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Niterói
2017
ROBERTA OLIVATO CANHEO
BANCA EXAMINADORA
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Prof. Dr. Daniel Veloso Hirata (orientador) – PPGSD/UFF
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Prof. Dr. Eder Fernandes Monica (coorientador) – PPGSD/UFF
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Prof. Dr. Antonio Rafael Barbosa – PPGA/UFF
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Profa. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna –PPGAS/UFRJ
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Profa. Dra. Natália Corazza Padovani –PAGU/UNICAMP
The present research focuses on analyzing how institutional actors articulate, manage,
take into account or not the requisitions of access to rights of LGBT prisoners in Rio de
Janeiro. In this context, it sought to investigate how these actors produce, juridically and
normatively scrutinize this LGBT population in a cis/heteronormative platform of
rights. For this purpose, interviews were conducted with institutional actors involved in
the formulation of resolutions aimed at the "reception" of LGBT people imprisoned in
Rio de Janeiro, and later interviews with transvestites and transsexuals located in a
prison in the north area of the capital of Rio de Janeiro - from the collaboration in a
research carried out by a public defender in this prision. It is also the objective of this
study to investigate which State processes have led to the constitution of LGBT persons
deprived of freedom as new political subjects of rights in the present time; which are the
governmentality techniques - built by multiple bundles of agencies, agents, and
documents - present in those processes. And how, through these, a certain woman
category is maintained and strengthened.
Key words: LGBT people. Prision. Gender. Woman category. Institutional actors.
Lista de Siglas
Mulher.............................................................................................................................1
Introdução.......................................................................................................................2
Referências bibliográficas......................................................................................128
Anexos......................................................................................................................135
Mulher
Mc Linn da Quebrada
1
Introdução
Foi com este relato que a ativista travestigenere2 Indianara Siqueira encerrou sua
fala, aplaudida de pé, proferida em uma das mesas do II Seminário Desfazendo Gênero,
ocorrido em Salvador, entre 04 e 07 de setembro de 2015, na Universidade Federal da
Bahia. E foi também este relato o responsável pelo impulso inicial do que viria a ser
1
Os termos nativos e em outro idioma estarão escritos no trabalho em itálico, ao passo que as citações
diretas virão entre aspas.
2
Identidade autoatribuída pela ativista, que correlata as identidades “travesti” e “transgênero”.
2
minha pesquisa. Foi através dele que comecei a me indagar sobre como os agentes da
segurança pública e outros atores institucionais articulavam, manejavam, levavam em
consideração ou não as requisições de acesso a direitos de presos e presas LGBT no Rio
de Janeiro. E como esses atores esquadrinhavam jurídica e normativamente essa
população LGBT numa plataforma de direitos cis/heteronormativa.
Pensando também acerca da complexidade das relações sociais construídas na
prisão quando do ingresso da população LGBT3- e em especial da população transexual
e travesti- visando enfatizar, ademais, suas construções de gênero e autodeterminação,
alguns outros questionamentos foram levantados: como era feita internamente a
organização das travestis e transexuais privadas de liberdade no Rio de Janeiro? Como
suas demandas sociais e requisições por acesso a direitos eram recebidas? Como os
agentes penitenciários percebiam a identidade de gênero no contexto das prisões,
masculina e feminina? Existiam normativas reconhecendo a possibilidade de
autodeterminação de identidade de gênero no momento do ingresso das travestis e
transexuais no Sistema Penitenciário, na cidade do Rio de Janeiro?
Contudo, em que pese meu impulso inicial tenha sido movido em grande medida
pelo interesse nas vivências experimentadas por mulheres transexuais e travestis
privadas de liberdade no Rio de Janeiro, a pesquisa que se materializa nesta dissertação
não parte de uma etnografia de um espaço prisional específico, nem das vidas
aprisionadas neste espaço. Explicando melhor, este trabalho não trata das trajetórias de
vida de travestis e transexuais na prisão, de suas contendas, de seus afetos e
3
Importante esclarecer que há um debate acerca do uso da sigla LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais), que se coloca, por exemplo, no caso do uso da sigla LGBTTI, incluindo as
pessoas intersexuais, ou ainda no caso da sigla LGBTQI, englobando a perspectiva dos estudos Queer,
que cf. Miskolci (2009), originam-se a partir dos Estudos Culturais norte-americanos no fim da década de
80, objetivando tecer críticas aos estudos sociológicos então vigentes sobre minorias sexuais e à política
identitária dos movimentos sociais. Laís Godoi Lopes (2014), por sua vez, utiliza-se do sinal gráfico do
infinito, [∞], com o fim de evidenciar a irredutibilidade do queer a identidades definitivas. Para a autora,
“além de abranger todo um plexo de práticas e corpos recombináveis entre si, o queer também se abre à
potencialidade política de novas designações, capazes de romper com a ordem normativa entre sexo,
gênero e orientação sexual. Mais além, o cenário contemporâneo marcado por fluxos transnacionais,
tecnologias de comunicação e informação, bem como pluralização das identificações de pertencimento
político, torna a composição do fenômeno queer permeável ao entrecruzamento de múltiplos idiomas e às
resignificações de fronteiras” (p. 48). Dito isso, não se pretende aqui, assim, apontar qual seria a melhor
sigla, defender sua inexistência, ou excluir da apreciação identidades que não se sintam contempladas
pela abreviatura. A opção aqui de se adotar a sigla LGBT se justifica apenas pelo fato de ser a sigla
empregada nas resoluções, leis e demais normativas que analisaremos no decorrer do trabalho, além de
denotar a construção discursiva de uma categoria de sujeitos específicos, que também constitui o plano de
sua legitimação política.
3
relacionamentos, das torturas vivenciadas; ainda que estas questões apareçam por vezes,
tangenciando o objeto de pesquisa4. Como o título sugere, a elaboração de meu campo
etnográfico deu-se a partir das narrativas de atores institucionais, o que me permitiu
refletir sobre os efeitos perversos da categoria mulher nos processos de fazer estado,
que produzem e reificam a prisão na dobradura da produção de uma população
vulnerável como novos sujeitos políticos de direitos (pessoas LGBT presas). E nesse
sentido, meus interlocutores privilegiados, entrevistados entre outubro de 2015 e
outubro de 2016, a partir de entrevistas semiestruturadas, foram: as defensoras públicas
Livia e Letícia; Claudio Nascimento, então coordenador do Rio sem homofobia;
Marjorie Marchi, então assessora da Superintendência de direitos individuais, coletivos
e difusos da Secretaria estadual de Assistência Social e Direitos Humanos; e Adriana
Martins, assessora da Secretaria de Administração Penitenciária.
A partir deste novo desenho, o núcleo de defesa dos direitos homoafetivos e
diversidade sexual da Defensoria Pública (NUDIVERSIS), o programa Rio sem
Homofobia (RSH), a Secretaria de administração penitenciária (SEAP), a Secretaria
estadual de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) compuseram a malha de
instituições do que, durante a pesquisa, convencionou-se chamar de Estado. Instituições,
portanto, que, através de uma política de governança, produzem aquilo que se entende
por Estado e concomitantemente a população LGBT enquanto sujeitos de direitos
(FREIRE, 2015a, p. 16). É, dessa forma, sobre a produção de políticas públicas
específicas para a população LGBT em cárcere, na qual estão esses atores institucionais
enredados, que se debruça essa dissertação.
Este movimento de construção de políticas públicas, representada pela edição de
resoluções no Rio de Janeiro (n° 558 da SEAP e n° 34 da SEAP e da SEASDH), vem
em realidade na esteira de um crescente movimento nacional no sentido de estabelecer
parâmetros de acolhimento para pessoas LGBT privadas de liberdade. É o caso do
estado de São Paulo, em que a Resolução SAP-11, de 30 de janeiro de 2014 (de
iniciativa da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo) rege a temática, e
dispõe sobre a atenção às travestis e transexuais no âmbito do sistema penitenciário,
asseverando por exemplo em seu artigo 3º que: “As pessoas que passaram por
4
Para um estudo aprofundado que privilegie as trajetórias e tenha como principais interlocutoras pessoas
representantes da população LGBT encarcerada, ver Boldrin (2014;2017), Sander (2016), Zamboni
(2017), Ferreira (2014) e Passos (2014).
4
procedimento cirúrgico de transgenitalização poderão ser incluídas em Unidades
Prisionais do sexo correspondente”. Ou ainda a Resolução Conjunta do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária e do Conselho Nacional de Combate à
Discriminação CNPCP/CNCD/LGBT n° 01 de 2014, que estabeleceu os parâmetros de
acolhimento de LGBT em privação de liberdade no Brasil. Determina, a título de
exemplo, em seu artigo 3° que: “Às travestis e aos gays privados de liberdade em
unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial
vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos”; e em seu
artigo 4° que: “As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas
para as unidades prisionais femininas”.
A adoção de alas ou galerias específicas para LGBT, por seu turno, ainda que
por vezes ausentes resoluções ou normativas as estabelecendo, compreende medida
adotada por presídios em alguns estados brasileiros, como é o caso do Presídio Central
de Porto Alegre5, no Rio Grande do Sul, alguns presídios de Minas Gerais, de Mato
Grosso e da Paraíba. Sua implementação, geralmente acompanhada de grande atenção
midiática- de grandes cenas de Estado- é considerada uma boa prática institucional, já
que tornam-se seguros, ou seja, espaços considerados de menor perigo, especialmente
para mulheres transexuais e travestis. Uma ala específica, ou a histórica reunião de
acusados/condenados por crimes sexuais e mulheres transexuais/travestis nos mesmos
pavilhões dos presídios, como bem trabalha Ferreira (2014) em sua dissertação sobre o
Presídio Central de Porto Alegre, passa a ser produzida pela narrativa de um território
seguro, da segurança, pela narrativa chave dos direitos humanos, um espaço que é o
seguro do seguro.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Passos (2014), disserta também acerca da
construção da ala LGBT neste mesmo presídio, mostrando como a materialização da ala
se deu através da produção discursiva de um sujeito situado e legítimo, invariavelmente
oprimido e vitimizado, sem plena autonomia, cuja vida está em permanente risco e cuja
preservação da integridade física não depende só de si. Nesse sentido, chama atenção
para a conjugação fundamental entre aquilo que é enunciável sobre “direitos humanos”,
“políticas públicas para grupos consideráveis vulneráveis”, “funcionalidade do sistema
carcerário” e “espaço social” no processo de construção histórica de demanda pela
5
Para uma análise aprofundada acerca da construção da ala LGBT neste presídio ver Ferreira (2014) e
Passos (2014).
5
“Ala” (PASSOS, 2014, p. 35-36). Esse seguro, todavia, dentro de presídios muitas
vezes também nominados seguros, é também um seguro de contenda com os corpos
trans, corpos entendidos voluptuosos e exagerados, corpos que como expressa a fala
introdutória de Indianara, são a corporificação da vulnerabilidade e do risco em si.
Como aponta o levantamento feito por Lago e Zamboni (2016), os trabalhos
acadêmicos sobre prisão e sexualidade das últimas décadas mostram um deslocamento
da gestão da sexualidade de pessoas presas, acompanhado da formulação de políticas
públicas específicas6. Por exemplo, nas décadas de 1970 e 1980, a adoção da visita
íntima na Lei de Execução Penal em 1984 é impulsionada pela tentativa de se prevenir
práticas homossexuais/homoeróticas nas prisões. Nas décadas de 80 e 90, a gestão da
sexualidade gira em torno de questões sanitárias, especialmente em decorrência da
disseminação de HIV, sendo que já à época a população LGBT possuía centralidade
nessa gestão, vez que encarada como um grupo de risco. A partir principalmente da
década de 2010, entretanto, esse mesmo grupo passa a ser constituído como sujeitos
políticos de direitos, e ao mesmo tempo como um grupo em risco, constituição sobre a
qual nos debruçaremos ao longo deste trabalho.
Assim, nos últimos anos, observa-se uma maior visibilidade na esfera pública de
populações específicas em privação de liberdade, a exemplo das mulheres, cujo
crescimento do número de aprisionamentos foi vertiginoso nas últimas décadas, e de
pessoas LGBT, sendo também crescente o engajamento por parte de movimentos
sociais em torno de suas demandas. Além de uma maior atenção por parte dos
movimentos feministas e LGBT aos contextos de privação de liberdade, tem-se uma
maior incorporação pelos movimentos de defesa dos direitos humanos -
consagradamente implicados na defesa de direitos das pessoas privadas de liberdade -
de questões de gênero e sexualidade, em especial aquelas relativas a violências em suas
múltiplas formas, físicas, sexuais, psicológicas, etc. (LAGO; ZAMBONI, 2016, p. 3).
Diante dessa conjuntura, nos interessa especialmente investigar neste trabalho
quais os processos de Estado que levaram à constituição de pessoas LGBT privadas de
liberdade como novos sujeitos políticos de direitos na atualidade; quais as técnicas de
governamentalidade- construídas por feixes múltiplos de agências, agentes,
6
Importante frisar que a gestão da sexualidade de pessoas presas não se refere apenas aos sujeitos
desviantes da heteronormatividade/cisnormatividade. Ela é também central na produção de um ideal de
masculinidade que rege as relações entre todos os presos.
6
documentos- presentes nesses processos. E como, através destes, uma determinada
categoria mulher é mantida e reforçada.
***
7
Na terceira e última parte, boa parte do texto é dedicada às percepções advindas
de minhas idas ao presídio Evaristo de Moraes, localizado em um bairro da zona leste
do Rio de Janeiro, na condição de assistente e estagiária da Defensoria Pública do Rio
de Janeiro, e às entrevistas realizadas com a população trans naquele local. O presídio e
as interlocutoras privadas de liberdade se fazem portanto mais presentes nessa parte, o
que não implica o abandono da análise dos processos de Estado e da atuação de atores
institucionais como o objeto primordial da pesquisa. Pelo contrário, o empreendimento
de se produzir através de pesquisas, institucionais ou acadêmicas, um perfil da
população presa, a sala destinada às entrevistas, as condições estruturais do presídio, a
superlotação, enfim, todas essas questões são encaradas e analisadas nessa pesquisa
como processos de Estado. Todas fazem emergir a contradição fundamental entre um
Estado que tem grandes políticas públicas, atreladas aos preceitos fundamentais dos
direitos humanos, mas que simultaneamente produz um lugar efetivo de abjeção a esses
corpos fora da norma, a esses corpos locus último de materialização das tensões
constitutivas de um Estado generificado.
8
Parte 1- Apresentação geral da pesquisa
8
Cabe pontuar que o direito à visita íntima feminina já havia sido garantido legalmente com imenso
atraso em relação à masculina. Ainda que a LEP (Lei de Execuções Penais) não faça distinção entre os
gêneros dos presos, foi apenas em 1999, a partir de uma resolução do Ministério da Justiça, que o acesso
a esse direito passa a ser regulamentado e concedido às mulheres. A decisão do STF de 2011, por sua vez,
faz eclodir inúmeros pedidos de reconhecimento de uniões civis entre mulheres presas, a fim de que
tivessem o direito de receber visitas íntimas de suas companheiras.
10
registro, falamos de relações travadas entre agentes estatais, atores institucionais e essa
população; entre essa população e as demais pessoas presas; entre mim (enquanto
pesquisadora, mas mais do que isso, enquanto corporificação da Defensoria Pública)9 e
essa população; também entre mim e aqueles agentes estatais e atores institucionais. E
por fim, falamos das relações materializadas por todo um conjunto de documentos,
registros, e quaisquer outros artefatos burocráticos também produtores dessas
categorizações, e também possuidores de agência.
Dessa forma, tomamos como base epistemológica, primeiramente, um
feminismo que conteste as bases estruturantes de políticas de identidade centradas na
manutenção da categoria mulheres enquanto seres universais. E que ofereça, de outro
norte, possibilidades de agência aos sujeitos, cujos processos de constituição não os
encerra simplesmente na condição de sujeição a um poder soberano. Para tanto, a
perspectiva que mais se aproxima desse meu intento é a vertente feminista
interseccional qualificada por Prins (2006) de construcionista. Nessa linha de
abordagem, como explica a autora, marcadores sociais, tais como gênero, raça e classe
não se colocam somente como categorizações exclusivamente limitantes; mas oferecem,
concomitantemente, mecanismos que tornam possível o agir. Tais marcadores não
existem em isolamento uns dos outros, mas a articulação entre eles é propriamente
constitutiva de tais categorias, bem como da relação entre elas.
Seguindo essa abordagem analítica, destaca-se Avtar Brah (2006), para quem a
constituição e representação do gênero se dá de maneira diversa em decorrência de
determinada localização dentro de relações globais de poder. A inserção nessas relações
de poder é realizada por meio de uma série de processos, ideológicos, políticos e
econômicos. Nossa existência nessas estruturas sociais, por sua vez, não é apenas
enquanto mulheres, mas sim como “mulheres da classe trabalhadora”, “mulheres
camponesas” ou “mulheres imigrantes”, ou seja, dentro de categorias diferenciadas, que
contêm descrições referentes a condições sociais específicas (BRAH, 2006, p. 341). A
autora propõe uma análise macro, que considere simultaneamente subjetividade e
9
A corporificação da Defensoria Pública a que me refiro diz respeito ao modo como eu era enxergada
pela população trans privada de liberdade no Presídio Evaristo de Moraes. Na condição de assistente e
estagiária dessa entidade, vez que colaboradora de uma pesquisa realizada por uma defensora pública, eu
era percebida, e inclusive agenciada pelas interlocutoras presas como um agente estatal, capaz de
interceder em um processo, por um benefício, etc. Essa questão será melhor abordada no tópico 1.4
(percursos de pesquisa), e especialmente na parte 3 deste trabalho.
11
identidade na compreensão das dinâmicas de poder. A agência (agency) dos sujeitos-
“capacidade de agir, mediada cultural e socialmente” - é trabalhada por Brah (2006) em
termos de articulação e políticas, não se colocando as categorizações da diferença
apenas num locus de limitação, mas como também fornecedoras de recursos que
viabilizam a ação (PISCITELLI, 2008, p. 267-268).
De forma análoga, ao discorrer sobre migrantes brasileiras em terras
estrangeiras, Pisctelli (2008, p. 171) pensa a relação dessas com a articulação de
diferenças que as sexualizam e racializam como uma relação não estável, em que
movimentos de resistência e rejeição - analisados situacionalmente- se fazem presentes.
Não se trata de romantizar a agência desses sujeitos, mas sim compreender como eles a
articulam diante de situações de tensionamentos e de posições assimétricas de poder,
materializadas em seus corpos. No trabalho de Piscitelli (2008), atributos como “boas
mães”, “afetivas”, “carinhosas”, que poderiam ser reconhecidos como de subalternidade
(de raça, de gênero e de sexo) são mobilizados e ressignificados pelas brasileiras
migrantes, em termos de tornarem-se um importante capital que as reposiciona em seus
relacionamentos com homens estrangeiros.
Anne McClintock (1995) também nos fornece importantes subsídios para se
pensar a articulação de categorias da diferença por meio dessa perspectiva. Dissertando
sobre o embate colonial à época de constituição do império britânico, a autora utiliza-se
da articulação de categorias analíticas, como gênero, classe e raça para chegar aos
meandros de suas relações contraditórias, recíprocas e íntimas. McClintock compartilha
do esforço das duas autoras acima citadas de observar a operação dessas classificações
em contextos de poder de modo situado, e não universal. Ao inferirmos, nesse contexto,
que o cárcere é constituído por desigualdades em articulação, nos termos colocados por
McClintock, a proposta seria não encará-lo como um local ausente de negociações e
resistências, mas talvez sim como um local de negociações de poder em circunstâncias
de grandes limitações (MCCLINTOCK, 1995, p. 140). Portanto, tal como Brah,
McKlintock pensa as categorias articuladas considerando as políticas de agência
diversas, “que envolvem coerção, negociação, cumplicidade, recusa, mimesis,
compromisso e revolta” (PISCITELLI, 2008, p. 268).
A essa vertente denominada construcionista, Prins contrapõe outra que qualifica
como sistêmica. Nesta, a perspectiva adotada é a da adição de opressões, em que classe,
12
gênero e raça são conceituados como sistemas de dominação, determinantes para a
estruturação e reificação das identidades, e em que as tentativas de resistência são ou
impedidas ou muito debilitadas (PRINS, 2006, p. 279-280)10. Uma vertente, portanto
pouco afeita ao reconhecimento das práticas subversivas das assimetrias através das
vivências das relações sociais. Nesse contexto, Prins (2006, p. 280-282) explicita o
tratamento seletivo dispendido pela vertente interseccional sistêmica à análise
foucaultiana de poder, vez que este é entendido em termos de propriedade de uns contra
outros, ao invés de ter destacado seu caráter relacional. Dá-se ênfase apenas aos seus
efeitos repressivos, e negligencia-se seus efeitos produtivos na formação de
subjetividades.
A emergência do pensamento de autoras que trabalham em ambas perspectivas
(interseccional sistêmica e interseccional construcionista) remonta a deslocamentos
teóricos importantes. Um deles se dá a partir do questionamento de pressupostos
imbricados nas primeiras formulações de gênero, pautadas pela distinção sexo/gênero, e
pode ser localizado ao final da década de 1980. Durante a segunda metade da década de
1970, no bojo do movimento conhecido por “segunda onda” difundiu-se o conceito de
gênero como “construção cultural e arbitrária, variável, de aspectos vinculados ao sexo
biológico, tido como natural e imutável. Esse conceito, pensado no marco da distinção
entre sexo e gênero, era considerado como um avanço em relação à categoria mulher”
(PISCITELLI, 2008, p. 264). As críticas a essa concepção voltaram-se à universalização
e fixidez presentes na dicotomia sexo/gênero, e ao conceito de Patriarcado pensado a
partir de uma dominação masculina considerada também a partir de preceitos
universais. Este período centrou-se em torno da disputa entre “determinismos
biológicos” e o “construcionismo social”11. E ainda que as feministas representantes
dessa “onda” tenham se empenhado na crítica à lógica binária do par natureza/cultura,
esses esforços não ampliaram suficientemente a crítica à distinção derivada
sexo/gênero. Embora útil no combate aos determinismos biológicos baseados em
10
Prins (2006) aponta como uma das mais relevantes representantes dessa posição a jurista Kimberlé
Crenshaw, que foi a responsável por cunhar o termo interseccionalidade. Para Prins, ainda que Crenshaw
defina as interseccionalidades como maneiras de capturar consequências- estruturais e dinâmicas- da
interação entre duas ou mais formas de subordinação, afastando-se assim da ideia de uma superposição de
opressões, e aproximando-se da ideia de articulações entre elas, sua análise visa predominantemente
revelar o poder unilateral das representações sociais, as más consequências materiais e simbólicas para os
grupos cujas vidas são situadas na encruzilhada de diferentes identidades (PRINS, 2006, p. 278-282).
11
Importante ressaltar que o “construcionismo social” não se confunde com a perspectiva interseccional
construcionista da qual fala Prins (2006).
13
“diferenças sexuais” usualmente levantados contra elas em suas lutas políticas, a
distinção não era capaz de historicizar as categorias “passivas” de sexo e natureza.
Dessa forma, “as formulações de uma identidade essencial como homem ou como
mulher permaneceram analiticamente intocadas e politicamente perigosas”
(HARAWAY, 2004).
Dentre as teóricas críticas aos pressupostos presentes na distinção derivada
sexo/gênero, estão Butler (2016), Harding (1993) e Scott (1995). Scott formula o
“gênero” enquanto uma categoria relacional e como campo fundamental para
articulação de poder, questionando a concepção do sistema sexo-gênero que toma por
base a categoria de sexo como fixa, natural, binária e hierárquica, centrada unicamente
na diferença física, por pressupor uma coerência inerente ao corpo humano e não
afetável por uma construção sócio cultural. Uma construção de gênero, portanto, que
não considera sua historicidade e que não investe na “desconstrução autêntica dos
termos da diferença sexual” (SCOTT, 1995, p. 18)12. Já as duas outras autoras afirmam
a desestabilização de categorias em princípio entendidas sólidas e universais, como
“mulher” e “identidade”. Butler (2016) descortina a ordem que prevê a plena coerência
entre sexo, gênero, prática sexual e desejo no seio da sociedade heteronormativa,
projeção do que a autora chama “matriz de inteligibilidade”13. Além disso, traz o corpo
e o sexo para o campo discursivo, provocando sua suposta materialidade pré-discursiva,
do que decorre que só há corpos, desejos e significados a partir dos discursos que
ativamente os constroem. Harding (1993), por sua vez, rejeita uma análise feminista que
tome como sujeito ou como objeto uma mulher universal e essencial. Esta análise,
segundo a autora, invariavelmente parte da perspectiva social “de mulheres brancas,
ocidentais, burguesas e heterossexuais”, excluindo-se da apreciação as experiências de
qualquer outro tipo de mulher.
Não obstante, cabe destacar que a origem dos estudos sobre
“interseccionalidade” remete a um período ainda anterior, ao final dos anos 70, com o
12
Segundo Piscitelli, à diferença de Scott, que trabalha o gênero como categoria analítica, Avtar Brah
privilegia a “diferença”, de maneira a analisar “como as formas específicas de discursos sobre a diferença
se constituem, são contestados, reproduzidos e (re)significados, pensando na diferença como experiência,
como relação social, como subjetividade e como identidade” (PISCITELLI, 2008, p. 269).
13
Em “Quadros de Guerra”, a autora define inteligibilidade “ como o esquema (ou esquemas) histórico
geral que estabelece os domínios do cognoscível. (...)uma vida tem que ser inteligível como uma vida,
tem de se conformar a certas concepções do que é a vida, a fim de se tornar reconhecível”. (BUTLER,
2015, p. 21)
14
movimento denominado “Black Feminism”, cuja crítica se dirigia ao feminismo branco,
burguês, heteronormativo (HIRATA, 2014). Segundo Patrícia Hill Collins, a natureza
de interligadas opressões e o compromisso ideológico de considerá-las já permeava há
tempos o pensamento feminista negro (desde os movimentos de resistência à
escravatura em realidade), sendo que a ausência de mulheres negras em movimentos
feministas foi e é equivocadamente atribuída à falta de consciência feminista por parte
delas. Collins destaca o papel dessas feministas no deslocamento do foco da abordagem
teórica, que se anteriormente buscava explicar os elementos de raça, gênero ou opressão
de classe, passa a se concentrar em quais são os elos entre esses sistemas. Assim,
enquanto uma primeira abordagem prioriza um tipo de opressão como sendo primária,
englobando as opressões restantes como variáveis e partes da estrutura (como é o caso
dos esforços em se inserir raça e gênero às análises marxistas), a segunda abordagem-
implícita no pensamento feminista negro, e que a autora nomina de mais “holística” -
considera a interação entre múltiplos sistemas. Portanto, ao invés de acrescentar
variáveis anteriormente excluídas às teorias existentes, feministas negras primaram pelo
desenvolvimento de interpretações teóricas da própria interação em si (COLLINS, 1986,
p. 519-520).
Uma das autoras destacadas por Collins como representante desse movimento, e
que demonstra as articulações entre diferentes marcadores sociais, é Angela Davis. Em
“Mulher, raça e classe”, Davis (2016) apresenta de que maneira estruturas racistas,
sexistas e classistas se articulam na produção de opressões, sem que necessariamente se
sobreponham umas às outras, mas sim as nuances de seu entrelaçamento. Um dos
pontos fundamentais da obra diz respeito à crítica dirigida aos movimentos feministas
sufragistas comandados por mulheres brancas, que não consideravam a realidade e as
diferentes demandas de mulheres negras, além de atribuírem maior importância ao seu
direito ao voto do que essa concessão a homens negros, hierarquizando as opressões de
modo a dar ênfase ao sexismo em detrimento do racismo. Ainda no tocante às diferentes
realidades, as feministas brancas investiam- e ainda investem- na desconstrução daquilo
atribuído ao feminino, buscando um rompimento com o estereótipo da mulher dócil,
submissa e doméstica. Ao passo que as mulheres negras, durante e após a escravidão,
vivenciavam a submissão da exploração e a desumanização, sendo neste sentido, tão
15
exploradas quanto os homens negros. No caso, a única diferença em relação a eles era a
imposição à violência sexual, perpetrada majoritariamente por homens brancos.
Em maio de 2013, Davis foi convidada para palestrar na Universidade de
Chicago sobre “abolicionismo prisional e feminismo, teorias e práticas para o século
XXI”. Seguindo a linha dos argumentos apresentados em “Mulher, raça e classe”, Davis
discorreu sobre os inúmeros embates travados ao longo do século XX em torno da
definição da categoria mulher, quem seriam as incluídas e quem seriam excluídas dessa
categoria. Muitas mulheres negras, latinas e pobres se sentiram excluídas desse campo
discursivo, e muitas contestações dessa categoria acabaram por criar uma teoria e
prática feminista e de cor radicais. Na época, tanto a universalidade da categoria
mulheres era debatida como a categoria humano, especialmente em relação ao
subjacente individualismo do discurso dos direitos humanos. Davis traça um paralelo
desse momento histórico, de luta principalmente das mulheres negras- em que ainda não
se havia percebido pela necessidade de se reescrever a categoria mulheres ao invés de
incorporar outras mulheres a essa já dada categoria-, com a luta atual de mulheres trans,
sendo que o processo de tentar se assimilar a uma categoria existente vai muitas vezes
na contramão de se produzir algo radical e revolucionário. Assim, a própria categoria
mulheres, segundo a autora, deve se alterar de forma a não refletir, simplesmente, ideias
normativas sobre quem conta como mulher. Para Davis, ademais, olhar para as
mulheres trans encarceradas- ainda que representem um montante pequeno diante do
universo prisional- pode dizer muito mais sobre o sistema como inteiro- e os aparatos
punitivos- do que se olharmos exclusivamente para os homens presos. Em um sentido
amplificado, olhar para as políticas produzidas para sujeitos marcados em termos de
gênero e sexualidade, como as mulheres e presos LGBT, nos ajuda a desvelar o padrão
heteronormativo estruturante dos sistemas punitivos. A autora pensa a abolição das
prisões, neste sentido, juntamente à abolição do binarismo de gênero, e dentro de um
contexto antirracista. O feminismo, defende, deve ser construído a partir de uma
estrutura abolicionista, e o abolicionismo a partir de uma estrutura feminista14.
A prisão, neste caso, e as políticas carcerárias em um sentido amplo, está atrelada à
categoria mulher de que falavam os feminismos essencialistas da “segunda onda”,
contra os quais se voltaram as feministas negras, interseccionais, e do terceiro mundo. É
14
A palestra encontra-se disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=IKb99K3AEaA>. Último
acesso em fev. 2017
16
por esse motivo que Davis fala na citada palestra em uma prisão generificada, produzida
por gênero, construção argumentativa também presente na obra “Are prisions
obsolete?”:
Certamente, as práticas da prisão feminina são generificadas, mas
também o são as práticas de prisão masculina. Assumir que as
instituições masculinas constituem a norma e as instituições femininas
são marginais é, em certo sentido, participar da própria normalização
das prisões que uma abordagem abolicionista busca contestar. Assim,
o título deste capítulo não é "Mulheres e o Sistema Prisional", mas sim
"Como o gênero estrutura o sistema prisional". Além disso, estudiosos
e ativistas que estão envolvidos em projetos feministas não devem
considerar a estrutura da punição estatal como marginal ao seu
trabalho. A pesquisa prospectiva e as estratégias de organização
devem reconhecer que o caráter de punição profundamente
generificado reflete e fortalece ainda mais a estrutura generificada da
sociedade em geral (DAVIS, 2003, p. 61, tradução nossa)15
15
No original: Certainly women's prison practices are gendered, but so, too, are men's prison practices.
To assume that men's institutions constitute the norm and women's institutions are marginal is, in a sense,
to participate in the very normalization of prisons that an abolitionist approach seeks to contest. Thus, the
title of this chapter is not "Women and the Prison System, " but rather "How Gender Structures the Prison
System." Moreover, scholars and activists who are involved in feminist projects should not consider the
structure of state punishment as marginal to their work. Forwardlooking research and organizing
strategies should recognize that the deeply gendered character of punishment both reflects and further
entrenches the gendered structure of the larger society (DAVIS, 2003, p. 6).
16
Agradeço à Natália Padovani por ter me alertado sobre a perversidade deste “nó” na ocasião da defesa
de minha qualificação de mestrado.
17
apostam também na cisgeneridade17 como ideal regulatório que descortina as diferentes
formas de discursos acerca da tríade sexo-gênero-desejo na sociedade, que acabam por
corroborar nos processos de criminalização e patologização das experiências que
divergem dos ideais normativos (ROVARIS, 2016). Durante as duas últimas décadas, o
transfeminismo vem se desenvolvendo nos campos políticos de disputa, inclusive nos
espaços virtuais da internet. Em 2001, o texto “Manifesto Transfeminista” escrito por
Emy Koyama passa a ser representativo da luta política de pessoas trans: retomando
algumas das críticas desenhadas por feministas negras em relação ao próprio
movimento feminista enquanto excludente, a autora aborda a questão da
autodeterminação de gênero, além de outras como o privilégio masculino, e a
necessidade de uma junção entre as políticas feministas de modo a possibilitar que
mulheres de diferentes origens lutem por todas (KOYAMA, 2001).
Ainda que não se pretenda aqui esgotar as abordagens dessas vertentes teóricas,
considera-se profícuo utilizá-las enquanto ferramentas analíticas capazes de interpelar
as categorias identitárias estabelecidas pelos diversos discursos que as fixam. Em
consonância com as apostas epistemológicas e os aportes teóricos utilizados na
pesquisa, pretendemos considerar a historicidade dessas categorias, rejeitando a ideia
subjacente de natureza. E fazer dos resultados obtidos análises fluidas, afastando-nos da
pretensão de fixar as experiências da população LGBT presa como unívocas- até porque
17
Trabalho aqui com o conceito de cisgeneridade em sua precariedade, tendo em vista sua recente
incorporação no Brasil (e sua ainda não sedimentação), muito em decorrência de reivindicações trazidas
pela militância trans. Cf. Rovaris (2016), é provável que um texto da ativista Hailey Kaas sobre
cisgeneridade para o blog brasileiro “Transfeminismo”, em 2011, tenha inaugurado a posição de se
utilizar a palavra com fins de desnaturalizar a condição cisgênera, “norma que até então nomeava o outro,
a transexualidade, sem haver seu contraponto” (p. 21). Assim, da mesma forma que a sexualidade
heterossexual é marcada após ser marcada a homossexual, inferindo-se que a identidade só se constrói
perante o outro, o processo de cissificação, ou de formatação do sujeito cisgênero, dá-se, portanto, após a
constituição do sujeito trans. Isso pois há uma produção discursiva na criação das identidades, sendo
todas as sexualidades implicadas. Toda identidade é relacional, produtiva a partir de um contexto,
possuindo as subjetividades aspecto inter-relacional, como concebeu Foucault, para quem só é possível o
outro a partir de um (dialética dos opostos), num sentido sempre referencial. Nesse contexto, para se
construir sujeitos normais, anormaliza-se os outros. A patologia, é neste sentido, então, um importante
formador da identidade trans. Leila Dumaresq (2015) chama atenção, ademais, para o fato de que “o
termo não é propriedade exclusiva de seus usuários acadêmicos uma vez que o sentido delimitado pelas
definições acadêmicas não é o único. É preciso tomar cuidado com palavras muito vívidas politicamente.
É necessário cuidar de conhecer os sentidos e usos do termo. Também é necessário sempre evidenciar o
recorte do conceito ao qual dirige-se a crítica. O preço de não reconhecer o recorte é muito alto: reduzir
vivências a conceitos, anulá-las discursivamente e silenciá-las politicamente”. Optamos aqui pelo uso e
afirmação do conceito, acreditando ser dever acadêmico o reconhecimento de pessoas trans como
produtoras de epistemologia, e não meramente objetos destas.
18
suas experiências não constituíram objeto primordial dessa dissertação -, ou ainda de
entender as articulações e movimentos institucionais e estatais como estanques.
A proposta epistemológica deste trabalho é, portanto, pensar as categorias
articuladas considerando as políticas de agência quando da análise das relações
constituídas entre o Sistema Penitenciário - e seus agentes - e a população LGBT a ele
submetida. O relato de Indianara, que inaugura este trabalho, é elucidativo para
visualizarmos de que maneira a agência pode ser manejada, e de que maneiras posições
de poder são também negociadas, ainda que se considere um contexto
predominantemente desigual e assimétrico. Indianara age de forma a reverter os sinais
que codificam os corpos; sabota-os ao se colocar contra si mesma e agenciar um jogo
estratégico: enquanto codificada como homem, não pode ser presa por mostrar os seios;
uma vez presa, teria seu reconhecimento enquanto mulher afirmado. De forma
semelhante, também vemos no caso de Indianara como as formas de categorização
podem limitar, mas também abrir possibilidades de agência. Indianara demonstra que,
através de categorias de diferenciação produzidas e produtoras de assimetrias e relações
de poder, as possibilidades de vida podem ser articuladas ou subvertidas; demonstra que
habita as categorias governamentais a ela atribuídas, e como se é capaz de agir sobre
essas categorias e a partir delas.
Dessa maneira, as teóricas feministas cujas perspectivas nos baseamos,
aproximam-se da análise crítica de Foucault dirigida à suposição de um sujeito
universal e autônomo, indo além, no que se refere à identificação desse sujeito a partir
de uma perspectiva eurocêntrica e androcêntrica. No trabalho de campo no espaço
prisional, afastamo-nos da interpretação do que para Goffman (1999) caracterizaria uma
instituição total, em que o poder se exerce de forma descendente e localizável, sendo
que os procedimentos institucionais afetariam todos os aspectos das vidas daquelas
pessoas privadas de liberdade. Além de tal interpretação se mostrar insuficiente
analiticamente, acaba por fomentar uma mistificação de que os espaços de
confinamento são alteridades absolutas, produzindo “histórica e politicamente a
diferença entre um ‘eu’ e um ‘outro’ e que, por isso mesmo, manifesta e ao mesmo
tempo assenta as bases para o exercício do poder” (GODOI, 2015, p. 40-41).
De maneira oposta, a prisão, a partir do prisma foucaultiano, estrutura um campo
em muito além de seus limites institucionais, evidenciando um dispositivo amplo e
19
multifacetado, “que articula agentes, agências, territórios, práticas e discursos”
(GODOI, 2015, p. 26), ao revés de um dispositivo estritamente repressivo, em que o
poder se externa em sua forma meramente negativa (FOUCAULT, 2004). O poder em
realidade produz também efeitos de produtividade e é capilar, o que nos mostra que
ainda que a disciplina não seja mais o fator estruturante da prisão, seus efeitos
permanecem em certo grau em pleno funcionamento - o que evidencia também a
necessidade de uma análise topológica do poder.
As análises de Foucault sobre o dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 2015),
além disso, implicam na consideração da construção social e discursiva dos corpos,
desejos e dos próprios sujeitos, fazendo ruir a noção de uma essência sexual autêntica.
Estão também estreitamente ligadas à análise feita pelo autor do desenvolvimento do
que ele designa como “sociedade disciplinar”, característica de formas modernas de
regulação social, sinalada pela vigilância e controle que ele descreve na obra “Vigiar
Punir” (2004). Para o autor, o poder, como já explicitado anteriormente, deve ser visto
não somente em sua forma negativa que atua baseada na proibição, mas em sua forma
positiva empenhada na administração e cultivo da vida, o que ele nomeia de “biopoder”.
E a sexualidade, sendo central para o desenvolvimento de qualquer tecnologia da vida, é
fundamental para o biopoder. É ela que oferece instrumentos de acesso à vida do corpo
e também à vida da espécie, ou seja, “oferece um meio de regulação tanto dos corpos
individuais quanto do comportamento da população (o ‘corpo político’) como um todo”
(WEEKS, 2000). Desse modo, investigar a produção de sujeitos políticos marcados em
termos de gênero e sexualidade, aglomerados e categorizados enquanto uma população
LGBT presa, é crucial para que se entenda também os dispositivos de privação de
liberdade em um sentido mais amplo.
É dever aqui informar, por fim, que a tarefa cuidadosa de se considerar os
diferentes marcadores sociais e suas dinâmicas dentro do Sistema Penitenciário tem
ganhado potência nos últimos anos. Trabalhos exemplares tem sido produzidos, como
os de Padovani (2015), Ferreira (2014), Negretti (2015), Lago (2014), Boldrin (2015;
2017), dentre muitos outros. Em todos, é possível captar relações de poder - sempre
assimétricas, negociáveis e situacionais (FOUCAULT, 2004), - e por outro lado, os
agenciamentos que atravessam a produção de subjetividades, acionados tanto em suas
negociações com as instâncias estatais e com as administrações dos estabelecimentos
20
prisionais, como em suas relações particulares e íntimas. Entendemos, no entanto, pela
escassez de pesquisas relativas ao Sistema Penitenciário que versem sobre políticas
públicas e programas governamentais, tal como apontado por Salla (2006). Que
impliquem na análise “[d]os fatores que interferem na sua formulação; como são
implementadas tais políticas pelos órgãos responsáveis e ainda quais os resultados ou o
impacto dessas políticas” (SALLA, 2006, p. 08). Trazendo à apreciação resoluções que
preveem a implementação de políticas públicas especificamente direcionadas a pessoas
LGBT, pessoas que passam a ser localizadas no centro da crise penitenciária, acredito
que a presente investigação possa também contribuir neste sentido apontado por Salla
(2006).
Para além disso, pensar sobre a construção dessas políticas nos desloca da visão
de que são geradas, financiadas e avaliadas dentro de territórios estritos demarcados por
fronteiras que estabelecem o que é o governo. Tais políticas governamentais são
construídas também por feixes múltiplos de agências e agentes, princípios e práticas que
trespassam essas fronteiras (SOUZA LIMA, CASTRO, p. 35-36). É o caso por exemplo
do envolvimento de movimentos sociais, LGBT, feministas, ou ainda de pesquisas
acadêmicas, que colaboram na formulação de planos de ação governamental.
19
O termo população seguido normalmente da sigla “LGBT” constante dos discursos institucionais, do
texto de normativas e resoluções jurídicas e presente também na fala de ativistas, estudiosos e outros
ligados à temática de gênero e sexualidade no Brasil será discutido mais à frente neste trabalho.
22
pesquisa de maneira estritamente linear e cronológica, optei por estrategicamente
combinar, contrapor e comparar esses diferentes discursos, narrativas e análises
documentais na construção deste trabalho, objetivando justamente visibilizar os
processos de disputas, tensionamentos, pontos de inflexão e emaranhamentos constantes
da temática proposta.
O presídio elegido para a realização de parte do trabalho de campo foi o Presídio
Evaristo de Moraes, localizado em um bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro.
Em que pese as dificuldades de acesso a esse espaço e o tempo reduzido para a
realização da pesquisa de campo, considero minha inserção neste local de extrema
importância, por me permitir adentrar a uma realidade com diferentes enunciados,
produção de corpos e performances- que deslocaram a visão de práticas coerentes e
identidades fixas para a fluidez e flexibilidade presentes nas vivências e nos seus
significados. Tal inserção me fez entender na prática como o gênero (assim como outros
marcadores identitários) é refratário a identificações definitivas. Fato é que, muito
embora eu tivesse um aporte teórico que sustentasse o sentido de desestabilização de
categorias identitárias, ainda carregava comigo a suposição de uma suposta coerência
esperada nas práticas dos sujeitos entrevistados. Por exemplo, tinha para mim que uma
pessoa que se auto identificasse enquanto travesti, que sentisse atração e se relacionasse
afetivamente apenas com homens, automaticamente não se auto identificaria enquanto
homossexual, convicção abalada após a realização da incursão ali. Através do trabalho
de campo no presídio, assim, pude articular melhor um diálogo entre as discussões
teóricas sobre gênero e sexualidade por mim estudadas com os enunciados e práticas
trazidos pelas interlocutoras privadas de liberdade, cujas vivências e identificações eram
também constantemente negociadas e mutáveis.
Todavia, para além disso, interessa-nos, diante do objeto primordial desse
trabalho, traçar considerações acerca da edificação de um perfil da população LGBT- e
especificamente da população trans presa- produzida pela pesquisa da defensora
pública, a qual eu estava auxiliando. Nesse sentido, a sala destinada a realização das
entrevistas se torna um campo etnográfico mais relevante que a própria geografia da
instituição prisional, um campo onde a categoria mulher era também produzida, através
de perguntas e formulários. À semelhança do relatado por Boldrin em sua pesquisa
(2017, p. 13), as mesas que separavam nossos corpos no momento das entrevistas, por
23
sua vez, demarcavam a distância representativa das posições situadas em dois lados
opostos; a existência das mesas dava materialidade ao fato de que nós (a defensora e eu)
habitávamos o exterior, e elas (a população trans) estavam presas.
Em relação ao trabalho documental, pode-se dizer por certo que no sistema
prisional confluem várias documentações, e nesse sentido, o “gerenciamento
populacional pela via meramente burocrática assume importância estratégica” (GODOI,
2015, p. 93) em muitas dimensões - se considerarmos, por exemplo, as cartas que
comunicam o dentro e o fora da prisão (PADOVANI, 2015), os andamentos
processuais, despachos, decisões judiciais, etc. Um processo penal, por exemplo, opera
segmentações, fixa condenações, lapsos a cumprir, diferenciações entre primários,
reincidentes, hediondos e comuns, concretizando o Estado e sua ação em face à
população carcerária para além das muralhas. O fluxo desses papéis, nesse sentido,
condiciona o fluxo dos corpos e assinala destinos (GODOI, 2015, P. 94).
Restringimo-nos aqui, contudo, a detalhar o exposto nas resoluções e demais
registros acerca da temática LGBT e da identidade de gênero, procurando, em
consonância às considerações de Lowenkron e Ferreira (2014, p. 84), enxergá-las como
dispositivos etnográficos, produtos burocráticos e técnicos cuja formulação, circulação e
implementação possuem importantes implicações; fazendo-se necessário portanto,
“seguir os papéis”. Procuro, assim, demonstrar de que maneira a produção e circulação
desses registros geram desdobramentos no mundo social, não só pelas “verdades” e
categorias identitárias por eles produzidas, bem como por funcionarem, no caso desta
pesquisa, como critérios de acesso a direitos às pessoas LGBT privadas de liberdade,
além de produzirem rearranjos entre as relações destas com atores institucionais.
“Funcionam, em suma, não como artefatos estéreis e autocontidos, e sim como objetos
materiais do direito, da administração e da governança capazes de produzir diferentes
efeitos e engendrar múltiplos afetos e relações” (FERREIRA, 2013, p. 42). Constitui
tarefa nossa, portanto, investigar quais são esses efeitos produzidos pelos documentos
objetos de estudo deste trabalho.
24
1.5. Percursos de pesquisa
20
A adoção do nome social, nome pelo qual pessoas transexuais e travestis se identificam e são
identificadas pela sociedade, como política pública foi fortalecida nos anos 2000. Em 2004, com o
lançamento do “Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra
GLTB e Promoção da Cidadania Homossexual”, o debate sobre ele se intensificou, sendo seu uso
recomendado a partir de então em inúmeros serviços públicos e instituições. A utilização do nome social
para pessoas trans constituiu uma inovação de iniciativa brasileira, tendo se tornado, segundo Berenice
Bento (2014), uma “gambiarra legal”. Isso porque, ainda que garanta um importante direito às pessoas
trans, não há qualquer segurança de que esse direito se manterá no decorrer do tempo e se prevalecerá em
outras esferas, vez que sua regulação depende das ações das instituições que o implementam. Assim, o
nome social é materializado por normas relativas ao “respeito à identidade de gênero em esferas micro:
nas repartições públicas, em algumas universidades, em bancos”. Nestes ambientes, em que há a previsão
de utilização do nome social, as pessoas trans terão a princípio sua identidade de gênero respeitada, o
mesmo não se podendo dizer dos ambientes em que está ausente. A inércia do Legislativo brasileiro pode
ser apontada como responsável por criar essa singularidade no Brasil (BENTO, 2014, p. 166). Tal
normatização do nome social, portanto, refere-se “ao nível capilar das relações sociais. E sua necessidade
foi orientada por uma sensibilidade muito singular: garantir que as normas gerais ganhem vida onde a
vida de fato acontece: nas microinterações cotidianas” (BENTO, 2014, p. 176). Nesse contexto, duas
distintas concepções de identidade de gênero atravessariam a vida de uma mesma pessoa, que circula
pelas instituições sociais: o reconhecimento e a autorização. Reconhecimento do direito à identidade de
gênero concedido pelo Estado no âmbito das instituições públicas, e negação ou precarização deste direito
por esse mesmo Estado, ao vincular a retificação de registro civil à um laudo psiquiátrico, por meio de um
processo judicializado. Assim, Bento chama atenção para o fato de a adoção da política do nome social
não estabelecer uma cidadania plena, mas sim uma cidadania precária, ou “pela metade”, quando em
25
íntimas de acordo com o gênero com o qual a pessoa se identifica, inclusive durante os
banhos de sol; a garantia de acesso aos serviços públicos de saúde, incluindo a
hormonoterapia; e a manutenção dos cabelos compridos para as travestis e mulheres
transexuais que assim desejassem. As normativas, diretrizes e propostas das resoluções,
que serão detalhadas posteriormente, foram encaminhadas através do programa Rio sem
Homofobia, criado pelo governo do Estado, coordenado pela Superintendência de
Direitos Individuais, Coletivos e Difusos (SUPERDIR) da Secretaria de Estado de
Assistência Social e Direitos Humanos, com centrais em algumas localidades do estado
do Rio de Janeiro.
Como já colocado, o primeiro grupo de interlocutores desta pesquisa foi
composto por atores institucionais responsáveis pela formulação de políticas públicas
destinadas à população LGBT privada de liberdade, a partir de entrevistas
semiestruturadas, transcritas, realizadas pelo método qualitativo. Ou seja, entrevistas
que não contavam com um roteiro fixo, mas sim com questionamentos norteadores, em
que se manteve certa liberdade para o desenvolver de outras questões que por ventura
surgissem.
Foram realizadas quatro entrevistas: (1) com a então Assessora Técnica da
Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos (SUPERDIR) da
Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) e presidenta
da Astra-Rio, a Associação de Travestis e Transexuais do Estado do Rio de Janeiro,
Majorie Marchi; (2) com a Defensora Pública responsável pela coordenação do
NUDIVERSIS - Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual,
Lívia Casseres; (3) com o então coordenador do programa Rio sem Homofobia, Claudio
Nascimento; e (4) com assessora da Secretaria de Estado de Administração
Penitenciária (SEAP), Adriana Martins.
Após a descoberta das resoluções que colocavam diretrizes ao tratamento
dispensado às pessoas LGBT privadas de liberdade no Rio de Janeiro, e localizados os
principais atores institucionais envolvidos em sua formulação, dirigi-me à central do
Rio sem Homofobia existente em Niterói, vez que o programa havia sido o responsável
pelo encaminhamento de tais normativas. Lá, solicitei informações acerca da efetividade
alguns casos, como é o caso de pedido judicial de retificação de registro, exige-se laudo médico, e em
outros casos, como na escola, trabalho, repartições públicas, universidades, garante-se o direito à
autodeterminação de gênero (BENTO, 2014, p.177).
26
das resoluções, se integrantes do programa acompanhavam os momentos de ingresso
das pessoas LGBT no Sistema Penitenciário. O único funcionário da recepção me
respondeu negativamente, e explicou que não tinham conhecimento das resoluções.
Aconselhou-me a procurar a Defensoria Pública, porque "essas coisas de presídio só
com eles mesmo".
Acatei então sua sugestão, e telefonei no mesmo dia ao Núcleo de Defesa da
Diversidade sexual e Direitos Homoafetivos- Nudiversis, marcando uma entrevista com
Livia, a defensora pública responsável pelo núcleo, na segunda semana de outubro de
2015. O encontro com Livia foi de fundamental importância para a continuidade das
entrevistas com os atores institucionais, vez que ela compunha o GT (Grupo de
Trabalho)21 estabelecido pela resolução n° 34, e pode me indicar os demais membros
deste GT. As demais entrevistas, que se sucederam nos meses posteriores, foram
pautadas por essas indicações, ainda que não tenha obtido resposta de todos os
integrantes contatados. Como explicitado no tópico anterior, a opção foi por não
detalhar as entrevistas individualmente e em ordem estritamente cronológica. O
caminho escolhido foi trazer partes das entrevistas ao longo do texto, de acordo com o
assunto abordado, combinando e contrapondo as falas desses atores institucionais com
as das interlocutoras presas e com os ditos pelos documentos.
Diante das dificuldades em conseguir uma inserção nas penitenciárias do Rio de
Janeiro, em especial no Presídio Evaristo de Moraes, busquei estar presente no maior
número de eventos possíveis que abordassem questões de gênero e sexualidade no
âmbito do Sistema Penitenciário. Em abril de 2016, a Comissão de Política Criminal e
Penitenciária da OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional do Rio de
Janeiro) realizou um evento que objetivava principalmente a apresentação do Relatório
21
Tanto Livia como Majorie me confirmaram que a primeira reunião com o GT previsto e formado
através da resolução nº 34 havia ocorrido na primeira semana de outubro de 2015. Pela resolução, a
composição seria a seguinte: 08 (oito) representantes da SEAP, sendo: a) 01 (um) representante do
Gabinete do Secretário de Administração Penitenciária; b) 04 (quatro) representantes da Subsecretaria de
Tratamento Penitenciário, sendo: 1. 01 (um) Coordenador de Saúde; 2. 01 (um) Coordenador de Serviço
Social; 3. 01 (um) Coordenador de Psicologia; 4. 01 (um) Coordenador de Inserção Social. c) 03 (três)
representantes da Subsecretaria Operacional, sendo: 1. 01 (um) Agente Penitenciário; 2. 01 (um) Diretor
Prisional; 3. 01 (um) representante do Gabinete da Subsecretaria Operacional. II – 03 (três) representantes
da SEASDH/SUPERDir, quais sejam: a) 01 (um) representante do Núcleo de Monitoramento das
Políticas LGBT; b) 01 (um) representante dos Centros de Cidadania LGBT; c) 01 (um) representante do
Gabinete da SUPERDir (Resolução n° 34/2015). Assim, ainda que a defensora Livia não estivesse
arrolada na lista dos membros do GT, informou-me que por ter assento no Conselho estadual LGBT havia
sido chamada para compor as reuniões. Livia tentou inclusive me incluir nas reuniões do GT, mas meu
acesso foi negado por psicólogas representantes da SEAP.
27
“Mulheres, Meninas e Privação de liberdade no Rio de Janeiro”, de autoria do
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro
(MEPCT/RJ), órgão vinculado à ALERJ (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro)22.
Caroline, advogada, coordenava o grupo de trabalho “Mulheres Encarceradas”, que
integrava a Comissão de Política Criminal e Penitenciária, e durante o evento explicou
ao auditório que o grupo se dividia em 4 subgrupos: subgrupo 1-maternidade no
cárcere; subgrupo 2- pessoas trans; subgrupo 3- mulheres e problemas mentais;
subgrupo 4- portas de entrada.
Ao final do evento então, apresentei-me a ela, falei sobre minha pesquisa e sobre
meu interesse em participar do grupo, e em especial do subgrupo 2- pessoas trans, e
trocamos contatos. No mês seguinte, recebi uma mensagem de Caroline me informando
que o grupo estava então aberto a novas e novos membros, aprovando o meu ingresso.
Logo então fui adicionada ao grupo de whatsapp (aplicativo de mensagens via celular
online) criado para facilitar a comunicação entre membros. Após algumas semanas de
conversas virtuais, uma reunião das pessoas integrantes do grupo com o presidente da
Comissão foi marcada, na sede da OAB.
Chegando à OAB, subi ao quarto andar e entrei na sala designada para a reunião.
A discussão era sobre a nomeação de integrantes do Grupo Mulheres Encarceradas na
22
O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) foi criado
pela Lei Estadual n.º 5.778 em 2010, tendo por finalidade planejar e conduzir visitas periódicas e
regulares a espaços de privação de liberdade, objetivando verificar as condições em que se encontram
submetidas as pessoas privadas de liberdade, visando prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas
cruéis, desumanos e degradantes. De acordo com o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura,
os Mecanismos também devem recomendar medidas para a adequação dos espaços de privação de
liberdade aos parâmetros internacionais e nacionais e acompanhar as medidas implementadas para
atender às recomendações. De acordo com a página virtual do Mecanismo, ele “resulta do processo de
estabelecimento, pelo Estado Brasileiro, das diretrizes contidas no Protocolo Facultativo à Convenção
contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penais Cruéis, Desumanos ou Degradantes da Organização das
Nações Unidas, ratificado pelo país no ano de 2007. O referido Protocolo decorre do acúmulo
estabelecido na Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU realizada em 1993 na qual se
declarou firmemente que os esforços para erradicar a tortura deveriam primeira e principalmente
concentrar-se na prevenção, designando para tanto, o estabelecimento de um sistema preventivo de visitas
regulares a centros de detenção. Além disso, a construção de Mecanismos Preventivos de monitoramento
dos locais de privação de liberdade integra as prerrogativas do ‘Plano de Ações de Integradas para a
Prevenção e o Combate à Tortura no Brasil’, de 2006, bem como o Plano Nacional de Direitos Humanos
III, (PNDH 3) da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Neste sentido, o Estado do Rio de Janeiro
coloca-se em posição de pioneirismo na Federação, salientando o compromisso com a implementação do
Plano de Ações Integradas para a Prevenção e Combate à Tortura no Brasil, com a defesa dos direitos
humanos e a consolidação dos princípios democráticos”. Disponível em <
http://mecanismorj.com.br/sobre/>. Acesso em 20 jun. 2016.
28
Comissão de Política Criminal e Penitenciária. O presidente começou explicando que
éramos muitas, o que impossibilitaria a nomeação de todas. Indagado sobre o número
máximo de pessoas que poderiam ser nomeadas, respondeu para a nossa a surpresa que
seriam cinquenta. Digo surpresa pois ali na sala de reunião não havia ao menos vinte
pessoas, o que gerou uma grande dúvida sobre os motivos pelos quais não seria possível
nomear todas e todos ali presentes. A resposta veio sem constrangimentos: algumas
pessoas que não estavam ali presentes deveriam ser nomeadas, ainda que não fossem
realizar de fato um trabalho dentro do grupo, acompanhada em seguida de um “sabe
como é”. Tal afirmação não foi bem recebida por boa parte das pessoas presentes, mas a
reunião prosseguiu com algumas pautas sendo colocadas, a exemplo de como se dariam
as visitas às penitenciárias, os eventos que poderiam ser realizados pelo grupo, dentre
outras.
Alguns dias depois, Caroline anunciou em nosso grupo que renunciaria a seu
cargo, sob protesto de muitas mulheres membras. Explicou, porém, que seu intento era
continuar os trabalhos com as mulheres encarceradas, rompendo, todavia, com a
vinculação à OAB/RJ. Nós deveríamos nos sentir livres para continuar na Comissão,
mas nos convidou a acompanha-la se assim desejássemos. Não tive dúvidas em
acompanha-la, ainda que tenha ficado um tanto receosa sobre como o trabalho
prosseguiria sem o apoio institucional da entidade. De fato, durante todo o ano de 2016
o grupo conseguiu acesso a alguns poucos estabelecimentos prisionais e a uma unidade
socioeducativa, acessos estes dependentes da concordância de quem dirigia o
estabelecimento, sendo a autorização passível de ser revogada a qualquer instante, à
vontade das diretoras e diretores. Com a desvinculação da OAB/RJ o grupo passou,
após votação, a ter o nome de “Elas existem-mulheres encarceradas”, tornando-se uma
associação de fato apenas no ano de 2017.
Ainda assim, foi através da organização de eventos do grupo relativos ao
encarceramento feminino que conheci Letícia, defensora pública responsável pela
realização de uma pesquisa no Presídio Evaristo de Moraes, e que me convidou a
auxiliá-la. A pesquisa consistia em um levantamento de caráter exploratório sobre os
problemas enfrentados cotidianamente pelas pessoas transexuais e travestis
encarceradas naquele presídio, além de questões relacionadas às subjetividades e às
vidas prévias dessas pessoas. Elaborada a princípio como trabalho de conclusão de um
29
curso de pós graduação que a defensora estava fazendo, incentivado e suportado pela
Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro, o material, segundo ela, serviria de
base também para sua atuação profissional, sendo encaminhado após o final do curso ao
Nudiversis, com quem tinha firmado parceria.
Paralelamente a essa tentativa de acesso ao campo, era processado junto à Escola
de Gestão Penitenciária23 (vinculada à Secretaria de Administração Penitenciária) meu
pedido de autorização para realização da pesquisa no presídio Evaristo de Moraes. O
processo, que normalmente levaria, segundo as funcionárias e funcionários da Escola de
Gestão, cerca de dois meses, não se finalizou em mais de um ano de espera (o que me
levou consequentemente à desistência dessa via de acesso). Para a solicitação de
autorização era necessário preliminarmente levar à sede da Escola cópia da identidade,
uma cópia impressa e uma em CD do meu Projeto de Pesquisa, uma declaração de
vinculação à Universidade Federal Fluminense e cinco formulários preenchidos: 1. Um
termo de Responsabilidade, pela apuração e divulgação das informações obtidas na
pesquisa ao acervo documental do Centro de Estudos e Pesquisas, reconhecendo minha
responsabilidade civil, penal e administrativa pelo uso indevido do material; 2.
Acompanhamento de projetos de pesquisa, em que deveriam ser preenchidos dados
sobre a pesquisadora e sobre a pesquisa; 3. Formulário para requerimento de pesquisa
junto à SEAP, com dados da pesquisadora, familiares e referenciais (sobre meu contato
prévio com estabelecimentos prisionais ou com profissionais da SEAP); 4. Um termo de
compromisso, me comprometendo a informar ao Centro de Estudos e Pesquisa da
Escola de Gestão Penitenciária, qualquer alteração na pesquisa, bem como a encaminhar
após seu término, uma cópia do trabalho para ser disponibilizado na Biblioteca da
Escola de Gestão; e 5. Um termo de declaração de que as respostas por mim fornecidas
representavam a exata expressão da verdade, sob as penas do crime de falsidade
ideológica, capitulado no artigo 299 do Código Penal Brasileiro. Além disso, exigiu-se
um termo de declaração de responsabilidade e anuência do Programa de Pós-Graduação
23
A simples ida até a Escola de Gestão já constituiu por si só um processo dificultoso. Informaram-me na
SEAP que a Escola se localizava na rua Senador Dantas, bairro Cinelândia, região central do Rio de
Janeiro. Chegando ao endereço indicado, todavia, a funcionária da biblioteca (onde estão as pesquisas
produzidas no Sistema Penitenciário, registros e outros documentos) explicou-me que a Escola de Gestão
já não se encontrava naquele local. Passou-me, então, o novo endereço, no bairro Estácio, em um local de
difícil acesso, onde também são confeccionadas as carteirinhas para os visitantes do Sistema
Penitenciário. A nova sede da Escola funciona hoje onde antes havia uma unidade prisional, com
instalações um tanto precárias.
30
em Sociologia e Direito da UFF, contendo os dados referentes ao curso, à pesquisadora
e à proposta para o tipo de pesquisa pretendida.
Após a conferência de toda documentação pelo Centro de Estudos da Escola de
Gestão me foi entregue um termo de declaração- de que eu estava apta a solicitar a
realização da pesquisa-, que deveria ser anexado a uma petição endereçada ao juízo da
Vara de Execuções Penais. Isso porque se faz necessária pelo procedimento da SEAP a
autorização judicial no caso de pesquisa que envolva pessoas privadas de liberdade no
estado do Rio de Janeiro. Após algumas semanas de espera, tendo em vista a mudança
de titularidade do juízo, meu pedido foi considerado procedente pela juíza recém
empossada, sendo em tese este o último passo para a consolidação da autorização.
Após todos os trâmites burocráticos terem sido seguidos por mim, todavia, a
Secretaria de Administração Penitenciária me comunicou, depois de inúmeros e-mails
não respondidos e ligações em que nenhuma posição me era passada, da suspensão de
todos os pedidos de realização de pesquisas em espaços de privação de liberdade. A
justificativa residia no fato de que uma resolução de 2012 limitava a duas as pesquisas
concomitantes a serem realizadas em todo o estado do Rio de Janeiro. A Escola de
Gestão me informou que estavam tentando reverter a decisão através da formulação de
outra resolução, em que pese a antiga resolução sempre ter sido interpretada no sentido
de permitir duas pesquisas por estabelecimento prisional, ao invés de duas pesquisas
para todo o Sistema Penitenciário do estado. Em outras ocasiões, alegaram-me que a
morosidade na aprovação da minha pesquisa se justificava pelo fato de eu ser paulista, o
que complicava o acesso a meus dados pessoais, como antecedentes criminais, pela
Secretaria de Administração Penitenciária fluminense.
Relato aqui esse percurso exaustivo por considerar que as dificuldades de
entrada no campo, no caso em um presídio específico, mostraram-me como minhas
investidas já consistiam, por si só, um campo de pesquisa, o qual evidenciava a
instabilidade e fissuras de se trabalhar com instituições, e a maneira de funcionamento
burocrática do próprio Estado. Lago (2014) relata em sua dissertação de mestrado
dificuldades semelhantes para autorização de realização de pesquisa no interior de
unidades prisionais paulistas, que da mesma maneira, consiste num processo lento,
burocrático e exaustivo, muitas vezes incompatível com o curto período para a
realização de uma pesquisa de mestrado, o que faz com que pesquisadores busquem
31
alternativas que garantam a possibilidade da pesquisa de campo 24. Cada diferente
alternativa de entrada em campo, por sua vez, “engendra limites e potenciais próprios,
os quais precisam ser explicitados” (GODOI, 2015, p. 46). Nesse registro, remeto-me
mais uma vez ao trabalho de Lowenkron e Ferreira (2014), por compartilhar a sensação
de ansiedade experimentada por uma das autoras na espera por assinaturas, por “uma
pedaço de papel”, por uma “autorização explícita” da Secretaria de Administração
Penitenciária que me possibilitasse dar continuidade à realização da pesquisa, que
“deixam claro o aspecto chave do modo como as organizações burocráticas funcionam:
a imposição tanto da incerteza como da espera como fontes eficazes de poder”
(LOWENKRON; FERREIRA, 2014, p. 96, tradução nossa) 25. Ademais, ler o despacho
da juíza, a autorização e qualquer outra sentença que possibilitasse a continuação da
pesquisa, já se apresentavam a mim como fatos etnográficos mesmo antes da inserção e
realização do trabalho de campo no mencionado presídio (ibid, p. 96-97).
E nesse sentido, percebi que compartilhava com minhas interlocutoras de uma
das frentes de trabalho de campo, as mulheres transexuais e travestis encarceradas, o
fato de fazer parte de relações de poder imbricadas na produção e circulação de
documentos, de estarmos enredadas nas tramas das instituições burocráticas.
Lucas Freire (2015b), no artigo “Quem tem direito aos direitos” relata o
acompanhamento da rotina de trabalhos das funcionárias do NUDIVERSIS - Núcleo de
Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual da Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro, apelidando de “peregrinações burocráticas” os trânsitos de
sujeitos trans por espaços e instituições além da Defensoria Pública, na busca pela
documentação considerada indispensável para a instauração da ação de requalificação
civil (FREIRE, 2015b, p. 93). Freire arrola a lista de documentos necessários para que
24
Como relatado por Lago (2014, p. 23-26), um dos meios alternativos apresentados aos pesquisadores
para a realização de pesquisa em unidades prisionais paulistas é a atuação como voluntário na Pastoral
Carcerária, organização interna da Igreja Católica. No Rio de Janeiro, tal entidade, apesar de existir, não
possui articulação nesse sentido, o que aumenta a dificuldade de se realizar pesquisas no interior das
prisões deste estado. Lago comenta também sobre o ocupar dois lugares dentro do presídio, o lugar de
voluntária e o lugar de pesquisadora, sobre os limites entre esses dois lugares e a forma de fazer a
mediação entre eles. De alguma maneira, enxergo uma situação semelhante na administração do meu
lugar enquanto auxiliar da defensora pública e do meu lugar enquanto pesquisadora, que me fez ser mais
cautelosa com a explicação dos termos de ambas as pesquisas, e de trabalhar o tempo estrategicamente
para desempenhar com propriedade esses dois lugares.
25
No original: “(...)made clear a key aspect of the way in which bureaucratic organizations work: the
imposition both of uncertainty and of waiting as an efficacious resource of power (cf. Hoag, 2011, p.86)”.
(Lowenkron e Ferreira, 2014, p. 96).
32
se possa iniciar o processo de assistência e para que se possa oficializar sua condição de
assistidos. A lista traz documentos de identificação, lista de testemunhas,
Freire assevera que este ir e vir das pessoas assistidas às salas da Defensoria
Pública, e especialmente ao NUDIVERSIS, constitui apenas uma parte da peregrinação
burocrática a que estão sujeitas, sendo esse espaço do núcleo partícipe de toda uma rede
de instituições daquilo que é compreendido por Estado. É também um estabelecimento
considerado um “checkpoint”, “onde o escrutínio da ‘verdade’ dos sujeitos interpelados
estabelece as fronteiras e limites do Estado por meio da atribuição de diferentes formas
de cidadania a partir de tal avaliação” (FREIRE, 2015, p. 97). Os checkpoints, seriam,
de acordo com o autor, espaços marcados por tensões e imprevisibilidades em
decorrência do contato entre as pessoas que verificam e as que são verificadas. Essas
peregrinações e a documentação por elas produzida constituiriam, neste ínterim, uma
espécie de “burocracia de exceção”, já que reguladoras do acesso ao direito de
requalificação civil, direito produzido como “bem escasso”, vez que demanda uma
constante supervisão e estabelece quem são os atores políticos merecedores do status de
sujeito de direitos. Esses sujeitos legítimos a demandar judicialmente por seus direitos,
que são os que se tornam assistidos pela Defensoria, são produzidos, assim, tanto pelo
primeiro atendimento no núcleo da Defensoria como pelas peregrinações burocráticas
(FREIRE, 2015, p. 97-101).
Ainda no que se refere à demanda pelo direito de retificação do registro civil,
processo que gera uma homogeneização dos sujeitos, recorre-se à figura do “verdadeiro
33
transexual”, pois apenas as experiências daqueles sujeitos diagnosticados com “disforia
de gênero” ganham inteligibilidade, ao que estão excluídos desse processo aqueles
sujeitos incapazes de comprovar, através de todas essas provas (documentais, técnicas,
médicas, testemunhais, etc.) sua “transexualidade real”.
A noção de um sexo verdadeiro passa a ser o fundamento tanto das
argumentações judiciais que dão provimento às reivindicações de requalificação civil
quanto das que a negam (cf. ROVARIS, 2016; LOPES, 2014). Os votos contrários à
mudança registral argumentam uma identidade sexual verdadeira e definitiva,
determinada pela natureza e pelo sexo originário; um vínculo inexorável e eterno com o
sexo designado ao nascimento. Já as decisões dando provimento à modificação registral
supõem em sua maioria haver uma anomalia, um desvio, uma cisão entre um sexo
verdadeiro interior e a morfologia originária da pessoa transexual; a visão médica de
que o “transexual verdadeiro” é aquele que tem necessariamente aversão aos seus
órgãos genitais é transposta ao processo judicializado. Isso leva muitas vezes inclusive à
exigência de uma cirurgia de transgenitalização para que a alteração de registro seja
efetivamente concedida.26
Compartilho com Freire (2015), nesse sentido, a posição de que há um efeito
problemático presente no discurso sobre direitos humanos e sujeitos de direitos, que é o
de identificar quem são os mais e os menos humanos. Essa identificação relaciona-se à
indispensabilidade de se colocar como pertencente à determinada categoria, o que torna
viável o exercício de determinado conjunto de direitos. Esse mesmo efeito se coloca
aparente na questão do “fenômeno da transexualidade”. Isso porque seu dispositivo
engloba práticas de encapsulação de sujeitos em modelos específicos, produzindo-se
26
Em “Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita”, Foucault (1982) conta a história de uma pessoa
intersex nascida em 1838, história essa que elucida a busca por uma “verdadeira identidade” desde então.
Registrada como mulher ao nascer, Herculine foi submetida a exames durante a adolescência e forçada a
mudar seu nome e seu sexo no registro quando descoberta sua “anormalidade”. Ela foi submetida a uma
série de exames médicos pelos saberes da época, respaldados por um aparato jurídico e pela Igreja.
Através dos exames minuciosos e do dossiê completo de seu corpo, que descreviam em detalhes sua
anatomia, incluindo seus órgãos genitais, foi decidido que a jovem deveria assumir a identidade
masculina, sendo que tal processo de objetivação-subjetivação, ao qual não se adaptou, descambou, por
fim, em seu suicídio. Percebe-se então que um conjunto de fatores forçaram a escolha sobre a identidade
de Herculine, insistindo-se na necessidade de um “verdadeiro sexo”, sob quaisquer consequências. E
dentre estes fatores, podemos destacar a preocupação entre doutores, advogados e outros especialistas
com a classificação e fixação de diferentes características e tipos sexuais.
34
discursivamente um “verdadeiro transexual”, que gera ainda um oposto perverso, a
existência de um “falso transexual”.
Freire (2015) atenta ainda para o fato de que nas salas de espera do núcleo da
defensoria (NUDIVERSIS) parece não haver uma preocupação com a/o “falsa/o
transexual”, vez que atestar a transexualidade- por meio de um laudo médico- não é
entendido como de competência do núcleo. Já as travestis, pelo fato de estarem distantes
do discurso médico definidor da transexualidade, são dificilmente consideradas
legítimas à demanda de retificação do registro- a menos que abandonem essa
identificação e passem a se denominar como pessoas transexuais.
Dessa forma, a categorização e produção discursiva de sujeitos de direitos
provoca um efeito negativo: a exclusão de quem não se adequa a ela, de quem a excede.
O sujeito produzido como “verdadeiro transexual” é classificado como mais humano do
que aqueles alocados à condição de “outras/os transexuais” e do que as travestis.
Consequentemente, ao ser vista (o) como vítima de um transtorno do qual não é culpada
(o), a/o “verdadeira/o transexual” é capaz de exercer seus “direitos humanos”, ao
contrário das/dos “outras/os transexuais” e travestis, excluídas das instituições de saúde
e das instituições judiciais27 (FREIRE, 2015b, p. 111-113). Com isso, Freire (2015b)
demonstra como se forjam determinados sujeitos a partir da persecução de determinados
direitos, e em sentido recíproco, como direitos são forjados a partir da fixação de
determinadas identidades.
A documentação estrategicamente exigida para ser apresentada por essas pessoas
coloca em questão o que deve ser considerado legível pelo Estado. Nesse sentido, a
construção de identidades, seguida de suas qualificações, é efeito de práticas
discursivas, tal como proposto por Butler (2016), e o apagamento dos caminhos dessa
construção configura-se como parte dos processos estatais. Essa mesma construção de
identidades que serão legitimadas pelo Estado, ainda que com algumas particularidades,
está presente também na elaboração das resoluções de maio de 2015, que dizem respeito
às pessoas LGBT privadas de liberdade.
27
Aquelas e aqueles excluídos do processo transexualizador são nomeados por Bento (2006) de “outros
transexuais”, vez que se identificam na categoria de “transexual”, a qual prescinde de um aval médico.
Assim, o fenômeno transexual teria como característica uma experiência de deslocamentos, de
interpretações que são negociadas através de atos assumidos como femininos ou masculinos, de modo que
um “verdadeiro transexual” mostra-se como fictício, como produto de um saber médico imposto que
exclui as múltiplas e possíveis formas de expressão da transexualidade.
35
Os caminhos percorridos por mim, de outra parte, e que me levaram ao
enredamento às malhas estatais e aos efeitos de poder gerados a partir dos arranjos
burocráticos, foram um dos responsáveis pelo deslocamento central do objeto dessa
pesquisa: o de estudar os processos de Estado, o fazer Estado, o fazer gênero, a partir da
narrativa de atores institucionais e da agência de documentos; ao revés da realização de
uma etnografia sobre o espaço prisional restrito às muralhas, e sobre as vidas reunidas
sob a sigla LGBT encerradas neste espaço.
28
Barbosa (2005), por exemplo, ao discorrer sobre a distribuição interna dos presídios no Rio de Janeiro,
comenta sobre os “tipos” de presos usualmente encontrados no Evaristo de Moraes, sinalizando que já na
época em que visitou o estabelecimento pôde notar muitas travestis ali circulando (BARBOSA, 2005, p.
129).
36
Defensoria Pública que impulsionou as resoluções de 2015 tenha tido como ponto de
partida uma vistoria realizada neste presídio. Ademais, através também das narrativas
das interlocutoras presas, pude perceber que a distribuição espacial dentro do Evaristo
de Moraes não sofreu grandes mudanças com o advento das resoluções. A dinâmica
entre heterossexuais, homossexuais, pessoas cisgêneras, travestis e transexuais seguiram
nos moldes anteriores, em que não havia uma segregação espacial operacionalizada com
base em questões de gênero e sexualidade, em que todas e todos habitavam o convívio
(com exceção das pessoas praticantes da religião Evangélica, que podiam optar pela
alocação em uma das duas galerias destinadas especificamente a essa religião, ao fundo
do pavilhão).
29
Em relação às visitas íntimas, nenhuma das entrevistadas presas disse recebe-las; algumas alegaram que
isso se devia ao fato de terem companheiros dentro no presídio, outras que não tinham quem arrolar no rol
de visitas. Apenas uma das entrevistadas disse ter um companheiro na rua, mas que não gostaria que ele
lhe visse ali, “naquele espaço horroroso”. Assim, nunca havia demandado sua inclusão no rol de visitas
íntimas.
30
Apesar de o termo “parlatório” indicar formalmente o local onde se realizam os encontros entre cliente
e advogada/advogado, no Rio de Janeiro a palavra é empregada popularmente (por funcionários da SEAP,
pessoas presas e familiares) para designar os espaços destinados às visitas íntimas.
38
comunidade. Mas o que a gente tem visto é que a maioria absoluta
prefere ir pro presídio Evaristo de Morais, aonde estão os outros
presos e presas LGBT. Por que? Porque você começa a ter ali uma
condição de avaliar também qual tipo de necessidade, qual tipo de
assistência, até pra gente ter um projeto, um plano piloto, aplicar
ali pra gente ver depois como colocamos em prática. Porque por
exemplo, a questão da visita íntima, não é só uma questão de pode ou
não pode. Porque a gente sabe que além da cultura institucional, além
das regras da administração pública, a gente sabe que existem regras
que não estão escritas né, que não são faladas. (Entrevista concedida
por Claudio Nascimento, grifos nossos)
.................................................................................................................
É imprescindível asseverar que os argumentos de proteção da
disciplina e da segurança pública no ambiente prisional não têm o
condão de autorizar a manutenção das violações de direitos, uma vez
que, especificamente na Unidade Prisional Evaristo de Moraes,
observou-se um ambiente de mínimo acolhimento e respeito, apesar
da existência de problemas relacionados à saúde, bem como à revista e
visita íntimas. Isso porque as travestis e transexuais alocadas naquele
presídio têm permissão, por exclusiva discricionariedade do gestor,
para manter os cabelos longos, utilizar vestuário feminino, receber
objetos pessoais de uso feminino e costumam ser tratadas pelo nome
social. Além disso, põe em xeque de maneira definitiva o argumento
falacioso da segurança e disciplina o fato de que, nas unidades
femininas, não é imposto o corte de cabelo, é permitido o uso de
shorts e tops no interior das celas e há distribuição para as internas de
anticoncepcionais. (Relatório da Defensoria Pública, 2015, grifos
nossos).
31
Sobre a participação de “monas” nas políticas faccionais de São Paulo, Boldrin (2014, p. 75-76) a
caracteriza como tangencial, vez que: “(...)tanto o PCC quanto o CRBC e outros desses grupamentos não
permitem a presença de homossexuais entre seus membros, por outro lado é justamente nessa
configuração que as monas e envolvidos adquirem uma neutralidade que lhes abre caminhos que são
interditos para a população como um todo. As monas têm a possibilidade de pedir bonde e escolher que
contexto faccional (PCC ou oposição) elas preferem. A população não tem essa opção, um preso em
cadeia da oposição muito dificilmente conseguiria pedir bonde para uma cadeia onde prevalece o PCC
sem correr risco de morte”.
32
Como explica Barbosa (2005), quando do ingresso no Sistema Penitenciário, faz-se necessário que a
administração classifique a pessoa de acordo com seu pertencimento faccional, evitando-se confrontos
com membros de grupos inimigos. Segundo o autor: “É um poder que se exerce primeiro sobre a vida e o
corpo do apenado para, em seguida, a partir de seus efeitos, constranger a administração prisional. Cabe
aos responsáveis pela distribuição dos presos no Sistema perguntar ao novato: ‘você pode entrar nessa
cadeia?’ Este é um cuidado puramente pragmático, tomado, a contragosto, pelos gestores do Sistema. E se
não houver um pertencimento prévio a um desses grupos, a classificação seguirá as marcações territoriais
que também dividem a cidade entre as facções. Isto se aplica mesmo às pessoas que não moram em
favelas ou em locais onde não existem pontos de venda de drogas” (p. 20, 21). No Evaristo de Moraes
40
determinados presos e minorias vulneráveis deveriam ser conduzidos para aquele
espaço, o seguro – a materialização do nó entre segurança e vulnerabilidade.
Essa vulnerabilidade, por sua vez, é fabricada como um dispositivo de
governamentalidade, que produz e reitera práticas de policiamento. Ou seja, a
vulnerabilidade funciona, neste e em outros casos, como subterfúgio para o
recrudescimento do policiamento voltado para determinadas populações. É o caso
clássico, por exemplo, da prostituição. Elizabeth Bernstein (2007; 2010) demonstra em
sua pesquisa sobre campanhas anti tráfico de pessoas nos Estados Unidos, de que
maneira grupos evangélicos e feministas ativistas abolicionistas (da prostituição)
compartilham um compromisso com paradigmas carcerários de justiça- social e de
gênero- o que a autora denominou feminismo carcerário, e com um humanitarismo
militarizado, identificado como o modo preeminente de engajamento estatal. E de que
maneira a prostituição, alvo anteriormente apenas da aplicação de leis locais e
preocupante para um número relativamente pequeno de feministas comprometidas e
ativistas trabalhadoras sexuais, passa a ocupar o centro de uma série sempre crescente
de agendas de ativistas, de iniciativas de direitos humanos e de instrumentos legais
(BERNSTEIN, 2007, p. 130).
Para Bernstein, esse deslocamento foi facilitado pelo acolhimento por parte de
tais feministas abolicionistas da prostituição de discursos sobre direitos humanos, “que
efetivamente neutralizaram os domínios da luta política em torno de questões de
trabalho, migração e liberdade sexual através dos tropos da prostituição como violência
de gênero e escravidão sexual” (BERNSTEIN, 2010, p. 50, tradução nossa), e selaram
uma importante aliança entre feminismo e o estado carcerário, que se estende além das
recentes parcerias feministas com a direita religiosa estadounidense. Na empreitada
contra a “escravidão sexual” somaram-se também organizações não-governamentais
proeminentes, que juntamente aos grupos anteriormente mencionados, compõem uma
poderosa aliança direita-esquerda que se perfectibiliza em um movimento amplo pelos
direitos humanos (BERNSTEIN, 2007, p.133-134), perfazendo o que se pode chamar
de uma governamentalidade híbrida.
não há um fluxo determinante, como no caso da maioria dos presídios e penitenciárias do Rio de Janeiro,
em que a droga opera no sentido de fornecer “a linha por onde se deslocam os diversos centros de poder”
(BARBOSA, 2005, p. 21).
41
Essa nova política abolicionista pode ser situada em termos de uma agenda
sexual neoliberal, que localiza problemas sociais em “indivíduos desviantes” em vez de
em instituições convencionais, que pensa soluções sociais por intermédio de
intervenções de justiça criminal, que defende a beneficência dos privilegiados, em vez
da capacitação de vulneráveis. Reflete, ademais, uma convergência de um
humanitarismo militarizado com o “feminismo carcerário”: o compromisso dos ativistas
feministas abolicionistas de uma agenda de lei e ordem e um derivar do estado do bem-
estar para o estado carcerário como o aparelho de execução para objetivos feministas.
Os esforços de tais ativistas, portanto, baseiam-se em estratégias de encarceramento
como principal ferramenta de “justiça”, colaborando para um número crescente do
aprisionamento de pessoas que participam da economia sexual, precisamente sob o
disfarce de serem grandes combatentes da escravidão e promotores da liberdade. Essa
convergência ideológica, todavia, encontra oposição no trabalho de outras ativistas
feministas dentro de um ambiente da “justiça” bastante diverso, mas que remete
também à "escravidão moderna" e ao "abolicionismo" (BERNSTEIN, 2007, p.137-144).
É o ativismo sobre o qual nos debruçamos no início do capítulo, teorizado
especialmente por Angela Davis (2003), contra o complexo prisional industrial
contemporâneo, e que traz uma agenda notadamente anticapitalista e anti-imperialista.
Apontando para as conexões históricas diretas entre instituições racistas e escravocratas,
programas de empréstimos aos condenados e trabalhos forçados que ocorrem nas
prisões contemporâneas, feministas como Davis pugnam pela abolição da prisão,
argumentando que é o sistema prisional, e não a prostituição, o responsável primordial
pela perpetuação da escravidão.
Dessa maneira, trazendo a discussão para nossa pesquisa, constatamos uma
tensão da arena política que edifica a prisão modelo (Evaristo de Moraes- um “ambiente
de mínimo acolhimento e respeito” a LGBT) ou as alas específicas para LGBT em
outros estados, enredadas na trama da vulnerabilidade e do risco, através do discurso
subjacente dos direitos humanos. Discurso este que produz a narrativa de necessidade
de um espaço seguro para os novos sujeitos de direitos vulneráveis, a “população
LGBT privada de liberdade”, sem que se adentre, não obstante, os motivos que levaram
e levam ao encarceramento dessa população. Assim, a política de criação desses
lugares seguro do seguro, à semelhança das políticas encabeçadas por ativistas do
42
movimento de abolição da prostituição, localiza a problemática do encarceramento da
população LGBT fora das instituições masculinistas, do aparelho estatal. Estes são
colocados (e se colocam), ao revés, como aliados da causa LGBT, em uma estranha
conjugação de movimentos de esquerda, LGBT, governos com agendas abertamente
conservadoras e neoliberais, instituições, secretarias de Estado, movimentos pelos
direitos dos presos, etc. O sistema então (“que tá sobrecarregado”, que na verdade nasce
sobrecarregado e assim permanece eternamente), que “não tinha aquele olhar em cima
das travestis”, passa por meio da gestão do risco e constituição do seguro a tê-lo, e
produz uma especificidade que cria e recria as malhas dos aparelhos de Estado. O
sistema, de outra parte, que é deficiente, que está em crise, possui, em contrapartida, um
espaço eficiente de incidência de políticas públicas vinculadas a um “status de sucesso”,
que o desvinculam do fracasso institucional da prisão como um todo (PASSOS, 2014, p.
87). A narrativa da crise carcerária, cabe lembrar, é, como argumenta Foucault (2004) a
narrativa produtora da forma-prisão, sendo a crise prisional condição fundamental de
existência da prisão, ou seja, estando presente e sendo condicionante do nascedouro da
própria prisão atual. O que se mostra enquanto novidade na atualidade, então, não é a
crise, nem tampouco a existência de pessoas não hetero e cisnormativas na prisão
(designadas e aglomeradas pela expressão população LGBT), mas sim sua gestão e as
táticas de governamentalidade que as colocam como um dos eixos centrais na produção
narrativa da tal “crise carcerária”.
Da mesma forma que a construção de alas ou galerias LGBT, a edificação do
Presídio Evaristo de Moraes como um “modelo” de “mínimo acolhimento a LGBT” no
Rio de Janeiro, portanto, representa em certa medida um sucesso frente ao premente
fracasso do Sistema Penitenciário brasileiro. Especialmente quando se fala de políticas
para um grupo não normativo, uma minoria, dentro de uma estrutura reconhecidamente
heteronormativa. Por sua vez, esse sucesso deve ser visibilizado, acompanhado de perto,
administrado e gerido, e a legitimidade para tanto está ancorada, como restou claro, na
vulnerabilidade e no risco que perfazem a existência de uma “população LGBT privada
de liberdade”, que deverá estar concentrada para melhor ser administrada e protegida.
Por outro lado, a alocação na condição de vítima, vulnerável, e o apelo ao
sofrimento, podem, e por vezes são, agenciados por integrantes dessa população LGBT
presa, que ao mesmo tempo que se organizam estrategicamente para a requisição de
43
demandas específicas no perímetro interno do espaço prisional - frente à administração
do presídio, por exemplo -, mobilizam setores externos como movimentos sociais,
feministas e LGBTs, e agentes institucionais- ou mesmo pesquisadores -, aptos a
impulsionar a eficácia das denúncias relativas ao não cumprimento de seus direitos. Tais
setores externos, por sua vez, também mobilizam esse sofrimento em uma dimensão
pública e política, no momento em que passam a ocupar “o lugar de apoiadores
engajados e indignados” (VIANNA, 2013, p. 23).
44
Parte 2- Uma importante digressão: caminhos à materialização das resoluções
estaduais
45
liberdade) cumpre, junto à observação da atuação de atores, a função de descortinar as
inscrições de técnicas burocráticas da administração estatal. Nesse sentido, a pesquisa
documental possibilita o empreendimento de uma exploração sobre práticas de poder,
sobre o fazer Estado, que deem conta também da “dimensão performativa” e “da ação
simbólica na produção de efeitos (e afetos)” de poder imbuídas nesses processos de
fazer Estado, dos quais, nós, que pesquisamos, somos também partícipes (CASTILHO;
SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014, P. 22).
33
No original: “It seems necessary to say, then, that the state, conceived of as a substantial entity separate
from society has proved a remarkably elusive object of analysis” (MITCHELL, 2006, p. 113).
46
sua vez, constitutivo de práticas políticas, que conformam e forjam a noção que se tem
de Estado, como aparato externo à sociedade.
Abrams, em resumo, apresenta o Estado não como a realidade que fica por trás
da máscara da prática política. Ele é de fato a máscara que impede que se veja a prática
política como ela é.
Existe um sistema de estado (...) um nexo palpável de prática e
estrutura institucional centrada no governo e mais ou menos
extensa, unificada e dominante em qualquer sociedade. E suas
fontes, estrutura e variações podem ser examinadas de forma
empírica bastante direta. Há, também, uma ideia de estado,
projetada, e várias vezes acreditada em diferentes sociedades
em momentos diferentes. E seus modos, efeitos e variações
também são suscetíveis à pesquisa. A relação entre o sistema de
estado e a ideia de estado com outras formas de poder deve e
pode ser uma preocupação central da análise política. Estamos
apenas criando dificuldades para nós mesmos ao supor que
também temos que estudar o estado - uma entidade, agente,
função ou relação além do sistema de estado e da ideia do
estado (ABRAMS, 2006, p. 125, tradução nossa)34.
34
No original: “There is a state-system (...) a palpable nexus of practice and institutional structure centred
in government and more or less extensive, unified and dominant in any given society. And its sources,
structure and variations can be examined in fairly straightforward empirical ways. There is, too, a state-
idea, projected, purveyed and variously believed in in different societies at different times. And its modes,
effects and variations are also susceptible to research. The relationship of the state-system and the state-
idea to other forms of power should and can be central concerns of political analysis. We are only making
difficulties for ourselves in supposing that we have also to study the state – an entity, agent, function or
relation over and above the state-system and the state-idea (ABRAMS, 2006, p. 125).
47
análise acadêmica do estado é suscetível de reproduzir em sua própria ordenança
analítica essa coerência imaginária e deturpar a incoerência da prática estatal”
(MITCHELL, 2006, p. 169, tradução nossa)35. O autor toma então toda a discussão
sobre o que “o Estado é” como parte de seu objeto de pesquisa, buscando enxergar
como a ciência política, sobretudo, produz em suas discussões internas delimitações do
que seria o Estado. Ao invés, portanto, de buscar uma definição que fixe os limites da
“sociedade” e do “Estado”, uma busca que tente demonstrar como o objeto de um lado
influencia ou é autônomo em relação ao que reside no outro, o caminho proposto pelo
autor é examinar os processos políticos através dos quais a distinção incerta mas
poderosa entre “Estado” e “sociedade” é produzida (MITCHELL, 2006, p. 170).
O grande ganho analítico da sua perspectiva é, nesse contexto, não a disputa
dos termos da verdade sobre “o que é o Estado”, ou da delimitação de seu começo e de
seu fim, o dentro e o fora do Estado, mas sim concentrar-se na produção das fronteiras
entre sociedade, economia, Estado, etc. Não obstante, o fato de os limites de Estado
nunca marcarem uma exterioridade, não implica que as fronteiras são ilusórias. Pelo
contrário, produzir e manter a distinção entre Estado e sociedade é, por si só, um
mecanismo que gera recursos de poder. E essas fronteiras são também constitutivas de
mecanismos institucionais que visam à manutenção da ordem social e política
(MITCHELL, 2006, p. 175). Assim, localizar quem as produz, sob quais critérios,
construindo quais instituições e atuando de qual forma, nos ajuda a entender as relações
de poder imbricadas nesse fazer fronteira.
Outro importante deslocamento proposto pelo autor é pensar o Estado em
termos técnicos, e não em termos institucionais ou de representação. Nesse registro,
essas técnicas responsáveis pela emergência do que se entende por Estado- que nada
mais é do que um efeito estrutural- são o que permite as práticas materiais mundanas:
De fato, a própria noção de uma instituição, como um quadro abstrato
separado das práticas particulares que enquadra, pode ser vista como o
produto dessas técnicas. Tais técnicas deram origem ao mundo
peculiar e aparentemente binário em que habitamos, onde a realidade
parece assumir a forma bidimensional do indivíduo versus o aparelho,
a prática versus a instituição, a vida social e sua estrutura - ou a
sociedade versus o estado (...) Nós devemos analisar o estado como
um efeito estrutural. Ou seja, devemos examiná-lo não como uma
estrutura real, mas como o poderoso e aparentemente metafísico efeito
35
No original: “The scholarly analysis of the state is liable to reproduce in its own analytical tidiness this
imaginary coherence and misrepresent the incoherence of state practice” (MITCHELL, 2006, p. 169).
48
de práticas que fazem essas estruturas parecerem existir. Na verdade,
o Estado-nação é indiscutivelmente o efeito estrutural primordial da
era técnica moderna (MITCHELL, 2006, p. 180, tradução nossa)36
36
No original: “Indeed the very notion of an institution, as an abstract framework separate from the
particular practices it enframes, can be seen as the product of these techniques. Such techniques have
given rise to the peculiar, apparently binary world we inhabit, where reality seems to take the two-
dimensional form of individual versus apparatus, practice versus institution, social life and its structure –
or society versus state (...) We must analyze the state as such a structural effect. That is to say, we should
examine it not as an actual structure, but as the powerful, apparently metaphysical effect of practices that
make such structures appear to exist. In fact, the nation state is arguably the paramount structural effect of
the modern technical era. It includes within itself many of the particular institutions already discussed,
such as armies, schools, and bureaucracies” (MITCHELL, 2006, p. 180).
49
construções estas politicamente sensíveis e politicamente orientadas a partir de um jogo
de forças. Isso porque essas fronteiras vão produzir os seus efeitos, de definir quem fica
dentro e quem fica fora do Estado e da legalidade, do mercado, da sociedade, dessas
várias “entidades”. Então há sempre disputas acirradas, conflitos e enfrentamentos em
torno da delimitação de fronteiras, historicamente localizáveis, que vão além da ciência
política, sendo constitutivo da pesquisa trabalhar os instrumentos utilizados para
produzi-las. As linhas de fronteira (as diferenciações portanto) são um recurso de poder
fundamental (que pode ser disputado) para que as ordens social, política e econômica
possam funcionar tal como funcionam (MITCHELL, 2006, p. 185). Os efeitos
produzidos, por sua vez, são reais, de estrutura; e mover as fronteiras, borrá-las ou
deixá-las inertes também são estratégias de atuação política.
No caso dos processos de construção de políticas públicas especificamente,
tomando como princípio os estudos revisitados de processos de formação de Estado-
entendido como efeitos de Estado-, temos que pensá-los como parte desse fazer-se
Estado, também maleáveis e plásticos, distantes de avaliações consistentes (SOUZA
LIMA & CASTRO, 2015, p. 39). Nesse contexto, as políticas públicas e as práticas que
as constituem são um excelente locus para a observação dos fenômenos estatais e das
práticas de poder enredados nos feixes de processos em constante transformação, que
levam à constituição daquilo que se entende por Estado (CASTILHO; SOUZA LIMA;
TEIXEIRA, 2014, P. 22). Por fim, toda a discussão sobre processos de Estado deve
transpor a noção anti essencializante, empregada nos debates sobre gênero e sexualidade
ao longo de toda a dissertação, para a análise aqui travada dos processos de Estado,
sendo preciso, assim, fazer emergir uma noção anti essencializante também do Estado.
Os processos de Estado comportam, ademais, dimensões inerentemente
contraditórias e tensões produtivas. Uma dessas tensões é a representada pelo conjunto
de documentos por nós trabalhado, que para além da sua rentabilidade e natureza
etnográfica, devem ser considerados a partir de suas especificidades e heterogeneidade
no seu modo de circulação em meio aos processos de Estado. No primeiro capítulo, por
exemplo, eu tratei do percurso e das dificuldades em obter as autorizações para
realização de pesquisa dentro do presídio; das idas à Escola de Gestão Penitenciária ou
ao Tribunal de Justiça- (“checkpoints” da minha pesquisa, nos termos trabalhados por
Freire (2015a)) -; da tensão na espera por respostas dos responsáveis pelo
50
processamento do meu pedido; da ansiedade com a descoberta de uma resolução que
impossibilitava a continuação desse processamento. Enfim, de toda essa faceta do
Estado enquanto rotina, representado pelo “outro lado do balcão”, pelo “guichê”, por
todas as microtransações que se afastam da ideia de Estado enquanto simulacro. As
margens dos processos de estado, o Estado e suas margens (DAS; POOLE, 2004), nesse
ínterim, relacionam-se aos processos de governamentalidade presentes nas variações e
incertezas da rotina administrativa, no acionar, por exemplo, de uma normativa
específica por uma pessoa específica, dirigida a outro alguém específico.
Ao mesmo tempo, existe também uma dimensão inerentemente espetacular e
performática dos processos de estado. Fazer estado é fazer cena de estado (VIANNA;
FARIAS, 2011), é a inauguração de uma política, é a criação de um programa de
governo pioneiro, vanguardista como o Rio sem Homofobia, acompanhado de uma
grande campanha midiática e de um generoso orçamento37. Estado é tanto performance
e espetáculo como rotina, sendo que as duas dimensões se alimentam mutuamente,
dentro de tensões constitutivas e produtivas (VIANNA, 2013).
Em relação à necessidade de se generificar, sexualizar e afetivizar as percepções
acerca do Estado- necessidade que se aflora da insuficiência dos autores citados em
acrescentar os componentes “gênero”, “sexualidade” e tudo aquilo que se enreda e se
37
No recém lançado livro “Retratos da Política LGBT no Estado do Rio de Janeiro”, partes da entrevista
com Claudio Nascimento, conduzida por Silvia Aguião, exemplificam o fazer Estado através do fazer
cena de Estado, tal como: “C.N.: (...)Nesse ínterim, a gente vinha também, desde 2010, negociando o
lançamento da campanha do Rio Sem Homofobia, que era uma reivindicação da conferência: fazer uma
campanha publicitária para todo o estado, envolvendo anúncio de TV, anúncio de rádio, material gráfico,
lançamento em várias partes do estado. A gente negociou em 2010 e foi lançado em maio de 2011. A
gente criou grupos focais, grupos para discutir a campanha publicitária. Participaram os LGBT, participou
o governo, a gente fez grupos focais diversificados com lésbicas, gays, travestis, depois juntos (...). A
gente lançou em maio e também com uma grande cerimônia aqui – com a presença da senadora Marta
Suplicy, do então secretário estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, Rodrigo Neves, e do
governador Sérgio Cabral”; e também “C.N.: Teve o projeto da campanha publicitária em 2009 e 2010, e
em 2011 já fizemos. E a campanha, só de exibição em televisão e rádio, são R$ 4,4 milhões – fora os
lançamentos, mais os materiais gráficos, mais o pagamento da empresa que realizou e tudo mais, quase
R$ 7 milhões. Fora o orçamento de 2011, da execução das ações aqui; então, realmente, o orçamento de
2011 foi um orçamento bem gordo, foram quase R$ 10 milhões. E se a gente pensar, em se tratando de
uma política específica, de um segmento único, nem a política da mulher, a da igualdade racial, a de
setores especiais – isso fazendo um comentário lateral – tiveram esse aporte. Bom, aí a gente fez a
campanha, lançamos a campanha. Em 2012, a gente também teve outra cerimônia importante que foi o
lançamento da cooperação técnica com a UERJ. Então, pra você ver, em quatro anos, cinco anos, nós
tivemos sete ou oito cerimônias grandes, importantes, de marcação de lugar, visibilidade pública da
agenda LGBT no estado. Se você pensar, fora as duas conferências, pode contar aí uns 10 grandes
eventos; fora as conferências regionais que a gente fez. Somando tudo dá em torno de 20 grandes eventos;
fora a campanha [de divulgação do Programa Rio Sem Homofobia]: foram 15 lançamentos regionais”
(CARRARA; AGUIÃO, LOPES; TOTA, 2017, p. 223-225).
51
mistura a esse campo às suas análises- tomo por princípio o duplo fazer do gênero e do
Estado de que fala Adriana Vianna38. Este duplo fazer consiste na ideia de que fazer
Estado é necessariamente fazer e desfazer gênero, de que processos de estado inexistem
sem processos de gênero, e vice versa. A questão dos efeitos de estado trabalhada por
Mitchell (2006) e acima discutida, leva em conta a produção do Estado pelo seu efeito
de diferenciação, sendo o Estado diferente daquilo que se entende por sociedade,
daquilo que se entende por economia, resultando na compreensão do Estado como
sendo os efeitos de Estado a todo tempo. O Estado, então, aparece afastado, por
exemplo, do que é relativo aos corpos de travestis e de transexuais ou das suas
contendas e relações afetivas e sexuais- sendo esse efeito de distinção, de separação,
parte central e elemento absolutamente constitutivo dos próprios processos de estado.
Acrescentando assim à temática do fazer Estado o “gênero” e a “sexualidade”,
percebemos que o Estado é constituído também de processos, categorizações,
imaginações, que não são outra coisa que generificados- ao revés de um ente que apenas
se derrama sobre o campo da sexualidade e do gênero, aquele que cede, concede ou
nega, mas permanece e se relaciona a este campo a partir de uma exterioridade. Isso
implica em pensar a hipótese repressiva de Foucault (2015)39 não apenas em termos
puramente de sexualidade, em que ela é de fato bem trabalhada. Mas estender e
questionar essa hipótese em termos de processos de Estado, em cuja análise todavia, ela
continua nos guiando. Podemos pensar desde os modelos de Estado nacional, nos
desejos de produção correta, ou ainda, nas narrativas de interlocutores institucionais
apresentadas em nossa pesquisa.
Prosseguindo na tentativa de generificar a análise sobre Estado, cabe trazer a
reflexão tecida por Wendy Brown (2006) em “Finding the man in the State”, sobre a
tendência quase inevitável de nos referirmos ao Estado como “ele”, ente intrinsicamente
38
Valho-me aqui de considerações (pelas quais muito agradeço) feitas pela professora Adriana Vianna
na ocasião da minha qualificação de mestrado, e também durante o evento “II Seminário do NuSex:
gênero, corpos e sexualidade em debate”, realizado em junho de 2017 no Museu Nacional, Rio de
Janeiro.
39
Em “História da sexualidade I”, Foucault (2015) mostra um sexo colocado em discurso à exaustão, e
não um sexo reprimido e silenciado, colocando-se além da hipótese repressiva. Por “hipótese repressiva”,
refere-se à ideia de que a repressão do sexo seria uma evidência histórica, indicando a instauração ou
acentuação, a partir do século XVII de um regime de repressão ao sexo. O autor opõe-se a essa hipótese
não indicando sua falsidade, mas a recolocando “numa economia geral dos discursos sobre o sexo no seio
das sociedades modernas a partir do século XVII”, questionando a singularidade da interdição do sexo na
constituição da sexualidade do sujeito moderno (FOUCAULT, 2015, p. 15-17).
52
masculino que serve a ideais masculinistas através de suas burocracias. Tal como
Mitchell (2006), Brown entende pela não reificação e unidade do Estado, descrevendo-o
como terreno de poderes e técnicas em grande medida sem limites, ou ainda um
conjunto de regras e práticas que coabitam relações tensas e muitas vezes contraditórias
entre si.
A autora retoma a ideia de poder e controle sobre uma população desenhada
por Foucault em História da sexualidade (2015), em que seu exercício se dá pela
dimensão aparentemente paradoxal de uma não-identidade. Da mesma forma que o
autor, Brown entende as relações de poder pelo seu duplo aspecto intencional e não-
subjetivo. Ainda que essas relações sejam inteligíveis, estejam imbuídas de cálculo, e
visem a fins e objetivos, não significa que isso resulte da escolha ou decisão de um
sujeito individual (BROWN, 2006, p. 191-192). Ademais, as capacidades reguladoras e
disciplinares da burocracia permitem e mascaram os interesses dominantes
masculinistas externos à burocracia, de forma semelhante à visão de Foucault da
organização disciplinar das escolas e hospitais, como auxiliares de um objetivo
generalizado de controle social. O fato, por sua vez, de a burocracia como disciplina ser
tanto um fim quanto um instrumento, e, assim, “operar como poder e ao serviço de
outros poderes, ao mesmo tempo que se apresenta como extrínseca ou neutra em relação
ao poder, torna-se especialmente potente em modelar a vida de mulheres” (ibidem,
2006, p. 202, tradução nossa)40 ou ainda, podemos acrescentar, de pessoas LGBT.
Em Consonância com Brown, Vianna e Farias (2011) também chamam
atenção para a figura antropomorfizada e masculinizada do Estado, esta ideia-ente que
se defronta com personagens “eminentemente femininas: mães enterradas, mães que
enterram”, no caso de sua pesquisa. Evocando a fala de uma das mães de vítima do
Estado, que diz: “enquanto o Estado está lá sentado, comendo e bebendo do bom e do
melhor, nós estamos aqui enterrando mais uma mãe” (VIANNA; FARIAS, 2011, p. 92),
as autoras buscam percorrer as inferências desse antagonismo Estado-mãe, a partir de
uma análise de seu plano relacional e distintivo: o prazer de “um” em contraste com a
dor de “outras”; a inércia e omissão deste “um” com o ativismo no luto dessas “outras”.
Para tanto, a dimensão do Estado ideia de Abrams (2006) é mais uma vez retomada,
40
No original: “(...)operates as power as well as in the service of other powers, all the while presenting
itself as extrinsic to or neutral with regard to power, makes it especially potent in shaping the lives of
female clients of the state” (BROWN, 2006, p. 202).
53
como o ente que possui concretude, institucional, administrativa e governamental, mas
também como o ente simbólico “que atravessa e ordena o cotidiano das pessoas: aquele
que faz; que deve fazer; que pode realizar ou escolher não realizar” (VIANNA;
FARIAS, 2011, p. 93).
Em resumo, através das leituras das autoras e autores citados, podemos refletir
sobre as práticas de poder estatais, sobre aquilo que se entende como Estado, e de que
maneira esta reflexão está imbricada à análise da construção de políticas públicas
carcerárias, direcionadas além disso para uma “população” específica. Neste tópico,
pretendeu-se demonstrar a concepção de Estado enquanto feixes de relações de poder,
produzido por técnicas, e não enquanto um ente uno e dotado de consciência, ou
transcendente; e o duplo fazer do gênero e do Estado, sendo os processos de gênero
imprescindíveis aos processos de Estado e constitutivos dele, e vice-versa. Se a malha
da administração pública é definida como sendo o “Estado”, a agência e atuação de
atores institucionais que compõem sua dimensão organizacional, e das leis, normativas
e demais documentações construídas a partir desses processos de estado, constituem
importante foco de atenção e pesquisa, além de produzirem subjetividades e
assujeitamentos. Por fim, tanto os burocratas no cotidiano da administração pública,
como pesquisadores, ou ainda representantes da “sociedade civil” podem ensejar
“(re)arranjos”, “(re) configurações”, “(re)interpretações” na maneira de atendimento às
demandas dos grupos sobre os quais atuam, fazendo fronteiras, e a consequente crença
nelas, daquilo que se entende por “Estado”, o que acaba por lhe conferir uma real
materialidade (CASTILHO; SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014, p. 14).
57
especificidades biológicas, onde deverão também ser protegidas das investidas sexuais
dos criminosos presos - lembramos que o presídio Evaristo de Moraes aloca pessoas
que não seriam aceitas pelas facções em outros presídios, dentre elas, aquelas
condenadas ou acusadas de crime de estupro. Essa categoria mulher, assim, enredada
naquela categoria mulher descrita por feministas essencialistas, contra as quais se
dirigiram as críticas de teóricas feministas negras, originárias das periferias do mundo e
transfeministas (e sobre as quais nos debruçamos no primeiro capítulo), fundamenta em
sentido amplo políticas carcerárias, em um nó perverso entre vulnerabilidade e risco.
Ainda, as mulheres transexuais e travestis presas em prisões masculinas são enredadas e
colocadas em um outro duplo: objetos ao mesmo tempo do desejo sexual e da violência.
Dessa forma, as concepções que incidem sobre o reconhecimento de uma
identidade travesti ou transexual na normativa expressam noções de gênero
essencialistas e biologicistas, ao ligar o gênero àquilo que corresponde à biologia, ao
corpo apreendido como natural e genuíno. Ou ainda expressam noções de
fundacionalismo de gênero, vez que a resolução considera necessária- a fim de que se
reconheça a identidade transexual- a “correção” do “desvio do sexo” para adequá-lo à
identidade de gênero, ou ao menos a rejeição ao próprio órgão sexual.
Com base nesta resolução de caráter nacional, duas resoluções no âmbito
estadual fluminense foram assinadas, em 29 de maio de 2015: a Resolução n° 558, que
estabeleceu diretrizes e normativas para o tratamento da população LGBT no Sistema
Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, assinada pelo Secretário de Estado de
Administração Penitenciária; e a Resolução conjunta da Secretaria de Administração
Penitenciária (SEAP) e Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos
(SEASDH) nº 34, que criou o Grupo de Trabalho Permanente de Políticas LGBT no
Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, além do também já citado Termo de
Cooperação Técnica entre os órgãos41. O Grupo de Trabalho (GT) iniciou suas reuniões
em outubro de 2015, com a seguinte composição: – 08 (oito) representantes da SEAP,
41
Freire (2015a, p. 31), ao discutir o termo de cooperação estabelecido pelo Rio sem Homofobia e a
Defensoria Pública e seus núcleos, aponta para a complexidade que a criação de um termo de cooperação
técnica entre “órgãos” e múltiplas dimensões que compõem o Estado desvela. No caso em tela- a despeito
de se tratar de um Termo assinado entre duas Secretarias de estado, e não entre um programa
governamental criado pelo poder Executivo e um órgão do poder Judiciário- vemos a distribuição de
questões administrativas entre Secretarias distintas operar também na produção de um efeito de Estado,
representado pela construção de uma política comum, e pela materialização do Estado enquanto
administração.
58
sendo: a) 01 (um) representante do Gabinete do Secretário de Administração
Penitenciária; b) 04 (quatro) representantes da Subsecretaria de Tratamento
Penitenciário, sendo: 1. 01 (um) Coordenador de Saúde; 2. 01 (um) Coordenador de
Serviço Social; 3. 01 (um) Coordenador de Psicologia; 4. 01 (um) Coordenador de
Inserção Social. c) 03 (três) representantes da Subsecretaria Operacional, sendo: 1. 01
(um) Agente Penitenciário; 2. 01 (um) Diretor Prisional; 3. 01 (um) representante do
Gabinete da Subsecretaria Operacional. II – 03 (três) representantes da
SEASDH/SUPERDir, quais sejam: a) 01 (um) representante do Núcleo de
Monitoramento das Políticas LGBT; b) 01 (um) representante dos Centros de Cidadania
LGBT; c) 01 (um) representante do Gabinete da SUPERDir.
Em relação a este Grupo de trabalho criado pela resolução, porém, infere-se, a
partir da narrativa de atores institucionais nomeados para a composição do grupo, que
desde 2015, ano de sua criação, não houve regularidade nos encontros, e a composição
descrita acima também não foi mantida:
42
Nas considerações do texto da resolução n°558/2015, lê-se que: “Para efeito desta resolução serão
utilizados os conceitos sobre a população LGBT previstos no parágrafo único do art. 1º da resolução
conjunta acima referida, que considera: I) Lésbicas: denominação específica para mulheres que se
relacionam afetiva e sexualmente com outras mulheres; II) Gays: denominação específica para homens
que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens; III) Bissexuais: pessoas que se relacionam
afetiva e sexualmente com ambos os sexos; IV) Travestis: pessoas que pertencem ao sexo masculino na
dimensão fisiológica, mas que socialmente se apresentam no gênero feminino, sem rejeitar o sexo
biológico; e V) Transexuais: pessoas que são psicologicamente de um sexo e anatomicamente de outro,
rejeitando o próprio órgão sexual biológico”.
60
Assim, os critérios para a designação da identidade de gênero se misturam, ora
adotando-se a concepção biológica/fisiológica, ora adotando-se a autodeterminação.
Percebe-se, igualmente, que ao documentar tais categorias, tanto na resolução nacional
como nas estaduais, sujeitos são produzidos. E nesse sentido, as normatizações devem
ser encaradas mais do que instrumentos usados e formulados por burocratas; devemos
nos ater sobre como elas “constituem, hierarquizam, separam e conectam pessoas”
(LOWENKRON; FERREIRA , 2014, p. 82)43.
Desse modo, concebemos tais resoluções, e quaisquer outros documentos, não
apenas enquanto linguagem, representação social (nos termos pensados por Weber44),
algo apenas intermediário entre burocratas e aqueles sujeitos à burocracia. Os
documentos mais indexam do que são frutos de relações simbólicas, reflexos, referência
abstrata; possuem eles próprios agência, inscrevem e produzem o real. Dito de outro
modo, documentos não refletem o real, e sim o criam ativamente, inscrevendo e
estabilizando os sentidos de vivências específicas.
Nesse caso, os documentos também mostram as categorias identitárias
operando, e a micropolítica constante das interações entre documentadores e
documentados, ou seja, entre agentes institucionais e as pessoas privadas de liberdade.
“[D]esempenham um papel tanto no controle e coordenação de procedimentos, agentes
e ações administrativas quanto na construção de subjetividades, afetos, pessoas e
relações que extrapolam universos organizacionais” (LOWENKRON; FERREIRA,
2014, p. 83)45. Propõe-se, portanto, nos termos colocados por Lowenkron e Ferreira
(2014) apresentar um foco analítico diferente, que considere a agência dos documentos
face aos aparatos administrativos estatais.
Isso implica, por um lado, levar em conta a sugestão foucaultiana de
que os sujeitos são constituídos ("subjetivados") em meio a uma
multiplicidade de correlações de força, através de dinâmicas de
sujeição e resistência, ambas igualmente importantes para pensar a
43
No original: “(...)is therefore up to the ethnographer to face them as more than recording instruments
used by bureaucrats and to apprehend in what way they constitute, hierarchize, separate and connect
people” (p.82).
44
Hull critica Weber em sua tendência a se apoiar na tecnicidade dos documentos para voltar às questões
da sociologia, vendo os documentos como “expressões das normas” ou ainda “como instrumentos para a
materialização (HULL, 2012, p. 256).
45
No original: “play a role both in controlling and coordinating procedures, agents and administrative
actions and in constructing subjectivities, affects, persons and relationships that extrapolate organizational
universes” (LOWENKRON; FERREIRA , 2014, p. 83).
61
noção de agência (...). Por outro lado, deve-se lembrar que, nas
burocracias estatais, os documentos são meios privilegiados de
difusão de responsabilidade e de produção de agência coletiva (Hull,
2012b), ou, nesse caso, uma agência compartilhada entre agentes de
documentação e pessoas documentadas (LOWENKRON; FERREIRA,
2014, p. 86, tradução nossa).46
46
No original: This implies, on the one hand, taking into account the foucauldian suggestion that subjects
are constituted (“subjectified”) amidst a multiplicity of correlations of force, through dynamics of
subjection and resistance, both of which are equally important in thinking about the notion of agency
(Mahmood, 2006). On the other hand, one must remember that, in state bureaucracies, documents are
privileged means of diffusing responsibility and of producing collective agency (Hull, 2012b), or, in this
case, an agency shared between documenting agents and documented persons (LOWENKRON;
FERREIRA , 2014, p. 86).
47
Cf. Cardoso e Hirata (2017), a técnica do exame “(...) se apoia no recurso às técnicas de notação, na
organização de arquivos, na sistematização de dossiês, ou seja, nas diversas formas documentais de
inscrição de informações sobre os indivíduos. Por meio da noção de caso, diferencia-se cada um desses
recursos, individualizam-se as situações, examinam-se minuciosamente os detalhes. No exame há uma
passagem de mão dupla, partindo do professor, médico ou instrutor militar – que buscam objetivar nos
indivíduos seus conhecimentos – e também do aluno, paciente ou cadete – que informam os primeiros
sobre suas aptidões, habilidades e capacidades. O que permite essas passagens é a inscrição desses
indivíduos em uma organização via classificação e qualificação que os individualizam minuciosamente e
lhes esquadrinham os corpos no tempo e no espaço em um regime de notações que descreve, mensura e
compara cada caso particular com os outros” (CARDOSO; HIRATA, 2017, p. 84).
62
Demonstraremos na próxima parte, destinado às entrevistas dentro do presídio
Evaristo de Moraes, o descompasso existente entre as categorias estabelecidas pelas
resoluções e aquelas que emergem48 no cenário prisional, no qual, para além de ser
observada uma diversidade de categorias, destaca-se o caráter circunstancial e, por
vezes, ambivalente das identificações identitárias, tendo em vista a dinamicidade de
categorias em produção. Portanto, a complexidade de diversos fatores circunstanciais,
relacionais e marcadores da diferença que constituem os indivíduos deve ser analisada
face à classificação categórica. Esta classificação implica uma cristalização identitária
produzida pela documentação governamental, destinada a estabelecer políticas públicas
específicas para determinado conjunto de pessoas, cujas vivências muitas vezes
escapam de enquadramentos estanques, simplórios e específicos estabelecidos pela
documentação burocrática estatal.
Em sua tese de doutorado, Silvia Aguião (2014a) busca pensar como o processo
de criação de uma “população” específica, a “população LGBT”, resulta também, ao
mesmo tempo, na criação do próprio Estado. O fazer-se Estado, então, que compõe o
título do trabalho, é relativo não só às formas pelas quais o Estado produz os sujeitos
que governa e administra, como também ao processo de constituição desses mesmos
sujeitos, “como parte de um fluxo contínuo de produção do próprio Estado” (Aguião,
2014a, p. 14,).
Ao resgatarmos o caráter de reconhecimento objetivado pelas políticas de
identidades- destaca a autora-, que se por um lado parece decorrer de uma demanda dos
próprios movimentos sociais, por outro parece ser provocada também pelas “próprias
morfologias e rotinas administrativas de governo”, entrevemos que se “certas estratégias
48
Ainda que eu não pretenda me aprofundar neste ponto sobre a emergência de diferentes categorias
identitárias, vale a pena destacar o trecho de “Quadros de Guerra”, em que Butler discorre sobre a
questão: “O problema não é única ou meramente “ontológico”, já que as formas que o sujeito assume,
assim como os mundos da vida que não se ajustam às categorias disponíveis do sujeito, emergem à luz
dos movimentos históricos e geopolíticos. Digo que eles “emergem”, mas isso, evidentemente, não
significa que haja nenhuma garantia, já que essas novas formações só podem “emergir” quando existem
enquadramentos que estabelecem a possibilidade dessa emergência. Portanto, a questão é: esses
enquadramentos de fato existem e, em caso afirmativo, como funcionam?” (BUTLER, 2015, p. 199).
63
de ação incorporam identidades como figuras legítimas de reivindicação, outras vezes
cria-se uma reivindicação legítima e procuram-se identidades que a ela se adéquem”
(AGUIÃO, 2014a, p. 15).
Os discursos trazidos por essas tentativas de regular direitos endereçados às
pessoas LGBT podem ser compreendidos desde o acionamento de
64
local elegido para a realização de trabalho de campo, e sobre onde, portanto, a análise se
recairá e se restringirá.
A frase que dá título a este tópico foi proferida por Majorie Marchi, então
assessora da Secretaria estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de
Janeiro (SEASDH) e presidenta da Astra-Rio, a Associação de Travestis e Transexuais
do estado do Rio de Janeiro, em entrevista a mim concedida em outubro de 2015 em
uma sala do 6° andar do prédio da Central do Brasil. Na ocasião, Majorie me explicava
que, em que pese as merecidas críticas devidas à atuação do ex-governador Sérgio
Cabral, no que tange às pautas LGBT vislumbrou-se um grande avanço durante sua
gestão. Foi durante ela que se criou o programa Rio sem Homofobia, no ano de 2009,
com a designação de um órgão para “articular, desenvolver e acompanhar as políticas
públicas para LGBT”49, tendo sido criada já em 2007 a Câmara Técnica para
Elaboração do programa. Ademais, foi sob o seu mandato que se criara o Conselho
estadual para políticas LGBT, por meio do decreto 41.789/09 em abril de 2009, a partir
das resoluções da I Conferência Estadual de Políticas Públicas para GLBT50 do Rio de
Janeiro, ocorrida no ano antecedente. Por essas razões, para Majorie, "Cabral foi um
governador que abraçou a causa LGBT".51 As mesmas informações foram corroboradas
por Claudio Nascimento, então coordenador do Programa Rio sem Homofobia, em
entrevista realizada em maio de 2016, em que destacou também os empreendimentos de
desde então para se articular uma política LGBT junto à SEAP:
49
De acordo com a assessora, já em março de 2007 a SEASDH passara, entre outras responsabilidades, a
cuidar do enfrentamento da homofobia e da promoção da cidadania LGBT.
50
Tanto a primeira conferência nacional como a estadual do Rio de Janeiro foram convocadas utilizando-
se a sigla “GLBT”. Durante a conferência nacional, após decisão da plenária final, a sigla foi alterada
para “LGBT”, no intuito de fomentar a visibilidade de mulheres Lésbicas, representadas pela letra “L”.
Facchini (2005) faz uma discussão aprofundada sobre a dinâmica das mutações de siglas e termos ao
longo das últimas décadas.
51
Cumpre pontuar também a participação do ex-governador na concessão de direito à união estável a
casais homoafetivos pelo Supremo Tribunal Federal em 2011. O julgamento originou-se da Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI) 4277, de autoria da Procuradoria Geral da República, que demandava o
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar; e da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, ajuizada por Sergio Cabral, sob a alegação de
que a diferença na aplicação de regime jurídico às uniões estáveis e homoafetivas não respeitava o
princípio da dignidade da pessoa humana e demais princípios constitucionais, tais como a igualdade, a
liberdade e a segurança jurídica. As ações, votadas em conjunto, foram julgadas procedentes por
unanimidade.
65
técnica para elaboração do programa Rio sem homofobia52, a SEAP já
é convidada desde seu nascedouro da política no Estado para junto
com a gente discutir os problemas e demandas da população LGBT no
sistema carcerário. Então, logo que entrei em maio de 2007, em 20
junho de 2007 a gente criou uma câmera técnica para elaboração do
programa Rio sem homofobia, com representantes de diversas
secretarias, inclusive da SEAP, e representantes do movimento social
LGBT (Claudio Nascimento).
Voltando à entrevista com Marjorie, foi colocado ainda que o então governador,
Luiz Fernando Pezão "não é tão amigo, mas também não atrapalha, possibilitando a
continuidade dos projetos idealizados no governo anterior". Foram tecidos elogios
também ao atual secretário de Estado de Administração Penitenciária, Erir Ribeiro da
Costa Filho, "pela sua consciência em relação às pautas propostas e pelo compromisso
assumido no momento de confecção das resoluções", em referência às resoluções n°
558 e 34 de 2015, e por ser “o único secretário a ir a uma reunião ordinária do Conselho
LGBT”.53 Além disso, a superintendente relatou a insegurança e o medo de que uma
futura gestão ou até mesmo que "jogos políticos" na gestão de então fizessem com que
os avanços no campo dos direitos LGBT retrocedessem. Marjorie apontava como
agravante de seu medo o fato de as políticas direcionadas a pessoas LGBT se
embasarem em resoluções, que acreditava serem mais precárias e passíveis de
revogação que aquilo que se situa no âmbito das leis.
52
Sobre a criação da câmara técnica, extrai-se da página do programa que: “Em 28 de junho de 2007
demos uma nova guinada na luta pela cidadania LGBT. Em cerimônia pública, o Governador Sérgio
Cabral e seu secretariado lançaram a CÂMARA TÉCNICA, a fim de elaborar o Programa Estadual Rio
Sem Homofobia, que seria configurada meses depois por 14 representantes do poder público e outros 14
representantes do Movimento LGBT e de Direitos Humanos, além de especialistas universitários.
Este ato do Governador de instalação da CÂMARA TÉCNICA, via decreto de n.º 40.822/07, foi
celebrado com uma cerimônia no Salão de Inverno do Palácio Guanabara. A nomeação dos 28
representantes teve como objetivo a elaboração do Programa Estadual Rio Sem Homofobia, de combate à
discriminação e promoção da cidadania LGBT.
Este foi o ponto de partida para a construção coletiva da política voltada para LGBT no estado. A
CÂMARA TÉCNICA se reuniu durante seis meses e elaborou um relatório de propostas e ações que foi
discutido e aprovado pela 1ª Conferência Estadual de Políticas Públicas e Direitos Humanos para LGBT,
ocorrida entre os dias 16 e 18 de maio de 2008”. Disponível em <
http://www.riosemhomofobia.rj.gov.br/secao/sobre/nossa-historia>. Acesso em 10.jan. 2017
53
Tal como Majorie, Claudio Nascimento também entendeu como positiva a mudança de secretário da
Secretaria de Administração Penitenciária: “Houve também uma mudança de secretário, o secretário que
tomou posse acho que em maio do ano passado deu possibilidade pra gente também avançar nessa
agenda. Isso também é importante dizer: dependendo do gestor, a agenda fica mais silenciada ou não, e
com isso a gente conseguiu estabelecer um nível de diálogo e ele compreendeu a necessidade de a gente
gerar algumas normatizações” (Entrevista concedida por Claudio Nascimento).
66
Pensando que no Brasil é a partir da década de 1990, e principalmente a partir
dos anos 2000 que o campo do ativismo relativo a questões LGBT passa a atuar dentro
do que se entende por Estado, temos, segundo Facchini (2016), uma inclusão que se dá
com a formulação de políticas públicas, não pelo reconhecimento por parte do Estado
“das demandas de cidadania de LGBT ou pela criação de conselhos de direitos, mas
pela política de saúde e, mais especificamente, a política de combate às DSTs e Aids”
(FACCHINI, 2016).
Não obstante, hoje já temos um cenário diferenciado, em que se pode observar
uma assimilação maior das pautas LGBT pelo poder público com a criação de
Conselhos nacionais, estatais e regionais, com um deslocamento progressivo do foco
exclusivo em questões sanitárias para outras áreas referentes à garantia de direitos
civis/humanos em um sentido amplificado, incluindo-se os sexuais, que passam a ser
lidos com as lentes dos direitos humanos. Esse cenário faz parte de um contexto mais
amplo de incentivos à participação da sociedade nos processos de elaboração de
políticas públicas específicas para determinados grupos populacionais, fomentado
principalmente pelas gestões presidenciais de Lula e Dilma Rousseff (AGUIÃO, 2014a,
p. 281).54
Especialmente no Rio de Janeiro, é notável uma certa continuidade entre os
movimentos percursores da década de 90 e o histórico mais recente da política LGBT
no estado, local usualmente destacado como pioneiro e inovador no que diz respeito a
essa política, e à construção de uma imagem pública trabalhada midiaticamente. Desde
então, houve no estado o empreendimento de se fazer da temática da violência contra
homossexuais uma problemática de Estado, em uma ação articulada entre ativistas,
pesquisadores, gestores. Em 2004, com o lançamento pelo governo federal do Programa
Brasil Sem Homofobia, implementou-se progressivamente dispositivos e aparatos de
54
No artigo “Não somos um simples conjunto de letrinhas”, Silvia Aguião faz uma análise apurada sobre
o incremento dos processos de participação social nos últimos mandatos presidenciais, trazendo dados
comparativos sobre o aumento do número de conferências e sobre os tipos de conferências convocadas:
“Avritzer (2013:12) realiza uma análise da “participação social”' no Brasil pós constituição de 1988 e
destaca a concentração desse formato de eventos a partir da gestão do governo Lula: ‘como sabemos,
conferências nacionais existem aqui desde os anos 1940, quando Getúlio Vargas convocou a primeira
conferência nacional de saúde. Desde então, ocorreram no Brasil 126 conferências [...] 74 foram
realizadas pelo governo Lula e 85 realizadas pelos governos Lula e Dilma Rousseff, tomados
conjuntamente’. Segundo pesquisa realizada em parceria Polis/Inesc, 70% desses eventos foram a
respeito de temas inéditos e ocorreram entre 2003 e 2010, caso da primeira conferência nacional LGBT
(ver Polis/Inesc, 2011)” (AGUIÃO, 2016, p. 281).
67
gestão governamentais, cujas ações foram ratificadas nas Conferências LGBT
nacionais, estaduais e regionais ocorridas ao longo destes anos. Essas ações foram
materializadas também em documentos de promoção dos direitos LGBT, a exemplo do
Plano Nacional de Promoção da Cidadania LGBT, de 2009, e do Plano Nacional de
Saúde Integral de LGBT, de 2010. O Rio de Janeiro é destaque neste cenário nacional
de iniciativas, fornecendo personagens e cenas públicas de impacto, como a assinatura
de uma carta-compromisso pelo então candidato a governador do estado em 2006,
Sergio Cabral. Elaborada conjuntamente a lideranças do movimento LGBT, além de
pessoas cumprindo mandatos políticos, a carta foi considerada o pontapé inicial para a
formulação do que viria a ser o Programa Rio sem Homofobia (CARRARA; AGUIÃO,
LOPES; TOTA, 2017, p. 25-26).
No caminho de buscas que me fizessem entender em que contextos se davam as
decisões políticas que levavam ao implemento de resoluções e outras normativas
direcionadas a pessoas LGBT, percebi, portanto, que a criação de Conselhos LGBT e a
realização de Conferências LGBT, tanto nacionais, quanto estaduais e regionais,
constituíam um importante cenário de inscrição desses processos de formulação de
políticas direcionadas especificamente para essa população. Tal percepção me foi
possível principalmente pelas narrativas constantes das entrevistas realizadas com os
atores institucionais citados. Por meio delas, busquei ainda relatórios oriundos das
Conferências que me possibilitassem ao menos ter uma noção da composição daqueles
espaços e dos possíveis debates e tensões neles travados, mesmo que precariamente.
O que é fato notório em todas, segundo os registros desses relatórios, é a
presença de inúmeros coletivos que trabalham com a diversidade sexual e de gênero, de
personagens consideradas “líderes” ou apoiadoras do movimento LGBT, de
organizações não-governamentais, de pesquisadores acadêmicos e ainda de
representantes da “sociedade civil”. Esse fator reveste esses eventos com a “marca” da
participação social, ao serem enxergados como lugares de exposição de conflito- o que,
ao mesmo tempo, não implica em não os situar também enquanto técnica de governo,
vez que convocados pelo poder público. São também espaços que englobam trajetórias
pessoais, profissionais, militantes, acadêmicas, propícios para o encontro de diferentes
marcadores e da emergência de contendas por poder. “São ao mesmo tempo espaços
fundamentais para a enunciação de identidades e demandas que aparecerão decantadas
68
mais tarde nos documentos construídos como corolários desses encontros/confrontos”
(AGUIÃO, 2014a, p. 52-53). A composição do Conselho obedece também a esta
dinâmica, sendo que, de acordo com informações obtidas através da página eletrônica
do programa Rio sem Homofobia:
O Conselho LGBT é composto por 40 (quarenta) integrantes, sendo
60% da sociedade civil e 40% do poder público com mandato de 02
(dois) anos, com a possibilidade de recondução por mais 02 (dois)
anos.
São representantes de 12 secretarias estaduais; além da Alerj,
Ministério Público Estadual (MPE), Defensoria Pública Geral do
Estado do Rio de Janeiro (DPGE) e Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB-RJ).
Organizações LGBT, registradas, sediadas e em funcionamento no
estado do Rio de Janeiro contam com 18 (dezoito) representantes.
Além delas, são reservadas 3 (três) vagas para representantes de
Organizações de Direitos Humanos, que contemplem em seu
programa e/ou missão a defesa dos direitos civis e da promoção da
cidadania de homens e mulheres independentes da orientação sexual e
identidade de gênero.
Especialistas e acadêmicos de renomada expertise e trabalho sobre
promoção da cidadania LGBT e combate à homofobia também
possuem 3 (três) cadeiras no Conselho LGBT/RJ. 55
55
Disponível em < http://www.riosemhomofobia.rj.gov.br/secao/sobre/conselho>. Último acesso em
22.jan. 2017.
56
Como já mencionado, constitui objetivo das conferências estaduais, além da discussão de propostas
locais, eleger delegados representantes do estado na conferência nacional, através da seguinte
69
alianças políticas, além de rupturas, rearranjos e reorganizações partidárias são
estrategicamente fomentadas. As conquistas de determinados segmentos (geralmente
representados por uma das letras constantes da sigla LGBT) são por vezes celebradas e
ostentadas, ao passo que insatisfações e preterições apontadas. As conferências e
conselhos são então responsáveis pela produção não só de debates, mas de documentos,
acordos, atualização de lideranças, afirmação de compromissos e sedimentação ou
desmantelamento de relações. A partir deles, agentes institucionais tomam iniciativas,
muitas vezes em articulação uns com os outros, culminando, ao fim, no impulso para a
edição de novas normativas.
Como explica Lívia, defensora pública responsável pelo NUDIVERSIS, as
denúncias trazidas pelo Conselho estadual do Rio de Janeiro foram o fator catalisador
para as inspeções nas unidades de privação de liberdade, com enfoque na situação da
“população LGBT”, que sistematizou suas principais demandas e reclamações:
metodologia: “[O]s participantes da reunião podem se inscrever em duas categorias: como delegados, que
possuem voz e voto em plenária e podem ser eleitos como representantes para a etapa nacional; ou
observadores, que podem até ter voz, mas nunca voto durante a reunião. Os delegados, por sua vez, são
subdivididos em “poder público” ou “sociedade civil”, conforme a sua inserção institucional. Na plenária
final, através de chapas compostas pelos credenciados como delegados, são eleitos aqueles que irão
assumir a representação na próxima etapa da conferência (AGUIÃO, 2014a, P.235).
57
O questionário aplicado às pessoas LGBT presas me foi fornecido pela Defensoria Pública, e constará
ao final deste trabalho como anexo (Anexo 1).
58
O Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivos, da Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro e o programa Rio sem Homofobia assinaram em 30 de janeiro de 2014 um termo de
cooperação técnica de atuação conjunta em atendimento à população LGBT, que pode ser acessado pelo
link:<http://www.riosemhomofobia.rj.gov.br/files/pdf/aab3238922bcc25a6f606eb525ffdc56.pdf?1485760
647>. Acesso em 20 fev. 2016
70
uma ação de vários pilares, teve uma troca muito grande, interessante.
Isso gerou um grupo de trabalho permanente, que ainda tá bem
incipiente, mas que faz visitas às unidades, e conta com servidores,
pessoas da sociedade civil, egressos do sistema penitenciário, LGBT,
que discutem formas de melhorar esse acolhimento das pessoas
privadas de liberdade.
59
Disponível em < http://www.riosemhomofobia.rj.gov.br/secao/sobre/conselho>. Último acesso em
22.jan. 2017.
72
plano de saúde pra população LGBT lá, estabelecido pela Conferência
Estadual que o programa Rio sem Homofobia, o governo do estado,
que nós fizemos. Mas essa agenda não somos nós que vamos executar,
a saúde que tem que executar. Nosso papel agora, o que temos tentado
fazer é apresentar no Conselho LGBT o que avançou e o que não
avançou em cada área, isso a gente tem feito. E ai cada área que se
explique pro Conselho, pra sociedade civil, porque que não avançou,
no que está tendo dificuldade, pra que a sociedade civil dentro do
Conselho e o Conselho como um todo possa então atuar em cima
daquela dificuldade (Entrevista concedida por Claudio Nascimento,
grifos nossos).
60
Cf. AGUIÃO (2014, p. 3-4): “A primeira conferência do estado do Rio de Janeiro foi antecedida por
nove conferências regionais, organizadas em função da subdivisão por região geopolítica do estado.
Nessas conferências foram discutidas e definidas propostas para cada sub-região, assim como eleitos– em
número proporcional à população da região– os delegados que participaram da etapa estadual”.
73
A segunda e a terceira conferência se deram, respectivamente, em 2011 e 2016.
Como mencionado anteriormente, as conferências estabeleceram diretrizes para a
implementação e execução de políticas públicas pelos poderes públicos e secretarias,
além de fiscalizar aquelas que já haviam sido adotadas previamente. O recorrente
emprego de expressões como “avaliar”, “acompanhar”, “monitorar”, “executar” pelos
atores institucionais mostra também a pretendida interação entre a “sociedade civil” e o
“Estado”- como se fossem distintas esferas-, ao passo que as Conferências passam a ser
lidas como espaços de participação democrática, onde a diversidade sexual e de gênero
é fomentada, seja por aqueles colocados na categoria de “Estado”, ou aqueles
entendidos como “sociedade civil”, ou ainda por quem compõe a categoria “militância”.
Esses termos entram num domínio (léxico) comum compartilhado tanto por
agentes governamentais como por aqueles que compreendem e dominam a “morfologia
de Estado” presente nessas políticas públicas, morfologia esta que delimita o campo no
qual esses sujeitos LGBT- e no caso específico, sujeitos trans- são produzidos e
consequentemente passíveis de serem administrados enquanto “população”,
“‘imaginável’, modelável, e adaptável dentro de uma certa gramática, cujas regras e
limites são mais ou menos elásticos” (AGUIÃO, 2014a, p. 239).
75
pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro durante a Conferência Estadual LGBT
realizada em 2011”, a Defensoria Pública realizou uma série de visitas às unidades
prisionais, visando à averiguação da situação das pessoas LGBT encarceradas no Rio de
Janeiro, o que culminou na sistematização de um relatório (Relatório de situação das
pessoas LGBT encarceradas no sistema prisional do Rio de Janeiro- Defensoria Pública
do estado do Rio de Janeiro- 2015). Elaborado no período de janeiro a março de 2015,
o Relatório apontou que no caderno de ações e metas supracitado consta que, somente
no âmbito da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, dezessete metas
haviam sido traçadas, podendo-se enumerar, entre elas:
61
A exposição do Relatório foi seguida também de divulgação midiática, a exemplo de uma reportagem
que trouxe relatos de uma egressa transexual do Sistema Penitenciário, acerca das violações sofridas
durante o cumprimento da pena de reclusão. A reportagem pode ser acessada pelo link:
http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-04-14/transexuais-sofrem-agressoes-e-abusos-dentro-de-
penitenciarias.html>. Acesso em jul. 2016.
77
se entender o funcionamento da máquina estatal, mas também aquilo que se produz nos
meandros menos visíveis das malhas administrativas do poder, aquelas técnicas e
práticas por meio das quais um preciso efeito Estado é produzido, e adquire
materialidade através de uma série de efeitos estruturais que se conjugam.
A questão que não se pode perder de foco, além do mais, é que todas as
conquistas, avanços, a presença do que seria a sociedade civil na persecução de
políticas direcionadas à população LGBT, tudo isso constitui matéria de processos de
Estado; todas essas categorias representam coisas de Estado. Inclusive nós,
pesquisadoras e pesquisadores, somos sujeitos de Estado, da mesma forma que somos
sujeitos do ativismo e de determinado posicionamento político. E no fato de sermos
sujeitos de Estado reside a dificuldade de voltarmos a análise para os processos de
Estado que se dão através da gestão e administração de uma certa população, de um
certo ativismo, ao invés de quase cairmos na crença de que “tudo vai dar certo”, de que
a “política está avançando”. Essa crença é ela própria também um “efeito de Estado”
(MITCHELL, 2006), vez que nos meandros das disputas por versões e formas ideais de
ação, subscreve-se a ideia de um “horizonte justo” a ser perseguido também através de
políticas públicas, corroborando-se um tipo de ilusão orientadora das possibilidades de
ação dos atores em meio a um universo de desigualdades das mais variadas ordens.
(VIANNA, 2013, p. 16).
Somos, e nos fazemos, assim, Estado, seja ao produzirmos conhecimento ou seja
quando participamos ativamente dos processos de intervenção enquanto agentes de
Estado (SOUZA LIMA; CASTRO, 2015, p. 40). No caso dessa pesquisa, no meu papel
de auxiliar da defensora pública, por exemplo, em que eu era inevitavelmente enxergada
como uma agente da Defensoria Pública pela população transexual e travesti privada de
liberdade. No Evaristo de Moraes, em que pese meu cuidado em esclarecer que eu
estava realizando uma pesquisa autônoma à atuação da Defensoria Pública,
invariavelmente eu era para as entrevistadas parte daquela instituição e em certa medida
sua personificação.
78
2.5. Políticas de Estado versus políticas de governo, ou processos de Estado e
governamentalidade?
O ponto a ser abordado neste tópico diz respeito a uma distinção que se mostra
recorrentemente presente nas falas dos atores entrevistados, qual seja entre “políticas de
Estado” e “políticas de governo”, e como nas narrativas desses atores as últimas podem
ser mais precárias e passíveis de revogação, o que sinalizaria a vulnerabilidade de
determinadas pautas, dentre elas as políticas voltadas à população LGBT presa. Assim,
o foco neste tópico recai sobre a percepção dos atores acerca do que seriam políticas de
estado e políticas de governo, o significado que atribuem às duas categorias, ainda que
analiticamente essa distinção por vezes não se sustente.
A grosso modo, de acordo com as narrativas, as políticas de governo seriam
aquelas implementadas pelo Poder Executivo através de um processo elementar de
formulação, com vistas a cumprir demandas de uma agenda política interna, mesmo que
impliquem decisões complexas. Políticas de Estado seriam aquelas que, em geral, fazem
jus a uma Assembleia ou Parlamento para sua aprovação, envolvendo mais de uma
agência estatal e instância de discussão, que em tese teriam um impacto mais sistêmico,
de maior abrangência no seio da sociedade.
Iniciando pela entrevista de Majorie, foi afirmado, como já colocado, que a
gestão do ex-governador Sérgio Cabral possibilitou um grande avanço de agendas
relacionadas às pautas LGBT, e que havia um medo e uma insegurança de que os
avanços no campo dos direitos LGBT retrocedessem devido a questões políticas. O fato
é que poucos meses após a entrevista, no final de 2015, aconteceu a nomeação do pastor
evangélico Ezequiel Teixeira, do recém-criado Partido da Mulher Brasileira (PMB)
como secretário da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (nomeação que
é feita pelo governador do estado, à época Luiz Fernando Pezão), o que culminou no
desmonte do Programa Rio sem Homofobia. Em dois meses à frente da pasta, Ezequiel
deixou suas convicções religiosas prevalecerem; esvaziou o programa através da
demissão em massa de funcionários e do não repasse de verbas para sua manutenção,
além de fechar quatro centros de assistência à população LGBT, conforme me relatou
Claudio Nascimento em sua entrevista.
79
Apenas após declaração pública de Ezequiel dizendo acreditar na "cura gay",
Luiz Fernando Pezão decide exonerá-lo, em fevereiro de 201662, e o programa Rio sem
Homofobia começa a se reorganizar, readmitindo funcionários, admitindo novos e
retomando suas atividades de atendimentos e promoção da cidadania LGBT no Rio de
Janeiro. Não obstante, em fevereiro de 2017, após inúmeras queixas relacionadas à falta
de repasse para a manutenção do programa, seu coordenador, Claudio Nascimento, é
exonerado, e o programa, dois meses depois, esvaziado.
Na entrevista realizada em seu gabinete, em maio de 2016, Claudio, por diversas
vezes, deu importante destaque à oposição entre “política de Estado” e “política de
governo”. Para ele, apesar de haver a possibilidade de se revogar uma política de
Estado- citou como exemplo o esvaziamento de políticas públicas importantes durante o
governo do então presidente interino Michel Temer- no caso de uma política de
governo, a situação seria mais problemática, porque
O desafio a ser superado seria assim justamente, para Claudio, demandar dos
parlamentares na Assembleia Legislativa a transformação das conquistas acumuladas
nos últimos anos em leis, porque mesmo não sendo a lei em suas palavras:
(...) uma garantia que aquilo vai acontecer, mas pelo menos temos
mais instrumentos, inclusive para o Ministério Público, para a
Defensoria, para a sociedade civil também cobrar a perenidade e
continuidade das políticas. Porque realmente um decreto, uma
resolução, são mais frágeis, podem ser revogados a qualquer
momento.
62
O caso recebeu grande atenção da mídia, com a veiculação de notícias em canais de ampla circulação,
tais como: <https://extra.globo.com/noticias/extra-extra/pezao-exonera-ezequiel-teixeira-pastor-
secretario-que-diz-acreditar-na-cura-gay-18692236.html>. Acesso em 18 fev. 2016.
80
ausência de uma lei que o fundamente, ainda que fosse visto como referência para os
demais estados brasileiros:
83
figura de alguém que representa o acirramento da precarização das vidas de populações
marginalizadas e encarceradas, temos a produção dessa mesma figura em um lugar
espetacular. Essa ambivalência encaixa-se, conquanto, na narrativa dos direitos
humanos, contraditória e flexível o bastante para comportar ambivalências estratégicas,
sendo o Estado responsável pela implementação de determinada documentação capaz de
fazer-se ocupar um lugar de preocupado e comprometido com os direitos humanos.
Nesse cenário, considerando especialmente o espetáculo de aprovação das
resoluções de 2015, pode-se inclusive observar uma certa fetichização da população
LGBT, e em especial de transexuais e travestis para a produção desse Estado, que é um
Estado abstrato, um Estado-ideia. Agora em uma segunda esfera, do Estado enquanto
administração, representado pela Defensoria na figura do NUDIVERSIS, pela
administração penitenciária, pela própria administração do presídio, vemos a figura do
Estado como disputa. E a própria demanda desses agentes estatais por uma maior
inserção e aliança com o que entendem por sociedade civil, militância ou ainda pessoas
acadêmicas demonstra isso.
Nesse contexto, parece ser mais interessante deslocar essa distinção (entre
“políticas de Estado” e “políticas de governo”) para se trabalhar as políticas de governo
e sua relação com processos de Estado. Políticas de governo, como o programa Rio sem
Homofobia, embora reverberem em seu cotidiano e atuação prática a capilaridade de
processos de estado, são ausentes em sua fundamentação de uma trama documental que
as legibilize e legitime. Essa ausência afasta políticas como o programa da
institucionalidade, acompanhada por aparatos e dispositivos burocráticos próprios, e de
uma gestão autônoma. Ao contrário da Defensoria Pública, por exemplo, ou da própria
prisão, que ainda que esteja sujeita à mudança de direção a partir de uma decisão do
poder Executivo, mantém geralmente os agentes produtores da instituição prisional,
todo o corpo profissional que possui alguma expertise que os configura como agentes de
Estado (as psicólogas, enfermeiras, assistentes sociais, agentes de segurança
penitenciária, etc.).
No caso da prisão, a relação entre políticas de governo e processos de Estado
pode ser vislumbrada na advertência feita por Barbosa (2005) acerca da interrupção de
programas ou a necessidade de se construí-los a partir do “zero”. Em sua tese, o autor
enfatiza a importância que uma mudança de governo pode trazer para o universo
84
prisional, em que expectativas são criadas em torno dos rumos tomados pela nova
composição da máquina que se inaugura. Os quadros de comando, por exemplo, como
diretores da unidade prisional, são designados no Rio de Janeiro pelo secretário de
Administração Penitenciária, que por sua vez, é nomeado pelo governador do estado. A
prisão depende em grande medida, assim, do rearranjo desses quadros, que pode
inclusive determinar um ajuste de ética comportamental, capaz de se alastrar por meio
de redes capilares que atravessam ordens de comando, mensagens formais e informais,
que conformam todo o “Sistema”.
85
e contingenciais) que ao serem ajustados (algum dia!), mostrarão esse “Estado” em um
local de excelência e completude.
Entendemos, entretanto, que esses desajustes não são nem aleatórios, nem
contingenciais, mas sim condições absolutamente centrais. Condições que demonstram
as contradições fundamentais de um “Estado” que constrói grandes e progressistas
políticas públicas, e que de alguma forma se vale desse papel de provedor dos direitos
humanos de pessoas LGBT para sua promoção; mas que ao mesmo tempo produz
concretamente nas carnes e corpos dessas pessoas o lugar efetivo a elas destinado, um
lugar de abjeção (BUTLER, 2010)- representado pela sua alocação no seguro do
seguro, pela umidade das celas do presídio Evaristo de Moraes, pelo silicone industrial
que, em contato com o chão frio, produz na pele feridas.
2.6. Onde está a prisão nisso tudo? O “sistema” edificado no fazer Estado
86
Uma coisa é evidente, todavia, neste segundo capítulo: a prisão (cercada por
altos muros) nele não aparece, nem empírica, nem etnograficamente. Isso porque os
agentes institucionais sobre os quais esta pesquisa se debruça nessa parte do texto estão
produzindo uma prisão diferente daquela materializada pelos pavilhões, celas, alas,
pátios. A prisão que se edifica neste segundo capítulo é a prisão “sistema”, o “sistema”
que menciona a assessora da SEAP, ao dizer que “existiam travestis dentro do Evaristo
de Moraes, ele sempre foi um ponto, só que o sistema não tinha ainda aquele olhar em
cima das travestis”. Essa prisão não deixa de chegar aos pavilhões, celas, alas, pátios,
muros, mas é tangencial a esses espaços. Essa prisão- assim como o gênero- é um
dispositivo de fazer e fazer-se no Estado, executado por atores institucionais
específicos, que no Rio de Janeiro passam pela Defensoria Pública, pela Secretaria
estadual de Administração Penitenciária, pelo Rio sem Homofobia, pela Secretaria de
Assistência Social e Direitos Humanos (nunca desvinculados de uma produção
documental e burocrática), e ainda por outras instâncias que não constituíram nosso
objeto de pesquisa.
Dessa forma, ainda que essa segunda parte do trabalho possa parecer externa ao
universo prisional, ela mostra a materialidade daquilo que Salla (2006) aponta como
ausente nas pesquisas sobre prisão, a materialidade da construção de políticas públicas e
programas governamentais, engendrada por diversos fatores que interferem em sua
formulação. Retomemos uma vez mais a discussão foucaultiana em a História da
Sexualidade I, que gira ao redor da produção de instituições reguladoras da sexualidade,
dos movimentos de resistência a essa repressão sexual, ao passo em que há uma
explosão dos discursos sobre a sexualidade, ao ponto de saturá-la. De maneira
semelhante, tanto a prisão como as populações ditas vulneráveis entram hoje com peso
nos circuitos de discussão acadêmica, nas discussões e ações governamentais, nos
processos de estado levados a cabo pelas interlocutoras e interlocutores deste trabalho.
Todavia, insiste-se em falar de sua invisibilidade, e na ausência de políticas capazes de
encabeçar uma boa gestão e administração de ambas- da prisão e dessas populações.
Essa pesquisa, e em especial este segundo capítulo, é uma tentativa- muito embrionária,
diga-se de passagem-, de mapear os aparelhos, agentes e processos de estado que
produzem e reificam a prisão, e re(produzem) perversamente a categoria mulher, em
suas formas mais essencializadas.
87
Parte 3- Dramas da corporalidade: o lugar de materialização das tensões
constitutivas do gênero de estado
88
pra gente tirar as dúvidas. Porque independente da população LGBT
encarcerada, a gente tem os visitantes LGBTs.
(...)
No Evaristo eu to com 78 trans... (Entrevista concedida por Adriana
Martins, assessora da SEAP).
63
Esses dados foram passados por uma representante do Mecanismo Estadual aos espectadores presentes
no seminário: “Todos existimos: cidadania não tem gênero”, ocorrido no dia 22 de junho de 2017, no
auditório do Ministério da Saúde do Rio de Janeiro.
64
Como assevera Passos (2014, p. 71), a população LGBT presa, ainda que heterogênea, compartilha um
elemento que produz um efeito de coalizão: a “pressuposição de coerência entre a substancias de suas
práticas não normativas e a constante situação de risco, a possibilidade iminente de serem vítimas da
violência”.
65
Vianna (2013) chama atenção para o sentido polissêmico e a variabilidade morfológica inscritos na
palavra “direitos” e nos discursos atravessados por ela. Ao mesmo tempo que “direitos” estão inseridos
numa lógica de ação social, através de sua materialização em normas, tradições administrativas ou
formatação de sujeitos políticos e morais, possuem uma dimensão processual e dinâmica. Comentando
sobre diversos campos etnográficos de variadas pesquisas, aponta os aparatos e agentes que integram a
trama do Estado, e os pontos de análise viáveis para a compreensão das dinâmicas institucionais, dentre
os quais, a análise do “Dentro e fora do Estado”. Para a autora, o “dentro” e o “fora” do Estado “não se
referem a localizações ou estatutos precisos, mas a possibilidades de nomeação, qualificação, aliança e
oposição entre atores diversos. O acionamento de determinadas estratégias argumentativas é fundamental
89
como suas demandas relacionam-se às categorias identitárias reconhecidas e legitimadas
pelo poder público. Dessa maneira, as incoerências, lacunas, indexação presentes nesse
ato registral passam de um problema “para a pesquisa” a um “problema de pesquisa”
(ZAMBONI, 2016).
Primeiramente, deve-se pontuar que o ímpeto de imaginar uma coletividade
homogênea, uma população representada pela sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais) é produzida por e também produz diferentes relações sociais,
que não se restringem à esfera governamental, mas perpassam também os movimentos
sociais, o campo de produção acadêmica e seus idiomas e gramáticas específicos, como
o dos direitos sexuais agora considerados parte constitutiva dos chamados direitos
humanos. Como explorado nas partes precedentes dessa dissertação, a construção
distintiva de uma população LGBT privada de liberdade como sujeitos de tais direitos,
é alcançada através de tecnologias de poder, dentre as quais estão o empreendimento de
levantamentos demográficos, e a criação de normativas e políticas públicas específicas
(ZAMBONI, 2017, p. 96).
Foucault (2015) enfatiza a palavra “população” quando da análise da
“biopolítica da população”, centrada no poder estatal (que não é mais o soberano que
faz morrer, mas sim o poder de gerenciar e fazer viver) e nos aparatos que gerenciam
corpos e relações. A biopolítica da população estaria alicerçada na vontade de saber
sobre esses corpos por ela produzidos, colocados em discurso e aprisionados - processo
que se dá através de registros. Foucault localiza o surgimento da população no século
XVIII como uma das grandes novidades nas técnicas de poder, que nasce “como
problema econômico e político: população-riqueza, população mão-de-obra ou
capacidade de trabalho, população em equilíbrio entre seu crescimento próprio e as
fontes de que dispõe” (FOUCAULT, 2015, p. 28). O surgimento então da “população”
trouxe a necessidade aos governos de lidarem não só com sujeitos, ou ainda com um
povo, mas com fenômenos e suas variáveis (situadas entre movimentos próprios à vida
e efeitos específicos de instituições), tais como a “natalidade”, “estado de saúde”,
“incidência de doenças”, etc. O sexo, nesse contexto, ocupa o âmago deste novo
problema político e econômico da população, sendo preciso mensurar, dentre outros, a
para que se produza, em níveis e contextos variados, a credibilidade dos atores sociais como estando
comprometidos com o “fazer direito” que pleiteiam, tenha esse “fazer direito” a forma de denúncia,
reivindicação, protesto ou projeto” (VIANNA, 2013, p. 21).
90
taxa de natalidade, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a frequência, fecundidade e
esterilidade das relações sexuais, o efeito do celibato. A afirmação do futuro e
prosperidade passa a ser ligada, assim, ao modo como cada um usa seu sexo, e o
discurso passa a ser sobre a conduta sexual da população, tanto objeto de análise como
alvo de intervenção. Das teses populacionistas características da época mercantilista,
transpõem-se às “tentativas de regulação mais finas e bem calculadas”, moduladas de
acordo com os fins e as urgências, se natalista ou antinalista (FOUCAULT, 2015, p. 28-
29).
A formulação de registros populacionais estatísticos, por sua vez, articula-se
com o exame - analisado mais detidamente pelo autor em Vigiar e Punir (FOUCAULT,
2004) - que se debruça sobre as técnicas de notação, sistematização de dossiês, e nas
mais variadas formas documentais de inscrição de memorandos individuais
(CARDOSO, HIRATA, 2017, p. 84). É, neste sentido, um dos mecanismos de
governamentalidade, que regula a conduta de indivíduos que compõem uma
“população”. Como argumenta Padovani (2011), o objetivo de se definir um perfil da
população LGBT, em que se mensura identidades possíveis através de tais técnicas, na
busca de um enquadramento a partir de abstrações, não se distancia da qualidade de
controle da própria instituição prisional (PADOVANI, 2011, p. 213-214).
A autora relata em sua tese (PADOVANI, 2015), ademais, o desejo de um de
seus interlocutores pela documentação comprobatória de relação de união estável (com
uma outra interlocutora), que o fizesse ser visto aos processos do Estado. A regulação e
legitimidade engendradas por esses processos possibilitariam, no caso, acesso a direitos
familiares, dentre os quais visitas ao presídio e a possibilidade de sua permanência no
país - tendo em vista sua condição de estrangeiro. Esse fazer-se ver frente aos aparatos
regulatórios das relações afetivo sexuais relaciona-se a possibilidades de agenciamentos
ante os mesmos, o que mostra a necessidade e busca de sujeitos por estarem inseridos
na zona de legitimidade do Estado, a fim de que possam articular suas demandas “de
dentro” e “de fora” dele (VIANNA, 2013).
Nesse sentido, estes corpos que buscam o reconhecimento estatal de suas
relações são acometidos também por dores, das quais tentam se afastar pela mobilização
de discursos, narrativas e também de documentos, armas possíveis no combate ao
isolamento da legalidade estatal (PADOVANI, 2011, p. 214). Isolamento que não
91
implica, contudo, em uma invisibilidade, que é, contraditoriamente, acionada na
produção estratégica da visibilidade de uma determinada população presa, em termos
semelhantes aos da hipótese repressiva julgada insuficiente por Foucault (2015).
Da produção da visibilidade estratégica de determinados grupos, segmentos ou
personagens aprisionados (incluindo-se aí a população LGBT) decorre, por certo, uma
invisibilidade daqueles que não estão representados neste campo de produção da
visibilidade. Gaytri Spivak (1985) defende a necessidade de por vezes se fazer uso do
que a autora denominou “essencialismo estratégico”, referente à utilização estratégica
da fixação de uma identidade, a fim de que se obtenha determinados direitos. Esse
essencialismo se opera através da micropolítica da invisibilização de uns em detrimento
de outros, e é acionado pelos próprios movimentos sociais. Nesse contexto, a noção de
invisibilidade da população carcerária, e especificamente da população LGBT presa, é
tecida no emaranhamento de uma política de reiteração do visível na arena política (ou
daquilo que é interessante que seja visível – o presídio modelo, a política que deu certo,
o respeito aos direitos humanos). A invisibilidade, dessa forma, parece ser uma
categoria produzida no âmbito dos processos de estado, que demanda processos e
projetos de governo visando à retirada de certas populações da zona de invisibilidade,
como é o caso da população LGBT, enquanto as malhas de estado, seus aparelhos e seus
agentes continuam se reproduzindo, e reproduzindo a prisão. Portanto, em sentido
contrário ao de Spivak, entendemos que uso estratégico da invisibilidade, acaba no caso
da prisão, incorrendo na sua produção e reprodução.
Obviamente, poderíamos pensar sobre como essa população LGBT agencia essa
categoria de invisibilidade frente a seu relacionamento com os agentes estatais. Todavia,
sendo a direção deste trabalho priorizar os processos de estado implicados na produção
da população LGBT presa como sujeitos de direitos, a análise se recai sobre como essa
categoria se faz importante na narrativa dos agentes institucionais que nos foram
interlocutores dessa pesquisa. Em como eles constantemente a agenciavam para
produzir o lugar de importância das políticas que estavam sendo produzidas, da
relevância do trabalho junto ao núcleo especializado da Defensoria, ou da existência de
um cargo de assessoria da SEAP para lidar especificamente com essa população.
Em relação à pesquisa realizada pela Defensoria - a qual eu assessorei -
pretendia-se, em síntese, primordialmente traçar um perfil das pessoas autoidentificadas
92
como transexuais e travestis no presídio Evaristo de Moraes, apontando-se dados
numéricos, cor, faixa etária, tipo de crime, se presas provisórias ou não, dentre outros.
Esses dados ficaram na posse da defensora pública - que deteve a totalidade das
entrevistas realizadas no presídio. Após essa sistematização, a proposta da defensora
era, através de sondagens estatísticas comparativas, delimitar a população trans
aprisionada no Evaristo de Moraes em relação à totalidade de presos no Sistema
Penitenciário fluminense, por meio de dados fornecidos pelo DEPEN, SEAP, e outros
órgãos caso fosse necessário. Dessa forma, a pesquisa visava, à semelhança das técnicas
utilizadas por outros aparelhos estatais, produzir o perfil da população LGBT presa, e
mais especificamente, da população trans presa.
93
A segunda parte, demarcada sob o título “dados processuais”, questionava sobre
o delito pelo qual a pessoa estava sendo acusada ou fora condenada; “data da prisão
atual”; se a entrevistada era presa provisória ou se já estava cumprindo pena, dentre
outros. A última parte do questionário visava elaborar um conjunto de diagnósticos
sobre as violações e violências sofridas pelas entrevistadas no cárcere, tanto por parte
dos demais aprisionados, como por parte dos agentes penitenciários, agentes da SOE66,
e quaisquer agentes representantes do poder estatal. Era a parte que concentrava
questões mais abertas e detalhadas, sendo que segundo o que a defensora Letícia havia
me explicado, esta terceira e última parte fora construída de acordo com as disposições
contidas na resolução 558 de 2015. Por meio das respostas, seria possível o diagnóstico
de quais disposições da resolução estavam sendo cumpridas e quais estavam sendo
negligenciadas.
Optamos por trazer este questionário no corpo do texto da dissertação ao invés
de anexá-lo ao final do trabalho, para que se tenha uma melhor dimensão dos dados
colhidos (quantitativos e qualitativos) através de seu preenchimento:
66
SOE é o Serviço de operações especiais da SEAP-RJ, que entre outras atribuições é responsável pelo
transporte das pessoas presas entre unidades prisionais, ou para audiências, julgamentos, atendimentos
médicos, etc, e sufocamento de rebeliões. Durante meu trabalho de campo, inúmeras reclamações
relacionadas à atuação do SOE em relação ao tratamento dispensado às presas me foram relatadas. O SOE
divide-se em dois, “seguindo a tendência de progressiva especialização dos corpos policiais: o
Grupamento de Intervenções táticas (GIP) – criado após a rebelião de 11 de setembro de 2002, em Bangu
I – e o Grupamento de Serviços de Escolta (GSE). Cabe ressaltar que o GIP tem a autonomia de
negociação e intervenção nas primeiras 24 horas de qualquer motim. O Batalhão de Operações Especiais
(BOPE) da Polícia Militar só será acionado ao término desse período, se o distúrbio continuar”
(BARBOSA, 2005, p. 296).
94
Figura 1: Questionário parte 1
95
Figura 2: Questionário parte 2
97
pessoa em um canto da sala, ao passo que a defensora entrevistava outra no outro canto.
Através da lista, era demandado ao faxina67, ou na sua ausência a algum agente
penitenciário, que buscasse aquelas que desejassem participar da entrevista, na ordem
de duas em duas. Nem o faxina, nem qualquer agente penitenciário permaneciam na
sala, o que conferia uma maior liberdade às interlocutoras para relatarem suas
experiências dentro e fora do cárcere. Quando sentadas, o teor das pesquisas era
explicado com detalhes às entrevistadas, a fim de que consentissem que seus
depoimentos fossem utilizados como material, sendo é claro, preservados os seus nomes
no momento da escrita. Não obstante, como já mencionado, apesar da explicação de que
as pesquisas realizadas eram autônomas uma em relação à outra, eu era invariavelmente
a Defensoria Pública para as entrevistadas, cujo interesse maior era invariavelmente o
andamento de seus processos.
Muito embora a defensora houvesse enfatizado à administração da unidade que a
lista deveria vir com os nomes sociais, e não com os nomes de registro, toda semana a
lista vinha com os nomes de registro, seguidos pelos nomes sociais em uma letra de
menor fonte. Ademais, a lista geral da SEAP naquele presídio era da população LGBT
como um todo encarcerada. Ou seja, não havia na lista uma divisão entre homens gays,
bissexuais, travestis e transexuais. Os funcionários justificavam essa “mistura” pelo fato
67
“Faxina” no Rio de Janeiro guarda algumas similaridades ao sentido atribuído a “faxina” pelos presos
encarcerados em São Paulo. Cf. Biondi (2010): “(...)faxina, que o nome tanto da cela que reúne os presos
que cuidam da administração interna do pavilhão (tal como entrega de comida, abertura e fechamento das
celas, resolução de litígios), quanto o nome dado aos moradores desta cela, que geralmente são irmãos,
mas podem também ser primos que, na maioria das vezes estão prestes a ser convidados para o batismo.
Os faxinas também atuam como uma espécie de porta-vozes dos presos perante os funcionários, e destes
perante os detentos, pois são os únicos no pavilhão que falam com os funcionários. Assim, quando um
preso tem algum problema cuja solução requer entrar em contato com a administração da cadeia, ele se
reporta ao faxina. Um dos faxina, por exemplo, costuma ser responsável pelo pedido de remédios à
instituição. Cada prisioneiro que precisa ser medicado envia um pipa, ou seja, um bilhete, para esse
faxina, que o encaminha à administração da unidade. Os funcionários, então, encaminham os
medicamentos para este faxina, que os distribui aos solicitantes” (p. 81). No Rio de Janeiro, porém,
“faxina” não é o nome atribuído a um posto político do PCC; corresponde ao preso que conseguiu alguma
ocupação, um trabalho dentro do presídio, e em razão disso, é considerado privilegiado em relação à
“massa”. Tal como em São Paulo, “faxina” no Rio de Janeiro “também pode servir para fazer circular
informações não só dos funcionários para os presos, como entre os próprios funcionários” (BARBOSA,
2005, p. 277). No Evaristo de Moraes, particularmente, o preso “faxina” não desempenha relação de
mediação com lideranças de “facções”, vez que inexistente, como já pontuado, o domínio de alguma
dessas neste presídio. Neste presídio a organização e comunicação entre representantes estatais e presos
se dá por intermédio desses “faxinas”, encarregados de fazer reivindicações (são os “porta-vozes”) e
manter a ordem no perímetro de sua responsabilidade.
98
de que ali não havia alas destinadas a categorias estabelecidas distintamente. Além
disso, homens gays ou bissexuais adotavam prenomes femininos no presídio Evaristo de
Moraes, por dois motivos, ao que nos foi relatado por eles e pelas demais entrevistadas.
Primeiramente, gostavam de se sentirem aceitos pelo grupo das transexuais e travestis, e
através da escolha de um nome de guerra feminino, nos termos por eles utilizados, o
acolhimento e sentimento de pertencimento eram maiores. Em segundo lugar, às
travestis e transexuais era concedido o direito de praticarem vôlei semanalmente no
pátio do presídio, e ao colocarem os prenomes femininos adotados também na lista, este
direito era estendido a esses homens. É interessante observarmos como essa questão
aparentemente banal do vôlei desvela como os sentidos dos direitos acionados pelas
malhas dos agentes de estado, comprometidos com uma agenda de direitos humanos,
são ressignificados dentro da prisão pelo que parece ser importante em suas relações
cotidianas. Nesse caso, o nome social ganha a conotação de poder ou ser impedido de
jogar vôlei.
Assim, durante a realização das entrevistas, não raramente homens
autoidentificados como gays ou bissexuais adentravam à sala separada a sua realização,
ao que eram informados que as pesquisas não versavam sobre suas vivências no cárcere,
o que muitas vezes gerava uma nítida frustação àquelas pessoas. A defensora, em todos
os casos em que isso ocorreu, tratou de tentar animá-los, informando que em um
posterior momento, a Defensoria se ocuparia das políticas públicas direcionadas à
população LGBT em situação de cárcere como um todo.
Nesse sentido, a produção que se sucedia naquela sala do Presídio Evaristo de
Moraes também era uma produção dos corpos que importavam (BUTLER, 2010) para
aquela pesquisa, dentro de um processo maior de edificação de um perfil da população
LGBT. Os corpos que importavam, os corpos legitimamente viáveis, eram os corpos
trans que se adequassem à uma determinada categoria mulher.
Dessa forma, tanto as entrevistas como o questionário em si, juntamente a outras
documentações e outros agentes, produziam um perfil, e propriamente uma população
LGBT como sujeito de direitos específicos. A produção distinta da população trans, por
sua vez, está atrelada à questão de ser ou não mulher, e dos limites e exigências na
formatação dessa categoria mulher. Já a sala onde esses processos se davam, possui
importância primordial frente à própria geografia prisional para nossa pesquisa, vez que
99
era o local onde o projeto de definir tal população comportava, ao mesmo tempo, o
empreendimento de uma ampliação de determinados direitos, e a inscrição de novos
mecanismos regulatórios.
100
discurso, pelas enunciações performativas que produzem e fixam os gêneros dos
sujeitos, os tornando inteligíveis enquanto homens ou mulheres, e os colocando
assujeitados aos discursos de produção do gênero em seus corpos reiterativamente.
Assim, a norma generifica reiteradamente os sujeitos, sendo a performatividade do
discurso - através da repetição de gestos que valida a construção do feminino ou
masculino - responsável pela produção do gênero. Dessa forma, o caso de Jéssica
elucida que “assim como as superfícies corporais são impostas como natural, elas
podem tornar-se o lugar de uma performance dissonante e desnaturalizada, que revela o
status performativo do próprio natural” (BUTLER, 2016, p. 252). 68 Mais do que isso, o
caso de Jéssica elucida o esquadrinhamento e as técnicas de governamentalidade
presentes no ato registral de se classificar quem seriam de fato as presas trans dentre a
população de presos que se dizia trans.
A ideia paradoxal de um “excesso” no que se refere ao critério da
autodeterminação, a construção de um sujeito trapaceiro que se apropria e se aproveita
daquilo que (já) seria uma flexibilização de gênero e sexualidade cedida pelo Estado,
nos remete uma vez mais à hipótese repressiva, aplicada aos processos de estado. O
Estado, idealizado como um ente autônomo, que se relaciona ao campo da sexualidade e
do gênero a partir de uma exterioridade, seria aquele que apenas cede ou nega a
aplicação do princípio da autodeterminação. Retomando a discussão da segunda parte
deste trabalho, em que defendemos a ideia de um Estado generificado, em que o gênero
deve ser pensado não como um adjetivo do poder e do Estado, mas como parte de sua
constituição mais fundamental, vislumbra-se como o caso de Jéssica é emblemático para
se refletir como determinados sujeitos de direitos são produzidos pelo aparato estatal.
Ao olharmos para as dinâmicas de produção, afirmação e também oposição de
identidades, identificamos aquilo que Butler (2016) denomina de “processo ilimitável
de significação”, determinante para se pensar as identidades como efeito, e não como
68
Em entrevista concedida a Cristan Williams em 2015, Butler explicita que ao escrever “Problemas de
gênero", quase 25 anos antes, não havia pensado naquele período o suficiente sobre as questões trans.
Ressalva, porém, que ao afirmar o gênero como performativo, não estava dizendo que tudo seria uma
ficção, que a compreensão de gênero sentida por uma pessoa seria irreal, e que concorda que deveria ter
dado mais atenção “à forma que a experiência primária do corpo é registrada e à demanda urgente e
legítima de ter esses aspectos do sexo reconhecidos e apoiados”. Butler afirma, por fim, a necessidade de
uma liberdade maior para definir e levar as vidas “sem patologização, alegações de irrealidade, assédio,
ameaças de violência, violência e criminalização”. Disponível em
<http://www.naomekahlo.com/#!Judith-Butler-fala-das-TERFs-e-do-trabalho-de-Sheila-Jeffreys-e-
Janice-Raymond/c1a1n/5565304d0cf24874175e33bc>. Acesso em 20 jul. 2016.
101
dadas previamente. Para a autora, as identidades corporificadas por sujeitos inteligíveis
não são fundantes, mas sim resultado de práticas determinadas pelo conjunto de regras
dominante, práticas que conformarão os termos de inteligibilidade através dos quais os
sujeitos podem circular. Nesse sentido, a crítica de Butler é relativa, em muitos pontos,
à reiteração da categoria mulher como sujeito político universal do feminismo,
preexistente e anterior à elaboração política dos seus interesses. E é precisamente essa
categoria mulher, alvo da crítica da autora, a categoria disparadora e produtora dos
sujeitos de direitos implicados na categoria da vulnerabilidade e do risco, discutidas nas
partes antecedentes do trabalho. E é também a essa categoria mulher que Jéssica
excedia.
Em “Quadros de Guerra”, Butler (2015) assevera que repensar sobre os limites
do corpo é considerar uma variedade de perspectivas que podem ser as nossas ou não. O
modo como alguém é apreendido, e como é mantido, “depende fundamentalmente das
redes sociais e políticas em que esse corpo vive, de como sou considerado e tratado, de
como essa consideração e esse tratamento possibilitam essa vida ou não tornam essa
vida vivível” (BUTLER, 2015, p. 85). Dessa forma, as normas de gênero por meio das
quais alguém compreende a si mesma e a sua capacidade de sobrevivência não são
estipuladas unicamente por esse alguém. Falar sobre o campo de inteligibilidade de
gênero é falar sobre instituições, categorias, agentes e linguagens. É falar também sobre
a ideia de um “excesso” no que se refere à autodeterminação, que gera os limites para a
produção da população LGBT presa como sujeitos de direitos. Limites estes implicados
na noção de uma categoria mulher como sujeito, formatada não só, mas também por
agentes de Estado, agentes de governamentalidade. É falar sobre a espera de certa
coerência identitária, que aja como condicionante para o acesso a direitos.
Babi
Havíamos tentado contato com Babi para a entrevista uma semana antes, mas
avisaram que por qualquer motivo ela não poderia comparecer. Na semana aqui então
relatada, ela chegou visivelmente abalada, com a cabeça toda raspada. Era alta, negra,
magra, esbelta. Usava maquiagem no rosto, a unha muito bem pintada, os shorts e a
102
blusa branca ajustavam-se perfeitamente ao seu corpo. Esbanjando simpatia e doçura no
modo de conversar, contou-nos o que havia acontecido: oito dias antes havia se
envolvido em uma briga com outra detenta, também travesti. Pegara uma quantia de
dinheiro emprestada para comprar seus hormônios dentro do presídio, e estava atrasada
na quitação da dívida.
Em relação à administração dos hormônios, cabe aqui abrir parênteses para
elucidarmos o procedimento que vem sendo tomado no Rio de Janeiro. De acordo com
o que me foi relatado pela defensora pública responsável pelo Nudiversis, a questão da
saúde da população LGBT privada de liberdade tem sido um dos pontos mais
problemáticos no tocante às políticas públicas a serem adotadas. O Ministério da Saúde
lançou, em janeiro de 2014, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas
Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), resultado da avaliação dos dez
anos de funcionamento do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP).
Em relação ao tratamento e ao acompanhamento de saúde, inclusive de processo
transexualizador, que engloba a administração de hormônios, restou garantida sua
manutenção à pessoa travesti, mulher ou homem transexual. De acordo com a
defensora, todavia, este processo é “bem diferente e dificultoso na prática, quase
excepcional”. 69
A resolução n° 558/2015, como já indicado anteriormente, assegura o acesso ao
tratamento hormonal às pessoas privadas de liberdade que assim desejarem:
69
Ferreira (2014, p. 106) argumenta em seu trabalho que: “O recurso à hormonoterapia, embora
recentemente regulamentado pela Portaria n. 2.803 de 19 de novembro de 2013 do Ministério da Saúde,
que redefine e amplia a possibilidade de uso orientado de hormônios também por travestis, fica restrito ao
processo transexualizador do Sistema Único de Saúde (SUS), o que significa que toda pessoa trans, para
ter acesso ao processo transexualizador (e, por extensão, à orientação médica quanto ao uso de hormônios
femininos), precisa acessar os programas dos hospitais que tematizam essa questão – como é o caso do
Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (PROTIG) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
(HCPA)”. Não tivemos tempo de aprofundar aqui acerca dos impactos da implementação da Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional nos outros
estados brasileiros; assim, temos aqui uma “ponta solta” passível de ser abordada em pesquisas futuras.
103
Em entrevista à assessora da SEAP, me foi esclarecido que, a fim de que se
tenha este direito garantido, inúmeras parcerias são buscadas para que o fornecimento
de hormônios seja realizado, e que alguns, mais simples, já estavam sendo ministrados
pelo médico encarregado da saúde das pessoas presas no Evaristo de Moraes:
104
Claudio: (...) E a partir daí começam a surgir as demandas também.
Ela [a Secretaria de Administração Penitenciária] por exemplo tá
fazendo a parceria com o IED, pra ver como o IED pode fazer, o
Instituto de Endocrinologia do Estado.
Pesquisadora: Em relação à questão hormonal dos detentos e detentas
transexuais?
Claudio: Isso, das trans. Nesse momento, a gente tá discutindo um
protocolo de tratamento hormonal, porque a resolução já apontou, mas
agora a gente tem que ter um protocolo de tratamento hormonal,
envolvendo a SEAP, a SES, secretaria do Estado de Saúde e o IED,
pra ver como vai ser a prescrição de medicação. A Lívia tá ajudando
muito nisso também. Porque assim, tem muitos entroncamentos, então
tem que ver como a gente vai avançar. Então estamos fazendo agora
esse protocolo de tratamento hormonal, tá fazendo também outra
questão simples que é a prevenção da HIV/AIDS, a distribuição de
preservativos... (Entrevista concedida por Claudio Nascimento).
105
familiares e amigos das pessoas presas, configurando um abastecimento ainda carente
de regulamentação legal, cuja autorização de entrada da mercadoria se dá pela via
administrativa da unidade prisional. O problema ainda havia sido agravado nos últimos
tempos, pois essas poucas pessoas que recebiam os hormônios geralmente pediam às
visitas que fosse entregue uma quantidade maior, podendo assim, redistribuí-los às
outras que não os recebiam. Sob o argumento de que estariam comercializando os
hormônios, a administração passou a detê-los, entregando àquelas que os recebiam
apenas a quantidade suficiente para a administração individual mensal. Nesse sentido,
os hormônios fazem parte do processo geral de captura constante de relações
orquestrada pela prisão, em que são os familiares que levam o jumbo e de certa forma
sustentam a prisão, e no caso especialmente das pessoas trans, levam também os
hormônios necessários para manutenção de uma transição.
Os hormônios, nesse registro, à semelhança do que nos narra Biehl (2008) a
partir da história de vida de Catarina – que se autonomeava Catkine, ao subjetivar-se
através da ingestão do medicamente de nome Akineton, receitado para o controle dos
efeitos colaterais dos antipisicóticos que usava –, detêm também agência, e fazem
emergir uma biopolítica operante a partir do corpo e para além de suas fronteiras. Os
hormônios representam, ademais, o cruzamento nevrálgico do lugar de abjeção, e num
sentido mais geral, de ininteligibilidade, com a centralidade da prisão, vez que
demarcam as pessoas trans que não os recebem, as que tem menos condição de sustentar
a cadeia sem estarem fazendo pista70, sem conseguirem se manter. O abastecimento dos
hormônios por familiares mostra a malha perversa já aqui trabalhada, do Estado no local
de respeitador dos direitos humanos, e simultaneamente daquele que transfere todo o
ônus de sustento da prisão para as pessoas, pessoas que considerando o local abjeto que
ocupam dentro da norma não vão ter quem os leve, ou raramente vão ter quem os leve, a
menos que agenciem outros tipos de arranjo.
Voltando ao caso de Babi, em um dia da visita daquela semana, sua credora,
quem lhe havia fornecido os hormônios, em retaliação pelo não pagamento, foi até a
mãe de Babi e contou que ela estava usando maquiagem, acessórios femininos etc.,
sabendo que essas informações não seriam bem recebidas. Babi então, ao retornar da
visita, agrediu a companheira de ala fisicamente, sendo levada por um dos agentes
70
Expressão utilizada para se referir ao exercício da profissão da prostituição.
106
carcerários para receber as devidas sanções administrativas. No caso, a “sanção
administrativa” ou “sanção disciplinar”71 foi cortar os longos cabelos de Babi, além de
submetê-la ao confinamento em cela solitária, castigo, por três dias, “para que ela não
arrumasse mais confusão”.
Como argumenta Godoi (2015, p. 100), as intervenções disciplinares que visam
à correção do indivíduo, tal como descrito por Foucault em “Vigiar e Punir” (2004),
recuam na prisão atual, em que o monitoramento de corpos e disposições subjetivas já é
menos detalhista. Não obstante, a perpetuação das sanções disciplinares, que acabam
por diferenciar presos e postergar a saída dos considerados “problemáticos” é
exemplificativa da permanência da soberania punitiva, que se antes era perpetrada por
agentes técnicos (da medicina, criminologia, psiquiatria), passa a ser orquestrada por
agentes administrativos, em especial os que ocupam as funções de gestão e de
segurança. Através do relato do caso de Babi, vemos que não só as técnicas
disciplinares continuam operantes, como também o suplício, no ato brutal do corte de
cabelo aplicado pelo agente penitenciário.
A defensora, inconformada com a reação por parte do agente, subiu -
acompanhada por mim - após o fim das entrevistas daquele dia à sala em que estavam
alguns funcionários da SEAP, na esperança de que alguma medida fosse tomada em
relação ao que ocorrera com Babi. Afinal, Babi era claramente uma mulher, e sua
condição de sujeito de direitos havia sido atacada.
A demanda, no entanto, foi recebida com um ar de desconforto por parte do
funcionário, que obviamente já estava a par do ocorrido, e nem um pouco satisfeito pelo
fato de a situação ter chegado aos ouvidos da defensora. Deixando a entender que o caso
não seria levado à diante para as instâncias superiores, tratou de explicar: “ah, mas é que
os carcerários ficam desconfiados que tem homens gays que fingem ser trans só pra
terem alguns direitos que elas têm”, na tentativa de justificar a conduta do funcionário
71
Cabe aqui trazer o que a LEP (Lei de Execução Penal) estabelece como sanção disciplinar:
Art. 53. Constituem sanções disciplinares:
I- advertência verbal;
II- repreensão;
III- suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);
IV- isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que
possuam alojamento coletivo, observando o disposto no artigo 88 desta Lei;
V- inclusão no regime disciplinar diferenciado.
107
perpetrador do corte de cabelo com o fato de Babi não portar silicone nos seios ou
quadris. E complementou: “Eu sei que pode ser que todas tenham a alma feminina, mas
quando elas têm silicone, por exemplo, aí é mais fácil identificar”.
Não obstante, o funcionário informou à defensora que uma “sindicância”72 seria
aberta para a apuração do caso, a fim de que fossem tomadas providências contra o
agente penitenciário que havia realizado o corte de cabelo. Soubemos duas semanas
depois que o caso tinha sido arquivado, sob a alegação de que não havia sido
identificada qualquer falta administrativa por parte do agente.
Da mesma forma que ser vítima ou familiar de vítima requer a
performatividade73 de particularidades designadas socialmente a esta categoria, como
habitar o espaço público e “pedir justiça” de um modo específico (Vianna e Farias,
2011); ou ainda se enquadrar na categoria de “mulher bandida” implica aspectos que se
materializam nos corpos, como “pernas peludas”, “cabelos quebrados” e nas relações
afetivas, sexuais e familiares (PADOVANI, 2015, p. 219), a constituição da presa
transexual ou travesti parece se fazer através da performatividade do que é socialmente
atribuído às verdadeiras travestis/transexuais.
72
Godoi (2015), acerca do processo de sindicância, explica que ele é, em tese “(...)também
jurisdicionalizado- ou seja, dependente da participação de juízes, acusadores e defensores. No entanto, o
registro e apuração de infrações disciplinares, normalmente são realizados por funcionários da
administração penitenciária- ASPS e diretores- sem a participação de agentes do sistema de justiça: no
mais das vezes, o julgamento é proferido pelo diretor geral da unidade, que apenas informa sua decisão ao
juiz responsável, que por sua vez, acata-a, e passa a considera-la nas apreciações de pedidos de benefícios
que possam vir a ser feitos ulteriormente. (...)Embora esteja legalmente previsto que toda sindicância
deve seguir os princípios do contraditório e da ampla defesa, os advogados da FUNAP que trabalham na
unidade pouco participam desse particular processo. A sindicância é o processo que, no estado de São
Paulo, mais realiza o que Foucault designa como a “soberania punitiva” da administração penitenciária.
Através da sindicância, o poder de determinar a qualidade e a duração efetiva do período de reclusão, os
direitos adquiridos e os lapsos de progressão, escapa ao judiciário, que acaba por exercer um papel
secundário, de avalista. O fluxo do processo de execução penal de um preso castigado em sindicância é
totalmente alterado, (...) (GODOI, 2015, p. 98-99).
73
A ideia de performatividade concebida por Butler (2016) não corresponde ao sentido de um simples
desempenho de papéis, de uma simples performance. Se a ideia de performance pressupõe um sujeito
preexistente, anterior ao discurso, a de performatividade contesta a própria noção de sujeito, evidenciando
a constituição do gênero como atos, gestos, representações ordinariamente constituídas. Por meio da
performatividade pensa-se o gênero no fazer-se e constituir-se temporal. Cf. a autora: “O fato de a
realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas significa que as próprias noções
de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes também são
constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades
performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação
masculinista e da heterossexualidade compulsória” (BUTLER, 2016, p. 244)
108
Lucy
Lucy chegou à sala destinada às entrevistas algemada, aos prantos, o que não
aconteceu com nenhuma das outras entrevistadas. Quando indagamos ao agente
penitenciário o motivo deste procedimento, explicaram que haviam se equivocado,
imaginando que ela iria se encontrar com o advogado, e por isso as algemas. Lucy, que
contava com 69 anos, estava visivelmente abatida, além de apresentar um grande
machucado em uma das pernas, que aparentava estar muito infeccionado. Ao perguntar-
lhe sobre o machucado, se não estava sendo tratado, respondeu-me que temia ser
transportada a algum hospital pelo SOE (Serviço de operações especiais)74 caso fosse
necessário algum tratamento. Relatou-me as agressões praticadas por seus agentes, que
em todas as idas ao fórum haviam rasgado suas roupas, a espancado e proferido
inúmeros xingamentos. Disse ainda, em relação ao tratamento dispensado a ela pelos
agentes penitenciários, que havia uma clara discriminação geracional: tratavam as
travestis e mulheres transexuais mais jovens com um cuidado maior, com mais regalias.
Lucy foi a única também dentre as entrevistadas a se identificar como bissexual; todas
as outras afirmaram que mantinham relacionamentos afetivos e relações sexuais apenas
com homens, o que não significa, porém, que se autoidentificavam enquanto
heterossexuais75.
Além de romper com a categoria identitária esperada- vez que transexual-, Lucy
rompia com a suposição de que seu desejo sexual seria exclusivamente por homens. Seu
sexo, seu gênero e seu desejo transcendiam qualquer inteligibilidade possível.
Considerando-se a matriz heterossexual de inteligibilidade que Butler (2016) denuncia,
compreende-se que socialmente as pessoas são apenas compreensíveis entre si e em
suas interações quando as categorias analíticas apontadas acima estão em pleno
alinhamento, excluindo-se do campo de inteligibilidades aquelas que não correspondam
ao modelo homogêneo de definição da identidade sexual e de gênero. Práticas e
discursos, ao suporem esse alinhamento causal, estabelecem as formas de ser pessoa e
de se relacionar que são naturais, e assim, verdadeiras, e as outras não naturais, e,
portanto, falsas.
74
Sobre o SOE, ver nota 66.
75
Essa questão será abordada no próximo tópico.
109
Gayle Rubin (1986) argumenta sobre a existência de “hierarquias sexuais”
viabilizadas pela “heterossexualidade compulsória”, que escalonam o grau de valoração
e desvaloração de relacionamentos, práticas sexuais e categorias identitárias. As práticas
e identificações que escapam à lógica de “sexos” opostos que visam à procriação
estariam à margem, e nas bases da escala, da “pirâmide” formada por esse sistema
hierárquico de valores sexuais, estariam, entre outras identidades, a transexual e a
travesti. Assim, Rubin aponta os estigmas e desvalor social relacionados às diversas
práticas e identificações consideradas anômalas, que não se conformam às normas de
inteligibilidade, e à linearidade esperada entre sexo, gênero e desejo. A realidade de
Lucy, enquanto mulher transexual, bissexual, idosa e estrangeira nos fazem pensá-la
como fora de qualquer inteligibilidade ou qualquer enquadramento possível, e ocupando
as bases do que Rubin entende como sistema hierárquico de valores sexuais76.
Pensando que o encontro se tratava de um acompanhamento processual, Lucy
logo me relatou o problema que enfrentara com seu nome de registro no Sistema
Penitenciário. Era iraquiana, mas morava há mais de 20 anos no Brasil, vivendo antes
alguns anos no Paraguai. Com sotaque carregado, cabelos longos, usando maquiagem e
ostentando uma tatuagem com um símbolo feminista no ombro, Lucy contava que desde
os catorze anos tomara ciência de sua identidade dissidente e passara a se vestir de
acordo com as roupas identificadas socialmente como femininas, passando a tomar
hormônios pouco tempo mais tarde. Ao chegar ao Brasil, trabalhara muitos anos como
cafetina e realizando performances e shows drag queens, sendo introduzida neste meio
por Elke Maravilha, de quem dizia ter sido amiga íntima.
Lucy já havia tentado dar entrada ao processo no SUS (Sistema Único de Saúde)
para o acesso à cirurgia de transgenitalização, mas a falta de documentos a impediam de
dar prosseguimento ao processo, o que a deixara muito frustrada. Contou-me que estava
sem documentos de identidade no Brasil, e que quando apreendida, fora cadastrada com
o nome de outra pessoa, que ela sequer conhecia. Sobre os motivos que a levaram ao
encarceramento, relatou que sua ex-mulher havia sido assassinada, e foi ela a indiciada
pelo crime, injustamente. Intimada a comparecer ao fórum para prestar esclarecimentos,
76
De maneira análoga, Rovaris (2016) aponta para uma correspondente expectativa de
heterossexualidade compulsória presente nos julgados que analisam pedidos de requalificação civil por
pessoas trans. Ainda que a matéria julgada não diga respeito a questões relativas à orientação sexual, há a
necessidade por parte dos julgadores de que as demandantes confirmem nunca terem se relacionado
afetiva/sexualmente com pessoas que correspondam às suas identidades de gênero.
110
foi detida neste instante. Segundo seu relato, num primeiro momento, um ano antes de
nosso encontro, quando havia sido detida, fora encaminhada à Penitenciária Talavera
Bruce, unidade prisional feminina que compõe o Complexo de Gericinó, no Rio de
Janeiro. Todavia, quando sua senha chegou, com o nome de registro masculino (que
segundo ela não era nem ao menos o seu), ordenou-se sua transferência para o presídio
Evaristo de Moraes.
***
Os casos de Babi e Lucy são paradigmáticos e nos fazem pensar, ao menos a
quem está envolvido em debates sobre gênero e sexualidade, quase automaticamente em
duas questões: a busca pelo “verdadeiro transexual”, discutida na parte 1 deste trabalho,
e no conceito de passabilidade. Passabilidade cis é quando uma pessoa é lida pela
sociedade sem que sua dissidência ao gênero designado ao nascimento seja colocada em
evidência. Segundo Jaqueline Gomes de Jesus, “para as pessoas trans, a adequação a
uma aparência tida socialmente como feminina é conhecida como ‘passar’” (JESUS,
2015, p. 57). Para mulheres e homens transexuais, diferente do que muitas pessoas não
trangêneras equivocadamente acreditam, passar não é apenas parecer.
(...) quando a pessoa trans é lida pela sociedade como se cis fosse. A
mulher trans que tem passabilidade cisgênera geralmente ouve coisas
do tipo, quando se anuncia trans: nossa, mas ninguém nunca diria que
você é trans. Você engana bem viu? Você parece muito com uma
mulher.
E eu digo sendo lida como trans ou travesti pois a sociedade não lê da
mesma forma a trans ou travesti sem passabilidade e a trans ou travesti
com passabilidade.
[...]
Há uma busca incessante e incansável por algo inatingível a todas nós.
Afinal de contas, sempre haverá alguma característica sua para
apontarem e dizerem que você não é mulher o suficiente ou mulher
"de verdade". É a voz, a mão, o pé, a perna, o cabelo, o globo ocular,
os seus cromossomos, o seu coração, intestino, estômago, rins... as
suas células, a sua alma, ufa![...] (ANDRADE, 2015).
111
A reflexão sobre passabilidade problematiza a segurança ontológica considerada
indispensável para a sobrevivência do indivíduo, já que categorias supostamente fixas
são necessárias para se garantir uma inteligibilidade identitária, especialmente no
tocante ao binarismo homem/mulher, naturalizado e sedimentado historicamente
(DUQUE, 2013, p. 01). A experiência do passar por faz transparecer o quanto o gênero
e a heterossexualidade são performáticos, vez que apenas ocorre “quando se
performatiza uma suposta continuidade entre sexo, gênero e desejo; isto é, quando a
heterossexualidade está em sua plena performance de inteligibilidade” (DUQUE, p. 21-
22).
A experiência relatada por Lucy de ser encaminhada à Penitenciária Talavera
Bruce nos leva ao entendimento de que ela passou por uma mulher cisgênero, ao menos
no momento de sua detenção. É possível, no entanto, falar em passabilidade no caso de
Babi, quando tomamos como referência uma unidade prisional classificada como
exclusivamente masculina? Seria o espaço perimetral do presídio um condicionante
físico impeditivo para a caracterização da passabilidade?
A fala do agente penitenciário, por sua vez, nos leva ainda à possibilidade de
inversão da questão: haveria uma passabilidade transexual? Quando se diz que detentos
gays se passam por transexuais para terem direitos a certos “privilégios”? Ou ainda, este
discurso não se alinharia àquele proferido pelos discursos médicos, jurídicos, e de tantos
saberes auxiliares, os quais buscam caracterizar quem são os verdadeiros transexuais?
Em que pese a validade de tais questionamentos e problematizações,
consideramos importante deslocar um pouco os termos do debate, ou antes, realocar os
termos do debate. Ao invés de pensarmos sobre em que medida a busca por um
verdadeiro transexual ou a passabilidade, tanto trans como cis estariam presentes nas
cenas do presídio, propomos reafirmar, através de todas essas questões, como uma certa
categoria mulher é produzida, reproduzida e reificada. Considerando as políticas
públicas construídas por agentes engajados com o melhoramento do “acolhimento” a
pessoas LGBT privadas de liberdade, ou também as condutas dos agentes
penitenciários, ou de outros funcionários do presídio, observa-se que o lugar comum é -
ainda que se reconheça a possibilidade de um ser mulher a pessoas transexuais, ainda
que haja seu reconhecimento enquanto sujeitos políticos de direitos - demarcar um
112
limite, fundamentalmente essencializante, de quem conta e quem não conta para a
categoria mulher.
Renata, aos 54 anos, era uma das travestis mais velhas dali. Com as unhas muito
bem “feitas”, usando muita maquiagem e cabelos compridos, não se mostrou muito
animada quando se sentou à minha frente e soube que se tratava de uma entrevista.
Havia entendido que a Defensoria estava ali para acompanhamento processual, o que
havia lhe deixado empolgada, pois estava no Evaristo enquanto presa provisória, ou
seja, seu caso ainda não havia sido julgado. Respondi-lhe que não, mas que não
obstante, algumas informações de caráter processual seriam informadas por ela, e que
poderia haver uma posterior averiguação de seu caso pela Defensoria, caso assim se
entendesse necessário. O desânimo e a decepção de Renata fornecem, já de início,
elementos para pensarmos sobre a quem servem as pesquisas sobre prisões, e sobre as
reivindicações prioritárias de quem está em privação de liberdade, que é via de regra, o
cumprimento da justiça, o acesso à assistência jurídica, e em última e principal instância
a liberdade. Todas as outras políticas produzidas por agentes estatais estão, a nosso ver,
a uma evidente distância daquilo que se almeja, podendo funcionar em realidade como
reiteração da prisão.
Como Renata não tinha ciência de que aquela entrevista seria para fins de
pesquisa, indaguei-lhe então se era de sua vontade permanecer ali, pois se não se
sentisse confortável, poderia retornar a sua ala sem qualquer problema. Expliquei ainda
que as informações passadas a mim serviriam de material tanto para a pesquisa
realizada pela defensora, como para a minha pesquisa, se assim fosse do consentimento
dela. Se desejasse que sua entrevista fosse transformada em material apenas para uma
das pesquisas, poderíamos assim fazer também (este procedimento foi realizado em
todas as demais entrevistas). Renata respondeu então que gostaria de participar de
ambas pesquisas, ao que peguei um dos questionários em branco e iniciei o já relatado
procedimento.
Uma das perguntas do questionário elaborado pela defensora pública consistia
na orientação sexual da pessoa em situação de cárcere, questão subsequente à que
demandava a identidade de gênero, se transexual, travesti ou outra. Percebi ao longo das
113
entrevistas que a pergunta sobre orientação sexual por vezes gerava confusão, e
conversando com a defensora Letícia, chegamos ao acordo de perguntar apenas se a
pessoa se relacionava com homens, mulheres ou ambos. Renata, que havia já
anteriormente respondido que se identificava enquanto mulher, e enquanto travesti, me
respondeu que se relacionava exclusivamente com homens. No entanto, no momento de
preencher o formulário, escrevi, sem que tivesse percebido que estava atenta à minha
escrita, “heterossexual” no campo destinado à orientação de gênero. Imediatamente,
Renata olhou fixamente para mim, e em tom assustado demandou:
Renata: Mas por que você escreveu aí que sou hétero doutora? Sou
homossexual, sou hétero não...
Pesquisadora: hm, porque eu considerei sua identidade, o modo como
você se percebe. Você havia me dito que se percebe enquanto mulher.
Você se percebe como homem, mulher ou outra...?
Renata: mulher...
Pesquisadora: então, por isso...mas posso mudar caso você
prefira...quer que eu escreva de outra maneira?
Renata: não, não, deixa assim...mas vocês são meio doidas (risos)
114
O desajuste entre as categorias identitárias que são mobilizadas pelo Estado, e
não só pelo Estado, e as que se apresentam nas narrativas das entrevistadas mostra-se,
assim, manifesto. Zamboni (2016) aponta em sua pesquisa duas fontes prováveis desse
descompasso, com as quais corroboro em meu trabalho: em primeiro plano, a questão
da fluidez de identidades de gênero e orientação sexual possíveis na trajetória de uma
pessoa, ao que evoca-se o dilema de como reconhecer as demandas de sujeitos que não
possuem identidades fixas. Num segundo plano, temos o já colocado descompasso que
se coloca possível entre a autoclassificação dos sujeitos (a autodeterminação de gênero)
e a classificação atribuída a eles pela administração do presídio, pelas resoluções e pelos
próprios presos. Não somente a diversidade de categorias deve, nesse contexto, ser
considerada, como também o caráter por vezes situacional e ambivalente das formas
específicas de identificações desses sujeitos (múltiplos e diversificados), divergente do
léxico empregado pela chave dos direitos humanos, que os interpela enquanto uma
população determinada- e que cristaliza categorias como trans, lésbicas, gays, travestis
na sigla LGBT (ZAMBONI, 2017, p. 196). Essas definições, portanto, são incapazes de
esgotar a complexidade da construção de corpos e de seus sentidos, em contextos
relacionais e discursivos.
Os critérios utilizados para a diferenciação e contabilização das pessoas
transexuais e travestis, nesse sentido, não são evidentes quando pensamos nas formas e
trânsitos entre múltiplas identidades possíveis. Muitas vezes, por exemplo, nota-se o uso
do termo “homossexual” para designar todas as identidades abrangidas pela legenda
LGBT. Esse caso pode explicitar um conflito recorrente entre as letras da sigla, vez que
as identidades por estas representadas são abstraídas de contextos mais amplos, que
abrangem intersecções entre cor/raça, etnia, origem, orientação sexual, identidade de
gênero e suas performances, produzidas sob a aparência de uma substância, de uma
“classe natural de ser” (BUTLER, 2016).
Noutro plano, Facchini (2005) enfatiza as disputas referentes a essa “sopa de
letrinhas” no campo político dos movimentos sociais LGBT, em que o embate se coloca
por legitimidade, pela adoção de estratégias políticas de visibilidade distintas e
reivindicações não equânimes, que acabam também por destacar a potência presente na
instabilidade dessa suposta unidade, que traz mudanças no tocante ao plano exterior mas
também ao plano interior dos próprios movimentos sociais.
115
Estes movimentos, por sua vez, têm na afirmação de identidades um instrumento
de organização política da experiência de determinados grupos, no intuito de se conferir
uma inteligibilidade que possibilite a reinvindicação de direitos e o reconhecimento
social. Isso não extingue, porém, a crítica dirigida às políticas identitárias pelo seu
caráter excludente e pelo possível engessamento das noções de gênero e sexualidade
implicado na afirmação enfática da identidade, e na concepção de que as categorias de
análise são mutuamente excludentes - o que compromete a capacidade de agência dos
sujeitos na construção e reinterpretação das normas de gênero, que postulem vivências
outras e diversificadas.
Ainda, essa discussão nos remete às narrativas dos atores institucionais
entrevistados, em que emerge a necessidade de que o reconhecimento e a fixação de
determinadas identidades ocorram para que se possa travar estrategicamente a luta por
direitos para a população LGBT. Claudio Nascimento toca a fundo neste ponto ao
colocar que:
116
ninguém é discriminado por ser queer, ninguém é discriminado
porque é um não identitário, ou porque é um não binário. É
discriminado porque tá ali na frente, pra expectativa de gênero ou de
orientação sexual que o agressor ou homofóbico tem é partir do que
ele estabeleceu como sendo certo ou errado. Por exemplo, as travestis
vêm dizer pra gente que sofreu discriminação, o relato é assim: “fui
chamada de viado, fui chamada de bicha”. Então, pra pensar no
sentido da política pública, a gente precisava de sujeitos de direitos,
precisava então reconhecer esses sujeitos identitários, pra poder
existir na representação da política pública. Na política pública, você
precisa existir, pra existir tem que ser sujeito, pra ser sujeito tem
que ser sujeito identitário, senão você não tem existência alguma.
Se eu disser assim: não, nós vamos discutir normativas para os direitos
comportamentais do preso. Tá, hm, de que preso você tá falando? É
do preso LGBT. Claro que no caminho a gente precisa construir uma
sensibilidade pra quando tiver situações que mostrem pra gente
questões que ficam nessa hibridez, nessa fluidez identitária, a gente
entender também que é uma população que a gente precisa dar
atenção. E ai no campo acadêmico e comportamental, a gente tem que
trabalhar numa lógica de reconhecer que as pessoas são muito mais
além que as caixinhas identitárias. Mas na lógica da relação
representativa com o Estado e com a política pública a gente
precisa disso, mais como uma estratégia do que uma questão de
fixidez. Porque o que eu sou, fora, enquanto identidade gay e prática
sexual, eu posso ser um gay com uma prática heterossexual também.
Quem me tira essa possibilidade? Ninguém, se eu quiser. Mas a gente
tá falando de uma sociedade marcadamente heterossexista, totalmente
machista e cis também, que nega essas outras variações de gênero,
identidade, e também funde gênero e orientação sexual. Outro dia tava
conversando com uma amiga minha que é travesti, e que namora um
gay. E ai todo mundo diz: “então você é homossexual?”, “não, não
sou homossexual não. Ele é gay, eu sou travesti”. Isso pira a cabeça
das pessoas (risos) (Entrevista concedida por Claudio Nascimento,
grifos nossos)
117
Assim, ainda que se questione a cristalização de identidades, tais atores chamam
atenção para a necessidade instrumental de sua existência. Sua fixação mostra-se
desejável no momento de se agir politicamente e de se avançar com a agenda LGBT,
mesmo que reconheçam essas identidades muito mais fluidas e não categorizáveis no
plano real, e que a categorização implica em processos que não dão conta de abarcar
todas as vivências possíveis. Constitui, portanto, uma ficção de certa maneira necessária
à articulação e resistência política, e que nos ajuda, por outro lado, a nos localizarmos
entre as relações de poder operantes, a assumirmos a “perspectiva parcial” e responsável
defendida por Haraway (1995). A identidade, assim, pode ser mobilizada no sentido de
dar inteligibilidade às violências sistemáticas por que passam determinados grupos de
pessoas, e por outro lado, no sentido de localizar e reconhecer posições de privilégios
ocupadas por quem não as enfrenta. Perspectiva parcial implica, ademais, na
compreensão de quem somos no campo, e de que modo nós neste campo podemos ser
agenciadas e localizadas por ele.
A fala de Claudio Nascimento de que “na lógica da relação representativa com o
Estado e com a política pública a gente precisa disso [de um sujeito identitário], mais
como uma estratégia do que uma questão de fixidez”, quando colocada em relação com
a fala de Indianara Siqueira que abre essa dissertação, elucida um dos principais eixos
deste trabalho. Elucida como os atores institucionais se colocam e se relacionam com as
pessoas LGBT submetidas à justiça criminal; elucida o uso estratégico da produção de
um sujeito político de direitos para a formulação de políticas públicas pelas diferentes
instâncias daquilo que se entende por “Estado”. Elucida as possibilidades de
governamentalidade ao se recepcionar “novas identidades”, que ao serem
necessariamente fixadas ou ligadas aos aparelhos estatais, podem ser melhor
administradas ou controladas. Elucida que no reconhecimento e na colocação em
discurso dessas “novas identidades” acredita-se residir nossa liberação (FOUCAULT,
2015). Já Indianara, por meio de sua narrativa, demonstra que seu corpo é um corpo
(des)encarcerado, que não se adequa às instituições jurídicas cis/heteronormativas, e que
tendo consciência plena disso, articula com e a partir desse feixe para a subversão, bem
como para a produção de arenas políticas de direitos em disputa. A criminalização deste
corpo, por sua vez, reside justamente na subversão às normativas jurídicas, subversão
118
que só se mostra possível desde as localizações de Indianara na arena pública, como
uma travesti putativista77.
77
O putativismo compreende o movimento pelos direitos trabalhistas, dentre outros, de prostitutas.
78
Penso ser interessante esta categoria (amapoas) mobilizada pelas travestis e transexuais presas. Isso
porque da mesma maneira que o advento do termo “cisgênero” contribui aos olhos dos movimentos
ativistas trans para designar o outro, amapoas é mobilizado pelas trans privadas de liberdade para
designar as outras presas não trans.
119
.......................................................................................................
Não, não...aqui no Rio de Janeiro elas não querem. Em Belo
Horizonte eu sei que tem, no Rio Grande do Sul, porque é um outro
tipo de visão e também de preso. Lá o preso ele estupra, ele faz uma
série de coisas, e aqui não. Aqui, assim, tem muito casamento, muito
dengo, você precisa ver (risos) (Entrevista concedida por Adriana
Martins, assessora SEAP)
.................................................................................................................
E um ponto importante de a gente compreender é que foi criado o
direito da pessoa trans escolher o lugar de sua segregação, se unidade
feminina ou masculina. E a gente de uma maneira interessante
verificou que no Rio de janeiro, as mulheres trans e travestis não
desejam ser alocadas em presídios femininos. Porque em geral elas
desempenham dentro do próprio presídio masculino tarefas
consideradas femininas. Elas fazem faxina na cela, ganham um
dinheirinho com isso, lavam roupa, lavam louça, são encaradas como
mulheres mesmo dentro do sistema, são tratadas assim, submetidas a
papeis femininos, muitas são casadas, tem seus companheiros, seus
afetos dentro do presídio masculino e não querem ser separadas dos
demais presos. A gente não verificou nenhum caso de problemas entre
presos. Não recebemos denúncia ainda de discriminação de pessoa
LGBT entre presos. A maior parte das denúncias realmente vem do
preso em relação ao Estado. Mas isso não é uma realidade para todo o
Brasil. A norma do Conselho nacional, por exemplo, prevê a
existência de alojamento específico porque em outros estados do
Brasil existe uma violência muito grande, existe estupro,
espancamento de presos LGBTs por outros presos. Então desde que
isso seja sempre uma opção tá permitido nessas normas que sejam
colocados os LGBTs em uma ala específica. No Rio de Janeiro isso
não é necessário, não é desejado, pelas pessoas presas. Mas em outros
lugares do Brasil, como existe um nível alto de periculosidade para
essas pessoas ainda existem alojamentos LGBTs. E importante
salientar que isso nunca pode representar o isolamento da pessoa.
Existe a ideia do administrador penitenciário de que ao colocar o
preso no seguro, no isolamento, muitas vezes ele vai proteger de
forma adequada aquele preso. Mas se a gente parar para refletir, o
estado sendo incapaz de assegurar a proteção da integridade física
daquela pessoa acaba por uma falha sua submetendo a pessoa a uma
condição de encarceramento muito pior do que seria conviver numa
sala comum (...) (Livia Casseres, defensora pública responsável pelo
NUDIVERSIS)
121
Considerações Finais
79
As más condições no presídio Evaristo de Moraes é representada, por exemplo, pelo alto índice de
mortes especialmente ocasionadas por questões sanitárias, como informa reportagem veiculada pelo G1
em junho de 2017, disponível em < https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/cinco-presos-morrem-por-
mes-nos-presidios-do-rj-diz-levantamento-maior-parte-e-por-doenca.ghtml>. Acesso em 01.jul. 2017.
122
No decurso do trajeto, pudemos identificar algumas divisões específicas em
galerias. Às pessoas evangélicas, por exemplo, eram destinadas duas galerias próprias,
com muros pintados e coloridos, ao fundo do pavilhão. Segundo as presas e presos que
nos acompanhavam, as celas destinadas aos evangélicos eram geralmente mais vazias e
mais limpas do que as demais, o que proporcionava inclusive uma maior conversão das
pessoas ali privadas de liberdade àquela religião. Relataram também que para habitar
essas galerias, o que era necessário inclusive quando se tinha algum problema no
convívio, as pessoas trans eram obrigadas a rasparem os cabelos e a se vestirem com
roupas masculinas. A conversão, portanto, não remetia apenas a uma conversão
religiosa, mas implicava uma conversão da ordem do ser. Implicava a negociação do
corpo pela religião, e pelo espaço, por um conjunto de relações, em um movimento de
possibilidades de agências, não obstante marcadas por um rebaixamento ostensivo,
representado pelas condições de extrema necessidade. Explicaram que atualmente isso
vinha mudando, com a entrada na prisão das chamadas igrejas inclusivas, como a
Contemporânea, que à diferença das Igrejas pentecostais, não pregavam a cura de
pessoas LGBT. Perguntei o motivo de essas alas evangélicas contarem com melhores
condições que as demais, ao que me foi respondido que “então, eles vêm muito aqui,
quer ver em dia de visita...e tem também aquilo né, o diretor é evangélico, então
facilita”. Pedimos para conhecer essas alas, e entramos justamente no momento em que
acontecia ali um culto (em uma sala destinada especialmente para tal). Outra galeria era
destinada especificamente para pessoas idosas, e se localizava mais próxima à entrada
do pavilhão. Os demais presos e presas, como já relatado ao longo do trabalho,
habitavam o convívio, ou seja, um espaço comum sem outras distinções.
Terminada a conversa dentro do pavilhão das alas, a mesma presa que havia nos
recebido e uma das presidentas da comissão LGBT nos levaram para conhecer a
enfermaria. Sem grandes surpresas, a dispensa onde ficavam armazenados os
medicamentos estava vazia, faltando até medicamentos básicos, como dipirona. Após,
entramos na sala destinada às consultas médicas (realizadas apenas uma vez por
semana, para atender a um contingente de quase 3 mil presos), e não conseguimos ficar
lá por muito tempo. As paredes estavam cobertas por mofo, e respirar ali era
particularmente difícil. A sala destinada ao tratamento odontológico apresentava o
mesmo quadro, além da falta de equipamentos. Por coincidência, nossa visita se deu
123
justamente no dia reservado às consultas médicas, e pudemos conversar com o médico,
que nos relatou a precariedade da assistência recebida por parte do Estado, e as
dificuldades em se conseguir tratamentos e atendimentos especializados para os presos,
que muitas vezes não resistiam à longa espera. O Presídio Evaristo de Moraes, edificado
como o “modelo” de acolhimento para pessoas LGBT, era de fato um dos piores
presídios do Rio de Janeiro.
Por um lado, as percepções advindas dessa nova ida ao Evaristo de Moraes nos
permitem retomar alguns pontos trabalhados ao longo da dissertação, como é o caso da
visualização dos corpos enquanto lugar último de materialização de tensões
constitutivas dos processos de estado, dos processos de gênero, de um Estado
generificado. Ou ainda, das condições precárias estruturais do espaço prisional, que
colocadas como contingenciais, são na realidade centrais para a visualização de
contradições fundamentais deste Estado. Estado que se coloca como progressista, que se
pauta por uma agenda de direitos humanos, e de direitos das minorias, ao passo que,
simultaneamente, produz continuamente dentro de suas malhas uma gestão precária que
ratifica o lugar destinado àquelas mesmas pessoas, um lugar de abjeção. Essas questões
todas se localizam também nas pequenas bordas e tramas da corporalidade, assim como
ocorre quando Babi é supliciada e tem seu cabelo raspado. Quando a inteligibilidade de
uma mulher trans passa pela adequação aos “excessos” de uma autodeterminação.
Quando o corpo é ininteligível e “trapaceiro” porque afinal de contas não tem silicone, e
está querendo “se aproveitar” de uma oferta daquele Estado. Quando os hormônios são
retidos pela administração do presídio, ou oneram familiares das presas.
Por outro lado, algumas questões podem ser futuramente adensadas ou
trabalhadas, como é o caso da existência de outras figuras institucionais implicadas na
gestão da sexualidade e na produção de subjetividades nos ambientes de privação de
liberdade. Pensamos aqui na própria administração do presídio, ou ainda em instituições
seculares, que especialmente no Rio de Janeiro, ganham ênfase com o notório avanço da
religião evangélica na cidade, fomentado inclusive dentro das próprias malhas da gestão
municipal. Partimos, nesse sentido, e como esse trabalho tentou demonstrar, de uma
perspectiva que considere as “porosidades” (GODOI, 2015) da prisão, e a observação de
um certo “nicho” a ser conquistado e evangelizado dentro e fora dos muros prisionais
nos parece interessante de se pesquisar. Ainda, a etnografia de documentos que
124
tentamos desenvolver nessa dissertação pode ser aprofundada, não ficando restrita
apenas aos atores institucionais que formulam as políticas públicas destinadas ao
acolhimento de pessoas LGBT, mas avançando-se para a análise de toda uma
documentação um tanto menos publicizada também produzida pelas e nas prisões, como
é o caso dos processos disciplinares.
***
Em suma, o objetivo desta dissertação foi apresentar reflexões sobre o papel de
atores institucionais na gestão do acesso a direitos de presos e presas LGBT no Rio de
Janeiro. Nesse contexto, buscou-se investigar como esses atores produzem,
esquadrinham jurídica e normativamente essa população LGBT numa plataforma de
direitos cis/heteronormativa. Ademais, objetivou-se investigar os processos de Estado
que levaram à constituição de pessoas LGBT privadas de liberdade como novos sujeitos
políticos de direitos na atualidade, a partir de um nó entre vulnerabilidade e risco, e a
(re)produção da categoria mulher em termos essencialistas.
Na primeira parte, tentamos apresentar um panorama geral da pesquisa,
começando por elucidar a epistemologia adotada, nomeada por Prins (2006) de
feminismo interseccional construcionista – com o fim de se pensar as categorias
articuladas considerando as políticas de agência quando da análise das relações
constituídas entre o Sistema Penitenciário - e seus agentes - e a população LGBT a ele
submetida. Por esse motivo, a fala de Indianara Siqueira foi escolhida para abrir este
trabalho, vez que ela traz elementos que nos possibilitam pensar a agência e suas
possibilidades, de que forma é possível se agir sobre e a partir de categorias
governamentais instituídas. Ainda nessa primeira parte, pretendeu-se refazer os
percursos necessários à inserção no campo, e como este caminho por si só demonstrou
ser um rico campo etnográfico. Campo em que emergiram diferentes processos de
estado, e que culminou no deslocamento do objeto de pesquisa pensado previamente: o
da pesquisa da produção de sujeitos específicos de direito por agentes estatais, ao invés
de se construir uma etnografia a partir das vidas desses sujeitos aprisionados.
Ainda nessa primeira parte, tentamos trazer à análise a edificação da prisão
modelo (Evaristo de Moraes- um “ambiente de mínimo acolhimento e respeito” a
LGBT) engendrada pela ideia produzida pelo discurso subjacente dos direitos humanos
125
da vulnerabilidade e do risco, pela narrativa de necessidade de um espaço seguro para
os novos sujeitos de direitos vulneráveis, a “população LGBT privada de liberdade”.
Essa edificação, assim, traz um status de “sucesso” frente ao sabido fracasso do Sistema
Penitenciário nacional, sucesso este que necessita ser intensamente visibilizado. Por
outro lado, o encarceramento dessa população LGBT é produzido como um fenômeno
externo às instituições masculinistas, externo aos aparelhos de Estado.
A segunda parte se concentra justamente na investigação desses processos que
edificam e reificam a prisão, imbricados na produção de populações vulneráveis como
novos sujeitos políticos de direitos. A tentativa de recompor os espaços das
Conferências e Conselhos LGBT, através das narrativas de atores institucionais e dos
relatórios oriundos de tais reuniões, constituiu tarefa importante neste intento. É nesta
parte, ademais, que tentamos adensar as concepções acerca de um Estado, entendido
enquanto efeito de processos de Estado, absolutamente constituído de processos de
gênero. Apostando na ideia, portanto, de um duplo fazer do gênero e do Estado, em que
o fazer Estado é necessariamente fazer gênero, e vice versa.
Ao nos debruçarmos sobre as narrativas dos atores institucionais, tentamos
provocar o questionamento sobre a quem atende a materialização de Grupos de
trabalho, tais como o constituído a partir da resolução n° 34 de 2015, e a regulação de
políticas públicas para a população LGBT presa, e se esses dois processos não estariam
em realidade a serviço da governamentalidade dessa população. Para além também da
heterogeneidade de forças e disputas presentes nas arenas de Estado, buscamos pensar
os interlocutores desta pesquisa enredados no acionamento de certos documentos de
espetáculo, que somados a grandes cenas de Estado, são capazes de sustentar as
ambivalências de um Estado que se coloca no lugar de comprometido com os direitos
humanos, ao passo que produz o acirramento das condições de precarização de
populações marginalizadas e encarceradas.
Outro ponto importante que merece ser retomado é o da produção de “ficções
institucionais estanques” (AGUIÃO, 2014b), que reifica categorias como
“universidade”, “movimento social”, “gestão pública”. Essas reificações estão
presentes também na composição dos Conselhos, e na dinâmica das Conferências, onde
características específicas são atribuídas a esferas distintas, numa compreensão de que
seriam autônomas umas em relação às outras. Não obstante, partimos da ideia de que
126
essas fronteiras artificiais (MITCHELL, 2006) são em realidade borradas, não podem
ser fixadas ou definidas, e são remanejadas de acordo com os interesses envolvidos
contextualmente.
Na última parte, destinada à pesquisa realizada no Presídio Evaristo de Moraes,
se faz visível o descompasso entre as categorias estabelecidas por toda uma
documentação burocrática estatal, ou ainda pelo léxico dos direitos humanos, da
academia ou dos movimentos sociais, e aquelas que se colocam no cenário prisional.
Neste, destaca-se o caráter circunstancial e por vezes ambivalente das identificações
identitárias, contestador da cristalização produzida pela documentação governamental e
pelos outros tantos discursos. Por fim, esta parte final do trabalho teve por objetivo
mostrar o empreendimento de se produzir através de pesquisas, sendo elas institucionais
ou acadêmicas, um perfil da população presa, e especificamente um perfil da população
LGBT ou da população trans presa. Junto a esse empreendimento, a sala destinada às
entrevistas, em que uma certa categoria mulher era (re)produzida e reiterada, as
condições estruturais do presídio, a superlotação, o “sistema que tá sobrecarregado” -
todas essas questões que emergem a partir do trabalho de campo realizado no presídio
Evaristo de Moraes – foram trabalhadas como processos de Estado centrais. Processos
que escancaram a contradição fundamental entre um Estado garantidor e promulgador
dos direitos humanos, e que ao mesmo tempo reitera o lugar de abjeção a esses corpos
não normativos, a esses corpos em que as tensões constitutivas de um Estado
generificado são inscritas e reinscritas.
Ainda que em muitos momentos este trabalho possa parecer externo ao universo
prisional, por não falar propriamente de seus muros, celas, e das vidas ali encerradas,
pretendeu-se mostrar a materialidade da construção de políticas públicas ou programas
governamentais, que edificam a prisão “sistema”. Essa prisão “sistema” foi então aqui
trabalhada enquanto um dispositivo de fazer e fazer-se no Estado, executado por atores
institucionais específicos, representados no Rio de Janeiro pela Defensoria Pública, pela
Secretaria estadual de Administração Penitenciária, pelo Rio sem Homofobia, pela
Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Nesse sentido, objetivou-se nessa
dissertação trabalhar em cima da ausência apontada por Salla (2006) nas pesquisas
sobre prisão, do estudo sobre a construção de políticas públicas e programas
governamentais, engendrada por diversos fatores que interferem em sua formulação.
127
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134
ANEXOS
135
1
Anexo 1
136
137
138
139
140
141
Anexo 2
142
143
144
145
146
147
148
149
150
Anexo 3
151
152
153
154