meu mestre maligno
e, quando ele aparecer, tu entregarás a ele este elixir. Ele saberá
fazer tua amada se deitar contigo. Mas faça isso sem medos e
temores e, ao entregar a Lúcifer, sai do local sem olhar para trás,
fazendo três reverências. Antes de te retirares definitivamente dirás
três vezes em voz alta: “Por sortem infixarium corpus tuam.”
Depois de ter dito isto, retirar-te-ás de uma vez.

Aglaide: Espero que pelo teu poder eu atinja meu objetivo.

Cipriano: Meu mestre nunca falhou, disso podes ter certeza. Ele
sempre reinou absoluto.

Aglaide: Com tua permissão, sairei da gruta.

Cipriano: Toma cuidado! Que quando saíres desta gruta, não


deverás pronunciar, por sete semanas, o nome do inimigo de meu
mestre.

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Aglaide: Assim seja! (Uma risada tenebrosa é ouvida de dentro)

Cipriano: (Esclarecendo) Teu pedido já foi confirmado! (Cipriano dá


outra gargalhada)

Aglaide: (temeroso) Até mais breve! (Sai)

Cipriano: Onde foi que eu parei? (expulsando um gato preto da


mesa) Ferrabrás! Quantas vezes te disse para não mexeres em
minhas coisas? Gato impertinente! Qualquer dia te faço ensopado!
Onde está o meu manuscrito que estava estudando? Aqui está: Hoje
é sexta-feira, dia de sacrifícios. Deverei fazer o círculo mágico, pois
esta noite invocarei Satanás para eu servi-lo em minhas feitiçarias.
(Pega a varinha mágica e risca o círculo mágico. Acende sete velas
pretas e põe mais lenha no caldeirão para ferver)
Mesalech! Berkaial! Amasarac! Eu vos saúdo! Mais água quente para
ferver nas postas de coruja e couro de sapo preto, que deverão
derreter! Pelos cinco Salomão, pelos chifres do bode, pelo sangue
das sete virgens, eu invoco o príncipe das trevas ao meu encontro de
todas as noites! Mais sebo humano deve ser queimado, mais carne
humana deve ser sacrificada! “Vulgus in spiritum, post funeream
maledectus scrpitum”! (Ri pavorosamente) Mais sangue de
morcego na caldeira borbulhante e um pouco de pó de caveira para
engrossar o caldo espumante!
(Dá-se uma ventania forte e as velas da gruta se apagam e acendem
novamente. Eis que surge pelo alçapão Lúcifer, em trajes reais e no
corpo de um belo mancebo)
Vejo que se aproxima Vossa Majestade, o príncipe Belzebu, Lúcifer
ou Satanás!

Lúcifer: Que queres de mim?

Cipriano: Venho te pedir um favor que talvez já saibas qual é.

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Lúcifer: É óbvio, pois estou em todos os lugares da Terra e tu bem
sabes que é só falar meu nome que em menos de dois segundos
estou pronto para tu me servires!

Cipriano: A jovem Justina, filha de Edésio e Cledônia, que se


internou num convento e se nega a te render homenagens.

Lúcifer: Faz o feitiço que aprendeste com os caldeus e sacrifica um


bode preto. Recolhe seu sangue num recipiente e faz deste sangue o
elixir que fará essa donzela ter o sentimento da luxúria. Não te
esqueças disso. Ao sacrificar o primeiro, deves sacrificar mais sete
para os meus companheiros.

Cipriano: Sim meu mestre, teus ensinamentos sempre foram os mais


sábios e teu pedido é uma ordem!

Lúcifer: Se seguires aquilo que te professo terás tudo o que bem


quiseres e não morrerás jamais. Terás a vida eterna e serás o veículo
de meu poder na Terra.

Cipriano: (saudando o mestre em língua demoníaca) “Serestarium


pro forcem dignum malignum”! (Surge um forte vento na gruta e
Satanás desce pelo alçapão cenográfico)
Hoje mesmo farei Justina se apaixonar por Aglaide, pois meu mestre
me impregnou com seu poder diabólico.

(Cipriano apaga as velas com um passe de mágica e a gruta


escurece)

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Cena 3

Convento de Justina. Justina está ajoelhada no oratório, rezando,


quando lhe batem à porta. Vai atender. É o demônio transformado
em freira.

Justina, Lúcifer e Irmã Auxiliadora

Lúcifer: (Transformado em freira) Queira me desculpar a


interrupção Irmã Justina, mas recebi há pouco ordem da madre
superiora para te entregar este pequeno unguento, com o qual
deverás perfumar-te no dia da celebração da Páscoa, que será
amanhã.

Justina: Mas eu não sabia que, no dia da Páscoa, as freiras usavam


perfumes para louvar nosso Senhor.

Lúcifer: É uma ordem da madre superiora, que quer louvar nosso


Senhor Jesus Cristo ressuscitado de forma que o perfume glorifique
seu poder...

Justina: Bem, já que é assim, eu o farei. Obrigada, irmã.

Lúcifer: Experimente logo, é um perfume de rosas brancas. (Sai)

Justina: (Observa o frasco e depois o abre e cheira.) Huumm! Tem


um cheiro gostoso. Parece mesmo ser de rosas brancas. (Passa no
punho) Muito cheiroso! Bem, deverei tomar um banho para depois
usá-lo amanhã cedo. (Fica tonta e se apoia numa cadeira)
Estou sentindo a minha cabeça rodar... O que está acontecendo
comigo? Irmã Rosália! Estou perdendo os sentidos... Acho que vou
desmaiar. (Justina desmaia. A luz do palco escurece e, quando torna
a acender, aparece Justina, no mesmo quarto, amarrada em uma
cadeira, enquanto uma fumaça toma conta do ambiente. Ao abrir os
olhos, ela se depara com Lúcifer transformado num rapaz alto,
bonito e elegante, trajando roupas reais, que vem ao seu encontro)

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Lúcifer: Boa noite jovem! Quanta honra para mim, visitar tão ilustre
pessoa!

Justina: Quem és tu? E o que estás fazendo no meu quarto? Quem


me amarrou aqui nesta cadeira? Eu vou gritar pelas Irmãs: Rosália!
Auxiliadora! Tirem-me daqui, por favor!

Lúcifer: É inútil gritares, pois ninguém vai te ouvir, a não ser eu!

Justina: Tu és Satanás transformado em jovem belo e sedutor! O que


queres de mim?

Lúcifer: (Aproxima-se sensualmente da jovem e passa suas mãos no


rosto dela) Eu quero que tu experimentes um pouco dos prazeres da
carne. Ou vais me dizer que nunca tiveste vontade de fazer nada
disso?

Justina: Eu sou devota do Espírito Santo e não tenho necessidade de


me entregar às concupiscências da carne. Sou esposa de Jesus Cristo
e só isso é o que me importa! Vá de retro, Satanás, pois o teu lugar é
no inferno, e não aqui na Terra, para confundir os preceitos de nosso
Senhor!

Lúcifer: Vejo que a jovem é boa em retórica, mas acredito que deva
ser muito mundana se te deitares com um homem formoso e belo
como Aglaide. Já pensou no prazer que ele te daria com seu órgão
genital avantajado? Não irias mais pensar em orações e jejuns. (Ri)

Justina: Eu tinha certeza de que aquele frasco era obra demoníaca!


Pois saibas, senhor príncipe dos demônios, que jamais perderei
minha virgindade para desfrutar com homem nenhum a troco de
teu pérfido objetivo!

Lúcifer: Pois eu vou entrar no teu corpo e vou te fazer gemer como
uma cadelinha no cio.

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Justina: O sangue de Jesus é mais forte!

Lúcifer: (Pegando as mãos de Justina e colocando em seu órgão


genital) Mas esse poder não te dará nunca a chance de conheceres os
prazeres da carne. Vamos, Justina, entrega-te esta noite para mim e
abandona este falso Deus que de nada te servirá nesta vida.

(O demônio começa a tirar a roupa de Justina e ela inicia uma


oração)

Justina: “Pelo sangue do Cordeiro Imolado,


Pelas sete chagas de Cristo Crucificado,
Afasta o demônio do meu quarto.
Pelas virgens de Nazaré,
Pela força da minha fé,
Eu me entrego a Jesus e à santíssima cruz,
Ao santíssimo sacramento e às três relíquias que tem dentro.
Às três missas do Natal, que não me aconteça nenhum mal.
Maria santíssima, seja sempre comigo.
O anjo de minha guarda me guarde
E me livre das astúcias de Satanás.
Per omnia saeculum saeculorum
Amém.”

(Justina continua rezando baixinho. A luz se apaga novamente e, ao


reacender, ela aparece acordando de um pesadelo, deitada na cama
de seu quarto, ouvindo alguém chamá-la pela porta)

Auxiliadora: Irmã Justina! Irmã Justina!

(Justina se levanta meio tonta e vai abrir a porta)

Justina: Entra, Irmã Auxiliadora.

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Auxiliadora: Faz vinte minutos que estou batendo na porta e nada
de me responderes. Pensei que te ocorrera algo.

Justina: Não, irmã, eu apenas estava dormindo profundamente e


não ouvi tu me chamares. O que foi?

Auxiliadora: Tua irmã Cibele está no corredor e quer conversar


contigo. Posso mandá-la entrar?

Justina: Sim, Auxiliadora, manda-a entrar.

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Cena 4

Cibele vai ao encontro da irmã e abraça Justina.

Justina e Cibele

Cibele: Ó, minha irmã querida, há quanto tempo queria te falar,


mas as freiras deste convento sempre relutaram em me deixar
entrar, porque sou pagã.

Justina: Como vão nossos pais?

Cibele: Papai não anda nada bem, Justina. Ele adoeceu há um


tempo e não há medicina que o cure de seu mal.

Justina: Mas de que mal ele sofre?

Cibele: Ninguém sabe. De uns tempos para cá, deixou de comer e


sua pele tem ficado escura e ressecada. Já caiu de cama e nossa mãe
é quem consegue fazê-lo comer um pouco, quando não regurgita a
comida. Já chamamos curandeiros, feiticeiros, alquimistas e médicos
de todos os lugares possíveis, mas nenhum consegue diagnosticar o
seu caso. Para mim, papai está enfeitiçado por algum trabalho de
Cipriano, pois ultimamente não se tem falado em outra pessoa em
Antioquia a não ser naquele feiticeiro maldito.

Justina: Isso é muito provável.

Cibele: Ele tem feito isso com todas as pessoas desta cidade. Bem
sabes, minha irmã, que ele pactuou com Satanás e tem poder para
fazer tudo! Dizem que ele consegue ficar invisível para desvirginar
as donzelas, destruir palácios e transformar pessoas em animais
repugnantes! Ele é um homem sujo e muito perigoso.

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Justina: Cibele, eu também tenho sido tentada por Satanás. Aglaide
ainda é apaixonado por mim e pede insistentemente a Cipriano que
me enfeitice para me desvirginar.
Agora há pouco Lúcifer esteve no meu quarto e eu o resisti com a
oração do santíssimo sacrário!

Cibele: Isto que me dizes é surpreendente, Justina! Estamos sendo


vítimas das artimanhas de Cipriano, que usa o demônio para
destruir as pessoas! O que poderemos fazer?

Justina: Ainda não sei, mas devo achar junto de nosso Senhor uma
resposta para essas nossas dúvidas. (Pausa. Ela se ajoelha diante do
crucifixo da parede por alguns instantes e se volta para Cibele) Já
ouviste falar na bruxa de Évora?

Cibele: Sim, uma bruxa já de idade muito avançada e que possui a


má fama de ter sido terrível. Tive notícias de que ela mora numa
gruta nos arredores de Pérgamo.

Justina: Terias coragem de ir até lá?

Cibele: Para que Justina? Dizem que quem entra naquela gruta não
sai vivo, pois ela mata as pessoas com venenos e usa o cadáver para
seus trabalhos de magia negra.

Justina: Tu deverás perguntar a ela qual o meio de enfraquecer


Cipriano, pois ela conhece muito bem os artifícios de Satanás,
melhor do que ninguém, tanto que foi mestra daquele bruxo
durante muitos anos.

Cibele: Boa ideia, minha irmã. Amanhã mesmo deverei partir em


direção a Pérgamo para realizar este intento.

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Justina: Leva contigo este crucifixo e coloca-o do lado do coração!
Desta forma nenhum mal poderá te acontecer. Mantém sempre nos
lábios a oração da Virgem e, com isto, estarás livre de toda tentação!

Cibele: Obrigada, minha irmã, e continua rezando para vencer o


demônio.

Justina: Vai com Deus, e que o Senhor te acompanhe!

(As duas se abraçam longamente. Cibele sai pela direita e Justina se


ajoelha no oratório. A cena escurece)

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Cena 5

Gruta da Bruxa de Évora. Lugar sinistro, povoado por animais


peçonhentos, como cobras, escorpiões e aranhas venenosas e
outros animais como lagartos empalhados e sapos esturricados. Do
lado esquerdo, uma mesa com uma cabeça humana cortada e
imersa em formol, num vidro. Vários manuscritos e livros
empoeirados. Um grande caldeirão no centro, fervendo, e a
feiticeira se encontra sentada em sua cadeira, alisando um gato
preto.

Bruxa de Évora e Cibele

Bruxa: Vejo que se aproxima uma jovem. Seja bem-vinda à gruta da


bruxa de Évora!

Cibele: Com licença, bruxa, desculpa-me por perturbar o teu


sossego, mas vim aqui para te fazer uma pergunta cuja resposta será
muito útil para mim.

Bruxa: Nem precisas me dizer o que vens fazer aqui, minha donzela,
pois já sei a pergunta que irás me fazer assim como a resposta!

Cibele: Sou toda ouvidos!

Bruxa: Senta-te a esta mesa.

(Cibele se senta e a feiticeira embaralha as cartas. Pede para Cibele


cortar e as distribui na mesa em cruz)

Bruxa: (Fala enquanto vai virando as cartas) Vejo que tua pergunta é
muito difícil de se responder. (Longa pausa) Queres vencer as
tentações do demônio que age através de Cipriano?

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Cibele: Sim, exatamente! E sei que bem podes me ensinar um
caminho, uma vez que não há ninguém neste mundo que saiba mais
sobre magia negra do que tu.

Bruxa: Vencer o mago Cipriano não é tarefa fácil, cara donzela, pois
já pertence a Satanás e seu elo é mais poderoso que todos os círculos
de fogo do inferno!

Cibele: Mas não há uma forma, alguma maneira de neutralizar o


seu poder?

Bruxa: A magia negra pertence a Lúcifer e não se apaga o fogo com


mais fogo, entende? O universo é povoado por forças benignas e
malignas e são poucos que podem penetrar no mundo dos mortos.
“Quod est inferius est sicut quod est superius”

Cibele: “O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está
em cima é como o que está em baixo”. Segunda lei da Alquimia,
proferida por Hermes Trismegisto.

Bruxa: Sim, cara donzela, exatamente. As forças do universo são


iguais e se regem pelo princípio do equilíbrio. A força de Lúcifer
está em quem alimenta essa força, pois ele tem seguidores que
sustentam seu poder com sacrifícios malignos. Todos os seres vivos
são parte de Deus, exceto os que se desvincularam dele, pactuando
com o Maligno, assim como eu, Cipriano e muitos outros. Só há uma
forma de neutralizar o mal: fortificando suas orações no Deus de
Justina e fazendo muitas penitências e jejuns. Lúcifer deseja ser o
senhor soberano da Terra e não medirá esforços para vencer seu
inimigo. Encontrou um veículo muito poderoso, Cipriano, que serve
constantemente a ele. Eu sou a pior feiticeira que já existiu neste
mundo e sei perfeitamente o dia em que ele virá me buscar para
habitar no mais profundo dos infernos. Pois, como bem sabes, fui a
primeira bruxa a entregar minha alma ao príncipe das trevas, e
quem faz isso não tem direito de se arrepender, pois seu pacto é
imperioso e implacável. Apesar disso, conheço a ciência do Bem e
do Mal, motivo este por eu estar te orientando.
26
Cibele: Sim, mas isso quer dizer que não há nenhum sortilégio que
possa vencer Cipriano?

Bruxa: Sim, só existe um meio de o fazeres.

Cibele: E qual é?

Bruxa: A tua virgindade e a de tua irmã!

Cibele: Como assim? Não estou entendendo.

Bruxa: Lúcifer quer provar para Jesus que sois impuras e não
medirá esforços para conseguir isso. Se vencerdes a tentação carnal,
rezando todos os dias e jejuando constantemente, vencereis o diabo
e Cipriano será derrotado juntamente com ele!

Cibele: Então deverei eu também entrar para o grupo de


catecúmenos onde minha irmã Justina reside e abandonar o culto à
deusa Perséfone?

Bruxa: Quanto mais cedo fizeres isso, mais facilmente conseguirás te


libertar das astúcias de Satã. Mas se continuares a servir aos deuses
pagãos, o Maligno conseguirá seu intento contigo e com tua família,
pois bem sabes que teu pai está doente por causa de um sortilégio
de Cipriano. Ele colocou o nome de seu pai e de todos de tua família
dentro da boca do sapo e os costurou com linha de retrós preta.
Torna-te freira e luta junto com tua irmã, antes que seja tarde. Desta
forma, conseguirás destruir o feitiço que Cipriano fez para destruir
teu pai, tua mãe e todos os teus familiares.

Cibele: Como poderei ajudar meus pais?

27
Bruxa: Convence-os a se tornarem cristãos e abandonarem o
paganismo de uma vez. Desta forma serão libertos do mal!
(Levanta-se e vai até a estante pegar um pequeno frasco) Toma este
elixir. Dissolve-o na água e dá para o teu pai beber. Aos poucos ele
se recuperará dos efeitos do feitiço a que está subjugado. Ao diluir
este preparado na água, profere a oração alquímica de Hermes
Trismegisto. (A bruxa entrega um pergaminho a Cibele) Faz o
círculo mágico, risca o cinco Salomão, acende sete velas de sândalo,
unge teu corpo com essência de alfazema, lavando primeiro teus
pés. Depois volta-te para o Norte e, ajoelhada dentro do círculo, ora:

“Há sete mestres


Há sete mensagens
Este é o primeiro
Esta é a segunda
Toth no Egito,
Mercúrio em Roma
Hermes na Grécia

Henoc para o judeu


Odin na Escandinávia
Mensageiro de Osíris

Amém

Você sabe
Vamos recordar

A voz é para o ouvido


Ouça a voz do Mestre
O princípio é o sete
O Todo é mental
O Todo está em você
Assim como é acima é embaixo
Como o exterior é o interior
Como o micro é o macro

28
O Todo vibra
É imóvel
É a união de dois
O Todo é dual
Tem dois pólos
Opostos
E iguais

Assim é o ritmo
Flui e reflui
Oscila
Entre a direita e a esquerda
O Ritmo é o equilíbrio
O Todo é a causa
Na causa e o efeito

O Todo é Gênese
Infinita
Ad Vitam Aeternam

O Todo cria o Universo


O Todo é Pai que emana do Universo
Toda palavra é mantra
Todo pensamento é vibração
Transmute
Ache a vibração
A vibração de Amor

Centre os pólos
Bioritmo Polar
Domine a imagem
Use a força superior
Vibre Leve

Ligue o superior
Ordene o inferior
Tome parte sem o pôr
29
Use o conhecimento
Pratique
Seja forte
Obre na lei
E em seu movimento
Opere sem mandado

A Lei
É causa
É o karma

Sorte e Azar
É a lei em seus dois pólos
Causa e Efeito
Positivo Ativo
Negativo Ativo

Retorne ao Um
Conhecendo o Tri
Trindade Perfeita
Alquimia é purificação
A chave da Alquimia é a Química
Transmute a energia

O sólido pelo líquido


O líquido pelo Ar
O ar em fogo

Atinja o Fogo
Você será você

O Fogo é o Amor
O Fogo é o Ouro
É o ouro puro

Ilumine

30
Eis o cálculo filosofal
Oriente
O Sal impede Telepatia
Planifique a água
Sete vezes de um vaso a outro
O Todo é o sustento dos seres
Descubra o simples
O Todo é sem nome
Una-se com o Todo
Respire
Inspire em sete
Expire em sete
Tudo é pleno
Abra cada braço
Levite
Conheça a você
E você conhecerá
O Todo e os deuses
O Todo é e não é
Ao mesmo tempo
Você é a Luz

Os homens são deuses mortais


Os semelhantes se afastam
Desejar é atrair
Não desejar é conseguir
Continue a viagem
Ouça o som do Um
A Música da Esfera
Capte o Canal
Medite

Você veste o vestido para descer


E tira o vestido para subir
Diz a tábua da Esmeralda
O todo é Consciência Cósmica
O Universo está no Todo
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O Todo está em todas as coisas
O Todo avança e recua
É encontrar o Equilíbrio
O homem anda como a Onda
Contra a balança
Encontra o Fiel
Afirmar a verdade já é Criar
Ouça e Veja
Cale-se até o momento de agir
Procure a Luz
A Lucidez
A teoria é a prática
Ponha o pé no Caminho
Ele está em Todo Lugar

Para o puro
Todas as coisas são puras
O modelo é a criança
A criação quanto mais afastada
Do centro mais limitada
Quanto mais próxima mais livre

Acorde
Recorde que você é um homem
Que veio de uma estrela
Que está em uma estrela
Que irá para uma estrela
Pense suave
Os mensageiros orientam
Ó Pai,
Guia estes teus filhos

Eu sou o Alfa e o Ômega


O Antigo e o novo
O um e o Om
Lembre-se de seu primeiro Amor

32
Ame

A Vida Eterna.”

(Enquanto a bruxa fala, sua gruta é invadida por uma ventania e por
uma música esotérica)

Bruxa: Depois de feita esta oração, deixa o preparado exposto por


três dias na lua minguante e dá de beber ao teu pai. Confia e ele será
liberto.

Cibele: O que mais as tuas cartas dizem, ó poderosa feiticeira?


Feiticeira: Tu e tua irmã Justina sereis as responsáveis pela salvação
da alma de Cipriano, que escapará das chamas de enxofre do
Inferno. Depois de convertido, ele e Justina realizarão inúmeros
prodígios de cura e milagres. A fama de feiticeiro será convertida
pela fama de santo milagroso e o nome dele e de sua irmã serão
reverenciados pelos quatro cantos do mundo. (A bruxa tira as três
últimas cartas do monte) Mas tudo isso custará a vida dos dois e a
cabeça deles rolará pela terra, menos a tua, pois serás poupada e
seguirás teu caminho com aquele que deu início a todo este triste
enredo.

Cibele: (Chocada) Pela virgem dos Céus! Eu não posso acreditar!


Não quero me separar tão cedo da irmã que tanto amo nesta vida!
(Chora desconsoladamente)

Bruxa: Deixa tua irmã cumprir o seu destino. O seu sacrifício será
lembrado e será o segundo grande exemplo, depois do de Cristo, de
amor e renúncia pelos homens. Já o nome de Cipriano será maldito
sobre a Terra, e, mesmo sendo canonizado, seu nome será sempre
temido e será o símbolo dos prodígios do diabo. Nunca haverá um
feiticeiro tão famoso quanto ele e sua história será sempre um mito
entre os homens a ser revelado.

33
Cibele: Para mim, estas revelações que vaticinaste gelam-me o
sangue nas veias e corroem-me de pavor entre as entranhas. Como
és prodigiosa em tuas profecias, não me resta outra saída a não ser
me conformar. Jamais duvidaria de uma profecia tua. Conheço bem
o teu poder, que faz jus ao teu título de Grande Feiticeira. (Respira
profundamente) Está muito bem. A minha vinda à tua gruta mágica
me foi de grande valia. Obrigada e Adeus.

Bruxa: Agradeça à grande deusa e reverencie sempre o Deus de


Justina em orações e fortes jejuns.

(Cibele sai)

34
Cena 6

Casa de Cledônia. Edésio está na cama, enfermo. Cibele entra.

Cledônia, Edésio, Cibele, Geta, Eusébio, Justina, Cipriano, Lúcifer,


Demônios, Maria Santíssima, o Arcanjo Miguel e dois sacristãos.

Cledônia: (Vendo Cibele entrar pela porta) Ó, minha filha, por onde
andaste por todos esses dias? Teu pai está quase morrendo e não
temos mais esperanças de vê-lo vivo.

Cibele: (Pegando firmemente nas mãos de Cledônia) Minha mãe,


ouve-me bem! Meu pai está morrendo em virtude de um feitiço feito
por Cipriano e Aglaide está tentando seduzir Justina pelos artifícios
deste maldito feiticeiro!

Cledônia: (Olha fixamente para Cibele e depois diz, em tom


dramático) Tudo por minha culpa! Eu é quem deveria morrer. Sou
eu a causadora de todo este mal. (Ajoelha-se) De que me adiantam
estes ídolos se eles não conseguem curar meu marido e trazer minha
filha de volta? Maldita deusa, que nada fez por mim! Malditos
ídolos que me levaram à ruína! Perdão, meu Senhor Jesus Cristo,
por ter sido infiel aos teus preceitos! Perdão por eu ter servido a Satã
e ter perdido grande tempo de minha vida nesta prática
abominável.

Edésio: (Quase sem força para falar, tenta se levantar, mas não
consegue) Deixa-me morrer, minha cara esposa. Assim poderei
pagar meus pecados no mais profundo dos infernos, pois é para lá
que todos nós, desta casa, deveremos ir depois de mortos.

Cibele: (Abraçando fortemente seu pai) Deixa de bobagens, papai!


Cipriano, segundo a feiticeira Selene, colocou o teu nome e o de toda
a nossa família dentro da boca do sapo. É por isso que estás
definhando aos poucos. Ela me entregou este elixir para que o efeito
da magia negra de Cipriano se dissolva. Geta, traz um pouco de

35
água. (Geta vai buscar e volta com uma ânfora. Ao servir a água
num copo de madeira, tem uma reação estranha e deixa a ânfora e o
copo caírem no chão)

Cledônia: (Amparando Geta) O que é que está te acontecendo? O


que sentes?

Geta: Senhora, desculpa-me pelo acidente, mas sinto que há um


demônio no nosso meio e ele está pedindo para se comunicar. Ele
está furioso porque não quer que teu marido tome o elixir.

Cledônia: (fazendo o sinal da cruz) Virgem Santa! (a Cibele) Minha


filha, o que devemos fazer?

Cibele: Calma, minha mãe, o Senhor está conosco. Geta, ajoelha-te


no oratório e reza comigo.

(Geta parece estar em transe e é amparada por Cibele. Por um


instante, o demônio toma conta de seu corpo e ela começa a se
arrastar pelo chão. Depois de uns instantes, começa a falar com uma
voz irreconhecível.)

Geta: (Que está endemoniada e ri descontroladamente) Então tu


pensaste que trapacearias meu mestre maligno? Sua vadia! Vou
destruir todos vocês, inimigos das trevas. O reino de meu mestre
está prestes a se realizar neste mundo e não serão duas messalinas
como tu e tua irmã que impedirão a vitória de meu senhor e mestre
soberano. (O demônio ri pavorosamente. Cledônia, muito assustada,
ajoelha-se perto do leito de Edésio e os dois se põem a rezar
baixinho. O demônio continua):

Geta: Salutatis honor, Ó grande Lúcifer, que tua vontade seja feita!

Cibele: Designate nomimi tuum e o que vieste fazer aqui!

Geta: Sou Astaroth, príncipe dos tronos do Inferno, anjos negros


alados do reino de Lúcifer!
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Cibele: O que queres de nós?

Geta: A tua destruição e a de tua irmã, que estão impedindo a glória


de Satã sobre a Terra!

Cibele: (Toma um crucifixo e se aproxima de Geta) Este é o


verdadeiro Deus do Mundo, Jesus Cristo, o filho de Deus.

Geta: (dá um hórrido grito) Afasta este impostor de perto de mim


ou eu te mato, sua devassa! (Cospe no chão) Por causa dele, meu
mestre não se tornou o Imperador do Mundo.

Cibele: Pois se o teu mestre é tão poderoso, por que ele não deu
uma prova de amor à humanidade, como fez Jesus ao ser
crucificado? Sai deste corpo que não te pertence e volta para os
abismos do inferno, de onde vieste e de onde habitas. (Cibele se
aproxima de Geta e passa o óleo sagrado em sua testa. O demônio
judia de Geta, enquanto Cibele reza junto com Cledônia a oração do
Credo, segurando em suas mãos) Vamos, já estou sem paciência! Em
nome do sangue de Jesus Cristo vertido na cruz para o horror de
Satã, eu obrigo este espírito imundo a liberar este corpo e voltar
para as profundezas do inferno. (Geta se debate mais um pouco e,
finalmente, o demônio a libera, prostrando-a no chão. Cibele e
Cledônia correm para acudi-la)

Cibele: (Passa água benta na fronde de Geta) Geta, como te sentes?

(Geta não responde. Cibele a sacode)

Cibele: Geta! Acorda, por favor!

Geta: (Geta vai voltando aos poucos e fala baixinho) Senhora, o que
aconteceu comigo? Só me lembro de ter pegado na ânfora quando
um vulto negro se apoderou de mim.

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Cibele: Foste possuída por Astaroth, braço direito de Lúcifer.
Mamãe, leva Geta para dentro e dá a ela um pouco de chá de
alfazema, para fazê-la dormir. Ela precisa descansar. Antes, Geta,
vem cá (Geta se aproxima) Toma este crucifixo e reza-o todas as
noites, antes de dormir. Agora vai.

Geta: Obrigada, senhora. (Cibele dá um beijo em Geta. Cledônia a


acompanha até a porta dos fundos e, depois de uns instantes, volta
para conversar com Cibele)

Cledônia: Estou acometida de um grande medo, minha filha.

Cibele: Confia em Jesus, minha mãe. Ele nos está protegendo. (Vai
até o leito de Edésio com o preparado da feiticeira e mistura com um
pouco de água num copo de madeira que Geta havia derrubado)
Toma papai, isso o fará melhorar.

Edésio: Obrigado, minha filha, que Deus te abençoe.

Cibele: Precisamos unir nossas forças contra o mal. A partir de hoje,


minha mãe, a senhora está proibida de deixar que Aglaide entre em
nossa casa com o pretexto de me desposar, pois ele frequenta a gruta
de Cipriano e sorrateiramente introduz substâncias malignas
daquele pérfido feiticeiro nesta casa. Tu e papai deverão passar a
frequentar a missa todos os dias. Eu já tive licença para me tornar
uma freira e já sou, a partir de hoje, irmã Celeste. Tudo aquilo que
não for de Jesus Cristo não deverá jamais entrar nesta casa e os
objetos pagãos deverão ser queimados no fogo. Hoje esta casa será
abençoada pela Luz do Espírito Santo e nenhum mal será capaz de
penetrar em nossa alma.

Cledônia: Ó, minha filha, és o anjo que desceu do céu para glorificar


o Senhor. Estou tão arrependida de ter expulsado Justina desta casa
por causa de um himeneu sem fundamento! Ó, Cibele, não sabes
como me sinto pesarosa por ter sido injusta com tua irmã, que
durante toda a vida me alertou sobre o perigo de se louvar o diabo.

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Cibele: Agora é tarde para lamentações! O que tinha que acontecer
aconteceu e, a partir de hoje, devemos louvar nosso Senhor Jesus
Cristo e a Virgem Maria. Dá-me cá as tuas mãos e vamos orar à
Virgem Sagrada em redor de meu pai.

(Uma música religiosa invade a cena. Cibele ora):

Ó Virgem dos Céus Sagrados,

Mãe de nosso Redentor,

Que entre as mulheres tens a palma.

Traz alegria à nossa alma,

Que geme cheia de dor,

E vem depor nos nossos lábios

Palavras de puro amor.

Em nome do Deus dos Mundos

E também do Filho amado,

Onde existe o sumo bem

Será para sempre louvado

Nesta hora bendita.

Amém.

(Edésio se levanta da cama curado)

Edésio: Glórias e louvores a nosso Senhor Jesus Cristo! Eu estou


curado! Minha filha, tu me curaste do mal que me afligia! Gloria in
excelsis Deo! Per omnia saeculum saeculorum!

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Cledônia: (Ajoelhando-se) Bendito sois vós, ó Deus, que restituístes
a saúde de meu marido! Benditas sejam Justina e Cibele, que foram
inspiradas pelo vosso Santo Espírito!

(Chora copiosamente. Toca-se uma música medieval de tonalidade


dramática. Momento dramático e sofrido, no qual as personagens
demonstram grande sentimento e dor. Cibele se abraça com seu pai)

Cibele: Este é o verdadeiro Deus da Justiça e da Glória! Todos os


outros só possuem força para destruir e aniquilar os seres humanos.

Cledônia: A partir de hoje, seremos cristãos na fé e no coração e hei


de vender tudo o que eu tenho para dar aos pobres e famintos.

Cibele: Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!

Cledônia e Edésio: Para sempre seja louvado!

(Batem à porta. Cibele vai atender. É o bispo Eusébio, acompanhado


de dois sacristãos)

Eusébio: Que a paz de nosso Senhor Jesus Cristo esteja convosco!

Todos: Ele está no meio de nós.

Cibele: Fui eu, mamãe, quem pedi que o bispo de Antioquia viesse à
nossa casa para batizá-la e dar-vos o sacramento da eucaristia.

Eusébio: Caríssimos irmãos. Há tempo que o Mal tem reinado na


cidade de Antioquia por causa de Cipriano. Eu estudei no colégio
apostólico com ele, antes de ele embarcar para a Caldeia e se
aperfeiçoar em seus estudos de magia negra. Mas, agora que o mal
está disseminado nesta cidade por causa do paganismo e por causa
da rendição do povo ao diabo, teremos que ser fortes para vencer o
instrumento dele, que se chama Cipriano de Antioquia. De nada
valeram as minhas exortações acerca de sua conversão, pois ele é
irredutível e zomba dos cristãos com tamanho ardor e energia que
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nos causa horror e repugnância. Certa vez ele teve a coragem de
destruir a igreja onde eu estava ministrando os santíssimos
sacramentos: por força de uma magia, trouxe um vendaval que
derrubou as paredes do templo, deixando vários feridos. Ele é capaz
de seduzir jovens donzelas com os seus elixires encantados, apenas
por zombaria. Ele mata as pessoas que quiser com o sortilégio do
sapo e dos bonecos encantados! Enfim, ele é uma ameaça para a
nossa sociedade e as pessoas desta cidade vivem sob o pânico e o
medo das suas terríveis artimanhas diabólicas.

(Batem novamente à porta. Cibele vai atender. É Justina que chega)

Justina: A paz do Senhor esteja convosco!

Cledônia: (Atirando-se aos pés de Justina) Minha filha! (Cai em


lágrimas) Louvado seja Deus, que a fez entrar por esta porta! (Beija
seus pés) Perdão, minha filha, por tudo que te fiz! Perdoa tua pobre
mãe, que agiu com a mais extrema ignorância.

Justina: Deves pedir perdão ao Senhor Jesus, e não a mim, que sou
sua serva, minha mãe.

Edésio: (Indo abraçar Justina) Ó, minha filha, quanta honra para nós
tê-la de volta a esta casa! Não sabes a falta que fizestes aqui.

Justina: É muito bom que o bispo Eusébio tenha vindo para


abençoar este lar, que, durante muito tempo, foi um santuário de
idolatria.

Cledônia: Sim, minha filha, Jesus Cristo nos deu prova de sua
existência quando Cibele proferiu a oração da Virgem Sagrada e teu
pai se levantou da cama completamente curado!

Justina: Pois agora vocês sabem que existe um só Deus e é a ele que
devemos reverenciar.

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Eusébio: E para confirmar os laços que vos unem a Jesus Cristo,
celebrarei uma missa nesta casa, de forma a purificar o ambiente e
abençoar todos os presentes. Todos de joelhos, por favor.

In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti.

(Eusébio inicia o ritual da santa missa, ajudado pelos dois sacristãos.


Um canto gregoriano toma conta do ambiente)

Todos: Amém!

Eusébio: Em nome do sangue de Jesus Cristo, vertido na cruz, dou


início a esta celebração pela conversão de todos os presentes e os
que ainda não enxergaram a luz divina.

(Os dois sacristãos colocam uma toalha branca e os objetos sagrados


em cima da mesa)

Eusébio: Agnus Dei qui tollis peccatta mundi, miserere nobis!


Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere nobis!
Agnus Dei qui tollis peccatta mundi dat nobis pacem.

Eusébio: Deus, qui humanae substanciae dignitatem mirabíliter


condidistri et mirabilius reformasti: da nobis per hujius aquae et
vini mysterium, ejus divinitatis esse consortes, qui humanitatis
nostrae fieri dignatus est particeps, Jesus Christus, Filius tuus,
Dominus noster: Qui tecum vivit et regnat in unitate Spiritus
Sancti Deus: per omnia saecula saeculorum.

Todos: Amém!

Eusébio: Offerimus tibi Domine calicem salutaris, tuam


deprecantes clementiam: ut in conspectu divinae majestatis tuae,
pro nostra et totius mundi salute cum odore suavitatis ascendat.
Veni sanctificator omnipotens aeterne Deus: et benedic hoc
sacrificium, tuo sancto nomini praeperatum.

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(Eusébio consagra o pão)

Qui pridie quam pateretur, accepit panem in sanctas ac


venerabilis manua suas, et elevatis oculis in caelum ad te Deum,
patrem suum omnipotens, tibi gratias agens, benedixit, fregit,
deditque discipulus suis, dicens: Accipite, et manducate ex hoc
omnes.
HOC EST ENIM CORPUS MEUM.

(Os sacristãos tocam os sinos. Eusébio consagra o vinho)

Simimli modo postquam cenatum est accipiens et hunc


praeclarum. Calicem in sanctas ac venerabilis manus suas: item
tibi gratias agens benedixit , deditque discipulis suis dicens:
Accipite et bibite ex eo omnes.
HIC EST ENIM CALIX SANGUINIS MEI, NOVI ET AETERNI
TESTAMENTI: MYSTERIUM FIDEI: QUI PRO VOBIS ET PRO
MULTIS EFFUNDETUR IN REMISSIONEM PECCATTORUM.

(Eusébio levanta o cálice por três vezes)

Eusébio: Vamos rezar a oração que Cristo nos ensinou. Demo-nos as


mãos.

Todos: Pater noster, qui es in caelis. Sanctificetur nomen tuum.


Adveniat regnum tuum. Fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra.
Panem nostrum quotidianum da nobis hodie. Et dimitte nobis
debitas nostra, sicut et nos debitoribus nostris. Et ne nos inducas
in tentacionem, sed libera nos a malo.
Amém.

Eusébio: (Toma um recipiente com água benta e diz): Demo-nos as


mãos. Senhora Cledônia, aceitas Jesus Cristo como teu único Senhor
e Deus?

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Cledônia: Sim.

Eusébio: (Aspergindo água benta sobre Cledônia) Pois eu te batizo


em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. (Tomando uma
hóstia) Este é o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo.

Cledônia: Senhor, eu não sou digna de que entres em minha


morada, mas diz uma só palavra e eu serei salva. (Toma a hóstia e se
ajoelha no oratório)

Eusébio: Senhor Edésio, aceitas Jesus Cristo como teu único Senhor
e Deus?

Edésio: Sim.

Eusébio: Pois eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito


Santo. (Asperge água benta sobre Edésio) Este é o Cordeiro de Deus,
que tira os pecados do mundo. (Toma uma hóstia e a dá a Edésio.
Este se ajoelha no oratório. Depois dá a hóstia sagrada a Cibele e
Justina)

Eusébio: Corpus Christi.

Cibele: Amém.

Justina: Amém.

Eusébio: Hoje o céu rejubila de alegria, pois almas perdidas no


paganismo se converteram à doutrina cristã. Graças à força de nosso
Senhor Jesus Cristo e de seu Espírito Santo, foram purificados do
mal esta casa e tudo nela que não pertencia a Deus.

Edésio: Sim, bispo, hoje estamos purificados de todo o mal que


sentíamos por causa da influência do Maligno. Mas agora que tudo
isso terminou e como prova de minha devoção, vou me desfazer de
todos os meus bens materiais e doá-los aos pobres. Sendo assim, eu,

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minha esposa e minhas duas filhas viveremos no convento de
Antioquia, para servir humildemente aos necessitados e praticar a
caridade cristã!

Cledônia: (A Justina) E quanto à tua pobre mãe, eu imploro o teu


perdão, minha filha, pois foi por tua causa que fomos libertos da
força do Mal.

Justina: Grande é a misericórdia do Senhor, minha mãe. Eu sempre


te perdoei, pois agias influenciada pelas forças ocultas.

(As duas se abraçam e choram. Cibele abraça o pai. Todos os


personagens choram com forte emoção. De repente, ouve-se uma
gargalhada e uma ventania invade misteriosamente o recinto)

Justina: É Cipriano que chega. Bispo Eusébio, unge nossas frondes


com o óleo sagrado.

(Os presentes fazem o sinal da cruz. Eusébio rapidamente unge a


fronde de todos os presentes. Cipriano sobe pelo alçapão
cenográfico)

Justina: O que fazes aqui, filho das Trevas? Quem te deu permissão
para adentrar neste lar?

Cipriano: Que cena mais ridícula, a que eu acabei de presenciar!


Com a minha fava invisível, pude ver um padre imbecil batizando
dois outros imbecis na doutrina Cristã. (Cospe)

Justina: Já que dizes que a doutrina de Jesus é vã, o que queres aqui,
seu imundo?

Cipriano: Se não dobrares a língua, transformarei vós todos em


répteis repugnantes para servirem de almoço aos meus diabinhos
encantados, que tenho presos numa gaiola.

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Eusébio: (A Justina) Cuidado, Justina, já tive provas de que é
verdade o que ele diz fazer.
(A Cipriano) Diga, caro amigo, o que desejas de nós?

Cipriano: Venho da parte de Lúcifer para sacrificar a virgindade de


Justina e Cibele.

Justina: Não conseguirás este intento, filho execrável do Mal, pois


somos devotas do Cristianismo e renunciamos aos prazeres carnais.

Cipriano: (Ergue sua varinha mágica) Então, se não for por bem,
será por mal. (Inicia gestos de magia):

“Canta galem, sechando quinha, para golão traga Matão vais de


pauto a chião a molidão, pexela ispera retrega retragarão, onite
pontual fines”.

“Abracadabra!”

(Cibele, enfeitiçada, joga-se no chão e começa a rastejar como uma


serpente)

Cibele: Eu preciso de um homem! Eu desejo fazer cópula com


vários homens... Aiiiiiii... tenho sede de sexo! (Faz vários gestos
obscenos e vai até o Bispo) Tu já serves para me saciar.

(Eusébio reza em voz baixa e tenta exorcizar Cibele)

Cledônia: Justina, faz alguma coisa! Ele enfeitiçou Cibele!

Justina: (Clamando em voz alta) Em nome de nosso Senhor Jesus


Cristo, eu invoco o nome de São Miguel arcanjo pra nos defender de
Satanás!

(Enquanto isso, Cipriano dá gargalhadas tenebrosas e Cibele tira as


roupas, ficando apenas com suas partes íntimas cobertas e se
esfregando no chão obscenamente)
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Cibele: Eu renuncio a esse Deus que nada pode fazer para saciar a
minha sede de sexo e luxúria!

(Deita-se no chão e rola como cobra. Cledônia e Edésio tentam


impedi-la, mas suas forças não são suficientes para detê-la.
Eusébio segura fortemente Cibele pelas mãos e tenta exorcizá-la com
orações de exorcismos. Cibele se detém por um instante)

Justina: (Ajoelha-se e clama em voz alta) Nosso Senhor Jesus Cristo,


Filho do Deus vivo, ouve a minha oração. Ó puríssimo Espírito de
Jesus, que foi e será sempre o vencedor de todos os seus inimigos e
de todos os seus adversários, os que não te amam e creem em ti.
Jesus Cristo reina. Jesus Cristo impera. Jesus Cristo governa por
todos os séculos dos séculos.
Assim seja!

(Justina continua de joelhos, rezando agora em voz baixa, enquanto


Cibele, enfeitiçada, arrasta-se novamente no chão e diz palavras
obscenas. Eusébio tenta detê-la, mas não consegue. Todos ficam
parados, sem reação, enquanto Cipriano dá gargalhadas tenebrosas)

Justina: (A seus pais, a Eusébio e aos dois sacristãos) Por favor,


ajoelhem-se e rezem comigo a oração de São Miguel arcanjo.

(Justina, Cledônia, Edésio, Eusébio dão-se as mãos e, ajoelhados,


oram com muito fervor):

“São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, sede nosso refúgio


contra a maldade e as ciladas do demônio. Ordene-lhe Deus,
instantaneamente, o pedimos, e vós príncipe da milícia celeste, pela
virtude divina, precipitai no inferno a Satanás e a todos os espíritos
malignos que andam pelo mundo para perder as almas.”

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Cipriano: Trasamalech posturiam falece! Por Belial, Belfagor,
Amasarach...Eu invoco os vossos poderes das trevas para fazer a
vontade de Satã! (Neste instante, sobem pelo alçapão Lúcifer e mais
três demônios que Cipriano acabara de invocar) Sejam bem-vindos,
caros companheiros! Estejam à vontade para o nosso banquete!

Lúcifer: Belfagor, toma conta desta senhora. Tu, Belial, fica com o
Bispo e Edésio, enquanto eu e Amasarach ficamos com os dois
sacristãos.

(Justina prostra-se no chão e clama pelo auxílio de Deus. Cledônia,


Edésio e Eusébio ficam enfeitiçados e rolam no chão como serpentes,
maldizendo o nome de Deus)

Cipriano: É a vitória das trevas sobre a Luz! Viva Satanás e o seus


seguidores! (Ri escabrosamente)

Justina: (Em lágrimas) Senhor, sê por mim neste momento! Eu te


entrego, de corpo e alma, a mim mesma e os que estão aqui
sofrendo. Virgem Sagrada, tem piedade de todos nós!

(Em meio a essa grande confusão, entram pela coxia direita Maria
Santíssima e o arcanjo Miguel. Uma luz dourada e um perfume de
flores invadem a cena)

Justina: Louvada sejas, mãe de Jesus Cristo, que veio nos socorrer!

Virgem Maria: Tem calma, minha filha, o Senhor está conosco!

Lúcifer: Não! Maldita sejas tu entre as mulheres!

Virgem Maria: (Estendendo o braço energicamente) Da ordem de


Deus onipotente eu vos ordeno que vades para o vosso lugar e de lá
nunca mais saiais! Miguel, expulsa-os daqui imediatamente!

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Miguel: Sim, senhora! (Miguel, com sua espada flamejante, vai
derrubando todos os demônios, que vão caindo no alçapão
cenográfico, e, por último, Lúcifer e Cipriano, que balbuciam
algumas palavras demoníacas antes de entrar)

Cipriano: Não vou desistir, suas pérfidas e mundanas. O poder das


trevas há de reinar!

Virgem Maria: Cala-te, filho abominável do Mal. A justiça divina


cairá pesadamente sobre tua face indigna, pois usaste tua
inteligência para ofender violentamente a face de meu filho. Tuas
pesadas culpas serão cobradas pelo Altíssimo e teu arrependimento
será amargo! Vai com teu mestre para as moradas escuras e não
voltes mais a perturbar a vida dessas pessoas inocentes!

Cipriano: Maldita sejas tu entre as mulheres, e saibas que não me


amedrontas com tuas vãs ameaças. Teu filho não passa de um
covarde e sua pusilanimidade causa-me horror entre as entranhas.

Virgem Maria: Teu hórrido orgulho e tua pétrea soberba estão


chegando ao fim.

(Cipriano ainda insiste em ficar, mas é violentamente jogado para


baixo do alçapão pelo Arcanjo Miguel, que o fecha, trancando-o com
um cadeado prateado. Enquanto isso, a Virgem retira o mal dos
presentes com o sinal da cruz e estes caem no chão, prostrados aos
seus pés)

Virgem Maria: (A Justina, que está prostrada, rezando em lágrimas)


Querida Justina, não chores! O mal de Cipriano está para terminar e
serás tu o motivo de sua conversão! Que todos sejam abençoados
pelo poder de meu filho e nunca cessem de lutar pela luz divina dos
anjos e dos arcanjos celestes! (Aos poucos, a Virgem e o Arcanjo
Miguel vão saindo pela coxia direita e uma luz azul celeste toma
conta do palco, com um forte perfume de rosas)

49
Justina: Papai, mamãe, Cibele, Bispo Eusébio, meninos, vocês estão
bem?

Cledônia: Minha filha, és uma santa! Tiveste o poder de trazer a


Mãe de Jesus para nos defender do Mal! (Ajoelha em frente a ela)

Eusébio: Um milagre! Um milagre jamais visto! Bendita és tu,


Justina, que fizeste maravilhas! (Ajoelha-se e beija os pés de Justina)

Edésio: Bendita és tu, que tiveste o poder da cura e da libertação!


Glórias e louvores sejam dados, a todo momento, ao santíssimo
Espírito de Deus, que esteve presente nesta casa. (Ajoelha-se e beija
os pés de Justina. Os sacristãos fazem o mesmo)

Justina: Eu não sou digna de tuas genuflexões (Ajoelha-se) Eis aqui


uma serva humilde e devota, cujo desejo maior é a conversão de
Cipriano, para que chegue ao fim sua atuação diabólica. Mamãe,
corta meu cabelo em sinal de humildade ao meu Deus.

Cibele: Faz isso também comigo.

(Cledônia tira um punhal de dentro de um baú)

Edésio: (Pega um pequeno baú contendo moedas de ouro e o


entrega a Eusébio) Toma, bispo, aqui está tudo o que tenho em
dinheiro. Faz dele benfeitorias aos pobres.

Eusébio: Louvado seja Deus por este dia glorioso!

(No momento em que Cledônia corta o cabelo de suas duas filhas,


Justina e Cibele entoam o Magnificat. Eusébio sai com os sacristãos,
acompanhado de Edésio. A cena escurece)

BLACK OUT

50
Cena 7

Gruta mágica de Cipriano. O feiticeiro está trabalhando em seu


caldeirão quando sua bola de cristal acusa a chegada de alguém.

Cipriano, Aglaide e Cibele

Cipriano: Por Lúcifer! Vejo que o jovem Aglaide se aproxima. (Alto)


Entra, mas não te esqueças de dizer as palavras mágicas.

Aglaide: (Entrando) “Trasamalech fortuna imperat”.

(Ouve-se uma risada tenebrosa. Aglaide se aproxima de Cipriano)

Cipriano: O que desejas?

Aglaide: Senhor Cipriano, vim até aqui para dizer-te que teus
métodos para dobrar Justina aos meus encantos têm sido todos
inúteis. Será que não existe uma magia mais poderosa do que as que
já fizeste?

Cipriano: Sim, existe um recurso, um dos mais infalíveis, que é uma


poção de autoria da minha mui bem amada mestra, a feiticeira
Selene.

Aglaide: Faz tudo o que for necessário, pois eu te recompensarei.

Cipriano: (Mexe seu caldeirão e coloca um pouco da poção num


frasco) Pronto, aqui está! Este elixir será a mágica perfeita para fazer
esta renitente jovem se dobrar aos teus encantos. Faz com que ela
beba amanhã, que é sexta-feira, e, ao soar da meia-noite, profere a
esconjuração seguinte. (Cipriano lê o esconjuro em voz alta):

51
“Vem adiante, ó grande gerador do abismo, e faz tua presença
manifesta. Eu tenho posto meus pensamentos sobre o pináculo de
provas que cresce com a luxúria escolhida nos momentos de
incremento e cresce fervente em grande expansão. Manda diante da
jovem Justina o mensageiro das delícias voluptuosas e faz com que
ela corresponda às perspectivas dos meus negros desejos, que
tomarão, no futuro, forma nos meus atos e em minhas obras. Da
sexta torre de Satã virá um sinal que vinculará com estes sabores e
igualmente moverá o corpo da matéria da minha requisição. Eu
reuni os meus símbolos adiante e preparo meus ornamentos do que é
para ser, e a imagem da minha criação espreita como um dragão
agitado aguardando a sua liberdade. A visão se torna uma
realidade e, através do sacrifício do meu alimento, os ângulos da
primeira dimensão se tornarão a substância do terceiro círculo de
fogo. Sai no vazio da noite e penetra nesta mente, que responderá
com pensamentos que levarão ao caminho do luxurioso abandono.
Meu órgão genital está impelido. A força de penetração de meu
veneno quebrará a santidade desta virgem que se chama Justina, que
é estéril à luxúria; e, assim que as sementes caírem, então os vapores
serão espalhados dento da mente adormecida, paralisando-a até
torná-la impossível de controlar de acordo com seu desejo! Em
nome do Grande Deus Pan, permite que os meus pensamentos
secretos sejam dispostos no movimento da carne que eu desejo!
Shemhamforash! Hail Satã! Minha alma está em chamas e pede
sedenta a sua fenda, que agirá como pólen para este meu corpo
enfurecido pelos desejos ardentes que anseiam por se concretizarem,
e sua mente que não sente luxúria repentinamente vacilará com um
louco impulso. E quando a minha poderosa volúpia se manifestar,
novas perambulações começarão e esta carne que eu desejo virá a
mim. Em nome das grandes prostitutas da Babilônia e de Lilith e de
Hécate, possa ser a minha luxúria consumada! Shemamforash! Hail
Satã! Assim seja!”.

Cipriano: Repete três vezes esta oração e faz com que ela beba
apenas três goles do elixir dissolvido em água. (Cipriano entrega a
Aglaide um pergaminho com a oração que acabara de proferir)

52
Aglaide: Tem certeza de que desta vez funcionará?

Cipriano: Sim. Eu e meu mestre estamos trabalhando arduamente


neste caso e muito em breve essa noviça será completamente tua.

Aglaide: Eu espero que sim (tomando um saco de moedas da


algibeira) Toma isto pelo que já fizeste por mim.

Cipriano: (Tomando o saco voluptuosamente. Morde uma moeda


para se certificar de que é ouro) Muito bem, jovem mancebo, se
continuares a ser generoso comigo, não hás de se arrepender. Juro
por todas as forças infernais que Justina será tua mulher.

Aglaide: Que assim seja. Até mais.

(Aglaide sai e, ao se retirar, ouve uma risada pavorosa na gruta. Cipriano


se senta em uma cadeira e alisa seu gato preto Ferrabrás. Depois de um
breve silêncio, inicia um monólogo)

Cipriano: Agora entendo o motivo por que este jovem mancebo luta
ardentemente pelo amor da bela Justina. Ontem, ao invadir sua casa,
pude contemplar sua beleza e algo de estranho despertou do fundo
de minhas entranhas. Não, não pode ser! Eu devo estar delirando!
Por Lúcifer, isto não pode ser verdade! Maldição, aqueles traços
angelicais e aquelas formas suaves não podem ter vencido meu
coração petrificado pelo ódio. Não, isso só pode ser um devaneio,
um tolo presságio. A sua beleza deve ter confundido os meus
instintos mais baixos e agora não estou sabendo o que digo e o que
eu faço.

(Ouve-se uma voz da entrada da gruta. É Cibele que se aproxima)

Cibele: Isto se chama Amor!

Cipriano: Quem está aí? Quem ousa perturbar o meu sossego?

53
(Lentamente, Cibele entra na gruta, envolta numa túnica branca e
segurando um cajado)

Cipriano: Cibele, o que fazes aqui?

Cibele: Vim até ti para esclarecer-te os muitos equívocos a que te


tens fiado, meu caro irmão Cipriano.

Cipriano: Como te atreves a adentrar na minha gruta sem a minha


permissão, sua reles mortal? Acaso ignoras o meu poder maligno?

Cibele: Não ignoro o teu poder maligno nem tampouco o amor que
Justina despertou em teu coração!

Cipriano: O que quiseste dizer proferindo a palavra “amor”? Lá sou


digno de viver esse preceito?

Cibele: Ora, caro irmão Cipriano. Vejo que aprendeste bem pouco
sobre os verdadeiros princípios da Alquimia.

Cipriano: Eu sou versado na alta magia negra e fui discípulo dos


grandes mestres caldeus da feitiçaria. Estudei profundamente os
manuscritos antigos dos magos do Oriente. Não há nada sobre
ocultismo que eu não saiba e não será uma fedelha como tu que irá
me ensinar! É melhor te retirares de meu recinto negro, antes que eu
e meus demônios percamos a paciência!

Cibele: Sim, foste um aluno exemplar. Tiveste uma mente


auspiciosa e capacidade brilhante. Superaste todos os professores
com tua notável inteligência. Não houve aluno como tu, que
aprendeste tudo de forma tão rápida e assimilaste instantaneamente
os conceitos. Mas falhaste num ponto, e isto, para um mago, é
imperdoável.

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Cipriano: (Dá uma gargalhada longa e sinistra) Diz-me, cara aprendiz
de feiticeira. Estou ansioso por saber: Em que ponto eu, porventura,
falhei?

Cibele: És um mago prodigioso, mas não és capaz de distinguir a


magia que fazes da magia do amor.

Cipriano: Amor? Acaso pensas que sou tocado por este sentimento
humano e inferior?

Cibele: Sim, foste tocado pelo amor que sentes por Justina e agora
tu te tornas escravo dele.

Cipriano: (Ri novamente de forma demorada e sinistra. Recompõe-se e


continua, em tom imperativo) Não podes me convencer desta
blasfêmia. Eu amo a Lúcifer e a todos os demônios que servem a
mim!

Cibele: Mas Lúcifer e os demônios que te servem não foram capazes


de acelerar o teu coração quando estiveste ao lado de Justina,
mesmo que invisível e com a má intenção de encantá-la, nem
quando perdeste noites de sono ao te lembrares do toque suave que
tuas mãos davam em seu rosto angelical.

Cipriano: O que pretendes com tudo isso? Acaso queres me


convencer de que estou amando Justina? Se for isso, diz logo e
retira-te do meu recinto imediatamente!

Cibele: É natural a tua reação acerca do amor e foi por isso que vim
até aqui. Responde-me a uma pergunta, caro irmão: Não tens
sentido teu coração tocado todas as vezes que pensa em minha
irmã?

Cipriano: Algo de estranho se apoderou de mim, é verdade; mas


julgo ser isto efeito de alguma magia que tenho feito para uni-la a
Aglaide.

55
Cibele: É neste ponto que mora o teu equívoco. Essa perturbação
toda que tens sentido é fruto de um amor divino natural dos
homens pelas criaturas humanas. Em suma: Estás amando Justina!

Cipriano: Nenhuma palavra do que dizes é verdade. Tuas


conjecturas são falsas e não sei onde pretendes chegar. Eu sou o
filho bem amado de Lúcifer e entre seus filhos não pode haver amor,
um sentimento piegas, ínfimo e humano.

Cibele: Tens razão. És o filho das Trevas. A tua alma está destinada
ao demônio. Mas o teu coração contradiz veementemente as
invectivas do teu raciocínio. Estás lutando ferozmente para vencer o
teu coração, mas ele tem sido vitorioso em todas as batalhas. Tuas
palavras são inócuas aos teus sentimentos e não queres te
convenceres disso. Tudo isso por quê? (Breve silêncio) Porque por
mais que o Mal atue em tua vida, ainda há uma centelha divina em
tua consciência, que te incomoda e que age como um alerta contra as
iniquidades que já praticaste. Tu, antes de teres entregado tua alma
ao Demônio, pertencias a Deus, pois foi por ele que foste criado.
Não há como fugir desta lei. Não há força que possa superar a do
Criador. Deus omnipotens, Ad Vitam AEternam. Liberta-te da tua
ilusão em servir ao diabo e abraça o divino Cordeiro como seu único
Senhor e Deus verdadeiro.

Cipriano: O quê? Não acredito nas coisas que acabei de ouvir! Fica
sabendo que eu, Cipriano de Antioquia, tenho o coração trancafiado
a todo sentimento que não seja de ódio, vingança e luxúria. O amor
por Justina, que dizes que eu tenho, é um sentimento que nunca
habitará dentro de mim, pois é minha missão perseguir e destruir
todos os inimigos de meu mestre soberano! Justina é apenas mais
uma donzela que me dedico a desvirtuar!

Cibele: Pois muito bem! Vim aqui na intenção de salvar tua alma e
de libertar-te das armadilhas do Maligno, cuja única intenção é se
aproveitar de teu cérebro para aniquilar os filhos de Deus. Acorda

56
logo deste sono negro em que vives. Acorda para o amor de Jesus,
antes que seja tarde demais!

Cipriano: (Irado, se levanta) Já chega de ouvir estas prédicas inúteis.


Se vieste até aqui me convencer de que eu estou errado, perdeste teu
tempo. Sai daqui imediatamente, por bem ou por mal.

Cibele: Estás cego pelo teu orgulho e tua presunção, e não


entendeste nenhuma palavra e nem o que vim trazer a ti para a
libertação de tua alma. É uma pena que tua inteligência esteja sendo
desperdiçada para o Mal e não haja meios de reconheceres isso e
regenerar-te. Jamais conseguirás desvirginar Justina com o teu negro
engenho, pois ela é aliada de Cristo, e o poder de Cristo ninguém
pode superar! Arrepender-te-ás amargamente. Até mais. (Cibele faz
um gesto e desaparece no meio de uma fumaça)

(Longo silêncio. Cipriano anda de um lado para o outro perturbado.


Reflete mais um pouco e diz):

Cipriano: Nunca pensei que um dia eu pudesse ouvir o que acabei


de escutar! Eu? Amando Justina? Isso nunca seria possível... Mas
não posso discordar de uma coisa que ela me disse: Tenho ficado
perturbado quando penso no rosto angelical daquela delicada
donzela. Aquela jovem despertou em mim um estranho sentimento
que não estou sendo capaz de entender. Eu hei de descobrir o
motivo desta sedução, ou não me chamo Cipriano de Antioquia, o
pior feiticeiro que já existiu neste mundo!

Black Out

57
Cena 8

Casa de Cledônia. Uma moça bate à porta. É Lúcifer, transformado


em freira. Geta vai atender.

Justina, Geta, Lúcifer e Cledônia

Geta: Senhora Justina, tem uma freira lá fora querendo falar contigo.

Justina: Ela disse o que queria?

Geta: Disse que é urgente e precisa muito lhe falar.

Justina: Então manda-a entrar, Geta.

(Geta sai e entra acompanhada da freira)

Lúcifer: Bom dia, Irmã Justina.

Justina: Bom dia, Irmã! Não estou me lembrando de ti... Acaso és


uma novata no convento?

Lúcifer: Sim, faz apenas alguns dias que sou interna, mas desde que
entrei no convento não se ouve falar de outra coisa entre as freiras
além de tuas nobres virtudes.

Justina: (Esboça um leve sorriso) Bondade tua, Irmã... Queira


sentar-te, por favor...

Lúcifer: Obrigada.

Justina: Como te chamas?

Lúcifer: Irmã Piedade, ao teu dispor.

Justina: Pois muito bem, Irmã Piedade, que motivo a traz aqui?

58
Lúcifer: Como tu, também sou discípula de Cristo. Quero que me
deixes ficar ao teu lado, na prática da castidade; quero que me
ensines tuas virtudes. Quero ser um exemplo de santidade, assim
como tu és um exemplo de caridade neste mundo. Diz-me, Irmã
Justina, qual é o segredo de vivermos para a vida eterna?

Justina: O segredo, Irmã, é vivermos o preceito de nosso Senhor


Jesus Cristo, que é o de amarmos uns aos outros
incondicionalmente.

Lúcifer: Segundo a tua opinião, a castidade não seria um dogma


equivocado da Igreja, pois o enlace carnal não impede o louvor a
Cristo?

Justina: Creio que não, Irmã. A castidade é uma forma de


mantermos nossa alma pura para melhor cumprirmos os ministérios
de Deus.

Lúcifer: Mas, o nosso Deus não disse: “Crescei-vos e multiplicai-


vos”? Ficando em eterna castidade, não estaremos desobedecendo às
suas leis?

Justina: Este mandamento serve apenas aos homens que não


ingressaram na vida religiosa. A procriação é muito importante, sim,
mas é destinada aos nossos irmãos que não possuem a verdadeira
vocação religiosa.

Lúcifer: Todos nós da cidade de Antioquia sabemos do amor


fervoroso que o jovem Aglaide tem por ti. Não achas que estás
desperdiçando a tua juventude no convento, trancafiada, quando ele
poderia te fazer muito feliz e te dar vários filhos para a tua alegria e
a dele?

Justina: Conforme te disse, Irmã, o único homem que eu amo é Jesus


Cristo. Não posso viver o preceito do amor terreno, pois minha alma
foi entregue a Deus. Mudando de assunto, está na hora de eu rezar
meu rosário. Queres rezar comigo, Irmã?
59
Lúcifer: Não, dispenso esta prática. Vim aqui te convencer do que é
melhor para a tua vida e vejo que perdi o meu tempo! Não passas de
uma tola! Já que preferes ficar internada num convento, fica até
morrer!

Justina: Calma Irmã, não entendo por que minhas explicações te


causaram tanta irritação. Não queres tomar ao menos um chá de
alfazema?

Lúcifer: (Levanta-se irado) Dispenso o teu chá, pois já que vi que és


uma pessoa tola e muito renitente!

Justina: (Levanta-se e pega nas mãos da noviça e faz o sinal da cruz


em sua testa) Então vai em paz e que o Senhor te acompanhe!

Lúcifer: Por que fizeste este sinal execrável em mim? Sua messalina!

Justina: Sei que és Satanás disfarçado novamente, agora de freira.


Portanto, eu te esconjuro da parte de Deus Onipotente para que te
retires desta casa e não voltes mais a tentar os filhos de Deus. (Faz o
sinal da cruz)

Lúcifer: Pois hoje mesmo eu serei vingado da forma mais cruel que
possas imaginar e conseguirei dobrar-te aos prazeres da carne, nem
que seja a última coisa que eu faça neste mundo.

Justina: Vai de retro, Satanás, e nunca mais te apresentes a mim


(mostrando seu crucifixo) Fugat in solum per omnipotens Dei!

Lúcifer: Eu vou, mas me vingarei de ti! (Desaparece no meio de uma


fumaça. Justina se apoia em um móvel e inicia uma oração)

Geta: (Que volta para ver se está tudo bem) A senhora está bem,
senhora Justina? Por onde saiu aquela freira que estava aqui em teu
quarto?

60
Justina: Sim Geta, estou. Esta freira que acabou de entrar era
novamente o diabo disfarçado. Peço-te, Geta, que prestes mais
atenção em quem bater à nossa porta.

Geta: Sim, senhora! (Sai)

Cledônia: (Entrando apavorada) Justina, aconteceu uma coisa


terrível em Antioquia!

Justina: O que foi, minha mãe?

Cledônia: Uma peste misteriosa assolou a cidade ontem à noite e já


há vários mortos. E o pior não sabes: espalhou-se um boato entre as
pessoas de que esta peste é um castigo enviado por Deus por teres
recusado a casar-te com Aglaide, desafiando as leis divinas do
santíssimo himeneu. E a população de Antioquia está à nossa porta,
exigindo o teu himeneu com o jovem Aglaide como forma de
expungir a peste.

Geta: (Voltando desesperada) Senhora! Senhora! Formou-se uma


multidão em redor de nossa casa e querem levar Justina à igreja de
Antioquia para realizar seu himeneu com Aglaide. Eles estão
furiosos e ameaçam invadir nossa casa e matar-nos caso Justina não
se case com ele.

(Ouve-se uma voz de motim)

Justina: Tudo isso é artimanha de Satanás. Foi ele quem disseminou


esta peste na cidade e cumpriu sua vingança, fazendo com que as
pessoas acreditassem que a peste fosse por minha culpa! Grande é a
astúcia do Maligno!

Geta: Minha senhora, age depressa, pois estão tentando arrombar a


porta principal desta casa e capturar-te!

61
Justina: Não te apavores, Geta. O meu Deus é mais poderoso.

(Ajoelha-se no oratório e ora. Geta e Cledônia saem)

Justina: Deus, atendei ao meu pedido, vinde em meu socorro. Vinde


ajudar-me. Confundidos sejam e envergonhados os que buscam a
minha alma.
Voltem atrás e sejam envergonhados os que me desejam o meu mal.
Voltem logo cheios de confusão os que me dizem: Maldita sejas tu.
Regozijem-se e se alegrem em vós os que vos buscam, e os que amam
vossa salvação digam sempre: Engrandecido seja o Senhor.
Vós sois o meu favorecedor e o meu libertador. Senhor Deus, não
vos demoreis.
Glória ao Pai, ao Filho e ao divino Espírito Santo.
Amém.

Geta: (Volta com Cledônia depois de terem verificado se o portão


principal estava protegido) Senhora! És mesmo uma santa! A
multidão enfurecida se acalmou com as exortações de teu pai e se
retirou! Grande é o poder de nosso Senhor Jesus Cristo!

Justina: Mamãe, devemos jejuar constantemente e nos penitenciar,


pois em breve Cipriano passará por uma grande provação e
deveremos prestar-lhe o auxílio necessário!

Cledônia: Farei tudo o que me pedires, minha filha, pois és para


mim uma santa, uma enviada do Senhor.

(Cledônia e Geta saem. Justina se ajoelha em seu oratório e fica


orando. A cena escurece)

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62
Cena 9

Praça pública de Antioquia


Eusébio está pregando aos fiéis

Eusébio, Cipriano e Justina

Eusébio: Queridos irmãos e irmãs, já é chegada a hora de estarmos


reunidos num mesmo Espírito Santo, pois nossa cidade está sendo
alvo de mortes e pestes misteriosas, cujo responsável é o mago
negro Cipriano de Antioquia, que há anos tem realizado feitiços e
prodígios malignos e cuja força está nos vencendo devido à falta de
orações dos fiéis de nossa igreja. Está escrito em Levítico, capítulo
20, versículo 27: “O homem ou a mulher em que houver espírito
pitônico ou de advinho, sejam punidos de morte. Apedrejá-los-ão; o
seu sangue caia sobre eles.”
Portanto, ó povo de Antioquia, é mister e necessário que recorramos
insistentemente aos preceitos de Nosso Senhor Jesus Cristo para nos
defendermos desta corrente maligna sustentada pelo terrível mago
negro que está, aos poucos, vencendo-nos com seus artifícios
diabólicos.
Povo de Antioquia, é mais do que tarde que tomemos consciência de
que a bruxaria é uma forma abominável de servir a Satã e que,
através desta prática, sua força na Terra aumenta cada vez mais.
Não sejamos cúmplices desta atrocidade.

(Surge Cipriano entre a multidão e interrompe a fala de Eusébio)

Cipriano: Quem desta cidade ousaria me desafiar?

(As pessoas, com muito medo, vão se retirando uma a uma e


fazendo o sinal da cruz)

Eusébio: Caro amigo Cipriano. Por já conhecê-lo há muito tempo e


por termos sido companheiros de escola, tomo a liberdade de fazer-
te um pedido: Larga esta vida de corrupção e entrega-te ao poder de
Jesus Cristo, antes que seja tarde demais!
63
Cipriano: (Enérgico) Cala esta boca e nunca mais repitas para mim
este nome, para não revoltares os demônios que andam comigo!

Eusébio: Tua vida inteira foi somente praticar iniquidades e ofensas


ao coração de Jesus. Mas não há ovelha desgarrada que seu pastor
não se preocupe em arrebanhar.

Cipriano: (Cospe no chão) Não me venhas com essas adulações que


de nada me servem para me convenceres que estou errado. Eu já
pertenço, de todas as formas, ao meu amo e mestre Lúcifer e não
será um sacerdote medíocre como tu que me fará mudar de ideia.

Eusébio: Assim sendo, caro amigo Cipriano, não haverá outra saída
para ti senão ficares eternamente queimando no fogo do Inferno!

Cipriano: (Rindo escabrosamente) Como és tolo, Eusébio. O pacto


que fiz com o demônio me permite que eu nunca morra e serei
eterno para terminar a missão maligna que meu amo espera em
mim.

Eusébio: Já que preferes desta maneira, o que posso fazer a não ser
orar pela tua conversão?

Cipriano: Eu jamais hei de reverenciar ao teu Deus, disto podes bem


ter certeza!
E já que estou diante de um clérigo como tu, peço-te, da parte de
meu mestre, que largues este paramento e sirvas também aos
preceitos de Lúcifer!

Eusébio: Querido e estimado amigo Cipriano, não percebeste ainda


como Lúcifer está enredando tua vida e te iludindo com toda essa
bruxaria para levá-lo para o mais profundo dos infernos?
(Aproxima-se de Cipriano) Não vês que toda a ciência maligna que
aprendeste dos caldeus e dos egípcios apenas tem contribuído para
a tua perdição?

64
Tens te tornado um homem temido por causa de teus feitos
diabólicos. Não há quem não se persigne duas ou três vezes quando
o teu nome é pronunciado.
Não vês, caro amigo Cipriano, que te tornaste uma pessoa diabólica,
destruidora de lares e de felicidades alheias?
De quantas donzelas já não tiraste a virgindade apenas por puro
prazer e deleite de tua lascívia?
Quantas pessoas não tiveste poder de aniquilar com tua magia
negra?
(Pausa) E para que tudo isso? De que lhe aproveita ver e fazer mal
aos teus irmãos enquanto tu, com tua espantosa inteligência,
poderias ajudar as pessoas na prática da caridade?
Desvanece desta tua doutrina maligna e abraça o Deus Todo-
Poderoso que, com sua infinita misericórdia, te abraçará feliz por ter
resgatado a ovelha perdida!

Cipriano: O Deus que professas nada mais é do que um Deus


covarde e sem energia, uma vez que para tudo pede o perdão! Não
tenho identificação com esse tipo de doutrina, pois, para mim ela só
ensina os homens a serem fracos e covardes, enquanto meu mestre
me ensina a punir quem o desafia!

Eusébio: Tuas palavras são errôneas e equivocadas, amigo Cipriano.


Tu também és um filho de Deus na Terra, e o diabo conseguiu iludi-
lo ao ponto de te considerares superior até mesmo àquele que te
criou e te deu a vida!

Cipriano: Já chega desta conversa infrutífera! Vim aqui para realizar


um intento. E quero que me ajude.

Eusébio: Se estás pensando que serei teu cúmplice em teus


trabalhos, perdes teu tempo, caro amigo, pois é por demais exagero
de tua confiança acreditar que eu possa ser teu discípulo.

Cipriano: Ordeno que cumpras o que te peço, senão te haverás


comigo!

65
Eusébio: Não me ameaces, Cipriano, pois não tenho medo de ti.

Cipriano: Não é o que os teus olhos e o tremor de tuas mãos


acusam. Quero que me arrumes um pouco do cabelo de Justina e sei
que podes fazer isso muito facilmente.

Eusébio: Por misericórdia, Cipriano! Até quando serás escravo do


mal? Renuncia de uma vez por todas ao reino das Trevas!

Cipriano: Acho que não entendeste direito a minha ordem.

Eusébio: Entendi sim, caro Cipriano. Tua vontade é enfeitiçar


Justina para deleite do jovem Aglaide.

Cipriano: Se não fizeres aquilo que te peço, farei recair sobre ti uma
doença.

Eusébio: Isso é mais que uma heresia. Querer que eu renuncie aos
meus votos religiosos para atender às tuas investidas infernais?

Cipriano: Vou contar até cinco para esperar uma aquiescência de


tua parte.

Eusébio: (Ajoelha-se e ora) Ó divino mestre Jesus Cristo! Tem


piedade de mim neste momento! Protege-me contra este terrível
feiticeiro! Ora pro nobis, sancta mater Dei!

Cipriano: (Iniciando um gestual diabólico) “Per mortem hagios


forcem tibi nunquam permanentem. De reles sperat vulgus
demonium imperat!”

(Eusébio, ajoelhado, continua rezando e um grito tenebroso invade a


cena. Cipriano desce pelo alçapão cenográfico. A cena escurece por
alguns minutos e, quando volta a acender, Eusébio aparece com
manchas vermelhas por todo o corpo)

66
Eusébio: (Percebendo que está enfeitiçado) Ó, meu Deus! Que triste
destino tem este infeliz! Que mácula irreparável fizera diante de
Deus! Infeliz foi o dia em que nos tornamos conhecidos! Infeliz foi o
dia em que esta criatura nasceu, para destruir a obra do Criador e
espalhar a desgraça por intermédio de Satã!
(Rasga as vestes e se prostra no chão)

Eusébio: De nada valemos nesta terra. Ó Deus, ouve a minha prece!


Digna-te a libertar-me do mal! (Chora copiosamente)

(Entra Justina pela direita e lentamente se aproxima de Eusébio)

Eusébio: (Percebendo Justina) Vê, Justina, o que ele fez comigo.


Justina: Não te preocupes. O mal de Cipriano está prestes a terminar
e terás tratamento para isso. Vem. (Eusébio se levanta
vagarosamente e sai de cena acompanhado de Justina)

Black Out

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67
Cena 10

Gruta de Cipriano

Aglaide, Cipriano, Lúcifer, Demônios, Justina e Cibele

Aglaide: Senhor Mago Cipriano, o senhor fracassou de novo! Fiz


tudo conforme pediste. Fiz sacrifícios a Lúcifer e ele foi ter com
Justina. Fiz com que ela tomasse o tal elixir, mas de nada adiantou,
pois continuou invicta em suas orações e jejuns. Maldição! Que
diabo de magia é essa, senhor Cipriano, que não é capaz de dobrar à
lascívia uma jovem e simples donzela?

Cipriano: Tens toda razão, jovem Aglaide. Existe algum mistério


acerca deste fracasso que hei de desvendar agora mesmo. (Cipriano
risca o círculo mágico e clama por Lúcifer) Ó Príncipe das trevas,
esteja já aqui sob a força do pacto que fiz contigo.

(Forte ventania. Satanás surge acompanhado de três demônios.


Aglaide, apavorado, foge da gruta)

Lúcifer: O que desejas?

Cipriano: Chamei-te para dizer-te uma coisa. És um impostor, pois


não podes resolver um simples caso de amor. És um falso,
mentiroso, incapaz de cumprir as promessas que fizeste a mim.
Dizei-me: Que armas usa esta moça para estar tão bem defendida
contra os teus poderes?

Lúcifer: Só te revelarei se me prometeres ser sempre meu servo e


que jamais me abandonarás nem me trocarás por outro senhor.

Cipriano: Muito bem, eu juro!

68
Lúcifer: Ela usa o sinal da cruz sagrada do Filho de Deus e suas
orações me têm impedido de penetrar em sua alma. Eu, com minha
astúcia, consegui expulsar o homem do Paraíso e fiz Caim matar seu
irmão, Abel. Este Jesus aclamado foi morto por seus patrícios, pois
eu assoprei o desejo do mal em seus ouvidos; consigo enlouquecer
toda a humanidade, desde que ela existe, com tantas habilidades,
mas não estou sendo capaz de resolver o caso de amor de Aglaide
por causa da fé imbatível desta moça a que chamas Justina.

Cipriano: Pérfido, já vejo a tua fraqueza, quando não podes vencer


uma delicada donzela. Tu, que tanto te gabas do teu poder de fazer
obras maravilhosas e prodigiosas, confessas agora que existe esta
mudança e que aquela virgem consegue se defender e deixar inúteis
os teus esforços?

Lúcifer: Não sou um impostor. Na realidade, Cristo tem mais poder


que eu e mais que o resto do mundo; tudo ele pode, e nós não o
podemos vencer. Ele, com seus enviados de Luz, liberta a quem
escravizamos no Inferno e, quando tentamos trazer para o nosso
lado alguém que tenha fé nele, este estará sempre a salvo.

Cipriano: Pois bem! Se é assim, eu sou bem louco de me entregar


aos serviços de um Senhor mais poderoso que tu, vã criatura. Se o
sinal da cruz em que morreu o Deus dos cristãos te faz fugir, não
quero mais servir-me das tuas atenções: renuncio inteiramente a
todos os teus sortilégios, esperando a bondade do Deus que protege
Justina para que me aceite como seu servo.

Lúcifer: Não podes mais afastar-te de mim, tua alma me pertence;


juraste que jamais te afastarias das trevas e de mim, que sou teu rei.
Terás que me servir e ser fiel a mim até a tua morte.

Cipriano: Vá de retro, Satanás, eu te renego e desprezo teu falso


poder e as tuas ciladas sem sucesso. Prefiro ter ao meu lado o sinal
da cruz, que me defenderá de ti e de toda a tua comitiva; vou buscar
o sinal de Cristo, quero que ele me proteja de tuas investidas.

69
(Cipriano se ajoelha) Estou desamparado, Jesus... lança-me um olhar
nesta escuridão, meu Pai, e, assim como salvaste os pecadores com o
seu sangue vertido na cruz, assim também, Senhor, eu te reverencio
para me livrares das garras do teu inimigo!
Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere nobis.

(Os três demônios vão se aproximando de Cipriano e o vão levando


para o alçapão cenográfico. Ouvem-se gritos e gemidos de
fantasmas, reboar de correntes, gritos de horror, forte ventania.
Cena com efeitos especiais)

Cipriano: Senhor, Senhor... tem misericórdia! Não deixes levarem-


me daqui, eu te peço pelo amor de Deus!

Lúcifer: (Mostra o pergaminho em que Cipriano fizera pacto) Aqui


está o documento selado com teu próprio sangue, que prova que
não estou dizendo nenhuma mentira quando digo que me
pertences.

(Durante esse diálogo, a cena é invadida por barulhos de almas do


outro mundo e forte ventania)

Cipriano: (Que já está entrando no buraco, carregado pelos


demônios) Misericórdia, Jesus! Misericórdia desta pobre alma!

(Entram Justina e Cibele com um grande crucifixo de madeira nas


mãos)

Justina: Em nome do precioso sangue de Jesus eu te esconjuro,


Satanás, que deixes esta alma livre para seguir seu caminho em paz!

Cipriano: “Eloi, Eloi, Yaná Sabactami?”

(Os diabos tentam reter Cipriano, mas ele os detém por um instante)

Lúcifer: Como ousas repetir as últimas palavras de meu inimigo


diante de mim?
70
(Lúcifer e os outros demônios não suportam a força destas palavras,
soltam Cipriano e começam a se contorcer. Cipriano foge e vai até
Cibele e Justina)

Lúcifer: Levarei todos vocês para o meu reino infernal. (Levanta os


braços): “Zi dingir Kia Kampa Marutukku Barashakushu Baalduru.
Tiamat Lugg Aldimeranka Marduk. Basmakim Kurios In Lamed,
Sekmet In Auspurium”. (Um forte trovão ecoa dentro da gruta de
Cipriano)

Justina: (Que estava ajoelhada, rezando, levanta-se e começa a ficar


fora de si) Ai, onde está o jovem Aglaide para desfrutar deste corpo
que guardei inutilmente para Jesus Cristo? Eu quero ser possuída
por ele ou até mesmo por ti, Satanás, pois minha sede de sexo é
incontrolável e insaciável!

(Lúcifer se aproxima dela e vai tirando a roupa de Justina até deixá-


la seminua)

Lúcifer: Vem que eu quero te mostrar tudo aquilo a que renunciaste


inutilmente. (Agarra Justina e lhe dá um beijo na boca. Os dois
fazem menção de sexo quando Cibele joga água benta nas costas do
diabo e este, ferozmente, joga Justina a um canto. Cipriano a acolhe,
cobrindo seu corpo com um pano. Justina volta a si)

Lúcifer: Aiiiiiiiiiii! Sua maldita! Vou transformar-te em pó.

(Lúcifer inicia outra esconjuração. Justina, que voltara a si, dá as


mãos a Cipriano e Cibele. Enquanto os três rezam, o diabo e seus
companheiros fazem as suas esconjurações infernais. Grande
barulho de almas de outro mundo. Iluminação e sonoplastia de
tempestade. Forte ventania)

Justina: Vamos rezar a oração do exorcismo.

71
Os três:

“Praecipitur in nomine Jesus, ut desinat nocere aegroto, staim cesse


delirium et illuo ordinare discurrat. Si cadat ut mortuus, et sine
mora surget ad praeceptu exorcite factu in nomine Jesus. Si aliqua
parte corporis si dolor vel turnor, at ad signo Crucis, vel imposito
praecepto in Nomine Jesus. Quando sacramenta. Reliquias, et res
sase praetiticia dure.
Quando imaginationi se presentate res inhonestae contra Imagines
Christi, et Sanctorum, et si endem tempre sentiant in capite, ut
plumbum, ut acquam frigidam vel ferrum ignitem et hoc fugit ad
signum Crucis vel invocato Nomine Jesus. Quando sacramenta,
reliquias et res sacros odit, quando nulla praecendente tribulatione
desderat se dilacerat.
Quando subito patente lumen aufertur et subito restitur, quando
diurno tempore nihil vidit et nocturno bene vidit sine luce lugit
epistolam; si subito siat surdus, te postae bene vidit et sine luce
lugit epistolam; si subito siat surdus, te postea bene audiat, non
sollum materialia sed spiritualis”.

(Lúcifer e seus companheiros iniciam uma dança satânica e tentam


ser mais fortes que o exorcismo de Justina, Cibele e Cipriano,
dizendo palavras ininteligíveis. Justina, Cibele e Cipriano
continuam):

“Si perseptem vel novem dies nihil, vel parum comedens tortis est
pinguis sicuto antea. Si loquitur de Mysteris ultra capacitatem
quando non custat de illus sancitate. Quando ventus vehemens
discurrit per totum corpus ad mudum formicarum; quando elevatur
corpus contra volutatem patientes non aprent a quo levetur
clamores, scissio tiumtes arrotationes dentium, quando patiens non
est sltultus; vel quando homo natura debilis com potest teneri a
multis. Quando habet linguam tumidam et nigram, quando guttur
istatur, quando audiuntur. Quando guttur instatur, quando
audiuntur rigitus ovium latratus, canus, porcorum grunitus, et
similum. Si varie pariter naturam vident, et audiunt, si homines

72
maximo odio perseuntum; si precipites se exponunt si oculus
horribiles, habent remanent sensibiles destitui.
Quando corpus tali pondere assicitur ut a multis hominibus
elevaret non benedicit quando ab Eclesia fugit et acquam
benedictam non consentit; quando iratos se ostendunt contra
ministros superpotentes . Reliquas capit et occulte. Quando verba
sacra nolunt proferre, vel si proferant, illa corrumpunt et
labiacientes sudent proferre. Cum superposita capiti manu, sacra ad
lectorem Evangeliorum conturbatur agrotus, cum plusquam
sollitum palpiverit sensus occupantur gattae sudoris destuunt
anvietates sentit stridores usque ad Caelum mittit ser postenit vel
simila facit”.

Justina: Amém.

Cipriano: Amém.

Cibele: Amém.

(Lúcifer vai acabando de destruir o que vê pela frente, falando


palavras ininteligíveis. Depois de se debater, cai no alçapão aberto
da gruta, seguido dos três demônios, que entram e fecham o buraco.
Forte ventania e gemidos de alma de outro mundo na cena. Depois,
a gruta fica num absoluto silêncio. Cipriano, Justina e Cibele se
abraçam por um bom tempo. Cipriano chora copiosamente e Justina
o consola)

Justina: Acalma-te, Cipriano, vencemos o demônio. A força do Bem


foi maior. Agora tua vida deverá ser de penitência e caridade aos
pobres.

Cipriano: Ó, santa Justina, tu me salvaste das garras de Satanás.


Louvado seja Deus, que te colocou na minha vida! (Beija os pés de
Justina) Que Deus te recompense e que tua alma seja levada aos
Céus.

73
Justina: Não me agradeças, Cipriano. Sou uma enviada de Cristo na
tua vida. Agora vem comigo, pois o bispo Eusébio está te esperando
para te batizar na igreja de Antioquia. E deverás começar uma vida
nova. Vem, por favor, acompanha-nos.

(Cipriano dá as mãos para Justina e Cibele e os três saem)

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74
Cena 11

Igreja de Antioquia. O bispo Eusébio prepara o batismo de


Cipriano e de Aglaide. Cipriano está com a cabeça raspada e usa
uma túnica branca. Há vários figurantes em cena.

Eusébio, Ergamastro, Justina, Cipriano, Edésio, Cledônia, Cibele,


Aglaide, Geta e uma mulher.

Eusébio: Caros irmãos e irmãs. Hoje é um dia de grande festa em


nossa cidade, pois celebraremos o batismo de Cipriano e do jovem
Aglaide. Com este batismo, celebramos também a vitória destas três
criaturas: Cipriano, Justina e Cibele, que venceram o Maligno pela
força do sangue de Jesus Cristo.
Cipriano, que durante trinta anos, dedicou-se ao serviço de Satanás,
agora está perante Jesus Cristo para mudar sua vida e glorificar seus
atos na caridade cristã.
Cipriano, que praticou todos os crimes e heresias possíveis, agora se
mostra humilde e contrito, disposto a resgatar seus delitos na
prática da caridade e nos preceitos cristãos.
Comemoramos também a vinda do jovem Aglaide para o seio de
nossa igreja cristã, pois ele foi movido por uma ardente volúpia pela
jovem Justina e esta, por tê-lo recusado como marido, sofreu a
terrível perseguição dos seres das Trevas, manipulados pelas mãos
de Cipriano, cumpridor da vontade de Aglaide.
Hoje o céu comemora a vitória de mais duas ovelhas resgatadas no
rebanho de Deus. Quanto é importante este exemplo de Cipriano e
de Aglaide para as gerações futuras, que verão neles a prova do
amor divino sobre qualquer criatura vivente nesta Terra, seja ela
criminosa ou não!

Ergamastro: Caro irmão Eusébio, este sacramento não poderá ser


dado a um feiticeiro negro que, durante anos, praticou inúmeras
atrocidades e delinquências.

75
Eusébio: Não sejas sectário, bispo Ergamastro, pois Jesus não
condena os pecadores. Ele mesmo disse: “Bem aventurados os
pobres de espírito, pois deles é o reino dos Céus.”

Cipriano: (Tira de dentro de um grande saco todos os seus


manuscritos e livros de magia negra) Para provar que não sirvo
mais ao diabo, hei de lançar todos os meus trinta anos de estudos e
anotações no fogo desta lareira. E para expungir minha antiga
soberba, imploro-te, bispo Ergamastro, que me dês a tarefa de
humilde varredor de igreja, ofício este que supera o meu
merecimento.

Ergamastro: Essa tua atitude não neutraliza tua infinita maldade e


não me convence de que não és mais o bruxo que praticou durante
toda a vida as mais horríveis feitiçarias. Caro Eusébio, como insistes
em batizá-lo, deverei levar este fato ao conhecimento do Pontífice de
Roma, que saberá tomar as devidas providências. Com licença. (Sai)

Justina: Não dês importância a este padre ranzinza. Continua,


Eusébio, com o ritual do Santo Batismo.

Eusébio: Aproximai-vos, caros Cipriano e Aglaide. Em nome da


Santa Madre Igreja, eu vos concedo o sacramento do batismo para a
purificação dos vossos pecados e para uma nova vida que se inicia a
partir de hoje. (Tomando a água batismal e jogando na cabeça de
Cipriano e de Aglaide) Eu vos batizo em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo.

(Todos fazem um minuto de silêncio)

Cipriano: Hoje meu coração está em júbilo e minha alma exulta de


alegria, pois sinto o quanto Deus me ama e sempre esteve ao meu
lado. Estive dormindo num sono muito profundo e acordei porque o
Senhor me sustentou. Eu vi cantar no coro desta igreja os louvores
de Deus e terminar cada verso dos salmos com a palavra Aleluiah,
dita com tão suave atenção e tão suave harmonia que me sentia

76
entre os anjos celestes. Grande é o poder de Deus. Que seu nome
seja reverenciado pelos séculos sem fim.

Justina: Que tua conversão seja exemplo para as gerações futuras e


teu passado seja visto como um alerta contra a arte demoníaca!

Cipriano: Estejas certa de que, a partir de hoje, minha vida não terá
outra função a não ser servir a Deus e aos meus semelhantes. E tudo
isso devo ao teu zelo e ao de tua irmã Cibele, que fizeram todo tipo
de sacrifício para poderdes presenciar esta cena de hoje, em que os
anjos do Céu se regozijam junto ao Altíssimo.

Aglaide: Também quero implorar de ti Justina, o teu perdão por eu


ter insistido que fosses minha esposa, pois não havia enxergado a
alma tão pura e sem mácula que reside em ti. Este amor que sinto
por ti eu hei de guardar comigo por toda a eternidade.

Justina: Não te preocupes Aglaide, já estás perdoado. (Aglaide beija


as mãos de Justina)

Eusébio: Que esta graça seja confirmada e que Deus nos abençõe. In
nomine Patris et Filii et Spirictu Sancti.

Todos: Amém.

(Entra uma mulher maltrapilha segurando uma criança doente no


colo)

Mulher: Bispo Eusébio, socorre-me, pelo amor de Deus! (Cai


deitada, em prantos, enquanto Justina retém a criança em seu colo)

Eusébio: O que foi mulher? Diz, qual é o mal que te aflige?

77
Mulher: Meu filho foi acometido de uma doença incurável e há dias
que não come e não bebe. Sou muito pobre e não tenho dinheiro
para pagar os médicos. Agora há pouco teve dificuldade para
respirar e pensei que já estivesse morto, pois perdera o fôlego. Não
tenho quem me ajude, estou desesperada. (Cai em lágrimas. Eusébio
a ampara)

Cipriano: Justina, dá-me cá esta criança.

(Justina dá a criança a Cipriano)

Cipriano: (Ajoelha-se e ergue a criança ao alto, iniciando uma


oração)

“Pelo sangue vertido na cruz


Pelas sete chagas de Cristo ressuscitado
Pelo martírio dos doze apóstolos
Seja Deus teu poder válido
E salve a alma deste condenado”.

(Neste momento, a criança volta a respirar sem dificuldade e começa


a conversar com sua mãe)

Mulher: Um milagre! Um milagre! O Senhor salvou o meu filho que


estava morrendo. Bendito és tu entre os homens! E que teu nome
seja louvado! (Ajoelha-se e beija os pés de Cipriano)

Cipriano: Mulher, não me exaltes nem tampouco me confundas!


Sou apenas um instrumento do poder do Espírito Santo, que agora
reina absoluto na minha vida. Toma teu filho e não contes isso a
ninguém, por favor!

Justina: Cipriano, estou tão feliz de ver que agora estás usando o
poder que tinhas para curar os enfermos. Salve este dia feliz!
Bendito seja Jesus Cristo, que operou um milagre através das mãos
de Cipriano de Antioquia!

78
Mulher: (A Cipriano) Obrigada mais uma vez! E que Deus te
recompense!

Cipriano: Agradece ao Deus dos exércitos, cujo poder é infinito e


consola as almas aflitas. Vai em paz e que o Senhor te acompanhe.

(Mulher beija a mão de Cipriano e sai)

Eusébio: (Emocionado) Este dia ficará para sempre gravado em


nosso coração, pois nossa alma foi reconfortada com a forte presença
do divino Espírito Santo.

(Cledônia, Edésio, Geta e os outros personagens saem da cena pouco


a pouco e Cipriano fica prostrado ao chão, em silêncio, em atitude
de oração. Vagarosamente a luz do palco se apaga)

Black Out

79
Segundo

Ato

80
Cena 1

Palácio do Imperador Diocleciano, em Nicomédia. O Imperador


está em seu trono real quando surge o seu conselheiro,
acompanhado de Eutolmo, juiz da Fenícia.

Diocleciano, Eutolmo, Conselheiro e Atanásio.

Conselheiro: Majestade, trago perante vós Eutolmo, o juiz da


Fenícia, para vos dar declaração de fatos estranhos que vêm
acontecendo em vosso reino.

Diocleciano: Pois não. Deixa Eutolmo falar, conselheiro.

Eutolmo: Vossa majestade já deve ter ouvido falar em Cipriano de


Antioquia?

Diocleciano: Sim, o célebre feiticeiro. O que tem ele?

Eutolmo: Comenta-se que ele abandonou os artifícios mágicos e


agora se converteu ao Cristianismo.

Diocleciano: Hum... Interessante. Prossegue.

Eutolmo: Sua fama de feiticeiro se espalhou pelos quatro cantos de


vosso Império, mas agora sua fama tem sido a de fazer milagres e
curar os doentes; ele, uma freira de nome Justina e a irmã da freira
de nome Cibele que também é cúmplice. Os três têm arrebanhado
muitas pessoas para a nova religião através de suas curas e milagres
e a fama deles tem sido tal que, se vossa majestade me permitir
declarar, tem superado a estima até mesmo de vós, que sois o
Imperador de Roma e do mundo.

Diocleciano: Que tipo de milagres eles vêm realizando?

81
Eutolmo: Eles têm feito os coxos e aleijados andarem, os leprosos se
curam com a imposição de suas mãos, os cegos voltam a enxergar e
os surdos voltam a ouvir.
Eles atendem centenas de pessoas todos os dias na igreja de
Antioquia e estão sendo aclamados pelo povo como santos enviados
de Deus! Creio que se, vossa majestade não tomar uma providência,
logo superarão a vossa estima de Imperador.

Atanásio: Com licença, majestade, mas não posso deixar de falar


uma coisa. Cipriano está fingindo que se converteu para conquistar
a simpatia dos vossos súditos e, dessa forma, destronar vossa
majestade. Ele enfeitiçou a jovem Justina e sua irmã Cibele para
segui-lo em seu intento, pois pactuou com Satã e tudo isso não passa
de um plano para derrotá-lo!

Diocleciano: Isso nunca! Vou ensinar-lhes como se deve respeitar


uma autoridade como a minha. Eutolmo, quero que tragas à minha
presença esses três desafiadores da lei, o mais depressa possível!

Eutolmo: Sim, majestade! Eu os trarei o mais depressa possível!


Com vossa licença. (Sai acompanhado de Atanásio)

Diocleciano: (Só) Que prepotência desses três curandeiros! Três


religiosos quererem superar o meu poder imperial! Mas aprenderão
a me respeitar!

Black Out

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82
Cena 2

Cipriano está caminhando sozinho numa floresta em penitência e


jejum

Cipriano, Maria, Giberta, Adastreia, Lúcifer e Cibele

Cipriano: Por quantas vezes, Senhor eu hei de te pedir misericórdia


por meus pecados, que me atormentam dia e noite? A tua
misericórdia seja sobre mim, sobre este velho farrapo ambulante,
cujo único desejo é o de louvar e reverenciar o teu preciosíssimo
sangue derramado na cruz para a salvação da humanidade. Sou um
servo teu, meu Senhor, e por quantas vezes eu abrir a boca, sete
palavras serão dignas de teu louvor. Virgem Maria, excelsa mãe do
redentor, que durante muito tempo sustentou minha alma perdida
na escuridão, mil vezes eu bendigo o teu nome; tua bem-
aventurança seja sobre mim e sobre todos os pecadores deste
mundo.
A minha alma rejubila de alegria quando, todos os dias, eu recebo a
hóstia sagrada que me purifica e rejuvenesce o meu espírito. Ó
virgem dos lábios sagrados, Mãe Puríssima, Mãe Castíssima, Mãe de
Todos os seres viventes na Terra, sê sempre comigo e livra-me das
armadilhas do astuto príncipe dos demônios. Ó, Senhor, tua
presença é cada vez mais forte para mim e, neste andar solitário, eu
sinto a tua luz cheia de glória e resplendor, que me ilumina e me
sustenta. Tua luz gloriosa faz curar as feridas espirituais que causei
na minha alma durante o tempo em que estive cego e não podia
contemplar a tua Magnitude. Agora eu recebo com humildade as
tuas emanações crísticas e posso viver confiante no teu Amor por
todos nós. Senhor, a cada passo que dou, elevo minha alma à tua
eterna morada espiritual, onde existem a glória e o esplendor do teu
reino. “Per sanctus corpus, et sia purificatur per omnibus, et jacta
per semper in Gloriam tuam.” (Prostra-se ao chão e permanece
orando por alguns segundos. De repente, ouvem-se vozes de
mulheres)

83
Vozes: Cipriano, Cipriano, ajuda-nos, por favor!

Cipriano: (Levanta-se) Quem sois vós que inquiris sobre meu nome?

Vozes: Somos servas de Lúcifer e não conseguimos escapar da


prisão onde nos encontramos. Sê nosso redentor, suplicamos-te por
misericórdia!

Cipriano: Pois pelo sangue e pela carne de Jesus Crucificado,


ordeno que apareçais para mim.

(Sobem pelo alçapão cenográfico três mulheres maltrapilhas e


acorrentadas pelas mãos)

Cipriano: Quem sois vós?

Maria: Sou Maria, esta é minha filha Giberta e esta é minha irmã
Adastreia. Antes de morrer, fomos bruxas e pactuamos com Lúcifer,
ao qual servimos durante muito tempo para realizar os prodígios da
magia negra. Agora que morremos, fomos levadas para o inferno e
somos escravas dele. Ele nos submete a terríveis torturas na quarta
vala do oitavo círculo do inferno, onde estão aprisionados os
adivinhos e feiticeiros. Vivemos no suplício eterno e, ao
percebermos que te afastavas da cidade, viemos até ti para pedir
socorro.

Giberta: Estamos muito arrependidas das atrocidades que


cometemos, mas há muito tempo que não vemos a luz e estamos
desesperadas. O ar que respiramos é denso como o betume e fétido
como o pântano. Lúcifer tem nos castigado muito e nossas súplicas
têm sido inúteis aos ouvidos do Salvador.

Adastreia: Liberta-nos, ó grande sábio de Antioquia, pois não há


ninguém melhor do que tu neste mundo que possa nos ajudar, tu
que és o detentor dos segredos ocultos. Queremos ser libertas do
diabo como tu és agora.
84
Cipriano: Compreendo os vossos pesares, pois sei muito bem a que
tipo de escravidão o Demônio nos sujeita. Pois muito bem, hoje
mesmo vós sereis libertas deste anticristo! (Cipriano se ajoelha no
chão) “Eu, Cipriano, servo de Deus, a quem eu amo de todo o meu
coração, sinto-me pesaroso por não tê-lo amado desde o dia em que
nasci. Levanta-te, ó Lúcifer, lá desses infernos, vem à minha
presença, traidor e falso deus a quem eu amava por ignorância. Mas
agora que estou desenganado, que o Deus a quem eu adoro é o Deus
verdadeiro, poderoso e cheio de bondade, por ele eu te obrigo,
Lúcifer, que me apareças sob a pena de obediência; e, caso não
queiras me obedecer, serás castigado mil vezes mais do que
tenciono. Aparece prontamente, Lúcifer, que te obrigo da parte de
Deus onipotente, de Maria santíssima, do Padre Eterno, eu te
esconjuro pela força do céu e da parte de Deus, que está nas alturas
com os braços abertos, prontos a receber aqueles seus filhos que
deixaram de adorar os ídolos pagãos, a quem eu, Cipriano, amei
com forte intensidade durante trinta anos de minha existência.
Porém, agora, com a ajuda de Jesus Cristo, eu deixo com dignidade
as forças ocultas do inferno e venero o Deus benevolente que agora
se torna meu Senhor. Agora eu sou pactuado com Jesus Cristo e
meus laços de amor se tornam poderosos a ponto de subjugarem
qualquer entidade que não seja do reino dos Céus. É por meio deste
novo pacto que eu te cito e te obrigo, Lúcifer, que me apareças
prontamente. Abram-se as portas do inferno. Vem, Satanás, à minha
presença. Vem da parte do Oriente, em figura de criatura humana.
Eu que vivo e sinto a glória de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito
Santo, e, no poder da Virgem Santíssima e de todos os anjos celestes.
Que o poder do verbo encarnado se manifeste neste exato momento
e me conceda a graça espiritual de fazê-lo humilhar-se perante a
minha presença, sem estrépito nem mau cheiro. Sejam já abertas as
portas do inferno, assim como se abriram as portas do cárcere onde
estavam presos os apóstolos, quando lhes apareceu um anjo vindo
do céu e os libertou, conforme lhe ordenara Deus.
Jesus Cristo, eu te peço, na tua autoridade de Senhor único do
universo, que tragas o príncipe dos demônios à minha presença sem
que isso cause prejuízo ao meu corpo e à minha alma. Aparece,
Satanás, prontamente à minha pessoa, pelo poder das santas
85
palavras de Cristo e de seu sangue derramado na cruz. Por tudo isso
é que a minha vontade seja feita e sejas obrigado sem blasfemar
contra a autoridade divina. Em nome de Jesus, Maria e José, em
nome das onze virgens e dos mártires da fé, em nome de Santo
André, São Pedro, São Marcos, São João, São Felipe, São
Bartolomeu, São Judas Tadeu, por todos os que professam a justiça
divina, pelo poder de Davi, pelos mistérios de Salomão e pelas
lágrimas de sangue derramadas pela imaculada Virgem, eu te
invoco agora, sem apelação nem agravo, e te obrigo pelas quatro
colunas do céu, pelas setenta e duas línguas que estão espalhadas
pelo mundo. Seja feita a minha vontade. Assim seja!

(Neste momento, Lúcifer sobe pelo alçapão cenográfico)

Lúcifer: O que queres de mim?

Cipriano: Ordeno que libertes a alma destas três mulheres, que,


como eu, foram iludidas pelos teus sortilégios.

Lúcifer: Elas pactuaram comigo e serão minhas eternas escravas.

Cipriano: Tu bem sabes que, depois de minha conversão ao


Cristianismo, Deus Todo-Poderoso me imbuiu de um poder de cura
e de libertação do mal. Portanto, anjo decaído, se não me obedeceres
agora, eu te açoitarei de forma a nunca mais perseguires nem
seduzires as almas mortais.

Lúcifer: Todos que pactuaram comigo são meus escravos no


Inferno, exceto tu, que, por uma virtude misteriosa, te salvastes de
minhas garras.

Cipriano: Ordeno que libertes estas três condenadas!

Lúcifer: Assim jamais o farei.

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Cipriano: Pois se me desobedeces, serás castigado! (Cipriano se
ajoelha e levanta as mãos para o céu) “Fidelium Deus, Omnium
Conditor et Redemptor: animabus famulorum famularumque
tuarum remissionem cunctorum; ut indulgentiam, quam semper
optaverunt, piis suplicationibus consequantur: Qui vivis in
spirictuo sanctuo tuo!”

Lúcifer: Maldição! Por que assim me persegues, seu traidor, de cuja


vida trinta anos foram dedicados a mim?

(Neste momento, as três bruxas são libertas da corrente e iniciam


uma dança ritualística. Uma luz azul-celeste e uma música esotérica
invadem a cena. Enquanto isso, Cipriano prende Lúcifer com uma
corrente de chifres de carneiros virgens num carvalho. Ao terminar
a dança, as três bruxas reverenciam Cipriano e descem pelo alçapão
cenográfico)

Cipriano: (Tomando uma vara de aveleira com três pregos na ponta


e começa a açoitar o diabo) Isto é para que não voltes a perturbar o
s filhos e Deus, seu imundo e impostor. (Continua açoitando-o)

Lúcifer: Continua jactando-te de teu poder. Haverá o dia em que eu


triunfarei sobre meu inimigo.

Cipriano: (Depois de ter açoitado o diabo, o liberta da corrente)


Agora, da parte de Deus onipotente, eu ordeno que voltes ao inferno
e que de lá não saias para perturbar as almas cristãs. "Suscipice
quaesemus Domine preces famulorum tuorum, cum oblationibus
hostiarium: et eos pro quibus tua mysteria celebramus, ab omnibus
defende periculiis. Per Dominum Nostrum. Amen.”

Lúcifer: (gritando) Banmaskim Namtillaku Banutukutukku!!!! (Vai


rastejando como cobra até o alçapão cenográfico e desce por ele)

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Cipriano: (Levantando o seu cajado) Que a partir de hoje seja selada
a vitória do Bem sobre o Mal por toda a face da Terra! (Prostra-se no
chão) Miseritur vestri omnipotens Deus, et dimissis peccatis vestris,
perducat vos ad vitam aeternam!

(Entra Cibele)

Cibele: Cipriano, que felicidade encontrar-te! Por vários dias te


procurei, pois me disseram que ias jejuar por trinta dias na floresta.
Mas tenho algo importantíssimo a te dizer: os coxos, leprosos,
endemoninhados e cegos estão todos na igreja de Antioquia,
clamando pelo teu nome, declarando-te santo e implorando a tua
presença para curá-los.

Cipriano: Pois já que é assim, é mister que eu e Santa Justina


cumpramos os propósitos divinos. Vamos ao encontro de Deus
através dos pobres, enfermos e desvalidos.

(Cipriano e Cibele saem)

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88
Cena 3

Justina está pregando na igreja de Antioquia com Eusébio. Vários


doentes e leprosos estão presentes.

Cipriano, Justina, Cibele e Eutolmo

Justina: Irmãos e irmãs. É chegada a hora do cumprimento da


palavra do Senhor de que devemos renunciar ao demônio e aos
falsos ídolos, posto que a idolatria só serve para precipitar a alma do
homem no mais profundo dos abismos. Tenhamos como exemplo o
nosso amado Cipriano, que, durante muito tempo, serviu ao
Maligno e que agora tem sido um vaso de santificação e de preceitos
iluminados no amor de Jesus!
Temos de ser conscientes e fortes nos preceitos de Nosso Senhor e
jamais devemos nos iludir com as seduções do espírito impuro.
Irmãos do Cristianismo, sabemos das duras perseguições que os
imperadores romanos nos têm imposto e, no entanto, devemos
negar, até à morte, a adoração a Satã e a todos os seus ídolos, pois
Jesus nos ensinou que o único Deus verdadeiro foi aquele que
morreu na cruz para expungir os nossos pecados, aquele Deus
maravilhoso e cheio de amor que carrega a nossa cruz e que perdoa
os nossos pecados e nossas fraquezas pelo amor absoluto que tem
por todos nós! Que saibamos reverenciá-lo e louvá-lo pelos séculos
sem fim e que sua doutrina seja o selo que anunciará o Paraíso
Celeste.

(Chegam Cipriano e Cibele. Cipriano vai ao encontro de Justina e os


dois se abraçam longamente. O povo clama o nome de Justina e de
Cipriano)

Povo: Viva São Cipriano! Viva Santa Justina! Que seus nomes sejam
louvados para sempre!

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Cipriano: (Dirigindo-se à multidão) Caros irmãos de Antioquia.
Hoje, mais do que nunca, sou inspirado pelo poder do Espírito
Santo para testemunhar a verdade de Jesus Cristo na minha vida.
Durante trinta anos, servi ao Maligno e, através dele, disseminei a
destruição e a miséria e me deleitei em prazeres sórdidos e
mundanos. Fui, perante os olhos de Deus, uma criatura indigna e
execrável, pois, durante todo esse tempo, pensei que o Maligno
poderia ser superior ao poder de Nosso Senhor Jesus Cristo! Que
engano! Que ilusão aterradora! Todos os feitiços obravam por força
de Satã, mas eles não conseguiram penetrar na alma de Justina, que,
com sua fé inquebrantável no preciosíssimo sangue do Cordeiro,
venceu a tentação de Lúcifer e me salvou das mãos dele. Esta jovem
é digna de ser louvada por todos os séculos, pois provou ao Maligno
que seu poder é inferior ao poder de Deus. Através dela, pude
enxergar novamente a luz divina e hei de me dedicar inteiramente
aos preceitos de Jesus Cristo, no que diz respeito ao amor e à
caridade. Que o meu testemunho sirva a todos que pensarem em se
entregar às artes do Demônio, pois ele é sedutor e ilude os seres
humanos como uma serpente. Glória a Deus nas alturas e que o
Filho do Homem, Jesus Cristo, seja sempre louvado e reverenciado
por todos os séculos. Amém. (Cipriano se prostra no chão e inicia
uma oração em tom dramático)

"Luz divina, que misericordiosa força incidis sobre meus ossos. Luz
divina, que mantendes aceso o fogo do meu coração. Luz divina, que
pairais sobre o Universo. Luz divina, que gerais o Amor entre os
seres viventes. Fazei de mim instrumento de vossa força e libertai-
nos de todos os pecados pelos Serafins, Anjos e Querubins. Eu
invoco o fogo sagrado do Espírito Santo!
Nesta bendita hora Amém.”

(Neste instante, uma luz dourada invade o palco e os enfermos que


estavam presentes começam a ser curados)

Leproso: Vede, estou curado da lepra! Este homem é um enviado de


Deus! (Vai até Cipriano e beija seus pés)

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Cego: Pela Virgem de Nazaré, eu estou enxergando! Eu enxergo
novamente! Bendito sejas tu, ó homem que me libertaste da
escuridão!

Coxo: Minha perna está curada! Vede! A ferida desapareceu!


Bendito sejas tu, em nome de Jesus Cristo!

Uma mulher: (Com uma criança de muletas) Vede, minha filha está
andando! Glórias e louvores sejam dadas a todo momento ao
santíssimo Espírito Santo!

Todos: Viva São Cipriano de Antioquia! Louvemos este homem


santo.

(A multidão vai em redor de Cipriano, que humildemente beija as


pessoas que vêm em seu agradecimento)

Cipriano: Agradecei ao Mestre Jesus, pois eu apenas sou um


instrumento de sua glória!

Justina: Vem, Cipriano, vamos nos recolher para nossos aposentos.


Já está tarde. É preciso que tenhamos muita cautela, porque esses
milagres, pelo que me consta, são do conhecimento do Imperador
romano.

Cibele: Todo cuidado é pouco! Vamos, Cipriano, vamos sair daqui.


A milícia romana pode nos prender.

(Neste instante, chegam três soldados romanos acompanhados de


Eutolmo, o juiz da Fenícia)

Eutolmo: Quem dentre vós são Cipriano de Antioquia, Justina e


Cibele?

Justina: (Pondo-se na frente) O que desejas de nós?

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Eutolmo: Venho da parte do Imperador Diocleciano para levá-los ao
Proconsulado de Nicomédia para serem julgados por crime contra o
Imperador.

Cibele: Mas que crime cometemos? Não fazemos nada a não ser
ajudar os pobres, doentes e necessitados.

Eutolmo: Sois acusados de converter pessoas ao Cristianismo e


induzi-las contra a religião de César.

Justina: Não induzimos ninguém a nada, apenas mostramos que o


único e verdadeiro Deus se chama Jesus Cristo.

Eutolmo: Soldados, prendei-os imediatamente!

(Os soldados prendem Justina, Cipriano e Cibele)

Cibele: (a Eutolmo) Seu imundo! Arrepender-te-ás por isso! Que a


ira divina caia sobre a tua cabeça!

Eutolmo: Cala-te, víbora! Levem-nos até o Paço Imperial de


Nicomédia. O Imperador chegou há um mês de Roma para julgar
pessoalmente os criminosos que atentam contra seu poder.

(Eutolmo sai acompanhado dos soldados com Cipriano, Justina e


Cibele amarrados)

92
Cena 4

Praça pública de Nicomédia. O Imperador Diocleciano entra


acompanhado de vários soldados e de seus conselheiros. O
Procônsul, Eutolmo e o feiticeiro Atanásio já estavam aguardando
a chegada de César. Vários gentios tomam lugar na plateia para
assistir ao julgamento.

Diocleciano, Justino, Eutolmo, Atanásio, Justina, Cibele, Cipriano,


Cledônia, Edésio, Eusébio e Geta.

Justino: Em nome do grande Júpiter e da grande Juno, daremos


início a mais um julgamento de crime contra o poder de César Caius
Aurelius Valerius Dioclecianus, Imperador romano, data esta do
ano de 304 do calendário Juliano, na cidade de Nicomédia. Que
entrem os acusados.

(Justina, Cipriano e Cibele entram acorrentados e muito sujos,


acompanhados de três soldados romanos)

Justino: Por favor, que o juiz da Fenícia faça as declarações.

(Eutolmo abre um pergaminho e inicia a leitura)

Eutolmo: Justina, Cibele e Cipriano de Antioquia são acusados de


converter gentios à falsa religião cristã, através de curas e milagres.
Os acusados dizem ser movidos por uma força divina e já
conseguiram centenas de adeptos a esta religião condenada pelo
Império Romano por ser subversiva e contrária à dominação política
de Roma sobre os principados. Portanto, eles são acusados de crime
de lesa-majestade e de se negarem a servir aos deuses romanos,
alegando existir apenas um único Deus, a quem chamam de Jesus
Cristo, o mesmo que foi morto crucificado no governo de Tibério, no
ano 33, por ser um agitador político de facção contrária ao
Cesarismo político deste reinado. Portanto, eles estão repetindo a

93
mesma atitude do nazareno e merecem ser punidos com PENA DE
MORTE!

Diocleciano: (A Cipriano) Aproxima-te, homem.

(Cipriano, com muita dificuldade por ter sido torturado, aproxima-


se do Imperador)

Diocleciano: Pois não eras tu o maior feiticeiro de todos os tempos?


Que mudança súbita e repentina te acometeu para agora te
entregares ao maldito Deus dos cristãos?

Cipriano: (De cabeça baixa) O que aconteceu foi que os teus ídolos
não conseguiram vencer a oração do sacrário proferida por Justina.

Diocleciano: Que tolice! Pois não eras o mais temido dos feiticeiros
dos quatro cantos do mundo? Como posso acreditar que uma
donzela foi mais forte que Belzebu?

Cipriano: Todos esses ídolos de nada servem, pois, ao sinal da cruz,


perdem totalmente as forças.

Diocleciano: Por acaso estás querendo dizer que meus ídolos são
inferiores àquele que meus antepassados mandaram crucificar por
desrespeitar as leis sagradas de Roma?

Cipriano: Não só teus ídolos, mas também todo homem vivente que
é filho do mesmo Deus.

Diocleciano: (Enérgico) Como ousas dizer que teu Deus é superior a


mim, miserável?

Cipriano: Não só digo como está nas Escrituras. Somos filhos da


criação e Deus é mais forte e poderoso do que tudo neste mundo!

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Diocleciano: Cala-te, seu imundo, senão mando arrancarem-lhe a
língua!

Cipriano: Minhas palavras vêm da alma e esta ninguém poderá


destruir!

Diocleciano: Soldados, quero que açoitem este infeliz!

(Os soldados pegam Cipriano à força e o açoitam num tronco de


madeira perante todos os presentes)

Justina: (Intervindo) Não, por favor, não lhe faças mal. Eu sou a
responsável pela conversão deste homem, portanto, é a mim que
deves açoitar.

Diocleciano: Eu vos libertarei, somente com uma condição: que


abandoneis Jesus Cristo e reverencieis os meus ídolos.

(Diocleciano puxa uma cortina onde aparece ao fundo um pátio,


onde está armado um altar com vários ídolos pagãos.) Rendei-vos
ao poder de Berkaial, Asmodeus e Lúcifer!

Justina: (Ajoelha-se) Prefiro a morte a negar a fé em meu Deus!

Diocleciano: (A Cibele) Ordeno que te ajoelhes e adores os meus


ídolos.

Cibele: (Ajoelha-se) Prefiro ser sacrificada a ter que me entregar ao


demônio! Eu, desde já, pertenço ao reino dos Céus e os anjos se
rejubilam de alegria. (Começa a cantarolar uma música suave)

Diocleciano: Pois muito bem. Eu já esperava por isso. Carrasco, a


caldeira de óleo está fervente?

Carrasco: Sim, majestade, tão quente como os raios do astro-rei!

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Diocleciano: Ordeno-te que mergulhes estes três traidores nela e
que suas carnes sejam despregadas do corpo.

(Um carrasco toca um tambor. Uma caldeira enorme de óleo


borbulhante está próxima do trono do Imperador. O outro carrasco
violentamente arrasta os três condenados para perto da caldeira e,
por um instante, ouve-se a voz do Imperador)

Diocleciano: Vou perguntar pela última vez: Renunciais ao falso


Deus chamado Jesus Cristo e aceitais reverenciar os meus senhores
do inferno?

(Silêncio absoluto dos três)

Diocleciano: Carrasco, lança-os imediatamente! (O carrasco os


amarra em uma roda presa por uma corrente e puxada por uma
alavanca. Aos poucos, a roda é abaixada até que os três ficam
imersos na caldeira de óleo, com as cabeças descobertas. Os
espectadores gritam, riem, outros rezam, fazem o sinal da cruz e
outros, que foram curados por Cipriano e Justina, vaiam o
Imperador)

Diocleciano: Silêncio! Senão mando jogar-vos na arena do Coliseu


para saciar a fome de meus leões de estimação. E que isto sirva de
lição aos que desafiarem o poder imperial de Roma!

(A multidão fica no mais absoluto silêncio)

Diocleciano: As carnes já devem ter se dissolvido. Carrasco, sobe a


roda.

(Os dois carrascos sobem a roda e Cipriano, Justina e Cibele saem


ilesos e sem nenhum ferimento. A multidão se admira com aplausos
e assobios)

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Povo: Viva são Cipriano! Viva Santa Justina! Viva Santa Cibele! O
poder de Deus venceu novamente!

Diocleciano: (Ao Procônsul) Manda estes gentios se retirarem daqui


imediatamente.

Justino: É melhor não, majestade. Eles estão em grande número e é


perigoso formarem um motim.

Diocleciano: Ordena, ao menos, que façam silêncio.

(Justino dá um sinal a uns soldados e estes fazem a multidão se calar


novamente)

Diocleciano: Carrasco, mergulha-os novamente na caldeira.

(O carrasco desce a alavanca e os três são mergulhados novamente


na caldeira)

Diocleciano: Quero ver se agora eles resistem.

(Outro instante de profundo silêncio. A multidão fica paralisada,


aguardando a subida da roda em silêncio)

Diocleciano: (Depois de uma longa pausa) Carrasco sobe a roda!

(O carrasco sobe a roda e os três, novamente, aparecem ilesos sem


nenhum ferimento. Os soldados tiram os três da roda e os colocam
num canto. A multidão grita e aclama o nome dos três mártires)

Diocleciano: Maldição!

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Atanásio: (A Diocleciano) Majestade, não te aborreças! Eles estão
vivos por obra do Demônio. Todos esses argumentos são falsos.
Cipriano é, ainda, um grande feiticeiro e estas duas são suas
discípulas, usando este pretexto de que são convertidos para
aumentarem ainda mais o poder das trevas e, dessa forma,
destronarem vossa majestade. Eles esconjuraram os piores demônios
para ficarem ilesos ao óleo fervente. Vou provar para todos que o
que digo é verdade. (Atanásio toma uma varinha mágica e diz
palavras ininteligíveis) Agora tu me pertences e eu te pertenço!
(Atanásio pede para o carrasco o prender na roda levadiça e ordena
que o mergulhe na caldeira de óleo fervente. Novamente um grande
suspense e, depois de alguns minutos, Diocleciano dá ordem ao
carrasco para subir a roda. A roda sobe com o cadáver esquelético
de Atanásio. Os presentes assoviam, gritam e glorificam o nome de
São Cipriano, Santa Justina e Santa Cibele)

Povo: Grande é o poder de Deus que salvou os mártires Cipriano,


Justina e Cibele! Ínfimo é o poder do Maligno que não deixou vivo
seu discípulo Atanásio!

Diocleciano: Maldição! Mil vezes maldição! Procônsul, leva estes


condenados ao calabouço, pois amanhã serão decapitados em praça
pública e não haverá nenhum Deus que os possa salvar. Por hoje já
foi o bastante! Está encerrada a sessão. (Sai o Imperador,
acompanhado de seus sequitários. Cipriano, Justina e Cibele são
levados para o calabouço pelos soldados. A multidão sai em
seguida, aclamando o nome dos três mártires)

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98
Cena 5

Calabouço do Palácio. É de manhã. Cipriano, Justina e Cibele


estão deitados e rezam fervorosamente.

Cipriano, Justina, Cibele e Aglaide

Cibele: Irmã, Cipriano, bem sabeis que hoje é o fim de nossa


existência na Terra e, ao nos depararmos com Jesus, viveremos o
gozo eterno.

Justina: Não tenhas medo, irmã, nossa morte será para sempre
lembrada e nosso martírio será visto como prova do amor e
fidelidade a Cristo.

Cipriano: Meu Senhor! Sou eu o causador de tantos infortúnios e


vós estais sendo vítimas da minha loucura e de minha insensatez.
Maldita seja a hora em que nasci, pois minha existência só deu
origem a inúmeros fatos de horror e iniquidade, e agora
comprometo a vida de duas almas inocentes.

Justina: Não temas, amigo Cipriano. O mal com que nos afligias
agora se tornou um bem suave para nossa alma. Agora és de Jesus
Cristo e ele saberá acolher-te quando fores elevado ao Céu.

Cibele: Hoje sinto a forte presença de Deus em meu coração. Minha


alma transcende o infinito e nada temo, pois sei que Deus está nos
acalentando com o seu amor.

Cipriano: Sim, irmã Cibele. A força que nos mantém vivos provém
da fonte do amor em Cristo, e quão magnânimo é este amor, que
soube me perdoar pelas iniquidades que cometi. Este amor
transformou por completo a minha existência. Morreremos felizes
por termos cumprido a missão de caridade que, durante anos,
relutei em aceitar. Somos felizes, porquanto nossa existência e
martírio serão a marca para a futura humanidade que se entrega aos
deleites do diabo! Hoje eu compreendo a minha trajetória como
99
sendo uma provação e um grande aprendizado. Felizes dos que
conhecem o amor de Cristo, pois ele desagrilhoa todo o mal que
Satanás dissemina no mundo.

Cibele: Eu e Justina surgimos em tua vida justamente para que


chegasses a este estágio de consciência. (Segura nas mãos de
Cipriano) És um herói que conseguiu vencer através de tua fé a
possessão demoníaca de tua vida. Devias te orgulhares disso, caro
Cipriano.

Cipriano: É verdade. Devemos reprimir os instintos inferiores e


salvaguardar os princípios de amor e caridade. Deus operou
milagres através de nossas mãos e agora morreremos felizes porque
Ele me libertou e transformou minhas habilidades mágicas em
poder de cura e milagres.

Justina: A partir de hoje seremos almas resignadas e nosso martírio


servirá como exemplo de nosso amor por Jesus. O Senhor nos ama e
é a ele que devemos louvar pelos séculos sem fim.

Cipriano: És uma alma pura e sem mácula. Não sabes a vergonha


que tenho quando fito o teu olhar e me lembro de que fui
responsável por muitos dos teus tormentos. Perdoa-me, Justina, pois
não sou digno nem de ver tua face.

Justina: Meu perdão já está dado, pois alcancei o meu objetivo e,


dessa forma, morrerei feliz!

(Entra um soldado romano, acompanhado de Aglaide)

Soldado: (Diz para os três) Justina, um mancebo quer falar contigo.

(O soldado deixa Aglaide na cela e sai)

100
Aglaide: Vim até vós para vos prestar socorro. Sou conhecido do
Procônsul de Nicomédia e posso, por meio desta influência, libertar-
vos da pena de morte. Mas farei isso se tu, Justina, consentires em se
casar comigo.

Justina: Vejo, Aglaide, que aprendeste muito pouco com tudo o que
presenciaste até agora. Vejo que és uma alma infantil e sem
escrúpulos e que, mesmo depois de tantos tormentos não consegues
deixar o teu forte egoísmo vilipendioso.

Aglaide: Faço isso pelo meu amor por ti, Justina. Não sabes que fui
até as últimas consequências para fazer com que gostasses de mim?
Será que não consegues enxergar o amor devotado que tenho por ti?
Casa-te comigo. Sê minha esposa e terás tudo aquilo que quiseres.
Eu prometo que farei de ti a mulher mais feliz deste mundo!

Justina: Não poderei jamais corresponder ao teu amor, posto que ele
requer o deleite carnal, ao qual renunciei em nome de meu Deus.
Vai embora, e deixa que a vontade do Senhor se cumpra em nossa
vida.

Aglaide: Prefere morrer a ter que se casar comigo? Por que, Justina?
Para que tanta indiferença ao meu amor?

Justina: És pretensioso em querer desposar uma serva de Deus.


Casa-te com Cibele e livra-a desta pena injusta.

Cibele: Justina, minha irmã, aproveitemos esta oportunidade para


nos livrarmos da pena de morte.

(Justina abaixa a cabeça e fica em silêncio. Depois de uma breve


pausa Cibele fica de frente com Aglaide e diz):

Cibele: Eu me caso contigo, mas livra minha irmã e Cipriano deste


cativeiro e de nossa terrível condenação.

101
Aglaide: (Grande Pausa) Está bem. Já que minhas prerrogativas são
inúteis aos ouvidos de Justina, aceito casar-me contigo. Ao sair
daqui, irei imediatamente conversar com o Procônsul e ele saberá
ouvir o meu pedido.

Cibele: Faz isso o mais depressa possível. Assim que estivermos


libertos, eu me casarei contigo e prometo fazer-te muito feliz.

Aglaide: (Dando um beijo no rosto de Justina) Farei isso em nome


do meu amor por ti. Nunca te esqueças disso.

Justina: Vai com Deus e que Jesus te acompanhe.

(Aglaide sai)

Cipriano: (A Justina) Ó bem-aventurada filha de Deus! Tuas


palavras soam puras e cristalinas, tanto quanto é pura e cristalina
tua alma. (Abraça-a) És a minha redentora, a estrela que guia meus
passos no infinito. Tua vida é a razão de minha existência. Que
todos os anjos sirvam a ti em tua morada quando nos encontrarmos
no Paraíso Celeste.
Justina: Agradeço desde já pelas tuas palavras. Saibas que eu fiz
tudo isso por amor a ti e pelo amor que tenho por Cristo.

Cibele: (Dando as mãos a Cipriano e Justina) Não tenhamos temor


diante de toda esta tribulação. Sejamos fortes, pois Deus está do
nosso lado.

Cipriano: (Ajoelha-se e ora) Do abismo profundo em que me achava


clamei a vós, Senhor. O Senhor ouviu a minha voz.
Sejam os vossos ouvidos atentos à minha súplica. Senhor, se derdes
atenção às nossas iniquidades, quem poderá permanecer em vossa
presença?
Mas vós sois misericordioso, esperarei em vós, Senhor, confiando
em vossa lei.
A minha alma esperou no Senhor, a minha alma teve confiança na
sua Palavra.
102
Assim toda a Israel tenha esperança no Senhor, desde a aurora até o
anoitecer.
Pois o Senhor é misericordioso e nele encontraremos a redenção
eterna.
Ele há de perdoar a Israel de toda a sua iniquidade.

(Cipriano se prostra no chão em oração. Justina e Cibele o amparam.


A cena escurece)

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103
Cena 6

Palácio romano em Nicomédia. Aglaide entra para conversar com


o Procônsul.

Aglaide e Justino

Aglaide: Com licença. Talvez já saibas o motivo de minha vinda.

Justino: Imagino que vieste pedir a libertação dos criminosos de


Antioquia. Estou certo?

Aglaide: Sim. Esse é o motivo. Bem sabes que eles não são
criminosos e que o sangue deles será derramado injustamente.

Justino: Como podes dizer uma tolice dessas? Bem sabes que
Cipriano de Antioquia estava disputando poderes com César, e esse
crime é punido com a morte. Ninguém neste Império tem direito de
querer superar a autoridade e a estima do Imperador de Roma.

Aglaide: Mas o que eles fizeram de tão grave assim? Achas crime
curar os enfermos e dar proteção aos necessitados? Essa tem sido a
missão de Justina e Cipriano, depois que este se converteu ao
Cristianismo.

Justino: Disseste a palavra exata! Cristianismo! A hórrida religião


que todos os imperadores romanos execraram por ser a que mais
atentou contra o poder e a autoridade dos Césares romanos.

Aglaide: Sei que, de certa forma, os milagres de Cipriano e Justina


têm causado irritação ao Imperador, que se viu menos prestigiado
por seu povo, mas creio que este fato não os torna criminosos. Por
favor, em nome da amizade que tinhas por meu pai, eu te peço que
soltes os três condenados da prisão.

104
Justino: Não posso desafiar uma decisão do Imperador Diocleciano.
Sua ordem já foi dada e sua sentença deverá ser cumprida.

Aglaide: Pelo menos liberta Cibele, a irmã de Justina. Ela é muito


inocente e tenho intenção de desposá-la.

Justino: (Pausa) Está bem. Em nome da amizade que eu tinha por


teu pai, darei ordem para soltar Cibele, mas pelos outros dois não
poderei fazer o mesmo. Hoje mesmo terás o que desejas.

Aglaide: Eu te agradeço enormemente. Até mais. (Sai. A cena


escurece)

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105
Cena 7

Calabouço do palácio de Nicomédia. Justina, Cipriano e Cibele


estão orando. Entram dois soldados romanos.

Justina, Cibele e Cipriano

Primeiro Soldado: (Abrindo a porta da prisão e pegando Cibele


pelos braços)

Cibele: Tira as mãos de cima de mim, seu brutamontes. Para onde


estás me levando?

Primeiro soldado: Estás livre da pena de morte pela intercessão de


Aglaide.

Cibele: E minha irmã? E Cipriano?

Segundo soldado: Serão executados agora à tarde.

Cibele: (Em prantos) Não, não faças isso! (Tentando abraçar Justina,
mas é retida pelo soldado) Minha irmã querida! Não posso deixar
que façam isso contigo. Tu não mereces perder a vida tão jovem. (Ao
soldado) Por favor, deixa que ela seja liberta como eu. Ela é uma
santa e não merece morrer. (O soldado empurra Cibele com força
para fora da cela. Ela é levada à força pelos soldados e sai arrastada,
gritando e pedindo socorro por sua irmã)

Justina: (A Cipriano) É chegado o nosso fim e o começo de uma


nova vida!

Cipriano: Tenhamos fé e coragem. (Os dois se abraçam por um


instante)

(O segundo soldado leva os dois acorrentados até a praça pública de


Nicomédia)

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Cena 8

Praça Pública de Nicomédia. Cipriano e Justina são trazidos pelos


soldados. Estão presentes todos os personagens. Entra o
Imperador Diocleciano com seus sectários e se senta em seu trono
real. O lacaio, após um assentimento do Procônsul, lê num
pergaminho as acusações.

Lacaio: Por ordem do Imperador romano Diocleciano, faz-se hoje a


leitura final das acusações contra Cipriano e Justina de Antioquia,
acusados de subversão às leis do Império Romano e de conspirarem
contra a autoridade de César. Cipriano e Justina são acusados de
negarem a religião oficial do Império em favor da adoração a Jesus
Cristo, considerado o criador desta falsa religião e que foi punido
com pena de morte na cruz. Os acusados praticaram rituais cristãos
segundo os princípios desta religião condenável e converteram
centenas de pessoas à mesma, cometendo, assim, um grave crime de
indução e sedução, subestimando grandemente o poder de César.
Portanto, de acordo com a lei imperial, os acusados serão punidos
com pena de morte neste dia vinte e seis de setembro do ano de 304
do calendário Juliano.

Justino: (A Cipriano e Justina) Arrependei-vos de conspirar contra


César e abraçai a religião oficial do Império como a única de sua
vida?

Justina: Jamais me renderei aos teus falsos ídolos, pois o meu Deus
foi e sempre será Jesus Cristo.

Cipriano: Eu, desde o dia de minha conversão, não conheci maior


alegria no coração do que praticar a caridade e servir ao mestre
Jesus. Pois ele está feliz e satisfeito por ter me salvado a tempo.
Lastimo que o mesmo não aconteça convosco, pois infelizmente não
enxergais a Luz divina do Mestre. Por causa disso, vossas almas
arderão para sempre no fogo do inferno, assim como a de todos os
Césares passados e a dos judeus que mataram o Cordeiro. Morrerei,

107
sim, mas na certeza de que Deus me acolherá, juntamente com
Justina, em sua gloriosa morada.

Diocleciano: Pois muito bem. Já ouvi demais por hoje. Seus corpos
serão lançados aos abutres para que todo o Império tenha uma
prova de meu poder. Carrasco, executa-os agora, pois quero assistir
a esta cena da cadeira principal do espetáculo.

Cipriano: O Senhor faz em mim maravilhas! Santo é seu nome!

Justina: A minha alma engrandece ao Senhor, exulta o meu espírito


em Deus, meu salvador!

(O carrasco coloca um capuz preto em Justina e em Cipriano e


depois dá ordem para eles se agacharem e reclinarem a cabeça num
toco de árvore. O Imperador dá a ordem e o carrasco, com um
machado afiadíssimo, decepa a cabeça de Justina e, logo em seguida,
a de Cipriano. Cledônia, que estava assistindo, desmaia e é
amparada por Cibele e Aglaide. O Imperador pega a cabeça dos dois
mártires e diz):

Diocleciano: Aut Cesar, Aut nihil! (Ou a César ou nada!)

(Diocleciano entrega as cabeças ao carrasco e este as pendura em


dois postes de madeira. O Imperador sai com seus sectários e o
Procônsul. O povo, aos poucos, vai se retirando. Cibele pede ajuda a
Eusébio, que tenta acordar Cledônia. Nisso surgem dois cristãos
convertidos, Teotiso e Rufina, que se dirigem a Cibele. Eusébio
consegue, junto com Aglaide, tirar Cledônia do chão e levá-la para a
igreja)

Rufina: És a irmã de Justina?

Cibele: (Chorando) Sim. Quem sois vós?

108
Rufina: Sou Rufina e este é meu marido, Teotiso. Chegamos hoje a
Nicomédia e viemos da Toscana. Hoje soube que haveria uma
execução em praça pública e vim prestar auxílio à família dos
mártires.

Cibele: Ó, sê bem-vinda! Lamento não estar em condições de


conversar.

Rufina: Compreendo tua dor, mas devo dizer-te uma coisa.

Cibele: Diz, o que há?

Rufina: Meu marido veio trabalhar por um mês na Ásia Menor


como mercador e conhece alguns dos soldados que guardam este
lugar. Hoje, ao entardecer, vamos recolher os corpos de sua irmã e
do ex-feiticeiro e embalsamá-los. Daqui a um mês, meu marido e eu
iremos a Florença deixar os restos mortais dos mártires na casa de
uma irmã de caridade de minha extrema confiança. Lá, os restos
mortais de Cipriano e de sua irmã ficarão seguros até os
destinarmos a um convento em Roma, onde minha irmã é freira.

Teotiso: Não te preocupes, jovem. Ser-me-á fácil conseguir tal


intento.

Cibele: Não sei como vos agradecer! Vós deveis ter sido enviados
pelo Senhor.
Vamos para a igreja de Nicomédia até chegar o momento de
fazermos isso. Por favor, acompanhem-me.

(Cibele sai acompanhada de Rufina e Teotiso)

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109
Cena 9

Igreja de Nicomédia. Aposento de um bispo amigo de Eusébio.


Cledônia está em estado de choque, deitada numa cama. Cibele
entra com Rufina e Teotiso.

Aglaide, Cibele, Geta, Teotiso e Rufina

Aglaide: (A Cibele) Onde estavas que demoraste tanto?

Cibele: A ajuda divina veio em momento certo. Estes são dois


cristãos convertidos: Rufina e Teotiso, da Toscana. Vieram até mim
para nos auxiliar a recolher os restos mortais de minha irmã e de
Cipriano.

Aglaide: Mas como? Se recolhermos os corpos de Cipriano e Justina


seremos os próximos a perder a cabeça!

Teotiso: Não, meu senhor. Tenho uma certa amizade com o chefe da
guarda romana de Nicomédia e vou interceder junto a ele para que
libere os corpos e possamos escondê-los num lugar secreto.

Aglaide: Bem, se é assim, tanto melhor.

Cibele: Onde está minha mãe?

Aglaide: Está no aposento contíguo a este quarto, em estado de


choque. Eusébio e outros sacerdotes estão com ela, suprindo suas
necessidades. Com licença, vou até lá para ajudá-los. (Sai)

Cibele: Geta, serve algo de comer e de beber para nós.

Geta: Sim, senhora. (Sai)

Rufina: Lamento, senhora, o que aconteceu com tua irmã e o ex-


feiticeiro.

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Cibele: Eles não mereciam uma morte tão cruel!

Rufina: Como foi que tua irmã se aliou àquele mago negro cuja
fama percorria todo o Império?

Cibele: Isto é uma longa história. Mas depois que Cipriano se


converteu ao Cristianismo, sua vida foi coroada de milagres e curas,
juntamente com a de minha irmã.

Teotiso: A população de Nicomédia disse que os dois eram santos,


pois muitos milagres deles foram vistos.

Rufina: Morreram por causa da fama de santos milagrosos que


eram. Pura inveja de Diocleciano e de seus súditos.

(Geta volta servindo água e pão para os presentes)

Rufina: Fiquei sabendo que a senhora, juntamente com os dois


mártires, foi imersa numa caldeira de óleo fervente e, por obra do
Espírito Santo, saístes ilesos, sem nenhuma queimadura.

Cibele: É verdade. Dentro da caldeira apareceram anjos que nos


cobriram com mantos sagrados e, dessa forma, ficamos imunes ao
óleo fervente.

Rufina: Ó, que poder tem Jesus Cristo!

Teotiso: Passaste por momentos bem difíceis!

Cibele: Mas agora os dois se encontram na glória soberana de Deus!

Rufina: Já ouvi muitas histórias acerca do mago Cipriano. Dizem


que ele era pactuado com Satanás! (Faz o sinal da cruz)

Cibele: Sim, e fomos eu e minha irmã quem o libertamos das garras


do Demônio.

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Rufina: Dizem que ele possuía um manuscrito negro e, através dele,
realizava maldições e encantamentos. Não achavas perigoso te
relacionares com aquele homem?

Cibele: Antes de sua conversão, todos tinham medo dele. Mas,


depois, provou a sua fé em Cristo.

Teotiso: Como se chama o manuscrito?

Cibele: Confissões

Teotiso: Se quiser, levamos o manuscrito conosco quando partirmos


para Florença.

Cibele: Agradeço novamente vossa ajuda. Ele deverá ficar guardado


sob sete chaves, até que o Império se dissolva.

Rufina: Como sabes que o Império se dissolverá?

Cibele: Uma profecia de Cipriano. No seu manuscrito, ele diz que o


Império terminará no ano de 476, ou seja, daqui a 172 anos.

Rufina: Virgem Santa! Ele disse isso por obra de Satanás? (Faz
novamente o sinal da cruz, junto com Teotiso)

Cibele: Não, por obra do Espírito Santo. Esse manuscrito contém


duas partes: a sua vida quando ligada ao demônio e a segunda
parte, dedicada às suas orações milagrosas e aos seus feitos
santificados.

Rufina: Se achas que assim estarás contribuindo para a


humanidade, eu e meu marido levaremos o manuscrito e o
deixaremos sob os cuidados das monjas catecúmenas de Roma,
onde minha irmã Serafina ficará como a responsável, passando essa
responsabilidade às futuras monjas que estão para nascer.

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Cibele: (Tirando o manuscrito de um saco) Toma, aqui está ele.
Cuida muito bem deste pergaminho, até que a profecia se cumpra.

Rufina: Podes deixar. Cuidarei muito bem dele. A vontade do santo


será feita. Agora devo ir. Hoje, ao anoitecer, recolheremos os corpos
de sua irmã e de Cipriano e os embalsamaremos, tornando-os, dessa
forma, livres da decomposição. Daqui a um mês partiremos para a
Fenícia e, depois, rumaremos para a Toscana. Lá guardaremos tudo
isso a sete chaves.

Cibele: Não sabes o quanto serei grata a ti e ao teu marido.

Teotiso: Não há o que agradecer. Cumpriremos o nosso dever de


cristãos! Que Jesus vos abençoe.

Cibele: Amém. Ide em paz com Jesus.

Rufina e Teotiso: Amém.

(Saem todos e a cena escurece)

113
Cena 10

Casa de Cledônia, em Antioquia. Cibele está se preparando para


se casar com Aglaide. Os criados se movimentam nos preparativos
da festa.

Cledônia, Cibele, Aglaide, Geta, Eusébio e criados.

Cledônia: (Arrumando o vestido de Cibele) Quanto mais o tempo


passa, mais fica parecida com tua irmã Justina, minha filha.

Cibele: Que falta ela nos faz! Já se passou um ano depois de sua
morte e ela continua viva em nossa memória.

Cledônia: Ela deve estar junto com Deus em sua eterna glória.
Aqueles dois cristãos convertidos pareciam terem sido enviados por
Deus. Sem eles, não conseguiríamos jamais dar uma sepultura digna
à minha amada filha e a Cipriano. E pensar que todo este terrível
enredo começou com o pedido de himeneu de Aglaide! E, por força
do destino, ele se casará hoje contigo, não com Justina. Ah, que
saudades eu sinto dela! Já não ouvirei mais o saltério que toda
manhã me acordava com suaves melodias.
Teu pai não viveu o suficiente para te ver assim tão linda, minha
filha, e poder te abençoar, como era seu velho costume. (Chora) Que
destino cruel e que triste pesar: perder um marido e depois uma
filha a quem tanto amava nesta vida.

Cibele: Temos que nos conformar, minha mãe, com os desígnios do


Senhor.

114
(Entra Geta)

Geta: Senhora, o bispo Eusébio já chegou e te chama para a


celebração do himeneu.

Cledônia: Diz que já vamos.

Geta: Sim, senhora. (Sai)

Cledônia: Pronto, minha filha, já terminei de te arrumar.

Cibele: (Olhando-se no espelho) Que lindo vestido, mamãe!

Cledônia: Pareces uma princesa! Vamos para a outra sala. (As duas
passam para a sala contígua, onde se encontram Eusébio e Aglaide)

Aglaide: (pegando nas mãos de Cibele) Nem os raios da manhã se


comparam a uma beleza tão pura e celeste como a tua.

(Cibele agradece com um sorriso)

Eusébio: Queiram os dois se aproximar, por favor.

(Cibele e Aglaide se ajoelham diante de Eusébio)

Eusébio: In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti!

Todos: Amém.

115
Eusébio: É com grande alegria e satisfação que celebraremos o
himeneu de Cibele e Aglaide segundo os preceitos de nosso Senhor
Jesus Cristo. É válido lembrar, neste momento, que a vida de duas
pessoas muito importantes devem ser relembradas neste dia
glorioso e de júbilo: São Cipriano de Antioquia e Santa Justina. Esses
dois mártires, que renunciaram aos prazeres do mundo corpóreo,
foram eternizados na magnitude da glória divina, mostrando a
todos sua fé inquebrantável em nosso Senhor Jesus Cristo, sendo
capazes de se livrarem da morte quando lançados numa caldeira de
óleo fervente. Seus exemplos de fé, amor e caridade ficarão para
sempre em nossos corações. E é em homenagem a esses dois santos
que celebraremos este ritual sagrado. (Aos noivos) Aglaide, aceitas
tomar Cibele como tua legítima esposa, prometendo amá-la e
respeitá-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza
e na pobreza, até que a morte os separe?

Aglaide: Sim, aceito.

Eusébio: Cibele, aceitas tomar Aglaide como sendo teu legítimo


esposo, prometendo amá-lo e respeitá-lo, na alegria e na tristeza, na
saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, até que a morte os
separe?

Cibele: Sim, aceito.

Eusébio: Portanto, eu vos declaro marido e mulher.

(Aglaide dá um beijo no rosto de Cibele)

116
Cibele: Nunca imaginei que experimentaria uma felicidade tão
grande em minha vida. Sinto que minha irmã está muito contente
por todos nós, visto que seu desejo sempre foi que me casasse e
fosse feliz. Mesmo tendo morte tão trágica, suas maneiras suaves e
seus gestos delicados ficarão para sempre marcados em nossos
corações. Tenho orgulho de ter tido uma irmã como ela, pois veio ao
mundo somente para servir aos seus semelhantes. Que seu nome
seja lembrado para sempre como sinônimo de fé e caridade.

Aglaide: Sinto-me, por ora, vexado por ter sido responsável por
muitos sofrimentos causados pela paixão avassaladora que tinha
por Justina, a mesma paixão que desencadeou a conversão de
Cipriano e, posteriormente, a morte de ambos os santos. Creio que
tudo isso já estava predestinado a acontecer, pois os desígnios de
Deus são perfeitos. Não deverei carregar culpa no meu coração, nem
tampouco remorso pelos fatos ocorridos, posto que enxerguei a
tempo a pureza e a santidade de Justina e o grande poder espiritual
de Cipriano. A partir de hoje, esses dois seres humanos serão
invocados com a magnitude de santos e mártires e seus poderes
sobre o mundo serão cada vez maiores e amplificados. Que os anjos
do Céu confirmem estas palavras e que o mundo seja testemunha
daquilo que estou dizendo.

Eusébio: Absolvit Deus omnipotens! In nomine Patris, et Filii, et


Spirictus Sancti.

Todos: Amém.

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(Uma música gregoriana toma conta da cena. Aglaide e Cibele se
beijam, enquanto os personagens saem e o palco escurece
lentamente)

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Pano

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