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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia:


Psicologia Clínica

Anselmo Clemente

Pegação:
Reflexões sobre o homoerotismo
nas cidades

Doutorado em Psicologia Clínica

São Paulo
2018
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia:
Psicologia Clínica

Anselmo Clemente

Pegação:
Reflexões sobre o homoerotismo
nas cidades

Tese apresentada à Banca


Examinada da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em
Psicologia Clínica sob a orientação
da Profª. Drª. Denise Bernuzzi
Sant'Anna

São Paulo
2018
Banca Examinadora

___________________________
___________________________
___________________________
___________________________
___________________________
Às noites companheiras, que
não me deixaram calar.
ALUNO BOLSISTA DO CNPq.
ALUNO BOLSISTA DA CAPES.
ABRADECIMENTOS

Aos meus pais, por todo apoio e carinho nesta longa caminhada.

À Raquel Ritter, companheira fundamental.

Ao Guto Viscardi (in memorian).

À Prof.ª Denise Bernuzzi de Sant’Anna, minha orientadora, pela paciência e


acolhida em todas as etapas desta pesquisa.

À Prof.ª Suely Rolnik, pelo apoio nas horas mais difíceis deste percurso
acadêmico.

Ao Prof. Peter Pál Pelbart, por suas explanações sobre outros horizontes
possíveis.

À Prof.ª Helena Altmann, pela importante contribuição na qualificação desta tese.

Ao Prof. Alexsandro Rodrigues, pela acolhida no Grupo de Estudo e Pesquisas


em Sexualidades/UFES.

Aos colegas do Grupo de Estudo e Pesquisas em Sexualidades/UFES, pelas


trocas apaixonadas de conhecimento.

Ao João Perci Schiavon, pelo importante espaço de análise, mesmo que breve.

Aos companheiros do Núcleo de Subjetividade da PUC/SP, pela maravilhosa


jornada repleta de afetos potentes e bons encontros.

À Cláudia Malinverni, amiga querida e revisora competente deste trabalho.

Ao Pedro Luz, pelo apoio cuidadoso com o resumo da tese em língua inglesa.

Ao Evis, Antonio Germano e Pedro Ivo pela parceria, amizade e discussões


sobre o tema.

À Paula Massa, amiga querida, sempre disposta a ajudar.

À Bill Santos, pela colaboração com os dados da pesquisa e compreensão com a


apresentação dos mesmos.
RESUMO

Esta tese é uma reflexão sobre as relações entre homoerotismo e as cidades


partir da chamada pegação entre homens em espaços públicos. Por sua
clandestinidade, anonimato, amplitude e fragmentação é um tema de difícil
estudo. Metodologia – Foi realizada pesquisa documental e bibliográfica
diversificada, de material de imprensa à legislação, passando por romances,
fotografias e produção científica nacional. Em razão da relativa escassez acerca
do assunto no Brasil, também selecionamos textos científicos, livros, filmes e
testemunhos de experiências internacionais análogas ao conceito homoerótico
empregado neste estudo. Outro braço metodológico deste trabalho envolveu
pesquisa de campo na cidade de São Paulo, entre outubro de 2016 e janeiro de
2018, com realização de entrevistas abertas com quatro participantes. Não
foram reveladas as experiências e os locais onde ocorrem essas práticas, cujos
adeptos consideram do âmbito do segredo. A investigação de campo se deu
também em espaços de pegação, apontados pelos próprios entrevistados e
demarcados pelo livre acesso e a gratuidade, exceto aqueles locais já extintos ou
que de tão afamados são indicados pelos próprios praticantes em sites de trocas
públicas de pontos de sexo casual. Objetivos – Pesquisar como tais práticas,
além de produzir performances masculinas, são alvos de regimes discursivos
que organizam a vida pública na cidade. Investigar sua associação com a
infâmia enquanto produto de uma história que tendeu a criminalizar ou
patologizar atos sexuais considerados desviantes, indecentes, improdutivos ou
anormais. E finalmente, em contraposição, trabalhar a pegação como produtora
de homocultura e subjetivivação próprias. Justificativa – A importância do
tema é dupla, uma vez que, por um lado, o estudo da pegação dá a perceber
seus significados e informa sobre alguns perfis das relações afetivas e sexuais da
contemporaneidade; por outro, questionar as formas de pegação insere o
pesquisador no centro de práticas ainda pouco estudadas, mas que compõem
toda a construção de subjetividade masculina – homo e heterossexual – de
nossos dias. Hipóteses – Pegação é um termo polissêmico que, quando
relacionado às práticas sexuais masculinas na cidade, refere-se à produção de
masculinidades, códigos de virilidades, instituição de lugares, práticas sexuais,
performances homoeróticas, figuras e personagens. Resultados – A pesquisa
evidenciou que a pegação possui história secular e geografia própria. Desde os
crimes de sodomia, passando pela constituição do homossexual, mas também
da criminalização indireta das práticas homoeróticas públicas citadinas, ela foi
registrada por religiosos, juristas, administradores da cidade, médicos e
cientistas sociais, entre outros. Assim como no Brasil, onde é nomeada pegação,
essa prática é encontrada mundo afora, sob outras denominações, como
cruising, cottage, drague, yiro etc., identificadas em uma investigação
internacional que permitiu ampliar a nossa capacidade de análise acerca desse
acontecimento mundano e, de certo modo, clandestino. Recobertas de infâmia
por suas experiências indóceis, as práticas de pegação e seus personagens
testemunham uma cidade, fazem variar em grau seu cotidiano
heteronormativo, expressam uma população de afetos particulares e, por isso
mesmo, produzem subjetividades.

Palavras-chave: Pegação, Cidades, Homoerotismo, Produção de Subjetividade.


ABSTRACT

This thesis is a reflection on the relationship between homoeroticism and cities


having the so-called “pegação” (cruising gay) in public spaces as a starting
point. Because of its clandestinity, anonymity, amplitude and fragmentation, it’s
a subject of difficult study. Methodology - A research was carried out through
documental and bibliographic survey, taking into account press material,
legislations, novels, photographs and national scientific production. Due to the
relative scarcity of studies on the subject in Brazil, we also selected scientific
texts, books, movies and testimonies of international experiences similar to the
homoerotic concept employed in this study. Another methodological branch of
this study involved field research in the city of São Paulo, between October 2016
and January 2018, with open interviews with four participants. The experiences
and the places where these practices take place, which adherents consider to be
a matter of secret, have not been revealed. The field investigation also took
place in areas in which the “pegação” occurs pointed out by the interviewees
themselves and characterized by their free access and gratuitousness, except
those places that are already extinct or those that are so famous that are
indicated by the practitioners themselves in sites of public exchanges of points
of casual sex. Objectives - To find out how such practices, besides producing
male performances, are targets of discursive regimes that organize public life in
the city. To investigate its association with infamy as the product of a history
that tended to criminalize or pathologize sexual acts considered deviant,
indecent, unproductive or abnormal. And finally, in contrast, to conceptualize
the "pegação" as a producer of homoculture and subjectivity. Justification - The
importance of the theme is twofold since, on the one hand, the study of the
“pegação” provides insight on its meanings and may give us better
understanding at some of the profiles of affective and sexual relations in
contemporaneity; on the other hand, questioning the forms of “pegação” inserts
the researcher into the center of practices that are yet to be studied further, but
that make up the whole construction of masculine subjectivity - homo and
heterosexual - of our day. Hypothesis – “Pegação” is a polysemic term that,
when associated to male sexual practices in the city, refers to the production of
masculinities, virility codes, institution of places, sexual practices, homoerotic
performances, figures and characters. Results - The research evidenced that the
“pegação” has secular history and its own geography. From sodomy crimes,
through the constitution of the homosexual and the indirect criminalization of
homoerotic public practices, the “pegação” was registered by religious figures,
jurists, city administrators, doctors and social scientists, among others. Like
Brazil, where it is called "pegação", this practice is found worldwide, under
other denominations such as cruising, cottage, drague, yiro etc, identified in an
international investigation that allowed us to broaden our capacity for analysis
about this mundane and, in a way, clandestine event. The practices of
“pegação” and their practicioners witness a city, vary in degree their
heteronormative status quo, express a population of particular affections and,
for that very reason, produce subjectivities.

Keywords: Cruising gay, Cities, Homoeroticism, Production of Subjectivity.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13

1 PEGAÇÃO: HISTÓRIAS E GEOGRAFIAS DE UM MUNDO QUE NUNCA A QUIS ................. 17

1.1 OS CRIMES DE SODOMIA E A COLONIZAÇÃO DOS PRAZERES .............................................................. 18

1.2 A SITUAÇÃO LEGAL DA HOMOSSEXUALIDADE NO MUNDO PÓS-SODOMITA ..................................... 24


1.2.1 A Emergência da Identidade Pelo Sexo .......................................................................................... 30
1.2.2 A Condição Heterossexual dos Indivíduos e das Sociedades........................................................... 34
1.2.3 (Des)Patologização e Assimilação Social da Identidade Homossexual ............................................ 37

2 DRAGUE, CRUISING, COOTAGE, TEAROOMS, ABBORDARE E OUTRAS TÁTICAS DE PEGAÇÃO


MUNDO AFORA ................................................................................................................ 44

2.1 O QUE FAZEM, ONDE FAZEM E A QUE HORA FAZEM: A EXPERIÊNCIA DO SOCIÓLOGO VOYEUR ......... 47

2.2 “ICI DRAGUE HOMO DEPUIS LE XIXE SIÈCLE” ....................................................................................... 53

2.3 PEGAÇÃO ANGLO-SAXÃ: CRUISING, TEAROOMS, COTAGGE... ............................................................. 59


2.3.1 Antes da Hookup Culture, o Cruiser Estadunidense de Lenços Coloridos nos Bolsos ....................... 61
2.3.2 Sobreviventes em Terras da Rainha: o Homossexual Exemplar, a Resistência do Cottaging e o
Cruising Ecológico ................................................................................................................................. 68

2.4 TERRITÓRIOS DE PEGAÇÃO ORIENTAIS: CONFLITOS ÉTNICO-RACIAIS NA MACEDÔNIA ....................... 77

2.5 ENTRE CORSÁRIOS HOMOERÓTICOS: AS “AREE DI ABBORDAGGIO” ITALIANAS ................................. 82

3 OS DISCURSOS SOBRE A PEGAÇÃO EM ESPAÇOS PÚBLICOS NO BRASIL ............................ 86

3.1 OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA HOMOERÓTICA: AMARO E ALEIXO, QUINTANILHA E GONÇALVES,


BEMBEM E A CIDADE ................................................................................................................................ 89

3.2 AS ATUALIZAÇÕES LEGAIS DOS CRIMES DE SODOMIA......................................................................... 95


3.2.1 Primeira Semana Paulista de Medicina Legal em 1937: o Homossexual Deve Ser Preso ou
Internado? ............................................................................................................................................ 97

3.3 A PEGAÇÃO COMO CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS ........................................................................... 107


3.3.1 “Da Arte de Caçar”, Breve Contribuição do Jornal O Snob ............................................................ 110
3.3.2 Entre as Atividades Viris dos Michês Paulistanos ......................................................................... 114
3.3.3 Uma Sociologia da Pegação Brasileira?........................................................................................ 122

4 TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS DA PEGAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO ......................... 130

4.1 DERRADEIRAS PEGAÇÕES NA CIDADE DE SÃO PAULO ....................................................................... 133

4.2 COMUNIDADES DOS BANHEIROS E OUTRAS OCUPAÇÕES HOMOERÓTICAS ...................................... 137


4.2.1 O Fechamento do Autorama ....................................................................................................... 142
4.2.2 Pegações no Parque Ibirapuera ................................................................................................... 146

4.3 ATRAVESSAMENTOS CORPORAIS E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE NAS PRATICAS SEXUAIS


GRATUITAS MASCULINAS ....................................................................................................................... 150

4.4 PEGAÇÃO MASCULINA NA CIDADE: ZONAS TERRITORIAIS AUTÔNOMAS, NÃO LUGARES E


HETEROTOPIAS ....................................................................................................................................... 155
4.4.1 Pegação Como Zonas Autônomas Territoriais (TAZ) ..................................................................... 156
4.4.2 A Utopia e a Heterotopia do Sexo Público Casual ........................................................................ 160
4.4.3 O Não Lugar da Pegação ou o Lugar do Anonimato ..................................................................... 163

5 À BEIRA DA PEGAÇÃO: IDENTIDADES SEXUAIS, (DES)COLONIZAÇÃO E NOVOS


POVOAMENTOS .............................................................................................................. 166

5.1 IDENTIDADES SEXUAIS BRASILEIRAS, DIÁLOGOS COM O SSEX BBOX ................................................. 170

5.2 IDENTIDADE, DESCOLONIZAÇÃO E NOVOS POVOAMENTOS ............................................................. 174

5.3 A SOBREVIVÊNCIA DO HOMOEROTISMO NAS CIDADES: ÚLTIMAS PEGAÇÕES ............................ 181

6 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 184

ANEXO 1. TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - TCLE............................... 196

12
INTRODUÇÃO

Esta tese é uma reflexão sobre as relações entre homoerotismo e as cidades a partir
da chamada pegação masculina, um tema ainda pouco estudado que está, contudo, bastante
presente no cenário da história contemporânea. Em sua condição mais desafiadora,
justamente o enfoque desta pesquisa, podemos traduzi-la pelas práticas sexuais e
homoeróticas entre homens em locais de acesso público, cujas trocas de prazer são
igualmente gratuitas.
A importância do tema é dupla. Por um lado, estudar a pegação, perceber seus
significados e seus modos de ser informa sobre alguns perfis das relações afetivas e sexuais
na contemporaneidade. Por outro, questionar as formas de pegação insere o pesquisador no
centro de práticas ainda pouco investigadas, mas que dialogam com toda a construção de
subjetividade masculina – homo e heterossexual – de nossos dias.
Tendo essa perspectiva em nosso horizonte de investigação, projetamos ir muito
mais além do que investigar o fenômeno em si – isto é, como esses homens fazem, o que
fazem, onde fazem. Nosso pesquisar buscou entender como tais práticas produzem
performances masculinas e de que maneira a prática de pegação entre homens se torna alvo
de regimes discursivos que organizam a vida pública na cidade, entre os quais, por
exemplo, o da heteronormatividade moderna. Nesse sentido, nos propusemos a investigar a
associação da pegação com a infâmia como produto de uma história que tendeu a
criminalizar ou patologizar atos sexuais considerados desviantes, indecentes, improdutivos
ou anormais.
Em outro objetivo, buscamos trabalhar com a pegação enquanto produtora de
homocultura singular. Ou seja, dotada de narrativas, contextos, atravessamentos afetivo-
sexuais, dinâmicas corporais, modos de ocupar a cidade, subjetivação e língua particulares.
Por outras palavras, sua inscrição nas maneiras de estar dos homens, em um mundo que
nunca a quis.
Encaramos o desafio de abordar esse assunto nos apoiando no conceito de
homoerotismo, presente em diversas passagens deste texto. Numa primeira abordagem, nos
aproximamos da noção postulada pelo psicanalista Jurandir Freire Costa (1992), segundo a
qual o homoerotismo está mais de acordo com a amplitude, a flexibilidade e a pluralidade
de desejos e práticas que ocorrem entre pessoas do mesmo sexo do que com a ideia de
homossexualidade ou mesmo da visão patologizante e ultrapassada de homossexualismo.

13
Isso porque, diz o autor, o termo “[...] nega a ideia de que existe algo como ‘uma
substância homossexual’ orgânica ou psíquica comum a todos os homens com tendências
homoeróticas, [portanto] não possui a forma substantiva que indica identidade” (COSTA,
1992, p. 22).
Num segundo aspecto seguimos ainda as ideias do psicanalista, para quem, em
nossa cultura, que é muito baseada na realização sexual e afetiva de seus membros, é
bastante problemático o cerceamento dessas mesmas possibilidades para os homossexuais.
Nesse sentido, a noção de homoerotismo “[...] não se deve à pretensa uniformidade
psíquica da estrutura do desejo comum a todos os homossexuais; [mas] ao fato de ser uma
experiência subjetiva moralmente desaprovada pelo ideal sexual da maioria” (COSTA,
1992, p. 22).
Mas ele ainda nos adverte que, apesar de estar de acordo com a tese de que o
homoerotismo “[...] deveria usufruir do direito a livre expressão social [...], isso não
significa “[...] aceitar toda e qualquer inclinação erótica” (COSTA, 1992, p. 101). A
reserva do psicanalista, posição com a qual concordamos, está relacionada ao fato de que
nem
[...] toda conduta humana é tolerável e pode aspirar ao direito de cidade.
Esse raciocínio é típico do terrorismo-conservador, que (...) deixa a
entender que se dizemos sim às práticas homoeróticas, por que dizer não,
por exemplo, à violência contra os mais fracos? Isso é falso porque parte
da premissa que não temos ideais. A prática homoerótica entre iguais que
consentem em participar da experiência não é lesiva a nenhum de nossos
credos e ideais; o abuso de força, ao contrário, anula automaticamente ou
o direito à vida, ou à liberdade, ou à busca da felicidade de quem a ele é
submetido (COSTA, 1992, p. 74).

Finalmente, nos lança uma pergunta provocadora, cuja resposta é dada por ele
mesmo logo em seguida: “[...] em quê e por que o homoerotismo entre adultos que
consentem mutuamente na relação sexual pode atentar contra a vida, a liberdade ou o
direito à busca da felicidade de cada um de nós? Até segunda ordem, sem hesitar,
responderia: em nada!” (COSTA, 1992, p. 102). O inquietante questionamento do
psicanalista é complexo e impõe muitos ângulos à discussão, que estão presentes em todos
os capítulos deste trabalho.
Inicialmente, como já mencionado, por se tratar de um assunto ainda pouco
estudado, desenvolvemos uma pesquisa exploratória com revisão bibliográfica e
documental. Dessa maneira, com a investigação em curso, foi possível organizar as

14
informações coletadas, reposicioná-las e correlacioná-las a fim de conferir certo
ordenamento aos achados.
Tendo em vista a amplitude e a fragmentação típicas ao tema, buscamos manter
como eixo condutor da pesquisa a pegação no espaço urbano, de acesso público e gratuito,
e seus possíveis tensionamentos na convivência com o entorno. Toda a investigação foi
sustentada por bibliografia e fontes históricas diversificadas, de material jornalístico
generalista (revista, jornais, blog noticiosos) à legislação, passando por literatura,
fotografias e filmografia.
Igualmente, foi realizado um levantamento documental e da produção acadêmica
no Brasil, que indicou uma relativa escassez científica sobre o assunto no país. Por essa
razão, selecionamos textos científicos, livros, filmes e testemunhos que relatam
experiências internacionais análogas ao conceito de homoerotismo com o qual
trabalhamos. Dessa maneira foi possível ampliar nosso escopo de análise acerca desse
acontecimento mundano e, de certo modo, clandestino. Essa opção metodológica nos
permitiu trazer para o debate o cruising, o cottage e o sexo nas tearooms do universo
anglófono, bem como a experiência da drague francesa, alguns dos exemplos abordados ao
longo deste trabalho.
Outra vertente metodológica abriu o estudo para a pesquisa de campo, realizada na
cidade de São Paulo entre outubro de 2016 e janeiro de 2018. Inicialmente, como forma de
nos aproximarmos da temática, circulamos por espaços representativos1 para a comunidade
paulistana envolvidas com as questões LGBT 2. Nesses locais foi possível estabelecer um
diálogo preliminar com frequentadores e trabalhadores que, por sua vez, indicaram
espontaneamente personagens estratégicas para a discussão sobre a pegação masculina. A
partir daí a pesquisa de campo avançou para realização de entrevistas abertas, para as
quais, conforme projeto de pesquisa aprovado em comitê de ética - Número do Parecer:
1.681.867 - intitulado “A CIDADE VIRIL: Notas sobre a produção de masculinidades nos
espaços públicos de pegação entre os homens” , foram convidados sete homens. Desses,
quatro aceitaram participar.
Os critérios de escolha dos entrevistados envolveram aspectos como inserção nos
espaços de acesso público de pegação, mas também suas atuações nas questões
relacionadas à diversidade sexual e convivência urbana em políticas públicas formais do
1
24º e 25 Festival Mix Brasil da Cultura da Diversidade; Centro da Cidadania LGBT (região central da capital
paulista); e Museu da Diversidade (Estação Republica do Metrô).
2
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros.

15
Estado, como, por exemplo, sua participação em conselhos que fazem a gestão de áreas
públicas. Parte das entrevistas foi realizada nos arredores dos locais de interação sexual. O
registro dessa experiência é dado na tese a partir da transcrição literal dos depoimentos,
mas também por anotações de diário de campo.
A investigação de campo se deu também em espaços de pegação indicados pelos
próprios entrevistados, como acima citado, sempre demarcados pelo livre acesso e pela
gratuidade das práticas. Todos esses lugares, sob a ordem da confidencialidade, são
descritos de modo a que não é possível sua identificação, exceto os já extintos ou aqueles
que de tão afamados são indicados por seus praticantes em sites de trocas públicas de
pontos de sexo casual. 3 Nesse aspecto é importante ressaltar que o interesse desta pesquisa
não foi o de revelar as experiências que seus adeptos consideram do âmbito do segredo. Ou
seja, buscamos compreender as várias facetas da pegação sem tirar da zona do segredo
aquilo que os entrevistados quiseram manter como tal.
Considerando esses aportes, este trabalho está dividido em cinco capítulos. O
primeiro, intitulado “Pegação: histórias e geografias de um mundo que nunca a quis”,
introduz o tema dessa prática a partir de sua raiz histórica sodomítica e a consequente
“colonização dos prazeres”. O segundo capítulo, “Drague, cruising, cootage, tearooms,
abbordare e outras táticas de pegação mundo afora”, insere o leitor nas geografias
estrangeiras análogas à pegação.
O terceiro capítulo, “Os discursos sobre a pegação em espaços públicos no Brasil”,
traça um panorama da história da pegação no país a partir de sua inscrição em
determinados regimes discursivos. Já o capítulo quatro, “Testemunhos e memórias da
pegação na cidade de São Paulo”, busca debater a pegação citadina como base de uma
formação “comunitária” fincada em contextos de prazer triviais e gratuitos.
No quinto e último capítulo, “À beira da pegação: identidades sexuais,
(des)colonização e novos povoamentos”, apresenta as reflexões sobre a homocultura da
pegação e os relevantes debates sobre as identidades dissidentes, os processos de
subjetivação contemporâneos e os “novos povoamentos”.4
Boa leitura!

3
https://www.gays-cruising.com/pt/sao_paulo/brasil
4
A expressão foi objeto de análise do 1º Seminário do Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP -
Novos Povoamentos, evento promovido por alunos e professores da instituição, realizado entre 29/09/2016
e 30/09/2016. Disponível em: http://novospovoamentos.wixsite.com/novospovoamentos.

16
1 PEGAÇÃO: HISTÓRIAS E GEOGRAFIAS DE UM MUNDO QUE NUNCA A QUIS

[...] A placa de censura no meu rosto diz:


Não recomendado à sociedade
A tarja de conforto no meu corpo diz:
Não recomendado à sociedade
Pervertido, mal amado, menino malvado, muito cuidado!
Má influência, péssima aparência, menino indecente, viado! (...)
Não olhe nos seus olhos/Não creia no seu coração
Não beba do seu copo/Não tenha compaixão
Diga não à aberração.

(Não recomendado, Caio Prado)5

É possível afirmar que a história das relações sexuais entre homens se confunde
com a própria história de muitas sociedades humanas. Presente em diversas culturas,
inclusive de maneiras bem distintas, sua construção não foi linear ao longo do tempo. Ao
contrário, trata-se de um processo carregado de descontinuidades, sombreamentos,
reverberações, atualizações e sobressaltos. Tampouco os sentidos de prazer, de sexo, de
afetividade, de erotismo e, sobretudo, de identidade que permeiam a homossexualidade
masculina necessariamente sempre existiram como os percebemos na atualidade.
Igualmente longo é o processo de produção do sentido de infâmia das expressões
homossexuais – sobretudo masculinas –, que vem sendo construído há milênios:

Nos últimos quatro mil anos, nas diferentes civilizações que serviram de
matriz à cultura ocidental, e na nossa própria sociedade, a
homossexualidade foi rotulada por diversos nomes atrozes que refletem o
alto grau de reprovação associado a esta performance erótica:
abominação, crime contra a natureza, pecado nefando, vício dos bugres,
abominável pecado de sodomia, velhacaria, descaração, desvio, doença,
viadagem, frescura etc. (MOTT, 2017, p. 67).

Embora herdeira desse dilatado processo, a maneira como as práticas sexuais entre
homens, ou mesmo as identidades gays, são produzidas contemporaneamente, seja para
amaldiçoá-las, criminalizá-las, patologizá-las ou, ao invés disso, para defendê-las, pertence
ao nosso tempo.
Nessa perspectiva, o sexo anônimo entre os homens em espaços públicos citadinos
– a chamada pegação – é uma espécie de dobra histórica, muito mais ampla e antiga, da

5
Trecho de música que denuncia a forte homofobia da sociedade, cantada por Almério, Johnny
Hooker e Liniker no Rock in Rio 2017.

17
qual redunda a noção de regime de infâmia homossexual. De partida, é possível afirmar
que sua existência em diversos países, regiões e localidades, a despeito de todas as
diferenças culturais e sociais entre eles, denuncia sua natureza mundana, e poderia até
apontar para o triunfo do prazer em meio à urbe. Longe disso, contudo, os regimes de
inscrição infame aos quais a homossexualidade foi submetida – e que a carregou de um
tipo de abjeção fundante – começaram a ser forjados ao partir do estabelecimento dos
crimes de sodomia na Europa medieval, chegando ao Novo Mundo pela expansão colonial.
Mas essa é só uma parte da história. A produção da infâmia homossexual também é
tributária das políticas de gestão das grandes cidades, a partir de meados do século XIX e
início do século XX, que demarcaram novas noções de público e privado, de higiene, de
anonimato. Assim é que, no tempo longo da história, os sentidos sobre a prática
homossexual foram deslizando: de ato profano, condenável por Deus, a crime previsto na
lei dos homens e patologia categorizada, portanto, passível de diagnóstico e tratamento, até
atingir o status atual, em que o homossexual é um sujeito complexo, com interioridade,
identidade, modos de vida e direitos próprios.
Nesse processo, a pegação masculina persistiu, resistiu, afrontando um mundo que
sempre a quis do lado de fora, à margem.

1.1 OS CRIMES DE SODOMIA E A COLONIZAÇÃO DOS PRAZERES

Alguns textos referem a existência de lugares de interação sexual masculina em


núcleos urbanos europeus desde o século XVII (LANGARITA ADIEGO, 2014). Bem
antes, porém, a experiência do que estamos chamando de pegação masculina,
principalmente na construção social de seu lugar de infâmia, tem suas raízes nos crimes de
sodomia ou fornicação não natural, na Europa cristã da Idade Média, sobretudo a partir do
século XII. Essa primeira inscrição infame é coetânea das proibições jurídico-religiosas,
entre as quais o adultério e a masturbação (BAZÁN, 2007; SOLÓRZANO TELECHEA,
2012; FOUCAULT, 2005; HILDEBRANDT, 2014).
Base sobre a qual se construiu a máquina medieval sodomita, o cristianismo
valorizava o matrimônio entre homens e mulheres como ideal de normalidade, imposto
inclusive nos territórios colonizados: “During the colonial period, European powers
imposed these sodomy laws on the territories they had occupied on other continents”

18
(HILDEBRANDT, 2014, p. 2326). Nas Américas, notadamente nos territórios submetidos
aos reinos de Espanha e Portugal, essa máquina de dominação dos corpos, afetos e prazeres
seria constituinte do aparato colonizador, principalmente como estratégia de subjugo dos
povos originários.
O homem europeu que chegava aos territórios invadidos observava horrorizado os
prazeres “contra a natureza”7. Na visão do colonizador, o pecado nefando, como também
era referida a sodomia, estava dentre as mais graves luxúrias e representava ofensa direta a
Deus, uma vez que o sêmen do homem não estaria sendo destinado à procriação, tida como
a função natural e religiosa das relações sexuais. Em 1513, o conquistador Vasco Nuñes de
Balboa, após matar mais de seiscentos nativos de Quarequa (Panamá), alimentou seus cães
com mais de 40 indígenas acusados de práticas sodomíticas (GOLDBERG, 1991;
FERNANDES; ARISI, 2017).
Nesse contexto, a caracterização da prática da sodomia tinha grande importância
nos processos judiciais da Santa Inquisição. Para poder julgar adequadamente, era
necessário saber o grau de gravidade do pecado nefando, que incluía também mulheres –
por exemplo, a cópula anal feminina era considerada sodomítica, embora designada como
sodomia imperfeita e, por isso, sujeita a penas bem menores do que as práticas sexuais
entre os homens, estas caracterizadas como sodomia perfeita. Destaque-se que ao longo de
quase 90 anos, entre 1576 e 1662, somente quatro casos de sodomia imperfeita foram
julgados pela inquisição espanhola no México (SALDARRIAGA, 2004).
Já no contexto da inquisição portuguesa a interpretação era outra. A sodomia
perfeita era crime nefando quando o ato sexual culminava na ejaculação 8. Nessa leitura,
mesmo entre homens, o coito anal que não terminasse no jorro seminal também se
caracterizava como sodomia imperfeita, ou coitus interruptus (MOTT, 2005).
No sentido das leis divinas, a sodomia perfeita era ainda mais grave e podia levar
seu praticante à fogueira. Podia ainda ser presumida pelos inquisidores, caso houvesse
entre homens uma relação estabelecida no estilo “marido e mulher”. Trajar-se em
desacordo com seu gênero biológico também poderia ser interpretado como sodomia.
Contudo, a prática sodomita era relativamente tolerada, segundo as etapas de vida, como

6
“Durante o período colonial, as potências europeias impuseram essas leis de sodomia aos territórios
ocupados em outros continentes” (tradução nossa).
7
Outra denominação para sodomia.
8
Detalha Luiz Mott: “[...] penetração do membro viril desonesto no vaso traseiro com derramamento de
semente”. In: Sodomia na Bahia: o amor que não ousava dizer o nome. Disponível em:
<http://www.inquice.ufba.br/00mott.html>. Acesso em: 20 ago. 2017.

19
na juventude, ou circunstâncias contingenciais – por exemplo, confinamento em prisões,
torturas, tropas e embarcações (FIGARI, 2007).
De qualquer modo, a sodomia se constituía crime gravíssimo para Coroa
portuguesa, comparável aos crimes de lesa-majestade, aqueles em que os autores
atentavam diretamente contra a vida do rei ou traíam a nação (ALVES, 2016). Sua
inscrição era destacada no Livro V das Ordenações Filipinas – código penal que vigorou
em Portugal e também no Brasil colonial a partir do século XVII –, sendo o manto da
infâmia estendido aos descendentes dos sodomitas:

Toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que peccado de sodomia,


per qualquer maneira commeller, seja queimado, e feito per fogo em pó,
para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria, e todos os
seus bens confiscados para a Coroa de nossos Reinos, posto que tenha
descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inhabiles e
infames, assi como os daqueles que cometem crime de Lesa Majestade. 9

Nas colônias espanholas as condenações por crime nefando, aberrante e abominável


iam do confisco de bens à morte na fogueira (MENEGAZZI, 2015). Na própria Espanha,
num intervalo de 160 anos (de 1540 a 1700), 380 pessoas foram processadas por sodomia
em Valência; cerca de 791 em Zaragoza; e 453 em Barcelona. Só no território valenciano
37 sodomitas foram queimados na fogueira entre 1566 e 1775 (TOMÁS et al., 1990).
De maneira geral, nos territórios coloniais ibero-americanos, segundo Molina
(2010) – que analisou os processos civis, eclesiásticos e inquisitoriais de sodomia em
Virreinato del Perú 10, entre os séculos XVI e XVII –, a sodomia era entendida como um
ato jurídico passível de punição quando baseada na consumação anal entre dois homens,
num contexto em que as mulheres eram dessexualizadas em razão da ausência de membro
viril. O aspecto mais surpreendente do estudo está na demonstração de que a
criminalização da sodomia não se restringia ao ato sexual. Ao contrário, os processos de
Virreinato descrevem uma homossociabilidade bem mais diversa do que aquela centrada
exclusivamente na prática sexual: relações afetivas (com beijos, abraços e cartas de amor),
relações econômicas (quando, por exemplo, homens mais velhos sustentavam homens mais
jovens), socialmente desiguais (entre senhores e criados) e sexualidades “pré-modernas”,

9
ORDENAÇÕES FILIPINAS ON-LINE. Coimbra: Universidade de Coimbra, [s.d.]. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1162.htm>. Acesso em: 20 ago. 2017.
10
Território colonial espanhol localizado entre o Panamá e a Terra do Fogo, no extremo Sul do continente
americano. Disponível em: <http://peruroutes.com/peru_virreinato.htm>. Acesso em: 20 ago. 2017.

20
como sodomitas ativos, invertidos, afeminados, travestidos e figuras perigosamente
amancebadas (MOLINA, 2010).
O período de imposição colonial ibérica nas Américas foi fortemente influenciado
por esse discurso de sodomia da Igreja Católica, tendo contribuição decisiva na formação
de uma cultura homofóbica que se mantém até os dias atuais em muitos países da região.
Grandes centros urbanos no Brasil e em outras nações latino-americanas nasceram sob esse
registro. No México, por exemplo, mesmo quando a prática deixou de ser crime tipificado,
após o processo de emancipação colonial, as práticas sexuais entre os homens, sobretudo
em espaços públicos, seguiram criminalizadas, então por ultraje à moral pública ou aos
bons costumes (MENEGAZZI, 2015).
Já o poder monárquico português, por suas engrenagens jurídicas e pelos tribunais
da Santa Inquisição, punia pelo sistema de degredo quem ousasse contrariar a moral
católica. Ou seja, parte dos sentenciados era mandada para as colônias ultramarinas,
punição que asseguraria a purificação de suas almas. Entre os banidos, além dos sodomitas,
estavam os bígamos, os padres sedutores e os blasfemadores.
Grande parte dos criminosos-pecadores condenados ao degredo pela inquisição
portuguesa foi enviada para o Brasil, sob uma política mais intensamente aplicada entre os
séculos XVI e XVII. Por exemplo, em 27 de maio de 1645, Francisco de Barros, um jovem
bem aparentado, serviçal de um nobre português, foi acusado de sodomia e, depois de
torturado, condenado a três anos de degredo em terras brasileiras (PIERONI, 1997).
Mesmo assim, aponta Mott (2005, p. 19)

[...] nos quase três séculos de funcionamento do Tribunal da Santa


Inquisição Portuguesa, de um total de 124 réus do crime de sodomia
condenados ao degredo, 75 (60%) foram banidos para a África, ocupando
o Brasil o segundo posto como terra de exílio dos “fanchonos” (18%).
Certamente os inquisidores imaginavam que, devido ao forte preconceito
racial dominante na época e ao “primitivismo” dos nativos, os sodomitas
brancos estariam menos tentados a copular com negros africanos do que
com os brancos ou mestiços do Brasil.

Muitos criminosos-pecadores demonstravam arrependimento e sofrimento pela


expulsão de Portugal. Contudo, também há registros de que os banidos por sodomia
continuavam suas práticas homoeróticas, sobretudo nas colônias africanas, mesmo sob a
ameaça inquisitorial de agravamento da pena em caso de reincidência. Esses tipos, vistos
como “incorrigíveis”, poderiam significar um intercambio sexual dissidente interessante no

21
cotidiano da colônia, pois o sodomita lusitano, uma vez instalado em território colonial,
acabava interagindo com as culturas homoeróticas dos povos originários submetidos ao
projeto colonizador (MOTT, 2005; PIERONI, 1997).
Neste ponto é importante observar que Mott (2005), ao valorar a ideia de
“sodomitas incorrigíveis”, acaba por considerar infundada a noção de Michel Foucault
(2005) de que a sodomia era mais próxima de uma prática anal ocasional. Para Mott, a
documentação inquisitorial portuguesa indica que havia uma cultura sodomítica
estruturada nas colônias, notadamente em terras africanas. Já para Foucault, a sodomia
circunscrevia um tipo interditado pelos antigos direitos civil e canônico. Ou seja, para o
filósofo francês, antes da constituição do sujeito homossexual, que ocorreria somente no
século XIX, o sodomita era apenas um sujeito jurídico definido por sua prática sexual:

[...] um tipo de ato interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico.
O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado,
uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida, também é
morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia
misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua
sexualidade (FOUCAULT, 2005, p. 43).

Molina (2010), ao discutir os processos jurídico-criminais dos sodomitas de


Virreinato, faz consideração similar à de Mott acerca de Foucault. Também para a autora o
sujeito jurídico no contexto colonial espanhol não era tão simples de definir, pois que havia
certa cultura sodomítica descrita nos processos civis, eclesiásticos e inquisitoriais. Por isso,
ela optou por contrapor essa ocupação homoerótica com a definição restrita de sujeito
jurídico. Segundo sua percepção, porém, a afirmação taxativa de Foucault justifica-se,
pois:

[...] proviene de lo que él mismo definiría como los “discursos del


poder” – esgrimidos tanto por teólogos modernos como por médicos y
psiquiatras decimonónicos – , los cuales, difícilmente, guardan identidad
directa con las experiencias vividas por los individuos que eran objetos
de su enunciación (MOLINA, 2010, p. 24).11

Não apenas os sodomitas enviados ao Brasil colônia eram registrados em sua


luxúria altamente condenável por Deus. Sob a lente de Portugal, todo um campo

11
“[...] provém que ele próprio definiria como os ‘discursos do poder’ – exercidos tanto por teólogos
modernos como por médicos e psiquiatras do século dezenove – que, dificilmente, mantêm identidade
direta com as experiências vividas pelos indivíduos que eram objetos de sua enunciação” (tradução nossa).

22
homoerótico indígena e as expressões sexuais dos negros escravizados, dissidentes da
norma cristã e com os quais os colonizadores tiveram contato, foram recodificados pela
máquina colonizadora como o pecado nefando, aquele “cujo nome não se podia dizer” em
voz alta. (MOTT, 2008, p. 26).
Quando o primeiro sodomita degredado desembarcou em território brasileiro, em
154712, encontrou uma terra povoada por indígenas que tinham uma visão do
homoerotismo bem distinta da lusitana (MOTT, 2008). A noção de pecado para os cristãos
e o medo do castigo divino justificavam a regulamentação sistemática da vida das pessoas
(FERNANDES; ARISI, 2017). A empreitada portuguesa estava imbuída dessa mentalidade
e, portanto, também era uma colonização de culturas afetivo-sexuais alternativas ao
domínio judaico-cristão. O modo de vida indígena, nesse sentido, precisava ser aniquilado:

Para resumir o processo de colonização do Brasil, os conceitos europeus


de sodomia, luxúria, nudez, poligamia e canibalismo estavam ligados
entre si como um enorme complexo de práticas consideradas “contra a
natureza”. O papel dos missionários jesuítas e da Coroa (...) era regular e
controlar a vida indígena, a fim de poupar Portugal do mesmo castigo
destrutivo que aconteceu com o Sodoma (FERNANDES; ARISI, 2017, p.
19, tradução nossa).

No caldo colonial que resultou no projeto de nação brasileira, porém, não apenas os
índios levavam uma vida homoerótica a ser combatida. É certo que havia na África, como
nos aponta Mott (2005), uma cultura homoerótica diversificada que se reproduziu nas
regiões para as quais os povos africanos foram enviados, inclusive o Brasil. Assim, dentre
os negros escravizados, alguns foram denunciados por sua expressão erótica divergente
daquela imposta pelo colonizador. Na ocasião da vinda do Santo Oficio à Bahia, em 1591,
por exemplo, Francisco Manicongo, negro do Congo, afamado por fazer o dito pecado com
outros negros, foi reprendido e denunciado como sodomítico paciente 13 por suas vestes
(MOTT, 2005). Aliás, segundo levantamento do próprio autor14, somente naquela região,
entre os séculos XVI e XIX, foram registrados 202 15 casos de pessoas que praticavam ou
foram infamadas de praticar o “amor que não ousava dizer o nome”. Entre elas,

12
MOTT, L. Sodomia na Bahia: o amor que não ousava dizer o nome. Salvador: Departamento de
Antropologia/UFBA, [s.d.]. Disponível em: <http://www.inquice.ufba.br/00mott.html>. Acesso em: 22 ago.
2017.
13
Numa adaptação livre para os dias atuais, mesmo sentido de homossexual passivo.
14
MOTT, L., op. cit..
15
Século XVI, 39 casos; no século XVII, 84; no século XVIII, 23; e no século XIX, 56. Idem.

23
[...] 178 homens e 24 mulheres; brancos, índios, negros e mestiços; livres
e escravos; cristãos-novos e velhos; artesãos e nobres; muitos padres;
professores e estudantes – e dois importantes governadores da primeira
capital do Brasil – Diogo Botelho e Câmara Coutinho, além do mais
célebre revolucionário baiano do Império, o Dr. Sabino Álvares, corifeu
da Sabinada.

Foi no século XVII que a Inquisição Portuguesa mais perseguiu os sodomitas, tanto
na Metrópole quanto nas colônias, daí a existência de maior volume de registros
seiscentistas sobre essa população. A partir do século XIX a documentação inquisitorial
escasseia completamente, cabendo aos médicos, aos jornalistas e aos agentes da segurança
pública a repressão e o registro de ocorrências envolvendo homossexuais.
Seguramente, os estudos de Mott acerca da homossexualidade no Brasil, sobretudo
aqueles que se debruçam sobre os Tribunais da Inquisição, demonstram como, desde a
origem do país, a máquina colonial impôs um regime de abjeção, marginalização e
criminalização das sexualidades divergentes da norma cristã. Esse primeiro processo de
produção da infâmia homossexual não apenas representou a rejeição dos sodomitas
portugueses degredados e a interdição das tradições culturais homoeróticas de algumas
nações indígenas e dos próprios negros escravizados que aqui chegavam. A infâmia
também afetou os primeiros povoamentos que se desenvolviam nas capitanias hereditárias.
Como observa, Mott (2008), vigiadas pelo Santo Ofício, essas comunidades eram
identificadas, julgadas e punidas por seus pecados nefandos, produzindo uma subjetivação
normalizadora dos prazeres e modos de existir.

1.2 A SITUAÇÃO LEGAL DA HOMOSSEXUALIDADE NO MUNDO PÓS-SODOMITA

Talvez seja difícil mensurar em toda sua extensão o quanto os discursos de poder
jurídico-religiosos capturaram os modos de vida homoeróticos no mundo colonial ibero-
americano. Contudo, a constatação foucaultiana da passagem do regime de poder de
inscrição sodomita para a dimensão médico-jurídica produziu uma inflexão muito maior
para a instauração do sujeito homossexual. Ou seja, havia toda sorte de práticas, culturas,
sensibilidades e errâncias homoeróticas, mesmo na confluência entre culturas do processo
colonial moderno, que não tinham uma força fixa, uma única identidade, por mais que a
noção de sodomia já esboçasse um sujeito jurídico. Porém, o declínio da criminalização da

24
sodomia na modernização das leis de diversos Estados, a partir do final do século XVIII,
foi concomitante à inauguração do homossexual como patologia médica.
Hoje, o tema da homossexualidade, bem como suas práticas, identidades e
assimilação cultural, tem forte presença em muitas nações, principalmente no Ocidente.
Nesse campo, é possível afirmar que há duas tendências distintas. A primeira ocorre nos
países que insistem em tratar os homossexuais como criminosos ou doentes, atualizando,
por assim dizer, a perseguição sodomítica medieval. Na segunda tendência estão as nações
que mais ou menos tentam abandonar e superar essa visão, garantindo a essa população
direitos e dando status de normalidade ao seu comportamento sexual-afetivo, mesmo sob
forte heteronormatividade, que tem como consequência, em muitos casos, expressiva
demarcação homofóbica.
Nesse segundo caso, já há alguns séculos, teve início um processo de retirada dos
crimes de sodomia do ordenamento jurídico dos Estados nacionais: “A partir do final do
século XVII e em setores muito restritos, a ideia de diferenciação entre pecado e crime
como parte de uma relação mais geral entre religião e direito começara a surgir no
continente europeu” (TOMÁS et al., 1990, p. 66; tradução nossa). Durante o Iluminismo,
os tabus religiosos começaram a perder espaço na Europa, ganhando força, no século XIX,
os discursos da psicologia, medicina e filosofia jurídica, que formaram a base intelectual
da descriminalização em muitos países. Assim, aponta Hildebrandt (2014, p. 223), “[...] o
foco mudou de atos sexuais isolados para uma personalidade homossexual e foi essa noção
revisada de homossexualidade que apoiou a descriminalização em longo prazo, já que os
defensores consideraram injusto punir as pessoas por serem quem são” (tradução nossa).
Considera-se que a descriminalização dos atos homossexuais na
contemporaneidade tenha sido desencadeada na França, após a retirada da sodomia do rol
dos crimes possíveis, na revisão de seu código penal, em 1791, em pleno período
revolucionário. Puxadas pelos franceses muitas nações mundo afora modernizaram seus
ordenamentos legais, igualmente retirando as relações homossexuais de crimes previstos
diretamente em leis (RYDSTRÖM; MUSTOLA, 2007).
Mas, a exemplo do que ocorreria depois em muitos países, a descriminalização da
sodomia não evitou a penalização dos franceses flagrados pela polícia em atividades
públicas homoeróticas por crimes relacionados à decência pública (HUMPHREYS, 1975).
Essa tendência de criminalização indireta, a partir da perspectiva moral e da decência, nos
acompanha até hoje, quando se trata da expressão pública dessa ordem.

25
Segundo nos informa Hildebrandt (2014), o caminho que descriminalizou os
homossexuais foi intervalado por três grandes períodos históricos. No primeiro, entre o
final do século XVIII e o século XIX, puxados pelo modelo francês, pouco mais de 20
países tomaram o mesmo caminho, entre eles, Bélgica (1795), Espanha (1822) e Itália
(1890). Foi também nesse período que mais de uma dezena de ex-colônias europeias nas
Américas despenalizaram a homossexualidade ao revisarem seus códigos penais, como
Haiti (1826), Brasil (1831) 16, México (1872) e Argentina (1897). No segundo período,
entre 1932 e 1981, pouco mais de duas dezenas de países descriminalizaram a prática. E,
por fim, na década de 1980, pouco mais de 40 países seguiram essa tendência.
De acordo com o relatório anual da International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and
Intersex Association (ILGA) sobre a homofobia em nível global, divulgado em maio de
2017, dos 193 países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU), 122 Estados,
além de Kosovo e Taiwan, não criminalizam por lei relações sexuais consentidas entre
pessoas adultas do mesmo sexo. Em 22 deles, inclusive no Brasil, o casamento
homossexual é uma realidade. Conduto, em apenas 9 países há proibição constitucional da
discriminação por orientação sexual. Ainda, 71 países seguem o sentido oposto, ou seja,
penalizam tais relações alegando atos contranaturais, sodomia, ataque aos direitos
tradicionais e a moralidade. Desses, em 45 Estados (2 na Oceania, 6 americanos, 13
asiáticos e 24 africanos) as leis incidem sobre o homoerotismo de homens e mulheres. Em
19 países, há leis de promoção e normas que regulam a moral, restringindo a liberdade de
expressão por orientação sexual. E em pelo menos 8 ainda existe pena de morte para os
homossexuais. Países como Afeganistão, Catar, Emirados Árabes, Mauritânia, Paquistão,
Iraque e Irã (os dois últimos territórios do chamado Estado Islâmico) podem decretar a
morte de homossexuais nos tribunais das leis islâmicas da Sharia (CARROLL; MENDOS,
2017). A seguir, na Figura 117, o cenário jurídico-legal, em âmbito mundial, da
criminalização segundo orientação sexual.

16
Em 1830, oito anos após a Independência de Portugal, Dom Pedro I assinou o Código Penal Imperial.
Entre outras disposições, a nova lei eliminou todas as referências à sodomia. A legislação foi influenciada
pelas ideias de Jeremy Bentham, pelo Código Penal francês de 1791, Código Napolitano de 1819 e o Código
Napoleônico de 1810, que descriminalizavam as relações sexuais consentidas entre adultos. No entanto, o
artigo 280 do código brasileiro estabeleceu punições a atos públicos de indecência, que variavam de 10 a 40
dias de prisão e uma multa correspondente à metade do tempo cumprido. Essa disposição deu à polícia o
poder discricionário para determinar em que constituía um ato público de indecência. Também lhe deu o
poder de extorquir dinheiro daqueles ameaçados de prisão ou detenção. In: GREEN, James N. Disponível
em: <http://www.brazzil.com/blamar00.htm>. Acesso em: 17 set. 2017.
17
INTERNATIONAL LESBIAN, GAY, BISEXUAL, TRANS AND INTERSEX ASSOCIATION – ILGA. Leyes sobre
orientación sexual en el mundo – criminalización. [s.l.], mayo 2017 ILGA. Disponível em:

26
Figura 1 – Leis sobre orientação sexual e criminalização no mundo, 2017.

<http://ilga.org/downloads/2017/ILGA_WorldMap_SPANISH_Criminalisation_2017.pdf>. Acesso em: 22


out. 2017.

27
O caso iraquiano é particularmente alarmante, pois parece haver uma limpeza
sexual em curso, com denúncia de ao menos 500 homossexuais assassinados em 2009, em
uma das maiores campanhas de extermínio gay da história recente (SÁEZ,
CARRASCOSA, 2011). Relatos desse horror circularam também por sites relacionados
aos direitos da população LGBT, como a página oficial da OutRight Action International –
anteriormente conhecida como International Gay and Lesbian Human Rights Commission.
Entre eles, o depoimento impressionante de Yanar Mohammad, proeminente ativista dos
direitos humanos do Iraque:

[...] a milícia iraquiana implantou uma forma dolorosa de tortura contra


os homossexuais, fechando seus ânus usando “cola iraniana”. (...) Yanar
Mohammad disse à Alarabiya.net que “as milícias iraquianas
implantaram uma forma de tortura sem precedentes contra os
homossexuais usando uma cola muito forte que fecha o ânus”. Segundo
ela, a nova substância “é conhecida como Ameri gum, que é uma cola
fabricada pelo Irã, que se aplicada na pele promove uma aderência que só
pode ser removida por cirurgia. Depois de colar os ânus de homossexuais,
as milícias dão a eles uma bebida que causa diarreia. Uma vez que o ânus
está fechado, a diarreia causa a morte. Os vídeos dessa forma de tortura
estão sendo distribuídos em celulares no Iraque.18

A pavorosa realidade dos homossexuais masculinos iraquianos não é um caso


isolado, tampouco o único a chamar a atenção dos organismos internacionais de direitos
humanos. No início de 2017 a conflituosa República da Chechênia, atualmente parte da
Rússia, reeditou uma espécie de campo de concentração para homens identificados como
gays. A recente caçada chechena, reflexo de uma cultura extremamente homofóbica na
região19, parece ser patrocinada pelo próprio Estado: os gays estariam sendo retirados de
suas casas, locais de trabalho e abordados nas ruas por policiais. O governo nega as
acusações e declara não haver homossexuais no país. E, ainda que houvesse, “[...] a polícia

18
OUTRIGHT ACTION INTERNATIONAL. Iraq: torture, cruel, inhuman and degrading treatment of
LGBT people. [s.d.]. Disponível em: <https://iglhrc.wordpress.com/2009/04/20/iraq-torture-cruel-inhuman-
and-degrading-treatment-of-lgbt-people/>. O mesmo depoimento está disponível em Sáez e Carrascosa
(2011, p. 14) e no link <https://iglhrc.wordpress.com/2009/04/20/iraq-torture-cruel-inhuman-and-
degrading-treatment-of-lgbt-people/>. Acesso em: 16 out 2017.
19
“A Chechênia é uma sociedade muçulmana tradicional altamente conservadora. A homofobia é intensa e
desenfreada, e a homossexualidade é geralmente vista como uma mancha na honra da família. As pessoas
ainda realizam, ou ameaçam realizar, ‘homicídios de honra’ para ‘limpar’ as manchas percebidas na honra
de sua família” (HUMAN RIGHTS WATCH, 2017, p. 2).

28
não precisaria se preocupar, já que os próprios familiares cuidariam de enviá-los para onde
nunca mais pudessem voltar”.20
As acusações incluem a prisão, pelas autoridades locais, de mais de uma centena de
homens suspeitos de homossexualidade, além de relatos de tortura, espancamentos e
assassinatos21. Um jovem disse que foi sequestrado após ser chamado para uma reunião
por um conhecido. Tratava-se de uma armadilha: ele foi levado à força para um centro de
detenção clandestino. No local, teria se juntado a outros 30 homens em uma cela: “[...]
pessoas diferentes entravam e se revezavam em turnos para nos espancar [...]. Nos
chamavam de animais, diziam que não éramos humanos e que íamos morrer ali” 22. Depois
de alguns dias, o jovem foi liberado e entregue à família com o seguinte aviso: “Seu filho é
uma bicha. Façam o que têm de fazer com ele”. 23
A Human Rights Watch, organização internacional de direitos humanos, também
confirmou o cenário na Chechênia, acusando as autoridades locais de promoção da
homofobia estatal e incentivo à morte de homossexuais por seus próprios familiares. Em
seu site, a organização publicou alguns detalhes da “Anti-Gay Purge”24:

Uma vez capturadas, a polícia vasculhava os telefones celulares de suas


vítimas a procura de contatos de outros eventuais homossexuais,
torturando-os para indicar outros homens gays. Daí o crescimento do
número de vítimas. Vários indivíduos alegadamente morreram como
resultado dessa limpeza. (...) Muitos dos que foram libertados fugiram da
Chechênia, mas ainda enfrentam o duplo risco de serem caçados e
prejudicados pelas forças de segurança chechenas e suas próprias
famílias, caso permaneçam no território da Rússia. Alguns homens gays e
bissexuais optaram por fugir da Chechênia, apesar de não serem
diretamente afetados pela purga, porque temem que informações sobre
eles tenham sido encontradas nos telefones celulares das vítimas ou
revelados sob tortura (HUMAN RIGHTS WATCH, 2017, p. 1-2;
tradução nossa).

Igualmente terríveis são os relatos de tortura de homens que sobreviveram às


detenções ilegais nesses campos de concentração. Sequestrados, foram submetidos a

20
OLIVEIRA, C. Na Chechênia, governo isola, persegue e mata homossexuais. CartaCapital, [s.l.], 21 junh.
2017. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/mobiliza/na-chechenia-governo-persegue-isola-e-
mata-homossexuais>. Acesso em: 16 out. 2017.
21
Idem.
22
‘CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO PARA HOMOSSEXUAIS': a crescente perseguição a gays na Chechênia. BBC
News Brasil, [s.l.], 14 abr. 2017. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-
39603792>. Acesso em: 16 out. 2017.
23
Idem.
24
Numa tradução livre, “Limpeza Antigay”.

29
espancamentos sistemáticos (“[...] we called it the “carousel”. They [security officials]
put you face down on the floor and beat you with pipes. [...] Each man gets some 70-80
blows”); a torturas por choque elétrico (“They turn the knob, electric current hits you, and
you start shaking.[...] and the pain is just insane, you scream, and scream, and you no
longer know who you are… Finally, you faint, [...], but when you come to your senses, they
start all over again”); e humilhações (“The [police officials] spat in our faces, they called
us disgusting, offensive names, they goaded us… When they finally released me, I was
close to hanging myself. I cannot live with this, I just can’t”).25

1.2.1 A Emergência da Identidade Pelo Sexo

Ao longo dos séculos as pessoas passaram de uma identidade coletivapara uma


identidade cada vez mais pessoal, e a produção identitária a partir da sexualidade
acompanhou essa tendência. Apenas recentemente as pessoas começaram a se delinear
pelo exercício do sexo. Hoje, definir-se ou ser definido como heterossexual e homossexual
é também informar sobre uma personalidade, um caráter, um modo de ser, um estilo de
vida. O que não necessariamente fazia sentido há alguns séculos.
Até o século XIX em alguma medida, havia um mundo homoerótico que não era de
interesse da seara médica. Mas, como demonstra Foucault (2005), isso mudou. E não
apenas no campo da sexualidade, mas também a noção de loucura, por exemplo. Essas
dimensões da vida humana foram tomando corpo, forma, rosto, definição, concretude
médica. Foi-se limpando tais figuras das influências religiosas, diabólicas, sociais.
Se na sodomia o crime do outro ainda podia representar o pecado de todos, a
contaminação de todos, um atentado contra um deus, agora essas figuras estavam mais
sozinhas, atomizadas, mais circunscritas ao seu corpo biológico. Uma outra lógica de
poder entrava em jogo: enfim o sodomita podia ser substituído pela figura medicalizada do

25
“[…] chamamos isso de ‘carrossel’. Eles [os oficiais de segurança] colocam você com o rosto virado para
baixo e bate nele com um tubo. (...) Cada homem recebe entre 70 e 80 golpes”; “Eles giram um botão, a
corrente elétrica te atinge e você começa a tremer. (...) a dor é simplesmente insana, você grita e grita, e
não sabe mais quem você é ... Finalmente, você desmaia, (...) mas quando recupera os sentidos, eles
começam de novo”; “Os agentes [da polícia] cuspiram nos nossos rostos, nos chamaram por nomes
desagradáveis e ofensivos, nos atacaram (...) Quando finalmente me libertaram, eu estava a ponto de me
enforcar. Eu não posso viver com isso, eu simplesmente não posso” (HUMAN RIGHTS WATCH, 2017, p. 18-
19; tradução nossa).

30
homossexual, embora continuasse em alguma medida enquadrado em sua face criminal,
quando seu jogo erótico, tomado como ato obsceno, atentasse contra a ordem pública.
Nessa perspectiva, a sexualidade médica oitocentista foi, acima de tudo uma
“máquina de rostidade”, aquela que, nos termos de Deleuze e Guattari (1995, p. 49),
identifica, disciplinariza e normatiza perfis sexuais: “Os corpos serão disciplinados, a
corporeidade será desfeita, promover-se-á a caça aos devires-animais, levar-se-á a
desterritorialização a um novo limiar, já que se saltará dos estratos orgânicos aos estratos
de significância e de subjetivação”. A partir dela, o indivíduo pôde ser reconhecido,
inscrito no conjunto de seu quadriculado: “Compreende-se que, em seu novo papel de
detector de desvianças, a máquina de rostidade não se contenta com casos individuais, mas
procede de modo tão geral quanto em seu primeiro papel de ordenação de normalidades”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p 45).
Sob esse aparato, a disciplina médica passou a reunir um conjunto de experiências
relacionadas ao que se entendia por libido sexual. Assim é que o campo da sexualidade
passou também a categorizar tanto os desejos mais estranhos quanto os mais normais.
Desse modo, enfim, determinou aquilo que era do vasto mundo erótico humano: o que
devia ser tolerável, assimilável e o que devia ser combatido nos indivíduos.

Esse valor psicológico, muito fortemente colocado na sexualidade, é um


legado da sabedoria vitoriana, embora sempre nos iludamos que não
compartilharemos mais dos seus preconceitos repressivos. A ideia de ter
uma identidade composta de uma sexualidade individual põe uma
tremenda carga sobre os sentimentos eróticos do indivíduo, uma carga
que, para alguém no século XVIII, seria muito difícil de entender
(FOUCAULT; SENNETT, 1981. p. 2).

Hoje a sexualidade informa a nossa identidade, mas ela pode estar em vários
lugares. Na Grécia antiga, a busca pela temperança, isto é pela moderação no uso dos
prazeres, desde a alimentação até as atividades sexuais, se configurava uma virtude entre
os homens, mas com quem se fazia sexo (se com homens ou mulheres, ou ambos)
importava menos e faz pouca semelhança com o modo com o qual construímos e
valorizamos sujeitos baseados em sua heterossexualidade ou homossexualidade
(FOUCAULT, 2003). Igualmente, é lícito imaginar que entre os muitos povos indígenas
massacrados pela colonização e a população negra escravizada no Brasil a individualidade
não necessariamente estivesse vinculada ao sexo do mesmo modo que construímos.

31
Contemporaneamente a identidade sexual é tão relevante porque guarda relação
com o lugar onde colocamos o corpo na vida social. Se alguém gosta de um determinado
alimento, por exemplo, talvez isso diga pouco sobre a sua identidade, mesmo que a comida
seja cada vez mais definidora das pessoas. Contudo, não é assim quando se pensa com
quem alguém faz sexo, se com homens ou mulheres; ou, no campo homoerótico
masculino, nas conhecidas posições sexuais de ativo ou passivo. Nossas identidades estão
no sexo e são passíveis de conferência, valoração, objetificação, abjetificação de
determinada pessoa, podendo definir sua expulsão da vida em comum ou mesmo seu
extermínio.
Nas sociedades ocidentais, o já consagrado princípio da identidade calçada no sexo
confere características à pessoa segundo as relações sexuais que ela estabelece, as práticas
sexuais que prefere ou, ainda, as identidades que a acompanha na possibilidade de sexo.
A sexualidade (palavra nascida no século XIX), como objeto de estudo, começou a
se configurar pela escrita médica com os primeiros tratados sobre o tema. Consolidou-se
como um campo de saber científico no mesmo período 26, momento em que se descobriu,
por exemplo, que a sexualidade feminina não é o oposto da masculina. Elas são diferentes.
A partir daí, desenhou-se como um campo de disputa social entre os sexos e os gêneros,
incialmente entre homens e mulheres e, depois, também entre heteros e homossexuais.
A patologização da sexualidade orientou-se também pelo medo. E isso demandou a
entrada em cena de profissionais especializados em lidar com as “perigosas” sexualidades
individuais.

Essa confusão sobre as pessoas se constituírem separadamente por causa


da sexualidade individual é, em parte, gerada do medo. As primeiras
investigações modernas sobre sexualidade acreditavam que estavam
abrindo a terrível caixa de Pandora, de luxúria incontida, perversão e
destrutividade na procura dos desejos sexuais das pessoas sozinhas, sem
as civilizantes restrições da sociedade (FOUCAULT; SENNETT, 1981,
p. 2).

26
“No século XX, a sexualidade se tornou de fato o objeto de uma ciência fortemente ligada à medicina: a
sexologia. Ainda que no século anterior os seus pioneiros tivessem se interessado principalmente pelas
condutas desviantes, a sexologia se inclinou, no século XX, para as profundezas do inconsciente, em
seguida, para as práticas comuns de que ela desvelava progressivamente a intimidade, antes de saturar o
espaço midiático dos anos 1970” (CORBIN et al., 2013, p. 49).

32
Outro aspecto que também foi mudando ao longo dos séculos diz respeito à própria
noção de virilidade dos homens27. Ou seja, “o exercício do macho” no interior das
sociedades moldou-as para seu conforto, segurança e tranquilidade. Ainda assim, tal lugar
de privilégio foi sendo cada vez mais contestado ao longo do século XX. Ao mesmo
tempo, a supremacia do exercício masculino como elemento organizativo das instituições
de convívio social também introduziu, no âmbito da sexualidade médica, uma ideia de que
os homens pouco viris, os homossexuais, deveriam ser tratados.
De acordo com Corbin et al. (2013), se atualmente o fenômeno sexual é visto pela
sexologia moderna a partir de uma abordagem mais social e cultural, a psicanálise vigente
até a década de 1960 influenciou fortemente o escopo de uma sexologia que produziu o
homossexual como portador de uma virilidade problemática ou duvidosa:

Os homens com virilidade incerta (homossexuais rechaçados, impotentes)


são tratados pela cura psicanalítica, cujo grau de sucesso depende do
estágio em que se distorceu o amadurecimento genital: aos “fálicos”,
Bergler promete 100% de cura, no prazo de seis a oito meses; mais
incerteza é a saída para os “orais”, cura na metade dos casos, na melhor
das hipóteses, em dois anos (CORBIN et al., 2013, p. 52).

Outro viés do estudo da sexualidade, a partir dos anos 1920, sob influência de
pesquisas estatísticas acerca dos hábitos e comportamentos da população dos Estados
Unidos, permitiu identificar a sexualidade média das pessoas e distinguir suas práticas
sexuais mais comuns. O projeto mais conhecido nesse âmbito foi o do zoologista Alfred
Kinsey, que inqueriu as atitudes sexuais do homem estadunidense após entrevistar e
consultar milhares de pessoas, publicado no ambicioso estudo intitulado Sexual behavior in
the human male, em 1948.
O Relatório Kinsey, como ficou conhecido, demonstrou que na esteira das práticas
sexuais masculinas não havia simplesmente uma maioria heterossexual e um avesso bem
menor de homens desviados para o patológico homossexualismo. Ao invés disso,
identificou expressivo número de homens que mantinham relações sexuais com outros
homens, com uma gradação importante entre os extremos da escala hetero-homo28,

27
Idem.
28
A escala Kinsey vai de 0 a 6, sendo: 0 o sujeito exclusivamente heterossexual; 1, predominantemente
heterossexual, incidentalmente homossexual; 2, predominantemente heterossexual, mais que
incidentalmente homossexual; 3, igualmente heterossexual e homossexual; 4, predominantemente
homossexual, mais que incidentalmente heterossexual; 5, predominantemente homossexual,
incidentalmente heterossexual; 6, exclusivamente homossexual.

33
indicando que uma boa parte deles não estava nos extremos, fosse ocasional ou
permanentemente. Além disso, o estudo contribuiu para

[...] tornar visíveis coisas sobre as quais não se fala, principalmente na


América puritana; ele colocou publicamente a questão da sexualidade,
retornando como uma luva à esfera do íntimo, para fazer dela um objeto
de ciência. Ele mostra, respaldado pelas cifras como base de apoio, que
práticas como masturbação são banais e, de fato, inofensivas, ou que uma
sexualidade excessiva não carrega consigo a impotência. As práticas
sexuais não são somente individuais, mas são sociais; a virilidade não se
constrói unicamente no inconsciente, mas se inscreve numa dimensão
coletiva (CORBIN et al., 2013, p. 53).

1.2.2 A Condição Heterossexual dos Indivíduos e das Sociedades

Neste ponto, é importante dizer que, assim como o homossexual, também o sujeito
heterossexual também nasceu no contexto da sexualidade médica oitocentista. Logo, ao
contrário do que muitas vezes somos levados a acreditar, a heterossexualidade não é algo
natural a todas as sociedades humanas, tampouco imutável e transcendente. O sujeito
heterossexual moderno surgiu sob o signo da patologia antes de se tornar a representação
hegemônica da identidade sexual dos humanos (GIAMI, 1999). Nesse processo, ao longo
do século XX, numa espécie de reinado carnal-afetivo, o casal heteromonogâmico
consolidou-se como modelo normativo de vida privada e de comportamento sexual (DE
MELO POLICARPO, 2016; RUBIN, 2017).
O conceito de heterossexual (e também o de homossexual) teria sido utilizado pela
primeira vez no contexto alemão, em uma carta de Karl Maria Kertbeny a Karl Heinrich
Ulrichs, ambos escritores e reformistas29 sexuais, em 1868 (KATZ, 1996). Nessa
correspondência, o heterossexual estava relacionado à escolha do parceiro para práticas
sexuais, e não exclusivamente à reprodução, como preconizava a moral jurídico-religiosa
vigente. Desse modo, alinhava-se a outros arranjos de endereçamento carnais patológicos,
definidos em esquemas homem-mulher (heterossexual), homem-homem/mulher-mulher
(homossexual), mulher ou homem consigo mesmo (monossexual) e, por fim, em práticas
com animais (hétérogène) (GIAMI, 1999). Sob esse contexto, a heterossexualidade foi

29
“O homossexual e o heterossexual foram nomeados pela primeira vez na tentativa dos reformadores da
lei alemã de fornicação antinatural de opor-se à posição inferior desse ato na hierarquia social-sexual. A
divisão homo/hetero foi então eleita pelos médicos como um meio de afirmar a supremacia dos
heterossexuais” (KATZ, 1996, p. 189).

34
ligada à ideia de “sexualidade normal”, ou seja, aquela praticada pela maior parte da
população.
Temos até aqui um primeiro e importante atributo de composição da ordem
heterossexual recente: seu limiar de normalidade. Mas apenas esse impulso inaugural não
seria suficiente para consagrar o seu reinado. Para tornar-se um esquema normativo
hegemônico tal arranjo afetivo-carnal precisaria calçar-se de outros processos regulatórios.
No contexto estadunidense, por exemplo, até meados do final do século XIX o
instinto sexual entre homens e mulheres estava mais relacionado à procriação. Então, esse
parâmetro passou a conviver com a ideia de que o desejo sexual poderia existir sem ter
como finalidade procriar. Foi da convivência conflituosa entre esses dois paradigmas,
segundo Katz (1996, p. 31), que nasceram as ideias de heterossexualidade e
homossexualidade: “Sob a influência do velho padrão reprodutivo, o novo termo
heterossexual a princípio nem sempre significou o normal e o bom”. Tanto assim,
acrescenta o autor, que uma das leituras possíveis, à época, era a de que o heterossexual
não era equiparado à prática sexual normal, mas à perversão:

[...] uma tradição que se manteve na cultura da classe média até a década
de 1920. [James G.] Kiernan [o primeiro a utilizar o termo nos EUA]
ligou heterossexual a uma de várias manifestações anormais do apetite
sexual – em uma lista de perversões sexuais (...) também eram culpados
de desvio reprodutivo. Isto é, eles revelavam tendências a métodos
anormais de gratificação – modos de ter prazer sem reproduzir a espécie
(KATZ, 1996, p. 31-32).

Mesmo assim, antes da ideia de heterossexualidade já havia um entendimento de


que para existir um instinto sexual anormal, contrário ou invertido – um problema desde o
início para o estudo da sexualidade pela medicina –, era preciso ter um instinto sexual
normal. Daí, então, inaugurou-se uma tradição de associar o anormal, portando algo
enigmático, à figura do homossexual e o normal, como algo presumido, ao heterossexual.
De acordo com Katz (1996), nas últimas décadas do século XIX, o novo termo
heterossexual ganhou o mundo, às vezes ligado à perversão não procriativa, outras vezes
ao erotismo normal e procriativo de sexo diferente. Para o autor, a teoria de Freud 30 ajudou
a fixar, tornar público e normalizar o novo ideal heterossexual:

30
“Nos primeiros anos do século XX, com a ajuda de Freud e outros médicos, o conceito de heterossexual
ambíguo e experimental, dado no período anterior, foi firmado e amplamente difundido como a ortodoxia
sexual dominante – A Mística Heterossexual –, a ideia de uma heterossexualidade essencial, eterna e

35
O século XX testemunhou a legitimidade decrescente do imperativo
reprodutivo e a aceitação pública crescente de um novo princípio de
prazer hetero. Pouco a pouco, a heterossexualidade passou a referir-se a
uma sensualidade normal relativa ao sexo oposto, livre de qualquer elo
básico com a reprodução. Mas somente nos meados dos anos 1960 o
heteroerotismo seria totalmente separado da reprodução, e o prazer sexual
de homens e mulheres seria por si só justificado (KATZ, 1996, p. 94).

Uma guinada importante nesse sentido foi a associação da prática hetero como
princípio de adequação sexual junto à vida matrimonial. Isso porque o comportamento
libidinoso fora dessa instituição seria, para a Igreja Católica, uma aberração, causa de
doenças e outros males (GIAMI,1999).
Assim, acrescenta Katz (1996), a heterossexualidade, que nos Estados Unidos, por
exemplo, começara o século XX na defensiva – como prática privada não sancionada
publicamente pela classe média respeitável e depreciada como prática de prazer de jovens
trabalhadores, negros sulistas e boêmios – se tornou uma cultura dominante e consagrada a
partir de meados dos anos 1920. Nesse momento, o heterossexual se tornou conhecido e
reconhecido, processo que atingiria o homossexual somente nas últimas décadas
novecentistas: “O patriarcalismo exige heterossexualidade compulsória (...). Esse sistema
coerente de dominação, que liga as artérias do Estado à pulsação da libido pela
maternidade, paternidade e família, tem seu ponto fraco: a premissa heterossexual. Se essa
premissa for questionada, todo o sistema desmorona...” (CASTELLS, 1999, p. 238).
Esse esquema heterossexual normativo hegemônico vem sendo
questionado/desconstruído modernamente pelas feministas e pela historiografia gay a partir
dos anos 1980. Por isso, apesar de ainda dominante, a ideia de heterossexualidade está
cada vez mais estremecida para homens e mulheres, visto que questões que sustentaram
sua existência normalizadora (o lugar do casamento, sua exclusividade nas expressões de
afeto em público, o comportamento das pessoas em relação ao sexo, o direito ao prazer, ao
orgasmo e a possibilidade ou não da procriação) estão igualmente sendo desconstruídas
(GIAMI, 1999).
Aliás, mais que uma subjetividade moderna heterossexual produtora de indivíduos,
é preciso apontar também para a uma cultura heterossexual e toda a sua extensão

normal. Quando o termo heterossexual saiu do pequeno mundo do discurso médico para o grande mundo
dos meios de comunicação de massa estadunidenses, o heterossexual passou de anormal para normal, e de
normal para normativo” (KATZ, 1996, p. 90).

36
ideológica no tecido social que regula, como, por exemplo, as instituições de intimidade.
Desse modo, é ela que organiza não somente a vida particular, mas grande parte da esfera
pública, que se torna a extensão do campo privado. Afetos, gestos, comportamentos dos
indivíduos e das coletividades são mediadas culturalmente em detalhes: “As convenções
heteronormativas da intimidade bloqueiam a construção de culturas sexuais públicas não
normativas ou explícitas” (BERLANT; WARNER, p. 553, 1998; tradução nossa). Assim,
para aqueles que foram bloqueados resta ocupar as frestas possíveis, com táticas próprias.
É o caso das cenas públicas de pegação masculina, um tipo de subproduto
marginalizado e contraventor desse sistema, em negociação com sua própria noção de
intimidade.

Um conjunto complexo de práticas sexuais confunde-se, na cultura


heterossexual, com o enredo de amor de intimidade e familismo que
significa pertencer à sociedade de uma forma profunda e normal.
Comunidade é imaginada através de cenas de intimidade, acoplamento e
parentesco; uma relação histórica com o futuro é restrita à reprodução e
narrativa geracional. Um campo inteiro das relações sociais torna-se
inteligível como heterossexualidade, e esta cultura sexual privatizada
concede em suas práticas sexuais um senso tácito de lisura e normalidade.
Este senso de retidão-incorporado em coisas e não apenas em sexo é o
que chamamos de heteronormatividade. Heteronormatividade é mais do
que ideologia, ou prejuízo ou fobia contra gays e lésbicas; é produzida em
quase todos os aspectos das formas e arranjos de vida social:
nacionalidade, o Estado e a lei; comércio; medicina; e educação
(BERLANT; WARNER, 1998, p. 554; tradução nossa).

1.2.3 (Des)Patologização e Assimilação Social da Identidade Homossexual

Atualmente, no interior da vida social dos países que descriminalizaram a


homossexualidade, a figura do pacato homem domiciliado, com direito de se casar com
alguém do mesmo sexo e, desse modo, constituir uma família, inclusive com filhos, é algo
cada vez mais corriqueiro. Ainda assim, o repouso do homem gay não é tranquilo.
Sua instituição contemporânea como sujeito de direitos foi se solidificando ao
longo do século XX. Mas antes disso, no século XIX, as relações afetivas e sexuais entre
pessoas do mesmo sexo foram patologizadas. O termo homossexualismo, nascido nos
livros de medicina e, depois, adotado nos registros policiais, inaugurou discursivamente
esse sujeito indesejável, porque doente; ao mesmo tempo, acionou os dispositivos de

37
subjugação de seus corpos, que fugiam ao controle e à regulação dos Estados modernos
(FOUCAULT, 2005).
Esse momento de expansão da linha patologizante das relações entre pessoas do
mesmo sexo foi uma substituição – um deslizamento de sentido – do olhar sodomita
medieval como aparelho de poder. A medicina, a psiquiatria e a psicologia poderiam
recobrir mais uma vez de infâmia as sexualidades que fugiam da norma vigente, agora com
argumentos e justificativas científicas, construídas em torno da figura do heterossexual.
Igualmente produzida pelo discurso médico, pouco a pouco a heterossexualidade ganhou
status de normalidade nas relações afetivo-sexuais, construída concomitantemente e no
contraponto discursivo da “anormalidade” do homossexualismo.
Assim, os homossexuais identificados sobretudo no decorrer do século XX por
esses aparelhos medicalizantes, de braços dados com os aparelhos jurídicos que
confirmavam a moral e a ordem públicas de toda a população, engrossaram os contingentes
manicomiais, tornando-se alvos, por exemplo, do poder disciplinar próprio dessas
instituições asilares. Também sofreram intervenção de uma espécie de biopoder
diretamente em seus corpos, dado que submetidos a procedimentos médicos radicais, que
iam de transplantes de testículos à ingestão obrigatória de hormônios como forma de curar
seu desvio (CORBIN et al., 2013).
Os grupos dissidentes da heteronorma mais facilmente capturados em meio à vida
urbana – e que, portanto, deveriam ser colocados para fora do sistema regulatório das
expressões sexuais –, eram aqueles que carregavam em seus corpos ou em suas práticas
sexuais as características mais infames. Ou seja, as “bichas pobres”, aqueles homens que se
travestiam de mulher para fazer programa, os que faziam dos locais públicos da cidade
espaços para trocas de prazer, para fazer pegação.
Somente na última década do século XX o termo “homossexualismo” foi retirado
da lista de doenças mentais da Classificação Internacional de Doenças da Organização
Mundial de Saúde (CID/OMS). E, por isso mesmo, desde então, com o intuito de
abandonar seu passado patológico, retirou-se da palavra o sufixo “ismo”, dando lugar à
ideia de homossexualidade. Embora tenha figurado apenas nas edições da CID e do
Manual de diagnóstico e estatística dos transtornos mentais (DSM), da Associação
Americana de Psiquiatria, o termo homossexualismo foi altamente potente na
patologização das relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, durante boa parte do

38
século XX, sobretudo em sua segunda metade. Isso porque esses são dois dos manuais
classificatórios médicos mais influentes do mundo (LAURENTI, 1984).
A despeito da intensa vigilância sobre seus corpos, os homossexuais escaparam
pouco a pouco dessa dimensão de controle da vida. Tomando áreas inteiras dos grandes
centros urbanos, imprimiram seu estilo de vida, suas subculturas com linguagens, modos
de ser, de se vestir, de realizar seus afetos e desejos, de estar no mundo.
Esse processo de construção de um espaço de resistência homoerótica é tributário,
segundo Rubin (2017), do sistema de opressão sexual na vida social, que forçou a
migração de populações desviantes da heteronorma dos pequenos para os grandes centros
urbanos. Fugindo das ameaças e da opressão manifestadas mais intensamente nas cidades
menores, esse grupo acabou por constituir comunidades nas grandes cidades, muitas delas,
aliás, marginalizadas e empobrecidas. A autora revela ainda que em meados dos anos
1980, os homossexuais estadunidenses formavam um grupo social potencialmente
criminoso, pois “[...] o único comportamento sexual adulto considerado legal em todos os
Estados [dos EUA] é a introdução do pênis na vagina no matrimônio” (RUBIN, 2017, p.
99).
São Paulo, Rio de Janeiro, Londres, Paris, São Francisco e Nova Iorque são
exemplos dessa nova onda de ocupação que se fortaleceu a partir de 1950. Tal fenômeno,
nas décadas seguintes, desembocou num duplo tensionamento da vida pública urbana,
produzindo novas formas de subjetivação do campo homoerótico da vida. Por um lado, nos
regimes identitários relacionados à luta por direitos; por outro, nos regimes de consumo.
No primeiro aspecto, principalmente após os anos 1960, pouco a pouco os
homossexuais construídos às sombras da urbe saíram às ruas iluminados, como sujeitos
sociais particulares que, junto aos seus pares, podiam se organizar em busca de melhores
condições de vida. Esse processo é tributário das lutas dos movimentos pelos direitos
homossexuais em todo mundo, sendo seu marco a chamada Revolta de Stonewall31.
Segundo Castells (1999, p. 239), os “[...] movimentos sociais em defesa dos direitos de
lésbicas e gays e a afirmação da liberdade sexual explodiram no mundo inteiro, começando

31
Nome do lendário bar nova-iorquino LGBT, um dos únicos espaços no qual a comunidade homossexual
podia se socializar na cidade de Nova York, que tinha então uma das mais rígidas leis contra a sodomia dos
Estados Unidos. Na noite do dia 28 de junho de 1969 os frequentadores do Stonewall Inn resistiram à
ordem de prisão que se seguiu a mais uma das frequentes batidas policiais. Uma multidão se reuniu na rua,
encurralando a polícia dentro do bar, que convocou reforço. O bar, então, se transformou em uma praça de
guerra, cujos confrontos violentos estenderam-se por seis dias.

39
nos Estados Unidos em 1969-70, espalhando-se depois pela Europa, para em seguida tomar
conta de quase todo o planeta”.
Para o autor, fatores como as mudanças no cotidiano de trabalho influenciaram
enormemente tal fenômeno. Em sua análise, com o avanço do capitalismo, e de sua
globalização, as condições de trabalho, sobretudo em regiões metropolitanas, se
diversificaram diante de um mercado cada vez mais flexível. Os novos regimes de
emprego liberaram determinados comportamentos individuais, antes controlados com mais
facilidade pelas grandes corporações. A força política das novas identidades sexuais foi
fundamental para a conquista de novos direitos da população homossexual – inicialmente
os gays, mas também as lésbicas, os bissexuais e, mais recentemente, travestis, transexuais
e transgêneros –, no escopo dos chamados direitos de cidadania. A luta pela
despatologização favoreceu, também, a assimilação desses grupos pelas sociedades sob o
status da diversidade sexual (RUBIN, 2017).
Tal revolução só foi possível por uma renovação identitária do homossexual. O gay
precisaria, antes de tudo, se assumir, confessar a si próprio sua orientação afetivo-sexual e,
posteriormente, comunicar à sociedade, em algum grau, essa condição, fazendo-se
representar nos diálogos com o Estado. De acordo com Sedgwick (2007), em A
epistemologia do armário, um processo nada simples. Para a autora, mesmo aqueles
assumidamente gays, em algum âmbito de sua vida, enfrenta a condição de estar dentro do
armário, de ter de lidar recuado com a homofobia de suas culturas, com o controle nos
espaços de significação social, de que são emblemáticos os ambientes familiar e de
trabalho. Nesse sentido, não se trata de uma simples escolha de estar dentro ou fora do
armário, tendo em vista a ampla violência da heteronormatividade na vida das pessoas. “O
armário é a estrutura definidora da opressão gay no século XX” (SEDGWICK, 2007, p.
26).
Sobre o segundo aspecto, igualmente após a década de 1960, o fenômeno de
guetificação das minorias sexuais nos centros urbanos, em ruas, praças e quadras
especificas e, sobretudo, os empreendimentos homossexuais para superar as violências do
gueto, gerou uma economia gay, um mercado próprio, lastreado por estabelecimentos
comerciais como saunas, boates e restaurantes (MACRAE, 1983). Esse movimento que
deslocou o gueto para o mercado, de acordo com Simões e França (2005), consolidou-se na
capital paulista em meados dos anos 1990, com uma diversificação e segmentação cada

40
vez maiores de serviços GLS32. Atualmente, o chamado pink money movimenta toda uma
economia, e está em perfeita consonância com a ordem capitalista (MORESCHI;
MARTINS; CRAVEIRO, 2011).
Para muitos, assumir em algum nível para si mesmo ou para os demais a identidade
homossexual, especialmente se amparando em um mercado de consumo, produz sentido na
circulação urbana, organiza subjetivamente a vida emocional e social, ajuda no
reconhecimento dos pares e produz sensação de pertencimento, apoio e normalidade.
Ainda assim, é possível afirmar que parte dessa assimilação dos novos modos de
subjetivação das sexualidades, pelo menos nas sociedades capitalistas contemporâneas,
acompanhou uma tendência de apropriação subjetiva nunca vista. Sonhos, sentimentos,
prazeres e outros elementos da experiência humana são, no atual contexto, altamente
capitalizáveis. Por esse motivo, modos de enfrentamento à heteronormalização correm o
risco de ser capturados e sobrecodificados como identidades sexuais replicáveis e
universalizáveis pelo sistema. Do ponto de vista macroestrutural, há em muitas das grandes
cidades ocidentais toda uma ocupação das mais diversas comunidades sexuais identitárias
que se intensifica à medida que elas se rendem a um projeto de aceitação social, rejeitando
a contestação dos valores estabelecidos.
O campo do prazer pode, em certa medida, ser conformado por modos de vida
adaptados e compatíveis com a ordem capitalista. Nessa perspectiva, as identidades
humanas de toda ordem, inclusive as sexuais divergentes da hetorenorma, podem ser
capturáveis e capitalizáveis, funcionando como “relé” (LAUPOUJADE, 2015) de
efetivação dessa ordem. Assim é que, por exemplo, a personagem homossexual nascida do
investimento do poder disciplinar em torno do prazer e também do biopoder aplicado ao
sexo corre o risco de ser formatada como uma mônada (LAUPOUJADE, 2015) investida
de controle, adotando o gay respeitável (ASSIS, 2011), um modo de vida pensado em
função do mercado. Mesmo diante do risco da captura, as lutas mundo afora das
populações LGBTTTQIA pelo direito de viver são fundamentais para sustentar outros
mundos possíveis (RUBIN, 2017). Essa abertura de possíveis se fortalece pelos processos
de singularização territoriais em constante tensionamento com as homogeneizações
globalizantes.
Mas os novos regimes de identitários e de mercado substituíram por completo as
velhas formas de sexo entre homens nos becos e outros espaços sociais obscuros?

32
Gays, lésbicas e simpatizantes.

41
Certamente que não! O caso da pegação masculina em áreas públicas é problemático
quando pensado sob essas duas dimensões contemporâneas do homoerotismo. Pois, se por
um lado, tais práticas de prazer não dependem de filiação identitária sexual para ocorrerem
e tampouco estão inscritas necessariamente num regime de saída do armário, por outro, sua
instalação ocorre por gratuidade de acesso e contato, o que não significa dizer que o
mesmo ocorre nos estabelecimentos do mercado gay. A hipótese simples de que se trataria
então de uma população de homens que, sob o manto do anonimato, mantêm-se
“enrustidos” quanto à sua identidade homossexual também é de difícil confirmação, dado
que é possível haver entre eles heteros e homossexuais convictos, solteiros e casados, com
tudo que essa elasticidade comporta.
Também, nem todos os homens que mantêm práticas homossexuais-afetivas
podem, conseguem ou desejam se renovar (integralmente ou em parte) por esse novo status
identitário ou de consumo. Isto é, a condição de subcidadania ou a impossibilidade
financeira ou afetiva de aderir ao mercado gay faz com que muitos, em maior o menor
grau, insistam em circular pelas sombras, nos guetos ou, ainda, inaugurem novas formas de
habitar a cidade, numa variação rebelde à pretensa figura do homossexual mais palatável e
adequado à ordem heteronormativa. Fundamentalmente, segundo Castells (1999, p. 239),
“[...] como os homens sempre mantiveram seus privilégios de gênero, classe e raça, a
repressão do homossexualismo era, e continua sendo, altamente seletiva socialmente”.
Portanto, argumenta o autor, as relações homossexuais masculinas fortuitas podem ser
circunstancialmente toleradas, “[...] desde que mantidas nos becos escuros da sociedade
[...]” e não desorganizem o “[...] patriarcalismo (...) a vida organizada em torno da família
heterossexual” (CASTELLS, 1999, p. 239).
Nesse sentido, a tomada de áreas de acesso público por homens que se buscam para
obtenção prazer em meio ao imperativo heterossexual é de leitura complexa. Isso porque
essa operação ocorre no limiar do que Judith Butler (2000) nomeou de “domínio de seres
abjetos”. Mas, ainda assim, segundo a autora, tal experiência de repulsa não se resume à
identificação, pois, o “[...] abjeto designa aqui [também] precisamente aquelas zonas
‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por
aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do ‘inabitável’ é
necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito” (BUTLER, 2000, p. 112).
Desse modo, há sempre um combate de vida e de morte nessas ocupações, dado que
esses territórios de prazer se instauram no centro de atenção das atualizações de controle de

42
gênero. E, assim, desafiam as explicações criminais, sanitárias, psicológicas e sociológicas,
insistindo, ainda que de modo oscilante, em frequentar esse mundo33. Para o sistema
regulatório heteronormalizador, a ameaça dessas sexualidades minoritárias consiste em
subverter a ordem privatista-consumista-familista (BERLANT; WARNER, 1998).

33
PELBART, Peter Pál. [Novos Povoamentos]. In: Palestra proferida durante a Mesa Redonda do SEMINÁRIO
NOVOS POVOAMENTOS, 30 set. 2016, São Paulo. SEMINÁRIO NOVOS POVOAMENTOS. São Paulo: PUC-SP,
2016. 0h05m15s-1h05m24s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=64unQhHj8DU>. Acesso
em: 2 jan. 2017.

43
2 DRAGUE, CRUISING, COOTAGE, TEAROOMS, ABBORDARE E OUTRAS TÁTICAS
DE PEGAÇÃO MUNDO AFORA

Um dos problemas que mais me perturbavam ao pensar sobre sexo


era a promiscuidade dos homens gays. Repetidas vezes me
espantei ao saber por amigos gays de pontos de encontro em
toaletes de restaurantes, estações rodoviárias ou, valha-nos
Minerva, da biblioteca de Yale. Que é que há? As mulheres (...)
não fazem do oferecer-se de graça a estranhos casuais, em
sórdidos lugares públicos, um estilo de vida. (...) Finalmente
percebi. Fazer sexo anônimo num beco escuro é prestar
homenagem ao sonho de liberdade masculina. O estranho
desconhecido é um deus pagão errante. O altar, como na pré-
história, é qualquer lugar onde nos ajoelhemos.

(PAGLIA, 1993, p. 36)

Uma dúvida que atravessou esta pesquisa foi se havia em outros países registros de
experiências da pegação, tal qual ocorre no Brasil. Essa não foi uma questão fácil de
responder, dado que as práticas sexuais em espaços públicos são táticas para obtenção de
prazer entre homens que subvertem o cotidiano das cidades. E, por isso, não se trata apenas
de pesquisar os registros internacionais de vivências homossexuais. É preciso entendê-las e
destacar aquelas que se assemelham à pegação.
Além disso, a expressão “pegação” é substancialmente coloquial, apesar de muito
conhecida entre seus praticantes, no caso brasileiro, resguardas variantes regionais no
próprio país. Ainda, como se refere a práticas anônimas e de difícil identificação, não há
muitos registros disponíveis. Contudo, através da própria internet, em sites estrangeiros de
pegação, foi possível localizar algumas expressões que os praticantes utilizam para se
referir a práticas sexuais gratuitas em espaços públicos e, a partir daí, acessar experiências
acadêmicas que trabalharam com a temática.
Surpreendentemente, apesar da dificuldade de acessar livros e artigos que tratam da
pegação mundo afora, foi possível identificar um universo de pesquisas relativamente
extenso em determinados países. Longe de pretender esgotar essa produção, acreditamos
que há entre essas experiências, incluindo o presente trabalho, interlocuções bastante
interessantes.

44
Num apontamento inicial podemos considerar que o sexo casual34 entre os homens
existe e instaura realidades em diferentes contextos urbanos contemporâneos, que, como
no Brasil, parecem ter acompanhado o desenvolvimento das cidades tal qual as
conhecemos. Também podemos considerar que a pegação e outras práticas similares
subvertem os centros e as bordas da urbe, tencionando a constituição moderna de
privacidade e a noção de público/privado. Justamente por isso a comprovação histórica do
homoerotismo masculino em locais públicos ocorre primeiramente nos registros médicos e
policiais.
A exemplo do que ocorre no território brasileiro, apesar dos vários sentidos que o
termo tem adquirido ao longo do tempo, também em outros países a pegação facilmente se
associa a ocupações homoeróticas urbanas. Essa identificação se dá pelos cruising grounds
no Reino Unido e nos Estados Unidos e os beats na Austrália; pela prática sexual
ritualizada em banheiros públicos das cottages britânicas e das tearooms estadunidenses
(FRANKIS; FLOWERS, 2005, p. 274). Ainda, na drague parisiense, que desde o século
XVIII se afirma como campo de prazer homoerótico às margens do rio Sena, no jardim de
Les Tuileries ou nos primeiros banheiros públicos modernos, nas famosas vespasiennes
(tasse35 para seus praticantes), no lastro do projeto de modernização da Cidade Luz
(JAURAND, 2015). Igualmente, nos locais de ligue para sexo casual entre os homens em
Barcelona, na Espanha, e na Cidade do México (SÁNCHEZ CRISPÍN; LÓPEZ LÓPEZ,
2000) ou na tetera36 dos mictórios públicos portenhos, em plena ditadura argentina. Assim
como nos locais para engate dos gajos portugueses (VIEIRA, 2010) ou na reveladora
experiência de abbordaggio dos italianos (BURGIO, 2015).

34
Por casualidade no sexo entre homens, estamos considerando as atividades sexuais gratuitas
relativamente descompromissadas dos costumes hegemônicos e mais liberadas, portanto, do script afetivo-
institucional heteronormativo. Porém, isso não significa afirmar que tais práticas sexuais não portem
sentimentos, instituições, ritualizações e temporalidades próprias.
35
“Tasse (gíria): pequenos edifícios construídos na via pública para satisfazer as necessidades naturais dos
transeuntes (...). Les tasses, cujo nome verdadeiro é ‘Vespasiennes’, apareceu em 1834 pela vontade do
prefeito de la Seine, le comte Claude-Philibert de Rambuteau”. In: BLIDON, Marianne. La dernière tasse.
EspacesTemps.net, [s.l.], 2005, non spécifié (tradução nossa). Disponível em: <https://hal.archives-
ouvertes.fr/file/index/docid/118641/filename/La_derniere_tasse.pdf>. Acesso: 16 out. 2017.
36
Nessa época, se estabeleceu um pacto de hipocrisia entre a polícia, os militares e os homossexuais
argentinos. Os banheiros públicos firmaram-se como espaço de sociabilidade homossexual por excelência,
onde todos se encontravam e o silêncio tinha um preço, muitas vezes pago pelos gays para não serem
denunciados ou detidos pelos próprios policiais participantes da “festa”. A tetera, na gíria homossexual o
banheiro público, ajuda a entender um pouco a construção da sociabilidade gay na Buenos Aires
conturbada pela ditadura (PASSAMANI, 2010).

45
Horácio Federico Sívori (2005), em sua obra Locas, chongos y gays – Sociabilidad
homosexual masculina durante la década de 1990, pesquisou a cena de interação
homoerótica masculina em Rosário, Argentina. Como explica o autor, no contexto daquela
década, loca era a gíria que designava os homossexuais argentinos mais afeminados,
enquanto os chongos representavam aqueles de performance mais rude e viril, enquanto os
gays, uma nomenclatura então recente, eram os conectados à cultura mais cosmopolita
(SÍVORI, 2005).
Assim como ocorre com a pegação no Brasil, a prática do sexo gratuito entre
homens em espaços públicos na Argentina se dá em um contexto de relativa confiança, no
qual eles podem confessar que fizeram o yiro, conjugando o verbo yirar na primeira pessoa
(SÍVORI, 2005). As táticas e os locais em que o viro ocorre são muito similares às
experiências dos demais países: caminha-se por áreas ermas, como parques públicos,
preferencialmente em horários de reduzida movimentação de pessoas, como nos períodos
noturnos, valorizando-se muito o anonimato e os códigos próprios. Como na pegação
brasileira, o viro também foi incorporado pelo mercado homossexual instalado nas cidades
argentinas (saunas, cinemas e boates). No contexto dos anos 1990, lá como cá, as salas de
bate-papo estavam apenas começando a emergir como tática para obtenção de sexo.
Neste ponto importa destacar que a construção das subjetivações homoeróticas não
é exclusividade do Ocidente. Ela se repete, ainda que com menor ressonância, em
diferentes cidades orientais: nas interações sexuais entre os homens na Turquia ou na
Macedônia, sobretudo em Skopje, sua maior cidade; nas complexas relações étnico-sexuais
entre ebachi (macedônios viris, ativos, operários, muçulmanos) e tetki (albaneses de classe
média que ocupam posição “passiva” na relação) (LAMBEVSKI, 1999); e na discreta cena
homoerótica das ruas e praças de Marrakech, onde as mulheres pouco permanecem no
espaço público e a ocupação identitária gay é quase nula, com a pegação ocorrendo nos
mesmos locais de ocupação masculina em geral (GIANFRANCO, 2011).
Também se desenrola no Parque Dongdan, em Pequim, que por décadas serviu
como refúgio para as práticas homoeróticas dos homens chineses, muito antes do pesado
regime descriminalizar, em 1997, a homossexualidade e retirá-la da lista de doenças
mentais, quatro anos depois37; e na vizinha Taiwan, no Taipei New Park, a mais famosa
pegação do país, cuja existência esteve no centro dos conflitos entre os movimentos
37
ZHANG, Harvard. For China's gay men, Dongdan Park in Beijing offers haven. LA Times, Los Angeles, Aug.
3 2015. Disponível em: <http://www.latimes.com/world/la-fg-china-gay-park-20150803-story.html>.
Acesso em: 22 out. 2017.

46
tongzhi (gays e lésbicas) por direitos e a gestão pública local38, que adotava uma política
pretensamente liberal e democrática de diversidade sexual.
De tão famosos, alguns lugares de sexo anônimo e casual estão presentes em guias
e circuitos gays de muitos países. Apesar disso, é bastante frequente a disposição pelo
anonimato, a instauração de circuitos de prazer privativos àqueles que participam das
práticas em meio aos espaços públicos e a inclusão de homens que não necessariamente se
considerem homossexuais. Ressalte-se, porém, que mesmo assim trata-se de um
acontecimento social vulgar, corriqueiro, prosaico no vai-e-vem das cidades, que, não
obstante, viu sua existência regulada pela religião, pela justiça, por higienistas, psiquiatras,
administradores públicos e, sobretudo, pela polícia, à qual coube comandar as batidas aos
locais de pegação e realizar registros criminalizantes por atentados à ordem e à moral
públicas.

2.1 O QUE FAZEM, ONDE FAZEM E A QUE HORA FAZEM: A EXPERIÊNCIA DO


SOCIÓLOGO VOYEUR

Provavelmente, a questão mais relevante que persegue esta tese desde seu início
diga respeito ao modo de abordar um assunto tão polêmico, como o sexo gratuito
masculino em locais públicos, sem que com isso incorramos num projeto delatório de
práticas sexuais já tão marginalizadas pelo sistema regulatório da heteronorma vigente.
Para tanto, ao realizarmos a pesquisa bibliográfica, por exemplo, optamos por percursos
históricos geográficos que servissem ao mesmo tempo de testemunho e de evidência dos
contextos sociais em que se instalaram seus regimes de sobrevivência ou perseguição.
Uma temática tão carregada de tabu, de difamação, de patologização e de
criminalização exige caminhar por uma linha ética muito tênue e desafiadora. Por outro
lado, ao lidar com essa existência erótica contra-hegemônica, que reluta em abandonar um
mundo que não a quer, também é possível enxergar as contradições deste mesmo mundo.
Na relativa escassez das produções acadêmicas sobre o assunto, principalmente nas
pesquisas de cientistas sociais, etnógrafos urbanos e geógrafos, se estão registrados os
motivos, os personagens, os ritos especializados e os códigos quase secretos dos habitués
dessas zonas eróticas infamadas, nem sempre, contudo, essa preocupação ética esteve

38
Sobre essa política é importante destacar que ela estava orientada por uma lógica privatista e de
consumo, que levava a parte da população de gays e lésbias com menos recursos ou marginalizada a utilizar
o parque como zona erótica pública. Nesse momento, o discurso governamental liberal mudava.

47
presente. Alguns pesquisadores frequentaram as cenas de pegação emulando os atos dos
participantes a fim de apreender e inquerir com maior fidedignidade os eventos
homoeróticos que se sucediam, mas não sem ultrapassar determinados limites. Dito de
outro modo, quando os diários de campo iluminam demais esses homens, indicando onde,
a que horas e como frequentam tais espaços, como ritualizam o prazer, o produto científico
pode fortalecer relações de poder que recortam os gêneros e as sexualidades em todo tecido
social e, assim, contribuir para o subjugo dessas minorias.
Seguramente, nesse sentido, entre os estudiosos mais citados, criticados e
controversos a embrenhar-se nas cenas de pegação para averiguar cientificamente tal
acontecimento está o sociólogo estadunidense Laud Humphreys. Em sua famosa obra
Tearoom trade: impersonal sex in public places (1975) há uma imensa lição acerca dos
perigos e dos limites éticos de uma pesquisa dessa natureza.
Entre muitos apontamentos complexos, Humphreys constata, depois de percorrer as
tearooms39 em diversas cidades dos Estados Unidos40, que o sexo entre homens em
banheiros de uso público era então uma prática disseminada. Também constatou que
homens casados com mulheres ou com uma autoimagem heterossexual perambulavam por
banheiros de lojas, estações de ônibus e bibliotecas em busca de sexo instantâneo,
descompromissado e impessoal. Focado na pegação que ocorria nas tearooms de parques
públicos, o sociólogo identificou as táticas dos homens para estabelecer a cena
homoerótica, suas predileções por banheiros ermos, de arquitetura que favoreciam a
prática, de baixa frequência pelo público em geral, com trilhas que facilitavam o acesso,
mas também a fuga, caso fossem surpreendidos. Humphreys dizia ser possível saber como
estava a cena de pegação no banheiro do parque apenas pelo número de automóveis
estacionados nos arredores.
Declarando-se surpreso com o fato de um evento social tão comum ser pouco
estudado, o autor se impôs o desafio de entender os motivos sociais, psicológicos e
fisiológicos dos praticantes da pegação. Revelou detalhes dessa cultura, como o
reconhecimento por seus praticantes das tearooms true (salas de chá verdadeiras), quando
esses espaços realmente se consagravam no roteiro homoerótico citadino, e a forte

39
Literalmente, sala de chá, gíria homossexual para os banheiros de uso público em que ocorre atividade
sexual masculina, também chamados de banheirão em algumas regiões do Brasil. Apesar de sua origem
imprecisa, para alguns autores, a ideia de chá está relacionada à urina.
40
“Eu fiz observações informais de atividade de salão de chá em Nova York, Chicago, St. Louis, Kansas City,
Des Moines, Tulsa, Denver, Los Angeles e San Francisco; a maior parte da pesquisa foi concentrada em uma
área metropolitana” (HUMPHREYS, 1975, p. 20; tradução nossa).

48
sazonalidade de algumas tearooms, mais frequentadas por homossexuais do Meio Oeste
estadunidense nos meses de abril a outubro, na chamada “temporada de caça”
(HUMPHREYS, 1975, p. 2; tradução nossa).
Ele também observou de perto as práticas sexuais desses homens, que iam do
voyeurismo e solitárias masturbações a orgias intensas. Identificou, ainda, o pouco uso
desses espaços para prostituição.
Um dado importante da pesquisa revelou que a presença de adolescentes era mal
vista nas tearooms, pois poderia trazer riscos ao jogo, problemas de ordem policial ou
mesmo de violência e agressão física aos participantes. Por isso, era uma faixa etária a ser
evitada41. Aliás, como o próprio sociólogo testemunhou, a intervenção policial por
ameaças, chantagem e criminalização 42 dos territórios homoeróticos era temida pelos
frequentadores das tearooms:

Os estatutos de sexo aplicáveis às ofensas homossexuais entre adultos


com consentimento nos cinquenta Estados [EUA] variam desde aqueles
que governam vagabundos e vadios até aqueles que condenam sodomia e
felação. Embora forçosamente aplicados pelos agentes de controle social,
esses estatutos se encaixam como uma espada sobre as tearooms.
Histórias de ataques policiais nos parques transitam constantemente nos
círculos gays, e muitos jornais em todo o país publicam nomes, endereços
e às vezes ocupações de homens que são acusados como resultado de tais
incursões (HUMPHREYS, 1975, p. 84; tradução nossa).

Admirava a astúcia daqueles homens para desmontar a cena ao menor sinal de


aproximação de pessoas de fora do jogo. E, a despeito dessas práticas sexuais se
configurarem atos de ofensa pública passíveis de criminalização, o autor constatou que,
paradoxalmente, as instalações homoeróticas de caráter coletivo não buscavam
visibilidade. Muito pelo contrário: “Exceto onde as câmeras escondidas são empregadas
pela polícia, é muito raro que o sexo na tearoom seja visto por alguém que não os
participantes, ou por uma terceira pessoa, como eu, no papel de vigia” (HUMPHREYS,
1975, p. 157; tradução nossa).

41
No original: “[…] teen-agers (‘chicken’): straights, enlisters, hustlers, and toughs. The first two constitute
threats only because their presence on the scene is apt to bring police into the action. The hustlers can be
annoying at any time but become threatening only as their role distintegrates into that of the toughs. It is
the latter who can, and do, become a source of real physical danger to those who meet in tearooms”
(HUMPHREYS, 1975, p. 83-84).
42
No original: “For example, of the 493 charges of felony for supposed homosexual conduct made during a
recent four-year period in Los Angeles County, California, 56 per cent were against persons arrested in public
restrooms” ( Ibidem, p. 17).

49
A prática também não implicava qualquer ameaça para a sociedade, pois os únicos
efeitos nocivos desses encontros, direta ou indiretamente, resultavam da atividade policial:
“A chantagem, as recompensas, a destruição de reputações e das famílias resultam da
intervenção da polícia na cena da tearoom” (HUMPHREYS, 1975, p. 163; tradução nossa).
Sempre agindo como mais um homem em busca de prazer, em sua obra o autor
instrui o modo de proceder para o pesquisador conseguir se aproximar do seu campo.
Alguns homens, tomando-o como parceiro gratuito e anônimo, davam-lhes dicas de outras
tantas tearooms espalhadas pela cidade. Para Humphreys, o sociólogo como voyeur era um
método bastante assertivo, dispensando, inclusive, os limites éticos de seu fazer.
Fornecendo uma descrição densa da arquitetura dos banheiros ocupados pelo
erotismo dissidente, o autor estava intrigado também com os grafites das tearooms. Para
ele, o volume e o conteúdo dos escritos podiam ser uma indicação de recorte de classe do
bairro/região em que o banheiro de pegação estava instalado. Ainda, tearooms mais ativas
eram aquelas que traziam muitas inscrições nas paredes e portas, referenciando o horário
de passagem de alguém ou o tamanho do seu pênis, com poucas inscrições poéticas ou
desenhos de mulher nua. Achava que as mais populares também eram aquelas frequentadas
por todo tipo de homem e não apenas os homossexuais. Nas mais de 50 anotações
detalhadas que fez, Humphreys registrou raros momentos de verbalização entre os
praticantes, indicando o silêncio como constituinte do ritual. Identificou que muitos se
envolviam episodicamente nas relações sexuais dessa natureza, seguindo a vida com uma
identidade social que conflitava com esse universo.
Preocupado em detalhar o comportamento dos desviantes, o sociólogo não queria
perder nenhuma informação. Por isso, passou a registrar parte das suas observações em um
gravador, que mantinha em seu carro. Desse modo, no ir e vir entre uma tearoom e outra,
fazia um relato verbal do que acabara de observar no campo. Assim procedeu por mais de
um ano, mapeando cuidadosamente os mais diversos hábitos desses homens, levantando
dados sobre a prática, como, por exemplo, o grande o movimento de algumas tearooms nas
primeiras horas da manhã, quando alguns praticantes preferiam fazer sexo antes de iniciar
a jornada de trabalho. Notou também que o movimento caia à medida que os parques eram
ocupados pelas famílias e crianças. Tudo descrito e quantificado por Humphreys, que
depois criou gráficos com os horários mais agitados e os dias da semana em que o
movimento de carros era maior.

50
Seu método avançou para dimensões perigosas. O autor decidiu aguardar a saída
dos homens das tearooms, anotando a placa dos seus veículos, junto com uma breve
descrição do sujeito. O passo seguinte foi identificá-los com a ajuda de “simpáticos
policiais” (HUMPHREYS, 1975, p. 38; tradução nossa), com os quais conseguiu seus
dados pessoais, sem revelar o real objetivo da sua pesquisa. Dessa maneira obteve uma
amostra final de uma centena de homens 43, cujas identidades e endereços foram revelados
posteriormente.
Mas o autor tinha um último obstáculo a vencer, antes de concluir seu estudo sobre
os comportamentos desviantes nas tearooms. De posse dos dados pessoais, selecionou
alguns homens para entrevistas complementares. O problema era que metade deles era
casada. Assim, como ele abordaria em casa chefes de família comuns, acompanhados de
suas esposas? Então o sociólogo voyeur valeu-se de uma pesquisa sobre a saúde social dos
homens na comunidade para a qual fora convidado, incluindo nela todas as perguntas que
queria fazer aos frequentadores das tearooms. Com isso, os entrevistou em suas casas sem
que soubessem que as perguntas eram parte de outra pesquisa e, consequentemente, sem o
seu consentimento.
Duramente criticado pela própria sociologia 44, Tearoom trade: impersonal sex in
public places ficaria marcado pela questão dos limites éticos nas pesquisas etnográficas e
como exemplo de trabalho de campo com potencial para causar danos aos investigados. E,
ainda que houvesse quem defendesse a obra por levantar informações inéditas sobre o
tema, estas ficaram em segundo plano em razão da polêmica metodológica adotada
(NARDI, 1996).

43
No original: “The original sample thus gained was of 134 license numbers, carefully linked to persons
involved in the homosexual encounters, gathered from the environs of ten public restrooms in four different
parks of a metropolitan area of two million people. With attrition and additions that will be described later,
one hundred participants in the tearoom game were included in the final sample” (HUMPHREYS, 1975, p.
33).
44
A versão que utilizamos da obra de Humphreys traz textos de outros autores, aprofundando o debate
sobre o assunto.

51
Figura 2 - O método voyeur de Humphreys45: detalhamento dos ritos nas tearooms.

45
Humphreys (1975, p. 35).

52
2.2 “ICI DRAGUE HOMO DEPUIS LE XIXE SIÈCLE”46

Em 2015, diante das dificuldades em encontrar referências internacionais sobre o


tema, enviei um e-mail para Andrew Israel Ross, professor de história da University of
Southern Mississippi (EUA). Eu sabia que ele tinha publicado um artigo, em 2009, sobre
os usos sexuais dos primeiros urinóis públicos masculinos instalados na capital francesa,
ainda no século XIX, ao qual eu não tinha conseguido acesso. Ross pronta e gentilmente
me respondeu anexando uma cópia de seu texto.
Foi muito importante constatar, pelo trabalho, que a prática da pegação em
banheiros públicos é secular e remonta ao projeto de modernização das cidades.
De acordo com Ross (2009), durante o século XIX, sobretudo em sua segunda
metade e especialmente no período de gestão do Barão de Haussmann, Paris passou por
grandes transformações. Os idealizadores do projeto – urbanistas, higienistas e
administradores públicos – visavam modernizar a capital francesa e, assim, facilitar a
circulação das pessoas, dos bens e dos serviços. Seguindo essa nova ordem do capital, que
incluía cuidados com a saúde pública da população – potencialmente, a mão de obra que
movia a produção –, os médicos higienistas acharam por bem instalar urinóis públicos para
que todos circulassem mais livremente. Logo, esses equipamentos se tornariam
onipresentes na paisagem urbana parisiense – antes de seu declínio, em 1931, Paris chegou
a dispor de 1.230 urinóis (HUARD, 2012). Paradoxalmente, contudo, ao instalar esse novo
regime de semiprivacidade na ordem pública, os gestores favoreceram também as trocas de
prazer sexual masculinas (ROSS, 2009).
Enquanto a figura do amor conjugal heterossexual firmava-se como norma social e
sanitária na cidade, que se modernizava e, assim, excluía outras práticas afetivo-sexuais, o
sexo nos banheiros públicos configurava-se como um recurso mais fácil e acessível
justamente por se confundir com o “[...] exercício das novas normas corporais” (ROSS,
2009, p. 64; tradução nossa). O autor destaca:

Os homens que usavam urinóis públicos para buscar sexo com outros
homens transformaram a ameaça existencial de perder o senso de si
próprios na realidade. Construídos para facilitar a circulação de pessoas
em Paris, permitindo o exercício de novas normas corporais de higiene e
propriedade, tornaram-se um local ideal para homens que procuravam
sexo com outros homens (ROSS, 2009, p. 67; tradução nossa).

46
Numa tradução livre: “Aqui se faz pegação desde o século XIX”.

53
Mesmo assim, a pegação nos banheiros públicos franceses não atravessaria o século
impunemente. Não apenas a medicina, mas também a polícia estava atenta aos hábitos de
higiene dos parisienses oitocentistas. Tanto que prendeu Eugène de Germiny em um dos
urinóis de Paris, em dezembro de 1876, surpreendido pelas autoridades num enlace sexual
(ROSS, 2009). Membro católico do Conselho Municipal de Paris, ele foi levado ao tribunal
por ofensa pública contra a decência.
Após a Revolução Francesa, no final do século XVII, com a descriminalização da
prática de sodomia e sob o manto da modernização, cresceu na cidade uma relativa
subcultura homossexual, que incluía a circulação sexual em espaços públicos como
banheiros. Apesar disso, centenas de casos como o de Eugène seriam criminalizados, a
partir do código penal então vigente, por práticas como exibicionismo e masturbação. Em
seu julgamento, o conselheiro católico se defendeu valendo-se de seu papel institucional.
Alegou que estava verificando de perto, mesmo que descuidadamente, os tipos suspeitos e
imorais que haviam tomado a capital da França (ROSS, 2009; PENISTON, 1999).
Na verdade, a Paris oitocentista apresentava uma topografia homoerótica que não
estava restrita aos urinóis. Alguns espaços, famosos pela drague47, eram descritos nos
contos libertinos desde o século XVII, entre os quais os jardins de Tuileries e do Louvre
(JAURAND, 2015; REDOUTEY, 2008). Alguns resistiram ao tempo, permanecendo até
hoje como ativas áreas de drague. Na área verde de Verrières, cerca de 10 quilômetros ao
sudoeste da capital francesa, foi encontrado em 2010 os dizeres “Ici drague homo depuis le
XIXe siècle” no painel de informações, instalado num dos acessos principais ao bosque de
Verrières. Numa tradução livre para o português, a frase diz algo como “Aqui se faz
pegação desde o século XIX” (JAURAND, 2015).
Mesmo assim, dentre os locais de drague mais célebres de Paris certamente
estavam as famosas vespasiennes, instaladas desde o século XVIII, a reboque do processo
de modernização da cidade. Também conhecidas pela gíria tasse (algo como copo, em
francês), as vespasiennes passariam por paulatina destruição a partir dos anos de 1950, até
finalmente desaparecerem da paisagem urbana entre as décadas de 1970 e 1980 48. Para

47
Mais adiante detalhamos esse conceito. Neste ponto, basta informar que, numa tradução livre, drague é
análoga à ideia de pegação.
48
O nascimento e a morte das vespasiennes foram descritos no artigo de Marianne Blidon. In: La dernière
tasse. EspacesTemps.net, [s.l.], 2005, non spécifié (tradução nossa). Disponível em: <https://hal.archives-
ouvertes.fr/file/index/docid/118641/filename/La_derniere_tasse.pdf>. Acesso em: 19 jul. 2018.

54
Huard (2012), esse processo foi desencadeado por uma nova ordem urbanística que
destruiu os antigos urinóis para instalar outros equipamentos mais higiênicos, e que
seguramente também visavam eliminar as práticas homossexuais que ocorriam dentro
deles.
Ao analisar atividades sexuais entre os homens nos banheiros públicos parisienses,
entre 1945 e 1975, esse autor levantou um número surpreendente de problemas com a
polícia. Sem contar as prisões que não se converteram em julgamentos, no caso de quem
era liberado por ser fichado pela primeira vez, só em 1950 foram contabilizadas 463
condenações por “escândalos públicos” ou “atos contra a natureza” na cidade. Mesmo em
queda, nas décadas seguintes esses números permaneceram altos: 379 em 1960; 406 em
1970; e 379 em 1974. Durante anos, um órgão policial, La Brigade Mondaine,
acompanhou, dentre outras tarefas, as atividades públicas dos homossexuais em Paris
(HUARD, 2012).
Ainda que sob grande risco de serem flagrados pela polícia, os homens persistiam
nas atividades de drague. Recobertos de infâmia, eles seguiam sob a égide do anonimato,
da obscuridade e da fugacidade de seus territórios de prazer, constantemente vigiados pelos
olhos do poder.
Segundo Huard (2012), as tasses mais frequentadas pelos dragueurs eram
justamente as que sofriam menor intervenção da polícia francesa. Contudo, ela conhecia de
perto as táticas da pegação em determinados locais. Nos arquivos policiais que o autor
levantou no período do pós-guerra, apesar de raras situações de escândalos públicos contra
o sexo anal, a felação ou mesmo beijos entre os homens nos mictórios públicos, foram
numerosas as condenações por exibicionismo ou masturbação nesses espaços:

[...] um carpinteiro de quarenta e três anos foi condenado a dois meses de


prisão e uma multa de 2.400 francos por (...) estar em um mictório na
estação de metrô de Oberkampf quando foi surpreendido pelos inspetores
masturbando seu o pênis ereto e tentando descobrir o sexo de seus
vizinhos, e, claro, descobrir um parceiro sexual (HUARD, 2012, p. 100;
tradução nossa).

Para o autor, o exibicionismo e a masturbação, mútua ou não, guardavam um senso


tático de resistência para os dragueurs na medida em que ajudavam a despistar o controle
policial ou de outro agente externo da sexualidade. Isso porque ambas as práticas se dão
por posturas corporais ambíguas, permitindo o desmonte da cena erótica com maior

55
rapidez, caso alguém fora do jogo sexual entrasse repentinamente no banheiro. Já no caso
da prática anal ou mesmo da felação, não restariam dúvidas quanto ao flagrante. Além
disso, à época, como hoje, o peso social de tais interações era muito maior, ocupando um
lugar destacado de injúria na hierarquia dos vícios ou dos chamados “atos contra a
natureza”: “Uma simples masturbação era considerada, em geral, como uma prática
ocasional, enquanto a felação ou a penetração anal denunciavam mais os costumes de
quem os praticava” (HUARD, 2012, p. 103; tradução nossa).
E mais, os encontros nesses urinóis serviam não apenas para a pegação, como
instauravam igualmente certa homossociabilidade por relações mais duradouras, sexuais ou
mesmo de amizade. Ainda assim, o que se seguiu em Paris, sobretudo após a gradual
extinção das populares vespasiennes, foi a inscrição da cultura homossexual num discurso
de dessexualização dos espaços públicos, em consonância com uma ideologia sexual
hegemônica privatizante.

A sexualidade tinha de ser privada, com a porta trancada e as janelas e


persianas fechadas também. Esses detalhes são importantes. Na verdade,
em vários casos, indivíduos que se masturbavam com a janela aberta
foram condenados pelo escândalo público, porque os vizinhos e as
vizinhas viram o espetáculo e depois o denunciaram. (...) Esse
movimento de privatização da sexualidade não era neutro. Ele estava
respondendo a um projeto de política sexual. Entre 1945 e 1968 houve
um processo de dessexualização do espaço público. O seu objetivo era
despolitizar questões sexuais (HUARD, 2012, p. 107-108; tradução
nossa).

Não apenas dessexualizar o espaço público, mas construir uma cidade nos moldes
burgueses implicava limitar a prática sexual ao privado das alcovas ou das maisons
closes. 49
Mas em que medida a drague entre os homens franceses se assemelha às
experiências brasileiras de pegação homoerótica masculina? Para não forçarmos
antecipadamente um paralelismo entre as duas expressões, é importante explicar que,
assim como a pegação, a drague refere-se tanto a rituais e táticas de aproximação sexual e
de sedução quanto aos espaços instituídos para tais práticas, como parques e banheiros
públicos, estacionamentos etc. Sua origem etimológica é a palavra latina dragge, que

49
Ver MONTAGNE, Aubier. Les filles des noces: misère sexuelle et prostitution (19e siècle). Paris:
Flammarion, 1982; e PERROT, Michelle. História da vida privada. v. 4: da Revolução Francesa à Primeira
Guerra. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

56
significa rede de pesca; em francês, há registro de sua utilização desde o século XIV. A
drague, posteriormente, seria utilizada para se referir ao universo profissional aquaviário e
portuário (ainda no século XVIII) e ao campo da engenharia e obras públicas (no século
XIX) (REDOUTEY, 2008).
No sentido que buscamos, a drague é secular e presente até hoje. Assim como no
Brasil a pegação é bastante conhecida entre as bichas, os gays, entendidos, viados, machos,
enrustidos, curiosos, ursos, cafuçus etc., a drague faz parte da cultura homoerótica
masculina da França. São dela constituinte a “[...] busca de invisibilidade durante a noite, a
dimensão de fantasia atribuída a espaços públicos das cidades, a combinação paradoxal de
mobilidade e territorialidade, uma territorialidade homossexual inseparável do corpo e do
sexo e análoga à territorialidade dos animais” (JAURAND, 2015, p. 1; tradução nossa).
Nos lugares de drague cria-se um microterritório no espaço público inicialmente
aberto a todos, ao mesmo tempo em que os códigos de acesso ao jogo são típicos e
integram os homens, inclusive os ajudando a identificar esses locais. Nessa perspectiva,
podemos pensar que a probabilidade de um homem conseguir contato sexual com outro
homem em quaisquer espaços públicos é baixa, mas não é. Nos locais de drague existe um
coletivo para isso, formado por homens que compartilham desejos e identidades plurais.
Mesmo em cada sujeito habita uma pluralidade sexual.
É importante ressaltar, porém, que se trata de uma coletividade efêmera, instalada
no anonimato por figuras que só se conectam ali e que não necessariamente defendem uma
identidade em comum: “Pode-se falar de um fragmento de espaço público especializado,
funcional, onde as fantasias de um acesso simples e imediato aos corpos estão disponíveis
e à espera” (JAURAND, 2015, p. 7; tradução nossa).
Uma importante referência à cultura da drague foi a revista homossexual francesa
Gai Pied, que circulou entre o fim dos anos 1970 e início dos 1990. Foucault sugeriu o seu
nome, contribuindo ocasionalmente com alguns textos. Em 1981, o filósofo francês
concedeu à publicação uma emblemática entrevista, intitulada De l'amitié comme mode de
vie50, na qual refletiu sobre as questões da identidade homossexual masculina, à época.
Numa das edições de 1979, em seu primeiro ano de existência, conforme citado por
Redoutey (2008), a Gai Pied faz interessante descrição da drague parisiense, apontando
suas nuances diurnas e noturnas. Na matéria, o Tuileries era citado como um lugar central
50
FOCAULT, Michel. De l'amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet
e J. le Bitoux, publicada na revista Gai Pied, Paris, n. 25, p. 38-39, abr. 1981. Disponível em: <http://michel-
foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/amizade.pdf>. Acesso em: 12mar.2018.

57
para drague ao ar livre da cidade. Durante o dia, ocorria mais perto de l`Orangerie. O ritmo
mais lento e calmo permitia aos novatos observar e aprender como a drague rolava. À
noite, após o fechamento do jardim, o melhor movimento acontecia às margens do Sena,
para onde se deslocavam os aventureiros do Arc de Triomphe du Carrousel. A cena de
pegação não começava rapidamente; alguns observam de seus arbustos em busca de
prazeres mais radicais, outros perambulam vacilantes. Mas havia também aqueles que
chegam determinados e iam embora sozinhos ou acompanhados.
Redoutey (2008, p. 8-9) apresenta algumas sutilezas da drague ao tentar diferenciá-
la do cruising (o equivalente cultural de pegação em âmbito anglo-saxão): enquanto o
cruising envolve uma experiência tática exploratória, “[...] contínua e sem repetição [...] ”,
que não é uma finalidade e sim uma potencialidade, na drague, ao invés dessa flutuação,
há um trabalho de repetição para se marcar o meio ambiente e construir as situações
sexuais.
A sexualização de determinados espaços da cidade através de conexões
homoeróticas entre os homens, ao tensionar a relação entre o público e privado, redefine as
noções de privacidade, de amor romântico. Uma nova geografia libidinal modula esses
espaços, mesmo que a atividade original para a qual foi projetada permaneça. Exemplo
disso são as pegações em parques. Muitas delas ocorrem sob um manto de invisibilidade
em áreas muito especificas, que passam despercebidas para os outros usuários (MENDÈS-
LEITE; PROTH, 1998).
Seja nas ocupações dissidentes e até mesmo contraventoras de cruising
estadunidenses, seja nas interações repletas de códigos da drague parisiense ou entre
sussurros ritualizados das técnicas de cottaging dos londrinos, independente das variações
culturais, essas práticas imprimem na dimensão pública da vida um véu prazeroso de
intimidades secretas. Apesar disso, um banheiro público, um parque, uma praia ou mesmo
uma rua continuarão sendo o que sempre foram nos outros usos da vida social, mesmo que
em certas horas, sob certos anglos e, principalmente, a partir de gestos corporais
desobedientes e obstinados, pervertam o planejamento da cidade.
Em Paris, de acordo com Mendès-Leite e Proth (1998), o “arrasto” sexual ou
drague ocorre em dois tipos de locais distintos. O primeiro é formado por locais
conhecidos por todos, populares, de grande movimento, por onde circula uma população
diversificada de parisienses, moradores da cidade e turistas de passagem. O segundo tipo

58
congrega espaços conhecidos somente por um público menor, localizados em uma região
específica ou de acesso restrito, o que acaba limitando mais a diversidade de seus habitués.
O horário também influencia na quantidade e no tipo de ocupação dessas zonas
sexuais. Há homens que circulam nesses espaços de madrugada ou pela manhã, após
saírem dos bares e boates da capital francesa. Também há ambientes povoados por certAs
figuras homoeróticas singulares, como os sadomasoquistas, e variedades étnicas e sociais
em áreas específicas ao longo do rio Sena (MENDÈS-LEITE; PROTH, 1998).
Na verdade, assim como os espaços públicos da pegação brasileira, as áreas de
drague de Paris vão da ocupação dos lugares através das práticas sexuais até a produção de
uma homossociabilidade, que pode ou não acabar em sexo fora dali (MENDÈS-LEITE;
PROTH, 1998). Como se trata, sobretudo, de táticas para obtenção de prazer que
subvertem a lógica habitual de privacidade justamente nas lacunas do público/privado, a
pouca iluminação, os relevos e as barreiras arquitetônicas produtoras de áreas de
invisibilidade são determinantes na ocupação.
Diferentemente dos banheiros de lojas, shoppings, universidades e das estações de
metrô, que podem ser fechados ao público e interrompem o investimento sexual dos
dragueurs, os espaços abertos, como as margens do Sena, operam mais na perspectiva dos
não lugares (AUGÉ, 2013). Apesar disso, no famoso rio parisiense a pegação noturna é
mais favorável, embora durante o dia também seja feita, ainda que mais discretamente.
Igualmente, no meio de alguns bosques da capital francesa, onde os homens se
encontraram para travar suas práticas de prazer a qualquer hora do dia e da noite, desde
que estejam nos lugares certos (MENDÈS-LEITE; PROTH, 1998). .
Os autores apontaram em seu diário de campo alguns hábitos dos homens
parisienses no processo da drague. O sexo oral e a masturbação individual e coletiva, por
exemplo, eram mais comuns que o sexo anal. Identificaram, também, o especial interesse
deles pelas várias formas de interações sexuais coletivas (MENDÈS-LEITE; PROTH,
1998).

2.3 PEGAÇÃO ANGLO-SAXÃ: CRUISING, TEAROOMS, COTAGGE...

Como dito na abertura deste capítulo, o sexo casual entre os homens ocorre em
diversas cidades ao redor do mundo, apresentando configurações culturais e

59
tensionamentos sociais próprios de onde ocorre. Por isso, mesmo em países que partilham
a mesma língua, não são recomendáveis as generalizações.
O termo em inglês public sex environment 51 (PSE) engloba todos os locais que os
homens utilizam em busca de sexo, como parques públicos, praias, paragens de estradas e
cemitérios (coletivamente designados cruising grounds no Reino Unido e nos Estados
Unidos e beats na Austrália) e banheiros públicos (cottages para os britânicos e tearooms
para os estadunidenses) (FRANKIS; FLOWERS, 2005).
Ocorre também que os PSE podem ser quaisquer locais corriqueiros do cotidiano
em que se combina o sexo, mesmo que ele não seja praticado ali. Por exemplo, muitos
homens preferem, a partir de diversos códigos não verbais e até verbais imperceptíveis
para quem não está no esquema, combinar o engate que ocorrerá fora dali, em ambiente
que consideram mais seguro.
Alguns estabelecimentos comerciais se apropriam e anexam o prazer homoerótico
numa perspectiva de consumo. São bares e boates com dark room, cinemas que exibem
filmes pornôs hetero e homossexuais, saunas masculinas etc. Esses espaços oferecem uma
relativa segurança para o sexo anônimo, em troca da regulação monetária dos usos dos
prazeres. Ou seja, são os que cobram pelos serviços oferecidos, inclusive a entrada no
estabelecimento.
Obviamente, integrando o mercado homossexual mundial de modo bastante
adequado à atual ordem de consumo capitalista, excluem uma parte dos homens que não
tem dinheiro ou simplesmente não quer pagar pelo uso do local. Isso produz efeitos diretos
na monetarização dos corpos erotizáveis. Por um lado, mesmo com as catracas financeiras,
o ato sexual continua gratuito; contudo, em alguns espaços o número de michês ultrapassa
o daqueles que buscam a gratuidade do prazer anônimo.
Dito de outro modo, apesar de sua natureza gratuita e dos seus métodos de
invisibilidade, a convivência dos PSE com o seu entorno não é harmônica. Quando tais
práticas sexuais são observadas por terceiros que não fazem parte do ritual (por exemplo,
os funcionários de um espaço comercial), se tornam alvo de desaprovação pública, prisões
e atualização de táticas antipegação. Essa vigilância pode ocorrer com o aumento do
contingente de trabalhadores e de seguranças nesses locais, batidas não programadas da
polícia e informativos sobre a ilegalidade das práticas sexuais. Mas também pode envolver
mudanças arquitetônicas, reformas ou até interdição dos espaços onde ocorre a pegação.

51
Ambiente público de sexo.

60
Frankis e Flowers (2005, p. 276; tradução nossa), ao comentarem sobre os PSE nos
Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, chamam atenção para o fato de que “[...] muitas
instalações sanitárias públicas foram fechadas por causa de sua reputação sexual, enquanto
as autoridades locais regularmente realizam trabalhos específicos para dificultar o sexo
público em parques (por exemplo, a limpeza de áreas de vegetação rasteira).”

2.3.1 Antes da Hookup Culture, o Cruiser Estadunidense de Lenços Coloridos


nos Bolsos

Em 2013, o sociólogo e professor Richard Miskolci (2016), da Universidade


Federal de São Carlos (UFSCar), estava intrigado com o uso dos aplicativos de celular52
para busca de parceiros amorosos e sexuais em São Francisco (EUA). O chamado hookup
culture – traduzido por ele como fast foda, em consideração ao contexto paulistano –
estava tomando o lugar do velho cruising em espaços públicos estadunidenses. A deriva
incerta, sem destino definido da antiga prática de perambular pela cidade em busca de
parceiros sexuais estava perdendo lugar para as tecnologias de virtualização do prazer,
nascidas em fins do século XX e imensamente popularizadas nos últimos anos:

Os mais velhos comentam com nostalgia sobre a decadência da cultura


dos bares e do cruising, ou seja, de uma cultura mais afeita à
experimentação sexual. (...) Quando algum [homem] surgia havia uma
análise de custo-benefício baseada na escassez de parceiros que tendia a
tornar atraente o contato com pessoas de diferente classe, idade ou
origem étnico-racial (MISKOLCI, 2016, parágrafo 64).

Ainda assim, parece que a pegação proporcionada pelos aplicativos de celular e


páginas da internet coexiste com os velhos modos de encontrar sexo casual. Tal mundo
virtual tornou-se mais um território homoerótico, porém com performações e apelos
imagéticos próprios. Os corpos projetados para as telas dos aparelhos negociam sexo
gratuito numa velocidade muito própria desse ambiente. Com tamanha facilidade de
acesso, há quem tenha decretado o fim das aventuras totalmente off-line. Mas também
existem muitos homens que são capazes de hibridizar suas táticas de pegação, surfando
tanto por velhas como novas tecnologias.
Há quase 20 anos, a pegação virtual se resumia às famosas salas de bate-papo.
Naquele momento, as conexões eram lentas e os recursos imagéticos, escassos. Os homens
52
Grindr e Tinder, entre outros.

61
usavam as salas virtuais para combinar encontros sexuais presenciais quase às escuras,
baseados basicamente na conversa digitada, por vezes tão roteirizadas que frases inteiras já
ficavam salvas no histórico do computador, prontas para serem acessadas. Eram típicas as
perguntas “passivo ou ativo?”; “como vc é?”; “o que vc curte?”; ou “tem local?”.
A vida sexual de muita gente mudou por conta desses recursos tecnológicos anos
90 do século passado, principalmente em cidades pequenas, nas quais a repressão sexual
era maior e as ocupações homoeróticas, mais escassas. Também era assim nas relações
heterossexuais liberalizadas dos territórios físicos com o advento da internet.
Eis que há poucos anos os aplicativos de “pegação”53 popularizaram as
possibilidades de enlaces sexuais. Nunca a palavra foi tão usada. Gíria afeita às minorias
sexuais por pelo menos mais de meio século, a pegação ultrapassou as fronteiras de um
campo muito particular de socialização homoerótica em contextos urbanos para colocar-se
na boca de garotas e rapazes hipsterizados pela tecnologia (MISKOLCI, 2016). “Se pegar”
virou um estilo de vida, um desapego às tradições moralizantes, um encontro fortuito ou
um fetiche também para as relações heterossexuais. A pegação virou um nude enviado pela
rede virtual. Hoje, a artista de TV interrogada pela revista de fofoca conta como foi sua
pegação com um galã qualquer.
Mas a pegação à qual estamos nos referindo, aquela mais próxima das ocupações
homoeróticas em espaços públicos da cidade, mediada ou não por um recurso virtual,
continua muito ativa. Há quem ainda prefira diretamente os acasos proporcionados pelo
anonimato ao seletivo toque no touch scream do celular.
Mas quais táticas de pegação são anteriores a esses mundos virtuais?
Seguramente o cruising, muito antes da internet, era praticado e reconhecido como
parte do amplo espectro socializante gay nos Estados Unidos. Tanto que há no The joy of
gay sex, espécie de enciclopédia do universo homossexual estadunidense, uma sessão
dedicada a explicar a arte e os ritos do cruising, em 1970: o tempo e os olhares certos para
se combinar a pegação, os melhores horários, os espaços ideais, os pontos mais tradicionais
em cada cidade (SILVERSTEIN; PICANO, 2009).
Muito antes dos aplicativos de pegação, ou mesmo das salas de bate-papo
noventistas, portanto, o cruiser surfava em ondas de flertes anônimos em busca de práticas
sexuais. Na verdade, sua lógica foi transportada em parte para o mundo virtual. Antes dos

53
Denominados de aplicativos de relacionamento num sentido mais amplo, são também muito utilizados
para práticas sexuais casuais.

62
atuais recursos tecnológicos, andava-se pela cidade em busca de alguma pegação num rito
de caça mútua.
Uma das táticas mais sutis e seguras passa pela cruzada de olhares entre
desconhecidos. A correspondência aponta as intenções, abrindo um hipertexto corporal
repleto de significados. Discretamente, os corpos dos desconhecidos se aproximam em
movimentos triviais no passeio público. O passo seguinte envolve algum contato verbal,
uma gramática própria: uma breve conversa estabelecida com termos absolutamente
corriqueiros, igualmente carregada de sentidos erotizantes. Se o repertório homoerótico
avançar, as perguntas mais explícitas ao sexo ou o melhor arranjo para esse fim concluem
o ensejo pré-sexual. Na verdade, os banheiros, parques, bares e outros locais de uso
público que se constituem como territórios de pegação acabam encurtando esse jogo
(SILVERSTEIN; PICANO, 2009).
Nos Estados Unidos, a cultura gay pós-Stonewall provocou uma ampliação de
povoamentos homoeróticos em cidades como Nova York e São Francisco. Se antes a
transmissão da identidade homossexual estava circunscrita ao contexto de feminilização
dos homens gays e sua consequente equiparação às mulheres no sistema regulatório de
gênero, nesse novo contexto homoerótico fortaleceu-se um modo de subjetivação
masculina assentada, principalmente, entre os brancos saídos das classes médias e na
clonagem imagética de figuras arquetípicas hipervirilizadas, como trabalhadores braçais,
operários. Pautado na ideia do macho, esse novo registro masculino passou a habitar os
territórios homossexuais urbanos estadunidenses, ampliando o grau de codificação cultural
do cruising (BARRETT, 2017; TAMAGNE, 2013).
De acordo com Tamagne (2013), a referência ao machismo indicava o surgimento
de uma masculinidade associada às culturas latinas nos Estados Unidos e na Europa
mediterrânea, interpretada nos países da América Latina como uma forma de compensação
do sentimento de inferioridade dado pela dominação colonial. Nesse sentido, “[...] o
machismo foi recuperado pelos gays americanos como uma resposta ao estigma de que
eram vítimas numa sociedade heterossexista” (TAMAGNE, 2013, p. 436).
Esse novo macho estadunidense, trajando calça jeans, passou a combinar os
esquemas de pegação a partir de gestuais e acessórios bem específicos e bastante
conhecidos nesses espaços, mas provavelmente sem muito sentido para o resto da
sociedade. Isso foi bem representado no filme Cruising (1980) (no Brasil, Parceiros da
noite), no qual o personagem principal, Steve Burns, interpretado por Al Pacino, precisa

63
entrar nas subculturas gays nova-iorquinas em busca de um assassino de homossexuais.
Para tanto, disfarçado de membro da comunidade, ele percorre os espaços púbicos de
cruising, especialmente aqueles vinculados à cultura sadomasoquista, bares frequentados
por homens vestindo roupas de couro, de farda etc.
Ao longo de sua errância investigativa, para não levantar suspeitas, Burns precisa
aprimorar seu disfarce não apenas vestindo-se como um homem típico da cena cruising,
mas também dominando seus códigos de comunicação, entre eles o chamado hanky codes.
Basicamente, a utilização de lenços de diversas cores nos bolsos das calças jeans para
comunicar gostos sexuais. A personagem de Al Pacino entra em uma loja localizada num
desses territórios, avista os lenços e pergunta quais são seus significados.

Figura 3. Cena 1: “Um lenço azul no bolso esquerdo de trás significa que quer sexo oral... no
bolso direito você faz um”.

Figura 4. Cena 2: “O verde do lado esquerdo diz que você é ativo, do lado direito é passivo. O
lenço amarelo do lado esquerdo significa que você faz chuva dourada54”.

54
Prática sexual que envolve urina ou o ato de urinar.

64
Figura 5. Cena 3: “... do lado direito você recebe. E o
vermelho...”.

Esses códigos, muito disseminados em bares, parques e outros locais de cruising, e


até mesmo por revistas temáticas, ao longo das décadas de 1970 e 1980, nem sempre
significavam a mesma coisa. De modo geral, os lenços coloridos e sua posição (bolso
esquerdo/bolso direito) indicavam as práticas sexuais: preto estava associado a
sadomasoquismo; azul claro, receber/fazer sexo oral; azul escuro, ser ativo/ser passivo;
marrom, fazer/receber escatologia; marrom claro, colocar/receber a língua no ânus;
mostarda, ter/querer um pênis grande; vermelho, inserir/receber mãos e braço no ânus;
pink, gosto por inserção de dildos etc. (BARRETT, 2017).
Apesar de abrangente, o sistema de lenços acabava sendo também bastante
normativo, binarizante e até excludente. Como resistência, alguns homens versáteis ou
avessos a tantas definições subvertiam o sistema posicionando o lenço junto ao corpo, sem
apontar o lado de sua preferência ou colocando nos bolsos mais de uma cor. Além disso,
nessa ideologia masculina do clone, não eram todas as interações homoeróticas que cabiam
tranquilamente. É o caso de beijos e abraços, para os quais não havia código.
Provavelmente porque exibição emocional podia ser associada a algo do campo da
feminilidade. E, na verdade, o sistema dos lenços normatizou possibilidades, mas não
definiu todo o comportamento sexual (BARRET, 2017).
O declínio do uso dos lenços, contudo, não significou o fim completo de
codificações dessa ordem nas cenas de cruising. Por exemplo, a contratualização sexual
com um desconhecido passa pelo estabelecimento de uma rápida vinculação com vistas ao
prazer para ambos. Assim, ao invés de lenços, persistem os diálogos e movimentos
corporais roteirizados sobre o que se curte, o que se faz ou o que se procura, seja nos locais
atuais de pegação espalhados pela cidade, seja nos enlaces sexuais em meio virtual. Dito de

65
outro modo, há na pegação, como em várias outras experiências sociais, uma tendência em
criar uma linguagem própria, um mundo com seus símbolos, códigos e adeptos.
Nos últimos anos, curiosamente, os goys55 começaram a se destacar em alguns sites
de notícias como um novo e polêmico grupo identitário sexual. São homens que se
consideram heterossexuais, mas que mantêm relações sexuais com outros homens. Não se
reconhecem na cultura gay vigente e são alinhados com os padrões de masculinidade e
virilidade valorizados pela sociedade. Na verdade, a questão em si não está em uma
identidade homoerótica, mas sim numa prática sexual cujos adeptos reconhecem como
brincadeiras sensuais entre homens, em geral sem penetração.
Essa posição homoerótica não é uma novidade. No Brasil, em alguns territórios de
pegação é comum o uso da expressão “sarrear” para se referir a um conjunto de práticas
entre os homens que não envolvem penetração ou muitos toques corporais. Um homem se
aproxima e diz: “Você curte um sarro?” E isso define um tipo de pegação à semelhança,
por exemplo, daquela que é proposta pelos goys. Nos Estados Unidos, essa prática pode ser
relacionada ao chamado J.O. Buddies (jerf-off buddies ou masturbação entre amigos, numa
tradução livre), uma maneira de se obter prazer sem ter muito contato, numa espécie de
parceria na “punheta”. O J.O. Buddies pode acontecer inclusive à distância, por telefone,
ampliando o repertório do sexo casual para além do sucking (sexo oral) e do fucking
(penetração) (SILVERSTEIN; PICANO, 2009).
A popularização da prática no período pré-aids fez surgir, ainda nos anos de 1970,
os chamados “[...] J.O. clubs (jerk-off clubs ou ‘clubes da punheta’)” (DE CARMARGO,
2015, p. 124). Diferentemente dos conhecidos recintos destinados ao sexo gay em diversos
estabelecimentos (os dark-rooms), esses clubes proibiam o sexo oral ou anal. Eles também
acabavam atraindo muitos homens exibicionistas, fetichistas encantados com a
visualização do pênis uns dos outros (SILVERSTEIN; PICANO, 2009).
Em Nova Iorque, Frye et al. (2014) pesquisavam o aumento de transmissão do HIV
em grupos sociais considerados mais vulneráveis ao vírus, como os homens denominados
MSM (men who have sex with men) – no Brasil indicados pela sigla HSH, homens que
fazem sexo com homens56 –, majoritariamente jovens, afrodescendentes, latinos,

55
Sob o slogan: “N0 TOPS, N0 BOTTOMS, N0 ANAL, N0 BITCHES, N0 TRANNYS, N0 MANGINAS, N0
GENDERFUKK, N0 DISRESPECT: JUST MEN WHO HAPPEN TO LOVE OTHER MEN - AS MEN. WE ARE THE
G0YS!", o site http://www.g0ys.org/ esclarece um pouco mais os ideais de seus praticantes.
56
O termo HSH é muito utilizado para identificar e acessar homens que fazem pegação, principalmente por
ONG e políticas públicas ligadas à prevenção das DST/aids.

66
homossexuais e bissexuais, quando observaram que os espaços sociais da cidade eram
locais de disputa. Nesse processo, o heterossexismo correlaciona-se com questões raciais e
de classe, reforçando a marginalização e a exclusão de determinados homens.
Esse mecanismo de intersecção raça-classe-expressão sexual também atingiria as
mesmas figuras masculinas que já eram marginalizadas pelo sistema regulatório de
consagradas comunidades gays, instaladas em áreas nobres da cidade. Até mesmo por uma
dificuldade de acesso dada pela condição periférica dos MSM, esse grupo não conseguia
desenvolver um repertório homoerótico mais diversificado nem estabelecer amizades e
relacionamentos afetivos e sexuais duradouros. Com mais dificuldade de circulação fora
das fronteiras geográficas e subjetivas do seu bairro, isolados e atados à heterossexualidade
compulsória, se encontravam triplamente desqualificados (gay/latino-negro/pobre) e
acabavam por desenvolver seu circuito homoerótico no contexto local (FRYE et al., 2014).
Como saída, muitos MSM encontravam acolhida no cruising em áreas públicas nos
arredores de suas casas, sob a proteção do anonimato, porém, mais vulneráveis ao contágio
do vírus HIV. Foi o caso de Malik, negro e soropositivo, que durante os anos 1980, em
busca de conexão e sexo com outros homens, se aventurava por Fort Greene Park, no
Brooklyn, bairro nova-iorquino em que crescera. Mais tarde, fora da sua cidade, pôde
enfim ampliar seu repertório homoerótico. Questionado sobre se não poderia viver sua
sexualidade de outra forma quando morava no Brooklyn, Malik responde: “Like I said, I
didn't think I could get out of the fucking park”57 (FRYE et al., 2014).
Igualmente, em muitas cidades brasileiras são conhecidas as áreas de pegação que
acolhem aqueles excluídos pelo sistema regulatório de acesso à vida afetiva em comum, da
qual o erotismo faz parte. Sua aceitação gratuita se contrapõe a um movimento de expulsão
demarcadamente monetizado daqueles que não se encaixam em determinados padrões de
consumo. Sendo assim, no caso do Brasil, trata-se também de um problema de classe e de
raça. São territórios muitas vezes de fácil acesso na cidade, anexados à malha urbana de
transporte ou em áreas públicas sem muitas catracas. A presença em tais locais do
“cafuçu”, gíria do universo homossexual que designa esta figura mítica, racializada e
oriunda das classes mais baixas, indica essa relação social na pegação gratuita.

57
"Como eu disse, não acho que poderia sair do maldito parque" (FRYE et al., 2014, p. 12; tradução nossa).

67
2.3.2 Sobreviventes em Terras da Rainha: o Homossexual Exemplar, a
Resistência do Cottaging e o Cruising Ecológico

As estadunidenses tearooms têm origem incerta. Como dito no início deste


capítulo, há quem diga que a associação ao chá tem relação com a urina. Mas no Reino
Unido a prática sexual entre os homens em banheiros de acesso público é conhecida como
cottaging, e parece ser tão secular quanto a ideia de drague:

O cottaging tem acontecido desde que foram construídos os sanitários


[públicos]. Na verdade, o termo ‘cottaging’ vem da natureza dos
banheiros públicos do século XIX, que eram pequenos edifícios
escondidos em parques (...). Sem uma cena gay e quando o sexo
homossexual (mesmo consentido entre adultos) era ilegal, os banheiros
eram um dos poucos lugares onde os homens podiam se encontrar.58

Também entre os britânicos as cenas de pegação não envolvem apenas aqueles que
se consideram gays. O cottage atravessou o século XX como uma atividade central na
socialização homoerótica na Grã-Bretanha:

O homem homossexual ou queer foi, portanto, definido pela atividade


sexual que ocorreu no cottage, e pelas estratégias e conhecimentos que
ele costumava encontrar em tais locais. No entanto, fora do cottage, esses
atos tinham significados divergentes para os homens que os assumiram e
não implicavam nenhuma identidade comum (SMITH, 2014, p. 90;
tradução nossa).

Em 1861, em território britânico, a condenação à pena de morte por crimes de


sodomia foi substituída pela prisão perpétua. Ainda no século XIX, a pena foi afrouxada
para até dois anos de prisão, com possibilidade de trabalhos forçados. Porém, somente em
1967 os atos homossexuais foram descriminalizados na Inglaterra e no País de Gales,
enquanto na vizinha Escócia somente em 1981 e, por fim, na Irlanda do Norte um ano após
(CARROLL; MENDOS, 2017).
De acordo com Tatchell (2017)59, ativista dos direitos LGBT essa legislação não
descriminalizou as práticas sexuais homoeróticas em locais de uso público. Muito pelo

58
WHY COTTAGING STILL MATTERS. Bent, [s.l.], Aug. 1, 2014. Disponível em:
<http://mag.bent.com/2014/08/why-cottaging-still-matters/>. Acesso em: 16 out. 2017. Tradução nossa.
59
TATCHELL, Peter. Sexual Offences Act 1967: reform and repression. London, UK – 19 July 2017. Disponível
em: <http://www.petertatchell.net/lgbt_rights/history/sexual-offences-act-1967-reform-and-repression/>.
Acesso em 02.07.2018.

68
contrário, houve um aumento imediato de prisões de homens na pegação, sob a alegação de
gross indecency (indecência grosseira). E por fim, acrescenta:

Estima-se que entre 15 e 20 mil homens gays e bissexuais foram


condenados nas décadas seguintes. Isso porque a homossexualidade foi
apenas parcialmente descriminalizada. As leis antigay restantes foram
utilizadas pela polícia de forma mais agressiva do que antes, por um
Estado que continuou a se opor à aceitação e igualdade LGBT. (...) No
total, nos 128 anos de 1885 a 2013, calculo que cerca de 100.000 homens
foram condenados por consentir em atos [pessoas] do mesmo sexo. (...)
Criminalizava homens conversando com homens ou vagabundeando em
lugares públicos com intenção homossexual, mesmo que nenhum ato
sexual acontecesse. Homens foram condenados sob esta lei após 1967; às
60
vezes por apenas sorrir e piscar para outros homens na rua.

Com isso, somente nas últimas décadas os homossexuais da Grã-Bretanha puderam


assumir uma identidade social com maior liberdade.
Renovado, o homem gay pôde então habitar a esfera pública, emergindo dos
recônditos escuros de banheiros de pegação e ampliando sua circulação social por bares e
estabelecimentos voltados para ele, até então proibidos. Essa identidade homoerótica
passava por uma subjetivação diferente dos segredos da pegação. O homossexual britânico
era, enfim, um homem público defensável pelos movimentos políticos organizados e viável
numa perspectiva comercial (SMITH, 2014).

A esfera pública gay masculina foi um desenvolvimento inovador por três


razões. Em primeiro lugar, porque permitiu o aparecimento de novas
formas públicas de sociabilidade gay. Anteriormente, a vida social queer
baseava-se em lugares que só podiam ser identificados através do
conhecimento de sinais (...), participando de culturas homossexuais
existentes ou através de redes informais de amizade (SMITH, 2014, p.
244; tradução nossa).

Nessa situação, práticas como o cottage e o cruising não entraram exatamente na


pauta reivindicatória de direitos. Organizados em comunidades e grupos políticos, os gays
agora podiam exigir pela primeira vez certa cidadania e uma maior liberdade na vida
pública. Já o cenário de sexo casual, para alguns, dava margem à associação negativa a
essa nova identidade respeitável. Além disso, era complexa a sua defesa, já que muitos dos
praticantes do sexo casual não cabiam nessa identidade: “O cottager e o cruiser foram,
portanto, tratados como figuras trágicas e objetos de piedade que, por definição, não
60
Ibidem, parágrafo 3.

69
tinham acesso às instalações da comunidade gay mais ampla” (SMITH, 2014, p. 247;
tradução nossa).
Quando Graham Kirby estava produzindo o documentário The strange decline of
the english cottage, sobre o declínio da pegação em banheiros públicos ingleses, ficou
impressionado com a quantidade de homens gays e bissexuais que lhe escreviam para
ressaltar da importância do cottaging em suas vidas: “Eles secretamente ansiavam pelos
dias em que fariam a pegação nos banheiros públicos no caminho de casa para o trabalho
ou depois, à noite. Cottaging não era apenas um ato de necessidade. Tornou-se um local de
escolha para alguns”.61
No Reino Unido, assim como no Brasil, a palavra gay ainda é carregada de sentido
abjeto e serve para ofender o outro, numa carga semântica similar à merda, numa realidade
ainda bastante homofóbica, notadamente fora das grandes cidades. Assim, dependendo de
seu contexto opressor, o cottaging ainda é a única saída para muitos homens. Tanto que
Kirby faz uma crítica bem humorada, e importante, sobre como muitos gays também
adotam o mesmo discurso de homofobia da sociedade que classifica o cottaging como
irresponsabilidade:

O cottaging tornou-se bastante semelhante àquela tia desavisada que já


não recebe um convite para o Natal. As pessoas estão preparadas para
falar sobre armadilha policial e homofobia, mas não sobre o que homens
gays fazem: ter relações sexuais. (...) A comunidade gay comprou a
histeria ligeiramente homofóbica que dizia que o cottaging era
irresponsável. Pessoas heterossexuais fazem cruzeiro – pense no
dogging62 –, mas não têm de tolerar o argumento de que outras pessoas
ou crianças podem ver. Então deixe-me apenas dizer que em todos os
anos que eu fiz cottage, nenhum membro do público nunca me viu ter
sexo. Sem filhos. Nenhum animal. Nem mesmo a minha tia desavisada.63

Mesmo que o cottaging morra, o cruising de modo geral continuará ativo. Como
em outros países com acesso popularizado à internet, os aplicativos de pegação irão
continuar a aproximar os homens interessados em sexo.

61
WHY COTTAGING STILL MATTERS. Bent, [s.l.], Aug. 1, 2014. parágrafo 8. Disponível em:
<http://mag.bent.com/2014/08/why-cottaging-still-matters/>. Acesso em: 16 out. 2017. Tradução nossa.
62
Gíria britânica que significa algo como “passear com seu cão”, mas também pode designar a prática de
sexo em locais públicos por casais heterossexuais. O dogging parece ter se popularizado no Reino Unido
nos últimos anos.
63
WHY COTTAGING STILL MATTERS. Bent, [s.l.], Aug. 1, 2014. parágrafo 11. Disponível em:
<http://mag.bent.com/2014/08/why-cottaging-still-matters/>. Acesso em: 16 out. 2017. Tradução nossa.

70
É claro, no entanto, que nos banheiros o sexo é imediato e aleatório. Você fica
aberto ao completo acaso. E, ainda que volte sempre para o local de cottage, não
necessariamente irá interagir com as mesmas pessoas. Nos aplicativos também há grande
rotatividade de homens, mas a pegação é orquestrada por uma espécie de gerenciador de
imagens. Neles, dentre outras coisas, os usuários expõem seus atributos físicos afim de
atrair interessados. Tanto que alguns deles se sentem numa espécie de açougue humano,
escolhendo peças de carnes ao mesmo tempo em que promovem a venda de suas próprias
partes do corpo.
Em outro texto, chamado “Sexo nos banheiros públicos de Londres me fez o
homem que sou hoje”64, Graham Kirby revela suas próprias experiências de cottaging,
quando mais jovem. Diz ele que buscava por sexo em banheiros sempre que podia,
acrescentando que em meados dos anos 1990, isso era fácil: “[...] pintos estavam
disponíveis basicamente em todo lugar”65. Kirby acaba confessando que ganhou grande
desenvoltura nessas aventuras:

Logo me tornei adepto dos “rituais” de cottaging – os olhares de soslaio


de um cara no mictório quando você entrava, como ele segurava o pinto
quando estava do seu lado, como ele nem estava mijando. Bater o pé
embaixo da porta de um reservado era um sinal conhecido. Posso
escrever um texto inteiro só sobre gloryholes66. Dizem que alguns caras
colocavam os pés dentro de um saco de supermercado para evitar ser
flagrados se um policial olhasse por baixo da porta. Nunca vi isso, mas
passei mensagens escritas em rolos de papel higiênico entre os
reservados. No entanto, na maioria das vezes, era só sustentar aquele
olhar por alguns segundos a mais. Aí você sabia.67

Suas confissões são muito ricas e nos ajudam a entender o clima desses banheiros,
o desenrolar do sexo e os riscos envolvidos:

Nem todo sexo acontecia nos próprios banheiros. As paredes dos


reservados eram como quadros de avisos, com horários de encontro e
telefones. Às vezes, você achava algum lugar discreto com um cara que

64
KIRBY, Graham. Vice, [s.l.] 6 out. 2015. Disponível em:
<https://www.vice.com/pt_br/article/aewy98/sexo-nos-banheiros-pblicos-de-londres-me-fez-o-homem-
que-sou-hoje>. Acesso em: 20 out 2017.
65
Ibidem, parágrafo 6.
66
Prática sexual em que o homem enfia seu pênis por um orifício afim de interagir sexualmente com outra
pessoa apenas desse modo.
67
KIRBY, Graham. Sexo nos banheiros públicos de Londres me fez o homem que sou hoje. Vice, [s.l.] 6 out.
2015. parágrafo 8. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/sexo-nos-banheiros-pblicos-de-
londres-me-fez-o-homem-que-sou-hoje>. Acesso em: 22 out 2017.

71
tinha conhecido num banheiro. Porém, para mim, nada era melhor que o
sexo no próprio banheiro. Era arriscado – os motoristas de ônibus locais
patrulhavam os banheiros –, mas eu não estava pensando com a minha
cabeça principal. Quem não se arriscaria um pouco por uma boa foda?
Era este o apelo: a falta de envolvimento emocional, de uma motivação
oculta. Era sexo pelo sexo. Mais nada.68

Em outro trecho do depoimento de Kirby, fica evidente a possibilidade de uma


prática casual de sexo também produzir relações mais duradouras de amizade, contrariando
o preconceito de muita gente a respeito dos ritos desses espaços e, até mesmo, borrando os
registros heteronormativos aplicados à vida sexual das pessoas. Numa das cenas de cottage
ele acaba conhecendo James, seu melhor amigo durante os anos de faculdade.
No Brasil, é comum entre os praticantes da pegação trocar experiências de lugares
que estão mais ou menos ativos. Por meio dessa inteligência coletiva se partilham práticas
mais seguras e também táticas para fugir de possíveis agressões e exposições. Por essas
conversas e, também, pelas rotas de cada homem da pegação sabe-se que muitos lugares
nascem e desaparecem. Nessa dinâmica, são vários os fatores que garante a sobrevivência
de locais para sexo casual. Certamente um dos fatores mais preponderantes tem a ver com
o quanto determinado local acaba chamando a atenção das autoridades.
A exemplo do que ocorre no Brasil, banheiros públicos britânicos também são
alvos constantes de intervenções antipegação – mudanças arquitetônicas dos espaços
públicos com o objetivo de evitar que os homens estabeleçam neles seu ritual homoerótico
(ver Capítulo 4). Na Inglaterra, Kirby assistiu à queda de alguns desses espaços: “O
banheiro onde conheci James foi demolido, e um shopping foi construído no lugar. As
prefeituras instalaram ‘medidas anticottaging’ e câmeras de vigilância, enquanto alguns
banheiros – os melhores – simplesmente foram fechados”.69
Por fim, ele faz uma síntese do que significou a emergência do gay respeitável e a
crise da aids para a prática do cottaging:

A comunidade gay cresceu e se tornou respeitável. Ou parece ser. O que


mudou? A crise da aids dos anos [19]80 levou a um crescimento da
homofobia, (...) um novo movimento gay enfatizou questões fáceis de
identificar, (...) e nós assinamos embaixo. O radicalismo, talvez ingênuo,
acabou desaparecendo. Se antes cumprimentávamos a sociedade hetero

68
Ibidem, parágrafo 7.
69
KIRBY, Graham. Sexo nos banheiros públicos de Londres me fez o homem que sou hoje. Vice, [s.l.] 6 out.
2015. parágrafo 21. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/sexo-nos-banheiros-pblicos-de-
londres-me-fez-o-homem-que-sou-hoje>. Acesso em: 22 out 2017.

72
com o dedo do meio, agora queremos ser como eles. Ser aceito significou
comprometer e se tornar comprometido. A vítima foi o cottaging. E,
caralho, cara, como eu sinto falta disso.70

No documentário Pointing Percy (1994)71, algumas táticas do cottage nos


banheiros públicos britânicos são reveladas e discutidas pelos seus praticantes. A obra
descreve em imagens e áudio um território libidinal silencioso, repleto de performances e
registros próprios (Figuras 6, 7 e 8).

Figura 6. Abertura de Pointing Percy: “Where is all the yours cock that needs sucking” 72 em um
banheiro de pegação.

O filme apresenta os ritos que envolvem a prática, entre os quais homens urinando
lado a lado (Figura 7) nos mictórios enquanto trocam sinais furtivos para estabelecer
contato, numa atmosfera silenciosa e de excitação sexual.

70
KIRBY, Graham. Sexo nos banheiros públicos de Londres me fez o homem que sou hoje. Vice, [s.l.] 6 out.
2015. parágrafo 21. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/sexo-nos-banheiros-pblicos-de-
londres-me-fez-o-homem-que-sou-hoje>. Acesso em: 22 out 2017.
71
CLARKE, Kristiene. Pointing Percy. Inglaterra, 1994. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=cGwU90hY6Ak>. Acesso em: 25 maio 2017.
72
Numa tradução livre: “onde está todo o pênis que preciso chupar”.

73
Figura 7. Sequência narra os ritos da pegação.

Discretamente, a câmera conduz o espectador até a cabine, na qual um homem


entra após o outro. Uma vez confinados na cabine (Figura 8), eles completam em silêncio o
ritual para realizarem o cottage com maior segurança. O homem que está de pé “calça”
estrategicamente uma sacola, enquanto o que está sentado obstrui a fechadura com uma
folha de jornal. O rapaz em pé se posiciona num anglo para dar a impressão de que há
apenas um homem na cabine, caso alguém da segurança venha verificar por debaixo da
porta.

Figura 8. Estratégias para ampliar a segurança durante a prática.

74
Ao norte de Londres localiza-se o curioso Abney Park, uma reserva natural que já
foi um cemitério. Na área, tomada por plantas e animais, é possível identificar as ruínas de
túmulos em estilo gótico. Há alguns anos, Abney Park se tornou um conhecido território de
cruising, tanto que vem chamando a atenção das autoridades municipais, que mantêm dois
monitores para, entre outros serviços, aconselhar e conscientizar 73 os homens que
frequentam o espaço para pegação.74
A prática de sexo em público em praças, áreas verdes e parques londrinos
aparentemente é comum, e não apenas para relações casuais entre homens (GANDY,
2012). De modo geral, embora o discurso público em relação à atividade de cruising
promova com frequência uma associação entre crime e perigo e uso sexual do espaço
público, esse é um processo muito mais complexo do que sugerem os moralistas. No caso
da pegação no parque-cemitério, por exemplo, parece haver uma sensação de segurança
entre seus frequentadores, pois a presença de pessoas ali favorece a chamada vigilância
natural. Segundo Gandy (2012, p. 732; tradução nossa), a questão da segurança pública

[...] suscita distinções entre “vigilância técnica” e “vigilância natural” no


sentido de que a mera presença de pessoas torna os espaços públicos mais
seguros. (...) Em Abney Park, por exemplo, o cruising por homens gays
realmente torna o local mais seguro para caminhantes solitários e outros,
uma vez que o espaço raramente está vazio, mesmo à noite.

Outro aspecto bastante interessante apontado pelo autor no cruising de Abney Park,
também verificado em outros trabalhos que estudam o tema e mesmo nas observações
feitas nesta pesquisa, diz respeito à exclusão de alguns homens das cenas comerciais de
entretenimento homossexual, seja em função de sua idade, sua aparência, pobreza ou
outras características. Em Londres, a cena de pegação parece acolher esses excluídos.
Além disso, a exemplo do que ocorre em outros locais mundo afora, inclusive no Brasil,
muitos cruisers que frequentam o parque-cemitério não se consideram homossexuais e, por
isso, caso envolvidos pelas ações de saúde pública, por exemplo, seriam enquadrados
como HSH. Abney Park, em particular, é frequentado homens de origem curda e turca,
bastante distantes da cultura gay inglesa (GANDY, 2012).

73
BROUGHTON, Ellie. Cruise controls: Abney Park sex under scrutiny. Hackney Citizen, [s.l.], 4 Aug. 2015.
Disponível em: <https://www.hackneycitizen.co.uk/2015/08/04/cruise-controls-abney-park-sex-under-
scrutiny/>. Acesso em: 22 out. 2017.
74
BARTHOLOMEW, Emma. Abney Park patrols set to monitor ‘gay cruising’. Hockney Gazette, 23 June 2015.
Disponível em: <http://www.hackneygazette.co.uk/news/health/abney-park-patrols-set-to-monitor-gay-
cruising-1-4114915>. Acesso em: 22 out. 2017.

75
A pegação em parques públicos coloca em debate o direito das diversas
sexualidades à cidade. Pois, ao mesmo tempo em que alguns desses homens não serão
assimilados pelo mercado gay cultural urbano, sobretudo por razões de classe e de raça,
também não terão lugar por completo na velha heteronormatividade. O cruising incomoda
determinados setores da sociedade porque “[...] provoca ansiedade ou mesmo violência
justamente porque ameaça a estabilidade do sujeito masculino heterossexual dentro da
cidade moderna” (GANDY, 2012, p. 741; tradução nossa). Nesse sentido, essa prática
acaba por dar um lugar no mundo a uma variedade do masculino que transcende “[...] as
classificações binárias ou simplistas da identidade sexual ou o privilégio das identidades
sexuais sobre outras categorias de diferença” (GANDY, 2012, p. 732; tradução nossa).
Como exposto neste trabalho, é patente que a pegação entre os homens margeia a
história da descriminalização dos homossexuais na maioria das sociedades ocidentais,
estando também relacionada com a recente conformação do “homossexual respeitável”
como assimilação cultural possível no sistema regulatório da heteronorma de muitos
países. Mas, no limite, a inscrição dessas experiências à margem do mundo cotidiano
desafia a noção de sujeito e da própria sexualidade.
É dizer, o desejo percorre caminhos de imprevisibilidade e casualidades, turvando
as delimitações culturais do corpo. Sua dinâmica se assenta numa complexa relação entre
corpos e espaços, que inclui cheiros, nuances, vibrações e superfícies. Não se anda por tais
locais com o mesmo corpo rotineiro. É preciso ativar condições que vão além do humano
individual. Dizemos isso porque há um erotismo particular também nas áreas ermas,
próximo das vegetações naturais e, de certa forma, mais longe das normatizações que
cerceiam o prazer. Em tais situações o corpo sexual não pertence a um homem, e sim a
elementos distintos que o desapegam de certo humanismo residual e antropotécnico
(GANDY, 2012; CARDOSO JR., 2003).
Assim, porque não são apenas uma nova paisagem a ser dominada pelo homem,
alguns locais de pegação parecem constituir seu plano de prazer com elementos naturais
não humanos. Dito de outro modo, seu entorno também o invade. Sob essa perspectiva,
Gandy (2012, p. 738) nos explica agenciamentos eróticos entre a natureza não humana e a
sexualidade humana.

Alguns escritores da natureza descrevem uma sensação de prazer erótico


na natureza, criando analogias rizomáticas entre a estrutura e a dinâmica
do crescimento das plantas, por exemplo, e a complexidade da

76
sexualidade humana (...). A experiência direta da natureza, em oposição
ao seu simulacro digital ou televisivo, carrega uma carga erótica que se
conecta com uma compreensão corpórea ou neofenomenológica da
realidade, em contraste com a direção do inconsciente (...). A revelação
da própria natureza – a “imaginação botânica” transposta para um
ambiente urbano – compartilha uma afiliação com a busca da
autenticidade sexual fora das restrições da normatividade sexual e seus
avatares digitais (tradução nossa).

Mesmo que tal observação abra um olhar para o campo homoerótico bastante
descolado de seu papel habitualmente atribuído, qual seja, de irmã vadia e marginal do gay
exemplar, para Gandy (2012), a diferença entre o sujeito homossexual marginalizado e o
sujeito homossexual respeitável tornou-se progressivamente acentuada. Isso porque este
deixou os pobres, os operários ou casados numa posição cada vez mais precária ou
anômala em relação à cultura homossexual dominante. Em Abney Park é possivel
encontrar um eco dessa cultura sexual pública mais heterogênea, que gradualmente
diminuiu em outras partes da cidade.

2.4 TERRITÓRIOS DE PEGAÇÃO ORIENTAIS: CONFLITOS ÉTNICO-RACIAIS NA


MACEDÔNIA

Em texto publicado em 1999, Sacho A. Lambevski faz interessantes reflexões sobre


a cena de pegação na cidade de Skopje, capital e maior cidade da República da Macedônia.
Tendo como fio condutor uma viagem de ônibus entre a capital Escópia e o subúrbio onde
visitaria seus pais, o autor revisita também antigas memórias de suas experiências sexuais
ruins relacionadas ao machismo e ao patriotismo fanático de seu país. Ao chegar ao
terminal de ônibus que liga a capital às cidades periféricas vizinhas – apelidado
pejorativamente pelos gays macedônios de Selska (Terminal dos Camponeses) – ele
observava um dos pontos de cruising mais quentes da capital. A pegação acontecia, já
naquele período, nos seus arredores.
Num dado momento do percurso, Lambevski (1999, p. 398; tradução nossa)
encantou-se por um rapaz que, aparentemente, correspondeu, e tremeu “[...] em silêncio
antecipando inúmeras possibilidades de prazer”. Contudo, numa cruzada de olhar, virou o
rosto com raiva, frustrado e entristecido, porque percebera que o enlace erótico não poderia
prosseguir: o belo rapaz era albanês. Reconhecido esse fato, ele imediatamente foi tomado
pela condição de “bom macedônio”. Isso tornava impossível satisfazer seu desejo com esse

77
outro, pois seu interesse sexual transformara-se em medo de uma ameaça física ou verbal à
sua integridade devido a conflitos étnico-raciais.
Preso na lógica do “bom macedônio”, em conformidade com a norma nacionalista,
com a homofobia e com a misoginia, Lambevski observou o quanto seria difícil transgredi-
la. Ao analisar as instituições que compõem esse atravessamento do “bom macedônio”, ele
percebeu que a cena gay de Skopje não produzia sozinha relações étnicas, de gênero, de
classe. A pegação entre homens de classes e etnias diferentes – “[...] como um albanês [da
classe trabalhadora] geralmente fodendo o macedônio [da classe média]” (LAMBEVSKI,
1999, p. 400, tradução nossa) – está conectada a lugares sociais construídos no país.
Mesmo tão distante geográfica e temporalmente, o depoimento de Lambevski sobre
a pegação macedônia é inequívoco quanto às semelhanças da que ocorre no Brasil. O
passado colonial e escravocrata brasileiro também produziu relações racializadas entre
homens nas práticas sexuais no estilo “homem-pobre-cafuçu-ativo”. E, mesmo
considerando a distância sociocultural, o autor verificou na pegação da Macedônia a
mesma lógica física e espacial verificada em estudos mais próximos do universo gay
ocidental:

O próprio lugar desafia as categorizações espaciais. É um lugar privado e


público ao mesmo tempo. Trata-se de um espaço simultaneamente
material e imaginário, uma vez que as suas fronteiras desfocadas e a
funcionalidade (sexual) dependem de um uso criativo dos espaços
públicos (sanitários públicos, esquinas escuras, arbustos nos parques
públicos (...), estacionamentos, sob pontes). Seus limites imaginários e
usos possíveis são conhecidos por um grupo de homens iniciados que não
estão dispostos a compartilhar esse conhecimento com qualquer estranho.
É um espaço intenso, onde a emoção de quebrar a lei converge com uma
miríade de técnicas de controle social (LAMBEVSKI, 1999, p. 401;
tradução nossa).

Contudo, ele também ressalta que o patriarcado, a misoginia e, por consequência, a


homofobia são comuns a todas as culturas dos Bálcãs e Mediterrâneo. Assim, a instauração
de uma vida gay citadina ocidentalizada não é tarefa simples. É dizer, as identidades
homoeróticas como estamos familiarizados não têm exatamente o mesmo sentido que se
atribui no Ocidente:

Na Macedônia os termos “homossexual” e “gay” não têm


necessariamente os mesmos significados que têm no Ocidente
desenvolvido. O termo “homossexual” na Macedônia é usado

78
principalmente em discursos oficiais médicos/jurídicos/meios de
comunicação de massa. O termo “gay” é usado por uma minúscula
minoria de homossexuais macedônios de classe média para descrever
uma forma muito frágil e híbrida de identidade sexual (homo) que apenas
simula a subjetividade gay como conhecida no Ocidente (LAMBEVSKI,
1999, p. 403; tradução nossa).

Neste trabalho, igualmente, entendemos que a identidade gay não é comum a todos
os homens atravessados pelo homoerotismo. No Brasil, muitos não tomam para si tal
subjetivação, ainda que se mantenham em zonas de prazer sexual com outros homens.
Fenômeno igual, como já vimos, ocorre no parque londrino Abney Park na atuação
homoerótica entre curdos e turcos.
Mas é incontestável que as práticas vão acumulando semelhanças. Assim como os
brasileiros compartilham a masturbação no sarrear sem necessariamente aprofundar o
contato sexual e afetivo, os estadunidenses buscam prazer semelhante nos clubes de
masturbação e os macedônios, nas cenas de pegação de Istambul. Nesse sentido, é possível
dizer que uma parcela dos homens, em distintas partes do mundo, que rejeitam sexo oral e
anal entre si e limitam suas práticas eróticas à masturbação mútua considera esta uma
experiência heterossexual. Para turcos e macedônios, como bem apontou Lambevski
(1999), a masturbação compartilhada com outros homens não é necessáriamente um
comportamento homossexual.
Outro aspecto levantado pelo autor aproxima a pegação macedônia de outras ao
redor do mundo: entre turcos e macedônios pode se estabelecer papéis sociais binarizantes
passivo/ativo emparelhados com a subjetivação de gênero masculino/feminino. Nesse
modelo, bastante presente nas relações homoeróticas triviais, muitos homens consideram-
se heterossexuais quando identificados com o poder do falo, dado pela posição de ativo.
Assim, são reconhecidos em sua virilidade no ato de penetrar o outro. Do lado oposto
estaria o homossexual verdadeiro, passivo e identificado, inclusive, por sua feminilidade.
O corpo erotizável é reduzido ao seu ânus passivo penetrado pelo potente falo
(LAMBEVSKI, 1999).
Certamente o lugar de injúria e difamação do ânus é secular em diversas culturas,
sobretudo para quem ousa tomá-lo como lugar de prazer. Desde os crimes de sodomia a
pena sempre recaiu mais pesadamente sobre aqueles que utilizavam suas bundas para obter
prazer. Ressalte-se: é o ânus do homem tomado como “passivo” que os soldados
iraquianos colam para fazê-los morrer. Não obstante, há quem proponha uma reversão

79
desse lugar de inglória, convertendo o ânus à potência transbinarizante de desconstrução
dos domínios de gêneros, pois em tese todo mundo tem “cu” (SÁEZ, CARRASCOSA,
2011).
Quando os homens entram nos territórios de pegação como homossexuais
masculinos/ativos e homossexuais femininos/passivos também obedecem à configuração
de gênero binário vigente. Mas, nessa situação, segundo Lambevski (1999), o ânus não
carrega a tarefa sozinho de ligar o ato sexual entre os homens na perspectiva penetrador-
penetrado. O campo erótico se amplia, e beijos e caricias se legitimam como expressões
sexuais-afetivas possíveis. Mas sobre este esquema macedônio ativo/passivo, é factível
pensar que no Brasil tais relações apresentam grandes variações, mesmo entre as travestis
brasileiras que se prostituem, por exemplo, muitas participam ativamente da subversão
desse sistema de classificação binarizante atuando como penetradoras (TAMAGNE, 2013).
Na cena de pegação de Skopje comparece a forte reprodução falocêntrica que
hierarquiza determinadas masculinidades pelo rebaixamento do parceiro a condições
subalternas. Os ativos, que se identificam tanto como heterossexuais quanto como
homossexuais, são conhecidos nesses espaços como ebachi (fuckers75), enquanto os
homens tidos como passivos são denominados de tetki76, ou mais pejorativamente buljashi
(arse givers77) (LAMBEVSKI, 1999).
Há uma atualização da divisão étnica, religiosa e de classe social nas cenas
descritas pelo autor, pois os ebachi identificados como ativos e viris são, em sua maioria,
albaneses operários mulçumanos e os tetki, os passivos, macedônios da classe média. Os
albaneses mais empobrecidos são vistos também como primitivos e atrasados, enquanto os
gays macedônios são de uma classe mais favorecida, possuindo uma identidade mais
vinculada ao mercado gay ocidental (LAMBEVSKI, 1999).
Para o autor, em praticamente todos os espaços sociais os macedônios estão em
posição de superioridade em relação ao segundo grupo étnico, os albaneses. Essa divisão
de classe significa, por exemplo, acesso dos primeiros à educação de melhor qualidade,
enquanto os segundos são marginalizados e excluídos de forma geral. Contudo, os gays
macedônios são expostos a toda uma dimensão disciplinar à qual os homens albaneses não
necessariamente se submetem. Isso ocorre porque as mesmas instituições que garantem a
posição de privilégio aos macedônios, como a escola, a família e o próprio Estado de
75
Comedores.
76
Tias, numa tradução literal.
77
Algo como “aqueles que dão a bunda”.

80
forma mais ampla, inscrevem os homens tidos como gays em regimes discursivos
patologizantes. Tal inscrição se dá desde o poder disciplinar na escola, na mídia e na
família até os discursos médicos que acabam por alicerçar a popularização da homofobia
(LAMBEVSKI, 1999).
Homossexuais, como demonstrado por Foucault (1978), na História da loucura,
estavam entre as figuras que povoaram as instituições asilares. No Brasil, seguramente, os
aparatos estatais relacionados aos dispositivos de poder que criminalizaram atos obscenos
sexuais dos homens contribuíram para a manicomialização do homoerotismo, sobretudo
daqueles que, ao lado de outras personagens infamadas, perturbavam os bons costumes da
vida social (ARBEX, 2013). Isso porque é forte no país a interseccionalidade entre
controle dos corpos pelo Estado, raça e classe social. O acesso à educação, à saúde e ao
trabalho viabiliza, entre outras coisas, melhores condições sociais para as pessoas viverem
sua homossexualidade, mesmo que a passagem ou a permanência no sistema escolar, por
exemplo, seja um martírio para muitas figuras divergentes da heteronorma. Não podemos
esquecer que o Brasil detém recordes vergonhosos de violência em relação à população
LGBT. Em 2016, 343 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais foram assassinados em
território brasileiro, o que representou uma vítima fatal por LGBTfobia a cada 25 horas,
tornando o país campeão mundial de crimes contra minorias sexuais: “Matam-se mais
homossexuais aqui do que nos 13 países do Oriente e África onde há pena de morte contra
os LGBT”.78
Esse ponto também nos conecta à experiência dos macedônios e albaneses acerca
do lugar de privilégio na escala do sistema regulatório de gênero; o quanto a experiência
homoerótica ameaça esse sistema; e as respostas violentas que ele próprio dá.
Segundo Lambevski (1999), quanto mais o homossexual é identificado com o
feminino (no Brasil traduzido como “bicha”), mais também lhe é retirada a sua
masculinidade, autorizando assim as mesmas instituições que privilegiam o homem
macedônio a desqualificá-lo, por meio de uma série de técnicas de controle do masculino e
da patologização da homossexualidade. Assim, o buljash é objetificado pela cultura
homofóbica, que autoriza, inclusive, que ele “[...] se torne um objeto completamente
desumanizado para a satisfação sexual dos homens ‘reais’” (LAMBEVSKI, 1999, p. 407;

78
MOTT, Luiz; MICHELS, Eduardo; PAULINHO, GSP. Assassinato de homossexuais (LGBT) no Brasil: Relatório
2016. Salvador: Grupo Gay da Bahia, 2016. Disponível em:
<https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf>. Acesso em: 25 jun.
2018.

81
tradução nossa). A criatura construída de forma abjeta e desviante torna-se alvo de abusos,
violências e estupros.
Por outro lado, como os homens albaneses de modo geral têm dificuldades de
acesso à educação e aos serviços de saúde, estariam menos expostos à homofobia que se
expressa nesses serviços. O oposto se dá com os macedônios que, inseridos nessa
dimensão institucional, são obrigados a lidar cotidianamente com atos homofóbicos. Dito
de outro modo, é como se os albaneses excluídos das intervenções institucionais que
operam o poder disciplinar, por não frequentarem a escola e os serviços de saúde, por
exemplo, ficassem mais “livres” da “[...] epistemologia do homossexual construída pelo
discurso médico” (LAMBEVSKI, 1999, p. 406; tradução nossa). Ou seja, estão menos
construídos, em sua sexualidade, por esses termos.
No Brasil, justamente pela gratuidade no acesso e ausência de filiação identitária,
muitos territórios de pegação acolhem homens advindos de diversas classes sociais,
havendo entre esses frequentadores os que ocupam igual posição social dos albaneses. Em
alguns casos, podem não se considerar homossexuais até mesmo por uma falta de
construção social nessa direção. Em certa medida, isso é curioso, pois, a despeito de toda a
homofobia da sociedade e sua capacidade de propagar valores de infâmia às sexualidades
divergentes, a ideia de uma orientação sexual fundando um sujeito social faz pouco sentido
na vida de determinados homens. Para alguns, inclusive, as respostas que justificam suas
práticas homoeróticas são muito singulares e contextuais.

2.5 ENTRE CORSÁRIOS HOMOERÓTICOS: AS “AREE DI ABBORDAGGIO”79


ITALIANAS

Assim como na drague francesa, já densamente descrita nesta tese, na Itália


também o termo análogo à pegação homoerótica, abbordare, é tributário de uma temática
náutica. No caso italiano, remete a táticas corsárias de ataque a embarcações, sendo la
abbordaggio o efeito desse ataque pirata, que pode provocar, por exemplo, a colisão de
assalto entre navegações inimigas.
Neste ponto, vale observar que, embora o termo cruising se aproxime igualmente
de uma atividade náutica, sua perspectiva guarda maior sinonímia com flâneur erótico, no
sentido de um cruzeiro, de um trânsito sem destino fixo, mas repleto de intenções sexuais.

79
“Áreas de pegação”.

82
Inclusive, a depender da prática, talvez o cruising até guarde relação de sentido com o
trottoir – territórios de promiscuidade instalados pelas prostitutas.
Giuseppe Burgio (2015), em “E s’aprono i fiori notturni…”80, aponta alguns
processos de subjetivação interessantes que ocorrem nesses locais de pegação italianos.
Tanto o abbordaggio quanto o cruising envolvem experiências eminentemente masculinas,
cujos territórios são de difícil acesso às mulheres. Até porque o próprio sistema regulatório
de gênero, neste caso, o próprio patriarcado, por séculos restringiu o corpo feminino ao
mundo privado e doméstico, sendo ainda hoje, em muitos lugares do mundo, vetada a
participação da mulher na vida pública. À exceção, talvez, das prostitutas, que com seu
trottoir, mesmo que com fins comerciais, subvertem essa lógica e vivenciam algo similar à
pegação masculina, graças à arte de instalar territórios de promiscuidade com seu caminhar
pelas calçadas em busca de clientes (BORTALANZA, 2012).
Para Burgio (2015), os territórios de pegação italianos, a exemplo das demais
experiências observadas nesta pesquisa, acolhem uma grande variedade de performances
homoeróticas masculinas. Dentre seus frequentadores, o autor observa alguns tipos
clássicos, como os gays propriamente dito, os bissexuais, os homossexuais enrustidos, os
homens contra-heteronormativos de modo geral e, por fim, aqueles que se consideram
heterossexuais e não veem nenhuma discordância em praticar sexo com outros homens, os
HSH.
Independentemente da relativa assimilação da população de LGBT nas grandes
cidades do Ocidente, a pegação resiste e se configura, principalmente, como uma afronta
direta ao próprio sistema que sustenta a heteronorma, pois coloca em xeque o lugar do
homem heterossexual monogâmico. Dito de outro modo, com suas práticas ambivalentes,
homens que não necessariamente apresentam uma identidade social gay confundem o
sistema regulatório e mantêm sob o manto do anonimato o germe da discórdia.
Do ponto de vista simbólico, a possibilidade de orgasmo gratuito, imediato,
público, espalhado pelo tecido da urbe por iniciados nesse homoerotismo, torna a pegação
uma verdade utópica, mas incontestável. Sela-se, nesses encontros, uma cumplicidade
tácita que está muito além da história social dos indivíduos. E é, em certa medida,
desconstrutora de séculos de normatização dos prazeres entre os homens.
Esses espaços, sobretudo aqueles que se constituem gratuitamente em áreas mais
ermas, recobertas por vegetação, no entorno das cidades, não são exatamente uma

80
“E se abrem as flores da noite”.

83
comunidade de homens que praticam sexo. Pelo menos não num sentido comunitarista,
com estatuto de igualdade entre seus membros ou formação de um coletivo próprio. Ao
invés disso, a busca pelo prazer, a sensação de cumplicidade e o compartilhamento de uma
certa maneira de estar, produz desterritorializações, em alguma medida, de masculinos
performados no meio social, encorajando seus participantes a enfrentar o acaso.
Provavelmente, a sua perspectiva é muito mais de uma espécie de biocenose 81 homoerótica
do que um agrupamento de iguais.
Não se anda pelos locais de pegação do mesmo modo que se anda pela cidade
iluminada. Os homens que transitam nesses espaços se confundem com a própria
vegetação, com o lusco-fusco que anuncia corpos viris sem revelar exatamente suas
identidades. Olhos atentos localizam masculinidades hibridizadas com arbustos e árvores.
A audição se aguça ao menor ruído que irrompe a polifonia habitual do ambiente, feita de
sussurros e outras movimentações sonoras.
O rito e a passagem em local de abbordaggio noturnos em um parque público ou
área secreta mais afastada, por exemplo, inclui o percurso solitário e misterioso em meio à
vegetação. Guiado por seus instintos, pelos sons, pelo lusco-fusco, pelos cheiros e pelos
rastros, esses homens vão dando pistas por onde seguir até o exato ponto onde, enfim,
poderá trocar intimidade com um estranho, instaurar uma camaradagem e uma empatia
mútua e imediata. E, depois de tudo terminado, retornar novamente aos seus amigos, ao
seu ambiente, à sua identidade (BURGIO, 2015).
Entre a chegada e a partida, o centro e o momento crucial da pegação tem-se

[...] a fase da prova de superação, o centro do rito que – como na


experiência de caça ao leão, de escarificação corporal ou ritual de surra
coletiva – exige uma demonstração de coragem; de enfrentar um
momento emocionante e arriscado. [Trata-se de] Um trabalho de
iniciação, um encontro com o incognoscível e o imprevisível que faz com
que os pulsos tremam. Isso implica intimidade com um estranho que pode
ser um amor fatal ou ameaça letal, já que pode ser praticamente qualquer
pessoa: um conselheiro municipal ou um bandido drogado, o homem de
sua vida ou um assassino em série, o barmam do bar gay ou seu padre,
um ator famoso ou seu próprio pai (BURGIO, 2015, p. 109; tradução
nossa).

81
Biocenose, termo extraído das ciências biológicas, refere-se ao conjunto de seres vivos de espécies
variadas convivendo numa mesma área geográfica.

84
Não se discute que também é possível viver experiência homoerótica similar nos
equipamentos do mercado gay instalados nas cidades. Os locais de pegação, contudo, são
potencialmente públicos e abertos à visitação de todos, o que confunde a própria lógica de
construção da intimidade em espaço privado que organiza nossas sociedades. Isso porque
tal privacidade, desenvolvida no espaço público, suspende a própria identidade social
daqueles que experimentam seus ritos. Intensifica-se, mesmo em áreas abertas, um
aprofundamento da sua própria intimidade e, às vezes, a de um desconhecido até para si
mesmo: “Anonimato, ausência de perguntas, o jogo mudo de olhares, muitas vezes a baixa
iluminação, a ambientação em lugares pouco frequentados, contribuem para fazer do ato
sexual um encontro quase sonhador: não com um homem concreto, mas com o homem de
suas próprias fantasias” (BURGIO, 2015, p. 110; tradução nossa).
Ainda assim, a pegação é ao mesmo tempo um encontro real, que pode ou não
continuar para além de sua trivialidade. É comum a sensação, entre os frequentadores
desses espaços, de poder viver algo difícil de encontrar em outros lugares, mesmo aqueles
destinados ao consumo gay. Além disso, pondera Burgio (2015), o mercado homossexual
tem normatizações e hierarquizações que valorizam um modelo ideal de homem: jovem,
branco, bonito. Isso até está presente nos espaços de pegação, avalia o autor, mas na
própria configuração de muitos locais – de baixa luminosidade e silenciosos – as conexões
sexuais se dão sob uma aura repleta de borramentos, o que possibilita inclusive o contato
com as várias nuances da masculinidade e mesmo da feminilidade.
Para Burgio (2015), haveria efeitos imediatos para os homens que estão na
pegação: a sexualidade vigilante e à flor da pele; e o efeito “ansiolítico” de tais espaços,
que combinam exaltação sensorial e liberação das dores de existir, num mundo em que não
cabe tantos modos de vida não heterossexuais. Um alívio ao estresse de se saber sempre
entre as minorias, sobretudo para aqueles que não conseguem aderir a um modelo de vida
social exclusivamente hetero ou homossexual. Talvez o único campo de interação na vida
de muitos homens em que seja possível viver relações de prazer, mesmo com todo risco,
sem os elementos estressores das relações monogâmicas heteronormativas (BURGIO,
2015).

85
3 OS DISCURSOS SOBRE A PEGAÇÃO EM ESPAÇOS PÚBLICOS NO BRASIL

Olha, pegação é uma maneira de você encontrar as pessoas,


trocar olhares, (...) um caso fortuito na esperança da maioria de
encontrar aquele cara (...). Como a gente tem esse hábito de
transa com uma pessoa que a gente não conhece, absolutamente
estranha, que você paquera escondido e transa (...) Ninguém ri
muito, ninguém assobia, ninguém canta porque não pega bem.
Sabe? Você faz um teatro (...) mais ou menos igual pavão em volta
da pavoa. Aquele lance de abrir o leque e fechar o leque, (...)
Então tem todo um cerimonial que é feito e que, dependendo do
lugar, isso varia.82

Pegação, pegar-a-ação, ação ou exercício de pegar, pegar-acontecer, absorver a


ação de pegar; pegar o acontecimento, ali, no instante em que ocorre. Uma parteira de uma
comunidade ribeirinha no Norte do Brasil, ao narrar seu oficio, conta que faz a “pega do
menino”. Um recém-nascido que está aprendendo a mamar apresenta “boa pega” quando
lida bem com a mamada. A moça faz seu penteado “pega-rapaz”. As crianças brincam de
pega-pega. Pegão, um grande pé de vento. Para algo que está agarrado, “pegado”. Também
nos apegamos às coisas da vida: “Você viu aquela confusão, aquele pega pra capar?”
Às vezes, sem pedir muita permissão, simplesmente pegamos algo, nos
apropriamos dele, mesmo que seja pra abandoná-lo em seguida. Também somos pegos de
surpresa no exato momento da pegação, do acontecimento, então fomos “pegos com a boca
na botija”. Quando captamos por outro sentido, por meio de uma antena fina e vibrátil, um
conjunto de acontecimentos que nos atravessa, então, dizemos que “pegamos algo no ar”.
Por vezes, igualmente, somos pegos por um instante que se prolonga e nos marca.
O que nos pega? Diria o psicanalista, quando simplesmente somos pegos, como de assalto,
surpresos, perplexos, que nesse instante paralisamos. Também somos pegos
voluntariosamente, como naturalmente destinados, como a abelha que foi feita para coletar
o pólen – e, no caso, somos o pólen que anseia ser coletado. Do encontro da abelha com o
pólen nasce o mel, mel-acontecimento, mel-viscoso, mel-grudento, mel-peguento, mel da
pegação...
E na pegação, quem pega o quê? Quem pega quem? Pegamos com a mão, mas o
“pegar” é o momento, o breve instante em que alcançamos um objeto de interesse, de
desejo. Nesse instante, mão e objeto são um só. Suas fronteiras se borram e ali forma-se
82
Trecho extraído do vídeo Herbert Daniel, o amor e a aids, exibido pela extinta TV Manchete nos anos
1980. Disponível na íntegra no site da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids:
<http://abiaids.org.br/herbert-daniel-o-amor-e-a-aids-nos-anos-80/28078>. Acesso em: 26 out. 2015.

86
outra coisa. Ali houve uma pegação! Também se diz pegação na justaposição e confluência
entre os corpos; entre esses mesmos corpos e os lugares; entre esses mesmos lugares e a
cidade. Alguém perguntaria: e a pegação? Seria tão boa quanto a surpresa do
acontecimento, mesmo quando combinadas, sem o acaso?
Poderíamos dizer, até aqui, que estamos imersos em uma cultura da pegação. Mas
não se trata apenas disso.
Algo em nós, tão antigo como o ato de pegar, de agarrar, é também instintivo, como
o ato de comer, de espreitar a presa, de caçar, de mimetizar-se diante do animal que se
persegue. Algo tão antigo como pegar com a mão em posição côncava, cristada, fazendo
desta a “[...] antessala da boca e do estômago, pelos quais a presa será definitivamente
incorporada [...]”, poderia ser objeto de uma psicologia do tomar e do incorporar ainda por
ser investigada (CANETTI, 1983, p. 225). Assim, se poderia estudar o instante da ação de
pegar, a pegação. Investigar como a dança do desejo atravessa corpos e lugares.
Igualmente, nesse sentido último, é a pegação como interação homoerótica
masculina. Sobretudo aquela que ocorre em espaço público urbano. Seja como for, certo é
que o estudo da pegação sexual entre os homens é, acima de tudo, o esforço para
evidenciar os registros que a acompanharam ao longo do tempo.
Esta tese trata dessa experiência aparentemente recente, mas que tem uma história
antiga e diversificada. Talvez essa percepção de fenômeno contemporâneo esteja no fato
de a pegação entre os homens ser um acontecimento repleto de opacidades, porque em
geral fugaz, pouco visível, fugidio, quase clandestino. E, em paradoxo, frequente, muito
presente, em particular nas grandes cidades.
O fenômeno parece abrigar muitas dimensões, ou mesmo recortes, que nos ajudam
a entender o que chamamos de pegação sexual entre homens. Algumas delas, observadas
ao longo do percurso doutoral, elencadas a seguir.
No veio da história, seria possível fazer enumerações. Como descrito no primeiro
capítulo deste trabalho, a inscrição das práticas sexuais entre homens associadas à infâmia
remonta aos crimes de sodomia na Europa medieval, ordenamento jurídico propagado
mundo afora pelo processo colonial e responsável por igual criminalização por séculos em
muitos países. Posteriormente, invertidos e uranistas83 seriam identificados e ocupariam a

83
“Os primeiros médicos que escreveram sobre relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo inventaram
duas palavras que vão ser usadas subsequentemente como sinônimos: o homossexual e o uranista. A
primeira foi usada pela primeira vez em 1869 por um médico húngaro, Karoly Maria Benkert. O segundo
surgiu do trabalho de um alemão, Karl Heinrich Urichs, que escreveu fartamente entre os anos de 1860 a

87
gramática de juristas e médicos, a partir do século XIX, que designaria o homossexual,
sujeito nascido também daquele tempo.
Igualmente, no mesmo período, a pederastia produzida na Grécia Antiga seria
revisitada, perdendo seu sentido original, qual seja, de que o sexo entre jovens adolescentes
e homens adultos era, antes de tudo, uma inscrição na vida pública e política (CORRÊA
JÚNIOR, 2010). Assim, o “pederasta” oitocentista, ou seu neologismo “pederasta
passivo”, seria inscrito na linguagem clínico-criminal brasileira para se referir
patologicamente aos homens mais afeminados, “passivos” nas relações sexuais, que em
alguns casos chegavam a usar nomes e trajes femininos. Essas figuras, longe do chamado
amor grego, como o termo poderia evocar, saiam pela cidade em busca de parceiros
sexuais viris, ou machos, tencionando o sistema regulatório de gênero e, por consequência,
acionando o alarme da polícia e da psiquiatria (GATTI; GREEN, 2000). Dos viados e das
bichas do início do século XX, da sofisticação dos “entendidos” paulistanos nos anos 1950,
dos intitulados gays, enrustidos e homens que fazem sexo com homens, nas últimas
décadas tudo sugere que o tema é antigo e invariavelmente atravessado por estigmas e
tabus.
E no processo de reapropriação dos espaços da cidade por essas figuras, banheiros
de acesso público são chamados de banheiros de pegação ou “banheirões”; cinemas,
cinemas de pegação ou “cinemões”. Parques públicos têm áreas inteiras ocupadas e
renomeadas.
A bússola da geografia nos mostra territórios da pegação a partir de suas gírias,
antes mesmo da expressão “pegação” se instituir. Como nos ritos de caça sexual entre os
homens brasileiros na primeira metade do século XX, mas também de suas variações
regionais, como a “pescaria” recifense dos anos de 1970. Em terras estrangeiras, os
“engates” dos gajos portugueses; a secular drague, repleta de segundas intenções
homoeróticas, nas ruas parisienses; o mundo do cruising e das tearooms de estadunidenses
e britânicos, estes últimos também praticantes do cootaging. Essa bússola também se
orienta pela resistência da subcultura gay sadomosoquista ao chamado sexe vanille (sexo

1890 (...). O neologismo "uranista" foi inventado em homenagem a musa Urânia que, no mito contado por
Platão, seria a inspiradora do amor entre pessoas do mesmo sexo. O embrião humano, acreditava Ulrichs,
no início não é nem masculino nem feminino, mas depois de alguns meses a diferenciação ocorre. (...) No
caso dos uranistas, os órgãos genitais vão numa direção e o cérebro noutra. Assim se produz "uma alma
feminina encapsulada num corpo masculino" e vice-versa. Ulrichs depois desenvolveu uma classificação
complexa de ‘tipos homossexuais’ entre os quais o Mannling, que a totalmente masculino em aparência e
personalidade, o Weibling, que a efeminado, e o Zwischen -urning, que é um tipo intermediário” (FRY,
MACRAE, 1991, p. 62-63).

88
convencional); e pela tetera nos banheiros portenhos da ditadura militar Argentina (1966-
1973) ou o yiro dos anos 1990 na cidade de Rosário. Esses registros sugerem que a
pegação é produtora de uma geografia e de um vocabulário próprios.

3.1 OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA HOMOERÓTICA: AMARO E ALEIXO,


QUINTANILHA E GONÇALVES, BEMBEM E A CIDADE

Antes mesmo da palavra pegação começar a circular nas cenas homoeróticas


citadinas brasileiras, as práticas sexuais dos chamados sodomitas e pederastas estavam
ilustradas quase exclusivamente na literatura médico-criminal. A rara exceção discursiva
estava nos romances e contos.
Foi no fim do século XIX que começaram a circular no Brasil as primeiras obras
literárias com alguma carga de homoerotismo. São exemplos conhecidos desse período O
Ateneu (1888), de Raul Pompéia – cujas práticas homoeróticas estavam restritas ao
ambiente escolar hostil do internato – e O bom-crioulo (1895), de Adolfo Caminha –
referência histórica fundamental sobre a temática. 84
Nesse último, o negro fugido Amaro torna-se marinheiro e se apaixona por Aleixo,
um grumete loiro e de olhos azuis, em pleno contexto militar da Marinha. A história gira
em torno do desejo de Amaro por Aleixo, desde o momento em que se conhecem na
embarcação marinheira até a consumação da relação em terra firme, num quarto de pensão
no Rio de Janeiro, capital do país à época. Narra Caminha (1895, p. 12-29):

O próprio comandante já sabia daquela amizade escandalosa com o


pequeno (...), a vontade [de Amaro] irresistivelmente dominada pelo
desejo [era] de unir-se ao marujo [Aleixo] como se ele fora do outro sexo,
de possuí-lo, de tê-lo junto a si, de amá-lo, de gozá-lo! (...) Como é que se
compreendia o amor, o desejo da posse animal entre duas pessoas do
mesmo sexo, entre dois homens? (...) Começava [o jovem grumete] a
sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como
vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se-lhe
para o que ele quisesse – uma vaga distensão dos nervos, um prurido de
passividade. (...) E consumou-se o delito contra a natureza. (...) como um
casal de noivos em plena luxúria (...) Sodoma ressurgia agora [na pensão]
da rua da Misericórdia (...) Dentro do negro rugiam desejos de touro ao
pressentir a fêmea [Aleixo].
84
Obra muito debatida nos textos que se debruçam sobre a literatura e o homoerotismo, nesse período,
desde os aspectos da crítica literária ao naturalismo até a afirmação/construção das identidades
homossexuais. Tido por alguns como o primeiro romance homossexual brasileiro, que, “[...] num contexto
eivado de contradições (...) tornou-se o grande mito da literatura brasileira relacionada ao homoerotismo”
(TREVISAN, 2015, p. 9).

89
O desfecho de Caminha (1895, p. 53 e 66) é trágico: o bom-crioulo – e “pederasta”
– mata praticamente em praça pública o “[...] muito alvo, bonitinho [...]” Aleixo, num
rompante passional, ao descobrir que este estava amasiado com a mulher que alugava os
quartos na rua da Misericórdia.
Já em Pílades e Orestes, conto publicado no livro Relíquias da casa velha (1906),
Machado de Assis trata da amizade entre Quintanilha e Gonçalves, personagens que
mantinham, em termos mais atuais, uma duradoura relação homoafetiva: “A vida que
viviam os dois era a mais unida deste mundo. Quintanilha acordava, pensava no outro,
almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam
a noite no teatro”85. Aqui, a dimensão homoerótica dos personagens não está relacionada
diretamente ao desejo ou à consumação sexual. Antes, há uma homoafetividade entre os
dois homens que poderia incomodar o cotidiano da cidade: “A união dos dois era tal que
uma senhora chamava-lhes os ‘casadinhos de frescos’86”.87
Mas coube a um conto de 1914, considerado o mais marginal do período, segundo a
percepção contemporânea, aprofundar as relações entre o que hoje é classificado como
homoerotismo e espaço público. Intitulado Menino do Gouveia, apresenta um rico
repertório de práticas sexuais entre homens na capital do Brasil de então. No texto, de
Capadócio Maluco (pseudônimo), publicado em uma das edições do primeiro jornal
erótico do país, o Rio Nu88, o desejo e a lascívia entre as figuras masculinas são essenciais.
Diz Bembem, em torno do qual a história gira: “Eu tomo dentro por vocação; nasci para
isso como outros nascem para músicos, militares, poetas ou até políticos. Parece que
quando me estavam fazendo, minha mãe, no momento da estocada final, peidou-se, de
modo que teve todos os gostos no cu e eu herdei também o fato de sentir todos os meus
prazeres na bunda” (MALUCO, 1914, p. 3).
Há um interesse erótico implícito que não se esgota na fundação dos personagens.
Tal interesse dialoga com a atmosfera da cidade, produzindo socializações, às vezes

85
MACHADO DE ASSIS. Relíquias da casa velha. In: Obra Completa - vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, em 1906. Acesso pelo portal Domínio Público:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000107.pdf>. Acesso: 20 out. 2017.
86
Fresco era uma denominação pejorativa para homossexual, destinada principalmente aos tidos como
sodomitas passivos ou que apresentavam atos e trejeitos afeminados (GREEN, 1999).
87
MACHADO DE ASSIS, op. cit.
88
“[...] publicação erótica em circulação desde 1898, que estampava mulheres seminuas, cartuns
maliciosos, contos e colunas de fofocas (...) [o conto] de 15 páginas incluía uma ilustração de dois homens
copulando” (GREEN; POLITO, 2006, p. 37).

90
inusitadas, a partir das práticas sexuais entre os homens. E isso aponta para uma
territorialização subjetiva homoerótica, instituindo lugares e identidades.
Tida como a primeira publicação pornográfica homossexual brasileira, a história
apresenta Gouveia, uma gíria da época para se referir a homens mais velhos que se
relacionavam sexualmente com rapazes. No conto, o jovem Bembem conhece o seu
Gouveia ao sentar-se no banco do Largo do Róssio 89. Ali mesmo os dois começam a
apalpar o pênis um do outro e, depois, vão ao cinema. Sobre o filme, Bembem diz: “[...]
assisti a uma sessão inteira segurando-lhe a pica” (MALUCO, 1914, p. 10).
Bembem, após ser expulso de casa pelo tio justamente por sua condição de
sodomita passivo (expressão usual à época), perambulava pela cidade em busca de sexo,
sem êxito até encontrar Gouveia na praça:

Foi, porém, trabalho perdido: por mais que eu andasse pelos mictórios a
espiar picas e fizesse mil gestos reveladores das minhas qualidades e
encantos enrrabativos, parece que naquelle dia os amadores de cús tinham
desaparecido. A‘s seis horas da tarde sentei-me, levado dos diabos, num
dos bancos do Rocio, pensando na falta de enrrabadores que há nesta
cidade (MALUCO, 1914, p. 9).

Ainda que não seja uma obra-prima, o conto é hilariante, desprovido de


condenações moralistas e apresenta “[...] interpretação positiva das práticas homoeróticas”
(GREEN; POLITO, 2006, p. 38). A circulação homoerótica pela urbe é conduzida por
Bembem: ele passa por lugares como praças e banheiros públicos em que os homens
travam práticas sexuais. Nessa perspectiva, observa Green (1999, p. 72), o conto traz as
primeiras cenas literárias da pegação masculina na cidade: “Embora (...) seja uma obra
ficcional de pornografia, o conto mapeia, de forma bastante precisa, a territorialidade e as
opções sociossexuais disponíveis para a maioria dos putos, frescos e fanchonos no Rio de
Janeiro da virada do século”.
Apesar do termo “pegação” ter surgido apenas em meados da década de 196090,
essas primeiras referências literárias contribuem enormemente para ajudar a entender o
quanto esta é uma experiência que transcende uma única interpretação, a patológica-

89
Localizado na região central da cidade, a Praça Tiradentes, também popularmente chamada de Largo do
Róssio, era um privilegiado rendez vouz homoerótico do Rio de Janeiro no início do século XX. Dada a sua
importância ao projeto de urbanização do governo, o local passou por sucessivas intervenções, inclusive no
sentido de reduzir as práticas sexuais entre os homens (FERNANDES, 2011; GREEN, 1999).
90
Em nossa pesquisa, observamos a utilização do termo no jornal O Snob, em 1964, para designar práticas
homoeróticas, como um dos registros mais antigos encontrados.

91
criminal, típica do começo do século passado, mas que predomina até hoje. O menino do
Gouveia revela que os encontros com apelo sexual já faziam parte da trama urbana carioca
desde o começo do século XX. Além disso, as cenas homoeróticas também descrevem os
locais e horários em que essas práticas sexuais ocorriam na cidade, que se modernizava.
O resgate histórico do conceito confunde-se com a própria história da homossexualidade
no Brasil. Até os anos 1950, são praticamente inexistentes os estudos sobre as práticas
sexuais entre os homens que não enveredaram para o discurso médico-legal da
anormalidade.
Ainda, a própria noção de sujeito homossexual surgiria somente no século XIX.
Antes disso, havia a figura jurídico-pecaminosa do sodomita. A passagem de um sujeito
para outro implicou, acima de tudo, a construção de um indivíduo destacado dos demais,
desviado da norma e predestinado à segregação. Há apenas algumas décadas passamos a
utilizar o termo homossexualidade em substituição à ideia patológica de homossexualismo.
Mesmo assim, as figuras homoeróticas continuariam a ocupar “[...] um lugar incômodo
para permanecer” (LOURO, 2001, p. 542).
No Brasil, parte fundamental desse “lugar incômodo de permanecer” atualizou-se
na vivência urbana ao longo do século XX, acompanhando o próprio desenvolvimento das
cidades e a produção de políticas de contenção dos “desviantes”. Nesse percurso histórico,
a socialização dos encontros sexuais masculinos teve nos espaços públicos, como parques
e praças da própria urbe, palcos privilegiados. Isso ocorreu antes da popularização dos
automóveis como meio de transporte e muito antes do estabelecimento da rede de serviços
comerciais voltada para o público homossexual, como saunas e cines gays, boates e bares
temáticos. Assim é que essas existências incômodas perambulavam pelas ruas e há muito
tempo faziam dela, no vai-e-vem cotidiano, lugar de permanência, de existência, de
produção de mundos. Nesse contexto, não raro, muitos eram vistos como um entrave para
o desenvolvimento da cidade.
Tomando apenas como exemplo a capital fluminense, que se modernizou a partir do
final do século XIX e início do XX, os pederastas, os sodomitas, juntamente com os sem
teto, os miseráveis, os loucos e as prostitutas, foram alvo de intervenção sanitário-policial.
É nesse universo que o conto O menino do Gouveia (1914) está inserido, e daí sua
relevância.
No país, até os anos 1950 foram produzidas pouquíssimas obras ficcionais com
temática centrada em relações homoafetivas. E, mesmo entre essas, ainda mais rara é a

92
abordagem do universo homossexual de maneira positiva. Até porque, na maioria das
vezes, essas figuras de sexualidade “excêntrica”, sobretudo no século XIX, estavam nos
folhetins ligadas à patologia ou a criminalidade (FERNANDES, 2011).
Então, o lugar “incômodo de permanecer” encontrou nos espaços públicos um lugar
de existir, onde também a cidade se tornava mais permissível, sob menor vigilância, seja
em áreas vazias ou em horas tardias, sob o manto do anonimato. Os sujeitos da pegação
adquiriram, nesta pesquisa, a força de um personagem literário tantas vezes descrito em
romances e contos: um citadino atravessado por experiências ambivalentes, nem sempre
fáceis de classificar, aceitar e estudar.
Sobre esse aspecto, o momento histórico em que foram escritas as obras literárias
aqui citadas também é caracterizado pelo desembarque no Brasil de grande contingente de
imigrantes europeus. Com eles desembarcaram ideias de desenvolvimento urbano focadas
na adaptação da sociedade brasileira ao modo de vida europeu. Centradas na supremacia
das raças e na ideologia do branqueamento da população nativa, esses ideais sustentavam
narrativas higienistas e eugenistas. Da mesma maneira, “[...] no discurso dos homens que
detinham o poder na sociedade de início do século XX, o Brasil de população pobre e
negra aparecia como marca de nosso passado colonial e como ameaça de fracasso para a
nação” (CERQUERIA, 2002, p. 30). Nessa perspectiva, o padrão heterossexual burguês
seria tomado como base de desenvolvimento das cidades, particularmente no Rio de
Janeiro, capital do país.
Assim, sob o ideário de progresso da época, foi possível operar o projeto de
higienização citadino, que compreendia a ordenação do cotidiano e a
“governamentalidade” da população (FOUCAULT, 2008). Seguramente, as intervenções
na sexualidade dos homens que se encontravam nas ruas para os prazeres furtivos
igualmente se davam sob esse registro, ou seja, estavam dentre as figuras homoeróticas a
serem interditadas do convívio social pela ordem médico-criminal (MAZZIEIRO, 1998;
GOUVEIA ENGEL, 2008). Tanto que no pensamento vigente de então a identificação dos
homossexuais passava não apenas pelo reconhecimento de condições biológicas e
fisiológicas, mas também pelas “[...] noções comportamentais quanto às roupas e atitudes
nos espaços de sociabilização” (AMARAL, 2013, p. 42).
Importante ressaltar que a figura patológica do homossexual oitocentista era
sobretudo masculina. Nas primeiras décadas do século XX, esses homens desviados do
comportamento esperado sofreriam toda sorte de intervenções médicas, do confinamento

93
em manicômios e cirurgias para implante gonodal ao uso de hormônios sexuais afim de
reverter sua condição. Concomitantemente, os atos públicos homoeróticos continuariam a
ser criminalizados, mesmo com o fim das penas por sodomia (AMARAL, 2013).
Essa vigilância draconiana do comportamento homossexual foi particularmente
intensa nos locais de pegação entre homens. Esses sim testemunharam a criminalização do
prazer e as investidas do poder público para coibir suas práticas indóceis, que, em
contraponto, também criaram personagens de resistência, de militância, de exigência pelo
direito de existir. Nesse contexto, os espaços de pegação resistiram ao tempo, acolheram
seus personagens em épocas distintas, se reinventaram através de novas figuras.
Testemunharam, em meio à fluidez dos desejos, sua própria consolidação como território
existencial para além dos instantes das práticas sexuais, acompanhando o auge e a morte de
seus ocupantes e de suas performances.
Voltando às referências literárias citadas, é possível perceber que a pegação se
desenrolava a partir do caminhar, dos passeios noturnos. Essa dinâmica se revela também
nas expressões que designam o erotismo nos espaços públicos citadinos mundo afora e que
guardam semelhança com a pegação brasileira: o caminhar com segundas intenções do
trottoir francês; o sexo fortuito no passeio pela cidade do doggoing inglês; o fotting (ir a
pé) homoerótico e até mesmo o próprio cruising gay estadunidense. Essas “pegações”,
direta ou indiretamente, estão sempre vinculadas ao percurso urbano.
Assim como a pegação, o homoerotismo91 masculino é uma expressão difícil de
definir. Não se restringe a uma prática sexual ou a uma identidade específica. É claro que
seu exercício também funda identidades, mas, antes, funda territórios existenciais,
qualidade de relação entre as pessoas, códigos de comunicação. Nessa perspectiva, a
circulação homoerótica nos espaços de pegação é plural, dado que por eles circula uma
infinidade de homens com registros de masculinidade muito distintos. Não estamos aqui
descartando as identidades homossexuais que ocupam esses espaços. Muito pelo contrário,
nós as reconhecemos. Mas também reconhecemos que o jogo homoerótico que neles
ocorre não se limita aos homossexuais ou à afirmação da homossexualidade.

91
Existe vasta bibliografia sobre o assunto. Para saber mais indicamos o livro A inocência e o vício – estudos
sobre o homoerotismo, de Jurandir Freire Costa (1992).

94
3.2 AS ATUALIZAÇÕES LEGAIS DOS CRIMES DE SODOMIA

Como já evidenciado nos apontamentos introdutórios deste trabalho, o Brasil, assim


como muitos países, seguiu o modelo legislativo francês, atualizado em fins do século
XVIII, que excluiu os crimes de sodomia.
O “Código Criminal do Império do Brazil”, que entrou em vigor em 1830,
igualmente retirou do ordenamento legal brasileiro esse tipo de crime. Contudo, também a
exemplo de outras nações, manteve formas de criminalização indireta das ocupações
homoeróticas citadinas. Tanto que na parte intitulada “Dos crimes policiaes”, referente às
“[...] offensas da religião, da moral, e bons costumes [...]”, tornava crime, através do Art.
280: “Praticar qualquer acção, que na opinião publica seja considerada como
evidentemente offensiva da moral, e bons costumes; sendo em lugar publico (...) [punível
com] prisão por dez a quarenta dias; e de multa correspondente á metade do tempo”
(BRASIL, 1830).
A quais crimes esse artigo se referia? Provavelmente, dentre eles, de modo indireto,
ao crime de “sodomia”, que permaneceu no ordenamento jurídico brasileiro por boa parte
do período colonial e ajudou a imprimir, ao lado da moral cristã, um olhar de infâmia sobre
a produção cultural homoerótica. Às dimensões legal e moral somou-se o sistema
familista-privatista burguês, igualmente dispositivo regulador das cidades que se
modernizavam (PERROT, 2009). Seu foco de vigilância era específico: o espaço público
ou também o “terreno baldio”, aquele que não pertencia a ninguém de direito e, por isso,
era potencialmente um lugar para eventuais práticas sodomitas. No bojo do processo de
construção desses sentidos infames, logo o olhar médico-higienista desembarcaria no
Brasil, trazendo consigo a era dos manicômios.
Décadas depois, já na República, foi sancionado o Decreto nº 847, que instituiu o
Código Penal (BRASIL, 1890). Entre outros pontos, o novo código propunha prisão de até
seis meses por crimes de ultraje público ao pudor: “Art. 282. Offender os bons costumes
com exhibições impudicas, actos ou gestos obscenos, attentatorios do pudor, praticados em
logar publico ou frequentado pelo publico, e que, sem offensa á honestidade individual de
pessoa, ultrajam e escandalisam a sociedade”. Mais uma vez a atualização penal não
criminalizava diretamente a homossexualidade. Mas, segundo Green e Polito (2006, p. 78),
esse artigo era “[...] tão abrangente que policiais ou juízes tinham ampla liberdade de

95
interpretação para punir como ato atentatório ao pudor qualquer manifestação contrária aos
comportamentos heterocêntricos”.
Em 1938, período conhecido como Estado Novo92, começou a ser redigido um
novo código penal. Pouco mais de cem anos depois da descriminalização dos sodomitas no
país, surgia então uma proposta direta de punição para as atividades homoeróticas em
espaços públicos, dada em seu artigo 258: “Os atos libidinosos entre indivíduos do sexo
masculino serão reprimidos, quando causarem escândalo público, impondo-se a ambos os
participantes detenções de até um ano” (apud GREEN; POLITO, 2006, p. 96).
Os autores nos informam, ainda, que tal proposta vinha acompanhada de uma
cláusula patologizante, pois o juiz poderia substituir a pena por hospitalização, quando
comprovada por perícia médica a “anormalidade” dos homens que se relacionavam
sexualmente com outros homens. “Felizmente, o artigo 258, bem como a cláusula, foram
cortados da última lista de propostas para o Código Penal de 1940” (GREEN; POLITO,
2006, p. 97).
Certamente, a perigosa proposta seria um duro golpe não apenas para as interações
sexuais masculinas nos locais públicos, mas para qualquer demonstração pública de afeto
que viesse a escandalizar o sistema regulatório de gênero na vida em comum. É preciso
lembrar que mesmo atualmente, apesar dos relativos avanços no reconhecimento, por parte
do Estado, dos direitos civis das populações homossexuais, não há uma legislação
específica que combata a homofobia no Brasil, fora as iniciativas legais de alguns Estados.
E mais: ainda hoje as expressões homoafetivas públicas, como andar de mãos dadas,
abraçar e trocar beijos, são violentamente repelidas.
O debate entre a criminalização e a patologização de pederastas, invertidos 93 e
sodomitas estava acalorado no período que antecedeu a revisão que deu origem ao Código
Penal Brasileiro. Um grupo considerava os homossexuais meros depravados; outro,
formado sobretudo por médicos, estava construindo uma proposta mais rigorosa em
relação aos homens considerados infames. Essa cisão, de acordo com Trevisan (1986),

92
Também chamado de Terceira República, o Estado Novo demarca o período ditatorial instaurado e
conduzido por Getúlio Vargas, entre 10 de novembro de 1937 a 31 de janeiro de 1946.
93
O termo foi bastante popularizado a reboque da grande difusão da psicanálise. Apesar disso, a noção de
Freud para os invertidos foi mudando em sua obra e estava distante da associação dos invertidos às ideias
de degenerescência ou a áreas cerebrais delimitadas para cada gênero. O invertido, para Freud, não estava
completamente claro, mas não era um ser à parte dos demais e sim uma variação da pulsão normal.
Também não se tratava de um perverso, apesar de sua teoria postular um caminho normal para se tornar
homem ou mulher e, sendo assim, o invertido seria alguém que se desviou desse caminho (KAWAKAMI,
2014).

96
ficaria evidente na Primeira Semana Paulista de Medicina Legal, realizada em 1937, na
qual, no escopo dos debates que revisavam o código penal, vários juristas e médicos
manifestaram o projeto de punição às práticas homossexuais.

3.2.1 Primeira Semana Paulista de Medicina Legal em 1937: o Homossexual


Deve Ser Preso ou Internado?

A busca pelos arquivos originais desse evento não foi simples. Contudo, depois de
alguma dificuldade, localizamos seus anais na biblioteca da Academia de Polícia de São
Paulo (Acadepol), como parte de uma da série de publicações técnico-cientificas do
Serviço de Identificação do Gabinete de Investigações de São Paulo, intitulada “Arquivos
de Polícia e Identificação”. Num breve acesso supervisionado ao material foi possível
verificar no volume que reúne esses anais que seus participantes se debruçaram com
contundência sobre a vida social dos homossexuais.
O material descreve em detalhes as atividades do evento, incluindo a transcrição
dos trabalhos apresentados e os acalorados debates que suscitou. Observando seu conteúdo
é possível desvelar o clima da época. O discurso médico caminhava a passos largos no
sentido da patologização do “homossexualismo” e possíveis formas de trata-lo. Refletia,
desse modo, uma tendência mundial, dado que, não muito depois, em 1948, o sujeito
homossexual seria incluído na Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS 94,
cuja 6º edição incluiu o homossexualismo na aba “Personalidade Patológica”, subcategoria
de Desvio Sexual (320.6), mantida na sua edição posterior. Na 8ª versão, o
homossexualismo deixou essa condição, mas passou a ocupar o posto de mazela, na
categoria “Desvio e Transtornos Sexuais”, com uma subcategoria só para si, a 302.0
(LAURENTI, 1984). A exclusão do termo homossexualismo só ocorreria quatro décadas
depois, na 10ª edição da CID, aprovada em meados dos anos 1990, em vigor até hoje95.
Em 1937, durante a já citada semana, o médico psiquiatra Edmur de Aguiar
Whitaker, do Serviço de Identificação de São Paulo, apresentou o resultado de seu estudo
antropopsiquiátrico de oito pederastas passivos detidos pela polícia paulista. Ele resumiu as
informações de cada caso, sugerindo logo a seguir seus diagnósticos. Sobre um deles o
psiquiatra concluiu, com alguma dúvida acerca das causas: “Diagnóstico – Pederastia
passiva endógena. Personalidade tendendo à contração afetiva, com acentuado
94
Organização Mundial de Saúde.
95
Em 18 de junho de 2018, a Organização Mundial de Saúde anunciou o lançamento da 11ª edição da CID.

97
desequilíbrio de caráter (...). Tipo corporal misto. Conformação feminina da bacia e
distribuição aproximadamente feminina dos pelos do púbis. Hipertireoidismo?”
(WHITAKER, 1938-1939, p. 32). Em outro, seu diagnóstico foi mais brando, já que se
tratava de um pederasta passivo ocasional que cedera às influências do meio realizando tal
prática sexual. Recomendou Whitaker (1938-1939, p. 33), em seu parecer criminológico e
sociológico, “[...] uma ação corretivo-educacional”. Em um terceiro caso, de um pederasta
passivo que “[...] se adaptou sem grande resistência a esta anomalia [...]”, sentenciou a
necessidade “[...] de uma ação corretiva médico-pedagógica (para seu desvio sexual e
defeitos de educação e senso social)” (WHITAKER, 1938-1939, p. 34). De suas
conclusões mais contundentes foi possível depreender que estava convicto de que a
homossexualidade era uma anomalia relativa à personalidade psicótica, com influência
importante do sistema endócrino.
Whitaker apresentou outro trabalho no evento, em parceria com os alunos do
Instituto de Criminologia, também sobre pederastas passivos. Nele, contudo, o foco era a
biografia dos homossexuais, destacando aspectos como costumes, hábitos, apelidos e
gírias. Em seu trabalho de campo, nas ruas de São Paulo, percorreu os circuitos
homoeróticos existentes à época. Entre os pederastas escolhidos para entrevistas estava um
conhecido por “Gilda de Abreu”. O psiquiatra registrou aspectos do cotidiano de Gilda,
como ir ao cinema e visitar outros pederastas, e fez anotações sobre o seu forte traço
feminino, informando que ao anoitecer, após o jantar, ia a lugares habituais para encontrar
homens ativos: “Seu ponto predileto é o Parque do Anhangabaú. Lá permanece até altas
horas, depois recolhendo-se ao seu quarto” (WHITAKER et al., 1938-39, p. 245).
Em sua observação nº 6 sobre pederastas passivos, o psiquiatra teceu comentários
acerca do pederasta Zazá, um relato sobre suas desventuras desde de que saíra de casa, no
interior paulista. Com grande riqueza de detalhes, a narrativa registrada por Whitaker
evidencia também o contexto social de gênero da época, no qual os papéis de ativo
(identificado com a virilidade) e de passivo (ligado à figura da mulher) conferiam
diferentes status à homossexualidade. Depois de uma temporada de farras no Rio de
Janeiro, Zazá contou como se dera sua volta a São Paulo:

[...] 1933. De novo a mesma vida. Porém agora mais sossegada, por não
ter aqui tantos pederastas ativos como no Rio. Procurei, então, o meu
homem, que tinha feito em minha carne a vacina da pederastia, da
desgraça e da deshonra. Êle cinicamente pegou no meu membro, fez com
que êle se endurecesse e exigiu, depois, que eu colocasse no seu anus. Eu,

98
então, gozei nele e fiquei boquiaberto ao perceber que havia me
entregado a um homem que não era completamente macho e que era, sim,
um passivo como eu. (...) Não o procurei mais. (...) não sei se criei-lhe
amizade, por sermos iguais (...) (WHITAKER et al., 1938-39, p. 250).

De outro pederasta passivo, vulgo “Flor de Abacate”, o psiquiatra anotou relatos


sobre os lugares que ele percorria para encontrar parceiros sexuais, pontos conhecidos dos
ativos de pegação, sob a tática de sempre se deixar abordar (WHITAKER et al., 1938-39).
Numa das conclusões de sua pesquisa de campo, os autores elencam esses pontos
habitualmente frequentados pelos homossexuais paulistanos: “Parque Anhangabaú, Jardim
da Luz, Praça da República (mictório), trecho da rua Conselheiro Nébias e quase todas as
casas de tolerância” (WHITAKER et al., 1938-39). Por fim, concluem: “[...] maioria
costuma frequentar determinados locais (praças públicas) sossegados, porém centrais e à
noite. Aí se encontram, palestram e principalmente atraem os ativos. Outros não
frequentam tais locais, mostrando-se bastante discretos em evidenciar a sua anomalia”
(WHITAKER et al., 1938-39, p. 260).
Nos discursos médicos, o pederasta ativo, sobretudo aqueles bastante identificados
com o sistema de virilidade vigente, não era tão patologizado quanto o passivo. Não por
acaso, o Whitaker desenvolveu suas pesquisas se debruçando sobre a figura homoerótica
passiva. Gilda de Abreu, Zazá e Flor de Abacate são praticamente nomes de guerra de
homens que realizavam atividades sexuais muito próximas de relações monetarizadas
como as estabelecidas por muitas travestis que, atualmente, fazem programa nos arredores
do mesmo centro da capital paulista.

99
Figura 9. Zazá e Tabú, dois dos pederastas passivos pesquisados pelo psiquiatra Whitaker e seus
alunos do Instituto de Criminologia.

Extraído de WHITAKER et al. (1938-39, p. 255)

Outro trabalho extenso foi apresentado por Aldo Sinisgalli, igualmente aluno do
Instituto de Criminologia, intitulado “Considerações gerais sobre o homossexualismo”,
uma ampla explanação sobre o tema. Em primeiro lugar, Sinisgalli considerava o
homossexualismo uma das diversas perversões sexuais capazes de modificar os sujeitos
não apenas em termos de gostos sexuais, mas também de gestos, atitudes e tendências. O
estudo esboça uma “genealogia” do homossexualismo, indicando que era uma prática
presente em diversas culturas ocidentais, desde a Grécia Antiga, mostrando ainda como as
sociedades atuaram, ao longo da história, na repressão à homossexualidade. Dizia ele: “A
pederastia é uma herva daninha, que vicejou em todos os tempos, desde a mais alta
antiguidade e ainda hoje tem seus fervorosos prosélitos” (SINISGALLI, 1938-39a, p. 283).

100
Também fez uma longa explanação acerca da posição médica sobre o tema desde o
século XIX, alinhando as teorias psicanalíticas de Freud e as ideias de Lombroso96 sobre
homossexuais ocasionais e natos. Apresentando uma explicação muito típica ao período
sobre as glândulas sexuais e a possibilidade de implantes (CORBIN et al., 2013) bem-
sucedidos para solução da pederastia, Sinisgalli (1938-39a, p. 283) demonstrava estar
convencido de que a prática sexual entre homens, como erva daninha a assolar o mundo,
era uma doença tratável:

E não haverá mais legislações punindo atos de indivíduos doentes,


irresponsáveis pelo seu mal; pois seria injusta, incoerente e absurda a
aplicação de penas a indivíduos que necessitam de tratamento; sabendo-
se que a punição não melhorará um milésimo a conduta do invertido. (...)
Para os invertidos, tratamento; disso é que eles precisam. Que se deixe ao
médico e ao educador a cura dos males orgânicos e psíquicos.

Para ele, a cura passava também por uma intervenção endocrinológica, pelos
extratos opoterápicos, já que se tratava de um indivíduo que não pertencia nem ao sexo
masculino nem ao sexo feminino. E mais, para Sinisgalli, o pederasta não tinha apreço por
seu órgão viril.
No cerne do argumento do médico havia um impasse: ao mesmo tempo em que a
anormalidade da pederastia não devia ser punida por se tratar de uma doença, os pederastas
não podiam ficar soltos, posto que sua conduta invertida afetava negativamente os bons
costumes e a moralidade pública, inclusive pervertendo menores com suas tendências
mórbidas. Por isso, advogava:

Como a cura dos males orgânicos e psíquicos requer o devido tratamento


e a devida reeducação, ao Estado caberia crear – anexo ao Manicômio
Judiciário – um instituto para pederastas criminosos. Êsse instituto – com
finalidades semelhantes às do Manicômio Judiciário – receberia os
pederastas para que estes fossem submetidos a um tratamento médico e
educação apropriada, sendo ela ministrada por um corpo de professores
especializados. Êstes procurariam elevar o nível moral, o caráter dos
invertidos, mostrando-lhes a finalidade do homem, a missão que êle deve
cumprir (SINISGALLI, 1938-39a, p. 300).

96
“O principal expoente da antropologia criminal no Brasil, Cesare Lombroso, defendia ser a criminalidade
um traço inerente à constituição física e hereditária do indivíduo. Para ele, essas características
influenciavam também no campo da doença mental e abordava a loucura individual e a degeneração como
vertentes aliadas. Assim, a antropometria e a frenologia são teorias utilizadas pela antropologia criminal
para classificar desvios de acordo com o tamanho do cérebro” (SILVA, 2014, p. 71).

101
A sugestão de criar um instituto para tratar especificamente dos pederastas gerou
acalorada discussão. De um lado estavam aqueles que concordavam que se tratava de uma
doença e, portando, nada mais assertivo do que oferecer ao doente um tratamento
adequado. De outro, os que acreditavam que entre os pederastas havia os que eram
conscientes de seus crimes e, por isso, precisavam ser punidos. J. Soares de Melo, um dos
debatedores do artigo de Sinisgalli, foi enfático ao defender essa última posição. Ele
achava que o Código Civil então vigente era frouxo e os tribunais precisavam trabalhar
com muito engenho para “[...] encaixa-los neste ou naquele dispositivo [...]” (ARQUIVOS
DE POLICIA, 1938-1939, p. 302), o que seria um problema, pois muitos pederastas
ficariam impunes:

Está prática aberrante só pode ser encaixada nos artigos de violência


carnal ou corrupção; é bem de ver que os casos que não se enquadram
nestes dispositivos escapam à alçada da lei (...). Meu ponto de vista é pela
punição dos homossexuais; (...) Se pretendemos moralizar os nossos
hábitos e impedir a propagação desta anomalia, que grassa em toda parte,
é preciso que no nosso futuro estatuto penal haja um dispositivo bem
claro punindo-a, porque tenho para mim que se trata de um delito,
embora em certos casos não haja possibilidade de punição.

Outro debatedor, A. Tavares de Almeida, corroborou a tese de punição dos


homossexuais. Mas ressalvou: “[...] cadeia para o pervertido e manicômio para o demente.
Faço votos para que o Congresso torne pública esta sugestão de que a lei elaborada
contenha um dispositivo repressor do homossexualismo” (ARQUIVOS DE POLICIA,
1938-1939, p. 302). Almeida, então, se colocou contra a criação de uma instituição para
tratamento dos pederastas: “Não seria possível à sociedade aplicar uma medida de
segurança, como seja a internação num instituto especial dos homossexuais, sem que o
Código Penal preveja a respectiva detenção (...) Não fosse isso, eu bateria palmas à creação
do instituto” (ARQUIVOS DE POLICIA, 1938-1939, p. 302). Assim, o relator do artigo
teve de recuar um pouco. E garantiu que tal instituto serviria exclusivamente aos
pederastas com insanidade mental: “Também não proponho a internação dos invertidos,
sem sanidade mental, no instituto para pederastas; êste instituto se destinaria aos invertidos
por perversão” (ARQUIVOS DE POLICIA, 1938-1939, p. 303).
Para Oscar Ribeiro de Godoy, mais um debatedor, o homossexual deveria ser preso
afim de garantir a higiene social e não por crime, uma vez que o homossexualismo era um
problema médico e não de polícia (ARQUIVOS DE POLICIA, 1938-1939). Soares

102
rebateu, referindo que não havia necessidade de criar tal instituto porque já existia o
Manicômio Judiciário 97, local adequado para acolher os pederastas, uma vez que operava
como prisão e asilo. Na visão de Godoy, inclusive, o homossexual deveria ser afastado do
convívio social antes de ser flagrado em delito, por medida de segurança (ARQUIVOS DE
POLICIA, 1938-1939, p. 303):

Assim é que um alcoólatra, um epilético, são criminosos potenciais, que o


Estado pode segregar a bem da sociedade e como uma medida
profilactica. Ora, o mesmo acontece com o homossexual, que sendo
perniciosos ao Estado e à sociedade, pode e deve ser segregado. (...) faço
votos para que o futuro Código Penal da República tenha um dispositivo
bem claro que puna a prática do homossexualismo.

Sinisgalli (1938-39b) ainda voltaria a apresentar suas percepções em mais um


trabalho, desta vez para fazer suas considerações acerca das condições de vida e dos
costumes de pederastas passivos na cidade de São Paulo. Como Whitaker, também ele
dedicou-se aos estudos sobre pederastas passivos. No trabalho de ambos, contudo, não fica
claro se a questão mais relevante era a prática homossexual em si ou o fato das figuras
homoeróticas serem muito identificadas com o universo feminino, especialmente aquelas
que bagunçavam o cotidiano público heteronormativo. Para Sinisgalli, não restava dúvidas
de que o pederasta passivo se considerava mulher, tanto que fazia parte de seu vício
arrumar um nome feminino. Achava essa natureza feminina da patologia uma condição,
sustentando sua tese no fato de que muitos homossexuais passivos também preferiam, além
do nome feminino, realizar atividades domésticas, tipicamente circunscritas ao mundo das
mulheres.
Nesse sentido, também como em Whitaker, a descrição de Sinisgalli se aproxima da
vida de muitas travestis contemporâneas, empurradas para prostituição por falta de opções
de acesso a um tecido social altamente regulado pela heteronorma: “Nas grandes cidades
existem pederastas sem profissão; ou melhor, agem como prostitutas. Vivem do imoral
comércio de suas carnes. (...) Geralmente vivem como as mulheres dos lupanares”
(SINISGALLI, 1938-39b, p. 304).
Travestis e bichas muito afeminadas, sobretudo as mais empobrecidas, apresentam
baixo valor no esquema de gratificação de performances de gênero da

97
Apesar de não estar claro no texto, é possível supor que Godoy estivesse se referindo ao Manicômio
Judiciário do Estado de São Paulo, que, segundo Silva et al (2016), foi inaugurado em 1927 em parte das
dependências do Hospício Central do Juquery, localizado atualmente em Franco da Rocha (SP).

103
heteronormatividade. E isso não é atual. O próprio Whitaker e seus alunos de criminologia
observaram, no campo, que o termo “bicha”98 já circulava nos territórios homoeróticos
paulistanos para designar o pederasta passivo. Mesmo no universo gay atual gratifica-se
muito homens viris, mais alinhados com os padrões vigentes de masculinidades.
Entrementes, ainda hoje, é comum se pensar que importa mais, incomoda mais “o jeito de
viado” de determinado homem do que propriamente sua prática homossexual.
Importante observar que nas pequenas interações cotidianas estabelecidas nas
famílias, no ambiente de trabalho, nas escolas, enfim na vida comunitária, o homem mais
afeminado será sempre rechaçado, terá menos valor nas relações, circulará com mais
dificuldades pelo tecido social. Lembremos: Bembem, protagonista do centenário conto
Menino do Gouveia, expulso de casa pelo tio, só encontrou acolhida nos arredores do
Largo do Róssio, então popular área de pegação carioca.
Exemplo de que a medicina é produtora de muitos preconceitos sociais e, ao mesmo
tempo, seu produto histórico, Sinisgalli (1938-39b, p. 305) não considerava a inversão
sexual como um desvio de caráter, ao menos para aqueles pederastas que, “[...]
reconhecendo sua situação, não fazem alarde dela, não andam perambulando pelas ruas,
não têm relações com outros invertidos; têm boa conduta, até moralidade; são honestos,
trabalhadores”. Para ele, o problema estava nos pederastas que não aceitavam sua condição
sem causar problemas à moral:

[...] por serem descendentes de indivíduos mórbidos e criminosos, ou por


viverem no meio mais imoral, sórdido e desregrado, ou por se associarem
a outros pederastas debochados e cínicos, perdem o pouco de moralidade
e caráter que tinham para se tornarem vagabundos, elementos perniciosos
à sociedade. Encontramos vários pederastas nessas condições aqui em
São Paulo. (...) Dormem de dia e a noite vão à caça (SINISGALLI, 1939-
39b, p. 305).

O foco de sua atenção eram apenas os pederastas passivos que “[...] rondavam os
mictórios públicos, neles entrando frequentemente. E aí – no Parque e redondezas –
passam boa parte da noite, até encontrar um freguês” (SINISGALLI, 1939-39b, p. 305).

98
“A bicha é um jeito de corpo. Uma composição de membros, um modo particular de se mover, uma
maneira própria de se portar, um gesto habitual de se expressar e de mexer os olhos e uma habilidade de
se aproximar do outro. É uma inflexão na voz, uma certa arrumação sonora. É um gesto no espaço. Pouco
importa o que nesse arranjo é dado pela natureza e o que é artificialidade. A bicha é uma lesão incurável no
corpo que é compulsoriamente disposto como macho a partir de uma imposição biológica. A bicha é uma
sina de frescor. A bicha é um sujeito que está pintosa, é uma afeminada que aparece como um
deslocamento, como um estranhamento da heterossexualidade” (RODRIGO, 2016, p.31-32).

104
Mas quem era o pederasta ativo que se servia dos passivos, estes degenerados que vendem
a própria carne? Como os ativos não eram objeto de observação importante para Sinisgalli,
apareceram em seu estudo como sujeitos ocultos na parceria sexual.
Mesmo que Whitaker e seus alunos tivessem identificado mais de uma dúzia de
gírias que denotavam a produção, já nos anos 1930, de uma territorialidade homoerótica
diversa, na realidade seus relatos estavam muito distantes do regime discursivo
contemporâneo que distingue orientação sexual e identidade de gênero, colocando gays e
travestis ou transexuais em letras diferentes da comunidade LGBTTT. Mais preocupados
com a criminalização/patologização dos pederastas passivos, certamente deixaram passar
todo um campo de interação homoerótica que ocorria na cidade, bem menos regulado pelos
preceitos heteronormativos que ranqueiam homens e mulheres.
Apesar desse esforço, o Código Penal que entrou em vigor em 1940 não
criminalizou diretamente os homossexuais. Mas o documento, que sofreu inúmeras
alterações e atualizações legais ao longo dos anos no país, no que se refere ao “ultraje
público ao pudor”, continua o mesmo há mais 70 anos: detenção de três meses a um ano ou
multa para as pessoas que praticarem “[...] ato obsceno em lugar público, ou aberto ou
exposto ao público” (BRASIL, 1940). Embora o que a lei entende por ato obsceno não
fique claro, o artigo que o regula (233) está exposto em placas de advertência em diversos
banheiros de pegação da cidade de São Paulo.

105
Figura 10. Reportagem da Folha de S.Paulo sobre a criminalização dos atos
obscenos praticados na pegação.99

99
Em 9 de abril de 2008, a Folha de S.Paulo alertava sobre a prática de pegação em banheiros nos
shoppings da capital. Segundo a matéria, o Shopping Light (na região central) passou a cobrar 50 centavos
pelo uso do banheiro como forma de coibir a prática. Já o Shopping Frei Caneca, na região da Consolação,
afixou a placa de aviso advertindo sobre a configuração de crime dessa prática. In: GALVÃO, Vinícius
Queiroz. Shoppings fazem alerta contra “pegação” gay e atos obscenos nos banheiros. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 9 abr. 2008. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0904200821.htm>.
Acesso em: 15 out. 2017.

106
Figura 11. Placa no banheiro público de uma das rodoviárias da cidade de São
Paulo, 2014.

Foto do autor

3.3 A PEGAÇÃO COMO CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Embora seja difícil precisar como exatamente surgiu a expressão “pegação”


relacionada às práticas sexuais, é possível observar que o termo foi primeiro utilizado em
meio urbano como um código verbal para designar certas práticas (mesmo que estas sejam
bem anteriores) ocorridas em determinadas áreas de sexo casual entre homens ou
comunidades de homossexuais. Nomeada como pegação, essa experiência possivelmente
emergiu em algumas cidades brasileiras ainda nos anos 1950, em consonância com o
sentido de “caça” dado no rito sexual entre os homens. Mais recentemente, a palavra foi
incorporada às relações descompromissadas heterossexuais como expressão de carga
semântica análoga a “ficar”, utilizada a partir dos anos 1980.
Coincidentemente, foi também a partir da década de 50 do século passado que a
pegação ganhou um outro regime discursivo. Se até então os discursos sobre ela estavam
atrelados aos registros médicos e policiais que administravam a cidade, a partir desse
período as práticas sexuais citadinas anônimas entre os homens ganharam um novo
observador: o cientista social. A sua inserção em espaços homoeróticos públicos
finalmente inaugurou uma linha de observação desse fenômeno que extrapolava os
registros patológicos antecessores.
A obra Homossexualismo em São Paulo: um estudo de um grupo migratório pode,
seguramente, ser considerada pioneira (GREEN; TRINDADE, 2005). O trabalho,

107
produzido por José Fábio Barbosa da Silva para um curso de especialização em sociologia
ministrado na Universidade de São Paulo, em 1958, analisou o deslocamento da ocupação
homoerótica na capital paulista do Vale do Anhangabaú e arredores, reconhecidos como
áreas de circulação de pederastas e sodomitas desde os anos 1930, para uma nova e
complexa região, onde surgiram estabelecimentos voltados para o público homossexual:
“[...] um grande T, formado pelas confluências das Avenidas São João e Ipiranga, tendo
como pontos cardeais os cinemas Oásis, ArtPalácio e início da rua São Luiz” (SILVA,
2005, p. 73).
O homossexual continuava a alarmar as autoridades, especialmente os
homossexuais afeminados que se expunham nas calçadas. Alvo da força policial, muitas
vezes levavam uma vida fora das normas sociais vigentes, sendo associados à prostituição,
a casas de perdição, a cabarés (SILVA, 2005).
Na segunda metade do século XX, a região central de São Paulo passou a acolher
muitos homossexuais. Eribon (2008) reconhece essa “fuga para a cidade” como um
processo de construção de modos de vidas baseados no anonimato e nas políticas de
amizade entre seus iguais. Para o autor, os grandes centros aumentavam a capacidade de
escapar do horizonte da injúria que impossibilitava a experiência da homossexualidade
sem disfarces. Assim, todos os homossexuais que não se adequavam à realidade
heteronormativa de suas famílias de origem, muitas vezes de outras cidades e Estados,
encontravam acolhida nas regiões centrais da capital paulista, onde formavam novos
vínculos sociais. Era o início da consagração do gueto.
Por óbvio, é compreensível que o trabalho sociológico vanguardista de Silva esteja
de acordo com seu tempo. Dito de outro modo, a diversidade da homossexualidade era
traduzida por certa enumeração de sujeitos homossociais relativamente bem acabados. E,
apesar do distanciamento do olhar médico-criminal, também tipificou comportamentos
sociais, tomando a homossexualidade, em certa medida, numa dimensão muito
individualizante. Talvez porque seu objetivo fosse circunscrever o fenômeno social do
“homossexualismo” (como grafado pelo autor) a partir do que reconhecia como grupo
minoritário. E, assim, escrutinou seus modos de vida, seus valores e suas táticas de
socialização, sob forte influência da chamada Escola de Chicago e suas propostas
etnográficas, sobretudo de observação das populações marginais, dos guetos ou das
mazelas sociais, como delinquência e criminalidade (TRINDADE, 2005).

108
A noção sociológica de gueto gay também foi observada por outros autores. Em
defesa do gueto, Edward MacRae (1983) faz um importante resgate histórico desses
espaços no eixo Rio-São Paulo, apontando a dualidade de sua dinâmica: de um lado essas
relações homoeróticas eram fortemente mediadas pelos estabelecimentos comerciais, por
outro, diante de intensa repressão, configuravam-se como locais possíveis para se testar
novas identidades homosociais.
Eribon (2008) também reconhece na guetificação territorial uma espécie de
possibilidade de saída ou visibilidade para um gueto mental invisível muito maior, ao qual
todos os que habitam o espectro homossexual estariam submetidos e que relega ao segredo
partes fundamentais de suas existências. Nesse sentido, o gueto suspenderia
provisoriamente estruturas de opressão e de injúria que conformam os modos de vida
desses homens, de dissociação de sua experiência interna de erotismo ou identidade e sua
possibilidade de expressão na vida pública, processo “[...] de privatização, de envio da
homossexualidade ao íntimo dos indivíduos [que] acontece (...) desde a infância, desde a
escola” (ERIBON, 2008, p. 128-129).
Contudo, pontuam Simões e França (2005), a territorialidade marginal do gueto
paulistano, cristalizada na segregação, após algumas décadas também passou a ser
desprezada por uma parcela dos homossexuais que não queriam ter suas identidades
associadas a esses locais. Assim, acrescentam os autores, as políticas de visibilidade gay
mudariam em parte a visão vulgar da circulação homossexual pela urbe, cada vez mais
próxima de uma lógica de mercado diferente dos guetos originais.
Voltando ao trabalho de Silva (2005), é importante destacar seu relevante
pioneirismo ao observar por outro ângulo a ocupação homoerótica citadina.
Diferentemente dos médicos dos anos 1930, já na década de 1950, ele identificou a figura
da travesti mais apartada dos homens homossexuais, por exemplo. Ele também mapeou
gírias e expressões da época muito pertinentes ao presente estudo. Dentre elas, a tradução
literal das tearooms como casas de chá para designar os banheiros públicos em que
ocorriam práticas sexuais. Isso pode significar um acesso e até mesmo uma troca cultural
simbólica entre os guetos brasileiros e os de língua inglesa que utilizam o termo. É de Silva
(2005) também a informação de que a gíria “mercado” referia-se ao conjunto de
homossexuais numa cena com vistas a relações sexuais; enquanto as expressões “noite de
teste” e “mil e uma noites” denotavam sexo casual; e “peixão” e “macho” designavam o
homossexual ativo de características viris.

109
Pegação não era aparentemente um termo utilizado no território homoerótico
paulistano nos idos dos anos 1950. Contudo, o autor registra a palavra “caçar” como
análoga à ideia com a qual estamos trabalhando: “[...] procurar um parceiro sexual para
relação sexual, aproveitar todas as oportunidades potenciais dos indivíduos que passam;
também se refere àqueles que usam um automóvel para tal ação; olhar com desejo um
parceiro sexual em potencial, ou a uma pessoa para possível relação sexual” (SILVA,
2005, p. 186).

3.3.1 “Da Arte de Caçar”, Breve Contribuição do Jornal O Snob

Na década de 1960 os guetos gays do eixo Rio-São Paulo compunham uma cena
relativamente diversificada. Isso consolidou também uma lógica comunitária e de grupos
de homossexuais cada vez mais atuantes e reflexivos quanto às suas identidades sociais.
São desse período, por exemplo, os primeiros jornais e revistas voltados para esse público
no Brasil. 100
Entre os pioneiros estava o jornal O Snob, publicado no Rio de Janeiro entre 1963 e
1969. Apesar da ditadura civil-militar, politizava informações e temáticas relativas à vida
homoerótica citadina carioca na perspectiva de vários grupos homossexuais atuantes
(COSTA, 2010). Entre abril e setembro de 1964, segundo Green e Polito (2006, p. 64), o
jornal publicou uma série de dez capítulos intitulada “Da arte de caçar”101, uma
interessante incursão pelas práticas sexuais anônimas na cidade, um verdadeiro manual
para “[...] aquelas que realmente desejam se tornar ótimas pegadeiras”. O Snob foi a
publicação mais antiga à qual esta pesquisa obteve acesso a empregar a expressão pegação.
Os vários textos da série tratam com ironia e irreverência os esquemas e dilemas
que os homens viviam em suas práticas sexuais anônimas. Trazia dicas para “as” bichas
leitoras do jornal, colocando o artigo propositalmente no feminino para amplificar o tom de
deboche próprio do universo gay masculino. No excerto do “Capítulo IV – Dos diálogos

100
Para saber mais: PÉRET, Flávia. Imprensa gay no Brasil: entre a militância e o consumo. São Paulo:
Publifolha, 2011.
101
Obra rara, de difícil acesso, cujos originais acessamos parcialmente a partir do Arquivo Edgard Leuenroth
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). São os “Capítulo VII – Dos benefícios do futebol”;
“Capitulo VIII – a Vib na sociedade”; “Capítulo IX – Aproveitando o momento”; e o “Capítulo X – Últimas
pegações”. Felizmente, Green e Polito, no livro Frescos Trópicos: fontes sobre a homossexualidade
masculina no Brasil (1870-1980) (2006), também publicaram esses mesmos capítulos (exceto o VIII) e
acrescentaram à obra o “Capítulo IV – Dos diálogos iniciais”, escolhidos pela sua irreverência.

110
iniciais”, sobre os cuidados que os homens deviam ter durante a caça em busca de
aventuras, um exemplo dessa irreverência:

Hoje, você saiu à cata de aventuras. Seus olhos percorreram todo bicho-
homem que é de seu agrado. De repente, cruzam-se com determinados
olhos e a eletricidade que paira no ar acusa que houve um entendimento.
Discretamente, ambos procuram um local oportuno para entabular um
diálogo inicial. (...) Se você for uma pessoa inteligente levará a palestra
para onde desejar e em poucos minutos, indiretamente, o seu alvo lhe terá
dito quem é, o que faz e como vive. (...) Se a primeira vista o sujeito não
merece confiança, tempo perdido para você. Alegue que vai tratar de um
assunto importantíssimo (...). Quando você ainda não tem certeza quanto
ao caráter do rapaz é de bom alvitre que você não o leve para sua casa.
Vá com ele em qualquer lugar obscuro. (...) Reconhece-se à primeira
vista o homem no qual devemos confiar. O nosso sexto sentido
imediatamente acusará. Quando você encontrar este príncipe encantado,
agarre-o imediatamente, de unhas e dentes. É a hora de você abandonar a
“caçada” (apud GREEN; POLITO, 2006, p. 65-66).

Curiosamente, as dicas da coluna continuam bastante atuais. Irônico, o texto aborda


um aspecto crucial ao sexo anônimo entre os homens: nunca se sabe quem eventualmente
se encontrará por aí. Por outro lado, a aposta nos olhares que se cruzam e comunicam uma
elétrica cumplicidade, os papos iniciais e o “sexto sentido” sobre como o encontro está
ocorrendo dão pistas para realizar essas aventuras com mais segurança. É incrível como
essas táticas ocorrem ainda hoje, com alto grau de eficácia, mesmo em pegações iniciadas
por aplicativos.
No “Capítulo VII – Dos benefícios do futebol”, o tema era a pegação no mais
emblemático estádio do país:

Aproveite a sua tarde dominical e vá ao Maracanã assistir à apoteose


máxima em matéria de caça, onde [entre] dezenas de milhares de
representantes do sexo masculino você poderá escolher o seu eleito (...).
Máxima discrição ao agir no estádio; o mínimo de pinta que você deixar
transparecer poderá ocasionar massacre de sua frágil figurinha. (...) Nos
corredores, banheiros e arquibancadas, você encontrará rivais fazendo
determinados reconhecimentos do campo de atividades (BRYANT,
1964a).102

É um local surpreendente... ou, pensando bem, talvez não. Se há uma imagem


representativa da virilidade masculina ou da inscrição de todos os homens brasileiros no
regime heteronormativo é a devoção pelo futebol. É possível que hoje isso tenha

102
Os arquivos originais acessados do jornal O Snob não dispõe de paginação.

111
diminuído, mas não gostar de jogar bola ou não torcer para algum time já significou forte
suspeita de homossexualidade. Os homens faziam piada do desinteresse masculino pelo
futebol, se provocavam mutuamente por isso. Gostar de futebol era/é honrar seu próprio
falo.
Contudo, paradoxalmente, há muito de homoerotismo entre homens torcendo juntos
num estádio. Primeiro porque ali, por intermédio do ato de torcer pelo time, os homens se
abraçam, choram juntos, experimentam toda sorte de sensações e comemoram o gol da
vitória com a virilidade que lhes é própria. Podem extravasar juntos toda a energia
sublimada pela condição de ser homem em nossa sociedade. Um estádio de futebol lotado
é a apoteose do macho. E, talvez por isso mesmo, alguns até gozarão juntos, na pegação:

Tudo que você precisa fazer é postar-se nos banheiros do estádio. São
imensos e lá poderá ficar o tempo que quiser, ora fumando, ora
passeando. (...) Fique lá dentro e poderá observar que outros também
ficam “fazendo hora”. Vá até as salas de prazer, vulgarmente chamadas
de WCs (que dizem ser muito limpas), deixe a porta entreaberta e aguarde
o sorteio de seu bilhete, que não se fará esperar (BRYANT, 1964a).

São conhecidas as táticas de fazer hora em banheiros públicos até “pintar” algum
parceiro sexual. Habitualmente, se faz isso com descrição e bastante perspicácia, como já
dito, num ritual muito silencioso. Contudo, se considerada a dica d’O Snob para pegação
no Maracanã, não havia grandes riscos em “se pegar” nos mictórios do estádio,
provavelmente por conta do tamanho.
Não é o caso de muitos banheiros públicos utilizados para pegação, no dia a dia das
cidades, sempre bastante vigiados. Por isso, só uma pequena parte dos homens se arrisca a
entrar num reservado com alguém. Na tática de pegação em banheiros, tomar uma atitude
dessas equivale a transar num beco sem saída, ou seja, não há justificativa para dois
homens flagrados nessa situação. Daí que nesses locais os homens preferem táticas mais
móveis e “desmontáveis”, como voyeurismo, masturbação mútua e breves “chupadas”
tensas. Desse modo, não correm o risco de, literalmente, serem pegos com a boca na botija.
Talvez na hilariante sequência do “Capitulo VII – Dos benefícios do futebol”,
quase ao final do texto, esteja a pista para a audácia futebolística: “As pegações durante os
jogos preliminares são em boa quantidade, porém um tanto imprudentes. Porém, ao
começar o jogo principal, acontece algo inacreditável; até o policiamento vai para o estádio

112
assistir à partida. Como veem, o resto é livre para as atacadas. Tudo que não estiver
assistindo ao jogo, ou é bofe ou é “tia” (BRYANT, 1964a).
As atenções voltadas ao limite para a consagração do homem heterossexual através
do espetáculo de futebol faz baixar até mesmo a vigilância de gênero nos banheiros do
estádio. E o território da pegação instaura-se justamente no vácuo deixado entre a ausência
de policiamento nos banheiros e todas as atenções voltadas para o campo, onde se
desenrola o jogo principal.
O “Capitulo X – Últimas pegações”, como o próprio nome indica, finaliza a série,
trazendo um aspecto interessante da vida homoerótica das cidades do Rio de Janeiro e São
Paulo. É a chegada das saunas na cena de sexo casual masculino, que o colunista trata
ironicamente de “golpe”, de vanguarda ou pegação do futuro.

O golpe das “saunas”, que começa a ser difundido no Rio e São Paulo,
tende a se tornar a “pegação” do futuro. Muito difundido em Nova York e
Paris, onde é problema policial com constantes batidas das autoridades.
Na Argentina também são pródigas as casas de sauna, mas sem atingir a
degradação moral das [cidades] citadas, uma vez que a polícia portenha é
muito severa no combate do “opposite-sex” (BRYANT, 1964b).

A consagração do chamado gueto gay em grandes cidades, como nas capitais


fluminense e paulista, passou pelo reconhecimento territorial de um pedaço da urbe para
atividades sexuais. Isso contribuiu para que surgisse, aos poucos, uma cultura homoerótica
mais identitária, inclusive com a abertura de estabelecimentos comerciais próprios. A
existência de cinemas, bares, restaurantes, teatros, praças, ruas e avenidas ocupadas por
homossexuais é exemplar desse movimento, que tem nas saunas, seguramente, os espaços
mais explícitos para atividades sexuais entre homens. A série foi escrita quase ao mesmo
tempo em que o Brasil sofreu o golpe civil-militar, o que, ironicamente, acabaria por
transformar as saunas nos locais mais seguros para escapar da censura que se seguiu à
instauração do regime ditatorial.
Embora os efeitos da ditadura não tenham sido percebidos imediatamente nos
guetos gays, esses territórios não ficaram imunes à sanha autoritária. Apesar dessa aparente
calmaria, ao final do último capítulo, o colunista apresenta dicas tácitas otimistas para uma
prática difícil de apagar do tecido social. Com a ironia habitual, ele encerra como se
deixasse uma mensagem ao regime militar, e aos difíceis dias de perseguição que viriam,
sobretudo contra as minorias: “Concluindo creio que tôdas as recomendações que venho

113
dando durante tôdos êste meses são inúteis porque enquanto houver ‘tantas’ na face da
terra, seja qual for o lugar, seja qual for a hora, havendo homens, elas estarão pegando até
o derradeiro momento de suas inglórias vidas” (BRYANT, 1964b).

3.3.2 Entre as Atividades Viris dos Michês Paulistanos

Em 1987, o antropólogo Nestor Perlongher publicou uma das obras mais


referenciadas nos estudos das relações sexuais entre homens na cidade, O negócio do
michê – a prostituição viril em São Paulo, que descreve uma importante virada na cena
homoerótica comercial na região central da capital paulista. Se na década de 1930 os
pederastas passivos alarmavam as autoridades por suas caçadas no território do
Anhangabaú, muitas vezes estabelecendo relações monetarizadas ou de ajuda, perto do
final do século XX o autor verificou a instauração de um tipo de macho, eventualmente
periférico, que oferecia seu corpo aos prazeres das bichas em troca de favores ou dinheiro.
Sem identificar-se como homossexual, emergia o chamado michê.
Na realidade, ao mapear as suas práticas sexuais e identidades sociais no centro de
São Paulo, Perlongher (1987) registrou um universo homoerótico muito mais amplo e
transgressor, repleto de figuras sexuais diversas. Curiosamente, as andanças de autor pela
região, entre os anos 1982 a 1985, fez com que ele identificasse também os itinerários de
pegação em locais de acesso público (banheiros e parques) e privados (saunas e cinemas).
Do mesmo modo, reconheceu toda uma ocupação homossexual local, que foi se
constituindo e se transformando no intervalo de décadas, à qual deu o nome de “gueto gay”
e “região moral”: “A constância de certas populações em agruparem suas perambulações à
procura de sexo, diversões, prazeres e outros vícios próximos à ilegalidade, em áreas
especializadas das megalópoles, mereceu um status particular na Sociologia Urbana com a
aplicação da categoria da ‘região moral’” (PERLONGHER, 1987, p. 46-47).
A quais vícios próximos da ilegalidade na pegação masculina o autor se refere? A
legislação vigente naqueles anos 1980 poderia enquadrar esses homens, como já dito, na
prática de “ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”. Ou seja, o
crime seria realizar práticas sexuais explícitas em locais públicos, em especial quando
diante do público.

114
Contudo, lembremos que uma grande contribuição dos trabalhos das ciências
sociais acerca do tema foi justamente levantar detalhes das práticas e táticas da pegação.
Com isso, se por um lado acabou invadindo um campo destinado ao anonimato, por outro
desmitificou alguns dos preconceitos proferidos pelo próprio esquema heteronormativo
sobre esse tipo de atividade. O primeiro deles: ao contrário do que se pensava, os homens
não buscam se exibir obscenamente a qualquer um que passa desavisado em praça pública,
mas apenas para os seus. A astúcia dessa atuação envolve um complexo jogo de sinais,
principalmente em banheiros públicos, nos quais todo o enlace sexual é feito em silêncio e
interrompido diversas vezes por conta da entrada e saída de figuras que não participam da
relação.
Outro ponto diz respeito ao fato de que esses homens são táticos e não
simplesmente reféns de seus vícios infames, ou pervertidos demais para não construírem
regras de convivência com os demais. No banheiro público, por exemplo, são raros os
relatos sobre práticas sexuais como sexo anal, pois os engates representariam perigosa
exposição. Muitos deles, ao invés, apenas se olham, se excitam mutuamente – às vezes se
masturbam ou realizam breves “chupadas”, quando possível. Também existem aqueles que
preferem usar o espaço de pegação apenas para encontrar parceiros sexuais dispostos a sair
dali em busca de um local mais seguro, onde, aí sim, realizam o engate. Nos breves
diálogos, são famosas as frases como “tem local”; “conheço um hotel que podemos ir”;
“moro aqui perto”.
Aliás, segundo Jurandir Freire Costa (1992), a noção psicanalítica contemporânea
de perversão não está em nada relacionada com a homossexualidade, muito embora no
passado esta escola clínica ajudasse a perpetrar este preconceito. Em seu pensamento, a
perversão é um modo de relação que pode se instalar em qualquer laço social,
independente da orientação sexual. No que se refere ao homoerotismo, para o psicanalista,
perversa seria, antes de tudo, a relação que opõe homo e heterossexuais e subjulga a
primeira em detrimento da segunda. O perverso estaria relacionado a uma “modalidade de
gozo com a morte e a destruição do outro” (COSTA, 1992, p. 102), perspectiva, aliás,
muito mais próxima dos ataques homofóbicos altamente violentos que vivemos até os dias
atuais do que as relações homoeróticas consentidas entre homens adultos.
Em terceiro lugar, a pegação em espaço público é acima de tudo uma atenção
flutuante escutada pelo desejo. Por ela, a cena urbana muda, gestos simples já não são mais
os mesmos. Andar por aí, lavar as mãos num banheiro, ascender um cigarro na via pública,

115
sentar-se num banco de praça etc., tudo ganha novo sentido. Trata-se, antes, da trivialidade
de um rebuscado sistema de códigos de olhares e expressões faciais mínimos partilhados
entre iniciados. E certamente a intenção é manter o segredo, o anonimato e não expor tudo
isso. Os homens levam anos aprendendo sobre esses ritos, descobrindo lugares, montando
seus circuitos homoeróticos, ganhando certa astúcia e reconhecimento junto aos demais
participantes.
Por fim, a pegação em espaços públicos é fundamentalmente uma atividade entre
homens adultos. Os relatos nos textos levantados, mesmo fora do país, raramente fazem
menção à participação de adolescentes, por exemplo. Como o próprio Humphreys (1975)
observou em suas pesquisas nas tearooms. Dessa característica é exemplo a ocupação pelas
antigas bichas do Vale do Anhangabaú, monitoradas pela polícia e pela medicina, nos anos
1930, que pejorativamente as tratava como pederastas passivos. Essa classificação,
destaque-se, é pejorativa porque não há nada nos arquivos policiais pesquisados que
indique se tratar de homens que possuíam inclinação para sexo com jovens rapazes, como
o termo original indica. Pois bem, essa ocupação homoerótica do Anhangabaú se expandiu
para outros bairros e se diversificou cada vez mais a partir da década de 1950,
incorporando um modo de vida possível no campo homoerótico, composto por homens de
classes sociais bastante distintas. Mas em nenhum aspecto desse processo Perlongher
(1987) identifica na pegação gratuita a participação de homens muito jovens.
Ainda no âmbito das relações sexuais, em meados da metade do século XX teve
início em São Paulo uma mudança de posição das próprias identidades sociais circulantes
nos espaços de interação masculina. Enquanto nos anos 1950 e 1960 as “transas” acorriam
entre os chamados machos e as bichas, pederastas passivos ou mariconas, a partir desse
período outra subjetivação entrou em cena. Primeiro, começou a circular a ideia de gay
“transar” com gay, sobretudo em meios culturais específicos, como o teatro. Malvista fora
do circuito intelectualizado, essa prática era apelidada pejorativamente de “quebra-louça”,
como coisa de “bicha louca”. Lentamente essa perspectiva foi sendo absorvida pela cultura
homossexual emergente, muito mais complexa nas relações (PERLONGHER, 1987).
Pode-se dizer que a figura subjetiva do gay se tornou hegemônica em muitos locais
de interação homoerótica. Há, inclusive, todo um mercado conformado para esse sujeito
nas grandes cidades. Contudo, ainda persiste uma subjetividade mais arcaica, segundo a
qual quem penetra é o homem verdadeiro, tão macho viril que é capaz até de “enrabar” um

116
“viado”. Ressalte-se que em ambientes de pegação há homens que nunca se perguntaram
se seriam gays. Ou seja, nesse caso, a identidade “homossexual” não se impõe.
As “bichas loucas” anteciparam-se à mudança de paradigma do binômio majoritário
maricona/macho verdadeiro para uma profusão de experiências homoeróticas. A essa
mudança somou-se outro drástico processo social: a intensa urbanização das capitais, como
São Paulo e Rio de Janeiro, que nas décadas de 1950 e 1960 receberam grandes
contingentes populacionais oriundos do campo que serviram de mão de obra à expansão da
indústria. Muitos homossexuais também migraram e puderam, sob o manto do anonimato e
fora do controle familiar, estabelecer vínculos sociais mais amplos e, até mesmo, assumir
as novas homoidentidades correntes (GREEN, 2000). Em síntese, o gueto cresceu em
quantidade.
No bojo desse cenário, a disposição binária e hierarquizante de macho/homem
verdadeiro e bicha afeminada – que sustentava, por exemplo, o modelo de relações
homossexuais apontado pelos criminalistas nos anos 1930 – mudaria. Mesmo que
lentamente, emergia uma cultura homossexual muito mais diversificada, que tinha agora à
disposição equipamentos de interação, como os bares específicos para homossexuais que
começaram a surgir no final dos anos de 1950. Antes disso, presos a uma estrutura
patriarcal que impunha às pessoas, por exemplo, morar com a família enquanto estivessem
solteiras, tinham como únicos locais possíveis de interação sexual masculina os parques, as
praças, os cinemas e os banheiros de acesso público – eventualmente a casa de amigos e
quartos alugados (GREEN, 2000).
Importante dizer que a conformação de circuitos comerciais voltados para os gays,
porém, não diminuiu a importância de espaços públicos de pegação. Pelo contrário, muitos
homens seguiram com suas práticas em ambas as situações, substancialmente fora dos
grandes centros urbanos, onde os homossexuais têm poucas opções de entretenimento
especializado. E, mesmo quando elas existem, muitos homens não conseguem frequentá-
las por medo de se expor, por falta de dinheiro, por não se sentirem pertencentes àquela
cultura etc. Assim, em locais públicos ressignificados para a prática sexual, isso se torna
viável.
Mesmo assim, isso não implica dizer que todos os lugares de pegação de acesso
pago requerem exatamente uma filiação identitária. Vejamos, por exemplo, os cinemas de
rua, anteriores aos localizados nos shopping centers. De modo geral, eles foram
desaparecendo da paisagem urbana brasileira; muitos deles, readaptados, acabaram

117
transformados em outros estabelecimentos, como igrejas, outros persistiram como cinema
pornô. Neste caso, independentemente do tipo de filme exibido, hetero ou homossexuais,
às vezes os dois, o cinema é destinado aos homens e suas práticas sexuais. Esta pesquisa
não se debruça muito sobre esse tipo de pegação por se tratar de locais cujo acesso é pago e
o local, privado, como as saunas gays e boates com dark room.
Revisitando a obra de Perlongher (1987) foi possível verificar que são muitos os
caminhos possíveis para se entender a configuração das complexas relações
homossocietárias estabelecidas nos limites do gueto gay. Contudo, o objeto deste trabalho
confunde-se imensamente com essa configuração, uma vez que de saída um dos principais
motores para a configuração de tal região foi a ocupação da cidade em busca de sexo. Parte
dessa busca homoerótica por pegação produziu um desejo de estar junto, um senso
comunitário, inclusive com trocas de ordem afetiva, social, monetária e mercantil. Tais
aspectos também se converteriam em rentabilização, ou em um mercado homossexual.
Por outro lado, nas bordas do estudo de Perlongher (1987), sobretudo em relação às
populações mais marginais dentro do próprio gueto gay, podemos observar algumas
questões da pegação masculina. Uma primeira constatação: as rotas de pegação não eram
exclusividade do centro da cidade. É o que demonstra o relato de um entendido 103:

No final dos anos [19]50, tinha um grupo de bichas “grã finas” que
reuniam-se numa casa de Cantareira [no extremo norte paulistano], todos
moravam mais ou menos aí por perto. Elas costumavam sair para fazer
pegação no bairro operário próximo mais populoso, que era Santana. Iam
todas numa pizzaria que ficava na rua principal de Santana, sábado à
noite. De fato os rapazes que frequentavam o pedaço sabiam que podiam
encontrar as bichas aí. A transação era exclusivamente sexual, nada de
engajamentos afetivos. (...) Dava para fazer até várias pegações numa
noite. De fato, pegação tinha – e acho que tem – na cidade toda
(PERLONGHER, 1987, p. 66).

É uma interessante consideração, uma vez que é comum retratar a história


homossexual de São Paulo por textos que consagram a homocultura do gueto gay, na área
central da cidade. Mas levar a análise por outras regiões poderia nos colocar num universo
completamente diferente. Isso também fica evidente em umas das entrevistas que

103
No final de 1960, de acordo com Peter Fry (1982), o termo surgiu no contexto homossocial das classes
médias das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Refere-se a um sistema que fundamenta a
homossexualidade não mais no binômio ativo/passivo ou homens másculos/homens afeminados. A nova
compreensão divide os heterossexuais dos homossexuais, ou “homens” de “entendidos”.

118
Perlongher (1987, p. 20) publicou, na qual o homoerotismo masculino periférico apresenta
circuito próprio e até mesmo gratuidade seletiva:

Na fábrica em que eu trabalho, os homens parecem todos muito machões,


(...). Afinal, eles passam muito pouco tempo do dia fazendo o papel de
“marido exemplar”: trabalham oito ou dez horas, (...) ficam bebendo no
bar, [viajam] até a casa (os trens da periferia são uma coisa fascinante, aí
dá para ver como operários muito másculos acabam transando). Claro,
quando eu me insinuo e os convido à minha casa, falam que só por
dinheiro, só por uma nota... Mas eles não são necessariamente michês, só
que qualquer macho pede dinheiro para dissimular o fato de estar
transando com um outro homem.

Curiosamente, porém, o autor também observou a existência de territórios de


pegação masculina de acesso público bastante populares na região central que foram
apagados pelo tempo. Ao que tudo indica, os concorridos banheiros da Praça da Sé teriam
mudado de público após a inauguração do metrô, nos anos 1970. Mas a pegação de
mictório seguia, a despeito da baixa ocupação de homossexuais, quando comparados às
perambulações gays das avenidas São João e Ipiranga e Praça da República
(PERLONGHER, 1987).
Dito isso, fica a dúvida sobre que o autor considerava popular. Ao contrapor a
intensidade da concorrência do ponto de pegação à baixa densidade de homossexuais,
parece querer dizer que, embora as trocas sexuais masculinas fossem bastante frequentes
nesses locais, não necessariamente eram constituídas a partir de homens que se
consideravam gays.
Importante observar que a pesquisa de Perlongher não se debruça tanto sobre a
instalação da pegação nos banheiros públicos, ainda que tenha dedicado um pequeno
trecho de seu livro à chamada “pegação de mictório”. Em consideração às atividades
homoafetivas que narra para delimitar o gueto gay paulistano, o autor achava que o
banheiro público ocupava “[...] o lugar mais baixo na categorização dos locais de engate
homossexual [inclusive para os michês]. É, junto com as saunas, o mais diretamente
sexual, o menos ‘amoroso’; mas é também o mais perigoso, pois está sujeito a esporádicas
irrupções policiais” (PERLONGHER, 1987, p. 170).
Na década de 1980 já circulava uma identidade gay decantada por décadas de
experimentações homoeróticas e homossociais na região central paulistana produtoras de

119
subjetivações. Eram os anos pós-Stonewall, pós-desbunde104, ainda não submetidos aos
temores da aids. Era o momento em que a ditadura brasileira mostrava sinais de desgaste e,
em pouco tempo, a homossexualidade sairia da Classificação Internacional de Doenças,
como consequência de uma luta árdua dos ativistas homossexuais organizados em
movimentos por direitos civis das minorias sexuais. Várias gerações de homossexuais
passaram pelo chamado gueto gay paulistano, muitos se estabeleceram na região e até
mesmo envelheceram nesses locais (SIMÕES, 2011). Mas a pegação sob esse contexto
realmente não condizia com a imagem de homossexual respeitável que muitos almejavam.
Esse processo de desqualificação da pegação também foi observado em países
como a Inglaterra, onde a secular transa em banheiros públicos significou, por um longo
período, uma das raras opções de encontro homossexual. O rechaço das práticas sexuais
entre os homens em espaços públicos por parte da comunidade gay britânica se acentuou
na combativa década de 1980, quando a pegação foi reduzida aos mais baixos escalões das
interações homoeróticas por se tratar de algo despersonalizado demais para ter valor.
Ainda assim, ela resiste. O próprio Perlongher (1987, p. 172), entretanto, reconhece
que o “[...] fato de ser uma prática sexual fortemente ‘despersonalizada’, desenvolvida num
rigoroso silêncio, não impede que certas formas de sociabilidade se desenvolvam em torno
da exibição masturbatória nos mictórios públicos”.
No Brasil, o famoso jornal gay Lampião da Esquina, que circulou entre 1978 e
1981, igualmente constatara na pegação uma interação social muito mais ampla, para além
dos ritos sexuais, nos banheiros da Central do Brasil, a emblemática estação de trens da
cidade do Rio de Janeiro:

Ficar amigo, membro da confraria, é quase uma obrigação nos banheiros


da Central. Os frequentadores do PornoShop tropical fazem questão de se
relacionar e há um certo esprit de corps. Há sempre os que ficam do lado
de fora do subsolo, próximo ao café, a velar pela segurança e dar o
alarme ao primeiro sinal de presença da Polícia Ferroviária, fardada ou
não (...). Mas não é só nisso que se caracteriza a Confraria da Punheta.
Seja no hall do subsolo ou mesmo dentro do banheiro – na “sala de estar”
– há sempre tempo para um bate-papo ameno, para um cigarro, para um
tititi (PINHEIRO, 1980, apud PERLONGHER, 1987, p. 172)

104
No Brasil, o termo indica o movimento contracultural gerado em oposição ao regime ditatorial
instaurado em 1964. Contudo, ao invés de opor-se ao regime pelas formas tradicionais político-partidária
ou pela lutada armada, suas atitudes contestatórias se davam através das artes em geral, da mudança nos
modos de vida, na linguagem e no comportamento (CRUZ, 2017; JUNQUEIRA, 2009).

120
Mas seria somente a prática em si merecedora de pouco valor? Sabe-se que as
atividades sexuais em determinadas saunas na cidade de São Paulo ocupavam, em meados
dos anos 2000, posição de status no mercado GLS por receber quase exclusivamente
homens oriundos das classes sociais mais privilegiadas, restringindo ao mesmo tempo o
acesso de outros segmentos homoeróticos (FRANÇA, 2006). É possível supor que em O
negócio do michê Perlongher (1987) estivesse mapeando uma forte tendência urbana do
mercado homossexual, qual seja, não acolher todos em seus equipamentos monetizados.
O autor nos informa que o banheiro público da Praça da República, na altura das
avenidas Ipiranga e São João, já era conhecido por sua pegação. Fechado após a
inauguração da estação do metrô local, trouxe consigo uma “invasão” de homens vindos da
periferia à procura de sexo. O banheiro foi então deslocado para outra esquina da praça. A
masturbação coletiva entre os homens, contudo, se manteve entre os caminhos arborizados
no entorno do banheiro fechado, especialmente à noite.
Expoente do gueto gay paulistano, a grande “zona T” descrita por Silva (2005)
contemplava os arredores da Praça da República. A hipótese sociológica do autor era de
que nessa região, nos anos de 1950, moravam muitas pessoas solteiras, boa parte
possivelmente homossexual. Mas 30 anos depois, com a inauguração do metrô o acesso de
figuras homoeróticas de outras regiões da cidade foi facilitado. Era a chegada dos
“entendidos” da periferia.
O próprio Perlongher (1987) havia mapeado a existência de tais figuras periféricas
nas atividades de michê, sugerindo que isso também poderia significar um colonialismo
exploratório dos mais empobrecidos pelos homossexuais com maior poder aquisitivo. O
autor aponta os aspectos dessa desigualdade de classe e, consequentemente, de identidade
no gueto: “Este sexo promiscuo em público – não necessariamente tabelado – oferece altos
encantos, especialmente para aqueles que não querem ou não podem se integrar nas regras
mais ‘personalizadas’ da ordem gay” (PERLONGHER, 1987, p. 114; grifo do autor).
Nessa perspectiva, a pegação agregava ao território gay figuras estranhas e com
outras inscrições sociais, inclusive dentre os próprios michês. Mas não sem conflito. Para o
autor, isso era visível após a chegada do metrô à República, que demarcou uma espécie de
divisão territorial de classes nos arredores. Na parte mais iluminada e ampla da praça,
próximo ao prédio que pertencera ao tradicional colégio “Caetano de Campos”, já então
ocupado pela Secretaria de Estado da Educação, onde os transeuntes podiam se sentar nos

121
bancos, ficava o pessoal mais “transado”. Em oposição, no seu outro extremo, menos
iluminado e mais popular, ficavam os menos “descolados” (PERLONGHER, 1987).
Esse contexto indica que o campo homoerótico do centro de São Paulo chegou aos
anos 1980 com grande complexidade. Assim, longe de se constituir um gueto gay estável e
facilmente demarcado por figuras de identidades fixas, estava entrecortado por relações de
classe, por relações econômicas e por práticas sexuais gratuitas em locais públicos que não
necessariamente fundavam sujeitos completos.

3.3.3 Uma Sociologia da Pegação Brasileira?

Se a partir dos anos de 1950 o campo da sociologia ajudou a inscrever a pegação


em outro regime discursivo, pode-se dizer que isso ocorreu, em certa medida, mais como
efeito colateral das pesquisas que lidavam com a emergente identidade sexual dos gays, a
partir da segunda metade do século XX, do que necessariamente em razão das ocupações
sexuais públicas masculinas.
No Brasil, a pegação propriamente dita passou a ser tema das ciências humanas,
particularmente em estudos etnográficos, antropológicos e sociológicos, apenas nos
últimos anos. Dito de outro modo, só recentemente começaram a circular no meio
acadêmico trabalhos com foco mais nas práticas sexuais entre os homens na urbe do que
no aspecto identitário de seus praticantes. Isso porque, muito provavelmente, as antigas
formas de “pegação” gratuita masculina, mesmo que assimiladas em parte pelo mercado
homossexual instalado nas cidades nas últimas décadas, continuam se atualizando.
Do mesmo modo, há aspectos da identidade gay contemporânea que foram
conformados ou se tornaram mais palatáveis aos registros heteronormativos. Apesar de
toda a homofobia que circula em nossa sociedade, casais homo e heterossexuais
compartilham cada vez mais perspectivas afetivas em comum, como a noção de
casamento, a geração ou adoção de filhos e até mesmo a concepção de amor. Mas tal
projeto parece não incluir todas as possibilidades de relações sexuais entre os homens,
sobretudo aquelas em locais públicos, gratuitas, casuais e que flertam com a ilegalidade.
No entanto, a pegação continua a habitar o cotidiano dos agrupamentos humanos.
Em igual sentido, há hoje uma forte tendência acadêmica nos estudos de
sexualidade e de gênero em utilizar as experiências que não condizem com os padrões da
heteronormatividade, justamente para criticar seus processos históricos. Assim, as ciências

122
sociais renovam-se em busca de experiências dissidentes não somente para saber quem
são, o que fazem e como fazem seus adeptos, mas, acima de tudo, para observar as relações
de poder que circulam no tecido social muito mais amplo.
Nessa perspectiva, um estudo antropológico recente sobre a pegação em João
Pessoa (PB) atentou para o fato de que regimes de sexualidade que não visam a reprodução
nem seguem as normas disciplinarizadoras de corpos e prazeres seguem linhas dissidentes
de contato erótico (OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2015). A observação de tais linhas é
importante inclusive para se estudar os contextos em que estão inseridas. Para os autores, a
pegação estaria nesse registro e, apesar disso, ainda é pouco estudada pela sociologia
brasileira.
No estudo, é interessante notar que os pontos de pegação públicos são realmente
dispositivos que ajudam a iluminar seu entorno e apontam para a própria sociedade em que
se vive. Existem antigas rotas de pegação na cidade que podem durar gerações. Alguns
locais de tão famosos fizeram história, outros são restritos a pequenos grupos. Como em
muitos desses espaços não necessariamente se consuma a relação sexual, mas sim nos seus
arredores, é possível que serviam também para ativar uma rede de outros pontos que se
conectam. Finalmente, nem todos são necessariamente ilegais, caso das pensões e hotéis
estrategicamente localizados nos arredores dos espaços de pegação.
O trabalho de Oliveira e Nascimento (2015) revela, ainda, a dinâmica de
instauração de tais locais, que pode seguir o processo de urbanização das próprias cidades.
Espaços ermos, com pouca vigilância e de livre acesso ao público, como praias, parques e
áreas com baixa ocupação, são privilegiados.
Ouvi de um dos entrevistados desta pesquisa 105 que durante a construção do estádio
que abrigou o primeiro jogo da Copa do Mundo, realizada no Brasil em 2014, o
“Itaquerão” – como é popularmente chamada a Arena do Corinthians, na periferia leste de
São Paulo –, ocorreu uma curta, mas intensa pegação masculina. Oliveira e Nascimento
(2015) verificaram o mesmo processo em João Pessoa.
Apesar da maioria dos pontos de pegação na capital da Paraíba estar localizada nos
arredores da orla, outros espaços surgiram acompanhando o novo traçado urbanístico. Ou
seja, esses locais estariam porosos aos fluxos da cidade e, por isso mesmo, em constante
atualização. Essa dinâmica, avaliam os autores, indica que os novos pontos de pegação
podem surgir e desaparecer ao sabor de diversos fatores, assim como a quantidade de

105
Anotação de diário de campo.

123
participantes e o nível de vigilância a que estão submetidos. Essa é uma constante em
cidades como São Paulo.
Ainda que alguns espaços sejam muito conhecidos, inclusive divulgados em sites,
guias e roteiros gays da cidade, a pegação pública citadina é marcada justamente pela
imprevisibilidade e pode acontecer em qualquer lugar. Em condições ideais, um ponto
pode existir por muito tempo. Mas o aumento da vigilância, que inclui também estratégias
antipegação, faz com que muitos desapareçam.
Um outro estudo antropológico, de Guerra (2015), desta feita sobre a pequena Baía
da Traição, no litoral paraibano, conhecida por sua grande quantidade de becos, coloca a
interação erótica em locais públicos numa dimensão completamente diferente dos traçados
urbanos que costumam racionalizar suas táticas. Os becos e ruelas da cidadezinha
organizam a vida social da comunidade, tanto que muitos deles são nomeados segundo
fatos ou pessoas conhecidas que moram por perto. Os becos, segundo o autor, produzem
uma trama no tecido social que reduz determinadas vigilâncias e favorecem a pegação
entre as travestis e os rapazes e outras sexualidades dissidentes de Baía da Traição. Mesmo
sob o risco de serem flagradas, as pessoas convertem os becos em motéis clandestinos, que
parecem sustentar um território homoerótico importante, sobretudo numa localidade tão
pequena (GUERRA, 2015).
Curiosamente, mesmo sendo um evento tão efêmero, a pegação em geral parece ter
grande impacto subjetivo. Os homens lembram-se com facilidade de suas primeiras
experiências nesses espaços, as novas sensações que passaram a habitar seus corpos, o
aparelhamento físico de uma outra intuição homoerótica que ressignifica um simples
passeio pela cidade106. Por isso, localizar lugares onde isso acontece é quase uma arte. E é
preciso estar no “espírito” da pegação. Não se trata apenas de lugares, há também
codificações diversas. Nesse sentido, Oliveira e Nascimento (2015, p. 46) desenvolvem um
interessante conceito da pegação:

[...] é um termo polissêmico. Pode dizer muito e simultaneamente nada.


É, para todos os fins, um código. Pode-se chamar de pegação qualquer
relação de flerte, paquera e namoro entre desconhecidos, como também
se pode chamar assim o local em que essas relações acontecem. Tomada
em seu aspecto êmico, a pegação surge como um código na medida em
que as práticas descritas (...) se referem a jogos sinuosos de insinuação e
provocação que se estabelecem entre sujeitos que dominam ou se
aventuram através de olhares, movimentos e convites – por vezes pouco
106
Observação de diário de campo, a partir de entrevistas preliminares.

124
objetivos. Todos esses elementos são acionados de modo ágil em
contexto de interação localizado na interseção de desejo e criatividade,
entre a vontade de fazer e a perspicácia de transformar espaços. São
rápidos, efêmeros. Cruzam a geografia e a temporalidade, durando apenas
o momento do encontro para logo se desfazerem.

Já num sentido tático do uso da palavra, Silva (2009), ao discutir a sociabilidade


homossexual em Recife nos anos de 1970, a partir dos discursos veiculados pela imprensa
local, observa que a paquera entre homens nesse período era nomeada como “pegação” ou
“pescaria”. Segundo o autor, o uso dessas figuras de linguagem seria uma tática de
camuflagem para práticas homoeróticas masculinas análogas ao “paquerar” heterossexual,
para lidar com os limites da hostilidade social.
A “pescaria” tomada como pegação ilumina outro ponto interessante: a astúcia
discursiva do emprego da própria palavra, feita justamente para ser entendida apenas pelos
seus praticantes. Nesse aspecto, outras vidas dissidentes à heteronorma também criaram
vocabulário próprio para socializarem-se sem que os ouvidos do poder pudessem captar
suas informações. Nessa perspectiva, é importante observar que os pederastas passivos
paulistanos, já nos anos 1930, apresentavam um conjunto de gírias, como as próprias
autoridades verificaram. Igualmente, havia um campo semântico próprio em todo o
período do chamado gueto gay. E, atualmente, o uso do pajubá107 pelas travestis e
transexuais na região central de São Paulo também cumpre o mesmo papel.
Outro assunto estudado na inscrição sociológica diz respeito às pegações que
ocorrem em banheiros públicos. Estudos etnográficos revelaram em detalhes tais ritos, ao
estilo de um sociólogo voyeur, por exemplo, com a exata descrição de como seus
praticantes faziam a “caça” sexual em banheiros públicos de Curitiba (MARTIM, 2014).
Também na transgressiva pegação de Juiz de Fora (MG) e os conflitos causados pela
atrevida interação homoerótica masculina em um banheiro da cidade (GASPAR NETO,
2011). Ainda em Minas Gerais, os territórios homoeróticos de Belo Horizonte e suas
múltiplas possibilidades de encontros sexuais na cidade, alguns até bastante afetivos
(TEIXEIRA, 2003). Os chamados “banheirões”, como já dito, o outro nome para pegação

107
“É linguagem de resistência, construída a partir da inserção de palavras e expressões de origem africanas
ocidentais. É usada principalmente por travestis e grande parte da comunidade TLGB”. In: LINN DA
QUEBRADA: a bicha pode fazer um pedido? Kickante, [s.l.] [s.d.]. Disponível em:
<https://www.kickante.com.br/campanhas/linn-da-quebrada-bixa-pode-fazer-um-pedido-0>. Acesso em:
20 out. 2017.

125
em banheiros, foram observados nos terminais do Eixo Anhanguera, em Goiânia
(ARANTES, 2010).
Além disso, o olhar etnográfico feminino adentrou os ritos mal iluminados de interação
sexual do dark room de uma boate (BENÍTEZ, 2007). A sociologia observou as interações
homossexuais nos banheiros da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e a curiosa
política da zeladoria e dos seguranças de fazer “vistas grossas” para o que chamavam de
“atos indecentes” (COSTA NETO, 2005), e as transformações da homossociabilidade em
São Paulo vista pelos dilemas e subjetivações de determinados homens que estão
envelhecendo entre pegações, circulação no mercado gay e o estabelecimento de relações
gay-normalizadas108 (SAGGESE, 2015).
Esse breve inventário demonstra que a pegação está nas rotas dos diários de campo.
Mas não só na etnografia. Outras áreas das humanidades voltaram seu olhar para a ela. Em
um radiodocumentário sobre a deriva sexual dos homens no banheiro do terminal de
ônibus Parangaba, em Fortaleza (NOBRE, 2014); nas inscrições nos banheiros, registros,
memórias e revides homofóbicos observados na interação sexual entre os homens nos
banheiros da Universidade Federal da Bahia (MAIA, 2010); e nas cenas de pegação dos
anos 1980 em Recife que ajudam a construir a análise de gênero de homens que se
prostituem na cidade (SOUZA NETO, 2009).
Como verificou Oliveira (2015), essas experiências são permeadas por códigos
próprios que configuram um universo paralelo ao dos demais usuários desses espaços. Para
aqueles homens que não fazem do banheiro um local homoerótico muitas vezes esse
circuito é invisível. Mas o banheiro é sempre potencialmente homoerótico. Diferentemente
do banheiro das mulheres cuja arquitetura, como já mencionado, desde o início assentou-se
na ideia de confinamento, dado pelas cabines individuais, é comum no banheiro masculino
os homens urinarem lado a lado, muitas vezes num mictório coletivo. Ou seja, esses locais
podem ser tomados como extensão da natureza pública da masculinidade, em contraponto
à lógica dos banheiros femininos, que funcionam como espaço privado e sagrado de
feminilidade (CAMARGO, 2014, p. 63). Preciado 109 corrobora:

108
“[...] alguém ajustado às normas de gênero e comprometido com a casa, a família, a carreira e a nação,
além de praticante de um sexo conformado à dicotomia de gênero, privado, carinhoso, genitalmente
centrado e ligado ao amor, ao casamento e à monogamia” (SAGGESE, 2015, p. 43).
109
PRECIADO, Beatriz. Basura y género. Mear/cagar. Masculino/femenino. 2006. Disponível em:
<http://www.iztacala.unam.mx/errancia/v0/PDFS/POLIETICAS%20DEL%20CUERPO%201%20BASURA%20Y%
20GENERO.pdf>. Acesso: 10 out 2017, 2006.

126
Não vamos aos banheiros para evacuar, senão para fazer nossas
necessidades de gênero. Não vamos mijar, senão reafirmar os códigos da
masculinidade e da feminilidade no espaço público. Por isso, escapar do
regime de gênero dos banheiros públicos é desafiar a segregação sexual
que a moderna arquitetura urinária nos impõe há mais ou menos dois
séculos: público/privado, visível/invisível, decente/obsceno,
homem/mulher, pênis/vagina, de pé/sentado, ocupado/livre (tradução
nossa).

No caso dos homens, eles expõem silenciosamente suas virilidades, exercitando o


direito público do macho em externar seu membro, demarcando os valores falocêntricos de
nossa sociedade. Há muita tensão nessa ação, pois o contato em público com seu próprio
falo não pode significar uma sinalização erótica aos demais. Muitos evitam ao máximo
qualquer olhar que possa colocar em descrédito sua condição de homem viril.
Em espaços similares, como vestiários de uso coletivo, a vigilância dos corpos,
nesse sentido, é redobrada. Neles, os homens despem-se e tomam banho muito próximos.
Não apenas o falo, mas também o corpo todo, está sob vigilância. Maneiras de olhar, de
evitar o olhar, de olhar dissimuladamente para algo se convertem no que Franco (2011)
chamou de “práticas de olhar”. Assim, da mesma maneira, é através do olhar que se
exercita a vigilância das expressões viris em espaços de convívio masculino de exposição
corporal. Mas é também pelo mesmo olhar que se engana esse sistema regulatório e se
combina a pegação, quase sem emitir um único som. Esse duplo jogo de olhar impõe às
cenas de pegação em banheiros de uso público ou vestiários uma tensão própria, ritmada e
ambivalente, que desliza entre a sensação de perigo de ser pego a qualquer momento e a
satisfação por conseguir consagrar o prazer, apesar da regulação heteronormativa.
Em relação aos parques e outras áreas públicas mais abertas, a dinâmica é bem
diferente. Neles há uma predileção por áreas e horários de menor público.
Seja como for, inegavelmente a pegação contemporânea é um fenômeno social
complexo, herdeira dos processos de modernização das cidades, sobretudo das mudanças
de códigos que gerenciam os gêneros nos âmbitos público e privado, especialmente sob a
noção de anonimato. As relações fugazes entre homens são muito mais afeitas aos locais
públicos do que aos próprios estabelecimentos privados do chamado mercado gay urbano.
Longe de serem assimilados pela vida em comum, esses herdeiros transgressores,
habitantes das frestas, entre o lícito e o ilícito da nova ordem da vida em comum, foram
vigiados em maior ou menor grau pelo sistema regulatório de gênero. E, mesmo assim,

127
com todos os riscos, a pegação continua fundamental para muitos homens. Como podemos
observar no depoimento coletado por Ferrari (2006, p. 7):

O sexo em público, ele é consequência de um fator cultural, de um fator


que gira em torno disso, ou o cara é extremamente preso no seu dia a dia,
ele de repente “pira o cabeção” e, quando chega a madrugada, ele não dá
conta e vai pra rua transar com alguém que ele não conhece. Porque o
sexo na rua, quem faz sexo na rua é sexo anônimo, você não sabe o
nome, você não sabe o telefone, você não tem o endereço e ele é rápido.
Não tem namoro. Você não namora, você trepa.

Seguramente, o fenômeno da aids, a partir dos anos de 1980, trouxe uma nova onda
de patologização da “trepada” dessas sexualidades indóceis. Do vírus se sabia muito
pouco, mas não demorou muito para ser associado à vida promíscua dos homens que
mantinham relações sexuais com outros homens. A nomeada “peste gay” não adoentava
apenas uma identidade sexual, como aliás pouco tempo depois ficaria muito claro. Ela
atacava sobretudo uma cultura homoerótica secular, baseada no sexo anônimo e casual.
Com o HIV avançando sobre as populações, a vigilância sobre esse “grupo de
risco” seria renovada pelas ações governamentais que adentraram os espaços públicos da
pegação, desta vez não para prendê-los ou obrigá-los a tratamento de cura de seu desvio,
mas para prevenir que contraíssem o vírus. Tanto assim que, desde então, as políticas
públicas de alguns países, inclusive o Brasil, passaram a se referir a essa população da
pegação como uma gente “de risco” à parte do próprio universo gay. Para os
epidemiologistas que observavam o HIV nas populações, não eram homossexuais, mas
HSH (“homens que fazem sexo com homens”) ou MSM (“men who have sex with men”).
Seguramente, estudos sobre a pegação nesse sentido são importantes inclusive para
fundamentar políticas públicas mais efetivas para a saúde desses homens. Contudo, para
tanto, é preciso reconhecer também a historicidade do fenômeno, sua produção cultural,
social já pesquisadas, ao menos em parte, até aqui. Com o referencial bibliográfico
levantado nesta tese, mesmo que por vezes muito enfocado nas práticas sexuais em si,
conseguimos observar que a pegação tem espessura alargada. É produtora de línguas,
táticas e gestos próprios, e mesmo sua associação com a identidade homossexual é
contextual, tendo em vista que sua presença é mais antiga no mundo.
Outra dimensão da pegação que igualmente deve ser considerada nos estudos
acadêmicos e nas formulações de políticas públicas diz respeito à experiência subjetiva.

128
Isto é, a quais afetos essas práticas sexuais gratuitas e públicas dão passagem? Com quais
afetos precisam lidar? O que haveria de tão extraordinário nessas experiências que
fundamentam sua ocorrência, além das pressões da vida heteronormativa? O que faz com
que esses homens se arriscassem, inclusive legalmente, para obter prazer? Essas são
questões difíceis de investigar sem que incorramos num certo psicologismo generalizante.
Sem que corrêssemos o risco de traçar um perfil, tipificar um sujeito baseado em suas
justificativas pessoais. Longe disso, contudo, nos propomos, nos próximos e últimos
capítulos, tratar desse campo homoerótico da vida voltados um pouco mais à produção de
subjetividade.

129
4 TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS DA PEGAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO

Muita gente migrou para os aplicativos. Eu acho que na verdade é


um empacotamento. E eu acho muito mais classista, porque as
pessoas estão sob a luz das lamparinas, dos egos, das formatações.
Na rua, você está com tesão e ponto. Entendeu? Não importa quem
seja. E nós, homens, temos essa coisa, assim: estou com tesão
agora [...]. Eu quero transar e pronto. Já nesses aparelhos das
redes sociais, eu acho eles muito fetichizados, hipersexualizados
no sentido mais opressivo possível. Sobretudo homens negros e
pobres (Entrevistado 2).

A pegação masculina na cidade de São Paulo é ainda pouco explorada como tema
de pesquisa acadêmica. No Brasil, basicamente, como demonstrado no capitulo anterior, os
trabalhos nesse sentido estão localizados no campo das ciências sociais. Em geral, entre
outros aspectos, são estudos etnográficos realizados a partir de entrevistas com homens que
realizam essa prática nos espaços citadinos de circulação pública. Seria esta tese, então,
mais um trabalho a dissecar a anatomia das atividades sexuais entre os homens à luz da
ciência? Ou deveríamos, antes de confirmar mais uma vez o que e como os homens fazem
sexo na pegação, utilizarmos seus testemunhos de existência para entender melhor com
qual cidade precisam lidar?
Nessa perspectiva, para compor a discussão, utilizamos neste capitulo quatro
testemunhos de homens que circulavam pelos espaços de pegação, no período da pesquisa
de campo, entre os meses de outubro de 2016 e janeiro de 2018, na capital paulista , além
de excertos dos diários de campo, a partir da circulação por alguns desses locais. Tomamos
o cuidado de não revelar a identidade dos participantes – como previsto no termo de
consentimento livre e esclarecido (Anexo 1). Do mesmo modo, tanto quanto possível,
evitamos nomear os espaços, à exceção daqueles já extintos, como o Autorama, ou que, de
tão afamados, não necessariamente representavam um problema a revelação de seus
segredos, como é em alguma medida o Parque Ibirapuera.
Uma primeira observação do fenômeno da pegação em áreas urbanas, como
parques e praças, indica uma tendência entre seus praticantes em renomear os espaços em
que ocorrem as práticas sexuais e homoeróticas. No Parque Ibirapuera, por exemplo, uma
das áreas de pegação entre os homens recebe o nome de “Bananal”. Num dos extremos da
principal praia da capital capixaba os homens se arriscam no “Final Feliz”, enquanto outro
fim de praia na cidade vizinha de Vila Velha é renomeado de “Feira do Cu”. Em um dos
maiores parques urbanos do mundo, o da Cidade de Brasília, os homens realizam

130
encontros no lusco-fusco da “Floresta dos Sussurros” ou nos frenéticos circuitos
automotivos homoeróticos nos estacionamentos apelidados por alguns de “carros de bate-
bate”.
Esta última nomenclatura vincula-se fortemente à dinâmica carrocentrada das
cidades brasileiras de médio e grande portes, em um permanente apogeu automotivo que
torna os veículos de passeio o instrumento privilegiado de locomoção dos seus habitantes e
determina a ordem urbana. Com a cena de pegação masculina não é diferente. E, por isso, é
possível pensar nos estacionamentos, nas ruas e outras paragens automobilísticas como
espaços constitutivos dela mesma.
Claro que esses locais são relativamente móveis e, assim, a ocupação muda a partir
de diversos fatores. Ademais, com o uso do veículo as passagens das práticas sexuais de
um local público para um espaço privado se tornam muito mais rápidas. Contudo, é
importante ressaltar, mesmo nas áreas em que os homens estão à “caça” motorizados
também há uma circulação dos que chegam a pé, enquanto em outras, embora cheguem de
carro, logo saem dos veículos para caminhar pelas áreas adjacentes.
Ao observarmos melhor esses circuitos, sobretudo aqueles instalados em áreas mais
ermas e recobertas pelo manto da noite, é possível perceber que neles se instauram
coreografias automotivas. Sobre esse aspecto, convocamos a obra de Georges Didi-
Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes (2011), para estabelecer algumas considerações
registradas no diário de campo110.
Numa primeira ancoragem à perspectiva do filósofo, é curioso observar que os
automóveis, à semelhança de vaga-lumes, não escolhem previamente o território em que
vão estabelecer o ritual homoerótico. A noite vai chegando e, com ela, se impõe a
ritualística: os homens se agrupam, buscam-se mutuamente, localizam-se por meio de
intuições, cheiros. Ainda assim, é sempre difícil determinar quando ou quantos encontros
vão acontecer. Para falar a verdade, sob um olhar mais desatento, esse ritual sequer é
visível. Numa noite de alta interatividade, os carros vaga-lumes lotam o terreno,
ziguezagueantes e lépidos; noutra, estão mais discretos, separados, inertes em algum um
canto. Nesse jogo homoerótico automotivo tem início uma série de códigos que decorrem
da prática da pegação. Num perímetro definido, os veículos rodam, emitem sinais com os
faróis, param um ao lado do outro; tornam a circular prosseguindo o ritual da caça. É

110
Local propositadamente mantido em segredo.

131
possível perceber como a cena de pegação é ditada pela quantidade de veículos. E, assim,
muitas vezes, a dança segue a noite inteira, até o amanhecer.
Encarados como personagens centrais, os carros são besouros luminosos,
dissidências automotivas, ocupações imprevisíveis à organização das cidades. Como tal,
perambulam em seu trajeto homoerótico e emitem uma frágil luz na escuridão da noite.
Mas diferentemente dos animais que emitem a bioluminescência para atrair as presas ou se
defender dos predadores, as pegações motorizadas mimetizam os vaga-lumes lançando seu
brilho, antes de tudo, para uma exibição sexual (DIDI-HUBERMAN, 2011). Mas “[...] não
se iluminam para iluminar um mundo que gostariam de ‘ver melhor’” (DIDI-
HUBERMAN, 2011, p. 55), também os clarões emitidos por tais homens em seus carros
não pretendem iluminar demais seu entorno.
O filosofo recorre aos vaga-lumes, sobretudo aos seus lampejos frágeis destacados
na escuridão ou seu consequente desaparecimento sob as luzes artificiais da cidade, para
refletir sobre determinados povos humanos que também estão deixando de frequentar
nosso mundo, subjugados que são pelas relações de poder na vida social. Para Didi-
Huberman (2011, p. 115), os “[..] ‘ferozes projetores’ da grande luz devoram toda forma e
todo lampejo – toda diferença – na transcendência dos fins derradeiros”. E, nessa
perspectiva, para os vaga-lumes ou para estes povos – e, em nossa leitura, para os homens
na pegação em áreas públicas – não haveria mais espaço que não na condição de figuras
“[...] vencidas, aniquiladas, alfinetadas ou dessecadas sob a luz artificial dos projetores, sob
o olho pan-óptico das câmeras de vigilância (...) Nas sociedades de controle – cujo
funcionamento geral foi esboçado por Michel Foucault e Gilles Deleuze – ‘não existem
mais seres humanos’” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 58-59).
A observação no campo permitiu constatar também que a pegação motorizada
acompanhou o desenvolvimento da malha viária urbana de São Paulo, que, no lastro da
expansão da indústria automobilística e intensificação do uso dos carros, viabilizou o
surgimento do território de ocupação homoerótica no entorno do Parque Ibirapuera,
conhecido como Autorama. Do mesmo modo, essas práticas sexuais acompanharam a
expansão do sistema metroviário paulistano, ocorrendo em estruturas anexas ao sistema de
transporte público, caso dos banheiros públicos das estações do Metrô.

132
4.1 DERRADEIRAS PEGAÇÕES NA CIDADE DE SÃO PAULO

No período colonial, a então Vila de São Paulo, que séculos mais tarde seria alçada
à condição de maior e principal cidade do país, teve a sorte de não ser incluída na rota das
Visitações do Santo Ofício às Partes do Brasil (1591-1618). Na avaliação do antropólogo
Luiz Mott (2008, p. 25), “[...] caso a Inquisição tivesse vasculhado as consciências dos
primeiros colonizadores desta capitania, certamente teria encontrado os mesmos desvios da
moral sexual fartamente documentados [...]” em outras partes do Brasil colônia.
É dessa época o registro mais antigo na região – e provavelmente um dos mais
incríveis – de infames confessos ou acusados pelo pecado nefando. Datado de 1646, refere-
se a um sodomita devasso lusitano fugido do Tribunal da Inquisição de Lisboa quatro anos
antes de ser preso na Vila de São Paulo (MOTT, 2008). Tratava-se de Luiz Godinho, que,
após ter seus bens inventariados, foi encaminhado para o Rio de Janeiro e, de lá, por ordem
inquisitorial, deportado para Lisboa. Acusação principal: prática sexual com seis
“fanchonos”111 ao mesmo tempo, revezando-se no papel de “agente” e “paciente”.
Pressionado pelo tribunal, Godinho confessou seus “maus pecados” e outros tantos
cometidos durante seu longo período de devassidão, que incluíam cinco cópulas ad
invicem (passivo e ativo), tendo ainda sido passivo por cinco vezes na posição de
“ilharga” (de ladinho). Também confessou que por mais 4 ou 5 vezes foi passivo, ao
tomar o membro viril do parceiro e levando-o à boca, porém sem “derramar a semente”.
Por esses crimes, foi sorte Godinho escapar da fogueira, recebendo como punição, porém,
além de açoites até sangrar, ser remador de galé (espécie de embarcação) até o fim da vida.
Depois de três anos, escreveu ao Tribunal da Santa Inquisição pedindo revisão da
condenação, em razão de seu grave estado de saúde. Desse modo, conseguiu converter sua
pena em degredo em Angola (MOTT, 2008).
Bem mais tarde, já no século XX, se estabeleceu na região central paulistana uma
das maiores áreas de perambulação homossexual citadina do país. Abrigando os chamados
pederastas desde os anos de 1930, o “gueto gay” expandiu-se progressivamente até

111
Trata-se de uma expressão secular, em geral análoga e contemporânea a “sodomita”. Contudo, no Brasil
é possível encontrar registros de sua utilização desde o período colonial até meados do final do século XX,
muito embora em menor intensidade. Apesar de alguma variação de seu emprego, o “fanchono” refere-se
a alguém identificado socialmente por seus comportamentos homossexuais. No contexto português, em
período aproximado, ver DIAS, J. J. A. Para uma abordagem do sexo proibido em Portugal, no século XVI.
In: SOCIEDADE PORTUGUESA DE ESTUDOS DO SÉCULO XVIII. Congresso Luso Brasileiro Sobre Inquisição.
Lisboa: Universitária Editora, 1989. p. 151-159.

133
consolidar-se como território homossexual nas décadas de 1950 e 1960, a reboque da
acelerada industrialização da cidade. Nesse processo, aumentou o número de homens em
busca de sexo que circulavam na região, assim como a quantidade de estabelecimentos
voltados especificamente para esse público, tornando-se a cena homoerótica mais plural
em termos de interações, identitárias ou não.
Nos encontros sexuais masculinos gratuitos, que marcaram a maior parte do século
passado, a pegação era praticamente feita a pé, nas calçadas, numa “tomada” homoerótica
de espaços públicos. Como já dito, muitas vezes em áreas anexas ou próximas das
estruturas de transporte coletivo, caso dos antigos banheiros das estações República e Sé
do Metrô.
De acordo com Perlongher (1987), a emergência do regime ditatorial, em 1964, não
foi sentida diretamente no chamado “gueto gay”, em seus primeiros anos. Contudo, os seus
tentáculos repressivos atingiriam a região a partir da promulgação do Ato Institucional nº 5
(AI-5), em 13 de dezembro de 1968, que inaugurou o período mais duro da ditadura civil-
militar, conhecido como Anos de Chumbo, e se estendeu até o final do governo de Emílio
Garrastazu Médice, em março de 1974.
Até então, por quase toda a década de 1960, a Galeria Metrópole, nos arredores da
Praça da República, por exemplo, foi um dos epicentros de concentração masculina
homoerótica da capital paulista. Local “de incrível badalação” e de grande liberdade
homossexual, chegou a ser visitada pelo filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Com o
endurecimento do regime, porém, a galeria precisou fechar suas portas para a caça sexual,
sendo seu entorno permanentemente monitorado pela força policial, que mantinha
camburões e ônibus prontos para levar presos os contraventores (PERLONGUER, 1987).
Curiosamente, observa o autor, justo no momento em que a pegação ao estilo
flâneur sexual estava sob maior vigilância, uma outra tática de interação homossexual
masculina começou a se impor na cidade: a paquera motorizada, ou “Autorama”, um
circuito em que os homens percorriam de carro as áreas próximas ao Teatro Municipal.
A ocupação homossexual de rua continuou no centro de São Paulo. Expulsos da
Galeria Metrópole, seus praticantes formaram uma nova aglomeração na rua Nestor
Pestana, a poucos quarteirões de distância, logo transformada em alvo da polícia. Então, os
homossexuais passaram a ocupar o Largo do Arouche e, por extensão, toda a avenida
Vieira de Carvalho, cujo o apogeu ocorreria ainda nos finais dos anos 1970
(PERLONGHER, 1987).

134
A partir de 1980, a região central foi alvo de uma ação de limpeza policial
conhecida como “Operação Richetti” 112, que atingiu em cheio os frequentadores do gueto
gay. Sob o argumento de perseguição a assaltantes e bandidos, as figuras homoeróticas que
perambulavam pelas ruas, praças e parques podiam agora ser caçadas pelas higienistas
operações policiais. Primeiro, por contravenção enquadrada como vadiagem, um antigo
crime instituído pelo Código Penal Brasileiro em 1890, que seguiu se atualizando nos
ordenamentos legais seguintes. Depois, com o recrudescimento da ditadura, a atuação
homoerótica de rua podia até mesmo ser enquadrada como ação subversiva (GREEN;
QUINALHA, 2014).
A ocupação homossexual da região do Arouche chamou a atenção das autoridades,
sendo alvo de discursos moralistas de deputados na Assembleia Legislativa de São Paulo:

O Largo do Arouche tem reunido de mil a 1.500 homossexuais nas noites


de fim-de-semana [sic]. Atrás deles estão as “fanchonas”, e toda a série
de tóxicos, entorpecentes etc. Como um cidadão comum pode viver com
suas famílias no Largo do Arouche? Como poderá educar seus filhos?
Existem moradores ao lado do restaurante O Gato que Ri que
simplesmente não podem sequer entrar em casa, pois os travestis os
impedem. 113

Parte dessa ocupação homoerótica foi sendo assimilada pelo emergente mercado
gay que se consolidava no centro de São Paulo. Até os dias atuais, boates, cinemas pornôs,
bares, saunas e cabines que exibem filmes eróticos são estabelecimentos lendários na
região. Hoje, figuras dissidentes à heteronorma da cidade ocupam a vida pública em geral,
não prescindindo necessariamente de áreas específicas para demonstrar seus afetos.
Mas estaria a urbe, enfim, conciliada com essa população e, portanto, os espaços de
acesso público para pegação condenados ao desaparecimento? Provavelmente não. A

112
“Em maio de 1980 (...), durante o governo de Paulo Maluf, o delegado José Wilson Richetti assumiu a
delegacia seccional do Centro e criou a Operação Cidade, que tinha como objetivo prender traficantes e
assaltantes. No dia seguinte, no entanto, os jornais estampavam que a maioria das 152 prisões feitas na
operação foram de prostitutas, travestis e homossexuais. Em 31 de maio neste mesmo ano, a Secretaria de
Segurança Pública do governo Maluf soltou uma nota oficial assumindo a perseguição aos LGBTs”. MELO,
M. Estado perseguiu movimento gay na ditadura. CartaCapital, [s.l.], 31 mar. 2014. Disponível em
<https://www.cartacapital.com.br/sociedade/perseguicao-do-estado-e-desprezo-da-esquerda-
prejudicaram-movimento-gay-9956.html>. Acesso em: 15 out. 2017.
113
Trecho do discurso do deputado Ricardo Izar. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 10 jul.
1980, p. 129. Disponível em:
<https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=/1980/executivo/julh
o/10/pag_0129_873VN5TPUHRMHe4HMJCJVMLKQAB.pdf&pagina=129&data=10/07/1980&caderno=Execu
tivo&paginaordenacao=100129>. Acesso em: 3 jun. 2018.

135
assimilação da vida social em relação aos afetos homoeróticos é parcial, enviesada ou
mesmo determinada por questões geográficas, raciais e de classe. Sobre essa demonstração
pública prevalece muito mais a hostilidade, o preconceito, a desqualificação, a
discriminação, a violência desmedida, o desejo de aniquilação do outro, a dificuldade de
aceitação das diferenças.

Nós continuamos levando lampadadas114 na rua por andarmos de mãos dadas;


continuamos sendo agredidos por beijar o nosso namorado em público; as
pessoas continuam achando que isso é do demônio. Então, não é natural. As
pessoas vão pra esses espaços pra elas se sentirem à vontade. Aquelas que não
têm dinheiro pra ir numa balada, elas acabam indo [para a pegação pública]
(Entrevistado 1).

Nesse sentido, lugares públicos de pegação parecem ser projetos viáveis para
muitos homens que encontram pouco espaço social de expressão de seus afetos
homoeróticos. A hegemonia do modo de vida heteronormativo não está restrita ao padrão
esperado de orientação sexual. Trata-se de um sistema extensivo a praticamente todos os
campos da vida social. Instituições como escolas, família e trabalho – operadoras
fundamentais na produção da sensação de normalidade e pertencimento – ainda são
bastante homofóbicas.

É assim: quando eu beijei alguém, eu falei: “Nossa, eu posso beijar alguém em


público!” Porque o fulano do lado não vai me bater, não vai me jogar pedra,
não vai chamar a polícia, enfim. Então aquele espaço [da pegação] é um
espaço onde as pessoas se sentiam à vontade (Entrevistado 1).

É dizer, mesmo que temporária, a suspensão de um sistema repressivo permite a


expressão homoerótica e a sensação de, enfim, localizar um território existencial possível,
sendo ambos produtores de subjetividade. Beijos e abraços – gestos até banais na vida em
comum, mas frequentemente interditados à homoafetividade pública – podem ser liberados
nesses espaços. E não só eles. O ânus, por exemplo, talvez a zona erógena mais marginal, é
inscrito na cultura como abjeção e seu uso para os prazeres, uma afronta à
heteronormatividade. Contudo, a pegação também tem seu valor público ressignificado.

114
Ele se refere à agressão a um jovem homossexual que foi atingido por uma lâmpada fluorescente, na
manhã do dia 14 de novembro 2010, quando caminhava com dois amigos pela Avenida Paulista, voltando
de uma balada. Em 21 de outubro de 2015, o seu agressor, Jonathan Lauton Domingues, foi condenado a
nove anos de prisão em regime fechado por “homofobia”. Foragido à época do julgamento e condenação,
não se tem notícia de que tenha sido preso e esteja cumprindo a pena.

136
Ainda assim, é bom ressaltar, o regime instalado nessas pegações públicas e
gratuitas não necessariamente é identitário.

O HSH é uma sexualidade absolutamente interditada. Mas a gente arranja


muitas formas de se realizar. E tem muita gente que não se declara
homossexual e nem bissexual e mesmo no caso dos heterossexuais – totalmente
casados e absolutamente resolvidos, mas que tem essa erotização. Na verdade,
acho uma besteira essa separação por orientação sexual. Entendeu? É uma
redução apenas didática para gente entender como são as possíveis
sexualidades humanas. Mas as coisas estão muito entrecruzadas (Entrevistado
2).

Nessa perspectiva, é possível dizer que a filiação à pegação se dá muito mais pela
possibilidade de prazer do que forçosamente em prol da construção de uma pauta que
reivindique a convivência harmônica com a sociedade em geral. Portanto, toda pegação
colocada nesses termos é

[...] promíscua no sentido libertador da palavra e não no sentido conservador,


que as pessoas usam. [É] resistência. As pessoas estão querendo, realmente,
encaixotar, empacotar, e tornar a sexualidade uma coisa extremamente
aceitável. Para isso, estão querendo fazer todas as concessões possíveis. E isso
não é tão bom! (Entrevistado 2)

4.2 COMUNIDADES DOS BANHEIROS E OUTRAS OCUPAÇÕES HOMOERÓTICAS

A sombra instiga. E dá tesão. Estar lá é muito consensual: as pessoas estão na


escuridão porque elas vieram para se tocar. Esse espaço noturno é diferente
do banheiro também. O banheiro, ele assume muita luz, né? Você escolhe,
você escolhe mais (Entrevistado 2).

São muitos os locais de pegação. Inclusive, muitos não se constituem exatamente


em segredo, figurando como destaque nos roteiros gays de várias cidades. Só no estado de
São Paulo, um site de pontos de pegação de diversas partes do mundo informa a existência
de mais de 600115 espaços, de variados tipos. O site é atualizado pelos próprios homens,
que anonimamente indicam os lugares citadinos onde ocorre a pegação. São parques
públicos (e seus banheiros), estações de transportes (e seus banheiros), universidades (e
seus banheiros), praças (e seus banheiros), cemitérios, áreas industriais, praias (e seus

115
GAYS CRUSING. Pegação em São Paulo, Brasil. Disponível em: <https://www.gays-
cruising.com/pt/sao_paulo/brasil>. Acesso em: 16 mai 2018.

137
quiosques abandonados), balneários nas cidades pequenas do interior, postos de gasolina
com grande circulação de caminhoneiros. A maior parte está localizada na Região
Metropolitana de São Paulo e é de acesso público. Majoritariamente, esses pontos também
estão instalados em zonas comerciais (pelo menos 233, considerando banheiros de
supermercados e de shopping centers) ou em estações de transporte público (pelo menos
88).
É comum tratarmos os estabelecimentos do mercado gay como um fenômeno mais
central nas cidades. O anonimato, a mobilidade e a saturação comercial frente à diminuição
das ocupações residenciais nessas áreas são mais favoráveis a tal fenômeno. A própria
capital paulista, por décadas, constituiu seu chamado gueto gay no centro, ainda hoje um
importante ponto do comércio e da cultura homossexuais. Contudo, curiosamente, a
pegação, apesar de em parte estar atrelada a essa história, parece se constituir um
acontecimento bastante independente. Nesse sentido, ao verificarmos mais atentamente sua
distribuição, sobretudo na Grande São Paulo, é possível perceber que ela é relativamente
democrática e está presente inclusive em áreas bem periféricas. Em igual abertura de
acesso estão os pontos de pegação nas cidades do interior, que às vezes parecem configurar
uma das únicas possibilidades de vivência sexual pública entre homens.
Quando também observamos mais atentamente as mensagens no site supracitado,
parece ocorrer uma tática interessante de preservação do ponto de pegação. Muitos se
limitam a demarcar a possibilidade de sexo casual numa determinada área, mas não
detalham exatamente onde, os horários ou como as práticas ocorrem. Ou seja, ao mesmo
tempo em que se tem uma rede solidária de difusão pela web dos locais para sexo gratuito,
parte desse percurso homoerótico ainda segue em segredo. Mesmo aqueles que anunciam o
ponto em detalhes, por vezes o fazem no sentido tático de avisar aos demais, por exemplo,
procedimentos de segurança.
Seguramente, há muitos outros pontos fora desse registro. E, mesmo os que foram
mapeados não são, necessariamente, fixos ou contínuos durante o ano todo, tampouco há
registro do momento em que estarão mais ativos ou simplesmente desaparecerão. A
despeito dessas lacunas, esse mapeamento nos parece ilustrativo de como a pegação
configura-se em fenômeno bastante corriqueiro no tecido social.
É possível pensar que os pontos de pegação não são ilhas de liberdade sexual
rodeadas de pressão heteronormativa por todos os lados. Sobretudo em grandes cidades,
eles se conectam a circuitos sexuais muito particulares a cada praticante.

138
Sim! Lugares fantásticos, com coisas fantásticas. Eu frequento tudo! [risos]
(...) Passarela do X116, maravilhosa! Eu chamo de montanha russa. Todos os
banheiros públicos da linha Y117da CPTM118 (Entrevistado 3).

Em outro aspecto, a hipótese inicial desta pesquisa aventava a possibilidade de que


muitos pontos eram alvos de táticas antipegação, sobretudo os banheiros de acesso público
de grande circulação.
Num sentido mais indireto, a antipegação significa a modernização desses
banheiros sob uma arquitetura idealmente mais panóptica. De modo genérico, se por um
lado tais mudanças isolam cada vez mais os corpos masculinos, por outro lado colocam no
centro desses espaços as atividades fisiológicas nos urinóis. São exemplos dessas táticas
indiretas a retirada de mictórios coletivos e a instalação de estruturas individuais, separadas
por divisórias cada vez maiores; a implantação de espelhos que permitem fácil visualização
de todas as áreas do ambiente; e até mesmo a eliminação de paredes entre os lavatórios (as
pias) e os mictórios.
Num sentido mais objetivo, o termo diz respeito a estratégias que parecem visar
coibir diretamente a formação de um espaço-tempo da pegação. Elas incluem a retirada
sistemática de todos os mictórios desses ambientes; a instalação de portas de vidro nas
cabines o que permite visualizar os contornos corporais de quem as utiliza; e a retirada de
trancas das portas de entrada dos banheiros masculinos.
É importante ressaltar, porém, que nem sempre esses locais que foram organizados
segundo a lógica da extrema vigilância ficaram imunes à pegação. Sobre esse aspecto, o
Entrevistado 4 relembra as práticas sexuais no extinto banheiro do Masp (Museu de Arte
de São Paulo), localizado na Avenida Paulista, cujo acesso se dava por um longo corredor:

As pessoas desciam no corredor comprido e lá no fundo era o banheiro. Então,


se alguém entrasse, até [ultrapassar] esse espaço todo para chegar, você ouvia
a porta abrindo. Se você tava na pegação, você tinha como parar.

Por outro lado, a lógica panóptica, por si só, não é capaz de interditar a prática
homoerótica nesses espaços. “No banheiro existe a coisa do medo e do proibido. É muito
proibido e tem muito medo envolvido, mas [é] isso que excita”, pontua o Entrevistado 2. E
116
O nome citado foi intencionalmente retirado do texto para não expor o ponto de pegação.
117
Idem.
118
Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.

139
acrescenta: “Por isso que as pessoas vão muito em banheiros. E por isso que os banheiros
estão sendo perseguidos, né? Arquitetônicamente falando”.

Figura 12. Da esquerda para direita, banheiros de acesso público na capital paulista: mictórios
posicionados lado a lado sem nenhuma divisória; parede onde havia mictórios em uma estação de
metrô; mictório coletivo; mictórios com variadas modalidades de separação.

Nesta tese, não foi possível identificar na cidade de São Paulo qualquer ação oficial
estatal que indicasse que as mudanças estruturais em banheiros públicos visavam inibir a
pegação. Um dos entrevistados, inclusive, atribui ao ordenamento legal que dispõe sobre a
acessibilidade de pessoas portadoras de deficiências físicas a equipamentos públicos 119 o
fechamento dos mictórios públicos. Obviamente, somente isso não explica as modificações
ou mesmo a retirada desses equipamentos, tampouco inibi a pegação naqueles banheiros
públicos que se mantêm em funcionamento, haja vista os vestígios deixados pelos
praticantes: “Se você vai no banheiro público, você vai ver um monte de furinhos [entre as
cabines]. As pessoas continuam se pegando” (Entrevistado 4).
Por outro lado, parte dos discursos dos entrevistados e das anotações no diário de
campo parece apontar para o sentido direto ou indireto das táticas antipegação implantadas
em alguns banheiros das estações do Metrô. Por exemplo, em 2017, ao entrar na estação
Barra Funda (terminal intermodal que integra os sistemas metroviário, de trens
metropolitanos e linhas de ônibus municipais, intermunicipais e interestaduais) observei
uma fila que se estendia até o lado de fora do banheiro masculino. Intrigado com a cena,
menos comum nos banheiros de homens do que no de mulheres, já que urinar em pé é
relativamente mais rápido do que sentado, fui verificar o que ocorria. Para minha surpresa,
119
Desde a promulgação da Lei nº 11.424, de 30 de setembro de 1993, o município de São Paulo vem
promovendo adaptações nesse sentido.

140
não havia mais nenhum mictório em seu interior, mas apenas cabines. A constatação me
levou a percorrer banheiros públicos de outras estações do Metrô. Novamente, em todos
eles, identifiquei o mesmo fenômeno: os mictórios desapareceram.
Ao indagar rapidamente os funcionários da limpeza dos locais percorridos sobre o
porquê dessa mudança, a resposta foi sempre no mesmo sentido: não sabiam dizer ao certo
quem realmente ordenara a retirada dos mictórios, mas ela havia ocorrido há anos. Para
eles, a medida visava possíveis brigas entre os usuários dos banheiros, já que muitos os
utilizavam “para atos obscenos”, prática que, frequentemente, levava a desentendimentos
destes com aqueles que faziam o uso fisiológico do espaço. Também afirmaram que após a
retirada dos mictórios raramente isso acontecia.
Se a medida foi uma política pública sistemática, como já dito, não foi possível
confirmar neste estudo, mas parece ter sido uma medida institucional da Companhia do
Metropolitano de São Paulo, que faz a gestão das linhas metroviárias. De qualquer
maneira, a probabilidade de violência em banheiros públicos referida pelos funcionários do
Metrô é reconhecida por parte dos entrevistados.

A possibilidade de você ser agredido é muito maior. O banheiro é uma coisa


com perigo, porque é um ambiente extremamente masculino, heterossexual. E,
aí, porque se dá essa sexualidade ali? Exatamente para afrontar essa
heteronormatividade (Entrevistado 2).

Porém, não só a violência pode ser uma experiência negativa nesses espaços. Os
movimentos homoeróticos, mesmo que pouco perceptivos para o público geral, podem
provocar frustração ao não evoluir necessariamente para uma prática sexual: “De banheiro
público eu não gosto, porque eu acho que já é muito ali [muita exposição]. Também acho
que não vai dar em nada, só vai se olhar e olhar pro outro. Não gosto!” (Entrevistado 1).
Apesar disso, ele pondera: “Mas eu gosto de ver como se dá a coisa, como que é. Como a
maioria das pessoas não enxerga... e é como se fosse uma Matrix, né? Você tá vendo, os
outros não veem”.
Mesmo em condições tão limitadas – seja pela maior vigilância, seja pela
adrenalina que esses homens precisam controlar e disfarçar, para aproveitar as curtas

141
pausas no ambiente em que a pegação é mais viável120 –, esses locais também podem
oportunizar um conjunto de afetos eróticos bastante complexos.

Observando dois senhores se olhando, sabe? Se paquerando. Eles tinham no


mínimo 70 e 80 anos. Achei aquilo tão maravilhoso. Acho que ali eles podem
se reconhecer. Acho que eles gostariam mesmo, no fundo, é que essa sociedade
não fosse tão hipócrita, não fosse tão conservadora, não fosse tão
fundamentalista religiosa, não fosse tão heteronormativa e tão homofóbica e
imbecil do jeito que ela é. Acho que eles gostariam de poder tá na rua e se
paquerar. Dar as mãos, se beijar. Mas, por conta de todo esse modelo
opressor que a sociedade é, ela acaba gerando esses conflitos e esses lugares,
sabe? (Entrevistado 1)

Por outro aspecto, os banheiros carregam um conjunto relacional que não se esgota
nas performances corporais eróticas. É também um lugar de permanência, de memória e de
conexões. Atualmente, a imposição da internet na vida cotidiana das pessoas afetou as
práticas de pegação de muitos homens. Em fenômeno mais recente, os aplicativos de
celular são a ferramenta majoritariamente utilizada para viabilizar esses encontros. Mas até
então, como revela um dos entrevistados, os banheiros públicos cumpriam essa função.
Inclusive na PUC/SP, cujas paredes dos banheiros, a exemplo de muitos ainda hoje,
serviam de mural para os combinados sexuais.

[...] na PUC, marcava encontro nos banheiros. Era tipo ficção científica.
Porque, assim, se você fosse lá [no banheiro], entrou na cabine e leu lá fulano
dizendo: “Oh, (...) tal dia, tal hora”. O outro dizendo: “Ah, eu vou (...)” Você
chegava lá estavam os dois. (...) Eu estou falando de uma época que não tinha
celular, não tinha Bip, não tinha WhatsApp. Ali era o WhatsApp das pessoas.
Eu cheguei na PUC em 89. Eu conheci gente de fora dali assim. Tipo que, à
tarde, cê tá lá sentado, o pessoal vem bater papo com você: “Ah, cê faz que
curso?”; “Não, não faço curso aqui, é porque aqui é bom para pegação”
(Entrevistado 4).

4.2.1 O Fechamento do Autorama

120
“Há toda uma ciência em se fazer banheirão, uma verdadeira arte, em desaparecimento com o advento
dos aplicativos de celular para pegação. (...) E, ao contrário do que se possa imaginar, o segredo de um bom
banheirão não é se esconder, mas sim se mostrar. Claro, muita coisa conta, como o movimento médio de
pessoas que passam pelo lugar até, e eu diria especialmente, a arquitetura do banheiro. A boa bicha sabe
utilizar de todos os elementos e mobiliários do cômodo, as reentrâncias, os recuos, as paredes, tudo que
(...) permita um controle dos pontos de vista: espelhos, cerâmicas que refletem, pontos em que a luz cria
sombras que anteveem a entrada de uma figura que não seja quista. (...) Contrariamente ao que se
imagina, um dos piores locais para fazer banheirão é o reservado. Estar num cubículo com a porta trancada
acaba com todas as possibilidades de fuga e dissimulação” (RODRIGO, 2016, p. 20-21).

142
Se existiu um local famoso no Brasil por sua pegação, foi o Autorama, espaço
contíguo ao Parque Ibirapuera, área nobre da Zona Sul paulistana. Provavelmente nenhum
outro local de interação homoerótica do país ganhou tanta visibilidade, durando tanto
tempo (pelo menos 30 anos de existência), nem foi tão debatido, inclusive com propostas
de “legalização” de seu uso. Mesmo assim, o Autorama foi fechado duas vezes pela
prefeitura de São Paulo, em 2002 e em 2013, então definitivamente.
Apesar disso, a história do lugar continua viva na memória homoerótica da cidade.
E, embora sejam raras as pesquisas acadêmicas sobre ele, relatos disponíveis em sites
LGBT, notícias de jornal e depoimentos de muitos frequentadores confirmam sua
existência. O depoimento do Entrevistado 1 dimensiona a importância do espaço:

Ah, era impressionante! Quando dava mais ou menos 7 da noite o público ia


mudando completamente. Depois das 8 horas da noite, já era! Não tinha mais
público do Ibirapuera; era o público da noite, o público do Autorama. Então,
assim, era muita gente, não sei quantos carros cabiam ali (...). Acho que por
conta dessa visibilidade toda também (...) houve sempre muita perseguição ao
Autorama [por parte] dos moradores do entorno. Eles reclamavam de barulho
(...), reclamavam da pegação em si.

Fundamentalmente, durante o dia o espaço era utilizado como a área de provas do


Departamento de Trânsito de São Paulo (Detran) para obtenção de carteira de motorista; à
noite, findas as atividades oficiais, o Autorama se transformava em ponto de pegação
(ANGELO, 2015). O seu nome aludia à grande quantidade de carros que circulavam no
local, que, como já dito, constava na maior parte dos guias gays (SIMÕES; FRANÇA,
2005).
Em dezembro de 2000, André Fischer publicou uma matéria intitulada “Complexo
de rejeição”, na sessão “Plural” da Revista da Folha121, voltada às discussões GLS 122,. O
texto focava na iminente desativação do Autorama, no lastro das modificações urbanísticas
que estavam ocorrendo, havia algum tempo, no entorno do Ibirapuera, afastando
paulatinamente seus usuários noturnos. Para Fisher, o Autorama – que teria se fixado como
local de pegação em meados dos anos 1980 – estava ameaçado por conta da construção de
uma alça do complexo viário conhecido como Cebolinha. Sua declaração sobre o fim do

121
FISCHER, A. Complexo de rejeição. Revista da Folha, São Paulo, 3 dez. 2000, p. 79. Disponível em:
<http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2000/12/03/101>. Acesso em: 15 out. 2017.
122
Ainda não existia a sigla LGBTTTIQA, sendo corrente o acrônimo GLS (gays, lésbicas e simpatizantes).

143
espaço nos dá uma ideia, em certa medida, de como a pegação estaria se distanciando do
movimento gay organizado: “Me solidarizo com o luto daqueles que perderam mais um
local de encontro, mas sinto dizer que faz muito pouco sentido levantar essa bandeira
quando tantas reivindicações bem menos inglórias estão na agenda dos direitos
paulistanos”. 123
A quais pautas “bem menos inglórias” Fischer estaria se referindo especificamente
não fica claro, mas a caminhada no sentido da construção de uma homossexualidade
respeitável e, portanto, mais palatável para uma cultura heteronormativa, seguramente já se
iniciara naqueles anos. Não que isso fosse ruim, mas sua afirmação dá a medida do quanto
as práticas sexuais públicas e gratuitas entre os homens era vista como infâmia até mesmo
por pessoas de identidade gay. Tanto que, em seguida, o autor afirma categórico:
“Seguramente, a engenhosidade gay encontrará em breve novo endereço (...) e a
capacidade de mobilização da comunidade ficará preservada para outras lutas”. 124
A aposta de Fischer em uma espécie de autorregulação da pegação, de fato, está de
acordo com a própria dinâmica desses espaços, muitos dos quais, inclusive, avessos a
normalizações externas. Por outro lado, deixa a pergunta: até que ponto o novo ideal de
gay também já não estava desvinculado desses locais e, como tal, pauta irrelevante nos
debates da comunidade homossexual?
Seja como for, fato é que em 2002, como dito, o Autorama foi fechado pela
primeira vez, sob o argumento oficial de combate à insegurança, à prostituição e ao tráfico
de drogas. Contudo, antes de um mês de seu fechamento, foi reaberto com a ajuda do então
presidente da Associação da Parada do Orgulho GLBT, que propôs a criação de um grupo
de trabalho para pensar seu funcionamento. Desse GT teria saído a ideia do “Jardim Gay”,
que, mesmo tendo apoio do movimento, foi duramente criticado pela militância
homossexual, que via no projeto uma tentativa de normalização da sexualidade homo
(SANTOS, 2007).
A ideia foi encampada pela Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente.
Consecutivamente, a prefeitura paulistana lançou uma proposta de remodelagem do
Autorama, que seria rebatizado como “Espaço de Convivência Homossexual”.
Controverso, o projeto provocou uma celeuma entre os militantes gays, do mesmo modo
que foi amplamente rejeitado pelas associações que representavam os moradores do
123
FISCHER, A. Complexo de rejeição. Revista da Folha, São Paulo, 3 dez. 2000, p. 79. Disponível em:
<http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2000/12/03/101>. Acesso em: 15 out. 2017.
124
Idem.

144
entorno do Parque Ibirapuera. Ainda assim, mais iluminado e com ocasional
acompanhamento policial, foi reaberto. A proposta do Jardim Gay/Espaço de Convivência
não foi adiante (SIMÕES; FRANÇA, 2005).
A própria Folha de S.Paulo abriu-se ao tema, em artigo do colunista Gilberto
Dimenstein, publicado no caderno Cotidiano 125. Abandonando o enfoque do direito ao ato
sexual público, o texto abordava a questão da homofobia nos espaços públicos da cidade,
como, por exemplo, a aversão geral das pessoas a dois homens andando de mãos dadas. O
debate sobre a criação de uma área de convivência em lugar do Autorama seguia a lógica
da segurança para o exercício do homoerotismo livre da violência social.
Nesse sentido, para Dimenstein, a criação de um “Jardim Gay” permitiria
oficializar um ponto de encontro homossexual seguro, inclusive com revitalização
urbanística. Para superar a histórica resistência aos gays, o colunista explicou as ideias da
própria secretária do Meio Ambiente à época, Stela Goldenstein, que propunha o
estabelecimento de uma parceria entre os moradores do entorno do parque, que havia anos
tentavam expulsar os homossexuais, e as entidades ligadas a esta população. Desse modo,
entendia Dimenstein, seria possível firmar um pacto de conduta similar ao que fora feito
com as prostitutas da Praça da Luz, que, entre outros pontos, proibia a prática sexual
pública. Mas a proposta enfrentaria imensos obstáculos, inclusive do próprio Detran, que
precisaria devolver o terreno à prefeitura, e da população vizinha, constituída em parte por
pessoas de grande influência política.

A gente não fazia sexo. Era pra andar de mão dada e dar beijo. Então, você
tinha uma área de convivência. As pessoas iam, se conheciam, batiam papo,
mas, assim, passava polícia militar a cada uma hora, guarda municipal a cada
quarenta minutos, então tava sempre alguém passando. Só que nessa época
não tinha grade entre o Autorama e o parque. Então, se você quisesse fazer
sexo, você só pulava a muretinha e ia pro parque fazer sexo (Entrevistado 4).

O próprio Fischer voltaria a abordar o assunto, que mobilizava o movimento gay de


São Paulo em torno do polêmico abre-fecha do Autorama. Intitulado “Fiscais da genitália
alheia”126, o texto lembrava que a prefeitura havia mandado colocar grades em torno do
Autorama, proibindo ainda a entrada das pessoas após 8 da noite, argumentando

125
DIMENSTEIN, G. Jardim dos gays. Folha OnLine, [s.l.], 11 jul. 2002. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/urbanidade/gd110702.htm>. Acesso em 15 out. 2017.
126
Plural. Revista da Folha, São Paulo, 21 jul. 2002, p. 40. Disponível em:
<http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2002/07/21/101>. Acesso em: 15 out. 2017.

145
imoralidade na movimentação masculina. Sob protestos dos frequentadores, a Secretaria
Municipal do Meio Ambiente declarou a intenção de tornar o espaço mais acolhedor para
seus usuários, retomando a ideia de um “jardim de gays”, mais iluminado e que agregasse
ações de conscientização e cidadania. Para o autor, contudo, o projeto surtiria pouco efeito,
pois a raiz da pegação pública não estava na exclusão dos homossexuais e sim no fetiche:
“Se o Autorama for fechado ou transformado em um insulso ‘espaço de convivência’, em
poucas semanas seus frequentadores encontrarão outro local para seus encontros,
provavelmente mais ermos”.127
Mas seria o Autorama local de grande devassidão ao ponto de escancarar as
práticas sexuais a olhos vistos?

Pegação acontece no parque inteiro. O Autorama era o mais conservador que


tinha. Pra se ter uma ideia (...) era onde as pessoas chegavam, estacionavam,
ficavam conversando, jogando conversa fora. Ficavam a noite inteira lá,
porque não tinha, não podia ir pra boate. Ficavam lá, enfim, conversando e
namorando. E eu tô te falando: tem alguns que até casaram. (...) Dentro do
autorama mesmo, por exemplo, você não ia ver a pegação acontecendo. É,
então na escuridão, no meio dos matos, enfim, [que] se você quisesse pegar,
você ia (...). As pegações mesmo, elas acontecem dentro do parque
(Entrevistado 1).

Mesmo assim, a partir de 2013, depois de anos de disputa entre aqueles que
queriam manter o espaço e aqueles que o queriam bem longe do parque, o local saiu do
circuito de pegação da cidade. O que não significou o fim das práticas sexuais públicas no
próprio Ibirapuera e arredores.

4.2.2 Pegações no Parque Ibirapuera

A população, mesmo, que frequenta o parque, ela não vê, ela não sabe que
acontece isso (...), então não é uma coisa do tipo atentado violento ao pudor,
não é uma coisa que vamos sair fazendo sexo no meio do parque inteiro;
vamos ficar debaixo da luz. Ao contrário, fazemos em lugares escondidos,
exatamente pra não atrapalhar o outro ser humano que não faz pegação
(Entrevistado 1).

127
Plural. Revista da Folha, São Paulo, 21 jul. 2002, p. 40. Disponível em:
<http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2002/07/21/101>. Acesso em: 15 out. 2017.

146
Após o fim do Autorama, o Parque Ibirapuera parece ter continuado a abrigar uma
variedade de pontos para a prática sexual e abrigo de personagens homoeróticos. Não se
trata aqui de quantificar tais experiências, mas destacar, sobretudo na formação de
comunidades transitórias, a gratuidade do prazer e o acolhimento de variadas figuras
masculinas, mesmo que invisíveis à maioria da população que frequenta o lugar.
Assim como outros parques públicos urbanos, também o Ibirapuera é
completamente poroso ao entorno urbano, sendo as suas áreas mais escuras pouco
frequentadas. Essa configuração influencia a circulação de tipos homoeróticos em busca de
pegação. Sob esse ponto de vista, de acordo com o Entrevistado 3, a inclusão dos
praticantes sexuais depende da área ou do horário em que se acessa o parque. Ele explica
que os homens cadeirantes, por exemplo, se aventuram pelas áreas de pegação onde há
maior acessibilidade. Já os office boys preferem os horários que tangenciam seu expediente
de trabalho. Pais de família, por sua vez, aproveitam a corrida habitual; enquanto os
jogadores de basquete, finda a partida, exercitam seu homoerotismo nas áreas escuras
próximas às quadras e os homens internados em um hospital da região escapolem para uma
rápida “trepada”.
Obviamente, toda essa homocultura instalada no parque não escapa por completo
aos olhos de seus gestores. Mesmo não sendo claro que determinadas ações são
propositalmente adotadas para coibir as pegações, esta é uma sensação presente nos
depoimentos de alguns dos nossos interlocutores. “Sempre teve, durante o dia, as
moitinhas do Ibirapuera. Eu sempre frequentei todas as moitinhas, (...) todos os arbustos,
sabe? A gente entrava, trepava e ia embora. E hoje em dia eles cortaram” (Entrevistado
3).
Em reflexão similar, outro entrevistado, ao lembrar de suas aventuras sexuais no
Ibirapuera, avalia:

[...] se você olhar daqui do parque, você consegue ver o outro lado: não tem
arbustos, não tem uma natureza natural, sabe? Tá vendo esses matinhos ali ó?
Eles vão cortar tudo daqui uns dias. Eles fazem isso justamente pra não ter
arbusto, não ter arvorezinhas baixas onde o pessoal se pega, entendeu? Os
banheiros públicos, a mesma coisa: eles tiram os mictórios. Daqui a pouco eu
acho que eles vão tirar até os box [sic] (Entrevistado 1).

De modo geral, em relação aos parques públicos, os relatos dos entrevistados


convergem para o estabelecimento de uma relação dessas práticas sexuais com o poder

147
púbico, presente nesses locais muito pelo viés da criminalização do prazer. Mesmo que a
pegação ocorra, via de regra, distante do público geral, oferta-se quase exclusivamente
para esses frequentadores estratégias que visam coibir a pegação, seja pelos seguranças
locais, seja pela polícia.
Sobre esse assunto, dois dos entrevistados trouxeram outras possibilidades de
relação entre a pegação e os dispositivos de Estado que a cerceiam. Por exemplo, seria
possível disponibilizar lixeiras em áreas nas quais as pegações mais ocorrem, dando aos
seus praticantes maior possibilidade de cuidar do meio ambiente. Outro aspecto diz
respeito às estratégias de enfrentamento das infecções sexualmente transmissíveis (IST),
tendo em vista inclusive que os homens que fazem sexo com homens (HSH) são
considerados pelas políticas públicas de saúde como população-chave128 na epidemia de
HIV/aids.
Mas, haveria alguma possibilidade do sexo casual em público, mesmo que
anônimo, sair do lugar de completa marginalidade e ganhar alguma legalidade na cidade?
Quando, em 2008, Paul van Grieken, vereador em Amsterdam questionou a
proibição de algo “[...] que dificilmente incomoda outras pessoas e que, ao contrário, dá
muito prazer a um grupo em particular [...]”129, nem mesmo os cachorros e seus donos130
que passeiam pelo Vondelpark estavam preparados para a novidade à qual o político se
referia. Tratava-se da decisão da administração da cidade de descriminalizar as práticas
sexuais em seu parque mais famoso e popular. O Centro Nacional Especializado em
Diversidade aconselhava o resto da Holanda seguir o exemplo do Vondelpark, inclusive
como medida de proteção dos homens que realizavam tais práticas e podiam ser atacados
pelos chamados queer bashers. 131,132
No parque holandês os homens devem seguir determinadas regras na pegação,
legalizada em horários e locais específicos, devendo recolher seus preservativos e outros

128
“A epidemia de HIV/aids no Brasil é concentrada em alguns segmentos populacionais mais vulneráveis
ao HIV/aids e que apresentam prevalência superior à média nacional, que é de 0,4%. Essas populações são:
gays e outros HSH; pessoas trans; pessoas que usam álcool e outras drogas; pessoas privadas de liberdade e
trabalhadoras(es) sexuais.” Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/faq/20-o-que-e-populacao-
chave-para-o-hiv>. Acesso em: 8 maio 2018.
129
Tradução nossa. In: HOFFMAN, M. C. Amsterdam decriminalizes public sex in famous park.
LifeSiteNews.com, [s.l.], 14 mar. 2008. Disponível em: <https://www.lifesitenews.com/news/amsterdam-
decriminalizes-public-sex-in-famous-park>. Acesso em: 8 maio 2018.
130
VONDELPARK — the rules (and you won’t believe why dog owners are upset…). Dutch Amsterdam, [s.l.]
[s.d.]. Disponível em: <http://www.dutchamsterdam.nl/278-vondelpark>. Acesso em: 8 maio 2018.
131
Numa tradução livre, pessoas que atacam física ou verbalmente minorias sexuais, como a população
LGBTIQA.
132
HOFFMAN, M. C., op. cit.

148
vestígios após o sexo. Obviamente, não se trata aqui de estabelecer um paralelo entre a
Holanda e o Brasil. Contudo, talvez seja interessante observar melhor essa experiência para
podermos discutir outras formas de diálogo entre o poder público e a pegação para além
dos modelos comumente repressivos.
Voltando ao cenário paulistano, o Entrevistado 3 informa que a relação com a
vigilância do Ibirapuera nem sempre é opressora. Em suas incursões pelas zonas de
pegação até altas horas, quando o parque começa a fechar os portões, constatou que os
vigilantes entram em determinados territórios para sinalizar a todos o momento de encerrar
as práticas sexuais: “Eles já vão chegando, com a lanterna piscando e assobiando. Então,
vai tendo a debandagem [sic]. Os que mais insistem, como eu, que sabem que não vai ter
perigo, [os] convence (...) ali na hora. [Dizendo:] ‘Isso é maldade, já estou a gozar’
[risos].”
Curiosamente, nos informa o Entrevistado 1, as práticas sexuais nos banheiros do
Ibirapuera incluem, por vezes, os próprios vigilantes: “Eu já cheguei a presenciar um
segurança (...) isolando [vigiando] e o outro atendendo. Atendendo, quando tá fazendo
sexo é atendendo. Eu mesmo já peguei um. Enfim, tem de tudo”.
Nesse mesmo sentido, o Entrevistado 4, ao relembrar suas pegações em banheiros
do parque, revela uma relação de cumplicidade negociada entre as figuras que gravitam
naquele espaço: “O rapaz que tomava conta [do banheiro], ele tinha um acordo com as
bichas. Ele tinha lá uma caixinha, e ele tomava conta. Então ele ficava do lado de fora. Se
ele percebesse que ia entrar guarda ou PM, ele entrava, assoviando, aí todo mundo
parava”.
Todos os entrevistados confirmam que a pegação é um fenômeno que envolve
homens adultos, corroborando o que já foi evidenciado na revisão bibliográfica realizada
nesta tese. Embora nos últimos anos os chamados “rolezinhos do beijo” 133 organizados e
realizados por jovens e adolescentes tenham despertado a atenção dos administradores do
Ibirapuera, eles parecem ter dinâmica erótica bastante distinta da pegação. Dito de outro
modo, as práticas eróticas dos homens adultos distinguem-se das instauradas pelos
adolescentes. Sobre esse aspecto, um dos entrevistados ajuda a entender as diferenças.

133
“O termo ‘rolezinho do beijo’ tem servido para descrever dois encontros [no Ibirapuera] de caráter
relativamente dessemelhantes: os encontros periódicos aos fins de semana e seu público habitual (que
oscila em quantidade) e rolezinhos extemporâneos, que são articulados pela internet (notadamente pelo
Facebook) e trazem um público igualmente jovem” (SESTER, 2017, p. 72).

149
Porque os adultos, os mais antigos, eles vão exclusivamente pra fazer sexo.
Vão, fazem o sexo e tchau. Eles [os adolescentes] não; eles vão pra se
socializar. Eles conversam, eles fazem amizade, às vezes dançam; põem o
negócio no celular, começam a dançar funk, conversam com [o] amiguinho,
ficam se beijando... ó, horas se beijando. Têm paciência pra ir beijando e
ficam lá namorando. Poucas vezes você vê eles realmente se pegando, assim,
fazendo sexo mesmo (Entrevistado 1).

Ele ainda acrescenta que enquanto os homens adultos mantêm certa discrição em
suas atividades homoeróticas na pegação, em que há inclusive grande valor o pouco uso da
palavra, nos rolezinhos, talvez por não haver predomínio de um único gênero ou de uma
única orientação sexual, a vocalização do interesse erótico parece ser bastante útil para o
estabelecimento de parcerias erótico-afetivas: “Então eles ficam gritando hetero, aí sabe
que ele lá é hetero, é bi, a outra grita que é lésbica, a outra fala gay, enfim...”
(Entrevistado 1). Nesse sentido, ele resume o que considera ser a verdadeira pegação:

Querem [os adultos] realmente fazer sexo. Eu acho que essa é a verdadeira
pegação (...). Eu quero ir lá fazer sexo, acabou. (...) Não pega telefone, não
sabe de nada. E muitos deles são hétero, são casados, são gays, mas são
casados com as mulheres. Muitos são héteros e querem uma experiência. Tem
de tudo, sabe?

Sester (2017), em seu estudo etnográfico que, dentre outros aspectos, evidenciou as
relações (homo)eróticas entre frequentadores do Ibirapuera, também confirma essa
dinâmica de vocalização entre os jovens nas suas territorializações. Mas sua pesquisa
demonstrou que esses rolezinhos e a pegação masculina entre adultos não são as duas
únicas ocupações a tensionar os usos “habituais” do parque. Esses se somariam à
frequência de outras populações problemáticas para seus administradores,
complexificando, assim, a discussão da pegação como evento isolado.

4.3 ATRAVESSAMENTOS CORPORAIS E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE NAS


PRATICAS SEXUAIS GRATUITAS MASCULINAS

No campo mais das experiências subjetivas, para aqueles que praticam a pegação
nos termos desta tese, por quais afetos, sensações ou mesmo pensamentos essas figuras são
atravessadas? O Entrevistado 3 faz interessante reflexão acerca das suas percepções
corporais: “[...] quando você for nesses lugares, as pessoas não vão direto para o seu cu,

150
para o seu saco. Eles te dão uma cafungada. Velho, isso é [a] coisa mais bonita que existe!
Que você vê na hora que a pessoa identifica um bicho”.
Mas quanto é possível refletir sobre esse bicho por uma matriz de pensamento
diferente daquela perpetrada na “tradição do preconceito”134? Pois bem, o bicho em
questão é ativado a partir do contato homoerótico junto aos demais. Os homens que estão
na pegação, sobretudo em áreas mais ermas, de vegetação mais densa, se localizam pelo
cheiro, numa caça mútua. Seguramente, não se trata de um animal solitário, um indivíduo
separado de sua matilha. Ao contrário, a caçada da pegação demanda certa grupalidade, ou
bando talvez, para compor novas territorialidades. Algo muito próximo do que Deleuze e
Guattari (1997) nomeiam como um devir-animal, como dá a ver o depoimento do
Entrevistado 3:

Nós somos caçadores, nós somos animais caçadores. A nossa libido aumenta
no meio do mato, o cheiro do mato, a conquista, a disputa do pinto, a disputa
de quem vai chupar, quem vai ser chupado. E tudo isso fica muito forte na
natureza.

Sobre esses agrupamentos libidinais, à luz das entrevistas, a negociação do prazer


parece implicar, por vezes, uma espécie de relação democrática. Não no sentido de uma
participação igualitária, em que os indivíduos partidários de si mesmos simplesmente
colocam seus desejos em uma mesa de negociação. Ao invés, essas experiências libidinais
exigem de seus participantes certo grau de modulação com o ambiente, com um saber
corporal tático, com um processo colaborativo de grupo, com uma experiência inesperada.
E em relação a isso, a pegação atravessa provavelmente a todos em alguma medida:

[...] as pessoas ali exercitam com todo o direito sua sexualidade, sabe? Esse
espaço de pegação são os espaços mais democráticos do mundo porque ele
próprio se subverte... ele não tem regras... ali é uma essência... você perde tua
máscara... e quando você se toca que você perdeu tua máscara, você levanta e
vai embora e não quer nem saber o nome da pessoa... alguns sequer trocam
telefone (Entrevistado 3).

134
“Na tradição do preconceito, homossexualismo é perversão, e perversão é parente próximo da
animalidade (...). Nos costumes leigos, científicos ou literários, homossexual e relação homossexual
pertencem à gramática da devassidão, obscenidade, pecado, hermafroditismo, promiscuidade,
bestialidade, inversão, doença, perversão, falta de vergonha, sadismo, masoquismo, passividade etc. No
Brasil, nada ilustra tão bem o estatuto de meio-homem, meio-besta do homossexual quanto a palavra
‘bicha’” (COSTA, 1992, p. 94).

151
Ainda, do ponto de vista da ideia de inesperado, não é difícil pensar que
determinados homens sejam tomados por um sentido de resistência ao experienciar esses
espaços. Sobretudo frente aos processos de subjetivações institucionalizados em estruturas
como a família e o casamento. O sentido da pegação amplia-se aqui para uma dimensão
contracultural em relação às posições de gênero mais conservadoras do masculino, tão
consolidadas na sociedade. Em parques públicos, em especial, duas modalidades
contrastantes de inscrição dos homens (os da pegação e os dos passeios em família)
convivem com algum distanciamento, mas nunca completamente apartadas.

O que eu acho mais louco é que, no meio de todo esse caráter familiar, aí tem
um ponto de escuridão, mistérios e onde as vulgaridades são possíveis, né? É
uma bolha. Nesse sentido, é muito revolucionária, né? Porque ela está aquém
dessas estruturas traumatizantes, como o casamento. Essa cultura da pegação
é uma resistência a esse posicionamento conservador (Entrevistado 2).

Corriqueiramente, o sexo gratuito entre homens é pensado como um acontecimento


que se esgota em sua trivialidade. Algo sem sentido, a não ser pelos riscos de exposição à
violência e à saúde, em virtude da promiscuidade dos atos. Para o Entrevistado 2, “[...]
existe uma perseguição a esse desregramento sexual. Essa ideia da promiscuidade, ela
perpassa a história e está aqui de novo: ‘Vamos evitar a promiscuidade’” . Nessa
perspectiva, é como se os praticantes da pegação estivessem excluídos de subjetividade,
apenas reféns de corpos tomados por impulsos libidinais. Assim, “[...] para você ser gay
precisa ser aceito pela família tradicional brasileira e destruir esses espaços de sexo
democrático” [Entrevistado 2].
Encerrar a discussão nesses termos exclui do campo homoerótico uma interessante
vivência afetiva. Nesse sentido, o sexo, mesmo que casual, não se contrapõe
necessariamente a afetos mais associados a relações duradouras.

É uma necessidade sexual e acho que é um afeto também. [Ao lembrar de uma
pegação no parque] Eu falei coisas no ouvido dele, ele falou no meu ouvido.
Essas árvores, né? E essa coisa escura... das sombras. É uma
homossexualidade muito “escombrosa” mesmo, né? Dos escombros se cria um
universo de possibilidades e motivos. E, aí, eu não separo o sexo da emoção.
Mesmo assim, o sexo que as pessoas dizem que é casual, promíscuo, é um
afeto. Entendeu? (Entrevistado 2)

152
O campo que se abre na pegação, em especial em áreas mais afastadas dos
esquemas de vigilância dos gêneros e das sexualidades, “[...] é uma bolha mesmo de
criatividade sexual (...). Existe um corpo ‘interdito’. E essa escuridão possibilita e retira
daí essa interdição” (Entrevistado 2). A retirada dos interditos não se refere apenas aos
limitadores sociais avessos a esse mundo homoerótico; também os próprios corpos
masculinos parecem operar em outro regime libidinal, mesmo que temporariamente.

Tem muitos lugares. Em todo lugar que tem uma escuridão, umas árvores (...)
Também não tem padrão de beleza. Os padrões se estirpam [sic] porque a
escuridão retira essa coisa. O que importa é o toque e o gozo que se
proporciona. Com quem... [importa menos]. É uma relação com a sombra. É
uma solidariedade das sombras, né? Por isso, dos escombros também. É uma
coisa, assim, muito em baixo, não possibilitada, mas que possibilita por si só,
entendeu? (Entrevistado 2)

Essa perspectiva torna o espaço da pegação muito diferente daqueles em que o


homoerotismo está acoplado a estruturas comerciais e, justo por isso, passíveis de maior
regulação financeira. As pegações, nesse sentido, guardariam uma possibilidade de
formação de convivência entre seus praticantes mediada pela gratuidade do prazer:

Essas relações marcadas pela grana não funcionam nesse espaço. Talvez seja
o conceito de democracia mais empírico que se tem. Porque ali as pessoas
estão a fim de toque, a fim de gozar... (Entrevistado 2).

Em locais mais escuros, inclusive, fortes marcadores das relações afetivo-sexuais


na sociedade, como classe, raça, estética e conjugalidade, ficam em segundo plano. Os
homens interagem na pegação por outros parâmetros. São bandos que se agrupam, se
dividem, se encontram um pouco mais adiante; por vezes circulam sozinhos, até se
reconfigurarem em duplas. Mas isso não é necessariamente um fim em si mesmo.

Mesmo (...) essa hipervalorização do pinto grande, ela se perde ali. É uma
coisa do encontro mesmo. Do toque. Vamos nos tocar, entendeu? E não
importa quais são suas medidas. Esses conceitos criados socialmente meio que
se perdem na escuridão. A escuridão é a chave da questão, entendeu?
(Entrevistado 2)

Outro aspecto marcante dessas “comunidades” da pegação em áreas verdes se


relaciona a uma deriva das intenções sexuais. Mesmo que os ritos de caça sejam

153
conhecidos, ou seja, os olhares, as manipulações do falo, os gestos corporais que anunciam
as intenções, há certa deriva nos endereçamentos homoeróticos. Isso porque todo um
campo extrapessoal, isto é, o mato, o lusco-fusco da noite, o vai-vem dos corpos, também
compõe a performance erótica desses homens:

É extremamente antropofágica. E é diferente de: “Vamos fazer algo coletivo”.


As pessoas estão ali transando, aí chega [um], chega outro, depois outro. Aí as
pessoas vão sendo agregadas. De uma maneira muito instintiva; é uma coisa
muito do desregramento (Entrevistado 2).

Mas, se é assim, a pegação não formaria comunidades falocêntricas, isto é, pautadas


pelo poder do falo, ranqueando os homens de acordo com seus atributos de virilidade? É
possível que isso ocorra, mas não só, pois, ainda na perspectiva do Entrevistado 2, a
centralidade do falo em questão se insere na dinâmica sexual HSH. O que é relativamente
diferente da cultura de opressão machista que privilegia determinadas posições do
masculino, por exemplo, em detrimento da desqualificação/objetifiação das mulheres ou
até mesmo de outros homens que não completaram todos os signos de virilidade esperados.
Nesse sentido, a pegação masculina não se trata de uma espécie de gêmeo do investimento
erótico-assedioso de homens heterossexuais para com as mulheres nos espaços comuns da
cidade. A norte-americana Ruth Orkin, ao viajar sozinha para a Itália em 1951, caso raro
para as mulheres da época, já havia retratado em sua icônica e controversa
fotografia “American Girl in Italy”, esta clássica postura masculina em relação o corpo
feminino na via pública. Mais de meio século depois, Catherine Deneuve causou
controversa planetária ao defender o direito a cantada dos homens, liberando-os para tentar
roubar um beijo ou tocar o joelho de desconhecidas. Sua atitude causou revolta nas redes
sociais da web e foi duramente criticada pelas feministas, por seguir na completa
contramão da luta por direitos das mulheres ao longo das últimas décadas. O falocentrismo
da pegação em nada tem haver com isso, ou seja, com o estabelecimento de uma relação de
poder entre desiguais numa cultura patriarcal. Ao invés disso, o homoerotismo na pegação
ocorre entre dois seres em condição de opressão pela heteronormatividade compulsória das
populações.

É porque o masculino é muito falocêntrico. Mas não no sentido restrito da


palavra; [é] porque a gente se toca a partir do pinto mesmo. É que a gente é
homem. Só que, aí, pelo menos na minha proposta, é ver esse “falo” como

154
possibilidade e fragilidade. E não como instrumento de opressão. Naquele
espaço ali, esse “falo”, embora hipersexualizado – em todas as relações pode
ser hipersexualizadas –, mas existe uma hipersexualização consensual de todas
as partes. Não é a origem do poder na relação de poder. É isso. (...) Porque,
como é HSH, não existe (Entrevistado 2).

4.4 PEGAÇÃO MASCULINA NA CIDADE: ZONAS TERRITORIAIS AUTÔNOMAS, NÃO


LUGARES E HETEROTOPIAS

É possível pegar o pulso de uma cidade. Sentir sua palpitação, seu latejo do aqui-
agora. Nessa lógica, ela se apresenta sob certa temperatura e odores efêmeros, instáveis. A
pulsação não é regular, seu ritmo muda a depender do lugar, dos horários e tantas outras
variáveis da vida urbana. Os pulsos ou os climas de uma cidade atravessam os corpos,
fazem-se sensíveis aos viventes e se constituem um acontecimento por vezes fugaz ou até
mesmo lentificado. É uma experiência pessoal, mas também difusa, coletiva e
extraindividual, podendo constituir zonas territoriais particulares, privadas. Exemplos
dessa vivência citadina são corriqueiros, até banais: ocorrem quando caminhamos
anônimos e absortos pelas ruas ou simplesmente quando olhamos a urbe passar no lá fora
do ônibus, do táxi, do metrô.
Mas, longe de nos constituir em flâneurs contemplativos, essa experiência, antes,
nos conecta com a cidade por outra via. Pode-se, nesse caso, abrir um poro que nos permita
a passagem de uma alteridade, de uma diferença. Mais “desplugados” de nós mesmos,
suspendemos um quantum de sujeito, e hibridizamos com a urbe.
Nessa perspectiva a cidade seria uma sobreposição sem fim de zonas territoriais
sensíveis com infinitas possibilidades de diferenciação. Esse plano mais sutil e singular de
contato pode formar paisagens territoriais inteiras, com novas arquiteturas do sensível, com
cenários do invisível. Zonas territoriais desse tipo atualizam a vida citadina, fazem o
cotidiano nunca se totalizar. Fazem a vida vulgar variar em graus. Sob o efeito dessas
atualizações palpáveis, a concretude da urbe é permanentemente modulada.
Ao pegar uma cidade a pulso, sente-se as zonas territoriais sensíveis dos viventes
com os quais é possível entrar em contato. No entanto, zonas desse tipo apresentam graus
de autonomia distintos e são, com efeito, de difícil apreensão. Como se fora um animal,
delas apenas apreendemos rastros ou vestígios. Algumas respiram por si só, como poros de
diferenciação autônomos no grande tecido social.

155
4.4.1 Pegação Como Zonas Autônomas Territoriais (TAZ)

As reflexões sobre a qualidade das zonas territoriais aqui propostas se aproximam


da noção de zonas autônomas temporais (TAZ) desenvolvida por Hakim Bey:

Toda minha pesquisa e minhas especulações cristalizaram-se em torno do


conceito de ZONA AUTONOMA TEMPOÁRIA (daqui por diante
abreviada por TAZ). Apesar de sua força sintetizadora para o meu
próprio pensamento, não pretendo, no entanto, que a TAZ seja percebida
como algo mais do que um ensaio (“uma tentativa”), uma sugestão, quase
que uma fantasia poética. Apesar do ocasional excesso de entusiasmo da
minha linguagem, não estou tentando construir dogmas políticos. Na
verdade, deliberadamente procurei não definir o que é a TAZ – circundo
o assunto, lançando alguns fachos exploratórios. No final, a TAZ é quase
autoexplicativa. Se o termo entrasse em uso seria compreendido sem
dificuldades... compreendido em ação.135

Igualmente, os locais públicos da pegação são, acima de tudo, zonas territoriais


sensíveis ao homoerotismo gratuito. Como tal, fazem variar em grau o cotidiano de uma
cidade e apresentam regimes de visibilidade e invisibilidade. Constituem-se como áreas
(ou poros) de uma cidade sensível e subjetiva com características próprias. Nesta pesquisa,
nos ancoramos em alguns pontos de diálogo com a TAZ.
Segundo Bey, os piratas e corsários do século XVIII mantinham uma vasta rede de
comunicação global, formando ocasionalmente “comunidades intencionais”, “[...]
minissociedades que conscientemente viviam fora da lei e estavam determinadas a
continuar assim, ainda que por uma temporada curta, mas alegre”136. Do mesmo modo, as
zonas homoeróticas italianas emprestaram da pirataria o sentido da La abbordaggio para
nomear sua pegação e os homens franceses fazem a drague como promoção de prática
sexual pública.
Ao associar suas ideias sobre as TAZ à vida comunitária dos corsários, circunscrita
a pequenas ilhas de autonomia e liberdade, o autor, de alguma maneira, também distingue
e distancia esses locais do resto da sociedade. Num exercício de aproximação com essa
135
BEY, H. TAZ: zona autônoma temporária. DECIA, Patricia; RESENDE, Renato, tradutores. [s.l.]: Coletivo
Sabotagem: Contra-Cultura, 2009. p. 4. Disponível em:
<https://dodopublicacoes.files.wordpress.com/2009/02/taz.pdf>. Acesso: 18 out. 2017.
136
BEY, H. TAZ: zona autônoma temporária. DECIA, Patricia; RESENDE, Renato, tradutores. [s.l.]: Coletivo
Sabotagem: Contra-Cultura, 2009. p. 3. Disponível em:
<https://dodopublicacoes.files.wordpress.com/2009/02/taz.pdf>. Acesso: 18 out. 2017.

156
ideia, não se pode perder de vista que as zonas de pegação masculina, apesar de certo grau
de autonomia em relação ao seu funcionamento e também quanto à sua regulação social,
estão imersas na mesma cidade que regula esses mesmos corpos indóceis.
Evidentemente que existem mecanismos próprios de regulação dos corpos
operando dentro dessas zonas. Mas elas também se caracterizam – como as comunidades
intencionais de piratas e corsários – por certa deserção, certo desejo de invisibilidade, de
autorregulação ou mesmo de recusa à regulação do Estado. Nessa perspectiva, é possível
dizer que as zonas de pegação são como comunidades intencionais de corsários urbanos
anônimos e invisíveis: instalam-se, como num ataque pirata, de surpresa, para tempos
depois se dispersarem, deixando por vezes vestígios e rastros.
Outro ponto de diálogo que consideramos relevante tem a ver com a provocadora
noção de autonomia de Bey:

Estamos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a


autonomia, nunca pisarmos, nem que seja por um momento sequer, num
pedaço de terra governado apenas pela liberdade? Estamos reduzidos a
sentir nostalgia pelo passado, ou pelo futuro? Devemos esperar até que o
mundo inteiro esteja livre do controle político. 137

Consideramos essa passagem bastante próxima da própria noção de indivíduo na


contemporaneidade. Poderia inclusive suscitar um questionamento nuclear: estaríamos nós,
mônadas138 solitárias, vagando dali-ali, agora impossibilitados de experimentar, mesmo
que por alguns instantes, a autonomia e a liberdade? O tema levantado por Bey sobre
liberdade, autonomia e controle certamente perpassa determinadas zonas territoriais de
pegação, sobretudo aquelas que não se totalizam em identidades sexuais preestabelecidas.
Até porque as práticas sexuais podem anteceder as identidades ou deslocá-las de lugar,
borrar as fronteiras das mônadas solitárias.
Por outro lado, também não se trata apenas do ato sexual. Como apontado por um
dos entrevistados em estudo sobre a pegação em Brasília, realizado por Teixeira (2013, p.
95), esses espaços talvez influenciem a identidade gay “[...] de forma talvez inconfessável,
de práticas afetivas, de compartilhamento de solidões, anseios”.

137
BEY, H. TAZ: zona autônoma temporária. DECIA, Patricia; RESENDE, Renato, tradutores. [s.l.]: Coletivo
Sabotagem: Contra-Cultura, 2009. p. 4. Disponível em:
<https://dodopublicacoes.files.wordpress.com/2009/02/taz.pdf>. Acesso: 18 out. 2017.
138
Conceito retirado do texto Princípios da filosofia ou a monadologia, de G.W. Leibniz. Disponível em:
<http://www.leibnizbrasil.pro.br/leibniz-pdf/monadologia.pdf>. Acesso em: 8 out. 2017.

157
Em sentido diverso, as zonas autônomas temporais apresentam três características,
a saber: o status de guerrilha indireta contra o Estado; a preocupação desse mesmo Estado
com a simulação em contraposição à realidade das TAZ; e a instalação da TAZ dentro da
margem de erro da Babilônia em relação às suas abstrações139. Nessa perspectiva podemos
pensar que os espaços de pegação vivem em conflito com as leis. Não porque apresentem-
se com tal finalidade, mas porque a própria prática sexual pode ser criminalizada, caso
percebida. Assim é que tais zonas sempre têm certa dose de clandestinidade, de modulação
que subverte as abstrações binárias de gênero na administração da cidade e são fugidias à
totalização ou ao controle.
As táticas homoeróticas subvertem por emulação as simulações heterorregulátorias.
O caso da pegação em banheiro público é um exemplo: as táticas de olhar, urinar, segurar o
membro pirateiam os mesmos atos lícitos. E isso é uma margem de erro no esquema.
Assim como também é o vácuo deixado em muitos espaços públicos pela vigilância, caso
da pegação em parques públicos em horas tardias ou em áreas de “sombra”, o que torna
mais difícil capturar as instalações homoeróticas.
Para Bey, seria possível fazer um mapeamento – chamado por ele de
psicotopografia140 – de uma TAZ. Mas isso não passa pelo controle de quem mapeia, que
pode apenas sugerir e indicar algumas características. Assim é também em relação aos
territórios de pegação. Contudo, apesar de sua capacidade de dissolução e reconfiguração –
de habitar a margem de erro da Babilônia –, a depender do controle externo, tais zonas
foram, em algum momento da história, em menor ou maior grau, objeto de vigilância,
criminalização, administração ou comercialização.
Em outro aspecto, a TAZ, reconhecida como uma tática de desaparecimento, parece
afirmar determinados gestos voluntários de resistência, que mesmo a partir do anonimato
produz mudança no social. Exemplo disso pode ocorrer nos novos modos de rebelião no
campo do trabalho, da educação ou ao sistema político.141
Igualmente, o desaparecimento é um aspecto forte nas zonas de pegação masculina,
e sua afirmação é complexa e paradoxal. Por um lado, corroboram a ideia de

BEY, H. TAZ: zona autônoma temporária. DECIA, Patricia; RESENDE, Renato, tradutores. [s.l.]: Coletivo
Sabotagem: Contra-Cultura, 2009. p. 4. Disponível em:
<https://dodopublicacoes.files.wordpress.com/2009/02/taz.pdf>. Acesso: 18 out. 2017.
140
BEY, H. TAZ: zona autônoma temporária. DECIA, Patricia; RESENDE, Renato, tradutores. [s.l.]: Coletivo
Sabotagem: Contra-Cultura, 2009. p. 4. Disponível em:
<https://dodopublicacoes.files.wordpress.com/2009/02/taz.pdf>. Acesso: 18 out. 2017.
141
Idem.

158
diluição/suspensão/variação em grau de determinadas identidades sexuais exógenas a essas
zonas subjetivas, colaborando, ainda, com a criação de novas identidades sexuais que
podem ou não reconfigurar o tecido social. Por outro lado, no plano macro, sua tática de
desaparecimento baseado em um regime de práticas sexuais fugazes e hedonistas produz
pouco efeito de resistência para as mesmas identidades políticas que ajudou a construir.
Dito de outro modo, é como se a pegação masculina fosse um fim em si mesmo e as suas
revoluções ficassem circunscritas aos corpos de quem a vivencia.
Isso não impede, contudo, a existência de zonas territoriais de pegação com poder
de resistência imenso, onde se experimenta graus de autonomia e liberdade difíceis de
capturar pelas máquinas de controle. O próprio Bey reconhece que a revolução está no
cotidiano.
Mas, seria então a existência de tais zonas – independentemente dos graus de
autonomia e controle – revoluções em si mesmas? Talvez sim, pois o autor nos aponta que
a TAZ

[...] pressupõe um certo tipo de ferocidade, uma evolução da


domesticalidade para a selvageria, um “retorno”, e ao mesmo tempo um
passo adiante, (...) A TAZ é uma arte de viver em contínua elevação,
selvagem, mas gentil – um sedutor, não um estuprador, mais um
contrabandista do que um pirata sanguinário, um dançarino e não um
escatológico.142

Tal afirmação, mais uma vez, nos propõe imenso desafio. Se uma zona de pegação
pressupõe certa desconstrução da domesticalidade, numa linha de fuga selvagem às
práticas sexuais entre os homens na cidade, ela também ganha novo status para além do
hedonismo pressuposto. Isso porque se expandirmos essas zonas localizadas no aqui-agora
poderemos observar as mudanças macroestruturais que elas provocaram na história
recente.
Zonas territoriais de pegação foram o chão de certa mobilização social histórica.
Ajudaram a transformar – no tecido social – o status e as identidades eróticas a partir das
práticas sexuais entre os homens. Esse recorte, posterior às décadas de 1950 e 1960, é
visível em muitos países ocidentais. Nesse período, as zonas de pegação masculina
passaram a contribuir para a variação em grau da experiência de virilidade dos homens.
142
BEY, H. TAZ: zona autônoma temporária. DECIA, Patricia; RESENDE, Renato, tradutores. [s.l.]: Coletivo
Sabotagem: Contra-Cultura, 2009. p. 4. Disponível em:
<https://dodopublicacoes.files.wordpress.com/2009/02/taz.pdf>. Acesso: 18 out. 2017.

159
Em São Paulo, particularmente, esse processo esteve muito relacionado à expansão do
centro urbano e ao reconhecimento de determinadas identidades homoeróticas. Mas essa
assimilação não significa que parte da experiência pública da pegação ainda mantenha-se
nômade143 em alguma medida, externa a qualquer regulamentação estatal ou até mesmo
distante das próprias identidades que ajudou a fundar.

4.4.2 A Utopia e a Heterotopia do Sexo Público Casual 144

Se a pegação, em grande medida, configura-se uma zona autônoma territorial,


também há nas suas experiências constituições heterotópicas. Primeiro porque por “topia”
entende-se um espaço concreto, o mínimo de um solo de não divergência. Uma sala de
aula, por exemplo, é uma “topia” na medida em que possui uma única finalidade: de todos
estudarem. Mas o processo de aprendizagem é diferente para cada um, tornando tal
experiência muito particular. Assim, alguns farão usos do espaço diferentes de sua
proposição original, tornando-o uma heterotopia.
O mesmo se dá com os banheiros de pegação. Os seculares mictórios públicos
foram originalmente projetados e construídos para facilitar a higiene da população que
circulava nas cidades. De repente, começaram a servir para encontros sexuais furtivos. Isso
aconteceu também com muitos parques públicos. Recentemente, as escadas de incêndios
de alguns shopping centers145 passaram a abrigar relações homoeróticas. Nesse caso, feitas
para circulação de emergência dos usuários locais para fugir de eventuais chamas,
acabaram reapropriadas para prática homossexual. Todos esses espaços de pegação são,
nesse sentido, “[...] heterotopias que parecem abertas, nas quais, entretanto, só entram
verdadeiramente os já iniciados” (FOUCAULT, 2013, p. 27).
Nesse sentido, o lugar “tópico”, ou seja, destinado a um único fim, com o menor
índice de divergência, é transformado pelas experiências diversas ou heterotópicas. Nessa
situação, não necessariamente há convergências de opiniões sobre o que é. A heterotopia
configura um espaço que existe no real (caso contrário, seria uma utopia). Um parque, um
banheiro, uma escada de emergência são lugares reais, mas apresentam um nível de
divergência muito elevado acerca de como podem ser ocupados e vividos.

143
Em diálogo com: Tratado de nomadologia: a máquina de guerra livro. In: Mil platôs – capitalismo e
esquizofrenia. Vol. V (DELEUZE; GUATTARI, 2000).
144
Em diálogo com o livro O corpo utópico, as heterotopias (FOUCAULT, 2013).
145
Anotação de diário de campo.

160
A heterotopia não depende da utopia. E essa é sua generosidade, pois pode
acontecer sem que se espere. Não que ela negue um lugar. Ao contrário, ela é muito mais
afirmativa. Ela é vários lugares ao mesmo tempo. É o caso do destino dos mortos. A partir
do século XIX a cultura funerária dos brasileiros sofreu uma ruptura com a proibição dos
sepultamentos no interior das igrejas e cemitérios paroquiais. Em seu lugar, seguindo o
ideal sanitário da época, os cadáveres deveriam ser destinados para grandes áreas abertas e
mais distantes dos vivos (RODRIGUES, 1997).
Dessa demanda urbano-higienista muito específica redundou a ideia atual de
cemitério como cidade de mortos, a necrópole, para preservar a memória do falecido. E
isso é uma grande heterotopia. Já a prisão foi projetada para nunca ser heterotópica. O
grande castigo ao ser humano é privá-lo da sua liberdade pelo confinamento, logo, o
cárcere impede a fabulação utópica. O real castigo está no fato de o indivíduo não
conseguir fazer outra coisa além do aqui-agora no espaço concreto de demanda, sobretudo
numa cela lotada, onde as questões imediatas de convivência são permanentemente postas.
Similar à situação de escravo, a vida prisional é nua, reduzida ao corpo biológico. Essa é a
condição mais tópica, mais pobre de alguém, porque, como já dito, só responde ao aqui-
agora, sem fabulações. A topia crua é aquilo que aprisiona o sujeito num mundo em que
não há janelas.
Mas a prisão que deseja ser tópica não escapa à fantástica inventividade do ser
humano, que a torna uma heterotopia. Assim reconfigurada, a prisão é lugar do tráfico, de
continuação das negociatas com o mundo externo, de formação de grupos sociais, o lugar
das coisas que não têm nada a ver com as prisões.
Como uma prisão, o corpo pode ser uma “topia implacável” (FOUCAULT, 2013,
p. 7). O corpo biológico está onde está o sujeito, não há como fugir dele, porque dele
prescinde a existência de cada um de nós. Seria utópico, ressalta o filósofo francês, não
estarmos junto de nossos corpos, por meio do qual também fazemos amor, sexo, pegação.
Nesses momentos, topia e utopia se tocam, pois não há situação em que o corpo se feche
mais sobre si: denso, teso, os pelos eriçam com o toque do outro que percorre o corpo.
Tudo que estava adormecido, desperta. Nesse contato, pernas, lábios, bunda, pênis, mãos,
adquirem uma sensibilidade: “O amor, também ele, como espelho e como a morte, sereniza
a utopia de nosso corpo (...). É por isso que ele é um parente tão próximo da ilusão do
espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam,

161
amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está aqui” (FOUCAULT, 2013, p.
16).
E no caso da cidade, trata-se em si de uma experiência heterotópica? Talvez, nem
sempre. A urbe é o espaço de múltiplas experiências, algumas tomadas como ilegais, a
depender de como esse legalismo é controlado. Dito de outro modo, o espaço público é
também o lugar do ilícito, em si mesmo abrigo de transgressões.
Ocorre que, às vezes, por uma série de razões, a cidade é o lugar que favorece as
trocas, o comércio – a urbe, afinal, nasceu das feiras em volta do castelo. Ela tem clara
vocação para a diferença. Depois do século XIX, a cidade civiliza, o campo brutaliza.
Nossos gestos ficam mais civilizados vivendo em grandes cidades. Habituamo-nos a
conviver com milhares de pessoas, e há um aprendizado para isso, dado pela ideia de
processo civilizatório que a urbe impõe. A heterotopia, porém, implica vivência. Na cidade
não se age só por reflexo. É uma experiência e, como tal, subjetiva (GUATTARI, 1999).
É preciso atentar, porém, para o fato de que ser diversificada não significa que as
cidades sejam necessariamente heterotópicas. Elas são diversificadas, mas num conjunto
de regras. Quando esses limites são retirados do cenário, a heterotopia acontece. Por
exemplo, no momento em que a rua, que é lugar de passagem, se transforma em palco de
manifestações sociais, populares, numa festa, ela deixa de ser apenas uma rua. E isso é
uma heterotopia.
É nessa perspectiva que se pode dizer que as experiências de pegação masculina em
espaços públicos são, em sua maioria, heterotópicas. Dizemos isso porque elas mudam as
funções dos lugares, sem pedir autorização. O parque, o banheiro público, a área erma, a
rua vazia não foram pensados pra abrigar sexo anônimo entre desconhecidos, mas eles o
abrigam. E, quando isso acontece, alguns lugares são rebatizados por seus praticantes.
Assim, mesmo nas experiências de pegação que de tão rápidas terminam no tempo
biológico de um gozo, há muita consciência. Provavelmente, na pegação as noções de não
lugar de Marc Augé (2013) e de heterotopia de Foucault (2013) se equivalham. Pois,
apesar de diferentes perspectivas, possuem partes em comum. Muitos lugares da cidade,
como ruas, praças e até mesmo alguns banheiros públicos, podem se caracterizar como não
lugares, cujo fluxo de pessoas traz consigo uma noção de passagem, de não permanência.
Daí porque para os praticantes da pegação muitos desses locais podem abrigar experiências
heterotópicas.

162
4.4.3 O Não Lugar da Pegação ou o Lugar do Anonimato

O sexo casual, fortuito, descompromissado, de aventura entre os homens instituiu o


lugar como de pegação. À medida que vão ficando conhecidos, certamente, a relação de
anonimato modifica, em menor ou maior grau, as experiências heterotópicas nas zonas de
pegação.
Mas não é só a prática em si que define esse lugar. Muitas vezes um local de
passagem, móvel como os trens e os ônibus que circulam incessantemente pela malha
rodoferroviária da urbe, ou de trânsito intenso de automóveis e pessoas nas vias públicas e
no entorno dos serviços de transporte, esses espaços de pegação são também transitórios.
Possuem estatuto particular, modulam a comunicação, a relação com o tempo, o encontro
consigo mesmos e a experiência de solidão dos passantes na multidão. E é sob esse estatuto
que os espaços de pegação se aproximam da noção de não lugar de Augé (2013, p. 73-74):
“Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não
pode ser definido como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um
não lugar (...) nunca existe sob uma forma pura; lugares se recompõem nele; relações se
reconstituem nele”.
Sobre a prática sexual pública como o não lugar augeniano, alguém na multidão
pensaria “este lugar é bom de pegação”. Pois são mesmo espaços e circunstâncias de
recomposição, altamente contextuais, cujo anonimato é premissa e, em certa medida, a
invisibilidade de suas práticas.

São micro, microespaços, geralmente eróticos. E é puro sexo. É do toque. Por


isso que eu falo que é um atravessamento. É uma afetividade. É um
atravessamento de uma clandestinidade profunda. Porque às vezes é um
ambiente trivial (Entrevistado 2).

Embora movediços, muitas vezes efêmeros, esses não lugares de pegação são
visíveis aos poderes disciplinares 146 que organizam a vida cotidiana. Nos banheiros
públicos, como já referido, há uma atmosfera panóptica que torna visíveis os gestos dos
homens e os disciplinam para seu uso correto. A disposição das paredes, os espelhos sob a
pia que refletem todo o ambiente, os mictórios cuidadosamente organizados formam um

146
“O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em compensação impõe aos que
submete um princípio de visibilidade obrigatória” (FOUCAULT, 2007, p. 156).

163
conjunto arquitetônico antipegação. Não obstante, os próprios homens vigiam-se
mutuamente para garantir que a disciplina do gênero seja cumprida. Arriscar-se em táticas
sexuais nesses espaços requer, portanto, certa apropriação do gestual, afim de subvertê-lo
pela emulação. Quando isso ocorre, andar até o mictório, urinar e depois lavar as mãos já
não são mais simples gestos disciplinados.
Mesmo na pegação que ocorre em muitos outros espaços da cidade o processo é
instável. Por vezes banais, pois ocorrem em uma rua qualquer, um parque público, ou em
outros locais improváveis, como as escadas de incêndio de um shopping center 147. Certo é
que esses são sempre lugares de resistência, de ocupação de sexualidades desviantes na
cidade, de circulação de identidades sexuais diversas, de sobrevivência.
Nesta pesquisa observamos que o anonimato e a existência dos não lugares são
linhas constitutivas das experiências de sexo casual entre os homens. A pegação parece
muito mais capaz de conectar os corpos no enlace sexual do que fundar identidades
sexuais. Muitas vezes, essa conexão, apesar de mediada por uma série de produções
generalizantes do sujeito, coloca em suspenso essas mesmas identidades trazidas para o ato
de pegar. Parece entrar em jogo, nesse momento, uma dupla face do anonimato: por um
lado há certa dissolução/embaralhamento dos sujeitos prévios; por outro, mesmo quando se
reforçam certas identidades (por exemplo: “Sou ativo, o que você curte?”), não raro elas
têm efeito efêmero, que dura o tempo da pegação, exatamente porque as pessoas pouco se
conhecem.
Em muitos espaços de pegação existe um grupo pequeno de homens que vivem
esses espaços como única possibilidade de prazer. Portanto, não são lugares em que
ocorrem somente coisas fantásticas. Talvez seja um espaço que serve como única maneira
de uma pessoa muito tímida ou bastante reprimida usufruir de algum momento de prazer;
ou que atende à demanda por prazer dos absolutamente fóbicos, que não querem contato
ou relação com ninguém. Assim, uma vez que não servem apenas para um tipo de
experiência, é possível dizer que os lugares de pegação são polissêmicos. É possível, ainda,
admitir que servem, eventualmente, para pessoas que não querem nenhum compromisso e,
por isso, têm neles espaços cômodos para obtenção rápida do gozo.
Seja como for, o interessante nesses lugares de pegação é que eles não são apenas
isso. Servem como um revelador de muitas necessidades e características da vida
contemporânea. A despeito do grande nível de exposição e dos riscos potenciais que

147
Anotações de diário de campo.

164
representam – os perigos, a violência inerente a experimentações muito marginais –, há
entre os homens que frequentam esses espaços uma relação de cumplicidade. Primeiro
porque, a expressão do desejo desviante da heteronorma, sempre encontrará ali
acolhimento. Depois, esse acolhimento também gera certa sociabilidade entre os seus
praticantes, que não esgotam essas experiências apenas numa relação sexual. Há a partilha
de segredos, formam-se redes de solidariedade, de amizade. Enfim, há alguma
permanência no trânsito, que pode ser associada a algo como lealdade e se estabelece como
um código de honra: aquilo que se constrói não precisa ser dito; onde o outro é igual a
você, se partilha um segredo.
Indo além, é possível pensar que ocorre nesses espaços, nessas experiências, tudo o
que cada um – hetero ou homo – não consegue encaixar em seu cotidiano, não consegue
nomear (talvez, um desejo). Não consegue e nem tem necessidade de encaixar.
Nesse sentido, o que interessa a este trabalho não é a pegação em si mesma. É o
fato de que ela, a pegação, é forte reveladora de uma necessidade atual: escapar às
experiências excessivamente utilitárias e utilitaristas, e voltar-se para aquelas que não têm
nome, que não exigem trabalho, que não têm um porquê, que podem não ter futuro, que
não interessam, que não fazem parte de acordos comerciais, não são tributáveis, não têm
uma razão definida nem um interesse preestabelecido. São, em geral, gratuitas.
Nessa perspectiva, então, o tema da pegação é revelador de uma necessidade bem
contemporânea de viver experiências sem utilidade, sem propósito – a não ser ter prazer –,
sem engajamento. Mas com total abertura para o acaso.

165
5 À BEIRA DA PEGAÇÃO: IDENTIDADES SEXUAIS, (DES)COLONIZAÇÃO E NOVOS
POVOAMENTOS

Se é pra dizer que sou alguma coisa, eu sou abolicionista. (...)


Que clama por um fim de um certo mundo, (...) da
heterossexualidade compulsória, (...) em que um arranjo de
sexualidade vai definir e vai passar e atravessar toda minha
experiência de vida, (...) eu luto pelo fim da cisgeneridade
compulsória. (...) da racialidade. (...) Eu luto por um mundo [em]
que já não existem (...) regimes de poder que visam organizar
universalmente a vida, e quem tá fora e quem tá dentro [...]148

A identidade tratada como uma verdade íntima e pessoal encerra a experiência da


condição humana numa dimensão mais ou menos sólida e estável. Esse constructo social
não está indiferente às culturas e às histórias desse mesmo homem que povoa o mundo. Se
pudéssemos fazer um apanhado dessa experiência, antes mesmo de postular a identidade
como uma condição humana básica e transcendental, precisaríamos tomá-la não como uma
obra fechada e universalizante, mas algo processual e singular de quem a vivencia.
Igualmente, as pessoas carregam consigo uma multiplicidade de possibilidades.
Nessa perspectiva, poderíamos afirmar que interessa menos as identidades e mais as
relações de forças que as circunscrevem e os contextos que lhe dão sustentação. Não em
um sentido de externalidade, como persona social que facilmente se descola da carne, mas,
fundamentalmente, como estratégia corporificada, imanente, que faz a vida variar e
produzir outros modos de existir. Dizemos isso porque, provavelmente, jamais uma
identidade deve se sobrepor a esse pensamento tático. É verdade, contudo, que a identidade
individual também é feita de uma inscrição social altamente rostificável em nossos tempos.
Ainda assim, no pensamento tático ou modo de vida, não se desqualifica, como
aponta Deleuze (2008, p. 21), “[...] isto ou aquilo que é do homem [...]”; ao contrário,
valorizam-se as intensidades que atravessam e habitam os corpos humanos, “[...] cada um
descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o
habitam”.
Por outro ânglo, ressalva o filósofo francês, se tal constructo das identidades
individuais – habitada por povoamentos diversos – é tático, deve ser considerada ainda sua
característica incerta e até mesmo improvável. Pois dificilmente conseguiríamos refletir

148
MOMBAÇA, Jota [Identidade Queer?]. In: LGBTQIA: MÍNIMO DENOMINADOR COMUM, 19.11.2016, São
Paulo. 2ª CONFERÊNCIA INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL. São Paulo: CCSP, 2016. Anotação em
áudio feita pelo pesquisador durante o evento.

166
acerca de determinada identidade individual ou de um grupo sem que tivéssemos também
de considerar seu contexto e, por consequência, seus atravessamentos. Como no caso dos
homossexuais e sua inscrição patológica/criminal histórica, ou suas composições
transversais e de sombreamento – quando determinadas identidades homoeróticas
descolam-se dos esquemas identitários hegemônicos e criam outra coisa: “Eu não sei o que
sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não narcísicas, não edipianas – nenhuma bicha
jamais poderá dizer com certeza ‘eu sou bicha’” (DELEUZE, 2008, p. 21).
Entretanto, não são apenas as identidades que podem fugir do esquema da
heteronorma. Existem arranjos eróticos que igualmente representam ameaça para o
controle de gênero. Por exemplo, a hegemonia de determinadas performances masculinas
organiza os homens por ordem de virilidade. É certo que essa hierarquização apresenta
grande variação, mas há uma tendência contemporânea de atribuí-la às proporções e
expressões corporais. Ou seja, o homem viril, alinhado portanto à heteronorma, demonstra
todo seu apogeu quanto mais investido de pelo, pele, músculos, gestos e postura que
confirmam sua posição nessa gradação.
Num extremo dessa escala, sem dúvidas, estão os homens que correspondem com
seus corpos e gestos à posição de virilidade, constituindo-se até hoje como figura ideal de
macho perseguida por muitos. Noutro extremo estão os tipos ambíguos, povoados de
contradições, cujos gestos denunciam uma condição viril duvidosa. E, justamente por isso,
tornam-se alvos prediletos de abjeção da heteronorma que regula os corpos e reitera os
investimentos dos códigos de virilidade. São, nesse sentido, masculinidades
subalternizadas.
Ao longo da história essas figuras dúbias foram conhecidas como invertidos,
pederastas passivos, os primeiros a ser reconhecidos como a nova espécie humana,
chamada homossexual. Tanto que o sistema regulatório de gênero, há muito, sabe
distinguir seus gestos, reposicionar-lhes em sua “feminilidade” rechaçada. Daí porque são
esses os mais agredidos e arrancados com violência do direito à convivência com os
demais.
Numa das palestras do SSEX BBOX149, fui surpreendido pelo depoimento de uma
garota150 que declarou preferência por homens mais afeminados, sentindo-se por isso

149
2ª CONFERÊNCIA INTERNACIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL. São Paulo: [Ssex Bbox] – Sexualidade fora
da caixa, 9 a 20 de novembro de 2016. Disponível em: <http://ssexbbox.com/acervo/2016/>. Anotação feita
em diário de campo pelo pesquisador.

167
bastante questionada pelos mecanismos disciplinares da heteronormatividade. Nesse
sentido, segundo ela, para que o casal seja aceito não basta afirmar uma relação sexual
entre “opostos”; é preciso corresponder à inscrição social esperada. Para a garota, o arranjo
afetivo-erótico-sexual da díade mulher-homem afeminado incomoda o registro de controle
de gênero consagrado, o patriarcado, que toma as mulheres como prêmios de homens que,
por esse viés, confirmam sua posição viril. Incomoda bastante o homem que não cumpre os
requisitos da masculinidade hegemônica, mas que, apesar disso, tem acesso às mulheres.
Do mesmo modo, a mulher que rejeita o homem que cumpre a masculinidade hegemônica
e prefere alguém lido como “bicha”, “viado” também é importunada. Afinal, esse é um
arranjo erótico/afetivo bastante interditado.
No sentido contrário é conhecida no universo homossexual a dificuldade de muitos
em conquistar, por exemplo, uma identidade gay e livrar-se das expectativas sociais e da
família quanto à sua constituição de homem. Então, um grande contingente de
homossexuais, bissexuais, homens que sentem atração por homens (e também por
mulheres, em algum momento da vida), presos à heterossexualidade compulsória, são
levados a seguir o roteiro heteronormativo: casar, ter filhos, constituir família com o sexo
oposto. Obviamente, hoje, tal programação não é mais exclusiva dos heteros, uma vez que
a atualização das leis permitiu o casamento ou a união estável (caso do Brasil) entre
pessoas do mesmo sexo. Mas esse é um processo ainda recente e, na maioria dos casos,
distante da realidade de muitos homens.
Nesse contexto, os espaços públicos de pegação serviram como válvulas de escape
da dominação heteronormativa nas cidades, antes mesmo de uma inscrição social
homoerótica mais abrangente, isto é, com identidades, culturas e mercados próprios. A
pegação pública e anônima, em sua gratuidade, por áreas mínimas de liberdade ou
afastamento, viabilizou em certa medida a socialização de pessoas que não podiam nem em
pensamento habitar o campo homoerótico. Talvez a pegação, por expressar o que não cabe
dentro dos casamentos ou do que se espera de um heterossexual, seja a outra face dos
compromissos longos, conhecidos e estáveis.
Muitos acusam os espaços de pegação por sua promiscuidade e obscurescência, no
que, de certa forma, têm razão. A leitura, contudo, deve ser outra.
Se, por um lado, parece demasiado reduzir o campo homoerótico da vida ao sexo,
por outro, o sexo anônimo pode nos lembrar que essas existências seguem vivas, apesar de
séculos de tentativas de extinção. No limite, não é a pegação que reduz o homoerotismo às

168
práticas sexuais, mas sim a heterossexualidade compulsória, que, sob a égide do sistema
regulatório de gênero, colonizou outras possibilidades de expressão desse campo da vida.
Talvez fosse necessário defender os modos de existência que não são compreendidos pela
visão hegemônica. Ou seja, tratar de colocar em outro plano aquilo que no campo do
prazer foi sistematicamente rechaçado, discriminado, patologizado, racializado e
criminalizado, até se tornar um canto escuro e abjeto.
A pegação, porém, não se restringe à pura e simples prática sexual indócil em locais
públicos. Ela abrange um universo de táticas e códigos que até podem visar o sexo como
fim, mas nem sempre. Na verdade, trata-se de um dispositivo que dá passagem a
populações de afetos que de outra forma teriam dificuldade de existir. Os chamados atos
obscenos estão de acordo com a moral e bons costumes de uma sociedade, e isso não diz
respeito apenas a dois homens fazendo sexo. Ainda hoje, mesmo nas experiências entre
identidades gays mais “normalizadas” na convivência cotidiana, a demonstração pública de
qualquer afeto homoerótico (beijos, abraços, andar de mãos dadas) é duramente reprimida
e estigmatizada.
Além disso, contemporaneamente o tecido social urbano está costurado por uma
diversidade de expressões sexuais. Nunca, como na atualidade, a polaridade hetero versus
homo, desde que foi inventada – uma o espelho e o avesso da outra – foi tão questionada,
tão estremecida e, ao mesmo tempo, tão reforçada. O cotidiano, ele sim, ao meio-dia nas
ruas da cidade, iluminado, ensolarado, visível para quem quiser ver, é testemunha das
mudanças sociais, jurídicas e sanitárias que as produções da sexualidade, como práticas e
como fundação de identidades, vêm promovendo nas sociedades.
Ganha força, aqui, não mais uma identidade ou outra que se desgarra buscando
expressão de existência no mundo, mas sim um conjunto de novas populações, de novas
identidades fundadas pela sexualidade, seja pelo exercício do prazer, seja pelo
redirecionamento dos afetos, pela posição singular do gênero masculino ou feminino ou
mesmo pela ausência de tudo isso, em parte ou integralmente.151

151
Recentemente a Comissão de Direitos Humanos de Nova Iorque (EUA), ao invés do binário
masculino/feminino, passou a reconhecer 31 gêneros (reproduzidos a seguir ipsis litteris, porque muitos
não são de simples tradução sem uma adequada contextualização cultural: Bi-Gendered, Cross-Dresser,
Drag-King, Drag-Queen, Femme Queen, Female-to-Male, FTM , Gender Bender, Genderqueer, Male-To-
Female, MTF, Non-Op, Hijra, Pangender, Transexual/Transsexual, Trans Person, Woman, Man, Butch, Two-
Spirit, Trans, Agender, Third Sex, Gender Fluid, Non-Binary Transgender, Androgyne, Gender-Gifted, Gender
Blender, Femme, Person of Transgender Experience , Androgynous.
Disponível em: <https://www1.nyc.gov/assets/cchr/downloads/pdf/publications/GenderID_Card2015.pdf>.
Acesso em: 20 out. 2017.

169
Tais populações de indivíduos criam seus próprios códigos e formas de habitar o
mundo, se inscrevem na cultura produzindo línguas próprias, desdobram-se em novos
modelos de existir. Mas também se apropriam dos códigos convencionais dominantes que
as oprimem, emulam o opressor, bagunçam os registros de controle binarizantes dos sexos.

5.1 IDENTIDADES SEXUAIS BRASILEIRAS, DIÁLOGOS COM O SSEX BBOX 152

Parem de nos matar! Se a gente não morre, a gente vai fazer


alguma coisa.153

No Brasil, já há algumas décadas, trava-se uma luta de vida e morte entre essas
existências divergentes da norma heterossexual e da cisgeneridade – por muitos
consideradas infames e abjetas – numa batalha incessante pelo direito de viver e contra
uma sociedade que resiste em aceitá-las.
Influenciados pela militância gay estadunidense – por sua vez desencadeada
sobretudo após a revolta nova-iorquina de Stonewall, no fim dos anos 1960 – as “bichas”
brasileiras realizam forte mobilização social no campo macropolítico. O que, sem sombra
de dúvida, imprimiu na maioria das grandes cidades do país a cultura e os modos de vida
homossexuais.
Não obstante, com seus processos particulares, outras identidades desviantes da
heteronorma, como as populações de lésbicas e bissexuais, também buscaram sair da
inviabilidade e colocaram “a cara no Sol”. Essa movimentação produtora de novas
culturas, do mesmo modo, possui forte marcador político, uma vez que foi através de certo
pensamento tático que se firmaram essas mesmas identidades num lugar mais ou menos
coeso de exigência e negociação de direitos.
Enquanto na década de 1990 assistimos à emergência da sigla GLS (gays, lésbicas e
simpatizantes) como marca de uma subcultura politizada, a partir dos anos 2000 essa
mobilização política ampliou seu raio de ação, incorporando travestis e transexuais,

152
2ª CONFERÊNCIA INTERNACIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL. São Paulo: [Ssex Bbox] – Sexualidade fora
da caixa, 9 a 20 de novembro de 2016. Disponível em: <http://ssexbbox.com/acervo/2016/>. Reflexões
desenvolvidas por mim a partir da participação no evento, particularmente como espectador da mesa de
debate “LGBTQIA: mínimo denominador comum”.
153
MOMBAÇA, Jota. [Identidade Queer?]. In: LGBTQIA: MÍNIMO DENOMINADOR COMUM, 19.11.2016, São
Paulo. 2ª CONFERÊNCIA INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL. São Paulo: [Ssex Bbox] – Sexualidade
fora da caixa, 9 a 20 de novembro de, 2016. Anotação em áudio feita pelo pesquisador.

170
movimento expressado na sigla GLBT. Pouco depois, como contribuição ao processo de
desconstrução da invisibilidade lésbica, a ordem das duas primeiras letras da sigla foi
trocada e passou a ser grafada LGBT. Num último movimento linguístico, como forma de
demarcar as singularidades de cada grupo, a letra “T” vem sendo eventualmente triplicada
na sigla LGBTTT, representando travestis, transexuais e transgêneros.
Relativamente descoladas dessas identidades coesas que se mobilizam em torno de
um projeto que visa conquistar e consolidar direitos civis, é possível observar, há muito,
populações masculinas que sempre mantiveram suas práticas sexuais e homoeróticas sem
necessariamente se identificar como homens gays, por exemplo. Determinadas ações
públicas de saúde, principalmente o conjunto de políticas brasileiras voltadas à prevenção
da aids, mais sensíveis aos movimentos aglutinadores de minorias sexuais, passaram a
reconhecer esse grupo pela sigla HSH (homens que fazem sexo com homens)
fundamentando-se não numa identidade, mas numa atitude sexual.
Mais recentemente, o movimento LGBT tem se aproximado das populações que se
identificam como assexuais e intersexuais 154. Num outro aspecto, há também nesse
processo uma grande influência do que genericamente se descreve como teoria queer.155
Tratar-se-ia, então, de uma única população mais ou menos distante da
heteronorma, simbolizada agora na sigla LGBTTTIQA (lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais, trangêneros, intersexuais, queer, assexuais)? Ou de um conjunto de
várias populações que partilham, cada qual à sua maneira, as dores de um mundo que
insiste em reduzi-las ou até as aniquilar? Haveria uma negociação possível com o mundo?

154
“Esses corpos não podem entrar dentro da categoria de fêmea e macho, homem e mulher porque eles
não podem ser catalogados dentro de quatro categorias: cromossomo, hormônios, fenótipo e genitálias
(aparelho reprodutor). Então, essas pessoas que têm características ambíguas em ao menos uma dessas
caixas são hoje denominadas intersexo (...) No Brasil, (...) existe um consenso fabricado entre médicos e
família para que essas pessoas sejam normalizadas dentro de um processo cirúrgico, psicológico, terapias
hormonais.” BENCKE, Alex. [Identidade Intersexual]. In: LGBTQIA: MÍNIMO DENOMINADOR COMUM,
19.11.2016, São Paulo. 2ª CONFERÊNCIA INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL. São Paulo: [Ssex Bbox]
– Sexualidade fora da caixa, 9 a 20 de novembro de 2016. Anotação em áudio feita pelo pesquisador.
155
“Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a
expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres
homossexuais. (...) Esse termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma
vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de
contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier. Seu
alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não
escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento
homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada
e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (LOURO, 2001, p. 546).

171
Ou poderiam tais expressões ocupar um lugar tático e inquietante de denunciar, pelo local
abjeto que ocupam, as doenças dessa própria sociedade?
Num certo sentido, poderíamos visualizar a população LGBTTTIQA como a
reunião de diversas minorias que reivindicam legitimidade através das mudanças dos
códigos de convivência da sociedade que as objetificam e as encerram num lugar mais
abjeto e marginal do tecido social. Por outro lado, poderíamos também pensar que parte
dessas minorias, imbuídas de graus distintos de empoderamento, poderia deixar de ser
colonizada pela heteronorma, e, à revelia desse império, que visa sempre sua
decomposição, constituírem-se em biopotência (PELBART, 2001).
Em comum, mais do que a construção de identidades, muito provavelmente essas
siglas (e quantas mais tiverem de ser inventadas para fazer frente à uniformalização das
experiências sexuais e de gênero) representam figuras que vivenciam na própria carne
experiências de abjeção. Possivelmente, a relevância da identidade aqui é seu pensamento
tático, no sentido de viabilizar o compartilhamento de experiências e testemunhos de
violência contra as populações que são atingidas pelo sistema regulatório da
heteronormatividade. Por outro lado, ainda, essa mobilização identitária multicolorida e
repleta de letras não necessariamente consegue alcançar a zona cinza do arco-íris, onde
habitam aqueles que não têm uma letra para chamar de sua, e nem por isso estão em
situação de privilégio. 156
Resta, então, a pergunta: como seria possível também lutar por esses povos?
As identidades das minorias sexuais não se encerram em si mesmas, apesar de suas
trajetórias particulares. São muitas as linhas de composição que as sustentam. Mesmo
encarnadas em toda sorte de vida, têm em comum tentar se manter vivas num mundo que
não as quer. As pessoas atravessadas por uma composição singular da orientação sexual
dissidente da norma, como os homossexuais, têm desafios diferentes daquelxs que, com
suas identidades de gênero próprias, desafiam a cisgeneridade 157: “Incluem-se aqui

156
SALDANHA, Monica [Identidade Lésbica]. In: CONFERÊNCIA INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL –
LGBTQIA: MÍNIMO DENOMINADOR COMUM, São Paulo. São Paulo: [Ssex Bbox] – Sexualidade fora da caixa,
9 a 20 de novembro de 19 nov. 2016. Anotação feita pelo pesquisador.
157
Ser transgênero é aquele cuja identidade de gênero não está em acordo com seu sexo biológico atestado
ao nascer; o cisgênero é aquele cuja identidade corresponde à sua genitália. Nesse sentido, homossexuais
são cisgêneros, como os heterossexuais. Mas é importante deixar claro que transgêneros também têm
orientação sexual: por exemplo, mulheres trans/homens trans que se relacionam afetiva e sexualmente
com pessoas do gênero oposto (sejam cis ou trans) são classificados como heterossexuais; com pessoas do
mesmo gênero (trans ou cis), homossexuais; e com ambos os gêneros, bissexuais.

172
mulheres trans, homens trans, pessoas trans não binárias, monstras, tenebrosas e que
querem mesmo aterrorizar o sistema”. 158
Travestis, transexuais e transgêneros tencionam e desnaturalizam a cisgeneridade
pela via da despatologização de suas identidades. Contudo, mais difícil do que dar voz a
essas expressões individuais é realizar recortes interseccionais na condição de gênero,
quando esta se refere à raça e classe social, por exemplo.
Recentemente, o pensamento queer vem influenciando enormemente a maneira
como se tem pensado as identidades ou expressões sexuais, muito pelo fato de atualizar,
dentre outros aspectos, a importante crítica à heteronormatividade. Diferentemente da
experiência estadunidense, onde a cultura queer é lugar de identidade ou de não
pertencimento, portanto, de luta política, no Brasil queer não é uma figura politizável.

Sobre a ilusão do Q [queer] como lugar de identidade ou como lugar de


não pertencimento: Q não significa não pertencimento, [...] Q significa
queer, que é como a cultura estadunidense em determinado momento da
sua curva histórica concebeu o não pertencimento. É preciso marcar:
queer não significa não pertencimento, significa uma coisa específica,
vinda de um lugar específico. E se a gente não marca isso, a gente (...), a
colonialidade de saber (...), presume que o que se produz no eixo
estadunidense pode ser globalizado. (...) Pra mim, o queer está ligado a
esta falta de memória. (...) Queer no Brasil (...) tem a ver com esse
processo sistemático de apagamento da memória, que tem a ver também
com colonialidade. Esse apagamento da memória é parte do projeto
queer, quando (...) sai dos Estados Unidos e é globalizado. E isso implica
se difundido no circuito das ex-colônias de Terceiro Mundo.159

Desse modo, assim como as diversas identidades sexuais dissidentes da


heteronorma, frequentemente representadas na sigla LGBTIA, a perspectiva queer não
pode ser tomada como um modelo universalizador de articulação política de pessoas não
heterossexual e não cisgênero ao redor do mundo. Ou seja, mesmo em grandes cidades
como São Paulo, Londres, Nova Iorque, Paris, Xangai, Tóquio e Sydney, por exemplo, é
improvável que encontremos as mesmas experiências de comunidades LGBTQIA. 160

158
LOPES, Angela. [Identidade Trans]. In: CONFERÊNCIA INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL –
LGBTQIA: MÍNIMO DENOMINADOR COMUM, São Paulo. São Paulo: [Ssex Bbox] – Sexualidade fora da caixa,
9 a 20 de novembro de 2016. Anotação feita pelo pesquisador.
159
MOMBAÇA, Jota [Identidade Queer?]. In: LGBTQIA: MÍNIMO DENOMINADOR COMUM, 19.11.2016, São
Paulo. 2ª CONFERÊNCIA INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL. São Paulo: [Ssex Bbox] – Sexualidade
fora da caixa, 9 a 20 de novembro de 2016. Anotação do pesquisador. Anotação em áudio feita pelo
pesquisador.
160
Idem.

173
Do mesmo modo, nas experiências de pegação entre homens em espaços públicos
encontramos expressões análogas mundo a afora. Longe de se igualarem, no entanto, é
mais provável que a existência dessas comunidades em diversas partes do planeta aponte
para estratégias e táticas para lidar com a abjeção, uma forma de pertencimento para quem
está “[...] fora do sistema de compreensão social [...]” ou enfrentar “[...] essa sensação de
estar sendo reiteradamente colocado pra fora de qualquer sistema plausível”. 161
No que tange aos chamados HSH, não são necessariamente uma população política,
mas compreendem diversas identidades sexuais masculinas – homossexuais, bissexuais e,
até mesmo, heterossexuais ou nenhuma destas. Não se trata de um povo que reivindica
uma identidade para si; talvez solicite uma população de afetos. Não obstante, porém,
dedica parte substancial de sua experiência subjetiva na cidade à pegação. Assim, é
possível supor que o que é realmente ameaçador para heteronormatividade na pegação é
sua tática não identitária, que torna mais difícil a rostificação. Ela opera uma inteligência
do não pertencimento e não cobra o tributo da filiação para ocorrer. Está espalhada pelo
tecido social, independente dos terrenos anexos ao mercado gay urbano. Por isso mesmo,
as experiências de pegação não são coesas ou universalizáveis, apesar de seu território
(instalações) estar sempre muito próximo do mundo colonizado do prazer e das práticas
eróticas.
Vimos que a pegação, como a concebemos neste trabalho, existe em diversas partes
do globo, mas seu modo de operar obedece a contextos locais. Se as táticas de
sobrevivência se assemelham é porque em comum compartilham a rejeição da
heteronormatividade cada vez mais hegemônica. Sua própria existência tática dá-se muito
por seu aspecto contingencial e pela possibilidade de viver novas experiências de estar
junto na vida urbana, além daquelas já conhecidas, autorizadas e domesticadas.

5.2 IDENTIDADE, DESCOLONIZAÇÃO E NOVOS POVOAMENTOS

É possível postular que no pensamento tático de toda identidade, bem como de seu
processo de produção, com seus atravessamentos e sombreamentos, há sempre certo grau
de negociação. Por exemplo, a questão da identidade homossexual é uma via de disputa

161
MOMBAÇA, Jota [Identidade Queer?]. In: LGBTQIA: MÍNIMO DENOMINADOR COMUM, 19.11.2016, São
Paulo. 2ª CONFERÊNCIA INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL. São Paulo: [Ssex Bbox] – Sexualidade
fora da caixa, 9 a 20 de novembro de 2016. Anotação do pesquisador. Anotação em áudio feita pelo
pesquisador.

174
entre determinadas forças modernas que colonizam os territórios eróticos da experiência
humana e a resistência homoerótica. Esta última em constante atualização para se descolar
da colônia heteronormativa e afirmar modos mais ou menos duráveis de existir no meio do
império.
A tentativa de descolonização desse erotismo ou das táticas de prazer passa pelo
território do vivido, e o limite desse processo é o quanto é possível descolonizar. Talvez
nas grandes cidades contemporâneas seja difícil a existência de sujeitos completamente
descolonizados em seu sexo, em seu prazer. Mas podemos pensar a descolonização do
prazer em graus. Descolonizar, habitar outros territórios sexuais, mesmo que por um breve
momento, e depois recolonizar a mesma ou outra identidade.
Mas do que trata esse movimento de descolonização? Como podemos pensá-lo sem
ao mesmo tempo o aniquilarmos? Colonizar significa, genericamente, povoar determinado
território. Hoje a humanidade, com suas ideias e tecnologias, sonha em povoar Marte, por
exemplo. Mas, desse e de outros tantos povoamentos quais vidas estariam autorizadas a
participar? Quais modos de existir prevaleceriam frente a outras possibilidades?
Descolonizar não é necessariamente subtrair um povoamento em detrimento de um retorno
ao nada, ao vazio ou ao deserto. É, antes, permitir que outros povoamentos também
aconteçam.162
No caso da sexualidade, aquilo que a descoloniza envolve uma negociação com o
devir, ou seja, uma composição imanente, segundo suas possibilidades e potências, de
atravessamentos singulares, impessoais e solidificações individualizantes. Mas num mundo
que só se enxerga pelas lentes colonializantes isso acaba sendo reduzido, ficando em
grande parte até mesmo como vida desconhecida 163. Por isso mesmo, iluminar (ou a recusa
disso) experiências sexuais como as da pegação é, sobretudo, uma questão ética, estética e
política. Daí a importância de pensar as práticas sexuais gratuitas e anônimas numa
perspectiva descolonizante, ou sob categorias da vida que lhes são próprias, implica dizer
com suas potências e suas capacidades de produzir afetações. Ocorre, contudo, que “[...]

162
SCHIAVON, João Perci. [Novos Povoamentos]. In: Palestra proferida em discussão com a apresentação
dos Grupos de Trabalho do SEMINÁRIO NOVOS POVOAMENTOS, São Paulo, 30 set. 2016. 2h24m17s. São
Paulo: PUC-SP, 2016. 1h08m21s-2h23m14s. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=64unQhHj8DU>. Acesso em: 2 jan. 2017.
163
Idem.

175
quase nunca essas categorias da vida aparecem sem misturas. (...) [Sem] uma certa mistura
de fascismo”.164
As linhas de fuga165 que compõem essa vida descolonizada, e que é também
descolonizante, não são simples de decifrar. Isso porque a linha de fuga não se explica por
aquilo que foge, mas, sim, por sua imanência, por ela mesma. Sua força pulsional tem uma
potência de escolha, uma potência ética. Por isso, a errância descolonizante não é como
retornar a um deserto ou chegar a lugar nenhum: “Existe uma retidão da força na errância,
existe (...) um exercício ético do qual não se pode abrir mão de modo algum. Isso se chama
desejo, em psicanalise”.166
Quando pensamos sobre o debate das dissidências devir-prazer, das sexualidades
desviantes da heteronorma e a tarefa de discernir as linhas da vida que atravessam tais
experiências das que não são, certas linhas não se apresentam sem mistura. Aqui, há uma
tensão colocada entre categorias que parecem opostas, como indivíduo versus devir;
identidades sexuais versus aquilo que não se cria como identidade; movimento que é
instituído em relação às categorias sexuais (e, portanto, passível de uma determinada
captura) versus um movimento que é mais instituinte (singular e com maior ressonância
junto às categorias da vida).
Tais paradoxos parecem fazer parte de um mesmo campo, e, por isso, criam assim
uma determinada espessura. Como se aquilo que é dissidente surgisse em certa medida
dessa espessura. Nesse sentido, existem movimentações dissidentes que divergem das
identidades sexuais instituídas mais rígidas, ou seja, daquilo que está mais pronunciado à
captura. Existem, portanto, movimentos de dissidências que dialogam com mais força com
os fluxos da vida.
Quando pensamos na mistura dessa espessura, não estamos nos referindo a um
caldeamento ou amalgama perfeita e insolúvel. Trata-se mais de adensamentos carregados
de imperfeições, borramentos, formações mais ou menos definidas. Mesmo nas categorias
sexuais nascidas e dominadas por um horizonte biopolítico e de poder disciplinar, como
aquelas cunhadas pela forte história de patologização e criminalização segundo seu grau de
desvio da heteronorma, algo emana, escapa e cria determinada resistência, que é de novo
recapturado e de novo investido de resistência.

164
Ibidem, 1h34m20s-1h34m34s.
165
Ver texto “Políticas de Deleuze”. In: Diálogos de G. Deleuze e Claire Parnet. Tradução de Ribeiro, Eloisa
Araújo. São Paulo: Escuta, 1998.
166
SCHIAVON, João Perci, op. cit., 1h42m3s-1h42m20s.

176
É exatamente nesse jogo secular polarizado de captura e ruptura, que não cessa de
atualizar-se, que se produz uma espessura, ou zona de contato, repleta de povoamento entre
esses dois lados. Talvez em nenhum outro assunto do humano essa mistura seja tão densa
quanto na sexualidade. Entre o polo mais molecularizado das forças da vida e o outro mais
regulado pela ordem disciplinar e pelo biopoder, a sexualidade vem fundando sujeitos ao
longo da história, bem como dando acesso ao extrapessoal, aos novos povoamentos
eróticos.
Reside nesse paradoxo (nas misturas), porém, um impasse fundante, dado pelo
pensamento tático, estratégico, já que as misturas não impedem que se pense a questão a
partir das categorias da vida. Portanto, não se trata de cancelar identidades ou demais
arranjos da sexualidade, mas sim de contextualizá-las a partir de suas estratégias.167
Ainda assim, independentemente da colonização da dimensão erótica da vida,
marcada pela heteronormatividade compulsória das populações, novos povoamentos
também pedem passagem para habitar o mundo. Eles estão em diversas partes, possuem
lógica, natureza e modos de funcionar próprios. Não obstante, até podem ser mapeados,
embora não completamente explicados. 168
Mas, em que medida os espaços de pegação masculina nas cidades se constituem
novos povoamentos em relação à heteronorma? Em certo sentido, essa questão nunca
estará plenamente esclarecida, pois esses lugares são subsidiários da própria construção
moderna da heteronormatividade. Igualmente verdadeiro é o fato de que essas ocupações
homoeróticas, em seu exercício de prazer e seus desregramentos, estremecem o entorno.
Considerando que os territórios de pegação não agregam vidas desconhecidas ou
descolonizantes sem misturas, apresentam também seus fascismos e seus próprios
processos de captura. Nessa espécie de flanerie sexual, por exemplo, são conhecidas as
relações de poder segundo a virilidade vigente, como a supervalorização do falo, dos
atributos de beleza, da performance do macho viril. Nessa perspectiva, são compatíveis

167
SCHIAVON, João Perci. [Novos Povoamentos]. In: Palestra proferida em discussão com a apresentação
dos Grupos de Trabalho do SEMINÁRIO NOVOS POVOAMENTOS, São Paulo, 30 set. 2016. 2h24m17s. São
Paulo: PUC-SP, 2016. 1h08m21s-2h23m14s. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=64unQhHj8DU>. Acesso em: 2.jan.2017.
168
PELBART, Peter Pál. [Novos Povoamentos]. In: Palestra proferida durante a Mesa Redonda do
SEMINÁRIO NOVOS POVOAMENTOS, São Paulo, 30 set. 2016. 1h24m26s. São Paulo: PUC-SP, 2016.
0h05m15s-1h05m24s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=64unQhHj8DU>. Acesso em: 2
jan. 2017.

177
com os processos heteronormativos da cidade em geral, que acabam por produzir um
ranking entre os homens.
No contexto da pegação, por exemplo, homens que de certa maneira estão na
invisibilidade da história têm poder, mas, fora desse território, não mantêm a mesma
posição de privilégio. Podem, inclusive, só contar com esses espaços para o exercício da
sua sexualidade. Muitos, em posição de destaque na cidade pornográfica, fora dela, em
suas vidas cotidianas, sofrerem os efeitos da abjeção e da desvalorização da
heteronormatividade.
Ao mesmo tempo, esses homens lidos como infames dão testemunho a um limiar
de vida difícil de explicar na perspectiva binarizante das identidades sexuais. Em meio a
uma existência corriqueira e ordinária, abalam a normalidade cotidiana. Por suas táticas, a
linha erótica que atravessa os corpos nesse tempo-espaço particular produz um campo
extrapessoal insaciável e identidades provisórias, mal acabadas, repletas de gestos
singulares, emulações e simulacros que fazem pouco sentido fora da li. Uma vida sobre a
qual se sabe muito pouco, que não se explica, apenas se experimenta: “Há aí um excesso
que já não pode ser domado, domesticado, normalizado e diante do qual nós nos sentimos
como que impotentes, ainda que tal impotência seja o signo de que em nós está sendo
mobilizada uma potência superior”.169
Há territórios de pegação que se instauram em instantes; outros, de tão antigos,
acolheram gerações. Mesmo assim sua existência desafia as explicações criminais,
sanitárias, psicológicas, sociológicas. Com isso insistem, oscilantes, em continuar
frequentando este mundo. Contudo, tais territórios homoeróticos provisórios, mesmo que
“[...] pareçam doentios, na verdade (...) lançam sobre o entorno uma luz lívida através da
qual (...) iluminam as doenças do entorno. (...) Eles diagnosticam as doenças do entorno
dominado, este entorno, pelo homem-branco-ocidental-racional-eurocêntrico-colonialista-
machista-heteronormatista etc. etc.”.170
A existência de tais espaços coloca em xeque, mesmo que temporariamente, toda a
domesticação do prazer que, pouco a pouco, ao longo dos séculos, decantou-se em
identidades sexuais mais ou menos estáveis num organismo masculino investido de
máquinas de captura por excelência, vigilantes do gênero, conferentes das virilidades e dos

169
PELBART, Peter Pál. [Novos Povoamentos]. In: Palestra proferida durante a Mesa Redonda do
SEMINÁRIO NOVOS POVOAMENTOS, São Paulo, 30 set. 2016. 1h24m26s. São Paulo: PUC-SP, 2016. 16m28s-
16m49s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=64unQhHj8DU>. Acesso em: 2 jan. 2017.
170
Ibidem, 19m17s-19m52s.

178
sexos. No sentido da decomposição desse organismo masculino secular, então, é preciso
“[...] sim fazer morrer, fazer algo morrer, esquizofrenizar, tornar a vida aberrante para
livrá-la daquilo que a impede de respirar ou de expandir-se ou de atingir o seu ponto
máximo. Em outros termos, é preciso atingir algo do invivível na vida”. 171
Nessa perspectiva, o que nos interessa é a experiência da pegação vivida
clandestinamente, entre fugacidades e incertezas promotoras de prazeres fundamentais para
continuar a viver o peso típico das metrópoles atuais. Porque ela permite que outros
povoamentos aconteçam no tecido social, para além da heteronorma.
Há existências que, para se instaurar, precisam de um dispositivo, seja ele clínico,
social, comunitário, sexual ou libidinal. De algumas, sabemos mais de seus rastros do que
propriamente de suas definições. Frestas e furos nas paredes dos banheiros públicos e
recados anônimos convidativos escritos são vestígios mais concretos que avisam sobre o
povoamento da pegação na cidade. Ao mesmo tempo, seu território pode instaurar-se de
maneira mais volátil, sendo seus limites traçados pelos ritos quase universais de quem a
pratica.
Essa dimensão, de difícil apreensão, suscita um questionamento: será que devemos
nos ater à existência ou não de um território de pegação definido e na identificação de seus
praticantes? Muito provavelmente há gradações diversas para essa lascívia. É possível que
alguns homens apenas passem de vez em quando por esses locais; outros, habitués tenazes,
compartilham não apenas os prazeres fortuitos de um coito, mas também sonhos, afetos,
convivência mútua e acolhimento na escuridão da urbe.
Por isso, o perambular citadino dessas figuras homoeróticas impessoais em busca
de prazeres triviais não segue sem propósito. Sua gratuidade e peculiar ocupação de áreas
públicas nos indicam que “[...] há algo forte demais na vida, ou intenso demais, que só
conseguimos viver no limite de nós mesmos. (...) Ou seja, a vida só passa a valer na ponta
dela própria”172. Isso porque é justamente na borda ou naquilo que o sistema regulatório da
heteronorma compulsória não consegue apreender completamente que esse movimento
acontece.

171
PELBART, Peter Pál. [Novos Povoamentos]. In: Palestra proferida durante a Mesa Redonda do
SEMINÁRIO NOVOS POVOAMENTOS, São Paulo, 30 set. 2016. 1h24m26s. São Paulo: PUC-SP, 2016. 21m6s-
21m31s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=64unQhHj8DU>. Acesso em: 2 jan. 2017.
172
PELBART, Peter Pál. [Novos Povoamentos]. In: Palestra proferida durante a Mesa Redonda do
SEMINÁRIO NOVOS POVOAMENTOS, São Paulo, 30 set. 2016. 1h24m26s. São Paulo: PUC-SP, 2016. 25m25s-
25m56s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=64unQhHj8DU>. Acesso em: 2 jan. 2017.

179
Talvez, antes de nos perguntarmos quais populações emergem desse movimento,
quais suas formas, seus jeitos de ser, seu estatuto identitário e o que reivindicam neste
mundo, devemos reconhecer a própria fragilidade desse lampejo existencial que se
testemunha no meio das cidades 173. Mesmo assim, essas ocupações libidinais dissidentes
que povoam diferentemente o mundo, por vezes, estão perto demais da vida cotidiana que
segue.
Retomamos aqui a ideia exposta no capítulo 1 desta tese que postula haver sempre
uma luta de vida e de morte nas pegações porque esses territórios de prazer se instauram
invariavelmente em locais de intensas atualizações de controle de gênero (como os
banheiros públicos) ou bagunçam a ordem privatista-consumista que domina as cidades
quando ocorrem, por exemplo, nas escadas de incêndio de um shopping center.
Mesmo sob relativa invisibilidade, os espaços de pegação são ocupações
contingenciais formadas por gestos, línguas e estatuto próprios. Provavelmente, contudo,
guardam um elemento que não foi visto por religiosos, médicos, criminalistas ou cientistas
sociais que acompanharam suas inscrições na cidade ao longo da história: a dissidência.
Ela não está tanto em não seguir à risca a heterossexualidade compulsória dos demais nem
em não pedir licença para realizar suas práticas. Talvez a grande dissidência dos homens
na pegação esteja no fato de seus corpos masculinos darem passagem a povoamentos
libidinais que não existiriam sem a solicitude deles. Trata-se de existências mínimas, que
de tão reduzidas escapam em parte pelos furos da peneira da disciplinarização e controle
dos corpos. São seres vascilantes, transitórios que se instauram num território sexual de
prazer para logo em seguida desaparecerem. Disso, provavelmente, surge a necessidade de
outra perspectiva, de perguntas que partam de outras configurações, que captem outros
modos de ser ou lidar com o prazer.
Mesmo com todo o trabalho desenvolvido até aqui, ainda nos restam indagações
científicas a ser respondidas em futuras pesquisas. A saber: que dores e prazeres os
habitantes desses espaços de pegação carregam? Como lidam com as ameaças e os riscos
para realizar seu erotismo? Em que medida esses territórios libidinais nômades existem por
si só ou, ao contrário, o quanto sua existência depende dessa justaposição da sociedade que
os cerca? Quanto será que eles dependem de nós para existir? Quais seriam seus
desfalecimentos, esgotamentos, suas cristalizações? Possuem direito ao desaparecimento?
Quais possibilidades de vida são criadas a partir desse engate libidinal? Quais potenciais

173
Ibidem, 1h24m26s.

180
virilidade são expressas pelas experiências sexuais ainda sem nome e sem lugar estável na
cidade? Qual será o quantum de libido a agenciar esses povoamentos, que afinal pertencem
a todos nós? Sobretudo “[...] quais dispositivos caberia ativar, seja para lhes dar voz, seja
para dá-los a ver, seja para deixá-los se esquivarem ao nosso olhar?” 174

5.3 A SOBREVIVÊNCIA DO HOMOEROTISMO NAS CIDADES: ÚLTIMAS PEGAÇÕES

Se apaixonar, se apaixonar mil vezes por noite. Mil homens, seus


pelos, seus cheiros. Mil volumes. Mil cenas. Mil formas de se
arriscar. Mil mortes, grandes e pequenas. Mil gozos. Mil arrepios
na nuca. Mil desejos e vontades de fazer, mil nãos e alguns talvez.
Mil perdões, amor te amo! A libélula... Mil libélulas. O erótico. O
risco de morte e a morte do desejo. O gozo num banheiro sujo...
morre-se assim... existe algo de muito carnal aqui... ah como é
difícil fazer as palavras falarem das imagens que o corpo
desejante produz! Por mais que eu as esfregue na pele, elas não se
contaminam por esse gosto, pelo contrário, elas esfolam lixando a
superfície. Elas, as palavras, tão angulosas, ferem as mucosas
(RODRIGO, 2016, p. 33).

Ao longo deste percurso doutoral, a partir da metodologia utilizada, ordenamos os


achados acerca da pegação masculina em áreas de acesso público da cidade considerando a
multiplicidade histórico-geográfica desse acontecimento mundano. No processo de revisão
bibliográfica e documental priorizamos os materiais cujo enfoque relacionava-se
diretamente com o tema. Mas, também, pinçamos das obras que abordam a
homossexualidade de modo geral passagens que lidam com a pegação nos termos que
conceituamos.
Assim, num primeiro sentido, apresentamos o secular processo de
criminalização/patologização das práticas sexuais entre homens que atravessa a
experiência subjetiva de quem se arrisca em tais práticas ainda hoje. O sentimento de medo
e vergonha que envolve o homoerotismo está atrelado a esse modo de subjetivação da
pegação.
Já na primeira etapa desta pesquisa foi possível explorar um universo
multifacetado, igualmente produtor de subjetividade, isto é, plural em produção cultural,

174
PELBART, Peter Pál. [Novos Povoamentos]. In: Palestra proferida durante a Mesa Redonda do
SEMINÁRIO NOVOS POVOAMENTOS, São Paulo, 30 set. 2016. 1h24m26s. São Paulo: PUC-SP, 2016. 33m18s-
33m32s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=64unQhHj8DU>. Acesso em: 2 jan. 2017.

181
sujeitos, performances, inclusive com linguagem própria, que, a despeito de diferentes
formas de controle, está presente em diversas sociedades. Para além das táticas de
sobrevivência em um mundo que as repele, foi possível verificar ainda que essas
expressões homoeróticas infamadas pela história são produtoras não apenas de um alívio
imediato a partir do sexo, como também lidam com um conjunto de afetos, territorialidades
e formas de estar no mundo. As experiências pinçadas de diversos países apresentam
ressonância nesse sentido, seja pela vibração homoerótica, seja pelos condicionantes
externos com os quais precisam lidar.
Posteriormente, no processo de pesquisa de campo e entrevistas, essa dimensão
ficou mais evidente. Foi possível verificar, sempre buscando não expor em demasia os
segredos de seus praticantes, um lugar de produção de subjetividade complexo, pouco
considerado por estudos acadêmicos que, não raro, recortam essa população simplesmente
como HSH. Realmente, é possível dizer que o que une todo esse jogo homoerótico
masculino talvez seja a busca, a possibilidade ou a realização de sexo. Mas, por isso
mesmo, tal investimento traz consigo atravessamentos corporais e afetivos também
produtores de subjetivação. Possivelmente, a principal contribuição desta tese esteja,
sobretudo, em aventar esse aspecto.
Nessa perspectiva, há um campo que se abre entre as práticas sexuais desses
homens e as discussões acerca do homoerotismo em meio à urbe. O psicanalista Jurandir
Freire Costa (1992) considera que a noção ultrapassada de homossexualismo ou mesmo o
conceito atual de homossexualidade são capítulos de uma história mais ampla do
homoerotismo. Contudo, figuras homoeróticas não são pontos fora da curva da sexualidade
humana; tipos geneticamente diferenciados e destacados da maioria das pessoas. Até
porque nem de longe somos os únicos animais a exercer esse campo da vida. O
homoerotismo, antes de tudo, é uma qualidade da relação das pessoas e não
necessariamente de indivíduos isolados. Estes últimos, assim como suas práticas sexuais,
são constituídos em relação aos seus contextos e suas histórias.
É possível que em muitas sociedades, diferentes da nossa, esse campo da vida
possua outro valor, uma vez que se trata de uma dimensão constitutiva dos agrupamentos
humanos em contextos histórico-geográficos dos mais diversos. Mesmo que seu modo de
subjetivação convirja para noção de identidade das pessoas fincada nas práticas sexuais, é
provável que sua inscrição no mundo varie imensamente.

182
Contudo, também esse olhar mais ampliado sobre o homoerotismo não significa
defini-lo como um atravessamento transcendental no laço social. Longe disso, o campo
homoerótico é propagado por modos de produção de subjetivação dos mais diversos. É
atravessamento singularizante, produtor de diferenciação, de inventividade de novos
mundos, de novos afetos. E isso em nada exclui o desejo de quem os sente. Talvez por isso
mesmo também o homoerotismo é alvo de dispositivos religiosos, criminais e patológicos
igualmente produtores de outras subjetivações, pois inscrevem no mundo, por exemplo,
regimes de abjeção e de controle de comportamentos, tipos psicológicos etc.
Assim, nossa sociedade está em permanente negociação ou disputa de sentido com
a porção homoerótica que lhe é própria. À pesquisa acadêmica resta o compromisso ético
de ajudar a entender essas relações. A sobrevivência da pegação na perspectiva trabalhada
nesta tese certamente se mostrou uma temática fecunda para tal tarefa.

183
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195
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia:
Psicologia Clínica

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - TCLE

Convidamos o (a) Sr (a) para participar da Pesquisa “A CIDADE VIRIL: Notas sobre a
produção de masculinidades nos espaços públicos de pegação”, sob a responsabilidade
do pesquisador Anselmo Clemente, a qual pretende estudar a constituição da
experiência da chamada pegação sexual masculina em alguns lugares da cidade de São
Paulo na época contemporânea. Sua participação é voluntária e se dará por meio de
entrevista aberta em que será pedido que fale livremente sobre o tema da pesquisa. A
entrevista terá gravação de áudio apenas com sua autorização que deverá ser sinalizada
com “X” ao final do Termo.
É importante ressaltar que a pesquisa não apresenta risco humano direto de nenhuma
natureza e apenas pode apresentar como risco mínimo, o eventual constrangimento do
participante em falar sobre o assunto. O conteúdo das gravações será transcrito e
utilizado parcialmente e integralmente de forma anônima ou atribuída a nomes fictícios.
Contudo, caso deseje sua identificação atribuída aos dados extraídos da entrevista, por
gentileza marque com “X” a opção relacionada ao final do termo.
Se você aceitar participar, estará contribuindo para a ampliação do debate do Direito
Sexual e do Direito à Cidade e ampliação do conhecimento cientifico junto a uma
temática ainda pouco estudada no país nesta área de saber. Se depois de consentir em
sua participação o Sr (a) desistir de continuar participando, tem o direito e a liberdade
de retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, seja antes ou depois da
coleta dos dados, independente do motivo e sem nenhum prejuízo a sua pessoa.
O (a) Sr (a) não terá nenhuma despesa e também não receberá nenhuma remuneração.
Os resultados da pesquisa serão analisados e publicados, mas sua identidade não será
divulgada, sendo guardada em sigilo. Exceto, como dito anteriormente, se expressar
interesse que sua identidade atribuída aos dados. Para qualquer outra informação, o (a)
Sr(a) poderá entrar em contato com o pesquisador no endereço eletrônico

196
anselmo_clemente@hotmail.com, pelo telefone (11) 962990342, ou poderá entrar em
contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP – Sede Campus Monte Alegre,
no andar térreo do Edifício Reitor Bandeira de Mello, na sala 63-C, na Rua Ministro
Godói, 969 – Perdizes – São Paulo – SP – CEP: 05015-001 – Tel./FAX: (11) 3670-8466
– e-mail:cometica@pucsp.br

Consentimento Pós–Informação

Eu, ,
fui informado sobre o que o pesquisador quer fazer e porque precisa da minha
colaboração, e entendi a explicação. Por isso, eu concordo em participar do projeto,
sabendo que não vou ganhar nada e que posso sair quando quiser. Este documento é
emitido em duas vias que serão ambas assinadas por mim e pelo pesquisador, ficando
uma via com cada um de nós.

Autorizo gravação em áudio da entrevista

Não autorizo a gravação em áudio da entrevista

Desejo que minha identidade seja atribuída as minhas declarações na entrevista

Assinatura do participante

Data: / /

Assinatura do Pesquisador Responsável

197

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