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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS,

LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL

REGIANE DA SILVA PERAZZO

O ESTADO NÃO ME DEFINIRÁ: Um olhar sobre o Processo Transexualizador à luz


da Teoria Queer

JOÃO PESSOA/PB
2019
REGIANE DA SILVA PERAZZO

O ESTADO NÃO ME DEFINIRÁ: Um olhar sobre o Processo Transexualizador à luz


da Teoria Queer

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Departamento de Serviço Social da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito parcial
necessário para a obtenção do título de bacharel em
Serviço social
Orientadora: Profª Drª Luziana Ramalho Ribeiro

JOÃO PESSOA/PB
2019
Catalogação na publicação
Seção de Catalogação e Classificação

P426e Perazzo, Regiane da Silva.


O ESTADO NÃO ME DEFINIRÁ: Um olhar sobre o Processo
Transexualizador à luz da Teoria Queer / Regiane da
Silva Perazzo. - João Pessoa, 2019.
44 f.

Orientação: Profª Drª Luziana Ramalho Ribeiro.


Monografia (Graduação) - UFPB/CCHLA.

1 Movimentos Sociais. 2. LGBT. 3. Processo


Transexualizador. 4. Teoria Queer. I. Ribeiro, Profª
Drª Luziana Ramalho. II. Título.

UFPB/CCHLA
REGIANE DA SILVA PERAZZO

O ESTADO NÃO ME DEFINIRÁ: Um olhar sobre o Processo Transexualizador à luz


da Teoria Queer

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Departamento de Serviço Social da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito parcial
necessário para a obtenção do título de bacharel em
Serviço social.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________
LUCIANA RAMALHO RIBEIRO
ORIENTADORA

__________________________________
NELSON GOMES DE SANT'ANA E SILVA JÚNIOR
PROFESSOR EXAMINADOR - UFPB

__________________________________
NAYHARA HELLENA P. ANDRADE
PROFESSOR EXAMINADOR - UFPB
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a toda a população LGBTQI+, a todos que sofrem e resistem pelo
direito de serem como se veem.

Dedico-o também à minha família, por todo esforço com o qual investiram em minha
educação. A todos os professores que já tive em meu trajeto até aqui; que este trabalho
lhes seja como uma lembrança de minha gratidão por todo conhecimento que tive a
oportunidade de aprender.
E o homem não me define

Minha casa não me define

Minha carne não me define

Eu sou meu próprio lar

(Francisco, El Hombre)
AGRADECIMENTOS

A Deus. A meus pais, Iracy Muniz e Reginaldo Perazzo, por todo empenho e
esforço em minha educação, a minha amada irmã Regissely Perazzo, por todo amor e
ensinamento, se hoje sou uma mulher empoderada, boa parte disso é porque me inspirei
nela ao crescer. Agradeço também a minha querida tia, Eliaci Muniz, por todo suporte
que me deu nesse trajeto.

A minha querida orientadora, Profª Drª Luziana Ramalho, por aceitar meu
convite com tanta animação para orientar esse projeto, por todos os seus ensinamentos,
e por ter sido através da disciplina (Família e Relações de Gênero) que conheci a Teoria
Queer e me encantei. Gratidão pela sua paciência e afeto comigo durante todo nosso
processo de construção desta dissertação.

Ao LAPSUS (Laboratório de Pesquisa e Extensão em Subjetividade e Segurança


Pública) coordenado por, Nelson Sant’Ana, Rebecka Tannuss, Renata Garcia e Nara
Fernandes, responsáveis por grande parte de meu amadurecimento acadêmico, sendo
espaço de conhecimento e afeto desde o início de minha graduação.

Ao Espaço LGBT (Centro de Referência dos Direitos de LGBT e Enfrentamento


a Homofobia na Paraíba), no qual estagiei pelo período de dois semestres. A seus
profissionais, extremamente dedicados, que me inspiraram ainda mais em lutar e
defender direitos, em resistir em meio a essa sociedade turva.

Aos meus amigos, que entenderam minhas ausências durante meu processo de
escrita deste trabalho, e que me apoiaram com seu afeto em meus momentos de
ansiedade e dúvidas, sou de muita sorte pelos amigos que escolhi para acompanhar-me
em minha vida.

Este trabalho é marcado pelo afeto de cada um que passou em minha vida e me
tocou.
RESUMO

Os Movimentos Sociais que reivindicam direitos de liberdade sexual e de gênero são


recentes, se considerarmos que tomaram visibilidade política apenas na segunda metade do
século XX. As demandas da saúde que resultaram na implementação do Sistema Único de
Saúde (SUS), somadas às demandas específicas da população LGBT e o debate de questões
de gênero, fizeram possível pensar Políticas Públicas específicas para a população LGBT. A
metodologia deste trabalho consiste em uma pesquisa documental e bibliográfica, e este
estudo objetivou analisar as conquistas dos movimentos sociais nas políticas públicas para a
população LGBT; Compreender o Processo Transexualizador do SUS, a partir da Teoria
Queer; Problematizar até onde a cultura patriarcal e heteronormativa influenciam nas
políticas Públicas voltadas a população LGBT. Os resultados deste trabalho mostram que as
políticas públicas voltadas para a população LGBT, e o processo Transexualizador do SUS,
mesmo com avanços consideráveis, ainda estão baseados na heteronormatividade, portanto,
pensá-los a partir da Teoria Queer nos mostra uma maior possibilidade de contemplar os
direitos de liberdade sexual e de gênero.

Palavras chave: Movimentos Sociais; LGBT; Processo Transexualizador; Teoria Queer.


ABSTRACT

The Social Movements that claims for gender and sexual freedom rights are recent, if
we consider that they got political visibility only in the second part of the 20th century.
The health demands, result of the implementation of the Brazilian Unified Health
System (As known as SUS), plus the specific demands of the LGBT community, and
the debate of gender issues, created possibilities to think about specific Public Policies
to the LGBT community. The methodology used in this work consists in a documentary
and bibliographical research. This study aimed to analyse the achievements of the
Social Movements in Public Policies related to the LGBT community; to understand the
process of health care for transsexuals in SUS (based on Queer Theory); to question
how the heteronormative and patriarchal culture influence the Public Policies specific to
the LGBT community. The results of this paper show that the Public Policies specific to
the LGBT community and the Sex Reassignment Process in the SUS, despite its
considerable progress, are still based in heteronormativity. Therefore, reflect them
through the Queer Theory can show us a higher possibility to contemplate the gender
and sexual freedom rights.

Keywords: Social Movements; LGBT; Sex Reassignment Process; Queer Theory.


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AIDS Acquired Immunodeficiency Syndrome (Tradução: Síndrome da


Imunodeficiência Adquirida)

DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

Etc Et cetera

GLBT Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros (Travestis e Transexuais)

GLS Gays, Lésbicas e Simpatizantes

GRI Imunodeficiência Gay Adquirida

HIV Human Immunodeficiency Virus (Tradução: Vírus da Imunodeficiência


Humana)

Homo Homossexual

LGBT Lesbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (Travestis e Transexuais)

LGBTQI+ Lesbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros (Travestis e Transexuais),


Queer, Intersexuais e outros.

SUS Sistema Único de Saúde


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 10

PARTE I - “Gostaria que me aceitassem como sou”


1.1 Da sexualidade .............................................................................................................................. 14
1.2 Da “anormalidade” ...................................................................................................................... 17

PARTE II - “Eu penso que não há nada mais verdadeiramente artístico do


que amar as pessoas”
2.1 A Contracultura ........................................................................................................................... 22
2.2 Politização dos movimentos sociais da população LGBT.............................................. 27

PARTE III - “A normalidade é uma estrada pavimentada: é confortável


andar, mas nenhuma flor nasce nela”
3.1 Enfim, a Teoria Queer ............................................................................................................... 33
3.2 Políticas Públicas voltadas a população LGBT: O Processo Transexualizador ....... 36

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 41

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 43


10

INTRODUÇÃO

As políticas de saúde direcionadas à população LGBT, especificamente a


população T (Travestis e Transexuais), são muito recentes, e configuram uma grande
conquista para o Movimento LGBT. Considerar o Processo Transexualizador,
analisando a sua proposta e seu funcionamento, significa pensar seus avanços e
benefícios para a população, bem como, as necessidades de avanço desse processo, a
partir da teoria Queer, que rompa com o binarismo de gênero, pois apesar de tratar-se de
uma política de saúde não conservadora e que busca atender as demandas da
diversidade de gênero ainda é pautada na heteronormatividade.
Os fatores que despertaram o interesse de pesquisar tal temática, foram,
primeiramente, o contato com as questões de gênero e teoria Queer, através da
disciplina de Família e Relações de Gênero, ministrada pela professora Dra. Luziana
Ramalho, e em um segundo momento as vivências no estágio supervisionado
obrigatório I e II, do curso de Bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal
da Paraíba, realizado no Centro Estadual de Referência dos Direitos de LGBT e
Enfrentamento à Homofobia na Paraíba (Espaço LGBT), no qual observou-se nos
relatos e conversas dos usuários que a diversidade sexual e de gênero é imensa e
subjetiva não podendo ser contemplada apenas na sigla “LGBT”.
E por fim, uma outra motivação desta pesquisa, parte do descontentamento com
a pouca produção em Serviço Social sobre questões de gênero, sexualidade, Teoria
Queer e afins, e da importância de se pensar políticas públicas voltadas para públicos
específicos, e da necessidade de inclusão e equidade ao se pensar essas políticas.
Objetivamos nesta pesquisa problematizar as questões acerca da Teoria Queer e
Políticas de Saúde direcionadas a população LGBT, trazendo um debate sobre o
reconhecimento das contribuições que a Teoria Queer pode nos proporcionar para uma
maneira de ver a sociedade de forma mais ampla, a fim de não somente reconhecer as
diferenças, mas utilizá-las para modificar os padrões sociais.
No que tange ao método da pesquisa, constituiu-se como uma pesquisa
documental, porque utiliza portarias e bibliográfica pois “é desenvolvida a partir de
material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL,
2008, p.50) tendo como base literatura acerca de questões de gênero, Movimento
LGBT, políticas públicas de saúde e Teoria Queer.
11

Tendo como norte a Teoria Queer, que segundo Judith Butler consiste em uma
Nova Política de Gênero, esta busca transformar a sociedade e seus
padrões pré estabelecidos, visando assim, não enquadrar os sujeitos a caberem no que é
imposto socialmente e serem aceitos pela sociedade, mas sim em mudar a sociedade
para que reconheça e aprenda com as diferenças de cada um, assim, na perspectiva
Queer “a luta é por desconstruir as normas e as convenções culturais que nos constituem
como sujeitos ” (MISKOLCI, 2012, p.27).
A partir disto, este trabalho se propõe a traçar e analisar os avanços e conquistas
da população LGBT no que tange ao direito à saúde e liberdade de expressão, em como
se deu o processo de politização dos movimentos LGBT, e como atualmente encontra-
se este cenário, focando em um processo específico no campo da saúde de LGBT’s, o
Processo Transexualizador.1
Pensar o Processo Transexualizador a partir da Teoria Queer significa pensar e
descontruir padrões socialmente construídos e patriarcais, tais como
a heteronormatividade, que mesmo dentro das políticas voltadas a população LGBT
persiste. Significa pensar um conceito de políticas públicas e projetos que de fato
possam contemplar a todos.
Os três capítulos que serão aqui apresentados possuem como título citações do
pintor Vincent Van Gogh, compreendemos que Van Gogh em sua vida sofreu o estigma
de ser tratado como anormal, abjeto, aberração e tal rejeição social imputada a ele não
se deu por questões de gênero e sexualidade, Van Gogh, como
homem cisgênero heterossexual não sofria rejeição pela sua identidade de gênero ou
orientação sexual, entretanto, não encaixava-se nos padrões socialmente impostos do que
seria a normalidade, e em sua trajetória de vida soube a experiência dolorosa do que é não
encaixar-se no padrão de normalidade socialmente imposto, do que é sofrer o estigma de ser
o estranho, anormal, um abjeto, conceitos estes impostos aos sujeitos da Teoria Queer, que
sobretudo não limita-se a questões de gênero, portanto, as três frases do pintor aqui
escolhidas dizem acerca da temática que se pretender abordar em cada capítulo partidas da
vivência de um artista cuja história é mundialmente conhecida e marcada pela rejeição
social sofrida por este durante sua vida por ser considerado o estranho, louco, aquele cujo

2
Processo realizado através do SUS, voltado a população transgênero (Travestis e Transexuais) para
o acompanhamento médico da hormonioterapia e Cirurgia de redesignação sexual
12

desprezo e rejeição sofridas se deram apenas por não obedecer as normas socialmente
impostas.
Na primeira parte deste trabalho, intitulada de “Gostaria que me aceitassem
como sou” definiremos alguns conceitos de gênero, identidade de gênero e orientação
sexual a fim de compreender a complexidade de diversidade que existe socialmente e da
necessidade da sociedade não somente aceitar as diferenças, mas desconstruir seus
padrões a partir delas.
Para assim, na segunda parte desta pesquisa, “Não há nada mais
verdadeiramente artístico do que amar as pessoas” abordaremos a revolução que foi a
contracultura e as novas formas de se pensar e trazer como pauta a sociedade e a
militância os direitos dos sujeitos LGBT’s, com a politização dos movimentos sociais
LGBT’s, focando em como tal politização trouxe contribuições nas políticas públicas de
saúde dessa população, que começaram a surgir deste movimento através do surto da
AIDS na década de 1980, quando a população gay era responsabilizada pelo surto desta
doença. O holofote atirado aos gays durante o surto da AIDS2, deu abertura para que a
população LGBT começasse a reivindicar seu espaço dentro das políticas públicas de
saúde, e atualmente muito se avançou e continua a se avançar neste âmbito.
Assim, o Processo Transexualizador será abordado ainda nesta segunda parte do
trabalho, como resultado e conquista do movimento LGBT no campo da saúde.
Por fim, a terceira parte desta pesquisa intitulada “A normalidade é uma estrada
pavimentada: é confortável andar, mas nenhuma flor nasce nela” nos desdobraremos
sobre a Teoria Queer, sobre a ruptura necessária dos padrões sociais de normalidade,
pensando as políticas de saúde voltadas a população LGBT com enfoque no Processo
Transexualizador do SUS e nas contribuições que uma abordagem Queer, pode nos
trazer.
A Teoria Queer, norteará, devido a possibilidade de abranger mais indivíduos,
considerando suas subjetividades, e pelo seu discurso de quebra dos padrões
heteronormativos socialmente construídos. Demonstrando ela ser de grande importância
para que se possa pensar de forma mais ampla e aberta os conceitos de

2
Conforme Pelúcio e Miskolci (2009) citado por Germano e Sampaio (2014, p.291) O holofote
aos homossexuais nesse contexto, deu-se em virtude de que “dois em cada cinco infectados tinham
relações sexuais frequentes com outros homens”, assim, o surto da AIDS logo foi associado a
homossexualidade e utilizado como forma de segregar e patologizar essa população.
13

normalidade, sexualidade e liberdade de expressão, bem como a rica contribuição que


pode proporcionar ao Processo Transexualizador.
Almejamos através deste estudo contribuir de forma positiva para a discussão do
processo Transexualizador, e abrir as mentes a uma perspectiva de Diversidade de
Gênero que abranja de fato as relações individuais e subjetividade dos usuários.
Servindo também, posteriormente, como contribuição teórica para mais estudos acerca
da temática aqui referente.
14

PARTE I
“I wish they would only take me as I am.”
“Gostaria que me aceitassem como sou”
(Vincent Van Gogh)

1.1 Da sexualidade

Trabalhar questões de gênero na atualidade requer atualizar-se constantemente, pois


novas nomenclaturas e conceitos vêm sendo incorporados. Entretanto, nenhuma dessas
novas nomenclaturas são exatamente novas as vivências e vontades humanas, são apenas
rótulos para aquilo que já vinha sendo expressado ou desejado pelos indivíduos.
Para melhor compreensão da temática deste trabalho, faz-se necessário
introduzir e conceituar gênero, identidade de gênero, orientação sexual, e as implicações
sociais que sofrem os indivíduos cujo gênero em decorrência de uma cultura patriarcal é
desfavorecido, e ou cuja identidade de gênero e orientação sexual também são afetadas
e desfavorecidas pela cultura patriarcal e a heteronormatividade.
Os padrões de heteronormatividade e cultura patriarcal impostos socialmente,
ditam o que a seus olhos deve ser considerado normal e regra, aceitando apenas aqueles
que obedecem tais padrões, e reprimindo os que os transgridem.
A cultura patriarcal consiste na dominação do gênero masculino sobre o feminino,
denomina-se de cultura pois está enraizado socialmente desde muito tempo, e vem sendo
reproduzido até os dias atuais. Michel Bozon, em sua obra intitulada Sociologia da
Sexualidade (2004), aborda acerca deste domínio de gênero, e desmistifica a ideia dele
como um domínio natural, visto que expõe em sua obra que no início do processo de
civilização das sociedades o controle tanto sexual como social não era exercido pelos

homens e sim pelas mulheres3, com o passar dos anos e mudanças de civilizações, esse
poder passou para a dominação masculina, na qual se mantem até o século atual. Ou seja,

3
Ver “Sociologia da sexualidade / Michel Bozon – Rio de Janeiro: editora FGV, 2004” para
melhor compreensão de como se deu a troca dos papeis socialmente impostos de dominação de sexo,
que por um curto período de tempo esteve sob domínio das mulheres.
15

compreende-se que a cultura patriarcal foi socialmente construída e é reproduzida


através da opressão de um gênero (feminino).
É, portanto, uma cultura de dominação que favorece apenas o gênero masculino,
reforça o machismo e as violações que estes opera diariamente contra os corpos das
mulheres e de LGBTQI+ (Lesbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer,
Interssexuais e etc).
É a partir do sexo biológico que a heteronormatividade definirá o gênero de um
indivíduo e o papel social que este deve desempenhar. Assim, o sexo, representado pela
genitália, (pênis ou vagina) definirá o gênero (Feminino ou Masculino), bem como a
orientação sexual deste indivíduo, que deverá se dar ao sexo oposto.
A heteronormatividade, assim como o nome já sugere, é baseada no modelo
heterossexual, e impõe esse modelo como o único adequado a ser seguido, a partir de
uma dominação patriarcal. Ela perpassa a sociedade para além do modelo heterossexual
cisgênero, por sua vez, procura enquadrar a sua lógica de binarismo de gênero o papel
do masculino e feminino mesmo nas relações homoafetivas. O que significa dizer que, a
heteronormatividade baseada nos papéis socialmente construídos do feminino e
masculino, procura enquadrar todos os indivíduos e relações ao modelo das relações
heterossexuais (PINO, 2007 apud SOUZA e PEREIRA, 2013. p 86).
A cultura hétero, enraizada socialmente, opera não apenas através da
heteronormatividade, mas há também outros conceitos que exemplificaram outros tipos
de violência, tais como o heterossexismo e a heterossexualidade compulsória, que
diferem da heteronormatividade, mas que, todavia, terão a mesma função disciplinadora
de gênero. Segundo Miskolci nos define, podemos conceituar o heterossexismo e a
heterossexualidade compulsória como:

Heterossexismo é a pressuposição de que todos são, ou


deveriam ser, heterossexuais. Um exemplo de
heterossexismo está nos materiais didáticos que
mostram apenas casais formados por um homem e uma
mulher. A heterossexualidade compulsória é a
imposição como modelo dessas relações amorosas ou
sexuais entre pessoas do sexo oposto. Ela se expressa,
frequentemente, de forma indireta, por exemplo, por
meio da disseminação escolar, mas também midiática,
apenas de imagens de casais heterossexuais. Isso relega
a invisibilidade os casais formados por dois homens ou
duas mulheres (MISCOLKI, 2012, p.43).
16

Estes três conceitos heteronormatividade, heterossexismo e heterossexualidade


compulsória, embora possuam definições distintas, os três partem do pressuposto da
heterossexualidade como condição natural e “normal” do indivíduo e que, portanto,
deve ser imposta socialmente, seja por meio da invisibilidade de demais formas de
sexualidade, ou por meio de violência (psicológica ou física).
Sexo, identidade de gênero e orientação sexual não dependem um do outro. O
Sexo biológico define a genitália e não a identidade de gênero ou se esse indivíduo se
compreenderá como homem ou mulher, o que por sua vez também não definirá a
orientação sexual do mesmo.
De acordo com Jesus (2012) o sexo é a “classificação biológica das pessoas
como machos ou fêmeas, baseada em características orgânicas como cromossomos,
níveis hormonais, órgãos reprodutivos e genitais.” A partir do sexo a sociedade define o
gênero como Feminino ou Masculino (Mulher ou Homem), entretanto, o sexo não é
determinante para que um indivíduo se sinta homem ou mulher, o conceito de gênero
perpassa os papéis socialmente impostos aos sexos.
Gênero corresponde ao modo como o Homem ou Mulher, irão representar os
papéis sociais a serem assumidos e é subjetivo, podendo o indivíduo ter a sua identidade
de gênero correspondente ou não com o gênero que lhe foi atribuído em decorrência de
seu sexo biológico.
A identidade de gênero corresponde a forma como o indivíduo se compreende
socialmente enquanto representante dos papeis de homem ou mulher, independente do
sexo biológico deste, podendo corresponder ou não os padrões socialmente impostos
que delimitam o que é “ser home” ou “ser mulher”.
Aqueles cuja identidade de gênero é divergente de seu sexo de nascimento, são
denominados transgêneros, termo que abrange transexuais e travestis. Os transexuais
procuram adequar seus corpos ao padrão socialmente imposto do gênero com o qual se
identificam, como explica Jesus (2012):

Transexuais sentem que seu corpo não está adequado à


forma como pensam e se sentem, e querem corrigir isso
adequando seu corpo ao seu estado psíquico. Isso pode
se dar de várias formas, desde tratamentos hormonais
até procedimentos cirúrgicos (JESUS, 2012, p.09).
17

Mas, é importante ressaltar que muitos não sentem necessidade de mudar através
de cirurgias seu sexo biológico, e que como gênero independe do sexo, em nada isso
alterará que sejam menos ou mais reconhecidos no gênero com o qual identificam-se.
Mesmo que os transexuais sejam homens e mulheres independente de seus sexos
biológicos, há uma categoria que é comumente confundida com a transexualidade. As
travestis, que são também incluídas na categoria “Transgênero” que representa o “T” da
sigla LGBTQI+, não se identificam como mulheres, entretanto assumem papéis sociais
femininos, devendo ser tratadas no feminino, pois não se identificam tampouco no
gênero masculino, configuram uma espécie de terceira categoria de gênero, a
representação de um papel feminino fora da caixa de gênero que o representa, Jesus
(2012) acerca disto expõe:

Entende-se, nesta perspectiva, que são travestis as


pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas
não se reconhecem como homens ou como mulheres,
mas como membros de um terceiro gênero ou de um
não-gênero (JESUS, 2012, p. 09).

Como vimos, sexo não determina identidade de gênero, que por sua vez não
determina orientação sexual. A orientação sexual, termo atribuído ao desejo afetivo-
sexual de uma pessoa, que, por sua vez, pode ser definida de cinco formas distintas,
assexual, bissexual, homossexual, heterossexual e pansexual.
Os assexuais correspondem aos indivíduos que não sentem atração sexual, mas
podem por vezes apresentar atração afetiva por um dos gêneros, ou demais. Bissexuais
sentem atração afetivo-sexual por pessoas de ambos os gêneros. Homossexuais sentem
atração afetivo-sexual por pessoas pertencentes ao mesmo gênero com o qual eles se
identificam. Heterossexuais são aqueles que sentem atração afetivo-sexual por indivíduos
cuja identidade de gênero (feminina ou masculina) é divergente da dele (cf JESUS, 2012). E
pansexuais, por sua vez, são indivíduos que sentem atração afetivo-sexual independente do
sexo, identidade de gênero, ou do binarismo ou não de gênero do outro.
Todos esses conceitos foram estabelecidos ao longo dos anos para categorizar e
compreender as particularidades e diferenças que possuímos socialmente no que tange
identidade de gênero e orientação sexual.
O leitor deste trabalho, muito provavelmente já deve ter se deparado com uma
sigla muito usada comumente há uma década, “GLS” (Gays, Lésbicas e Simpatizantes)
que atualmente compreende-se como LGBTQI+. A sigla GLS,
18

compreendia apenas Gays, Lésbicas e “Simpatizantes”, um conceito curioso que


compreendia a parcela da população heterossexual cisgênero ou instituições, que
apoiava as causas da comunidade Gay. Nitidamente negligenciava-se o protagonismo
dos demais seguimentos da população que não era hétero, gay ou lésbica, eles não
estavam incluídos na sigla, entretanto isso não significava que eles não existiam, e
reivindicavam seus direitos e respeito juntamente com os gays e lésbicas.
Bissexuais, Transexuais, Travestis e demais resistiam em sociedade juntamente
com os GLS e posteriormente o acréscimo de Bissexuais e Transgêneros (Travestis e
Transexuais) na sigla, trouxe uma amplitude ao olhar de inclusão e diversidade; LGBT.
Retira-se assim o conceito “Simpatizante” que não havia menor sentido em ser incluído,
visto que representava indivíduos cujo gênero e orientação sexual obedecia ao padrão
social imposto, e que não estariam incluídos em grande parte das pautas e necessidades
da população LGBT.
Muito se avançou desde a mudança das siglas GLS para LGBT, entretanto, era
ainda necessário pensar se ao falar da causa LGBT incluía-se de fato a diversidade sexual e
de gênero presente socialmente. E a resposta ao se pensar tal hipótese, seria não.
Haviam sujeitos que transgrediam a norma heterossexual padrão, e não se
enquadravam nos termos da sigla LGBT, por mais inclusiva que ela parecesse ser.
Haviam demais indivíduos que não estavam incluídos no padrão social
heteronormativo, como os Intersexuais (antigamente chamados hermafroditas,
indivíduos cujo sexo biológico nasce indefinido) , e também indivíduos que seguiam
sem serem compreendidos, e a margem do que a sociedade considerava aceitável acerca
da diversidade sexual e de gênero.

1.2 Da “anormalidade”
Discutir a anormalidade, é discutir a relação de poder que a determina. O normal
e o anormal são sujeitos historicamente construídos de acordo com o contexto social
hegemônico no qual estão inseridos. A classe social que definiu o que seria a verdade e
a normalidade a serem impostas, o definiu não por dominar a verdade, pois a verdade é
uma construção social. Assim aqueles que ditaram as práticas e comportamentos que
deveriam ser considerados normais ou não, o fizeram, pois, possuíam poder
(hegemonia) para tal ação. E é assim que se estabelece a relação entre a verdade, o
poder e a anormalidade (FOUCAULT, 2002).
19

Primeiro inventa-se quem são os anormais, para depois criar a norma. A


anormalidade é, portanto, um conceito socialmente construído por aqueles que dela
discordam e possuem poder para regular as práticas e ações alheias, sujeitando os
demais indivíduos a seguirem aquilo que lhes é imputado como correto e normal com
base em uma verdade inventada (socialmente construída por aqueles que detinham o
poder) do que seria o certo e errado.
A partir desse conceito criado do que seria o normal ou o anormal se regula
comportamentos, práticas e desejos. Se regula e condena elementos subjetivos dos
indivíduos.
Os anormais, assim, são considerados os indivíduos que não se encaixam nos
padrões socialmente impostos, e bem mais que isso, são aqueles que por transgredirem
esses papéis, serão marginalizados, suspeitos e responsáveis de todas as culpas,
vergonhas e crimes dos quais a sociedade possa lhes imputar.
Foucault nos apresenta em sua obra, Os anormais (2001), que historicamente a
anomalia foi construída a partir de três figuras, o monstro humano, o indivíduo a ser
corrigido e a criança masturbadora.
Notemos que, na primeira figura, o monstro humano, a desumanização do sujeito
é uma tática primordial para que se possa justificar a partir disso, todas as violações que
este sofrerá pela sua condição de não estar de acordo com aquilo que foi socialmente
preestabelecido. A desumanização, o repúdio ao crime por este cometido, como se o
crime lhe fosse natural, uma parte de sua condição anômala. Neste primeiro momento,
ao discorrer sobre a figura do "monstro humano” Foucault focará nessa relação
entre a anomalia e crime, pois a figura do monstro humano era a figura do indivíduo
desviante do sistema judicial.
Com base nisso, se procurava achar nas transgressões, (sejam estas transgressões
da lei, ou apenas do conceito de normalidade vigente) a monstruosidade que existia
naquele indivíduo, que justificasse seu desvio e sua condição menos humana por isso.
“Digamos numa palavra que o anormal... é no fundo um monstro cotidiano, um monstro
banalizado” (FOUCAULT, 2001, p.71).
A segunda figura mencionada por Foucault era a do indivíduo a ser corrigido.
Nessa figura a responsabilização da anomalia não se dava a fatores naturais que
justificariam possíveis monstruosidades, como na primeira, nesta a culpabilização do
sujeito a ser corrigido recaia sobre a família, a comunidade, os vizinhos, aqueles que
compartilham do convívio com este indivíduo. Por não ser uma “monstruosidade”, da
20

natureza dele, considerava-se que sua anomalia poderia ser corrigida. Via-se nessa
época e perspectiva a anormalidade como algo que poderia e deveria ser reparado, para
readequar o sujeito ao padrão social que fora estabelecido como normal e correto.
Mas se esse indivíduo a ser corrigido, apresentava seu desvio, significava,
portanto, que a família e a educação que lhe foram dadas “falharam” com ele, no
sentido de, portanto, ele ter se tornado um ser desviante, não ajustado, precisando ser
corrigido. Mas corrigido por quem? Os que deveriam corrigi-los não foram os
responsáveis por ele não ter crescido na normalidade? “O que define o indivíduo a ser
corrigido, portanto, é que ele é incorrigível” (FOUCAULT, 2001, p.72).
Já a terceira figura, que aparece por volta do século XVIII, é denominada a
Criança Masturbadora. Nesta figura “seu contexto de referência não é mais a natureza e
a sociedade como [no caso de] o monstro, não é mais a família e seu entorno como [no
caso de] o indivíduo a ser corrigido. É um espaço muito mais estreito. É o quarto, a
cama, o corpo...” (FOUCAULT, 2001, p. 74).
A figura da criança masturbadora como uma figura representativa da
anormalidade põe a anomalia em uma outra esfera, não apenas do âmbito natural do
indivíduo, ou causada pela falta de correção da família, ela está no campo sexual. A
sexualidade torna-se assim objeto para se pensar o estranho, o anômalo, atribuindo as
causas de sua anormalidade a práticas de masturbação.
Portanto, a partir da compreensão dessas três figuras que definiam a
anormalidade desde meados dos séculos XVIII, podemos avaliar que “o anormal do
século XIX é um descendente desses três indivíduos, que são o monstro, o incorrigível e
o masturbador.” (FOUCAULT, 2001, p. 75).
No século atual (XXI), a figura do indivíduo considerado anormal ainda é
estigmatizada e pensada a partir das figuras que definiram a anormalidade no século
XVIII. O monstro humano ainda é uma justificativa recorrente do âmbito judiciário,
para punir os corpos de sujeitos à margem da sociedade, que pela transgressão da lei (lei
imposta pela hegemonia) são desumanizados e sujeitados a condições degradantes e
humilhantes dentro do sistema penitenciário, e quando fora dele, ainda vistos como
sujeitos desviantes, anormais.
A partir desta perspectiva do desvio, pensar o indivíduo a ser corrigido nos torna
claro que, é esta uma outra figura que não foi superada. O monstro humano, o indivíduo
a ser corrigido, não dizem apenas a respeito da perspectiva do desvio da lei, mas, em
geral, do desvio dos padrões de normalidade socialmente impostos. Estes sujeitos, na
21

atualidade, continuam sendo desumanizados como monstros, a fim de justificar-se as


violências a eles afligidas. Bem como, em alguns casos, serão pensados com sujeitos
que podem vir a ser “corrigidos” e obedecerem assim aos padrões impostos, vistos
como uma falha, da comunidade e da família.
A última figura é muito significativa para pensarmos este trabalho, as duas
primeiras também os são, pois justificam o estigma e as violências operadas a aqueles
considerados anormais em nossa sociedade. Entretanto, a figura da criança
masturbadora entra no campo da sexualidade, campo no qual este trabalho se desdobra
ao se propor a pensar a partir de uma perspectiva Queer.
A anormalidade, como vista aqui, é um elemento socialmente construído a partir
de uma relação de poder, daqueles que ditam o que deve ser a “verdade”. Das três
figuras que perpassam o conceito de anormal, compreende-se a ideia do sujeito
anormal, como um indivíduo fora de si, que precisa ser ajustado, ou que está
patologicamente condenado a sua condição anômala, natural a ele, mas condenável. Nas
duas primeiras figuras, as causas da anomalia serão atribuídas respectivamente a
natureza do indivíduo, a família e comunidade. Na última figura as causas de sua
anomalia serão atribuídas ao campo da sexualidade.
Na atualidade os indivíduos ainda taxados como anormais, encontram-se muitas
vezes no campo da sexualidade. Sendo a sexualidade ainda fator fundante dos estigmas
e definições de padrões normais ou anormais. “A abjeção acaba sendo maior via
sexualidade porque ali se unem esses sentimentos mais profundos, em que as pessoas se
sentem em confronto com a ordem social” (MISCOLKI, 2012, p.39).
É no campo da sexualidade, portanto, que os estigmas da anormalidade serão
mais fortemente representados. Por tratar-se de um campo íntimo e subjetivo, a
sexualidade torna-se assim uma via cujo controle se dará por meio do constrangimento e
da violência, ao tratar como motivo de xingamento e humilhação comportamentos e
desejos que divirjam da sexualidade padrão hétero estabelecida.
Neste sentido, no próximo capítulo nos desdobraremos em como se deu o
processo de conquistas de direitos da população LGBT, dialogando com os movimentos
da contracultura, e a forma como lidavam com a diferença e o anormal, na busca de
libertar-se dos padrões socialmente impostos.
22

PARTE II
“I think that there is nothing more trully
artistic than to love people”
“Penso que não há nada mais
verdadeiramente artístico que amar as
pessoas”
(Vincent Van Gogh)

2.1 A contracultura
Em uma sociedade classista, patriarcal e heteronormativa, desconstruir padrões
nunca foi uma tarefa fácil, reivindicar a própria liberdade e a liberdade de outros desafia
as estruturas sociais, desconstruindo ideologias e pensamentos acríticos, como forma
mais eficaz de romper com os padrões hegemônicos socialmente impostos. 
As revoluções e os movimentos sociais que surgiram ao longo da história, foram
marcados por reivindicações que eram contrárias à classe dominante,
predominantemente, reivindicações que buscavam mudar o constructo social baseadas
em questões econômicas, na luta de classes. Reivindicavam mudanças que envolviam a
sociedade e o sistema capitalista como um todo, visto que, os primeiros movimentos
sociais surgiram como resultado das consequências e pauperização trazidas pela
produção capitalista. O foco das primeiras revoluções e movimentos sociais eram por
condições básicas de sobrevivência. 
Em virtude disso, o movimento da Contracultura fará parte do que se denomina
de novos movimentos sociais, classificados assim os movimentos que começaram a
surgir a partir da segunda metade do século XX, de acordo com Guimarães (2012),
foram nesses novos movimentos sociais que surgiu a contracultura, “o Movimento pelos
Direitos Civis, luta pela expansão dos direitos para as minorias, foi o ponto de encontro
de todos os seguimentos culturais, reivindicatórios, que acabou culminando na
contracultura tal como a conhecemos” (GUIMARÃES, 2012, p.06). 
 A contracultura reivindicava questões que não estavam pautadas a condições de
trabalho, ou a desigualdade econômica. Os movimentos que nessa metade do século XX
nasciam reivindicavam pautas latentes na sociedade, que mesmo considerando a
importância e a urgência dos movimentos sociais dos trabalhadores, não podemos crer
que a sociedade se resumia apenas a problemas socioeconômicos. 
23


Os três principais “novos” movimentos sociais foram o
movimento pelos direitos civis da população negra do
Sul dos estados Unidos, o movimento feminista da
chamada segunda onda e o então chamado movimento
homossexual. Eles são chamados de novos movimentos
sociais porque teriam surgido depois do conhecido
movimento operário ou trabalhador, e porque trouxeram
ao espaço público demandas que iam além da de
redistribuição econômica” (MISKOLCI, 2012, p.21) 


Roszak no início de sua obra, A contracultura (1972) explanará como o movimento
da contracultura, partiu do plano econômico, e passou a reivindicar no campo da liberdade
de expressão e a rejeição a cultura e os padrões socialmente impostos, a fim de estabelecer

com isto um confronto contra a ordem capitalista vigente centrada na tecnocracia4.


Portanto, para entender a contracultura em seu surgimento, precisamos atentar para os fatos
anteriores a ela, compreendendo o contexto socioeconômico e as consequências vigentes da
fase capitalista em que se encontrava a sociedade. 
Dos fatos relevantes acerca do momento histórico em que se encontrava o
mundo (Especificamente os Estados Unidos, onde se iniciou o movimento de
contracultura, que se espalhou posteriormente para demais países) é importante ressaltar
no contexto social e econômico que era um momento recente à Segunda Guerra
Mundial, que ocorrera em 1949 e 1945, e que no contexto capitalista, a sociedade se
deparava com o avanço dos meios de produção e o incremento de tecnologias. A
tecnocracia é então neste contexto uma forma de manter a sociedade produtiva ao
capitalismo e as normas e padrões socialmente impostos, caracteriza-se como “aquela
sociedade na qual os governantes justificam-se invocando especialistas técnicos, que,
por sua vez, justificam-se invocando formas científicas de conhecimento. E além da
autoridade da ciência não cabe recurso algum” (ROSZAK, 1972, p.21). 
Para Cortés (2008) citado por Guimarães (2012, p.03): 

A contracultura é um conceito essencial para
entendermos toda uma geração que viveu na década de
1960, e que era descontente com a sociedade tal como
era imposta. Portanto, entendemos que, através da
contracultura os jovens tiveram a oportunidade de se
expressarem de forma livre. Esta cultura juvenil foi

4
Podemos definir a tecnocracia como uma sociedade que se apoia no conhecimento técnico como
forma de obter respostas que não devem ser questionadas se vindas do conhecimento técnico e
da ciência. (ROSZAK, 1972, p.21)
24

importante para que a juventude obtivesse visibilidade


em uma sociedade adulta e desta forma, tentar criar um
modelo novo de sociedade.


A juventude da segunda metade do século XX, nascidos em um contexto social
diferente de seus pais, tendo a oportunidade de usufruir de alguns dos frutos que as
manifestações dos trabalhadores, que seus pais possivelmente participaram, trouxeram para
a sociedade, com condições menos desumanas de trabalho, e mais oportunidades de estudo,
sendo mais comum o ingresso de jovens (em sua maioria de classes socialmente
favorecidas) no ensino superior e não imediatamente nas indústrias, embora o ensino
superior ainda fosse em sua maioria elitista, estava (e ainda está) desenvolvendo-se e
conseguindo chegar em camadas da sociedade que antes não tinha acesso. Esta juventude é
quem dá origem ao que denominamos de contracultura, definida por Guimarães como: 

um conceito, uma categoria específica, utilizada para
designar uma série de práticas e movimentos culturais
juvenis nas décadas de 1950 e principalmente 1960 nos
Estados Unidos e que foi paralelamente adotada em outros
lugares do mundo. A contracultura é fruto de uma
sociedade opressora, sendo praticada, reivindicada por
jovens que fugiram da padronização da cultura social do
ocidente após a segunda guerra mundial
(GUIMARÃES, 2012, p.03). 


Estes jovens, que ao se negarem a permanecer seguindo os padrões opressores
impostos ousaram mostrar à sociedade que não seguiriam aquilo que estava imposto e
deveria ser obedecido apenas pela lógica da obediência para manter-se aceito socialmente,
foram vistos como uma juventude rebelde, em um sentido negativo, que colocava o
movimento como um movimento rebelde, como se não houvesse um motivo relevante a
desobediência social dessa geração. Mas a rebeldia expressa por esses jovens, em desafiar
os padrões impostos, nos traz um caráter positivo a expressão “rebelde”, nesse trabalho, nos
propomos a pensar essa rebeldia como um sinônimo a palavra coragem. Pois estes
“rebeldes” e “desviantes” eram aqueles que negavam se encaixar nos padrões nos modelos
de normalidade de vida e sexualidade impostos socialmente.
O movimento da contracultura não trouxe apenas contribuições para o debate da
quebra de padrões, era um movimento cultural, trazendo através da arte e da expressão
questionamentos da forma que se obedecia e pensava a sociedade. A sua forma de
25

expressar-se e ser notado era através da arte, da moda, de recursos visuais e


comportamentais. 

Desta forma o jovem se rebelou através daquilo que ele
tinha o máximo de controle o possível: do seu próprio
corpo, de seus ideais, da sua forma de vestir e se
comportar perante o mundo. Um dos movimentos em que
esta revolução é mais evidente é o movimento hippie, que
surge nos Estados Unidos na década de 1960, junto a
outras manifestações artísticas, como festivais, shows em
praças públicas, reivindicações culturais contra a
guerra, etc. (GUIMARÃES, 2012, p.07). 


 Intencionava-se fazer assim o nascer de uma sociedade, na qual a liberdade e a
diferença fossem encaradas de uma forma mais receptiva, bem como, uma sociedade na
qual as demandas capitalistas não dominassem a vida dos indivíduos, que a lógica
capitalista (alienante e cruel) não fosse a base da sociedade, conforme Roszak (1972,
p.61): 

O que torna a rebelião da juventude em nossa época um
fenômeno cultural, e não um mero movimento político,
é o fato de passar por cima da ideologia, procurando
atingir o nível da consciência, buscando transformar o
nosso sentido mais profundo do ego, do próximo, do
ambiente.


Enquanto na década de 1960 nos Estados Unidos se desenvolvia todo esse
movimento da contracultura, o contexto histórico político no Brasil era completamente
diferente, e bem menos receptivo a revoluções e movimentos sociais. Instaurava-se no
Brasil, em 1964 o golpe da ditadura civil militar, conforme Guimarães (2012), o cenário
não permitia aos jovens terem a liberdade de expressar-se e menos ainda, questionar a
ordem vigente, os artistas, alguns influenciados pela onda  da contracultura, mesmo
utilizando suas formas mais sutis, (como canções que apoiavam a liberdade e repudiava
a opressão, de forma discreta em suas letras) tiveram de deixar o país, e pedir exílio,
pois qualquer ato de desobediência aos padrões impostos, eram sujeitos a retaliações
severas, aprisionamento, tortura e morte.
Acerca deste momento histórico e influência a possível intenção de um
movimento de ruptura com os padrões sociais no Brasil, aponta Guimarães (2012, p. 08-
09): 
26

Nos primeiros anos de ditadura o governo militar


procurou acabar com a oposição, eliminando o direto de
voto popular além de instaurar o sistema unipartidário.
Portanto, entre os anos de 1964 e 1968 a atenção estava
voltada para os inimigos políticos, assim, neste período
os artistas tiveram tempo de se reunir e criar diversos
artifícios contra a ditadura militar. Porém, no final do
ano de 1968 foi imposto o Ato Institucional militar nº 5,
conhecido como AI-5. Este ato tinha como objetivo
principal reestruturar as forças a favor da chamada
“revolução militar”. Para tanto seria necessário destituir
de expressão e participação aqueles que ganharam
adeptos e obtinham resultados positivos nas suas lutas
contra o regime durante os quatro primeiros anos: os
artistas.

Apesar do cenário repressor, as décadas de 1960 e 1970 no Brasil ainda assim o


movimento da contracultura, que inspirava os artistas, chegou a influenciar uma parte
da população, que mesmo dentro de um cenário ditatorial, conseguia mesmo que de
forma oculta desenvolver o seu pensamento crítico contra o sistema opressor vigente. O
campo musical, foi o principal no qual esse movimento influenciado pela contracultura
veio a mostrar-se de maneira mais nítida.
A chamada “Jovem Guarda” foi um dos movimentos que surgiram no Brasil nas
décadas de 1960 e 1970, cujo propósito era reunir a juventude e contestar a ordem
vigente, entretanto, a Jovem guarda não executava esse propósito com êxito, não
impondo-se de fato contra o regime ditatorial. O Movimento chamado Tropicália é o
qual irá desafiar os padrões sociais, buscando incorporar no contexto brasileiro as
influências da contracultura estadunidense, dotado de um maior cunho político na
oposição à ditadura civil militar, a Tropicália é um movimento que traz mais
autenticidade a luta contra o poder opressor, visto que: 

Por possuir ligação com a cultura popular brasileira, e


ao mesmo tempo com os mesmos ideais da
contracultura, a tropicália nos chama atenção pois,
diferentemente da Jovem Guarda, não tenta se tornar
cópia do que era produzido de arte no exterior, mas sim
produzi-la baseando-se na cultura popular do Brasil e
mesclando, interligando com o que era produzido fora
do país (GUIMARÃES, 2012, p.10) 

Como contribuição aos demais novos movimentos sociais e a alguns grupos


específicos da sociedade a contracultura proporcionou e os instigou a pensar a partir desta
perspectiva que busca romper com os padrões impostos socialmente não apenas como um
27

ato político, mas também como uma expressão da arte e da consciência da natureza dos
indivíduos. 
A Contracultura associada ao movimento homossexual reforça a luta e
reivindicações destes, pois como um dos novos movimentos sociais, pautados a
questões que vão além do socioeconômico, atentando ao lado mais subjetivo dos
indivíduos, a compreensão do amor fora dos padrões heteronormativos impostos, o
movimento homossexual adentra a contracultura. Ambos lutam do mesmo lado, contra
o mesmo sistema opressor. 
A contribuição da contracultura dá-se não somente ao Movimento Homossexual
da época, mas contribui posteriormente no surgimento de novos movimentos, como
segundo aponta Miskolci (2012) a Teoria Queer e seu nascimento por volta da década de
1980 está de forma muito provável relacionado a contracultura, já que esta teoria surge
“como um impulso crítico em relação à ordem sexual contemporânea, possivelmente
associado à contracultura e às demandas daqueles que, na década de 1960, eram
chamados de novos movimentos sociais” (MISKOLCI, 2012, p.21) 
A contracultura, nascida nos Estados Unidos, espalhou-se por demais países, a
fim de contestar a ordem vigente e a opressão social, questionando normas impostas e a
maneira como a sociedade se comportava e lidava com demandas que fossem diferentes,
este movimento e suas vertentes em demais países, tais como o movimento de
Tropicália no Brasil, veio a contribuir de maneira significante na força de outros
movimentos sociais, movimentos por direitos civis, referentes a sexualidade e questões
de gênero. 

2.2 Politização dos Movimentos Sociais da população LGBT

Até a década de 1970 a homossexualidade era tratada como uma doença


psiquiátrica, pois encontrava-se presente no DSM (Manual Diagnostico e estatístico de
transtornos mentais) (cf SAMPAIO e GERMANO, 2014, p.291). A luta então do
movimento gay baseava-se em mudar a forma como a sociedade os via e
estigmatizavam. Podemos afirmar que, era uma luta pela aceitação da diversidade.
Acerca do termo diversidade, é importante apresentar, a discussão que Miskolci
faz em sua obra Teoria Queer: Um aprendizado pelas diferenças (2012), ao analisar
como se fundamentava o movimento homossexual e suas diferenças ao movimento
Queer, que surge na década de 1980, Miskolci vê relevante divergência da forma como
os movimentos lidavam com as perspectivas de diferença e diversidade.
28

É imprescindível, para compreendermos a luta do movimento homossexual,


entender em que se baseava a perspectiva de diversidade na qual este pautava-se, e porque o
Movimento Queer, que surge posteriormente, ao apresentar uma perspectiva das
diferenças, é tão inovador e desafia os padrões sociais impostos centrados na
heteronormativadade.
Vejamos que, “o termo “diversidade” é ligado à ideia de tolerância ou de
convivência, e o termo “diferença” é mais ligado a ideia do reconhecimento como
transformação social” (MISKOLCI, 2007, p.15) Segundo o autor a diversidade consistia
em ser aceito socialmente, sem modificar na sociedade os padrões que taxavam
indivíduos como normais ou anormais, consistia em sair do campo da anormalidade,
para o campo da tolerância, enquanto o conceito de “diferenças” não importava-se em
ser aceito socialmente, uma vez que via os padrões sociais como meras invenções que
precisavam ser superadas, portanto,

diversidade é “cada um no seu quadrado”, uma


perspectiva que compreende o Outro como
incomensurável distinto de nós e com o qual podemos
conviver, mas sem nos misturarmos a ele. Na perspectiva
da diferença, estamos todos implicados/as na criação desse
Outro, e quanto mais nos relacionamos com ele, o
reconhecemos como parte de nós mesmos, não apenas o
toleramos, mas dialogamos com ele sabendo que essa
relação nos transformará (MISKOLCI, 2007, p.15-16).

Partindo deste conhecimento, podemos compreender que, o movimento


homossexual da década de 1970 e 1980 lutava a partir de uma perspectiva de
diversidade, mostrando que existiam padrões além do heterossexual cisgênero, e que
estes padrões buscavam que a sociedade os aceitasse. Sampaio e Germano (2014, p.291)
relatam isso, quando descrevem que a luta do movimento gay “buscava modificar a
percepção de que os homossexuais eram seres exóticos e estranhos que contrastavam
com o heterossexual normal e respeitável”.
Este perfil do “heterossexual normal e respeitável”, era o perfil que se traçava a
heterossexualidade, sendo que qualquer sexualidade desviante desta estaria
automaticamente a margem do que era considerado normal e respeitável socialmente. A
sociedade, que então via a homossexualidade até a década de 1970 como uma doença
psíquica, não concebia os gays como sujeitos que pudessem ser enquadrados
29

no padrão de normalidade vigente socialmente imposto, portanto, para aceitá-los,


precisava-se de elementos que os colocassem mais próximos aos padrões hétero.
Esta aceitação, algumas vezes baseava-se em padrões morais, que utilizava o
estigma da promiscuidade homossexual para justificar a exclusão de homossexuais da
sociedade, tolerando apenas aqueles que menos desviavam do
padrão heteronormativo imposto. Pois como vimos, a heteronormatividade é um
conceito que perpassa e busca enquadrar a suas normas até os sujeitos homo, “mesmo
os gays e as lésbicas respeitáveis em certos momentos históricos serão atacados e
novamente transformados em abjetos” (MISKOLCI, 2007, p.24).
O movimento homossexual, portanto, pautado na aceitação de seus sujeitos à
sociedade, era um movimento que lutava por seus direitos no campo da tolerância e
liberdade de expressão. A forma como esse movimento vem a reivindicar pautas,
voltadas a um cunho político, ocorre quando notam a necessidade de que se pensem
políticas públicas voltadas a essa população e suas especificidades.
Em um primeiro momento, a luta pela inclusão da população LGBT nas políticas
públicas de saúde, não se dá através de uma perspectiva fundamentada na noção de
direito, mas sim, em um pânico social, e culpabilização da população LGBT pelo surto
da Aids.
Foi na década de 1980, que o Brasil veio a deparar-se com o surto da Aids, de
acordo com Pelúcio e Miskolci (2009) citado por Sampaio e Germano (2014, p.291):

no início do surto da AIDS, dois em cada cinco infectados


tinham relações sexuais frequentes com outros homens,
dessa forma a doença foi inicialmente nomeada como GRI
(Imunodeficiência Gay Adquirida). Mesmo após sua
renomeação para AIDS (Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida), a fantasia sobre a relação direta entre a
homossexualidade e a doença permaneceu.

Foi a partir disto, que a ideia da promiscuidade homossexual teve maior força, e a
sociedade através do surto da aids encontrou uma nova maneira de excluir essa população e
delegá-los a condições de abjetos novamente. Não mais vistos como doentes psíquicos, os
homossexuais passaram a ser vistos como difusores do vírus do HIV, novamente
patologizados, (não que por um momento tivessem deixado de ser, mas neste momento a
retomada dava-se de maneira mais forte) marginalizados pela sociedade. Assim, “a
epidemia de HIV/AIDS teve o efeito de repatologizar a homossexualidade em
30

seus novos termos contribuindo para que certas identidades, vistas como perigo para a
saúde pública, passassem por um processo de politização controlada” (MISKOLCI,
2009 apud SAMPAIO e GERMANO, 2014, p.291).
Neste sentido, compreendemos que a reação do Estado ao surto da Aids
direcionou-se a culpabilização da homossexualidade, atuando no sentido de adequar os
indivíduos aos padrões heteronormativos, Prelúcio (2007) citado por Sampaio e
Germano (2014, p.292) define que essa inserção da população LGBT nas pautas
políticas e sociais foram utilizadas pelo Estado como forma de adequar o indivíduo:

O fenômeno de visibilidade política e social LGBT por


via da AIDS é chamado por Pelúcio (2007) de
SIDAdanização, termo no qual a troca do “c” pelo “s”,
e que denuncia uma cidadania alcançada pela
repatologização da sexualidade não heterossexual. Para
que esse grupo adquira a SIDAdania, precisa partilhar
os pressupostos do programa de prevenção de
DST/AIDS, compreendendo a responsabilidade que têm
sobre si e os cuidados que devem dedicar à saúde, a
partir do modelo biomédico.

Essa SIDAdania baseada na condição de proporcionar cidadania a esse segmento


da população através patologizaçao como Pelúcio (2007) nos afirma, nos permite
visualizar a forte pressão normalizadora que o Estado e a sociedade introduzem em seus
indivíduos. Para conceder a população LGBT direitos no que tangia a garantia da saúde
e inserção de sua participação política na sociedade, partia-se de uma perspectiva de que
esse sujeito era doente, ou transmissor de uma doença (Aids), doença esta que foi
associada a condição da homossexualidade, portanto, esse indivíduo era concebido
como cidadão, mas um cidadão que precisava ser “corrigido”, “o indivíduo a ser
corrigido” como vimos com Foucault (2001), o indivíduo a ser corrigido, uma espécie
anormal, que trazido para esse contexto da homossexualidade por volta dos anos 1980, a
anormalidade neste sentido estava ligada ao campo sexual da vida destes indivíduos,
ainda assim, eram considerados anormais, e mesmo que inclusos socialmente, estavam
inclusos para que pudessem ser “corrigidos”.
As formas do Estado lidar com o surto da Aids, apesar de patologizar a população
LGBT, e impor a lógica heteronormativa como conduta (agora de saúde) “normal” e
“correta” a ser seguida, apesar dos estigmas que trouxeram a homossexualidade,
proporcionaram que o movimento gay voltasse suas pautas a questões que se baseavam
na perspectiva de direitos sociais. Reivindicando no espaço público
31

respostas do Estado para as necessidades objetivas de vida desta população, referentes


aos direitos humanos, diretos a saúde e participação social.
Transgredir o padrão da heteronormatividade não é uma tarefa fácil, visto que,
está enraizado socialmente a muito tempo. E vem sendo reproduzido mesmo dentro dos
espaços LGBT’s, sendo considerado inclusive na construção de políticas públicas para a
população LGBT, como podemos considerar que:

No Brasil, as políticas públicas LGBT são de modo


geral bastante recentes, tendo surgido há menos de
quinze anos, contudo já é possível acompanhar algumas
mudanças em suas propostas de ação nesse período. Os
textos de tais políticas permitem perceber a emergência,
consolidação e reestruturação de conhecimentos
referentes à compreensão e normatização das
sexualidades e modos de vida não heterossexual
(SAMPAIO e GERMANO, 2014, p. 294).

O Sistema Único de Saúde (SUS) compreende uma conquista no marco da


política de saúde no Brasil, e está assegurado na constituição Federal de 1988 como
dever do Estado e um direito de todos, portanto, o princípio da universalidade é um de
seus pilares fundamentais. Neste mesmo cenário, a década de 1980 é marcada pela
politização dos movimentos LGBT, e a preocupação da saúde com esta população, dado
o surto de AIDS na referida década, a inserção desta população dentro do setor de saúde
pública foi de suma importância para que este público, outrora invisibilizado, pudesse
dentro do SUS requerer suas demandas e necessidades. A partir disso, foram
desenvolvidas políticas públicas voltadas para a população LGBT e suas demandas.
Sampaio e Germano (2014) observam as políticas públicas que surgem a partir
do surto da AIDS, por conseguinte, políticas que foram possíveis através da
consolidação do SUS na constituição de 1988, e apontam que estas políticas
consideravam que existiam indivíduos cuja sexualidade fugia do padrão heterossexual,
mas, embora voltadas para a população LGBT, estavam pautadas na concepção desse
binarismo de gênero, ou a heterossexualidade ou a homossexualidade.
As políticas públicas de saúde voltadas à população LGBT conquistadas a partir
dos anos 2000, durante o governo de esquerda do Partido dos Trabalhadores são
respectivamente:
32

1- Conselho Nacional de Combate à Discriminação (2004): “Brasil Sem Homofobia:


Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da
cidadania homossexual”
2- Ministério da saúde (2007): “Plano nacional de enfrentamento da epidemia de AIDS
e das DST entre gays, HSH e travestis”
3- Secretaria Especial Dos Direitos Humanos (2009): “Plano Nacional de Promoção da
Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”
4- Ministério da Saúde (2009): “Plano integrado de enfrentamento da feminização da
epidemia de AIDS e das DST.”
5- Ministério da Saúde (2010): “Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais.”

Partimos da compreensão que, para se pensar políticas públicas voltadas para a


população LGBT faz-se imprescindível analisá-las através de uma perspectiva das
diferenças, deve-se considerar a Teoria Queer, para assim pensar políticas públicas que
visem responder as demandas desta população, sem a intenção de “corrigi-la” e adequá-
la a sociedade, mas a fim de conceber uma sociedade diferente, sem padrões para
encaixar os indivíduos.

É necessário superara o binário hétero-homo, a ideia


poderosa e altamente contestável de que a sociedade se
divide apenas em heterossexuais e homossexuais. É
importante também ir além das meras tentativas de
proteger aqueles que o movimento social chama de
pessoas LGBT... um termo que não dá conta do grande
espectro de gente que não se enquadra no modelo
heterossexual e que não cabe em nenhuma dessas letras
(MISKOLCI, 2007, p.17).

A Teoria Queer nos possibilita pensar a sociedade fora da caixa de gêneros, ou seja,
conceber uma sociedade, que não segregue nenhum indivíduo. Portanto, no próximo
capítulo compreenderemos em que consiste a Teoria Queer a partir de Miskolci (2012), para
que possamos retomar ao debate das políticas públicas LGBT, voltando nosso olhar ao
Processos Transexualizador como propomos no objetivo desta pesquisa.
33

PARTE III
“Normality is a paved road: It’s comfortable to
walk, but no flowers grow on it.”
“A normalidade é uma estrada pavimentada: é
confortável andar, mas nenhuma flor nasce
nela”
(Vincent van Gogh)

3.1 Enfim, a Teoria Queer

A obra Teoria Queer: Um aprendizado pelas diferenças, de Miskolci (2012) nos


permitiu compreender a Teoria Queer e seus desdobramentos na vida dos indivíduos
que a compõe, bem como a sua influência para todo o constructo social e forma de se
pensar a sociedade, para compreender seu surgimento, primeiro nos comprometemos a
definir conceitos de gênero e sexualidade, a fim de compreender como os padrões
socialmente estabelecidos se baseiam em um conceito de heteronormatividade, que
segrega e estigmatiza aqueles que desse conceitos desviam, os “anormais”.

O conceito de anormalidade foi trabalhado através de uma perspectiva


foucaultiana, as relações de poder estabelecidas socialmente ditam os comportamentos
desviantes, ditam os sujeitos normais e anormais, e a Teoria Queer neste contexto,
assume-se como O Anormal, O Desviante, O Abjeto, não está interessada em ser vista
pela sociedade através do conceito de normalidade que esta dita, está, portanto,
interessada em desconstruir a sociedade e seus padrões.

Foi necessário, no início desta obra discutirmos um pouco acerca do movimento


da contracultura e suas influências no Brasil, para que agora compreendido o papel que
o final do século XX desempenhou nos avanços quanto aos movimentos sociais, que
buscavam desprender-se das amarras e estigmas da sociedade, possamos nos desdobrar
de forma direta sobre como surge a Teoria Queer, como podemos compreendê-la, e
utilizá-la como ponto de partida para pensar uma nova sociedade, aos poucos,
inserindo-a no campo político-social, das políticas públicas e do debate.

A contracultura, teve forte influência no nascer da Teoria Queer, na segunda metade


do século XX, os novos movimentos sociais traziam a luz da sociedade as suas demandas e
questões não mais restritas ao âmbito socioeconômico, como os movimentos
34

dos trabalhadores, de acordo com Miskolci (2012, p.22) esses novos movimentos
sociais confrontavam os padrões morais, e algumas de suas pautas entrava no campo da
sexualidade, tais como “a luta feminista pela contracepção sob controle das próprias
mulheres, dos negros contra os saberes e práticas radicalizadores e dos homossexuais
contra o aparato médico legal que os classificava como perigo social e psiquiátrico”.

Assim, o terreno era propício as discussões que visavam romper com os padrões
morais, e a Teoria Queer junto com esses movimentos nasce para se contrapor aos padrões
socialmente impostos, que restringiam a liberdade sexual e subjetiva dos indivíduos.

Não somente por estar situada no contexto histórico das discussões dos novos
movimentos sociais, a Teoria Queer, que surge nos Estados Unidos na década de 1980,
é resultado do estigma que o surto da AIDS trouxe a população LGBT, a aos demais
indivíduos não contemplados pela sigla LGBT, que transgrediam o padrão da
heteronormatividade. Considerados anormais por desviarem do padrão heterossexual, e
abjetos pela culpa que lhes foi inteiramente imputada quanto a transmissão do vírus do
HIV, o termo adotado por esse movimento “Queer” se configura no sentido pejorativo e
vulgar da palavra, é para que soe como um xingamento, pois era assim que eles eram
tratados, e foi assim que se autodenominaram para se contrapor a sociedade
normalizadora que os estigmatizava e excluía. Se eram considerados abjetos ou
anormais para a sociedade, assim o preferiam ser ao ter que se sujeitar aos padrões
impostos socialmente para que pudessem ser aceitos (MISKOLCI, 2012).

Portanto, a crítica Queer pautava-se na sociedade e em seus padrões, não importava


a aceitação ou não da sociedade, os Queer não estão interessados em encaixar-se, mas
apenas, em serem como desejam ser, e permitir que demais sujeitos possam expressar sua
sexualidade, identidade de gênero e subjetividade da forma que sentem, e não da forma
como é imposta socialmente, por medo da rejeição ou do estigma.

Desconstruir é a palavra fundamental para que possamos pensar através da Teoria


Queer, desconstruir os modelos de normalidade impostos socialmente, desconstruir o que
é a normalidade, o que são os papéis de gênero, o que significa, portanto, ser homem ou
ser mulher.

A sociedade, da forma que está estruturada, define o que é ou não normal e


aceitável, bem como o que se deve corrigir ou exterminar. Os comportamentos
socialmente impostos, tais como, a heterossexualidade, são concebidos como
35

comportamentos naturais, portanto, normais. “A preocupação queer é, portanto, não de


fixar uma identidade, mas de admitir múltiplas formas de identidade. Não apenas lutar a
favor dessas múltiplas formas de identidade, mas denunciar os mecanismos por meio
dos quais elas foram situadas como anormais” (MOTTA, 2016, p. 77).

Mas nos cabe pensar, se a heterossexualidade é socialmente vista como natural,


porque a homossexualidade também não o é? A Teoria Queer irá estudar essa questão,
apontando que “se a homossexualidade é uma construção social, a heterossexualidade
também é. Então o binário hétero/homo é uma construção histórica que a gente tem que
repensar” (MISKOLCI, 2012, p.30).

Heterossexualidade e Homossexualidade partem de desejos sexuais/afetivos dos


indivíduos, são desejos subjetivos, não influenciáveis, e dizem acerca apenas daqueles
que o sentem. Portanto a construção desse binarismo torna-se supérflua se
considerarmos que assim como todos os corpos são diferentes, os desejos também o
serão, “as pessoas nunca couberam em um número limitado de orientações do desejo”
(MISKOLCI, 2012, p.31).

A Teoria Queer compreende que precisamos superar esse binarismo hétero-


homo, bem como superar também o binarismo de gênero. A sexualidade não se pode
conter em apenas duas opções, hétero/homo, e enquanto gênero homem/mulher.

Desconstruir gênero significa compreender “o gênero como algo cultural, assim


o masculino e o feminino estão em homens e mulheres, nos dois” (MISKOLCI, 2012,
p.31). O gênero, socialmente consiste em uma distribuição de papéis, baseadas no sexo
biológico, define-se assim a forma como o indivíduo deve se comportar socialmente, o
papel atribuído ao masculino e feminino dizem não somente acerca de comportamentos
sociais e roupas, ditam principalmente um lugar de poder.

Esse poder, não é difícil de concluir, está centrado no patriarcado, os papéis


socialmente atribuídos ao masculino, ao que se entende por “ser homem” são os papéis
sociais de poder, respeito.

Ao questionar esse binarismo de gênero, a Teoria Queer, também questionará


essa relação de poder imposta socialmente, visto que, se o gênero é uma construção
social, as relações de poder por ele estabelecida também o são, e como construções
sociais, podemos a partir de um novo olhar para a sociedade desconstruí-las.
36

3.2 Políticas Públicas voltadas a população LGBT: O Processo Transexualizador

Como vimos, conforme Sampaio e Germano (2014), as políticas públicas da


população LGBT, constituem-se como uma conquista muito recente, em 2004 surge o
primeiro programa pensando as demandas da população gay, “O Brasil sem Homofobia:
Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da
cidadania homossexual” atua na perspectiva das “Diversidades5”, um de seus princípios
fundamentais é

a reafirmação de que a defesa, a garantia e a promoção dos


direitos humanos incluem o combate a todas as formas de
discriminação e de violência e que, portanto, o combate à
homofobia e a promoção dos direitos humanos de homossexuais
é um compromisso do Estado e de toda a sociedade brasileira
(CNCD, 2004, p.12).

Será através da contribuição do programa “Brasil sem homofobia”, que nascerá


posteriormente, em 2009 o “Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”, que por sua vez,
busca reafirmar o Programa Brasil sem Homofobia, e se propõe a pensar políticas
públicas para a população LGBT a fim de garantir sua cidadania e dignidade.
Neste contexto, é criado em 2010 pelo Ministério da Saúde a Política Nacional
de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, implementada
no SUS através da Portaria nº 2.836 de 1 de dezembro de 2011, conforme consta em seu
Art. 1º:

Esta Portaria institui a Política Nacional de Saúde Integral de


Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política
Nacional de Saúde Integral LGBT) no âmbito do SUS, com o
objetivo geral de promover a saúde integral da população
LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito institucional
e contribuindo para a redução das desigualdades e para
consolidação do SUS como sistema universal, integral e
equitativo.

5 1
MISKOLCI, 2007, p.15
37

O SUS como sistema universal que se propõe a ser, passa através da inclusão da
Política Nacional de Saúde LGBT a atender a essa população e as suas demandas, a fim
de assim incluir em suas políticas o atendimento a necessidades específicas de alguns
grupos sociais, porém, lembremos que trabalhar com políticas para LGBT ainda deixa
de fora alguns grupos não incluídos na sigla.
A portaria 2.836 de 1 de dezembro de 2011, responsável por inserir a Política
Nacional de Saúde LGBT, tem como um de seus objetivos específicos em seu Art. 2º,
Inciso 4 a garantia do acesso ao Processo Transexualizador pelo SUS.
O Processo Transexualizador, por sua vez, foi implementado através de duas
portarias, a Portaria nº 457/SAS/MS de 19 de agosto de 2008 que regulamenta o
processo Transexualizador, e a de nº 1.707/GM/MS de 18 de agosto de 2008 segundo
esta “Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo
Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas, respeitadas as competências
das três esferas de gestão”, e que posteriormente foi revogada pela portaria que vigora
atualmente, de nº 2.803 de 19 de novembro de 2013.
As Portarias aqui referidas guiam as diretrizes para a execução do Processo
Transexualizador, e os hospitais habilitados para as cirurgias de resignação de sexo, o
Processo Transexualizador inclui a hormonioterapia realizadas pelos ambulatórios e o
acompanhamento previsto nas portarias que antecede as cirurgias de resignação, no
Brasil apenas 4 hospitais estão habilitados para as cirurgias, e os ambulatórios que se
encontram nas capitais e ou cidades onde não possuem hospitais habilitados atuam
somente com o acompanhamento hormonal dos usuários.
A função do processo Transexualizador é a de acompanhar e realizar os
procedimentos dos usuários pelo SUS, garantindo seus direitos a saúde pública e
universal. Nos propomos nesta pesquisa a analisar como este processo funciona, e está
regulamentado, pensando-o através da Teoria Queer, a fim de contribuir para um debate
que vise melhorias no campo das políticas públicas LGBT, pensando em políticas
públicas Queer.
A partir da análise da Portaria 2.803 de 19 de novembro de 2013, a mais recente
que define as diretrizes do processo Transexualizador, traçamos alguns apontamentos
pensados à luz da Teoria Queer, acerca dos quais nos desdobraremos nos parágrafos
seguintes.
É importante ressaltar que esta Portaria é uma grande conquista para a população
LGBTQI+ estabelecendo as diretrizes para a execução do Processo Transexualizador no
38

SUS, desde 2013 ele está regulamentado através dela, consideramos que a mesma é uma
grande conquista, mas, ainda assim, uma conquista insegura, pois como Portaria ela
pode ser revogada a qualquer momento e contexto político, esperamos que seja
revogada posteriormente apenas para acrescentar contribuições ao Processo
Transexualizador no que tange a garantia de direitos.
No Art. 14 da referida Portaria, estão estabelecidas tabelas nas quais constam
todos os dez procedimentos médicos que o processo Transexualizador está habilitado a
realizar, bem como as suas condições. Os procedimentos são respectivamente:

1- Acompanhamento do usuário (a) no Processo Transexualizador exclusivo nas


etapas do pré e pós-operatório
2- Tratamento hormonal no Processo Transexualizador.
3- Redesignação sexual no sexo masculino
4- Tireoplastia
5- Tratamento hormonal preparatório para cirurgia de redesignação sexual no
Processo Transexualizador.
6- Mastectomia simples bilateral em usuária sob processo transexualizador
7- Histerectomia c/ anexectomia bilateral e colpectomia em usuárias sob Processo
Transexualizador.
8- Cirurgias complementares de redesignação sexual
9- Acompanhamento de usuário (a) no Processo Transexualizador exclusivamente
para atendimento clínico.
10- Plástica mamária reconstrutiva bilateral incluindo prótese mamária de silicone
bilateral no Processo Transexualizador

Todos os dez serviços apresentados, na categoria Serviço/Classificação esclarece


que inclui o acompanhamento pré e pós-operatório. Pois, a finalidade do Processo
Transexualizador é a cirurgia de redesignação sexual.
Pensa-se o processo Transexualizador para produzir corpos nos padrões
socialmente impostos do que é “ser homem” e “ser mulher”. A crítica aqui estabelecida
não se refere a disponibilização das cirurgias, apoiamos que o SUS as realize aqueles
que a desejam, a crítica aqui estabelecida parte da cirurgia de redesignação ser o foco do
Processo Transexualizador, pautando esse processo em um binarismo de gênero. A
partir disso, Preciado (2011) citado por Sampaio e Germano (2014, p.292) chama de
39

“sexopolítica” essa lógica de binarismo de gênero que as Políticas Públicas voltadas a


população LGBT estabelecem socialmente, como mais uma forma de estabelecer a
relação de poder entre os gêneros, dessa maneira,

o sexo (os órgãos chamados ‘sexuais’, as práticas sexuais e


também os códigos de masculinidade e de feminilidade, as
identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do
poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de
normalização das identidades sexuais um agente de controle da
vida.

A sociedade e o Estado buscam em todos os espaços ditar a


heteronormatividade, o binarismo de gênero, pautar os corpos naquilo que alegam ser
adequado, não cabe ao Estado dizer o que o indivíduo deve ou não modificar em seu
corpo, e é isto que ele faz quando estabelece que deve constar no registro do paciente,
segundo consta no anexo I da Portaria 2.803 de 19 de novembro de 2013, no item 1.6,
letra (b): Anamnese. Nesta Portaria não se descreve o que é Anamnese, mas na portaria
nº 457 de 19 de agosto de 2008 em seu anexo I consta esse mesmo item, que nos
descreve a Anamnese por extenso como “Avaliação que consiste em: anamnese,
aferição dos critérios mínimos de definição de transexualismo, conforme estabelecido
na Resolução CFM nº 1.652/2002, hipótese diagnóstica e apropriada conduta
propedêutica e terapêutica; avaliação psicológica e psiquiátrica;”
Dessa forma, o Processo Transexualizador conta com o acompanhamento
médico no qual uma de suas funções é “aferição dos critérios mínimos de definição de
transexualismo”, um profissional acompanhará o paciente para averiguar se é transexual
para que possa utilizar tais serviços, pautando seu critério de transexualidade nos
indivíduos que rejeitam seu sexo biológico. Entretanto, de um indivíduo cisgênero a um
transexual, existe uma variedade de identidades de gênero que podem transitar entre
esse meio, mais uma vez reafirmamos, é preciso desconstruir esse binarismo de gêneros.
Há indivíduos que não se reconhecem em seu sexo biológico, mas tampouco
podem ser considerados transexuais, pois também não se reconhecem no sexo oposto,
desejam modificar seu corpo da maneira que lhes é sentida, é subjetivo.
Esses indivíduos mencionados acima, não são transexuais para o acesso do
Processo Transexualizador da forma como está posto na Portaria que o regulamenta,
mas a estes indivíduos é fundamental o direito do acesso ao acompanhamento médico a
hormonioterapia ou outro procedimento que anseiam, o uso indiscriminado dos
40

hormônios por conta própria pode acarretar em problemas de saúde gravíssimos. É


nesse sentido que nos faz claro que a universalidade do SUS, e as políticas de saúde
voltada para população LGBT que não pensam em uma perspectiva que rompa o
binarismo de gênero, e que acrescente os Intersexuais, os Queer e demais, falha em seu
princípio de universalidade, pois exclui indivíduos, que precisarão de estratégias, e ou
compreensão dos profissionais para subverter o que está em lei regulamentado em uma
portaria e conseguirem acesso.
A sociedade não compreende (ou não admite) que existam corpos que não serão
contemplados através do binarismo de gênero, ou do binarismo Homo-hétero, e que
esses corpos precisam estar incluídos ao se pensar Políticas Públicas, e qualquer coisa
que envolva a sociedade, pois esses indivíduos são parte dela. Assim, Preciado (2008)
citado por Sampaio e Germano (2014, p.296) brilhantemente afirma que “os “critérios
psicológicos” utilizados para nos nomearmos “sou homem”, “sou homossexual”, “sou
travesti”, “sou gay”, “sou mulher”, “sou lésbica” são ficções somatopolíticas produzidas
por um conjunto de tecnologias de dominação dos corpos. ”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É essencial nos colocarmos atentos a forma como o Estado juntamente com a


sociedade busca adequar os corpos dos indivíduos ao padrão socialmente construído de
“normalidade”.
Como vimos, o que é considerado “normal” foi estabelecido através de uma
relação de poder, que no campo da sexualidade desde muito tempo atuou de forma
cruel, estigmatizando aqueles que desviassem da sexualidade tida como normal e
natural, a heterossexualidade.
41

Quanto à sexualidade, aqueles que desviassem da heterossexualidade seriam


considerados anormais, pois a sociedade a entende como condição natural do indivíduo,
sendo a homossexualidade a condição estranha.
Entretanto, ambas são construções sociais, desejos são subjetivos, não pode-se
enquadrá-los em caixas, muito menos em apenas duas caixas (homo/hétero), o mesmo
afirmamos acerca do binarismo homem/mulher, aquilo que é considerado condição
normal ou anormal ao indivíduo, foi construído por ele, e até hoje, busca-se encaixar e
adequar os corpos de todos a uma verdade construída tão somente pela relação de poder
daqueles que ditam o que é normal, e o anormal, que deve ser adequado a essa
normalidade, ou apenas exterminado, rejeitado.
Nos propomos nesta pesquisa, a pensar no campo político, mais especificamente
nas Políticas Públicas, voltadas à população LGBT, como considerando as diferenças de
cada indivíduo, podemos construir uma sociedade na qual o direito e acesso as Políticas
Públicas se dê de fato de forma universal, incluindo todos os indivíduos que compõem a
sociedade, e para isso, precisamos romper com o binarismo Homo/hetero,
homem/mulher, pois existe uma variedade que os extrapola.
Desconstruir os padrões sociais não é uma tarefa utópica, atuando em diversos
campos da sociedade, tais como cultural e político, podemos pensar em novas
estratégias, e repensar a forma como essas lidam com a heteronormatividade e
binarismo de gênero imposto socialmente.
A Teoria Queer, é uma teoria recente, que surge na década de 1980, traz consigo
um debate de suma importância para o contexto social da época, e para o atual também,
pois traz a visibilidade todos os corpos que durante séculos foram (e são) tratados como
anormais, patologizados.
Por fim, está pesquisa ao se propor olhar para o Processo Transexualizador a
partir da Teoria Queer, nos proporcionou visualizar um rico campo de conhecimento e
contribuições da Teoria Queer para a forma como podemos pensar a sociedade como
um todo, descontruindo nela seus padrões de normalidade, binarismos de gênero,
cultura patriarcal, heteronormativa e etc. Pensar Políticas Públicas em uma perspectiva
Queer possibilita não apenas tolerar as diferenças, mas construir uma sociedade que
aceite as diferenças, e que possa responder as demandas específicas dos mais variados
grupos sociais existentes.
Assim, para além de se pensar uma sociedade que tolere e aceite os indivíduos que
dela transgridam o padrão da normalidade, a Teoria Queer nos propõe a desconstruir essa
42

sociedade, não para que tolere o diferente, mas para que o compreenda, e mais que isso
questione a “normalidade”, pois ela não existe, afirmando a diferença e diversidade de
gênero e sexual.

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Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS).
43

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