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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

CIDADANIA EM POLÍTICAS PÚBLICAS


VOLTADAS PARA MULHERES EM SITUAÇÃO
DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Carolina Marra Simões Coelho

PUC/SP
São Paulo
2005
Carolina Marra Simões Coelho

CIDADANIA EM POLÍTICAS PÚBLICAS


VOLTADAS PARA MULHERES EM SITUAÇÃO
DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Psicologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Salvador Sandoval.

PUC/SP
São Paulo
2005
Carolina Marra Simões Coelho
Cidadania em políticas públicas voltadas para mulheres em situação de violência de
gênero

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em
Psicologia Social.

_________________________________

_________________________________

_________________________________
Para Iracema.
Para Lúcia.
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Salvador Sandoval, sempre atencioso e acessível, pela orientação


pragmática e bem humorada.

À Profa. Lúcia Afonso. Não existem palavras para agradecer sua solidariedade e
amizade irrestritas.

Aos Prof. Antonio Ciampa e Profa. Cristina Vicentin pelas contribuições que deram
na qualificação, permitindo que esse projeto amadurecesse.

Às entrevistadas, por compartilharem comigo suas experiências, enriquecendo de


modo inestimável essa pesquisa. À Profa. Karin von Smigay, pelas generosas
contribuições, e à Márcia de Cássia Gomes, pelo incentivo constante.

À Cássia Batista, Geisa Ferreira, Prof. José Newton Garcia, Renato Diniz e Telma
Gonçalves, pela atenção na difícil tarefa de encontrar o caminho por onde começar a
trabalhar. Ao Prof. Mário Lúcio Vieira pela disponibilidade com que sempre acolheu
minhas preocupações.

Aos professores da UFMG e da PUC-SP, especialmente a Profa. Sandra Azeredo,


Profa. Maria Emília Torres e Prof. Raul Pacheco.

A João Marcelo e equipe do Centro Sérgio Buarque de Holanda de Documentação e


Memória Política da Fundação Perseu Abramo, que disponibilizaram seus arquivos
contribuindo de modo valioso para esse estudo.

Aos colegas do Núcleo de Psicologia Política que me acompanharam, com amizade,


não apenas na realização de projetos acadêmicos, mas também em outros
momentos importantes durante o curso.

Aos colegas de mestrado da UFMG, da PUC-SP e da Unicamp, com quem


compartilhei as angústias e alegrias do cotidiano de um pós-graduando. Ao
Alexandre e Agnaldo, amigos e interlocutores, pelos comentários e sugestões. E a
todos os amigos mineiros e paulistas pelo carinho e paciência.

Ao André, meu irmão, por ter sido um grande companheiro em todas as mudanças
que vivemos nos últimos anos.

Ao Luish, que apoiou todas as minhas escolhas e tornou os meus dias mais felizes,
por ter estado sempre a meu lado.

Agradeço especialmente a meus pais, que me ensinaram o prazer do estudo e que o


mais importante na vida são as pessoas.

Finalmente, agradeço ao CNPQ pelo financiamento desta pesquisa.


Resumo

Nesta pesquisa procuramos mapear os sentidos de cidadania em dimensões


relevantes para a Psicologia Social: o gênero e a violência contra mulheres. A
introdução de uma perspectiva de gênero – através da luta do movimento de
mulheres pelo fim das discriminações de gênero – pode levar a uma ressignificação
da própria noção de cidadania. No entanto, a violência ainda é um obstáculo real e
cotidiano para a cidadania das mulheres, visto que toda violência desrespeita a
condição de sujeito e viola os direitos humanos básicos. Assim, é fundamental
tratarmos as dimensões psicossociais da cidadania, trabalhando a interface entre
cidadania e subjetividade. Frente a isso, o objetivo principal da dissertação foi
analisar os discursos sobre cidadania de mulheres que são militantes no movimento
de mulheres e/ou gestoras de políticas públicas voltadas para mulheres em situação
de violência de gênero. Para tanto, realizamos uma pesquisa qualitativa, na qual
entrevistamos militantes que participaram do processo de elaboração dos programas
de atendimento à mulher da prefeitura de Belo Horizonte e são suas atuais
coordenadoras. As entrevistas foram transcritas com fidelidade e analisadas através
da análise do discurso, já que os sentidos de cidadania são produzidos
coletivamente no discurso, na relação entre o que a pessoa está falando e as
condições da produção discursiva. Os dados de nossa pesquisa mostram que,
embora em alguns momentos exista uma tendência para uma concepção liberal, os
sentidos de cidadania produzidos pelas entrevistadas apontam para a direção da
construção de uma nova cidadania. Analisamos dimensões como a relação entre
igualdade e diferença, o reconhecimento do outro como portador de direitos e
desejos e a possibilidade de construção de uma nova sociedade através da
participação de sujeitos sociais ativos. Procuramos nos deter, também, em um foco
que foi se delineando no decorrer da pesquisa de campo: a análise, a partir das
memórias das entrevistadas, as especificidades do movimento de mulheres na
cidade de Belo Horizonte. Esse tema, que organizou o discurso das entrevistadas,
constitui uma contribuição relevante desta dissertação, visto que as pesquisas
anteriores sobre ele são escassas.
Abstract

In this study we map the meanings of citizenship in dimensions relevant to


Psychology: gender and violence against women. The introduction of a gender
perspective – through the struggle of the women’s movement for the end of gender
discrimination – can lead to a re-definition of the notion of citizenship. Meanwhile,
violence is still a real obstacle and a daily reality for the citizenship of many women in
light of the fact that all violence disrespects the condition of the person and violates
the basic human rights. Therefore, it is fundamental that the socio-psychological
dimensions of citizenship be studied, focusing on the inter-phase between
subjectivity and citizenship. The main objective of this study is to analyze the
discourses on citizenship by women who are militants in the women’s movement
and/or implementers of public policies directed to women in situations of gender
violence. Therefore, we conducted a qualitative study in which we interviewed
militants that participated in the process of elaborating programs assisting women in
the city of Belo Horizonte and are the coordinators. The interviews were transcribed
and analyzed using discourse analysis since the meanings of citizenship are
produced collectively in the discourse, in relation between what the person says and
the conditions of discourse production. The data of our study shows that, at some
moments there is a tendency toward a liberal concept, the meanings of citizenship
produced by the interviewees points in the direction of the construction of a new
citizenship. We analyze dimensions like the relation between equality and difference,
the recognition of the other as one that has rights and desires, and a possibility of
constructing a new society through the participation of socially active subjects.
Finally, we would like to present an objective which emerged in the field work,
analysis of the data and specificities of the women’s movement in the city of Belo
Horizonte. This theme, which organized the discourses of the interviewees,
constitutes a contribution of this study, in light of the fact that there is little research
on this matter.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................8

2 A CIDADANIA NA ERA DOS DIREITOS ..............................................................13

2.1 As Revoluções Burguesas ...............................................................................13

2.2 T.H. Marshall e sua influência na concepção de cidadania...........................19

2.3 Outras contribuições ao estudo da cidadania................................................25

3 VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UM OBSTÁCULO PARA A CIDADANIA ..................33

3.1 Gênero e cidadania ...........................................................................................33

3.2 Movimento Feminista e a construção de políticas públicas..........................40

3.3 Violência de gênero...........................................................................................54

4 DIMENSÕES PSICOSSOCIAIS DA CIDADANIA .................................................62

4.1 Análise do discurso ..........................................................................................69

5 TORNAR-SE FEMINISTA......................................................................................73

5.1 Memória e história: o movimento de mulheres em Belo Horizonte ..............75

5.2 Unidade e diversidade no movimento de mulheres .......................................97

5.3 Os programas sociais: novos lugares e identidades novas .......................104

5.4 Ser ou não ser? Entre o Estado e os movimentos sociais..........................109

6 FEMINISMO COMO DISCURSO: AS CONCEPÇÕES DE CIDADANIA, GÊNERO


E VIOLÊNCIA .........................................................................................................123

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................156

ANEXO 1.................................................................................................................164
ANEXO 2.................................................................................................................166
8

1 INTRODUÇÃO

O objetivo geral desta pesquisa é analisar a noção de cidadania,


principalmente em suas relações com o gênero e a violência contra a mulher.
A cidadania é uma categoria de análise central na atualidade, interessando
particularmente à psicossociologia, que trabalha temas que estão na
transversalidade da sociologia e da psicologia e preocupa-se com questões de
sociopolíticas concretas de grande relevância.
Buscando contextualizar o tema da cidadania, proponho-me a abordar um
problema delimitado e significativo: a violência contra a mulher. Acrescento, assim,
dois novos termos à questão central: gênero e violência. A articulação desses três
termos – cidadania, gênero e violência – configura um tema importantíssimo na área
da psicologia social.
Procuro empreender a abordagem a partir da seguinte questão: quais os
sentidos de cidadania para lideranças em movimentos sociais e/ou gestoras de
programas sociais voltados para mulheres em situação de violência de gênero?
Desde a graduação em psicologia, tive a oportunidade de desenvolver uma
rica experiência de trabalho com mulheres em situação de violência de gênero. Essa
experiência iniciou-se em 1998 com um estágio na Delegacia Especializada em
Crimes Contra a Mulher de Belo Horizonte (MG), onde eu atendia mulheres que
chegavam à delegacia para registrar denuncias de violência1. Em 1999, fiz um
estágio oferecido pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte na Casa Abrigo
Sempre Viva (CASV), onde atendia crianças e mulheres abrigadas na instituição. No
ano seguinte, tive oportunidade de desenvolver2 um trabalho com os funcionários da
CASV, associando intervenção psicossociológica e ação junto a pequenos grupos.
No início da minha vida profissional, aceitei o desafio da docência em
Psicologia Social como professora-substituta na UFMG. No espaço possibilitado pela
docência, criei uma disciplina optativa chamada "Cidadania e subjetividade", onde
pude amadurecer as questões que me levaram a realizar esta pesquisa. Os termos
cidadania e cidadão estão “em moda” tanto na comunidade científica quanto no
senso comum, ganhando diferentes conotações e sendo apropriados por diversos
grupos, o que pode levar à banalização dessas noções e ao conseqüente

1
O estágio foi coordenado pela profa. Dra. Sandra Azeredo.
9

esvaziamento de seu sentido. Dessa forma, torna-se imprescindível o resgate da


história da cidadania e sua contextualização na atualidade, de modo a
compreendermos como a cidadania pode emancipar os sujeitos e possibilitar
transformações sociais.
Dentre as diversas concepções de cidadania existentes, esta pesquisa
dedica-se a duas que são especialmente relevantes para o objetivo proposto: a
liberal e a nova cidadania. Apesar de suas divergências, que serão discutidas ao
longo deste trabalho, essas duas concepções estão presentes hoje em dia. Elas
convivem e marcam os discursos e as práticas culturais e políticas de nosso país.
A cidadania de cunho liberal, que surgiu com as revoluções burguesas do
século XVII, tem muita influência sobre a concepção moderna de cidadania, como
podemos ver, por exemplo, na Constituição Brasileira de 1988. Suas principais
características são o acesso a direitos previamente definidos, o cumprimento de
deveres e implementação de direitos formais abstratos.
Quanto à nova cidadania, ela pretende organizar uma estratégia de
transformação social, pois requer sujeitos sociais ativos que, respondendo a conflitos
reais, vividos pela sociedade em um dado momento histórico, definam seus direitos
e lutem pelo seu reconhecimento. Assim, podemos pensar em um “sentimento de
cidadania”, no qual cada pessoa se reconhece como um sujeito que tem direito a ser
diferente e a não ser oprimido por isso; tem direito a ter direitos e a lutar para
conquistá-los.
A cidadania pode organizar uma nova estratégia de construção da
democracia e de transformação social, na medida em que lide com sujeitos
concretos, que lutam por questões concretas que fazem parte de seu cotidiano.
Nesse sentido, faz-se necessária a inclusão de uma perspectiva de gênero,
raça/etnia e classe social no debate da cidadania, pois são esses fatores que
constituem os sujeitos e dão sustentação à estrutura social brasileira (SAFFIOTI e
ALMEIDA, 1995).
Esta pesquisa envolve a reflexão sobre o processo de construção da
cidadania das mulheres e sobre seus obstáculos. Para atingir esse objetivo, é
retomada a história do movimento feminista, procurando-se analisar quais os
sentidos de cidadania foram sendo construídos. Desde que o movimento de

2
Este trabalho foi realizado em caráter voluntário por mim e por Aline Ottoni de Moura. Contamos
com a supervisão da profa. Dra. Maria Emília Torres Lima.
10

mulheres surgiu, no século XIX, a questão da cidadania estava presente, seja na


luta pelos direitos políticos, seja na denúncia da opressão vivida pelas mulheres. No
Brasil, o movimento de mulheres vem realizando várias conquistas desde a década
de 1970. Suas conquistas mais relevantes são no âmbito cultural (como, por
exemplo, as mudanças das representações sobre as mulheres e das posições
sociais ocupadas por elas) e no político (como a elaboração e implementação de
políticas públicas, principalmente nas áreas da saúde e da violência contra a
mulher). Essas mudanças têm também conseqüências subjetivas importantes.
Houve, por exemplo, transformações qualitativas nos modos como as mulheres e
homens se percebem enquanto tais e estabelecem suas relações.
O movimento de mulheres lutou para que o governo reconhecesse as
questões relativas ao gênero como públicas e se responsabilizasse por criar políticas
públicas para atender às demandas específicas das mulheres. À medida que as
políticas públicas de gênero foram sendo desenvolvidas, militantes do movimento de
mulheres migraram para o governo, para gerenciá-las. Segundo Paoli (1995, p. 39),
essa migração não levou à ruptura com as questões do movimento: “Em outras
palavras, elas parecem ter conseguido criar e ocupar, de modo novo, espaços de
atuação com graus de institucionalização diversos, sem perder de vista a crítica a
esses espaços”.
Neste trabalho, foram entrevistadas lideranças do movimento de mulheres de
Belo Horizonte (MG) e/ou gestoras de programas que atendem mulheres em
situação de violência de gênero. Os programas abordados nesta pesquisa são o
Benvinda – Centro de Apoio a Mulher, a Casa Abrigo Sempre Viva (CASV) e a
Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher (COMDIM), vinculada à Secretaria
Municipal dos Direitos da Cidadania da Prefeitura de Belo Horizonte/MG. Estes
equipamentos têm como objetivo atender mulheres em situação de violência de
gênero, procurando, principalmente, fazer com que a mulher conheça seus direitos e
possa exercer sua cidadania.
A pesquisa procura focar nas políticas públicas que lidam com a questão da
violência de gênero por dois motivos principais. O primeiro deles é relativo à
importância da questão da violência no trabalho das feministas. O segundo é que a
violência é um obstáculo para o exercício da cidadania.
As relações de gênero são constituídas pelo poder, pela subordinação e pela
opressão. A violência de gênero “(…) visa à preservação da organização social de
11

gênero, fundada na hierarquia e na desigualdade de lugares sociais sexuados que


subalternizam o gênero feminino” (ALMEIDA, 1996, p. 35). Desse modo, as relações
de poder entre homens e mulheres manifestam-se na prática cotidiana da violência
de gênero, que, por sua vez, é um empecilho para o exercício da cidadania.
Entretanto, pensando dialeticamente, estratégias de cidadania permitem às
mulheres enfrentarem as relações de poder e, portanto, as desigualdades, a
exclusão e até mesmo a violência. Assim, a cidadania tem potencial emancipatório.
Estima-se3 que a cada quinze segundos uma mulher é espancada, ou seja, a
violência de gênero atinge 2,1 milhões mulheres por ano no Brasil. A violência de
gênero tem conseqüências para o desenvolvimento pessoal da mulher, compromete
o exercício da cidadania e dos direitos humanos e também afeta o desenvolvimento
social e econômico do país: no mundo, um em cada cinco dias de falta ao trabalho é
decorrente de violência sofrida pela mulher dentro de casa; se a mulher sofre
violência de gênero, ela perde, a cada cinco anos, um ano de vida saudável; no
Brasil, a violência de gênero compromete 10,5% do PIB. Assim, a violência de
gênero é uma questão de direitos humanos e de saúde pública, merecendo atenção
do governo e da sociedade civil.
Diante desse agravante estatístico e motivada pela minha experiência
profissional com os programas de combate a violência contra a mulher, apresento
neste trabalho reflexões sobre a cidadania neste contexto.
A pesquisa está estruturada em cinco capítulos. No primeiro capítulo, são
enfocadas as raízes da concepção moderna de cidadania. A caminhada inicia-se
pelas Revoluções Burguesas do século XVII. A idéia de cidadania, tal como
entendida hoje, foi fortemente influenciada pelos ideais liberais de igualdade,
liberdade e fraternidade. A seguir, é discutido criticamente o desenvolvimento da
cidadania e a concepção de direitos civis, políticos e sociais conforme apresentados
por T.H. Marshall (1967). Autores como Macpherson (1979), Tocqueville (1962),
Sennett (1988) e Bobbio (1992) auxiliam a compreender as questões trabalhadas
neste capítulo. Finalizando o capítulo, o trabalho busca discutir como essas
concepções de cidadania estão presentes no Brasil e quais suas particularidades

3
Os dados apresentados a seguir foram retirados do panfleto Violência contra as Mulheres: uma
Violação aos Direitos Humanos – Dez anos após Viena (1993-2003), realizado pela AGENDE (Ações
em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento), CLADEM (Comitê Latino Americano e do Caribe para a
Defesa dos direitos da Mulher), Bancada Feminina do Congresso Nacional e UNIFEM (Fundo de
Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher).
12

aqui, bem como algumas de suas particularidades na “era da globalização”.


O segundo capítulo discute as ressignificações da cidadania a partir da
introdução de uma perspectiva de gênero. As mulheres foram excluídas da
cidadania ao longo de sua história e submetidas ao poder dos homens. Esse quadro
histórico justifica a reflexão sobre como a violência constitui uma das táticas usadas
pelos homens como um modo de defender privilégios masculinos e de manter a
dominação e o controle sobre as mulheres. A violência é extremamente nociva à
saúde física e psicológica da mulher. Entretanto, as mulheres vêm se mobilizando
em movimentos sociais e estimulando ações coletivas que visam a conscientização
sobre as relações de poder e as situação de opressão nas quais vivem,
possibilitando a criação de estratégias que permitam seu reconhecimento como
sujeitos e como cidadãs.
No terceiro capítulo, o foco da análise são as contribuições da Psicologia
Social à cidadania. São discutidos, então, alguns modos da relação entre sociedade
civil e Estado se estabelecer e as motivações para que o sujeito participe ou não de
ações políticas. Além disso, procuro refletir sobre a incorporação da alteridade e da
subjetividade na cidadania e apresentaremos a concepção de nova cidadania.
Finalmente, apresento a análise do discurso como método de para analisar as
entrevistas.
O quarto e quinto capítulos são dedicados a análise dos dados. Em um
primeiro momento do quarto capítulo, as memórias das entrevistadas sobre a
história do movimento de mulheres na cidade de Belo Horizonte/MG são o foco da
análise. Esta questão delineou-se como relevante de ser estudada, pois visto, no
decorrer da pesquisa de campo e da análise dos dados, tornou-se patente que esse
tema foi um ponto nodal no discurso da maioria das entrevistadas e que a
bibliografia produzida sobre ele é escassa. Assim, retomar a trajetória do movimento
em Belo Horizonte a partir dos discursos das entrevistadas constitui uma
contribuição importante desta dissertação. Em um segundo momento, reflito sobre
as identificações e os lugares a partir dos quais as entrevistadas emitem seus
discursos; para tanto, retomo suas trajetórias dentro do movimento de mulheres e
empreendo uma análise das relações entre o movimento e o Estado.
Finalmente, no quinto capítulo, analiso o discurso das entrevistadas a partir
de categorias que nos permitam compreender os sentidos de cidadania , gênero e
violência produzidos por elas.
13

2 A CIDADANIA NA ERA DOS DIREITOS

A noção de cidadania tal como é entendida na modernidade surgiu com as


revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII e vem sendo radicalmente
transformada desde então, como veremos adiante. No entanto, bem antes, outras
idéias de cidadania eram vigentes. Atribui-se o surgimento da noção de cidadania à
polis grega. Na Grécia Antiga, os cidadãos dedicavam-se à vida pública e à política e
tinham direito à liberdade e à igualdade. Eram considerados cidadãos os homens
livres, o que excluía do exercício da cidadania mulheres, crianças, metecos e
escravos, que consistiam em 88% da população.
Em Roma, cidadania, cidade e Estado eram entendidos como um único
conceito. Ao contrário da Grécia, onde a polis antecedia o cidadão, “(…) para s
romanos era o conjunto de cidadãos que formava a coletividade” (FUNARI, 2003, p.
49). Devemos lembrar que os cidadãos eram membros da nobreza, e o restante da
população, os plebeus, eram subalternos e não tinham direitos de cidadania.
As concepções de cidadania da antiguidade clássica podem contribuir para
entendermos como esse conceito se desenvolveu, mas a concepção moderna de
cidadania é um fenômeno único na história. Essa constatação nos leva a dar um
salto histórico, voltando nosso interesse para as revoluções burguesas. Veremos a
importância dessas revoluções na história da cidadania e, mais propriamente, no
surgimento da cidadania liberal. Em seguida, retomaremos a concepção de T. H.
Marshall (1967) sobre o desenvolvimento da cidadania, vendo como suas idéias são
influentes até hoje, destacando brevemente algumas particularidades da influência
da globalização. Por fim, discutiremos as idéias de autores – Macpherson (1979),
Tocqueville (1962), Sennett (1988) e Bobbio (1992) – que nos auxiliam a
compreender as questões trabalhadas neste capítulo.

2.1 As Revoluções Burguesas

Se há um marco inicial da concepção moderna de cidadania, é consenso


entre os historiadores que esse marco sejam as revoluções burguesas dos séculos
XVII e XVIII.
As revoluções burguesas são assim chamadas por terem sido resultado a
14

mobilização de burgueses4 e de trabalhadores do campo e da cidade que não


suportavam mais as arbitrariedades e injustiças dos reis e absolutistas. Revoluções
como essas tiveram força na Inglaterra, nos Estados Unidos da América e na
França.
A primeira revolução burguesa da história foi a Revolução Inglesa, que
aconteceu entre os anos de 1640 e 1688. Segundo Mondaini (2003), é indiscutível
que o desenvolvimento dos direitos de cidadania, que se estendeu por pelo menos
três séculos5, tem seu ponto de partida nessa revolução do século XVII. Durante
esse processo revolucionário ocorreu uma mudança fundamental na percepção das
desigualdades entre os homens. As desigualdades, que antes eram vistas como
algo natural ou fruto da vontade divina e, portanto, imutáveis, começam a ser
entendidas como históricas:

A diferenciação natural entre os homens não explica a existência da


desigualdade natural entre eles. (…) Essa historicização da desigualdade
servirá de pano de fundo para uma das mais importantes transformações
levadas a cabo na trajetória da humanidade: a do citadino/súdito para o
citadino/cidadão. (MONDAINI, 2003, p. 116)

A revolução era uma luta pela igualdade, na qual eram reivindicadas


liberdades e direitos individuais. Os revolucionários exigiam a transformação total da
sociedade inglesa da época, lutavam pela possibilidade de participar do poder
político, econômico e religioso. O fato de esse último poder ter sido um campo de
grandes conflitos nessa revolução a fez ser conhecida também por “Revolução
Puritana”.
As reivindicações básicas da burguesia ascendente – direito à liberdade e a
definição do governo como aquele que assegura os direitos dos cidadãos –
estabelecem o surgimento do liberalismo político e econômico6: “É liberal a idéia de
que o homem tem a liberdade de escolher sua vida, os seus objetivos, e de que o
governo não pode negar essa liberdade” (BARRETTO e PAIM, 1989).
O ideal liberal é o de um homem livre e racional. Locke, em seu Segundo
tratado do governo civil (1690), defende o homem individual e seus direitos e

4
O termo “burguesia” surgiu para indicar as pessoas que trabalhavam na administração ou no
comércio não feudal (SENNETT, 1988).
5
Na seção 2 deste capítulo, discutiremos a concepção de T.H. Marshall (1967), que trabalha
justamente o desenvolvimento da noção de cidadania nesses três seculos.
6
As idéias liberais surgiram no século XVII, mas o termo liberalismo só começa a ser usado na
segunda metade do século XIX.
15

acredita que a limitação do poder do Estado é preferível à alienação, ou seja, que o


indivíduo seja independente e autônomo da ordem política.
Foi a partir dessas mudanças, liberais e conservadoras, que surgiu a nova
moral capitalista, baseada no lucro e no individualismo. A cidadania liberal não é o
que podemos chamar de uma cidadania universal; pelo contrário, cidadão pleno é
aquele que tem propriedades e é, portanto, detentor de poder. “A cidadania liberal
foi, pois, uma cidadania excludente, diferenciadora de ‘cidadãos ativo’ e ‘cidadãos
passivos’, ‘cidadãos com posses’ e ‘cidadãos sem posses’”. (MONDAINI, 2003, p.
131).
Boaventura S. Santos (1994) esclarece em quatro pontos o que seria a
cidadania para a teoria política liberal: 1) institucionalização dos direitos políticos:
indivíduos livres e autônomos não são cidadãos por não poderem participar
politicamente das atividades do Estado; 2) o princípio da cidadania abrange
exclusivamente a cidadania civil e política, e seu exercício é o voto; 3) política
vertical cidadão-Estado, impedindo a participação efetiva dos cidadãos; 4)
concepção monolítica da sociedade civil ou, em outras palavras, crença de que a
sociedade é íntegra, sem rupturas.
A importância dessa concepção está em ter sido o primeiro e grande passo
para romper com a figura do súdito, que tinha apenas deveres, e construir a do
cidadão, que tinha direitos a serem conquistados. Além disso, é preciso lembrar, a
cidadania de cunho liberal ainda é vigente nos dias de hoje e continua lutando para
permanecer assim.
Voltando aos acontecimentos da Revolução Inglesa, os trabalhadores do
campo e da cidade fortaleceram o corpo revolucionário, mas, à medida que os
objetivos propriamente burgueses foram atingidos, as classes subalternas foram
sendo gradualmente afastadas tanto do cenário físico quanto da memória da
revolução.
Os acontecimentos na Inglaterra exerciam grande influência em suas colônias
na América. Então, no século seguinte, os homens ricos dessas 13 colônias
promoveram sua revolução, que culminou na proclamação da independência em
1776. Mais tarde, em 1787, a liberdade tinha força de integração nacional,
possibilitando a união das 13 colônias e a criação de um novo Estado, chamado de
Estados Unidos da América (DALLARI, 2003; KARNAL, 2003). Devemos lembrar
que essa busca pela liberdade e independência era conservadora, pois seu objetivo
16

principal era o de restaurar uma situação anterior, na qual não havia interferência
inglesa nas colônias.
A Declaração da Independência Americana é um documento fundamental na
história da cidadania. Segundo seus termos, os homens são iguais e têm
direitos inalienáveis como vida, liberdade, busca da felicidade.
No entanto, o sistema americano, que passou a ser admirado pelo mundo,
excluía a grande maioria da população e garantia a propriedade pessoal de um
homem sobre outro (escravidão). A Revolução Americana, fundamentalmente,
buscava defender o cidadão contra a interferência do Estado em sua vida e obter
igualdade política para o grupo que liderava o movimento de Independência:

O sonho americano do sucesso material e de oportunidades iguais para


todos constituiu uma unidade poderosa. Não importava a realidade de
miséria da maioria dos imigrantes: difundiu-se a idéia de que o trabalho duro
levava as pessoas ao sucesso e que o fracasso era falta de esforço
(KARNAL, 2003, p. 149).

Essa idéia responsabiliza inteiramente o sujeito por seu fracasso, mas não
por seu sucesso, que seria possível graças ao sistema político-econômico norte-
americano. Trata-se, portanto, de uma cidadania de cunho liberal, que em última
instância seria um modo de garantir os privilégios de uma minoria privilegiada. A
cidadania norte-americana inclui alguns e exclui muitos: mulheres, escravos,
crianças, pobres. “Assim, a democracia que garante a cidadania nos EUA torna-se
um sistema autoconfirmatório. O problema nunca está no sistema em si, mas na
incapacidade de alguns de se adaptarem a ele” (KARNAL, 2003, p. 152).
Cabe ao presidente da nação, em pessoa, garantir a liberdade da cidadania.
Essa questão será melhor debatida a seguir, primeiro com Marshall e sua
preocupação com o impacto da cidadania sobre a desigualdade social e, depois, na
relação específica entre cidadania e gênero.
Segundo Karnal (2003), a questão central da cidadania na época da
revolução era garantir a liberdade individual dos americanos contra uma potência
externa. Tratava-se, “(…) antes de mais nada, de garantir a esfera do privado como
espaço do cidadão, em detrimento da tirania externa” (KARNAL, 2003, p. 142).
Diante disso, fica mais fácil compreender porque, na cidadania norte-americana, os
cidadãos estrangeiros sempre tiveram dificuldades em ter os mesmos direitos que os
cidadãos naturais daquele país.
Em 1789, dois anos após a criação do Estado americano unificado, aconteceu
17

na França um movimento revolucionário semelhante àquele. O século XVIII,


contexto no qual aconteceu a Revolução Francesa, foi o século do Iluminismo, em
que havia grande valorização da razão e da experimentação. Os direitos eram vistos
como naturais e a idéia de igualdade entre os homens pode ser traduzida no slogan
“todos os homens nascem iguais” e o são por natureza e por lei. É isso que os
burgueses e os trabalhadores revolucionários reivindicavam: terem direitos iguais,
podendo participar do governo e não mais se submeter a ele.
Dallari (2003, p. 02) afirma que “Foi nesse momento e nesse ambiente que
nasceu a moderna concepção de cidadania”. Essa cidadania, que surgiu durante a
Revolução Francesa, nasceu com o objetivo de eliminar todos os tipos de privilégios
de uma classe dominante sobre outra. A reivindicação de igualdade que guiava a
Revolução era extensiva a todos.

Cabe lembrar que as mulheres tiveram importante participação nos


movimentos políticos e sociais da Revolução Francesa. Quando se falava
no direito da cidadania, a intenção era dizer que todos deveriam ter os
mesmo direitos de participar do governo, não havendo mais diferença entre
nobres e não-nobres nem entre ricos e pobres ou entre homens e mulheres.
(DALLARI, 2003, p. 03).

Entretanto, pouco depois, afirma Dallari (2003, p. 02), a cidadania francesa


“(…) foi utilizada exatamente para garantir a superioridade de novos privilegiados”.
Foram os próprios revolucionários que deturparam completamente a idéia de
cidadania e a adaptaram para seu próprio proveito. Em 1791, os líderes da
Revolução criaram e aprovaram a primeira constituição francesa, segundo a qual
não bastava ser cidadão para ter direito à participação política. O argumento da
razão ganhou força e, de acordo com esse argumento, o bom ou mau uso da razão
dependia do corpo, do sexo, do lugar social e da cultura de cada um, e os direitos
humanos são, portanto, limitados àqueles que fazem bom uso da razão (ZEA, 1990).
A cidadania ativa, que permitia a participação política, tinha pré-requisitos: ser
homem, francês, proprietário de imóveis e ter uma alta renda anual. Dito em outras
palavras, a Igreja e a nobreza não estavam mais sozinhos no poder, mas a maioria
da população continuava fora da participação política, do direito de votar e ser
votado. Mais tarde, nos séculos XIX e XX, as mulheres, assim como outros grupos
excluídos, tiveram que reiniciar a luta. Organizaram-se em movimentos sociais a fim
de conquistarem os tão desejados direitos políticos, dos quais foram afastados –
pelos próprios companheiros de luta – quando os dias de revolução acabaram.
18

Apesar desses percalços, a Revolução Francesa entrou para a história como


movimento fundamental no desenvolvimento da cidadania. É nela que, em certa
medida, o homem comum passa a ser visto como um cidadão, portador de direitos
civis, e a felicidade passa a ser pensada como uma meta coletiva a ser alcançada,
sendo que a felicidade coletiva é entendida como uma das bases da igualdade.
As palavras de ordem da Revolução Francesa são: liberdade, igualdade e
fraternidade. Esses direitos vão sintetizar o novo cidadão que está nascendo e serão
a base da Declaração dos direitos do homem e do cidadão. Essa declaração é,
segundo Odalia (2003, p. 166), o apogeu da Revolução, pois “(…) por seu caráter
universal, ela é um passo significativo no processo de transformar o homem comum
num cidadão, cujos direitos civis lhe são garantidos por lei”. O objetivo maior do
Estado é, então, assegurar que os direitos civis sejam usufruídos pelos cidadãos,
bem como deixar claros seus limites. Esses limites aos direitos civis, expressos na
Declaração, por mais ponderáveis que sejam – como não prejudicar os outros ou
não ofender e desobedecer – colocam a lei acima da cidadania.
Como vimos anteriormente, Karnal (2003) propõe que a questão central da
cidadania nos Estados Unidos era a garantia da liberdade individual contra inimigos
externos. Na mesma perspectiva, ele acredita que, na França, a principal questão da
cidadania no século XVIII era garantir a liberdade individual contra a falta de
igualdade social. Mais tarde, ambas as sociedades perceberam que a cidadania
precisava de outras conquistas, não se restringindo à liberdade individual.
Após essa exposição de alguns fatos referentes às revoluções burguesas,
gostaríamos de reiterar sua importância no desenvolvimento da cidadania. Para
tanto, retomaremos as palavras de Odalia (2003, p. 168):

Quando falamos, escrevemos ou pensamos sobre a cidadania, jamais


podemos olvidar que ela é uma lenta construção que se vem fazendo a
partir da Revolução Inglesa, no século XVII, passando pela Revolução
Americana e Francesa e, muito especialmente, pela Revolução Industrial,
por ter sido esta que trouxe uma nova classe social, o proletariado, à cena
histórica.

Faremos, agora, uma breve discussão sobre as influências dessas revoluções


no Brasil e na América Latina.
No Brasil, afirma Dias (1990), houve ecos das revoluções pouco depois da
Declaração dos Direitos do Homem. Já em 1792/93, os cidadãos foram convocados
para discutir, em assembléias populares, questões relativas à política e à sociedade.
19

Foi na América Latina que as diferenças de etnia, religião, cultura e as


reivindicações por direitos iguais tornaram-se concretas, diferenciando-se da base
conceitual das revoluções burguesas, que tinham os direitos e a igualdade com base
na natureza e na razão, ou seja, em um homem abstrato.
No século XIX, quando a Declaração dos direitos do homem e do cidadão
(1789) estava sendo bastante divulgada, cresceram as reivindicações ligadas à raça.
Negros e pardos tinham reivindicações bastante concretas, queriam que as
oportunidades também estivessem a seu alcance, ou seja, demandavam a
igualdade de raças e a soberania popular.
Quanto às mulheres, elas começaram a lutar por sua cidadania já na
Revolução Francesa, onde defendiam o direito de terem a possibilidade de uma
existência legal fora do lar. No final do século XIX, as mulheres passaram a lutar por
direitos políticos: queriam votar e ser votadas. Essa campanha é conhecida como
movimento sufragista e mostra como o feminismo é desde o início um movimento
social em busca da cidadania para as mulheres. No Brasil, na segunda metade do
século XIX, as mulheres também começam a falar em igualdade de direitos, e, no
início do século XX, o movimento sufragista torna-se importante aqui. Segundo Dias
(1990: 306), “(…) as mulheres e a política, no que diz respeito ao exercício da
cidadania, é (sic) um vasto campo de reflexão”. É a partir desta perspectiva que, no
terceiro capítulo deste trabalho, trabalharemos mais a fundo as relações entre
mulher e cidadania. Antes, porém, começaremos por abordar as idéias de T.H.
Marshall (1967)7, pois seu trabalho é considerado a mais influente concepção de
cidadania moderna.

2.2 T.H. Marshall e sua influência na concepção de cidadania

Marshall (1967) interpretou o desenvolvimento da cidadania por um viés


histórico, relacionando-a com as instituições e com os valores políticos. O autor
estudou a ampliação dos direitos fundamentais e do número de pessoas que
poderiam gozar de tais direitos, para entender como se deu o processo de “extensão
da cidadania” após as revoluções burguesas. Para Marshall (1967, p. 84):

A cidadania exige um elo de natureza diferente, um sentimento direto de


participação numa comunidade baseado na lealdade a uma civilização que

7
O livro de Marshall foi originalmente publicado em 1949, na Inglaterra.
20

é um patrimônio comum. Compreende a lealdade de homens livres,


imbuídos de direitos e protegidos por uma lei comum. Seu desenvolvimento
é estimulado tanto pela luta para adquirir tais direitos quanto pelo gozo dos
mesmos, uma vez adquiridos.

A cidadania tem, na concepção marshalliana, algumas características


constitutivas fundamentais. Lavalle (2003) sintetiza essas características em quatro
elementos: universalidade da cidadania (direitos universais para categorias sociais
formalmente definidas); territorialização da cidadania (status de cidadania
politicamente delimitado pela territorialidade); individualização da cidadania
(generalização dos vínculos diretos entre o indivíduo e o Estado, como forma
legítima de reconhecimento e subordinação política); índole estatal-nacional da
cidadania (existência de vínculo constitutivo entre a cidadania e a edificação do
Estado-nação).
Marshall (1967) interessava-se especialmente pelo impacto da cidadania
sobre a desigualdade social e, com esse objetivo em vista, pensou a cidadania
dividida em três elementos ou dimensões: direitos civis, políticos e sociais. Segundo
ele, cada um desses elementos surgiu em tempos (momentos históricos) diferentes,
embora alguns processos tenham acontecido simultaneamente, já que o tempo não
pode ser pensado de forma estática.
“Nos velhos tempos”, afirma Marshall (1967, p. 64), “esses três direitos
estavam fundidos num só. Os direitos se confundiam porque as instituições estavam
amalgamadas”. Foi no século XII que as instituições se separaram. A justiça real e o
parlamento ficaram independentes e os três elementos da cidadania se desligaram,
sendo que os direitos sociais foram gradativamente dissolvidos.
Os direitos civis, os primeiros a serem formulados (século XVIII), baseavam-
se na liberdade individual e tinham como principal instituição os tribunais de justiça.
Foram adicionados novos direitos a todos os homens adultos da comunidade, que já
tinham um status8, pois “a igualdade formal perante a lei beneficia a princípio apenas
aqueles cuja independência social e econômica os habilita a tirar proveito de seus
direitos legais” (Bendrix, 1996, p. 135). “Cidadania” e “liberdade” eram tidos como
semelhantes e, quando a liberdade se tornou universal, a cidadania se transformou
de instituição local em instituição nacional (MARSHALL, 1967, p. 69).

8
Marshall (1967, p.76) entendia que “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros
integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos
direitos obrigações pertinentes ao status”.
21

Marshall (1967) chama atenção para o fato de que o desenvolvimento da


cidadania na Inglaterra coincide com o desenvolvimento do capitalismo, que é um
sistema de desigualdade. Não houve um conflito entre capitalismo e cidadania. Pelo
contrário, esta era necessária para manter aquela forma de desigualdade, pois o
cerne da cidadania eram os direitos civis, indispensáveis a uma economia de
mercado competitivo. O progresso do capitalismo era procurado por meio do
fortalecimento dos direitos civis, que eram, em sua origem, individuais e não
coletivos, harmonizando-se com o individualismo do sistema capitalista emergente.
Os direitos políticos (séc. XIX) caracterizam-se pela doação de direitos já
existentes, como o voto, a novos setores da população. Os direitos políticos eram
vistos no século XIX como produto secundário dos direitos civis, pois o cidadão que
gozava destes últimos, como ter propriedades, ter o direito de ir e vir e à justiça,
tinha um status econômico que lhe permitia gozar também de direitos políticos
(SILVEIRA, 2000). É, apenas em 1918, com o sufrágio universal na Inglaterra, que
os direitos políticos passam a ser associados diretamente à cidadania. A unificação
do sistema de representação nacional é condição fundamental para o
desenvolvimento de direitos universais (BENDRIX, 1964, p. 127).
Já os direitos sociais, relativos à educação, saúde, trabalho, etc,
desenvolvem-se tardiamente na Inglaterra. Apenas no século XX chegaram a um
plano de igualdade com os demais elementos da cidadania. Para Marshall (1967, p.
70), a fonte original desses direitos – no século XIX – foi a participação das
comunidades locais e associações funcionais, a partir das quais surgiram medidas
como a Poor Law (Lei dos Pobres), que, num primeiro momento, aparece como
defensora dos direitos sociais, pois “(…) tentava ajustar a renda real às
necessidades sociais e ao status do cidadão e não apenas ao valor de mercado de
seu trabalho” (Apud SILVEIRA, 2000, p. 23). Mais tarde, no entanto, medidas como
esta acabaram por desligar os direitos sociais mínimos do status da cidadania:

A Poor Law tratava as reivindicações dos pobres não como uma parte
integrante de seus direitos de cidadãos, mas como uma alternativa deles –
como reivindicações que poderiam ser atendidas se deixassem inteiramente
de ser cidadãos. Pois os indigentes abriam mão, na prática, do direito civil
da liberdade pessoal devido ao internamento na casa de trabalho, e eram
obrigados por lei a abrir mão de quaisquer direitos políticos que
possuíssem”. (MARSHALL, 1967, p. 72)

Os Factory Acts, leis que regulamentavam as atividades fabris, iam nesse


mesmo sentido, pois não davam proteção aos homens adultos, já que “(…) todos os
22

adultos do sexo masculino são cidadãos porque têm o poder de engajar-se no


esforço econômico e cuidar de si mesmos” (Bendrix, 1996, p.113). As mulheres e
crianças, ao contrário, precisavam de medidas de proteção, isso porque, segundo
Marshall (1967), não eram consideradas cidadãs. Isso também foi percebido pelos
defensores dos direitos das mulheres, que viam um insulto implícito nessas leis.
Até o inicio do séc. XX, quando os direitos sociais ainda não faziam parte da
cidadania, esta tinha pouco impacto sobre a desigualdade social, chegando, como
vimos, a contribuir para sua manutenção. É com a luta para a igualdade em termos
de bem-estar social que os direitos sociais começam a ser incorporados à cidadania.
A incorporação dos direitos sociais, que têm como seu princípio central a justiça
social, pode modificar o padrão de desigualdade e tem influências sobre a estrutura
de classes. Por outro lado, pode também permitir e até mesmo moldar algumas
formas de desigualdade: “Isso significa que desigualdades podem ser toleradas
numa sociedade fundamentalmente igualitária desde que não sejam dinâmicas”
(MARSHALL, 1967, p. 108). Quando nos damos conta de que igualdade e sistema
econômico estão relacionados, percebemos que o sistema liberal pode de fato
significar que todos têm igual liberdade para desenvolverem suas capacidades, ou
que a liberdade do mais forte pode ser usada para derrubar o mais fraco, de acordo
com as regras do mercado. Quando o liberalismo trata indivíduos desiguais como
iguais, a desigualdade fica cristalizada, sendo, portanto, mais tolerável e mais difícil
de mudar (HONORATO, 1990).
Ao apresentarmos brevemente cada um dos três elementos que Marshall
(1967) sustenta como sendo os componentes da cidadania, mostramos como essa
visão tornou-se clássica e exerce, ainda hoje, grande influência sobre o
entendimento que temos desse termo9. Como exemplo dessa influência, temos a
Constituição Federal Brasileira de 198810, que é conhecida como “Constituição
Cidadã” ou “Constituição marshaliana” (CARVALHO, PORTO).
As constituições definem o modo como se organiza o poder na sociedade e
especificam os direitos e deveres dos cidadãos (QUIRINO e MONTES, 1987). A
Constituição de 1988, a mais liberal e democrática que o Brasil já teve, foi elaborada

9
A concepção marshaliana de cidadania teve e tem vários opositores. Vieira (1999) aponta Cranston,
M. Roche e Turner como seus principais críticos.
10
Note-se que essa é a oitava constituição brasileira: 1824 / 1891 / 1934 / 1937 / 1946 / 1967 / 1969 /
1988.
23

num momento de redemocratização e contou com enorme participação popular,


representando avanço significativo no campo dos direitos da cidadania. Um dos
movimentos sociais que se fizeram presentes nesse momento, apresentando
propostas que foram em grande parte incorporadas na Constituição, foi o Movimento
de Mulheres. No próximo capítulo, veremos quais as conseqüências desse processo
na relação entre cidadania e gênero.
Na Constituição de 1988 separou-se cada um dos três elementos da
cidadania em artigos distintos. O artigo 5º é dedicado a nossos direitos civis,
garantindo a igualdade de todos perante a lei, sem nenhuma distinção de qualquer
natureza, e também os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade e à
segurança. O Capítulo II (título II) é dedicado aos direitos sociais e, no artigo 6º, são
enumerados de maneira precisa estes direitos: educação, saúde, trabalho, lazer,
segurança, maternidade, infância, previdência social e assistência aos
desamparados. O Capítulo IV, por sua vez, é relativo aos direitos políticos, que se
referem à participação do cidadão no governo da sociedade, sendo garantido pela
Constituição (art.14º) o sufrágio universal e o voto direto e secreto.
A Constituição de 1988 representou grande avanço para a cidadania, mas
não resolveu o problema da desigualdade social, nem tampouco os do desemprego,
da segurança, da educação (CARVALHO, 2001, p. 199).
Quanto à influência da concepção de cidadania de Marshall (1967), é
importante lembrar que no Brasil o desenvolvimento da cidadania aconteceu de
forma distinta. Carvalho (2001, p. 219) defende a tese de que: “A cronologia e a
lógica da seqüência descrita por Marshall foram invertidas no Brasil”. Aqui, primeiro
vieram os direitos sociais, com o populismo de Vargas, que suprimiu os direitos
políticos e reduziu os direitos civis. Mais tarde, na ditadura militar, surgiram, de forma
decorativa, os direitos políticos. Já os direitos civis ainda são, entre aqueles que
compõem a cidadania, os mais deficientes no Brasil. São os menos conhecidos e
menos extensos, não garantindo segurança individual, nem acesso à justiça, a não
ser a uma pequena parcela da população. Oliveira (1996, p. 236) vai ainda mais
além e ironiza dizendo que no Brasil existem cidadãos de vários níveis: “(...)
cidadãos propriamente ditos, com seus direitos mais do que garantidos, e os
cidadãos de segunda e de terceira classe, sem nenhuma garantia de seus direitos”.
Se na Inglaterra a base de tudo eram os direitos civis, no Brasil houve uma
inversão da pirâmide. Aqui, os direitos sociais receberam maior ênfase do que os
24

outros. A cidadania no Brasil tem uma história onde, nas palavras de Caldeira (2000,
p. 374), “(...) os direitos sociais são bastante desenvolvidos mas os direitos civis não
são protegidos, ou onde os direitos políticos têm uma história de idas e vindas, em
que são garantidos num momento apenas para serem desprezados no regime
seguinte”.
Para Carvalho (2001), isso tem uma conseqüência importante: uma excessiva
valorização do poder executivo, o que leva à busca por um messias, um salvador da
pátria. E, portanto, relega o legislativo a um segundo plano: “(...) e, com ele, o direito
dos cidadãos de manifestar, através da ação de seus representantes, seus
interesses e aspirações” (QUIRINO e MONTES, 1987, p. 29).
Outro fator que trouxe, mais recentemente, mudanças na construção da
cidadania foi a modificação do cenário internacional. Carvalho (2001) argumenta que
acontecimentos como a globalização acelerada da economia provocam mudanças
nas relações entre Estado, sociedade e nação, afetando os direitos civis, políticos e
sociais. O Estado tem reduzida sua importância como fonte de direitos e como arena
de participação. Ou seja, a globalização, na medida em que significa uma
transnacionalização das relações sociais, políticas e culturais no mundo, reduz os
espaços do Estado-nação. A reformulação dos projetos nacionais implica mudanças
sociais e na reestruturação da ordem mundial (VIEIRA, 1999).
A idéia de uma cidadania restrita ao conceito de nação é agora uma
perspectiva conservadora, embora o Estado nacional (e sua Constituição) seja
importante na garantia dos direitos. Atualmente, as concepções mais democráticas
ligam a cidadania a uma proteção transnacional, com ênfase nas dimensões jurídica
e política, e têm nos direitos humanos uma de suas maiores expressões (VIEIRA,
1999).
Devemos lembrar que a globalização é dominada hoje pela economia
capitalista e neoliberal e que o renascimento do liberalismo favorece a cultura do
consumo, dificultando

o desatamento do nó que torna tão lenta a marcha da cidadania entre nós,


qual seja, a incapacidade do sistema representativo de produzir resultados
que impliquem a redução da desigualdade e o fim da divisão dos brasileiros
em castas separadas pela educação, pela renda, pela cor”. (CARVALHO,
2001, p. 228).

Podemos completar: e pelo gênero.


As soluções que esperamos só serão possíveis, segundo Vieira (1999, p.
25

122), através da “(…) cooperação internacional de todos os participantes do


processo de globalização”. Nesse sentido, Bobbio (1992, p. 01) afirma que a paz –
condição essencial para a proteção dos direitos – será possível quando houver de
fato uma cidadania transnacional:

Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos


se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos
fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como
alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou
daquele Estado, mas do mundo.

Com a globalização, novas questões vêm sendo colocadas para a cidadania.


Por um lado, preservam as desigualdades na medida em que a globalização e a
ideologia capitalista andam de mãos dadas. Por outro, abrem a possibilidade da
existência de um cidadão do mundo e, portanto, de democracia e paz.

2.3 Outras contribuições ao estudo da cidadania

Além dos autores trabalhados acima, acreditamos haver outros que


contribuíram para o entendimento da questão. Macpherson (1979) retomou as raízes
da teoria liberal-democrática e analisou as contribuições de Hobbes e Locke para o
pensamento político. Tocqueville (1962) analisou a democracia em seu cerne, isto é,
os Estados Unidos do século XIX. Sennett (1988) buscou compreender o homem
público – e seu declínio – em suas dimensões políticas, sociais e psicológicas.
Bobbio (1992) desenvolveu a idéia de que os direitos são históricos e dedicou-se ao
estudo de seu surgimento, seu presente e seu futuro.
Embora não pretendamos discutir a fundo a teoria liberal, retomamos alguns
de seus pontos fundamentais por a considerarmos imprescindível para a
compreensão moderna da cidadania. Macpherson (1979) enumera as principais
suposições do individualismo possessivo do século XVII que fundamentam a teoria
liberal-democrática: a liberdade da dependência da vontade alheia, de quaisquer
relações com outros, é o que confere aos seres o atributo de humanos; o indivíduo é
proprietário de sua própria pessoa e de suas capacidades; a sociedade humana
consiste em uma série de relações de mercado; a liberdade de cada um só pode ser
limitada pelas normas necessárias para garantir essa mesma liberdade aos outros; a
sociedade política é um artifício para garantir a propriedade individual.
Ao buscar as raízes da teoria liberal-democrática, Macpherson (1979) retoma
de modo preciso dois autores do século XVII: Hobbes e Locke.
26

Segundo Macpherson (1979, p. 97), a importância de Hobbes reside no fato


de ele ter sido “(...) o primeiro pensador político a ver a possibilidade de deduzir os
deveres diretamente dos fatos mundanos das relações reais dos indivíduos entre si,
inclusive a igualdade inerente a essas relações”. A igualdade do homem racional era
uma igualdade perante a lei do mercado, todos estando irremediavelmente sujeitos
às determinações do mercado. A própria sociedade era vista como sendo um
mercado, embora fosse necessário o poder político, que estaria sempre fora de
controle da população, para garantir a ordem. O individualismo de Hobbes – e a
própria sociedade de mercado – é paradoxal:

(...) começa com indivíduos racionais e iguais e demonstra que estes devem
se submeter integralmente a um poder exterior a eles mesmos (...). As
decisões de todos determinam o mercado, e as decisões de cada um são
determinadas pelo mercado. (MACPHERSON, 1979, p. 115).

Outra característica importante da sociedade de mercado seria a paz e a


ordem entre cidadãos de uma comunidade nacional. O que Hobbes pretendia era
doutrinar os homens de mercado, despertando neles as necessidades e
capacidades que esse mercado exigiria. A grande falha em seu modelo estava, para
Macpherson (1979), em não admitir a existência de classes desiguais politicamente
significativas, não correspondendo, portanto, à sociedade de mercado possessivo.
As relações que Hobbes estabeleceu entre a teoria política e os princípios
psicológicos da natureza humana foram amplamente criticadas por seus sucessores,
inclusive por Locke, o que não tira de modo algum seu mérito.
O pensamento de Locke baseava-se na idéia de direitos e raciocínio naturais
individuais e na defesa da propriedade. Como sua teoria é ambígua e deu margem
para uma série de interpretações, não nos deteremos nela aqui. Gostaríamos
apenas de frisar que a teoria de Locke foi de fato o princípio do liberalismo inglês, na
medida em que afirmava que o indivíduo era racional e livre. Locke não se deu
conta, conforme aponta Macpherson (1979, p. 273), de que a liberdade individual de
alguns era possível graças à negação da individualidade de outros: “(...) a plena
individualidade para alguns era produzida pelo consumo da individualidade de
outros”.
Sobre a teoria liberal-democrática no século XX, Macpherson (1979), afirma
que as mudanças sociais engendram modificações no poder político racional. Dentre
os fatos sociais mais relevantes, estão a guerra e a violência, que fazem parte do
27

cotidiano das pessoas, e a impossibilidade de se pensar em uma teoria do dever


individual para uma única nação isolada. Hoje, a sociedade humana aparece como a
única coisa que merece ser realmente preservada. O liberalismo tem que lidar, na
atualidade, com essas questões.
A lógica do mercado liberal fala de um cidadão livre, racional e detentor de
propriedades. A cidadania vista desse modo está ligada a um produto a ser
consumido, e o cidadão é tido como um cliente do Estado. No quarto capítulo do
presente trabalho, apresentaremos a discussão proposta por Hirschman (1983), que
diferencia cidadão e consumidor.
Alexis de Tocqueville (1962) é outro autor que merece nossa atenção. Um
dos mais importantes cientistas políticos do século XIX, Tocqueville, define, em seu
livro A democracia na América (1835), a cidadania como ordem, equilíbrio entre os
poderes e um profundo e sincero respeito aos direitos.
Tocqueville (1962) foi um grande admirador da democracia e acreditava que o
sistema democrático norte-americano era um exemplo a ser seguido. Em sua
análise da sociedade democrática dos Estados Unidos da América, ele leva em
consideração os seguintes pontos: os três poderes, o sufrágio eleitoral, as eleições,
os partidos políticos, a liberdade de imprensa, a educação primária, a soberania do
povo, o comércio, a religião, as leis e os costumes. O autor entende que, para um
governo democrático não correr o risco da tirania, sua organização deve se basear
em um poder executivo que tenha força própria, em um corpo legislativo que
represente a maioria, mas não seja escravo de suas paixões, e em um poder
judiciário independente dos outros dois.
Segundo Tocqueville (1962, p. 17), a sociedade não tem consciência de sua
força, “(…) teme morrer ao fazer um esforço”, e não consegue conceber a idéia de
que um outro estado social seja possível além daquele ao qual está acostumada.
Para ele, “(…) nada é mais difícil do que o aprendizado da liberdade”
(TOCQUEVILLE, 1962, p.185) e, num Estado ideal, todos os homens seriam
perfeitamente livres por serem inteiramente iguais e vice-versa.
Tocqueville (1962) não se furta de discutir o problema da igualdade entre
homens e mulheres, deixando evidente que essa já era uma questão fundamental
em meados do século XIX. De acordo com o autor, a crença norte-americana de que
é natural que o homem e a mulher tenham moral e constituição física diferentes
justifica que desempenhem papéis distintos na sociedade: “Portanto, os americanos
28

não crêem que o homem e a mulher tenham o dever nem o direito de fazer as
mesmas coisas, mas mostram uma mesma estima pelo papel de cada um deles, e
os consideram como seres cujo valor é igual, embora diferente o destino”
(TOCQUEVILLE, 1962, p. 460).
Na vida social, persiste, entretanto, a inferioridade da mulher. Tocqueville é
afiado em sua explicação sobre o porquê da permanência de diferenças e de
relações de poder em sociedades democráticas:

(…) podem-se transformar as instituições humanas, mas não o homem: seja


qual for o esforço geral de uma sociedade para tornar os cidadãos iguais e
semelhantes, o orgulho particular dos indivíduos sempre procurará escapar
ao nível e desejará formar em alguma parte uma desigualdade da qual tira
proveito. (TOCQUEVILLE, 1962, p. 461).

Para ele, a democracia deve se instalar não apenas nas leis, mas também
nas idéias, nos desejos, nos hábitos e nos costumes. Apesar das críticas que temos
a Tocqueville (1962), acreditamos na possibilidade de transformação social e de
emancipação não como uma conquista estática, mas como um processo no qual os
cidadãos tenham coragem para lutar por uma nova forma de organização social.
Sennett (1988) também contribuiu para a questão dos direitos, uma vez que
considerou o elemento psicológico fundamental para a compreensão do
desenvolvimento de direitos. Ele partiu de uma minuciosa análise dos costumes, do
modo de vida e do comportamento público da burguesia londrina e parisiense do
séc. XVIII, a fim de compreender as dimensões sociais, políticas e psicológicas do
problema público. Segundo Sennett (1988, p. 30), as instâncias pública e privada da
vida tal como a entendemos hoje, “são resultantes de uma mudança que começou
com a queda do Antigo Regime e com a formação de uma nova cultura urbana,
secular e capitalista.”11
A distinção entre público e privado, no século XVIII, está ligada à distinção
entre cultura e natureza. O cultural é identificado com o público, e o natural, com o
privado, lembrando que a família era vista como um fenômeno natural. A oposição
entre público/cultural e privado/natural é uma tensão que envolve controle e
equilíbrio, não apenas hostilidade. A importância dessa distinção está presente na
própria noção de direitos humanos, já que é justamente nesse sentido que se

11
Sennett (1988, p. 67) busca em Tocqueville (1835) a definição de Antigo Regime, que “(…) se
refere ao século XVIII, especificamente ao período no qual a burocracia comercial e administrativa se
desenvolve nas nações, paralelamente à persistência de privilégios feudais”.
29

estabeleceu a idéia de que certos direitos básicos são naturais e independentes de


questões culturais. São direitos desse tipo: a liberdade, a igualdade, a fraternidade e
a busca de felicidade.
Para entendermos melhor a idéia da busca da felicidade como direito
inalienável, voltamos à argumentação de Sennett (1988). Segundo o autor,
precisamos ter em mente que os direitos fundamentais estabelecidos no século XVIII
baseavam-se no pressuposto de que a psique tem uma dignidade natural e,
portanto, se algo prejudica uma pessoa, está impreterivelmente violando seus
direitos naturais. Assim, a busca da felicidade – e também a fraternidade – era
fundamental para a integridade psíquica: “É o homem natural que possui direitos
psíquicos, não o indivíduo. Todos os homens poderiam exigir felicidade ou
fraternidade, justamente porque o natural era impessoal e não-individual”
(SENNETT,1988, p. 118).
Certos direitos – até mesmo políticos – teriam fundamentos psicológicos,
baseados na crença de uma natureza comum de todos e numa teoria da
dependência natural.
A distinção entre a vida pública e a vida privada colocava de um lado as
exigências da civilidade e o comportamento público e, de outro, as exigências da
natureza, encarnadas pela família. A partir daí, podemos pensar nos
comportamentos e crenças12 dos cidadãos sobre a vida pública e a vida privada:

A família burguesa tornou-se idealizada como a vida onde a ordem e a


autoridade eram incontestadas, onde a segurança da existência material
podia ser concomitante ao verdadeiro amor marital e as transações entre
membros da família não suportariam inspeções externas. (SENNETT, 1988,
p. 35).

Essa crença descarta a possibilidade de qualquer interferência externa – seja


do poder público, seja da sociedade civil – na organização da vida familiar, mesmo
em casos de opressão e violência.
Outro ponto discutido pelo autor, que consideramos relevante para o estudo
de nosso tema, é o significado do público para homens e para mulheres. Para elas,
o domínio público era considerado como imoral, onde estariam correndo o risco de
perder a virtude, de se desgraçar. Esse significado moral e ideológico afastava as

12
Sennett (1988, p. 50) define crença como uma ideologia conscientemente envolvida no
comportamento; “(…) o quanto e em que termos as pessoas levam a sério o seu próprio
comportamento, o comportamento dos outros e as situações nas quais estão envolvidas”.
30

mulheres da vida pública. O homem, ao contrário,

(…) era capaz de se retirar dessas mesmas características repressivas e


autoritárias da respeitabilidade que se supunha estarem encarnadas em sua
pessoa, enquanto marido e pai, no lar. Assim, para os homens, a
imoralidade da vida pública estava aliada a uma tendência oculta, para que
se percebesse a imoralidade como uma região da liberdade. (SENNETT,
1988, p. 39).

O autor estudou a sociedade burguesa do século XVIII em Paris e Londres,


no entanto apresenta indicadores para pensarmos nossa sociedade atualmente.
Ainda hoje, o movimento feminista luta para a inclusão plena da mulher na vida
pública e para transformar problemas que ocorrem dentro da família – como a
violência contra mulheres e crianças – em questões políticas. Essas transformações
são possíveis à medida que as compreendemos em suas dimensões legais, mas
também sociais e psicológicas.
Por fim, discutiremos as contribuições de Noberto Bobbio (1992), que chama
o momento histórico que vivemos de “a era dos direitos”. Bobbio afirma que o
reconhecimento e a proteção dos direitos são a base da democracia e das
constituições modernas.
Para o autor, mais importante do que a distribuição cronológica dos direitos é
a relação deles com o poder constituído. As exigências de direitos ou buscam
impedir os malefícios que o Estado causa aos cidadãos, ou obter benefícios dele.
Aquilo que é considerado fundamental em um dado momento histórico pode ser
visto como irrelevante em outro.
O grande problema de nosso tempo, segundo Bobbio (1992), é político: como
proteger os direitos do homem? Como impedir que eles sejam violados? As
declarações de direitos, embora sejam importantes, não servem de garantia para
que sejam respeitados. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948)
universalizou alguns valores da humanidade, permitindo que os direitos, afirmados
nela como universais e positivos, fossem partilhados enquanto direitos do cidadão
do mundo. Para garantirmos os direitos, é necessária uma luta permanente, tanto na
esfera política como na econômica e na social.
O Estado de direitos é o Estado dos cidadãos. É um sistema de garantias dos
direitos dos seres humanos, que, por sua vez, depende do desenvolvimento global
da civilização humana.
O desenvolvimento dos direitos é um fenômeno histórico e social.
31

Determinadas condições sociais e pessoais têm relevância na atribuição de direitos.


Os direitos sociais, por exemplo, são atribuídos levando-se em conta as diferenças
específicas entre grupos de indivíduos. Dessa forma,

(…) o nascimento, e agora também o crescimento, dos direitos do homem


são estreitamente ligados à transformação da sociedade, como a relação
entre a proliferação dos direitos do homem e o desenvolvimento social o
mostra claramente. (BOBBIO, 1992, p. 73).

Os direitos são históricos e nasceram em contextos determinados, emergindo


de lutas do homem por sua emancipação e pela transformação das condições de
vida:

(…) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos
históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez, e nem de uma vez por todas.
(BOBBIO, 1992, p. 05).

A partir dessa afirmação de Bobbio, com a qual nos alinhamos, podemos


compreender melhor o desenvolvimento dos direitos de cidadania que trabalhamos
neste capítulo. Cada direito, mesmo os considerados naturais, foram conquistados
em momentos históricos determinados e com lutas específicas, sendo que há uma
distância entre os direitos reivindicados pelos movimentos sociais e aqueles
reconhecidos e protegidos pelo Estado e pela legislação.
Além disso, devemos ter em mente que a conquista de direitos é permanente.
Primeiro, porque há sempre novos direitos a serem conquistados. Como exemplo,
temos os direitos de terceira geração (ecológicos) e os de quarta geração (pesquisa
biológica, bioética), que não existiam no início do século XX e hoje são considerados
essenciais para a vida do ser humano e motivo de mobilização social. Em segundo
lugar, porque não há garantias de que direitos uma vez conquistados estejam
assegurados indefinidamente. Alguns exemplos históricos deixam isso bem claro: as
mulheres conquistaram vários direitos durante a Revolução Francesa que foram
destituídos quando a revolução terminou; os direitos políticos dos cidadãos
brasileiros foram revogados durante a ditadura militar.
Os homens não nascem nem livres nem iguais: “A liberdade e a igualdade
dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma
existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser” (BOBBIO, 1992, p.
29). A cidadania é, nessa perspectiva, uma conquista dialética que tem como
32

alicerce o direito a ter direitos, não se restringindo ao consumo de direitos já


estabelecidos.
Neste capítulo, buscamos compreender como se deu o desenvolvimento de
algumas das modernas concepções de cidadania discutindo as idéias dos principais
autores que trabalharam o tema. Assim, preparamos terreno para pensar quais as
modificações que a introdução de uma lógica de gênero pode trazer para a
cidadania. A introdução de uma perspectiva de gênero é relevante na medida em
que questiona a concepção liberal de cidadania e pode levar à ressignificação da
própria noção de cidadania. Para Dietz (1992, p. 63), que estudou as relações do
feminismo com as teorias da cidadania:

(...) poucas críticas ao liberalismo têm sido tão persistentes ou tão


abrangentes como as feministas. Certamente nenhuma outra tem sido tão
comprometida em articular alternativas para a visão liberal de gênero,
família, divisão sexual do trabalho e relação entre esferas pública e privada.
(trad. nossa)

Dessa forma, nos instrumentalizamos para analisar quais os sentidos da


cidadania em políticas públicas voltadas para mulheres em situação de violência de
gênero e, mais adiante, discutir contribuições da psicologia social para a questão da
cidadania em geral.
33

3 VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UM OBSTÁCULO PARA A CIDADANIA

A história da cidadania tomou novos rumos a partir da luta do movimento de


mulheres por seus direitos. Devido à importância das relações entre cidadania e
gênero, trabalharemos, neste capitulo, o processo de construção da cidadania das
mulheres, e, para tanto, retomaremos a história do movimento feminista e de sua
luta pelo fim das desigualdades e da opressão da mulher.
Esse processo de construção da cidadania, no entanto, enfrenta vários
obstáculos, sendo um deles a violência: “A experiência da violência é uma
experiência de violação de direitos individuais ou civis e, portanto, afeta a qualidade
da cidadania brasileira” (CALDEIRA, 2000, p. 343). Violência, porém, pode ser
enfrentada a partir de estratégias de cidadania. Dentre as várias violências a que
estamos sujeitos, preocupa-nos particularmente a violência de gênero, que atinge
cerca de 43% das mulheres brasileiras e é um empecilho real e cotidiano para a
cidadania, como discutiremos na última seção deste capítulo.

3.1 Gênero e cidadania

A exclusão da mulher da cidadania pode ser verificada historicamente, pois a


própria concepção moderna de cidadania foi construída tendo essa exclusão como
um de seus elementos constituintes e, ao mesmo tempo, construiu, simbólica e
politicamente, a idéia de diferença das mulheres em relação aos homens cidadãos
(GROPPI, 1995; SARACENO, 1995). A Declaração dos direitos do homem e do
cidadão (1789) defendeu a liberdade e a igualdade entre os homens, excluindo as
mulheres, tidas como destinadas por natureza à esfera doméstica e responsáveis
por zelar pela família. Atreladas aos interesses da família, era impossível que elas
fossem consideradas cidadãs. No entanto, não demorou muito para que as
reivindicações das mulheres ganhassem forma e força. Em 1791, Olympe de
Gouges escreveu e enviou para a rainha a Declaração dos direitos da mulher e
da cidadã; no ano seguinte, Mary Wollstonecraft escreveu sua Defesa dos direitos
da mulher. Esses foram os primeiros documentos relativos especificamente à
cidadania e aos direitos das mulheres. É bem mais tarde, no entanto, que podemos
dizer que há a introdução, através dos movimentos de mulheres, de uma perspectiva
de gênero na cidadania.
Antes de avançarmos nossa reflexão sobre as relações entre cidadania e
34

gênero, é fundamental esclarecer o que entendemos por “perspectiva de gênero”. O


termo “gênero” foi incorporado pelas feministas e intelectuais nos anos de 1970,
mas, para Saffioti, foi Simone de Beauvoir – no livro O segundo sexo, publicado
originalmente em 1949 – que iniciou os estudos de gênero:

Simone, a meu ver, iniciou os estudos de gênero e ela disse, ela escreveu
uma frase: ‘ninguém nasce mulher, mas se torna mulher’. Essa frase, na
verdade, reúne o único consenso que existe entre as feministas a respeito
de gênero. Todo mundo diz: gênero é uma construção social.
(SAFFIOTI, 2000, p. 22)

O termo “gênero” começou a ser utilizado à medida que feministas


reconheceram as determinações biológicas implícitas no termo sexo e buscaram um
conceito que abrangesse as dimensões psicológicas, sociais e culturais da
feminilidade e da masculinidade. Gênero é um conceito relacional que considera as
relações de poder entre homens e mulheres e indica que os papéis e as
subjetividades de ambos são construções sociais (GUERRA,1994; ALMEIDA, 1996;
AMORIM,2001; SAFFIOTI,2002). As mulheres que participaram da “Conferência
Nacional - rumo a Beijing” sugeriram a adoção do conceito de gênero como:

(...) construção social do masculino e do feminino e as relações que se


estabelecem entre homens e mulheres, uma vez que o termo sexo é
restritivo e se refere apenas à condição biológica, desconsiderando que as
discriminações e desigualdades são de caráter cultural, social e econômico.
(ARTICULAÇÃO, 1995, p. 55).

As relações de poder entre homens e mulheres são muitas vezes


assimétricas, exercidas pelos homens sobre as mulheres, embora Saffioti (2002)
sugira que o poder possa ser partilhado. Quando adotamos uma perspectiva de
gênero, precisamos ter em mente que há discriminações e desigualdades inscritas
nas relações de poder entre homens e mulheres, sendo que as mulheres vivem
situações de opressão e submissão, tanto na esfera privada quanto na pública
(SUÁREZ, TEIXEIRA, CLEAVER, 2002; GUIMARÃES, 2002; FARAH, 2004).
Trabalhar com uma perspectiva de gênero significa, então, realizar “(...) uma ação
que promova a redução de desigualdades entre homens e mulheres” (FARAH, 2004,
p. 65).
A práxis das mulheres introduziu uma perspectiva de gênero na cidadania
conduzindo à ressignificação do próprio conceito. Essa tese é defendida por Maria
Lúcia da Silveira (1999), que trabalhou o tema de modo bastante consistente.
Silveira (1999) segue uma linha argumentativa que parte da exclusão das
35

mulheres da cidadania clássica e vai em direção a um nova cidadania que vem


sendo ressignificada à medida que a perspectiva de gênero entra em cena. Silveira
(1999, p. 181) entende a conquista da cidadania como “(…) um processo constante
de redesenho das relações sociais, políticas e culturais sob a interpelação de novas
práticas de cidadania”.
Nesse sentido, para pensarmos uma cidadania que inclua de fato as
mulheres, é necessária a construção de uma nova sociabilidade através da
transformação nas relações de poder: “Visto desse modo, a cidadania passa a ser
um conceito aberto à experiência histórica de ‘tornar-se sujeito’. As mulheres
organizadas, construindo sua identidade coletiva, reivindicam e redefinem a
cidadania” (SILVEIRA, 1999, p. XXX).
A redefinição da concepção de cidadania passa pela discussão das relações
entre igualdade e diferença, muito debatida por teóricas feministas. Antes de
qualquer coisa, é conveniente definirmos que diferença e desigualdade não são
sinônimos, embora as diferenças possam ser traduzidas em desigualdades uma vez
que o diferente é explorado, subordinado e oprimido, restando-lhe o dever da
obediência. O sujeito oprimido e subordinado é visto como inferior e merecedor de
tutela, proteção e favor, mas não direitos (TELLES, 2001; CHAUÍ, 1985). Tornar o
outro, em geral as minorias (mulheres, negros, homossexuais, imigrantes, pobres),
desigual é “(…) uma operação ideológica que comporta uma apreensão discursiva
de relações de poder econômicas, sociais e culturais” (SILVEIRA,1999, p. 185).
Como fazer para que as diferenças não sejam traduzidas em desigualdades?
Para Silveira (1999), a alteridade, como aceitação do outro é condição indispensável
para que as diferenças não sejam transformadas em desigualdades. A igualdade se
realiza quando reconhecemos o outro concretamente, com suas diferenças
étnicas/raciais, culturais, de classe, de gênero, de orientação sexual, de religião.
Pois, “(…) apagar as diferenças é produzir desigualdades” (SILVEIRA, 1999, p. 183).
A luta pela igualdade política deve demandar políticas de igualdade e influenciar a
sociedade civil buscando mecanismos que impeçam as desigualdades e assimetrias,
indo contra os movimentos de subordinação/opressão e exploração que
potencializam desigualdades econômicas, sociais e culturais.
Entendemos que, no campo da cidadania, a igualdade, como uma categoria
mais ampla, precisa incorporar a diferença. Alinhamo-nos com a argumentação de
Dagnino (1994, p. 144):
36

A afirmação da diferença está sempre ligada à reivindicação de que ela


possa simplesmente existir como tal, o direito de que ela possa ser vivida
sem que isso signifique, sem que tenha como conseqüência, o tratamento
desigual, a discriminação (...). Concebido nessa perspectiva, me parece que
o direito à diferença especifica, aprofunda e amplia o direito à igualdade.

A própria Dagnino (1994), entretanto, chama nossa atenção para as “ciladas


da diferença” discutidas por Pierucci (1990). Esse autor vê de forma crítica a adoção
da bandeira da diferença pelos movimentos sociais de esquerda, principalmente
pelo movimento feminista. A idéia da diferença, que surgiu no séc. XVIII como
reação à igualdade, fraternidade e universalidade propostas pela Revolução
Francesa, sempre foi defendida pela direita conservadora: “A saber: a certeza de
que os seres humanos não são iguais porque não nascem iguais e portanto não
podem ser tratados como iguais” (PIERUCCI, 1990, p. 11). Para ele, o campo
semântico da diferença é vulnerável e pode ser retorcido, retornando facilmente – e
agora com mais força, visto que foi legitimado pela esquerda – ao campo ideológico
da direita:
(...) ao retornar para o campo da direita, o direito à diferença se reinsere em
seu velho contexto discursivo de matriz antiigualitarista, recarregando a
temática da diferença de demandas sociais e soluções políticas
abertamente excludentes e segregacionistas” (PIERUCCI, 1990, p. 30).

Então, no entender do autor, a luta da esquerda deveria ser pela igualdade e


pelos direitos humanos. Quanto à diferença, ou ao direito à diferença, ele insiste:

Se é para alguém de esquerda abraçar a diferença, que o faça sem abrir


mão da igualdade (...) À esquerda, quando alguém embarca no ‘direito à
diferença’, cabe-lhe de quebra o ônus de ter que ressalvar a todo momento,
em face dos mais impertinentes perquiridores, que ‘diferença não é
desigualdade, como você bem sabe’ . (PIERUCCI, 1990, p. 16)

Embora a discussão desenvolvida por Pierucci (1990) seja interessante por


nos alertar para os riscos de defendermos de modo acrítico o “direito à diferença” e
de nos esquecermos da importância do “direito à igualdade”, essa possibilidade não
parece constituir um dilema para as feministas, que mostram ter suficientemente
claro o valor tanto da diferença e quanto da igualdade:

Estas [as diferenças] provêem da natureza e da cultura, enquanto as


desigualdades são construídas exclusivamente pela sociedade. Diferença
não encontra seu par na igualdade, mas na identidade. O par da igualdade
é, evidentemente, a desigualdade. Igualdade social é um conceito político e,
substantivamente falando, o grande objetivo do feminismo, em todas as
suas vertentes. (SAFFIOTI, 2004, p. 49).
37

A importância das relações entre igualdade e diferença também está presente


na “Conferência Nacional de Políticas para Mulheres” (2004), onde a igualdade de
gênero – respeitando as diversidades de classe, raça, etnia, geração, orientação
sexual e deficiência – foi tratada como um princípio fundamental para superar as
desigualdades. Na “Conferência de Beijing” (1995), um dos grandes desafios
apontados foi o de tornar a igualdade entre homens e mulheres uma realidade na
vida cotidiana de todos, sendo responsabilidade do Estado garantir, em termos
legislativos, políticos, sociais e culturais, a igualdade, os direitos humanos e a
liberdade das mulheres e dos homens.
Silveira (1999, p. 187) define a igualdade como uma construção política:
Portanto, a igualdade é uma construção política resultante da luta entre
aqueles que têm poder e reproduzem a desigualdade, e aqueles sujeitos
que vivenciam a subordinação e propugnam a desconstrução dos
processos que transformam diferenças em desigualdades.

A proposta de Mouffe (s/d) é mais radical. Para a autora, que não acredita em
nenhuma forma de essencialismo, devemos construir uma nova cidadania na qual
“(…) a diferença sexual se torne algo realmente não pertinente” (s/d, 39). Não que as
diferenças de gênero não sejam fundamentais em várias relações sociais, mas que
não deveria sê-lo na esfera política nem na concepção de cidadania. Para tanto,
seria necessária uma profunda transformação na noção de cidadania e na atuação
dos cidadãos na comunidade política: “A visão de uma democracia radical e plural
que quero propor entende a cidadania como uma forma de identidade política que
consiste na identificação com os princípios políticos da democracia moderna
pluralista, ou seja, na afirmação da liberdade e da igualdade para todos” (MOUFFE,
s/d, p. 41).
Por esse ângulo, seria possível a articulação de grupos distintos na luta
contra a opressão e a transformação de todas as práticas, discursos e relações
sociais onde “mulher” corresponda à subordinação para, aí sim, falarmos em
igualdade das mulheres.
Concordamos que não se trata de “generificar” a cidadania, mas de redefini-la
levando em consideração as diferenças e as relações entre as pessoas: “Assim,
uma concepção de cidadania, mais ampla e pluralista, não poderia prescindir da
capacidade de agenciamento político que as interpelações múltiplas que as práticas
das mulheres introduzem no espaço público em busca de revitalizá-lo” (SILVEIRA,
1999, p. 180).
38

A tese de Silveira é de que a perspectiva de gênero contribui, através do


dinamismo da cidadania, para construção de alternativas emancipatórias para a
sociedade, podendo refazer a ligação entre Estado e sociedade civil de um modo
radicalmente democrático: “O alargamento do campo de visão da perspectiva
emancipatória tem partido da consciência da opressão e estimulado ações coletivas,
passando por um repertório que percorre a democratização dialógica da vida
pessoal e coletiva” (SILVEIRA, 1999, p. 234).
Frente às possibilidades de emancipação das mulheres conquistadas a partir
introdução de uma perspectiva de gênero na cidadania, podemos nos perguntar
sobre como é a cidadania das mulheres no Brasil contemporâneo. A Fundação
Perseu Abramo realizou, em 2001, uma pesquisa13 que nos auxilia a refletir sobre
essa questão. O primeiro ponto que nos chama a atenção na pesquisa é que os
direitos sociais (trabalho, saúde, educação e moradia) são vistos pelas mulheres
como os mais importantes, corroborando com a tese de que no Brasil esses direitos
são supervalorizados em detrimento dos políticos e, principalmente, dos civis
(CALDEIRA, 2000; CARVALHO, 2001; TELLES, 2001).
Os dados da pesquisa mostram que as mulheres avançaram muito na
conquista de direitos, mas há entre as entrevistadas uma percepção de que eles são
respeitados apenas parcialmente, tanto para os homens quanto para as mulheres
(GODINHO, 2004). Apesar dos avanços, a sociedade brasileira ainda está
impregnada por relações sociais desiguais, o que podemos ver, por exemplo, no
excesso de responsabilidade das mulheres pelo trabalho doméstico14 e na violência
de gênero15. Experiências de discriminação, violência e opressão – tanto nos
espaços públicos da política e do mercado de trabalho quanto na vida privada –
ainda fazem parte do cotidiano das mulheres brasileiras e estão internalizados nos
valores e práticas das pessoas (VENTURI e RECAMÁN, 2004). Por outro lado, é
inegável que a questão da mulher tenha se tornado pública e que as relações entre

13
VENTURI; RECAMAN; OLIVEIRA (org.). A mulher brasileira nos espaços público e Privado.
São Paulo: Ed. acima de 15 anos e residentes em áreas urbanas e rurais de todas as regiões do
país. Esta amostra dá à pesquisa uma margem de erro de 2 pontos percentuais, visto que a
população é de 61,5 milhões (Censo IBGE 2000).
14
Em 96% dos domicílios em que residem mulheres, elas são as responsáveis pelo trabalho
doméstico (dedicando em média 39 horas e 45 minutos semanais para as tarefas domésticas, além
de 33 horas e 41 minutos semanais para o trabalho remunerado, caracterizando a dupla jornada).
15
A partir dos dados da pesquisa, estima-se que 43% das brasileiras sofrem ou já sofreram algum
tipo de violência (física, sexual, psicológica) por parte de algum homem (na maioria das vezes o
companheiro ou o ex-companheiro).
39

os gêneros estejam se transformando.


Saffioti interpreta os resultados da pesquisa de forma crítica e, até mesmo,
indignada, principalmente no que se refere à percepção das entrevistadas sobre a
discriminação sofrida pelas mulheres:

(...) somente 5% das investigadas se dão conta de que sobre elas pesam
numerosas e agudas discriminações e a elas é reservado um lugar inferior
ao dos homens na sociedade. Que lástima que, em pleno século XXI, tantas
mulheres ainda sejam portadoras de “consciências dominadas” . (SAFFIOTI,
2004, p. 46).

Para a autora, a igualdade só é possível com a conquista da autonomia –


como um conceito político e coletivo – por parte das mulheres, pois “se a autonomia
é privilégio de apenas uma categoria social de sexo, fica patente a hierarquia e,
portanto, a desigualdade” (SAFFIOTI, 2004, p. 50).
Saffioti (2004) nos lembra que as desigualdades estão inscritas num tripé que
envolve gênero, raça/etnia e classe social. A pesquisa indica que 75% das mulheres
brasileiras vivem em domicílios com renda mensal de até cinco salários mínimos e
que dois terços das mulheres não passaram do ensino fundamental. Apesar de não
trazer diretamente informações sobre as condições de vida das mulheres negras, já
que a variável cor/raça foi tratada apenas de maneira genérica, os dados da
pesquisa apontam para o fato de que quando “(...) nos deparamos com a realidade
das mulheres negras, intensifica-se o quadro de desigualdades e opressões, sendo
intercruzadas as questões de gênero e raça” (RIBEIRO, 2004, p. 88). As mulheres
negras estão entre as camadas mais pobres e são os principais alvos de
discriminação e violência no Brasil.
Finalmente, a pesquisa da Fundação Perseu Abramo indica que uma das
mudanças mais marcantes na sociedade brasileira é a participação das mulheres no
mundo público (GODINHO, 2004). Um total de 40% das entrevistadas consideram a
política muito importante. No entanto, quando esse dado é cruzado com os níveis de
escolaridade, há uma discrepância: entre as mulheres que nunca foram à escola,
apenas 26% consideram a política como muito importante, enquanto o percentual é
de 76% entre aquelas com curso superior.
Embora a presença das mulheres nos espaços parlamentares e do poder
executivo tenha se ampliado, os percentuais ainda são muito baixos. Apenas 6%
dos municípios brasileiros são governados por mulheres. O legislativo conta com
uma média de 10% de mulheres. “O fato é que, seja nestes âmbitos ou nas várias
40

organizações de caráter político, a presença das mulheres nos espaços de poder e


direção continua tendo caráter de exceção” (GODINHO, 2004, p. 152).
Percebemos, enfim, que houve avanços na cidadania e na autopercepção das
mulheres, mas ainda aparecem concepções tradicionais de gênero demonstrando a
força da dominação patriarcal. A conquista da autonomia e a igualdade é um desafio
a ser enfrentado. As mulheres subordinadas e oprimidas podem lutar por seu
reconhecimento enquanto sujeito quando encaram sua situação a partir de uma
perspectiva de gênero que questione o sistema de dominação patriarcal e batalhe
pela redefinição da cidadania. As ações políticas com essa orientação
concretizaram-se no movimento de mulheres e no cotidiano das políticas públicas.
A seguir, discutiremos, a partir da história do movimento de mulheres, como
ele foi relevante no processo de ressignificação da cidadania.

3.2 Movimento Feminista16 e a construção de políticas públicas

A cidadania não é estática, pelo contrário, é processual, estando sempre em


modificação. São os movimentos sociais, nascidos de ações coletivas, que
denunciam a exclusão de certos grupos e as desigualdades da cidadania,
demandando não apenas a inclusão de novos direitos, mas também buscando a
redefinição da cidadania e relações sociais mais igualitárias em todos os níveis.
Lutam contra o autoritarismo social e as desigualdades econômicas. Se existem
unanimidades entre as várias tendências do feminismo, são estas: fim da opressão
às mulheres, fim dos pressupostos de inferioridade e submissão natural das
mulheres e o desejo de ampliação dos papéis e opções para elas (PINSKY e
PEDRO, 2003).
O movimento feminista nasceu no século XIX, como um movimento social
tradicional, organizado numa hierarquia piramidal. Antes disso, no século XVIII, a
participação de mulheres foi fundamental na conquista de direitos, embora estes não
fossem formalmente reconhecidos e tampouco elas fossem consideradas cidadãs

16
Neste trabalho, trataremos “Movimento Feminista” e “Movimento de Mulheres” como sinônimos e
usaremos ambos os termos alternadamente, assim como fazem muitos dos autores com os quais
trabalhamos. Gostaríamos, entretanto, de salientar que algumas autoras apontam diferenças entre
eles. Para Souza-Lobo (1991, p.241), por exemplo, “Os movimentos de mulheres remeteriam às
reivindicações sócio-econômicas; os feministas remeteriam às questões sócio-culturais que são
clássicas nos movimentos feministas: sexualidade, aborto, violência”. O movimento feminista se
diferenciaria do movimento de mulheres por ter a perspectiva de gênero e a desigualdade entre os
gêneros como elementos fundamentais.
41

ativas17. Como vimos, a presença das mulheres foi significativa nas revoluções
burguesas, em especial da Revolução Francesa, onde tiveram participação bastante
efetiva e da qual foram esquecidas quando os revolucionários chegaram ao poder.
Filósofos iluministas, entre eles o próprio Rousseau, afirmavam que a igualdade era
associada à razão e que as mulheres eram inferiores aos homens nessa faculdade
e, portanto, deveriam ser subordinadas a eles.
A herança deixada para as mulheres por outra revolução, a Americana, não
foram direitos de cidadania. No decorrer dessa revolução, ficaram evidentes as
capacidades das mulheres, mas elas foram rotuladas como “mães” que têm como
principal função educar e formar os filhos da nação, estes sim considerados
cidadãos.
No inicio do século XIX, as imagens polarizadas entre homens e mulheres
ganharam força, a incapacidade feminina era vista como natural, assim como a
autoridade masculina, justificando discriminações (PINSKY e PEDRO, 2003). As leis
trabalhistas, por exemplo, tinham caráter protecionista e favoreciam aqueles que não
eram considerados cidadãos, ou seja, mulheres e crianças. No final do século, as
mulheres passaram a lutar, numa campanha que ficou conhecida como movimento
sufragista, por direitos políticos: queriam votar e ser votadas.
No Brasil, o movimento sufragista também foi importante e, ao lado de uma
outra vertente, preocupada com a dominação das mulheres pelos homens,
caracterizava o feminismo no início do século XX. Até então, as mulheres não eram
consideradas sujeitos portadores de direitos e, portanto, não eram vistas como
cidadãs nem pelo Estado, nem pela sociedade civil. De acordo com Pinto (2003) –
que conta uma história do movimento feminista no Brasil com o objetivo de tentar
compreender como as mulheres vêm se organizando em defesa de sua cidadania –
a exclusão das mulheres era tão natural que não precisava sequer ser mencionada,
por isso não há referência a elas nas constituições da época18.
Uma das grandes defensoras do direito ao voto e dos direitos civis para as
mulheres foi Bertha Lutz. Em 1932, o novo código eleitoral incluiu a mulher como
detentora dos direitos de votar e ser votada. A luta pelos direitos políticos das

17
No final do século XVIII eram considerados cidadãos ativos aqueles que tinham direito à
participação no poder público e na Guarda Nacional, o que era possível apenas àqueles que tinham
propriedades.
18
A primeira constituição brasileira que faz referência a igualdade entre homens e mulheres e aos
direitos específicos das mulheres é a de 1988.
42

mulheres foi, no Brasil e no mundo, a porta de entrada delas no terreno da luta por
direitos mais amplos: “Na verdade, essa primeira luta era pela cidadania em seu
nível mais básico” (PINTO, 2003, p.38).
A outra corrente do feminismo era representada por operárias19 e intelectuais
de esquerda. Essas feministas, ao contrário de outros movimentos sociais da época,
colocavam em evidência as diferenças, até mesmo entre aqueles que viviam
situações de opressão. Acreditavam que os oprimidos não eram oprimidos da
mesma forma. Elas identificavam claramente a relação de dominação dos homens
sobre as mulheres e defendiam a idéia de que o poder deles tinha como alicerce a
exploração delas:

As operárias da época denunciaram, é certo, as condições de exploração


da força de trabalho feminina: os baixos salários, a opressão sexista
exercida pelos patrões, mas não se restringiram a isso. Também lutaram
contra os sindicatos que discriminavam as mulheres e contra a opressão na
família operária. (SOUZA-LOBO, 1991, p. 209).

Em 1949, foi fundada a “Federação das Mulheres do Brasil” que, em conjunto


com as associações de mulheres, tinham uma luta centrada nos bairros e voltada
para a solução de problemas locais. “Essas lutas”, nesse contexto, “embora
representassem uma movimentação ativa, inseriam as mulheres fundamentalmente
como colaboradoras das grandes causas nacionais” (SOUZA-LOBO, 1991, p. 215).
As mulheres continuaram se mobilizando em torno dos mesmos pontos até 1964,
quando o golpe militar fechou a Federação e os partidos aos quais elas eram
associadas.
A partir dos anos de 1960, o feminismo passou a se organizar de forma
diferente, caracterizando-se como um “Novo Movimento Social” (NMS), ou seja, um
movimento múltiplo, organizado em diversas frentes, cada qual com objetivos e
manifestações específicas, sendo que os diferentes grupos articulam-se e formam
redes, que têm grande força de mobilização.
Esse “novo” feminismo nasceu durante a ditadura militar. Enquanto nos
Estados Unidos e na Europa, as décadas de 1960 e 1970 foram de efervescência
cultural e política, abrindo caminho para o surgimento de NMS, que questionavam as
relações de poder e hierarquia nos âmbitos público e privado, no Brasil o cenário era

19
As operárias participavam ativamente do movimento contra a opressão masculina, pois o gênero já
era percebido como estruturante das desigualdades presentes nas relações de trabalho (PINTO,
2003).
43

bastante diferente. Em 1964, houve o golpe militar que instaurou uma ditadura que
cassou os direitos políticos e civis dos cidadãos. O Ato Institucional nº5 (AI-5), em
1968, coibiu ainda mais qualquer atuação política no país. Apesar disso, o
movimento feminista ganhou força e desenvolveu-se na década de 1970, sendo que
muitas vezes as feministas estavam envolvidas com a luta contra a ditadura:

O movimento feminista, em países como o Brasil, não pode escapar dessa


dupla face do problema: por um lado, se organiza a partir do
reconhecimento de que ser mulher, tanto no espaço público como no
privado, acarreta conseqüências definitivas para a vida e que, portanto, há
uma luta específica, a da transformação das relações de gênero. Por outro
lado, há uma consciência muito clara por parte dos grupos organizados de
que existe no Brasil uma grande questão: a fome, a miséria, enfim, a
desigualdade social, e que este não é um problema que pode ficar de fora
de qualquer luta específica. (PINTO, 2003, p. 45).

No Brasil, a condição de dominado atinge vários grupos, e as próprias


mulheres, podem estar em diferentes relações de dominação, pois há diferentes
posições de gênero, marcadas pela raça/etnia, classe social, cultura, religião. Nesse
contexto, o movimento feminista tem estreitas ligações com outros grupos que
também buscam colocar em xeque a condição de opressão na qual vivem.
Até 1962, as mulheres eram legalmente dependentes dos maridos, tendo o
exercício da cidadania controlados por eles, que podiam negar-lhes o direito de
trabalhar ou o direito de viajar para o exterior. Nesse ano, graças à grande luta do
movimento feminista coordenada por Romy Medeiros, foi aprovado o Estatuto da
Mulher Casada (Lei 4.121/62) que procurava garantir os direitos das mulheres
depois do matrimônio. O movimento feminista começou a politizar a vida dentro de
casa, o que gerou resistência na grande maioria dos homens, que temiam perder
poder.
Embora esses fatos relevantes tenham ocorrido, voltou-se mesmo a falar em
movimento feminista no Brasil em 1975, ano definido pela ONU como o “Ano
Internacional da Mulher”. Nas palavras de Pinto (2003, p. 56), “o ano de 1975 tem
sido considerado um momento inaugural do feminismo brasileiro”.
Em 1975, iniciou-se um movimento nacional denominado “Movimento
Feminino pela Anistia” (MFPA), que atuava diretamente “(...) na luta pela restauração
do Estado democrático, pela anistia aos exilados e presos políticos, por direitos
políticos e pela liberdade de expressão social e política” (ESMERALDO; SAID, 2002,
p. 238). Esse movimento, que colaborou para o avanço do movimento de mulheres,
foi extinto em 1979, quando a Lei da Anistia foi sancionada. O MFPA não discutia as
44

questões específicas da condição das mulheres na sociedade, no entanto, ele


colaborou no avanço do movimento feminista: “(…) o MFPA foi uma importante
escola política para as mulheres. Muitas de suas integrantes assumiram,
posteriormente, papéis de liderança no movimento de mulheres”. (CÓSER, 1989, p.
84).
Com a anistia, mulheres que estavam exiladas começaram a retornar ao
Brasil, trazendo na bagagem novas experiências e idéias: “Essas mulheres haviam
descoberto seus direitos e, mais do que isso, talvez a mais desafiadora das
descobertas, haviam descoberto os seus corpos, com suas mazelas e seus
prazeres” (PINTO, 2003, p. 65).
Entretanto, o cenário sociopolítico cultural no Brasil era totalmente diferente
da efervescente Paris, de onde muitas delas vieram. Não foi fácil para elas
concretizarem suas aspirações. Iniciaram o movimento em pequenos grupos e
tiveram muita dificuldade em transformar suas questões em temas de debates
públicos.
A partir da década de 1980, com a redemocratização, o movimento feminista
tomou novos rumos. O trabalho das feministas começou a ser feito em grupos
temáticos, sendo que os principais temas discutidos eram relativos à violência contra
a mulher e à saúde da mulher. Com a reorganização partidária, muitos grupos
ligaram-se a partidos: “Os discursos feministas invadem os discursos partidários,
mas as práticas autônomas se reduzem” (SOUZA-LOBO, 1991, p. 225). A decisão
de filiar-se ou não a partidos políticos provocou um racha dentro de movimento
feminista e levou muitos grupos a se dividirem e se dissolverem.
No início dos anos 80, foram criados os conselhos dos direitos da mulher em
vários Estados brasileiros e, em 1985, foi criado o “Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher” (CNDM), presidido inicialmente por Ruth Escobar e, de 1986 a 1989, por
Jacqueline Pitanguy. O CNDM estabeleceu três áreas de atuação imediata: creches,
violência e constituinte, mas elaborou também projetos para as áreas da saúde, do
trabalho, da educação e da cultura.
A criação do CNDM foi controversa, dividindo opiniões dentro do movimento
de mulheres. A demanda da criação do CNDM havia sido apresentada ao então
candidato à presidência da república Tancredo Neves por um segmento importante
do movimento de mulheres que estava filiado ao PMDB. Para as mulheres do PT,
não houve discussão dentro do movimento de mulheres, sendo o Conselho uma
45

decisão interna do PMDB.


Algumas feministas eram a favor da criação de Conselhos, pois acreditavam
que isso demonstrava que o Estado estava reconhecendo as reivindicações das
mulheres. Outras, entretanto, temiam que o movimento perdesse sua autonomia e
que o Estado cooptasse suas lideranças e manipulasse suas reivindicações.
Podemos resumir a posição das mulheres filiadas ao PT na seguinte frase: “Embora
a criação de Conselhos signifique um aspecto importante no sentido de se ter
órgãos para tratar da questão específica da mulher, no âmbito dos governos, é
fundamental manter a autonomia do movimento frente a eles” 20.
O CNDM enfrentou muitos altos e baixos desde a sua criação, pois diferentes
governos deram diferentes ênfases à questão da mulher. Esmeraldo e Said (2002)
retomam essa história desde o final do governo Sarney, quando a autonomia do
CNDM foi comprometida por uma determinação do ministro da Justiça, que rejeitou a
indicação das conselheiras feita pelo movimento de mulheres, levando à renúncia de
Jacqueline Pitanguy e de todas as conselheiras que representavam a sociedade
civil.
Em 1990, o governo Collor de Mello extingue as últimas prerrogativas do
Conselho. No governo seguinte (de Fernando Henrique Cardoso), apesar
de pressões do movimento de mulheres, o Conselho se mantém sem
funcionamento. (ESMERALDO e SAID, 2002, p. 247).

Assim, o CNDM dedicava-se a atender às demandas do governo e não


construía interlocuções com os movimentos de mulheres. No momento atual, parece
haver uma preocupação do governo federal com a questão das mulheres. O governo
Lula criou a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, indicando como
ministra a professora Nilcéa Freire, e reestruturou o CNDM. O decreto 4.773, de
07/07/2003, dispõe sobre a composição, estruturação, competência e funcionamento
do CNDM, afirmando a finalidade do órgão de promover, em âmbito nacional,
políticas com a perspectiva de gênero, que visem eliminar as discriminações e
preconceitos sofridos pelas mulheres.
Apesar dos percalços enfrentados pelo CNDM, um de seus méritos, apontado
por Esmeraldo e Said (2002), foi conseguir articular as parlamentares constituintes,
os movimentos de mulheres e a sociedade em geral na campanha da constituinte,
em 1987-88.

20
2o Encontro Nacional de militantes petistas no Movimento de Mulheres (1988) – Arquivo da
Fundação Perseu Abramo.
46

Na constituinte, as mulheres que haviam sido eleitas formaram o que


chamavam “bancada feminina”. Essa “bancada”, apesar de não estar
necessariamente ligada ao feminismo, incorporou reivindicações do Movimento
Feminista e apresentou 30 (trinta) emendas constitucionais relativas aos direitos da
mulher, englobando a grande maioria das reivindicações do movimento.
Essas reivindicações foram apresentadas na forma de uma Carta das
Mulheres. Esse documento era dividido em duas partes: a primeira falava de temas
como justiça social, educação e reforma agrária, ultrapassando os limites dos
interesses específicos das mulheres; a segunda voltava-se especificamente para os
direitos das mulheres, abrangendo desde direitos ao trabalho e à saúde, até as
discussões sobre a violência contra a mulher e o aborto. Pinto (2003) considera que
esses dois últimos pontos mostram a originalidade da Carta em relação a outros
documentos da época. Quanto ao aborto, o principal mérito da Carta foi abrir espaço
para discussão posterior do tema. Sobre a violência contra a mulher, foi proposta, de
forma detalhada:
(…) a defesa da integridade física e psíquica das mulheres, referindo-se ao
conceito de estupro e sua classificação penal, apenando o explorador
sexual e solicitando a criação de delegacias especializadas no atendimento
da mulher em todos os municípios do território nacional. (PINTO, 2003, p.
75).

Retomando a questão da presença das feministas na constituinte, esta se deu


através da capacidade que tiveram de pressionar e vencer resistências, exigindo a
incorporação de suas demandas na Constituição: “(…) [houve] o encontro da
sociedade civil organizada com instituições estatais e com o Parlamento, num
momento em que a primeira teve poder de pressionar, limitar e modificar a ação dos
dois últimos” (PINTO, 2003, p. 79).
Quanto aos resultados concretos desse processo, tivemos a incorporação da
maioria das ementas propostas pela “bancada feminina” na Constituição Federal de
1988. Entre outros, podemos citar os artigos 5º (I: “Homens e mulheres são iguais
em direitos e deveres, nos termos desta Constituição”) e o Art. 226º (Parágrafo
único: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos pelo
homem e pela mulher”). Para Souza-Lobo (1991), a afirmação de que homens e
mulheres são iguais é importante pois, com o reconhecer da diferença, baseada no
gênero, ela (a diferença) pode deixar de ser fonte de desigualdade.
47

Quanto à cidadania, não apenas foram incorporados direitos formais na


Constituição, como também se caminhou no sentido de uma nova cidadania, na
medida em que sujeitos sociais ativos definiram o que consideravam seus direitos –
criando-os se fosse preciso – e lutaram por seu reconhecimento e sua legitimação,
buscando construir relações mais igualitárias em todos os níveis, não se limitando
aos interesses apenas das mulheres, mas de todos aqueles que são oprimidos. Por
esse motivo, consideramos que esse momento do movimento de mulheres foi
emancipatório, embora certamente carregue em si contradições e não tenha dado
conta de eliminar as desigualdades sociais e as diferentes formas de opressão
sofridas pelas mulheres:

Não obstante as dimensões positivas das mudanças constitucionais – como


a incorporação de uma nova visão sobre as mulheres –, um grande
obstáculo à efetivação desses direitos encontra-se na violência doméstica e
familiar. (MORAES, 2003, p. 504).

(…) a euforia pela reconquista da cidadania e da democracia cedeu lugar à


constatação de que os donos do poder continuam os mesmo e de que a
prática de desrespeito aos direitos humanos parece estar inscrita na cultura
deste país. (ALMEIDA, 1996, p. 39).

A democratização teve um impacto importante no movimento feminista, que


tomou novos rumos a partir de 1990. Pinto (2003) demarca dois desses rumos: 1)
dissociação entre o pensamento feminista e o movimento. Para esse grupo, formado
por homens e mulheres que não se identificam como feministas, o mais importante é
que “(…) não é mais legítimo tratar mulheres, gays e negros como ridículos e
inferiores, e isto é, sem dúvida, uma vitória dos movimentos sociais” (PINTO, 2003,
p. 92); 2) profissionalização do movimento, concretizada em ONGs (organizações
não-governamentais) especializadas. Esse pode ser considerado um novo
fenômeno na política, onde a sociedade civil organiza-se e defende interesses de
determinados grupos. Entretanto, é preciso pensá-lo de forma crítica. As ONGs
vêem crescendo de modo acelerado e atualmente fala-se na “onguização” dos
movimentos sociais. A questão é que muitas ONGs – que em períodos anteriores
tinham articulações explícitas (ou vínculos orgânicos) com os movimentos sociais –
se dizem “representantes da sociedade civil”, mas não representam realmente os
interesses coletivos, expressando muitas vezes o desejo de sua equipe dirigente
(DAGNINO, 2004).
Como as ONGs são dotadas de competência técnica e inserção social, o
Estado as vê, segundo Dagnino (2004), como interlocutores “confiáveis”. Isso tem
48

pelo menos uma implicação direta: o Estado neoliberal transfere suas


responsabilidades relativas à defesa dos interesses coletivos para a sociedade
civil21. As ONGs:
(...) estão mais enraizadas na sociedade e chegam a ter uma capilaridade
que o Estado não pode ter, são eficientes, baratas, não desperdiçam
recursos com a burocracia, não são corruptas, apresentam resultados muito
mais significativos que a ação do Estado. São, portanto, ideais para
substituírem ou complementarem a ação dos órgãos públicos na área
social. (BAVA, 2000, p. 10).

Não apenas as noções de representatividade e de sociedade civil sofreram


deslocamentos semânticos; também a noção de participação está em disputa. A
participação é central no projeto democrático na medida em que tem um significado
coletivo e político e que busca a partilha do poder entre a sociedade civil e o Estado.
Dagnino (2004) aponta o esvaziamento do sentido daquilo que é chamado
“participação solidária” e “responsabilidade social”, a partir da adoção de uma
perspectiva individualista e privatista (pois dispensa os espaços públicos de debate)
no tratamento de questões como a desigualdade social – essa perspectiva
despolitiza a participação.
Nesse contexto, a década de 1990 é marcada pela fragmentação e
desmobilização do movimento feminista. Segundo Schild (2000), declarou-se que o
movimento de mulheres estava transformado, paralisado ou até mesmo morto. Ao
analisar o caso chileno, que claramente tem semelhanças com o brasileiro, a autora
propõe que a democratização explicitou conflitos internos do movimento de
mulheres:
(...) expôs as diferenças e tensões entre mulheres que estavam latentes no
passado. Existe hoje uma divisão fundamental entre as feministas que
acham que a luta pela maior igualdade das mulheres deve ser travada
dentro da política partidária e do Estado (conhecidas informalmente como
as políticas) e aquelas que insistem que essa instância levará a uma perda
de autonomia e, portanto, do potencial emancipatório-transformador do
22
movimento (as autônomas).(SCHILD, 2000, p. 158) .

Apesar desses conflitos e da desmobilização do movimento feminista, a


década de 1990 teve momentos de importantes conquistas. Em 1994, realizou-se a
“Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência Contra a Mulher”,

21
A sociedade civil é reduzida precisamente as ONGs: “O resultado tem sido uma crescente
identificação entre ‘sociedade civil’ e ONG, onde o significado da expressão ‘sociedade civil’ se
restringe cada vez mais a designar apenas essas organizações, quando não em mero sinônimo de
‘Terceiro Setor’ (DAGNINO, 2004, p. 100).
22
Este conflito entre feministas autônomas e partidárias ficará mais claro a seguir, quando
analisarmos o movimento feminista em Belo Horizonte (MG).
49

que ficou conhecida como "Convenção de Belém do Pará". Antes de Belém do Pará,
outra convenção internacional tratou da discriminação e da violência contra as
mulheres – foi em 1979, quando aconteceu a “Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher” (CEDAW, ONU). Na
Convenção de Belém do Pará, que definiu como violência contra a mulher “(...)
qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no
privado” (capítulo 1, artigo 1 o ), os Estados-pares concordaram em adotar
progressivamente medidas específicas para atender mulheres em situação de
violência e para prevenir e erradicar a violência contra a mulher.
Foi também nesse cenário que as mulheres brasileiras se mobilizaram para a
preparação para a “IV Conferência Mundial da Mulher”23, que se realizou em 1995,
na cidade de Beijing, capital da China. Esse foi um momento propício para realizar o
desejo de reerguer o movimento de mulheres. Nos anos de 1994 e 1995, muitos
trabalhos preparatórios (como fóruns, seminários, debates) foram organizados,
dentre os quais destacam-se “Fórum de Mar del Plata” (setembro, 1994), no qual
houve articulação do Brasil com os outros países da América Latina, e a
“Conferência nacional – rumo à Beijing” (junho 1995), onde foram estipulados
compromissos políticos e medidas de ação. O papel do movimento de mulheres foi
decisivo, principalmente porque pressionou e contribuiu “(...) para a formulação da
posição do governo brasileiro nesses encontros internacionais” (COLETIVO
FEMININO PLURAL/RS, 2004).
Compareceram à Conferência de Beijing, mais de 40 mil pessoas,
representando governos, movimentos sociais e ONGs de 189 países. Beijing foi
muito importante no sentido de consolidar o avanço da consciência mundial sobre
igualdade, justiça e direitos humanos, à luz da perspectiva de gênero e do
reconhecimento da desigualdade entre os sexos (COLETIVO FEMININO
PLURAL/RS, 2004; ARTICULAÇÃO DE MULHERES Brasileiras-Beijing 95,1995).
Assim, essa conferência deu origem a dois documentos: a Declaração de Beijing,
na qual os países signatários reconheceram a luta das mulheres e firmaram o
compromisso com a igualdade de direitos entre homens e mulheres; e a Plataforma

23
Antes da Conferência de Beijing (1995), foram realizadas “Conferências Mundiais da Mulher” no
México (1975), Copenhague (1980) e Nairobi (1985).
50

de Ação, que em seus 350 artigos:

(...) recomenda medidas nas áreas de saúde, educação, direitos


reprodutivos e sexuais, participação no poder e nos centros de decisão,
comunicação e meio ambiente, trabalho e emprego, direitos humanos,
conflitos armados, prevenção e combate à violência e à pobreza
(COLETIVO FEMININO PLURAL/RS, 2004).

Beijing avançou no debate em relação à igualdade de gênero e à sexualidade,


houve extensa discussão sobre saúde reprodutiva e sobre a descriminalização do
aborto. Na avaliação de Soares (1995, p. 73 ):

Os resultados não foram melhores, em minha opinião, porque houve uma


negociação em ceder em saúde reprodutiva, educação sexual,
‘empoderamento’ para as mulheres, em troca de manter intacta as
estruturas econômicas, esvaziar de conteúdo político as propostas e não se
definir recursos (cifras) para implementação da plataforma.

O tema da violência de gênero também esteve em pauta. Reafirmou-se a


necessidade de revisão dos códigos penais e de que a questão da violência de
gênero fizesse parte do orçamento da união, para a criação de centros de orientação
jurídica e de casas de abrigo, campanhas de divulgação sobre os direitos das
mulheres e capacitação de policiais para trabalharem com mulheres. A plataforma
de Beijing refletiu claramente as reivindicações e esforços do movimento de
mulheres de todo o mundo: “O documento aprovado trata da igualdade da mulher,
sua participação no poder e a possibilidade de justiça e estabelece compromissos
dos governos com a implementação desta Plataforma de Ação” (SOARES, 1995, p.
66).
Embora os governos dos países participantes tenham firmado o compromisso
de implementar a Plataforma de Ação traçada em Beijing, “Não nos resta dúvida
quanto ao fato de que as recomendações de Beijing só se traduzirão em ações se o
movimento de mulheres estiver empenhado em atuar politicamente para sua
concretização” (OLIVEIRA, 1995, p. 136).
Assim, o século XX foi marcado por importantes transformações no sentido da
emancipação feminina e ficou conhecido como o “Século das Mulheres”. No
mundo do trabalho, por exemplo, a entrada das mulheres foi maciça. Elas ocuparam
posições antes destinadas apenas aos homens e, hoje, somente 17% das mulheres
51

nunca exerceram trabalho remunerado24 (fixos e temporários), mas nos cargos de


alto escalão a presença das mulheres ainda é pequena.
Como resultado positivo da capacidade dos movimentos sociais negociarem
novos projetos com o Estado, temos a construção de políticas públicas. No Brasil,
cabe ao Estado garantir os direitos de cidadania e implantar políticas públicas, mas
elas só existem na medida em há um movimento social capaz de impô-las. Embora
existam diversas abordagens para o termo política pública (BATISTA, 2003),
adotaremos para os fins desta pesquisa, o seguinte conceito:

(...) garantia social, que tem como objetivo forçar uma redistribuição de
poder em determinado campo. Pode ajudar no processo forçoso de reforma
social e do aparelho estatal, mas apenas como elemento mediador das
transformações almejadas. (AQUINO, 2000, p. 285).

Assim, as políticas públicas são resultado de um jogo de interesses e


negociações entre o Estado e a sociedade civil. No entanto, o Estado pode
responder às reivindicações de grupos excluídos com políticas públicas tutelares e
assistencialistas, de ajuste econômico e social, numa sedutora integração individual
ao mercado, diminuindo as responsabilidades da instância estatal (DAGNINO, 1994)
e apaziguando as tensões sociais com a concessão de direitos sociais:

O mecanismo assistencial nas políticas sociais as configuram como


compensatórias de carências, concessão de benefícios e serviços, e não
como direitos de um cidadão usuário e de um possível gestor. Assim, as
políticas sociais no Brasil acabaram tornando-se um conjunto de programas
assistencialistas caracterizados como emergenciais e se colocando na
25
contra-mão da consolidação do direito. (BATISTA, 2003, p. 20) .

Contudo, os movimentos sociais podem romper com as políticas


assistencialistas propostas pelos governos liberais e buscar novas políticas públicas
que atendam de fato as suas necessidades e ultrapassem a dimensão formal da
cidadania, apontando para uma nova cidadania multifacetada. Nesse sentido, um
dos objetivos das políticas públicas reivindicadas pelo movimento de mulheres tem
sido “(…) romper e ultrapassar as condições de subordinação, dominação, opressão
e exclusão” (SILVEIRA, 1999, p. 246) em que as mulheres vivem. Essas políticas
podem ressignificar a cidadania, na medida em que questionam as relações de

24
Resultado da pesquisa A mulher brasileira nos espaços público e privado (IN:VENTURI;
RECAMÁN; OLIVEIRA, 2004).
25
No trecho citado acima, Batista (2003) está discutindo as idéias de Adaíza de Oliveira Sposati et
alli: A constituição de 1988 e o percurso das políticas sociais públicas no Brasil. In: ______. O
52

poder cristalizadas e abrem possibilidades de autonomia e transformação social.


Nas palavras de Silveira (1999, p. 244): “Aponto dois pólos da transformação social,
a subjetividade e a cidadania, como elementos chave para se pensar as
transformações das relações de gênero no conjunto das relações sociais”.
Hoje, no Brasil, muitas políticas públicas voltadas à mulher estão
implementadas e em funcionamento, tanto em âmbito municipal e estadual quanto
federal. Para ficarmos apenas nas políticas relativas ao combate da violência, temos,
por exemplo, as delegacias especializadas em crimes contra a mulher, que hoje
funcionam em dezenas de municípios brasileiros. As primeiras delegacias
especializadas foram instituídas na década de 198026, como resultado da luta do
movimento de mulheres contra a violência. No entanto, as relações do movimento
feminista com as delegacias foram conflituosas desde o início27. As delegacias
tornaram-se, então, alvo de críticas das feministas. Essas críticas referem-se
principalmente à qualidade do serviço prestado e à não-capacitação dos
funcionários para lidar com a questão de gênero, frustrando a expectativa inicial de
que as delegacias iriam responder de forma global ao problema da violência contra a
mulher. Contudo, a implantação dessas unidades policiais teve méritos, como a
publicização da violência de gênero e o aumento das denúncias, devido a
possibilidade do agressor ser responsabilizado criminalmente (CAMARGO, 1998).
Forçoso reconhecer, porém, que a existência de políticas públicas voltadas para as
mulheres não garante sua eficiência.
Com a finalidade de debater sobre as políticas de gênero no Brasil, a
Secretaria Especial de Políticas para Mulheres realizou em 2004 a “1a Conferência
Nacional de Políticas para as Mulheres”. A conferência teve como objetivo
proporcionar um espaço público de debate, elaboração e deliberação e de ser “(...)
um passo efetivo para que as mulheres sejam vistas como sujeito indispensável na
democratização do Estado e da sociedade brasileira” (SECRETÁRIA ESPECIAL DE
POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2004:9). O evento reuniu representantes de
todos os 26 Estados Brasileiros e do Distrito Federal (que haviam realizado suas

proocesso de democratização na sociedade brasileira contemporânea: 20 anos de luta pela


cidadania. São Paulo: Sesc, 1999.
26
A primeira delegacia de defesa da mulher foi criada em São Paulo, 1985, durante o governo de
Franco Montoro (PMDB).
27
Estes conflitos serão melhor explicitados no quarto capítulo desta dissertação, onde analisaremos
as entrevistas.
53

Conferências Estaduais e Municipais anteriormente). Nela, foram debatidos os


seguintes temas: enfrentamento da pobreza, superação da violência contra a
mulher, promoção do bem-estar e qualidade de vida para as mulheres e efetivação
dos direitos humanos das mulheres. Foram deliberadas diretrizes e indicativos para
ações governamentais, baseados, entre outros, nos princípios de igualdade na
diversidade, autonomia e responsabilidade do poder público de garantir a
universalidade dos direitos.
Essa conferência mostra-se importante uma vez que parece caracterizar um
espaço público no Estado, e bases discutem a formulação e implementação de
políticas públicas, apesar de ainda parecer distante a

(...) constituição de uma sociedade na qual homens e mulheres pudessem


descobrir o sentido do espaço público como espaço no qual a igualdade e a
justiça se realizam na prática democrática da permanente e reiterada
negociação. (TELLES, 2001, p. 87).

Enfim, os avanços na cidadania das mulheres são muitos, todavia, há ainda


muito a conquistar:

Entretanto, se a cidadania pode ser pensada como o “direito a ter direitos”,


ou seja como igualdade e como eliminação das formas de hierarquias
relacionadas ao ‘natural’, não podemos, ainda, considerar que o século XX
tenha fornecido às mulheres a plena cidadania. (PINSKY e PEDRO, 2003,
p. 293).

Percebemos, em meio a esse cenário, que um dos maiores ganhos do


movimento feminista é, usando a expressão de Rago (2004, p. 33), a “feminização
da cultura”:
(...) a única revolução que realmente vingou, no século XX, foi a feminista,
provocando não apenas o acesso das mulheres à cidadania, mas
acentuando um fenômeno igualmente profundo, embora menos perceptível,
pelo menos até recentemente: a feminização da cultura.

Essa “feminização da cultura” significa, em primeiro lugar, que as mulheres


conquistaram o direito à existência pública. Em segundo lugar, que as próprias
formas de existência social e relacional entre os gêneros estão se transformando,
abrindo a possibilidade para a construção de um mundo novo. E, finalmente, que o
feminino começa a conquistar progressivamente outro lugar no imaginário social, à
medida que deixa de ser visto como inferior ao masculino. Uma das mudanças
significativas no imaginário é que a maioria absoluta das mulheres acredita que deve
buscar sua independência econômica, emocional e sexual. A contrapartida é que as
54

exigências pessoais e sociais sobre a mulher cresceram enormemente (RAGO,


2004).
Finalmente, gostaríamos de frisar que a cidadania como possibilidade de
emancipação e de transformação social deve se instalar na cultura e nas idéias, nas
crenças, nos desejos e nos hábitos das pessoas. Entretanto, a cidadania das
mulheres ainda enfrenta um grave obstáculo: a violência de gênero (a que fizemos
menção quando comentamos a criação das delegacias especializadas). Portanto,
dedicaremos a última seção deste capítulo à discussão desse tema.

3.3 Violência de gênero

Desde a década de 1980, o movimento feminista tem colocado em pauta a


questão da violência de gênero. A violência é um ponto chave da militância, a ser
denunciado e posto em questão na luta pela criação de estruturas de apoio voltadas
às mulheres. Temos que ter claro que, embora existam diferentes posições de
gênero – marcadas pela raça/etnia, classe social, cultura, religião, de geração – a
violência perpassa a vida de muitas mulheres. Ela, tão presente no cotidiano de
muitas pessoas, é um desrespeito aos direitos fundamentais e um obstáculo para a
cidadania. Essa idéia pode ser traduzida nas palavras de Moraes (2003, p. 505): “O
tema da violência é primordial quando se trata de direitos de cidadania, na medida
em que a democracia é incompatível com todas as formas de violência que atingem
a integridade física, moral e psicológica”.
Numa sociedade na qual a arbitrariedade e a assimetria caracterizam as
relações sociais, a lógica da violência pode substituir a lógica do direito. Carreteiro
(2001, p. 159) afirma que a violência e o não reconhecimento do outro ferem
profundamente o sujeito, restringindo sua cidadania ao exercício formal da
intervenção coercitiva do Estado: “O sujeito desfiliado, desafiliado (sic), excluído, não
só se sente desvalorizado socialmente, mas invalidado psiquicamente”.
Hannah Arendt (1985), em seu livro Da violência, afirma que a violência
sempre teve um papel fundamental na atividade humana. Ao longo de seu
argumento, a autora diferencia violência de vigor, força e poder. Nessa discussão,
nos interessa a relação entre violência e poder, já que o poder é visto como a base
para a compreensão das relações de gênero e, portanto, da violência de gênero.
Para Arendt, onde quer que violência e poder se combinem, o poder – que não
precisa de justificativa, mas de legitimidade – é o fator fundamental e predominante,
55

pois a ameaça ao poder ou sua diminuição são um convite à violência. Não basta,
entretanto, diferenciarmos poder de violência. É preciso entender que eles se opõem
e que a violência não irá jamais gerar poder. Arendt (1985, p. 29) analisa esta
questão da perspectiva psicológica e da política:

Diz-se freqüentemente que a impotência gera a violência, o que


psicologicamente é verdadeiro, pelo menos quanto às pessoas possuidoras
de vigor natural.
(...)
Politicamente falando, a questão é que a perda do poder torna-se uma
tentação em substituir a violência pelo poder (…) e que a violência em si
própria resulta em impotência.

Arendt (1985) alerta para o perigo de teorias orgânicas, nas quais o poder e a
violência são interpretados em termos biológicos. O exemplo da autora refere-se ao
racismo, mas também pode ser pensado a respeito do gênero:

O racismo, seja branco ou negro, está impregnado de violência por


definição por objetar contra fatos orgânicos naturais – uma pele branca ou
negra – que não poderiam ser mudados de modo algum (…) O racismo,
distinto da raça, não é um fato da vida mas uma ideologia (…) A violência os
conflitos raciais é sempre assassina, não sendo porém ‘irracional’; é a
conseqüência lógica e racional do racismo. (ARENDT, 1985, p. 42).

Assim, não podemos pensar a violência como irracional. Ao contrário, a


violência de gênero regula as relações sociais: “(…) visa à preservação da
organização social de gênero, fundada na hierarquia e na desigualdade de lugares
sociais sexuados que subalternizam o gênero feminino” (ALMEIDA, 1996, p. 35),
existindo à medida que as relações de poder vigentes são ameaçadas.
No contexto estudado, a violência contra a mulher pode levar à sua exclusão
social, mas paralelamente proporcionar sua inclusão na política social. Entendemos
a violência de gênero como uma condição multidimensional de intensa opressão,
que atinge predominantemente mulheres e crianças28. Fazemos a leitura de gênero
devido à sua importância, juntamente com classe e raça/etnia, na constituição do
sujeito e na sustentação que dão à estrutura social brasileira (SAFFIOTI e ALMEIDA,
1995).
Para discutirmos a violência de gênero, voltaremos nossa atenção para a
pesquisa realizada por Karin von Smigay (2000), na qual a autora fez uma revisão
consistente da produção brasileira e internacional (especialmente francesa) sobre o
56

tema, além de propor um novo modelo analítico para as relações conjugais de


gênero. Smigay (2000) analisa o problema da violência de gênero partindo do
argumento que a violência de gênero vai muito além dos limites da privacidade,
constituindo um problema social, uma violação aos direitos humanos. Para ela, as
relações violentas estão calcadas em desigualdades entre os pares, aparecendo
como uma alternativa à negociação com o outro e reafirmando o sistema hierárquico
de dominações simbólicas.
Partindo desses argumentos, a autora propõe que as relações conjugais
violentas se articulam em torno de um tripé: intimidade, erotismo e violência. Ou
seja, as relações violentas são estruturadas por um vínculo em que a própria
violência, ao lado do erotismo e da intimidade, estrutura a relação. O espaço da
intimidade é lugar privilegiado para a expressão das fantasias, dos desejos, do
erotismo, mas também para acobertar violências, submissões e limitações:

Tendo como fundo o campo das intimidades, pretendo desenhar o mundo


contraditório das relações violentas, onde se entrecruzam restos de ternura,
projetos frustrados e reiteradas expressões de desamor, mas, costurando
esse tecido roto, em frangalhos, o mito de um amor que ainda poderá ser
ressuscitado e será redentor, recuperando, para sempre, parceiros que hoje
naufragam em suas pequenas trajetórias da vida privada. (SMIGAY, 2000,
p. 71).

A violência visa destruir o outro “(...) em sua imagem, seus pertences –


materiais e simbólicos – suas esperanças, investimentos e, em última instância, o
próprio vínculo amoroso” (SMIGAY, 2000, p. 221). A violência atinge e marca
profundamente os espaços psíquicos e o corpo, que é o locus da violência.
Existe uma relação direta entre a cidadania e o exercício da violência no
corpo, vista com naturalidade e tolerância na vida cotidiana. Nesse ponto, nos
apoiamos no estudo de Caldeira (2000) sobre o “corpo incircunscrito”29. O
argumento da autora é que há uma relação intrínseca entre a tolerância à violência e
deslegitimação dos direitos civis, pois o que poderia circunscrever o corpo – ou seja,
colocar limites na interferência e abuso do outro – é a garantia de direitos individuais
e a legitimação da justiça. O problema é que no Brasil os direitos civis são

28
A violência de gênero pode também ter como objeto “(...) homens que fazem sexo com outros
homens, homens de classes subalternas, ‘de cor’ e homens que não exercem dominação sobre as
mulheres”(SMIGAY, 2000, p. 222).
29
A autora define “corpo incircunscrito” como corpo permeável, aberto à intervenção, no qual as
manipulações do outro não são consideradas problemáticas. O “corpo incircunscrito” não é protegido
pelos direitos individuais.
57

historicamente negligenciados em relação aos direitos sociais e também aos


políticos, e o corpo não é respeitado em sua individualidade e privacidade. É sobre
esse “corpo incircunscrito” dos dominados que as relações de poder se estruturam e
que os significados circulam:

O corpo é concebido como um locus de punição, justiça e exemplo no


Brasil. Ele é concebido pela maioria como o lugar apropriado para que a
autoridade se afirme através da inflição da dor. Nos corpos dos dominados
– crianças, mulheres, negros, pobres ou supostos criminosos – aqueles em
posição de autoridade marcam seu poder procurando, por meio da inflição
da dor, purificar as almas de suas vítimas, corrigir seu caráter, melhorar seu
comportamento e produzir submissão. (CALDEIRA, 2000, p. 370)

O corpo, entretanto, não é apenas o locus do abuso, da violência e do prazer


do outro (SMIGAY, 2000). Afinal, as mulheres “(...) passaram a usufruir do prazer
sexual, a exprimir seus desejos, a conhecer o próprio corpo, a ler seus sinais e a
interpretar suas mensagens” (RAGO, 2004, p. 39). Contudo, essas mudanças têm
provocado conflitos de gênero e gerado mais violência, o que mostra que o
problema da violência de gênero é complexo e merece nossa atenção.
As mulheres – e seus problemas – foram durante séculos vistas como
pertencentes à esfera privada, e os homens, como portadores legítimos do poder e
da autoridade, podendo exercer violência contra sua mulher e seus filhos sem a
interferência do Estado, que não reconhecia a violência de gênero como um
problema político e, portanto, não a coibia. Santos (1994) afirma que, para o Estado,
as desigualdades no domínio doméstico eram vistas como naturais e irrelevantes e a
esfera da intimidade pessoal como impossível de ser politizada. É contra isso que se
apresenta uma das principais reivindicações do feminismo radical, a de que a esfera
pessoal é política. É graças às reivindicações e à publicização do problema pelo
movimento feminista que esse quadro vem aos poucos mudando - o Estado
brasileiro (em nível municipal, estadual e federal) está se responsabilizando pelo
combate à violência contra a mulher, embora ainda tenha muito a ser feito (por
exemplo, a punição efetiva dos agressores).
Como a violência de gênero ocorre muitas vezes dentro da família30, a relação
entre estrutura familiar e esse tipo de violência vem sendo trabalhada pelas
feministas. Almeida (1996, p. 37) desmistifica a idéia de família como lugar de

30
O marido ou parceiro é o principal agressor (53% nos casos de ameaça a integridade física e 70%
nos de quebradeira), seguido pelo ex-marido ou ex-companheiro. Dados da pesquisa A mulher
brasileira nos espaços público e privado – Fundação Perseu Abramo.
58

proteção, amor e cuidados:

(…) a família é uma instituição violenta e, em considerando a população


adulta, a violência é notadamente de gênero, atingindo, preferencialmente,
a categoria que se inscreve de forma subordinada no contexto de relações
desiguais de gênero.

A família é um lugar privilegiado para o surgimento da violência de gênero.


Isso não significa, entretanto, que esse problema seja de ordem privada. A dicotomia
público-privado é apontada pelas feministas como um elemento responsável pela
exclusão das mulheres da cidadania. As mulheres estiveram sempre situadas na
esfera privada, e sua participação na vida pública foi historicamente restrita. Silveira
(1999) defende a necessidade de uma rearticulação das relações entre esses dois
espaços, politizando o privado e desconstruindo o público. Para tanto, é preciso
questionar as relações de poder, a fim de que as mulheres tenham autonomia e
independência para enfrentá-las. Desse modo, aos poucos torna-se possível
redefinir a própria noção de cidadania.
Gregori (1993, p.107)31 sugere que as ações feministas, não assistencialistas,
não caridosas, buscam despertar as mulheres “para a ação política e se construir
como sujeito político defensor de seus direitos”32. E o direito implica no
reconhecimento – que pode ser feito com base em estratégias de cidadania – de
que a violência é um problema de ordem socioestrutural, oriundo da estrutura
familiar.
À medida que encaramos a questão da violência de gênero como um
problema social e de direitos humanos, temos que pensar em estratégias políticas
para resolvê-la. Entre suas estratégias de ação, o movimento feminista procura
chamar atenção para os diversos tipos de violência33 sofridos por mulheres:

31
Smigay (2000) assinala que a importância do trabalho de Gregori está no fato de que ela tentou
introduzir o subjetivo como um dos elementos fundamentais na análise da violência de gênero,
enfrentando as limitações da perspectiva macro-social vigente na época.
32
A autora distingue assistencialismo de política. O assistencialismo é relacionada à noção de
caridade e impede a mobilização dos demandantes. A política, por outro lado, pode ser pensada
como denúncia e autonomia.
33
As formas da violência de gênero são muitas. A violência sexual é quando a mulher é forçada,
mesmo por seu marido, a ter relações sexuais quando não deseja ou a praticar atos sexuais que não
lhe agradam, quando é criticada pelo seu desempenho sexual, quando é obrigada a presenciar outras
pessoas tendo relações sexuais ou a ouvir relatos de relações sexuais de seu companheiro com
outras pessoas. Ato destrutivo é quando o companheiro quebra móveis, joga os pertences da mulher
na rua, destrói ou esconde os documentos da mulher, destrói suas roupas ou quaisquer objetos
pessoais ou quando mata seu animais de estimação. A violência física configure-se se o companheiro
a agride com tapas, mordidas, socos ou fogo ou quando tranca a mulher contra sua vontade, a coloca
59

Desde meados dos anos 80, as feministas reivindicam com muita ênfase
uma política social preocupada com a segurança das mulheres nas ruas e
em seus próprios lares, punições mais severas para o estupro e a violência
doméstica, programas de proteção às vítimas e campanhas de
conscientização nas escolas e nos meios de comunicação. (PINKY e
PEDRO, 2003:304).

No Brasil, algumas dessas reivindicações vêm paulatinamente sendo


atendidas. Na década de 1980, as feministas articularam-se e constituíram uma
agenda nacional de combate à violência contra a mulher, na qual reivindicavam a
criação de políticas públicas destinadas a mulheres em situação de violência. Foram
criados os SOS Mulher34 e as delegacias especializadas. Os SOS, que surgiram
primeiramente no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte, “(…)
representaram a primeira forma de prestação de serviços jurídicos, de abrigo e de
práticas de conscientização junto a sobreviventes da violência” (ALMEIDA, 1996, p.
23).
Na década de 1990, foram criados centros de apoio e abrigos para mulheres
em situação de violência de gênero, como as instituições resultantes das políticas
públicas com as quais trabalhamos nesta pesquisa e que discutiremos no capítulo
seguinte, a Casa Abrigo Sempre Viva (CASV), o Benvinda - Centro de apoio à
mulher e a Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher (COMDIM), localizados
em Belo Horizonte/MG. Para Almeida (1996, p. 67), é imprescindível a criação de
abrigos que atendam a demanda, tanto emergencial quanto a previsível, para termos
uma eficiente política de segurança voltada para sobreviventes da violência de
gênero:

A existência de abrigos permite às mulheres que se vêem confrontadas à


violência: obter segurança contra risco imediato; recuperar-se psicológica e
fisicamente da violência sofrida; ter a oportunidade de elaborar um quadro
mais claro de sua situação e refletir sobre as saídas disponíveis; e partilhar
a experiência com outras mulheres, rompendo o isolamento característico
de quem vive tal problema.

Uma das discussões atuais sobre as políticas de abrigamento refere-se ao


não questionamento da possibilidade de tirar o agressor de casa. As mulheres
abrigadas na CASV queixam-se35 de sentirem-se prisioneiras enquanto seus

em risco ou a ameaça com uma arma mortal. A violência emocional é quando o homem xinga,
ofende, ameaça espancar a mulher ou seus filhos, a impede de trabalhar, sair ou ter amizade.
34
Uma análise da história dos SOS Mulher pode ser encontrada em Gregori (1993).
35
Esses dados estão nos relatórios feitos por mim dos “Encontros de Mulheres no Resgate da
Cidadania” (2001 e 2003).
60

agressores continuam levando vida normal. Em Quebec, relata Almeida (1996), há


uma política de abrigamento consolidada, onde há possibilidade de se retirar o
agressor da residência, e com as mulheres é feito um trabalho de desvitimização, no
qual são reforçadas sua auto-estima, autonomia e capacidade de decisão.
As políticas públicas têm grande importância para a emancipação das
mulheres, mas não são o bastante para acabar com a opressão do sexo feminino:

(…) conquistas feministas traduzidas em termos de políticas públicas (o que


denomina a norma oficial) não são suficientes para a alteração das relações
hegemônicas. Para que o pessoal seja vivido como político, transportando-
se do nível do discurso para as práticas cotidianas, é preciso que esta
concepção inscreva-se no habitus (grifo nosso), seja vivida enquanto
experiência de gênero, e permeie as lutas pela construção de uma contra-
ideologia, passando a informar ações individuais e coletivas. (ALMEIDA,
1996, p. 144).

Silveira (1999) propõe que o “empoderamento” e a autonomia, que estão


localizados na fronteira entre o individual e o coletivo, possam servir de critérios para
uma avaliação política das ações relativas à cidadania das mulheres. A mulher,
tomando consciência de seu valor, torna-se mais poderosa para enfrentar as
discriminações e as relações de poder, ampliando suas estratégias de ação com o
objetivo não só de resistir à condição de dominação, exploração e discriminação,
mas de superá-la. Esse processo é conhecido como “empoderamento”
(empowerment):

As práticas de empowerment observadas na pesquisa visam criar condições


para que as mulheres, nos diferentes espaços em que atuam, possam forjar
a cidadania como um processo, vista como estratégia de enfrentamento de
relações de poder que engendram e reproduzem as desigualdades em
diferentes níveis. Essas ações têm a finalidade não só de resistir à
dominação, exploração e discriminação, mas de superar essa condição.
(SILVEIRA, 1999, p. 188).

A problematização da violência de gênero como manifestação cotidiana das


relações de poder entre homens e mulheres, que impede o exercício da cidadania
plena, visa abrir possibilidades para pensarmos a violência como uma questão
política, que envolve direitos humanos e saúde pública. Portanto, o problema da
violência de gênero pode ser enfrentado com base em estratégias de cidadania que
permitam às mulheres enfrentarem as relações de poder, as desigualdades e a
exclusão. Assim, cidadania é peça-chave no processo de emancipação das
mulheres.
Até aqui, procuramos compreender as transformações sócio-históricas da
61

noção de cidadania, enfatizando as modificações impulsionadas pela lógica de


gênero e pela luta do movimento de mulheres para o reconhecimento da violência
de gênero como um problema de ordem política. No próximo capítulo, trabalharemos
as contribuições da psicologia social para o campo da cidadania, estabelecendo
uma base para a análise dos sentidos da cidadania para mulheres que são
lideranças de movimentos sociais e gestoras de políticas públicas voltadas para
mulheres em situação de violência de gênero.
62

4 DIMENSÕES PSICOSSOCIAIS DA CIDADANIA

A cidadania vem sendo tradicionalmente objeto de estudo das ciências sociais


e políticas, do direito e da história. Mais recentemente, a psicologia social começou a
trazer suas contribuições para a abordagem desse tema. Segundo Spink (1994, p.
93), a psicologia social, na medida em que privilegia o estudo dos fenômenos sociais
contextualizados e das relações entre o indivíduo e a sociedade, preocupa-se em
“(…) focalizar o processo individual ou grupal de construção da pessoa cidadã”.
Consideramos, portanto, que a cidadania engloba dimensões políticas, históricas e
psicossociais. Neste capítulo, contemplaremos a cidadania a partir de uma
perspectiva psicossocial.
A cidadania, segundo Hirschman (1983) diz respeito à relação da população,
que reivindica, com o Estado, que garante os direitos e faz a política. O autor propõe
dois modos possíveis dessa relação se estabelecer: como consumidor ou como
cidadão.
O consumidor seria aquele que consome os serviços prestados pelo Estado,
estabelecendo com este uma relação na qual há ausência de luta. Suas
preocupações seriam em sua maioria pertencentes ao âmbito privado e relativas ao
bem-estar material. Com o aumento de serviços oferecidos por setores privados da
população, ele passaria a consumir educação, saúde e lazer e não mais a reivindicar
seus direitos básicos. Hirschman (1983) afirma que o consumismo exagerado de
bens e serviços pode levar à alienação e à crença de que a felicidade só pode ser
atingida através da acumulação de bens de consumo.
O consumidor reduz sua participação política ao voto e acredita que com isso
fez a sua parte e que o que lhe resta é esperar a ação do Estado. O voto garante
uma parcela mínima de participação a todos e, paralelamente, estabelece um “teto
máximo” para a participação política, não traduzindo as convicções e reivindicações
de cada um e levando a uma apatia política. A restrição do envolvimento do cidadão
através do voto é, em parte, necessária e central no processo democrático, mas
limita também o exercício da paixão política, podendo gerar decepção e
despolitização (HIRSCHMAN, 1983).
O cidadão, por outro lado, entende sua relação com o Estado como uma
relação de direitos e deveres que devem ser cumpridos por ambas as partes. O
cidadão participa de ações políticas e acredita no potencial de transformação social
63

e política presente nessas ações. Ele envolve-se em questões cívicas e


comunitárias, agindo na esfera política, na qual está situado. O objetivo de sua luta é
que as reivindicações transformem-se em lei ou em alguma política pública.
Não podemos nos esquecer, no entanto, que os lugares de consumidor ou
cidadão não são estáticos. Para Hirschman (1983), a passagem das atividades
privadas para a vida pública e vice-versa explica-se por um ciclo: busca de
satisfação, expectativa, decepção, busca de satisfação em outro objeto, expectativa
e assim sucessivamente. O autor afirma que:

O mundo que tento compreender neste ensaio é um mundo em que homens


pensam que querem uma coisa e, ao consegui-la, descobrem, para seu
desalento, que não a querem tanto quanto pensavam ou não a querem em
absoluto e que alguma outra coisa, de que não tinham ciência mínima, é o
que realmente querem. (HIRSCHMAN, 1983, p. 25).

No entanto, pensamos que há outros motivos, para além da frustração, que


levam as pessoas a participarem de ações políticas e a se engajarem em
movimentos sociais. O primeiro desses motivos33 seria o compromisso com os
valores e crenças políticas, relacionados ao modo como a pessoa avalia o
movimento social. O segundo é a identificação com os grupos de referência, que
leva as pessoas a participarem para compartilhar os ganhos com o grupo e não
sofrerem sanções dele. O terceiro motivo estaria ligado à oportunidade de agir, pois
se o ganho parece mais fácil, tanto em relação ao custo/benefício, quanto às
conseqüências práticas posteriores, há maior tendência à participação. Quanto aos
custos e benefícios, os maiores benefícios da participação estariam na ação em si,
na formação de uma comunidade e na busca da sabedoria e da felicidade coletiva36.
Hirschman (1983) afirma que os custos da participação são, muitas vezes,
superiores a seus ganhos, causando obstáculos à participação e levando à apatia
política e à alienação.
“Alienação” é, segundo Sandoval (1994, p. 64), “tipicamente expressada em
suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina diária e o ‘natural’ das
desigualdades e dominação nas relações de poder na sociedade”. Um dos principais
aliados da alienação é, portanto, o cotidiano, pois ele é sustentado por uma enorme
força conservadora, ou seja, as pessoas têm grande resistência em mudá-lo. Assim,

36
Sobre a influência do aspecto custo-benefício na participação política, ver também a teoria de
Shubit “O dilema do prisioneiro”, em Sandoval (1989).
64

o cotidiano pode encobrir questões relativas aos direitos de cidadania e levar à


alienação.Embora não seja necessariamente alienada, a vida cotidiana é, entre as
esferas da realidade, aquela que mais se presta à alienação (HELLER, 1970).
Como vimos, nem sempre a cidadania favorece o fim das desigualdades e,
pelo contrário, pode mesmo corroborar com sua existência, à medida que fica presa
à mera concessão de direitos e deveres, não questiona de fato as relações de poder
e não tem como valores fundamentais a liberdade e a igualdade. Entretanto, numa
perspectiva emancipatória, a luta pela cidadania envolveria necessariamente a
identificação e o questionamento das desigualdades, dos mecanismos de controle
social e das relações de poder e dominação. Portanto, o exercício da cidadania é
necessariamente relacionado à consciência política, exigindo que o sujeito tenha um
pensamento crítico em relação aos fundamentos das relações de dominação e que
reconheça o outro como portador legítimo de direitos.
O reconhecimento do outro como aquele que tem direitos legítimos abre a
possibilidade de uma dimensão ética da vida social e da construção da cidadania.
Deste modo, a alteridade é um aspecto relevante da cidadania e é apenas a partir
de sua compreensão que podemos caminhar na direção de uma nova cidadania.
Segundo Dagnino (1994), a nova cidadania deriva dos movimentos sociais –
sendo, ao mesmo tempo, fundamental para sua consolidação – e tem como base à
luta por direitos, tanto à igualdade quanto à diferença.
Os novos movimentos sociais (NMS), que surgiram a partir de 1968, lutam, de
acordo com Boaventura S. Santos (1994), contra formas de exclusão e opressão,
exigindo transformações concretas e imediatas na sociedade civil. A desigualdade e
a opressão não podem ser abolidas com a mera concessão de direitos, como é
típico da cidadania liberal. A novidade dos NMS reside precisamente no alargamento
da política para além do liberalismo, considerando uma interpenetração entre o
Estado e a sociedade civil: “A politização do social, do cultural e, mesmo, do pessoal
abre um campo imenso para o exercício da cidadania e revela, no mesmo passo, as
limitações da cidadania de extração liberal, inclusive da cidadania social” (SANTOS,
1994, p. 227).
A nova cidadania estabelece uma nova estratégia de construção democrática
e de transformação social, política e cultural, na medida em que incorpora
características da sociedade contemporânea como a ampliação do espaço político e
a emergência de sujeitos sociais ativos e de novos tipos de direitos. Direitos esses
65

que, segundo Telles (2001, p. 59), estão inscritos:

(...) na dinâmica cultural e simbólica da sociedade. Determinam-se nesse


ponto de intersecção entre a legalidade e a cultura, a norma e as tradições,
a experiência e o imaginário, circunscrevendo o modo como os dramas da
existência são apreendidos, problematizados e julgados nas suas
exigências de eqüidade e justiça.

Dagnino (1994) organiza37 a nova cidadania – e a diferencia da concepção


liberal – a partir dos seguintes pontos:

1) Noção de direitos: a nova cidadania concebe o direito como direito a ter


direitos. Não se limita à conquista de direitos formais e abstratos, pelo contrário,
inclui a possibilidade de criação de novos direitos, que emergem de lutas específicas
e concretas.

2) Sujeitos sociais ativos: que irão definir o que consideram ser seus direitos e
lutar por seu reconhecimento. Nesse sentido, “é uma estratégia dos não-cidadãos,
dos excluídos, uma cidadania de ‘baixo para cima’” (DAGNINO, 1994, p. 108). É um
processo de tornar-se cidadão.

3) Proposta de sociabilidade: “(...) os direitos podem ser pensados como


forma de sociabilidade (...). Ou seja, uma forma peculiar de intersubjetividade pela
qual os indivíduos se percebem perante o outro nas suas diferenças” (Telles, 2001,
p. 64), onde o outro é reconhecido como sujeito de interesses, aspirações, desejos e
há luta por relações mais igualitárias em todos os níveis. Diz respeito ao
alargamento do âmbito da cidadania, que pode ser pensado como conquista
simultânea dos direitos civis, políticos e sociais.

4) Relação com a sociedade civil: a construção da cidadania requer “(...) um


processo de transformação das práticas sociais enraizadas na sociedade como um
todo” (DAGNINO, 1994, p. 109). Portanto, é necessário que a sociedade passe por
um processo de aprendizado de convivência com esses cidadãos que se recusam a
permanecer nos lugares socioculturalmente definidos para eles.

37
Utilizamos aqui o termo organiza com o propósito de frisar que estes pontos também foram
debatidos por outros autores, nos quais Dagnino (1994) se baseou para desenvolver seu argumento.
66

5) Definição do sistema: os cidadãos reivindicam o direito de participar da


própria definição do sistema, inventando uma nova sociedade, onde haja
participação efetiva nos governos locais. A intervenção popular no Estado é também
um espaço de luta política para a construção da cidadania. Por isso, é importante a
criação de espaços públicos, nos quais o conflito é visto como necessário e legítimo
como espaço de construção de direitos, já que os sujeitos políticos são múltiplos,
heterogêneos e compartilham de alguns princípios sobre cidadania e democracia.

6) Direito à diferença: a nova noção de cidadania “(...) pode construir um


quadro de referência complexo e aberto para dar conta da diversidade de questões
emergentes nas sociedades latino-americanas” (DAGNINO, 1994, p. 112). Ela
incorpora tanto a noção de igualdade quanto a de diferença, recusando “(...) as
diferenças como critérios discriminadores para afirmá-las na sua positividade,
exigindo direitos que lhes garantissem equidade na vida em sociedade” (TELLES,
2001, p. 77). Como vimos no capítulo anterior, esse ponto é importante na discussão
sobre o feminismo e sua relação com a cidadania.

Resumidamente, essa nova cidadania organiza uma estratégia de


transformação social, pois requer sujeitos sociais ativos que, respondendo a conflitos
reais, vividos pela sociedade em um dado momento histórico, definam seus direitos
e lutem pelo seu reconhecimento.
É nesse ponto, relativo ao sujeito social ativo, que Evers (1984, p. 23) introduz
a dimensão psicossocial à compreensão de movimentos sociais e de outros
fenômenos políticos:

Agora entendemos que sujeito social é algo definitivo e radicalmente


subjetivo, indelevelmente ligado à existência dos homens e, portanto, tão
insubordinável à retificação quanto própria vida. E compreendemos, afinal,
que quando falamos em sujeito social ou político como separado da
subjetividade humana, a distinção é basicamente artificial e analítica.

Assim sendo, para nova cidadania existir é imprescindível que haja um sujeito
social ativo, e esse sujeito-cidadão não pode ser divorciado de sua subjetividade.
Essa subjetividade da qual estamos falando só pode ser construída dentro de uma
esfera relacional. Corroborando com essa questão, Afonso (2000, p. 01) nos aponta
67

para o debate que surge dentro da psicologia:

(...) entre o respeito à singularidade do desejo de cada ser humano, ao


mesmo tempo em que reconhece que esse desejo só se constitui na relação
com os outros, parceiros de um mundo intersubjetivo e social. (...), o que
nos faz humanos é a relação com outros seres humanos, a partir da qual faz
sentido falar em autonomia e liberdade”.

A incorporação da alteridade é, então, um dos pontos centrais para uma


compreensão psicossocial da cidadania: “Esta perspectiva amplia o conceito da
cidadania para além da igualdade de direitos, incorporando-lhe a alteridade como
valor fundamental” (SAWAIA, 1994, p. 147). O desrespeito à alteridade, nesse
sentido, é entendido aqui como fonte de violência e de dominação.
Guareschi (2002, p. 154), por sua vez, nos diz que:

(...) a subjetividade chama atenção para o fato de que nós somos ‘os
outros’, isto é, nos constituímos de relações, de experiências que
estabelecemos e vamos estabelecendo a cada dia. Estamos, assim, em
constante mudança.

Desse modo, a subjetividade38 não se restringe ao eu, pois a cada vez que
encarnamos uma diferença nos tornamos outro, ou seja, o encontro/desencontro
com o outro abre em nós a possibilidade de vir a ser (ROLNIK, 1994).
É na relação com o outro e com a cultura que o sujeito se constitui. A
diferença é fundadora do sujeito: “(...) a pessoa constrói-se adiantando uma
diferença (...), descobre assim recursos simbólicos que lhe permitem inverter um
estigma que a negava como sujeito, ou a proibia de se exprimir enquanto tal”
(WIEVIORKA, 2002, p. 173). A subjetividade é, por outro lado, componente
essencial da diferença. Wieviorka (2002) analisa a diferença a partir de um triângulo
formado pela identidade coletiva39, pelo indivíduo moderno40 e pelo sujeito.
A definição de cada um desses conceitos é polêmica na psicologia. Como
aqui não pretendemos entrar nesse debate, escolhemos nos apoiar na noção de
sujeito por entendermos que ela nos auxilia na compreensão de nosso problema de

38
Rolnik (1194, p. 163) define subjetividade como tendo duas dimensões, uma consciente – que nos
dá a possibilidade de caminharmos no mundo – e uma inconsciente, “(…) que é a dimensão da
subjetividade mergulhada no invisível da alteridade, como caos, como devir-outro”.
39
“(...) conjunto das referências culturais em que se funda o sentimento de pertença a um grupo ou a
uma comunidade, seja esta real ou ‘imaginada’” (WIEVIORKA, 2002, p. 168).
40
Todos os indivíduos são teoricamente livres e iguais em direitos. “O indivíduo define-se aqui em
virtude da sua participação social e política na vida da cidade, e não pelas suas pertenças culturais”
(WIEVIORKA, 2002, p. 170).
68

pesquisa, na medida em que o sujeito é reflexivo, autônomo e “(...) mantém uma


ligação entre o dentro e o fora, o que articula a pertença cultural e a participação na
vida geral da sociedade” (WIEVIORKA, 2002, p. 182). O sujeito, ao mesmo tempo
em que se “(...) recusa de ver as suas necessidades manipuladas por aparelhos de
dominação cultural”, também tem desejo de comunicação, de reconhecimento de
sua existência “noutros si-próprios diferentes” (WIEVIORKA, p.176).
A noção de sujeito é relevante para o estudo da cidadania, porque esta exige
não apenas o conhecimento da legislação e o acesso à justiça, mas também “(…)
sentir-se igual aos outros, com os mesmos direitos iguais. Há uma necessidade
subjetiva para suscitar a adesão, a mobilização, tanto quanto condições para agir
em defesa destes direitos” (SAWAIA, 1994, p. 152). Assim, a alteridade pode trazer
autonomia, responsabilidade e possibilidade da construção coletiva da cidadania.
Nesse contexto, a liberdade pode ser entendida como a “(…) capacidade de
selecionar e de tomar decisões a favor das diferenças, decisões que são
disparadoras de processualidade” (ROLNIK, 1994:175).
A discussão que apresentamos neste capítulo pretende nos ajudar a pensar a
cidadania como possibilidade de emancipação e de transformação social,
considerando que ela deve se instalar na cultura e nas idéias, nas crenças, nos
desejos, nos hábitos e nos costumes das pessoas.
Importante, também, destacar que a forma pela qual nomeamos,
compreendemos e explicamos a cidadania constitui-se a partir dos discursos.
Portanto, cidadania não é uma entidade independente, mas uma produção social e
discursiva, uma vez que é através dos discursos que construímos o objeto do qual
falamos (FOUCAULT, 2004).
O sentido de cidadania é produzido coletivamente no discurso, na relação do
que a pessoa está falando com as condições da produção discursiva. O discurso é o
elemento fundamental na construção, na manutenção e nos processos de mudança
da estrutura social, estendendo seus efeitos sobre as identidades, as relações
sociais, o conhecimento e as crenças. Por esse motivo, analisar os discursos das
mulheres que são lideranças em movimentos sociais e gestoras de políticas públicas
nos possibilitará entender quais os sentidos de cidadania atravessam suas práticas
discursivas. É o que faremos agora, como procedimento para aprofundar a análise
dos dados de nossa pesquisa.
69

4.1 Análise do discurso

A análise do discurso é um método que tem origem transdisciplinar e é,


portanto, heterogênea. Rueda (s/data, p. 13) define três tradições de análise do
discurso: a lingüística (Escola de Oxford), a ligada a Michel Foucault e a Escola
Francesa. Neste trabalho, nos alinhamos à última.
A Escola Francesa de Análise do discurso surgiu na década de 1960 e
recebeu influências do estruturalismo, lingüística, marxismo e psicanálise. Seu
objetivo era constituir uma abordagem discursiva dos processos ideológicos
(MAINGUENEAU, 1993). Para a Escola Francesa, os discursos são enunciados a
partir de uma posição determinada, estão inscritos num contexto interdiscursivo
específico, revelam condições históricas, sociais e intelectuais e implicam crenças e
convicções compartilhadas (RUEDA, s/data).
Para Maingueneau (1993), toda produção de linguagem, seja ela falada ou
escrita, pode ser considerada discurso. O autor define discurso como sendo a
linguagem na medida em que ela faz sentido para os sujeitos que participam da
interlocução, sendo que eles estão inscritos em certas posições sociais e
conjunturas históricas. A noção de formação discursiva proposta por Maingueneau
fica clara nas palavras de Afonso (2001, p. 89):

(…) o termo ‘formações discursivas’, caracterizando os corpus das


enunciações que foram produzidas a partir de determinada posição sócio-
histórica onde os falantes individuais são substituíveis e que podem ser
relacionadas a um quadro institucional que delimita a enunciação a conflitos
sociais e históricos cristalizados, e a um espaço próprio no exterior de um
interdiscurso limitado.

Segundo Afonso (2001, p. 91): “(…) o discurso implica não apenas (ou
necessariamente) uma transmissão de informação entre dois sujeitos, mas de modo
geral, um ‘efeito de sentidos’ entre eles”. O discurso é produzido na relação, é um
jogo estratégico de ação e reação, de dominação e esquiva, de luta, é o espaço no
qual emergem os sentidos. O sentido é produzido na relação entre a fala da pessoa
e as condições de produção do discurso. Chamamos a isto de “interdiscurso”.
Brandão (2002, p. 12) entende o discurso como “o ponto de articulação dos
processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos”, que, portanto, não serve
apenas para comunicação:

(…) a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção


70

social; ela não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa
intencionalidade) e nem natural, por isso é o lugar privilegiado de
manifestação da ideologia”.(BRANDAO, 2002, p. 12).

Para entendermos o argumento de Brandão (2002), é necessário refletirmos


sobre a noção de sujeito na qual ela se apóia. Após uma extensa revisão sobre a
noção de sujeito, a autora afirma que o sujeito para a análise do discurso não é:

(…) nem totalmente livre, nem totalmente assujeitado, movendo-se entre o


espaço discursivo do Um e do Outro: entre a ‘incompletude’ e o ‘desejo de
ser completo’; entre a ‘dispersão do sujeito’ e a ‘vocação totalizante’ do
locutor em busca da unidade e coerência textuais; entre o caráter polifônico
da linguagem e a estratégia monofanizante de um locutor marcado pela
ilusão do sujeito como fonte, origem de sentido. (BRANDÃO, 2002, p. 68).

Como o sujeito é constituído na relação com o outro, a alteridade torna-se um


conceito fundamental também para a análise do discurso, além de ser, como vimos,
um elemento central para uma compreensão psicossocial da cidadania: “(…) sujeito
se constrói na alteridade, construindo o sentido das proposições na interação dos
atores sociais, a partir de suas posições sociais”. (AFONSO, 2001, p. 89).
Desse modo, o discurso do outro está sempre presente no discurso do
sujeito, ou seja, o discurso é polifônico. Havendo a “(…) presença de muitas vozes
na fala do indivíduo ou, ainda, das muitas posições ocupadas por um indivíduo no
interior de sua fala, vem confirmar o descentramento e a polimorfia desse sujeito”
(AFONSO, mimeo, s/data).
A citada polifonia demonstra que o sujeito é construído na alteridade e que
está inserido em relações de poder. O dialogismo é uma condição para a produção
de sentido e, com base nessa idéia, podemos compreender a teoria da polifonia: “O
discurso se tece polifonicamente, num jogo de várias vozes cruzadas,
complementares, concorrentes, contraditórias” (BRANDÃO, 2002, p. 53).
Para a análise do discurso, o que importa é o espaço discursivo criado entre
eu e tu, e é neste espaço de interação que o sujeito se constitui. Nem o sujeito, nem
o sentido são dados a priori, mas são constituídos no discurso. E o discurso não
pode ser apreendido diretamente; é preciso analisá-lo dentro de um espaço
discursivo41 e de um contexto sócio-histórico:

O discurso ou formação discursiva opera em um conjunto que engloba,


sucessivamente, o universo discursivo, o campo discursivo e o espaço

41
“Espaços discursivos: são recortes discursivos que o analista isola no interior de um campo
discursivo tendo em vista propósitos específicos de análise” (BRANDÃO, 2002, p. 73).
71

discursivo. O universo discursivo é o conjunto de discursos que interagem


numa dada conjuntura. Nele, por sua vez, podem ser recortados campos
discursivos, que são conjuntos de discursos que se encontram em
concorrência, se delimitam reciprocamente (como um campo filosófico,
político, etc). Como os conceitos de ‘universo ’e ‘campo ’são muito amplos,
a análise se pauta por um outro recorte: o do ‘espaço discursivo’, que é um
subconjunto ligando, pelo menos, dois discursos que mantêm entre si
alguma relação. (AFONSO, 2001, p. 90).

Estando claro o que entendemos por discurso, voltamo-nos para a análise do


discurso (AD)42, procedimento de análise de informações e dados que pretende:

(…) construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à


ação estratégica de um sujeito (...). O desafio crucial é o de construir
interpretações, sem jamais neutralizá-las, seja através de uma minúcia
qualquer de um discurso sobre o discurso, seja no espaço lógico
43
estabilizado com pretensão universal. (MAINGUENEAU, 1993, p. 11)

Brandão (2002, p. 40) define assim a função da análise do discurso:


Cabe à AD trabalhar seu objeto (o discurso) inscrevendo-o na relação da
língua com a história, buscando na materialidade lingüística as marcas das
contradições ideológicas. (…) Analisar o discurso é descrever os sistemas
de dispersão dos enunciados que o compõe através das suas ‘regras de
formação’ ”.

Como dissemos anteriormente, o discurso é polifônico, é interdiscursivo, e


temos que identificar a heterogeneidade implícita e buscar as outras vozes
presentes nele. Para esse fim, temos que procurar, por exemplo, os paradoxos
(duas afirmações diferentes que são igualmente verdadeiras), as contradições (duas
falas opostas sobre o mesmo objeto) e as ambivalências (dois valores diferentes
sobre a mesma coisa).
Sempre que vamos analisar um discurso, é fundamental termos clara a noção
de “interdiscurso”, a idéia de que o discurso é relativo às condições de produção.
Desse modo, poderemos apreender o movimento do discurso, que não é estático, ao
contrário, trata-se de um processo, uma estratégia.
Assim sendo, o discurso tem com mérito uma capacidade emancipatória,
possibilitando aos sujeitos tornarem-se “(…) mais conscientes das coerções sobre
sua prática, e das possibilidades, dos riscos e dos custos do desafio individual ou
coletivo dessas coerções, para se engajarem em uma prática lingüística
emancipatória” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 292). Entendemos, portanto, que a análise

42
Roteiro para análise do discurso anexo.
43
Nessa passagem Maingueneau faz referência a PECHEUX, Michel. Sur les contextes
épistémologiques de l’analyse du discours. Mots. Presses de la Fondation Nationale de Sciences
Politiques 9/10/1984.
72

do discurso é um instrumento que contribui de modo relevante para a compreensão


dos sentidos de cidadania. A análise das formações discursivas das entrevistadas,
empreendida no próximo capítulo, nos possibilita perceber as relações entre
contexto e subjetividade na sua fala, além de poder, em última instância, abrir
caminhos para a emancipação e para a construção de uma nova cidadania.
73

5 TORNAR-SE FEMINISTA

Nesta pesquisa, entrevistamos seis mulheres que têm experiência de


militância junto a movimentos de mulheres e/ou são gestoras de programas voltados
para mulheres em situação de violência de gênero, da Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte (MG). Estes programas são: a Coordenadoria Municipal dos Direitos da
Mulher (COMDIM), Benvinda - Centro de Apoio a Mulher e Casa Abrigo Sempre Viva
(CASV)44.
Utilizamos, como instrumento para a obtenção de dados, entrevistas abertas
semi-estruturadas45. A entrevista é um instrumento tradicional de coleta de dados
em ciências humanas e sociais. Nós nos alinhamos à perspectiva que define a
entrevista como “(…) uma interação verbal que permite a obtenção do discurso de
sujeitos determinados sócio-historicamente” (MACHADO, 2002, p. 35). O mesmo
autor concluiu que:

(…) o discurso produzido na situação de entrevista é realmente co-


construído pelos interlocutores e que as posições enunciativas de cada um
relacionam-se às comunidades discursivas a que pertencem e às insígnias
que aí circulam. (MACHADO, 2002, p. 13)

Embora o discurso seja co-construído, é necessário que o pesquisador


interfira pouco e de modo não diretivo durante a entrevista, pois o entrevistado é seu
sujeito central: “Neste enfoque, cada sujeito é tratado como único, central, porta-voz
de uma determinada formação sócio-histórica” (MACHADO, 2002, p. 48).
A entrevista aberta semi-estruturada permite “(…) a busca da apreensão de
processos, funcionamentos, fenômenos sócio-historicamente situados” (MACHADO,
2002, p. 51), em última instância, permite chegar ao que a linguagem revela, ao
discurso que emerge de uma situação intersubjetiva.
Como a entrevista é uma interação intersubjetiva, o pesquisador está
implicado tanto no discurso produzido pela entrevista quanto em sua análise
(MACHADO, 2002).
Assim, entendemos que, por uma questão ética, a análise do papel do
pesquisador deve ser parte da pesquisa.
Realizamos as entrevistas no período de julho a setembro de 2004. Todas

44
Os resultados da pesquisa serão repassados, numa apresentação pública, para a comunidade e
para as pessoas que trabalham nessas instituições.
45
Roteiro de entrevista em anexo.
74

foram previamente agendadas e duraram em média 90 minutos, tendo sido gravadas


em áudio-teipe, com autorização das entrevistadas, e transcritas literalmente, a fim
de possibilitar a realização da análise do discurso.
A seguir, apresentaremos cada uma de nossas entrevistadas:
Daniele, 33 anos, separada, um filho, formada em psicologia, com pós-
graduação em gerenciamento de assistência social. É concursada da Prefeitura de
Belo Horizonte (PBH) como analista de políticas públicas e atualmente é a gerente
da CASV.
Ermelinda, 34 anos, solteira, não tem filhos, formada em pedagogia.
Atualmente, é gerente do Benvinda e, anteriormente, foi gerente da CASV.
Graça, 42 anos, “solteira, né, Carol! (risos) mentira, gente, (risos) amasiada”,
dois filhos, cursou o segundo grau completo. Ocupação atual: “uai, eu to
desempregada, candidata a vereadora. Ocha”. No momento da entrevista, era
candidata à vereadora; antes de candidatar-se, era gerente do Benvinda.
Karin, 56 anos, divorciada, dois filhos, formada em psicologia, com doutorado
em psicologia social. É professora aposentada na UFMG e presta consultoria à
COMDIM, ao Benvinda e à CASV.
Luzia, 52 anos, divorciada, uma filha, formada em biologia. Era candidata à
vereadora no momento da entrevista e, antes, “era gestora pública, né, eu era
secretária da prefeitura de Belo Horizonte e me descompatibilizei no dia 2 de abril
pra ser candidata à vereadora”.
Márcia, 43 anos, solteira “no papel, casada... na vida”, dois filhos, formada
em história. Márcia é a coordenadora da COMDIM, mas, quando foi entrevistada,
estava de licença à maternidade.
Cada entrevistada foi escolhida por nós por ser militante no movimento de
mulheres em Belo Horizonte e/ou fazer parte da coordenação de algum dos
programas municipais voltados para mulheres em situação de violência de gênero.
Essa escolha justifica-se pelo fato de que, no caso de Belo Horizonte, há uma
estreita relação entre o movimento de mulheres e o governo municipal. Parte das
mulheres do movimento feminista foi levada a ingressar no governo, principalmente
após a posse de Patrus Ananias (PT) como prefeito municipal em 1993. Esse é o
caso de Márcia, Graça, Luzia e Ermelinda, por exemplo. Outras feministas são
ligadas à universidade, como Karin, ou a ONGs. As trajetórias dessas mulheres são
interligadas à trajetória do próprio movimento de mulheres na cidade. Assim, os
75

sentidos de cidadania produzidos por elas são conseqüências dessas histórias e têm
impactos no cotidiano das políticas públicas nas quais elas trabalham.
Analisamos as entrevistas através da análise do discurso, apresentada no
quarto capítulo desta dissertação. Iniciamos a análise com leituras flutuantes das
entrevistas transcritas46, a partir daí, levantamos as principais categorias e
subcategorias. O procedimento de análise passa pela análise de cada caso, pela
comparação intragrupos e, finalmente, pela análise transversal do material.
Passaremos, agora, à análise das entrevistas, iniciando pela história contada
pelas entrevistadas sobre a trajetória do movimento de mulheres em Belo Horizonte.

5.1 Memória e história: o movimento de mulheres em Belo Horizonte

No decorrer da pesquisa de campo e da análise dos dados, percebemos a


importância de iniciarmos a análise pela história contada pelas entrevistadas sobre o
movimento de mulheres na cidade de Belo Horizonte (MG). Esse tema é relevante
na medida em que a bibliografia existente a seu respeito é escassa47 e que ele
constitui o ponto nodal das entrevistas de Luzia Ferreira da Silva, Márcia de Cássia
Gomes e Karin von Smigay48. Além disso, ele é relevante em alguns momentos da
entrevista de Graça Sabóia. O tema, porém, praticamente não apareceu na fala de
Ermelinda, pois ela vem do movimento sindical, não do feminista. Daniele não viveu
esta história e nem tampouco a relatou.
A história do movimento de mulheres em Belo Horizonte (MG) e os percursos
das entrevistadas são inter-relacionados. A partir das memórias relatas por elas,
percebemos como essa história marcou suas trajetórias e foi elemento constitutivo
de suas identidades enquanto feministas.
Muitos episódios rememorados mantêm relações estreitas com o contexto

46
Roteiro de análise em anexo.
47
CÓSER (1989) analisou, em sua dissertação de mestrado em educação, a participação política de
mulheres mineiras em partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, nos anos de 1975-85.
GREGORI (1992) conta as origens e práticas dos SOS-Mulher no Brasil e menciona o caso de Belo
Horizonte (MG). MOREIRA; RIBEIRO; COSTA (1992) retomaram brevemente, em seu texto sobre
violência conjugal, a história do SOS-Mulher e da Delegacia de Crimes Contra a Mulher em Belo
Horizonte. LANNA (1996) fez uma pesquisa no mestrado em história sobre o Movimento Feminino
pela anistia em Minas Gerais. AMORIM et alli (2000) relataram a história das políticas públicas para
mulheres na cidade de Belo Horizonte. Esse texto foi elaborado pela executiva do Conselho Municipal
dos Direitos da Mulher.
48
Não pretendemos, no espaço desta dissertação, fazer uma pesquisa historiográfica do movimento
de mulheres no município, mas simplesmente retomar dimensões desta história relatadas por
mulheres que trabalham com a questão da violência de gênero.
76

nacional. Se o leitor retomar a história contada no capítulo III.2, também poderá


perceber a articulação entre os eventos relatados e os acontecimentos nacionais,
como a criação dos Conselhos Estaduais da Mulher e a participação na Constituinte,
que retomaremos adiante.
Conforme discutimos anteriormente, o movimento de mulheres começou a se
organizar na década de 1960 e ganhou força na década de 1970, quando
organismos internacionais, como a ONU, reconheceram a importância da questão da
mulher. O debate sobre essa questão também era feito em Belo Horizonte nos anos
70, momento em que se buscava uma ação conjunta do movimento de mulheres
com a universidade. No entanto, os relatos de todas as nossas entrevistadas
colocam o ponto de partida em 1980, ano em que Eloísa Ballesteros Stancioli e
Maria Regina de Sousa Rocha foram assassinadas por seus maridos. A história
relatada pelas entrevistas é conduzida por suas próprias trajetórias49, portanto elas
começaram a contar sua história enquanto feministas no momento em que entraram
para o movimento.
Esses assassinatos tornaram-se públicos e foram amplamente divulgados
pela mídia. Então, as mulheres organizaram um ato público com o objetivo de
mostrar repúdio aos assassinatos e de reivindicar a formulação de políticas públicas
voltadas para mulheres, como podemos ver nas falas das entrevistadas:

M: (...) a gente sabia, desde oitenta a gente sabia que tinha que ter políticas
pra mulheres vítimas de violência, então a gente não, não, não esconde
essa discussão e publiciza, mas o ..., o ... o número de pessoas que se
apropriam disso é muito pequeno, né. Porque a gente não tem interlocução,
né, com a mídia, né, por mais que a rádio Itatiaia fala, né, as rádios de
grande audiência, né, também, na época, né, acompanharam, porque foi
também um momento no qual a matança de mulheres em Belo Horizonte
era uma coisa, né, estrondosa, então isso publicizou, né, quer dizer, a
própria, a própria questão da violência, ela se imprim... ela se colocou como
uma de-man-da importante naquele momento, quer dizer, a gente queria
dar um basta naquela situação, aí foi a partir, né, da criação da Delegacia,
da criação da... da... da discussão dos abrigos, que isso, né, foi se, foi...
foi... foi cristalizando como uma ação, né. (grifos nossos).

L: (...) quando veio à tona alguns assa... assassinatos de mulheres aqui,


ganhou uma abrangência muito grande, isso despertou o interesse, né, na
sociedade pra esse tema, particularmente nas mulheres. Nós começamos
então a investir nessa organização, fazendo encontros, congressos,
conferências, criando entidades, específicas, né, e também, né, lutando, né,

49
Na entrevista foi solicitado que contassem sua trajetória no trabalho com a questão do gênero; a
partir daí elas retomam a história do movimento, indicando uma identificação entre a trajetória coletiva
e pessoal.
77

durante, dentro dos partidos políticos e também, principalmente, no período


eleitoral para que os candidatos, né, a governador, né, particularmente,
pudesse ter esse compromisso de também incluir na sua plataforma e
depois no seu programa de governo, né, ações afirmativas direcionada a
questão da igualdade de gênero.

K: Em... eu participo é... eu participo como interessada, é, divulgando tá...


tá... tá... aquele primeiro... aquele ato público em 1980 que foi organizado
por um grupo de... de feministas... que essa história toda cê tem né.

Essa mobilização culminou na criação de uma comissão paritária que resultou


na fundação do Centro de Defesa dos Direitos da Mulher, em agosto de 1980. A
criação dos centros de ajuda a mulheres que sofriam violência foi ligada à
necessidade de dar uma resposta política aos recentes assassinatos de mulheres. O
Centro iniciou os atendimentos às mulheres apenas um ano após sua inauguração.
Antes disso, houve planejamento e definição de objetivos: lutar contra a violência,
conscientizar a partir das experiências das mulheres e sensibilizar para as questões
feministas (GREGORI,1993).
Outra conseqüência desse ato público foi a criação do CDI, grupo de reflexão
que mais tarde monta o projeto do SOS Mulher:

K: (...) bom, aí eu começo a freqüentar o grupo, e trabalhar e... e, nessa


época o grupo já estava montando o projeto SOS, porque ele não começa
com o SOS, ele começa com um grupo de reflexão, né, e a idéia do SOS já
é de oitenta e um, oitenta e dois uma coisa assim. Bom... a partir dessa
época eu também me ligo ao SOS e começo a trabalhar, né, nos
atendimentos, nas reuniões de grupo...

O citado grupo, que era uma ONG, permaneceu trabalhando até 1992-93,
quando se dispersou. Teve, segundo Karin, a trajetória de muitos outros grupos:
“bom, o grupo na verdade funcionou, cresceu, se esvai e faz a trajetória de muitos
grupos”. E Karin acrescenta: “E o espólio [do SOS] acaba dividido entre pessoas e
grupos, é..., parte do material que a gente tinha a gente doou pra... depois... e bom”.
O grupo foi disperso e o SOS extinto, no entanto existiu alguma continuidade
do trabalho: havia um telefone para atender às mulheres na casa da militante:

K: E... o número de telefone ficou instalado na minha casa e aqui eu ainda


continuei fazendo os atendimentos até dois anos atrás. Foi.

C: Ah é?

K: Foi. É. A gente continuava pelo menos simbolicamente, né, com o resto


desse trabalho que pelo menos, antes a Telemig e depois a Telemar, ela
ainda sabia da existência, então, ela encaminhava.
78

No início da década de 1980, o movimento de mulheres produziu articulações


políticas, textos acadêmicos, sentidos de cidadania e gênero, além de novas
identidades e subjetividades nomeadas feministas. Havia uma grande articulação
nacional e alguma articulação internacional entre os grupos de mulheres, e o
movimento pressionava muito no sentido de mudar as representações sobre, por
exemplo, o papel das mulheres na sociedade e na política e seus direitos.
Quando Tancredo Neves assumiu o governo de Minas Gerais, em 1983,
houve o Encontro Feminista Nacional em Belo Horizonte. Nesse encontro, formulou-
se uma proposta de plataforma de governo, na qual havia a demanda de criação de
um Conselho Estadual da Mulher que tivesse como objetivo delinear políticas
voltadas para as mulheres, conforme o modelo já existente em São Paulo:

K: E tem dois momentos marcantes. Um momento que é o encontro que...


um dos encontros feministas que foi em BH, um dos nacionais que foi em
BH, que se discute, é..., que se consegue fazer uma plataforma com o
governo Tancredo, né, consegue se delinear um projeto nacional muito
claro com, com todas as áreas, já com pautas e tal.

A criação do Conselho Estadual não foi consensual, assim como ocorreu com
o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), indicando proximidade entre
os percursos nacional e estadual. Vejamos, por exemplo, duas posições:
M: Então a gente no... na década de oitenta, então a gente discutia porque
que o Franco Montoro criou o Conselho Estadual da Mulher em São Paulo,
porque que o Itamar Fran... o... tsc... Tancredo Neves criou, né, o... o... o...
Conselho da Mulher aqui, que também a Luzia participou, desse dessa
discussão, né, da criação do Conselho Estadual da Mulher. Aqui em Bel..., e
a gente era contra a criação de Conselho, porque a gente queria um órgão
que tivesse um poder de execução maior (grifo nosso).

L: Então foi assim que, em mil novecentos e oit... no inicio, na campanha


do... do Tancredo Neves ao governo de Minas de 82, que foi o ferem... dos
primeiros governos democráticos depois da... da... da ditadura, de eleição
direta, né, nós, né, na campanha, é um grupo de mulheres que militava a
época no... no PMDB, mas que também unia (grifo nosso) todos os
movimentos, as entidades específicas de mulheres, nós apresentamos uma
plataforma a todos os candidatos. E o Tancredo então, quando ele ganhou,
foi criado aqui, né, junto com São Paulo, que era, que implantou o primeiro
Conselho Estadual da Mulher.

Podemos perceber nessas falas que a questão política-partidária também está


presente no conflito, marcando as posições tomadas por suas filiadas. Márcia, filiada
ao Partido dos Trabalhadores (PT), era contra a criação do Conselho, enquanto
aquelas filiadas ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)50 eram a

50
Sobre a relação entre o movimento de mulheres e o PMDB ver: ARAÚJO, Lourdes Maria Silva.
79

favor. Entre os grupos autônomos de mulheres também houve dissenso. Como


Tancredo Neves, do PMDB, ganhou as eleições para o governo do Estado, as
políticas públicas foram delineadas a partir dos interesses deste grupo, gerando
insatisfação em outros. Segundo a Comissão de Mulheres do PT: “A criação do
Conselho Estadual não passou por uma discussão no movimento. Ela aconteceu
dentro do PMDB e a escolha das conselheiras foi feita através de indicação por parte
dos políticos”51 .
A escolha das conselheiras causou insatisfação em alguns grupos e pessoas.
Na fala de Karin essa insatisfação reaparece sustentando que quem ocupou a
maioria dos cargos de prestígio/poder foram mulheres de deputados e não
representantes do movimento de mulheres:

K: Lamentavelmente na hora de colocar as pessoas nos espaços, né, de...


de ocupar os cargos, os espaços de prestígio e tal, essa hora o movimento
de mulheres foi expurgado e entram só as mulheres de deputados, é..., e
a Junia Marize na presidência do conselho e tal, e aí, o movimento de
mulheres tenta ainda fazer muito esforço e trabalhar, mais tarde ela por
pressão consegue incorporar parte alguns grupos, que tinham ligações
políticas, com partidos políticos, né, não os grupos que se punham fora dos
partidos políticos (grifo nosso). Que esse foi debate sempre muito muito
interessante.

No entanto, Luzia, que era militante do movimento de mulheres, nos conta


que fez parte da primeira direção do Conselho Estadual:

L: Então eu fiz parte deste primeiro Conselho, né, é..., integrando a sua
secretaria executiva e a partir daí iniciamos também, então, pela primeira
vez, dentro das políticas públicas do Estado, uma perspectiva diferenciada.
é..., no Conselho, né, que envolvi, né, uma atuação integrada, mas unindo
também com... com representantes da do movimento de mulheres, nós
começamos, ele foi muito importante na....

Por um lado, Luzia relata ter feito parte do Conselho desde o inicio, por outro,
de acordo com Márcia e Karin, é apenas em um segundo momento que alguns
grupos de mulheres do movimento feminista – principalmente aqueles ligados a
partidos políticos – foram, com muita pressão, incorporados nos Conselhos. O
processo de elaboração e implementação dos Conselhos foi conflituoso e gerou
muita frustração e debate entre as feministas. Como nos diz Karin, a proposta de
implementação do Conselho “veio pronta de Brasília”. Márcia também afirma se

Mulheres na vida pública e o feminismo no Estado. Dissertação (Mestrado em Ciência Política).


FAFICH-UFMG, 1992.
51
Textos preparatórios para o 2o Encontro Estadual de Mulheres do PT-MG (Comissão de
Mulheres do PT em Belo Horizonte, abril e maio de 1988) – arquivo da Fundação Perseu Abramo.
80

sentir excluída desta decisão:

M: (...) a Neuzinha que cria a lei que cria o Conselho sem conversar com a
gente do PT, que nós éramos contra, ela vai conversar com o pessoal do
PC do B, com a Jô Moraes na época. Então depois, né, nós falamos, então
já é lei, né, foi aprovado, então o Conselho existe muito porque na época
não se tinha essa conversa, né, mais foi uma onda de criar Conselhos, o
Conselho Nacional, é, reivindicava e orientava a criação de um Conselhos
Municipais e Conselho Estadual. Então estourou conselho pra tod... muitos
lugares, né, no Brasil foi assim, pela orientação da do Nacional.”

Apesar das opiniões controversas sobre os Conselhos, ele é visto pelas


Mulheres do PT como um avanço: “A criação dos Conselhos, em que pesem suas
limitações, representa um avanço do reconhecimento da necessidade de elaboração
e implementação de políticas específicas que ataquem o problema da subordinação,
opressão e exploração das mulheres”52.
A julgar pelo que foi narrado até agora, a resistência em incorporar
representantes do movimento de mulheres nos espaços de poder não foi apenas do
governo. Nossos dados apontam que entre as próprias feministas a decisão sobre
trabalhar ou não junto com o Estado foi polêmica e provocou um racha entre as
mulheres do movimento. Havia um receio de que as lideranças do movimento
fossem cooptadas pelo Estado, e que as reivindicações fossem manipuladas de
acordo com interesses do governo. Márcia, por exemplo, afirma que: “(...) a história
em oitenta de construção dos Conselhos, né, como alguns governos, né, é,
apropriam de lideranças, né, pra que coloque eles no Conselho”.
No documento que registra o “2o Encontro Estadual de Mulheres do PT-
MG”,também podemos ver esse receio: “A criação dos Conselhos representa uma
resposta do Estado diante do avanço dos movimentos populares e de mulheres,
tentando cooptar suas lideranças e manipular suas principais reivindicações”53.
Alguns grupos e algumas pessoas em particular decidiram se aliar ao Estado
e ocupar os espaços; outros grupos e outras pessoas decidiram permanecer como
um movimento social autônomo e não se vincular ao Estado, mantendo sua posição
de interlocutor externo crítico. Podemos enxergar isso na fala de Karin: “Não era
consenso de que se deveria trabalhar junto com o Estado. Não era, de forma

52
Textos preparatórios para o 2o Encontro Estadual de Mulheres do PT-MG (Comissão de
Mulheres do PT em Belo Horizonte, abril e maio de 1988) – arquivo da Fundação Perseu Abramo.
53
Relatório das discussões dos temas preparatórios para o 2o Encontro Nacional de Mulheres
do PT – arquivo da Fundação Perseu Abramo.
81

nenhuma. Não era nem maioria”.


E mais adiante:

K: Mas esse momento foi interessante. Jacqueline Pitanguy então sai


decidida aqui de que ela vai e... e ela se posicionou publicamente, quero ir e
quero assumir, né, a coordenação e... e, por exemplo, o... o grupo que eu
fazia parte, CDM, continuou decidindo estar fora. Queria manter sua
independência como já tinha decidido com o conselho estadual. Que não
queria, que não queria fazer parte. Isso é uma decisão política na época de
ta... de poder ser um interlocutor suficientemente critico se ficasse externo,
né, ao aparelho. é. Mas mesmo assim , depois que Jacqueline assume,
ela... ela convida os grupos mais importantes no país, de militância, né. Ela
convida o movimento social através dos grupos articulados para ocupar
alguns espaços. E aí a Celina Albano sai de Belo Horizonte, decidido
também no interior do CDM, né, ele discute longamente. Mas aí Celina
também foi desse jeito. Falou: e se vocês não me apoiarem eu vou pôr
minhas pernas, me desligo do grupo e vô. Mas acho bom que vocês apóiem
e eu vá representando o grupo. Aqueles graus de pressão que se misturam
trajetórias pessoais com trajetórias coletivas (grifo nosso).

Portanto, o movimento feminista preocupava-se, no inicio da década de 1980,


sobre como deveria ser sua inserção no aparato do Estado. As decisões a esse
respeito foram sendo delineadas a partir da interface entre as trajetórias pessoais e
coletivas. Houve rachas dentro dos grupos, que tinham pessoas com diversos
posicionamentos e interesses. Alguns grupos, como aquele ligado ao PMDB,
caracterizaram-se por trabalhar junto com o Estado na formulação das primeiras
políticas públicas. Outros, como o CDM, ficaram divididos entre membros que
reivindicaram seu direito de ocupar os espaços e membros que lutaram pela
autonomia do movimento em relação ao Estado. Finalmente, havia grupos, como as
“Mulheres do PT”, que se mantiveram, no primeiro momento, como autônomas ao
Estado, porém, mais tarde, com a vitória do partido nas urnas, migraram para o
governo. Voltaremos a discutir a relação entre o movimento de mulheres e o Estado
ainda neste capítulo.
Em meados da década de 1980, o movimento de mulheres tinha a
reivindicação de criação de uma Delegacia Especializada em Crimes Contra a
Mulher. Já havia sido montada, em São Paulo, a primeira Delegacia Especializada
do Brasil e representantes do movimento em Minas foram a São Paulo conhecer a
experiência paulista, como nos conta Karin:

K: E no caso em Minas... São Paulo tava acabando de montar sua primeira


delegacia. Eu fui pra São Paulo pra fazer, é..., conhecer a delegacia, tirada
pelo grupo aqui, né, quer dizer, aí já não era nem CDM, aí já foi...nesse
momento a gente já conseguia, porque no inicio dos anos oitenta era muito
difícil se articular com os outros grupos...
82

A fala de Luzia também mostra a importância da criação da Delegacia


Especializada:

L: E conquistamos aqui também, em mil novecentos e oitenta e cinco,


começamos a luta pra criar a delegacia especializada, né, de crimes contra
a mulher. Isso tudo foi fruto, né de, de ter já um pouco de espaço a nível do
poder público, mas também da pressão, né, do movimento de mulheres e
das mulheres que começaram também a ter uma consciência maior dos
seus direitos e da necessidade de... de... de reivindicar igualdade. Ent...
então, todo esse processo que com-, então Minas foi pioneira, né, no
Conselho Estadual, nos no órgão público, aqui e São Paulo foram os
primeiros, porque na delegacia também, primeiro foi em São Paulo, depois
foi aqui, em Belo Horizonte.

Depois de muita pressão e negociação do movimento – e da imprensa – com


o Estado, a Secretária de Justiça implementou, em 1985, a primeira Delegacia
Especializada do Estado, reconhecendo a importância dessa demanda:

Com a pressão do movimento de mulheres e do reconhecimento pelo


Estado das reivindicações, foi criada em 1985, em Belo Horizonte, a
primeira Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher possibilitando,
assim, que as mulheres buscassem na denúncia uma forma de dar
visibilidade e publicidade a uma questão que ainda pertence à esfera do
privado (AMORIM, 2001, p. 53).

A luta do movimento de mulheres pela criação da Delegacia foi intensa, e


houve negociação de interesses do movimento com a Secretaria de Justiça e com a
polícia:

K: Surto, porque era uma questão de mulheres que não interessava e surto
porque era surto pra com muita coisa. Ce percebia, porque a gente ficava
em ante-sala, né, e tal. Que era muito difícil e porque tem, e é um estilo de
polícia trabalhar e tal que se escuta muito pouco, né. Faz-se muito barulho,
fala-se muito alto, movimenta-se muito, mexe-se muito pra lá, entra em
porta sai de porta, fecha isso e tá... tá... tá... Muita gente se locupleta nesse
lugar mais na prática mesmo, trabalho, resultados é sempre muito... muito
pouco, né. Estilo, vamo dizer, corporativo de trabalhar. É... bom, mas enfim
ele já tava começando a ser pressionado também pela imprensa, a
imprensa já tava começando a ir na secretaria, e ai como é que ce vai
formular, vai num vai ter, São Paulo já tem, imagina não podemo ficar atrás.
Aquela coisa provinciana também. Aí então, teve uma hora que ele, a gente,
nós já tínhamos ido lá umas duas três vezes aí ele, teve uma hora que ele
falou: chama lá aquelas mulher chata lá pra gente vê o que... que elas
querem, pra num dize que a gente crio alguma coisa separada. Eu lembro
dele fala assim: fala, manda fala com aquela alemã briguenta lá, que tudo
que eu falo ela fala que não. Era eu! (risos) alemã briguenta. Era assim que
ele me chamava (risos). Manda chama aquela alemã briguenta, eu não sei o
nome dela (risos). Entre as pautas a gente pedia a possibilidade tanto
de trabalhar nas no delineamento da, da delegacia, quanto no
treinamento das equipes (grifo nosso).

O movimento de mulheres reivindicou sua participação no delineamento da


83

delegacia e no treinamento das equipes; a Secretaria e a Delegacia não atenderam


às propostas das feministas:

K: Que que é que vocês tão chamando de treinamento? É tiro ao alvo? Que
que cês tão precisando aprender que cês num sabem? Né. Botou uma
delegada lá pra ensinar pra gente, ela se ofereceu pra dá um curso de tiro
ao alvo e de segurança pessoal. Né. Então assim, era, cê tinha que segurar
pra poder dá conta daquelas reuniões e tal. Era muito trágico... é aquela
54
outra coisa. Um dia ele chega: tô com o problema solucionado! Vocês vão
adoram a delegada! Ela é muuito bonita! Né, assim era (risos) tripudiava em
cima da gente né, eu acho que nós também né. Também por outro lado,
nós também éramos chatas, íamos pra imprensa, contávamos como que
tava sendo as decisões lá dentro, como eles eram insensíveis, como eles
eram incapazes. Eu acho que era de parte a parte. Fomos insuportáveis
(risos) uns pros outros. Foi muito difícil mesmo, esse momento. É... constrói-
se parcialmente alguma coisa com Elaine Matozinhos porque era a mulher
bonita que ele tinha designado, né. E... de cara nós babando a inveja de
São Paulo, porque em São Paulo o movimento de mulheres tinha
conseguido delinear as coisas como... lá a Rosemary tinha conseguido
impor a idéia do treinamento... Não, num conseguimos delinear, fizemos as
várias propostas e tal, com muito custo parte do projeto passou por
discussão dessa comissão junto com Elaine, é..., e algumas coisas ela já foi
não e dizendo não aqui... muito instruída pela secretaria, né. é... num
podemo perder, esse espaço é nosso, a instituição é nossa, o poder é
nosso, a decisão é nossa, a palavra final é nossa. Entendo que esses, né,
esses, vamo dizer assim, esse jogo aí de poder, de enfrentamento, de parte
a parte. Mais... tem hora que cê tem ganhos e mil perdas, é isso mesmo, um
processo. É... teve coisas que ela nunca abriu mão, por exemplo, ficou
claríssimo que foi uma incorporação da delegacia de costumes tal e qual.
Com todos os seus encargos e suas questões, né, é..., tanto que as batidas,
por exemplo, em clinicas de aborto, que mais tarde continuaram a ser feitas,
herança da do..., né, do da delegacia de costumes... né. muito pouca coisa
se foi deixando de fazer. O fichamento das... das prostitutas, né, os
enclausuramentos temporários delas e dos... e dos... dos caras michê, que
eles sempre faziam, ainda se fez algumas vezes, né. é... foi reduzindo, né,
mais, né, ainda se considerava como atributo, né, como competência e
vanta..., né, e como, vantagem mesmo da delegacia fazer...

A Delegacia de Mulheres mostrou resistência em incorporar as reivindicações


do movimento de mulheres e não adotou uma perspectiva de gênero no trabalho; ao
contrário, reproduzia, em certo sentido, os pressupostos da delegacia de costumes:
seus procedimentos eram tais como fichar prostitutas e dar batida em clínicas de
aborto.
O movimento de mulheres acreditava que uma Delegacia Especializada fosse
atender as usuárias de forma diferenciada e sem os preconceitos e discriminações
que permeavam as delegacias comuns. Houve tentativas de introduzir uma
perspectiva de gênero no trabalho da polícia e mudar suas representações acerca
da violência sofrida por mulheres:

54
Ela está falando de Bias Fortes, então secretário da justiça.
84

K: (...) ainda no inicio dos anos 80, os esforços para pelo menos tentar
começar a mudar as representações que a polícia tinha. Isso a gente
consegue fazer o... quer dizer, consegue fazer não! A gente faz um trabalho
junto à Secretaria de Segurança e às delegacias, né, É com a cúpula da
polícia a gente trabalhou muitas vezes, muitas vezes mesmo, é... e
mantinha a articulação com os grupos nacionais, isso, isso, esse período
dos anos 80 tem muita, é tudo muito articulado nacionalmente, né.
Parcialmente internacionalmente, nas nacionalmente é muito articulado.

L: (...) criação de uma Delegacia Especial, quer dizer, nós não


defendemos que o Estado como um todo, as delegacias acolhessem
melhor à mulher, nós vimos, no decorrer, que tinha que ter uma específica
porque ali também, as delegacias comuns eram um espaço de
discriminação muito forte, quando a mulher chegava ali no... no, por
conceitos, né, machista que tavam arraigados, então nós assim, tem que
criar uma específica só com o atendimento basicamente por mulheres,
com um conceito novo, com... com uma forma nova, e isso veio dessa luta ,
que teve acolhida em pessoas em, em pessoas dentro do aparelho de
Estado, também por delegadas, que já estavam ali, que também
começaram a sentir, elas como mulheres, que tinham que participar (grifos
nossos).

A Delegacia de Mulheres foi apontada como um lugar que reproduz


preconceitos, tendo recebido críticas por parte das feministas55.
Como podemos perceber a partir da narrativa apresentada até aqui, a
questão da violência contra as mulheres ganhou espaço de debate nos partidos
políticos e no Estado, que concretizaram políticas de atendimento às mulheres, mas,
de certo modo, apropriaram-se da demanda, afastando o movimento. Nesse
momento, no entanto, um contradiscurso ganhou força dentro do movimento de
mulheres. As feministas organizaram-se em torno de outras reivindicações, que até
então apareciam como secundárias, e se mobilizaram para participar da
Constituinte.

55
As usuárias da Delegacia também criticam os serviços prestados pela instituição. Um trabalho (Os
dados sobre este trabalho podem ser encontrados em COELHO, Carolina Marra S. e MARQUES,
Caroline Pereira. Relatório do 1o Encontro de Mulheres no resgate da cidadania, 2002, mimeo.)
que realizamos em 25 de dezembro de 2001 com as usuárias das políticas de gênero no município
aponta que a Delegacia é avaliada por elas de modo negativo. As mulheres queixam-se do
atendimento recebido nessa instituição e sentem-se alvo de preconceito de gênero: a polícia “apóia
os homens”, eles acham que “a gente é vagabunda”. Algumas mulheres contaram que na Delegacia
foram aconselhadas a matar o companheiro ou a voltar para casa: “falou assim pra mim: volta pra
casa, você tem que pensar nos seus filhos. Para de frescura. Você tem que voltar pra casa e
obedecer”. Segundo elas, esse tratamento preconceituoso, a lentidão da justiça e a impunidade dos
agressores diminuem a vontade de denunciar. Podemos perceber que a Delegacia é vista, por essas
mulheres, como um lugar mais de conflitos do que de soluções e que precisa melhorar a qualidade de
seus serviços para prestar um atendimento mais eficiente. É preciso lembrar que eficiência neste
caso não diz respeito apenas a rapidez e qualidade do serviço, mas também à compreensão de que
na maioria das vezes que uma mulher procura a Delegacia, ela está passando por um momento de
extremo sofrimento físico e psíquico e está buscando justiça, compreensão e apoio.
85

O movimento de mulheres de Minas se articulou e preparou reivindicações a


serem levadas para discussão na Constituinte. Luzia relata que os grupos de
mulheres mineiras mobilizaram-se em torno deste debate: “(...) depois também pra
organizar as mulheres pra... pros direitos na Constituinte, foi um movimento muito
grande aqui em Minas, né, e no Brasil”.
Além da discussão feita dentro dos grupos, representantes mineiras foram
enviadas para participar das discussões em Brasília. Karin nos conta que ela foi a
Brasília como representante de feministas mineiras:

K: A gente trabalha, eu vô como representante do grupo, é, pra Brasília


durante o lobby do baton, é..., isso foi também muito interessante, é, porque
aí eram, né, implantar alguns projetos e isso precisava desse nível de
pressão e tudo, o grupo que já tava em Brasília era muito articulado, muito
mesmo, é..., no caso mineiro... bom, isso a nível nacional, né.

A participação do movimento de mulheres na Constituinte é avaliada pelas


entrevistadas como positiva. Essa avaliação positiva refere-se tanto às conquistas
legais incorporadas na Constituição de 1988 quanto ao próprio processo de
participação num espaço público de tomada de decisões, no qual foi possível
articular interesses e tornar as questões relativas às mulheres imprescindíveis num
discurso que pretendia ser hegemônico. Vejamos as falas de Karin e Luzia:

K: Eu acho que o lobby do batom, por exemplo, foi talvez um belo, uma bela
discussão, uma bela discussão sim. É... porque nesse momento tava se
dis..., eu acho que com certeza, com certeza. Foi um grupo articulado, né,
o... o..., foi um movimento articulado e... e conseguiu fazer dois caminhos,
ele conseguiu entrar na câmara, no senado e se fazer ouvir, eh, e
conseguiu se fazer ouvir junto à mídia. Aí encontrou um aliado importante,
né, encontrou um aliado muito parceiro, vamos dizer assim, tá, pra... pra
falar disso, pra discutir e tal. Porque eu acho que hoje a mídia é melhor, é...
é um dos caminhos importantes para se discutir coisas em público. Ao
mesmo tempo tem que pensar que o lobby do batom, ele coincide, né, com,
sei lá, com todo o grupo do Ulisses Guimarães, sabe, eh, com um
Constituinte dis..., com parceiros dispostos a repensar, né, a questão da
cidadania, né, tem interlocutores interessantes em Brasília. Cê tem Paulo
Delgado que era um cara legal, né, comprometido, tem o Genoíno na sua
primeira fase que era um parceiro interessante.

L: E... é, todo esse, na Constituinte as mulheres con... con... conquistaram,


né, (pigarro) pela primeira vez também (pigarro) essa igualdade de direitos,
né, pelo menos na lei ali tá, né, foi o pátrio poder, é..., que tirou várias
amarras que colocava a mulher como incapaz, né, na... na hora dessa
igualdade e além de garantir, né, de... de... a... a... a responsabilidade social
da maternidade, licença à maternidade de quatro meses, né, que era
também uma uma reconhecimento do papel social da maternidade, né.

Nesse ponto, fica uma pergunta: por que elas não mencionam a questão da
violência quando se referem à nova Constituição? E por que a questão feminista
86

mais ampla é dissociada no movimento? Essas perguntas são relevantes na medida


em que a narrativa veio sendo construída tendo a questão da violência como eixo,
mas essa questão é deixada de lado no que se refere ao reconhecimento em lei da
problemática. A questão da violência foi discutida de forma explícita na “Carta das
Mulheres”, na qual as reivindicações das mulheres foram apresentadas. Além disso,
a Constituição de 1988 reconhece a responsabilidade do Estado em coibir as
violências que ocorrem no âmbito família (capitulo VII, art. 226, § 8º: “O Estado
assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”).
A Constituição de 1988 incorporou a maioria das reivindicações do movimento
feminista, conforme discutimos no segundo capítulo desta dissertação, e
representou uma conquista legal fundamental para a cidadania das mulheres. Na
prática, ainda há muitas demandas a serem conquistadas.
Essa Constituição foi promulgada ano que antecedeu a primeira eleição
presidencial pelo voto direto após a ditadura militar. As campanhas presidenciais de
1989 tiveram a presença do movimento de mulheres, que buscava incorporar suas
reivindicações nas pautas de governo. Antes disso, desde 1985, o movimento de
mulheres, em Belo Horizonte, já trabalhava junto às campanhas para a eleição de
prefeitos:

L: Aí eu lembro que a cada eleição, desde 1985, que foi a primeira vez que
se elegeu prefeito aqui, após 64, né, diretamente, eram indicados, o
movimento de mulheres junto com... as mulheres dos partidos políticos,
apresentava uma campanha, né, para todos os postulantes a cargo de
prefeito, a todos os candidatos a prefeito, apresentava em mo..., em atos
públicos, em momentos de campanha, que normalmente era um encontro
com..., de... de que o candidato era chamado a... a se manifestar, entregava
uma plataforma, né, de... de luta feminista pra cada, pra ter dele um
compromisso, então esse movimento, as mulheres fizeram desde 85 com...
quando começou a ter eleição direta aqui em Belo Horizonte.

A atuação política das mulheres junto aos partidos serviu como pressão para
que suas demandas específicas estivessem presentes nas propostas de governo
dos candidatos à presidência da república:

M: Então, é..., todo... todas... os... as candidaturas, então Lula em 89, né,
todas as... as campanhas tanto nacional, estadual e municipal a gente
participa da elaboração. Da... da... das dos eixos temáticos das campanhas
em relação à questão da mulher. Então as bandeiras, né, criação, é, de m...,
de... de restaurantes populares, criação de lavanderias populares pra, né,
pra que essa mulher tenha mais condições, né, de... da sobrecarga do
trabalho doméstico.
87

L: (...) é, nas campanhas eleitorais as mulheres tinham um destaque


também forte, elas entraram pra entraram pra garantir, né, que também o os
candidatos tivessem compromisso com as bandeiras específicas.

Alguns candidatos incorporaram no seu plano de governo as demandas do


movimento de mulheres, no entanto, nem todas as reivindicações encontraram
ressonância nas campanhas eleitorais. Questões polêmicas, como o aborto, ficaram
fora das propostas:

M: (...) mas também pela questão da legalização do aborto, então isso são
temas muito polêmicos, principalmente a questão do aborto, muito
polêmicos, num é? eu lembro que em 89 a gente, é, na... foi proibido colocar
isso no plano, né, de governo federal, por causa da igreja e o próprio Lula
também, então são coisas que a gente sempre fazia a discussão, né.

Os partidos e os políticos incorporaram, em certo sentido, a questão do


gênero em seus discursos e práticas. No entanto, em Belo Horizonte, a eleição de
Patrus Ananias (PT) para prefeito, em 1992, é vista por nossas entrevistadas como
uma possibilidade de melhorar tanto quantitativa quanto qualitativamente o trabalho
relativo ao tema, principalmente no que se refere à construção de políticas públicas
voltadas para mulheres. Luzia expressa essa posição:

L: (...) o governo do Patrus que... que foi eleito em 92 e que simbolizava, aí


sim talvez um, era um candidato claramente de uma outra tendência
ideológica, né, mais no campo da esquerda, primeira vez que o Partido dos
Trabalhadores assumiu aqui o... o, né, o poder, ganhou como claramente a
oposição, é que essa questão teve então essa acolhida.

Márcia, que é filiada ao PT desde 1981, quando era estudante universitária,


também vê o Partido dos Trabalhadores (PT) como sensível às demandas do
movimento:

M: (...) a gente também participava dos encontros feministas, participava de


congressos com essa temática então se foi apropriando né do tema, foi se
apropriando de algumas discussões e traz isso pra dentro do PT. Então a
gente cria ... o núcleo de mulheres o... o... o... a comissão de mulheres do
PT em 83, a gente, ela começa em 82, em 83 que ela tem , né, a sua
estrutura toda, é, de... da gente discutir a violência, discutir a questão de
como a gente int... enterrar Es... essa discussão no partido, como a gente
apropriar disso a nível nacional, então cria a comissão de mulheres nacional
do PT, e a gente participa também, né, trocando eh... informações,
figurinhas, então a gente cria o PT, informa que é, o PT-Mulheres informa
que também é um... um boletim, um jornalzinho do PT, de mulheres, então é
um momento muito efervescente da gente apropriar dessa discussão.

Essa fala corrobora com as discussões feitas no interior do partido, como


podemos perceber nos documentos de registro do “1o Encontro Nacional do PT
88

sobre o Movimento de Mulheres”56:

Portanto, o PT na medida em que é um partido que nasce dos movimentos


populares, incorpora as reivindicações e lutas do movimento, integrando-as
não apenas como reflexo, mas articulando-os em seu projeto de
transformação da sociedade.

A fala de Karin também é simpática à entrada do PT no governo municipal, no


entanto, ela mostra-se mais reticente, mantendo uma postura mais crítica e
autônoma em relação a este partido:

K: Também não foi qualquer momento do município, eu acho que foi


(pausa) com a chegada do PT no município, no município... na medida de
que eram discursos mais afins, menos conflitantes do que quando você
tava aí (grifos nossos).

E em outro momento:

K: Eu acho que aqui tem a ver com uma chegada do PT no poder em que
ele, né, num quer dizer que suas práticas e ta... ta... ta... sejam assim,
né, necessariamente... é... as identidades de um movimento social. Mas
ele emerge no movimento social (grifos nosso). Tá. Ele se articula com o
movimento social de uma maneira talvez diferente.

Embora cada uma das entrevistadas dê um tom diferente ao relato da


chagada do Partido dos Trabalhadores ao governo do município, em 1993, todas
concordam que esse fato estabeleceu um marco na história do movimento de
mulheres de Belo Horizonte. O PT é um partido que emergiu no movimento social e
que mantém articulação com vários movimentos sociais, como o feminista. Além
disso, o PT conta com um grupo significativo de feministas que são filiadas ao
partido e que foram assumindo, desde então, posições na administração municipal.
Esse é o caso, por exemplo, de Márcia, que se filiou em 1981, fez escola feminista,
participou dos encontros feministas do partido e ocupou cargos de chefia nas
políticas públicas voltadas para as mulheres implementadas pelo governo do PT.
A elaboração destas políticas públicas não é fruto somente da administração
petista. Em 1990, foi aprovada pela Câmara de vereadores a Lei Orgânica do
Município de Belo Horizonte que prevê “(...) ações voltadas para a implementação
de equipamentos nas áreas da saúde, violência, direitos humanos e de serviços,
entre outros” (AMORIM et al., 2001, p. 53). Entre tais ações, era prevista a criação

56
Os dados relativos aos encontros feministas do PT foram retirados da documentação armazenada
pelo Centro Sérgio Buarque de Holanda de Documentação e Memória Política da Fundação Perseu
Abramo.
89

de casas-abrigo para mulheres em situação de violência de gênero (artigo 180,


incisos III e IV). Em 1992, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI-
1992) com o objetivo de apurar assassinatos e violências contra mulheres. A CPI-
1992 recomendou, entre outras coisas, a criação de um órgão público municipal que
tivesse como objetivo a formulação e a execução de políticas que promovessem o
fim da discriminação e da opressão sobre as mulheres. A CPI-1992 advertiu sobre a
necessidade do cumprimento da Lei Orgânica através da criação de um Centro de
Apoio a Mulher e de um abrigo para mulheres em situação de risco devido à
violência de gênero.
Em 1993, ano em que o Partido dos Trabalhadores assumiu a prefeitura
municipal, iniciou-se o processo de implementação das políticas públicas previstas
na Lei Orgânica do Município e recomendadas pela CPI-1992. Representantes do
movimento feminista e dos poderes executivo e legislativo municipal realizaram, em
abril, o seminário “Políticas Públicas de Combate a Discriminação de Gênero”. Em
dezembro, foi criada, a partir da reivindicação de mulheres com trajetória feminista
do governo, a Comissão Paritária de Mulheres, que tinha como objetivo integrar as
ações de atendimento às mulheres desenvolvidas pela prefeitura. A Comissão
contava com representantes do executivo municipal e do movimento de mulheres
(os grupos representados eram: Mulher e Saúde/MUSA, Coletivo de Mulheres
Negras, Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher/NEPEM, GRAAL, Movimento
Popular da Mulher e Pastoral da Mulher Marginalizada). (AMORIM et al., 2001).
Uma das resoluções do seminário “Políticas Públicas de Combate a
Discriminação de Gênero” foi a criação do “Programa Cidadania da Mulher”. A partir
desse programa, foram elaborados e implantados dois equipamentos voltados para
o atendimento a mulheres: a Benvinda - Centro de Apoio à Mulher e a Casa Abrigo
Sempre Viva (CASV). A implementação desses programas ocorreu efetivamente
alguns anos depois.
Em 14/09/1995, deu-se a aprovação em lei (nº 6.949) do projeto apresentado
pela vereadora Neusa Santos que previa a criação do Conselho Municipal dos
Direitos da Mulher (CMDM). O Conselho, inaugurado em janeiro de 1996, foi uma
“evolução” da Comissão Paritária. As atribuições do Conselho – que é composto por
23 conselheiras titulares e 23 suplentes, entre representantes do governo e do
movimento – são formular políticas públicas voltadas para a eliminação da
discriminação de gênero e garantir a implementação de todas as convenções
90

internacionais das quais o Brasil é signatário, como a IV Conferência Mundial da


Mulher em Beijing/Pequim. (AMORIM et al., 2001). O Conselho é um órgão de
elaboração de políticas, como podemos ver nas palavras de Márcia: “(…) porque o
Conselho é um órgão de... de pensar, de elaborar, de... de discussão, ele não é de
execução”.
O Conselho foi decisivo na elaboração e implementação do Benvinda e da
Casa Abrigo Sempre Viva (CASV). A concepção do Benvinda57 foi “fruto de várias
discussões e reuniões com mulheres, mães, entidades organizadoras, grupos,
creches e Centros de Saúde de Belo Horizonte” (AMORIM, 2001, p. 54). O processo
de criação do Benvinda envolveu amplamente as comunidades e as lideranças.
Podemos perceber a importância da participação das comunidades na construção
dessa entidade nas falas de Graça. Ela participou do processo de elaboração e
implementação do Benvinda, foi sua primeira coordenadora e retornou ao cargo em
março de 2001, permanecendo até 2004 quando se candidatou à vereadora.
Retomemos suas fala:

G:(...) eu entendia que teria que ser um projeto de baixo pra cima, que
fosse construído pelas lideranças, pelas mulheres e tudo e que não fosse
uma coisa vinda do prefeito, mas que a gente construísse isso daqui pra lá e
não de lá pra cá, né. E aí nós construímos, eu lembro que a gente fez
algumas... algumas reuniões nas comunidades, né, definimo no 8 de março
então que a gente ia ta trabalhando, né, assim, em cada comunidade e tal,
levantando os problemas e o que... que a gente queria nessa cidade, e a
gente fez isso e aí escrevemos o projeto e a partir daí a gente teve a... a
resposta que foi a construção do centro de apoio a mulher (grifo nosso).

E mais adiante:

G: Nós, é..., fizemos o oito de março, a gente já tava fazendo algumas


discussões, eu lembro que nós fizemos um seminário, as datas eu não
lembro que eu não sou historiadora, então eu num lembro data (risos). É...
nós fizemos, quando o Patrus ganhou as eleições a gente fez um seminário
de políticas públicas com as mulheres, contando com a contribuição da
Ivete Garcia, que é de São Paulo, de Santo André. Ela veio, nós fizemos
esse seminário com a militância, com as mulheres, com as feministas. E
nesse seminário saiu algumas propostas, e uma proposta foi trabalhar as
políticas públicas na cidade, quer dizer, né, assim. E aí o Benvinda foi um
desse dessas propostas, mais a gente construiu o Benvinda muito vindo
delas, lembra, eu já até falei, nós fizemos várias plenárias nas
comunidades, e nessas plenárias a gente levantava, é..., propostas e... e aí
escrevemos o projeto, fizemos uma, fizemos uma plenária, escrevemos o
projeto, depois retornamos numa outra plenária pra ser aprovado, né,
assim, com o projeto pra ser construído (grifo nosso).

57
Os dados relativos aos equipamentos foram retirados de documentos gentilmente concedidos a nós
por Márcia de Cássia, Graça Sabóia e Ermelinda, a quem expressamos aqui nosso agradecimento.
91

Para ela, a construção de um projeto democrático que promova a “construção


de uma sociedade diferente” é possível somente com participação da sociedade
civil. Suas falas apontam para a construção de um sentido de cidadania no qual a
participação das bases como sujeitos sociais ativos e a possibilidade da existência
de uma nova sociedade são elementos fundamentais. Podemos notar uma afinidade
do discurso de Graça com a noção de nova cidadania, discutida no quarto capítulo
desta dissertação. Em vários outros momentos da entrevista podemos perceber que
a participação é um componente chave de seu argumento. Vejamos alguns
exemplos de falas relacionadas ao Benvinda:

G: (...) pra mim o Benvinda não é meu, ele num é da equipe, ele é da cidade
e se ele é da cidade, eu a, eu entendo desse jeito, sabe, se ele é da cidade
a sociedade civil tem que participar do processo. Sabe, se ela participou do
processo de criação, ela tem que participar do processo de fortalecimento.

G: Lembro também que o Benvinda, a gente não, nós não determinamos vai
ser, o nome é “o Benvinda”, né. Mas nós discutimos com as pessoas,
algumas lideranças e tal, qual era o nome melhor praquele centro de apoio.
E o Benvinda significava muito isso, né, é... garantir que essas mulheres
fossem bem vindas e bem atendidas, com uma escuta diferente de tudo
aquilo que ela tinha na vida dela.

G: Por que nós não queremos fazer nada pra elas, mas nós queremos
construir com elas uma nova sociedade. Eu acredito nisso. Num sei se é
porque eu sou militante, né, então eu... eu acredito nessa coisa, né, da
construção com as pessoas, não para as pessoas.

Graça, que veio dos movimentos de base, reconhece que a participação da


comunidade foi imprescindível na elaboração e implementação do Benvinda. As
outras entrevistadas, no entanto, vêem as coisas de modo diferente. Quando
perguntadas sobre como foi a participação da sociedade civil na implementação
desse programa, suas respostas são:

K: Boa pergunta. Putz grila!, minha memória tá ruim. Teve sim (sem
firmeza). Eu acho que tem. Tem no sentido que quando você abre
seminários, leva pra discutir o projeto, é claro que isso é consulta, tá? Não,
teve sim, teve sim. Foi um processo é... não foi um processo definido por
um grupinho de portas fechadas de forma nenhuma. De forma nenhuma,
abriu-se muita discussão, com certeza. Algumas eu participei, outras eu
ficava sabendo que tinha tido, né. Teve muito.

M: (...) olha, nós fizemos vários seminários, é..., debates muito li...
vinculados à comissão paritária, quem era da comissão? Eu, Karin e... e...

L: Quando o... o... o..., o prefeito determinou, né, que tomasse as


providências pra que existisse esses dois equipamentos [Benvinda e CAVS]
foi em função de uma demanda histórica do movimento de mulheres (grifo
nosso).
92

Embora elas reconheçam que houve alguma consulta à sociedade civil, não
sabem contar como isso foi feito, quem foi envolvido e quais as suas conseqüências.
Graça, ao contrário, parece valorizar esse processo na construção do
programa e em sua trajetória pessoal, identificando-se como representante legítima
das comunidades e lideranças.
O Benvinda foi inaugurado em agosto de 1996. Graça relata como foi o
evento:

G: Então, nós fizemos a inauguração, eu lembro que tinha mais de 300


pessoas. Eu me lembro que um rapaz quando eu fui pedir um palanque,
alguma coisa assim, pro prefeito e tal, ele me falou: ah Graça, vai tá você e
mais umas dez só. Quer dizer, né. Aí eu falei: então tá, vamo vê. Aí o
prefeito num precisa de palanque não, pode deixá. Aí tinha mais de 300
pessoas. Por que... que tinha 300 pessoas? É, nessa inauguração? Porque
os grupos organizados participaram, as mulheres participaram, as mulheres
da terceira idade participaram.

O centro de apoio Benvinda tem como objetivo atender, orientar e encaminhar


mulheres em suas necessidades jurídicas, sociais e psicológicas, “(…) possibilitando
um maior conhecimento e exercício de seus direitos” (AMORIM, 2001, p. 54). Seu
público alvo são mulheres de todas as idades, lembrando que as crianças são
atendidas por políticas públicas específicas. Além disso, a equipe do Benvinda é
responsável pela triagem e encaminhamento de mulheres para a Casa Abrigo
Sempre Viva (CASV).
A CASV, que também foi inaugurada em 1996, tem uma trajetória bastante
interligada com o Benvinda. Márcia relata a criação do abrigo como uma
conseqüência de reivindicações do movimento de mulheres, mas também como uma
tendência das políticas de gênero no Brasil58:

M: Então a o a construção de casa-abrigo, que ta na Lei Orgânica, a


construção de um centro de apoio, isso tudo foi, é, de alguma forma, foi um
processo que a gente leva , pro legislativo enquanto proposta e
reivindicação, que são as reivindicações que no oito de março aparece, né,
que nas campanhas, né, nas pautas, das campanhas eleitorais, é, na nos
documentos que a gente escreve, do partido, é, do dos das discussões que
a gente trava com outros setores, né, no município, ou também, é, no país,
então isso é fruto, né, a criação de casas-abrigo que é uma discussão, que
foi uma discussão muito nova no Brasil, né, na década oi- final da década

58
Em São Paulo, foi criada a Casa Abrigo Helenira Rezende de Souza Nazareth em 1991. A Casa foi
fechada em 1992 e reaberta no dia 8 de março de 2001. Em Porto Alegre, a Casa de Apoio Viva
Maria está em funcionamento desde 1992. Atualmente, muitos municípios brasileiros têm abrigos
para mulheres em situação de violência de gênero.
93

de oitenta, né. Ela começa a chegar em meados de oitenta, como uma


experiência européia e norte-americana e ela começa a chegar no Brasil e
em 89, no governo da Erundina, que fo... que são os prime- criadas os
primei- as primeiras casas-abrigo, né, as primeiras, é a primeira vez que
essa discussão, pelo menos que eu tenho conhecimento, é a primeira vez
que essa discussão ela começa a entrar no executivo municipal.

Para Graça, o processo de criação da CASV difere-se do Benvinda, pois a


elaboração do Benvinda contou com a participação direta da sociedade civil,
enquanto a discussão sobre a CASV se deu dentro de um grupo fechado:

G: A Casa Abrigo foi mais assim uma discussão mais... mais mesmo com
...com ãh... com algumas pessoas, não foi um negócio muito aberto, num foi
assim... mesmo porque era um projeto (pigarro) que ele era, era diferente do
Benvinda, né, era um projeto sigiloso, uma casa sigilosa, um lugar sigiloso e
tudo mais.

A Casa Abrigo Sempre Viva abriga mulheres em situação de alto risco de vida
devido à violência de gênero. Seu principal objetivo é acolher essas mulheres, em
caráter emergencial e provisório (média 90 dias), bem como seus filhos menores de
16 anos. Sua capacidade é para atender até 12 mulheres e 30 crianças por vez,
sendo que há mulheres simultaneamente em diversas fases do processo de
abrigamento. Durante o abrigamento, as mulheres têm acesso a serviços
psicológico, jurídico, social e terapêutico. Devemos lembrar, no entanto, que a oferta
desses serviços é relativa aos recursos humanos da CASV no momento. Para serem
abrigadas, as mulheres precisam formular queixa na Delegacia Especializada em
Crimes contra a Mulher e passar por uma triagem no Benvinda. Por motivo de
segurança, sua localização é sigilosa e apenas os funcionários têm acesso a seu
endereço.
Em 1998, foi criada a Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher
(COMDIM). Situada na Secretária Municipal dos Direitos de Cidadania, a COMDIM
teve sua criação publicada no Diário Oficial do Município de Belo Horizonte em 17 de
julho de 1998. Segundo Márcia, a proposta de criação da Coordenadoria nasce das
“Mulheres do PT”:

M: (...) porque depois vêm as coordenadorias, as coordenadorias é (sic)


uma proposta do... das Mulheres do PT. Né. Então não é... é... tem uma
disputa também, não só... é... ideológica, mas também de propostas, de
perspectiva de como construir políticas públicas no Brasil.

Segundo a lei número 7.552, compete à COMDIM elaborar, coordenar e


executar políticas públicas que atendam as necessidades específicas e combatam
94

os diversos modos de discriminação da mulher. Essas políticas públicas são


implementadas principalmente no Benvinda - Centro de Apoio a Mulher e na Casa
Abrigo Sempre Viva (CASV). A COMDIM promove, em caráter esporádico,
atividades voltadas para a geração de renda e encontros como o “1o Encontro de
Mulheres no Resgate de sua Cidadania” (2001) e “2o Encontro de Mulheres no
Regaste da Cidadania” (2003)59.
Atualmente, as políticas públicas voltadas para as mulheres no município de
Belo Horizonte concentram-se no Benvinda, na CASV e na COMDIM. Apesar dos
avanços nas políticas de gênero, para Márcia o trabalho está apenas começando:

M: (...) dentro do... do... do..., né, de Belo Horizonte, por mais que a gente
tem (sic) onze anos de governo, a gente tá engatinhando ainda, né. Assim,
por mais que a gente construiu, muita coisa a gente tem fazer ainda, né. A
gente ta começando, somos muito poucas, né, é..., é..., isso, isso faz com
que a gente repense, né, que tipo de política que a gente tá fazendo, pra
não formar novos quadros, pra não formar novas lideranças, então isso pra
gente também é... é um desafio, né, e que tem que ter resposta. O que que
a gente tem que... quais as outras pos... possa nos fortalecer. Então. Tem
hora que a gente fica num... num... samba do crioulo doido assim, numa
loucura, numa, né, coisa insana de correr atrás de tudo, né, de pensar o 8
de março, de pensar o 25 de novembro. Então, assim, cê fica muito na... no
fazer, né, de aparecer, e não de ter uma ação, né, que concreta, né, que dê
frutos, né, a um, a médio e a longo prazo, né, cê pensa muito a curto prazo,
né.

O movimento de mulheres é visto por militantes como Márcia, Graça e Luzia


como tendo importância fundamental na construção das políticas públicas em Belo
Horizonte:
M: (...) é... muitas vezes o pessoal falava, né, é, num percebia que tinha
uma uma... uma... uma reivindicação, né, de algumas feministas, achava
que era o prefeito A, o prefeito B, que era muito bonzinho, que pensou,
nisso, né. Num foi obra de Patrus, num foi obra de Célio, num foi obra de
Pimentel, num é. Foi obra da... da... da gente ta dentro, ou fora, discutindo
isso. Tanto é que a gente vai ter parceria, é, com universidade, no sentido,
ó, ajuda a gente a pensar, ajuda a gente a resolver a situação, em relação à
criança, em relação à mulher, quer dizer, todos os envolvidos e atores, né,
que tão vivendo essa situação de violência, né.

G: Oh, aliás, Carol, acho porque a... eu costumo dizer que a gente num
ganha nada, a gente conquista e a conquista só vem com a luta, num é.
Com certeza, se não fosse os movimentos sociais, né, a discussão das
mulheres e tal, com certeza as políticas públicas, num tinha Benvinda em
Belo Horizonte, se ocê quer saber. Não tinha casa-abrigo em Belo
Horizonte. Não teria Coordenadoria em Belo Horizonte. Eu acho que toda a
discussão do movimento social, ela tem grande importância pras coisas que

59
Ambos os encontros tiveram como objetivos propiciar o reencontro de mulheres que já haviam sido
atingidas pelos programas, avaliar os serviços prestados junto com as usuárias (1o encontro) e
avaliar o impacto dos programas na vida das mulheres (2o encontro).
95

existem. Porque ninguém vai pensar o negócio por nada, né assim, só


pensa a partir de uma reivindicação.

L: Então eu acho que foram decisivos, né, esse esse formato que a gente
tem de... de espaços institucionais, ele veio de... de fora pra dentro do poder
de Estado. Né. Ele foi mesmo arrombando portas, se tem uma coisa que a
gente pode dizer, né, que surgiu de fora pra dentro eu acho que que é essa
conquista das mulheres, é..., entrou arrombando porta, com pressão, com
movimentos, e que foi tendo também, obviamente, né, como é, como é que
começou a conquistar também, quando começaram a eleger re...
governantes mais comprometidos com a democracia, com com a cidadania,
claro que nós tivemos essa acolhida, mas foi basicamente isso, de fora pra
dentro.

No entanto, Karin, que se autodefine como uma militante autônoma, tem uma
visão crítica desse processo:

K: (...) por isso que tô te falando, eu acho que na experiência mineira foi em
parte, em parte... (grifo nosso). Mas não é esse discurso que ocê vai
escutar. Eu, isso eu queria até te chamar atenção, provavelmente o discurso
aqui é meio ufanista, tá? Assim: nós fizemos, nós (muda de tom). Eu, eu
boto minhas barbas de molho, acho que a gente fez uns pedacinhos, alguns
fragmentos, algumas coisas.
(....)
Agora, eu tenho sempre a sensação de que gosta de, eu não sei como é
que são os outros Estados, como se assim aqui a gente tivesse feito,
delineado, marcado, o movimento de mulheres aqui conseguiu isso,
consegui aquilo. Ponho minhas barbas de molho, sabe. (pequena pausa)
Acho que é super valorizado. Tá?

Finalmente, gostaríamos de refletir sobre como está atualmente o movimento


de mulheres em Belo Horizonte. Há uma visão dominante de que está fragmentado
e inoperante. Os movimentos autônomos de mulheres acabaram se desarticulando
depois da retirada dos financiamentos externos, e hoje apenas as ONGs e os
chamados “movimentos partidários” resistem. Graça, por exemplo, acredita que o
movimento está desmobilizado:

G: (...) eu to achando meio que fraca, sabe. Muito fraquinho, a participação


do movimento de mulheres (baixo). Acho que o movimento de mulheres
deixou, é..., para, para os equipamentos e tal, né, ta fazendo as coisas.
Agora eu acho que... não eu acho na verdade que ta fraco mesmo (muda de
tom) a participação.

Ermelinda também percebe uma ineficiência do movimento de mulheres:

E: (...) porque na verdade a gente sente que hoje existe um pouco uma
inoperância desses movimentos, uma crise aí dos movimentos de mulheres,
dos movimentos feministas que... e a gente, não temos resposta de porque
que isso acontece.

Luzia, no entanto, insiste em afirmar a importância dos movimentos sociais:


L: (...) então creio que, por isso que... que o movimento de mulheres
96

continua importante, o movimento social de mulheres, movimentos


específicos, porque a gente tem que afirmar esses valores, criando novos
valores, novas culturas, ainda de uma forma muito, muito forte, pro poder
público, pra que isso seja incorporado como uma coisa do cotidiano da
aplicação das políticas, da formulação, da concepção da política, né, com
esse olhar que... que... que possa trazer também, né, eliminar qualquer
resquício de... de desigualdade.

Percebemos, a partir de nossos dados, que algumas vezes os resultados da


luta das feministas foram aquém dos esperados e que nem sempre as mulheres
conseguiram imprimir uma perspectiva de gênero nas políticas públicas. Contudo,
aquilo que foi narrado neste capítulo demonstra que o movimento de mulheres foi
importante em Belo Horizonte, pois esteve presente em momentos de decisões
políticas relevantes, pressionando para que suas reivindicações fossem
incorporadas nos planos de governo e na construção de políticas públicas. Além
disso, a trajetória do movimento de mulheres atravessa as trajetórias pessoais de
suas militantes e é atravessado por elas. Assim, o inicio das reivindicações
nomeadas feministas coincide com o nascimento de novas identidades e
subjetividade.
A trajetória do movimento de mulheres ajudou a construir novos sentidos de
cidadania, como podemos notar a partir do discurso das entrevistadas. A
participação é a dimensão da cidadania que mais se destaca nas falas sobre a
história do movimento em Belo Horizonte. Apesar das dificuldades enfrentadas e da
recente desmobilização do movimento, a participação dos sujeitos sociais ativos é
vista como imprescindível para a construção de uma política e uma cultura que
busque a igualdade de direitos entre homens e mulheres, apontando na direção de
uma nova cidadania.
Outro elemento da nova cidadania presente no discurso é a demanda de
participação na própria definição do sistema. As mulheres do movimento se fizeram
ouvir no decorrer do processo de construção democrática no Brasil. Estiveram
presentes na Constituinte e pressionaram para que seus interesses fossem
incorporados na Constituição de 1988. Além disso, marcaram presença nos debates
relativos à construção das políticas públicas de gênero, enfrentando os conflitos
existentes. Algumas vezes conseguiram imprimir suas convicções e conquistar
espaços de negociação, em outras tiveram que recuar e continuar a luta por outros
caminhos. Obviamente, nem tudo são flores nos espaços de luta política para a
construção da cidadania, como está claro nas falas das entrevistadas, mas existe a
97

crença de que este é o caminho para a transformação social.


Retomaremos a discussão sobre os sentidos de cidadania produzidos no
discurso nas considerações finais desta pesquisa. Nas seções seguintes deste
capítulo, nos debruçaremos sobre três categorias de análise: a entrada das
entrevistadas no movimento de mulheres, sua atuação política em relação aos
programas estudados e as relações entre o Estado e o movimento social. Essas
categorias nos auxiliam a compreender os lugares a partir dos quais os discursos
das entrevistadas foram emitidos e a analisar os sentidos de cidadania, gênero e
violência construídos por elas.

5.2 Unidade e diversidade no movimento de mulheres

Os caminhos para o engajamento no movimento de mulheres são muitos e


cada uma das entrevistadas teve um percurso diferente. Os diversos modos de
entrada na vida política marcaram a trajetória dessas mulheres dentro do movimento
feminista. Em seus relatos, elas contam que iniciaram sua vida política através da
participação na igreja, no movimento estudantil, no Movimento Feminino pela
Anistia, na universidade e no sindicalismo, onde entraram em contado com questões
relativas às mulheres.
A igreja foi uma das portas de entrada mais significativas para os movimentos
sociais. A igreja católica mobilizava e organizava a juventude para a ação política e
teve papel fundamental na formação de lideranças (Durham, 1984; Evers, 1984;
Coser, 1989). Graça começou sua militância a partir da igreja: “Bom, primeiro eu fui
da igreja, isso é normal, né, todo, praticamente, grande parte da militância ela vem
de um trabalho com a juventude, que eu fui da JOC,Juventude Operária Cristã.”
O engajamento em movimentos sociais a partir da igreja marcou a trajetória
de Graça. A juventude cristã era estimulada pela igreja a promover ações políticas e
sociais com as comunidades menos favorecidas economicamente. Graça participou
de diversos projetos comunitários e já tinha uma trajetória de militância antes de
voltar seus interesses para as questões de gênero. Segundo ela, essa questão
aparece apenas num “último momento” de sua militância política:”E aí, depois, quer
dizer, a questão do gênero veio pra mim... praticamente no último momento da
minha militância, né, eu acho muito engraçado isso.”
98

Graça atribui sua motivação para sua entrada no movimento de mulheres à


conscientização política através dos trabalhos com as bases. A proximidade com as
bases configura seu trabalho com as mulheres, como veremos no decorrer deste
capítulo.
No início de sua militância, ela trabalhava com grupos de mulheres em
associações das comunidades:

G: E eu fui de uma associação de mulheres no Aglomerado Morro das


Pedras, numa das vilas daqui, de Belo Horizonte. (pigarro) onde eu fui vice-
presidente, convidada por, né, a presidente da associação que era uma
dona da comunidade. Ela disse: Graça, ocê tem um trabalho legal e tal
vamo lá pra Associação de Mulheres que cê vai contribuir muuuito e tudo. E
aí eu fui ser vice-presidente da associação, mesmo sem entender muita
coisa, mesmo sem ler quase nada, mesmo só, só por ter aquela concepção
de que as mulheres... era necessária a organização específica delas em
algum lugar, né, ou seja, em todo lugar. .

Para Graça, ser vice-presidente desta associação e realizar trabalhos,


durante a administração de Patrus Ananias, com vários grupos de mulheres nas
vilas e favelas de Belo Horizonte, foi o que despertou seu olhar para os interesses
específicos das mulheres. O que mais chamava sua atenção era o fato de que estes
grupos dedicavam-se ao debate com vários assuntos, mas não à discussão de
questões que concernem ao papel das mulheres na sociedade:

G: E a partir daí eu... eu... comecei a... a prestar mais atenção nisso, né,
assim, prestar atenção no papel dessas mulheres, inclusive porque a
associação de mulheres... ela era importante, mas ela não discutia a
questão das mulheres, a problemática das mulheres, a organização das
mulheres, era uma associação de mulheres como outra qualquer, que não
tinha o objetivo claro dessa proposta, né.

C: Que que vocês discutiam?

G: Ah, discutia tudo. Cesta básica, discutia creche, discutia tudo. Né, é,
asfalto no beco e num sei que, orçamento participativo. Menos o papel
dessa mulher na sociedade, ou papel dessa mulher na família, ou o papel
dessa mulher enquanto pessoa capaz de construir um mundo melhor, né. E
e, assim, eu fui percebendo isso.

A maioria dos grupos comunitários de mulheres preocupava-se com debates


e ações sociais em torno de temas que diziam respeito às mulheres apenas de
modo periférico. Entretanto, algumas lideranças realizavam um trabalho marcado por
uma perspectiva de gênero e estavam atentas para situação da mulher na
sociedade. Graça cita o exemplo de D. Otália:
99

G: Tinha a dona Otália, que é da Associação de Mulheres do Betânia, que


era uma figura extremamente boa, uma grande liderança, mas a dona Otália
tinha alguma coisa diferente, que eu comecei a notar, que ela trabalhava a
mulher, né, ela num trabalhava, ela fazia parte de tudo que era comissão na
região, como faz até hoje. Mas ela tinha um negócio que era importante que
eu notava, ela entendia qual era o seu papel enquanto mulher naquela
sociedade.

Outra experiência marcante na trajetória de Graça, também nos movimentos


de base foi sua participação no sindicato das costureiras: “Eu era costureira, sou
costureira, sei costurar e eu fui sindicalista”. Segundo Graça, participar, no início dos
anos 1980, desse sindicato foi fundamental em sua formação política, pois ali ela
percebeu que ocorriam discriminações de gênero que deveriam ser explicitadas e
debatidas:

G: E é engraçado que as costureiras são oitenta por cento mulheres, né, aí


cê sente a fragilidade da coisa política na categoria, né, nunca teve uma
categoria com a no..., com oitenta por cento mulher, nunca teve uma
presidenta, né, sempre teve o homem presidente, ou melhor, todos os
cargos de grande importância são os homens lá no sindicato. Então eu
acho... Eu até sô amiga do presidente, mas eu falo isso com ele de vez em
quando, né. Que é um sindicato com a maioria mulher, no entanto quem dá
o tom da política são os homens, né. E nós já tentamos várias vezes e tem
até um povo aí da oposição... aí na categoria, mas que ainda não consegue
ir pra frente, né.

Ela própria, junto com um grupo de costureiras, montou uma chapa e


concorreu à direção do sindicato. Tiveram “trinta por cento dos votos, pra nós foi
uma vitória (risos)”. Segundo ela, essas experiências foram fundamentais para seu
amadurecimento político.
Graça entrou para a militância política a partir da igreja, onde realizava
trabalhos comunitários, mais tarde foi sindicalista, participou de associações e
trabalhou com grupos de mulheres nas comunidades. Ela é filiada ao Partido dos
Trabalhadores e vem trabalhando nos programas voltados para as mulheres nas
gestões petistas do governo municipal. Sua trajetória em relação a questões
referentes ao gênero foi construída a partir de sua prática política e da consciência
das discriminações vividas pelas mulheres. Ela identifica-se com as bases e todo o
seu discurso é marcado por isto.
A entrada de Márcia no movimento de mulheres é, em alguns pontos,
semelhante à de Graça, principalmente no que diz respeito à consciência política e à
100

percepção, a partir de sua vida política, da subordinação das mulheres. No entanto,


sua participação em movimentos sociais iniciou-se por outro caminho. Quando era
estudante universitária, ela engajou-se no movimento estudantil, unindo-se, desde o
início, ao grupo pertencente ao Partido dos Trabalhadores:

C: Quer dizer que você entrou no movimento estudantil...

M: Estudantil e aí, né, automaticamente, eu já, eu já co-, eu já... eu já fui


pra turma do PT, né. Tinha a turma da reforma, que era a turma do PCdoB,
tinha a turma, a turma do partidão, né, que era do P-, e aí eu fi..., eu fiz um
contato, quer dizer, eu me aproximei e, do pessoal do PT e aí o pessoal já
começava, né, a ter, a conversar, então eu já começava ir a reuniões do
partido, porque tinha o núcleo do movimento estudantil, então foi a partir daí
que eu comecei a, participar (grifos nossos).

Na visão de Márcia, o fato de participar do movimento estudantil a levou e


outras jovens a se preocuparem com as questões específicas das mulheres. Ela
entrou no movimento de mulheres a partir do movimento estudantil:

M: (...) o contato maior mês... foi feito através ...é, da minha inserção na
universidade e com algumas outras mulheres que eram militantes, ...é, do
movimento estudantil onde a gente começou a questionar a postura, né,
de alguns companheiros nossos em relação ...a, à liderança então muitas
vezes nas reuniões o que a gente falava era o que os homens falava... nas
assembléias, né? Ou então era o que era acordado, então nós começamos
a... a montar um grupo, né? (grifo nosso)

Segundo ela, os homens eram as lideranças no movimento estudantil e eram


eles que tomavam as decisões. Isso começou a ficar claro para as mulheres desse
grupo, que decidiram se organizar para discutir questões relativas à mulher. Márcia
participou, entre 1981 e 1982, de um grupo de discussão:

M: (...) o Mulheres Gerais que era onde a gente conversava sobre os


nossos assuntos, né, sobre a, o, os nossos sentimentos em relação aos
homens, em relação aos companheiros, em relação ao ficar, né, então a
gente abria o verbo pra, pra gente f... ter uma proximidade maior.

Nesses grupos, eram discutidas desde temas relativos aos relacionamentos


entre homens e mulheres até o problema do lugar ocupado pelas mulheres na
sociedade. Mais tarde, Márcia fez escola feminista, mostrando grande identificação
com o feminismo e suas questões:

M: Então eu fiz, então acho que a minha a minha sorte de... de ter, é,
também entrado pra essa área do feminismo, foi porque a essa... essa
101

tendência, é, me deu, eu fiz escola, né, do feminismo. Então. Nós tivemos


curso sobre o feminismo, nós disc..., estudamos as linhas feministas, é, nós,
é..., discutimos conjuntura, é..., do Brasil do ponto de vista, na ótica
feminista.

Durante o tempo em que fez sua formação feminista, Márcia já era filiada ao
PT. Participava dos encontros de mulheres do partido, onde questões feministas
eram debatidas. Ser membro do PT aparece como fundamental em sua trajetória.
Em sua entrevista, ela fala a partir do lugar de membro do partido e de sua posição
hoje no governo local, uma vez que a cidade é gerida pelo PT. Graça, que também é
filiada ao mesmo partido, enuncia seu discurso a partir muito mais de sua
identificação com os movimentos sociais de base do que com sua identidade
partidária. Apesar dos diferentes percursos e identificações, Graça e Márcia são
exemplos de pessoas que atribuem sua entrada no movimento feminista à
consciência política da situação das mulheres na sociedade brasileira e à
necessidade de se trabalharem as questões específicas das mulheres.
Luzia, hoje filiada ao PPS, também mantém estreitas relações com os
partidos políticos e é a partir de sua identificação partidária que ela enuncia seu
discurso. Ela iniciou sua trajetória política ainda na universidade, onde participou de
movimentos estudantis e entrou para partidos políticos. Ela conta que seu
engajamento no movimento de mulheres a partir da participação no “Movimento
Feminino pela Anistia” (MFPA)60:

L: É... então a minha vida, é..., depois entrei no Movimento Feminino pela
Anistia, foi daí que depois surgiu essa vinculação com a luta das mulheres.

O MFPA não se dedicava à luta pelas reivindicações específicas das


mulheres, mas foi uma escola política importante para elas e formou muitas
lideranças do movimento feminista. Segundo Luzia, foi a partir daí que ela se
vinculou ao movimento de mulheres. No entanto, para ela, sua relação com as
questões específicas das mulheres ganhou força foi com sua inserção em partidos
políticos:

L: (...) mas, mesmo dentro dos partidos que eu participei, né, sempre
também estive ligada, né, com essa, porque cada partido também tem
essa... essa forma de organizar, pelo menos partidos de esquerda,
defendendo essas bandeiras, de ter sempre uma comissão de mulheres ou

60
O “Movimento Feminino pela Anistia” em Minas Gerais foi fundado por D. Helena Greco em 1977.
102

um departamento, é, específico que... que cuidasse dessa questão. Então


também sempre tive, é, dentro do partido essa preocupação de lutar pra que
o partido também, como um todo, assumisse não só as mulheres do partido,
como essas bandeiras, né. Eu militei no MR8, depois entrei no PCB, né, em
mil novecentos e oitenta e dois. E no... no PCB, num é, nós também, é um
partido que historicamente, né, sempre defendeu também é... é... a luta pela
igualdade de direitos, né, da mulher. Mas sempre alguma coisa meio ali das
mulheres, então essa sempre foi também uma... uma trajetória. O PCB se
transformou em PPS e... o PPS também em cada congresso que a gente
realiza, nós temos lá os encontros das mulheres pra garantir no estatuto
algumas questões que simbolizam que o partido de fato tem preocupação,
né, com essa luta.

Essa identificação com o movimento social partidário marcou todo o discurso


produzido por Luzia durante a entrevista.
Outra porta de entrada relevante para o movimento de mulheres em Belo
Horizonte foi a inserção de intelectuais e acadêmicas. Karin, que seguiu a carreira
acadêmica, começou a participar do movimento por sugestão de uma professora da
universidade:

K: E aí então eu sabia o que.. que o grupo tava fazendo, não... não me


vinculei ao grupo logo no início, passei a me vincular ao grupo por sugestão
de Marília Matta Machado, que por sua vez não participava (risos), mas
também fazia a mesma coisa, empurrava os outros pra ir pro dia a dia
(grifo nosso).

Ela entrou no movimento como “interessada”:

K: Em... eu participo é... eu participo como interessada, é, divulgando ta...


ta... tá... aquele primeiro... aquele ato público em 1980 que foi organizado
por um grupo de... de feministas... que essa história toda cê tem, né. É... eu
vou ao ato, quer dizer eu acompanho a montagem, depois fui ao ato
depois... a partir dali, é, se divulga o CDI, a idéia de criar o CDI numa
reunião, eu lembro que eu tava com as etiquetinhas no carro, distribuindo
folder ta... ta... tá, esqueci da reunião (risos) é ótimo, né? O dia mesmo
da reunião eu não fui não (risos) (grifo nosso).

Podemos perceber nessas falas que a participação de Karin no movimento


tem particularidades em relação às demais entrevistadas. Por um lado, em seu
discurso, ela se coloca como intelectual, que “fazia a mesma coisa” que outras
acadêmicas, ou seja, interessava-se pela questão da mulher, mas não participava do
cotidiano do movimento social. Por outro lado, ela se mostra comprometida com a
luta movimento. Como vimos no capítulo anterior, ela manteve o telefone do SOS
Mulher em sua casa e continuava prestando atendimento às mulheres mesmo
depois desse serviço ter sido extinto. Além disso, participou de diversas ações
103

importantes do movimento de mulheres, como a criação da Delegacia Especializada


em Crimes contra a Mulher e Constituinte. Ao longo deste trabalho, poderemos notar
que todo o seu discurso foi emitido a partir do lugar de intelectual, de professora da
UFMG, marcando sua autonomia em relação ao movimento, aos partidos e à
prefeitura, sendo que autonomia não significa falta de comprometimento.
Outro caminho para a politização das mulheres foi a participação sindical. Por
um lado, a sindicalização levou as mulheres à participação política, mas por outro,
nos sindicatos, tradicionalmente, as “reivindicações da mulher” não eram
trabalhadas ou o eram de modo periférico. O movimento de trabalhadores entendia
que pensar nas especificidades das mulheres no trabalho impossibilitava a unidade
da luta, pois desviava a atenção da questão principal, a de classe (CÓSER, 1989).
Apesar das divergências entre o movimento sindical e o feminista, algumas
sindicalistas, na década de 1990, estiveram presentes nos debates propriamente
feministas. Um exemplo disso é o percurso de Ermelinda, que “era do sindicato dos
trabalhadores da educação”: “Porque na verdade a minha interferência é pelo
sindicato, então tudo que existia de políticas de gênero, política do movimento
feminista e encontro do movimento feminista, eu participava enquanto sindicalista”.
Ermelinda entrou em contado com as questões de gênero a partir da
participação sindical, tendo uma trajetória diferente daquela traçada pelas militantes
do movimento feminista. Foi em encontros feministas que Ermelinda conheceu o
trabalho realizado na Casa Abrigo. Mais tarde, graças aos contatos feitos nos
encontros, ela veio a ser a gerente daquele programa. É posição de coordenadora
de políticas públicas voltadas para mulheres que ela emitiu o discurso que estamos
analisando.
Daniele não participou do movimento de mulheres. Ela fala a partir do lugar
de uma funcionária pública, concursada, que ocupa lugares institucionais. Já
trabalhou em outros programas da prefeitura de Belo Horizonte e, atualmente, é
gerente da CASV.
Acima vimos os diversos os caminhos de entrada no movimento de mulheres
de nossas entrevistadas. Esses modos de engajamento político apontam para as
facetas dos discursos enunciados por elas no decorrer de toda a entrevista. A
emissão do discurso é marcada por suas identificações, subjetivas e sociais, com
determinadas posições. Graça identifica-se com as bases dos movimentos sociais;
Márcia, com o cargo que ocupa na administração petista da cidade de Belo
104

Horizonte; Luzia, com a participação política em partidos; Karin com a universidade;


Ermelinda, com a coordenação dos programas; e Daniele com o lugar de funcionária
pública concursada. Essas identificações constituem, portanto, elementos de
relevância fundamental para a análise dos discursos produzidos nas entrevistas,
pois marcam a trajetória das entrevistadas e a construção dos sentidos de cidadania,
gênero e violência.

5.3 Os programas sociais: novos lugares e identidades novas

Todas as entrevistadas estão, de algum modo, ligadas às políticas públicas


de atendimento às mulheres do município de Belo Horizonte. Veremos, a seguir, os
diversos momentos e caminhos pelos quais cada uma delas entrou nos programas,
e qual é sua participação neles hoje.
Dentre as entrevistadas, algumas participaram desde a elaboração das
políticas públicas e assumiram posições de chefia a nos equipamentos. Esse é o
caso de Márcia e Graça. Outras, como Luzia e Karin, também participaram do
processo de elaboração das políticas públicas, mas não assumiram cargos nesses
programas, sendo que Karin presta consultorias para eles. Já Ermelinda e Daniele
entraram nos programas depois que eles já haviam sido implementados e ocupam
posições de gerência.
Márcia, Graça, Luzia e Karin estavam presentes desde o início da elaboração
e implementação das políticas públicas voltadas para mulheres no município. No
entanto, apesar de serem todas militantes, suas posturas e os lugares de onde
emitem o discurso são diferentes.
No capítulo sobre a história do movimento de mulheres em Belo Horizonte,
vimos como foi a participação de Graça no processo de construção dessas políticas
públicas, principalmente na criação do Benvinda. O elemento que dá o tom de seu
discurso é a importância do trabalho com as bases em sua atuação política. Quando
o Benvinda foi criado, ela assumiu sua coordenação. Depois trabalhou como técnica
na CASV e foi sua coordenadora do final de 1999 até meados de 2000, quando
reassumiu a gerência do Benvinda. No momento da entrevista, ela tinha se
descompatibilizado para se candidatar à vereadora.
Márcia também participou de reivindicações para a formulação de políticas
públicas, principalmente dentro do PT, e atuou na elaboração e implementação dos
105

programas. Ela nos conta que participa dessas políticas desde que elas começaram
a ser preparadas: “(...) a gente tá desde o início, eu, Margareth, desde a comissão
paritária e outras coisas.”
Márcia foi gerente da Casa Abrigo até o final de 1999, quando assumiu a
coordenação da Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher.
Enquanto Márcia apresenta-se como membro do movimento de
mulheres que reivindicava ações do Estado, Luzia identifica-se como representante
do governo, que recebia as demandas dos movimentos sociais. Segundo ela, é
deste lugar que ela participa da elaboração das políticas públicas: “(...) participei
muito diretamente da... da... construção desses dois equipamentos porque a época
eu trabalhava na secretaria de governo, um órgão que também recebia essas
demandas, é. “
Luzia nunca assumiu nenhum cargo de chefia nos programas de atendimento
a mulheres. Sua atuação política no município foi significativa em outros setores; ela
ocupou várias posições de prestígio na administração local. No momento em que
realizamos a entrevista, ela estava se candidatando a vereadora; antes disto era
secretária municipal da Regional Nordeste
Outra militante que participou da elaboração dessas políticas públicas para
mulheres foi Karin. Ela identifica-se como representante da UFMG. Essa condição a
manteria, segundo ela, como participante autônoma ou, até mesmo, neutra. Vejamos
suas palavras:

K: Eu acho que desde a época em que a gente começa a se encontrar pra


criação da delegacia, pra definir depois... é... eu acho que no momento que
a gente faz isso e como, de alguma maneira, eu se... eu, como uma dos
membros do CDM, vô pra essa reunião, depois também como alguém
ligada a UFMG... A UFMG vai designando, olha convida-se UFMG pra
participar dos... de alguns projetos delineando. Primeiro delegacia, depois
delineando casas ab, casa abrigo, depois delin... Entende, assim, quando
convida UFMG e eu já tinha meu contato com o pessoal todo, esse
pessoal todo por causa militância anterior. É... e porque eu acho que
eu era meio neutra dentro do CDM, também (grifo nosso). Neutra no
sentido de que... eu num tô lá no comecinho... no comecinho... eu não tive
de... eu não participei de determinados rachas da esquerda que foi no
finalzinho de setenta, começo de oitenta, tá? Eles não me reconheceram,
filiada ao partido político, isso ficava mais fácil, porque, nossa!, cê num
imagina, os rachas eram horrorosos. Os rachas eram muito difíceis. É... por
uma certa ingenuidade política, tá, é... portanto... e naquele momento eu
era... um zero a esquerda, né, nessa época... então, eu num fiquei
contaminada nas relações. É... eu, essa é uma leitura assim muito pessoal
pra dizer, ó como isso... eu continuei tendo convivências, é... pessoais,
agradáveis. Sabe? É... E porque não tinha muito espaço de poder, como...
algumas pessoas disputavam mesmo. Sabe, então, na hora de ocupar
106

lugares e ta... ta... tá... essa era uma questão que num... pra mim num tinha
ressonância, né, pra mim isso não era um debate feminista. Então, eu não
punha em risco. É... quando o... se delineou o projeto da casa-abrigo, então
eu vou como representante da UFMG, né, e tal. Teve um momento que me
perguntaram: você vai querer coordenação? Eu falei ‘de jeito nenhum’.
Acho que isso aliviou também. Sabe? Eu falei ‘de jeito nenhum’. O meu
lugar, é, pra mim é muito claro como é que a gente da universidade chega
num lugar desse,e esse é um lugar onde você onde você veio trazer um
certo olhar, um certo debate, uma certa, né, uma certa... questionamento
das... de coisas, é..., enquanto representante da universidade.

Karin afirmou que nunca teve a intenção de ocupar espaços de poder, pois
seu lugar nos debates sobre a criação de políticas públicas, como dito acima, era de
representante da universidade. Sua participação depois da implementação dos
programas foi como consultora externa, como acadêmica. Segundo ela, várias
outras pessoas da universidade foram chamadas para prestar consultorias. No seu
caso, ela atribui os convites para prestar consultorias à sua participação como
militante feminista desde a criação da Delegacia e, também, à boa relação que ela
mantém com a Márcia e com “as outras meninas”:

M: No caso da... COMDIM, parcialmente, no meu modo de entender, foi


muita delicadeza de Márcia... e mais tarde as outras meninas, por convite
da Márcia e tal, que por sua vez é uma tiete assim (risos). Em principio
muito engraçado, né, no meu modo de entender, assim, legal, no sentido
assim, qualquer coisa que fala também elas se encantam. É muito
bonitinho, sabe, assim (risos tímidos). Tem hora que eu falo, gente a
contribuição é tão pobre. Mas elas são encantadas em princípio, de
antemão (voz séria novamente). Elas já tão imaginando que a contribuição
vai ser importante. É muito legal isso, né.

Como consultora, portanto, Karin participa dos programas sem perder sua
autonomia política.
Ermelinda e Daniele, por sua vez, entraram nos programas quando eles já
estavam em funcionamento, nos anos de 2000 e 2004, respectivamente. Hoje
ocupam os cargos de gerente do Benvinda e da CASV. Ermelinda era funcionária da
prefeitura da cidade de Sete Lagoas (MG) e participava dos encontros feministas
como sindicalista. Ela conta que, desde que soube do trabalho realizado na Casa
Abrigo, na Conferência da Saúde da Mulher em Belo Horizonte, teve vontade de
trabalhar no programa: “Eu me lembro que eu achava o programa fantástico. Eu me
lembro que eu comentava com algumas pessoas, gente eu ainda quero trabalhar
nesse projeto”.
107

Alguns anos mais tarde, ela ficou conhecendo a Márcia no Encontro


Feminista de Salvador, com quem conversou sobre os programas. Ermelinda, que
também é filiada ao PT, conta que, depois desse encontro, procurou Márcia e propôs
realizar um projeto na CASV. Ermelinda começou a trabalhar na Casa Abrigo em
2000, desenvolvendo um projeto durante suas férias-prêmio:

E: E, nesse encontro [feminista] em Salvador, eu conheço a Márcia, ela me


fala da Casa Abrigo Sempre Viva, acho que foi no final de 99. Quando é em
2000 eu procuro ela, ela tava, ela tinha saído da coor... da... do Sempre
Viva e tinha ido pra Coordenadoria da Mulher, quando ela funcionava na
Álvares Cabral e aí eu... a gente marca uma entrevista, eu converso com ela
nessa perspectiva de... de conhecer a Casa Abrigo, nessa época eu tava
em licença, em férias-prêmio da prefeitura de Sete Lagoas, fiquei quatro
meses de férias-prêmio. E aí ela me apresenta a Graça, que era a atual
coordenadora. E eu começo um... um... um projeto.

Após o término das férias-prêmio, ela foi contratada temporariamente para


trabalhar na CASV. Em 2001, Célio de Castro (PT) tomou posse na prefeitura de
Belo Horizonte, o que levou a algumas mudanças nas políticas públicas. Graça
voltou a coordenar o Benvinda, e Ermelinda assumiu a coordenação da CASV:

E: Então nessa situação a gente avaliou que eu ficaria no Sempre Viva, a


Graça viria pro Benvinda e a Márcia assumiria a Coordenadoria. Foi isso
que então aconteceu. Então eu assumo o Sempre Viva enquanto gerente,
é, em março de 2001 e a Graça vem pro Benvinda. Então eu fiquei esse
tempo, de março de 2001 até junho de 2004, eu fico na gerencia do Sempre
Viva. Nesse momento a gente se encontrava mais ou menos parecida. A
Graça gerente do Benvinda, sai para ser candidata à vereadora, então abre-
se esse espaço aqui e, então, seria interessante eu vir pra cá... tinha um
pouco um cansaço, é, meu da estrutura do Sempre Viva que é uma
estrutura, é..., massante. Na verdade eu fui a que ficou mais tempo na
coordenação, é..., do Sempre Viva, entre eu a Márcia e a Graça, foi eu, né,
fico mais tempo naquele lugar. Então foi quando eu vim para o Benvinda,
discutir então uma política aqui do Centro de Apoio, né, então eu assumo
aqui a partir de junho (grifos nossos).

Ermelinda coordenou a CASV durante três anos e meio. Em julho de 2004,


teve a oportunidade de assumir a coordenação do Benvinda, o que, segundo ela, foi
bom, pois a estrutura e o dia-a-dia da CASV são muito desgastantes. Quando
realizamos a entrevista para essa pesquisa, ela já estava gerenciando o Benvinda
há um mês.
Pelo que foi narrado até agora, podemos perceber que as entrevistas para
essa pesquisa foram feitas em um momento de transição. Havia um mês que os
cargos de gerência tinham sido reconfigurados. Márcia estava de licença-
108

maternidade, e a Coordenadoria foi assumida temporariamente por Margareth61.


Graça saiu da coordenação do Benvinda para se candidatar à vereadora. Ermelinda,
que já estava desgastada com o trabalho na CASV, assumiu a gerência do
Benvinda. E a CASV ficou sem coordenadora, até a entrada da Daniele. Márcia
conta que procurou pessoas que pudessem ocupar o cargo, e uma delas indicou a
Daniele:

C: E a entrada da Daniele?

M: (Breve pausa) É. Pois é... (tom grave) eu... precisava de uma pessoa, né,
que tivesse pelo menos alguma... alguma... entrada nessa discussão de
gênero, ou pelo menos já tivesse participado, a gente... A idéia era trazer a
Ângela pra trabalhar com a gente aqui, ela é do programa de família, ela
sempre vinha pra discutir casos aqui com a gente dentro do abrigo, e ela...
ela sempre teve muito a fim de trabalhar com a gente e ela tem muito o
perfil de gerente, porque ela é gerente, sempre foi, né, é uma... e que a
Assistência não abre mão dela.

C: Hum?

M: Não abriu mão. Então eu falei: ó, Ângela, mas comé que eu vou fazer, eu
preciso de alguém, uma pessoa, né, gerente. A gente foi perguntado pra
algumas pessoas, né, o que... que, se elas conheciam alguém. Aí que a
Ângela falou: é... eu posso te indicar uma pessoa? Que aí aparece a
Daniele.

Nas palavras de Daniele:

D: (...) Na verdade, uma amiga, ela foi chamada, né, pela Marcinha pra vir
pra gerenciar a Casa, né. Que... a Ermelinda tava saindo, então. E essa
pessoa não se interessou e tal e me indicou pra Marcinha, falou que tinha
uma pessoa e tal e... do SOSF e tal, deu algumas indicações, e eu
conversei com a Marcinha, né, e acabamos acertando de vir pra cá.”

A transferência de Daniele do Serviço de Orientação Sócio-Familiar (SOSF)


para a CASV foi feita às pressas. Segundo Márcia, não houve tempo de ela
gerenciar o processo de transição, que acabou sendo conturbado:

M: Conversando com a Daniele e já sabendo que ela tinha uma experiência


com o programa de família, e ela já tinha trabalhado no Miguilim com abrigo
pra crianças, né, é... que já tinha uma trajetória. Então eu falei: cê topa? Ela:
é um desafio, vamos ver, né. Cê fica, eu vou entrar de licença, mas antes
d’eu entrar de licença eu ainda faço a transição, que não foi feita, então, pra
ela, eu não sei, como é que, talvez até através da sua entrevista se ela. Pra
ela é tudo novo, por mais que era. Eu falei isso pra ela, eu tive
oportunidade, outro dia eu fui lá, eu estive lá no abrigo, deixei o Bernardo

61
Margareth também tem uma trajetória de militância no movimento de mulheres e trabalha na
COMDIM. Durante a licença-maternidade de Márcia, ela a substituiu na Coordenadoria.
109

dormindo aqui e fui lá, pra conversar com ela. Eu falei: olha, né, não se sinta
amedrontada, eu acho que é um desafio, é um trabalho novo, mais, né,
imprima o seu jeito. Que é uma coisa também, Carol, que eu faço com as
pessoas. Eu dô muita autonomia, porque as pessoas têm que buscar... se
elas acreditam naquilo, se é um trabalho, se elas tão responsáveis, que elas
façam, né, é... pr’aquilo ali, é..., desenvolver.

Em pelo menos duas falas de Daniela, podemos perceber como ela se sentia
em seu primeiro mês de trabalho num equipamento que ela não conhecia:

D: Eu num consigo, assim nesse momento sabe, Carolina, que ocê me


pegou assim, de um mês aqui e... jogada, assim, dentro da Casa Abrigo”
(grifo nosso). Com um turbilhão de coisas, né, pra pensar, pra organizar,
pra... (risos) fica difícil definir, assim, pr’ocê, sabe.

D: “Espero que eu tenha conseguido ajudar em alguma coisa, porque o


tempo realmente é muito curto, né. E o trabalho aqui é muito puxado. E ocê
então é jogada logo na prática (grifo nosso) e com um monte de coisa,
então.

Daniele fala que foi “jogada” na CASV e, no decorrer da entrevista, mostrou-


se angustiada por ainda não se sentir preparada para trabalhar com a violência de
gênero. O processo de entrada da Daniele na coordenação da CASV levanta a
questão da formação de novas lideranças e da revitalização das bases no
movimento de mulheres. Ela nunca foi militante no movimento de mulheres, assumiu
esse cargo como uma técnica da prefeitura. É a partir deste lugar que ela falou
durante a entrevista.
A maior parte das pessoas que ocupam os cargos de poder nos programas
da prefeitura voltados para mulheres veio dos movimentos sociais. No capítulo
anterior, começamos a discutir sobre como foi esse processo de migração de
lideranças de movimentos sociais para o aparato do Estado. A seguir, nos
deteremos mais na análise deste ponto.

5.4 Ser ou não ser? Entre o Estado e os movimentos sociais

À medida que as políticas públicas de gênero foram se desenvolvendo,


militantes do movimento de mulheres começaram a ser chamadas para ocupar os
espaços de poder dentro do governo. Como vimos, a decisão sobre entrar ou não
para o aparato do Estado não foi tranqüila para as integrantes do movimento de
mulheres. Houve um enorme racha dentro do movimento em Belo Horizonte e,
conforme discutimos anteriormente, cada militante ou grupo se posicionou de um
110

modo. Karin falou dos rachas dentro dos grupos e da posterior migração de
militantes para a estrutura governamental:

K: Cê tinha rachas gigantescos no tempo das miríades dos partidos


políticos, no final dos setenta, comecinho de oitenta. Já nem tô falando com
o Estado, tô falando internos, foi, e a medida que isso no interior da
esquerda ou se diluiu ou se reconfigurou, tá? Eh... Por muuitas razões e tal,
ela acabou afetando também porque esse pessoal todo, né, de alguma
maneira migrou e tá hoje no Estado, né. Sobretudo a nível nacional e a
níveis locais.

O fenômeno de migração de lideranças de movimentos sociais para as


estruturas governamentais não é exclusividade da cidade de Belo Horizonte nem
tampouco do movimento de mulheres. Segundo Evers (1984, p. 22):

Não é raro que movimentos sociais, após uma fase de ampla mobilização
em torno de questões concretas, ganhem algum acesso às estruturas
políticas estabelecidas. Em nome de uma eficácia maior, as lideranças
engajam-se nessas estruturas – e o movimento entra em decadência, pelo
menos enquanto manifestação autêntica de interesses sociais determinados
e uma experiência de vida social intensa.

Muitas militantes do movimento de mulheres converteram-se em gestoras


dentro do Estado. Outros grupos e pessoas, que decidiram se manter autônomos,
acabaram por se diluir, principalmente depois que os financiamentos externos foram
cortados62. Hoje o movimento de mulheres na cidade é visto como inoperante.
No entanto, Paoli (1995, p. 39) defende que as mulheres conseguiram criar e
ocupar os espaços institucionais mantendo uma postura crítica em relação a eles:
“Essa crítica constante nasce de uma elaboração que não perde sua história e
descobre a identidade e autonomia como construções mutáveis no tempo”. Em sua
visão, essa migração não é a priori negativa. Os atores políticos têm uma história e a
levam para dentro do Estado, podendo preservar certa autonomia em relação a ele.
Esse processo descrito por Paoli foi vivido por algumas de nossas
entrevistadas, que eram lideranças do movimento de mulheres e atualmente são
gestoras de políticas públicas. Vejamos como essa questão é percebida por elas.
Luzia, que fez parte do primeiro Conselho Estadual da Mulher e, desde então,
ocupou diversas posições de prestígio na prefeitura, mostra tranqüilidade em relação
a trabalhar no Estado. Ela identifica-se com esse lugar:

62
Ainda neste capítulo discutiremos o papel das agências financiadoras nos movimentos sociais.
111

L: (...) eu sempre foi uma pessoa que... que vim do movimento, ocupei
cargos importantes no executivo, né, de... de, como gestora, né, de políticas
públicas, que aí a gente tem que, a gente é absorvida pela demanda, pela
rotina.

Apesar de afirmar que sempre tem como princípio trabalhar com uma
perspectiva de gênero em qualquer lugar que esteja, ela admite que esta é uma
tarefa difícil, pois sua rotina de trabalho envolve outras questões, e ela acaba sendo
“absorvida” por elas. Seu trabalho hoje não envolve diretamente o gênero ou a
violência contra a mulher.
Ermelinda e Márcia, por outro lado, percebem o processo de migrar para as
instituições do Estado como confuso e carregado de ambigüidades. Ermelinda falou
da dificuldade em articular os interesses do movimento social com os do poder
público: “A gente tem essa dificuldade, quando a gente é do movimento e vem pro
poder público, né. E são instâncias diferenciadas, uma coisa é cê ta no movimento,
outra coisa é você virar poder público. Né.”
Mais adiante, ela argumenta que estar no movimento social ou no Estado
exige atitudes diferentes e difíceis de conciliar:

E: (...) É esse acerto de passo que... às vezes ele é difícil de fazer, né, é...,
de você entender que você tá num outro lugar, né, é, e que é diferenciado,
num adianta você querer vir com cara de movimento pro poder público. Ou,
por exemplo, o poder público querer massificar o movimento, querer que o
movimento, é..., seja o poder público. Eu acho que de ambos os lados, né,
que há muitas vezes confusão desse lugar.

Para Márcia, essa parece ser uma questão fundamental, pois ela retoma esse
ponto no decorrer de toda a entrevista. Ela se posiciona como fazendo parte tanto
do movimento de mulheres, quanto da estrutura governamental, o que parece gerar
ansiedade nela. Márcia entende que o conflito entre essas duas posições é inerente.
Vejamos exemplos de falas nas quais essa duplicidade aparece:

M: Hoje cê vê, vê outros valores, outros conceitos, mas naquela época foi muito
importante. Então essa, essa questão de... de você ter, né, uma diferença do
movimento, a gente sabe que tem. Que tem o movimento, nós fazemos parte do
movimento, mas é, até que ponto cê (grifo nosso), a gente é governo e é movimento,
ao mesmo tempo, e há e há isso também, né, é essa confusão e essa coisa bem, é...,
bem tênue, ou seja, tem hora que cê passa ser movimento e cobra do governo e tem
hora que cê é governo e cobra do movimento, então a estratégia da gente, é,
perceber que...
112

Em outro momento da entrevista, ela retoma a questão:

M: (...) queremos construir nos governos, né, e qual que é a diferença


entre governo e no- e movimento. Então isso pra nós é muito importante.

C: Hã, hã!

M: Se manter a autonomia do movimento de mulheres, ou seja, nós temos


uma... uma pauta, uma proposta, uma discussão, dentro do partido, nós
temos que disputá-la no movimento, mas a gente sabe que... e no
movimento e no governo, né, quer dizer, o... o movimento por mais que ele
tem que ter sua autonomia, a gente sabe que lá também tem outras visões,
outros interesses, e a gente vai colocar nossa proposta e foi um pouco, né,
o que deu, é, o que deu, é, condições da gente construir isso aqui em Belo
Horizonte, num é, a partir de noventa e três, né, noventa e..., noventa,
então ... e na dé..., é, meados de oitenta e noventa é uma época
superfrutífera pra gente.

Na fala acima, Márcia indica a dificuldade em articular os interesses do


Estado com os do movimento social, e ela se coloca como pertencente aos dois
espaços. Ela ocupa cargos no Estado há 11 anos, desde que o PT assumiu a
prefeitura do município, no entanto, esta ainda é uma questão atual para ela, como
podemos perceber na fala seguinte: “Mas isso pra nós é uma coisa muito nova
também, né, quer dizer, ser movimento e ser governo, então isso também dá uma
confusão dana..., né, e eu ac... e a gente tá vivendo esse momento.”
Essas feministas procuram manter uma postura crítica frente ao
governo, buscando manter certa autonomia em relação a ele. No entanto, a
migração de lideranças do movimento de mulheres para os espaços institucionais
aparece como um dos fatores que levaram ao enfraquecimento do movimento. Isso
está presente nas falas de Márcia e Ermelinda. Márcia coloca em questão a força do
movimento atualmente:

M: É, né, tem hora que a gente é movimento, tem hora que a gente é
governo. Então há essa confusão, ainda, né. E a gente não tem um
movimento forte, né, assim. Eu não sei se vai existir, né, esse movimento
forte ainda, mas assim, a gente ainda, nós temos ainda um grau de
inserção muito pouco, num é (grifo nosso).

Para Ermelinda, essa migração pode ter levado a uma crise do movimento de
mulheres:

E: Então, vai pro.. pro espaço..., é... é institucional. Né. Como que isso lida
com o movimento? Então, tem... tá pensando porque aí a gente ta..., dizia,
113

porque aí, na verdade, por exemplo, as feministas que tinham suas


bandeiras, que estavam nas brigas, elas são inclusive incorporadas no sis...,
nos equipamentos. Né. Porque esse espaço, na sua grande maioria, estão
sendo coordenados ou estão sendo executados por mulheres que são do
movimento feminista. Então, aí a gente tá tentando imaginar, se essa
cooptação, se essa é a palavra correta, que faz essa crise, por exemplo,
na cidade de Belo Horizonte, hoje nós temos uma crise (grifo nosso).

A transição de militantes para o aparato do Estado talvez seja um ponto


importante a ser analisado no processo de enfraquecimento do movimento de
mulheres. No entanto, não podemos reduzir os motivos dessa crise à migração de
lideranças para o governo e ao atendimento de algumas de suas reivindicações.
Outra razão apontada pelas entrevistadas para o enfraquecimento dos movimentos
autônomos foi a retirada dos investimentos externos.
Grandes agências internacionais de financiamento investiram em projetos
relacionados à mulher durante o decênio de 1975-1985, que foi declarado
oficialmente pela ONU como a Década Internacional da Mulher. No Brasil, muitos
grupos de mulheres tiveram suas atividades financiadas por agências como a
Fundação FORD e a Fundação MacArthur. Por um lado, o investimento externo
permitiu que esses grupos trabalhassem, tanto na teoria quanto na prática, em torno
da não discriminação e da não opressão das mulheres. Por outro, os financiadores
direcionavam, embora não determinassem, os caminhos que os debates deveriam
seguir. Márcia, que pertencia ao movimento partidário e não ao autônomo, nos
chama atenção para esse segundo ponto:

M: Então, quer dizer, as ONGs têm interesse de ter, de ter financiamento,


então elas, muitas vezes elas têm que abrir mão de alguns princípios das
feministas pra seguir a Oxford, seguir essas finan... agências financiadoras
interna... internacionais, então algumas são favoráveis ao aborto, outras não
são, algumas são mais as lésbicas e outras não são. Então, tem tudo isso
misturado.

Embora Márcia esteja se referindo à pressão que os grupos autônomos


sofriam das agências financiadoras, precisamos ter claro que as feministas
partidárias também tiveram que lidar com as influências dos partidos.
Muitos grupos não tinham como sobreviver sem financiamento externo e
foram fechados com sua retirada. Esse foi o caso do CDI, grupo do qual Karin fazia
parte:

K: (...) Então no final, basicamente fechando o grupo e, porque era uma


114

ONG, e fechando, né, os acordos com, contratos, porque como aquilo era
financiamento da FORD a fundo perdido, esse era um acordo que a gente
tinha.

A retirada dos financiamentos pelas agências internacionais não foi aleatória.


Ao contrário, a lógica seguida é que os investimentos auxiliam no desenvolvimento
de questões relevantes política e socialmente, que são historicamente
negligenciadas pelo poder público, até que elas sejam assumidas e sustentadas
pelo Estado.
No caso das mulheres, o financiamento externo permitiu que vários grupos se
organizassem, estabelecessem suas reivindicações e lutassem para conquistá-las.
Como vimos na história do movimento de mulheres no Brasil, nesse período o
movimento feminista se fortaleceu, provocando mudanças subjetivas, culturais e
políticas. A atuação política das mulheres foi significativa, sensibilizando o Estado
para a necessidade de trabalhar publicamente as questões do gênero. Nesse
sentido, o papel do financiamento foi cumprido. Karin, que participava de um grupo
que foi extinto pela falta de investimento, reconhece a necessidade de se investir em
outros projetos:

K: Nessa hora deixaram muito claro que, a FORD deixou, Peter Spin... Peter
Frye deixou muito claro, olha eu, nós definimos que, né, que nos vamos
investir, agora é a década AIDS, depois terá outra coisa e tal e vocês agora
têm pernas porque o Estado entrou na cena, então agora vocês vão ter que
se haver com eles, né, tem que dar continuidade... foi uma decisão
interessante também, em termos de de delinear onde é que eles iam botar
esforços, recursos e investimentos. É... e... também na medida em que a
AIDS foi incorporada no Estado, eles saem pra ir pro movimento negro...

K: (...) o Estado, ele incorpora as questões, você começa a não ter


financiamento,é, pros projetos, né. Por razões que, por exemplo, quando...
quando o Peter Frye de... us..., como porta voz ele, trás isso e tal, outras
pessoas também, a Patrícia que vem da dos Estados Unidos e passa pelo
Brasil e vai repassando, discutindo, né, essas novas... Eu acho que eles
tavam corretos! (mudança de tom de voz) né. Eu acho que é isso
mesmo, cê vai... já que tem tão pouco dinheiro pra fomento defini-se
décadas de investimento, né, e... e dá fomento... a outras questões que
ainda não conseguiram se consolidar (grifo nosso). Eles tinham razão.
Nós tínhamos, o movimento feminista tinha se consolidado.

Quando o financiamento externo foi retirado, o Estado brasileiro já


incorporava, de certo modo, as questões de gênero e investia na formulação de
políticas públicas. Mas isso não foi feito da mesma forma em todos os governos; a
maioria relegou essa questão a um segundo plano e não assumiu as
responsabilidades que o movimento de mulheres reivindicava.
115

O financiamento internacional foi fundamental para que o feminismo se


consolidasse no Brasil, mas sua retirada foi fatal para muitos grupos autônomos. As
ONGs63 e os movimentos sociais partidários ganharam espaço e configuram hoje o
cenário de luta pelos direitos das mulheres no país. Dentre nossas entrevistadas,
apenas Karin define-se como uma feminista autônoma, ao afirmar: “E vô tá fazendo
uma trajetória no movimento social e não partidário”. Já Márcia coloca a questão nas
seguintes palavras:

M: (...) autonomistas, feministas, tanto é que a Karin hoje, né, ela tem essa
postura muito de uma feminista autônoma, ela não tem vínculo nenhum,
né, como eu e outras pessoas que têm, né, a gente sempre fala em nome
do PT, né, porque foi a escola que a gente teve, né. É, tanto que... que a
gente vai pro... pro governo numa, num... num governo, é..., da marca do
PT e traz essa discussão dentro do viés do PT, então, por mais que a gente
tem contribuições do PCdoB, de outros partidos que tão na frente junto, né,
na campanha do... do Patrus, mas é... é... a... a..., quem dá a linha é o PT.

No decorrer da narrativa apresentada, vimos que Karin se posiciona de


maneira crítica e autônoma em relação a várias questões, como, por exemplo, a
importância do PT nas conquistas das mulheres no município. Todas as demais
entrevistadas desta pesquisa são filiadas a partidos políticos, e suas inserções no
movimento de mulheres são declaradamente partidárias. A relação entre os
movimentos sociais e os partidos políticos merece nossa atenção.
Quando os movimentos sociais surgiram, uma de suas características básicas
era a autonomia em relação ao Estado e aos partidos políticos. A necessidade de
rompimento com as práticas clientelistas da direita levava os movimentos sociais a
se declararem apartidários. Durham (1984, p. 24) define os movimentos sociais a
partir de dois pontos:

(...) de um lado, a base de classe desses movimentos, que congregam


segmentos heterogêneos da população e, de outro, o fato de se
constituírem como formas de mobilização que ocorrem fora do espaço
dos partidos políticos e dos sindicatos (grifo nosso).

No início da história dos movimentos sociais, a autonomia política tinha uma


importância fundamental em sua estratégia de ação. Mas isto foi sendo modificado e
re-configurado. A fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1979, foi um

63
O impacto da onguinização dos movimentos sociais foi discutido no terceiro capítulo desta
dissertação.
116

marco nessa história. O PT nasceu do movimento social e mostrava-se mais aberto


para acolher as demandas e articular as diversas reivindicações dos movimentos.
Segundo Karin, os outros partidos tinham, até então, uma relação conflituosa com o
movimento feminista, e o PT mostrava-se mais aberto para negociar interesses com
o movimento:

K: O PT foi inclusive muito criticado no seu no seu... na sua origem, no seu


início... né, muito muito muito. Mais ele por exemplo não questionou, da
forma como os outros partidos de esquerda questionavam, o
movimento feminista (grifo nosso). Os outros partidos tinham aquele
discurso de que a gente era divisionista, né, de que a gente tava
trabalhando por uma questão menor, que a gente tava, né, atrasando a
revolução, né, que era uma questão de prioridade, que primeiro tinha que
fazer a grã, a macrorrevolução, pra depois trabalhar com as questões
minoritárias, que elas tinham que ser segundo plano, por um problema de
investimento de esforço de energia e tal. E desqualificavam, né, eram
vários, eram vários partidos desqualificando, criando pras próprias pessoas
que estavam... dupla militância, um conflito interno que era solucionado com
o abandono do partido, tá, ou o abandono do movimento de mulheres. Mas,
raramente aconteceu isso. Era mais fácil pra elas, eu acho que a
solidariedade com as questões do.. de gênero foi mais forte do que com seu
partido, tá, e aí de fato houve racha sim.

Mesmo antes da redemocratização do Brasil, muitas feministas filiaram-se ao


PT e a outros partidos políticos, como o PMDB, formando núcleos de mulheres
dentro dos partidos. A abertura política modificou a relação dos movimentos sociais
com os partidos e com o Estado. Uma das mudanças mais significativas foi, como
vimos, a transição de militantes para o aparato do Estado, mudando qualitativamente
os modos de participação.
O enfraquecimento dos movimentos autônomos de mulheres é visto como
negativo por membros do movimento partidário. Os movimentos sociais autônomos
teriam o papel de manter uma interlocução externa e crítica com o Estado e os
partidos, lutando para garantir que as reivindicações sejam atendidas. Márcia acha
importante que existam grupos autônomos de mulheres, no entanto não acredita que
esses grupos estejam organizados no município:

M: Agora, cê vê que uma das coisas que a gente, é, pelo menos propõe, é
que exista movimento autônomo, né, ele que vai dar condições pra que
qualquer política pública seja garantida, em qualquer governo que seja, num
é só do PT, né. Então, por isso que assim, a gente, é, acredita na
construção de fórum, na construção de grupos de mulheres, nas
comunidades, isso eu... eu acredito que mesmo que não sejam
movimentos autônomos, mas são mulheres que se organizam e... e...
117

com objetivos diferentes, com perspectivas diferentes, mas que elas podem,
né, a... acrescentar na sua ação, algumas questões da mulher, algumas
questões que partem da suas, é, experiências próprias, né.

Essa questão da relação entre o Estado (que é a única instância capaz de


garantir direitos) e sociedade civil (que tem o papel de reivindicar que o Estado
atenda suas demandas), que estamos discutindo, é um ponto-chave para o estudo
da cidadania. Embora ainda haja muito o que conquistar, o movimento feminista
conseguiu que algumas questões relativas à mulher fossem incorporadas pelo
Estado como legítimas e merecedoras de atenção. Um exemplo disso é que a
criação e implementação de “políticas de gênero” fazem parte hoje das agendas de
governo de administrações locais e federais.
Na cidade de Belo Horizonte, houve, como vimos, avanços no trabalho com
as questões específicas das mulheres. A prefeitura implementou políticas públicas
voltadas para mulheres, que são gerenciadas por militantes do movimento feminista.
Contudo, as relações entre o Estado e a sociedade civil não são isentas de conflitos.
Para Luzia, esses conflitos são inerentes às próprias diferenças de funções do
Estado e do movimento social. Vejamos sua fala:

L: (...) O Estado... ele é premido por... situações também muito objetivas,


né, de orçamento, de recursos, de limitação, de uma ... eh, eh, infinidade de
uma demanda em todas as áreas muito grande. E a própria limitação de
recursos... Então, o Es... o Estado tem premissas muito objetivas, né, na,
na... na execução das políticas públicas. E o movimento, como eu acho que
tem que ser da sua lógica, ele tem o papel de defender, né, as suas
bandeiras, defender os seus direitos, defender a existência de políticas
públicas, que possa rese... resolver aquele problema no prazo mais
imediato possível.

Márcia e Graça são filiadas ao PT, gerenciam programas de atendimento à


mulher em Belo Horizonte e, no decorrer da entrevista, mostraram ter afinidades
com a prefeitura municipal. Mesmo assim, elas se queixaram de dificuldades em
trabalhar junto com o governo. Graça retoma a elaboração do Benvinda: “E nós
fizemos a inauguração [do Benvinda], né, assim, a cidade na verdade, a
administração não pegou o projeto. Nós pegamos o projeto e a administração da
regional pegou esse projeto” (grifo nosso).
Márcia também relata como são essas dificuldades no cotidiano de trabalho:

M: Porque é uma... uma questão muito cruel, né, quer dizer, você é
ignorada, você, pra você fazer qualquer tipo de atividade junto com o
118

prefeito é um deus nos acuda. Até pro prefeito, né, até que num, ele tem
uma relação com você, até que é importante pra ele, ele vai num sei o
quê (grifo nosso). Mas até você convencer os outros que é importante a sua
atuação, ah! É um deus nos acuda, né. Então, nós temos ainda muita coisa
pra caminhar e talvez eu não, eu não sei se resolveria ter uma mulher
prefeita, sabe, não é isso. Sabe, a questão não é... não basta ser mulher,
né.

Márcia aponta, na fala acima, que o prefeito tem conhecimento da


necessidade de atender as reivindicações das mulheres, pois, conforme discutimos
anteriormente, um projeto que se pretende hegemônico tem hoje que incorporar à
questão do gênero. No entanto, saber disso não significa que a questão seja tratada
pelo governo como prioritária. Como pudemos notar nas falas acima, as mulheres
que trabalham com gênero ainda enfrentam percalços na solução de problemas
políticos e administrativos.
Outro ponto de conflito que percebemos na fala das entrevistadas, diz
respeito a uma confusão que existe entre políticas de gênero e políticas para
mulheres. Para Karin o governo municipal trabalha questões relativas às mulheres,
mas não adota uma perspectiva de gênero:

K: (...) Se eu vejo o Estado ou o município incorporando o debate de


gênero... Não. Eu vejo o município incorporando o debate das políticas para
mulheres, sobre mulheres, de mulheres (grifo nosso). De gênero não.
Tá?

Ermelinda ratifica a opinião de Karin, afirmando que as chamadas políticas de


gênero são, de fato, políticas de atendimento a mulheres:

E: (...) quando a gente fala em política de gênero, automaticamente você


lembra de mulheres, como se políticas de gênero fosse política para as
mulheres. Eu acho que tem políticas de gênero com recorte do trabalho de
mulheres. Mas em Belo Horizonte a gente ainda ta nessa fase de
política de gênero num recorte pra mulheres (grifos nossos). Esse
trabalho voltado para... é... inclusive algumas ações afirmativas, com
mulheres. E aí eu acho que a gente tem que dar um salto de qualidade
quando a gente pensa nessa relação de homens e mulheres buscando essa
eqüidade de gênero.

Graça também crítica as políticas que se restringem às mulheres:

G: (...) Eu entendo que a questão de gênero... ela tem que ser... ela tem que
ser uma política de todas as pessoas, num é, num tem que ser só das
mulheres, mas ela tem que ser de homens e mulheres, tem que ser uma
responsabilidade da sociedade, acho que a questão de raça tem que ser
também uma responsabilidade da sociedade (grifo nosso).
119

Assim, é necessário progredir no debate de gênero dentro do aparato de


Estado. O gênero é um conceito relacional, que abrange dimensões psicológicas,
sociais e culturais da feminilidade e da masculinidade. Portanto, o trabalho com
gênero não pode se restringir ao trabalho com mulheres ou para mulheres.
Outro ponto visto como um dificultador do trabalho é que a questão do gênero
parece não ter sido de fato incorporada pelo poder público, pois a realização de
projetos e o cotidiano das políticas públicas ainda dependem de valores e desejos
particulares daqueles que estão nas posições de prestígio. Um exemplo dessa
personificação da questão, que apareceu no decorrer da narrativa apresentada até
aqui, é o modo como as entrevistadas falam na figura de Márcia. Ela surge no
discurso como representante da questão da mulher no município e como ponto de
articulação entre elas. Assim, a questão de gênero parece ser trabalhada apenas em
locais onde existam mulheres e homens sensíveis a ela. Márcia fala desse
problema:

M: Que dizer, o que que é o governo? O governo... ele é um... um executor


daquilo que o povo emana, né, do que o povo quer. Do que que a
população quer. Então se ele, se ele constrói um abrigo, ele tem um objetivo
de construir. Quer dizer, não é uma política isolada em si mesma, que a
gente vê ainda o abrigo. Por mais que você constrói redes de apoio, em
relação ª.. a questão da mulher, ela ainda é vinculada muito a a
pessoalização, de uma pessoa, uma Carolina que é que é da saúde
mental, que recebe porque ela tem uma uma percepção disso no seu
cotidiano, na sua história (grifo nosso).

Karin também falou que apenas algumas pessoas na administração


assumiram a questão de gênero:

K: Não não, não, não, não. Aqui que tá. Um pouq..., os programas de
reprodução, sim. Os programas de sexualidade e reprodução, é, sim. Mas,
é... mas assim mesmo se ocê pega pessoas do tipo o quê? Um Ramon, né,
que teve a frente dos programas de sexualidade, hospitais, na rede e ta...
tá... tá. Ele sempre falava, nossa, que sensação de que dez anos depois,
quinze anos depois eu tô sozinha falando com mais duas três pessoas que
coisa impressionante, não ter interlocução.

Luzia contou que ela própria, que trabalha com outras políticas públicas,
busca priorizar uma perspectiva de gênero em sua atuação, mas que nem sempre é
fácil manter esta postura:

L: Mas eu sempre me preocupei, onde eu estava, em preservar, em discutir


as possibilidades também de que na... na... na aplicação das políticas
120

públicas pudesse ter incorporado essa dimensão do gênero, seja na... na....
na..., né, na prática educacional, né, ge... ge... gerindo as políticas públicas,
chamando atenção pra que tivesse incorporado essa... essa dimensão de
gênero, né, seja no... no... no... na montagem da equipe com o qual eu
estava trabalhando, seja no apoio aos movimentos e... e as lutas. Quer
dizer, eu sempre incorporei essa... essa dimensão. Mas a gente quando vai
pr’um espaço que ocê tenha que é... é... gerir. Toda a complexidade da...
da... de... de uma política pública pra uma cidade desse tamanho, isso
também te absorv... A... a a essa preocupação ela fica mais secundária.
Eu vejo assim, né, já foi na minha vida uma... uma preocupação
principal, hoje ela fica mediada pelas outras também (grifo nosso). Mas
onde eu estou, seja no partido, seja coisa, eu sempre estou lá junto também
pra preservar e... e garantir, né, essa... essa... que essa concepção
prevaleça.

O Estado implantou políticas públicas voltadas para mulheres no município de


Belo Horizonte, mas não incorporou uma perspectiva de gênero na formulação das
demais políticas e não capacitou seus funcionários para lidarem com as
especificidades das mulheres que são atendidas pela prefeitur, apesar de que,
segundo Márcia, a maioria das beneficiárias das políticas públicas sejam mulheres.

M: Porque se a gente identifica que na maio... a maioria das [vezes] são as


mulheres, são as pessoas beneficiadas pelos programas da prefeitura, essa
discussão de gênero ainda não é incorporada na... na maioria desses
programas (grifo nosso). Seja de orçamento participativo, seja pela luta
pela habitação, pela luta da saúde, pela moradia, então isso é uma questão
que nós temos pensar.

Para Graça, a cidadania das mulheres só pode avançar quando todos os


setores assumirem a questão e não apenas algumas políticas trabalharem
isoladamente com as demandas das mulheres: “(...) todos os minis... ministérios,
secretárias e coordenadorias tenham um papel dentro dessa discussão da diferença
pra que as coisas tornem igualmente um direito de todos.
A questão do gênero parece não ser mesmo incorporada em diversas
instâncias do governo. Segundo Ermelinda, ainda existe muito preconceito e
confusão sobre o trabalho com o gênero:

E: Porque, primeiro, discutir gênero ainda, na lógica das políticas públicas,


ainda tem a questão do ranço, que as pessoas: a, é a feminista, é a chata
que veio discutir, ah, é aquela, ih... vem discutir coisa de mulher. Porque
gênero vem passando como uma questão de mulher, né, então não é
fácil d’ocê incorporar essa leitura não.

Nessa fala, também podemos notar a falta de capacitação ou formação dos


funcionários da prefeitura para lidar com a questão.
121

Daniele, que já trabalhou em programas de assistência social da prefeitura,


afirmou que nos programas da Secretaria de Assistência Social existe uma atenção
para as questões de gênero:

D: Nos programas que eu trabalhava, tem a questão do gênero, mas ocê


num faz um acompanhamento tão profundo quanto teria aqui. Né, por
exemplo, lá o máximo que a gente fazia, cê encaminha pra Delegacia de
Mulheres, mas cê tá atendendo a família, em função da criança que tá
tendo os direitos violados (grifo nosso). Então cê tem uma atenção praquilo,
mas você encaminha, né, mas eu acho que uma atenção sempre tem, né.

Em sua fala, podemos notar que a atenção dada ao gênero nestes programas
é encaminhar as mulheres para a delegacia. A própria Daniele, que está iniciando
agora seu trabalho com mulheres, mostrou-se confusa a respeito dos significados de
gênero em sua entrevista, indicando a fragilidade da abordagem dada ao tema
dentro da prefeitura.
Os dados apresentados neste capítulo apontaram para o fato de que os
discursos produzidos pelas entrevistadas são marcados por diversos interesses e
identificações. Procuramos analisar os lugares a partir dos quais as entrevistadas
emitem seus discursos. Para tanto, voltamos nossa atenção para os modos de
engajamento dessas mulheres nos movimentos sociais, para sua participação nas
políticas públicas municipais de atendimento a mulheres e para a relação do
movimento de mulheres com o Estado. Todas essas questões são relevantes para
compreendermos os sentidos de cidadania, gênero e violência construídos por elas.
No discurso de nossas entrevistadas, pudemos perceber que elas se
posicionam como sujeitos sociais ativos, que têm direito a ter direitos. Elas se
engajaram no movimento de mulheres, onde definiram suas demandas de direitos e
lutaram por seu reconhecimento. Obviamente, nem todas as reivindicações foram
atendidas, mas nesse processo estas mulheres foram se tornando cidadãs, dentro
de uma concepção proposta pela nova cidadania.
Além disso, neste capítulo também apareceram reivindicações das
entrevistadas pelo direito de participar da própria definição do sistema. A relação
delas com o Estado parece ser vista desde uma perspectiva onde a participação
efetiva dos cidadãos nos governos locais é fundamental para a construção da
cidadania. Nesse sentido, seria possível manter um relacionamento crítico e
democrático com o governo.
122

No capítulo seguinte, buscaremos analisar as relações entre as categorias


que regem esta pesquisa: a cidadania, o gênero e a violência.
123

6 FEMINISMO COMO DISCURSO: AS CONCEPÇÕES DE CIDADANIA, GÊNERO


E VIOLÊNCIA

Neste capítulo, analisaremos os sentidos de cidadania, gênero e violência


produzidos nos discursos, assim como as relações.entre tais conceitos.
Em primeiro lugar, veremos as falas das entrevistadas, nas quais elas
definem cidadania. Karin afirma que o movimento feminista sempre debateu
questões relativas à cidadania, apesar de no início do movimento esse termo não
ser usado: “(...) eu acho que esse é um dos movimentos sociais que punha muito
claramente em debate a questão dos vínculos, das relações com o Estado, das
relações coletivas, das relações...”.
Para ela, uma definição de cidadania baseada em direitos e deveres é
insuficiente e deve ser ampliada:

K :É... um exercício... em construção, né, de relações entre um coletivo e o


espaço individual, entre o privado e o público. Na medida em que essas
coisas também não são tão marcadas. É... um processo acelerado de
entendimento ou de expansão do conceito de... direitos e deveres (grifo
nosso). É... que vai demarcando a vida social, os vínculos, limites e
possibilidades... indivíduo e vida coletiva, né.

Ermelinda falou que o conceito de cidadania está banalizado, tornando sua


definição difícil:

E: Cidadania! Uma palavra, muito interessante, porque é uma palavra que a


gente usa muito. Até eu tenho usado pouco. Por quê? Porque eu acho que
às vezes a gente fica viciado em algumas palavras. E buscar o contexto
dela é muito complicado. Quando você me pergunta ‘o que é cidadania?’
Né. Na verdade num sei se seria, é..., você vivenciar, esse conjunto de
direitos... é eu inclusive tenho trabalhado isso comigo, o que que é essa
cidadania? Esse conjunto de direitos. E o que que é direitos?

Os direitos e a igualdade constituem, no discurso das entrevistadas, os pilares


da cidadania. Graça fala da necessidade da igualdade ser trabalhada em termos dos
direitos sociais, como saúde, educação e moradia, e dos direitos políticos, conforme
podemos ver respectivamente nos dois trechos abaixo:

G: Cidadania é algo que as pessoas tenham aquilo que é necessário.


Porque, por exemplo, a lei diz que... todos nós temos que ser iguais, num
é, e que temos que ter casa, moradia, educação, saúde... de qualidade.
(grifo nosso)

G: Agora nós tamos muito longe da igualdade também, num é, porque


quando a gente precisa trabalhar, por exemplo, trinta por, vinte por cento de
mulheres, né, pra ser, por exemplo, candidatas de um partido, é sinal de
124

que nós estamos muito desiguais, porque a gente poderia, então, ser
cinqüenta por cento, se fosse isso (grifo nosso).

Márcia também define cidadania a partir de uma concepção de direitos, mas


acrescenta a participação como elemento constituinte da cidadania:

M: (...) cidadania, né, ele tá muito ligado a questão do direito, né, de


reconhecer, é..., você no mundo, né. Que você é uma pessoa que tem
direito, né. Ser cidadã é você poder participar, opinar, né, é você ter
direito de ir e vir, é... você ter oportunidades de..., na vida, né (grifos
nossos).

Para ela, cidadania e liberdade são indissociáveis:

M: Quando fala de cidadania de pessoas, significa essa pessoa ser


livre (grifo nosso). Ser livre pra pensar, ser livre pra pra ter opção, né, da
sua vida, na sua sexualidade.

A análise das falas das entrevistadas nos mostra que os sentidos produzidos
no discurso estão mais próximos daqueles que constituem a concepção de nova
cidadania. Nesta concepção, a cidadania tem como base o direito a ter direitos, o
direito à igualdade e à diferença e o reconhecimento do outro como portador de
direitos. Sendo, assim, mais ampla do que a aquisição de direitos formais e o
cumprimento de deveres.
No entanto, noções burguesas e liberais fazem parte das falas das
entrevistadas sobre cidadania. Daniele apresenta, em certo momento da entrevista,
uma concepção liberal de cidadania. Ela fala em “usufruir dos direitos” já existentes
e “cumprir os deveres”: “Cidadania? (suspiro) ué, eu acho que é quando a... a... as
pessoas consegue... está, é, usufruindo, né, dos seus diretos, né, mas também,
é, cumprindo com os deveres que elas têm, né.”
A igualdade, não a homogeneização, está na base dos direitos. Nas
entrevistas, direitos como o de ir e vir aparecem de forma recorrente. Como as
entrevistadas trabalham com o tema da violência de gênero, isso pode se dever ao
fato de que as mulheres que vivem situações de violência são, muitas vezes,
proibidas por seus companheiros de trabalhar, encontrar com amigos e parentes ou,
até mesmo, sair de casa. Além deste, outros direitos estão sendo violados quando
uma pessoa sofre uma violência, conforme discutiremos ainda neste capítulo.
A noção de direitos é essencial em qualquer compreensão de cidadania,
embora possa ser vista de várias perspectivas. Dentro de uma concepção liberal de
cidadania, os direitos são vistos como uma questão de acesso e inclusão. Os
125

cidadãos são aqueles que têm acesso a direitos previamente definidos. Já a nova
cidadania inclui a possibilidade de criação de novos direitos, que são resultado de
necessidades trazidas pelas lutas específicas e concretas dos sujeitos. O direito é
concebido como direito a ter direitos e a lutar para que eles sejam reconhecidos.
Conforme viemos discutindo no decorrer desta dissertação, muitos dos
direitos das mulheres foram criados e reivindicados pelos movimentos feministas a
partir do reconhecimento das necessidades específicas e da opressão sofrida pelas
mulheres. Ou seja, as mulheres reivindicaram não apenas sua inclusão nos direitos
dos homens, mas também que novos direitos fossem criados para atender suas
demandas. A incorporação destas demandas na Constituição de 1988 é o maior
exemplo de que estes direitos foram reconhecidos legalmente e são legítimos.
Com o reconhecimento legal dos direitos das mulheres e o enfraquecimento
do movimento feminista, a preocupação que mais aparece na fala das entrevistadas
é relativa à incorporação deles na cultura e no cotidiano. Vejamos suas respostas à
seguinte pergunta feita pela pesquisadora: “Em relação à cidadania, você acha que
há direitos que ainda precisam ser reconhecidos?”
A resposta de Karin expressa a possibilidade de criação de novos direitos a
partir de necessidades contextualizadas e específicas:

K: Reconhecidos? Quer dizer que ainda não se falou deles, que ainda
não se pensou neles? (breve silêncio). Provavelmente sim. Como a gente
vai ficando mais... né, a gente vai apurando sensibilidades, a gente vai, é,
passando a olhar pra coisas que a gente não olhou há dez quinze vinte
trinta anos atrás, com certeza, com certeza... Um dos campos pra repensar
a questão de direitos tem sido os debates em torno em relações
internacionais (grifo nosso).

Karin fala diretamente da necessidade constante da elaboração de novos


direitos. Luzia, que também mostrou-se preocupada o tema, trouxe o debate para
pontos que “ainda são um entrave a esse exercício pleno da da cidadania das
mulheres”. Em sua opinião, as mulheres ainda não conquistaram todos os seus
direitos e ainda há muito pelo que lutar, principalmente no que se refere aos direitos
da maternidade e à violência de gênero.

L: (...) acho que nós precisamos ainda, é... é... melhorar muito na... na... no
combate à violência de fato, né, que aí é a questão da impunidade, que é
uma questão que muitas vezes alimenta, porque há ainda uma cultura, né,
de... de... eu acho que, que prevalece muitas vezes, né, que isso não é um
crime grave, né, quando a mulher às vezes fica, inclusive, muitas vezes até
incapacitada por violência ou toda é é dilacerada. Tudo isso tem... é tão
126

grave, porque foi praticado ali nas relações familiares e... e... e isso a gente
tem hoje já vários equipamentos que acolhe a denúncia, que acolhe
naquele momento a mulher, mas eu acho que a gente tem ainda... eu acho
que a questão da punição ainda é pequena no país, de chegar de fato a...
a... a ... ponto da linha e aquele crime não ficar impune. Rntão eu acho que
essa... um entrave também, que é importante, que precisa melhorar para
que a mulher possa, que aquele ciclo, né, de violência possa também ser
coibido.

Na fala acima, Luzia diz da necessidade de criação de estratégias para


garantir direitos às mulheres que sofrem violência e para punição dos agressores,
que hoje se restringe ao pagamento de uma cesta básica. Ela mostra maior
preocupação em que os direitos sejam incorporados na cultura do que na lei:

L: (...) Assim há um senso comum que nós, as mulheres já conquistaram


todos os direitos, que não há mais discriminação, né, então que esse é um
assunto já... vencido, num é? Eu... eu... eu sinto que há, né, é..., é..., de
certa forma um senso meio comum, né, de ‘ah não, mas já conquistou tudo’,
e... e... e... nós agora não precisamos, é..., lutar mais. Então eu acho que
nós temos que fugir dessa armadilha, né, porque..., como eu disse, uma
coisa é cê ter um arcabouço legal, que garanta a igualdade, é, outra
coisa é você na sociedade consolidar esses valores e essa prática,
então eu, é, é, creio e quer... e como eu te disse, é por isso que a gente
precisa ainda manter os movimentos, até porque outras questões também
surgem, muitas, é, advindas do exercício, né, de desses direitos, né, é..., e
outras necessidades surgem....

Conquistas legais são fundamentais para a cidadania, mas elas precisam ser
acompanhadas de mudanças práticas. Esse ponto foi tratado como fundamental
pelas demais entrevistadas. Graça associa o não reconhecimento dos direitos das
mulheres na sociedade à violência sofrida por elas. Ela não menciona a criação de
novos direitos, mas sim a importância de eles serem socialmente assegurados:

G: Se todos os direitos fossem reconhecidos, as mulheres hoje não


precisavam tá apanhando e tá procurando o Benvinda e uma Casa Abrigo
Sempre Viva, pra sair de casa correndo, porque o marido dela quer matá-la
(risos). Entendeu? Então se a gente tivesse direitos reconhecidos na
sociedade, a gente não precisava tá aqui fazendo essa discussão (grifo
nosso).

Daniele corrobora a idéia de que os direitos existentes precisam ser


garantidos na prática:

D: Reconhecidos? Cê fala legalmente, assim? Ou (breve pausa)..., porque


eu acho que tem muito direito que legalmente eles são reconhecidos,
inclusive tem lei que respalda e tal, mas que na hora da prática, né, cê
num consegue garantir, né (grifo nosso).

Ermelinda também fala da necessidade de que os direitos legais sejam


reafirmados em situações concretas:
127

E: Principalmente reconhecidos numa questão de... de... da... da, é...,


do concreto, né. Eu acho que algumas coisas têm sido reconhecidas no
papel e que isso até que se torne uma... uma... uma cultura ou uma
atitude, com certeza, é... vamo imaginar, numa cultura, por que não adianta
algumas coisas a gente dizer, é, quem tem como garantia, mas na cultura
jogar um peso forte nas nas... costas das mulheres (grifos nossos).
Vamo imaginar, homens e mulheres têm mesmo igualdade de... de direitos
ao trabalho? Sendo que a cultura ainda tradicional de gênero, é, ainda
cobra um papel do doméstico, é, da criação dos filhos..., na perspectiva da
mulher?

No entanto, apesar de afirmar que “algumas coisas tem sido reconhecidas no


papel” e que hoje o mais importante é que os direitos sejam reconhecidos no
concreto, na cultura, em outras falas ela explicita as dificuldades legais enfrentadas
pelas mulheres. Vejamos um exemplo:

E: Eu tenho vivido uma experiência aí, vamo pensar como um direito


positivista, né, esse direito da legalidade, da lei, né, eu leio aquilo que está
escrito na lei. As mulheres saem extremamente em prejuízo com essa
questão da lei (grifo nosso).

Frente ao que foi narrado até agora, os dados indicam que as mulheres
conquistaram acesso a muitos direitos que já eram garantidos para os homens,
como, para ficarmos no exemplo mais simples, o direito ao voto. Além disso, elas
lutaram, através do movimento de mulheres, pelo direito a ter direitos e a formular
novos direitos para atender a suas demandas específicas. No entanto, notamos
também que ainda existem direitos que precisam ser elaborados, e um dos
exemplos mais polêmicos é a questão do aborto. O que mais preocupa nossas
entrevistadas, contudo, é que o reconhecimento legal desses direitos não assegurou
que eles fossem colocados em prática e incorporados na cultura.
Assegurar o cumprimento dos direitos das mulheres é um dos principais
objetivos dos programas municipais de atendimento às mulheres64. De fato, o
Estado é a única instância capaz de garantir, através de políticas públicas, os
direitos dos cidadãos e cidadãs. Outras políticas sociais não estatais correm sérios
riscos de transformarem os sujeitos em beneficiários, não em cidadãos65, pois

64
Segundo o Decreto de Regulamentação da Estrutura Organizacional da Prefeitura, seção IV,
art.132, compete a Coordenadoria dos Direitos da Mulher: I- “propor medidas e atividades que visem
a garantia dos direitos da mulher” e VIII- “fiscalizar e exigir o cumprimento da legislação que assegura
os direitos da mulher”. BELO HORIZONTE, Diário Oficial do Município (DOM), Edição Especial, 16 de
março de 2001.
65
Esta perspectiva é fruto das discussões realizadas nas aulas de Cultura e Política (2004)
ministradas na UNICAMP pela Profa. Dra. Evelina Dagnino.
128

muitas vezes elas têm um caráter assistencialista e tutelar.


No entanto, segundo as entrevistadas, as políticas públicas do governo não
estão livres de condutas tutelares. Podemos perceber o dilema entre a garantia de
direitos e o assistencialismo na fala de Márcia, Graça e Ermelinda, que trabalham no
cotidiano dos programas. Márcia nos alerta que as mulheres são muitas vezes alvos
de medidas tutelares do governo:

M: Ainda vê ainda uma tutela muito grande do governo e quem é


tutelada na grande maioria são as mulheres, porque são as mais pobres,
as que mais precisam, são as responsáveis pelo lar, são as chefes de
família e aí vai, né (grifo nosso).

Graça fala da dificuldade para evitar uma postura assistencialista uma vez
que os direitos não são garantidos pelo Estado:

G: Então, eu não sei, não existe, não dá pra você não fazer essa... , né,
esse encaminhamento assim (risos), que é um encaminhamento
assistencialista, né, na verdade, ou seja, é..., eu penso até que é um
encaminhamento de direitos, mais como esse direito não é garan-ti-do,
então ele é assistencialista, né (grifo nosso).
Nós temos que trabalhar essas mulheres pra entender, é, que por mais que
elas conseguiram aquilo ali, é uma coisa que é de direito delas, isso nós
temos que trabalhar.

A fala de Ermelinda também vai nesse sentido:

E: E aí tem programas que pegam essa mulher e viram pra ela e falam
assim: ‘olha, cê tem que separar, cê tem ir pra delegacia agora’, nem
pergunta pra ela assim, ‘cê dá conta de ir pra delegacia agora e registrar
uma ocorrência desse companheiro?’ (muda de tom, com mais ternura).
Sequer passa pela cabeça das pessoas de perguntar pra essa pessoa o
que que ela num dá conta, o que que ela num dá conta. E aí sai tomando
atitudes pra, pra uma vida daquela pessoa que ela não vai dar conta de
sustentar. E chega num determinado momento que essa mulher tá pirada,
porque ela vai sendo levada num roldão da situação pra ela tomar decisão e
não era aquilo nem que ela dava conta nem que ela quer.”

C: E cê acha que isso acontece aqui, nesse programa?

E: Ô, Carol, eu vou ser muito sincera, eu acho que com certeza. E não tô
falando isso com o aspecto de falar assim: ‘ó, mas que mediocridade desse
povo de fazer isso ou que inocência das pessoas de fazer isso ou que
sacanagem das pessoas de fazer isso’. Nem tô falando nessa noção. Mas
de imaginar, primeiro que dá uma grande impotência. Né. De você tá
lidando com aquela situação e você cai no parecismo. Do emergencial, cê
ta... cê tá imaginando que aquela pessoa tá aqui e você tem que dar a
resposta naquele momento pra pessoa. Você - e essa é a palavra
mesmo - esquece de colocar aquela pessoa enquanto sujeito. Então, a
todo momento se a gente não tomar cuidado e não não... não... não..., é...,
pensar ‘pera aí, o que eu tô fazendo?, é aquilo que eu dô conta, que me
agrada, ou aquilo que o outro dá conta ou que...’, nem sei se pode dizer
essa coisa do agradar, mas principalmente daquilo que dá conta. Sabe.
Então eu acho que a gente tem que ter muito essa preocupação, a gente
129

tem discutido muito isso aqui no programa.

Para ela, os procedimentos assistencialistas dos programas devem-se ao


próprio caráter dos atendimentos prestados e à impotência sentida pelos técnicos.
Podemos nos perguntar se a capacitação e um apoio psicológico aos profissionais
não poderiam minimizar essas dificuldades, pois esses profissionais atendem
cotidianamente mulheres e crianças que viveram situações de violência intensa e
tiveram suas vidas colocadas em risco. O impacto emocional sofrido por esses
profissionais somado a deficiências em sua qualificação técnica pode levar a
sentimentos de impotência e ineficácia. O resultado desse processo seria
atendimentos baseados na tutela e no assistencialismo.
Apesar das dificuldades enfrentadas no cotidiano de trabalho, existe uma
crença na transformação social. Como vimos no terceiro capítulo deste trabalho, a
nova cidadania busca organizar estratégias de transformação social. Márcia diz da
possibilidade de transformar as relações entre homens e mulheres:

M: (...) Eu sou, eu... eu... eu sou muito romântica, eu sou da linha, né, que
acredito que a gente vai construir um mundo diferente, pra homens e
mulheres (grifo nosso). Principalmente pras mulheres, as mulheres vão ter
mais autonomia, mais independência, no seu ser sujeito, e muitas ainda se
sujeitam e não se consideram, né, pessoas.

Ela afirma que acredita na construção de um mundo diferente, mas quase se


desculpa ao afirmar que tem essa crença por ser uma pessoa romântica. Graça
também justifica sua crença na construção de uma nova sociedade, dizendo que
acredita nisso porque é militante. Esta é a sua fala:

G: Porque nós não queremos fazer nada pra elas, mas nós queremos
construir com elas uma nova sociedade. Eu acredito nisso (grifo nosso).
Num sei se é porque eu sou militante, né, então eu... eu acredito nessa
coisa, né, da construção com as pessoas, não para as pessoas.

Apesar de num primeiro momento ela se justificar pelo valor que dá à


transformação social, Graça retoma várias vezes no decorrer da entrevista a
possibilidade de uma construção conjunta de uma sociedade diferente daquela em
que vivemos. Vejamos dois exemplos:

G: Tem que ter mulher comprometida com essa política de gênero e


raça na construção de uma sociedade diferente, que leva em conta
essas diferenças (grifo nosso). Se num tiver, minha filha, nós vamos ficar
aí no movimento social, levantando bandeira, porque ninguém tá nem aí pra
nós.
130

G: Eu acho que é necessário ter algum que consiga, ou várias pessoas, eu


entendo, várias mulheres, vários homens comprometidos com essa
sociedade diferente (grifo nosso). Senão, a gente não avança.

Nas falas de Graça, fica evidente que a transformação social só é possível


com a participação e o comprometimento de sujeitos sociais ativos. Os sujeitos
tornam-se cidadãos quando participam da definição de seus direitos e lutam para
concretizá-los. Para a nova cidadania ser emancipatória e cumprir seu potencial de
transformação social, ela deve se instalar na cultura, nas idéias, nas crenças, nos
desejos, nos hábitos e nos costumes das pessoas.
Quando voltamos nossa atenção para a incorporação cultural e subjetiva de
questões relativas ao gênero, como, por exemplo, os papéis das mulheres na
sociedade, as desigualdades entre mulheres e homens, ou a opressão sofrida por
elas, vemos que este é um ponto polêmico. Nas falas das entrevistadas,
percebemos a existência de diversas posições. Para Márcia, a incorporação dessas
questões na política e na cultura são pontuais, estando longe do desejado pelas
feministas:

M: Eu num, eu num, eu vou ficar [isto é, afirmar] que é não incorporada. Não
são incorporadas mesmo assim, são muito pontuais, as políticas são... são
ações pontuais, ainda, quando a gente fala, né, que nós queremos construir
políticas públicas, políticas públicas, é pra, é pra ser incorporada mesmo,
pelo governo e pela sociedade.

Ela afirma que a mídia tem um papel significativo na manutenção dos


estereótipos em torno das mulheres:

M: E... e a gente tem uma sociedade que o tempo todo usa a mídia pra
reforçar essa disputa, né, de sexo, uma disputa, é, e... e... e pra, ainda...
colocar a imagem da mulher muito vinc... veicular e vincular a imagem da
mulher como aquela frágil, aquela coitadinha que precisa sempre do
outro, principalmente de um homem pra ser feliz, ter prazer (grifo
nosso). Então isso ainda é muito embutido em nós.

C: Hum...

M: Nas mulheres ainda, o lugar do romântico, né, do príncipe, encantado,


que vai ser, cair nos, né, vai, vai te tirar e levar, né, pra serem felizes pra
sempre.

Ermelinda também não vê grandes mudanças na percepção que a sociedade


tem das mulheres, nem que elas têm de si próprias:

E: Essas mulheres, primeiro porque é essa cultura mesmo, né, inclusive


essa cultura sacana com as mulheres, que parece que tem aquela
característica, né, ‘a mulher doação’, né, ela vai doando tudo da vida dela
131

pra esses caras. (...) Nessa cultura que a gente hoje ainda está impregnado.
Se cê imaginar uma classe mais empobrecida, cê fica imaginando, parece
que cê tá no século passado ainda, aonde as feministas, né, começam a
discutir questões de igualdade, cê, a mulherada não incorporou isso
mesmo não (grifo nossos).

A opinião de Luzia é diferente daquelas de Márcia e Ermelinda. Para ela, o


movimento de mulheres foi importante por ter iniciado um processo de
transformações culturais e subjetivas e possibilitado a desnaturalização da
subordinação e opressão das mulheres. Vejamos seu argumento:

L: (...) Então foi, todo esse processo eu acho que que culminou também,
que foi importante, de um movimento que no início era visto com muita
desconfiança, até pelas mulheres, né? é... (pigarro) e estigmatizado,
inclusive muitas vezes pelos meios de comunicação e pela sociedade de
modo geral, né, as bandeiras feministas, a luta das mulheres. Hoje é uma
coisa que já é absorvida, eu acho também que a gente ganha assim,
fazendo novas consciências, novas culturas, né, e que a, quando a
sociedade absorve, eu acho que significa também que nós já
avançamos, não é mais um grupo isolado, né, que fica ali, sempre ali
defendendo, mas que tem já uma, ele ta mais largamente implantado em
todos os segmentos sociais. Então eu acho que essa é a grande vitória das
mulheres, conseguir que as suas bandeiras, que as suas idéias, que, é..., é,
essa questão da igualdade, da não discriminação, seja hoje largamente
reconhecida, apesar de que existe. Mas que há, também, hoje, de certa
forma, um repúdio a isso, quando tá uma violência explícita contra a mulher,
né, uma violência doméstica ou violência sexual, há de certa forma na
sociedade em diferentes segmentos um um repúdio a e... a essa prática. O
que antes era mais aceito socialmente como uma questão natural, eu
acho que hoje já não é. Então eu acho que essa é uma grande vitória, né,
da luta das mulheres e que hoje a gente tem também mais parceiros pra
defender essas bandeiras, inclusive nos homens (grifos nossos).

Ela defende que as mulheres têm hoje uma grande consciência de seu papel
na sociedade:

L: Né, é... eu sinto que há uma..., que as mulheres têm hoje uma noção
grande de... de... do seu papel na sociedade, de não se colocar mais como,
secundariamente, como cidadã de segunda categoria, eu acho que a
mulher hoje absorveu muito essa questão, de que ela pode ser protagonista
da sua vida e aj- participar ativamente das ações também da sua cidade.

Karin também tem uma perspectiva otimista sobre a incorporação das


questões de gênero pela cultura:

K: Nós tínhamos, o movimento feminista tinha se consolidado. Tá. Os


impactos sobre o imaginário social tinham, eram visíveis. As gerações
novas já eram gerações incorporando valores feministas claramente. É... o
Estado tava assumindo algumas questões. Mal ou bem, tava.

A julgar pelo que foi narrado até agora, entendemos que houve, nas últimas
décadas, transformações culturais e subjetivas fundamentais em relação às
132

mulheres. Alguns exemplos dessas mudanças são: acesso das mulheres a lugares e
posições antes restritas aos homens; as mudanças na legislação; a desnaturalização
da subordinação das mulheres e as modificações na autopercepção das mulheres.
No entanto, muitas mulheres ainda vivem situações de opressão e violência; ainda
recebem menos que os homens pelos mesmos serviços; a maioria trabalha em
dupla jornada66, ou seja, além de trabalhar em média quarenta horas semanais fora
de casa, ainda dedica outras quarenta horas ao trabalho doméstico; no âmbito
político, percebemos que as mulheres raramente ocupam altos cargos nos poderes
executivo, legislativo e judiciário. Ou seja, temos que ter claro tanto as conquistas
quanto os limites das mudanças sociais relativas às mulheres para analisarmos os
sentidos de cidadania, violência e gênero produzidos pelas entrevistadas.
Neste momento, é interessante analisarmos o que as próprias entrevistadas
entendem por gênero. Um fator que nos chamou a atenção foi a dificuldade
apresentada por elas de conceituar gênero, visto que elas trabalham cotidianamente
com questões relativas às mulheres e são feministas militantes.
Graça, em muitos momentos da entrevista, principalmente aqueles referentes
a seu processo de conscientização política, pareceu entender gênero enquanto
papéis sociais das mulheres. Para ela, é preciso que as mulheres entendam seu
papel para construírem uma nova sociedade. Um exemplo de falas nesse sentido é
o seguinte:
G: (...) trabalhar essa nossa pessoa, né, as mulheres, e não só o beco da
casa dela, e não só a cesta básica, e não só os filhos, mas que elas
descobrissem o seu papel enquanto mulher, antes de descobrir o seu
papel enquanto mãe (grifo nosso).

No entanto, quando foi dar uma definição do que é gênero, ela não falou em
papéis ou lugares sociais, mas propôs definição política do conceito:

G: Uai, eu entendo que é algo que, na verdade ele... é uma construção,


num é, de... é uma construção de uma... de espaços, de momentos, que...
que tem que ser colocado, porque, por exemplo, assim, gênero num é ser
mulher, num é, gênero é uma política de..., é uma política que leva em
conta um setor, né, ou que leva em conta uma... uma questão, né
(pigarro) porque, quando eu falo de gênero eu num posso falar só das
mulheres, eu não posso falar só das meninas, mas eu tenho que falar de
um conjunto, que ta aí colocado, de uma política que ta aí colocada na
sociedade, né (grifo nosso).

66
Em 96% dos domicílios em que residem mulheres, elas são as responsáveis pelo trabalho
doméstico, para o qual dedicam em média 39 horas e 45 minutos semanais,. Outras 33 horas e 41
minutos semanais são dedicadas ao trabalho remunerado. (Fundação Perseu Abramo, 2001.
133

Márcia também faz um uso político do termo gênero. Segundo ela, as


feministas se apropriam do conceito de gênero como estratégia de negociação.

M: Foi uma discussão até que a gente fez muito, quer dizer, porque que a
gente se apropriou desse termo gênero, né, pra falar da mulher, já que
você fala de gêneros, né, cê num fala de um gênero só, cê fala de gêneros,
né, e uma... uma... uma discussão que a gente tem que é muito absorvida
por nós, nós mulheres, quando a gente fala de relações de gênero, a
gente sempre pensa na mulher, né, como, como gênero feminino e não de
se apropriar do gênero masculino, né, e eu sei que de alguma forma
gênero, essa palavra, esse termo, ele foi, ele contribuiu muito pra que essa
discussão do feminismo ampliasse dentro da sociedade, né, é..., porque
pra, pras mulheres, né, feministas, era muito difícil você falar só enquanto
feminista, enquanto, né, divisão sexual da mulher, a questão da mulher,
sem pensar numa rela- numa visão relacional, entre homens e mulheres,
então o ... eu acho que, importante você perceber que dentro da questão
de gênero há diferenciação, né, do que que você fala enquanto papéis,
né, construídos socialmente de mulher e homem, mas também de que
lugar que você constrói essa política, é, se hoje a gente trabalha, né, na
perspectiva de resgate da mulher, né, num é, num é, por mais que a gente
busca, é, você ter políticas voltadas pra homens, num é a nossa ação, né,
ela não é, então por isso que eu falo, por isso que a gente fala, que gênero,
ela é importante enquanto análise, enquanto perspectiva de você
construir uma visão mais global de uma situação, é..., é..., entre
homens e mulheres, entre meninos e meninas, etc etc que aí vai dá
subsidio para você identificar a educação diferenciada na educação, a
questão da saúde, por que que as mulheres freqüentam mais o centro de
saúde, mas são, é..., a maioria das vezes elas não vão tratar de problemas
seus, né, individuais. Então isso tudo , gênero da conta de discutir, então
enquanto, enquanto, é..., visão, discussão, teórica, eu acho que é
importante, essa, essa discussão do gênero, né, é..., então pra mim, pra
mim, gênero é isso, é você, é, perceber que há, é..., construções
diferenciadas entre seu papel de ser mulher, então muitas vezes cê
pode uma mulher que tenha uma visão muito masculina de vida, de,
né, de objetivos, né, por mais que você se diz feminista, por mais que
você se diz, né, mulher, com todas as letras, né. Então é uma relação
de poder (grifo nosso).

Na fala acima, percebemos que Márcia define gênero como uma estratégia
política e, apenas no final de seu argumento, ela conceitua gênero como uma
construção social dos papéis de mulheres e homens e como uma relação de poder.
Daniele diz que nunca trabalhou com gênero e seu contato com o conceito
limita-se ao tempo que era estudante universitária. Ela afirma que o conceito de
gênero não está claro para ela e, portanto, não o define:

C: E o que ocê entende por gênero?

D: (Breve pausa) Por gênero? (riso) Eu até, é..., interessante, né, Carolina,
essa pergunta, porque assim, é, cê tem o conceito de gênero, né, e a partir
do momento que cê entra pr’uma política, né, de gênero, começa a ser um
bodar-, um bombardeio de outras informações e cê pensar um pouco... a
questão por um lado que ce ainda não tinha pensado, né. Cê vem com
aquela visão de faculdade, uma visão de de fora, né. Então essa é uma
pergunta que ainda num me pega um pouco, que ainda ta confuso porque...
134

É um monte de perguntinha ainda que cê tinha.

Mais adiante na entrevista, Daniele afirma que abuso sexual de crianças e


adolescentes não é uma questão de gênero, mostrando a fragilidade de suas
concepções. Ela entende que a violência de gênero é restrita a violência contra
mulheres e a violência conjugal. Eis sua fala:

D: (...) a gente tá passando por um momento aqui que eu até brinco, que eu
não sei se é positivo ou negativo para mim, porque a gente ta recebendo
muito caso de abuso sexual das filhas, então, é..., a as mães não tão
denunciando por causa da violência de gênero, tão denunciando por
causa do abuso sexual, então isso muda também, é o que eu tava
conversando com elas, eu cheguei num momento que, por um lado é bom,
porque eu sempre trabalhei com criança e adolescente (grifo nosso).

Luzia, que tem uma trajetória de militância feminista, iniciou vários raciocínios
para conceituar gênero, mas mostrou dificuldade em completá-los, como podemos
ver na seguinte fala:

L: Eu entendo por gênero um, eu acho que é um conceito, né, que pra além
da definição de... de... de homem e mulher, eu acho que é um um conceito
de de um exercício de... duma existência plena, né, não possa significar
discriminação, porque a ou b, né, ser de a ou de b, ser do gênero masculino
ou do feminino. Então eu acho que ele tem que carregar também essa
dimensão do exercício da cidadania.

Ermelinda, que defende a necessidade de capacitação dos profissionais, é


fundamental, pois “tem gente que não tem nem noção do que é gênero”, formulou
uma definição de gênero mais teórica: “(...) na verdade, que que seria, né, um
trabalho onde você comece a avaliar, é..., as construções sociais de homens e
mulheres (grifo nosso).
Como pudemos notar nas falas das entrevistadas, o conceito de gênero é
definido mais a partir de uma perspectiva estratégica ou política do que como um
conceito teórico. Talvez isto se deva ao fato de a noção de gênero ser hoje difundida
como importante de ser incorporada pelo Estado e ser usada em negociações de
interesses com o governo.
O gênero é um conceito chave para compreendermos a constituição dos
sujeitos e a estrutura social brasileira, mas ele não pode ser pensado isoladamente,
precisa ser articulado com pelo menos duas outras categorias: raça/etnia e classe
social (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995). No entanto, as entrevistadas praticamente não
fizeram referência à raça/etnia e à classe social em seus discursos.
Quanto à raça, Luzia a mencionou uma vez quando falava da importância dos
135

governantes serem sensíveis às diferenças entre os cidadãos: “(...) quando você


tenha governantes eleitos que tenham sensibilidade para esses problemas da
cidadania, da... das diferenciações inclusive, do gênero, de raça ou de orientação
sexual”.
Ermelinda também se referiu uma vez à raça, falando das diferenças entre
mulheres e homens e entre negros e brancos: “negros e brancos na nossa
sociedade nunca vão ser iguais, não questão de equiparação, tem aí uma dívida,
tem uma, se num é só dívida, tem uma diferença.”
Apenas Graça, que é uma mulher negra e que participa do movimento de
mulheres e do movimento negro, deu destaque à discussão de raça em sua
entrevista. Para ela, gênero e raça são indissociáveis, só podendo ser trabalhados
em conjunto:

G: Porque eu entendo que você não consegue trabalha nada, sem trabalhar
a questão racial e gênero. Sem trabalhar com gênero e raça não consegue,
porque, é..., porque senão a gente só consegue trabalhar o movimento
machista e racista. Né. Se você não tiver dentro de todas as questões essa
discussão de raça e gênero.

Graça levanta também a questão das diferenças dentro da diferença, ou seja,


as mulheres são diferentes dos homens, mas também são diferentes entre si. E que
as mulheres negras estão socialmente em uma posição desfavorecida em relação às
mulheres brancas. Aquelas sofrem mais preconceitos, são mais subordinadas e
oprimidas. Esta foi a sua fala:

G: Porque as mulheres negras, além de ser mulher, num é, elas são negras,
então elas sofre a violência de gênero e sofre a violência racial. Num é?
Porque a população negra, as mulheres negras ainda num descobriram que
elas são tão lindas quanto às mulheres brancas, num é? Que elas tem tanto
poder quanto as mulheres brancas.

E mais adiante:

G: (...) na violência essas mulheres são totalmente detonadas, é, por ser


mulher, né, cê num presta, cê é gorda, é feia. E da mulher negra: cê num
presta, cê é gorda, feia e preta. Entendeu? Então essas vão, elas vão, de
uma certa forma, elas vão se acabando duas vezes. Por ser mulher e por
ser negra. Portanto, pra mim todos os profissionais tem que ter essa essa
visão, de gênero e raça.

Graça relaciona gênero com raça e classe social. Ela identifica as mulheres
negras como configurando as camadas mais pobres do país:

G: Aí você vê, é..., nas vilas e favelas quem é a maioria que mora lá, que
136

são os, o po-, o povo negro mesmo. E a gente sabe que, é..., as mulheres
negras são as mulheres mais pobres do país. É a escala mais pobre da
população brasileira.

Além disso, ela faz uma crítica aos programas voltados para mulheres. Neles
a questão da raça parece não ser trabalhada. Na opinião dela, isso deveria ser feito,
senão por outras razões, porque a grande maioria das mulheres atendidas é negra.
Vejamos as palavras de Graça:

G: Mas é muito exclusiva a questão de gênero, num trabalha raça (palavra


incompreensível), eu acho que as pessoas podem ter essa percepção, de
que a maioria das mulheres que vão para o Abrigo Sempre Viva são
mulheres negras. Por que que são mulheres negras? Porque as mulheres
negras estão numa população muito mais pobre e que não tem pra
onde correr” (grifo nosso).

As mulheres negras são as que mais procuram os programas de atendimento


a mulheres da prefeitura. Isso acontece não porque as mulheres brancas não sofrem
violência de gênero, mas porque as mulheres que pertencem a classes mais ricas
têm outros recursos para lidar com o problema e não precisam utilizar os serviços
públicos. As pesquisas sobre o tema apontam para o fato de que mulheres de todas
as raças e classes sociais sofrem violência.
Ermelinda, coordenadora da Casa Abrigo, também percebe que a maior parte
das mulheres atendidas pelo programa pertence às camadas mais pobres da
população:

E: O público da gente é, a grande maioria, as mulheres empobrecidas, né,


as mulheres de classe baixa. Que está desempregada, ou que muitas vezes
chega aqui dizendo de vinte anos de relacionamento, vinte anos de
violência e que nunca trabalhou fora. É com esse público que eu trabalho.

Por isto, ela acredita ser necessário que nos atendimentos prestados haja
uma atenção para a questão da classe social, pois assim o trabalho poderia atender
de modo mais completo as mulheres:

E: (...) porque cê vai ter que fazer um recorte de classe, como que essa
mulher da classe empobrecida ela se vê nesse contexto aí? Diferenciada
mesmo. Que muitas vezes não vai mercad..., não sai do doméstico por uma
opção de trabalhar fora, de de construir sua autonomia, mas sai porque tem
que sobreviver. Não abre uma outra perspectiva. Né, eu acho que tem que
fazer esse recorte porque senão, eu acho que o trabalho fica um grande
buraco, um, fica extremamente manco, e a frustração vai ser muito grande.

Graça reforça a idéia de que a violência de gênero não é restrita às classes


mais pobres. Ela entende que: “(...) a violência contra a mulher, por exemplo, ela
137

num tem classe. Num é. Todas as mulheres a gente sabe que vive violência.”
Apesar de algumas das entrevistadas reconhecerem a importância das
relações entre classe social, raça e gênero nos atendimentos às mulheres que
procuram estes programas, essa questão parece ser um pouco negligenciada pelas
feministas. Uma fala de Márcia nos dá indícios de um dos motivos que podem ter
levado a isso:

M: (...) porque o próprio Marx, Engels, a gente estudou isso, né, porque eles
não dão conta de discutir essa questão, né, porque que algumas feministas
saíram dos partidos socialistas né, europeus, porque na, o partido não dava
conta de discutir, e que a questão maior era classe e não a questão, né, das
especificidades da luta então achava que resolver a questão de classe ia
resolver a... as questões, né, outras, né, das mino..., chamadas minorias.

Como discutimos anteriormente nesta dissertação, os movimentos sociais que


se dedicavam à luta de classes consideravam as lutas por reivindicações específicas
(como a das mulheres) uma questão menor. Vimos que muitas mulheres ficavam
divididas sobre a que tipo de luta deveriam se aliar. Para muitas mulheres, nas
palavras de Karin, a “solidariedade com as questões do de gênero foi mais forte do
que com seu partido, tá, e aí de fato houve racha sim”. Assim, podemos pensar que
nesse racha as feministas podem ter se dedicado ao gênero e deixado à questão de
classe para ser trabalhada por outros grupos organizados. Por isto, a classe não
aparece como tema relevante nos discursos das entrevistas.
Apenas na fala de Graça, reiteramos, a classe social e a raça aparecem como
pontos fundamentais do discurso. Podemos notar que as trajetórias pessoais
marcam, também aqui, a emissão do discurso. Para Graça – que é uma mulher
negra, que vem de uma classe social mais baixa e é militante em movimentos
sociais – o trabalho com gênero, raça/etnia e classe social é imprescindível nos
atendimentos prestados nestas políticas públicas e na construção da cidadania das
mulheres: “E eu, eu acho que assim, pra ser cidadã muitas vezes a gente sofre
muito, num é, porque a sociedade machista, capitalista...”
Para ela, uma mulher é cidadã na medida em que sabe o seu papel na
saciedade: “Agora, descobrir o papel dessa mulher, né, essa mulher descobrir a sua
importância, o seu papel, pra mim é uma das grandes cidadanias, porque aí ela vai
dizer realmente o que que é que ela quer da vida dela, né.”
Certamente, a consciência das mulheres do seu papel social é importante na
construção de uma nova cidadania, mas não é suficiente. Outros fatores, como a
138

transformação das relações e práticas sociais enraizadas na sociedade, são


fundamentais para que as mulheres possam se tornar cidadãs (DAGNINO,1994).
Karin aponta que a introdução de uma perspectiva de gênero pode levar a
outras mudanças na cidadania, tais como repensar o poder, os direitos e os vínculos
sociais. Vejamos sua fala sobre isto:

K: (Risos) Ai meu deus, assim... como que elas se articulam... na medida


que você discute, que você taaa revertendo, né, uma certa distribuição do
poder não justa, não desejável, não igualitária, você ta re... rediscutindo o
lugar da cidadania. O lugar dos direitos, o lugar dos vínculos, o espaço dos
vínculos e tá repensando... é, acho que tá repensando o mundo
contemporâneo mesmo, as possibilidades.
Disso ser feito. Isso se articula com a questão das minorias sociais na
medida em que vai permitir... é ela, ela é o caminho, ela é o exercício da
possibilidade das minorias, né, saírem de um lugar tão sem escuta, tão sem
prestigio, tão sem interlocução, então tem que pelo menos dizer, não só da
sua existência, mas dizer também de algumas expectativas, de alguns
projetos e tenta alcançá-los por esse caminho.

Esse processo de transformação das relações de poder e dos vínculos sociais


requer o reconhecimento do outro como sujeito de direitos e desejos. Sujeitos estes
que podem construir uma nova sociabilidade a partir da luta por relações mais
igualitárias em todos os níveis (SILVEIRA,1999; TELLES,2001).
A necessidade de mudanças sociais para que cidadania das mulheres seja
construída também é observada por Daniele:

D: A idéia de cidadania? De direitos, nesse sentido? Eu acho que a questão


da cidadania, né, pras mulheres é um pouco mais complicado, por causa da
questão cultural mesmo, da sociedade, machista que a gente tá inserido
dentro dela, né, é..., as a luta, né, feminista de muito tempo, mas mesmo
assim desse reconhecimento, né, então, ih! (...) Então eu acho que é mais
assim, essa questão da cidadania ainda é mais negada para as mulheres
do que para os homens, né. Pra conseguir isso... por isso é que precisam
dessas, felizmente das políticas públicas pra tá dando conta um pouco
dessa cidadania, né. Mas isso aí precisa de muuuita ainda, mudança, né,
nessa questão da cultura... machista, falocêntrica e etc (risos).

Daniele afirma que as políticas públicas têm que trabalhar a cidadania, mas
não fala como isso é feito no cotidiano dos programas sociais. Márcia e Ermelinda
também falam que para elas a articulação entre gênero e cidadania é imprescindível,
principalmente em relação às políticas públicas, mas elas não se detêm nesse ponto
e não explicam como seria a relação entre os dois termos.
Se o leitor retomar o segundo capítulo desta dissertação, verá que as
relações entre cidadania e gênero não podem prescindir de uma discussão sobre a
diferença, pois quando as diferenças são apagadas, as desigualdades e
139

discriminações são produzidas (DAGNINO,1994; Silveira,1999; TELLES,2001). O


direito à diferença, que é indissociável ao direto à igualdade, é um dos elementos
que compõe a nova cidadania. Portanto, levantamos a questão da diferença nas
entrevistas. A seguir voltaremos nossa atenção às falas das entrevistadas sobre este
tema.
Karin diz da indissolubilidade entre igualdade e diferença:

K: Porque se a gente tá pensando em igualdade... primeiro, pra entender


que igualdade de direitos num é igualdade em todo e qualquer lugar, né.
Quer dizer, pressupõe que diferenças tenham que ser respeitadas,
mantidas... uma discussão complicadíssima porque, né, cê vai perguntar,
bom mas e aí quais são as diferenças possíveis e as diferenças pra serem
suprimidas, né. É... as diferenças culturais, religiosas, étnicas, de sexo, de
desejo, sei lá de tanta coisa, né, de práticas e tal (grifo nosso).

Graça também acredita que a igualdade só pode ser pensada e trabalhada


dentro de uma perspectiva que incorpore a diferença.

G: (...) ela é uma política realmente de diferença. Cê tem que trata, cê,
porque política social trata todo mundo igual. Não. Nós temos que ter
dentro da política social a questão diferente, a questão da diferença.
Que as meninas, do projeto Miguilim, do projeto do num sei o que, elas têm
que ter uma concepção diferente de vida, que os meninos têm que ter uma
concepção diferente, entender que a vida, ela tem que ser de igualdade.
Num é. Aí eu vejo. Aí eu acho que é isso. Né (grifo nosso).

Também para Ermelinda as políticas públicas têm que incorporar as


diferenças. Além disso, ela argumenta que a eliminação das diferenças pode gerar
desigualdades e que a igualdade só pode ser efetiva quando é pensada a partir do
respeito às diferenças. Vejamos sua fala:

E: Eu entendo que essa igualdade de direitos, essa igualdade só se vê na


diferença.

C: Como?

E: Por exemplo, eu num dô, eu num posso querer acreditar, é..., que
homens e mulheres, vamo colocar, se não for de gênero, mas que, por
exemplo, de geração, né. Que crianças e pessoas na sua vida produtiva ela
ló-, ou mesmo, quer dizer, você num tem, cê tem uma diferença e uma
diferença que precisa ser respeitada e ser vista. Eu acho que quando
você vê a igualdade como eliminação, como se coloca diferentes como
iguais, cê pode ser igual na questão do respeito, na questão é é enquanto
ser humano. Não sei se eu usaria essa palavra enquanto, enquanto... o que
eu to querendo colocar é num pode massificar, colocar tudo num roldão
como se todos fossem iguais. E que se fossem iguais mesmo (grifo nosso).

Para Márcia as próprias instituições não respeitam às diferenças, o que


prejudica a qualidade dos serviços prestados:
140

M: (...) tem hora que eu acho também que são instituições que violentam as
mulheres, né, que violentam as mulheres na sua dignidade, porque não
respeita as diferenças, sabe, num tô falando isso de uma pessoa, tô falando
da instituição, mesmo, né. Essas instituições elas são muito cristalizadas
mesmo nessa visão de que vão resolver o problema das mulheres, não é
isso, né.

Daniele fala do risco do diferente ser tratado como pior, submisso o u


vulnerável:

D: Na questão do gênero existe realmente uma diferença aí, né, que


homens e mulheres, né, têm suas especificidades e tal. Mais o que isso
não... tornaria um pior que o outro, mais vulnerável que o outro, mais
submisso que o outro, né. Que essas diferenças deveriam existir e ser
respeitada, né. Mais eu acho que é difícil ce trabalhar isso, né, porque
devido a essas diferenças que gera muita dessa... questão (grifo nosso).

No entanto, na hora de associar diferença com igualdade ela mostra-se um


pouco confusa:

D: Porque aí, é..., cê pensar igualdade – mais – com (pausa) levando em


conta sempre essa questão da diferença, isso pra mim fica ainda um pouco
confuso, assim, né. Algumas coisas eu acho que devem mesmo, né,
principalmente na questão de gênero, tem que ser iguais, né, mais eu acho
que tem que ser resguardadas as diferenças, sabe, então eu fico...

Luzia afirma que uma sociedade democrática e igualitária tem que incluir as
diferenças:

L: Mas eu creio que essa sociedade democrática, igualitária que a gente


sonha, busca, ela tem que incorporar as diferenças. Né. Ela também não
pode criar padrões de valores, né, que que todos tenham que
obrigatoriamente seguir.

Mais adiante ela reafirma a importância da incorporação das diferenças na


construção de uma sociedade democrática:

L: Então eu creio que essa a a igualdade que a gente pensa ela também
tem que ir incorporando essas diferenças valores, diferenças de
comportamento em cada segmento que a gente vai, né. E... e... e isso é...
é... é talvez a... a... a – um um, eu diria assim, um termômetro de vê
também que a sociedade ta sendo mais tolerante, mais democrática quando
ela absorve essas diferenças de manifestação, inclusive a de gênero. Eu
acho que há diversidade, há diferença de... de... de de opiniões, de valores,
que eu acho que a gente também tem que trabalhar pra respeitar.

Contudo, em algumas falas podemos notar que ainda há uma confusão entre
os conceitos de diferença e de desigualdade. Luzia, por exemplo, fala em diferença
141

para designar desigualdades econômicas e sociais:

L: Apesar de todas as diferenças que ainda existem, principalmente no...


no plano econômico, né, sócio-econômico, cada vez mais a gente sente
que essa é uma... uma .. uma dificuldade de, né, que a gente tem
mundialmente, né, da da concentração de renda, da pobreza, da... da
acumulação de riqueza versus miséria, né, a... a... a... a humanidade vai
desenvolvendo, mas, e essa é uma questão que não se alterou, né (grifo
nosso).

Graça em certo momento também fala em diferença como desigualdade de


poder: “E eu entendo que, por exemplo, a ... a... as diferenças tá a olho nu. Né,
assim. A gente sabe que são, quem está no poder. Sabemos quem não está. Né.”
Apesar de em alguns momentos haver certa confusão entre desigualdade e
diferença, percebemos, partir do que foi narrado acima, que para as entrevistadas a
diferença aparece como elemento-chave na construção de uma sociedade
democrática e igualitária. Assim, a diferença precisa ser incorporada na igualdade
para que esta seja efetiva.
Porém, no cotidiano, muitas diferenças são usadas para submeter o outro e
tratá-lo como pior. Tratar o outro como desigual gera discriminações e violências,
que por sua vez são empecilhos para a construção da cidadania. A violência é um
obstáculo real e cotidiano para construção democrática da cidadania. Assim, uma
das lutas mais visíveis do movimento de mulheres foi pelo fim da violência de
gênero. Esta luta teve conseqüências importantes, como o reconhecimento do
Estado de que a violência é uma questão de saúde pública e de violação dos direitos
humanos básicos. Portanto, cabe ao Estado formular políticas públicas, como
aquelas estudadas aqui, para combater as várias formas desse problema.
Podemos nos perguntar quais os sentidos de violência que são produzidos
nessas políticas públicas.
Karin chama nossa atenção para a necessidade de realizar debates sobre o
conceito de violência, pois ele é polissêmico e politicamente importante:

K: Um conceito complicado, um conceito, politicamente muito útil porque


você põe dentro dele, discriminação, opressão. Eh... desqualificação de...
de... várias ordens, né. Violência simbólica, violência física. Eh. Enfim, essa
é uma polissemia. Um conceito complicado, um conceito que as pessoas
pressupõem que quando elas falam tão falando da mesma coisa. Com com
leituras bastante diferentes. O pessoal da segurança trata dela de uma
maneira funcionalista. Essa é essa é uma marca muito forte, né, eh.

Karin, que é doutora em psicologia social, presta consultorias para a


142

Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher (COMDIM) e para os equipamentos


dos quais ela é articuladora, o Benvinda e a Casa Abrigo Sempre Viva (CASV).
Nessas consultorias são discutidos os atendimentos prestados pelos serviços, assim
como os conceitos de gênero e violência. Segundo Márcia, um dos méritos destas
discussões foi a desvitimização das mulheres que estão em situação de violência de
gênero:

M: E... e... e assim, uma coisa que a gente, né, aprendeu com a Karin,
aprendeu, né, no dia a dia é não torná-las mais vítimas, né, ou seja, não
fazer da Coordenadoria um pronto socorro que vai, né, é..., garantir o o o
remédio, remendo pras mulheres. Não é isso.

A mulher não é vítima da violência que vive. Segundo Karin von Smigay
(2000), a violência, junto com a intimidade e o erotismo, estrutura a relação do casal
e marca o corpo e a subjetividade de cada um. Daniele, que também é psicóloga, se
interessa pelas marcas psíquicas deixadas pela violência: “Como que afeta a
subjetividade das pessoas e tal. E..., mais aí eu vinha pensando violência nessa
linha assim sabe, de como que ela afeta a subjetividade das pessoas, como que...”
Esses programas dedicam-se quase exclusivamente ao atendimento de
mulheres que estão vivendo situações de violência. Apenas Graça fala da
importância da prevenção da violência:

G: Eu quero trabalhar a prevenção, porque eu acredito na prevenção da


violência, porque a prevenção ela leva em conta a organização e articulação
da população, e aí dentro, das mulheres. Sabe. Eu acho assim. Eu vejo
assim.

Ao analisarmos as entrevistas, percebemos que os sentidos de violência


produzidos no discurso associam o agressor à figura masculina. É o que se vê, por
exemplo, em duas falas de Ermelinda:

E: Que aí vamos imaginar de onde que vem essa violência, né, que aí é do
masculino sobre o feminino. Né. Que onde esse masculino não aceita
que o outro seja sujeito (grifo nosso).

E: Então quando ele que [gagueja] essa dominação dele tá sendo


ameaçada ele abre mão desse poder dele e parte pra violência. Na verdade
ele se sente impotente diante do da do, é, do, não, do, é..., dessa relação
deles de poder (grifo nosso).

Como Ermelinda trabalha num programa voltado para mulheres em situação


de violência de gênero, ela atende casos em que as mulheres são agredidas, na
maior parte das vezes, por seus companheiros. Assim, para ela o agressor é o
143

homem individualizado e não a sociedade, a cultura, o Estado, ou outros homens e


mulheres. Daniele, por sua vez, incorporou uma definição objetiva de violência, na
qual, é interessante notar, não há uma associação do agressor com uma figura
masculina. No decorrer de sua trajetória, ela trabalhou, por exemplo, com mulheres
que violentam suas crianças, por isso para ela cada sujeito, homem ou mulher, pode
estar na posição de agressor ou de agredido. Vejamos o sentido que ela dá à
violência:

D: Agora, cê que um conceito de violência, assim, de violência mesmo? Eu


acho que quando a pessoa tá com algum direito violado, né, seja ela
própria violando alguns diretos dela ou... alguém, né violando es...
esses direitos que ela tem, né, eu acho que ela ta sofrendo uma violência,
né. Quando ela não tem garantido, né.

Ela define violência como uma violação de direitos. Esse sentido de violência
está presente na fala de outras entrevistadas, como Karin: “[violência é] o não
respeito, o atropelamento de alguns pressupostos que tão na base das... dos
direitos.”
Ermelinda, numa concepção mais objetiva, afirma que a violência é uma
violação dos direitos básicos, do direito a ter direitos:

E: Acho, tem, na verdade se ocê for discutir cidadania como uma questão
[pausa] se tem direito a se, direito a ter direito, direito a ser gente. A
violência é tirar esse direito. Então ela tá tirando esse direito de ser
cidadã (grifo nosso).

E mais adiante ela completa seu argumento:

E: (...) Eu acho que violência, ela vai ter em todos os níveis, né. Um dos
tópicos que a gente lida é a violência de gênero. Mas violência a partir do
momento que você é... eu fico imaginando que é coisificar o outro. Ou
você encher, você retira do outro algum direito. Né. Então você vai ter
vários níveis de violências, seja ela uma violência urbana, seja ela uma
violência [pequena pausa] nas relações. Né. Mais eu acredito que
violência é você tirar do outro um direito (grifo nosso).

Ela define violência como coisificar o outro, mostrando uma identificação com
o trabalho de Chauí (1985), e afirma que a retirada de um direito do outro é um ato
de violência, associando, assim, violência e cidadania. A retirada de direitos é um
ato de violência com o sujeito. Nos casos atendidos pelo Benvinda e pela Casa
Abrigo Sempre Viva, os direitos das mulheres estão sendo violados. Alguns
exemplos de direitos violados são os de ir e vir; de integridade física, moral e
psicológica; de propriedade; de convivência familiar e comunitária; de ter
144

documentos de identidade, entre outros.


Márcia também relaciona a violência com uma violação de direitos e
acrescenta outros termos em sua concepção:

M: Qualquer violação, né, do... da dignidade da pessoa, né, de, é uma


violência, né, você não respeita o outro, né, na sua diferença é uma
violência. Então qualquer... qualquer, é..., qualquer questão que você, é...,
ignora a outra pessoa, que você não leva em consideração as suas
dificuldades, os seus limites, é um ato de violência, né. É... cê num respeitar
o outro, né, na sua... seu... seu lado, é..., frágil, né, no seu lado de limite,
isso é uma violência, né (grifo nosso).

A violência é definida por ela como uma violação, como o não respeito ao
outro em suas diferenças e limites. O reconhecimento do outro como um sujeito de
direitos é um dos pressupostos fundamentais da nova cidadania, portanto a violência
poderia retirar do sujeito sua condição de cidadão. Diante disso, perguntamos às
entrevistadas se elas achavam que uma mulher em situação de violência pode ser
considerada cidadã. Essa pergunta levantou questionamentos sobre suas definições
anteriores de cidadania e violência. Elas buscaram conciliar a idéia de que todas as
pessoas de uma sociedade são por direito cidadãos, com o fato de a violência
infringir este direito.
Karin diz da dificuldade de articular esses conceitos, pois em tese todas as
pessoas são cidadãs, mesmo que estejam com algum direito violado:

K: É... tentando né, tentando. (risos) ai que diabo de conceito! Não sei te
responder, Carol! Se é, quer dizer, em tese sim. Agora evidentemente com
ela, né. Em tese ela é uma cidadã, na medida em que em tese toda e
qualquer ser humano, tem, né, deveria, tem direitos. Agora se a
situação tá retirando dela, né, sua cidadania, ta (grifo nosso). Mas ocê
num pode dizer que não está ou tá. Eu num sei se ocê tem essa categoria
isolada, entendeu? Eu acho que ela é, né, alguma, né, se ela existe
potencialmente, né, ou ela é ela é em princípio um ser humano, agora no
seu exercício, ele é um exercício que tá eh... empobrecido, né. É isso? Sei
lá.

As entrevistadas fazem uma divisão entre a cidadania concedida a todos os


cidadãos e o exercício da cidadania, que seria prejudicado quando a pessoa vive
uma situação de violência. Vejamos, por exemplo, a fala de Daniele e, a seguir, a de
Graça:

D: (Breve pausa) Eu acho... que... ela, é uma cidadã, mas que num tá
sabendo usar dos seus direitos, né, e que tá tendo esses direitos
violados, né, por isso a questão da violência e tal. Isso é é complicado
(risos), porque, a pessoa a princípio ela seria cidadã, num é, mais ela num
tá exercendo essa cidadania que ela teria direito por falta de
145

conhecimento, num é (grifo nosso).

Graça afirma que uma pessoa em situação de violência não está “se
considerando” ou “se permitindo” ser cidadã.

G: Ela pode ser considerada cidadã. Num é. Ela só não... eu acho que ela
só não... é... se permite ser essa cidadã. Porque eu posso considerar ela
enquanto cidadã, lógico, naturalmente, todos nós somos cidadãs,
cidadãos ou cidadãs, né. Agora, nós temos que entender se essa pessoa
realmente está se considerando ou se tá se permitindo ser cidadão
(grifo nosso).

Podemos nos perguntar se a cidadania para ela é auto-atribuída, ou seja,


uma pessoa é cidadã na medida em que se considera cidadã. Ou se a cidadania é
garantida pelo Estado para todos os cidadãos. Dentro da concepção da nova
cidadania, o Estado é a única instância capaz de garantir direitos, mas a cidadania
não é dada pelo Estado, ela é conquistada pelos sujeitos num processo nos quais
eles se tornam cidadãos e cidadãs.
Sabemos que uma das conquistas do movimento feminista foi a implantação
de políticas públicas de atendimento a mulheres em situação de violência de gênero,
nas quais fossem garantidos seus direitos e sua cidadania. As mulheres atendidas
pelos programas estudados nesta pesquisa viveram situações de violência nas
quais, muitas vezes, tiveram suas vidas colocadas em risco. Quando essas
mulheres procuram serviços de atendimento e abrigamento, é porque estão
buscando sair da situação de violência em que estavam. Esse processo pode ser
motivado por vários fatores, como, por exemplo, o medo de morrer ou de que os
filhos sejam violentados. E não são poucas as mulheres que após passarem pelos
programas retomam o relacionamento com o agressor.
Nosso objetivo aqui não é ponderar sobre quais são as motivações subjetivas,
sociais, culturais ou econômicas que levam uma mulher a permanecer ou a sair de
uma relação violenta. O que procuramos analisar foram as relações entre violência,
gênero e cidadania no decorrer desse processo. Desse modo, é importante
retomarmos uma fala de Luzia na qual ela relaciona esses elementos:

L: Eu acho que pode. Porque eu acho que se ela tiver, principalmente... eu


acho que a mulher que é, é, é..., que deu o passo da... da denúncia, eu
acho que ela tá exercendo bem a sua cidadania, acho que ela saiu desse
ciclo de... de... de fatalidade da vida, de... de destino, num é? E tá
exercendo esse... esse direito de que é se ter uma vida íntegra, e de
que... e de ter proteção do Estado nesse caso (grifo nosso). Então eu
acho que pode.
146

Márcia corrobora com o argumento de Luzia: ”Eu acho que até, se ela busca,
é..., seja no Benvinda ou qualquer outro tipo, na comunidade, outro tipo de
apoio, ela tá se reconhecendo enquanto cidadã, né (grifo nosso).
Assim, uma mulher que procura sair do ciclo de violência no qual vive e
denuncia seu agressor está tornando-se cidadã num sentido mais amplo, pois ela se
vê como um sujeito social que demanda do Estado a garantia de seu direito a ter
direitos, tais como o direito à integridade física e psíquica e o direito à vida67.
A partir do que foi narrado neste capítulo, podemos ver como diferentes
concepções de cidadania se atravessam e configuram os sentidos de cidadania
produzidos pelas entrevistadas. Todos somos livres e iguais perante a lei, mas a
violência infringe direitos básicos, violando o próprio direito a ter direitos. Partindo de
uma perspectiva liberal de cidadania, todas as pessoas nascem cidadãos e têm seus
direitos garantidos pela Constituição Federal. Desde a perspectiva da nova
cidadania, a cidadania não é simplesmente uma questão de acesso a direitos
preestabelecidos, mas é um processo de tornar-se cidadão, na medida em que os
sujeitos sociais reconhecem que tem direito a ter direitos e a lutar para conquista-los.
Retomaremos estas questões nas considerações finais desta pesquisa.

67
O direito à vida é o um direito inviolável, garantido pela Constituição Federal de 1988 (Título II,
Cap.I, Art. 5º).
147

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O principal objetivo desta pesquisa foi analisar os sentidos de cidadania


produzidos no discurso de mulheres que são militantes do movimento feminista e/ou
gestoras de programas que atendem mulheres em situação de violência de gênero.
Os programas enfocados são a Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher
(COMDIM), o Benvinda – Centro de Apoio a Mulher e a Casa Abrigo Sempre Viva
(CASV). As concepções dessas mulheres exerceram influência nas diretrizes das
políticas públicas na cidade de Belo Horizonte (MG) e têm impacto no cotidiano dos
atendimentos às usuárias dos equipamentos. Nesse contexto, tornou-se
imprescindível trabalhar as relações da cidadania com o gênero e a violência contra
a mulher.
Para atingir nosso objetivo, realizamos seis entrevistas com mulheres que
representam o cenário de atendimento a mulheres em situação de violência de
gênero no município de Belo Horizonte. Duas das entrevistadas, Márcia e Graça,
foram militantes do movimento feminista ligado ao Partido dos Trabalhadores,
participaram do processo de elaboração e implantação das políticas públicas de
atendimento a mulheres e são coordenadoras desses programas na cidade. Karin e
Luzia também foram militantes no movimento de mulheres, sendo que Karin
identifica-se como militante autônoma e Luzia como militante partidária. Ambas
participaram dos debates para implementação dessas políticas públicas, mas nunca
ocuparam cargos nesses equipamentos. As duas últimas entrevistadas, Ermelinda e
Daniele, não participaram diretamente do movimento feminista e nem da elaboração
das políticas públicas, mas ocupam hoje a gerência dos programas.
Além das entrevistas que realizamos, buscamos mapear o campo teórico da
cidadania e sua relação com o gênero e a violência. Partimos do estudo de duas
concepções de cidadania que são historicamente relevantes e que estão presentes
nos dias de hoje: a liberal e a nova cidadania. A cidadania liberal68 surgiu nas
revoluções burguesas do séc. XVII, quando os trabalhadores, burgueses e seus
aliados lutaram pela igualdade, liberdade e fraternidade. Sua principal reivindicação
era a de serem incluídos em direitos individuais a que outras camadas da população
tinham acesso e sua maior conquista foi passar de súditos a cidadãos perante o
Estado. T.H. Marshall (1967) é considerado o mais importante estudioso da
148

cidadania de cunho liberal. Foi ele quem teorizou sobre as dimensões civil, política e
social da cidadania, que influenciam fortemente as concepções contemporâneas do
termo, como pudemos ver em alguns momentos das falas de nossas entrevistadas.
Pelo menos duas características liberais estiveram presentes nos discursos. A
primeira refere-se à concepção de direitos. Em algumas falas estes foram definidos
de acordo com pressupostos liberais, como acesso e gozo de direitos formais
preestabelecidos e, em contrapartida, cumprimento dos deveres legais. A segunda
foi a definição da cidadania baseada na igualdade e liberdade, que constituem os
ideais burgueses de cidadania. É interessante notar que não houve nenhuma
referência à fraternidade, que também é um elemento-chave na cidadania liberal.
Esses ideais foram sendo tensionados ao longo da história, devido a
mudanças sociais, econômicas e políticas. Surgiram então três novos conceitos que
podem complementar aqueles na compreensão da cidadania: eqüidade, autonomia
e solidariedade. Nas entrevistas houve referências à eqüidade e à autonomia, que
precisariam ser trabalhados com as usuárias dos programas. A solidariedade não foi
mencionada. Vejamos brevemente o significado de cada um desses termos.
Eqüidade é um conceito normativo, referente à justiça social e à superação das
desigualdades:

(...) O conceito de eqüidade é concebido como o reconhecimento e a


efetivação, com igualdade, dos direitos da população, sem restringir o
acesso a eles nem estigmatizar as diferenças que conformam os diversos
segmentos que a compõem. Assim, eqüidade é entendida como
possibilidade das diferenças serem manifestadas e respeitadas, sem
discriminação; condição que favoreça o combate das práticas de
subordinação ou de preconceito em relação às diferenças de gênero,
políticas, étnicas, religiosas, culturais, de minorias etc. (SPOSATI, 2004)

A autonomia pode ser entendida como:


(...) [correspondente] às múltiplas capacidades do indivíduo em se
representar tanto nos espaços públicos como nos espaços privados da vida
cotidiana, ao seu modo de viver e aos seus valores culturais; à luta pela sua
emancipação e desalienação; à forma de ser, sentir e agir; à capacidade de
potenciar atividades em diversas formas de trabalho; à resolução de
conflitos; ao fortalecimento em relação às suas próprias emoções, que o
torna capaz de solidarizar com as emoções dos outros e, enfim, estar mais
associado em suas ações. (SIQUEIRA E PEREIRA, 2004)

Solidariedade, segundo Prado (1994), é o valor social implícito na escolha do


modo de vida comunitário. Envolvendo responsabilidade mútua; cooperação e

68
A cidadania liberal foi discutida no segundo capítulo desta dissertação.
149

comunicação; convivência; reconhecimento do outro; aceitação da diversidade;


tolerância às diferenças. Frente a essa concepção de solidariedade, entendemos a
dificuldade de articulá-la com a noção de cidadania numa sociedade capitalista que
tem como pilares a propriedade privada e a liberdade individual. Nesse contexto, os
pressupostos coletivos da solidariedade e da fraternidade são desvalorizados e
ficam de fora dos discursos sobre cidadania.
De todo modo, os conceitos de eqüidade, autonomia e solidariedade nos
auxiliam numa compreensão ampliada de cidadania, que reconhece o outro como
portador de direitos, o direito à diferença e a possibilidade de emancipação e
transformação social.
A nova cidadania nasceu na década de 1990, com os novos movimentos
sociais (NMS), e se organiza em torno de seis pontos principais (DAGNINO, 1994): o
principal direito é o direito a ter direitos; os cidadãos são sujeitos sociais ativos;
proposta de uma nova sociabilidade, onde o outro é reconhecido como portador de
direitos e desejos; transformação das práticas sociais enraizadas; participação dos
cidadãos na definição do sistema; direito à igualdade e à diferença.
Os dados mostram que o paradigma da nova cidadania69 organizou o
discurso das entrevistadas. Elas se posicionam como sujeitos sociais ativos que
lutam para que direitos relativos às mulheres sejam incorporados na lei e na cultura.
São necessárias mudanças no sistema e nas práticas sociais preconceituosas e
opressivas em relação às mulheres para que seja construída uma sociedade onde
todos, homens e mulheres, sejam reconhecidos como portadores do direito à
igualdade e à diferença.
Se o leitor retomar as análises das entrevistas verá os diversos sentidos de
cidadania produzidos nos discursos e as afinidades entre eles. Para Graça, por
exemplo, a transformação social e a emancipação são possíveis, desde que as
bases participem do processo democrático. O sentido de cidadania produzido por ela
tem como características fundamentais a participação de sujeitos sociais ativos; a
construção de uma nova sociabilidade, onde as relações sejam igualitárias; e a
transformação de práticas discriminatórias enraizadas na sociedade civil. Já Luzia
teceu seu argumento a partir da importância dos partidos políticos e das relações
entre a sociedade civil e o Estado na construção da cidadania. Para ela, os cidadãos

69
Discutimos a concepção de nova cidadania nos capítulos III e IV desta dissertação.
150

e cidadãs têm que participar dos governos locais e definir o sistema do qual fazem
parte. Estas características não aparecem somente nas entrevistas citadas acima;
estão presentes em todas, mas ocupam, em cada uma, posições diferentes.
Nas últimas três décadas ocorreram mudanças relevantes na cidadania das
mulheres, mas nem todas as transformações culturais e sociais se concretizaram
como o movimento feminista desejava. As mulheres ainda são subordinadas, sofrem
violências de gênero e, muitas vezes, nem percebem que são alvo de
discriminações (SAFFIOTI, 2004). No entanto, não podemos negar a importância do
feminismo na cultura, na política e na subjetividade de mulheres e homens.
Transformações concretas ocorreram, principalmente em relação ao modo como as
mulheres são vistas pelo Estado, pela sociedade civil e por si mesmas.
Usando o referencial gramsciano, podemos dizer que hoje qualquer
construção hegemônica70 tem que incorporar as demandas e interesses das
mulheres. Com isso, muitas feministas migraram dos movimentos sociais para o
aparelho do Estado, onde reivindicaram “(...) a sua inclusão entre os ‘atores’ que
participam da formulação, da implementação e do controle das políticas públicas”
(FARAH, 2004, p. 54). A migração de militantes feministas para o aparelho do
Estado foi permeada por conflitos e até hoje representa um dilema para estas
mulheres, conforme o leitor poderá ver se retomar a seção 5.4 desta dissertação.
Os dados apontam que o Estado brasileiro incorporou, de certa forma, a
necessidade de trabalhar com as demandas específicas das mulheres, mas não
incorporou uma perspectiva de gênero em suas ações políticas. Da mesma forma,
os programas estudados dedicam-se ao trabalho com mulheres e para mulheres,
tendo dificuldade de incorporar uma perspectiva de gênero e mantendo, em certos
momentos, atendimentos assistencialistas. O Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social das Nações Unidas considera como incorporação de uma
perspectiva de gênero:

“(...) o processo de avaliação das implicações, para as mulheres e homens,


de quaisquer ações planejadas, incluindo legislação, políticas ou programas
em todas as áreas e em todos os níveis. É uma estratégia para fazer com
que as preocupações e experiências de mulheres e de homens se tornem
parte integral da elaboração, implementação, monitoramento e avaliação

70
Para Gramsci hegemonia é um modo específico de exercício/construção do poder, que tem como
principal recurso o consentimento ativo, exigindo renovação perpetua do consenso, pois é submetido
ao conflito de interesses. (Esta definição é resultado de discussões realizadas na disciplina Cultura e
Política, ministrada pela profa. Evelina Dagnino, UNICAMP, 2004).
151

das políticas públicas e dos programas em todas as esferas, de tal forma


que as mulheres e os homens se beneficiem delas da mesma forma“ (ONU,
2005).

Mesmo as entrevistadas, que têm trajetória de militância e de trabalho com


mulheres, mostraram dificuldade em definir gênero e violência como um conceito
teórico. Esses termos aparecem nos discursos como noções estratégicas, utilizadas
em negociações políticas a favor dos interesses das mulheres. A questão da
violência de gênero é estrategicamente usada pelas feministas para sensibilizar o
governo e a sociedade civil sobre a opressão sofrida pelas mulheres. O movimento
de mulheres publicizou o problema da violência de gênero e lutou para que ele fosse
enfrentado como um problema de saúde pública e de direitos humanos. Conforme
discutimos no decorrer desta dissertação, a violência contra a mulher foi uma
bandeira fundamental para o feminismo, ganhando espaço na mídia e respostas do
poder público.
A definição mais clara de violência dada pelas entrevistadas foi: é uma
violação de direitos. Uma pessoa em situação de violência tem diversos direitos
desrespeitados, como o direito à integridade física e psíquica, e em última instância,
tem ameaçado o próprio direito à vida. Assim, a violência é um obstáculo para a
cidadania. No entanto, a violência pode ser enfrentada na medida em que vítimas
forem vistas como sujeitos e cidadãos pelo Estado e pela sociedade civil, não
necessitando de tutela, mas da garantia de que seus diretos sejam respeitados e
restaurados. Assim, fazemos nossas as palavras de Telles (2001, p. 77):

(...) os direitos poderiam ser pensados como forma de subjetivação e


construção de identidades de indivíduos que se percebem como sujeitos de
direitos que lhes são recusados, traduzindo (e desprivatizando) os
sofrimentos cotidianos na linguagem pública da igualdade e da justiça.

Os efeitos do movimento de mulheres não se restringiram a questão da


violência de gênero. Rago (2004) afirma que houve de fato uma feminização da
cultura: as mulheres conquistaram o direito à existência pública, as relações entre os
gêneros estão se transformando e, aos poucos, o imaginário social de que as
mulheres são inferiores aos homens está mudando. No entanto, muitas mulheres
ainda não percebem quando são alvo de discriminações de gênero e têm, nas
palavras de Saffioti (2004) “consciências dominadas”.
152

No decorrer da pesquisa de campo e da análise dos dados, percebemos que


entrevistadas retomaram a história do movimento de mulheres na cidade para relatar
suas trajetórias individuais, mostrando que seus percursos pessoais e o movimento
são mutuamente atravessados. As memórias sobre o movimento constituíram o
ponto nodal dos discursos das militantes, articulando os sentidos produzidos.
A história do movimento feminista em Belo Horizonte (MG) pode, como
qualquer história, ser contada desde diversos pontos de vista, sendo que o
relacionado à violência contra a mulher, que foi o foco desta pesquisa e é o campo
de trabalho de nossas entrevistadas, é apenas um deles. A bibliografia existente
sobre o movimento de mulheres em Belo Horizonte é escassa. Então, trabalhamos
com as falas das entrevistadas com o objetivo de contextualizar as particularidades
do movimento de mulheres neste município e contribuir para o estudo do fenômeno.
A partir dessas memórias, pudemos perceber o nascimento de novas
identidades e subjetividades, além de analisar as posições de cada entrevistada na
emissão de seu discurso. A participação no movimento feminista e nas políticas
públicas voltadas para mulheres foi fundamental para a construção nos discursos
dos sentidos de cidadania, gênero e violência. Essas concepções foram
ressignificadas no decorrer da trajetória das entrevistadas e marcam como essas
questões são trabalhadas no cotidiano das políticas públicas voltadas para mulheres
no município de Belo Horizonte (MG).
Para avaliar de modo mais adequado o impacto do movimento de mulheres
na cultura, na política e na subjetividade de homens e mulheres, seria preciso
aprofundar a pesquisa do tema. Gostaríamos de fazer uma reflexão sobre algumas
questões que foram levantadas por esta pesquisa, mas que não foram trabalhadas
suficientemente no espaço desta dissertação por extrapolarem o foco de nosso
estudo. Três pontos nos parecem especialmente importantes para serem retomados
em outras pesquisas: o trabalho com o gênero em outras políticas públicas, como as
políticas de saúde e educação; as relações entre as mulheres e a política; e a
avaliação das políticas públicas voltadas para mulheres em situação de violência de
gênero.
O primeiro desses pontos foi tangenciado na seção 5.4 desta dissertação,
quando discutimos a importância de que as políticas e programas de atendimento à
população incorporem uma perspectiva de gênero em seu trabalho, mas também
vimos a dificuldade esse processo se concretizar, prejudicando o avanço da
153

cidadania das mulheres. Mesmo na área da saúde, que foi um foco de lutas do
movimento feminista, o gênero não foi incorporado. Segundo as entrevistadas, a
questão do gênero é trabalhada apenas nos locais onde há pessoas sensíveis a ela.
Assim, consideramos relevante a realização de pesquisas que avaliem como é a
adoção de uma perspectiva de gênero nas políticas públicas que não trabalham
especificamente com mulheres.
O segundo tema, as relações entre mulher e política, foi levantado durante as
entrevistas de Graça Sabóia e Luzia Ferreira. Como ambas eram candidatas ao
cargo de vereadoras quando realizamos as entrevistas, essa questão lhes
interessava diretamente. O primeiro problema a esse respeito para a qual Graça
chamou nossa atenção foi o número de vereadoras na Câmara Municipal: “nós
temos hoje (...) na Câmara dos Vereadores, 37 vereadores, 5 mulheres. Aí cê vê (...)
quem tá no poder”71. No mandato iniciado no ano de 2005, a Câmara de Vereadores
passou a ser composta por 41 membros, sendo 07 (sete) mulheres e 34 (trinta e
quatro) homens. Assim, a Câmara Municipal atingiu ao marca de 17% de mulheres
entre seus membros, mantendo-se um pouco acima da média histórica (10%), como,
aliás, fora prevista por uma de nossas entrevistas, a Luzia, que afirmara ter a
impressão de que “esse ano nós vamos romper algumas barreiras no país nas
eleições municipais, que é ter um número de mulheres eleitas bem superior ao que a
gente tem na nossa média histórica” (grifo nosso).
Não apenas o número de mulheres que ocupam cargos legislativos e
executivos é menor do que o número de homens; existem também diferenças
qualitativas nos cargos ocupados pelas mulheres. Assim como nunca houve uma
mulher presidente do Brasil nem uma governadora do Estado de Minas Gerais, ou
uma prefeita do município de Belo Horizonte, nenhuma mulher jamais foi presidente
da Assembléia Legislativa de Minas Gerais ou da Câmara de Vereadores da
cidadania, situação que, aliás, chega a indignar nossa entrevistada Graça, como ela
demonstrou em uma de suas falas.
Para ambas, Luzia e Graça, as conquistas das mulheres quanto à
participação nas decisões políticas e ocupação de cargos de poder estão aquém dos
avanços em outras áreas. O resultado disso seria o pequeno comprometimento dos
legisladores e executores com as questões relativas ao gênero. Segundo Graça, a

71
Esta fala refere-se ao mandato de 2000 a 2004.
154

solução para esse problema seria “ter muito mais mulheres comprometidas” e não
“qualquer mulher”.
Podemos nos perguntar os motivos das mulheres não terem conquistado
lugares mais consistentes na política. Segundo Luzia, uma das causas é o próprio
modo de organização da disputa política, que prejudicaria a própria entrada das
mulheres no cenário político. Em suas palavras, ”a mulher tem muita dificuldade de
entrar porque é um jogo muito bruto (...), porque (...) o modelo que prevalece o poder
econômico, eu acho que é muito difícil a mulher romper essa [barreira]”. Ainda
segundo Luzia, a situação torna-se mais complicada em razão da necessidade de a
mulher ter que conciliar um mandato com as atividades tradicionais associados ao
feminino, como a maternidade e o cuidado da casa, o que seria, no seu entender,
“uma escolha muito penosa, porque de fato, muitas vezes é incompatível mesmo”.
Desse modo, a participação política da mulher envolveria questões como, por
exemplo, seus papéis sociais, sua identidade e as discriminações decorrentes dele.
Portanto, esse assunto constitui objeto de interesse para a psicologia social, que tem
poucos estudos a respeito, e deixa um campo aberto para pesquisas que possam
contribuir para a compreensão do problema. Atualmente, esse tema vem sendo
pesquisado principalmente nas áreas da história e das ciências políticas e um dos
focos de interesses são as cotas para mulheres nas eleições e dentro dos partidos
políticos.
Um terceiro ponto que merece ser mais trabalhado, conforme dissemos, é a
avaliação das políticas públicas voltadas para mulheres pelas usuárias dos
programas implementados. O presente estudo foi delimitado pela análise dos
discursos produzidos por militantes do movimento feminista e pelas coordenadoras
dos programas da prefeitura de Belo Horizonte que atendem mulheres em situação
de violência de gênero. Não analisamos os sentidos de “cidadania, gênero e
violência” para as mulheres que são atendidas por esses programas, nem
acompanhamos como essas questões são trabalhadas com as usuárias. Uma
avaliação rigorosa de políticas públicas exige a análise dos modos de pensar, de
agir e suas conseqüências para os usuários dos serviços. Sugerimos, portanto, que
como desdobramento desta dissertação, sejam realizadas pesquisas sobre os
modos como as políticas públicas estão desenvolvendo estratégias de construção
da cidadania e sobre os impactos, objetivos e subjetivos, dos atendimentos para as
usuárias dos programas.
155

Retomando a discussão teórica feita nesta dissertação e as análises das


entrevistas, podemos afirmar que o processo de construção da cidadania das
mulheres no Brasil foi, e ainda é, permeado por lutas, conflitos e conquistas
significativas tanto política quanto culturalmente. O movimento feminista foi
fundamental nesse processo, e sua desarticulação trouxe prejuízos para a formação
de novas lideranças e para a consolidação das reivindicações das mulheres.
Os sentidos de cidadania produzidos nos discursos das entrevistadas têm
estreitas relações com suas trajetórias pessoais e com a história do movimento
feminista e articula-se com suas concepções de gênero e violência. A introdução de
uma perspectiva de gênero levou a ressignificações na própria noção de cidadania,
possibilitando a construção de uma nova cidadania, na qual o direito à diferença é
tão importante quanto o direito à igualdade. No entanto, a violência constitui um
obstáculo para a cidadania. Ela transforma as diferenças em desigualdade e infringe
os direitos humanos básicos. A violência de gênero vem sendo enfrentada pelo
Estado com a implementação de políticas públicas, reivindicadas pelo movimento de
mulheres. As intervenções do Estado são limitadas e não solucionam o problema,
sendo que é de sua responsabilidade garantir os direitos de cidadania. A presente
pesquisa mostra que o processo de construção da cidadania dos sujeitos é
fundamental para o enfrentamento da violência de gênero e para a transformação
social.
Importante frisar que, ao apresentar estas considerações finais, oferecemos
não pontos de chegada, mas outros pontos de partida. A trajetória percorrida neste
trabalho nos fez refletir, ao longo do caminho, sobre a importância dar visibilidade
aos movimentos de lutas emancipatórias. Com essa reflexão, pudemos
compreender a relevância do trabalho acadêmico em seus aspectos científicos e
políticos. Relevância científica por gerar conhecimento e lançar luz sobre questões
que necessitam especial atenção. Relevância política por colaborar para o
protagonismo de agentes de luta por transformação social e para a emancipação de
mulheres e homens que vivem em nossa sociedade.
156

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164

ANEXO 1
Roteiro de Entrevista

1) Dados sócio-demográficos: idade; estado civil; número de filhos; nível


educacional; ocupação (atual e anterior)

2) Como você chegou na coordenação do programa X? Conte-me sua trajetória.

3) O que você entende por cidadania? Por gênero? E por violência?

4) Como essas noções de cidadania estão relacionadas às diferenças de gênero? E


às diferenças sexuais?

5) Como articular a idéia de diferença dentro de uma concepção de igualdade de


direitos? E como ficam as relações entre homens e mulheres? E alteridade?

6) Você acha as relações de gênero fizeram aparecer algum aspecto bem específico
da cidadania? Você acha que isso foi incorporado? (ex: licença-maternidade)

7) Em relação à cidadania, há direitos que ainda precisam ser reconhecidos? Quais?

8) Que relação você acha que existe entre cidadania e violência ou (não violência)?

9) Na sua opinião uma mulher em situação de violência pode ser considerada


cidadã? Por quê?

10) O que você entende por igualdade?

11) Você falou sobre as suas concepções de cidadania, gênero e violência. Suas
concepções sempre foram essas ou mudaram ao longo da sua trajetória? Que
mudanças foram essas? Por que você acha que elas ocorreram?

12) Você é cargo do programa X. Você acha que as suas concepções de cidadania,
gênero e violência coincidem com as do programa. Se não, quais são as diferenças?
(igualdade, alteridade, participação, direitos)

13) Você caracterizaria o programa X como exclusivamente dedicado à questão de


gênero? Explique.

14) Como a questão de gênero está presente nas demais políticas do município?
Você pode me falar alguma coisa sobre isso? Você acha que deveria ser diferente?
Por quê?

15) Você acha que as políticas de gênero no município deveriam se limitar à questão
da violência? O que mais deveriam abranger? Como isso deveria ser feito?

16) Voltando à história dos movimentos sociais de mulheres em BH, você acha
queeles tiveram importância na forma e no conteúdo das políticas de gênero no
município? Em que? Como foi essa história? Como foi a relação desses movimentos
com outros movimentos sociais?
165

17) Você acha que esses movimentos tiveram impacto tanto na noção quanto na
forma de se trabalhar a cidadania?

18) E as políticas de gênero, você acha que estão tendo impacto na noção e na
prática da cidadania?

19) Há espaço de discussão sobre a cidadania e gênero na esfera política (partidos,


Estado) e na sociedade civil? Quais são estes espaços?

20) Existe um processo de divulgação, informação e conscientização da sociedade


civil sobre a relação entre gênero e cidadania?

21) Quando o programa X foi criado houve uma consulta à sociedade civil? Como foi
feita? Ou por que não?

22) E agora, como as mulheres participam? Existe um processo de avaliação e


reconfiguração do serviço? As mulheres participam? Como?

23) Quais são as principais divergências entre o governo X e os movimentos de


mulheres atualmente? Quais são os principais pontos de convergência entre os
dois?

24) Desde que você assumiu o cargo X, você acha mais fácil ou mais difícil lidar com
as demandas dos movimentos sociais?
166

ANEXO 2
Roteiro para análise
Pré-análise:
• reconhecimento do tipo ou estilo do texto: documento público / entrevista /
registro de pesquisa etc.
• autoria: quem enuncia? Autoria institucional / informante / pesquisador etc.
• forma de divulgação : diário oficial / mídia / livro etc.
• receptor: a quem o texto se dirige?
• linguagem:
A escolha do material (documentos e corpus) devem buscar responder à
pergunta inicial da pesquisa.
Buscar no texto elementos que ajudem a compreender seu contexto sócio-
histórico, principalmente na análise de documentos de domínio público.
Caso o texto esteja contido em outro maior (artigo em jornal; capítulo em
livro), é necessário localizá-lo em termos de posição, tamanho e importância.
• Leitura flutuante: ler e reler o texto procurando apreender suas idéias centrais,
sua linha argumentativa e as categorias de análise pré-estabelecidas, bem
como ficar atento a emergência de novas categorias.
• Levantamento das principais categorias e subcategorias de análise. Na
análise do discurso, elementos como ironia, silêncios, repetições etc. também
farão parte análise.
Análise:
• análise vertical: cada caso.
• análise comparativa ou horizontal: comparação intragrupos (sendo que nem
todas as categorias estarão presentes em todo o material).
• análise transversal: comparação intergrupos ou com uma norma social.
• Conclusões a partir das questões e objetivos básicos da pesquisa e outros
levantados no decorrer desta.

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