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RECIFE
2022
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do programa de geração automática do SIB/UFPE
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Profª Drª. Ana Cristina de Souza Vieira.
Professora do Departamento de Serviço Social da UFPE
(Orientadora)
___________________________________________________
No mais, mesmo que em muitos momentos seja difícil devido à temática, esperamos
que aproveitem a leitura.
O tráfico de pessoas tem no seu lastro a questão da sub-humanidade. O mundo de
hoje opera mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do sub-humano,
de tal forma que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas
desumanas. Deste modo, do outro lado da linha encontramos um espaço que é um
não-território em termos jurídicos e políticos, um espaço impensável para o primado
da lei, dos direitos humanos e da democracia (Santos, 2007). Encontramos, no
fundo, pessoas que não existem, nem no plano social, nem no plano legal. São
espaços construídos nas novas formas de escravatura, no tráfico ilegal de órgãos
humanos, no trabalho infantil e na exploração da prostituição (BAGANHA;
DUARTE; GOMES; SANTOS, 2008, p. 11).
RESUMO
Palavras-chave:
Tráfico de crianças e adolescentes; exploração sexual; capitalismo; mercado sexual; direitos
humanos.
ABSTRACT
Children and adolescents, historically, are victims of the most different forms of violence, and
sexual violence is one of them, which can be expressed in the form of abuse or sexual
exploitation. The latter is related to the dictates of capitalism, from which everything is liable
to become a commodity, including bodies, which, when associated with the context of human
trafficking, potentiates the expropriation of life on a much broader and lethal scale. , as it is
the third fastest growing and most profitable illegal activity in the world. In view of this, it
was constituted as an objective of this Course Conclusion Work, to analyze the problem of
trafficking in children and adolescents for the purpose of sexual exploitation in Brazil, in an
attempt to bring professionals and other sectors of civil society who deal with potential
victims closer to the topic, a topic that is not very widespread, thus seeking to draw attention
to its emergence, and how it is legitimized by society, which hypersexualizes and silences
girls and boys victims of barbarism. For this, a critical, multidimensional analysis was
necessary, beyond the apparent, historically inscribed and starting from human rights, which
was subsidized by historical and dialectical materialism, contemplating bibliographic and
documentary research. Therefore, it was possible to identify that there is an extremely
well-articulated and consolidated criminal network that permeates the most distinct global
routes, and that has a well-defined profile of recruited and recruited, which favors structural
issues such as class, race/ethnicity, gender and heredity, in addition to taking advantage of
tourism, highways and social networks to favor itself.
1. INTRODUÇÃO…………………………………………………………………….…...12
2. TRÁFICO E CAPITAL: DOS NAVIOS NEGREIROS À NAVEGAÇÃO NAS
REDES MONOPOLISTAS DE ALICIAMENTO……………………………….…...17
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………..47
5. REFERÊNCIAS…………………………………..…………………………………….53
12
1. INTRODUÇÃO
expressão da questão social1 que chama o(a) profissional de Serviço Social a atuar “numa
perspectiva de promover a cidadania e integridade das crianças e adolescentes como sujeitos
de direitos e que detém proteção integral e sócio jurídica” (JUS, 2013), ou seja, torna-se
inerente à profissão a atuação sobre as diversas formas de prevenção a tal ato, sendo assim
estratégica no fortalecimento da proteção integral desses sujeitos, fato esse que ressalta a
importância da construção de pesquisas sobre o tema, posto que é relevante à categoria
profissional e à sociedade.
No entanto, o reconhecimento das crianças e dos adolescentes enquanto seres
humanos em processo de desenvolvimento, caracterizados como portadores da proteção
integral especial de adultos e do Estado2, demorou para ser integrado à legislação brasileira.
Tal conquista, como aponta Mendonça (2015), deu-se “graças à influência dos movimentos
internacionais pela garantia dos Direitos Humanos, [quando] nosso arcabouço legislativo
terminou por contemplar as crianças e [os] adolescentes” (MENDONÇA, 2015, p. 224, grifos
nossos).
Foi sob esse contexto de conquistas que a própria delimitação do que são crianças e
adolescentes foi firmada e validada, sendo definido, respectivamente, como aqueles com
idade entre 0 e 12 anos incompletos e de 12 a 18 anos (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE, 1990)3, assim se enquadrando enquanto seres humanos em processo de
desenvolvimento físico e psicológico, acobertados de forma integral e prioritária, tendo sua
responsabilidade atribuída ao Estado, à família e à sociedade civil (BRASIL, 1988), os quais
devem proteger e dar condições para que haja o pleno desenvolvimento desses sujeitos em
formação.
É nesse sentido que se torna importante ao presente estudo especificar o que é a
violência sexual contra crianças e adolescentes, a qual é definida pela Organização Mundial
da Saúde (OMS), no Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde, como sendo “qualquer ato
sexual, tentativa de obter um ato sexual, comentários ou investidas sexuais indesejados, ou
atos direcionados ao tráfico sexual” (2002, p. 147). Nesse sentido, o tráfico de pessoas é
identificado como uma violação dos direitos humanos.
Dessa forma, em termos de violação desses direitos outorgados, o tráfico com fins de
exploração sexual se encontra enquanto locus de infração de diferentes aspectos dos direitos
fundamentais, posto que atua enquanto uma vertente da indústria do sexo, a qual se utiliza de
1
“Síntese reflexiva do aprofundamento das desigualdades sociais, acumuladas e manifestas nas mais variadas
formas” (ARCOVERDE, 2008, p. 109).
2
Artigo 227 da Constituição Federal de 1988.
3
Lei nº 8.069/1990.
14
Como o Serviço Social atua sobre as expressões da questão social e como uma dessas
é o tráfico de pessoas, o qual impõe “graves violações de direitos humanos que refletem
profundas contradições históricas e sociais” (CFESS, 2011, p. 1), a profissão se inscreve de
forma estratégica na viabilização da garantia de direitos, prevenção e integração social, além
do acompanhamento às vítimas, e de participar das próprias campanhas de erradicação do
tráfico de crianças e adolescentes, em seu aspecto geral e específico, como é a finalidade de
exploração sexual.
É diante desse contexto adverso, nefasto, histórico e invisibilizado que na presente
pesquisa objetivamos analisar a problemática do tráfico de crianças e adolescentes para fins
de exploração sexual no Brasil, para tal, temos como questionamentos norteadores: como o
tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual se desdobra no contexto
contemporâneo brasileiro? E quais são as estratégias para o aliciamento das vítimas? Para
isso, é importante identificar os interesses e relações de poder que envolvem o perfil das
vítimas do tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual no Brasil; como
também, verificar a intrínseca relação existente entre indústria do sexo e capitalismo.
Portanto, espera-se que o presente trabalho contribua à reflexão e discussão sobre a
problemática no campo acadêmico e da sociedade civil, além de pretender estimular a criação
de novas estratégias de enfrentamento.
Tendo em vista o alcance dos objetivos presentes neste trabalho, o princípio de
totalidade, cunhado pelo materialismo histórico e dialético, foi o princípio orientativo
escolhido, o qual permitirá a aproximação sucessiva com a análise crítica da temática do
tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual, especialmente no que tange
à realidade brasileira.
A escolha pela perspectiva dialética, ocorreu devido a sua capacidade de interpretação
dos fenômenos sociais, a qual leva
[...] o pesquisador a trabalhar sempre considerando a contradição e o conflito; o
“devir”; o movimento histórico; a totalidade e a unidade dos contrários; além de
apreender, em todo o percurso de pesquisa, as dimensões filosófica,
material/concreta e política que envolvem seu objeto de estudo (LIMA; MIOTO,
2007, p. 39).
15
Se eu deliro… ou se é verdade
Nesta segunda estrofe, retirada da obra O Navio Negreiro, do poeta brasileiro Castro
Alves (2007, p. 10-16), o teor nefasto, angustiante e desalentador, sentido pelas vítimas do
tráfico humano no período do Brasil Colônia, se faz latente na narrativa do eu lírico.
Contudo, essa problemática antecede este período, remontando-nos à Grécia e Roma antigas,
onde os(as) escravos(as) de guerra constituíam uma classe subalternizada “por natureza”
(ARY, 2009).
Diante disso, este primeiro momento – na Antiguidade Clássica – não tinha relação
com a comercialização de pessoas, apenas com a questão migratória forçada para fins de
escravidão, sem o emprego de uma transação lucrativa entre cidadão5 e intermediador. Sendo
assim, a comercialização torna-se uma demanda incorporada ao tráfico humano a partir do
período seguinte, acima tratado, tendo, como principais vítimas, as pessoas negras do
continente africano.
Entretanto, ambas as formas de sociabilidade supracitadas, se estruturaram,
econômica e politicamente, “[...] alicerçadas na exploração dessa espécie de força de
trabalho, configurando-se condição essencial e indispensável para sua sobrevivência” (ARY,
2009, p. 23). Motivo – somado à existência de um direito legal e impositivo de propriedade
sobre os corpos das vítimas (BRASIL, 1966) – pelo qual considera-se que a escravidão, de
4
Obra completa disponível em:
https://www.coletivoleitor.com.br/wp-content/uploads/2020/03/o-navio-negreiro-classicos-saraiva.pdf.
5
“Em Atenas, principal centro político da época, somente aqueles considerados cidadãos é que poderiam
participar da vida política na polis, ou seja, apenas os homens atenienses livres e maiores de 20 anos possuíam a
cidadania ativa. Estavam excluídos os estrangeiros, os escravos, as mulheres e as crianças. [...] O homem só
existia de forma plena enquanto cidadão fazendo parte de uma comunidade política. [...] É de se salientar que os
patrícios romanos, e até mesmo os plebeus, possuíam mais direitos do que os não-cidadãos (estrangeiros e povos
dominados)” (JUS, 2005). Mais detalhes em:
https://jus.com.br/artigos/7610/da-igualdade-na-antiguidade-classica-a-igualdade-e-as-acoes-afirmativas-no-esta
do-democratico-de-direito.
19
forma clássica, não mais existe, agora sendo empregado o termo “trabalho análogo à
escravidão”, o qual engloba o emprego de “[...] punições, trabalhos forçados em
determinadas condições, [e aquelas] pessoas vistas como posse” (NÓBREGA, 2019, p. 22,
grifos nossos).
Apesar disto, é importante frisar que existe uma linha tênue entre os dois termos,
como nos aponta Nóbrega (2019):
Dentre os fatores que podem caracterizar uma situação de escravidão estão: o
trabalho forçado, o direito de propriedade sobre o escravo e a duração permanente
desta condição, que pode ou não ser baseada em descendência. Todos esses aspectos
também estão presentes em situações de tráfico: o trabalho por meio de ameaça, o
traficado como propriedade/mercadoria dos traficantes – porém, sem que se tenha
algum direito legal sobre esse –, e o tempo indeterminado da posse do traficado,
que vai depender da “dívida” do traficado e da vontade do traficante em querer
libertá-lo. Por conta das semelhanças entre ambas as situações, que termos como
“escravidão”, “trabalho escravo”, “práticas análogas à escravidão” estão presentes
nas discussões sobre tráfico de pessoas, mesmo que conceitualmente signifiquem
coisas diferentes, muitas vezes são postas como sinônimos (NÓBREGA, 2019, p.
21-22, grifos nossos).
Tal definição é aceita até os dias de hoje, tipificando como vítimas do tráfico, não
mais apenas mulheres e crianças – mesmo reconhecendo que essas são as mais atingidas –, e
sim os seres humanos (CASTILHO, 2008).
Como há um caráter de traslado, no ato que antecede a finalidade de tráfico – como
posto no Protocolo –, considera-se a existência de duas formas de deslocamento: o
interno/nacional – quando a movimentação ocorre entre os estados ou distritos de um mesmo
país – e o internacional – quando acontece entre diferentes países. Esse fato expõe, mais uma
vez, a perpetuação do que foi posto por Castro Alves, especialmente na primeira estrofe da
obra O Navio Negreiro (2007) aqui selecionada, onde corpos marcados de diferentes
6
Esta definição de tráfico de pessoas é adotada tanto pela Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas (Decreto nº 5.948/2006), quanto pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS; 2011).
22
que há uma associação entre quem pode pagar por um “corpo” humano, e quem media esse
processo ilegalmente. Nesse sentido, para Assis (2017), “[...] da comercialização da força de
trabalho à venda de partes humanas, tudo é mercadoria [no capitalismo] e perpassa os altos
lucros. Vendem-se produtos industrializados, mas também aquilo que nos é intrínseco à vida.
Coração, pulmão, fígado, rins, pâncreas, córneas, ossos, medula óssea, pele” (2017, p. 90-91,
grifos nossos).
Em relação ao trabalho em condições análogas à escravidão, pode-se verificar que, na
sociedade contemporânea, preservam-se contornos da exploração do período escravista
nesses tipos de processos de trabalho, os quais negam a condição de pessoa humana dessas
vítimas atravessadas por direitos de diferentes naturezas, dentre esses, os trabalhistas.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), “entre 1995 e 2020,
mais de 55 mil pessoas foram libertadas de condições de trabalho análogas à escravidão no
Brasil” (RADAR - SIT, 2021), demonstrando a perpetuação dessa problemática ao longo do
tempo, contudo, sem a existência de um direito legal de propriedade sobre esses corpos,
outrora existente e agora tido como crime, mas que, infelizmente, não assegura sua
erradicação. Dessa forma, este crime produziu novas estratégias de coerção e cárcere ao
longo da história, mas perpetuando como vítimas da barbárie os segmentos tidos como
“minorias” da sociedade. A questão do gênero, da classe e da raça/etnia, em sua maioria, é a
mesma de séculos atrás, “mas a mentalidade escravagista, que ‘coisifica’ o ser humano e o
impossibilita de exercer sua cidadania, permanece mesmo após 500 anos de história. O
Brasil, sob esse aspecto, não abandonou por completo suas raízes” (CHEHAB, 2015, p. 16).
Já a servidão, descrita na lei supracitada sobre tráfico de pessoas, é extremamente
difícil de ser descrita, pois é constantemente trazida nas pesquisas científicas e matérias,
como sinônimo à prática de trabalho análogo à escravidão, e na lei – que não a acima
referenciada – como a tutela de imóveis em uma relação entre diferentes prédios9 (BRASIL,
2002). Entretanto, ao nos remontarmos à história, tem-se na servidão o estabelecimento de
uma relação de dependência entre dois ou mais sujeitos, onde um não tem condições de
manter-se em um lugar e/ou deve algo, e precisa ficar sob a tutela dessa outra pessoa, a
servindo em troca do atendimento de suas necessidades ou pagamento de dívida, sem receber
bonificação monetária por isso (STOODI, 2020). Consequentemente, o trabalho análogo a
escravidão é uma das formas de servidão, assim como, por exemplo, o tráfico de mulheres
quando essas são exportadas para outros países e, ao chegar lá, têm seus documentos
9
Presente no Título V do Código Civil, do artigo 1.372 ao artigo 1.389 (BRASIL, 2002). Material disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.
24
apreendidos e uma imensa lista de “dívidas” com seus algozes, os quais impõem a essas
mulheres o pagamento mediante sujeição dessas às mais diversas formas de exploração
laboral.
No que se refere à adoção ilegal, tem-se que destacar seu contrassenso com a Lei nº
12.010/2009 (BRASIL, 2009) – lei de regulamentação da adoção no país –, dado que se
utiliza de mecanismos como a adoção à brasileira10 para burlar as etapas legais, as quais são
fundamentais, pois garantem que houve esforço por parte do Estado em esgotar “[...] as
possibilidades de reinserção das crianças e dos adolescentes na sua família de origem”
(BARBOSA, 2017, p. 61). Como uma das finalidades do tráfico humano, a adoção ilegal
consiste em uma criança ou adolescente sendo mediada por terceiros – criminosos sem
vínculos com as vítimas ou até mesmo parentes destes – a “candidatos a pais”. Tal transação
ocorre seguindo a dinâmica “compra e venda”, em que, clandestinamente, além do
deslocamento da criança ou adolescente, são ofertados documentos fraudados de guarda – ou
o facilitamento da prática de adoção à brasileira – ao casal ou pessoa que contratou o(a)
atravessador(a), podendo ocorrer dentro ou fora do país de origem da vítima (TATAGIBA,
2019, p. 29-30).
Em termos de exploração sexual, essa – e o próprio tráfico humano –, historicamente,
vitima mais – mas não só – mulheres, crianças e adolescentes11, tendo intrínseca relação com
a violência sexual, dado o seu caráter de imposição sobre esses corpos, como mostra a
definição adotada pela lei que cria mecanismos para reprimir as diferentes formas de
violências que sofrem as mulheres12, a qual é abordada por Melo e Silva (2017, p. 68-69):
A violência sexual consiste em uma conduta que constrange a mulher a presenciar,
manter, participar de uma relação sexual e/ou prostituição não desejada mediante
suborno, chantagem, manipulação, intimidação, coação, ameaça ou uso da força.
Consiste também em induzi-la a comercializar ou usar a sexualidade, impedi-la de
utilizar qualquer método contraceptivo, forçá-la ao matrimônio, gravidez ou aborto
ou limitar seus direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, 2006 apud MELO e
SILVA, 2017, p. 68-69).
10
A “adoção à brasileira” é um crime que consiste no registro de uma criança por outras pessoas, as quais não
são seus pais biológicos ou responsáveis mediante decisão judicial, mas que, nesse ato ilícito, preenchem o
campo dedicado aos pais, nos documentos da criança, com seus dados, assim não seguindo as etapas de adoção
vigentes no país, sendo considerada uma ação de falsidade ideológica. Esta prática pode ser cometida com ou
sem o consentimento dos genitores (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITÓRIOS, 2018).
11
Motivo pelo qual a própria convenção onde o Protocolo de Palermo foi adicionado, foi chamada de
“Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças” (2003).
12
Lei nº 11.340, de agosto de 2006, disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
25
quando vemos, nas 7.447 denúncias de estupro feitas ao Disque 100 nos primeiros cinco
meses de 2022, que o equivalente a, aproximadamente, 79% das queixas têm como vítimas
crianças e adolescentes, um aumento de 76% quando comparado ao mesmo período do ano
anterior (MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS,
2022). A violência sexual sofrida por esse público, deve ser entendida como sendo envolvida
por relações de poder e coisificação da vítima, segundo Mendonça (2015), esta ação abrange
duas modalidades que envolvem interesses distintos: o abuso sexual e a exploração sexual.
O abuso sexual é o caso em que “o violentador está interessado apenas na [sua]
satisfação sexual” (MENDONÇA, 2015, p. 252, grifos nossos). Desse modo, partindo de uma
reflexão que os abusadores, em sua maioria, são pessoas próximas das vítimas, o Conselho de
Prevenção contra o Abuso Infantil (1999) – adotado também pelo Relatório Mundial sobre
Violência e Saúde (OMS, 2002) – atribui esse crime à imposição de relações de poder
desiguais, as quais podem ser cometidas em uma “relação” intrafamiliar – na maioria dos
casos (OMS, 2002, p. 59) –, ou sem grau de parentesco, onde são empregados mecanismos de
violação tanto físicos, quanto emocionais “[...] resultando em danos reais ou potenciais para a
saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança no contexto de uma relação
de responsabilidade, confiança ou poder" (CONSELHO DE PREVENÇÃO CONTRA O
ABUSO INFANTIL, 1999).
Já a exploração sexual sofrida por crianças e adolescentes, tem um grau mais
complexo de violação, pois há a mediação de um(a) aliciador(a) – ou rede de criminosos –
que, visando ganhos materiais, intercede na dinâmica satisfação sexual-vítima. A
movimentação para esta finalidade sexual tem, segundo Mendonça (2015, p. 252), quatro
modalidades: “a pornografia, o tráfico, o turismo sexual e quando a própria vítima negocia
seu corpo” (MENDONÇA, 2015, p. 252), fato que corrobora a perspectiva de Lucena (2017),
quando esta relaciona a exploração sexual infanto-juvenil, à submissão destes “à violência do
‘comércio do sexo/pornografia’” (LUCENA, 2017, p. 133).
No que concerne à pornografia infanto-juvenil, esta pode ser entendida como qualquer
material áudio-visual que retrate crianças e/ou adolescentes em situações de exposição de
suas genitálias, ou simule atos sexuais com os mesmos, tais materiais têm a finalidade de
servir enquanto “matéria-prima” de consumo a um mercado que procura especificamente pela
exposição dessas crianças e adolescentes, consumindo e armazenando pornografia
infanto-juvenil (MENDONÇA, 1999, p.358). Segundo o artigo 241-A da Lei nº 11.829/2008,
este tipo de crime abrange todos aqueles envolvidos em:
27
13
A Resolução N° 113/2006.
14
Diz respeito à promoção do “atendimento direto dos direitos coletivos e difusos da criança e do adolescente,
realizado através da política prevista no Artigo 87 do estatuto, que toca transversalmente todas as políticas
públicas” (PINTO, 2011, p. 21).
15
“[...] é acionado toda vez que a criança e o adolescente encontram-se em situação de ameaça ou violação dos
seus direitos individuais, coletivos ou difusos, seja por ação ou omissão do Estado, da sociedade e dos pais ou
responsáveis, ou mesmo em função da sua própria conduta” (PINTO, 2011, p. 24).
16
“Monitoramento/vigilância e avaliação das políticas públicas'' (PINTO, 2011, p. 22).
29
17
“A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria, mas essencialmente produção de mais-valor. O
trabalhador produz não para si, mas para o capital. Não basta, por isso, que ele produza em geral. Ele tem de
produzir mais-valor. Só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista ou serve à
autovalorização do capital” (MARX, 2011, p. 382).
18
“A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e
de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a
burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão” (CARVALHO e
IAMAMOTO, 2004, p. 77).
30
escala local e/ou global, sendo essas redes engrenagens ativas do capitalismo, dado ser o
tráfico de seres humanos a terceira atividade criminosa que mais cresce – e lucra – no mundo
(LEAL e LEAL, 2005, p. 3). Além destas questões, o fato da amplitude da problemática
ultrapassar barreiras continentais dificulta, na mesma proporção, as estratégias de
identificação e a punição daqueles que praticam o tráfico.
O fato de tudo e todos serem mercadorias no modo de produção capitalista, se
expressa de forma ainda mais literal e observável quando o objeto de estudo torna-se o tráfico
de crianças e adolescentes com a finalidade de exploração sexual. Isso porque se mercantiliza
jovens como objetos – ou abjetos – para serem usados até que seus corpos se tornem "velhos”
demais, “usados” de mais, e, assim, não tenham mais valor de uso, logo sendo descartados e
substituídos por “novos” e "imaculados" “produtos”, em uma lógica neoliberal de
“barbarização da vida” (BEHRING, 2017, p. 2).
Posto isso, a sub-humanidade é um fator marcadamente latente ao tráfico humano,
marcado pelo fetichismo e pela existência de um público-cliente leal e constante. Opera a
supercapitalização das vítimas, processo através do qual as etapas de produção de
mercadorias, adentram “todos os setores da vida social” (MANDEL, 1982, p. 271), ou seja,
criam-se estratégias de expropriação com vistas à valorização do capital, o que termina por
precarizar as formas de vida.
Estas vítimas, sob uma dinâmica de exploração sexual em que se tornam cativas, são
transformadas em produtos, que não vendem sua força de trabalho, mas são coagidas ao ato
criminoso em troca de favores monetários, representando um lucro ainda maior aos
traficantes, dado que o trabalho excedente e não-remunerado é por eles completamente
apropriado. O fator tempo é aquele que determina o valor da mercadoria no capitalismo, e no
que se trata da modalidade de tráfico supracitada, essa ocorre no tempo despendido pelo
traficante para a captura das vítimas, o qual é considerável, tendo em vista o deslocamento da
mesma e as táticas de aliciamento em meio ao arcabouço protetivo, o que atribui ainda mais
valor às crianças e aos adolescentes nesse mercado.
É sob todas essas implicações no bojo do modo de produção capitalista que iremos,
no tópico a seguir, tratar de forma mais aprofundada as implicações da vertente criminosa da
indústria do sexo, a qual, a partir do tráfico de crianças e adolescentes com fins à exploração
sexual, se articula em rede e fomenta um mercado diverso, clandestino e nefasto de
objetificação desse público. Para tal, torna-se imprescindível delimitar, de forma mais
contundente e específica, o perfil de vítimas mais acometidas pelo tráfico humano, no qual se
32
[...]
As de 14 eu tô fora
As de 15 é muito nova
A 16 já tá na hora
17 eu vou agora
19
Nos trechos das músicas selecionadas, foram preservadas as marcas de oralidade e tempo verbal trazidas
pelos intérpretes, como em “nós gosta”, “pra” e “tô”, motivo pelos quais se encontram grifadas.
33
YouTube. Somente a primeira música destacada neste trabalho, “Nós gosta de novinha”, de
MC Sheldon, conta com 93 mil visualizações, e a segunda “Se eu mato, eu vou preso”, dos
MCs Sheldon e Boco, somam quase 148.500 visualizações.
É nesse sentido que, ao analisar o termo “novinha” abordado em letras de funk
carioca, Moreno (2011) ressalta a existência de divisões para além da classificação quanto ao
sexo biológico, homem e mulher:
[...] estabelece-se uma gradação entre as mulheres que se inicia com as novinhas -
as mais cobiçadas e objeto de desejo dos rapazes - seguidas por aquelas que já
possuem experiência reconhecida (embora só possa ser presumida) pelo simples
fato de serem mais velhas e aquelas que são malandras ou cachorras e que são ativas
na cena do funk ou nas conquistas dos homens. Estas afirmam uma feminilidade
autônoma, independente e uma sexualidade livre de impedimentos e compromissos
com parceiros fixos (MORENO, 2011, p. 8).
A cobiça por corpos jovens, tem intrínseca relação com a aceleração do processo de
formação de crianças e adolescentes, subtraindo esses importantes momentos de
desenvolvimento, ao impor atitudes erotizadas, comportamentos submissos e performances
próprias de mulheres adultas, porém, com a manutenção de traços que, para o violentador,
são símbolos de fetiche, como a "carinha de menina, corpo de mulher", o "ar virginal", e a
inexperiência, os quais remetem à inocência, à infância.
Tais fenômenos da adultização e hipersexualização, afetam diretamente a
subjetividade e as relações interpessoais do público infanto-juvenil, ao acelerar processos,
contribuindo, assim, para reprodução de comportamentos mimetizados de pessoas adultas.
Para Teixeira (2015), essa análise “está ligada a uma sociedade hedonista e consumista que
sobrevaloriza a imagem. Insidiosamente apoia-se em estereótipos que afetam sobretudo o
sexo feminino” (TEIXEIRA, 2015, p. 5), nesse sentido, há uma hipersexualização notória
desses sujeitos em publicidades, produtos, redes sociais, músicas, entre outras coisas, o que
termina conduzindo ao fim precoce da infância. Muitas vezes, por iniciar a vida sexual mais
cedo e não ter passado por esses processos de desenvolvimento, a criança ou o adolescente,
termina por tentar identificar no parceiro mais velho, características que faltaram na
infância22, como a figura de um homem protetor/provedor que a princípio, segundo Freud
22
Complexo de Édipo: conceito usado por Freud na construção psíquica dos indivíduos, através do qual afirma
que, na fase fálica do desenvolvimento de uma criança, essa passa a distinguir os pais, e aquelas que se
identificam com o sexo feminino, têm na figura do pai um desejo – não sexual – e necessidade de atenção, tendo
na figura da mãe uma “rival”, uma “barreira”, mas, assim que essa fase termina, essa torna-se um ideal a ser
alcançado, um espelho – o mesmo ocorre com aqueles que se identificam com o sexo masculino. “Segundo
Freud, os reflexos da idade edipiana poderão se refletir por toda a vida adulta do sujeito. Inclusive em sua vida
sexual, sua realização profissional, sua maturidade psíquica, sua capacidade de se relacionar afetivamente com
outras pessoas etc.” (PSICANÁLISE CLÍNICA, 2017). Portanto, Freud afirma que problemas
emocionais/transtornos apresentados na fase adulta são resultado de ações ocorridas na infância – transtornos
35
(1924), seria o pai, ou seja, tirar o foco da presença do pai e colocar sobre o parceiro e com o
acréscimo da sexualização, pode naturalizar questões de agressão, e desenvolver dependência
afetiva e emocional, além de implicações como a gravidez precoce e o contágio de doenças
sexualmente transmissíveis (FRANCO e VIANA, 2018, p. 2).
Perante essas questões, torna-se necessário ratificar que, mesmo com o consentimento
da criança ou do adolescente, divulgar imagens desse público, armazenar ou encaminhar, são
crimes, assim como o ato sexual, em si, é um abuso, portanto, sendo modalidades da
violência sexual qualquer forma de manipulação, incentivo, venda, intermediação e uso
desses jovens23 (BRASIL, 1990).
Nesse ínterim, perpassado pela naturalização de práticas de violência, pode-se analisar
que a adultização e a hipersexualização terminam por banalizar “a pornografia e a violência;
[...] fragilizando o equilíbrio psicoafetivo e perturbando a construção da identidade”
(TEXEIRA, 2015, p. 5, grifos nossos). Outro aspecto imposto pela naturalização da
problemática, é o aceleramento e aumento de um público consumidor – pedófilo – de
materiais que envolvem crianças e adolescentes em situações de exposição de seus corpos e
insinuações de cunho sexual.
A pedofilia é caracterizada como um transtorno adulto, marcado pela persistência de
“[...] um padrão sustentado, focado e intenso de excitação sexual – manifestado por
pensamentos, fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais persistentes – envolvendo
crianças pré-púberes” (OMS, 2022). Por se tratar de um transtorno, o acompanhamento
desses indivíduos deve ser contínuo, contudo, para que este diagnóstico seja firmado, é
necessário que haja, por parte desses indivíduos, a aceitação dessa questão enquanto
problemática. Entretanto, mais uma vez, aqui nos deparamos com as implicações da
naturalização, dado que, numa sociedade machista – centrada nos homens –, a existência de
um padrão de relacionamentos coloca esses sujeitos acima de qualquer suspeita, como se
fosse apenas o seu tipo ideal de mulher, aquelas que são mais jovens – como nas músicas
supracitadas –, não um problema de proporções sanitárias e sociais. É importante frisar que,
caso se manifestem na prática, as ações desses indivíduos são tipificadas como crime contra
emocionais surgem na infância, evoluindo na fase adulta, se refletindo na forma de neuroses (COSTA;
OLIVEIRA, 2011, p. 5).
23
De acordo com o artigo 241-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente, se caracteriza como crime:
“oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio
de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito
ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” (BRASIL, 1990).
36
crianças ou adolescentes, não como pedofilia24 (VENTURA, 2016), todavia, por esta mesma
razão – não ser um crime, mas sim uma patologia –, muitas vezes, há a naturalização das
atitudes dos pedófilos.
Portanto, apesar do arcabouço protetor, a existência de pedófilos e a naturalização da
hipersexualização desse público, quando somadas a uma sociedade patriarcal e sexista, como
a brasileira, gera a possibilidade de comercialização infanto-juvenil para fins de satisfação
sexual, infringindo, assim, a lei. Nesse sentido, estratégias de intermediação entre vítimas e
abusadores são firmadas, devido à criação de uma demanda, um desses métodos é a
exploração sexual no contexto do tráfico humano, através da qual as relações de sexualização
de crianças e adolescentes enquanto objetos sexuais para satisfação da libido de homens
adultos, se associa à compra, especificamente, de seus corpos (NÓBREGA, 2019, p. 25) em
escala estruturalmente articulada.
É sobre esta temática específica, que relaciona tráfico humano, gênero, estratégias de
aliciamento e invisibilidade da problemática, que nos aproximaremos no presente capítulo,
perpassando por outras questões fundamentais como classe, raça/etnia, o tabu da educação
sexual, o perfil de vítimas, a rede criminosa, as rotas, a indústria do sexo e as formas de
sobrevivência infanto-juvenis; na tentativa de desvelar os interesses e relações de poder que
envolvem o perfil das vítimas do tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração
sexual no Brasil, bem como pretendemos nos aproximar da compreensão da dimensão de
poder exercido por esta rede multifacetada.
24
“Há de se ficar bem claro que ninguém pode ser punido criminalmente por ter alguma doença, porém, quando
o pedófilo (quem tem pedofilia) exterioriza a sua patologia e sua conduta se amolda em alguma tipicidade penal,
estará caracterizado o crime (da tipicidade incorrida e não de pedofilia). Não existe cura para a pedofilia e, por
este motivo, o tratamento deve ser constante para que ela seja e se mantenha controlada. Deve-se ficar muito
bem cristalino que nem todo pedófilo é um criminoso sexual, pois, como já dito, a pedofilia é uma doença e
enquanto ela não for exteriorizada não há de se falar em crime e nem em criminoso” (JUS, 2016).
37
27
A grafia do texto, originalmente derivado do português de Portugal, foi mantida neste corte.
40
Mulheres e Crianças (2004). Tal preocupação, não exclui que esta problemática atinja
diferentes corpos, no entanto, quando analisamos a categoria gênero em específico, nos
deparamos com a questão desta ser considerada “um campo primário no interior do qual, ou
por meio do qual, o poder é articulado” (SCOTT, 1995, p. 88), ou seja, as relações de gênero
são uma construção histórica que formam, de maneira indissociável, hierarquizações de
poder, assim imprimindo uma estrutura de dominação, diante disso, mulheres tornam-se
vítimas desta estrutura, o que pode ser chamado de violência de gênero:
a violência de gênero consiste na violação da mulher, abrangendo ainda crianças e
adolescentes de ambos os sexos, que são vitimados pelos homens no papel de
patriarcas (aqueles que exercem o poder de pai, machista). Ainda que as vítimas não
se rebelassem contra as normas impostas pelo impositor ou pela sociedade, normas
estas que “justificassem” o ato violento, estas seriam alvo do processo de
dominação e exploração que compõe o significado do “ser homem” e da sua
autoafirmação enquanto tal, a partir da coerção (SAFFIOTI, 2004 28 apud MELO;
SILVA, 2017, p. 64).
28
SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo – Coleção Brasil
Urgente, 2004.
42
exploração das mais diversas naturezas; e sendo pouco acobertados pelas políticas sociais
(LEAL, 2010, p. 182).
Se apropriando das questões acima postas, o tráfico de pessoas ocorre por "uma
estrutura comercial organizada" (CARVALHO e FREITAS, 2013, p. 107), estrutura essa que
mercantiliza atividades sexuais forçadamente, seguindo uma dinâmica de coisificação dos
indivíduos. Para consolidar esse processo, a rede criminosa desenvolve estratégias rigorosas
de aliciamento, que se atualizam ao longo do tempo e se alimentam das refrações da questão
social. Dessa forma, são utilizadas estratégias para atrair o público infanto-juvenil para a
exploração sexual, que variam desde a promessa de troca dos serviços por alimentação e/ou
dinheiro, à omissão da finalidade sexual, se utilizando da enganação para atrair as vítimas ao
prometerem ofertas de trabalho, moradia, realização de sonhos ou proteção.
Dentre os meios de aliciamento, desenvolveu-se – em consonância ao avanço
capitalista via globalização – o uso das redes sociais enquanto espaços de captação de
potenciais vítimas, assim alastrando suas estratégias de forma ainda mais ampliada e rápida,
dificultando ainda mais a identificação dos traficantes e construindo, de forma mais sólida, o
imaginário de oportunidades do qual se valem seus discursos sedutores iniciais. Nesse
sentido, criam perfis, por exemplo, de agências de trabalho, turismo e modelo, para mediar
esse público a destinos nacionais ou internacionais, neste último se valendo, muitas vezes, do
romantizado discurso de melhoria das condições de vida através do sonho europeu ou
americano.
Seguindo esta perspectiva, um aliciador brasileiro que atua na fronteira da Amazônia,
em fala ao canal Metrópoles (2021), relata os processos de aliciamento e coerção das
mulheres vítimas do tráfico humano, conforme a rede criminosa que faz parte. O aliciador
começa seu relato destacando que elabora anúncios em páginas de rede social conhecidas
(como Instagram e Facebook), páginas famosas que se tornam comerciais pela situação de
vida das venezuelanas, como exemplifica, com isso eles partem dizendo que procuram
modelos. O homem diz usar uma “metodologia bem simples", dividindo as etapas de
aliciamento no que chama de “fases”. Na primeira, pedindo imagens da vítima, isso para elas
acreditarem estar se comunicando com uma agência. Na segunda fase, faz uma ligação para a
vítima dizendo que essa não tem o perfil da empresa, porém, que há uma segunda alternativa,
o garimpo, algumas desanimam, mas outras querem saber mais sobre, é nesse momento que
chegamos ao que o aliciador chama de “hora do encontro”, quando elas chegavam ao país
(geralmente clandestinamente), nesse encontro
45
já dava um choque, "é assim como funciona", a gente fala dos cuidados que tem que
ser tomados em relação a… algumas medidas de proteção [como não roubar o
“cliente”, pois já houve casos de morte por isso]. Aí quando elas chegam aqui é a
real, a real é prostituta, entendeu? É vender o corpo. A gente já bota um preço que é
pra tentador, né? Tipo fala em relação ao programa, quanto é que é. Eu busco
pessoas que tem… beleza, entende? Porque se você não levar esse tipo de garota,
que tem beleza, você vai perder, porque o que eles querem é isso. Você tem que…
tem que… criar um personagem, né? Você cria um personagem e a pessoa pensa
assim… geralmente é… é uma pessoa que vai… ter mais confiança com
homossexual, né? E aí você cria o personagem, mas quando a pessoa tá cara a cara
com você… o personagem não existe mais” (METRÓPOLES, 2021, grifos
nossos)31.
31
Ao ser redigida, a fala do traficante foi preservada com vícios de oralidade.
46
e inferiorizada que se tem das brasileiras, fruto da formação sócio-histórica do país alicerçada
em relações de abuso, coisificação e fetichização, termina por criar um imaginário
internacional do Brasil enquanto paraíso do sexo, servindo como polo para entretenimento
dos turistas ou moradores locais, também no sentido de procura por relações sexuais, sendo
as rotas da exploração sexual comercial um atrativo a violadores de crianças e adolescentes.
Como destaca o documentário Cinderelas, Lobos e um Príncipe, as vítimas do tráfico
humano “alimentam uma rede de intermediário que exploram agências clandestinas de
turismo, hotéis, pousadas [...] [permitindo que] homens explorem sexualmente crianças”
(CINDERELAS, LOBOS E UM PRÍNCIPE ENCANTADO, 2009, grifos nossos).
No que tange às rotas internacionais do tráfico humano, conforme o Counter
Trafficking Data Collaborative (CTDC), em 189 países há a exploração sexual no contexto do
tráfico humano, representando 156.330 casos individuais registrados, segundo dados
fornecidos por organizações em todo o mundo (CTDC, 2020). No que tange especificamente
aos dados relativos às Américas, "mais de dois terços das vítimas traficadas [...] sofrem
exploração sexual. Mais de 80% das vítimas são do sexo feminino e quase um terço são
crianças" (CTDC, 2020), além de, no continente africano, mais da metade das vítimas serem
crianças (CTDC, 2020), questões essas que se relacionam com o fato do fluxo relatado por
Leal (2009):
[...] O tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual
comercial ocorre de regiões periféricas ou semi-periféricas (Ásia, África,
América do Sul e Leste Europeu) e são encaminhados preferencialmente para
países desenvolvidos (Estados Unidos, Europa Ocidental, Israel e Japão) (LEAL,
2009, p. 179).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
como algo de “[...] caráter lendário" (ASSIS, 2017, p. 86), assim havendo um deslocamento
da problemática do universo do real, invisibilizando as vítimas, consideradas inexistentes ou
fruto da ficção, sobre um palco de falsa normalidade montado por experientes quadrilhas que
se escondem nos bastidores do anonimato, encobertas pela manipulação de diferentes setores,
e se valendo da subnotificação das denúncias e do falso moralismo, fato este que corrobora
com a conclusão precipitada da sociedade de que não existem casos de tráfico humano no
Brasil.
Tendo como base as perguntas norteadoras para o presente trabalho – como o tráfico
de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual se desdobra no contexto
contemporâneo brasileiro? E quais são as estratégias para o aliciamento das vítimas? –, e
também perante tudo o que foi exposto, verificou-se que o turismo sexual brasileiro e as
rodovias federais, são rotas culturalmente preferíveis aos aliciadores do país, bem como
fatores socioeconômicos, etários, sexuais e de raça/etnia estruturam um perfil de
vítimas-foco, isso porque, embora a violência sexual atinja meninos e meninas de diferentes
classes sociais, no que se trata do contexto do tráfico humano, a garantia, por parte dos
criminosos, de um enfraquecido sistema de proteção e acesso à captura e punição por parte
das famílias, é algo crucial para a manutenção de suas atividades silenciosamente e letal.
Ademais, o neoconservadorismo, embrenhado em todos os setores da vida pública e privada,
torna-se um obstáculo somado a um projeto societário de destituição de direitos,
silenciamento e negação do incentivo à autoproteção, consequentemente colaborando para
com o funcionamento da indústria do sexo. Em termos de estratégias de aliciamento, foi
constatada a existência de diversas, entretanto, a globalização via tecnologias, sobretudo das
redes sociais, fez emergir uma forma ainda mais danosa de aliciamento ao serem utilizadas
indiscriminadamente no estreitamento das fronteiras de recrutamento, tendo um potencial de
alcance e proximidade das vítimas ainda maior.
Em face de tudo o que foi colocado, e fazendo um resgate daquilo que foi pretendido
na metodologia de pesquisa, em um primeiro momento, tínhamos como delimitadores
temporais de coleta de dados, os anos de 2016 a 2022, porém, no momento de seleção dos
mesmos, foi observado que seria insuficiente à construção nos limitarmos a materiais
produzidos neste período, o que comprometeria o alcance dos objetivos firmados, dado que
autoras(es) de referência no tema elaboraram materiais importantes e que se permanecem
atuais, sobretudo, no início dos anos 2000, um momento favorável às políticas sociais no
país, de adesão do Protocolo Adicional de Palermo (2004) e da Política Nacional de
50
matando, silenciando, em uma teia complexa de particularidades, que tem como raiz principal
as desigualdades de diferentes naturezas.
Outra questão, ainda na esfera particular, foi a limitação de tempo de formulação do
trabalho. Com a eclosão da pandemia por COVID-19, o mundo foi solapado, e as
Universidades públicas federais também refletiram essa conjuntura. A adoção do Ensino
Remoto Emergencial aligeirou a aprendizagem ao colocar três períodos letivos em um ano,
assim reduzindo o tempo dos semestres e, consequentemente, da elaboração dos Trabalhos de
Conclusão de Curso.
Considerando o levantamento feito, e imaginando mais tempo de elaboração de
estudos futuros, nota-se a necessidade de aprofundamento quanto ao gerenciamento da
problemática no contexto contraditório do governo Bolsonaro; bem como deve ser
aprofundado o foco nas vítimas, articulando a questão a rede de proteção gestada pelo
Sistema de Garantia de Direitos de crianças e adolescentes; e outra sugestão é a análise da
divulgação do tema nas mídias.
Apesar disso – fomentar o retorno de produções científicas –, como abordado ao
longo deste material, é importante, também, um fortalecimento das estratégias de prevenção e
proteção. O foco nas vítimas e potenciais aliciados, deve ser priorizado, nesse sentido o papel
das escolas é fundamental e estratégico, por serem espaços de acompanhamento mais
próximo e contínuo de crianças e adolescentes, sendo assim necessário no processo de
apropriação de conhecimentos que visem desenvolver a autoproteção dos mesmos, como
educação a sexual, além de exercerem seu papel de instituições que podem acionar a rede de
proteção em casos de suspeita ou confirmação de incidência de violências, dentre elas a
sexual.
O fomento de ações no Dia Internacional Contra a Exploração Sexual e o Tráfico de
Mulheres e Crianças – dia 23 de setembro – nesses espaços e em entidades públicas, também
deve ser estimulado, como estratégia de integração das redes socioassistencial, de saúde,
educação e jurídica, objetivando apropriação e atualização acerca do tema, além de uma
maior eficácia frente às quadrilhas do tráfico humano, conexão esta que deve ser estendida à
sociedade civil, a qual deve se apropriar da questão e ser estimulada a denunciar episódios de
violações de direitos, sobretudo aqueles contra crianças e adolescentes, dado que estes
constituem um público prioritário, sob responsabilidade do Estado, da família e da sociedade
na totalidade. As denúncias são outro tópico que deve ser encorajado, posto que rompem
ciclos e trazem visibilidade ao tema e voz às vítimas.
52
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