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IUPERJ

INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E CIÊNCIA
POLÍTICA

DIREITOS INDÍGENAS NUM CONTEXTO INTERÉTNICO:


QUANDO A DEMOCRACIA IMPORTA

ENEIDA CORRÊA DE ASSIS


RIO DE JANEIRO
2006
ENEIDA CORRÊA DE ASSIS

DIREITOS INDÍGENAS NUM CONTEXTO INTERÉTNICO:


QUANDO A DEMOCRACIA IMPORTA

Tese submetida ao corpo docente do


Programa de Pós Graduação em Ciência
Política do Instituto Universitário de Pesquisa
do Rio de Janeiro - IUPERJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau
de Doutora em Ciência Política.
Rio de Janeiro
2006

A 193 f. Assis, Eneida Corrêa de.


Direitos Indígenas num Contexto Interétnico: quando a
democracia importa/ Eneida Correa de Assis. – Rio de
Janeiro, RJ: [s.n], 2006.

Orientador: Marcelo Jasmin.


Tese (Doutorado) – Instituto Universitário do Rio de
Janeiro - IUPERJ

1. Ciência Política. 2. Antropologia. 3. Direito. 4.


Democracia5. Indígenas.6. Cidadania. I. Instituto
Universitário do Rio de Janeiro. II. Título.
ENEIDA CORRÊA DE ASSIS

DIREITOS INDÍGENAS NUM CONTEXTO INTERÉTNICO:


QUANDO A DEMOCRACIA IMPORTA

Tese submetida ao Corpo Docente do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de


Janeiro-IUPERJ e da Universidade Federal do Pará-UFPA, para a obtenção do grau
de Doutora em Ciência Política.

Data de aprovação: _____/______/_____

Banca Examinadora:

___________________________________
Prof. Dr. Marcelo Jasmin - Orientador
Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro

___________________________________
Prof. Dr. César Guimarães - Examinador
Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro

___________________________________
Prof. Dr. Renato Lessa - Examinador
Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro

___________________________________
Prof.ª Dr.ª Ligia Terezinha Lopes Simonian
Universidade Federal do Pará

___________________________________
Prof.ª Dr.ª Wilma Marques Leitão
Universidade Federal do Pará

___________________________________
Prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo
Universidade Federal do Pará

Rio de Janeiro
2006
Para minha mãe, Dona Regina, porque sei que
ficaria feliz.
Para Expedito Arnaud, que me disse: por que
não vai para o Oiapoque e prossegue meu
trabalho?
AGRADECIMENTOS

A vida é feita de encontros e desencontros, disse um poeta. No final dos anos


90 do século XX encontrei o professor Alex Fiúza, atual reitor da UFPA, que me fez
o convite para participar do Programa de Doutorado Interinstitucional em Ciência
Política. Agradeci e viajei ao Oiapoque para continuar meu trabalho junto aos
Palikúr, num momento em que a fronteira com a Guiana Francesa atravessava por
mudanças a olhos vistos, afetando os moradores da cidade e os grupos indígenas
locais. É, com alegria, que apresento o resultado do convite feito alguns anos atrás
sob a forma de uma tese de doutorado, que aborda acontecimentos nos quais os
indígenas participaram como atores principais e não apenas como coadjuvantes.
Ao longo do curso e no período da confecção da tese, tive a felicidade de
contar com o apoio dos colegas de curso, dos chefes e colegas do Departamento de
Antropologia, amigos e de meus filhos. À Universidade Federal do Pará/UFPA, esta
instituição que me abriga há tantos anos, e ao professor Alex Fiúza, atual reitor
desta Universidade, pelo convite que veio em boa hora, posso dizer obrigada, ou
melhor, kibeine awaig auna.
Ao professor Marcelo Jasmim meu orientador, pelas palavras de incentivo ao
ler meus escritos e paciência quando desapareci durante alguns meses, enquanto
participante deste rito de separação tentava afinar os instrumentos de diferentes
literaturas. Um agradecimento especial ao professor Renato Lessa e seu advice –
“siga os caminhos que já conhece”. Não sei se consegui acertar o passo de seu
aconselhamento.
Agradeço aos demais professores que ministraram cursos sob temas que
direta ou indiretamente, foram úteis tanto para este estudo quanto para minha
formação em Ciência Política – Renato Boschi, Eli Diniz, Wanderley Guilherme dos
Santos, Fabiano Santos, Jairo Nicolau, Regina Soares, Otávio Amorim e César
Guimarães.
Um agradecimento especial aos técnicos e funcionários da FUNAI/Brasília,
pelo apoio recebido: minhas orientadoras, bibliotecárias Cleide Albuquerque e Lina
Santos Rocha; os organizadores do Curso de Indigenismo, historiador André
Ramos, antropólogos Marlinda Patrício e Noraldino Crunivel, ambientalistas
Schiavinni e Regina Silva, além de Maria Helena Fialho e Luís Otávio Cunha, do
Departamento de Educação. Um agradecimento especial a Marcos Terena, da
Divisão de Assuntos Indígenas, pelas informações prestadas.
Na FUNAI/Belém, Edna Miranda, Antônio Abraão, Rui Ferraz, Juscelino
Bessa e Francisco Brasil, companheiros de campo em diferentes momentos, bem
como, o administrador Frederico Oliveira pelos relatos sobre viver a FUNAI. Em
Altamira, administrador Benigno Pessoa Marques, indigenista Nercy Caetano
Ventura, professora Geny Umbuzeiro, pelas informações e documentos sobre a
região. Em Oiapoque o apoio logístico propiciado pelos administradores Domingos
Santa Rosa e Estela Karipúna.
À professora Maria Olinda Pimentel, pela leitura e crítica metodológica, aos
advogados Murilo Bitar, Lorena Fabeni pelas chamadas típicas dos operadores do
Direito; às amigas Simoni Valadares e Renate Hartmann pelo envio de livros e textos
do exterior; a Louis Forline, colega de estudos e campo pelas discussões sobre o
tema da tese e Rosiane Gonçalves por textos que foram úteis; a Kleber Gesteira
Matos pelas informações sobre a política de educação indígena. Agradeço aos
colegas de doutorado que trocaram idéias em diferentes momentos: Carlos Souza,
cedendo obras de seu acervo, Roberto Corrêa, Edir Veiga pelo “caminho das
cobras”, Luzia Álvares, pelo grupo de estudos, Elizabeth Maciel, Graça Campagnolo
e Nírvia Ravena.
Agradeço os meus alunos que foram os meus pés quando me acidentei, indo
às bibliotecas e xérox: Gérbson Cordeiro Nascimento, Alexandre Dias, Weleda
Freitas e Edileusa Piletti. Parte do trabalho de campo foi possível pelo convite para a
realização de cursos patrocinados pelo Núcleo de Educação Indígena do Amapá,
feito por Eclemilda Neves e Iraguacema Maciel; Secretaria de Educação de Altamira
através de Ana Storch e Silvia Cristina Mendes; Conselho Indigenista
Missionário/CIMI, nas pessoas de padre Nello Ruffaldi e Ir. Rebecca Spires. Um
agradecimento especial a Cacilda Barreto pela hospedagem durante os meses que
fiquei em Brasília e a ajuda no desvendamento dos corredores da Câmara e do
Senado Federal. Obrigada também a Elza Xipaia, Luís Xipaia, Joaquim Kuruaia,
Emílio Kabá Munduruku, Puíra Tembé, Kelé Tembé e Suzana Santos Karipúna, por
dividirem comigo informações e preocupações que ajudaram a construir este
trabalho. Agradeço aos meus filhos, Alethéa, Riis Rhavia, Sergio Ricardo, e a Dona
Dulce Cordovil, que se responsabilizaram pelos assuntos domésticos para que eu
pudesse enfrentar este desafio. Ao Adão Bachega pelo incentivo e CDs que me
ajudaram a varar as madrugadas. Agradecimentos também a José Miranda pelo
suporte nas questões de informática. Para terminar, agradeço a Deus e São
Francisco de Assis, meu apoio espiritual ao longo de todos os caminhos percorridos.
Os povos indígenas sabem que é preciso
superar os intermediários, oficiais e não
oficiais e ter acesso àquilo que nos cerca
e que nos é de direito
(Marcos Terena, 2003).
RESUMO

A tese trata das relações entre índios e o Estado nacional no período 1988-2005,
caracterizado pela promulgação da Constituição de 1988, que reconhece o Estado
brasileiro como pluriétnico, e pluricultural. Nela são reconhecidos os direitos
indígenas que compreendem os direitos territoriais, culturais e a auto-organização.
No dizer dos operadores do direito, estes “novos direitos” em favor da diversidade
étnico-cultural e auto-organização, em outros termos, do direito à diferença, se
contrapõem ao modelo integracionista,. O avanço desta legislação reflete a luta do
movimento indígena, aqui considerado como um novo ator político, que mediante
uma política caracterizada por articulações transnacionais passa a criar um espaço
étnico nas arenas políticas, podendo representar oportunidades de mudanças no
comportamento político, nas instituições e na própria política indigenista. A
democracia participativa, como modelo de luta contra a exclusão social, ampliação
do espaço político e cidadania, bem como, as linhas de reflexão que associam
reconhecimento à identidade social e coletiva, foram adotadas como condutoras da
análise proposta. A educação escolar indígena, como exemplo da busca de
equidade social, e terras indígenas como demarcadora dos direitos territoriais, e,
sobretudo da identidade como povo, foram escolhidas como temas de reflexão.

Palavras-chave:direitos indígenas, democracia participativa, movimento indígena,


política indígena, política indigenista, educação indígena, terras indígenas.
ABSTRACT

This dissertation deals with the relations between indigenous peoples and the
Brazilian State, covering the time period of 1988-2005, a period characterized by the
promulgation of this country´s 1988 constitution, which the Brazilian State as
multiethnic and multicultural. This new constitution acknowledges indigenous rights in
terms of land rights, cultural integrity, and self determination. Within the scope of
lawmaking and execution. these “new rights” are juxtaposed to Brazil´s former
integrationist model, favoring ethnic-cultural diversity and self-determination. As
such, these rights are configured in the spirit of acknowledging ethnic differentiation.
Advances made by this legislation reflect the struggle of Brazil´s indigenous
movement, whereby indigenous peoples are reckoned as new political players in the
realm of transnational articulations in policy formulation. In this realm, room is
provided for ethnic groups in the political arena, thus making it possible for changes
in institutional political behavior and indigenist policy. The guiding principles of this
dissertation embrace participatory democracy as a model against social exclusion as
well as the expansion of citizenship and political articulation, not to mention the
reflexive analytical framework that ties ethnic recognition to social and collective
identity. The principal themes dealt with in this framework are indigenous education,
as an example of social equality, and indigenous land rights, as a marker of territorial
rights, but above all, as an identity marker of a people.

Keywords: indigenous right, participatory democracy, indigenous movement, Indian


policy, indigenist policy, indigenous education, Indian land.
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Ações e Parcerias.............................................................................. 148


Quadro 2 - Alunos Indígenas 2004 e Demandas para 2005................................ 149
Quadro 3 - Nível de Escolaridade Diferenciada dos Professores/2004............... 149
Quadro 4 - Demanda para o Ensino Superior – Dados 2005.............................. 150
Quadro 5 - Desenvolvimento Histórico do Tratamento Constitucional das
Terras Indígenas.................................................................................................. 158
Quadro 6 – Terras indígenas e suas titularidades............................................... 159
Quadro 7 – Situação Jurídica das Terras Indígenas............................................ 164
Quadro 8 – Movimentação Orçamentária Brasileira/2003-2005.......................... 167
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Síntese do Censo da Educação Indígena no Brasil – 1990............... 138


Gráfico 2 - Número de estudantes por modalidade/nível de ensino em 2004 no
Brasil.................................................................................................................... 139
Gráfico 3 - Número de Alunos por Cor na UFPA – 2005..................................... 151
Gráfico 4 – Orçamento Fixado e Orçamento Executado/Total de Recursos
para Terras Indígenas no Brasil (1995 a 1998).................................................... 166
LISTA DE FOTOGRAFIAS

Foto 1 - Manifestações do Abril Indígena, 2005 – Brasília (CIMI)..................... 152


LISTA DE SIGLAS

ABA – Associação Brasileira de Antropologia


ANC – Assembléia Nacional Constituinte
AP – Amapá
APOINME – Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas
Gerais e Espírito Santo
CBE – Conselho Nacional de Educação
CEEI – Comissão de Educação Escolar Indígena
CF – Constituição da República Federativa do Brasil
CGAEI – Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
CNEEI – Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena
COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPRM – Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais
AER – Administrações Executivas Regionais
FIDA – Fundo para o Desenvolvimento da Agricultura
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
GTZ – Agência de Cooperação Técnica Alemã
IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INESC – Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos
IUPERJ – Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro
ISA – Instituto Socioambiental
ITERPA – Instituto de Terras do Pará
LACED – Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento
MINTER – Ministério do Interior
MPEG – Museu Paraense Emílio Goeldi
MPF – Ministério Público Federal
NEI – Núcleos de Educação Indígena
NMS – Novos Movimentos Sociais
PA – Pará
PDPI – Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas
PEC – Proposta de Emenda Constitucional
PICS – Projetos Integrados de Colonização
PIN – Programa de Integração Nacional
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
PNE – Plano Nacional de Educação
PPA – Plano Plurianual
PRP – Partido Republicano Paulista
RJU – Regime Jurídico Único
RR – Roraima
SBI –Sociedade Brasileira de Indigenistas
SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SFE – Secretaria de Ensino Fundamental
SISCA – Sistema de Controle Acadêmico
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais
UFPA – Universidade Federal do Pará
UNI e UNIND – União das Nações Indígenas
SUMÁRIO

Império................................................................................................................................174
República............................................................................................................................175
República............................................................................................................................175
Em identificação.............................................................................................................181
Total Geral......................................................................................................................181

1 INTRODUÇÃO
A construção de uma história das relações entre as populações indígenas e o
Estado brasileiro, no período 1988-2005, buscou entender a presença indígena na
democracia brasileira recente, quando se instituiu uma redefinição das relações
entre Estado e sociedade, com ampliação da prática e da noção de cidadania,
mediante mecanismos institucionais operacionalizados pela/através da inserção da
sociedade civil (LOPES, 2000). Essa presença se fez através do movimento
indígena baseado na identidade étnica, na defesa dos direitos indígenas,
caracterizado pela articulação - nacional e internacional - que criou corpo a partir dos
anos 1970. Uma articulação à semelhança do que estava ocorrendo com outros
povos indígenas e demais minorias étnicas e sociais na América Latina, para fazer
frente às pressões externas, embutindo mudanças promovidas pelo
desenvolvimento, transformando sociedades que, muitas vezes, até então tinham se
mantido relativamente isoladas ou sem nenhum contato com o mundo exterior.
No Brasil, a realização de Assembléias Indígenas com apoio da Igreja
Católica foi o foro principal de discussão dos desafios que afligiam os indígenas tais
como: a exigência de demarcação de suas terras, em razão de invasões; a denúncia
ao modelo de política adotado pelo Estado brasileiro; o debate de temas que os
atingiam diretamente, como a autonomia e autodeterminação (VALLEJO LEAL,
2003).
As conquistas do movimento indígena se refletiram sobre a instituição
indigenista e na política aplicada aos índios. O movimento indígena se revelou para
o Estado brasileiro como um novo ator político (BRYSK, 2000). No cômputo da
história entre o Estado Nacional e as populações indígenas, estas aparecem
obstruindo o caminho da civilização, do progresso, e seus territórios se encontram
nas rotas do desenvolvimento. A Carta Magna de 1988 inaugurou um novo status
indígena, o de cidadão, ao reconhecer a diversidade das organizações sociais e o
direito originário sobre as terras onde vivem. Teve início um novo momento da
história do Brasil Indígena.
O modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil, após o golpe militar de
1964, favoreceu grandes empresas mineradoras e projetos agrários de ampla
envergadura, atingindo populações indígenas e rurais, agravando as condições de
pobreza destes últimos. Quanto aos índios, a reação ao modelo político econômico
vigente pode ser observada no relato de Maybury-Lewis:
Entrementes, caravanas de chefes Xavante tinham-se tornado uma cena
comum em Brasília. Eles eram ajudados por alguns funcionários da Funai
genuinamente dedicados à causa indígena e aprenderam, enquanto o Brasil
caminhava para a abertura política, a utilidade de levar seu problema aos
deputados da oposição e aos canais de televisão, que gostavam de dar
cobertura a índios que enfrentavam os militares. Nesse processo, a Funai
foi autorizada pelo governo a demarcar e garantir as terras Xavante e a
patrocinar um sofisticado projeto de plantação de arroz entre eles, de modo
que os índios pudessem compartilhar com seus vizinhos as benesses
agrícolas que tinham caído sobre sua região (MAYBURY-LEWIS,
1990, p. 13).

A busca de um benefício coletivo representado pela conquista e defesa dos


direitos se fez a partir da iniciativa indígena nos anos 1980, com a formação de duas
organizações indígenas com a mesma designação e siglas diferentes, União das
Nações Indígenas – UNI e UNIND1. Elas foram consideradas pelos estudiosos como
tentativas de construção de um movimento pan-indígena brasileiro, voltadas ao
debate dos temas universais e denúncias em nível internacional das ameaças aos
direitos indígenas, amparados por acordos internacionais sobre Direitos Humanos2.
A proposta de uma organização de caráter pan-indigena não surtiu o efeito
esperado por seus idealizadores. À medida que o movimento atingia grupos
indígenas com diferentes níveis de contato com o Estado e necessidades
particulares, mudava também o enfoque central das Organizações que se
formavam.
Para Olson (1990) as organizações ou associações existem para promover
os interesses de seus membros, portanto, quando:

[...] um certo número de indivíduos tem um interesse comum ou coletivo –


quando elas compartilham um simples propósito ou objetivo – a ação
individual independente [...] ou não terá condições de promover esse
interesse comum de forma alguma, ou não será capaz de promovê-lo
adequadamente. As organizações podem, portanto, desempenhar uma
função importante quando há interesse puramente pessoais e individuais,
sua função e característica básica é sua faculdade de promover interesses
comuns de grupos de indivíduos (OLSON, 1999, p. 19).

1
Em 1980 foram criadas em Campo Grande/MS a União das Nações Indígenas/UNI e em Brasília a
UNIND, com a mesma designação, com historicidades diferentes, e objetivos similares. Trato deste
assunto no capítulo III. O relato da formação dessas organizações é feito por Ortolan Matos, 1997, p.
160-174.
2
Os indígenas brasileiros participaram do 4º Tribunal de Fundação pela Paz Bertrand Russel em
1980 em Roterdam, onde foram tratados casos de genocídio envolvendo os Nambiquaras e
Yanomami além de outros casos abrangendo índios do Alto Rio Negro. As acusações se baseavam
na maneira como os Grandes Projetos estavam sendo implantados e os impactos deles decorrentes.
Ver Vallejo Real, 2003, p. 192.
Assim, muitas associações passaram a se definir por região, como é o caso
da Associação dos Povos Indígenas de Oiapoque – APIO; por interesses
específicos, como as organizações de professores indígenas, mulheres indígenas ou
pelo local de moradia, como as associações dos Tembé-Tenetehara do Alto Rio
Guamá (Pará). O interesse em manter uma articulação política de caráter pan-
étnico, como era proposto pelas duas organizações (UNI e UNIND), não combinava
com a tendência de caráter regional que se tornava mais expressiva. A
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB é um
exemplo de organização que conseguiu expressão nacional e internacional,
funcionando também como um organismo de reconhecimento das Organizações
Indígenas da Amazônia.
As organizações indígenas têm por base a identidade étnica e caráter
associativo similar ao modelo de organização tribal, onde a assembléia é a instância
de discussão e deliberação dos negócios internos e externos do grupo indígena.
Individualmente ou através da COIAB, as diversas organizações têm possibilidades
de se articular com atores internacionais que podem favorecer ou inspirar a
produção de políticas de desenvolvimento para as comunidades indígenas e,
consequentemente, influir na modernização das políticas indigenistas produzidas
pelo Estado brasileiro3. A condição de organização indígena e o apoio de parceiros
nacionais e internacionais lhes permitem manifestar-se junto às arenas de decisão,
apesar do sucesso nem sempre ser garantido.
As novas diretrizes políticas estabelecidas pelo Estado Brasileiro, após 1988,
implicaram em transformações cujos reflexos se tornaram perceptíveis nas
instituições estatais, no interior das aldeias e no conjunto global das relações dos
índios com segmentos diversos da sociedade nacional e internacional.
As ações indigenistas, antes sob a responsabilidade da Fundação Nacional
do Índio (FUNAI), sofreram grandes alterações após 4 de fevereiro de 1991, em
conseqüência de decretos estabelecidos no governo Collor. Até aquele momento,
cabia a FUNAI gerir a tutela, mediar as relações entre povos indígenas e a
sociedade nacional, ação, aliás, inglória para o órgão. Após essa data, a instituição
teve seu perfil descaracterizado, favorecendo crises que fragilizaram o órgão4.

3
Alguns desses organismos são: o Banco Mundial, Fundo para o Desenvolvimento da Agricultura
(FIDA), a Agência de Cooperação Técnica Alemã (GTZ).
4
Em 04/02/1991 foram promulgados os Decretos 22; 23; 24; 25; 26 que estabeleceram novas
diretrizes para a política indigenista, repassando para diversos Ministérios ações antes desenvolvidas
Sob o ponto de vista administrativo, a gerência das terras indígenas
permaneceu sob a égide do órgão indigenista, enquanto as ações relativas à
educação e saúde passaram para os Ministérios da Educação e Saúde.
Pensar o “campo indigenista” como se expressa o antropólogo Antônio Carlos
de Sousa Lima (1995), é considerar que as relações entre o Estado nacional e os
índios, se constroem com a participação de vários atores que estiveram
historicamente ligados à questão e aqueles que estavam fora dessa relação como
referido anteriormente5. É considerar a dinâmica e a estrutura da instituição
indigenista, aquelas que passaram a ter nos indígenas uma nova clientela, como as
antigas entidades de apoio ao índio, que se transformaram em ONGs, do Conselho
Indigenista Missionário/CIMI, do Ministério Público Federal (MPF) e, mais
recentemente, as Universidades. É refletir sobre o papel dos organismos federais e
estaduais que tergiversam com a questão indígena, como o Instituto Brasileiro de
Meio Ambiente (IBAMA), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais (CPRM) e Instituto de
Terras do Pará (ITERPA). Mas, principalmente, as ações do movimento indígena,
que mediante uma política indígena pautada em alianças locais, regionais e
internacionais, se inscreveram em cenários para além dos conceitos de Estado e
Nação, passando a agir através de redes de apoio pan-indígenas.
A problemática investigada neste trabalho visou compreender a complexidade
da questão indígena no Brasil, a partir das relações entre o movimento indígena e
sua luta em defesa dos seus direitos e o Estado brasileiro. Do ângulo do Estado, os
fatores que contribuem para a inexistência de um novo instrumento de regulação
dessas relações, da redefinição do papel do órgão indigenista diante da
fragmentação das ações indigenistas – e convém sublinhar, quanto a isso, que o
Estatuto das Sociedades Indígenas aguarda aprovação há mais de 10 anos. Do
ponto de vista do movimento indígena, o processo de ação apoiado no diálogo e
parcerias com atores estatais e não estatais, visando a defesa e ampliação dos
direitos e a busca de reconhecimento étnico de grupos considerados extintos como
povo, e/ou famílias de diferentes etnias nas grandes e pequenas cidades em várias
regiões do país, levou seus administradores a considerar estes segmentos no novo
cenário da democracia brasileira.
pela FUNAI.
5
Souza Lima, Antonio Carlos de. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação de
Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.
Algumas perguntas nortearam este trabalho: Como a questão indígena se
apresenta na pauta política do Estado Brasileiro? A ação do movimento indígena na
vida política nacional produziu alterações no diálogo entre índios e o Estado? É
possível afinar as diferentes políticas para que possam se ajustar ao que é proposto
nos artigos 206, 210, 215 e em especial o 231 da Constituição Federal?6 Como está
se realizando a ação política do movimento indígena na produção de novas
demandas por reconhecimento? Essa ação tem sido decisiva para a produção de
políticas que atendam a agenda de interesses dos povos indígenas? Como se
apresenta a figura do “indígena cidadão”, diante das formulações jurídicas da tutela
e da proteção aos povos indígenas? Quais outros direitos devem ser buscados e
garantidos para que a “cidadania diferenciada” deixe de ser retórica para se tornar
realidade?
Estamos considerando que o caso indígena tem sido explicado por várias
razões: a) pelo baixo índice demográfico em relação à população brasileira, ou seja,
370 mil índios, cerca de 0,2 % da população brasileira em 2005 7; b) pela quase
inexistência de representatividade política nas arenas de decisão tanto a nível
nacional quanto regional, apesar da presença de vereadores e eleitores,
especialmente em cidades com significativa presença indígena8 c) pela divulgação
do consenso de que os índios não são produtores, porém assistidos, noção que
sustentou o modelo de desenvolvimento pós-64 implantado no Brasil, cujo conteúdo
ideológico desconsiderava a diversidade cultural das populações indígenas,
caboclas e negras, entendendo-as como culturas pobres e, portanto, sem prioridade
no processo de desenvolvimento. Nesse raciocínio, a ocupação tradicional das terras
indígenas foi vista como desperdício sendo mais produtivo direcionar para empresas
multinacionais e nacionais. Essa forma de tratamento contribuiu para a invisibilidade
desse segmento no conjunto das políticas públicas9; d) pela necessidade de
6
Art. 206: indica o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; Art. 210: assegura o uso das
línguas indígenas e processos próprios de aprendizagem; Art. 215: define como dever do Estado a
proteção às manifestações culturais; Art. 231: reconhece aos índios sua organização social e os
direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas.
7
BARIÉ, Cletus Gregor. Pueblos Indígenas y derechos constitucionales en América Latina: um
panorama.Bolívia: Instituto Indigenista Interamericano (III, México), Comision Nacional para el
Desarrollo de los Pueblos Indígenas (CDI, México) y Editorial Abya-Yala (Ecuador), 2004. CD-ROM.
8
As eleições de 2000 apresentaram o seguinte resultado: 350 índios pleitearam vagas; 13 foram
eleitos Prefeitos e 80 foram eleitos vereadores. Ver: Candidaturas Indígenas, Marcos Pereira Bonfim,
site:http://www.socioambiental.org.br
9
Violeta Loureiro ao analisar o Modelo de Integração da Amazônia aos mercados nacional e
internacional, admite que esse pressuposto foi determinante para que esses segmentos fossem
“obrigados a ceder o espaço em que moravam às populações pobres de outras regiões brasileiras, [..]
à agroindústria em expansão e destinada à exportação”. As populações indígenas por ocuparem
participação indígena no debate dos novos direitos para além dos direitos civis,
sociais e políticos decorrentes da organização da sociedade, fundamentais à
construção de uma nova sociabilidade, onde a diferença e a alteridade sejam
aspectos a considerar na elaboração de políticas; e) pela presença do discurso de
brasilidade e homogeneidade cultural que oculta crises e conflitos envolvendo
minorias étnicas e raciais.
O objetivo da tese foi abordar a participação do movimento indígena como
ator importante na construção e defesa dos direitos indígenas no período 1988-
2005, considerando elementos do cenário nacional contemporâneo como: a) os
ganhos obtidos na Constituição; b) as reformas institucionais estatais; c) a criação
de legislações específicas que incidem sobre vários aspectos da vida e da existência
destas populações; d) a repercussão da política indígena sobre a política indigenista,
fundamentais para a compreensão da inserção indígena no cenário atual da
democracia brasileira.
O trabalho preocupou-se em contribuir para o debate sobre o movimento
indígena como produtor de uma política indígena de caráter transnacional, que se
contrapõe ao modus das políticas indigenistas integradoras, homogeneizantes.
Tratou-se de discutir a política indígena como criadora de um “espaço étnico”, ou
seja, o espaço político que as etnias foram conquistando na arena política, podendo
representar uma oportunidade de mudança no comportamento político e nas
instituições.
Ao visualizar a política indígena contra a diferenciação identitária desigual e
como expressão que favorece a ampliação do projeto democrático do país,
argumentamos que, a presença de dispositivos legais que garantem os direitos
indígenas na Constituição Federal sugere a inclusão dessas populações no
processo de cidadania. Entretanto, as constantes ameaças de redução e/ou
supressão desses direitos indicam a existência de uma prática de exclusão que
aponta para um déficit de cidadania sustentada pelo modelo estrutural da sociedade
brasileira.

grandes extensões de terras, e atividades entendidas como sendo de baixa produtividade que “pouco
agregam ao conjunto da economia [..] porque não geram impostos” eram vistas como desperdício.
Ver LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Pressupostos do Modelo de Integração da Amazônia Brasileira
aos Mercados Nacional e Internacional em Vigência nas Últimas Décadas: a modernização às
avessas. In: Sociologia na Amazônia. Debates Teóricos e Experiências de Pesquisa. COSTA, Maria
José Jackson. (org). Ed. Universitária/UFPA. Belém, 2001.
Para atender a opção desse olhar sobre a política indígena, foi necessário
refletir sobre o transcurso histórico da política indigenista, compreendendo os
propósitos dessa política, o que favoreceu o entendimento do período analisado,
caracterizado pela busca dos povos indígenas por: reconhecimento das diferenças
étnicas, manutenção e garantia dos direitos territoriais, culturais e de auto-
organização, presentes na Constituição de 1988.
A noção de democracia participativa proposta por Boaventura dos Santos
(2003), entendida como um modelo que favorece que comunidades e grupos sociais
subalternos lutem contra a exclusão social e se mobilizem na aspiração de contratos
sociais menos excludentes e de democracias de mais alta intensidade, sugerindo
ser um caminho possível de discussão sobre uma política indígena que em sua
relação com o Estado brasileiro se proponha defender os direitos indígenas no
contexto da democracia brasileira. Essa alternativa é corroborada, de resto, por
autores que debatem o reconhecimento dos direitos de coletividades particulares
dentro de coletividades mais inclusivas em contextos democráticos liberais
(TAYLOR, 1997; RORTY, 1993), bem como, o entendimento do movimento
indígena, enquanto um movimento baseado na identidade, cujo propósito é mais do
que mobilizar ou inspirar a organização, mas, sobretudo, reescrever as relações de
poder (BRYSK, 2000).
A opção por uma abordagem interdisciplinar entre a Ciência Política, a
Antropologia e o Direito, possibilitou o tratamento do problema de várias
perspectivas, tendo em vista a necessidade do registro e da reflexão de um período
da história política brasileira, na qual os povos indígenas passaram a ter um papel
ativo e constituinte na democratização do país.
A terra, enquanto fator de produção, identificador de identidade e expressão
dos direitos territoriais indígenas, e a educação indígena como o instrumento que
lhes permite a inclusão em termos de eqüidade social, foram os pretextos escolhidos
para discutir o processo de conquista dos direitos indígenas na análise proposta.
A relevância da pesquisa está em registrar e refletir um período da história
política brasileira pela perspectiva dos direitos indígenas, em razão de um discurso
de brasilidade apoiado anteriormente numa suposta harmonia racial, e, mais
recentemente, no princípio da diferença e no reconhecimento do país como
pluriétnico. Mesmo assim, é possível observar contradições entre o discurso que
agrega e a prática que discrimina. Mediante a análise das influências recíprocas das
políticas indigenista e indígena é importante verificar como a democracia brasileira
se comporta em relação às populações indígenas, da mesma maneira, demonstrar
como os povos indígenas e diferentes atores institucionais têm lidado com essas
políticas.
Na construção do suporte teórico metodológico para esta tese, foi levado em
conta o trabalho desenvolvido junto às populações indígenas, fundamentais para a
construção de nossa prática profissional. Estes tiveram formatações que os definem
como técnicas, acadêmico-investigativas, mas ambos constituindo-se como
trabalhos de intervenção. Em nossa dissertação de mestrado em Antropologia Social
sobre educação indígena, “Escola Indígena: uma “frente ideológica”?”10,
apresentamos a escola como uma frente ideológica, por desempenhar o papel
político de agência civilizadora mediante a imposição da língua portuguesa e da
cultura nacional na fronteira Brasil/Guiana Francesa. Nela, registramos nossa
compreensão dos profissionais da docência nas comunidades indígenas, ao enfocar
a escola como um dos instrumentos da política de integração presente na conduta
do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), conduta que não passou por nenhuma
alteração mais substancial sob o comando da FUNAI. Quanto aos professores,
fossem estes funcionários da própria FUNAI, contratados da Secretaria de Educação
ou da Prefeitura, eram agentes do governo, desenvolvendo a educação segundo a
proposta de integração, leia-se civilização, e do ensino de acordo com o Manual do
Professor Rural.
A presença de um manual dessa natureza, como orientador para o modelo de
ensino a ser adotado pelo professor rural, por si só já expressava a invisibilidade dos
indígenas no sistema de ensino. Repleto de regras de boa educação, higiene,
horário e temas de aulas, deixava clara a intenção civilizadora e a negação da
diversidade das culturas e sociedades indígenas. Alguns resultados desse modelo
de ensino se expressavam no alto índice de repetência, na verificação de que ao
final de cinco anos o aluno oscilava entre o que chamavam à época de Primeiras
Séries “Atrasadas” e “Adiantadas”, sem conseguir aprender a ler e escrever. O
sentimento de frustração e derrota podia ser percebido por parte do professor e
descrença daqueles que se aventuravam ir à escola. Na maioria das vezes, o
professor continuava monolíngue, por não considerar importante o aprendizado da

10
ASSIS, Eneida Corrêa de. Escola Indígena: “uma frente ideológica?”. Dissertação de Mestrado em
Antropologia Social. Brasília: Universidade de Brasília – UNB, 1981
língua do grupo onde estava trabalhando, ou pela dificuldade em pronunciar certos
sons das línguas indígenas. O professor que por algum motivo se tornava
relativamente fluente na língua indígena, passava a ter laços de parentesco
simbólicos com algumas famílias ou com o grupo. Assim, por exemplo, uma
professora que ocupasse o seu tempo com as mulheres da aldeia treinando-as em
habilidades de grande valor interno como corte e costura, com ou sem máquina de
costura, crochê e tricô, ou o professor que revelasse qualidades de bom pescador,
caçador, ou abrisse uma roça com algum parceiro tribal, apresentando um bom
resultado, poderia obter algum sucesso no ensino. Com isso, poderia permanecer na
memória do grupo como alguém que se esforçara por aprender e ensinar
favorecendo melhores condições de acesso ao mundo exterior.
A participação em projetos de educação indígena se apresentou como
oportunidade de acompanhamento de tentativas de Formação de Magistério
Indígena por instituições como Universidade11 , Secretarias de Educação estaduais e
mais recentemente municipais. Observamos, in loco, as dificuldades dos candidatos
e das instituições para desenvolver estes projetos. Enquanto as instituições se
deparavam com a urgência em obter informações sobre as sociedades indígenas e
o modelo de educação a ser construído, os desafios dos candidatos repousavam na
apreensão do volume de informações com assuntos em sua maioria distante da
realidade das aldeias, na incorporação da linguagem escolar, inexistência de
literatura em suas línguas12 e necessidade de docentes com formação adequada.
A exigência de participação nas assembléias indígenas, a competência em
dialogar com assessores, confrontar-se com oponentes, representantes do Estado
eram desafios onde, a baixa escolaridade poderia ser um elemento de desvantagem
acrescido pelo desconhecimento de aspectos da cultura própria de certos nichos.
Nestas ocasiões a timidez se apresentava como estratégia enquanto os debates
eram processados e sintetizados. Ler, escrever, contar, compreender o particular e o
geral, e com isso possibilitar a comunicação, faria a diferença destes indígenas que
não podiam mais se restringir ao âmbito das aldeias, uma vez que estavam em

11
Entre 1991-1996 coordenei o Programa em Etnoeducação e o sub-projeto “Uma escola alternativa
para os Palikúr, município de Oiapoque/Amapá”.
12
Em alguns grupos a única literatura existente em suas línguas era a Bíblia traduzida pelos
missionários do antigo Summer Institute of Linguistics (SIL) atual Sociedade Lingüística Internacional,
material didático do Ensino Fundamental; livros e revistas publicados pelo CIMI abordando as
questões indígenas que suavizavam o caráter dramático da ausência de uma literatura indígena.
colisão com a sociedade global13. A formação de associações onde pudessem atuar
de maneira organizada e o ganho de espaço político eram os remédios apontados
por eles durante a realização das assembléias indígenas. As instituições, por outro
lado, se defrontavam com alguns desafios: a burocracia interna que dificultava a
criação de núcleos ou setores de educação indígena, em especial nas Secretarias
de Educação, falta de pessoal especializado, pesquisa em educação indígena
insuficiente14 e medidas políticas que traduzissem o interesse político em por em
prática a legislação existente. Enfim, um quadro que revelava a insuficiência de
poder por parte dos índios para pressionar os governos a adotar medidas de solução
e encaminhamento da educação indígena.
A elaboração de Relatórios de Identificação e Delimitação de Terras
Indígenas, cujos estudos realizados objetivam caracterizar e fundamentar a terra
como tradicionalmente ocupada pelo grupo indígena, conforme os preceitos
constitucionais presentes no Artigo 231 § 1º15 , chamaram atenção para a
importância estratégica da terra para os povos indígenas, sobre o que é ser índio
para a sociedade onde os diferentes atores, índios, agentes institucionais e outros
atores sociais se defrontam, e a exigência feita aos indígenas - provarem que são
índios16. No momento em que uma terra tem que ser definida como tradicionalmente
ocupada, a “indianidade” do grupo estudado é posta em discussão, à luz da noção
presente no critério de definição de “terras habitadas em caráter permanente”. Se a
Terra Indígena que está sendo identificada é ocupada por uma população que se
diferencia a olhos vistos dos chamados “civilizados”, a argumentação sobre a
“indianidade” do grupo pode tomar um rumo até certo ponto tranqüilo.

13
Iris Young, ao propor o conceito de democracia comunicativa, discute que diferenças sociais e
culturais impedem que as pessoas se tornem interlocutores em pé de igualdade em razão da
dependência econômica e da dominação política. A intenção da autora é demonstrar as limitações da
democracia deliberativa cujo ideal tende a supor que, quando eliminada a influência do poder político
e econômico, a forma de falar e compreender será idêntica para todos, o que só ocorre se for
eliminada as diferenças culturais e de posição social. Ver: YOUNG, Iris Marion. Comunicação e o
outro: além da democracia deliberativa In: SOUZA, Jessé (org) Democracia Hoje. Novos desafios
para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Ed. UNB, 2001 P.370.
14
A produção sobre processos de aprendizagem em grupos indígenas ainda está por ser feita, talvez
por exigir uma abordagem interdisciplinar. Quanto aos projetos de Formação de Professores
Indígenas, existe uma literatura razoável
15
A expressão terra tradicionalmente ocupada é um conceito jurídico cuja definição consta do
parágrafo 1º do Art. 231da CF/88, e que deve ser considerada “segundo seus usos e costumes”.
16
Coordenei dois projetos de Identificação e Delimitação de Terra Indígena: Em 1996 o GT
Mêkrãngnoti do Bau (Kayapó) com objetivo de rever os limites da área que estavam sendo
contestados por duas Mineradoras com base no Decreto No. 1775/96. Em 1998, o Gt-Amanayé que
resultou na identificação de duas Terras Indígenas: Saraua e Barreirinha. Foram produzidos 03
Relatórios relativos aos trabalhos e entregues a FUNAI.
A situação torna-se mais crítica, se o grupo que ocupa a terra que está sendo
identificada e delimitada, se inclui em categorias definidas como índio-caboclos,
índios ribeirinhos ou mais recentemente “ressurgidos”17. Para esses, os termos
“mistura”, “índios misturados” que tentam sintetizar o resultado de inúmeras
compulsões advindas do contato com a civilização, tem sido uma ferramenta
importante no argumento para defesa dos direitos indígenas a terra e aos demais
benefícios garantidos em lei18. Em qualquer das situações acima indicadas pode
haver revezes pela ação contestatória com base no Decreto 1775/1996, art. 2 º § 819.
A participação dos indígenas no processo de identificação, também um ganho
constitucional, tem sido fundamental, não somente pela indicação do que estão
pleiteando, mas principalmente pelo conhecimento a cerca de tudo que envolve
aquela terra.
Durante o percurso dos limites das terras a serem identificada, os indígenas
que serviam de guias iam desfiando as histórias de cada ponto geográfico
importante, pois estavam ligados a algum acontecimento fosse o nascimento de uma
criança, o lugar onde haviam visto alguma onça, ou morto algum branco quando
ainda eram “brabos” como alguns disseram. Essa geografia nativa era recheada de
ensinamentos sobre o uso de alguma planta, árvore, fruto ou um inseto, mas era
também um desafio para o trabalho de perícia antropológica definir os limites de um
território ou atestar que um determinado agrupamento humano é indígena tendo,
portanto, direito a terra. Os indígenas que acompanham o antropólogo também têm
consciência de sua responsabilidade, eles devem conhecer seu território, sua
história, seus personagens, expondo através de sua narrativa os elementos que
comprovam esse conhecimento mediante informações que se juntarão às demais
provas necessárias à construção do argumento comprobatório sobre aquela terra.

17
Termos que definem indígenas que vivem fora das aldeias ou já nasceram desaldeados.
18
A idéia de nações que congregam muitas “raças” e múltiplas “culturas”, ao contrário do modelo
universalista e assimilacionista da Revolução Francesa, fixa-se como uma alternativa política
democrática para parcelas crescentes das elites mundiais. Ver: GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo.
Nacionalidade e novas identidades raciais no Brasil. In: SOUZA, Jessé. Democracia Hoje: :novos
desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001 p.
393.
19
O Decreto Nº 1775/1996, art.2 § 8, estabelece que: desde o início do procedimento demarcatório
até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior e demais interessados
manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as
provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de
testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios,
totais ou parciais, do relatório que trata o parágrafo anterior.
Os relatórios ambientais em terras indígenas que subsidiam os EIA-RIMA,
têm sido para os antropólogos que neles trabalham sempre uma experiência que
pode envolver em alguns momentos confronto, seja com as empresas responsáveis
pelo empreendimento, seja com outros atores interessados20. O decreto
88.351/1983, art. 18, parágrafo 1, incumbiu o Conselho Nacional do Meio Ambiente -
CONAMA, de fixar critérios básicos segundo os quais são exigidos estudos de
impacto ambiental para fins de licenciamento de atividades. O uso dos recursos
naturais em terras indígenas tem sido uma experiência muito difícil para os povos
que nelas habitam. Por serem empreendimentos que envolvem interesses múltiplos,
as externalidades resultantes são suavizadas pelo discurso do progresso, do
desenvolvimento ou da criação de oportunidades de emprego se tornando tão
veementes que, é possível esquecer a relação custo x benefício, e indagar se a
contabilidade dos prejuízos supera a dos lucros21.
No que se refere aos índios, pode haver por parte dos responsáveis pelo
empreendimento atitudes de negação de sua existência, que se reflete na demora
em consultá-los, na construção de argumentos que alegam o baixo índice
demográfico que apresentam ou que a existência de aldeamentos pode significar
embaraços aos planos de desenvolvimento. Da parte dos indígenas, expressões de
desapontamento, em relação à eficácia das leis, incerteza em relação ao futuro,
traduzem o efeito que mudanças drásticas podem provocar em uma população
atingida. Da mesma maneira, as cisões internas decorrentes do confronto de
interesses de grupos de famílias ou de indivíduos durante o processo de estudos,
podem ameaçar a unidade em torno da defesa do território e de seus direitos.
O acompanhamento do processo de organização de grupos indígenas pode
ser uma excelente oportunidade de entendimento das dificuldades enfrentadas e das
estratégias empregadas por eles, quando o sistema de vida aldeã com seu
procedimento e lógica, sofre interferências das ações e valores da sociedade
nacional. Os indígenas que conduzem o processo adotam algumas medidas para
que se tornem interlocutores em condições de compreender e se fazer

20
Coordenamos dois projetos de estudos: a) Estudos Indígenas para a CHE/Belo Monte
(FADESP/ELETRONORTE) em 2000-01; b) Os Amanayé e a Hidrovia do Rio Capim
(CEMA/AHIMOR) em 2003.
21
De acordo com a CF/88, cap. VIII, Dos Índios, art. 231, § 3º, “O aproveitamento dos recursos
hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras
indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
compreendidos como, por exemplo: domínio da gramática do momento político e
das instituições com as quais têm que dialogar; conjugação da argumentação
política com a construção da imagem; articulação com outros grupos indígenas,
atores solidários à causa indígena e órgãos do governo; pressão sobre dirigentes de
órgãos que têm relação com essas sociedades. Estes trabalhos realizados no
período de 1996-2002 geraram reflexões, algumas formalizadas e apresentadas em
forma de artigos, sobre a política indigenista, políticas indigenistas de saúde e
educação, apresentados em reuniões da ABA-Associação Brasileira de Antropologia
e na a 1ª Semana de Ciência Política, realizada na cidade de Belém, no ano de
2002.
Todas essas experiências despertaram a necessidade de entender melhor
suas causas e significados, passando a constituir-se no leque de questões
norteadoras deste estudo. Para efeito desta tese foi feita a revisão de bibliografia no
campo da Ciência Política, Antropologia e Direito, contatos com lideranças
indígenas, servidores da FUNAI, enfim, trabalhos que exigiram períodos de campo
em diferentes momentos. Além disso, foi realizado levantamento de informações nas
bibliotecas da FUNAI-Brasília, do Senado Federal e Câmara dos Deputados, MPEG-
Museu Paraense Emílio Goeldi, CIMI-Conselho Indigenista Missionário, e de
documentos capturados na internet pertencentes ao ISA-Instituto Socioambiental,
INESC-Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos e LACED-Laboratório de
Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento.
A biblioteca da FUNAI/Brasília conta com um rico acervo, que é também um
desafio para o pesquisador na escolha dos critérios para o manuseio da
documentação. Como ensina Clara Galvão (1983), dois critérios iniciais podem
ajudar a consulta dos documentos relativos à política indigenista que se caracteriza
pelo volume e complexidade: a periodização e a origem das fontes. Quanto à
periodização, um dos caminhos sugeridos é o manuseio da legislação Colonial,
legislação do Império e legislação da República. Um outro critério é a subdivisão do
material segundo a sua origem: legislação central, legislação regional e legislação
específica.
A legislação central originada do poder central consiste nas leis gerais. Por
exemplo: no período Colonial, as Ordenações Afonsinas, e no Império, a legislação
a partir de 1808. Segundo a autora, as legislações regionais e as específicas estão
dispersas em arquivos públicos, missões religiosas e diferentes órgãos dos
governos Federal e Municipal, aumentando as dificuldades de consulta pelo
pesquisador. Segundo Clara Galvão, uma pesquisa sobre o assunto demandaria a
formação de uma equipe de especialistas e um tempo mínimo de seis meses. 22 O
mesmo pode ser dito em relação à documentação atinente ao movimento indígena,
da qual o Conselho Indigenista Missionário – CIMI e o Instituto Sócioambiental – ISA
são os maiores depositários dessa memória.
Considerando que o recorte temporal escolhido foi de 1988-2005, com um
tempo disponível relativamente curto para o levantamento de informações e sem
verba para a pesquisa, a estratégia escolhida foi iniciar pela biblioteca da
FUNAI/Brasília, onde está concentrada grande parte da documentação produzida
pelo órgão, além de outras instituições de interesse para a pesquisa. A segunda
etapa do levantamento foi destinada à consulta das bibliotecas do CIMI e Museu
Goeldi em Belém.
A orientação das bibliotecárias da FUNAI/Brasília, Cleide Albuquerque e Lina
Santos Rocha foi providencial às fontes primárias: concentrar o levantamento na
documentação da política indigenista do período escolhido, onde se incluíam
relatórios de propostas de reformulação do órgão, correspondência interna de
autoria de técnicos, artigos que envolviam o debate sobre os direitos indígenas,
além de monografias (dissertações e teses).
Sobre movimento indígena, a revista O Mensageiro publicado pelo CIMI,
possibilitou a retrospectiva do movimento indígena brasileiro dos primórdios ao
período atual. Além da bibliografia utilizada para o estudo em foco, foram visitados
sites de ONGs e outras instituições de apoio à questão indígena. Analisar as
políticas indigenistas e indígenas é também rever uma história de discriminação, de
construção de invisibilidade, do processo de organização para o ganho de voz nas
arenas de disputa, fortalecimento da identidade étnica e, consequentemente, de
defesa e ampliação dos direitos indígenas.
Foram realizadas algumas entrevistas com um roteiro prévio, porém flexível,
permitindo agregar outras informações tanto no momento da entrevista, quanto no
desenrolar da pesquisa de campo. Entre abril e junho de 2003, enquanto realizava a
pesquisa na biblioteca da FUNAI-Brasília, tivemos a possibilidade de participar como
observadora de um curso de indigenismo e, dessa forma, conviver com funcionários

22
GALVÃO, Clara. Legislação Indígena. Ministério do Interior/Fundação Nacional do Índio/Centro de
Documentação do Museu do Índio. Rio de Janeiro: outubro, 1983.
de carreira, tanto índios quanto não índios, indígenas que estavam trabalhando por
contrato, indígenas que estavam realizando curso superior em Brasília (Direito),
lideranças do Parque Nacional do Xingu, que formam uma espécie de elite talvez
por ter acesso mais fácil aos corredores da FUNAI/Brasília. Poder conhecer o ponto
de vista desses atores sobre a instituição e sua política, os problemas que os índios
enfrentam quando migram para a cidade, as opiniões - tanto de índios quanto de
funcionários - sobre índios que se dizem lideranças e que na verdade podem não
ser, colocaram a representação como um tema que aflige a todos. Foi possível ouvir
também as opiniões de funcionários e contratados de secretarias de Educação,
professores não índios que trabalham nas escolas da região de Altamira (PA) e de
Oiapoque (AP), missionários e alguns índios representantes ou membros das
nascentes organizações de Altamira (PA) e Oiapoque (AP).
Esses contatos puderam acontecer em razão de convites para participar
como professora de Cursos de Formação de Professores em Altamira e Macapá, e
oficinas promovidas pelo CIMI e FUNASA23. Os cursos permitiram o contato com um
número razoável de professores que estavam trabalhando no ensino fundamental e
médio, alguns com quase dez anos de escola em áreas indígenas e outros com
apenas alguns meses de “mato” conforme a expressão que se tornou corrente
nesses cursos, com técnicos das secretarias e indígenas que estavam pleiteando
prosseguir seus estudos de nível superior, voltados ou não para o exercício do
magistério ou freqüentando cursos técnicos na área de saúde. Esses contatos não
se caracterizaram pela realização de uma entrevista formal em nenhum dos casos,
mas por uma conversa onde foi exposto o objetivo da pesquisa. Alguns desses
encontros puderam ser gravados, outros não, por razões particulares dos
interlocutores.
A pesquisa foi conduzida numa perspectiva interdisciplinar, dado o caráter do
tema, subsidiada na literatura da ciência política, antropologia e do direito, com
emprego do método etnográfico inspirado em Malinowisky (1984), que sugere ao
pesquisador estabelecer relações com as pessoas do lugar onde vai trabalhar,
selecionar informantes, transcrever textos. A dimensão etnográfica do trabalho de
campo exigiu a coleta de informações junto àqueles que viveram os processos de
luta em defesa de seus direitos, daqueles que estiveram ao lado dos povos

23
Essas atividades se realizaram entre 2003-2004.
indígenas, bem como dos atores que prosseguem na luta. Nesse sentido, a
“comunidade” pensada em Malinowisky foi de certa maneira atendida.
A tese está distribuída, além da Introdução, em duas partes contendo
capítulos sob forma de ensaio, encerrando com as Considerações Finais.
O primeiro capítulo delineia o argumento proposto e considera a literatura
produzida nos estudos sobre temas de interesse do presente trabalho, com o intuito
de possibilitar um diálogo entre a Ciência Política, Antropologia e o Direito: contato
interétnico, política indigenista, movimento indígena, direitos indígenas, democracia
participativa, políticas de reconhecimento e cidadania.
O segundo capítulo apresenta um histórico da construção da política
indigenista da Colônia à República, com destaque para o SPI.
O terceiro capítulo procura mostrar os efeitos recíprocos das políticas
indigenista e indígena após 1988, mediante a análise da FUNAI, sob a perspectiva
da fragmentação da política indigenista, do projeto de reestruturação e da
construção da política indígena advinda do movimento indígena.
O quarto capítulo apresenta a educação indígena no contexto atual, contendo
as bases dessa política indigenista, impasses, ambigüidades e, principalmente,
como os indígenas têm lutado para que a educação integradora se transforme de
fato numa educação intercultural, como prevê a legislação, cujo princípio do respeito
à diferença é sua característica.
O quinto capítulo discute as Terras Indígenas como condição básica dos
direitos indígenas. Aborda a questão da posse da terra indígena como tema
historicamente vinculado aos direitos indígenas, é o que se pode chamar de
termômetro do clima da relação entre o Estado/índios e outros atores interessados.
Considerações Finais encerra o que resultou do estudo apresentando
algumas propostas.

2 AS POLÍTICAS ÉTNICAS E OS DIREITOS INDÍGENAS: UM CAMINHO


TEÓRICO
Os anos 1970 foram marcados pela recessão, presença de regimes ditatoriais
em toda a América Latina e também de intensos movimentos sociais. Entre eles, o
movimento indígena foi uma das expressões de protesto às condições impostas pelo
Estado desde a conquista. Os grupos indígenas mediante a formação de
organizações de base, buscaram maior participação na vida política através de
manifestações públicas de diversas ordens, da construção de alianças
transnacionais que permitissem modificar o roteiro de suas vidas, do ponto de vista
social e político.
O fortalecimento étnico pautado na identidade comum, não apenas no sentido
plural, “Nós índios”, mas na identidade particular de cada grupo, trouxe as questões
indígenas para o cenário nacional e internacional. A redemocratização do país
possibilitou a presença mais visível do segmento indígena em vários fóruns na
busca da escuta, da resolução de suas demandas, de um novo papel social no
processo de conquista gradativa de direitos, em vista da história de confronto ao
longo do processo de formação do estado nacional, no qual os povos indígenas têm
recebido um tratamento que varia de acordo com os interesses econômicos e
políticos do momento.
Diante de um histórico de relações conflituosas, analisadas na perspectiva de
uma fricção interétnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976), a resistência tem sido a
resposta às tentativas de incorporação sociocultural, que envolve além do
enfrentamento, a reelaboração da visão de mundo e fortalecimento da identidade
étnica (OLIVEIRA FILHO, 1988).
O movimento etnopolítico pautado na identidade indígena, na disseminação
da crença de autonomia, num passado fortalecido pelo costume, vida em
comunidade, se confronta com um presente inseguro, sob a ameaça da presença de
estranhos nem sempre amistosa, ingredientes mais do que necessários à formação
de uma política étnica em prol dos direitos indígenas (BRYSK, 2000).
A existência do movimento repousa na ampliação da diversidade de
parceiros, aliados estatais e não estatais de vocação transnacional, e do uso da
identidade como símbolo marcante da existência indígena (BURGER, 1987;
MARTINEZ COBO, 1986; SHEZER E URBAN, 1991, apud BRYSK, 2000, p. 6).
Ao assumirem as rédeas de suas vidas, as organizações indígenas vão afetar
o Estado nacional, em particular o órgão indigenista, da mesma maneira que as
reformas no Estado afetam as instituições e organizações (KATZENSTEIN, 1978;
SKOCPOL, 1979 apud MARCH E OLSEN, 1984, p. 738).
A democratização propiciou ao Estado brasileiro experimentar situações na
qual o respeito à diferença tem seu contraponto na universalização das políticas,
inserindo na discussão a concepção de cidadania diferenciada, requerendo do
Estado, igualdade de oportunidades, garantia de direitos no plano cultural, o que
significa não ser absorvido de modo genérico como brasileiro, e no plano político ser
tratado como sujeito de direitos e não apenas como objeto das leis (GUIMARÃES,
2001).
Este capítulo visa discutir as relações entre o Estado nacional e os índios,
onde estes, através das organizações indígenas, se empenham na defesa e
manutenção de seus direitos, ganhando espaço como sujeitos de direitos no novo
momento da democracia brasileira. A discussão é feita à luz do conceito de
democracia participativa, uso da abordagem das teorias de reconhecimento, como
possibilidade de explicação e entendimento da questão indígena atual.
O capítulo apresenta inicialmente uma discussão sobre o tema do contato
interétnico e seus desdobramentos traduzidos nas políticas indigenistas, na
construção da identidade étnica como estofo do movimento indígena na luta por
direitos. Em seguida, reflete sobre as novas relações entre o movimento indígena e
o Estado nacional à luz do conceito de democracia participativa, uma das faces
democráticas presentes na Constituição de 1988, que prevê um outro nível de
sociabilidade, na esteira da qual, grupos à margem, discriminados étnica e
culturalmente, ou aqueles que demandam por igualdade e justiça, podem gozar de
oportunidades, encerrando com a discussão que trata do reconhecimento de
diferenças étnicas e culturais.

2.1 Entendendo o contato interétnico

O processo de mudança resultante dos efeitos culturais de uma sociedade


sobre outra em situação de contato foi denominada de aculturação. Em 1953 o
Social Science Research Council propôs que aculturação seria definida como
“mudança cultural que é iniciada pela conjugação de dois ou mais sistemas culturais
autônomos”24. A aculturação ocorre em razão da oferta de determinados materiais de
uma cultura à percepção da outra, existindo mecanismos reguladores que
favorecem a integração adequada dos materiais recebidos. Esses mecanismos
orientam a direção, a intensidade, a amplitude do fluxo intercultural de tal forma que
a incorporação desses elementos se faça com menor impacto possível, dependendo
do resultado final pode haver fusão, assimilação ou pluralismo estável. Quando a
relação é assimétrica como ocorre nas relações civilizadoras promovidas por
sociedades nacionais sobre as indígenas, a transferência de materiais culturais
nunca é passiva havendo um alto preço que é pago pela sociedade que está em
desvantagem técnica e cultural.
Os chamados “estudos aculturativos”, que traduziam o forte interesse pelo
fenômeno da aculturação indígena, dominaram o pensamento antropológico desde o
final do século XIX. Estes estudos traziam em si, como diz Nathan Watchel,
paradoxos e ambigüidades em razão das circunstâncias de seu nascimento,
voltadas para dar conta dos problemas pertinentes à situação colonial, onde o
discurso e a ação da supremacia européia estavam a olhos vistos. É nessa
perspectiva, diz ele, que falar em “aculturado” equivale dizer “evoluído”, “como se o
processo correspondesse a um progresso no decorrer do qual o indivíduo ou a
sociedade se aproximassem do modelo ocidental”25.
Essa linha de estudos que trata do fenômeno da mudança cultural, pelo viés
da aculturação ganhou corpo a partir dos anos trinta do século XX, se estendendo
até a década de sessenta. Darcy Ribeiro (1970) se referiu aos estudos de Eduardo
Galvão (1950, 1959) e Egon Schaden (1965), como autores que expressaram nessa
linha de pensamento uma tradição de pesquisa direta com populações indígenas,
aliadas à preocupação teórica constante. Enquanto Galvão reconheceu a existência
de efeitos recíprocos no contato e a resistência dos povos indígenas à integração,
Schaden assumiu uma visão até certo ponto fatalista, em função do resultado do
processo de integração. Darcy Ribeiro contestou o ponto de vista assumido pelos
seguidores da aculturação, o que certamente forneceu uma nova maneira de
enxergar as relações entre brancos e índios.

24
AZEVEDO, Thales. Catequese e Aculturação. In: SCHADEN, Egon. Leituras de Etnologia. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, 380.
25
WATCHEL, Nathan. A aculturação. In: Le Goff J: Nora, P. História, Novos Problemas. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 2ª edição, 1979, p. 113.
Em sua crítica, Ribeiro26 considerou que, a aculturação não se restringia a
explicação de mecanismos de aceitação e rejeição orientados por agentes causais
de natureza cultural, extracultural e coerção de fatores sócio-econômicos. Por outro
lado, muitos autores terminaram por dar ênfase à “causação circular em que cada
fator poderia ser a seu tempo, causa e efeito”, e outros se desviaram para análises
de caráter sociológico com ênfase para os aspectos sociais dos conflitos
interétnicos, desprezando os aspectos culturais. Como conseqüência, perdeu-se de
vista a formulação de uma teoria que abarcasse a gama de fenômenos de diversas
ordens como ecológicos, bióticos, econômicos. Ribeiro advoga nesta obra de 1970,
que os povos indígenas no confronto com os brancos não ficaram passivos ao
processo de aculturação como preconizavam os defensores da teoria da
aculturação, mas aqueles que sobreviveram ao contato se adaptavam mediante a
transmutação ou “transfiguração étnica”, ou seja, o esforço de manter o que eram
mesmo tendo que incorporar e negar a cultura do dominante27.
A abordagem de Ribeiro (1970) fez escola na política indigenista, como se
verá mais adiante, especialmente quando analisa as etapas de integração e sugere
a classificação dos indígenas em isolados; contato intermitente; contato permanente
e integrados28.
O entendimento sobre o contato da relação desigual entre índios e brancos,
seja pela desvantagem tecnológica e outros aparatos, sejam por valores sócio-
econômicos, culturais e ideológicos impostos pelo invasor foi objeto de estudo de
Cardoso de Oliveira (1968, 1972, 1978). E o conceito de “fricção interétnica” intentou
traduzir a relação que se definia por uma situação de domínio e sujeição29.
Havia neste primeiro momento, como comenta Cardoso de Oliveira na obra
de 1976, Identidade, Etnia e Estrutura Social, a tentativa de firmar uma posição
metodológica onde a apreensão da realidade não poderia deixar de lado a utilização

26
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970, p.
16.
27
Idem, 1970, p. 16-18.
28
Isolados: grupos que vivem em zonas não alcançadas pela sociedade brasileira; Contato
intermitente: grupos cujos territórios começam a ser alcançados e ocupados pela sociedade
brasileira; Contato permanente grupos que já perderam sua autonomia sociocultural e têm
dependência da economia regional para sua sobrevivência; Integrados: passaram por todas as
etapas anteriores e hoje estão ilhados juntos à população regional e incorporados como reserva de
mão de obra. Ibidem, p.387, 388.
29
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Urbanização e Tribalismo. A integração dos Terena numa
sociedade de classes. Rio deJaneiro: Zahar Editores, 1968; ___.O índio e o mundo dos brancos. Uma
interpretação sociológica da situação dos Tikúna. São Paulo: Liv. Pioneira Editora, 1972; ___. A
sociologia do Brasil indígena. Rio de Janeiro: Ed. Universidade de Brasília. Tempo Brasileiro, 1978.
simultânea de uma perspectiva histórica, sob pena de não dar conta de um
fenômeno cuja dinâmica acelerava o tempo das sociedades indígenas, rumo à
integração irreversível na História do país. No fervor do processo interétnico a
cultura do contato surge como um conjunto de representações e valores que os
grupos étnicos realizam na situação de contato onde estão inseridos, especialmente
em condições de fricção interétnica favorecendo a emergência da identidade étnica.
A identidade étnica, um conceito básico na segunda fase do desenvolvimento das
reflexões deste autor, tem por base a identidade contrastiva, entendida como a
“afirmação do nós diante dos outros”, uma identidade que surge por oposição, como
um elemento de denúncia ao desamparo e à exclusão do Estado30.
A crítica a essas abordagens foi elaborada por Oliveira Filho (1998) que teve
inspiração em Bachelard (1970) e objetivava enxergar os obstáculos ao avanço
teórico dos estudos de contato, pois considerava que a produção, da maneira como
a disciplina tem explicado seu olhar e seu pensar sobre as sociedades humanas,
traduzem o pensamento dos autores que ajudaram a construí-la. Para ele era
necessário analisar o contato como um conjunto de relações tanto internas quanto
externas. Nessa perspectiva, concordava com Max Gluckman (1939) que não via o
contato como um fator desintegrador, sempre confrontado com a existência
separada das culturas componentes, mas um fator organizador da existência de
determinadas comunidades, portanto, um elemento ordenador e componente da
organização social.
No estudo realizado entre os Tukuna (Estado do Amazonas), Oliveira Filho 31,
verificou que a criação de mecanismos de resistência no interior das sociedades
indígenas se baseava na estratégia de reelaboração do que vinha de fora aos quais
eram dados novos significados, revelando a diversidade do contato, as diferentes
formas de construção dessas relações. Estas observações o levaram a empregar as
noções de campo social e situação histórica utilizadas no trabalho de Max
Gluckman sobre os Zulu do Norte da África32.

30
CARDOSO DE OLIVEIRA. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Livraria Pioneira
Editora, 1976, p.21-23.
31
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. “O nosso Governo”. Os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo: Ed.
Marco Zero, 1988.
32
GLUCKMAN, Max, Analysis of a sociaL situation in modern Zululand [1939]The Rhodes-Livigstone
Papers, 28. Manchester: Manchester University Press, 1968, p. 1-28 apud OLIVEIRA FILHO, 1988, p.
38.
A noção de campo social utilizado por Gluckman, compreende as condições
de tratamento sobre as relações sociais de grupos e indivíduos, não como eventos
isolados, mas reunidos, permitindo observar interconexões numa dada situação
social. Oliveira Filho lembra que esse campo social é dinâmico, exigindo a análise
situacional das condições observadas.
O contato interétnico e as variantes que ele assume pela atuação dos
diversos atores que dele participam, criam cenários diferentes, que contribuem para
a reação dos povos indígenas diante das mudanças, influem na produção de
políticas, comportamentos e trajetórias de vida tanto coletiva quanto individuais,
exigindo a busca de um caminho teórico no qual o entendimento dos direitos
indígenas no contexto da democracia brasileira precisa ser debatido.

2.2 Política Indigenista e Indigenismo

O conjunto de iniciativas formuladas pelas diferentes esferas do Estado


brasileiro atinentes às populações indígenas é chamado de política indigenista,
orientada pelo indigenismo, definido como rol de princípios estabelecidos a partir do
contato entre índios e brancos. O assunto tem atraído atenção dos antropólogos,
historiadores e operadores do Direito, cuja ênfase dos trabalhos tem incidido sobre
temas como: a) construção da imagem dos índios de forma simplificada e
estereotipada; b) reflexão sobre a maneira como a historiografia tem tratado os
índios e outras populações brasileiras; c) a relação entre estruturas de poder
estatizadas como a Colônia, Igreja, Estado nacional através dos órgãos de proteção
indigenista, como o Serviço de Proteção ao Índio, o SPI, a FUNAI e os índios; d)
Direito Indígena; e) parcerias indígenas, ou seja, ações que compreendem as
experiências que envolvem índios e outros atores sociais.
Segundo Antônio Carlos de Souza Lima (1995), ainda existe pouca produção
sobre estruturas de poder versus índios33. As mudanças institucionais estabelecidas
pós 1988 alteraram as relações entre o Estado e os índios, pela fragmentação do

33
SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. Um Grande Cerco de Paz: poder tutelar, indianidade e formação
do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
órgão indigenista34 que trouxe para o cenário, novos atores estatais, pelos direitos
garantidos na Constituição que acenaram para a inclusão social dos indígenas que,
enquanto cidadãos, reclamavam por políticas de educação, saúde, meio ambiente e
definições mais claras sobre a questão fundiária, o calcanhar de Aquiles dos
assuntos indígenas. Estes direitos, no entanto, são constantemente ameaçados,
exigindo vigilância, e maior participação das organizações indígenas. A entrada de
novos atores indígenas - representados por índios ribeirinhos, urbanos, ressurgidos
formados por aquelas etnias que haviam sido consideradas extintas oficialmente -
reclamando pelo reconhecimento de sua identidade é a constatação da etnicidade
como mecanismo de aglutinação, de manifestação diante da sociedade mais ampla,
mas também a revelação de outros rostos indígenas que abalam crenças e imagens
há muito construída. (RIBEIRO, 1962, 1970; MOREIRA NETO, 1971; OLIVEIRA
FILHO, 1985, 1988, 2000; OLIVEIRA FILHO e SOUSA LIMA, 1993; SOUSA LIMA,
1995; SOUSA LIMA e BARROSO-HOFFMANN, 2002).
A literatura de cunho antropológico sobre a relação histórica entre povos
indígenas e o Estado é ampla, razão pela qual faremos referência às mais
representativas, correndo risco de falharmos nesta escolha. Para o período da
Colônia à República, um autor bastante referenciado na antropologia é Carlos
Moreira Neto, cuja tese de doutoramento (1971), retrata a política desse período,
enquanto em trabalho anterior (1967) descreve os desacordos entre a legislação
formal e a prática do contato com os povos indígenas.35 Discussão semelhante
encontra-se em Darcy Ribeiro (1962, 1970)36, nas quais o autor considera o papel
integracionista das políticas indigenistas desde o período Colonial, em que chama
atenção que em alguns momentos o Estado, seja Colônia, Império ou República,
acena com o cumprimento da proteção, em outros comanda a extinção em nome
dos interesses desse mesmo Estado. Expedito Arnaud (1971), ao tecer
considerações sobre a legislação indigenista, aponta alguns elementos presentes

34
No Governo Collor uma série de decretos transferiu as ações de educação e saúde para os
Ministérios da Educação e Saúde. A administração da Terras Indígenas permaneceu no âmbito da
FUNAI. A migração dos recursos da FUNAI para outros órgãos foi um duro golpe para a instituição
indigenista.
35
MOREIRA NETO, Carlos de Araujo. A política indigenista durante o século XIX. Tese de
doutoramento apresentada à Cadeira de Antropologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de
Rio Claro, São Paulo,1971. Mimeo; ___. Constante histórica do indigenato no Brasil. Belém: Atas do
Simpósio sobre a Biota Amazônica, 1967, vol 2. p. 175-185.
36
RIBEIRO, Darcy. A política indigenista brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1962; Os
índios e a civilização. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1970.
nas políticas da Colônia, Império e República. No Período Colonial, até meados do
século XVIII, os atos do governo português determinavam, em regra, a escravização
ou o extermínio dos índios via serviços dos colonos e missionários. Na fase
pombalina (1750-1777) o impulso à assimilação promoveu o aumento da população
colonial. No período Imperial, prosseguiu a política de assimilação, porém os índios
foram considerados livres da escravidão, embora mantidos sob a tutela orfanológica,
com juizes designados para empregá-los e iniciá-los em algum ofício (1831). As
contradições das políticas aplicadas aos índios nesse período podem ser
identificadas pela forma como foi realizada, a catequese, a localização dos índios
em colônias (1834), a implantação da Lei de Terras de 1850, com o mandado de
reserva de territórios para posse, venda, aforamento ou simples incorporação dos
territórios indígenas como propriedade da União, província e municípios. No Período
Republicano, a presença da Igreja positivista influenciou na criação do Serviço de
Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais - SPILTN em 1910,
transformado mais tarde em Serviço de Proteção aos Índios, o SPI, que no
regulamento do órgão, em 1911, excluiu as palavras catequese e civilização,
substituindo-as por assistência e proteção. Com a extinção do SPI em 1967, a
Fundação Nacional do Índio, a FUNAI, em seu regimento interno expedidos em 1968
(69) e 1970, bem como, a lei 6001/73, o Estatuto do Índio, trataram a assimilação
indígena, de forma mais ampla e determinada do que o SPI. Os índios foram
classificados como brasileiros, os não assimilados ou parcialmente assimilados
ficaram sob a tutela do Estado, mas com recomendação que fossem educados com
vistas à sua incorporação na sociedade nacional37.
O percurso histórico da política indigenista e o processo de extinção de índios
nos anos 1970, foi estudado por Beozzo (1983) que indagava como se comportou o
país do ponto de vista do legislativo em relação aos índios nesse período. Utilizando
a metáfora da frase do poema de I-Juca Pirama de Gonçalves Dias, “O Índio é
aquele que deve morrer”, o autor acusa o governo e a FUNAI como responsáveis
pelo destino dado aos índios diante dos projetos de expansão promovidos pela
ditadura. A construção de rodovias como a Transamazônica, que cortou terras
indígenas, a Cuiabá-Santarém, que atravessou os Parques Indígenas do Xingu e da

37
ARNAUD, Expedito. Aspectos da Legislação sobre os Índios do Brasil. Publicações Avulsas No. 22.
Belém: Conselho Nacional de Pesquisas/Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia/Museu
Paraense Emílio Goeldi, 1973.
Ilha do Bananal, o fornecimento de certidões negativas de presença indígena,
provocando a remoção de vários grupos num velado genocídio, são amostras do
indigenismo mais recente. Para o autor, as políticas indigenistas sempre foram
traçadas com vistas à solução de algum problema, e mesmo quando feitas com
intuito de proteção, foram formuladas à revelia dos interessados, e assumiram o
caráter da política que está sendo aplicada naquele momento38.
Alguns trabalhos que traduziram o momento histórico da redemocratização do
país, com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte (ANC) e a reforma do
Estado que desenhou outra fisionomia para as políticas públicas no início dos anos
noventa do século XX foram produzidos por Cunha (1987, 1999) enquanto assumia
o posto de presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Com isso,
demonstrou a necessidade de produção de documentos que tratassem da política
indigenista, um tema pouco conhecido do público mais amplo como, por exemplo:
esclarecer a situação legal do índio; rever a tradição jurídica brasileira quanto às
terras indígenas; alertar que a questão indígena até o século XIX esteve apoiada na
escravidão, depois na conquista de espaços territoriais; atualmente, centra-se na
disputa por recursos naturais existentes nas terras dos índios, as primeiras atingidas
em qualquer projeto de desenvolvimento e na superação da perspectiva
evolucionista no direito internacional. Entre as conclusões apresentadas, alertou que
os Anais das Assembléias Constituintes que precederam a Constituinte de 1988
deixam, segundo ela, “uma impressão curiosa: os artigos sobre os índios parecem
decidir-se aleatoriamente graças a uma retórica pobre, a um desconhecimento
generalizado do assunto e manobras regimentais. [...] quem defende interesses
contrários aos direitos indígenas emite argumentos de autoridade que a
desinformação dos outros Constituintes torna perigosos”39.
Alguns autores têm analisado a política indigenista através da atuação dos
órgãos indigenistas, possibilitando diferentes reflexões sobre o contato. José Mauro
Gagliardi (1989) desenvolve uma discussão sobre as origens da política indigenista
republicana, seus fundamentos políticos e ideológicos, as condições históricas que
permitiram a sua institucionalização e os atores sociais que participaram desse
processo. O autor parte do pressuposto de que as condições de existência material
38
BEOZZO, José Oscar. Leis e Regulamentos das Missões: Política Indigenista no Brasil. São Paulo:
Loyola/Coleção Missão Aberta, 1983.
39
CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do Índio. Ensaios e documentos. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987, p. 17; “Política Indigenista do século XIX”. In: ___Org. História dos Índios no Brasil.
São Paulo, FAPESP/Companhia das Letras/SMC, 1999, p. 133-154.
condicionam as formas de consciência dos indivíduos tomando como exemplo o SPI
como manifestação das transformações que ocorreram na estrutura econômica do
país a partir de 1870, e os efeitos da expansão capitalista sobre os territórios
indígenas, que geraram conflitos armados apoiados pelas tendências que definiram
o tratamento dado ao problema indígena: extermínio, catequese ou proteção oficial.
Analisando o SPI do ponto de vista histórico e não factual, argumenta que o boicote
sofrido pelo órgão ao longo de sua existência é um indicador de componentes
ideológicos conservadores e reacionários presentes nas classes dominantes40.
A etnografia histórica do poder tutelar, o poder estatizado executado pelo SPI
foi foco de Lima (1995), ao comentar que populações que são destruídas,
submetidas pela guerra ou sendo obrigadas a outros modos de vida pelo domínio
homogeneizante do conquistador, passam a ser objeto do poder tutelar, entendido
como um modo de integração territorial e político levado a cabo por um aparelho de
Estado, que exprime em suas bases as múltiplas relações entre distintos segmentos
sociais que estão afastados daqueles que são os objetos da conquista, por uma
alteridade econômica, política, simbólica e espacial. Razão suficiente para que o
poder tutelar, se comporte como uma forma reelaborada de uma guerra de
conquista, um modelo formal de uma das formas de relacionamento possível entre
um “eu” e um “outro” afastado por essa alteridade referida há pouco.
O tema da integração nos quadros do processo de formação do Estado e da
construção nacional e a análise da construção das linhas telegráficas em Mato
Grosso, como parte da nova ordem econômica e política, decorrentes das mudanças
operadas na segunda metade do século XIX foi discutido por Bigio (2003), ao trazer
para o debate, a idéia de que a razão do desenvolvimento do capitalismo, no qual o
projeto de instalação das linhas telegráficas, desenvolvido nos primeiros momentos
republicanos, fez parte das estratégias de ocupação das fronteiras brasileiras.
Coube ao SPI racionalizar o processo de incorporação dos territórios e das
populações indígenas à sociedade brasileira, tendo na figura de Rondon, um ator
social elevado à categoria de símbolo nacional. Bigio (2003) o vê como um agente
que construiu alianças em escalas, local, regional e nacional, viabilizando através do
telégrafo as ações administrativas e militares e, conseqüentemente, a garantia das
fronteiras. O estudo se refere também à importância da presença da mão de obra

40
GAGLIARDI, José Mauro. O Indígena e a República. São Paulo: Editora Hucitec: Ed. da
Universidade de São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1989.
indígena, que tem sido desconsiderada nas reflexões sobre a construção do Estado
nacional41.
A partir da ação indigenista no nordeste brasileiro (1910-1960), os
mecanismos de controle de recursos fundiários como exemplo para a ação do poder
tutelar nesta região. Tentando reconstruir as redes de domínio tecidas pelo SPI em
uma de suas configurações espaciais específicas – o nordeste – busca compreender
o circuito político regional da tutela. A política tutelar é vista pelo autor como uma
forma de implantação do controle social pelo Estado brasileiro, inserindo o estudo do
indigenismo e da política indigenista no quadro mais amplo das modalidades do
exercício do poder, historicamente constituídas no processo de expansão e
instauração do Estado-Nação brasileiro42 (PERES, 1995).
A análise comparativa entre a FUNAI enquanto substituta do SPI foi
empreendida por Gomes (1988, 2002), onde o SPI, fruto do positivismo e
liberalismo ao promover o trabalho de assistência ao índio e dignificá-lo enquanto
pessoa incentivou o sentimento de responsabilidade histórica de tal maneira que foi
possível promulgar leis na Constituição de 1934 condizentes com os objetivos do
órgão. O artigo 129 conclamou o respeito à posse das terras indígenas e o artigo 5,
item XIX, tornou exclusivo da União a política indigenista, exilando os estados de
qualquer domínio sobre as terras. A política indigenista pouco valorizada pelo
Estado e a fraca vontade política por parte dos defensores dos indígenas diante das
forças antiindígenas foram apontadas por ele como razões do desempenho do órgão
não ter atingido as expectativas esperadas. A FUNAI surgiu como uma das
instituições da ditadura com objetivo de resolver para o regime militar a questão
indígena, um problema que repercutia negativamente para o Brasil em nível
internacional, diante das acusações de etnocídio. A integração era indicada como
saída viável, pois defendia a dissolução das etnias e sua transformação em
brasileiros. A Constituição de 1967 e o Ato Institucional n°. 1 (que outorgou a
Constituição de 1969), ao definirem que as terras indígenas eram da União, cabendo
aos índios apenas a posse, significou um retrocesso jurídico e político expressada
na Lei 6001/73, conhecida como Estatuto do Índio, pois considerou o índio como
menor de idade, “relativamente capaz” submetido à tutela do Estado e estabeleceu

41
BIGIO, Elias dos Santos. Linhas telegráficas e integração dos povos indígenas: as estratégias
políticas de Rondon (1889-1930). Brasília:CGDOC/FUNAI, 2003.
42
PERES, Sidney Clemente. Arrendamento e Terras Indígenas. Análise de alguns modelos de ação
indigenista no Nordeste (1910-1960). Rio de Janeiro: CETE/PETI, 1995.
mecanismos e critérios de demarcação das terras que ameaçaram os ganhos legais
relativo às terras desde o período do SPI.
A ligação dos dirigentes da FUNAI com o Conselho de Segurança Nacional
(CSN) e a promulgação do decreto n. 88.118, de 23 de fevereiro de 1983,
significaram ataques às terras indígenas por serem consideradas áreas de
segurança, e o decreto retira da FUNAI a responsabilidade da demarcação das
terras que passou a ser feita por um grupo de trabalho formado por representantes
de diferentes órgãos com prerrogativa de convocar os governos estaduais para
opinar sobre o direito dos índios àquelas terras. Sobre isso disse Gomes: “Os
processos de demarcação passam a demorar e emperrar, na medida em que os
interesses antiindígenas são concretizados em interesses fundiários, políticos ou
militares”43. Mércio Gomes inseriu neste debate a reflexão sobre as formas de fazer
antropologia e a produção das políticas indigenistas. O fazer da Antropologia
exerceu influência nas falas sobre os índios e na produção das políticas, argumento
iniciado em sua obra Os Índios e o Brasil (1988), no qual discordou do “paradigma
da aculturação”, que considerava a extinção dos índios como um fato inexorável. Na
obra de 2002, criticou mais uma vez a antropologia, dizendo que ela caminhava num
ir e vir entre dois temas: a qualificação do índio como outro, o diferente, o exótico, e
a definição do índio como o igual, o semelhante, o contemporâneo. Considerou
serem temas da própria civilização ocidental e os problemas que engendrou para si.
Tomou como reflexão, a saga dos Tenetehara, conhecidos também como Guajajara
no Maranhão e Tembé no Pará, povo que fez parte do mundo luso-brasileiro a partir
de 1613, mostrando que apesar de terem sofrido todas as compulsões ao longo
destes séculos - escravidão, cristianização e infantilização - mesmo assim, se
manteve fiel a si como povo. Por essa razão, sugeriu uma terceira via: conjugar a
universalidade e a diferença do homem, a intersubjetividade engajada do diálogo na
busca de um sentido para o homem, a busca da liberdade44.
As políticas indigenistas e a sua execução expressaram o lugar da diferença e
da desigualdade onde os indígenas estiveram localizados ao longo da história, lugar
este que definia que seus ocupantes não eram consultados em razão de sua
condição de primitivos, silvícolas ou tutelados, portanto, “ter uma redução da

43
GOMES, Mércio Pereira. Os Índios e o Brasil. Ensaio sobre um holocausto e sobre uma nova
possibilidade de convivência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988, p. 91.
44
GOMES, Mércio Pereira. Prólogo: por uma Antropologia Ontossistêmica. In: O Índio na história: o
povo Tenetehara em busca da liberdade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
capacidade participativa, necessitando de um mediador de seu suposto
pertencimento a uma comunidade política” (SOUZA LIMA,1995, p. 198), condição
reafirmada no Código Civil de 1916. As políticas produzidas ao longo da história
expressaram os motivos e interesses do Estado, da mesma forma que a produção
de discursos de defesa, ataque ou indiferença aos apelos revelam a contradição do
sistema sóciopolítico relativo à questão. De que maneira os modelos de ação
indigenista repercutiram sobre os índios enquanto indivíduos e coletividades? É a
propósito dessa repercussão que vamos nos referir agora brevemente.

2.3 O que é ser índio

O entendimento do que é ser índio, especialmente no presente, nos remete


para o debate amplo do reconhecimento das identidades, uma das pedras de toque
da luta pelo ganho e garantia dos direitos indígenas, mas também para as
representações que a sociedade construiu sobre as populações indígenas: o índio
como símbolo da liberdade, de uma vida quase parasidíaca, e a outra, o atraso, o
pré-modernismo. Estas imagens colaboraram para a certeza da extinção das
sociedades indígenas. Um outro lado da crença na extinção é o sentimento de
dúvida quanto à autenticidade dos indígenas, o índio real. Em razão de imagens
preexistentes, sejam do índio selvagem, aguerrido ou inocente, difundidas por
pintores, pela literatura e cinema.
A surpresa e a desconfiança podem surgir diante de um indivíduo que sendo
apresentado como índio se veste à maneira dos “civilizados”, fala português fluente
e em alguns casos uma língua estrangeira como inglês, creole, francês ou espanhol.
A resposta é imediata: esse alguém pode ser qualquer pessoa, menos um indígena,
melhor dizendo, o índio não é visto como cidadão. Maneiras de ver que tem servido
de argumento àqueles que enxergam os indígenas como obstáculos aos seus
interesses sejam agentes governamentais ou não.
O termo índio teve ao longo do tempo vários significados – selvagem,
primitivo, aborígene – mas acima de tudo foi uma identidade atribuída pelo
colonizador à sua chegada no novo continente. O outro significado tem relação com
um segmento da população brasileira que se diferencia dos demais brasileiros em
razão de seu modo de vida, língua, enfim, um pertencimento a tradições que não
aquelas comuns aos demais. A divergência do entendimento sobre o termo “índio”,
está relacionada ao senso comum como referido acima e ao significado indigenista,
onde ser índio é ser portador de um status jurídico que lhe garante uma série de
direitos, possuidor de uma legislação própria, e pertencente a uma coletividade,
como diz Oliveira Filho, “que por suas categorias e circuitos de interação, distingue-
se da sociedade nacional, e reivindica-se como ‘indígena’”45.
Uma nova forma de tratar o problema indígena começa a tomar corpo. É
aquela que considera as sociedades indígenas como qualquer sociedade que está
sob a égide da história, portanto, sujeita ao processo de mudança constante,
necessitando para sobreviver que elimine, incorpore elementos num processo
dinâmico de vida. Enfim, que se adapte às mudanças. (BRYSK, 2000).
A pergunta “O que é ser índio?” conduz à verificação de que, longe de
desaparecerem, os indígenas aumentaram a taxa de crescimento, como se pode
constatar com os dados estatísticos divulgados pelo IBGE, que em 1998 registrou
302.888 índios e em 2005 verificou um total de 358.000, correspondendo a 0,2% da
população brasileira de 169.799.170 habitantes46.
Segundo a antropóloga e demógrafa Martha Azevedo do ISA-Instituto
Sócioambiental, a variação dos dados demográficos sobre as populações indígenas
no Brasil estão relacionados à falta de dados confiáveis, a problemas metodológicos
que por sua vez tem relação com a falta de interesse dos censos demográficos.
Mesmo as PNADs (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) feitas pelo IBGE
provavelmente não incluíram esses grupos, por não serem considerados mão-de-
obra possível ou grupos relevantes para a economia do país. O censo de 1991 foi o
primeiro que colocou a variável indígena como um item específico no questionário
da amostra relativo ao quesito “cor”, sendo aí que os indígenas se situam enquanto
população diferenciada. A autora questiona a escolha política dos censos brasileiros,
que terminam por conduzir a distorções, pois não é a cor da pele que define a
situação dos indígenas. A categoria indígena pondera a autora, deve ser analisada
levando-se em conta, a auto-identificação de indivíduos indígenas que estão nos

45
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. Os Instrumentos de Bordo: Expectativas e Possibilidades de
Trabalho do Antropólogo em Laudos Periciais. In: Indigenismo e Territorialização: poderes, rotinas e
saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998, p. 282.
46
O IBGE passou a coletar dados sobre a população indígena somente a partir da década de 1990. O
Mec em 2003 informava uma população de 414 mil índios, um equivalente de 0,24% do total da
população.
centros urbanos, os (res) surgidos, os descendentes e os demais indígenas das
terras indígenas, missões e índios isolados47.
A negação de seu desaparecimento tantas vezes afirmado está na promoção
de sua organização, no abandono do anonimato em que estiveram disfarçados em
caboclos ribeirinhos ou moradores das cidades. O fenômeno da migração resultante
de sucessivos deslocamentos provocados por fatores econômicos, sociais ou de
foro da política interna dos grupos, é uma das modalidades de mudança que mais
tem colaborado para o cultivo da dúvida identitária dos indígenas.
A migração dos índios para as cidades motivada por qualquer razão tinha
destino certo, seriam alocados nos estamentos sociais mais baixos e suas
identidades seriam postas em dúvida (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972)48. Oliveira
Filho (1998) elaborou a noção de mistura. O índio misturado é aquele que sofreu
vários processos de territorialização onde as “misturas” são seus produtos,
permitindo a análise da dinâmica sóciopolítica e cultural pela qual passam os povos
indígenas49. Em um estudo realizado em 1999, sobre os Amanayé do Rio Capim
(PA) para efeito de identificação e delimitação de suas terras, chamamos atenção
para a dificuldade de dar um tratamento dentro dos parâmetros exigidos no processo
de identificação de terra indígena, a grupos como os Amanayé considerados
oficialmente extintos. Povos nessas condições são sobreviventes de pressões
diversas da sociedade brasileira e de crises internas, com fracos sinais
identificadores do “padrão indígena” exigido pelas normas de identificação
institucional, com evidências de perda e descaracterização cultural que podem
ameaçar o reconhecimento, refletindo sem sombra de dúvida a dicotomia
primitivo/civilizado tão ao gosto de um modelo de antropologia institucional50.
O estudo de Patrício (2000) sobre os Xipaia e Curuaia que vivem na cidade
de Altamira/PA, constatou que os mesmos mantinham contato contínuo com suas
aldeias onde possuem roças e participam de seus eventos comemorativos, e na
cidade tentavam (re) significar os espaços habitados, representados pelas sedes

47
AZEVEDO, Martha. Censo Indígena. Instituto Socioambiental, dezembro, 2000
(www.socioambiental.org.br) capturado em junho, 2005.
48
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Índio e o Mundo dos Brancos. Uma interpretação
sociológica. dos Tikúna: Liv. Pioneira Editora, 1972.
49
OLIVEIRA, João Pacheco de. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais
no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria Ltda., 1998.
50
ASSIS, Eneida Corrêa de. Relatório de Identificação e Delimitação de Terra Indígena Amanayé:
Saraua e Barreirinha.GT/Amanayé/Port. 640PRES. FUNAI. Belém-PA, julho, 1999.
das Associações Indígenas localizadas nos bairros com maior concentração de
famílias indígenas. Mesmo assim, foram ignorados pelo órgão indigenista, apesar de
terem sido arrolados por esta instituição como “índios da cidade” durante a
realização dos estudos ambientais para ELETRONORTE à época do projeto da
hidrelétrica Kararaô51.

2.4 Identidade política

Douglas North (1990) diz que as novas sociedades requerem novas


instituições, e neste caso o órgão indigenista, apesar de abrigar antropólogos e
indigenistas, enfrenta a crise entre a vanguarda da ciência e a burocracia. Enfim,
sua historicidade reflete os devaneios da política mais ampla. Mércio Gomes afirma
que a crise se expressa na dificuldade do órgão em lidar com os índios que querem
continuar a ser índios, mas também brasileiros, como ocorre com os índios urbanos,
ribeirinhos ou aldeados, que buscam reconhecimento de suas identidades 52.
Acrescentamos que a crise também está ligada a um processo amplo de interação
do novo modelo indígena, a mudanças operadas na sociedade civil brasileira, ao
sistema internacional relacionada ao reconhecimento da diferença e à luta pelos
direitos.
Aqui é interessante destacar os conceitos de identidade e etnia, uma vez que
o reconhecimento das identidades dos indígenas que estão em diferentes situações
como as citadas acima é fundamental para a reivindicação e garantia de seus
direitos. O conceito de grupo étnico formulado por Barth como “uma forma de
organização social” que tem a “característica da auto-atribuição ou da atribuição por
outros a uma categoria étnica” ajuda a compreender esse processo, pois leva em
conta os termos da identidade básica mais geral de uma pessoa cujo objetivo final é
a interação e a formação de grupos étnicos53. A identidade étnica é uma ferramenta
apropriada para impulsionar a organização: “Identificação étnica refere-se ao uso
que uma pessoa faz de termos raciais, nacionais ou religiosos para se identificar e,
51
PATRÍCIO, Marlinda. Indios de verdade? Um Estudo sobre os Xipaia e Curuaia de Altamira/Pará.
Diss. De Mestrado em Antropologia Social. Belém: Universidade Federal do Pará, 2000.
52
GOMES, O Índio na história. op. cit, p. 331-339.
53
BARTH, Frederik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: Poutignat, Phillipe e Streiff-Fenart, Jocelyne.
Teorias da etnicidade. São Paulo:Editora da UNESP, 1998.
desse modo, relacionar-se aos outros” (D. GLASER, 1958, p. 31 apud CARDOSO
DE OLIVEIRA, 1976, p. 2-3).
A apreensão dos mecanismos de identificação é importante por refletir a
identidade em processo e possibilitar a compreensão da forma como ela é assumida
por indivíduos e grupos em diferentes momentos. Sendo a identidade um fenômeno
bidimensional (pessoal e social), ela se orienta segundo um código de categorias
que define o rumo dessas relações. Quando em situações interétnicas, o código se
exprime como um sistema de oposições, com a afirmação do, Nós diante dos outros,
é a identidade contrastiva: afirmação da identidade por uma pessoa ou grupo tendo
como objetivo a diferenciação em relação a quem se defronta. Enquanto ferramenta
política, a identidade promove a aglutinação, cria regras sociais e alianças tanto
locais quanto além de suas fronteiras.
Nos textos internacionais recentes há concordância quanto ao princípio da
conservação das características culturais das populações indígenas, mas não há
muitos detalhes sobre o conteúdo das mesmas, expressando a cautela dos Estados
quanto ao envolvimento além do necessário, deixando que elas definam suas
peculiaridades no tempo e espaço54.
Como afirma Norbert Rouland (2004 p. 19), a identidade pode ser substancial
e primordial, quando tem relação com um conjunto de traços culturais que fornecem
a base de referencia histórica de um grupo, ou a identidade pode ser instrumental e
subjetiva quando corresponde a reinterpretações do passado, às seqüências
cronológicas ocorridas na época presente em vista de objetivos futuros. O que
significa que as culturas se transformam e que sua sobrevivência depende dessas
interligações, condição que favorece a busca de soluções jurídicas para grupos que
foram colocados em situação inferior pela História, possam se redefinir em função
das necessidades que lhes são apresentadas.
O termo etnia é uma noção definida apenas em termos adjetivos ou
qualitativos, por exemplo, grupo étnico, e, como exceção, a definição de Emílio
Willens que a compreende como “grupo biológico e culturalmente homogêneo”55.
Rouland (2004) diz que a etnia não seria mais que um eufemismo da raça.
Apesar de certa falta de substância da noção de etnia, ela se impõe em razão da
54
Convenção 169/1989/OIT ratificada pelo Decreto Legislativo N° 143, de 20/06/2002; 3ª Conferência
Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Durban-África
do Sul, 2001.
55
WILLLENS, Emílio. Verbete “Etnia”. In: Dicionário de Sociologia. Porto Alegre: Editora Globo, 1961,
apud Cardoso de Oliveira, 1976, p. 82.
presença de grupos minoritários nas sociedades mais amplas. O termo etnicidade
(do inglês ethnicity) surgiu na literatura de língua inglesa nos anos 1940, para
designar os grupos que não eram anglo-americanos. Posteriormente o termo
incorporou os sentimentos de pertença. Weber já entendia etnia como crença
subjetiva numa comunidade de origem independentemente da existência ou não de
uma comunidade de sangue, permitindo que a etnia pudesse englobar variações
culturais sem estar apoiada no isolamento geográfico e cultural56
O reconhecimento étnico por parte dos Estados nacionais, possibilita a busca
de pactos entre grupos culturalmente diferentes, o que só pode ser obtido mediante
um trabalho político a partir dessas diferenças.

2.5 Movimento Indígena

O movimento indígena pode ser considerado espaços de disputa de relações


simbólicas, através das quais se busca a conservação, a transformação das
correlações de forças na sociedade, a neutralização simbólica e material das
desigualdades sociais. O movimento se expressa através das ações conduzidas
pelas organizações indígenas, entendidas como a forma institucionalizada de
expressão de um movimento etnopolítico que busca o protagonismo político
mediante a defesa dos interesses desses grupos57.
O conceito de movimento social não encontra consenso, como Scherer-
Warren (1993), comenta ao dizer que, para alguns envolve toda a ação coletiva com
caráter reivindicatório, para outros, ações daqueles que mediante o conflito atuam
na produção da sociedade ou seguem orientações globais visando a passagem de
um tipo de sociedade para outra.
O movimento indígena apresenta algumas variantes em relação a outros
movimentos, tais como, alto nível de ligação e coordenação transnacional, estrutura

56
POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne, arrolaram 65 artigos sobre etnicidade e
afirmam que nenhum comportava uma definição explícita. Ver: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-
FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade, seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik
Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
57
BARTOLOMÉ, 1995 apud GARNELLO, L. e SAMPAIO S. Bases Sócioculturais do Controle Social
em Saúde indígena. Problemas e Questões na Região Norte do Brasil. Trabalho apresentado na
Reunião da ABA, RGS, 2002, digit.
em camadas do tipo “layer-cake”, possibilitando que o movimento pan-indígena atue
de forma internacionalizada em prol dos direitos indígenas, onde todos participem da
rede que envolve advogados e aliados. Com isso, a mobilização dos povos
indígenas em defesa de seus direitos pode ser mapeada, segundo Alyson Brisk, em
três vetores: primeiro, o ator é o movimento nacional transnacional; segundo, o
movimento se baseia na construção da criação e expressão da identidade étnica;
terceiro, o movimento indígena é o único espaço social de ponta da modernidade
(BRYSK, 2000, p.34).
Outros autores consideram que essa configuração contribui para que os
indígenas do continente se expressem politicamente muito mais através de
organizações do que partidos políticos, grupos de interesse ou movimentos de
guerrilha (CHASE SMITH, 1984 apud BRYSK, idem p. 33).
Os movimentos indígenas podem ser incluídos nos chamados novos
movimentos sociais (NMS), de caráter transnacional, baseados na identidade e
conscientização (ALVAREZ E ESCOBAR, 1992; COHEN, 1985 apud BRYSK, idem,
p. 34)58.
A forma institucionalizada de expressão do movimento indígena é a
organização indígena, que propicia a articulação da realidade política das aldeias
com as forças externas, cuja forma de luta está centrada no direito à diferença étnica
e acesso a bens e serviços oriundos da aplicação de políticas públicas
(BARTOLOMÉ, 1995).
O movimento indígena surgiu nos anos 1970 em razão de diversos fatores de
ordem nacional e internacional como, a presença de governos de exceção em toda a
América Latina, a ação da Igreja Católica, que em sua opção pelos pobres e
oprimidos assessora as primeiras lideranças indígenas com o apoio de
antropólogos, advogados, políticos de esquerda e grupos interessados na defesa
dos índios, que mais tarde se transformaram em ONGs. No Brasil, o movimento
indígena segue uma trajetória diferente de outros Estados nacionais: em vez de
assumir uma tendência pan-indígena, o movimento se caracteriza por ser

58
BRYSK, chama atenção para o extenso debate sobre a aplicabilidade do termo “novos movimentos
sociais” de tradição européia nas questões da América Latina, pois voltado para as questões da
família, classe e nacionalismo. O movimento por direitos transpõe as linhas de classe, sinais de uma
nova, ou fraca identidade, busca de participação, com agenda pluralista, torna fluidas as fronteiras
entre o individual e o coletivo, politiza a vida social e cultural, privilegia táticas de mobilização radical,
apóia a desobediência civil. Ver: BRYSK, Alyson. From tribal village to global village. California:
Stanford University Press, 2000.
regionalizado e também localizado, traduzindo de certa forma o que já ocorre em
outros setores da vida política, onde o nacional passa antes pelo regional (ZARUR,
2000; OLIVEN, 2000)59.
Mencionamos duas conferências de Cardoso de Oliveira (1988), “A
politização da identidade e o movimento indígena” e “Movimentos indígenas e
indigenismo”. Na primeira conferência, o autor relembra que nos anos 50 e 60 do
século XX era impensável que alguns grupos como os Terêna (MT) e Tükuna (AM)
se valessem da categoria, índio para se identificarem, pois, até então, tratava-se de
uma palavra instituída pelo colonizador. A recuperação do termo como uma
categoria forjada na prática de uma política indígena teve um objetivo aglutinador,
possibilitando o esboço de uma política indígena em oposição à política indigenista.
A crise da ideologia e de ação do órgão indigenista definida pelo autor como “crise
de legitimidade de representação”, resultou da eclosão do movimento indígena, no
qual os indígenas ao falarem por si transformam-se em agentes políticos e
fazedores de opinião, e do surgimento de entidades como o CIMI-Conselho
Indigenista Missionário, que passou a representar junto à opinião pública a parte
defensora dos direitos indígenas, demarcando o começo do indigenismo alternativo.
Na segunda conferência, o autor já observava a perplexidade do órgão diante das
manifestações organizadas dos povos indígenas, que em razão da não-participação
de seus representantes no aparato do Estado procuravam outros espaços de
negociação com o governo60.
A reação indígena e seu esforço em colocar na agenda nacional suas
demandas, mereceram por parte de diversos autores exercício para entender este
novo momento vivido pelas populações indígenas, assim como, por parte do Estado.
A tomada de posição dos indígenas se tornou visível através de seus representantes
que saiam das aldeias, e cada vez mais vistos em público, argumentando não
apenas diante de um presidente do órgão indigenista, também na Câmara e
Senado, deixando a sociedade surpresa, como já havia ocorrido à época da
presença de Mário Juruna e seu inseparável gravador61. Essa incredulidade diante
59
Estes autores chamam atenção sobre a afirmação de identidades regionais e estaduais, sugerindo
que no Brasil o nacional passa primeiro pelo regional, o que se observa também nas organizações
indígenas. As organizações regionais como a Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB) e Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas
Gerais e Espírito Santo (APOINME), representam o papel do regionalismo no federalismo brasileiro.
60
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A crise do indigenismo. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1988.
61
Mario Juruna, índio Xavante eleito Deputado pelo PDT do Rio de Janeiro, primeiro parlamentar
índio se tornou famoso por registrar no gravador a promessa dos “brancos.
da nova atitude indígena se observou em outros Estados nacionais como o ocorrido
no Equador em 1990, quando os indígenas acamparam na Igreja de Santo Domingo
exigindo do governo solução para os conflitos de terras entre as comunidades
indígenas e as fazendas vizinhas, como não foram ouvidos, paralisaram as estradas
principais de acesso à capital, e ocuparam algumas sedes de províncias. A
“transformada sociedad indigena” e uma “nueva, joven y radicalizada representación
nacional” eram fenômenos que não se encaixavam na imagem convencional dos
indígenas (FRANK, 1991)62. Edgard Assis de Carvalho (1983) argumenta que a
constituição das identidades étnicos-culturais é uma questão teórica para a
Antropologia contemporânea, enquanto o estatuto dos movimentos sociais indígenas
no contexto do aparato do Estado moderno, ao se proclamar como pluricultural,
reconhece pelo menos ao lado das representações ideológicas que o direito ao
reconhecimento é uma das aspirações fundamentais da pessoa humana e das
identidades coletivas. O fenômeno, embora produto da inserção histórica dessas
etnias no conjunto da nação, expressa uma nova forma de articulação e reprodução
social das alteridades63.
A articulação entre a esfera local, nacional, internacional e o processo de
globalização, fez com que ocorressem transformações na forma de organização e
ação do movimento indígena, em nível interno das aldeias, tanto no plano
econômico quanto em nível da estrutura social das aldeias (ARRUDA,1999). Para
este autor, o processo de alargamento do mundo tribal vai minando o poder dos
mais velhos pautado na tradição, sendo substituído paulatinamente por novas
formas e lógicas de organização.

[...] de representação política e de atuação externa estabelecem uma


contrapartida, articulada a processos internos de reordenação sócio-cultural,
que altera formas e significações tradicionais, introduzindo um dinamismo, e
contradições, até certo ponto desconhecidos nessas sociedades64.

62
FRANK, Erwin H. Movimiento Indígena, Identidad Etnica y el Levantamiento. Um proyecto politico
alternativo en el Ecuador. In: Indios. Quito:Ediciones Abya-Yala, 1991.
63
CARVALHO, Edgard Assis de. Identidade étnico-cultural e movimentos sociais indígenas. In:
Perspectivas: Revista de Ciências Sociais. São Paulo: UNESP, vol. 6, 1983, p. 1-9.
64
ARRUDA, Rinaldo Sérgio Vieira. Índios e Antropologia: reflexões sobre cultura, etnicidade e
situação de contato. In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Sér. Antropo. Vol. 15 (1). Belém-
Pará, julho, 1999.
O movimento prima por lideranças mais adaptadas ao tráfego nessas esferas,
onde a escolaridade tem papel importante sendo espaço para novas gerações em
detrimento às tradicionais65.

2.6 Direitos Indígenas

Inicialmente é necessário definir os termos, índio e direitos indígenas. Em


item anterior foram vistas as interpretações do que é ser índio. Em face da lei em
vigor, índio se define com base na Lei 6001/73, conhecida como Estatuto do Índio,
na qual o disposto no artigo 3º parágrafo I, diz que índio é: todo indivíduo de origem
e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a
um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional.
Direitos Indígenas é o conjunto de direitos que se referem aos índios e suas
comunidades, cuja essência consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
na qual o primeiro artigo determina que: “Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e em direitos”.
O debate sobre os direitos indígenas, como dissemos no início deste capítulo,
tem envolvido profissionais de várias áreas. Chamamos atenção que direitos
indígenas estão incluídos em direitos humanos, que por sua vez, como afirma
Helder Barreto (2004), são “gênero do qual ‘direitos fundamentais’ são espécie66”.
Em Guy Haarscher (1993) os direitos humanos ou direitos do homem:

[...] constituem as protecções mínimas que permitem ao indivíduo viver uma


vida digna desse nome, defendido das ursupações do arbítrio estatal (ou
outro); são, por conseguinte, uma espécie de espaço ‘sagrado’,
intransponível, traçam à volta do indivíduo uma esfera privada e inviolável;
em resumo, definem uma limitação (pelo menos no que respeita à ‘primeira
geração’ dos direitos do homem) dos poderes do Estado, à qual
correspondem as chamadas ‘liberdades fundamentais’. (HAARSCHER,
1993, p. 13)

65
Mais recentemente o movimento tem reconhecido a necessidade de incorporar caciques ao
processo e de legitimar ao nível interno das aldeias as decisões das organizações ou das lideranças
tomadas em foruns diversos.
66
BARRETO, Helder Girão. Direitos indígenas. Vetores constitucionais. Curitiba: Juruá Editora, 2004.
p. 95.
Antônio Truyol ressalta o papel do Estado na defesa dos direitos humanos:
“[...] derechos fundamentales que el hombre posee por el hecho de ser hombre, por
su propia naturaleza y dignidad; derechos que le son inherentes, y que lejos de
nacer de una concesión de la sociedad política, han de ser por esta consagrados y
garantizados”67. Sousa (2001) defende a idéia que a noção de direitos humanos pode
e deve ser retomada por minorias socioculturais como meio de luta pela garantia de
seus direitos culturais68. Os direitos humanos também são entendidos como uma
norma com estreita ligação às necessidades humanas básicas, portanto, aplicáveis
aos seres humanos em qualquer parte, mas por ser um produto do Ocidente, requer
abertura para atender as particularidades culturais, opina Johan Galtung (1994)
neste estudo providencial para a reflexão que se pretende69.
Relativo às particularidades culturais uma expressão ainda esmaecida relativa
aos direitos indígenas versus necessidades, é a discussão trazida por Rodolfo
Stavenhagen (1990) sobre direito consuetudinário dos povos indígenas. A
importância do debate, segundo este autor, repousa em dois pontos: a) considerar
este direito como parte integrante da estrutura social e língua de um povo; b) junto
com a língua, o direito consuetudinário (ou não) como um elemento constitutivo da
identidade étnica de um povo, nação ou comunidade. Para este autor, o termo
direito consuetudinário não é aceito universalmente. Outros preferem falar de
costume jurídico ou legal ou de sistema jurídico alternativo. Definido como um
conjunto de normas legais de tipo tradicional, escritas ou não, esse direito pode
conviver com o direito positivo. Exemplificando: em países onde é reconhecido o
pluralismo legal, os diferentes sistemas jurídicos podem ser aplicados a uma
população distinta (direito hindu e islâmico na Índia)70.
A noção de direito consuetudinário deveria não ser substantivada para que
tivesse um tratamento mais de acordo com a antropologia contemporânea. O que se
designa por direito consuetudinário é o que os antropólogos chamam de estrutura
social, conceito derivado do direito e divulgado pela maioria dos antropólogos do
século XIX, em sua maioria juristas de formação, e alerta sobre os problemas
67
Apud Barreto, op. cit,2004,p. 95.
68
SOUSA, Rosinaldo Silva de. Direitos Humanos através da história recente de uma perspectiva
antropológica. In: Antropologia e Direitos Humanos. Niterói/RJ: EDUFF, 2001, p. 47-79.
69
GALTUNG, Johan. Direitos Humanos. Uma nova perspectiva. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. (Col.
Direito e Direitos Humanos)
70
STAVENHAGEN, Rodolfo & ITURRALDE, Diego (org). Entre la ley y la costumbre. El derecho
consuetudinario indígena en América Latina. México: Instituto Indigenista Interamericano /Instituto
Interamericano de Derechos Humanos, 1990, p.27-29.
advindos dessa herança, pois as sociedades eram pensadas como organismos
vivos e as mudanças não afetavam a forma estrutural da sociedade. A partir dos
anos 1950 se discutiu o processo de elaboração constante de uma sociedade. A
primeira conseqüência dessa mudança de visão foi entender que as regras eram
produtos sociais que se renovavam, portanto, o que se devia respeitar aos grupos
minoritários não eram regras específicas, mas a autoridade para elaborá-las. A
segunda conseqüência foi entender que o direito consuetudinário se fazia em
relação ao Estado em oposição ao direito positivo, e ressaltou que o direito positivo
e o consuetudinário eram de natureza e utilização diferentes, apesar de poderem
conviver pacificamente não podiam ser reduzidos a um sistema único 71 (CUNHA,
1990)
Um dos problemas dos Estados que se constituíram politicamente antes de
terem uma identidade nacional foi reconhecer os direitos de suas minorias e povos
autóctones, pelo temor de que a unidade política se desmoronasse, e a
multietnicidade pudesse ser uma ameaça como é o caso do Brasil. A Constituição
Federal de 1988 de certa forma reverteu essa situação, senão pelo reconhecimento
do direito consuetudinário dos diferentes povos indígenas, mas pelo reconhecimento
de alguns aspectos de seus direitos (CUNHA, 1990).

2.6.1 Direitos coletivos: direitos das minorias

Comentando o que representou para a sociedade a Constituição de 1988, a


Procuradora da República Débora Duprat, afirmou ter sido:

Uma clivagem a todo o sistema constitucional pretérito, uma vez que


reconhece o Estado brasileiro como pluriétnico, e não mais mais pautado
em pretendidas homogeneidades, garantidas ora por uma perspectiva de
assimilação, mediante a qual sub-repticiamente se instalaram entre os
diferentes grupos étnicos novos gostos e hábitos, corrompendo-os e
levando-os a renegarem a si próprios ao eliminar o específico de sua
identidade, ora submetendo-os forçadamente à invisibilidade (PEREIRA,
2002, 41).

71
CUNHA, Manuela Carneiro da. Derecho consuetudinário y derechos indígenas. In: Stavenhagen, R.
& Iturralde, D (org). Entre la ley y la costumbre. El derecho consuetudinário indígena en América
Latina.México: Instituto Indigenista Interamericano/ Instituto Interamericano de Derechos Humanos,
1990, p. 299-303.
Para explicar a atuação do Direito prosseguiu a Procuradora:

[...] sendo o direito um conjunto de representações sociais, toda a


normatividade que contemple esses grupos étnicos tem de se pautar por
sua compreensão da vida, sob pena de inconstitucionalidade e carência de
eficácia em função da subversão dos valores que orientam a consciência
coletiva72. (Idem)

Quanto ao tratamento de questões relativas às sociedades indígenas são os


“novos direitos”, que se desvinculando de uma especificidade absoluta e estanque
como ensina Wolkmer assumem caráter relativo, difuso e metaindividual.
Considerada uma revolução na dogmática jurídica clássica, “os direitos de ‘terceira
dimensão’ são compreendidos como, direitos meta-individuais, direitos coletivos e
difusos, direitos de solidariedade. Seu titular não é o homem individual (tampouco
regulam as relações entre indivíduos e Estado), mas dizem respeito à proteção de
categorias e grupos de pessoas (família, povo, nação), não se enquadrando nem no
público nem no privado”73.
As distinções entre os direitos difusos, segundo alguns operadores do Direito,
não ficam claras. Os direitos difusos centram-se em realidades fáticas, genéricas e
contingentes, acidentais e mutáveis, que engendram satisfações comuns a todos
(pessoas anônimas), enquanto os direitos coletivos envolvem interesses comuns no
interior de organizações sociais, sindicatos, associações profissionais (Idem, p, 10).
Os interesses e direitos coletivos podem ser definidos como ”interesses
comuns a uma coletividade de pessoas” com “vínculo jurídico que as congrega74”,
enfim, uma coletividade facilmente identificável como são os povos indígenas
(CÁTIA SILVA, 2001).
Segundo Thaís Colaço (2003), os direitos indígenas compreendem os direitos
territoriais, culturais e direitos à auto-organização. Os “novos direitos” se contrapõem
ao modelo integracionista. São os direitos referentes à diversidade étnico-cultural e a
auto-organização, em outras palavras, o direito à diferença. O Estado, ao garantir o
direito à igualdade, garante o direito à diferença, porém o direito dos povos não deve
ser oposto aos direitos individuais, isto é, enquanto o cidadão é sujeito de direitos
72
PEREIRA, Débora Duprat de B. O Estado pluriétnico. In SOUZA LIMA, Antônio Carlos e
BARROSO-HOFFMANN, Maria (orgs). Além da Tutela. Bases para uma nova política indigenista
III.Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/LACED, 2002, p. 41.
73
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos “novos direitos”.
In: Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas. Uma visão básica das novas conflituosidades
jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 9.
74
SILVA, Cátia. Justiça em jogo: novas facetas da atuação dos promotores de justiça. São Paulo:
Editora Universidade de São Paulo, 2001, p. 39.
individuais, independente das diferenças sociais e culturais, a autonomia dos povos
estabelece direitos diferenciados75. Apesar dos avanços apresentados na
Constituição de 1988, Colaço considera que há dificuldade em garantir o direito à
auto-organização e a diversidade cultural dos povos num Estado que prega a
igualdade de direitos para todos independente de suas diferenças76.
Portanto, as transformações sociais, a complexidade dos sujeitos coletivos,
novas subjetividades, e diversidade nas maneiras de ser em sociedades,
intensificaram a busca por representação e solução de direitos coletivos,
especialmente daqueles que não eram contemplados pela juriscidade vigente como
o direito das minorias (minorias étnicas, religiosas, sexuais). Bobbio (1992, p.73)
aponta três razões para o processamento dos novos direitos: a) aumento da
“quantidade de bens considerados merecedores da tutela”; b) extensão da
“titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem”; c) a mudança
de concepção do homem como ser genérico e abstrato para ser “[...] visto na
especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em
sociedade, como criança, velho, doente etc77”
No debate sobre minorias e povos autóctones, Norbert Rouland (2004), diz
que a não existência de um termo científico único, e definição jurídica global que
sirva para qualificar os povos autóctones demonstram que essa indeterminação
sinaliza para as dificuldades presentes na construção dos mesmos como sujeitos de
um novo direito. O termo autóctone provém da geologia78 que empresta seu sentido
para definir povos autóctones, como sendo aqueles instalados em territórios
considerados imemoriáveis ou considerados como tais. O termo indígena
empregado nos países anglo-saxões designa os primeiros habitantes de uma terra.
No entanto, seu alcance jurídico e reivindicatório é fraco, pois se refere a um período
antes da formação dos Estados (o autor se refere à Europa em particular), razão

75
COLAÇO, Thais Luzia. Os Novos Direitos Indígenas. In Wolkmer, Antônio Carlos. e Morato, J.R.L.
(Orgs) Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas.Uma visão básica das novas
conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 75-97.
76
O “direito dos outros” é um tema que ganha corpo no Direito na perspectiva da Pluralidade Jurídica
que vem à luz no bojo das reformas constitucionais na América Latina onde se busca reconhecer a
existência de uma “realidad plural jurídica y cultural de facto que caracteriza a la maioria de los paises
latino americanos”. Ver: LUCIC,Milka Cristina e SIERRA, Maria Tereza. Presentación: Derechos
Indígenas y Pluralismo Jurídico en América Latina. In América Indígena. Instituto Indigenista
Interamericano/OEA, México, vol. LVIII. No.1-2, ene-Jun, 1998, p.9.
77
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 73 apud Wolkmer, 2003, p.
4.
78
Por exemplo, terrenos autóctones são os que permanecem no local em oposição aos lençóis
freáticos vindos de outro lugar. Cf. Rouland, 2004, p. 458.
porque o termo aborígine é usado nos países anglófonos, pois qualifica de forma
mais precisa “a situação de um povo indígena cuja reivindicação identitária se
baseia no fato de ele estar sob dependência do tipo colonial em relação a um
Estado, mesmo que a anexação ou a ocupação date de muitos séculos e não tome
a forma jurídica stricto sensu da colonização79”.
A Convenção 169 da OIT se refere aos povos indígenas e tribais, mas não
emprega o termo autóctone. Os autóctones tendem a se distinguir das minorias sob
argumentos históricos de que o direito das minorias tem uma amplitude em suas
origens, desde as guerras de religião às modificações de fronteiras, ocorridas depois
de dois conflitos mundiais. Além disso, os direitos reconhecidos às minorias são
essencialmente direitos individuais. A vontade de se distinguir dos autóctones e das
minorias segundo Rouland, envolve pontos de vistas e atitudes contrárias a certas
crenças como, por exemplo, o progresso econômico como sinônimo de
desenvolvimento. Para eles progresso é sinônimo de destruição, e a promoção de
seus direitos resulta de combates jurídicos e políticos contra projetos dessa
natureza. A luta por seus direitos tem lhes propiciado a clareza de que não cabe
mais exclusivamente ao Ocidente a ação discriminadora ou exterminadora
realizadas sobre si, os Estados do Oriente também se lançam com a mesma fúria
sobre os povos autóctones e seus territórios (Idem, p. 459-465).
No Brasil, apesar dos princípios reconhecidos que beneficiam os povos
indígenas, negros e outras minorias étnicas, como ciganos e palestinos, os
indicadores das desigualdades raciais revelam severas diferenças das condições de
vida dos grupos raciais e étnicos. O documento produzido pela Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), do governo federal,
registra que na área educacional houve um efeito positivo para os negros com a
expansão da rede de ensino fundamental entre 1991-2000. A taxa bruta de
freqüência dos brancos passou de 105, 3% para 120, 6%; para os negros os índices
apontaram um crescimento de 95% para 128%. Para os indígenas, o documento
apenas se refere à necessidade de recursos compatíveis à efetiva escolarização80.
Discutimos as questões relativas à educação indígena no Capítulo IV deste estudo.

79
ROULAND, Norbert. O direito dos povos autóctones/Parte III. In: ROULAND, Norbert (org). Direito
das Minorias e dos povos autóctones. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 458.
80
1ª Conferência Nacional de Poilíticas de Promoção da Igualdade Racial –1ª CONAPIR: Estado e
Sociedade. Promovendo a Igualdade Racial/SEPPIR, março. 2005.
2.6.2 Os direitos indígenas: o papel da academia

A preocupação pela garantia e ampliação dos direitos indígenas foi retomada


quando o país caminhava para democratização. Uma das evidências foi a crescente
literatura produzida em vários níveis tanto acadêmica quanto de divulgação,
resultados de conclaves que discutiam os temas indígenas perante o direito, pois
havia a necessidade crescente de submeter à análise, a legislação indigenista diante
de um novo Estado que se descortinava.
A responsabilidade do diálogo interdisciplinar foi chamada por Silvio Coelho
dos Santos (1982, 1985, 1989), intelectual da antropologia brasileira. Os primeiros
títulos foram frutos do esforço do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal de Santa Catarina, congregando advogados e antropólogos
com o intento de discutir questões relacionadas à realidade pluriétnica e
multisocietária do país, o confronto com a ideologia de um Estado uni nacional às
vésperas de uma nova Constituição.
O debate sobre decisões jurídicas favoráveis às sociedades indígenas na sua
luta pela sobrevivência física e cultural, resultaram na construção de fundamentos
das argumentações das lideranças indígenas e entidades de apoio junto à
Assembléia Nacional Constituinte (ANC)81. Alguns pontos desses debates foram: a) a
atual legislação indigenista é integradora, e autoritária b) a defesa do direito indígena
exige a crítica das bases formadoras do Estado Brasileiro; c) a disparidade entre
princípios que regem as definições de “índio” e “comunidade indígena”, confundindo
critérios de ordem sociológica e jurídica (comunidade indígena), com biológica e
sociológica (índio); d) ambigüidades sobre quem tem direito a terra, isto é, quem é
índio de fato; e) dúvida sobre a legitimidade das lideranças indígenas diante da
FUNAI; f) a origem militar das agências indigenistas que propiciaram forte
intervenção das agencias indigenistas na vida das comunidades e facilitaram a
expropriação dos territórios tribais.

81
SANTOS, Silvio Coelho dos. O Índio perante o Direito. Ensaios (org.). Florianópolis: Ed. da UFSC,
1982; et alli. Sociedades Indígenas e o Direito. Uma questão de direitos humanos. Florianópolis: ed.
da UFSC, Co-Edição CNPq, 1985; Os povos indígenas e a Constituinte. Florianópolis: ed. da
UFSC/Movimento, 1989.
Carlos Frederico Marés de Souza (2002, p. 50), ao examinar o
reconhecimento dos direitos coletivos (meio ambiente, patrimônio cultural), dos
direitos difusos, em contraposição aos direitos individuais na Constituição de 1988,
chama atenção que esta ao romper com a integração, demonstra que o direito
brasileiro reconhece o direito dos indígenas continuarem a ser índios e sua
titularidade de direitos coletivos. Também aponta o que chama de “armadilhas da
Constituição” por esta criar direitos, mas não os executar, “a ponto de impossibilitar
sua pronta efetividade”.
Uma dessas lacunas deu margem a interpretações relativas à primazia da
propriedade individual sobre a coletiva, competindo aos juristas e ao povo uma
interpretação segundo os princípios da CF/88, que privilegiem o coletivo. Os direitos
coletivos, por terem titularidade difusa, são apropriáveis por todos, portanto os povos
indígenas têm dois direitos diferentes. O primeiro, o direito a sociodiversidade, é um
direito de todos, e necessário à existência dos povos e espécies vivas. O segundo é
relativo àquele povo ou minoria, dos quais é titular apenas aquele povo, envolvendo
os direitos territoriais, culturais e de organização própria. O autor reafirma que a
dificuldade de aceitação dos direitos coletivos reside no fato da representatividade e
legitimidade serem adjetivos ligados bem mais à eficiência do Judiciário que ao
efetivo exercício de tais direitos (SOUZA, 2002, p. 51-53).
Em trabalho anterior, analisou o pluralismo da perspectiva de seu
reconhecimento constitucional e criticou as políticas liberais e assimilacionistas
dominantes nas constituições latino-americanas, chamando atenção que os povos
indígenas possuíam seu próprio direito, à luz do qual ordenavam suas vidas. Os
Estados ao realizarem esforços para integrá-los transformando-os em cidadãos,
dão-lhes direitos genéricos que lhes usurpa o direito indígena. Dessa maneira,
quando se analisa o direito brasileiro em relações às minorias negras e étnicas, são
reveladas contradições da lei, que ora se omite para não consagrar direitos, ora
tergiversa para ocultar injustiças82.

2.7. Política indigenista e direitos dos indígenas em outros Estados Nacionais

82
SOUZA, Carlos Frederico Marés de. Autodeterminación de los Pueblos Indígenas y Jusdiversidad
In América Indígena. Vol.LVIII, México: Instituto Indigenista Interamericano/OEA, Ene-Jun, 1998, p.
301-320.
O debate sobre os direitos dos indígenas não é um fenômeno brasileiro, é
resultado do processo de lutas que se estende por todo o continente, em razão das
mudanças ocorridas a partir dos anos setenta e a influência sobre as políticas
indigenistas dos diversos países da América Latina, levando os estudiosos a
refletirem sobre as políticas indigenistas de seus países ou realizá-las
comparativamente com outros Estados Nacionais.
O debate sobre identidade dos países latino-americanos, tomando como
exemplo o Movimento Chiapas, é realizado em Bengoa (1994), que considera como
pós-indígena. Em 1994, ao negociar com o delegado mexicano suas lideranças o
fizeram em sua língua, o tzotzil, com tradução simultânea para o inglês,
demonstrando seu rompimento com o domínio do castelhano a que estiveram
submetidos há gerações. Acontecimentos como estes instigam várias ilações, em
especial aquelas que se referem à identidade dos países latino-americanos,
tornando os assuntos étnicos um dos aspectos mais complexos da convivência
social contemporânea83.
Agüero (1996), Tamagno (1996) e Repetto (1996) analisam respectivamente
as políticas indigenistas na Amazônia Peruana, Argentina e Chile sob diferentes
ângulos, porem apresentam pontos em comum, por exemplo: a) a política
indigenista expressa a face política que o país atravessa; b) na relação com a
sociedade nacional os povos indígenas sofrem diferentes graus de exploração,
exclusão e negação que podem ser interpretados como processos contínuos de uma
política de extermínio; c) a forma de interpretar o índio a partir da idéia de um ser
selvagem, o coloca em oposição à concepção de civilização entendida como cultura
do conquistador; d) a indagação sobre terem direitos enquanto indígenas e direitos
enquanto cidadãos84.
A paz colonial e suas conseqüências sobre as políticas indigenistas da
Argentina e Brasil são comentadas em Arias (1996) que considera a política aplicada
aos povos indígenas como parte do processo de construção e reconstrução da

83
BENGOA, José. Los indígenas y el Estado Nacional en América Latina. Anuário Indigenista,
diciembre, vol. XXXIII. México: Instituto Indigenista Interamericano, 1994, p. 13-40.
84
AGUERO, Oscar Alfredo. La política indigenista en la Amazonia Peruana. GT Política Indigenista
XX Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, out., 1996 digit; TAMAGNO, Lilian. Las
Políticas indigenistas en Argentina. Discursos, derechos, poder y ciudadania. Gt. Política Indigenista,
ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, 1996, digit.; REPETTO, Maxim. Política indigenista en Chile. Gt.
Política Indigenista, ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, out. 1996, digit.
hegemonia cultural e política, onde as relações entre índios e brancos se realizam
num contexto de Estado nacional e que este processo começou com a organização
do sistema jurídico-político85.
Os modelos de política indigenista do Brasil, Austrália e Canadá, são vistos
em Baines (1999) que reflete sobre esses modelos, dizendo que eles têm relação
com a forma como o indígena foi pensado e construído nestes países, e os
discursos indígenas tanto universalizantes quanto autoctonizantes foram elaborados
dentro de contextos altamente politizados86.
Hodgson (2002) demonstra com base em dois estudos de caso na África e
América que histórias, agendas e dinâmicas do movimento apresentam pontos de
semelhança e diferença. Por exemplo, questões acerca da representação política,
reconhecimento, recursos e direitos desses movimentos se engajam nas artimanhas
políticas, econômicas e a complicada cultura da inclusão/exclusão evocada pelo
termo “indígena”. Enquanto na América os indígenas têm status de “primeiros
povos”, na África o termo foi adotado recentemente como ferramenta de mobilização
em razão de uma história de conquista, assimilação e migração que exige do
movimento o estabelecimento de critérios para definir quem é indígena87.

2.8 Democracia Participativa, Cidadania e Políticas de Reconhecimento

As últimas décadas têm sido marcadas por lutas em prol da libertação de


povos contra governos autoritários e sua substituição por democracias, uma luta tão
intensa que Fukuyama88 considerou que o movimento ideológico do Ocidente estava
no fim. Os conflitos étnicos que estamos observando mostram que isso não é
verdade. Enquanto escrevemos, as notícias sobre a ação de vários homens-bomba
85
ARIAS, Nora Júlia. La Paz Colonial: origenes y consecuencias de las políticasss indigeistas en
Argentina y Brasil. GT. Política Indigenista, ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, out. 1996, digit.
86
BAINES, Stephen G. A política indigenista em três Estados Nacionais de colonização européia:
Brasil, Austrália e Canadá. In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, n.s. Antropologia, no. 1,
Belém, 1999.
87
HODGSON, Dorothy L. Comparative perspective on the indigenous rights mouvements. In: Africa
and America in Focus Indigenous Rights Mouvements. Introduction. American Anthropologist Journal
of the American Anthropological Association, vol. 104, no. 4, december, 2002.
88
FUKUYAMA, Francis. “The End of History” The National Interest (Summer, 1989) apud Benhabib,
Seyla. Democracy and Difference. Contributing The Boundaries of the Political. Princeton University
Press, New Jersey, 1996, p. 3.
de origem paquistanesa, supostamente ligados à rede Al-Qaead, atingem o metrô e
coletivos em Londres, como protesto da ocupação do Iraque por tropas inglesas.
Estas, juntamente com tropas italianas e espanholas, sob comando do exército
americano do governo Bush, invadiram o país sob o pretexto que Saddam Hussein
produzia armas químicas. A vitória do blefe que tem custado, a vida de civis tanto
iraquianos, quanto de outras nacionalidades, sem falar nas atrocidades cometidas
por soldados americanos com os prisioneiros de guerra iraquianos, impondo outra
“ética” em situações de conflito. Outra decorrência foi, a globalização de inimigos,
que são todos aqueles de origem palestina em qualquer lugar do mundo, fato que
tem obrigado representantes dessas etnias a se pronunciarem sobre a diferença
entre terrorismo islâmico e ser muçulmano.
Em nível interno, o governo brasileiro enfrenta uma onda de escândalos
provocada por acusações de corrupção envolvendo ativistas históricos da antiga
esquerda que fazem parte hoje da nova elite governamental, bem como políticos de
partidos de oposição, fortalecendo a descrença na representação. Diluída entre
essas notícias, a aprovação do projeto de construção do complexo hidrelétrico Belo
Monte, na Volta Grande do Xingu (municípios de Altamira e São Felix do Xingu),
pelo Congresso, sem consulta aos nove povos indígenas localizados nas áreas de
impacto direto (AID) e indireto (AII) do empreendimento, ignorando o que estabelece
o Capítulo VII – “Dos Índios”, Artigo 231, parágrafo n.º 3, da Constituição Federal de
1988: “O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos,
a pesquisa e lavra das riquezas minerais só podem ser efetivadas com autorização
do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada
participação nos resultados das lavras, na forma da lei”89 (Grifo nosso).
A inexistência de um novo estatuto para os povos indígenas fortalece as
“armadilhas da Constituição” como se expressou Carlos Frederico Marés de Souza
(2002, p. 50), pois não executam os direitos presentes na CF/88, favorecendo
situações da natureza que envolve interesses do governo, das elites nacionais e
regionais e, dos quais, os grupos indígenas continuam a ser alijados e tratados
como se juridicamente nada tivesse alterado após 1988. É importante lembrar que
no inicio dos anos noventa foram propostas três versões do Estatuto das

89
À época dos Estudos de Viabilidade realizados entre janeiro a abril de 2001, apenas os grupos
indígenas na área de impacto direto (AID) foram visitados pela equipe responsável pelos Estudos
Indígenas do CHE Belo Monte do qual fui Coordenadora juntamente com Louis Forline, pesquisador
do Museu Goeldi.
Sociedades Indígenas, apresentados pela FUNAI-Fundação Nacional do Índio, CIMI-
Conselho Indigenista Missionário e NDI-Núcleo de Direitos Indígenas. As propostas
do CIMI e NDI fundamentaram o substitutivo do Deputado Luciano Pizzato aprovado
na Câmara. Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, o Estatuto teve sua
tramitação paralisada em 1994 e jamais votado. À época da comemoração dos 500
Anos, uma nova proposta intitulada Estatuto dos Índios e das Comunidades, foi
apresentada sem surtir o efeito desejado. Apesar do empenho do movimento
indígena, as questões referentes à exploração dos recursos minerais, florestais,
hídricos em terras indígenas e a participação dos indígenas no processo de decisão,
foram consideradas polêmicas por envolverem interesses políticos e econômicos,
razões suficientes para obstruir o avanço das discussões do Estatuto.
Esse fato demonstra que os direitos territoriais, ainda devem ser um dos
pontos controvertidos da problemática indígena e, possivelmente, um termômetro da
temperatura da democracia brasileira, sugerindo que se pergunte: a ação do
movimento indígena produz alterações no diálogo com o Estado, ou esse diálogo é
possível apenas quando os temas não afetam diretamente os interesses das elites?
Ou ainda: como as ações de grupos destituídos de poder podem influir para que
haja mudanças no quadro de relações e abertura de novos roteiros de vida?
Nos últimos anos há exigência de maior democracia, e que esta se exprime
pela substituição da democracia representativa por uma democracia direta inspirada
em Rousseau, quando este afirmou que a soberania não pode ser representada,
citando como exemplo a crença dos ingleses em sua liberdade, e do engano que
estavam sofrendo: “o povo inglês acredita ser livre, mas se engana redondamente;
só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez eleitos estes, ele
volta a ser escravo, não é mais nada”90 (BOBBIO, 2000).
Além disso, Bobbio (2002) aponta três condições para a democracia: 1)
atribuição a um elevado número de cidadãos com direito a participar direta e
indiretamente; 2) a existência de regras e procedimentos; 3) garantia dos direitos de
liberdade de opinião, de associação aos que são chamados a decidir ou eleger.
Estas condições consideradas direitos-base provêm de onde o Estado liberal se
originou, mas são aspectos ideais, pois a matéria bruta, a democracia real, está

90
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contratto sociale, III, 15 (Ed. bras.). Do Contrato Social ou Princípios
do Direito Político. Tradução de Lourdes do Santo Machado. São Paulo, Abril, “Os Pensadores”,
1973. Trad. Bras. São Paulo, Abril, “Os Pensadores”, apud BOBBBIO, Norberto. O futuro da
democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 53.
muito longe do que foi imaginado por Rousseau, Toccqueville e Stuart Mill. Ou seja,
a democracia não chega a atingir o interior da sociedade.
Ao distinguir as sociedades de acordo com o grau de pluralismo que
apresentam, Dahl (1997) afirma que o pluralismo societal é um dos determinantes
da democracia. Com isso advoga que haveria certo equilíbrio entre os grupos
sociais, pois nenhum deles poderia garantir sua preponderância sobre os demais. A
democracia seria então fruto de um cálculo de custos e benefícios feitos por atores
políticos em conflito, portanto, a adesão às regras democráticas tem um caráter
contingencial, criando condições para que atores políticos e suas demandas possam
ganhar espaço político.
Ao considerar o grau de responsividade de um governo aos seus cidadãos, o
autor evoca que estes cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas,
estabelecidas sob três condições: 1) formular preferências; 2) exprimir preferências;
3) ter preferências igualmente consideradas na conduta do governo. Estas
oportunidades estão relacionadas a diversas garantias institucionais, que apontam
em última análise para a contestação pública e direito à participação. Como as
democracias estão muito longe do ideal democrático, Dahl sugere o termo
poliarquia. As poliarquias “seriam regimes relativamente [mas incompletamente]
democratizados, ou, em outros termos, as poliarquias são regimes que foram
substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e
amplamente abertos à contestação pública” (DALH, 1997, p. 26-31). A razão desta
incompletude está na existência, na grande maioria dos Estados nacionais, de dois
sistemas identificados por Dahl, o regime aproximadamente hegemônico, que
oferece um grau maior de oportunidades de contestação do que um regime
hegemônico; uma quase-poliarquia que mesmo inclusiva ofereceria restrições mais
severas à contestação pública do que uma poliarquia plena. Essas quase-
poliarquias também poderiam favorecer a contestação pública, mas serem menos
inclusivas.(Idem, p. 31). Nesse raciocínio o autor supõe que, o deslocamento de
regimes hegemônicos e oligarquias competitivas em direção a uma poliarquia
produzem um aumento de oportunidades de efetiva participação e contestação e,
portanto, maior número de indivíduos, grupos de interesse nas decisões políticas.
Assim, o caminho para se atingir a uma poliarquia viria através da
democratização que consiste de diversas transformações históricas amplas, que
modificaram hegemonias e oligarquias competitivas em quase-poliarquias,
processos que ocorreram no século XIX, e século XX até a Primeira Guerra Mundial.
A trajetória de diversos Estados em direção a poliarquias se fez com o
desenvolvimento do Estado de bem-estar antes da depressão, retomado após a
Segunda Guerra e um novo impulso após os anos 1960, fase com grande
intensidade na caminhada pela democratização. As reflexões de Dahl foram feitas
sobre as duas primeiras fases (Idem, 1977, p. 33). Ainda relativo à participação,
Dahl está entre os autores do pós-guerra que consideram a representatividade como
um elemento fundamental em democracias de grande escala que pode resolver o
problema da autorização daqueles que pretendem ter suas demandas
encaminhadas, pois

[...] quanto menor for uma unidade democrática maior será o potencial para
a participação cidadã e menor será a necessidade para os cidadãos de
delegar as decisões de governo para seus representantes. Quanto maior for
a unidade, maior será a capacidade para lidar com problemas relevantes
para os cidadãos, e maior será a necessidade dos cidadãos de delegar
decisões para os seus representantes” (DAHL, 1998, p. 110).

Analisando o tema da representação no contexto da concepção hegemônica


de democracia, Boaventura de Sousa Santos (2003) aponta inicialmente os dois
pilares da tese da autorização. O primeiro relativo ao consenso dos representantes e
à origem desse principio, ligado ao exercício direto da gestão nas cidades-estado ou
repúblicas italianas, cuja falta de autorização era substituído pela idéia do direito de
todos ocuparem cargos de decisão política. A idéia do consenso ao tomar corpo no
interior dos debates sobre uma teoria racional de política tornou sem sentido o
sorteio, próprio às formas republicanas de decisão. O segundo pilar remete ao
pensamento de Stuart Mill, para o qual a assembléia constitui a miniatura do
eleitorado e toda assembléia representativa é capaz de expressar as tendências
dominantes do eleitorado. Santos opina que a representação, se ligada
exclusivamente ao problema das escalas, ignora as três dimensões da
representação: a da autorização, da identidade e da prestação de contas. O mesmo
autor considera que a representação facilita o exercício da democracia numa ampla
escala, mas apresenta também limitações por dificultar a prestação de contas e a
representação de múltiplas identidades, ou seja, não garante que identidades
minoritárias possam se expressar no parlamento, bem como dilui a prestação de
contas pelo representante (SANTOS, 2003, p. 48-50).
Ao lado disso, os acontecimentos das últimas décadas, entre eles a
intensificação da globalização, os conflitos étnicos em defesa de seus direitos,
trouxeram à luz o debate entre democracia representativa e democracia
participativa. (SCHUMPETER, 1942; CROZIER, HUNTINGTON, WATANUKI, 1975).
A presença da democracia participativa esteve relacionada a essas alterações
no contexto global, que emergiu para além das experiências dos novos movimentos
sociais (NMS), especialmente em países onde a busca pela ampliação do político,
ampliação da cidadania, a luta pelo reconhecimento das diferenças tanto sob o
ponto de vista da desigualdade social quanto das diferenças étnicas e culturais,
exigiram maior participação política (BENHABIB, 1996; FRASER, 2001).
A Constituição de 1988 se estruturou sob o aspecto da democracia
representativa e participativa. Fruto das transformações oriundas das ações dos
movimentos sociais e dos interesses de grupos de expressão política, a
democratização que propiciou a queda do regime ditatorial e a instalação da Nova
República foi contaminada pelas mudanças no contexto mundial, onde a
reivindicação por inclusão e a conseqüente inserção de novos atores na cena
política “instaurou uma disputa pelo significado da democracia e pela constituição de
uma nova gramática social” (SANTOS, 2003, p.54).
A gramática social no Brasil apresenta uma nova conjugação ao reconhecer
sua condição de país pluriétnico e não mais baseado em pretensas
homogeneidades. Mesmo assim, as minorias étnicas ainda têm um longo caminho a
percorrer para garantir que a democracia se estenda até elas, que a cidadania
anunciada, como no caso dos indígenas se transforme em realidade.
A cidadania entendida como processo de aquisição cumulativa de direitos,
tanto em limitações ao Estado quanto na incorporação gradativa de camadas da
população na condição de cidadãos, passa a ter sentido para os povos indígenas a
partir da Constituição Federal de 1988, que marca a reconstrução da democracia e,
consequentemente da participação de diversos segmentos sem voz e visibilidade no
cenário político, instituindo diversos direitos mediante estabelecimento de estatutos
para atender categorias como, velhos, mulheres, crianças, adolescentes,
consumidores e grupos de interesse privado.
A luta pelos direitos se realiza no interior das fronteiras geográficas e políticas
do Estado-Nação, “portanto a cidadania tem a ver com o Estado-Nação”, ou seja, as
pessoas se tornam cidadãs a medida que passam a fazer parte da Nação. Durante o
governo militar foram observados retrocessos, avanços e ambigüidades,
representadas pela ampliação dos direitos sociais e restrição dos políticos e civis. O
“milagre brasileiro” afetou a luta em favor desses direitos, pois mantinha a classe
média, trabalhadores rurais e urbanos relativamente satisfeitos. Os direitos civis com
a suspensão do habeas-corpus, violação da privacidade do lar e da correspondência
e cerceamento da liberdade de pensamento, representaram o clima dos anos de
ditadura. A democratização trouxe de volta os direitos políticos com o retorno das
eleições presidenciais e a continuidade da crença que a solução dos problemas
políticos e econômicos do país poderia ser obtida pela presença de figuras
messiânicas, como foi o caso de Collor de Mello e seu conjunto de reformas. Apesar
dos avanços sociais obtidos na Constituição de 1988, as desigualdades sociais
persistem. Em outro trecho, Carvalho considera que a desigualdade é, sobretudo, de
natureza regional e racial, gerando altos níveis de pobreza e miséria, em
decorrência da concentração de riqueza nacional nas mãos de poucos. Por
exemplo, apesar da criação do Programa Nacional de Direitos Humanos em 1996,
sua pouca eficácia tem levado as pessoas a tentar resolver seus problemas por
conta própria91. (CARVALHO, 2003)
Em sua análise Carvalho (2003) faz ponte com a cronologia e a lógica dos
direitos descrita por Marshall dizendo que no Brasil eles foram invertidos. Em
primeiro lugar vieram os direitos sociais implantados em períodos onde os direitos
políticos haviam sido suprimidos e os civis reduzidos pela ação da ditadura. Em um
novo turno os direitos políticos foram ampliados com a expansão do voto num
período ditatorial, enquanto os direitos civis permaneceram inacessíveis à maioria da
população92.
A obra clássica de T. H. Marshall Cidadania, Classe social e status,93 se
tornou segundo autores que debatem sobre o tema da cidadania, um referencial
paradigmático para definição da evolução dos direitos no Ocidente (LAFER, 1998;
BONAVIDES, 1997). A obra focaliza os processos de mudança social e seus efeitos
sobre as instituições e valores políticos, isto é, de que forma o desenvolvimento
contribui para a diferenciação estrutural, a especialização funcional das atividades
humanas e o reflexo das mesmas sobre os valores e as instituições da sociedade.

91
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 4ªedição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003 p. 208.
92
Idem, 2003, p. .219-220.
93
MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
As liberdades civis foram garantidas por um Judiciário cada vez mais independente
do Executivo, que criava condições para a expansão dos direitos políticos firmados
por partidos e Poder Legislativo. Finalmente os partidos e o Congresso votaram os
direitos civis postos em prática pelo Executivo94.
A política brasileira pós-64 é vista em Santos (1979), que considerou a
cidadania como o conceito que permite compreender a política econômica e social
pós anos 1930, indicando a passagem da esfera da acumulação para a eqüidade.
Este tipo de cidadania ele definiu como cidadania regulada95

[...] cujas raízes encontram-se não em um código de valores políticos, mas


em um sistema de estratificação ocupacional, e que ademais, tal sistema
[...] é definido como norma legal. Em outras palavras são cidadãos todos
aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em
qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei [...] a
cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se
aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como
reconhecido por lei (SANTOS, 1979, p. 75).

A associação entre cidadania e ocupação, influiu para a categorização das


atividades regulamentadas ou não. A categoria dos trabalhadores é “escassamente
integrada na ordem mercantil capitalista”, seja na participação do processo de
acumulação, seja na posição que ocupa no fluxo de distribuição de benefícios, pois
ficam carentes de qualquer atenção por parte do governo. Após a década de 50 do
século XX, em razão de numerosos problemas no campo, reconhece-se a
necessidade da inclusão desse segmento à sociedade nacional96. A discussão de
Wanderley Guilherme dos Santos fornece subsídios para se pensar a condição de
cidadania dos índios após a Constituição de 1988, onde apesar do aparato legal
existente foram referidos no censo somente a partir de 1991, o que significa
embaraços para o estabelecimento de políticas mais próximas à realidade do
segmento, somadas a uma participação muito limitada nas decisões que lhes dizem
respeito. E quando isso acontece, a desproporção em relação às demais categorias
é gritante, fornecendo uma pálida idéia de quanto ainda é necessário ser construído.
Rosinaldo Sousa (2001) atenta que o postulado da universalidade dos direitos
humanos é uma possibilidade no discurso das/e sobre as minorias de obtenção de

94
Direitos civis: garantem a vida em sociedade; direitos políticos: a participação no governo; direitos
sociais: participação na riqueza coletiva como direito a educação, saúde, trabalho justo
aposentadoria.
95
SANTOS, Wanderley G. Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1979, p.75.
96
Santos se refere à criação do FUNRURAL marcando o início da absorção do segmento rural.
direitos, sustentado na legitimidade de suas reivindicações como condição para a
realização dos direitos humanos levando essas minorias a lutar pelo reconhecimento
de seus direitos à cultura e à diferença97.
Neste ponto da discussão entra-se no campo das políticas de
reconhecimento com grande peso interdisciplinar, pois o movimento de grupos
culturais e minorias sociais que lutam pelo reconhecimento e defesa de seus
direitos, produz mudanças na sociedade mundial. Como disseram Wolkmer e Leite
(2003), há uma crise paradigmática em razão da passagem da sociedade industrial
para a digital, da nacional para a global, de mudanças no modo de vida com a
entrada de novos sujeitos sociais, que requerem sua parcela de participação e
benefícios, que lhes são oferecidos gratuitamente sendo necessário lutarem para
conquistar seus direitos98.
Os fenômenos políticos e sociais são representados por movimentos
regionalistas, reivindicações de minorias étnicas e lingüísticas cuja dinâmica fornece
novas configurações ao cenário político pela presença de novos atores, em busca
de espaço político. No caso das etnias, estamos chamando de “espaço interétnico”,
ou seja, o espaço político que as minorias étnicas vão conquistando na arena
política. Algumas linhas da política contemporânea giram em torno das demandas
de reconhecimento oriundo de grupos subalternos do movimento negro, feminista,
gay, e do movimento indígena, tanto de índios aldeados, quanto urbanos, tornando
as democracias cada vez mais multiculturais. A globalização pode aprofundar as
interações culturais, étnicas, religiosas ao nível local e global, requerendo que as
democracias se exercitem para o aprendizado dessa nova situação, como afirma
Dallmayr (2001, p. 35): “o aprendizado democrático envolve uma contínua
transformação da autodefinição do povo e sua descentralização em resposta às
demandas da diversidade”. Nesse sentido, prossegue Dallmayr, a teoria política
recente avançou na noção inovadora de uma “política de diferença”, onde a
diferença não significa nem a fragmentação aleatória, nem um agrupamento de

97

SILVA DE SOUSA, Rosinaldo. Direitos Humanos através da História Recente em uma Perspectiva
Antropológica. In: NOVAES; Regina; KANT DE LIMA, Roberto (Org.). Antropologia e Direitos
Humanos. Niterói: EDUFF, 2001, p.68.
98
WOLKMER, Antonio Carlos e Leite, José Rubens Morato (org.) Os “Novos” Direitos no Brasil.
Natureza e Perspectiva. Uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva,
2003.
naturezas fixas ou identidades coletivas. A política multicultural não substancializa
os grupos, mas reconhece sua legítima diferença99.
Charles Taylor (1997) um dos autores que está observando essa tendência
da política contemporânea, diz que o reconhecimento está associado à suposta
ligação entre reconhecimento e identidade individual ou coletiva. A identidade é um
termo que pode designar algo como uma pessoa compreender quem ela é ou sua
característica fundamental como ser humano, sendo parcialmente firmada pelo
reconhecimento ou por sua ausência, pelo desconhecimento ou falsidade do
reconhecimento por outros, enfim, tanto uma situação quanto outra pode infligir
danos ou pior, uma forma de opressão sobre esta pessoa. A característica dialógica
da identidade é fundamental para o modo de vida humano sendo nessa interação
que adquirimos diferentes linguagens (languages of expression)100.
O discurso do reconhecimento tem se tornado familiar em dois níveis: a) na
esfera íntima, quando compreendemos que na formação da identidade o self é um
lugar de diálogo contínuo e de luta com “outros significantes”101; b) na esfera pública,
onde as políticas de reconhecimento pela igualdade de condições tem se tornado a
meta das minorias e grupos subalternos.
Richard Rorty102, ao discutir política de reconhecimento e direitos humanos
traz à tona o tema da des-humanização, citando vários exemplos de confrontos
étnicos onde o que é humano e não humano é posto em causa a partir de detalhes
pautados em critérios de cor da pele, costumes, crenças, que justificam o agir cruel
de um indivíduo sobre o outro como sendo em prol da purificação da humanidade.
Rorty chama atenção do discurso produzido nas situações de crise, no qual os
limites entre o que é ser, humano e não humano é frágil, condição expressada na
relação entre Nós e os Outros. Nós e aqueles que são parecidos conosco, apesar de
caminharem à maneira humana, são muito diferentes de nós em comportamento,
costume, enfim, são casos limítrofes.

99
Dallmayr, Fred, Para além da democracia fugídia: algumas reflexões modernas e pós-modernas. In
SOUZA, Jessé (org) Democracia Hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p.35.
100
Em seus termos: “The genesis of the human mind is in this sense not monological, not something
each person accomplishes on his or her own, but dialogical”. TAYLOR, Charles. The Politics of
Recognition. In: Taylor, Charles (org) Multicuturalism. Examing the Politics of Recognition. Princeton
University Press. Princeton, New Jersey, 1997 p. 25, 26.
101
“significant others” – termo cunhado por George Herbert Mead. Mind, Self and Society. Chicago:
University of Chicago Press, apud Tylor, 1997, p. 32.
102
RORTY, Richard. The Human Rights, Rationality and Sentimentality. In: Shute, Stephen & Hurley,
Susan (editors) On Human Rights. The Oxford Amnestyy Lectures Basic Books, 1993. p. 112-115.
A experiência multicultural exige exercício, mudança de postura e disposição
para suportar o que promovem as mudanças. Antônio Sergio Alfredo Guimarães,
opina que no plano da produção cultural e acadêmica, o multiculturalismo no Brasil
se sustenta em bases frágeis, vale dizer, a força histórica da monocultura é um
elemento de resistência e mudança sobre a ação do multiculturalismo
(GUIMARÃES, 2001, p. 393-394)103.
Ao assumirmos a noção de democracia participativa como um dos caminhos
possíveis para se compreender as relações entre, os índios e os Estados nacionais,
levamos em consideração o papel do movimento indígena na defesa dos direitos
indígenas, mas também a invisibilidade política representada pela condição de não
plenitude da cidadania dos indígenas brasileiros. O uso da variável indígena no
censo de 1991 é um exemplo da decisão política de manter os povos indígenas à
margem, em uma distância saudável para o restante da sociedade nacional. Hoje os
indígenas são considerados cidadãos e sem dúvida recenseáveis104. No entanto, os
direitos indígenas vivem sob ameaça, sejam através de uma medida parlamentar
como a PEC 38/1999 que propõe a redução das terras indígenas, mesmo as
homologadas, sejam através da pressão das mineradoras que querem garantias de
exploração de minérios nas áreas indígenas que contam com apoio de
parlamentares federais para que o Congresso Nacional aprove a regulamentação
sobre esse tipo de exploração105, seja sobre o descaso e omissão dos
administradores na execução da legislação sobre saúde e educação, aliás
compromissos que são da alçada dos governos em países democráticos.
Consideramos que a experiência da democracia participativa para os povos
indígenas, é o caminho para a realização da democracia representativa. Com
iniciativas de participação, há possibilidade não somente da aprendizagem
democrática para os indígenas, mas também para o restante da sociedade
brasileira. Um propósito que embasa as medidas políticas que começam a emergir
no campo da educação, com a entrada da expressão educação diferenciada,
educação bilíngüe, ou como o caso da demanda do movimento negro com a
disciplina História da África, temas que, enfim, vão se tornando diários no

103
Antonio Sergio Guimarães opina que o racialismo ainda é pouco discutido na academia, exceção
feita à Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, de estudos antropológicos de Roberto da Matta e
Peter Fry, e estudos teológicos. O autor não faz referência aos indígenas.
104
Informações www.institutosocioambiental.org.br – Martha Azevedo. Censo Indígena. Diferentes
estimativas
105
Revista Mensageiro/CIMI, maio-junho, 2004.
vocabulário das instituições de governo. Em relação aos povos indígenas, tentamos
demonstrar como, ao longo do contato na Colônia, Império e República, a tensão
sempre esteve presente. Em razão da organização que os indígenas foram
gradativamente construindo, a busca pela garantia de seus direitos e pelo
reconhecimento de sua existência passou a ser exigida ao Estado. É emblemático o
debate feito por juristas em favor de uma nova juriscidade que busque romper e
transpor os cânones que sustentam a dogmática jurídica. Esta dogmática é
mitificada por princípios da neutralidade científica, da completude formal do rigor
técnico e da autonomia absoluta. A nova juriscidade revela-se por meio de um
espaço crescente, transgressor e pluralista, pulverizado pelas dimensões do que se
pode chamar de novos direitos.
3 POLÍTICAS INDIGENISTAS: DA COLÔNIA AO SPI

Com a necessidade de ordenar as relações com os povos indígenas, o


Estado tem estabelecido leis e regulamentos que assumem som e cor de acordo
com os interesses econômicos e humores da política vigente. Assim foi com o
Estado português e os primeiros habitantes da nova colônia, critério semelhante
adotado tanto no Império quanto na República. Neste capítulo buscamos refletir
historicamente a construção da política indigenista da Colônia a República,
enfatizando neste último período o Serviço de Proteção ao Índio, o SPI, como
primeiro órgão indigenista republicano, produtor de políticas reguladoras de ações e
comportamentos que refletem o contexto sóciopolítico no qual foi construído.

3.1 O encontro de dois mundos

A chegada do colonizador foi o primeiro impacto da civilização moderna sobre


indígenas que com eles tiveram contato. Provavelmente o aspecto e o cheiro desses
estrangeiros deve ter-lhes causado espécie, mas também por alguma razão pode
ter-lhes inspirado confiança, quem sabe esperança de aliança com aqueles homens
tão diferentes, navegando em canoas tão grandes. Essa relação de relativa
confiança ainda durou certo tempo, enquanto o ir e vir de outros homens
semelhantes aqueles primeiros prosseguia. A cada viagem eram embarcadas
grandes quantidades de pau-brasil, mas a mudança de comportamento daqueles
estrangeiros fez com que os indígenas passassem a ser, depois do pau-brasil, a
principal mercadoria de exportação para a metrópole106. Estando a necessidade da
mão-de-obra no centro da colonização, a escravização dos índios se fez através
dela, prática que está sugerida nas cartas de doação aos donatários, que deveriam
cativar os índios para seu serviço e de seus navios. Mais tarde o regimento de Tomé
de Souza (1548-1549) recomendava que se devesse cuidar dos índios e castigar os
delinqüentes, o que ficou como letra morta.
A força dos interesses econômicos era tão grande que até mesmo o padre
Manoel da Nóbrega concordava com o argumento colonial da escravidão indígena
como solução para o problema da mão-de-obra. (BEOZZO, 1983, p.15).
As conseqüências foram, entre outras coisas, a destruição dos alicerces da
vida tribal, o cativeiro, contaminação e surgimento de doenças estranhas, e como se
isso não bastasse, a pregação missionária trazendo idéias atemorizantes como
pecado, inferno e a morte:

Os povos que ainda o puderam faze, fugiram mata adentro, horrorizados


com o destino que lhes era oferecido no convívio dos brancos, seja na
cristandade missionária, seja na pecaminosidade colonial. Muitos deles
levando nos corpos contaminados as enfermidades que os iriam dizimando
a eles e aos povos indenes de que se aproximassem (RIBEIRO, 1995, p.
43)107.

106
No “Llyuro da Náo Bertoa que Vay para a Terra do Brazyll” também conhecido como “Roteiro de
Duarte Fernandes” datado de 1511, descoberto por Varnhagen em 1844, publicado por ele em 1861 e
republicado por Pedrosa em 1970, registra o número de escravos indígenas levados para a
metrópole: cerca de 36 bípedes dos dois sexos. Ver: TEIXEIRA, Dante M; PAPAVERO, Nelson. Os
Primeiros Documentos sobre a História do Brasil. Belém: Museu Paraense “Emílio Goeldi”, 2000.
107
Apesar de não haver negação dos efeitos danosos causados pela Conquista e pela ação
missionária, está havendo por parte dos estudiosos tanto da antropologia quanto da historiografia,
empenho em rever o paradigma da Conquista construído com base em relações binárias do tipo,
domínio/aceitação, submissão ou domínio/resistência ou fuga heróica, por outras explicações que
possam auxiliar a compreensão dos processos étnicos do presente, vale saber, do ressurgimento de
grupos considerados extintos como povo em várias regiões do país, especialmente, no Nordeste e na
Amazônia. Cristina Pompa chama atenção para a revisão dessa abordagem clássica do contato e o
crescente uso de termos como “encontro” e “negociação”, que são usados de forma cautelosa para
não encobrir o genocídio do qual os indígenas foram vítimas, mas abarcar a complexidade da
realidade colonial que envolveu mudanças drásticas, redefinições identitárias e negociações. Esse
tipo de abordagem é percebido em autores que trabalham com a idéia de uma “lógica mestiça”
(GRUZINSKI, 1999; BOCCARA, 2000). Para eles, a resistência não se dá apenas pela revolta em si,
também por estratégias de articulação, adaptação e reformulação de identidades. Ver: POMPA ,
Cristina. Cartas do Sertão: a catequese entre os Kariri no século XVII. In: Revista Anthopológicas, ano
7, vol. 14, no. 1 e 2. Recife: Editora da UFPE, 2004.
Esse encontro trágico propiciou o confronto de dois mundos, de formas
diferentes de conceber o mundo, de explicar os acontecimentos e as coisas, entre
elas a posse de bens, como relata Jean de Léry:

Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros


estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutan. Uma vez
um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e perôs
[franceses e portugueses] buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não
tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muitas, mas não
daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas
dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com seus cordões de
algodão e suas plumas.
Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? – Sim,
respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais
panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis
imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios
voltam carregados. –Ah! Retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas,
acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse
homem tão rico de que me falas não morre? – Sim, disse eu, morre como
os outros.
Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer
assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: E quando morre? Para
quem fica o que deixam? – Para seus filhos se os têm, respondi; na falta
destes para os irmãos ou parentes mais próximos. – Na verdade, continuou
o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vos outros
maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes
incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para
amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem!
Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos
pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da
nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso
descansamos sem maiores cuidados (LÉRY, 1960, p. 151-61, apud
RIBEIRO, 1995, p. 46).

3.2 Como a economia mudou a vida dos primeiros povos

Formas de pensar e entender o mundo mediadas pela posse de bens, tanto


do lado europeu quanto do indígena foram os componentes do cenário colonial que
geraram experiências de convivência nem sempre benéficas para os índios. Mércio
Gomes faz referência à influência que o machado de ferro teve nas sociedades
nativas, algo como “um milagre da tecnologia dos encantados estrangeiros”, uma
presença geradora de mitos, onde o herói civilizador, é controlador do trabalho
agrícola, dono de machados que obedecem a suas ordens, cortando árvores,
limpando as roças, tudo sem a intervenção humana (GOMES,1988, p. 44), ou o
dilema apresentado pelo mito Aukrê, onde o herói apresenta aos índios os objetos
de ferro e madeira e os índios preferem o arco, enquanto os brancos escolhem os
objetos de ferro108.
A escolha no plano mítico explica a relação de poder entre índios e homens
brancos. Os europeus trouxeram tecnologia de materiais e armas, aliadas a um
modelo de administração já experimentada em outros locais como a Ásia e África,
que alcançaram povos em diferentes graus de desenvolvimento. No continente
americano existiam povos organizados em estados, como ocorria no México e Peru,
outros em cacicados, como foi o caso dos grupos Tapajós no Médio Amazonas, mas
ainda sem terem experimentado um contato mais estreito com outros povos que lhes
permitisse alcançar outros níveis de organização política. O relato de Acuña sobre
os Tapajós do sítio de Santarém relata que estavam organizados em povoados com
vinte a trinta casas, governados pelo principal que “a todos os governa um principal
grande sobre todos de quem é mui obedecido”109.
A relação da metrópole com os habitantes da nova colônia foi feita através de
estratégias que se caracterizaram pela violência. As guerras justas, visando o
extermínio, descimentos, entradas e bandeiras, foram acompanhadas por medidas
que tornaram fatídicos esses encontros, tais como a contaminação por agentes
patogênicos, inexistência de profilaxia, escravidão, servilismo e experiência religiosa.
Sobre esses acontecimentos, se observa que os portugueses nunca
consideraram os índios como nações, apenas vassalos, apesar da popularidade do
termo nação à época (GOMES, 1988; BEOZZO, 1983). Um exemplo de acordos
entre a Coroa e os índios ocorreu na tentativa de paz com os índios Janduís (hoje
extintos), em razão da Guerra dos Bárbaros, compreendida como a mais prolongada
resistência indígena do período que se estendeu entre 1654-1714, acordo, aliás, que
não foi cumprido110.
Sob o ponto de vista das relações políticas foi havendo a gradativa
dominação institucionalizada e a perda da autonomia das comunidades indígenas,
108
Mito Aukrê, mito Timbira que explica o poder dos brancos sobre os povos tribais.
109
Acuña, Cristobal de (1597-1675) e (1639). Nuevo descubrimiento del gran rio de las Amazonas. In:
ALMEIDA, Cândido Mendes de. Memórias para a história do extincto Estado do Maranhão. Rio,
Hildebrant, 1874, II:57-143 (texto conforme a 1ª ed. Madri, 1641). Trad. Bras.In Gaspar de Carvajal,
Alonso de Rojas e Cristobal de Acuña. Descobrimentos do Rio Amazonas. Trad. e Notas de C. de
Melo Leitão. São Paulo: Nacional, 1941 (Brasiliana, 203).
110
Os Janduís habitavam parte do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Em 1714 as últimas
resistências caíram por terra e os sobreviventes foram escravizados, espalhados em missões ou
aldeias oficiais. Ver: GOMES, Mércio. Os Índios e o Brasil. Ensaio sobre um holocausto e sobre uma
nova possibilidade de convivência. Petrópolis: Vozes, 1988:47; Sobre a Guerra dos Bárbaros, ver:
TAUNAY, Afonso d`Escragnole. A Guerra dos Bárbaros. Separata do Arquivo Municipal de São
Paulo, vol. 22, 1936.
expressadas por decisões tomadas à revelia dos indígenas, como, por exemplo,
deslocamentos, posse da terra, questões que eram anteriormente decididas no
interior das aldeias. Tais decisões caracterizaram a instauração de relações de
caráter assimétrico entre colonizadores e grupos indígenas. A institucionalização
desse modelo de relações se fez através de mecanismos legislativos mais eficazes,
que garantiram a expansão e as prerrogativas de grupos sociais co-participantes da
exploração das terras e da mão-de-obra indígena (BAQUEIRO, 1982; BEOZZO,
1983).
Outros fatores que influíram para a produção da legislação do período 1500-
1755 foram: a) A mudança das relações entre o Estado e os jesuítas, que ocasionou
a dispensa dos jesuítas do serviço das aldeias e o cativeiro considerado lícito,
medidas que associadas ao comércio lucrativo do açúcar, demandaram uma corrida
em busca dos índios mansos das aldeias jesuíticas para o trabalho nas fazendas; b)
O novo Estado do Maranhão separado do Estado do Brasil (1621), apresentou uma
conexão profunda entre legislação indigenista e exercício da missão cristã, que se
tornou o regulamento fundamental da legislação indigenista e a própria lei do
funcionamento do novo Estado; c) Os interesses políticos que impulsionaram a
criação do estado do Maranhão contribuíram para a aliança entre militares e
missionários, uso do indígena como mão-de-obra e informante das drogas do
sertão111.

3.3 Como o colonizador via os indígenas

A exclusão dos indígenas está traduzida nas diferentes formas como essas
populações eram vistas pelos colonizadores:
a) Como participante na construção de nova sociedade e do sistema produtivo.
b) Como trabalhador cuja força de trabalho estava voltada para a garantia da
exportação de mercadorias.

111
As diferenças entre o Estado do Maranhão e o Estado do Brasil, envolviam aspectos econômicos
representados pelo comércio do açúcar, a perda por Portugal das possessões no Oriente, e as
“drogas do sertão” como produto substituto na economia portuguesa. Os aspectos estratégicos
envolviam as ameaças de corsários estrangeiros e a questão geopolítica com a Espanha quanto a
definição de limites na bacia amazônica. Ver: BEOZZO, José Oscar. Leis e Regulamentos das
Missões: Política Indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola, 1983, p. 27, 28.
c) Como povoador, auxiliando na garantia da posse das terras para Portugal.
d) Como selvagem e pagão, portanto, um elemento constitutivo da natureza e não
alcançado pela graça divina, sendo a catequese a única forma de humanizá-lo
(BAQUEIRO,1982; BAETA NEVES, 1978).
A reação indígena aos resultados dessa visão que legitimava ações muitas
delas de extermínio ou escravização foram, a fuga, as guerras travadas com o
colonizador que culminaram no abandono dos antigos territórios, ocupação de novos
territórios no interior, nas cabeceiras dos rios, em lugares inacessíveis que
precisaram ser reconhecidos por grupos em fuga, por amalgamentos com outros
grupos indígenas também em fuga, ou com aqueles que haviam chegado
anteriormente. Julie Cavignac (2003) em seu estudo sobre a presença indígena e
negra no Rio Grande do Norte, faz referência às alianças feitas entre o Conde de
Nassau e os Tupis ou Tapuias, bem como do registro cientifico dos grupos do
interior. Após a expulsão dos holandeses, guerras e rebeliões se sucederam entre
elas a “Guerra dos Cariris”, em meados de 1690. Segundo a autora, quase quatro
mil índios muitos já cristianizados fugiram para o interior, encontrando escravos
fugitivos, os Guineos.
Nessa perspectiva, Cristina Pompa (2003) analisando a catequese dos Kariri
no século XVII, considerou que a reação também se fez pelo viés simbólico, isto é,
longe de se fechar em busca de uma ‘preservação de identidade’, os Kariri tomaram
para si o que se apresentava como importante para seus catequizadores, o ritual
litúrgico cristão, transformando-o num “catolicismo kariri”.
A forma de aplicação da legislação colonial era feita de acordo com os
interesses das elites locais, contribuindo para isso a distancia da metrópole e o
corpo de legisladores portugueses, normalmente ligados à Igreja. Em diversas
ocasiões a recomendação ao bom tratamento aos indígenas foi promulgada mas
quase sempre não atendida.
A bula de Urbano VIII (1539) considerava os índios como “verdadeiros
homens, capazes da fé cristã, com direito à liberdade e domínio de seus bens
mesmo se ainda não estivessem convertidos”112; o regimento de Tomé de Souza
(1548), apesar de recomendar o bom tratamento, também ordenava guerrear contra

112
BRASIL. Leis, Decretos etc. Assuntos Indígenas. Coletânea de leis, atos e memoriais referentes ao
indígena brasileiro. Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Anexo7. Publ. 94. RJ: Imp. Nacional,
1947, apud Arnaud, Expedito. Aspectos da Legislação sobre os índios do Brasil. Publ. Avulsas No.
22, Belém:MPEG,1973.
aqueles que se mostrassem inimigos “destruindo-lhes as aldeias e povoações [...]”;
uma lei de 20 de março de 1570, tão contraditória quanto o regimento de 1548,
determinou que os índios de modo algum podiam ser cativados, exceto aqueles
tomados em guerra justa ou os assaltantes de portugueses e de outros índios
(ARNAUD, 1973, p. 5-6).

3.4 Marquês de Pombal e a administração civil

Divergências entre tendências na atuação da Companhia de Jesus,


representadas pela orientação do padre Antônio Vieira contrário ao uso dos índios
para trabalhar nas lavouras, e seus irmãos de fé mais voltados para o uso
econômico dos índios, terminaram por determinar o ingresso da Companhia de
Jesus no circuito comercial transatlântico (BEOZZO, 1983, p. 47-49). As
conseqüências dessa guinada econômica foram a maior concentração de renda nas
mãos da Companhia, isenção de impostos e menor arrecadação por parte do Estado
Colonial. A posição econômica e política da Companhia geraram descontentamentos
por parte do Estado, que responsabilizou as missões por sua ruína e decadência.
Mendonça Furtado, governador do Grão Pará, foi um ator decisivo na
mudança dos planos jesuítas, como atesta a copiosa correspondência trocada entre
o governador e o marquês de Pombal, nas quais o governador criticava a ação
jesuítica (HEMMING, 1995). O alvará de 4 de abril de 1755 determinou que vassalos
casados com índias não sofreriam infâmia e seus descendentes hábeis de qualquer
emprego e dignidade (LOBO, 1962, p. 537 apud ARNAUD, 1973, p. 10); As leis
expedidas em 6 e 7 de junho de 1755 concederam liberdade aos índios, sujeitos as
leis do Reino, aptos a se beneficiarem como súditos de todas as honras e isenções
(OTÁVIO, 1946, p. 100). Esse avanço na legislação é visto por alguns autores
similares às proporções que foi a Lei Áurea de 13 de maio de 1888 para os escravos
negros (FREITAS, 1980, p. 17). Gomes (1988,) opina que essas medidas refletem a
tentativa de Portugal modernizar-se através do governo de Pombal, mediante a
cisão entre a Coroa e a Igreja, no que se refere a administração dos assuntos
indígenas. Essa legislação de características liberais é substituída pelo Diretório. O
alvará de 3 de maio de 1757 ou Diretório de Pombal demonstrou a nova direção na
política. Sobre isso diz Gomes:

Conjunto de 95 artigos que constituem o último ordenamento português


sobre os índios. Reitera a retirada dos poderes temporal e espiritual dos
jesuítas. Concede liberdade para todos os índios. Favorece a entrada de
não índios nas aldeias, incentiva casamentos mistos, cria vilas e lugares
(povoados) de índios e brancos. Nomeia diretores leigos. Promove a
produção agrícola e criam impostos. Manda demarcar áreas para os índios.
Proíbe o ensino das línguas indígenas e torna obrigatório o português.
(GOMES, 1988, p. 73).

O Diretório significou um atraso em relação à legislação de 1755, trocando


apenas a ação missionária pelo poder do Diretor, como resultado o trabalho forçado
tornou-se mais áspero e isento de qualquer limite (BEOZZO, 1983). A Carta Régia
de 1798 aboliu o Regimento Pombalino e instituiu:

[...] a relação paternalista de amo e criado entre brancos e índios a serviço.


Retoma o conceito de guerras defensivas. Promove o índio à condição de
órfão. Permite o livre estabelecimento de brancos em terras de índios
(GOMES, idem, p. 74).

O período correspondente entre 1798-1845 se caracterizou por um período de


instabilidade, em virtude dos choques sucessivos envolvendo moradores,
garimpeiros, viajantes, tropeiros e grupos indígenas que defendiam seus territórios e
rios da violação desses invasores. A chegada em 1808, da família real, acirrou a
disputa de terras com a chegada dos novos migrantes, dinamizou os setores
produtivos, comércio, incentivou novos investimentos e situou a Colônia em novo
contexto internacional. A dinamização da economia criou os “corredores comerciais”
no sul da Bahia e abriu novas frentes de luta aos bugres de São Paulo (BAQUEIRO,
1982, p. 134, 135). As novas Cartas Régias instalaram um regime de terror. Moreira
Neto (1967) diz que essa política de opressão renovou quase literalmente os
argumentos utilizados nos séculos XVI e XVII para destruir os povos do litoral.
Um exemplo citado por Beozzo (1983) é o destino que esperava os índios
com a aprovação da Carta Régia de 1º de abril de 1809: cativeiro de 15 anos aos
índios contados desde o dia em que fossem batizados; cativeiro dos meninos assim
que completassem 14 anos e das meninas aos 12 anos de idade. O aceno de
medidas visando mudanças nesse quadro só foi possível em 1831, com a instalação
da Regência.

3.5 O Império e a política indigenista

Os princípios fundamentais da legislação dos períodos anteriores foram


mantidos: repressão, guerras como forma de combate a qualquer tipo de resistência
a integração, atendimento aos interesses das elites da época (MOREIRA NETO,
1967, p. 356).
O Brasil independente apresentou um retrocesso no reconhecimento dos
direitos indígenas, pois foram negados aos indígenas soberania e cidadania, apesar
de terem se tornado símbolo da nova Nação. A razão está na ordem como se
construiu o país: o Estado precedeu a Nação113. A negação da cidadania e soberania
não conseguiu afetar os direitos às terras dos índios. Os projetos de Moniz Tavares
e José Bonifácio demonstraram o reconhecimento por parte dos parlamentares.
Moniz Tavares recomendava que se mantivessem “ilesas todas as terras que
possuem” alertando que aqui deveria ser praticado esse respeito à semelhança do
que estava ocorrendo na América do Norte114 (CUNHA, 1987).
No documento “Apontamentos para Civilização dos Índios Bravos no Império
do Brasil”, apresentado a Assembléia Constituinte de 1823, José Bonifácio
considerou que a catequese e aldeamento dos índios tinham relação com a natureza
e o estado social em que se encontravam, e a forma como tinham sido tratados
pelos brancos. Dessa forma, construir o Brasil Nação implicava em incluir os
indígenas no projeto nacional, sendo necessário garantir: “Justiça, não esbulhando
mais os índios pela força, das terras que ainda lhes restam e de que são legítimos
senhores, pois Deus lhes deu”. Mais ainda, reconhecer o tratamento desumano que
o Estado e a sociedade havia dado aos índios, por isso, deveriam ser tratados com

113
Da mesma forma que o liberalismo, o nacionalismo que na Europa esteve associado aos
movimentos liberais, teve outra tradução na nova nação em razão de fatores diversos. A economia
baseada na exportação e sem mercado interno, extensão territorial demasiado ampla tornando quase
impossível a comunicação contribuiu para que a ligação das províncias fosse mais com a Europa do
que entre si, prejudicando a integração nacional. Da mesma maneira o nacionalismo brasileiro se
definia como um antiportuguesismo. Para as massas mestiças a participação em movimentos
revolucionários era oportunidade de igualdade social. Ver: VIOTTI DA COSTA, Emília. Da Monarquia
à República: momentos decisivos. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977, p. 29-31.
114
Diário do Governo N°. 235, de 04.10.1821, p. 517 apud CARNEIRO DA CUNHA, 1987, p. 64.
“Brandura, constância e sofrimento de nossa parte, que nos cumpre como
ursupadores e cristãos”115.
Apesar das recomendações de Bonifácio, os direitos a terra não foram
considerados devido aos interesses de diversos segmentos sociais estabelecidos
nos territórios indígenas, que incluía também emprego dos indígenas como
trabalhadores escravos (MOREIRA NETO, 1967; BAQUEIRO, 1982). Além disso, o
sentimento de fortalecimento da nova nação pressupunha a integração de vários
segmentos étnicos e sociais, uma das razões do retorno da política clássica de
financiamento de bandeiras particulares de caça ao índio. Um exemplo dessa
política foi, a caça aos Botocudos (Krenak) com o uso de cães treinados no
ambiente de antigas moradias tribais, e consumo da carne de índios mortos. O
apresamento de índios permitia a sobrevivência apenas de algumas crianças para o
tráfico, e de homens para servirem como carregadores. A sofisticação da
malignidade estava no comércio de cabeças, havendo informações sobre a venda
de 16 cabeças de Botocudos para um francês que supostamente as comprou para o
Museu de Paris, em 1846 (BAQUEIRO, 1982, p. 147).
Visto desse ângulo, o I Império pode ser caracterizado como, colonialista e
utilitarista, situação que fica demonstrada pela única referência aos indígenas no
projeto constituinte de 1823, no Título XIII, artigo 254: “A assembléia terá igualmente
cuidado de crear Estabelecimentos para a Cathechese e Civilização dos índios,
emancipação lenta dos negros, e sua educação religiosa, e industrial”. Na Carta
Outorgada de 1824 a situação é mais grave. Nela não há nenhuma referência aos
índios (CARNEIRO DA CUNHA, 1987, p. 65).

3.6 A Regência e os Índios

A Regência se caracterizou por ser reformista e buscar alterações nas


relações entre Estado e índios, condições que influenciaram o II Império. Exemplos
dessa tendência foram: a) o Ato promulgado em 27. 10. 1831, por Francisco de Lima
e Silva, José da Costa Carvalho e João Braúlio Muniz, que revogou as Cartas

115
DOLHNIKOFF, Miriam (org). José Bonifácio de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 102.
Régias de 1808, que decretavam “guerras justas” aos indígenas de São Paulo e
Minas Gerais; eliminação do direito de tornar os índios prisioneiros de guerra, ação
que podia ser realizada por um simples colono; preservação da condição de órfão
imposta aos índios pela legislação de 1798, cujos tutores eram o juiz de paz e na
ausência deste os juizes da comarca, cabendo a responsabilidade da tutela pelo
decreto aos Juizes dos Órfãos, que deveriam prestar socorro aos índios e cuidar que
aprendessem ofícios; b) O Decreto de 1833, que regulamentou o Ato de 1831 em
nível municipal, responsabilizou os juizes municipais pela administração do
patrimônio das comunidades indígenas; c) A Lei de 12 de Agosto de 1834 (Ato
Adicional), que transferiu para as Assembléias Legislativas Provinciais a
responsabilidade da catequese, civilização dos índios e o estabelecimento de
colônias.
O decreto de 1833 terminou por dinamizar a exploração dos territórios
indígenas e o Ato Adicional de 1834 colocou nas mãos das elites locais,
tradicionalmente anti-indígenas e com grande poder de pressão, os interesses
dessas populações. Em suma, a política aplicada aos índios se tornou mais
vulnerável, o que significou que os princípios básicos da política não se afastaram
dos períodos anteriores (ARNAUD, 1973; BAQUEIRO, 1982; GOMES, 2002).

3.7 O Segundo Império: os índios como entrave ao progresso

A antecipação da maioridade de D. Pedro II demarcou o fim da Regência e o


início do II Império, considerado o auge da monarquia brasileira. Centralização da
vida política e administrativa, repressão às revoltas do período regencial, aos novos
movimentos contestatórios e uma política de conciliação entre os partidos
Conservador e Liberal, marcou o início do governo imperial. O Partido Conservador
abrigava os grandes comerciantes, pecuaristas e a burocracia estatal. O Partido
Liberal era o partido dos profissionais liberais, agricultores responsáveis pelo
abastecimento do mercado interno e das zonas recentes de colonização.
A ordem socioeconômica construída ao longo da colonização continuou agro
exportadora e inclui novos produtos como, o cacau e a borracha, que favoreceram
novas configurações sociais, além daquelas surgidas a partir da nascente indústria.
A nova ordem social exigiu mão-de-obra escrava, sendo substituída posteriormente
por colonos europeus (LINHARES,1990).
Como se situavam os indígenas no cenário do Segundo Reinado? Vistos
como um entrave ao progresso116, mesmo assim não podiam permanecer nas
condições em que se encontravam por ser considerada anti-econômica e ferir a ética
vigente. Continuaram ser mão-de-obra indispensável, mas não escravizada,
condição que provocou manchas na identidade nacional. Por isso, era necessário
socializar os indígenas através do recebimento de educação apropriada, fornecida
por missionários e fundamentada à luz das teorias evolucionistas. Outros pontos
complementares dessa política incluíam a divulgação da necessidade de criação de
uma mentalidade do progresso e defesa da ação de agentes colonizadores que era
considerada benéfica para os indígenas. As conseqüências dessa política baseada
na teoria evolucionista, inspirada no modelo de dominação européia em regiões
como África, Ásia e Austrália, que considerava os nativos como alienígenas,
devendo, portanto, obrigatoriamente adotar os padrões do país colonizador, resultou
num processo de deculturação e extinção de diversos grupos indígenas. Varnhagen,
um dos defensores do nacionalismo no Império, considerava os índios estranhos ao
pacto social, uma nação “forasteira”, o que justificava o domínio, a conquista 117. No
Brasil, esse modelo se desenhou da seguinte forma: “as populações compartilhavam
efetivamente do mesmo território, mas artificialmente eram colocadas num outro
universo, e destituídas de qualquer poder de decisão sobre seus próprios destinos
ou de participação na gerência dos problemas nacionais” (BAQUEIRO, 1982, P.
154).
A legislação que é produzida nesse período (1850-1889) demonstra o perfil
ideológico do Segundo Império:
a) O decreto N.º 426 de 24 de julho de 1845, criou as Diretorias Gerais dos
Índios em cada província, que se encarregava de estabelecer as diretorias parciais
em cada aldeia ou conjunto de aldeias. A nomeação dos cargos de direção ficava a
cargo do Imperador.

116
Novas crises interétnicas desta feita entre colonos europeus e índios passaram a ser vistas como
crise nacional: os índios são entraves à modernização da agricultura.
117
Filosofia nacionalista ver: VARNHAGEN, Francisco Adolfo. “Discurso Preliminar- os índios perante
a nacionalidade brasileira” In História geral do Brasil, Tomo II. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert,
1857.
b) Os diretores gerais foram autorizados a demarcar e arrendar as terras
habitadas por índios, fiscalizar e aplicar os rendimentos das aldeias estabelecer a
prisão correcional de até seis dias e servir como procuradores.
c) Os objetivos dessa legislação expressavam a política mais ampla do
Império, como por exemplo: inibir os conflitos nas áreas de expansão nacional;
sedentarizar os indígenas liberando suas terras para ocupação por novos colonos;
transformar os aldeamentos localizados nas rotas das frentes expansionistas em
centros de abastecimentos, o que significou esbulho das terras indígenas (ROCHA,
1988).
Além disso, o decreto propiciou a catequese, engajamento dos índios no
serviço militar sem coação e serviço público obrigatório para os indígenas mediante
salário. Considerado como a base da política aplicada aos índios é conhecido
também como Regimento das Missões, uma espécie de renovação do antigo
sistema de diretório. O decreto foi ganhando aditivos, como aconteceu com a
promulgação da lei 601, de 18 de setembro de 1850, chamada Lei das Terras, que
obrigava ao registro de todas as terras efetivamente ocupadas e impedia a aquisição
de terras devolutas, a não ser por compra. A Lei de Terras foi regulamentada em
1854 pelo decreto 1.318, de 30.01.1854118. A partir desse decreto há uma nova
concepção da terra como mercadoria, fortalecendo o latifúndio e propiciando o
seqüestro das terras indígenas.
Relativo aos índios, a Lei de Terras de 1850 define o que se deve entender
por “terras devolutas” listando no seu artigo 3º, os elementos que as caracterizam,
consagrando e consolidando o indigenato “instituição jurídica luso-brasileira que
deita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o alvará de 1º de abril
de 1680, confirmado pela lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas
terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios,
primários e naturais senhores delas” (AFONSO DA SILVA, 1999, p. 783). Apesar do
significado jurídico do indigenato como “fonte primária e congênita da posse
territorial”, a Lei de Terras propiciou a extinção de muitas aldeias indígenas, mesmo

118
“Com tal legislação pretendia-se garantir a subordinação do trabalhador livre (nacional, imigrante
ou ex-escravo) [...] Dificultava-se assim, seu acesso [..] à terra, garantindo-se a sobrevivência da
grande lavoura e de seu grupo social frente ao definhamento da escravidão: o grupo social dominante
do império escravista, grosso modo, poderia manter esta posição mesmo após o fim da escravidão”.
Ver: FRAGOSO, João Luís; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A política do Império e no início da
República Velha: dos barões aos coronéis. In: LINHARES, Maria Yedda (org). História Geral do
Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 184.
existindo conhecimento nas diversas províncias do Império que os indígenas tinham
direito à terra e que se empenhavam em obter a demarcação (ARNAUD, 1973;
AFONSO DA SILVA, 1999; BAQUEIRO, 1982; GOMES, 1988).
A passagem da política indigenista para o âmbito do Ministério da Agricultura,
criado em 1860, trouxe conseqüências drásticas para os índios. Em razão do
disposto pela Lei de Terras, os índios tiveram seus aldeamentos extintos e,
consequentemente, tornaram-se posseiros sem terra, destituídos de suas
características culturais, uma vez que os objetivos do Ministério da Agricultura não
estavam voltados para a defesa dos interesses indígenas. Mércio Gomes (1988)
registra que em 1860 o presidente da província do Ceará extinguiu num só ato todas
as aldeias existentes. A condução da política visando beneficiar os segmentos
econômicos dominantes em detrimento da defesa do patrimônio indígena, a retirada
do direito imemorial e a conseqüente extinção de aldeamentos, provocou, segundo
Gomes, um déficit de aproximadamente 300 mil índios do total de 600 mil
sobreviventes do período colonial (Idem, p. 82).

3.8 A República

A aliança dos cafeicultores do oeste paulista e os militares do exército


possibilitaram a proclamação da República. O projeto republicano representou uma
alternativa histórica de construção de um governo baseado na cidadania com a
participação de segmentos marginalizados ou excluídos do jogo político, mas
também significou a possibilidade de dar vazão aos interesses econômicos dos
cafeicultores do interior de São Paulo que, apesar do destaque na economia do
país, não tinham expressão política (CARVALHO, 1987). O projeto republicano
defendido pelas oligarquias de cafeicultores do oeste paulista contava com o apoio
de grupos oligárquicos de outras regiões e do Partido Republicano Paulista (PRP).
Seu ideário de uma república liberal ansiava por uma república federativa em que os
estados gozassem de grande autonomia. O projeto positivista tinha seu reduto entre
os militares do exército. Condenavam a monarquia por impedir a evolução social que
traduzia de certa maneira o perfil militar da época, onde a intelectualidade do país
era muito bem representada por oficiais. Benjamim Constant, um oficial considerado
o maior representante do positivismo, teve papel fundamental na conspiração que
deu fim a Monarquia119.

3.8.1 A influência do Apostolado Positivista

O Apostolado era dirigido por Miguel Lemos e Teixeira Mendes que


ofereceram adesão e seus serviços na reorganização do quadro institucional a
Benjamim Constant, que já ocupava o cargo de ministro da Guerra. No primeiro
momento do novo governo a influência do Apostolado foi muito forte por ser um
grupo coeso, o que não ocorria com os demais. Após a saída do positivista Demétrio
Ribeiro do ministério da Agricultura, declinou a influência do grupo, retornando em
1908 com a polêmica entre a imprensa carioca e paulista a respeito do extermínio
dos índios referido pelo diretor do Museu Paulista, Hermann Von Ihering em artigo
publicado na Revista do Museu Paulista. Os positivistas logo interferiram segundo o
que defendiam: os indígenas eram povos que ainda viviam na infância da
humanidade, requeriam um tratamento adequado para que pudessem evoluir,
necessitando da ajuda dos missionários positivistas e da proteção do Estado sobre
suas vidas e territórios (GAGLIARDI, 1989, p. 55-72). Este acontecimento, segundo
Glagiardi, decorreu da ação das forças econômicas representadas pelo avanço das
frentes agrícolas do café, da construção de estradas, da implantação da Estrada de
Ferro Noroeste do Brasil, da abertura de fazendas no vale do Paraíba e no oeste
paulista, sendo que, estas últimas avançaram sobre o território dos Kaingang,
conhecidos como Coroados. Ao mesmo tempo, uma frente de agricultura intensiva
vinda do sul formada por colonos europeus, se movia em direção às terras dos
Xokleng, que habitavam o vale do Itajaí. A resistência indígena ao defender seus
territórios enfrentou uma figura implacável, o brugreiro, que recebia ajuda
governamental para garantir a morte de índios “acordados a tiro e a facão” e a
captura de mulheres e crianças (Idem. p. 63-66).
119
Havia também um ideal jacobino formado por segmentos da população urbana, incluindo pequenos
comerciantes, funcionários e setores intelectualizados representados por médicos, advogados,
professores, que defendiam a participação popular na administração pública.
O morticínio que estava acontecendo no Brasil foi alvo de críticas durante o
XVI Congresso Internacional de Americanistas ocorrido em Viena em 1908 com
ampla divulgação na imprensa européia, mas sem repercussão no Brasil. O assunto
teria caído no anonimato não fosse a polêmica entre os jornais do Rio de Janeiro e
São Paulo, em razão do artigo de Von Ihering, da reação pública do Apostolado
Positivista, que serviu de gatilho para outras manifestações de protesto.
Como nos referimos anteriormente, o processo de penetração econômica
provocou a invasão e conquista dos territórios indígenas, fato que marcou a entrada
do século XX. Galiardi (1989, p. 89-90) considera que a somatória de fatores
econômicos e políticos, tanto internos quanto externos, contribuíram para o modelo
de política aplicada aos índios que caracterizou esse período.120. A conquista dos
territórios indígenas, o tratamento desumano de que foram alvos, provocando um
escândalo internacional, serviram de munição para pressionar o governo Nilo
Peçanha a encaminhar uma solução para o problema indígena. Gomes (2002)
chama atenção de que, enquanto os colonos europeus recebiam atenção oficial,
havia falta de políticas que encaminhassem o problema indígena e atendessem aos
negros, mestiços, lavradores sem terra que estavam à deriva nas cidades, razões
para a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nacionais (SPILTN).

3.9 O Serviço de Proteção ao Índio (SPI)

O Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais,


SPILTN, foi criado em 1910, mediante o decreto 8.072 de 20 de julho de 1910. A
incompatibilidade em encaminhar soluções para o complexo problema indígena e
dos trabalhadores nacionais ficou evidente. A partir de 1914, o SPILTN passou a

120
Fatores: primeiro, a posição que o país ocupava na divisão internacional do trabalho determinava
que a produção agrícola deveria estar voltada para o atendimento do mercado externo; segundo, o
Governo Provisório estabeleceu o Decreto N°. 7,§ 12, de 20.11.1889 no qual a catequese e a
civilização dos índios passava a ser atribuição dos governadores dos Estados; terceiro, pela
Constituição de 1891, o direito de decidir sobre as terras nos respectivos territórios, passava a ser da
alçada dos Estados; manutenção do conceito de terras devolutas e omissão do texto legal, do
legítimo direito dos povos indígenas sobre as áreas que habitavam.
tratar exclusivamente dos assuntos indígenas. Em 1918 o órgão passou a se
chamar Serviço de Proteção ao Índio/SPI.
O SPILTN tinha como objetivos específicos o seguinte: a) prestar assistência
aos índios do Brasil que viviam aldeados, reunidos em tribos, em estados nômade
ou promiscuamente com civilizados; b) estabelecer centros agrícolas, constituídos
por trabalhadores nacionais. Os dispositivos relacionados à assistência ao índio
estavam direcionados à proteção ao índio, a terra, e povoação indígena
(GAGLIARDI, 1989, p. 228-229)121.
A literatura sobre o SPI contempla textos produzidos por seus idealizadores e
protagonistas, como Cândido Rondon, Luis Bueno Horta Barbosa, de chefes de
posto como Eurico Fernandes, que escreveu sobre a região do Uaçá (fronteira
Brasil/Guiana Francesa) durante sua gestão nos anos 1940-1950, onde enfatiza o
papel do SPI em regiões de fronteira. Figuram também textos de outros agentes do
serviço, como engenheiros-militares, juristas, jornalistas, etnógrafos, além de
documentação interna do órgão, como, leis, regulamentos, decretos. (Ribeiro 1970;
Arnaud, 1973; Moreira Neto, 1967; Fernandes, 1948; Mário Ribeiro, 1943; SPI-
Colletanea. Vários autores, 1929). Uma produção mais recente é representada por
reflexões feitas por antropólogos e historiadores.
Gomes (2002) comenta que a criação do SPI é compreendida pelo Estado
republicano como instrumento de sua política de ampliação e controle territorial,
enquanto para os fundadores positivistas, um instrumento de defesa, auxílio e
alavanca para que os indígenas alcançassem patamares mais elevados em suas
culturas122.
O trabalho de Souza Lima (1995) inaugurou uma linha de estudos que vem
sendo seguida por outros estudiosos do tema. Este autor procura compreender a
criação do SPILTN no contexto das lutas para a implantação e ampliação do Estado-
Nação e a dinâmica de afirmação do novo estado. Mediante categorias de agentes e
agências, possuidoras de projetos e interesses nos povos indígenas, com diferentes

121
As unidades de ação do SPILTN eram as Povoações Indígenas e os Centros Agrícolas. Nas
primeiras ficariam reunidos índios de todas as tribos contatadas, nos Centros os agricultores sem
terra e índios integrados. O objetivo era substituir formas de organização tradicionais e valorização do
espaço por formas racionais e modernas. (Ver: PERES, Sidney Clemente. Arredamento em Terras
Indígenas. Análise de Alguns Modelos de Ação Indigenistas no Nordeste (1910-1960). Rio de Janeiro:
CETE/PETI, 1995.
122
Gomes faz referência a versões da história do SPI contada por seus protagonistas entre eles o
próprio Marechal Rondon, além de estudiosos como Stauffer (1959-60), Souza Lima (1995) e ele
próprio (1991) onde apresenta breve análise sobre o SPI e FUNAI (2002, p.284).
crenças a respeito do assunto, este autor observa que todos eles tinham um ponto
em comum: os indígenas estavam na infância do homem. Utilizando a categoria
poder tutelar, para descrever uma “forma de ação sobre as ações dos povos
indígenas e seus territórios”, chama atenção para a continuidade do comportamento
estatal que integra, em suas palavras, “elementos das sociedades de soberania
quanto das disciplinares”. O poder tutelar está representado neste poder estatizado
com função estratégica e tática, apoiada numa matriz militar, que é a guerra de
conquista. Seu olhar sobre o SPILTN ou Serviço, é feito através da análise da
administração pública de um setor que procura estabelecer relações com os
indígenas do ponto de vista puramente laico123.
O SPILTN foi estabelecido no Ministério da Agricultura Indústria e Comércio
(MAIC), permanecendo assim até 1931. Posteriormente foi transferido para o
Ministério da Indústria e do Trabalho, tornando-se em 1933 um simples setor do
Ministério do Exército, para retornar ao Ministério da Agricultura em 1939124. Gagliardi
afirma ser compatível com os interesses capitalistas da época a instalação do
SPILTN no interior do Ministério da Agricultura, uma agência do governo que tinha
por finalidade atender os objetivos de uma economia de mercado, num país de
estrutura colonial, bem como se fundamentar nos princípios do Estado moderno.
Souza Lima, por sua vez, direciona sua análise aos padrões normativos da produção
de terra indígena com vistas a esclarecer que as categorias classificatórias, nas
quais os indígenas foram inseridos, traduziam os ideais evolucionistas que
advogavam a idéia de evolução de um estágio de organização tribal até um tipo de
sociedade mais condizente com a civilização.
Cabe um esclarecimento ao leitor a respeito das siglas que definem o Serviço.
Os autores optam por utilizar as duas siglas, substituindo a sigla SPILTN a partir do
desmembramento das ações, ou após prestar informação sobre o percurso do órgão
até 1914, utilizam apenas a sigla SPI, o que fazemos a partir deste ponto.

123
Alguns estudos seguem essa linha, por exemplo, sobre arrendamento e criação de Terras
Indígenas (PERES, 1995); As estratégias políticas de Rondon para viabilizar a instalação das linhas
telegráficas em Mato Grosso (BÍGIO, 2003); O Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e
científicas no Brasil (1933-1968) como uma das agências de disputa no campo indigenista
(GRUPIONI, 1998).
124
Souza Lima (1995) comenta a inserção do SPILTN no interior do MAIC uma vez que o conjunto de
propostas do órgão eram coincidentes com aquelas do Ministério, além de traduzir sob o ponto de
vista da administração a conjuntura política e a ideologia da época., isto é, a proteção aos índios
longe de ser uma empresa heróica como aparece no imaginário social, sempre fez parte da
burocracia.
As normas do SPI previstas nas leis, no regulamento do órgão e no ato de
criação da instituição, traduzem a filosofia e a estrutura que o identificou,
confirmadas pelo decreto 9.214/1911 que traçou mais claramente as bases da
política indigenista. O SPI passou a ter respaldo constitucional a partir da
Constituição de 1934 (GOMES, 2002).
Como os índios eram percebidos pela ideologia da época e pelo próprio
órgão? Para as elites da época eram segmentos sociais transitórios, incorporados
aos trabalhadores nacionais. Para o órgão, eram distintos da sociedade brasileira,
“pretéritos à comunidade imaginada se antepondo aos seus componentes” (SOUZA
LIMA, 1995, p. 120). No debate da época os conceitos de Nação, povo, pátria e
governo ocupavam status diferentes. Superior à idéia de Nação estava o povo,
compreendido como grupos de famílias formando uma comunidade que possuía um
governo. Desta forma os indígenas precisavam fazer parte desta família mediante a
incorporação. Com base nesse ideário político se delineava as tarefas do SPI, os
parâmetros da conquista e disseminação dos valores da sociedade mais ampla.
Nesse sentido, civilizar os indígenas tinha como objetivo sua inclusão na economia
de mercado, o que tornava necessário o estabelecimento de categorias de oposição
entre índios e brancos, definição de quem eram os índios parceiros, entendidos
como “amigos” e opositores tratados como “inimigos”. Tal categorização estabelecia
metodologias de tratamento a quem era parceiro ou opositor.
As funções estratégicas do órgão fornecem uma idéia da complexidade das
atividades desenvolvidas que se tornavam inviáveis, caso as verbas de manutenção
não fossem condizentes com a realidade enfrentada. A garantia dos territórios
conquistados era realizada com a participação de outros aparelhos estatais que em
conjunto mediavam, as relações entre índios e brancos nacionais ou estrangeiros,
como ocorria na zona de fronteira125.
A conquista era garantida mediante a produção de informações que estava
ligada diretamente à gestão de espaços indígenas. Dessa maneira a estrutura
administrativa inicial contou com uma diretoria geral, as inspetorias regionais e os
postos indígenas, que recebiam as orientações da sede localizada no Rio de

125
Em nossa dissertação de Mestrado discutimos o papel da escola na fronteira Brasil-Guiana
Francesa, cuja função era abrasileirar os indígenas da região que optavam em falar o creóle francês,
trafegar e estabelecer aldeias em ambos os lados da fronteira. A instalação da escola em 1936, nas
diversas aldeias da região, era subordinada diretamente ao Posto Indígena do Uaçá/Oiapoque. Ver:
ASSIS, Eneida. Escola Indígena: uma frente ideológica? Diss. de Mestrado em Antropologia Social.
Brasília:UNB, 1981.
Janeiro. As inspetorias eram setores básicos de articulação política, no plano
regional, que aliada aos postos (PI) administravam as demandas nas regiões onde
se localizavam126.
A extensa geografia do SPI exigia uma organização fundamentada na de
fases de ação relacionadas aos supostos graus de evolução dos indígenas. Na
expressão de Souza Lima, “momentos civilizatórios” que compreendiam além de um
modo de fazer, o uso de técnicas adequadas a cada fase em que os indígenas se
encontravam.
Segundo Azevedo [1928]127, estas fases estavam assim subdivididas:
1ª fase – atração de índios selvagens
2ª fase – transformação e educação dos índios semi-selvagens
3a fase – ensinamento dos trabalhos agrícolas e industriais derivadas aos índios
semicivilizados.
4a fase – estabelecimento dos índios na sua emancipação e definitiva introdução na
vida civilizada.
Souza Lima chama atenção de que estas fases compreendiam outras
atribuições do SPI tais como, os trabalhos de pacificação realizados quando havia
guerras entre índios e brancos; a atração direcionada aos grupos arredios, que
implicava no estabelecimento de reservas indígenas. A localização dos indígenas
em terras destinadas a eles evitava que viessem para as cidades. A segunda fase
envolvia o que este autor chama de “exemplo”, que compreendia o ensino de
serviços como agricultura e pecuária.128 A terceira fase compreendia os serviços de
civilização, representados pela introdução escolar voltado principalmente para o
ensino de português e civismo, rudimentos de aritmética e pequenos cálculos que
lhes facilitasse as trocas comerciais. A quarta fase exigia a regularização das terras
e a instrumentalização de técnicas agrícolas.
O SPI instituiu sua administração e política através de leis e regulamentos, e
o reconhecimento constitucional na Constituição de 1934. Carneiro da Cunha (1987)

126
Souza Lima (1995) neste trabalho de referencia sobre o SPI, apresenta organogramas do órgão
relativo aos períodos (1910, 1911, 1914, 1930, 1944, 1960), que mostram a dispersão pelo território,
a jurisdição administrativa ao longo da sua história. Ver: Caderno Iconográfico.
127
AZEVEDO, Lindolpho B. [1928], SEDOC, m. 380 f. 1255, apud Souza Lima, 1995, p. 135-137).
128
Pudemos observar, durante um longo período em que convivemos com os indígenas da Reserva
do Uaçá/Oiapoque, o procedimento de um dos chefes de Posto mais respeitados da região, Frederico
Oliveira. Nos serviços de limpeza da aldeia, ou nas realizações dos ‘convidados’ (mutirão para
abertura ou plantio de roças), ele não se limitava a dar as instruções, mas madrugava e era o primeiro
‘que pegava o terçado’ para iniciar o serviço.
faz referência que, pela primeira vez, a situação das terras indígenas tem lugar
como matéria constitucional, não constando dispositivo algum sobre os índios no
projeto de governo (Projeto Itamaraty), nem no substitutivo dos 26, composto por um
membro da bancada de cada estado, do Distrito Federal, do Acre e representantes
da sociedade civil.
A primeira emenda foi apresentada em dezembro de 1933, pelo deputado
Álvaro Maia, da bancada do Amazonas sob o número 1.193: “A União, os Estados,
ou os municípios respeitarão a posse dos indígenas sobre as terras onde estiver
localizada, tudo nos termos da legislação federal sobre o assunto”. Esta emenda,
aprovada tornou-se o artigo 129 da Constituição de 1934, consagrando os títulos
indígenas sobre suas terras.
Outra vitória foi a aprovação da competência exclusiva da União para legislar
sobre assuntos indígenas (artigo 5º , item XIX, m). As Constituições de 1937 (Carta
Outorgada) e a liberal democrata de 1946 reconheceram esses pontos.
Para Mércio Gomes (1988), argumentos conservadores ou progressistas, em
diferentes momentos, tocam no mesmo ponto: a diminuição das terras indígenas. A
depopulação sofrida por diversos grupos indígenas em razão de fatores econômicos,
sociais e da própria administração do órgão, foi uma herança que pesou
negativamente para a instituição. Por outro lado, demarcou 40% das terras
indígenas e criou o Parque Nacional do Xingu, considerado ainda um marco no
indigenismo nacional. Em 1967, no meio de um escândalo de repercussão
internacional, onde funcionários do SPI foram acusados de participar do massacre
dos Cintas Largas, fato que ficou conhecido como O Massacre do Paralelo 11, o
regime militar extinguiu o SPI.
4 ESTADO E ÍNDIOS: A FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO E O MOVIMENTO
ÍNDIGENA

As mudanças operadas a partir da Constituição de 1988 injetaram algumas


doses de inovação política nas relações do Estado, com a sociedade nacional e os
povos indígenas. A repercussão sobre a FUNAI, antes a única agência reguladora
da política indigenista, produziu efeitos que colocaram em dúvida a manutenção da
instituição. Esse fato é necessário ser pensado à luz das reformas do Estado
brasileiro desde a Nova República, em especial a reestruturação administrativa
pretendida pelo governo Collor129, que transferiu para outros ministérios ações que
eram de responsabilidade da FUNAI, fato que foi definido nos meios indigenistas
como “pulverização” do órgão. Como resultado, diversas agências estatais
passaram a elaborar ações e/ou terem interferência nos destinos dos povos
indígenas, enquanto estes, através de seus organismos de representação, as
organizações indígenas, exigiam maior participação e representatividade política,
dando um novo sentido político ao indigenismo.
No entanto, não é o possível, nos limites deste trabalho, realizar uma reflexão
sobre a FUNAI que contemple os diferentes aspectos desta instituição, nem
tampouco do movimento indígena, em razão da complexidade que apresentam. Em
relação à FUNAI, pela necessidade de construir uma historiografia considerando os
diferentes contextos pela qual a instituição atravessou, favorecendo a compreensão

129
Segundo Olavo Brasil, essa reforma insere-se no contexto da modernização do Estado guardando
alguns princípios da pauta de reforma administrativa dos anos 60, enquanto o ajuste econômico e a
abertura comercial eram aspectos novos a serem buscados. Cf. BRASIL, Olavo. As Reformas
Administrativas no Brasil: modelos, sucessos e fracassos. Trabalho apresentado no Seminário
“Dessarollo Político comparado de Argentina e Brasil”. Univ. Torcuato Di Tellla, Buenos Aires, 25-26
de marzo, 1999, digit.
das mudanças ao nível externo, sua influência no interior da mesma, bem como o
comportamento dos atores internos e externos à instituição. A complexidade de
funções exercidas pelo órgão e a geopolítica da mesma exigiria uma pesquisa de
campo nos moldes sugeridos por Clara Galvão, conduzindo a tese em outra
direção130. Em segundo lugar, pela escassez de literatura já sistematizada, tanto do
ponto de vista da administração, quanto das ações políticas mais recentes o que não
significa inexistência131. O mesmo pode ser dito em relação ao movimento indígena
pelas nuances que o grande número de associações apresenta, por exemplo, etnia,
região, gênero, profissão, que assumem fisionomias particulares dependendo da
região ou grupo. Mais ainda, o próprio processo político baseado em articulações
nacionais e internacionais, em acordos, resoluções com vistas à garantia e defesa
dos direitos indígenas.
Para os propósitos deste trabalho, pensamos as políticas indigenista e
indígena, como fenômenos políticos que se complementam no cenário democrático.
Isto é, para se compreender os avanços, recuos da política indigenista, e
consequentemente da FUNAI enquanto instituição de governo, com uma função
específica, é importante considerar a relação do indigenismo oficial com o
indigenismo não oficial132, representado por instituições que estão produzindo e
realizando ações políticas com/e/sobre povos indígenas133. É importante levar em
conta a dinâmica imprimida pelo movimento indígena, sua difusão e impacto no
interior das sociedades indígenas, seus efeitos sobre o indigenismo oficial, as
características do movimento no Brasil em relação ao restante da América Latina.
Finalmente, é necessário ver a questão indígena no contexto de um conjunto de

130
Ver Introdução, item: Caminhos percorridos.
131
Existem Relatórios de Propostas de Restruturação da FUNAI elaborada por técnicos da instituição,
o que permite uma nesga de olhar no interior da instituição, além é claro dos documentos
administrativos, mas que requerem ainda o devido tratamento. Souza Lima e Pacheco de Oliveira,
desenvolvem um projeto sobre Terras Indígenas na gestão da FUNAI (LACED/MN). O resultado do
Seminário Bases para uma nova política indigenista está apresentado em livros e um Relatório
disponibilizado na internet (www.laced.mn.ufrj.br), documentos que foram de grande auxílio neste
trabalho.
132
Além desse termo, a expressão “movimento indigenista” foi usada nos anos 1970-80, definindo a
ação de antropólogos, lingüistas, técnicos da FUNAI e de outros órgãos, advogados que estavam
envolvidos com a questão indígena. Indigenismo também é entendido como conjunto de princípios
estabelecidos a partir do contato do Estado com os povos indígenas.
133
A elaboração e implementação da política indigenista é atualmente feita pelos Ministérios da
Justiça, Saúde, Educação, Meio Ambiente, de órgãos como Desenvolvimento Agrário,
Desenvolvimento Social, FUNAI, INCRA, Conselho de Gestão do Patrimônio Genético-CGEN, razão
por que as lideranças indígenas estão requerendo a criação de um Conselho Nacional de Política
Indigenista com a participação indígena e da sociedade civil. Ver. Revista Mensageiro, Mai-Jun, CIMI,
2005.
assuntos que demandam respostas políticas, cujos interesses tergiversam com os
assuntos indígenas, sejam aquelas que envolvem as minorias raciais, como é o caso
do movimento negro, de atores individuais ou coletivos, sejam posseiros, sem-terra
ou empresários diversos, cujos interesses recaem sobre as terras indígenas.
Enfim, pensar a questão indígena tendo como “pano de fundo” o cenário
democrático brasileiro deste momento. Sob esse ângulo, a FUNAI se apresenta não
apenas como uma agência de governo, mas uma instituição que atua como um
instrumento de ação política, que se encontra, em alguns momentos, numa espécie
de situação esquizofrênica, por ter propósitos fundantes prescritos num dado
momento histórico, que não foram atualizados e, portanto, soam inadequados à
realidade indígena atual. Como um organismo criado no período da ditadura militar,
com concepções e práticas indigenistas similares às do SPI, o novo órgão foi
considerado por seus técnicos e funcionários uma “seqüência do SPI”, estando por
essa razão estruturalmente ultrapassada134. O movimento indígena atua como
mecanismo de mudança tanto ao nível interno do mundo indígena quanto externo,
vale saber, das instituições estatais, não estatais e da sociedade estremecendo
idealizações sobre o ser índio.
Propostas de reestruturação vêm sendo discutidas desde 1985, quando
representantes do movimento indígena e do indigenismo, entregaram ao presidente
eleito Tancredo Neves e ao ministro da Justiça Costa Couto documentos que
continham sugestões para elaboração da política indigenista e reestruturação da
FUNAI. Com a morte de Tancredo Neves, a proposta de um novo conceito para o
órgão indigenista e uma política afinada com a democracia, caiu por terra,
reiniciando o ciclo de atividades de agendas passadas, ou seja, denúncias e
campanhas de esclarecimento135.
Relatórios de seminários realizados por técnicos da FUNAI desde 1985
chamam atenção sobre a necessidade de reforma do órgão. A partir de 1988, as
discussões exigindo nova legislação, reforma do órgão, plano de carreira de
indigenista foram intensificadas, buscando-se a readequação da FUNAI, termo que
define um: “conjunto de medidas que, tendo em vista a própria reestruturação que se
vincula à reforma do aparelho do Estado, antecipa modificações estruturais

134
FUNAI. Atualizando a história: idéias para reestruturação da FUNAI. Brasília: Funai, 1996 (1ª
versão).
135
Ver: GITA, Ana. Atas Indigenistas, Brasília: Oriente, 1988.
possíveis nos termos dos Estatutos, visando dotar a Funai de uma estrutura mais
flexível e econômica”136
Entre 1999-2002, indígenas, técnicos da FUNAI, representantes da
Associação Brasileira de Antropologia, a ABA, e acadêmicos, organizaram um
seminário através do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e
Desenvolvimento do Museu Nacional (LACED/MN), com o apoio da Fundação
FORD. O seminário, voltado para a construção das Bases para uma nova política
indigenista, teve por objetivo discutir e apresentar novas experiências de ação
indigenista à luz das relações estratégicas entre os diversos atores, visando
propiciar condições de debate e aprofundamento de políticas relativas aos povos
indígenas. Os temas debatidos nas seis mesas redondas apresentaram o novo
cardápio de questões tais como: etnodesenvolvimento e mercado; parcerias
indígenas; qualificação de pessoal técnico, lógica de administração e lógicas étnicas.
Em dezembro de 2002, outro seminário, organizado também pelo
LACED/MN, reuniu 50 representantes indígenas de 34 povos, vindos de 22 estados,
além de organismos do governo e ONGs, para elaboração uma proposta de política
indigenista para ser encaminhada ao governo Lula e posta em prática a partir de
janeiro de 2003. Sete pontos resumiam os resultados dos debates: 1)
Reestruturação do órgão indigenista permitindo o abandono da herança
integracionista e tutelar, possibilitando a entrada num novo cenário jurídico; 2)
Criação de um Conselho Superior de Política Indigenista, situada numa Secretaria
de Estado, ligada diretamente à Presidência da República; 3) Participação indígena
no planejamento, ação, execução, fiscalização dos órgãos executores da política; 4)
Etnodesenvolvimento e demarcação de terras; 5) Saúde indígena no contexto da
política indigenista; 6) Educação escolar enquanto instrumento de política
indigenista.
A eleição de Luís Inácio Lula da Silva foi vista com bons olhos tanto por
indígenas quanto por aqueles que estavam direta e indiretamente envolvidos com os
assuntos indígenas, porém os primeiros seis meses de governo revelaram que a
articulação intersetorial que deveria se caracterizar por maior protagonismo político
dos indígenas não aconteceu. Ao contrário, os direitos territoriais indígenas sofreram
duas sacudidelas: a decisão de encaminhamento de processos de homologações à
apreciação do Conselho de Defesa Nacional e do Senado Federal, e a Proposta de
136
FUNAI. Coletânea. Sugestões de mudança para a FUNAI: BSB, Doc/1996.
Emenda Constitucional – PEC 38/99, que restringe a criação e extensão de terras
indígenas e Unidades de Conservação, de autoria do Senador Mozarildo Cavalcanti
(PPS/RR), encaminhada e aprovada em plenário137.
Paralelo a esses acontecimentos, a demissão do presidente da FUNAI,
Eduardo Almeida, ligado às ONGs, pelo ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos,
e a substituição pelo antropólogo Mércio Gomes, vinculado ao PPS, partido da base
governista naquele momento. Estes acontecimentos trouxeram de volta discussões
travadas durante o início da Nova República: as várias facetas do indigenismo, eram
clivagens que precisavam ser conhecidas e refletidas criticamente diante do
contexto democrático, revelavam interesses dos diversos atores exigiam uma nova
postura, uma nova forma de fazer política.
Ao buscarmos o entendimento das relações entre o Estado nacional
representado pela FUNAI e o movimento indígena como um ator decisivo para as
mudanças que se operam no indigenismo, optamos por analisar a situação da
perspectiva destes atores. Do âmbito da FUNAI, considerar as propostas de
reestruturação do órgão indigenista e da construção de uma política indigenista,
adequada à realidade social dos povos indígenas. Da perspectiva do movimento
indígena, as demandas, tanto nacionais quanto internacionais, exigem o
cumprimento das leis relativo às terras indígenas, o reconhecimento da cidadania
diferenciada, garantia do direito a educação, saúde, a representação nos fóruns de
decisão, enfim, medidas que propiciam a mudança nas agendas de governo e nas
regras aplicadas aos povos indígenas.
Tal recorte possibilita visualizar o comportamento dos atores estatais, não
estatais e indígenas atendendo um dos aspectos pensados para esta tese que é o
papel da sociedade brasileira. O capítulo apresenta uma divisão em períodos para o
estudo da FUNAI, considerando tanto as ações internas da instituição,
representadas pelas iniciativas dos técnicos do órgão em discutir um novo design
para a instituição, quanto as ações externas, provocadas pela conjuntura do
Estado138, e outros atores políticos.
137
Ver: VERDUM, Ricardo. Direitos Indígenas: análise das principais propostas que tramitam no
Congresso Nacional. Nota Técnica No. 81. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos/INESC,
agosto, 2003. Desde março/2005, há uma campanha na internet organizada pelo ISA contra a PEC
38/99 que retorna mais uma vez.
138
Eli Diniz chama atenção do volume e intensidade de problemas que atingiram a sociedade
brasileira a partir dos anos 1980, fossem econômicos, políticos ou sociais, de tal maneira que o termo
ingovernabilidade ganhou espaço no vocabulário político, tornando-se um símbolo da falta de
4.1 FUNAI e Governos Militares (1967-1985)

Em 05 de dezembro de 1967, através da lei 5.371 foi criada a Fundação


Nacional do Índio, FUNAI, em substituição ao SPI, com o objetivo de solucionar o
problema de credibilidade do antigo órgão protecionista e fornecer um tratamento
técnico científico à questão indígena, aprimoramentos que resultaram na lei 6001, de
19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio139. Foi vinculado ao
Ministério do Interior e sua sede foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília. Além
da FUNAI, outro órgão indigenista era o Conselho Nacional de Proteção ao Índio,
criado por Rondon em 1939, extinto em 1985 (GOMES, 2002).
A natureza jurídica da FUNAI tem sido apontada por técnicos do órgão como
um dos complicadores de sua estrutura:

[...] embora tenha assumido a natureza jurídica de fundação de direito


privado, por oposição ao SPI que era uma autarquia, os pressupostos
teóricos de integração dos índios à comunhão nacional foram mantidos.
Mais que isto, embora a natureza jurídica empregada em 1967 fosse um
esforço para dotar a entidade de flexibilidade administrativa, na prática a
Funai foi mantida como patrimônio em favor dos de setores militares que se
revezaram até 1984 (Rumo ao 3º Milênio: idéias para reestruturação da
FUNAI. FUNAI/BSB, 1996.digit.).

Outro aspecto que colaborou para o perfil da instituição nos governos


militares, na opinião do indigenista Porfírio Carvalho, foi sua vinculação ao Ministério
do Interior:

competência do país em lidar com seus problemas. Cf. DINIZ, Eli e AZEVEDO, Sérgio de (Orgs.).
Governabilidade, Democracia e Reforma do Estado: o desafio da construção de uma nova ordem no
Brasil nos anos 90. In: A Reforma do Estado e Democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1997.
139
Segundo Luiz Beltrão, o padre José Vicente César do Instituto Anthropos do Brasil (Brasília),
publicou no Jornal do Brasil, edição de 12.08.1973, o caminho percorrido para a formação do Estatuto
do Índio. Para o padre Vicente, apesar das alterações sofridas no estatuto da nascente Funai, os
princípios da política indigenista que figuram no item 1, art. 2 do decreto 65.474, de 21.10.1979 e da
Emenda Constitucional nº 1 de 17.10.1969 inserida na Carta Magna, art. 198, Título V, Disposições
Gerais e Transitórias, deixaram a desejar. Mas foi a partir desta plataforma que a Funai providenciou
junto ao jurisconsulto Temístocles Cavalcanti o projeto inicial do estatuto enviado ao Congresso em
14.09.1970, que recebeu 14 emendas de autoria da Funai, através de seu procurador geral Romildo
Carvalho. Em dezembro de 1973 se transformou em lei. (BELTRÃO, Luiz. O Índio, um mito brasileiro.
Ed. Vozes: Petropólis, 1972: 21-25).
[...] o Ministério do Interior é um órgão que por influência dentro da Funai
deveria ser só de controle financeiro, porque a Funai não é subordinada ao
Ministério do Interior [...] é vinculada [...] com relação ao que determina o
decreto-lei 200140; a lei que criou a Funai, a lei 5.371, não fala em Ministério
do Interior [...] como as nomeações foram políticas até hoje, as pessoas
nomeadas deviam um certo respeito [...] às pessoas que lhe apontaram e ai
essa vinculação de fato passou a existir, a subordinação de fato, mas
legalmente a Funai não é subordinada ao Ministério do Interior, é apenas
vinculada em relação aos gastos. Hoje a Funai não faz nada, sem antes
consultar o Ministério do Interior [...] dessa subserviência que os dirigentes
passaram a ter com o Ministério do Interior – isso é um perigo muito grande
e está prejudicial às comunidades indígenas (Porfírio Carvalho –
FUNAI/Assessoria Deputado Mario Juruna, Brasília, 23.07.1985 – Atas
Indigenistas).

Com respeito ao comportamento das instituições, Hall e Taylor (1997)


comentam que desde Weber os sociólogos têm observado as estruturas
burocráticas como produto de um esforço para planejar, de forma eficiente e
racional, estruturas organizativas viáveis para o desempenho de tarefas associadas
à sociedade moderna. Contrariando esse ponto de vista, os defensores do
institucionalismo sociológico opinam que determinados procedimentos organizativos
não têm relação exclusivamente com a busca da eficiência, mas também com a
maneira de ser dos sujeitos que dela fazem parte, algo que pode ser considerado
como práticas culturais específicas, semelhantes a cerimoniais realizados por
diversas sociedades. Assim, estes autores alertam para o que parecem ser práticas
puramente burocráticas, devem ser também explicadas em termos culturais141.
Durante o período em que realizamos a pesquisa na biblioteca da FUNAI/BSB
(abril-junho/2003), observamos nos pronunciamentos dos técnicos (indígenas e não
indígenas) e estudantes indígenas, que estavam participando do Curso de
Indigenismo que tivemos oportunidade de assistir, diferentes discursos sobre a
FUNAI.
Para alguns, a eficiência era prejudicada porque o sistema político contribuiu
para a ineficiência. Expressões como “A Funai foi criada para não dar certo”, ou
“instituição fazedora de cabeças a favor dos interesses dos outros”, enunciavam que
apesar do esforço dos técnicos, a resistência imposta de fora e por alguns grupos

140
Decreto-lei N°. 200/1964, ampliou e possibilitou maior eficiência da Administração Indireta
(autarquias, fundações, empresas estatais e de economia mista) as quais passaram a atuar em bases
empresariais (Cf, Eli Diniz, 1997).
141
Ver também: MEYER , John W. and ROWAN, Brian, Institutionalized Organizations: formal stucture
as myth and cerimony. American Journal of Sociology, 83 (1977), 340-63 apud HALL, Peter and
TAYLOR, Rosemary. Political Science and the three New Institutionalisms. Political Studies, vol.XLIV,
1996.
internos formava barreiras difíceis de superar. O preconceito contra indígenas, por
parte de “gente que trabalha no órgão”, foi apontado por alguns como sendo um dos
fatores que também contribuía para o estado de crise da instituição. Alguns pontos
foram comuns nesses depoimentos: a condição jurídica do órgão que era uma
fundação apenas no nome cuja falta de recursos próprios comprometia o
desempenho da instituição; o desempenho controverso que se expressava na
adoção de políticas contrárias aos indígenas; a condição de trabalhador da FUNAI,
fosse funcionário ou contratado, a relação com a instituição era forte, pois ele levava
a instituição a todos os lugares aparecendo em conversas que giravam sempre
sobre o tema “índio, índio, índio”, mas paradoxalmente, este trabalhador podia se
comportar como defensor, inimigo ou vítima dos índios, no último caso quando a
FUNAI era invadida por representantes desses povos. Assim olhado, não é apenas
a eficiência que é buscada, mas uma forma de ser, resultado da transmissão de
práticas mais gerais. Retornaremos a esse ponto mais adiante.
A instalação da FUNAI no Ministério do Interior, no período da ditadura militar,
é apontado nos documentos analisados como um contra-senso, na medida em que
a integração nacional, sendo a meta desse ministério, legava a FUNAI o dilema
entre a garantia da proteção aos povos indígenas e a integração à comunhão
nacional. Os efeitos desse modelo de administração é um capítulo documentado em
muitos trabalhos de antropólogos (BEOZZO, 1983; BAINES, 1988, CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1988; GOMES, 1988, 2002; OLIVEIRA FILHO, 1998).
Do ponto de vista da natureza jurídica do órgão, foi realizado um esforço para
que a entidade tivesse uma flexibilidade administrativa tornando-se uma fundação
de direito privado demarcando sua diferença com o SPI que era uma autarquia, o
que não aconteceu na prática142. Como nos referimos a pouco, o discurso da
ineficiência tem estreita relação com o processo de criação do órgão indigenista em
contexto político demarcado pelo endurecimento do governo Costa e Silva. Em
fevereiro de 1966, o governo decretou o AI-3, que estabelecia eleições indiretas para
governador e para os municípios considerados de segurança nacional, a liberdade
de expressão tornou-se cada vez mais restrita, apesar de ter havido eleições para o
Congresso, com candidatos dos partidos existentes, ARENA (Aliança Renovadora
Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Posteriormente, a maioria dos

142
Cf. FUNAI. Atualizando a história: idéias para a reestruturação da FUNAI, 1996 a); Rumo ao 3º
milênio: idéias para reestruturação da FUNAI, 1996 b).
políticos de oposição foi cassada e o Congresso fechado. O AI-4 reabriu o
Congresso para apoiar a Constituição de 1967, que incorporou vários princípios
presentes nos Atos Institucionais (AI).
Em 1966 foi promulgado o decreto No. 58.824, de 14 de julho de 1966, e
aprovação do decreto legislativo, Nº 20, de abril de 1965, dispondo sobre a
Convenção 107 da OIT, que tratava da Proteção e Integração das Populações
Indígenas e Outras Populações Tribais e Semi-Tribais de Países Independentes. O
artigo 11 da Convenção 107 estipulava que: “O direito de propriedade coletiva ou
individual, será reconhecido aos membros das populações interessadas sobre as
terras que ocupam tradicionalmente"143.
Comentando este ponto, Carneiro da Cunha (1987), diz que apesar deste
instrumento internacional a propriedade das terras indígenas é atribuída à União
conforme estabelece o Artigo 14: “Art. 14. Integrar o Patrimônio da União [...] as
terras ocupadas pelos silvícolas”.
Em dezembro de 1968 o Presidente Costa e Silva decretou o AI-5 com
caráter permanente, desmascarando a aparência democrática que o governo militar
vinha assumindo até então. O Ato Institucional N.º 10 (AI-10) promoveu a Emenda
Constitucional de 1969144. Em 19 de dezembro de 1973, foi promulgada a lei 6001/73
criando o Estatuto do Índio, estabelecendo as normas para o relacionamento entre o
Estado e os índios.
Sob o ponto de vista da administração interna da FUNAI, apesar das
mudanças, a nomenclatura das unidades demonstrou a continuidade do SPI
denunciada por técnicos e índios e presente nos relatórios. O exemplo do SPI
fornecido por Gomes (2002) permite a comparação com que registram os relatórios:

[...] as Inspetorias Regionais do SPI passaram a ser chamadas de


delegacias [..] As delegacias mantiveram a incumbência de coordenar as
atividade-fins dos postos indígenas e de dar solução aos problemas mais
prementes dos índios. [..] Para abrigar os índios visitantes, deveriam possuir
ou alugar hospedarias que ficaram conhecidas como Casa dos Índios
(GOMES, 2002, p. 333).

143
A Convenção 107/1966, apesar de apresentar um caráter integracionista, tem no artigo 11 uma
importante garantia dos direitos indígenas. A recomendação 104/66 da OIT detalha os procedimentos
da Convenção (Carneiro da Cunha, 1987, p. 128)..
144
Na CF de 1969, o Art. 198, estabelece que as terras indígenas sejam inalienáveis nos termos que
a lei federal determina, assim como, cabe a eles a posse permanente e reconhecido o seu direito ao
usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. (op. cit, p. 98)
Os relatórios acusam modelos de estruturação a partir de 1967, semelhanças
com o SPI e uma idéia da complexidade e da geopolítica do órgão indigenista:
a) De 1967-1986: Além da sede, havia 18 delegacias regionais com jurisdição de
âmbito estadual; ajudâncias autônomas ligadas à sede ou delegacias. Neste
período existiam 334 postos indígenas ligados às delegacias ou ajudâncias (se
existentes).
b) De 1986-1992: Foram instaladas 06 superintendências regionais, com jurisdição
macro regional sobre 47 administrações regionais localizadas em cidades
estratégicas; 350 postos indígenas ligados à essas administrações (o que
significava, 53 unidades descentralizadas). Este período é marcado pela
contratação significativa de servidores pelo regime da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), e depois estabilizados pelo Regime Jurídico Único (RJU)145.
c) 1992-1995: As superintendências foram transformadas em 44 administrações
regionais ligadas diretamente à sede; 03 núcleos de apoio, que eram a instância
intermediária entre as administrações regionais e 349 postos indígenas.
d) 1996..: As administrações regionais foram transformadas em administrações
executivas regionais (AER). Os postos indígenas começaram a perder a
finalidade histórica de mediar os assuntos indígenas, em razão das organizações
indígenas se tornarem cada vez mais as porta-vozes dos grupos.
Segundo a avaliação dos técnicos da FUNAI, a eliminação de uma instância
intermediária dificultou a articulação entre os diversos administradores, uma vez que
muitas unidades foram criadas para atender as circunstâncias do momento, sem
adotar critérios de racionalidade146.
No período dos governos militares, o modelo de administração imprimido pela
FUNAI teve sérias repercussões, que traduziram o confronto ideológico dos
diferentes atores que participaram do indigenismo daquele momento, resultando a
diversos grupos indígenas severas perdas, que colocaram em risco sua
sobrevivência enquanto povo. A administração pautada na integração dos índios à
sociedade nacional, consoante com o modelo econômico desenvolvimentista,
introduziu no país o capital internacional que se fez presente mediante grandes

145
O Governo Collor (1990-92) no afã da reforma administrativa tomou uma medida das mais
polêmicas qual seja, a instituição do Regime Jurídico Único (RJU) através da Lei Nº 8.112 de
dezembro de 1990, que “permitiu a todos os celetistas optarem pelo regime de servidor estatutário,
medida que posteriormente veio a exercer um efeito engessador na administração pública” (Ver:
Olavo Lima Brasil, 1999)
146
Cf. FUNAI. Atualizando a história: idéias para a reestruturação da FUNAI, 1996, p.9-10.
projetos econômicos. A Amazônia foi considerada a última fronteira, que precisava
ser ocupada divulgando-se a ideologia do vazio demográfico. A proposta de um
reordenamento político institucional que resultou em transformações espaciais e
territoriais na Amazônia já vinham sendo discutidas desde meados dos anos 1960,
como prosseguimento do programa de integração nacional marcado pela construção
da Rodovia Belém-Brasilia. Diversos programas foram lançados como a Operação
Amazônica (1968) da qual a SUDAM e o INCRA foram instituições criadas para
conduzir as políticas a serem aplicadas na região. Em 1970 foi criado o Programa de
Integração Nacional – PIN, cuja finalidade era financiar a construção de infra-
estrutura nas áreas de atuação da SUDENE E SUDAM, possibilitando a integração
do Nordeste e da Amazônia, criando as condições para a implantação dos projetos
de colonização, resolvendo pendências demográficas do Nordeste brasileiro.
O decreto nº 1.164/1971 determinou como indispensáveis à segurança e ao
desenvolvimento nacional as terras devolutas situadas na faixa de 100 km de largura
em cada margem das rodovias, a serem construídas como parte do Plano
Rodoviário Nacional e do Fundo de Integração Nacional147. A rodovia
Transamazônica sustentaria os projetos integrados de colonização (PICs), um
padrão de assentamento de colonos que se distribuiriam em lotes rurais e lotes
urbanos, de acordo com o plano urbano-rural previsto pelo programa. Além das
estradas haveria os travessões, que facilitariam a interiorização com o
estabelecimento de lotes, efetivando o projeto agropecuário148.
Em 1974, foi estabelecido o programa POLAMAZÔNIA, com uma nova
proposta política de desenvolvimento regional, direcionada à empresa agropecuária
com espaços definidos para aplicação dos recursos, causando um impacto profundo
no que já existia, uma vez que “o peso dos investimentos em setores infra-
estruturais (agrovilas, agropolis e estradas) e na agropecuária alteram o padrão não
somente na ocupação do espaço, mas igualmente redireciona à economia do
extrativismo para atividades agrícolas e pecuárias”149.
O abandono do projeto de colonização provocou a espontaneidade da
ocupação e surgimento de novos núcleos, maior concentração de terras decorrentes

147
Além da Transamazônica foram construídas a Cuiabá-Santarém (BR-165) e Manaus-Boa Vista
(BR-174).
148
OLIVEIRA, et. alli., 1992; BECKER; MIRANDA E MACHADO, 1990 apud Relatório UHE Belo
Monte .
149
Relatório Estudos Sócioeconômicos/UHE Belo Monte. FADESP/ELN, Belém, 2001, p. 19.
da expulsão/expropriação de colonos assentados nos anos 1970, produzindo o
êxodo rural para as grandes cidades e do entorno (Idem, p.20). O impacto sobre as
populações indígenas foi violento, pois somado às epidemias de sarampo, gripes,
pôs em risco a sobrevivência dessas populações significando um preço muito alto
pelo progresso.

4.2 A resistência indígena: para sobreviver é preciso organizar

Apesar de tudo, a resistência indígena existiu. Foi o caso dos Waimiri-Atrori.


Desde 1968 esses índios resistiam à invasão de seus territórios, como aconteceu
com o projeto da estrada Manaus-Caracaraí (BR-174). Neste empreendimento a
FUNAI e a Prelazia de Roraima organizaram uma equipe dirigida pelo padre João
Calleri, cuja equipe terminou massacrada. Em 1974, com a estrada já concluída, a
alimentação da infra-estrutura precisava ser feita com um empreendimento maior, a
hidrelétrica de Balbina. Uma nova equipe, chefiada pelo sertanista Gilberto Pinto, foi
também massacrada e os Waimiri sofreram sérias sanções, sendo alvos de violenta
propaganda, na qual foram acusados de serem “selvagens que deveriam morrer”:

Índios bandoleiros, maus, perversos, assim são hoje os Waimiri-Atroari. Mas


a verdade é que nós os tornamos assim aos olhos da opinião pública para
justificarmos uma série de erros no método de atração adotado nessa área
pela FUNAI (Apoena Meirelles – FUNAI. O ESP, 26.10.75)150.

Vale mencionar outros projetos, como o Programa Grande Carajás (1970),


que atingiu os Gavião151, Guajá, Urubu-Kaapor. A hidrelétrica de Tucurui fazia parte
desse complexo, um empreendimento que atingiu os Parakanã, Akrãkateje, Assurini
do Tocantins, que tiveram suas terras inundadas, sendo deslocados para outras
regiões. Dentre esses, o deslocamento Parakanã foi dos mais drásticos, quase
provocando a extinção do grupo (VIVEIROS DE CASTRO e ANDRADE, 1988;
ORTOLAN MATOS, 1997).

150
Resistência Waimiri/Atroari. Movimento de Apoio à Resistência Waimiri/Atroari, Itacoatiara-PA,
1983.
151
Hoje abandonaram essa designação externa assumindo suas autodenominações – Paarkatejê,
Kykãteje e Akrãkatejê – o mesmo ocorrendo com os Urubu-Kaapor, são apenas Kaapor.
Vozes se levantaram contra a política do governo surgindo entidades de apoio
à causa indígena. Como exemplo, citamos a Sociedade Brasileira de Indigenistas
(SBI) e a Secretaria Executiva das Entidades de Apoio à Luta Indígena, estudadas
por Ortolan Matos (1997). Organizações que se formaram com o intuito de influir,
denunciar e mostrar o desagravo da política do governo e dos presidentes da
FUNAI, quase todos militares. Segundo Ortolan Matos, o período de maior crise
administrativa ocorreu na administração do coronel João Carlos Nobre da Veiga, no
período de novembro de 1979 a outubro de 1981. Sua gestão foi marcada pela
demissão de 39 indigenistas e antropólogos que haviam encaminhado ao ministro
do Interior, críticas à política indigenista. A elaboração do projeto de emancipação
compulsória, com o estabelecimento de critérios de indianidade, alguns dos quais
baseados numa antropologia física de critérios somáticos e raciológicos em vigor
nos anos 1930, sofreu críticas acirradas, culminando com a não apresentação do
projeto ao Ministério do Interior (MINTER). Os critérios de indianidade tinham
endereço certo, atingir aqueles considerados integrados, esvaziando o movimento
indígena, suspendendo a proteção legal sobre grupos indígenas do leste, sul e
nordeste, cujas terras estavam no rol de interesses de grupos empresariais. Em
1980, Nobre da Veiga mediante uma portaria interministerial MINTER/FUNAI
facilitou a exploração mineral em terras indígenas por empresas estatais152.
Desde 1975, o governo, na época através do ministro do Interior, Rangel
Reis, tinha a intenção de modificar o Estatuto do Índio de tal forma que permitisse a
emancipação individual e coletiva dos grupos indígenas. Em 1978, o ministro Rangel
Reis anunciou que o presidente Geisel assinaria o decreto de emancipação que
“beneficiaria” cerca de dois mil índios. Caso tivesse sucesso tal investida, as terras
indígenas seriam abertas à exploração. Em decorrência deste fato surgiram em
diversos pontos do território nacional, as organizações de apoio à causa indígena
(ORTOLAN MATOS, 1997, p. 109-113).
Participavam da SBI indigenistas de várias tendências, simpatizantes do
regime militar e da “esquerda”. Em 1980, cerca de 33 entidades de apoio à causa
indígena se reuniram na sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG), em Brasília e decidiram pela fundação de uma Secretaria
Executiva das Entidades de Apoio à Luta Indígena, com objetivo de articular em

152
Ver também: Galeria da Crise Permanente/FUNAI, [199-]
nível nacional o intercâmbio com as entidades, atuando junto aos parlamentares,
com o objetivo de criar uma comissão de assuntos indígenas no Congresso
Nacional. Apesar de todo o trabalho de articulação, faltou a legitimação da
representatividade, em razão da diversidade de tendências dessas entidades e de
fatores econômicos que contribuíram para a extinção da secretaria, em 1983. O
indigenismo tornou-se, à semelhança de outros movimentos que estavam ocorrendo
naquele momento, uma forma de manifestação de insatisfação, protesto e
expressão de tendências político-partidárias.

4. 3. Índios, FUNAI e Nova República: transição democrática

“Quem diz participação, diz democracia (Rousseau); quem diz democracia,


diz organização (Robert Dahl); quem diz organização, diz oligarquia (Robert Michels)
ou autoritarismo dizem os fatos”. Com essas considerações Wanderley Guilherme
dos Santos, em seu Poliarquia em 3D (1998), alerta para o que ele chama de
transitividades perversas, paradoxos que cercam uma democracia, nas quais alguns
atributos podem representar estabilidade e sua falta indicar um colapso.
A transição de uma ordem autoritária para a democrática 153, instiga
mudanças, onde atores diversos se mobilizam para que suas demandas sejam
atendidas, e nesse movimento antagonismos são revelados e pertinentes nessa
nova conjuntura. Foi visto no item anterior que as organizações representativas do
indigenismo oficial e não oficial, juntamente com lideranças indígenas das nascentes
organizações, se reuniram no intuito de barrar medidas contrárias aos direitos
indígenas.
A experiência democrática pode ser dolorosa para quem sempre fez
oposição, exigindo um exercício de adaptação por ser uma outra forma de tratar as
questões, o que se observa no conjunto de depoimentos de representantes de
entidades de apoio ao índio durante a campanha de Trancredo Neves e sua
posterior vitória. Antonio Brant (CIMI) expressou que talvez tenha sido a primeira vez

153
Olavo Brasil considera que a posse de um presidente civil é o marco final da transição. Outros mais
puristas estabelecem como marco a Constituição de 1988, outros consideram que ela só se
completou com a posse de Collor de Melllo (1989-1990). Ver LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil.
Democracia e Instituições Políticas no Brasil dos anos 80. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 25.
que o governo deu sinais de querer discutir a política indigenista, mas também
lamenta a participação insignificante dos indígenas:

[...] a maioria das comunidades indígenas efetivamente está alheia a todo


esse processo de discussão, [..]a maioria das comunidades indígenas não
participa de qualquer tipo de organização [..] Então quando se fala em
participação indígena ela na verdade é muito pequena e muito restrita, e
esse, sem dúvida, talvez seja o ponto mais negativo desse período de
discussões e debates que o [..] novo governo, o candidato Tancredo
provocou. (ATAS INDIGENISTAS, 1986, p. 39).

O deputado Márcio Santilli (PMDB-SP), representante da Comissão do Índio154


na Câmara naquele momento, considerava que o Brasil tinha uma política
indigenista pré-histórica, portanto, a Nova República era a oportunidade única de
mudar esse quadro, quando se avizinhava a Assembléia Nacional Constituinte.
Tendo em vista que a conjuntura democrática fornecia meios para as forças locais
fortalecerem seu antagonismo diante da questão indígena, a Comissão do Índio
passou a ser um local para onde convergiam os interesses dos não índios em áreas
indígenas, daí ser necessário “pensar, para planejar inclusive, qual será o papel das
Nações Indígenas, das comunidades indígenas num processo de constituição, de
desenvolvimento da própria sociedade brasileira” (Idem, p. 53-57).
Mary Allegretti (1985), à época pertencente ao Instituto de Estudos
Sócioeconômicos-INESC, considerou em seu depoimento a existência de clivagens
no movimento indigenista, as dificuldades em lidar com a nova situação que se
tornava mais séria, em razão do desconhecimento da questão indígena por parte
dos assessores de Trancredo, e a constatação de que os movimentos deveriam
continuar em seu papel contestatório. Sobre o deputado Mário Juruna (PDT-RJ),
chamou atenção sua importância histórica para o movimento indígena. Apesar de ter
sido um elemento importante desse cenário, contraditoriamente, não era
reconhecido como deputado por seus pares indígenas, significando “a falência do
movimento”.
Manifestações diversas expressaram esperança na Nova República, como se
segue. Na “Carta do Museu do Índio” (Rio de Janeiro) foi renovada a crença na

154
A Comissão criada pelo deputado Mário Juruna em setembro (Res. 15/1983) tinha por
competência “ opinar sobre assistência ao índio, organismos relacionados com interesses indígenas e
relações do índio com a sociedade. Compete-lhe ainda: a) receber e investigar denúncias sobre
assuntos de interesse do índio; b)propor medidas legislativas de defesa do índio e da ecologia das
reservas indígenas; c) investigar o cumprimento de legislação de defesa do índio”.
existência das condições políticas do novo governo em fazer uma nova política
indigenista, com sugestões voltadas para a demarcação das terras indígenas, e
criação de um Ministério de Recursos Naturais e Assuntos Indígenas que
associasse a defesa eficiente dos direitos indígenas à conservação de recursos
naturais indispensáveis às necessidades futuras do país. Outro ponto interessante
foi a exigência quanto a urgência na aprovação e promulgação da Lei Juruna, que
regulava o direito indígena a representação e participação na FUNAI155.
O documento “Princípios Gerais Para Uma Nova Política Indigenista”, de
fevereiro de 1985, elaborada por uma equipe de representantes dessas
organizações indigenistas, é um registro importante de uma demanda que está em
compasso de espera até o presente momento. Apresentado em quatro princípios
básicos, o documento preconizava que a “integração à comunhão nacional” (lei
6001/73, Art. 1º) fosse entendida a partir de uma perspectiva política de base
científica, não como assimilação, mas articulação de povos organicamente
integrados, mas não homogeneizado, onde o diferente permanece apesar de
pertencer a um conjunto social que é maior e o transcende. O quarto ponto
conclamava a urgência da garantia da representatividade política dos indígenas, que
mesmo operando politicamente no país enquanto unidades políticas, não eram
reconhecidas em estrutura legal, bem como, lhes eram negadas o acesso à
participação nos processos decisórios.
O debate sobre a questão indígena que teve lugar durante os trabalhos da
Assembléia Nacional Constituinte (ANC), revelaram de forma mais nítida um
problema antigo da relação índios/Estado Nacional, que assumiu várias traduções
ao longo da história, civilizado x não civilizado; brancos x índios. Enfim, oposições
ideológicas que serviram de estofo para decisões políticas de várias ordens, assim
como um dos ingredientes para a construção da ideologia da harmonia racial que
mascarou esses conflitos (DAMATTA, 1990; FREYRE, 1933; GUIMARÃES, 2001).
Recusando a integração onde a assimilação apontava para a dissolução de
sua identidade indígena, fosse como índios genéricos resultantes do processo de
transfiguração étnica (RIBEIRO, 1970), como partícipes de um sistema de
dominação/submissão (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1967, 1978), as lideranças
indígenas que participaram da ANC começaram a revelar mecanismos de

155
CARTA DO MUSEU DO ÍNDIO. Coletânea de documentos do Instituto Nacional de Estudos
Sócioeconômicos-INESC/Coordenação de Assuntos Indígenas, Brasília, 1985.
resistência (OLIVEIRA FILHO, 1988), através de articulações com diferentes atores
estatais, não estatais; da presença de suas lideranças no espaço da Constituinte
cujo jogo político se fazia entre índios, movimento dos pró-índios e movimento dos
parlamentares pró e contra os índios (LINS DE ARAUJO, 1992)156.
Paralelo a esses acontecimentos, circulavam em 1985 duas propostas para
reestruturação da FUNAI, oriundas do Encontro de Delegados da FUNAI (maio,
1985), e o documento de Porto Velho-RO definido pelo jornal Porã-Duba
(FUNAI/BSB, 1985), como “proposta de reestruturação e manifesto político contra os
‘falsos indigenistas’ que manipulavam os índios com vistas ao poder”. Fica visível
nos documentos que, pela análise dos técnicos, os problemas administrativos como,
por exemplo, mudança de presidentes, não resolvia questões cruciais de uma
administração onde o poder de decisão se centralizava num só local e as unidades
regionais não tinham autonomia para resolver problemas que demandavam
respostas muitas vezes urgentes, e geravam o descrédito da instituição tanto por
índios quanto por grupos da sociedade envolvente. Como reflexo do modelo de
administração, o documento registra que:

[...] a violação dos direitos dos índios tem-se mostrado tão alarmante que os
organismos internacionais, vêm condicionando a liberação de
financiamentos governamentais a um mínimo de atenção e respeito ao
problema das terras indígenas (Relatório Final do Encontro dos Delegados,
maio/85).

A repercussão internacional dos efeitos etnocidas da política de


desenvolvimento propugnada durante os governos militares, será discutida mais
adiante.

156
A tese de doutoramento de Gilda Lins de Araujo, analisa o discurso de três índios com diferentes
níveis de educação formal (Dep. Mario Juruna e Ailton Krenak) e sem educação formal (Cacique
Raoni). A análise revelou que os discursos foram pronunciados o mais eficazmente quanto o faz
aquele que os discrimina; foi veículo de identificação do que é ser índio; instrumentos através dos
quais as divergências foram apontadas e conciliadas; mostrou a diferença entre os dois mundos;
serviu para mediar os conflitos e conciliar os opostos. Finalmente demonstrou a necessidade de criar
condições para a compreensão intercultural, respeitando o idioleto ou sua forma de expressão em
português. A autora recomenda uma política de ensino coerente com a situação multilinguística que
prepondera no país. LINS DE ARAUJO, Gilda. O Discurso do Índio. Subsídios para a comunicação
intercultural. Tese de doutoramento, 2 vols. São Paulo: USP, 1992.
4. 4. A Constituição de 1988: índios e o órgão indigenista

A Constituição de 1988, no que tange aos direitos indígenas, foi resultado da


ampla discussão travada por diversos segmentos da população que se expressaram
através de ações do movimento indígena e indigenista. Porém, como considera Eli
Diniz a respeito da implantação do regime democrático, a implantação da nova
ordem não se fundamentou em uma ampla e profunda renovação político-
institucional: “[...] essa transição caracterizou-se por um alto grau de continuidade no
plano das elites e das instituições, persistindo traços do modelo estatista [...]”.
(DINIZ, 1997, p. 24). Essa renovação pela metade produziu seus efeitos sobre a
questão indígena, como tentaremos demonstrar nos itens seguintes.
Para o período 1988-2005, escolhido para análise neste estudo, destacamos
três pontos que a nosso ver contribuiu para que a fisionomia da instituição se
tornasse tão deformada que as propostas de reforma ou de extinção do órgão
fossem cada vez mais comuns, tanto em discursos de parlamentares, quanto dos
próprios índios. Primeiro, as questões de caráter interno ao órgão, como a não
realização da reestruturação da instituição e conseqüente formulação de uma nova
política indigenista, que deveria resultar do diálogo com instituições e segmentos
que tratam da questão indígena, engessou decisões e agravou o descrédito da
instituição. Segundo, a reforma do Estado propugnada a partir do governo Collor
(1989-1990), transferiu funções antes da alçada exclusiva do órgão para os
ministérios da Saúde e Educação, o que significou, sob o ponto de vista político, a
elaboração e execução de políticas indigenistas fora do âmbito exclusivo da
FUNAI157. Terceiro, a transformação do movimento indígena que assumiu um caráter
transnacional e direcionou suas demandas para a alçada do Ministério Público
Federal (MPF).

157
As reformas realizadas no Governo FHC são analisadas por Délio Eduardo da Silva em
correspondência direta com o Plano Real. Relativo às instituições o autor conclui falando sobre a
prostração, desintegração do sentimento de soberania e comprometimento da cidadania. Ver: SILVA,
Délio Eduardo da. A Reforma do Estado no Governo FHC (1995-2002). Tese de doutoramento em
Sociologia. UNB, Janeiro, 2003.
Paralelo a esses acontecimentos nacionais, diversos debates sobre direitos
humanos e povos autóctones estavam sendo travados na comunidade internacional
e produziram efeitos sobre a instituição indigenista e demais assuntos indígenas.

4. 4.1 O cenário internacional: repercussões sobre a política indigenista


brasileira

Desde os anos 70 que a comunidade internacional, especialmente


acadêmica, vinha assumindo outra atitude diante da questão dos povos indígenas.
Havia urgência em apresentar saídas para os povos tribais, cujos direitos estavam
sendo extorquidos a muito, agravados pelo não reconhecimento, falta de inclusão
como membros da sociedade, enfim, a invisibilidade social que os colocava à mercê
de projetos de interesses do Estado e de grupos econômicos, sem que houvesse
condições de reação. As discussões sobre essas questões tiveram lugar
inicialmente no Congresso Internacional de Americanistas realizado em Lima, Peru,
em 1970, onde os pesquisadores europeus abandonaram o perfil anterior de tomar
os indígenas como objeto de estudos, para assumir uma ciência engajada com
propostas de uma possível obtenção de resultados. Foi realizado o “Simpósio sobre
Fricção Interétnica na América do Sul” na Ilha de Barbados, em 1971, organizado
pela Universidade de Berna, Suíça, e financiado pelo Conselho Mundial das Igrejas.
O documento resultante do simpósio, “Declaração de Barbados I”, expõe a situação
dos indígenas na América do Sul. Considerados como minorias étnicas, as
comunidades indígenas estavam ameaçadas de desaparecer em razão do etnocídio
e do genocídio (ORTOLAN MATOS, 1997). Sob o ponto de vista teórico-político, a
noção de “colonialismo interno”158, associada à teoria da dependência159, foi a base
de sustentação para críticas e propostas sobre as políticas indigenistas e ações de
atores diversos que atuavam junto aos indígenas, portanto, exigência de
comprometimento dos que se identificavam com a questão, instigar o Estado ao
cumprimento de suas tarefas cuja principal era a proteção. O debate sobre a
158
Categoria de análise que busca explicar o resultado das relações entre sociedades tribais e
nacionais, cujas estruturas políticas, econômicas, sociais e ideológicas colocam as sociedades tribais
em desvantagem, em oposição, onde a existência de uma nega a outra (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1978)
159
A penetração do imperialismo econômico nos países periféricos fez com que ficassem submersos
em uma crescente dependência por não terem indústrias para a produção de bens de produção,
aumentando a marginalização na América Latina. Os antropólogos viram a oportunidade de discutir
as questões localizadas utilizando esta teoria.
necessidade de organização dos povos indígenas lançou a idéia do pluralismo
jurídico, da pluralidade étnica como base para os projetos de mudança nos sistemas
sócio-econômicos da América Latina.
À semelhança do primeiro simpósio, o Congresso Internacional de
Americanistas, realizado em Paris (1976), contou com a presença de representantes
indígenas. No Encontro de Barbados II (julho, 1977), os representantes indígenas da
América Latina tiveram participação decisiva para as mudanças que se operaram no
cenário do indigenismo. Os indígenas brasileiros não foram autorizados a sair do
Brasil, sendo representados por antropólogos e missionários. A característica deste
segundo documento é o destinatário. Enquanto o primeiro teve um forte apelo aos
atores estatais e institucionais (Estado, Igreja, associações de classe), o segundo foi
endereçado aos índios, a partir da perspectiva da análise de um índio guatelmateco
sobre a situação dos índios latino-americanos, enfatizando, por exemplo, a
dominação física representada pela expropriação das terras, exploração da força de
trabalho, inexistência de oportunidades; a dominação cultural experimentada pela
negação da cultura, línguas e tradições indígenas160. Como tomada de posição para
começar a reverter essa situação, um dos remédios seria a organização pan-
indígena como forma de união e conhecimento para além de suas fronteiras.
No cenário internacional, os movimentos em favor dos direitos humanos, do
meio ambiente e anistia aos presos políticos, questionavam sobre o modelo de
desenvolvimento (para quem?). No Brasil, como já foram referidos anteriormente, os
descalabros exercidos sobre os homens, animais e o meio ambiente como um todo,
terminaram por pressionar as agências de fomento em especial o Banco Mundial a
cortarem os financiamentos das ações promovidas pelo governo militar.
As expectativas para um desenvolvimento alternativo que minimizasse os
efeitos danosos do outro modelo começaram a tomar corpo. Em 1981 aconteceu a
“Reunião de Peritos sobre Etnodesenvolvimento e Etnocídio na América Latina” em
San José da Costa Rica, com objetivo de pensar propostas “de futuros próprios aos
povos indígenas, o etnodesenvolvimento” (SOUZA LIMA, 2005, p. 2). O resultado
dessas discussões pôs em xeque o modelo de indigenismo realizado até então. Nos
demais países da América Latina, desde os anos 1960, as reformas agrárias,
somada aos esforços para o desenvolvimento rural, já vinham causando impactos
160
Resultaram dois documentos: o “Manifesto de Paris” e o documento “Proposiciones y
Resoluciones de los Índios de América Reunidos En El XLII Congreso Internacional de Americanistas”
Ortolan Matos, 1997, p.104).
no modelo indigenista, cujo resultado no âmbito institucional foi, a valorização das
instituições agrárias em detrimento das indigenistas. Estas foram despojadas das
tarefas que lhes cabiam antes, como a regularização das terras, transformando-se
em agências para atender problemas de reconhecimento legal, fomento e extensão
de serviço público, perdendo sua capacidade de gestão.
No Brasil, os efeitos do ambientalismo internacional, eivados das noções de
proteção e conservação do meio ambiente, influenciaram a forma como o Estado
brasileiro passou a enxergar a política indigenista, como explica Souza Lima:

[...] pouco a pouco a especificidade dos problemas dos povos indígenas,


assim como, de suas soluções, foi equacionada sob a condição de
problemas de conservação e utilização, racional e sustentável, do meio
ambiente, com ênfase quase exclusiva na região e nas populações
indígenas amazônicas, em detrimento da pluralidade de situações indígenas
e ecológicas existentes no Brasil. Em outras palavras, a esfera fundiária e
os problemas do etnodesenvolvimento foram parcialmente reelaborados sob
o rótulo de desenvolvimento sustentável [...] (SOUZA LIMA, 2002, p. 15).

O cenário mundial também estava abalado em razão do fim de governos


ditatoriais em diversos países, da queda do regime soviético e da passagem para a
democracia. A caminhada em direção à democracia, como afirma Benhabib (1996),
é prenhe de antagonismos que assumem várias formas, entre elas as diferenças
étnicas, provocando o surgimento de políticas de reconhecimento de identidades
coletivas. Povos considerados extintos, por exemplo, lutavam por seu
reconhecimento étnico e cultural, produzindo uma negociação da identidade versus
diferença, tornando as políticas étnicas um problema político, que passou adornar
democracias em escala global.161 Os novos movimentos sociais, como passaram a
ser chamados (SCHERER-WAREN, 1993), se caracterizaram por demandas
bastante diferentes daquelas que estiveram até então na agenda das classes
trabalhadoras e mesmo da burguesia. As reivindicações não estavam voltadas
exclusivamente para a garantia da saúde e posição política, mas na garantia do
direito de minorias e excluídos162, cujo instrumento de demanda não repousa no
161
CONNOLLY, William E. Identity/Difference. Democratic Negotiation of Political Paradox. Ithaca:
Cornell University, 1991, apud BENHABIB, Seyla. Democracy and Difference. Contributing the
boundaries of the political. Princenton University Press, New Jersey, 1996, p.
162
SHETH, D. L. analisa a participação dos excluídos na Índia (intocáveis, povos tribais,
extremamente pobres) nos movimentos sociais em busca da inclusão social desde a década de 1970.
Considera que os movimentos compreendem a democracia participativa como uma política paralela
de intervenção social, criadora e mantenedora de espaços para a tomada de decisões. Ver: SHETH,
D. L. Micromovimentos na Índia: para uma nova política de democracia participativa. In: SANTOS,
partido político, mas na organização de grupos de interesse, mulheres, negros,
homossexuais, surgindo às políticas de identidade e diferença que repousam sobre
os pilares da negociação, contestação e representação da diferença (BENHABIB,
1996).
A Constituição de 1988 reflete essas mudanças do cenário das décadas de
80 e 90 do século XX. Ao reconhecer o Brasil como um país pluriétnico, instituiu o
reconhecimento dos direitos coletivos alargando a prática da cidadania. Foram
avanços que se refletiram no Direito brasileiro confirmando a titularidade desses
direitos, portanto, os indígenas continuavam ser índios sem necessidade de
integração (SOUZA, 1998, 1999, 2002).
Em junho de 2002, o Congresso Nacional ratificou a Convenção 169 da OIT,
de 7 de junho de 1989, substituindo a Convenção 107, de cunho integracionista. O
novo instrumento estabelece as diretrizes internacionais de garantia dos direitos dos
povos indígenas. A mudança de enfoque está presente na filosofia básica da
convenção: “[...] promove o respeito às culturas, às formas de vida, às tradições e ao
direito consuetudinário dos povos indígenas e tribais. [...] O instrumento supõe
também que esses povos podem falar por si mesmos, têm o direito de participar no
processo de tomada de decisões que lhes dizem respeito [...]" (TOMEI e
SEWPSTON, 1999 ;PEREIRA, 2002; ARAUJO e LEITÃO, 2002).
Outro avanço legislativo interno ocorreu em 2001, com a aprovação pelo
Congresso Nacional do novo Código Civil, que registra que o tema da capacidade
civil dos indígenas deve ser matéria de lei específica. O termo tutela não é
mencionado no novo código. Araújo e Leitão (2002) comentam que, ao contrário da
revisão do Estatuto do Índio, o assunto despertou pouco interesse por parte de
parlamentares, indigenistas (falsos e autênticos), um indicador dos novos tempos.

4.4.2 FUNAI: ocaso de uma instituição?

“A FUNAI é discriminada dentro do serviço público. Há uma decisão da saída


da FUNAI para o Ministério da Integração Nacional e a decisão sobre as terras vai
ser do INCRA. Não há, veja, não há garantia parlamentar para defender a FUNAI.
Boaventura de Souza (org.) Democratizar a Democracia. Os caminhos da democracia participativa.
Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003.
Qual é o seu futuro?” disse um dos técnicos com vários anos de trabalho dentro do
órgão, durante o Curso de Indigenismo em junho de 2003, ao refletir sobre a
situação da instituição, dos servidores e do novo momento que viviam.
A indagação sobre o futuro de certa forma permeou as discussões naquele
momento dos não índios e indígenas presentes ao curso, demonstrando que a
FUNAI, apesar de seu definhamento, mantinha sua “eficácia simbólica”, como diria
Lévi-Strauss. As questões de caráter interno envolvem tomadas de decisão adiadas,
às cegas ou sob pressão, como já expressaram Oliveira Filho e Almeida (1998). Nas
relações técnicos/instituição, os servidores indígenas se referiram à discriminação
que sofrem por parte dos colegas não indígenas, clivagens que se revelavam no
momento da atribuição de tarefas, onde os indígenas aparecem sempre como
coadjuvantes. Quanto ao atendimento dos povos indígenas pela instituição, os
trabalhadores da FUNAI, concursados, contratados, indígenas e não indígenas se
referiram à existência de lobbies realizadas por algumas lideranças verdadeiras ou
falsas, nem sempre em favor de suas comunidades, mas em proveito próprio, o que,
segundo alguns, arranhava a imagem do índio. Quanto às invasões de índios no
órgão, opinaram que o fato está relacionado à falta de solução ou encaminhamento
feito pela base (as administrações regionais). Por outro lado, as invasões foram
justificadas por alguns indígenas presentes como a única alternativa para que as
autoridades saibam o que está acontecendo nas aldeias. Sobre esses incidentes
que pareceram causar fortes constrangimentos, as discussões indicaram o prejuízo
causado pelo tratamento individualizado em detrimento ao bem coletivo fornecido
pela instituição, fomentando privilégios de alguns índios ou mesmo etnias, e desvios
de conduta de servidores. Os participantes do Curso de Indigenismo consideraram
que a ausência de uma política pública estabelecendo os rumos de um novo
indigenismo, no qual a FUNAI estivesse incluída, após os dois mandatos do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso e do atual governo Lula, indicava a falta de
horizonte para o órgão e consequentemente para mudanças positivas nas relações
entre Estado/índios.
Servidores e administradores das administrações regionais consideraram as
diversas faces da FUNAI: a FUNAI/ Brasília e a FUNAI nos estados e municípios.
Nestas últimas, é possível dependendo da engenharia administrativa local, de
alianças com autoridades, agências estatais, índios (individualmente), as
associações (quando existirem), e a resolução de conflitos ter condições e certa
tranqüilidade para a realização de projetos e outros tipos de gestão. Mesmo
naquelas administrações onde o corpo administrativo é formado em sua maioria por
índios, o funcionamento da instituição não é conhecido e compreendido pelos povos
que estão em sua jurisdição, por razões diversas: as mudanças pelas quais passam
a FUNAI e os povos indígenas; pela dificuldade de aceitação de que o trabalho que
o órgão desenvolve é coletivo e não individual; que há limites no orçamento,
portanto, as ações devem ser desenvolvidas segundo o planejamento estabelecido,
havendo em muitos casos dificuldades de atendimento a projetos particulares. Outro
ponto levantado por alguns dos entrevistados foi a repercussão de problemas
políticos envolvendo povos indígenas especialmente demarcações, fora ou dentro
do estado ou município, que podem causar constrangimentos junto a população
local, deixando às vezes os administradores em situação delicada.
Em razão dos novos tempos que atingem instituições e povos indígenas, o
Ministério Público Federal (MPF) tem sido a instância do Estado acionada pelos
indígenas e/ou organizações para pressionar a FUNAI e demais órgãos que são
responsáveis pela implementação das políticas indigenistas.
O novo papel do MPF, no que tange aos assuntos indígenas, está relacionado
ao perfil da Constituição de 1988163, pautada na universalização do Estado de Direito.
Vianna Lopes (2000) considera que o MPF representa a possibilidade de
rompimento de uma cultura marcada pela privatização do espaço público, onde a
relação elites/Estado sempre foi marcante, a prevalência do privado sobre o público.
O novo Ministério Público representa, portanto, uma nova mediação institucional
entre o Estado e sociedade. O MPF como ator institucional, ao qual os povos
indígenas recorrem diretamente sem passar pelo referendo da FUNAI, (esvaziada
após a reforma Collor), reflete a conjugação de diversos fenômenos políticos: o
modelo democrático brasileiro, as reformas do Estado (Collor, FHC, Lula), a ação do
movimento indígena.

163
A Constituição de 1988 apresenta um desenho institucional de um Estado inspirado no padrão de
“democracia associativa”, como um conjunto de instituições que atuam sobre o ambiente associativo
para estimular a agregação de interesses de modo condizente com as normas (democráticas)
advindas da soberania popular como gênero. Uma democracia promotora (e não apenas receptora)
da organização de interesses. Tal desenho enfraquece, num contexto relativamente imune, grupos de
interesse predatórios (COHEN e ROGERS, 1994; HIRST, 1994, apud VIANNA LOPES, 2000, p. 1-
30).
4.4.3 O Movimento indígena: as políticas indígenas como resposta às ações do
Estado e da sociedade.

O movimento indígena no Brasil assume um perfil próprio, que o diferencia


dos demais movimentos da América Latina. Enquanto lá há um forte apelo pan-
indigena, aqui o processo se dá mais em nível local e regional. Como foi visto neste
capítulo, a tentativa de organizar um movimento indígena de caráter nacional, via
União das Nações Indígenas/UNI foi lograda, as articulações hoje feitas com
grandes organizações de expressão nacional e internacional como, a COIAB-
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e APOINME-
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e
Espírito Santo, não têm o caráter de obrigação de alguma organização indígena
estar vinculada a elas. Segundo alguns representantes de associações indígenas
entrevistados, são os interesses locais que direcionam a política de uma dada
associação, havendo vinculação mais estreita quando o problema toma uma
dimensão nacional, como, por exemplo, homologação de terras indígenas, ou
construção de uma estrada. O mesmo ocorre com as alianças, se as instituições e
entidades locais oferecerem condições há possibilidades de parceria.
O fato das associações se ressentirem de quadros qualificados para lidar com
a complexidade da gerência de seus destinos, como administração de convênios,
entrelinhas das políticas públicas, as assessorias podem vir dessas agências
(governo ou ONGs) ou dessas organizações indígenas mais estruturadas. Sobre as
parcerias com prefeituras, opinaram que podem surgir problemas, além de outros
embaraços em vista do partidarismo político. A existência de vereadores índios de
partidos oponentes pode estremecer a aliança nativa pautada na identidade étnica,
no parentesco, pois a fidelidade ao partido, em alguns casos, pode provocar
estremecimentos, produzindo, no dizer de Stuart Hall (2001), a fragmentação da
identidade. Resultante das políticas articuladas transnacionalmente está a
constituição dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI) surgido em
1997 como extensão do Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA), ligado ao
Programa Piloto Para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7). O PDA
tem como objetivo apoiar iniciativas de populações não indígenas e ONGs, enquanto
o PDPI é um programa voltado para os incentivos indígenas, mas “acrescidos da
preocupação com os territórios demarcados e dos recursos naturais neles existentes
[...]” (VERDUM, 2002).
Segundo os entrevistados, o PDPI tem oferecido treinamento aos indígenas
que estão desempenhando funções que requerem conhecimentos técnicos, além de
apoio a projetos oriundos de grupos indígenas. Indagados sobre a permanência da
FUNAI, opinaram que ainda é necessária, mas depende da administração local e
nacional, porém já existe a proposta de um conselho onde a participação indígena
seja representativa ao lado de instituições de governo e agências indigenistas.
5 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA PARA GARANTIR DIREITOS: EDUCAÇÃO
DIFERENCIADA

No contexto da democracia representativa, a participação aparece como uma


atividade que em alguns momentos pode apresentar certo perigo para o bom
andamento da democracia, em outros pode ser desejável, porém, disciplinada.
Nesse debate se colocam algumas posições: a participação e a competência do
cidadão comum nos assuntos políticos podem ser relativas, pois este, na visão de
Schumpeter (1942), não manifesta interesse ou capacidade política senão para
escolher seus representantes; a participação pode favorecer o excesso de
demandas ou sobrecarga democrática, colocando em risco a democracia, como
afirmam Crozier, Huntington e Watanuki (1975)164; a reinvenção da democracia
participativa ligada aos processos de democratização e movimentos sociais,
caracterizada como forma de ação social, de prática política e criação de novos
espaços, imprime, segundo Santos (2003) e Sheth (2003), significados mais
profundos à democracia no mundo que se globaliza.
Em razão da globalização, as instituições representativas terminam por ficar
mais submetidas a interesses externos de várias ordens, que contribuem para o
distanciamento das necessidades da população, pondo em xeque a
representatividade política, abrindo espaço para que os diversos segmentos
procurem soluções mediante seus próprios esforços, através da participação política
que deixa de ser uma atividade marginal para se tornar um componente fundamental
nas novas democracias. Dessa maneira, a noção de democracia participativa se
constrói no processo de democratização e dos movimentos sociais. Para discutir o
processo de participação política dos povos indígenas, realizado pelo movimento
indígena é necessário compreender o contexto em que o movimento foi engendrado,
assunto já discutido parcialmente no capítulo anterior. Este capítulo enfoca
especialmente uma das questões que continua na pauta das reivindicações do
movimento pela defesa dos direitos indígenas: a educação indígena bilíngüe,
intercultural e diferenciada, o instrumento através do qual buscam a eqüidade social.
164
O termo “sobrecarga democrática” aparece em um relatório da Comissão Trilateral preparado por
Crozier, Huntington e Watanuki, em 1975. Ver: The Crisis of Democracy: Report on Governabilityof
democracies to the Trilateral Commission. New York: New York University Press, apud SANTOS,
Boaventura. Reiventar a emancipação social: para novos manifestos In: Democratizar a Democracia.
Os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 59-60.
5.1 Educação Indígena no contexto atual: trajetórias e inquietações

A educação escolar indígena está presente desde o início da colonização. A


escolarização dos indígenas, um instrumento de domesticação importante dos povos
conquistadores, favoreceu ao Estado colonial o exercício de seu domínio sobre
essas populações, mediante a ação das missões em especial dos jesuítas, com
internatos e a catequese, fórmula que foi aplicada ao longo da história do contato
visando à civilização dos indígenas. Na República, o Serviço de Proteção ao Índio, o
SPI, perseguiu o objetivo da promoção da civilização através da ação indigenista da
pacificação. A educação escolar estava entre as medidas que podia garantir o
processo civilizatório com o diferencial que deveria ser responsabilidade do Estado
segundo o ideário positivista, o que significava o ensino laico. Sob a administração
da Fundação Nacional do Índio, a educação foi regida pela lei n°. 6.001/1973,
conhecida como Estatuto do Índio, Título V – Da Educação, Cultura e Saúde,
(artigos, 48, 49, 50, 52, 53), que garantia a extensão à população indígena da
educação escolar (art. 48), com a ressalva que a alfabetização devia ser feita na
língua do grupo e em português (art. 49), mas visando a integração (art. 50). Como
complementação à educação escolar deveria ser fornecida oportunidade de
formação profissional adequada, de acordo com seu grau de aculturação (art. 52),
enquanto a elevação de seu padrão de vida viria através do estímulo ao artesanato
e indústrias rurais, “com a conveniente adaptação às condições técnicas modernas”
(art. 53). A Convenção 167 da OIT dava suporte a nível internacional da proposta da
integração dos povos indígenas, portanto o propósito do órgão indigenista enquanto
uma agência do Estado era executar as orientações políticas em vigor. Pinheiro da
Cunha (1990), chamou atenção sobre a legislação complementar que regulava o
funcionamento das escolas indígenas administradas pela FUNAI, cujo teor
apresentava um sistema de ensino que estava em suas palavras “longe de existir”,
assim como a análise da legislação indicava como “referencial o projeto de
assimilação do índio subjacente às práticas da FUNAI”165.
O autor comenta a legislação interna do órgão atinente à educação, entre elas
a portaria n°. 75/N, de 06/07/72, que previa a adoção do ensino bilíngüe para os
165
PINHEIRO DA CUNHA, Luíz Otávio. A Política Indigenista no Brasil. As escolas mantidas pela
FUNAI. Dissertação de Mestrado em Educação. Faculdade de Educação. Universidade de Brasília,
Maio, 1990, p. 60.
grupos com barreira lingüística e a adoção de uma perspectiva bicultural para o uso
do português no espaço escolar166; a portaria n°. 781/N, de 12.08.82, regulamentava
o calendário escolar de acordo com as festas e eventos tribais, favorecendo um ano
letivo diferenciado; a portaria n°. 788/N, de 11.10.82, fixava as normas de
organização didática, em especial a elaboração de programas e adaptação dos
currículos nas escolas da FUNAI. Ressalta ainda que as portarias apresentavam
intenções que traduziam os reais objetivos da educação escolar: coibir tentativas de
ensino crítico; produzir uma imagem de si (da escola) como instituição autônoma
isenta da interferência do Estado; enfatizar a adequação de currículos, programas e
conteúdos. Tais objetivos, afirma o autor, demonstravam o interesse político na
integração dos indígenas ao mundo “civilizado”, e revelavam a negação do discurso
de defesa da condição de etnias diferenciadas, melhor dizendo, a distância entre os
aspectos positivos presentes na legislação do órgão e sua prática. No final dos anos
70 do século XX, observamos situação similar em um estudo sobre as escolas da
FUNAI na reserva do Uaçá/Oiapoque, estado do Amapá, já referido na introdução
deste estudo, nas quais o ensino bilíngüe, calendários adequados, professores
treinados simplesmente não existiam. Na verdade, as escolas indígenas formavam
um sistema à parte, um apêndice das escolas rurais, sem que fossem consideradas
enquanto tais, portanto, alienadas do sistema de ensino. No Amapá (naquela época
um Território Federal), a Secretaria de Educação foi responsável pela elaboração
das provas até meados dos anos 1970, cuja aplicação era realizada por um
funcionário da secretaria – o inspetor de ensino. Esse modelo de avaliação criava
um duplo choque nos alunos, por ser aplicado por alguém estranho aos alunos e
não atender às características socioculturais de cada escola ou grupo, resultando
em reprovações significativas. Naquele trabalho indagávamos se a escola
funcionava como uma “frente ideológica”, algo similar às “frentes de expansão
econômica”, pois o substrato ideológico era a integração, a mudança em direção a
um indígena brasileiro distanciado cada vez mais de suas origens167. Refletindo
166
Héctor Muñoz comentando a educação indígena como política pública na América Latina, chama
atenção do paradigma da educação bilíngüe bicultural que repousava na proposta integracionista
vigente desde os anos 1930 chamada “educação bilíngüe” e a mudança provocada pelos movimentos
sociais pela proposta intercultural bilíngüe, considerada pelo autor como uma instância de justiça para
os povos indígena e afroamericanos. MUÑOZ, Héctor. Política Pública y Educación Indígena
Escolarizada en América Latina In: SECCHI, Darcy (Org) Anais da Conferência Ameríndia de
Educação. Cuiabá: Secretaria de Estado de Educação/Conselho de Educação Escolar Indígena do
Mato Grosso, 1998, p.36.
167
Ver: ASSIS, Eneida Corrêa de. Escola Indígena: uma “frente ideológica?”. Dissertação de Mestrado
em Antropologia Social. Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
sobre a resposta apresentada na dissertação naquele momento onde confirmamos a
hipótese, consideramos que sob determinados aspectos, a política de educação
escolar apesar do paradigma da interculturalidade, das roupagens do discurso da
educação diferenciada, da participação dos indígenas através das associações ou
da indicação de representantes em fóruns do governo, o exercício dessa educação
não sofreu as mudanças esperadas como apresentaremos neste capítulo.
A transformação da educação indígena como um tema político, surgiu
timidamente no bojo do movimento indígena nos anos 70 do século XX, se
intensificando no processo de democratização do país. No Brasil da década de 70
do século XX, a realização de encontros tendo a frente o Conselho Indigenista
Missionário-CIMI, a Operação Anchieta-OPAN, as Comissões Pró-Índio-CPI
(existentes em vários estados da federação), a Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil-IECLB e universidades firmaram posições em defesa da
alfabetização na língua materna, do trabalho pedagógico partindo da realidade das
comunidades indígenas, da formação de monitores e criação de escolas autônomas
e autogeridas, o que se chamou à época de escola alternativa em relação à escola
oficial. Entre os objetivos desses encontros, estava a troca de informações sobre as
experiências educativas realizadas. No entanto, o resultado desses encontros ficava
em sua maioria restrita aos circuitos acadêmicos, da Igreja e das comissões de
apoio, enfim, dos especialistas, situação que ainda não teve a divulgação merecida.
Nos anos 80 e 90 do século XX, a discussão de experiências passou a ser
uma iniciativa também do movimento indígena e das nascentes organizações de
professores indígenas resultantes desses encontros tais como Organização Geral
dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB), Comissão dos Professores Indígenas
do Amazonas e Roraima (COPIAR), o que significou que os indígenas foram
assumindo a dianteira do processo, enquanto os atores da fase anterior deixaram de
ser os condutores, para se transformarem em assessores (LOPES DA SILVA, 1979;
CABRAL; MONSERRAT; MONTE, 1987; EMIRI e MONSERRAT, 1989; CAPACLA,
1995).
A invisibilidade da educação indígena era sentida também na academia, pois
o assunto quando aparecia estava diluído no temário da “organização social”. Os
primeiros trabalhos que tomam a escola como assunto central, surgiu entre 1975 e
1981, ganhando maior impulso a partir dos anos 90168. No contexto do movimento
indígena, o assunto não era discutido de forma homogênea, expressando o
amadurecimento diferenciado do movimento entre as regiões e os grupos indígenas.
Enquanto em alguns grupos do sul do país, ou mesmo de cidades com grande
contingente indígena, como o caso de Boa Vista (RR), que segundo o IBGE (2000),
possui aproximadamente 12.000 índios, a discussão já apresentava preocupação
com a formação de professores índios e elaboração de currículo diferenciado, em
outros lugares do norte as reivindicações ainda se dirigiam para o envio de
professores (não índios), material didático, merenda escolar e construção de
escolas. À medida que o movimento indígena se intensificava a semelhança de
outros movimentos sociais no bojo da redemocratização do país, o tema da
educação deixava de ser um assunto específico dos índios, da instituição indigenista
e das agências de apoio ao índio (Comissão Pró-Índio/CPI, Conselho Indigenista
Missionário/CIMI, Associação Brasileira de Antropologia/ABA, Associação Brasileira
de Lingüística/ABRALIN), para se tornar também uma preocupação das instituições
de governo.

5.1.1 Educação indígena: a reivindicação de um direito social e sua


transformação em política pública

A Constituição de 1988, ao declarar o Brasil como um país pluricultural,


passou a se orientar por um novo paradigma, o princípio da diferença. Para os
grupos étnicos favorecia novos rumos ao modelo de educação até então vigente,
isto é, de uma educação integradora para uma educação baseada na diversidade e
pluralidade em prol da “construção de uma nova representação da ‘identidade
nacional’ – una e múltipla a partir dos ideais da democracia”169.
Resultado dos movimentos indígenas, a luta por uma educação de qualidade,
que respeitasse as peculiaridades culturais dos povos indígenas, qual seja, a
educação baseada em novo marco conceitual de respeito à diferença, a educação
bilíngüe intercultural (EIB), se tornou um fenômeno global, um componente dos

168
Sobre a produção de dissertações e teses em Educação Indígena, ver: CAPACLA, Marta Valéria.
O debate sobre educação indígena no Brasil (1975-1995). MEC/MARI-USP. Brasília/São Paulo, 1995.
169
MONTE, Nietta Lindenberg. Política Pública e Educação Escolar no Brasil. In: SECCHI, Darci
(Org.). Anais da Conferência Ameríndia de Educação. Cuiabá: Secretaria de Estado de
Educação/Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso, 1998, p. 71.
direitos sociais presentes nas Constituições dos países latino-americanos, em
documentos de organismos internacionais, como a OEA, ONU, em ações
promovidas pela UNESCO, assim como se tornou objeto de políticas públicas,
exigindo reformas administrativas no setor de educação nesses países.
A Constituição, ao garantir aos indígenas, no artigo 210, parágrafo 2°, o uso
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, atribuindo ao
Estado a responsabilidade de proteger as manifestações das culturas indígenas,
definiu novas relações do Estado com os povos indígenas. As transferências de
ações políticas antes sob a responsabilidade exclusiva da FUNAI para outros
ministérios, em razão da reforma Collor, se refletiram na relação histórica entre a
Fundação e indígenas. O decreto 26/91 em seu artigo 1 º, atribuiu ao MEC a
coordenação das ações sobre a educação indígena, ouvida a FUNAI, e o artigo 2°
atribuiu às secretarias estaduais e municipais de Educação a execução das ações.
As primeiras tarefas do Ministério da Educação foram reunir todas as
informações disponíveis sobre o tema, criar um cadastro de especialistas em sua
grande maioria participantes dos encontros da década de 1970, e formar um quadro
da situação educacional indígena do país. A execução das tarefas relativas a política
que se implantava requeria a criação de uma instância no MEC para essas tarefas, o
que foi feito pelo Comitê de Educação Escolar Indígena, instituído pela portaria n°.
559/91.
O comitê era formado por representantes de instituições de governo,
associações científicas, organizações não governamentais e representantes
indígenas por região. A decisão de um representante indígena por região, contribuiu
para expressão de alguns grupos, mas por outro lado criou a nosso ver algumas
distorções, pois nem sempre o representante conseguia traduzir a complexidade
dessa representação, por não conhecer os problemas específicos da região e dos
grupos que representava como era o caso da região Norte170. Além do Comitê, a
portaria n°. 559/91 orientava a criação de Núcleos de Educação Escolar
Indígena/NEI nas secretarias de Educação, para apoiar e assessorar as escolas
indígenas. O processo legislativo requeria pressa na formação de professores
índios, se amparando em algumas iniciativas exemplares realizadas principalmente

170
A escolha/indicação de representantes sofria também a influência de entidades, por exemplo, nas
regiões onde projetos estavam se desenvolvendo, os grupos dessas regiões tinham melhores
condições de trânsito do que os grupos de regiões remotas sem a presença de projetos envolvendo
indígenas.
por ONGs desde o final dos anos 70 do século XX, porém a iniciativa esbarrava em
entraves políticos e administrativos. A primeira delas representada pela estrutura
interna das secretarias estaduais ou municipais, que teriam que se adaptar à
exigência do MEC e a dificuldade em cumpri-la. Por exemplo, as orientações
técnicas e gerenciais até então eram semelhantes tanto para as escolas urbanas
quanto indígenas, gerando tensão entre os núcleos de educação indígena (NEI) e os
demais setores das secretarias, por passarem a exigir encaminhamentos e
respostas às demandas das populações, onde já existiam escolas e onde teriam que
ser implantadas.
O processo de criação desses núcleos nas secretarias de educação, sua
manutenção ou extinção, é um capítulo à parte na história da educação indígena,
por ser um termômetro do federalismo brasileiro, onde o antagonismo regional entre
atores indígenas e não indígenas, o impacto das mudanças no comportamento das
instituições e dos atores, o processo de organização do movimento indígena e de
aliados para implantar e fazer funcionar os núcleos nos estados ou municípios, as
reformas administrativas estaduais e o partidarismo político podem revelar como o
estado brasileiro lida com a diversidade171.
O caso do NEI-Amapá apresentado por Valadares e Maciel (1996) explica os
problemas de competência administrativa do núcleo, pela rigidez da máquina
burocrática da secretaria, enquanto Silva Lima (1996) aponta a instalação do NEI em
Roraima como possuidor de duplo aspecto - de um lado, a resistência indígena em
favor de seus direitos, de outro o “monitoramento da luta indígena por parte do
governo” à época (1986), ainda Território de Roraima172. Outro entrave na gestão
dessa política está relacionado à carência de pessoal especializado para por em
prática a política do MEC nos estados e municípios, uma situação que ainda está

171
Celina Souza chama atenção que a CF/88 desenhou uma ordem institucional e federativa distinta
da anterior em razão da legitimação da democracia, os constituintes optaram por duas estratégias de
construção: a abertura para a participação popular e societal e o compromisso com a
descentralização tributária para estados e municípios. Da primeira estratégia resultou uma engenharia
constitucional em que prevaleceu a busca de consenso e a incorporação das demandas de minorias,
e a segunda moldou um novo federalismo pela emergência de novos atores no cenário político e
existência de vários centros de poder que competem entre si. Ver: SOUZA, Celina. Federalismo e
Descentralização na Constituição de 1988: processo decisório, conflitos e alianças (2001)
172
Sobre a criação dos NEI nas Secretarias, ver: SILVA LIMA, José Nagib da. Educação Indígena de
Roraima: Rumo à Constituição do Núcleo de Educação Indígena. In ASSIS, Eneida Corrêa de (Org.).
Educação Indígena na Amazônia: Experiências e perspectivas. Belém: Associação de Universidades
Amazônicas/UFPA, 1996; VALADARES, Simoni Maria Benício e MACIEL, Iraguacema Lima. Núcleo
de Educação Indígena: um estudo de caso. In ASSIS, Eneida Corrêa de (Org.). Educação Indígena
na Amazônia: Experiências e perspectivas. Belém: Associação de Universidades Amazônicas/UFPA,
1996.
longe de ser resolvida. Naquele momento, as pessoas designadas para a execução
dessas tarefas mesmo em nível estadual, não possuíam informações sobre a
situação indígena, a especificidade da educação indígena, onde encontrar os
poucos especialistas, em suma, o mapa social para desenvolver um trabalho dessa
natureza. Tais lacunas tinham várias origens: ausência no currículo de assuntos
indígenas atuais no ensino público, produção acadêmica limitada sobre o tema e
inadequada ao uso didático convencional; ausência de debate sobre a situação atual
dos índios brasileiros, pois seu espaço nos meios de comunicação acontecia em
casos de tragédias, críticas ou exotismos.
Este quadro sofreu poucas alterações, pela forma como a política de
educação indígena foi conduzida que expressa de certa forma, o federalismo com
maior ou menor centralismo; a necessidade de compreender o impacto que a
municipalização exerceu sobre as instituições municipais, revelando a falta de
aparelhamento e de recursos humanos locais. Quanto às associações indígenas,
além de perseguir os objetivos para os quais foram criadas, a defesa de seus
direitos, também passaram a ser responsáveis pelas ações de educação (e saúde)
mediante convênios, como ocorreu em alguns locais, induzindo-as à burocratização.
Ao refletir sobre a criação de instituições, Putman (1996) afirma que criar uma
instituição política não é tarefa fácil e não se podem avaliar os efeitos sobre a cultura
e comportamento em anos, mas em décadas.
O tracejamento da política de educação escolar indígena veio através do
documento, Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena (MEC,
1993) elaborado pelo comitê. O documento traduz princípios que vinham sendo
discutidos por especialistas ligados à questão indígena, pelo movimento indígena e
também pela agência indigenista: interculturalidade, bilingüísmo, especificidade e
diferenciação. Entendemos o conceito de interculturalidade como a busca de
equilíbrio da relação entre as culturas, uma aspiração da democracia em razão do
papel político do relativismo cultural. Paillalef (1997) o considera como a capacidade
de uma pessoa compreender o outro seja a linguagem, os signos lingüísticos, os
significados próprios de seu interlocutor, sem que este processo comunicativo
constitua uma tradução. Para Susana Guimarães (2002) é um avanço conceitual,
pois redefine a escola como espaço de diálogo entre as culturas e não como
aparelho de civilização do bárbaro, um processo de inter-relação entre as culturas.
Comentando os demais princípios do documento, alerta que a especificidade e
diferenciação têm relação com a existência da diversidade étnica e cultural das
sociedades indígenas brasileiras. Quanto ao bilingüismo, existe uma situação
sociolingüística complexa vivida por essas populações que justifica a educação
escolar necessariamente bilíngüe,

[...] pode existir desde monolingüísmo em língua indígena até


monolingüismo em língua portuguesa, bilingüismo receptivo (entende-se,
mas não fala uma das línguas), bilingüismo ativo (fala-se e entende-se duas
ou mais línguas). (GUIMARAES, 2002, p. 37-38)173.

Gilvan Oliveira (2000) analisando a situação dos índios que vivem nas
cidades na condição de índio urbano, categoria que define aqueles que residem nas
cidades e índios citadinos, aqueles que embora não fixados de forma permanente
passam longos períodos no meio urbano em situação de transumância estável,
opina que em determinadas cidades são criadas condições de plurilingüísmo,
exigindo que as políticas de educação sejam estendidas a essas populações. Para
ele a cidade é o novo território de luta174.
Entre 1995-2002, a Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas
(CGAEI)/Secretaria de Ensino Fundamental (SEF)/MEC, teve papel importante no
desenvolvimento das ações de educação indígena175. A formalização da educação
indígena foi feita nas Leis Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB/1996 que
reconheceu a educação indígena como integrante do sistema nacional de ensino e
fixou as bases das Diretrizes para a Política Nacional de Educação Indígena (1996)
e do Comitê Nacional de Educação Indígena. Conhecida também como Lei Darcy
Ribeiro, n°. 9.394/96, contemplou a educação indígena em diferentes pontos dos
quais o artigo 32, parágrafo 3º , “Assegura às comunidades indígenas a utilização de
suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”; os artigos 78 e 79
define as disposições legais para o estabelecimento deste modelo de educação:

Artigo 78: prevê que o Sistema de Ensino da União, em colaboração com


agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios,
desenvolverá programas de ensino e pesquisa para oferta de educação
escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes
objetivos:
173
GUIMARÃES, Susana Martelletti Grillo. A aquisição da escrita e diversidade cultural: a prática de
professores Xerente. Brasília: FUNAI/DEDOC, 2002, p. 37-38.
174
OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Índios urbanos no Brasil e a política lingüística. (http:/www.ipol.org.br)
acessado em agosto/2005.
175
SOUZA LIMA, Antonio Carlos Notas sobre os antecedentes históricos das idéias de
“Etnodesenvolvimeto” e de “Acesso de indígenas ao ensino superior no Brasil”, Rio de Janeiro:
LACED/Museu Nacional-UFRJ, 2005. (www.laced.mn.ufrj.br. Acessado em agosto, 2005)
I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos a recuperação de
suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas, a
valorização de suas línguas e ciências.
II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às
informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e
demais sociedades indígenas e não índias.
Artigo 79 – prevê que a União apoiará técnica e financeiramente os
sistemas no provimento da educação intercultural às comunidades
indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.
Parágrafo 1º - Os programas serão planejados com a audiência das
comunidades indígenas176.

Uma das metas apontadas pela LDB era o envio ao Congresso Nacional de
um Plano Nacional de Educação (PNE) elaborado em 1997, na qual deveria ser
contemplada a educação indígena, tarefa que o MEC atribuiu ao Instituto Nacional
de Pesquisa/INEP, que recomendou a estadualização das políticas educacionais
indígenas, como o modo mais adequado de implantação, além de indicar que os
estados deveriam estabelecer convênios com municípios, organizações indígenas e
sociedade civil177. O plano foi sancionado pelo então presidente Fernando Henrique
Cardoso, por meio da lei n° 10.172, de 9 de janeiro de 2001.
No avanço da legislação, o parecer n°. 14/99 referente às Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena, caracterizou a situação em
que se encontravam as escolas destinadas aos índios, apontando uma pluralidade
de situações adversas para a implantação de uma política nacional que assegurasse
a especificidade pleiteada. Para isso, foi necessária a criação da categoria “Escola
Indígena” nos sistemas de ensino do país, garantindo-lhes autonomia quanto aos
seus projetos pedagógicos e uso de recursos financeiros públicos para sua
manutenção. O relator finaliza seu parecer alertando que as agências
governamentais devem promover as adequações institucionais e legais necessárias
para garantir a implementação dessa política, assegurando a educação diferenciada
e o respeito ao universo sócio-cultural dos povos indígenas de acordo com o decreto
n°. 1.904/96 que institui o Programa Nacional de Direitos Humanos178.
Em 1999, a resolução n°. 03/1999 da Câmara de Educação Básica do
Conselho Nacional de Educação (CEB), fixou as diretrizes nacionais para o
funcionamento das escolas indígenas e estabeleceu outras providências. Seu artigo
1º explicita:
176
O parágrafo 2º deste artigo discrimina os objetivos dos programas citados.
177
BRASIL. O Governo Brasileiro e a Educação Escolar Indígena 1995 – 1998. MEC/Secretaria de
Ensino Fundamental, Brasília, 1998.
178
Parecer 14/99 – Relator Kuno Paulo Rhoden, S. J. (Pe.)
Estabelecer no âmbito da educação básica, a estrutura e funcionamento das
Escolas indígenas, reconhecendo-lhes a condição de escolas com normas e
ordenamento jurídico próprios, e fixando as diretrizes curriculares do ensino
intercultural e bilíngüe, visando à valorização plena das culturas dos povos
indígenas, e à afirmação e manutenção de sua diversidade étnica.
(Resolução n°. 03/1999 - Art. 1°.)

O artigo 2º define os elementos básicos para a organização, estrutura e


funcionamento das escolas indígenas:

I – sua localização em terras habitadas por comunidades indígenas; II –


exclusividade de atendimento a comunidades indígenas; III –o ensino
ministrado nas línguas indígenas; IV – a organização escolar própria;
Parágrafo único. As escolas indígenas serão criadas por iniciativa ou de
acordo com as comunidades interessadas, respeitadas suas formas de
representação. (Resolução n°. 03/1999 - Art. 2°).

A resolução 03/99, considerada o guia da educação indígena estabelece nos


seus 13 artigos pontos que esclarecem indefinições quanto à responsabilidade entre
estados e municípios e parâmetros da escola indígena. Com esta resolução o
governo pretendeu comprometer o poder público na gerência e manutenção da
educação indígena, criar constrangimentos caso não se efetivasse a proposta de
governo prevista no artigo 87 da LDB que instituiu a Década da Educação, a partir
de 1996. O que ocorreu na prática? Será que o esforço do movimento e das
iniciativas legais surtiu o efeito esperado? March e Olsen (1984) dizem que as
instituições influenciam a maneira pelas quais grupos e indivíduos se tornam
atuantes, enquanto Putman (1996) relativiza, dizendo que a reforma institucional
nem sempre altera padrões de política. Por exemplo, a efetivação da categoria
escola indígena, ainda está para acontecer de forma satisfatória em alguns Estados
como aconteceu no Pará.
Neste estado, o Conselho Estadual de Educação levou vários anos para
reconhecer apenas uma escola indígena, porque os critérios para tal são os mesmos
para qualquer escola, jogando por terra o discurso da especificidade, da diferença, o
que estabelece a resolução n° 03/99, fazendo valer a tradição legalista do Estado
brasileiro. Em razão disso, a maioria das escolas em terras indígenas continuam
como anexos de escolas urbanas, o que significa inexistência.
A audiência pública realizada em maio de 2003, pela Procuradoria da
República do Estado do Pará e Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no
Estado do Pará, na qual participaram representantes indígenas, MEC, SEDUC/PA,
FUNAI e alguns prefeitos de municípios com população indígena tiveram como
objetivo acionar os órgãos competentes para o atendimento das reivindicações dos
representantes indígenas, quais foram: o direito à educação; implantação do Ensino
Médio; participação no Conselho Estadual de Educação como um canal de controle
das verbas destinadas à educação indígena; discussão com as comunidades
indígenas sobre a viabilidade ou não da municipalização, em razão dos sentimentos
anti-indígenas que existem em alguns municípios. A explicação fornecida pela
representante do Conselho Estadual de Educação do Pará (gestão 2003), em
reconhecer apenas uma escola indígena foi a incompatibilidade de metas prescritas
na lei, mas não alcançáveis do ponto de vista operacional. No ponto de vista dos
representantes indígenas, faltou vontade política dos administradores estaduais e
municipais para que a educação escolar no estado tivesse o avanço necessário 179.
O processo de desenvolvimento da educação indígena no estado do Pará,
além da falta de vontade política evocada por representantes indígenas, pode ser
um bom exemplo para se refletir por que apesar de haver uma legislação avançada
favorecendo mudanças na qualidade da educação escolar indígena, isso não tem
ocorrido a contento levando os grupos e organizações acionarem o Ministério
Público Federal, um ator político importante da esfera jurídica, com a competência
de defender interesses metaindividuais, direitos constitucionais e a fiscalização da
administração pública (SILVA, 2001). Portanto, considerar outros aspectos, pode
contribuir para o entendimento da presente situação da educação escolar indígena:
a) as leis estaduais apenas adaptam-se à legislação federal; b) a falta de empenho
na formação de professores indígenas, c) necessidade de formação de formadores e
técnicos das secretarias de educação com base no princípio da interculturalidade; d)
necessidade de estudos dos efeitos da municipalização sobre a política de educação
indígena, gerando dificuldades para efetivação das ações nas secretarias de
educação; e) interferência de partidarismo político provocando intensa rotatividade
nos cargos e funções burocráticas ligadas à execução dessa política. Essa linha de
raciocínio é discutida por Grupioni (2004), ao arrolar alguns pontos de
constrangimento para a execução da política que demonstram o alargamento da
distância entre o discurso sobre a educação indígena bilíngüe e intercultural e a
179
Ata da Audiência Pública sobre Educação Indígena, realizada em 06.05.2003 pela Procuradoria da
República do Estado do Pará e Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Estado do Pará.
(ANEXO 1)
renovação das práticas educativas nas terras indígenas. São eles: a transformação
de uma ação reivindicatória em política oficial; engessamento da engrenagem do
Estado tornando-o impermeável às mudanças; arcabouço administrativo estadual ou
municipal incompleto ou inexistente; dotações mínimas ao nível de governo federal e
quase inexistente nos governos estaduais; ausência de participação indígena nos
fóruns de decisão por serem contidas pela burocracia; desconhecimento por parte
da maioria dos indígenas da legislação escolar180.
Em razão da municipalização, a Secretaria Estadual de Educação/PA,
tecnicamente mais aparelhada, teve sua competência limitada a prestar assessoria
aos municípios, quando convocada. Quanto às secretarias de educação municipais,
algumas situações lhes são comuns, por exemplo, se os poderes locais não verem
com bons olhos os indígenas, a secretaria estadual procurará atendê-los. Essa
transferência de responsabilidade também pode acontecer por desconhecimento da
realidade indígena local, pela falta de recursos humanos ou necessidade de
enquadramento da estrutura administrativa exigida pela legislação.
No estado do Amapá, a participação indígena nos grupos de decisão garantiu
a indicação de um representante indígena para a direção do NEI. A administração
dos recursos financeiros de educação está sob a responsabilidade de uma
organização indígena, cabendo ao NEI a assessoria pedagógica. Mesmo assim, a
educação intercultural ainda está longe de se tornar uma realidade181.
A formulação do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas
(RCNEI/1998), voltado prioritariamente aos professores indígenas e aos técnicos
das secretarias estaduais de educação, é considerado como subsídio para a
discussão, implantação de políticas e elaboração dos currículos da escola indígena.
Furtado Ferreira (2001) chama atenção que inicialmente o documento deveria
chamar-se Referencial Curricular Indígena (RCI), proposta vencida por se
argumentar que se tratava de algo externo ao mundo indígena, apesar de
representantes indígenas fazerem parte da comissão de elaboração. A mudança de
nomenclatura na opinião da autora (membro da comissão), evidenciava aspectos
encobertos na relação Estado/índios: o RCNEI é uma diretriz de um modelo de
escolarização, apesar do discurso ser de flexibilidade; as decisões tomadas para os
180
GRUPIONI, Luis Donisete Benzi. Das Leis para a Prática: impasses e persistência no campo da
educação escolar indígena no país. In: Caderno de Educação Escolar Indígena. 3° Indígena. Barra do
Burgres; UNEMAT; v.3, n. 1, 2004.
181
A associação Galíbi-Marworno (AGM), localizada no Município de Oiapoque é responsável pela
administração dos recursos da educação. (informações setembro, 2005)
indígenas colocam em segundo plano o tema da autodeterminação, revelam
contradições quanto ao reconhecimento da diferenciação, que implica na aceitação
da existência de várias bases de educação dentro do país e não uma base comum;
o direito à educação específica e diferenciada, é possível com a submissão às
diretrizes do processo educativo escolar. Isto é, o RCNEI como proposta curricular
de base nacional para os povos indígenas, e sendo elaborado nos marcos do estado
brasileiro, tornou-se, segundo Furtado Ferreira (2001, p. 60-64), um parâmetro para
“nortear (ou limitar) a diferença”. Exemplificando seu ponto de vista, a autora faz
referência às áreas de estudo propostas pelo documento que são as mesmas da
escola nacional, argumentando que:

Tematiza-se sobre os aspectos pedagógicos de como abordar os conteúdos


referentes a essas áreas de estudo, porém não se reflete se os indígenas,
em suas atividades educativas próprias precisam formalizar as referidas
áreas de estudo. Observo que há uma ambigüidade entre a abertura na
legislação para a especificidade e a formatação do específico dentro do
universo comum – o nacional (FURTADO FERREIRA, 2001, p. 65).

A ampliação dos princípios apontados no RCNEI veio através do Programa


Parâmetros em Ação de Educação Escolar Indígena, lançado em abril, 2002,
desenvolvido pela Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas (CGAEI)
durante oito meses do mesmo ano, pretendendo promover a leitura e discussão do
RCNEI, mediante curso por módulos para professores indígenas e técnicos de
educação, objetivou melhorar a qualidade de ensino nas escolas indígenas. Sirlene
Bendazolli (2004) comenta que os cursos dos PCNs podem ser lidos por diferentes
prismas: um deles apresentou um quadro das prefeituras, estados e seus
funcionários que variou de deficitário a caótico; em relação à tarefa de formar
professores, as deficiências da estrutura administrativa dos estados e municípios
confirmaram as dificuldades em lidar com a formação de professores; outra forma foi
levar em conta a diversidade da clientela atendida, as escolhas didáticas que
precisaram ser feitas e, os resultados alcançados182.
O Programa de Formação de Professores Indígenas visou também possibilitar
a titulação de professores indígenas já atuantes no magistério. Este programa,
também objeto do estudo de Furtado Ferreira (2001), apresentou segundo a autora,
as ambigüidades da relação Estado/índios, pois apesar das metas procurarem
182
BENDAZZOLI, Sirlene. Retratos de Professores Indígenas em Formação. In: Cadernos de
Educação Escolar Indígena, 3º Grau Indígena. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 3, n. 1, 2004, p.128.
desencadear ações no sentido dos professores completarem sua escolarização “em
curto prazo em nível médio, e em nível superior, em médio prazo”, exigiu que os
sistemas de ensino responsáveis pela formação dos professores, consolidassem um
perfil para que este professor pudesse responder “tanto aos anseios das
comunidades indígenas, quanto às exigências da legislação” (MEC/2000 – versão
preliminar p. 5). A autora opina que os conflitos latentes se “expressam na exigência
em conjugar os interesses indígenas com os ditames da legislação, e imposição da
nossa lógica formalizada em detrimento das práticas dos diferentes grupos”
(FURTADO FERREIRA, 2001, p. 68. Grifo nosso).
Maria de Lourdes Bandeira (1997) lembra que a escola indígena está situada
num espaço de conflito de interesses políticos e de autoridades, que por estarem
localizadas e administradas por Municípios padecem dos efeitos das políticas locais,
representadas muitas vezes pela não solidariedade e surdez da (in)
comunicabilidade entre o poder local e os professores indígenas. O programa de
formação de professores e os próprios indígenas estão sujeitos aos
constrangimentos dessas políticas.
A formação de professores contou com iniciativas de ONG’s indigenistas,
como Instituto Socioambiental/ISA; Comissão Pró-Índio Acre; Centro de Trabalho
Indigenista/CTI, das Universidades do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e
Universidade de Roraima, que realizaram essa tarefa com o suporte de programas
de apoio do MEC/PNUD, mas também, de organismos internacionais. Ou seja, a
escolaridade dos indígenas é também financiada por países estrangeiros e não de
exclusiva responsabilidade do governo nacional.

5.1.2 A Educação Básica incompleta diante da chegada do Ensino Superior

Segundo o Censo de Educação Indígena realizado pelo INEP/MEC em


parceria com a Secretaria de Ensino Fundamental (SEF/MEC), em 1999 existiam
93.037 estudantes indígenas, dos quais 74.931 cursavam o ensino fundamental. Os
professores, estimados em 3.998, dos quais 3.058 (76,5%) eram de origem
indígena, atuando em 1.392 escolas como se observa no gráfico a seguir
93037
100000

90000
74931
80000

70000

60000

50000

40000

30000

20000
1392 3058 3998
10000

0
Alunos Estudantes Escolas Total de Total de
matriculados índios indígenas professores de professores
origem
indígenas

Gráfico 1 – Síntese do Censo Escolar Indígena no Brasil - 1990


Fonte: Elaborado a partir de dados do INEP/MEC, 1999.

O censo de 2003 indicava um total de 150 mil estudantes dos quais 3%


estavam no ensino médio, enquanto 1.200 indígenas chegaram à Universidade
pelas mesmas vias que os demais candidatos, e não por inclusão social. O censo
escolar 2004 apontou a existência de 2.228 escolas funcionando nas terras
indígenas atendendo a 148 mil estudantes. Nestas escolas trabalhavam
aproximadamente 7.500 professores, 88% deles indígenas; 1.099 escolas estavam
vinculadas diretamente às secretarias de Educação. Outras 1.099 escolas
principalmente nos estados do Mato Grosso do Sul, Amazonas, Pará, Paraná,
Bahia, Paraíba e Espírito Santo, eram mantidas por secretarias de Educação de 165
municípios. Existiam ainda algumas escolas indígenas que eram mantidas por
projetos especiais, como a Eletronorte, e por entidades religiosas. Estas escolas
foram declaradas no Censo Escolar como escolas particulares (Ver gráfico 2).
99632
100000

90000

80000

70000

60000

50000

40000

30000 19371
14152
20000 12369

10000 2025

0
Educação de Ensino Médio 5ª a 8ª Série 1ª a 4ª Série Educação
Jovens e Infantil
Adultos

Gráfico 2 - Número de estudantes por modalidade/nível de ensino em 2004 no Brasil.


Fonte: Elaborado a partir de dados do INEP/MEC, 1999.

Observando as informações do censo expressadas no gráfico da Figura 4.2,


se percebe que existem demandas para o ensino médio e superior. No entanto, o
esforço que foi realizado em prol do ensino fundamental não se estendeu ao ensino
médio, sofrendo um estrangulamento apesar das recomendações da Constituição
Federal pela ampliação da educação em todos os níveis.
Em 2003, tivemos oportunidade de participar como docente no Curso de
Capacitação de Professores e Técnicos que estavam atuando no ensino médio no
estado do Amapá, uma iniciativa do Núcleo de Educação Indígena do Amapá-
NEI/AP, cuja legislação não diferia do ensino fundamental. Algumas reflexões
envolvendo as dúvidas dos participantes e/ou suas carências, puderam ser retiradas
dessa experiência: a) o que poderia ser relevante para o ensino médio nas aldeias
quanto aos conteúdos das disciplinas próprias desse nível; b) que ou quais
metodologias poderiam ser aplicadas, pois alguns opinavam que para alguns grupos
poderia ser a mesma dos alunos da cidade, pois já não os viam como indígenas,
enquanto para outros era difícil, pelo relativo embargo da língua, mas principalmente
pela deficiência dos alunos oriundos do ensino fundamental nas aldeias; c) a
estrutura dos cursos modulares os tornava professores itinerantes, não permitindo
conhecer melhor os alunos e suas comunidades; d) desconhecimento por parte
desses professores e técnicos da história de seu Estado, dos povos indígenas que o
compunham; e) falta de conhecimento e informações sobre temas como política
indigenista, política de educação indígena, movimento indígena e siglas como SPI,
FUNAI que eram apenas nomes de instituições, enfim, ausências de informação e
conhecimentos considerados por eles como danosos às funções que
desempenhavam.
Em 2004, durante um Curso para Professores do Ensino Fundamental (1ª a
4ª série) das escolas indígenas que estão sob a jurisdição da Secretaria Municipal
de Altamira /PA, pudemos constatar certas semelhanças com o que ocorria no
Amapá. A Secretaria Municipal/SEMEC seguia a mesma geopolitica da
FUNAI/Altamira, isto é, atendia aos 09 grupos indígenas que estão localizados em
outros municípios183, e mantinha com o órgão indigenista maior ou menor parceria. A
SEMEC assumiu a educação indígena em 2000, mas apenas em 2004 passou a ter
melhores condições de encaminhar alguns projetos como o diagnóstico das escolas
e formação de professores. Os professores apontaram alguns fatores que
prejudicavam o trabalho nas escolas das aldeias: A falta de material informativo
sobre os grupos da região, inexistência de diretrizes curriculares adequadas,
embargo da língua (o que obrigava os professores mais hábeis a um aprendizado
básico por iniciativa própria durante os primeiro semestre), falta de assessoria
especializada que levava os professores a tentar ensinar o que era possível,
condição que favorecia o que definiram por “situação de abandono”, minimizada pela
relativa pontualidade do pagamento de seus salários. Por outro lado, a presença da
escola nas aldeias foi considerada positiva, pois dependendo da atuação do
professor em tomar a defesa da terra, assuntos que tivessem a ver com o seu
cotidiano como tema das aulas, a escola tinha a possibilidade de funcionar como um
local de reflexão. Segundo os professores o enfraquecimento da escola fortalecia os
invasores184.

183
A jurisdição da FUNAI/Altamira (AERALTA) se estende, além de Altamira, aos seguintes
municípios: Senador José Porfírio e São Félix do Xingu. Alguns grupos são monolíngues em
português ou na língua materna, outros apresentam diferentes níveis de bilinguísmo, ou seja, maior
ou menor domínio do português.
184
Os professores de Altamira pertencem ou pertenceram ao CIMI, as Missões Protestantes ou à
FUNAI. Existem também contratados pela Prefeitura e sem experiência. Não existem professores
indígenas.
Dirce J. de Souza, apresentou sua experiência entre os Xikrin do Rio Bacajá
(Altamira), em um texto inédito intitulado “As aulas: uma tentativa de acertar”, onde
descreveu as estratégias de uma professora sem domínio da língua do grupo, numa
escola de aldeia, e para contornar sua deficiência fez uso de letras de músicas xikrin
como forma de alfabetização; realizou levantamento de informações junto com os
alunos sobre a flora e fauna local para o ensino de ciências; usou o desenho da
silhueta do aluno por algum colega sobre uma grande folha de papel como meio de
explicação sobre o corpo humano; usou desenhos para produção de histórias (que
só funcionou com crianças) e do correio mediante a troca de cartas e bilhetes para
os jovens. Essas atividades, segundo Dirce, funcionaram como uma forma do
professor também aprender a língua do grupo. Alerta que esse procedimento não
pode ser estendido para outros grupos, pois a percepção da escola varia. Para
alguns, a escola é vista como etapas a serem vencidas exigindo seriação; para
outros o ato de escrever seu nome numa caligrafia bem elaborada ou a dedicar-se a
uma determinada letra, como foi o caso de uma mulher Parakanã (Altamira), que
aprimorou o desenho da letra “a” e isso a contentou, pode significar que a educação
escolar está terminada185.
Enquanto o esforço para a criação da legislação escolar foi voltado para o
ensino fundamental, o prosseguimento da escolarização mediante o ensino médio
não recebeu o mesmo tratamento. Uma situação que não é nova. Durante a
pesquisa realizada entre os povos indígenas da Reserva do Uaçá-Oiapoque/AP para
efeito de nossa dissertação de Mestrado (1980) observamos que alguns professores
permitiam que os alunos que haviam terminado a 4ª série repetissem o ano escolar
introduzindo assuntos da 5ª série para que eles não abandonassem a escola, uma
prática viável para alunos na faixa dos 14 anos, pois ao completar 15 anos já haviam
demonstrado as competências exigidas dessa fase (trabalho na roça, arpoar um
peixe grande nas cachoeiras, caçar sozinho etc.), estando aptos para o casamento,
o que significava a saída definitiva da escola. Aqueles que pretenderam seguir seus
estudos foram estudar nas escolas dos centros urbanos mais próximos, por conta
própria ou com ajuda dos programas de auxílio promovidos pela FUNAI, muitos

185
Dirce José de Souza é graduada em Ciências Sociais pela UFPA/Campus de Altamira,
transformando sua experiência em Monografia de Graduação em Ciências Sociais, ênfase em
Antropologia, cujo título “Educação Escolar Indígena: Problemas e perspectivas da escola Bacajá”
(2000) faz parte dos poucos documentos do cotidiano dos professores de escolas em terras
indígenas do Estado do Pará. Continua trabalhando com os Xikrin onde desenvolve um projeto de
educação escolar indígena.
alunos dessa geração estão ocupando cargos como chefes de posto,
administradores, agentes de saúde, presidentes de associações indígenas, ou são
graduados em nível superior. Na maioria dos grupos indígenas, em razão da
valorização que a educação escolar passou a ter, há cada vez mais exigência de
instalação do ensino médio nas aldeias.
Em outubro de 2003 foi realizado o seminário “Políticas de Ensino Médio para
os Povos Indígenas” promovido pela Diretoria de Ensino Médio da Secretaria de
Educação Média e Tecnológica-SEMTEC/MEC em Brasília com a presença de
instituições governamentais como FUNAI, Conselho Nacional de Educação (CNE),
FUNASA, representantes de secretarias de Educação e representantes Indígenas,
com o intuito de discutir uma política para o Ensino Médio. Segundo os anais do
seminário (2003), houve uma audiência pública no Conselho Nacional de
Educação/CNE, onde representantes indígenas apresentaram reivindicações para o
cumprimento da legislação referente à oferta de educação básica em todos os
níveis, diante da qual a SEMTEC assumiu o compromisso de incorporar na pauta
das políticas educacionais a educação escolar indígena. Apesar da existência do
Programa Diversidade na Universidade (lei n° 10.558 – 13/11/2002, Congresso
Nacional), os representantes indígenas argumentaram que este não atendia às
necessidades indígenas mesmo carregando a imagem e citando os povos
indígenas. Para Marise Nogueira Ramos, diretora de Ensino Médio da
SEMTEC/MEC, o programa tem limitações, mas pode ser visto como estratégia para
realizar ações e buscar aporte financeiro para realizá-lo. Kleber de Matos Gesteira,
coordenador geral de Educação Escolar Indígena, ressaltou que a nova política do
MEC articula os três níveis - fundamental, médio, e superior -, estando em vista uma
política de inclusão em parceria com o Conselho Nacional de Professores Indígenas
(CNPI) e demais organizações indígenas, no intuito de garantir o controle da política
pública na educação escolar.
Os temas do seminário favorecem o olhar da diversidade que o assunto
incorpora, mas apresentam ausências representativas de grupos especialmente do
Pará e Amapá. Na discussão do Tema 1, intitulado “Levantamento das Experiências
do Ensino Médio Vividas Pelos Diversos Povos Indígenas”, ficou evidente a
existência de experiências dos povos indígenas relativo ao ensino médio, bem como
a ausência, pela demanda exígua, pela falta de professores indígenas, pela
diversidade dentro de uma mesma área gerando situações no mínimo pitorescas,
como relatada por Magno da Silva, representante Kurâ-Bakairi (MT), área que
administrativamente envolve a etnia Xavante, cujo território se estende ao Xingu:

Quando as pessoas vão à Secretaria, eles perguntam: o que eles estão


dizendo? Não sei, eles estão falando na língua deles. – Uai, mas você
também não é índio? Tem a mentalidade que todo índio fala a mesma
língua [..] e é com essas pessoas, que não estão preparadas , que a gente
tem que tratar os nossos assuntos (MAGNO DA SILVA, 2003).

No Tema 2, intitulado “Conquistas dos Povos Indígenas Relativas à Educação


Escolar”, alguns pontos foram comuns tais como: gestão de escolas por professores
indígenas, formação de professores, criação de conselhos e setores indígenas em
secretarias municipais. Neste item ficou visível o número superior de conquistas dos
povos de Roraima em relação aos demais estados.
O Tema 3, com o título “Ensino Médio, Identidade e Sustentabilidade
Indígena”, foram feitos questionamentos sobre o tipo de ensino médio, que deve ser
construído considerando que os povos indígenas requerem além de professores,
profissionais em saúde, meio ambiente, direito. A discussão trouxe a baila o ensino
profissionalizante e o tipo de corpo docente treinado, mas também a discussão
sobre a desconsideração da filosofia dos diferentes povos, assim como, a perda de
formas de conhecimento tradicional, como se pronunciou Isaac Pinhata, do povo
Ashaninka (AC):

[...] antigamente, para sair de uma aldeia para outra do mesmo rio, ele se
orientava através da floragem. Diziam: ’quando estiverem saindo os frutos
eu estarei chegando’. [...] um conhecimento cientifico daquele povo que é
atropelado. [...] a gente pretende fazer um manejo das espécies animais, [...]
de que maneira vamos fazer esse manejo se não identificamos uma
queixada, um veado que está levando um filhote no ventre? Antes havia um
conhecimento de que tal espécie estaria no período de fecundação quando
determinada árvore estivesse com seus frutos maduros. Então, são formas
que temos que aprofundar neste Ensino Médio [...] (ISAAC PINHATA, 2003)

O Tema 4, denominado “Concepções, Formato e Estratégias para um Ensino


Médio Indígena” foi submetido à pergunta: “Qual é o Ensino Médio que queremos
para os povos indígenas?” Esta pergunta foi seguida da busca de estratégias.
Funcionando como arremate, o tema 4 apontou para algumas tendências cuja leitura
do documento fornece ao leitor uma idéia da complexidade que pode ter o ensino
médio para os povos indígenas, como por exemplo: necessidade de melhor
discussão das razões do ensino médio nas comunidades; oportunidades para a
formação de docentes indígenas; profissionalização e seus destinos;
autodeterminação dos povos indígenas, tendo a educação como caminho. No bloco
de estratégias foi possível listar: a distribuição das responsabilidades pelas
instituições, inclusão da educação escolar indígena no Plano Plurianual/PPA dos
estados, concurso público diferenciado, material didático, autoria indígena, formação
de gestores indígenas, desenvolvimento de ação coordenada das SEDUC com
outras organizações governamentais e não governamentais, com objetivo de
formação continuada e superior para professores186. Em síntese, o documento final
aconselha subsidiar a proposta com o Programa Diversidade na Universidade e a
política do MEC que visa a diversidade étnica em todos os níveis de ensino no
Brasil. A sinfonia inacabada do ensino médio dá lugar à política de acesso de
indígenas ao ensino superior.

5.1.3 Indígenas e Ensino Superior: a busca de eqüidade

O acesso à Universidade por povos indígenas, negros e outras minorias, não


pode ser dissociado do novo projeto de Nação proposto para o Brasil pós
Constituição de 1988. A Carta Constitucional, ao declarar o Brasil como um país
pluriétnico, reconhecer os direitos coletivos, somado a aprovação de diplomas
internacionais como a ratificação da Convenção 169 da OIT, de 7 de junho de 1989,
que defende o direito de participação dos povos indígenas e tribais nas tomadas de
decisão de seus destinos, e abolição da tutela pelo novo Código Civil, de 2001,
imprimiu uma nova diretriz nas relações do Estado Nacional e povos indígenas.
Segundo Ricardo Henriques (2004), o contexto da sociedade brasileira é de forte
iniqüidade social, com níveis absolutos de 56 milhões de pessoas, das quais 24
milhões estão em condição de pobreza absoluta, apresentando o mínimo de índice
calórico necessário à vida.
As condições de escolaridade refletem a desigualdade que impera, existindo
65 milhões de pessoas com mais de 15 anos sem o ensino fundamental; 33 milhões
sem a 4ª série e 16 milhões de analfabetos com idade superior a 15 anos. A
responsabilidade do quadro apresentado tem diversas origens, entre elas os planos
186
Seminário Políticas de Ensino Médio para os Povos Indígenas (2003: Brasília, DF) Anais do [...]. –
Brasília: Secretaria de Educação Média e Tecnológica, Diretoria de Ensino Médio, 2003. 115 p.
de estabilização econômica, que transformaram a população brasileira em
laboratórios experimentais, a concentração de renda, na esteira da qual 1% da
população tem mais do que o restante do país, alimentando o padrão de
desigualdade educacional marcado pela forma como a educação de qualidade é
ofertada situação que exige a revisão da naturalização da desigualdade através da
análise da escolaridade de gerações anteriores. Uma alternativa para um novo
modelo de política é reaver a agenda do princípio da equidade rompendo com a
naturalização da desigualdade, recuperando o ideal republicano onde a escola tem
papel importante, defendendo a diversidade como eixo do desenvolvimento 187. O
mesmo autor apoiado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio/PNAD/IBGE, 1999, chama atenção que os indicadores de pobreza e
indigência também se apresentavam bastante pronunciados nas populações
indígenas, com um percentual de 56% abaixo da linha de pobreza e de indigência de
22, 3%. A taxa de desnutrição das crianças era 115% maior do que a taxa de
desnutrição das crianças de outros grupos raciais, refletindo a desigualdade social
agravadas pelas políticas aplicadas aos indígenas188.
A busca pela eqüidade social, através de educação, em todos os níveis,
garantia de acesso, permanência e sucesso, ficou evidente ao longo dos debates da
I Conferência sobre Ensino Superior Indígena realizada em Barra do Bugres/MT, em
setembro de 2004, patrocinada pela Universidade Estadual do Mato
Grosso/UNEMAT, a pioneira na implementação de um curso de Magistério Superior
Indígena funcionando no Campus de Barra do Bugres.
Entre 1997-2000 foi desenvolvido o Projeto de Cursos de Licenciatura
Específicos para a Formação de Professores Indígenas, por uma Comissão
Interinstitucional e Paritária, criada pelo decreto n° 1.842, de 21 de novembro de
1997, pelo governo do Mato Grosso. Em 2001, teve início o Projeto 3° Grau Indígena
(2001-2006), com objetivo de formar e habilitar professores indígenas para docência
no Ensino Fundamental e Médio. A Universidade de Roraima (UFRR) através do
Núcleo Insikiran, também desenvolve cursos de magistério diferenciado para povos
187
HENRIQUES, Ricardo. Políticas para a Diversidade no Brasil. Palestra proferida na I Conferência
sobre Ensino Superior Indígena: construindo novos paradigmas. UNEMAT – Barra do Bugres/Mato
Grosso, 23-25 de setembro de 2004.
188
HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década
de 90. Rio de Janeiro: IPEA (texto para discussão n° 807). 49 p. In: Estado e Sociedade. Promovendo
a Igualdade Social (Texto-Base). 1ª Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR e Conselho
Nacional de Promoção da Igualdade Racial/CNPIR. Brasília, 2005.
indígenas, as duas universidades funcionam como parâmetros desse modelo de
ação de inclusão dos indígenas no 3° Grau189.
Um dos resultados da I Conferência sobre Ensino Superior Indígena foi a
decisão de implementação do ensino superior em outras universidades,
especialmente as do norte do país, mediante a criação de Grupos de Trabalho
Interinstitucionais, com a presença de representantes indígenas, assessoria da
FUNAI/BSB e Núcleo Insikiran/UFRR. Uma ação que apesar de se beneficiar de
políticas de ação afirmativa, como o Programa Diversidade na Universidade –
Acesso à Universidade de Grupos Socialmente Desfavorecidos, instituído no final do
governo FHC, cujo objetivo é combater as assimetrias por motivos raciais, étnicos e
religiosos, os representantes indígenas tem reiteradas vezes afirmado que há
necessidade de adequar a política às peculiaridades dos povos indígenas190.
A instalação do programa nas universidades gerou uma discussão em nível
nacional sobre cotas para afro-descendentes e indígenas, dividiu opiniões relativas
aos critérios de auto-identificação, ao descaso que a escola pública vem sofrendo há
décadas, apontado como responsável pela desigualdade educacional, do papel da
universidade nesse novo contexto, e os riscos de queda do nível de exigência no
acesso ao ensino superior.
Na Universidade Federal do Pará (UFPA) foi instalado um grupo de trabalho
(portaria n° 1431/2005) com representantes das diferentes Unidades da UFPA,
representantes da Comissão de Educação Escolar Indígena/CEEI-PA, Comissão
Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI/MEC), SEDUC, FUNAI, FUNASA e
Secretaria de Estado da Justiça do Pará –SEJU, com objetivo de apresentar um
programa de política específica de ensino, pesquisa e extensão do/para os povos
indígenas, com vistas a formação de quadros profissionais, assessoria especializada

189
SOUZA LIMA (2005) informa que algumas universidades como as Federais de Minas Gerais e
Espírito Santo tentaram iniciar cursos dessa natureza sem sucesso. Em Mato grosso do Sul, a
Universidade de Grande Dourados/UNIGRAN, a Universidade Estadual do Mato Grosso do
Sul/UEMS e a Católica Dom Bosco através do Programa de Mestrado de Desenvolvimento Local
mantêm o Programa Kayowá-Guarani com ações para o ensino superior indígena. A Pontificia
Universidade Católica de São Paulo/PUC mantém um Programa para indígenas Pankararu migrados
do nordeste que vivem em São Paulo. As Bolsas são pagas pela FUNAI aproximadamente a 1.000
estudantes em universidades particulares pois eles tem dificuldades de acesso às universidades
federais. Cf. SOUZA LIMA, Antônio Carlos et alli. Notas sobre os antecedentes históricos das idéias
de “etnodesenvolvimeto” e de “acesso de indígenas ao ensino superior”. LACED/MN/UFRJ, 2005.
www.laced.mn.ufrj.br
190
Outras políticas com o caráter de garantir o acesso, permanência e sucesso dos estudantes
indígenas nos cursos de graduação são os Programas Universidade Para Todos (PROUNI)/ MP 213
de 10 de setembro de 2004 e Programa de Formação Superior e Licenciatura para Indígenas
(PROLIND).
aos projetos e demais iniciativas coletivas. A existência do GT, resultado da
reivindicação da nascente Comissão de Educação Escolar Indígena do Pará
(novembro/2004), formada por representantes indígenas (lideranças e alguns
professores), com apoio da Coordenação Geral de Educação/CGE/ FUNAI-Brasília,
é uma demonstração da política de parceria, pela qual o órgão indigenista procura
exercer outros papéis, o de parceiro ou mediador das ações entre povos indígenas e
o Estado191. No Pará as iniciativas em educação indígena tiveram a participação da
SEDUC, FUNAI e UFPA192, podendo ser consideradas tímidas em razão da
descontinuidade das ações, inexistência de uma política de Formação de
Professores, que garantisse a manutenção e ampliação de parcerias como ocorreu
em outras unidades regionais. Os Quadros a seguir fornecem uma síntese das
ações onde a SEDUC foi a principal mentora.

DEPG
1989 Escola Indígena R.C Parkatêjé – 5ª a 8ª séries (Programa de
educação que durou 05 anos)

DEPG
1989 a 1994 Assurini, Anambé, Parkatêjé, Tembé (Guamá,
Turé, Mariquita), Suruí,
Kaiypó, Xikrin, Programa Etnoeducação/UFPA (Capacitação)

DEPG – Seção de educação E. Indígena.


1995 Levantamento em todo o Estado (visita nas aldeias em
parcerias com a FUNAI)

DENF
1996 Atendimento (Capacitação e contrato para professores índios e
não índios) implementação do Ensino Fundamental

1997 Municipalização do Ensino Fundamental

Capacitação Continuada de professores índios e não índios


1998 a 2003 Assessoramento às SEMECs

Implantação do Médio Normal junto aos professores Wai Wai


2003 38 cursistas

191
A discussão sobre educação indígena no âmbito da UFPA se fez em três períodos: 1991-96 com o
2004 Capacitação Continuada e Formação de professores Wai Wai e
Programa em Etnoeducação; 2002 com a criação de um Grupo de Estudos transformado em 2004
Munduruku
em Núcleo de Estudos sobre Populações Indígenas/NEPI; em 2004 com o Seminário sobre
Diversidade sob a responsabilidade dos Profs. Celso Vaz (Ciência Política) e Sônia Santos (Centro de
Educação), que provocou o debate da emergência do Ensino
Capacitação Superior
continuada Indígena.
e formação de professores Wai Wai,
192 2005
Entre 1991-1996 foi desenvolvido o Programa em Etnoeducação Munduruku e Tembé.com a SEDUC e
em parceria
FUNAI-Belém.
Quadro 1 – Ações e parcerias
Fonte: Coordenação de Educação Inclusiva/SEDUC/PA, 2005.

O Quadro 2 indica uma população escolar de 7.479 alunos segundo o Censo


Escolar fornecido pela SEDUC/SAEN – Coordenação de Educação Inclusiva –
Educação Indígena, cuja demanda de alunos para Formação de Professores/Médio
Normal é apenas de 75 alunos.

DEMANDA DE
DEMANDA DE DEMANDA DE
TOTAL DE ALUNOS PARA
PÓLO DE ALUNOS PARA ALUNOS PARA
ALUNOS/CENSO FORMAÇÃO DE
ATENDIMENTO 5ª A 8ª ENSINO MÉDIO
2004 PROFESSORES/
SÉRIES/2005 REGULAR/ 2005
MÉDIO NORMAL
Jacareacang 3195 502 218 59
Altamira 852 90 - -
Redenção 1016 136 - -
Marabá 1176 162 17 -
Oriximiná 416 119 - -
Belém 824 137 - 16
Total Geral 7479 1146 235 75
Quadro 2 – Alunos indígenas em 2004 e demandas para o ano 2005.
Fonte: MEC/INEP/SEDUC – PA – Censo Escolar 2004 (dados elementares)

O Quadro 3 aponta um total de 98 professores em formação dos quais


apenas 38 têm o curso médio completo.

ESCOLARIDADE
POVO N° Total de
Fundamental Médio Superior
Professores
Munduruku - 38* - 38
Wai Wai - 38*** - 38
Parkatêjé 01** - 06*** 07
Xikrin 03** - - 03
Suruí 02** - - 02
Anambé 01** - - 01
Asurini 03** - - 03
Kayapó 01** - - 01
Tembé - - - -
Guarani 01** - - 01
Xipaya - - - -
Karajá - - - -
Kykatêjé 03** 01 - 04
Total Geral 15 77 06 98
Quadro 3 – Nível de escolaridade diferenciada dos professores/2004
Fonte: SEDUC/SAEN – Coordenação de Educação Inclusiva/Educação Indígena
* Concluído
** Fundamental Incompleto
*** Cursando

No Quadro 4, demonstra-se a demanda para o Ensino Superior que fica em


torno de 128 indígenas, com destaque para os Munduruku com 20 candidatos em
razão de um projeto implantado pela FUNAI e 80 indígenas pertencentes aos grupos
definidos como ressurgidos.

Etnia Situação do Ensino Médio Demanda para o Superior


Karajá Concluído 02
Kykatêjê Concluído 08
Parkatêjê Concluído 10
Kayapó Concluído 02
Tembé do Prata Concluído 04
Xipaya Concluído 02
Munduruku Concluído em 2004 20
Povos indígenas de Santarém,
Concluído Em torno de 80 indígenas**
Aveiro e Belterra*
Total 128
Quadro 4 – Demanda para o ensino superior – dados 2005.
Fonte: SEDUC – Coordenação de Educação Inclusiva/Educação Indígena.
* Podendo ingressar no 2° semestre de 2005.
** Dado parcial – Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns / CITA, fará um novo levantamento.

Membros de diferentes grupos indígenas têm se deslocado para fora das


aldeias, num processo migratório provocado por razões econômicas, políticas,
familiares, como, por exemplo, a busca de tratamento de saúde ou de educação,
transformando a cidade em um novo território, mas também sendo transformada por
ela, fenômeno que aconteceu também em Belém, a semelhança de outras capitais e
sedes de municípios193. Os prováveis descendentes destas famílias aparecem no
registro do Sistema de Controle Acadêmico (SISCA) da Universidade Federal do
Pará (2005), num total de 50 alunos auto-identificados como indígenas (ver Gráfico
3), matriculados em cursos de diferentes áreas, como História, Ciências Contábeis,
Ciências da Computação, Medicina e Engenharia, conforme o Anexo 2.

35000
31079
30000

25000

20000

15000

10000

5000 3449
2098
476 50 136
0
Não- Parda Negra Indígena Branca Amarela
informada

193
Sobre a presença de famílias indígenas em Belém há um levantamento preliminar feito pelo CIMI
Regional Norte II; uma pesquisa iniciada por Laura Saré Ximenes Ponte (UFPA) em 2005. Não há
informações sobre as etnias as quais pertencem os alunos da UFPA.
Gráfico 3 – Número de alunos por cor na UFPA – 2005.
Fonte: Elaborado a partir de dados do Sistema de Controle Acadêmico da UFPA.

Os diplomas legais que permitiram a implantação da educação indígena como


uma política pública, são exemplos de legislações avançadas (apesar de pontos
críticos como foram vistos), mas pouco funcionais em razão de uma estrutura social
que tem a construção do outro (indígena) depositado num dado lugar, onde o
monoculturalismo nacional sofreu um deslizamento para o multiculturalismo no
sistema educacional, como alerta Bandeira (1997). Fatores que contribuem para o
desrespeito, omissão em relação ao que prega a legislação, pois afora algumas ilhas
de excelência, representadas por projetos que funcionam como vitrines, o restante
dos programas de formação de professores tem-se mostrado deficientes, seja pela
estrutura dos cursos, cuja descontinuidade contribui para o abandono da escola por
parte dos indígenas, seja a falta de uma política de ensino médio, que ofereça outras
oportunidades aqueles que não desejam ser professores. Por tudo isso, é possível
afirmar que, a educação indígena ainda está em “Nota de Rodapé”194 nos Programas
Plurianuais (PPA) da maioria dos Estados brasileiros.

6 TERRAS INDÍGENAS: PONTO CENTRAL DOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS


DOS INDÍGENAS

A exigência da demarcação é uma das bandeiras de luta que foi revigorada


durante a Mobilização Indígena Nacional, que caracterizou a Semana dos Povos
Indígenas, realizada em Brasília, em abril de 2005, chamado Abril Indígena. O
evento divulgou uma carta que ressaltava que o Acampamento Terra Livre 195 era a
expressão da vontade de união dos povos indígenas e seus aliados, e sua
determinação em lutar por seus direitos assegurados na Constituição e na
194
A Educação Indígena é “Nota de rodapé nas políticas públicas”, expressão usada pelo cientista
político Celso Vaz (UFPA), na conferência sobre Ações Afirmativas organizada pelo Núcleo de
Estudos sobre Populações Indígenas/NEPI-UFPA, 2005.
195
O movimento foi articulado pelo Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas que reúne diversas
organizações entre elas o CIMI. O acampamento foi instalado na Esplanada dos Ministérios entre
25/04 a 03/05/05.
Convenção 169 da OIT196. O documento, além de denunciar a ameaça constante
sobre seus direitos, reivindicava a participação dos indígenas nas decisões políticas
das questões que os afligem: terras, meio ambiente, saúde e educação.

Foto 1 - Manifestações do Abril Indígena, 2005 – Brasília (CIMI)


Fonte: Revista Mensageiro, 2005.

O jurista José Afonso da Silva (1999 p.778-781) ensina que a Constituição de


1988 revelou o esforço da Constituinte em pré-ordenar um sistema de normas que
pudesse de forma efetiva proteger os direitos e interesses dos indígenas, mas
lamenta que o texto do anteprojeto da Comissão Afonso Arinos não tenha sido
adotado e a proteção aos direitos indígenas não tenha alcançado o nível satisfatório.
Portanto, os direitos indígenas estarão amparados se for assegurada a posse e a
riqueza das terras por eles tradicionalmente ocupadas. Diante disso, é possível
afirmar que o ponto de maior controvérsia na Constituinte, a questão das terras
indígenas, apesar das conquistas promulgadas na Constituição de 1988, continua a
ser o núcleo da crise entre, os povos indígenas, o Estado brasileiro, e outros atores
sociais, requerendo do movimento indígena atenção constante.

196
Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Revista Mensageiro, Maio-Junho, edição N°. 151/2005.
6.1 Os Direitos Originários

O reconhecimento dos direitos originários dos índios brasileiros remonta ao


período colonial, quando as Cartas Régias de 30 de julho de 1609, e a de 10 de
setembro de 1611, afirmaram o domínio dos índios sobre seus territórios:

[...] os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são
na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer
molestia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas
vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando
elles livremente o quizerem fazer. [...] (Carta Régia, 10.09.1611, In: CUNHA,
1987, p. 58).

O indigenato, tradicional instituição jurídica luso-brasileira, foi consagrado com


o alvará de 1° de abril de 1680, que declarava que as sesmarias não podiam afetar o
direito original dos indígenas § 4°:

[...] E para que os ditos Gentios, que assim descerem, e os mais, que há de
presente, melhor se conservem nas aldeias: hey por bem que senhores de
suas fazendas como o são no Sertão sem lhe poderem ser tomadas, nem
sobre ellas se lhe fazer molestia. E o Governador com parecer dos ditos
Religiosos assinará aos que descerem do Sertão, lugares convenientes
para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos
lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo
algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas
particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de
terceiro, e muito mais se entende, e quero que se entenda ser reservado o
prejuízo, e direito dos Índios, primarios e naturaes senhores dellas” (Alvará
de 1.4. 1680. In: CUNHA, 1987, p. 59, grifo meu).

Esse direito foi confirmado pela lei pombalina de 6 de junho de 1755, firmando
o principio de que nas terras outorgadas a particulares “seria sempre reservado o
direito dos índios, primarios e naturaes senhores dellas” (AFONSO DA SILVA, 1999,
p.783, grifo meu). Manuela Carneiro da Cunha (1987, p. 63) comenta ainda, que
mesmo Dom João VI “o mais antiindígena dos legisladores” reconheceu a primazia
dos índios sobre as terras dos aldeamentos e de suas terras originais, como a lei de
8 de julho de 1819, que estabelecia que se deveriam demarcar terras de novos
aldeamentos “nos lugares em que se achão arranchados, pela preferência que
devem ter nas sobreditas terras”.
Linhares (1998) chama atenção que até a Carta Outorgada de 1824, as terras
pertenceram à Coroa Portuguesa e a partir dela foi confirmada o acesso pleno às
terras por parte dos sesmeiros, com direito ao usufruto e a obrigação de cultivá-las.
Por não existir nenhuma lei que ordenasse sua aquisição, a ocupação da terra era a
forma de obtenção. Em termos jurídicos, a terra não era considerada mercadoria.
Quanto aos índios, a Constituição foi omissa apesar da presença de uma “Comissão
de Colonisação e Cathechisação” na Constituinte de 1823, que recebeu em 17 de
junho o projeto de José Bonifácio de Andrada e Silva, “Apontamentos para a
Civilização dos Índios Bárbaros do Império do Brasil”.
Durante a Constituinte, o debate entre o deputado Montesuma, que afirmava
que os índios não eram brasileiros, e os deputados Moniz Tavares, que defendia a
proteção das terras que ainda restaram aos indígenas, e José Bonifácio com o
mesmo ponto de vista, fornece uma idéia do clima político daquele momento. Souza
Filho (1998) considera que, sob o ponto de vista político, a Constituição de 1824,
apesar do silêncio relativo aos indígenas, não significou que houve extinção de seus
direitos, nem dúvidas sobre o direito de propriedade dos sesmeiros sobre as terras.
A lei n° 601, de 1850, conhecida como Lei de Terras, estabeleceu que
somente com a posse de títulos legais era possível aos posseiros hipotecar ou
alienar a terra, dar a terra um novo significado, um bem de mercado (idem, 1998).
Relativo aos índios, o artigo 12 da lei determinava a reserva de terras para a
colonização pelos mesmos; no artigo 14, o governo ficava autorizado a vender as
terras devolutas.

Fazendo jus a esse dispositivo, logo em seguida foi publicada uma decisão do
Ministério do Império:

mandando seqüestrar e incorporar aos próprios nacionais todas as terras


concedidas aos índios, que já não vivem aldeados, mas dispersos e
confundidos na massa da população, pois que tais terras se devem
considerar como devolutas, e, como tais aproveitadas na forma da Lei 601
de 18 do mês passado. (Aviso Ministerial de 21 de outubro de 1850, apud
ROCHA, 1988, p.50-51).

A regulamentação da Lei de Terras foi feita através do decreto n° 1.318, de 30


de janeiro de 1854, provocando a extinção de aldeamentos e transferência de suas
terras para o domínio público. Foram distinguidos três tipos de terras destinadas aos
índios: a) terra para aldeamentos; b) terras a reservar, e; c) terra de domínio dos
índios. Nos livros paroquiais foram feitos os registros das terras efetivamente
ocupadas por indígenas e as demais consideradas devolutas, passíveis de serem
distribuídas em lotes por grandes proprietários. Tal medida, segundo Rocha (1988),
além de expressar os interesses dos grandes proprietários rurais, teve o privilégio de
provocar o esbulho de terras indígenas em várias regiões, como ocorreu com os
Kaingang, que viviam entre o Paraná e Santa Catarina, e grupos do Nordeste. Em
outras regiões, como Goiás, a lei não foi tão efetiva, predominando o confronto entre
índios e brancos, em razão das frentes de expansão, da construção de presídios
militares, e aldeamento nas missões.
Os interessados nas terras habitadas por indígenas, passaram a exigir que
lhes fossem apresentados documentos de suas posses. Tal proposição recebeu
parecer do jurista João Mendes Júnior, que alertou que os territórios ocupados por
indígenas não necessitavam de legitimação de posse diante da Lei de Terras, pois a
lei de 1680 não havia sido revogada, “direito esse que jamais poderá ser confundido
com uma posse sujeita a legitimação e registro”. Ou seja, seu título legítimo é o
indigenato:

O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito


congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. [...] não é um fato
dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior,
depende de requisitos que a legitimem. [...] as terras do indigenato, sendo
terras congenitamente possuídas não são originariamente reservadas, na
forma do Alvará de 1° de abril de 1680 e por dedução da própria Lei de
1850 e do art. 24, § 1°, do Decreto de 1854. (MENDES JÚNIOR, 1912, p.
57-60 apud AFONSO DA SILVA, 1999, p. 783-784).

Afonso da Silva (1999, p. 784), resume a apreciação sobre a importância do


indigenato, dizendo que as terras indígenas não se regem pelo Direito Civil, por
estar além do objetivo imediato da exploração, existindo um significado social e
cultural para essas populações; portanto, não encontra “agasalho nas limitações
individualistas do direito privado”.
Apesar do entendimento jurídico do indigenato, o termo “terras devolutas”,
como foi visto, ganhou corpo com a Lei de Terras de 1850. Essa expressão desde o
período colonial significava terras vagas, não ocupadas, e, portanto, terras públicas.
Linhares (1998, p. 128-129), considera que o uso histórico das categorias “terras
públicas” e “terras devolutas” como sinônimas, gerou problemas para a concepção
de terras indígenas ainda em nossos dias citando dois exemplos:
a) no texto da lei que trata do cadastro das terras públicas, sua finalidade é
definida como sendo: “O levantamento sistemático de terras públicas
federais, estaduais e municipais, visando o conhecimento das
disponibilidades de áreas apropriadas aos programas de reforma agrária e
colonização e da situação de posseiros e ocupantes de terras públicas”
(Dec. N° 72.106, de 18 de abril de 1973, Cap. 1, art. 2°. In BRASIL, 1983, p.
247);

b) No Estatuto da Terra, é esclarecido que dentre as terras públicas terão


prioridade, subordinando-se aos fins previstos nesta lei, tais como se
observa no item III:

“III. As devolutas da União, dos Estados ou Municípios (Lei N° 4504, de 30


de novembro de 1964, Título I, Cap. III, seção I, art. 9°. In BRASIL, 1983, p.
15.)

Seguindo o que indicam as leis, a autora chama atenção para a amplitude da


categoria terras públicas que abarca as terras indígenas. Estas, enquanto um bem
público pertence à União, mas não são devolutas porque estão ocupadas, apesar da
convivência histórica com a noção de que as terras indígenas são também terras
devolutas, conforme a lei 601/1850, que reserva parte das terras devolutas, aquelas
necessárias à colonização dos índios. Souza Filho (1998, p. 127) relembra a
polêmica relativa aos direitos indígenas sobre as terras durante a república, em
1890, provocada pela visão dos positivistas de que os povos indígenas formavam
nações e suas terras consideradas territórios, não sendo por isso terras
apropriáveis. Apesar da pressão positivista, a Constituição republicana manteve os
indígenas na invisibilidade e ”gerou grande confusão teórica quando transferiu as
terras devolutas para os Estados federados”.

6.1.1 A fundação da noção de direito indígena à terra

O termo “terra de índios” só apareceu após a criação do Serviço de Proteção


aos Índios, o SPI, no texto do decreto que estabeleceu seu funcionamento (decreto
n° 8072/1910). Posteriormente, o decreto 9.214/12/1911, do SPI, reafirmou a idéia
de proteção das terras e assistência aos indígenas.
A Constituição de 1934, a primeira a fazer referência aos indígenas, no artigo
129, estabeleceu: Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se
achem permanentemente localizados sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las. A
partir daí, segundo Souza Filho (1998), foi criada a categoria jurídica terra indígena,
confirmada na Constituição de 1937, artigo 154.
No decreto n° 736/1936, aparece a categoria terra dos índios definida como:
1) aquela em que presentemente vivem e já primariamente habitavam; 2) aquela em
que habitam e são necessárias para o meio de vida compatível com seu estado
social; 3) aquela que já lhes tenha sido ou venha a ser reservada para seu uso ou
reconhecida como de sua propriedade a qualquer título. (LINHARES, 1998, p.131).
Em razão das terras devolutas ter passado para o domínio dos estados e
municípios, a demarcação das terras indígenas significava uma doação das terras
estaduais à União. As terras indígenas, como bens da União, só foram reconhecidas
na Constituição de 1967, artigo 4°:

Incluem-se entre os bens da União [...], parágrafo IV – as terras ocupadas


pelos silvícolas; artigo 186 – É assegurada aos silvícolas a posse
permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto
exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
(CONSTITUIÇÃO, 1967).

A disposição presente neste artigo, referente ao usufruto exclusivo aos


indígenas dos recursos naturais, tornou-se, na opinião de Barreto (2004), a raiz da
maioria dos conflitos e contestações aos direitos indígenas, porque nem todos
consideram que tais recursos sejam usufruto exclusivo de um segmento da
população.
A inclusão das “terras ocupadas pelos silvícolas” completava a idéia jurídica
de terra indígena, porém a proclamação desse direito originário só foi feito pela
Constituição de 1988, Artigo 231, § 2° “As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se a sua posse permanente [...]” (SOUZA FILHO, 1998, p. 129).
Entre a definição “terra dos índios” e o reconhecimento efetivo por órgãos
competentes e demais atores sociais, há um longo caminho a percorrer (Ver quadro
5)

CONSTITUIÇÕES ANO CONTEÚDO

1824 Omissa

Império Art. 11.,§5°- atribui competência as Ass. Legislativas Provinciais para


1834 promover [...] a cathechese e civilização do indígena e o estabelecimento
de colônias.
1891 Omissa

Art. 129- será respeitada a posse de terras em que se achem localizados


1934
em caráter permanente sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.

Art. 154- Será respeitada aos silvícolas a posse de terras em que se


1937 achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto,
vedado aliená-las.
República
Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se
1946 achem permanentemente localizados, com a condição de não as
transferirem

1967 Art. 4° - incluem-se entre os bens da União:[...]


IV –as terras ocupadas pelos silvícolas;
Art. 186 –É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que
habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos
naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
Art. 4° - incluem-se entre os bens da União:[...]
IV –as terras ocupadas pelos silvícolas;
Art. 198- As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos Termos
1969 que a lei feral determinar, a eles cabendo sua posse
permanente[...]usufruto exclusivo das riquezas naturais[...]
República
Art. 231 – São reconhecidos aos índios[...]os direitos originários sobre as
1988 terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Quadro 5 - Desenvolvimento Histórico do Tratamento Constitucional das Terras Indígenas
Fonte: Assessoria Jurídica - CIMI/2005

6.2 As Terras Indígenas diante do Estatuto do Índio e da Constituição de 1988

Em 1967, a Lei n° 5.371/1967 que autorizou a criação da Fundação Nacional


do Índio – FUNAI, no Artigo 1°, inciso I, alínea b, referente as diretrizes da política
indigenista, especificou: “Artigo 1° - Fica o Governo Federal autorizado a instituir
uma fundação, com patrimônio e próprio e personalidade jurídica de direito privado,
nos termos da lei civil denominada “Fundação Nacional do Índio”, com as seguintes
finalidades:

I - estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista,


baseada nos princípios a seguir enumerados: a) [...]; b) garantia à posse
permanente das terras que habitam e o usufruto exclusivo dos recursos
naturais e de todas as unidades nelas existentes;

O Estatuto do Índio estabelecido pela lei 6001, de 19 de dezembro de 1973197,


reserva o Capítulo III, “Das Terras dos Índios”, que se estende do artigo 17 ao artigo

197
O Estatuto do Índio elaborado durante o Governo Militar não contou com a participação da
sociedade civil refletindo o estado político do país, assunto melhor discutido no Capítulo III deste
trabalho.
38, a regulação das formas e defesa das terras indígenas. A orientação presente no
artigo 17 reflete o espírito da Lei: Art. 17. Reputam-se terras indígenas:

I – as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os


artigos 4°, IV, e 198 da Constituição; (na CF/1988, o artigo 231).

II – as áreas reservadas de que trata o capítulo III deste Título; e

III – as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.

O quadro 6 apresenta as diversas categorias de Terras Indígenas de acordo


com o Estatuto do Índio.

Documento Legal Tipo de Características Normas


Terras

As habitadas em caráter permanente.


As utilizadas para suas atividades
De produtivas.
Segundo seus usos, costumes
CF/1988, art. 231, 1° Ocupação As imprescindíveis à preservação dos
e tradições
Tradicional recursos ambientais necessários ao seu
bem estar.
As necessárias à sua reprodução física ...

Ocupadas

Reservas (art.27) Criadas (desapropiação) pelo


poder público para servir de
habitat a grupo indígena

Ocup. Trad+ preservação de


Parques(art.28) reservas de flora, fauna e
Reservadas belezas naturais.
Lei 6001/73
Convivência

Aculturados+não índios para


Colônias agrícolas (art.29) exploração agropecuária

Unidade administrativa
Territórios Federais subordinada à União

Adquiridas através de qualquer


Dominiais Domínio Coletivo das formas de aquisição de
(art. 32). Domínio Individual domínio, nos termos da
legislação civil: compra,
usucapião
Quadro 6 – Terras indígenas e suas titularidades
Fonte: Assessoria Jurídica do CIMI.
Observa-se que existe um corpo legislativo que suporta a terra indígena,
exigindo, no entanto, a passagem por um processo de regularização fundiária, que a
distinga como terra dos índios, o que requer a inicialmente a identificação e
demarcação de seus limites. Linhares afirma:

Se o Estado se omite na demarcação e a terra indígena só tem seus limites


reconhecidos dentro da própria comunidade, verifica-se a tendência de que
ela passe a ser tratada pelos diversos escalões administrativos como
devoluta, por exclusão do domínio particular e do uso público, ao menos até
que se prove o contrário (LINHARES, 1998, p. 132).

Desse ponto de vista, assegurar os direitos dos povos indígenas às suas


terras administrativamente é papel da FUNAI. O reconhecimento das terras
indígenas é regulamentada por decretos, portarias, instruções normativas, que
deverão ser a base de orientação do grupo técnico (GT) que realiza o levantamento
de campo, visando “a avaliação e o estabelecimento dos fundamentos dessa
caracterização, bem como, a fixação precisa de seus limites geográficos”
(OLIVEIRA, 1998, p.74). A composição desse grupo técnico foi regulada a partir do
decreto n° 76.999/76, no qual devia constar a presença de antropólogo, engenheiro
agrônomo ou um agrimensor. Inicialmente era formado basicamente por técnicos do
órgão indigenista, posteriormente passou a incorporar servidores de outros órgãos,
como o INCRA, e o Instituto de Terras do estado 198. O fortalecimento das
organizações indígenas produziu um efeito positivo na participação indígena no
trabalho de Identificação, de uma atuação secundária como guias, caçadores,
mateiros, passaram a membros do GT com função política definida de
acompanhamento do processo de trabalho, elaboração de relatório e discussão com
a comunidade sobre o significado da identificação de uma terra indígena,
esclarecendo que as responsabilidades sobre essa terra são maiores a partir dessa
etapa (OLIVEIRA e IGLÉSIAS, 2002; ARRUDA, 2002).
Um trecho do relatório de Antônio Sarmento (Piná Tembé), conselheiro da
Associação dos Povos Tupi do Mato Grosso, Amapá, Pará e
Maranhão/AMTAPAMA, que participou dos serviços de identificação e demarcação
das terras indígenas Saraua e Barreirinha dos Amanayé do rio Capim/Pará, em

198
Atualmente a formação dos GTs se rege pelas normas do Decreto n°1775/96 cabendo a FUNAI a
responsabilidade do procedimento demarcatório, podendo existir contratação temporária de
antropólogos ou outros profissionais fora dos quadros da instituição.
1998, na condição de membro do GT Amanayé coordenado por esta autora, fornece
uma idéia do novo papel assumido pelo representante indígena nessa tarefa:

[...] reunião com o povo amanayé para tratar dos seguintes assuntos: 1)
Qual o papel do GT e a importância da disponibilidade da comunidade para
as informações solicitadas pelo GT; 2) Importância da participação dos
Amanayé em acompanhar a identificação e delimitação das áreas,
informando sobre a área que ocupam; 3) Qual o papel da FUNAI como
órgão do Governo Federal para assistência dos povos indígenas; 4) Qual o
papel da AMTAPAMA neste trabalho; 5) Quais os cuidados que devemos
tomar para garantir o tamanho e a proteção de nossas áreas; 6) Política
governamental: o decreto 1775/96; 7) Duração do processo de
identificação. OBS.: É importante frisar que estes assuntos foram repetidos
diversas vezes por solicitação das comunidades. (PINA TEMBÉ.
RELATÓRIO DO GT AMANAYÉ. Belém: FUNAI, 1998).

Acontecimentos de ordem nacional ocorridos durante a década de 1980


,envolvendo os seringueiros do Acre e sua ligação com os povos indígenas,
substanciou ampla propaganda no exterior sob o tema “povos da floresta”,
encontrando eco no movimento ambientalista europeu e norte-americano. Como
decorrência, os problemas indígenas foram limitados aos interesses da agenda do
momento, qual sejam problemas de conservação e sustentabilidade do meio
ambiente. A particularização da agenda internacional elegeu como ênfase dessas
preocupações as populações indígenas da Amazônia, em detrimento das de outras
regiões. Comentando esse aspecto, Souza Lima (2005) diz que a partir da Eco-92 e
ao longo dos anos 90 do século XX, com o estabelecimento e funcionamento do
Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, o PP-G7, e do
Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal
(PPTAL/PP-G7)199 , a partir de 1991-92, as ações voltadas para os povos indígenas
estavam vinculados às questões ambientais. Por conseguinte, os territórios
indígenas eram vistos como Unidades de Conservação (UC) e sua demarcação
como estratégia de conservação e uso sustentado, isto é foi incrementada a
regularização fundiária. Apesar dos aspectos positivos contidos nessa modalidade,
não foi levado em consideração as novas condições das terras indígenas, ou seja, a
fragilidade dessas terras em razão dos riscos de invasões, a qualidade do entorno, a
mudança das condições internas das sociedades que habitam essas terras. Arruda
(2002) informa que em dois anos de atuação desses programas foram identificadas

199
Programas financiados pelo Banco Mundial, Banco alemão Kreditanstalt fur Wiederaufbau (KfW),
com acompanhamento local da Sociedade Alemã de Cooperação Técnica (GTZ).
cerca de 30 terras indígenas, além da contribuição para a melhoria técnica do órgão
indigenista. Uma das conseqüências dessas mudanças foi o aumento de
solicitações para o reconhecimento de novas terras em razão também da retomada
da identidade por diversos grupos, alguns considerados extintos, como foi o caso
dos Amanayé do rio Capim/PA. Ao lado do crescimento de solicitações por
demarcações, houve também o crescimento de campanhas contrárias às
demarcações, postas em práticas no Congresso Nacional através de Propostas de
Emenda Constitucional (PECs), como a do Senador Mozarildo Cavalcanti da
bancada de Roraima, ou mais recentemente o projeto de lei do Senado (PLS) n°
188/2004, de autoria do Senador Delcídio Amaral, propondo que os procedimentos
de demarcação sejam submetidos ao julgamento político do Congresso.
Os interessados em embargar os processos fundiários, passaram a submeter
os relatórios à varredura jurídica de excelentes advogados, construindo a cultura da
contestação que finalmente teve resposta em 1996, durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso, com aprovação do decreto 1775, de 8 de janeiro de 1996, art. 2°
§ 8, que torna possível aos interessados pedir revisão retroativa da titularidade de
terras indígenas já consolidadas por decreto presidencial200.
O procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, segundo o
decreto n° 1775/96, é feito em nove fases: 1) Identificação e delimitação (segundo o
prazo da portaria): consiste no levantamento de provas que vão fundamentar a
demarcação. Ao término dos trabalhos, o GT apresenta o relatório circunstanciado à
FUNAI, caracterizando a terra indígena a ser demarcada. A portaria n° 14, de 9 de
janeiro de 1996, do ministro da Justiça, estabelece regras para a elaboração do
relatório; 2) Publicação (prazo 15 dias): torna pública a proposta de demarcação da
área, proporcionando a terceiros as informações necessárias à sua contestação; 3)
Análise (parecer, prazo de 60 dias), a FUNAI analisa e emite opinião sobre a
contestação apresentada; 5) Decisão (prazo, 30 dias): o ministro da Justiça analisa
os autos e julga sobre a procedência ou não das contestações; 6) Declaração de
ocupação (prazo anterior): reconhecimento formal dos limites da terra
tradicionalmente ocupada que está sendo demarcada; 7) Demarcação administrativa
(sem prazo): fixação de marcos nos limites determinados pela portaria declaratória;

200
Em razão do decreto n° 1775/96 a responsabilidade dos antropólogos que fazem identificações
aumentou consideravelmente, onde a interdependência da Antropologia e do Direito se torna mais
estreita, bem como consolida o reconhecimento da antropologia junto aos Poderes Executivo e
Judiciário (ARAÚJO e LEITÃO, 2002, p. 31).
8) Homologação (sem prazo): aprovação final da demarcação pelo chefe do
Executivo Federal, a homologação é publicada no Diário Oficial da União (DOU); o
decreto n° 1775/96 não prevê prazo para o presidente da República efetuar a
homologação; 9) Registro: após a publicação, a FUNAI tem 30 dias para requerer o
registro da área como terra de ocupação tradicional e bem da União, no registro
Notorial de Imóveis da Comarca respectiva e na Secretaria do Patrimônio da União.
(ASSESSORIA JURÍDICA/CIMI, 2005).
Entidades indigenistas consideram que o decreto n° 1775/96 expressa a visão
das elites, cujos interesses têm relação com a exploração dos recursos naturais,
desmentindo o discurso governamental à época da divulgação do decreto, qual seja,
tornar mais rápido o processo demarcatório. A submissão da aprovação da
demarcação pelo Conselho de Defesa Nacional é um retrocesso ainda maior do que
o decreto e a fragilização do artigo 231 da CF/1988: São reconhecidos aos índios
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. No parágrafo 4° lê-se:
As terras que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre
elas, imprescritíveis.

6.3 As Terras Indígenas após a Constituição de 1988

A noção de terra indígena como ocupação tradicional, presente na


Constituição Federal de 1988 substituiu aquele presente no Estatuto do Índio pela
maior amplitude, não tendo relação com o tempo de ocupação, mas porque é a terra
em que vivem, pescam, a base para a reprodução física e sociocultural das
populações, por possuírem significado simbólico “ o lugar onde o umbigo dos meus
filhos está enterrado”, como disse uma mulher Kayapó da aldeia Baú (PA), ao nos
explicar porque era importante demarcar os limites da terra indígena Baú com o
município de Novo Progresso, resolvendo um problema que se arrastava desde
quando ela era jovem (1956)201.

201
A complementação dos limites foi feita em 1996 pelo GT que coordenamos. A TI ainda não foi
homologada e sua área original foi bastante reduzida. Novo Progresso surgiu durante a expansão das
Rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá.
Em 2003, a FUNAI fazia referência a 600 terras das quais 400 estariam
regularizadas, o CIMI202 apontava 778 terras, das quais apenas 46% estavam com
sua regularização concluída. Em 2005, o Instituto Socioambiental/ISA informava um
total de 583 terras indígenas, das quais 411 estavam na condição de declaradas,
reservadas e homologadas, perfazendo um total de 70,49% do total das terras,
como pode ser descrito no Quadro 7.

Situação N° de Terras Indígenas Extensão (hectare)


Em identificação 96 153.713
Com restrição de uso 02 926.000
Total 98 (16,83%) 1.079.713 (1,01%)
Declaradas 37 (6,34%) 2.439.596 (2,28%)
Reservadas 14 103.713
Homologadas 71 9.848.716
Registradas no CRI ou 326 83.358.819
SPU
Total 411 (70,49%) 93.311.248 (87,40%)
Total Geral 583 (100%) 106.767.349 (100%)
Quadro 7 – Situação jurídica das terras indígenas.
Fonte: Instituto Socioambiental/ISA; Dados: 23/09/2005

Um aspecto que hoje assume cada vez mais lugar nas discussões das
assembléias indígenas é a garantia da terra. Para isso há necessidade de decisões
políticas como as que foram apresentadas ao governo Lula, em novembro de 2002,
tais como:

a revogação do decreto n° 1775/96; revogação do decreto n° 4.412/02203;


garantia da posse plena das comunidades indígenas sobre as terras que
tradicionalmente ocupam e que se encontram envolvidas em conflitos;
assinatura de Portarias Declaratórias e Decretos de Homologação
pendentes; garantia no Orçamento da União das verbas necessárias à
indenização de benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé em terras
indígenas, bem como, à demarcação e proteção das terras e patrimônio
indígenas (REV. MENSAGEIRO, nov/dez, 2002, p. 4).

Em abril de 2005, a Mobilização Indígena Nacional 204, divulgou uma carta, que
denunciava a falta de vontade do governo em regularizar a situação das terras
indígenas e do modelo de política indigenista que exclui a participação indígena. Em
razão disso, foi proposta a criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista,

202
Revista mensageiro set/out, 2003.
203
Decreto n° 4.412/02, dispõe sobre a presença das Forças Armadas e da Polícia Federal em terras
indígenas por expor os povos indígenas ao risco de serem vítimas de violação de direitos humanos.
204
Os indígenas acamparam na Esplanada dos Ministérios em Brasília e realizaram manifestações
por todo o Brasil.
com participação indígena e sociedade civil, com o poder de coordenação sobre as
ações desenvolvidas em outros setores do governo que tenha relação com os
assuntos indígenas. (REVISTA MENSAGEIRO, maio/junho, 2005, p. 4). Um aspecto
importante na discussão da terra tem sido a reivindicação pela garantia no
Orçamento da União de verbas destinadas às populações indígenas nos projetos de
demarcação e regularização das terras, assistência à saúde e educação indígena.
Oliveira e Lima (1998, p. 69), analisando a ação governamental da política
indigenista com base nos recursos orçamentários destinados a essas populações, e
na avaliação dessas atividades concretizadas em ações de demarcação e
regularização de terras; assistência à educação e saúde Indígena no período 1995-
1998, informam sobre as dificuldades para a avaliação de projetos governamentais,
representados pela cultura da não avaliação. Dessa forma, obstáculos burocráticos
como a possibilidade de obtenção de relatórios claros referentes a programação e
gastos para projetos específicos, e informações que esclareçam as razões da falta
de continuidade dos projetos, têm por conseqüência “uma cultura política baseada
na intuição de gestores, em inclinações ideológicas da corrente política no poder, ou
na vaidade de determinado governante, que pretende impor sua personalidade”.
Quanto à política voltada para os povos indígenas, os autores apontam a falta
de censos mais bem elaborados que permitam viabilizar indicadores precisos para a
ação efetiva, que produzem relatórios falhos sobre a real situação dessas
populações, o que talvez explique, o que acontece com o orçamento destinado para
a regularização fundiária das terras indígenas. Durante o período de 1995-1998, o
panorama orçamentário do processo demarcatório de terras indígenas apresentou
queda acentuada de recursos para essa atividade demonstrada pelos autores,
mediante um quadro demonstrativo e um gráfico de orçamento fixado e executado
(Gráfico 04), uma média de 71,98% dos recursos orçados, existindo diferenças. No
primeiro biênio, por exemplo, a execução não ultrapassou 58% desse total; no
segundo biênio, com a redução, quando o total “dos recursos autorizados no
Orçamento é reduzido em 25% em comparação com o primeiro biênio, é que a
média de execução aumentou para os 71,98% acima citados”.
25000 2 8
236

4 4
213

20000

88
15000 141
8 3
9 50 39
12 12 12
12 Fixado
Executado

10000

5000
9
302 27
47

0
1995 1996 1997 1998

Gráfico 4 – Orçamento Fixado e Orçamento Executado/Total de Recursos para Terras Indígenas no


Brasil (1995 a 1998)
Fonte: Lei n°. 8.980/95; Lei n°. 9.075/96;Lei 9.275/96; Lei 9438/97; Lei 2.597/98 – COFF-
CD/CMO/PRODASEN/SOF/STN
* Valores em R$ 1.000.00 médios em 1999, deflacionados pelo IGP-DI, considerando-se
uma inflação estimada para 1999 de 16,83.

Os autores opinam que o discurso de preocupação do governo com a questão


indígena não se reflete com a mesma intensidade na concretização das ações,
evidenciando falta de vontade política e sucateamento das instâncias que executam
a política oficial (idem, 1998).
Os dados 2003-2005, do Instituto de Estudos Socioeconômicos/INESC,
consideram que após dois anos o que se esperava em termos de reformas legal,
institucionais e políticas que possibilitassem maior controle indígena sobre as terras,
recursos naturais e conhecimentos tradicionais, pretendidos no governo Lula, estão
longe de acontecer. Quanto ao orçamento 2003-2005, houve um aumento de verbas
em ações de promoção, defesa e implementação de direitos. Por exemplo: 2003
dotações de R$ 223,767 milhões; 2005 dotações de R$ 321,390 milhões distribuídas
por 51 ações como visto Quadro 8.

Ano Autorizado Liquidado Observações


2003 223.767.572 211.218.304 V.L. até 9/07/04
2004 318.847.403 276.247.512 V.L. até 10/03/05
2005 321.390.848 19.769.857 V.L. até 24/03/05
Quadro 8 - Movimentação Orçamentária Brasileira/2003-2005
Fonte: INESC Nota Técnica, N° 97, abril, 2005

As dotações para o Programa “Identidade, Etnia e Patrimônio Cultural dos


Povos Indígenas”, sob a responsabilidade dos Ministérios da Justiça (FUNAI),
Saúde, Educação, Esportes e Desenvolvimento Agrário, tiveram um acréscimo
autorizado de R$ 6,754 milhões, passando de R$ 215.740 milhões para R$ 222.494
milhões em 2005. O mesmo não ocorreu com o Programa “Proteção de Terra,
Gestão Territorial e Etnodesenvolvimento”, sob a responsabilidade dos ministérios
da Justiça (FUNAI) e Meio Ambiente, havendo uma perda de 8.749 milhões, ou seja,
em 2004 a dotação foi de R$ 75.106 milhões, passando em 2005 para R$ 66.356
milhões205. Há sugestão por parte do INESC da urgência da criação de instrumentos
legais (institucionais e políticos) para o controle social indígena sobre programas e
recursos destinados aos povos indígenas. Diante dos exemplos apresentados, fica
evidente que uma das formas de embargar uma política é o corte orçamentário. Com
a discussão sobre o problema da terra versus corte de verbas, se delineia a maneira
como o Estado brasileiro trata esta questão que é crucial para os povos indígenas.

205
Ver: Orçamento – 7 INESC, Ano IV, N° 7, julho, 2005.
www.inesc.org.br/conteudo/publicações/biblioteca
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intenção de construir uma história das relações entre as populações


indígenas e o Estado Nacional no período 1988-2005, buscando entender a
presença indígena na democracia brasileira, o papel do movimento indígena na
defesa de seus direitos se mostrou como um desafio pelo aspecto multifacetado que
a questão assumiu ao longo de quase duas décadas. A Constituição de 1988, ao
declarar o Brasil como um país pluriétnico, reconheceu a diversidade sociocultural
do país marcando um novo período da República, tornando visíveis atores que
estiveram historicamente obscurecidos, entre eles os indígenas.
Em razão da ampliação do eixo democrático, por conta da derrocada dos
governos militares, segmentos que estiveram excluídos da representação política,
como as minorias étnicas e sociais, passaram a ter visibilidade. Mediante processos
organizativos e aproveitamento de franquias democráticas, no caso específico dos
indígenas, o que estabelece os artigos 210, § 2, 215 e 231 da Constituição Federal
de 1988, que garante o direito à diferença, a LDB, Título VIII “Das Disposições
Gerais”, Artigos 78 e 79 que asseguram a educação bilíngüe e intercultural, o
reconhecimento e promulgação de diplomas internacionais como a Convenção 169
da OIT, o auxílio de uma rede de aliados nacionais e internacionais, propiciaram
condições para que os povos indígenas construíssem novas relações com o Estado
Nacional. As organizações indígenas, expressão do processo etnopolítico,
assumiram em vários países, como é o caso das Américas, contornos próprios,
tendo pontos em comum em sua política pelos direitos indígenas, entre eles a
potencialização da identidade do ser índio.
De identidades negadas a busca pelo reconhecimento, o quadro indígena
brasileiro se transformou. Não exclusivamente o índio de plumária exuberante, mas
também o índio ribeirinho, o índio urbano, está lançando mão de qualquer material
cultural no dizer de Castells (1996), retomando uma nova identidade e posição no
mundo social, obrigando que a própria academia e a sociedade revejam seus
pressupostos quanto à temática indígena.
A política indígena se pautando no compósito constituído por práticas
tradicionais das assembléias nativas, circuitos de parentesco, alianças com
parceiros nacionais e internacionais, e a gramática política do Estado, criou o que
chamamos de espaço étnico, definido como processo de conquista do espaço
político nas arenas políticas, cuja dinâmica pode representar mudanças no
comportamento político dos atores e instituições.
O empenho para demonstrar esse espaço étnico, cuja visibilidade tem efeitos
tanto no plano interno das sociedades indígenas, quanto se espera que passe a ter
na sociedade nacional, foi buscado por meio da recuperação histórica da relação
dos povos indígenas com o Estado colonial, imperial e republicano. Uma relação que
em todas as épocas tem sido feita através de políticas indigenistas, cujo perfil retrata
o modelo de Estado e seus interesses, produzindo conflitos interétnicos, tomado
como objeto de estudos, sobretudo de antropólogos. Compondo este novo quadro,
na contramão do indigenismo oficial, a construção e desenvolvimento de políticas
indígenas indicaram ser um caminho viável para visualizar este espaço étnico de
conquistas de direitos, participação política e reconhecimento.
A Constituição de 1988, simbolizando o início de um novo período
democrático, trouxe em sua formulação tanto a prerrogativa da democracia
representativa quanto participativa. A ânsia pela participação de inúmeros atores na
cena política fomentou uma nova percepção de democracia e dos direitos de
cidadania. A cidadania no Brasil, apesar dos avanços tem seus problemas, uma
certa incompletude, como cunhou Carvalho (2003).
A cronologia proposta por Marshall (1967) estabelece as liberdades civis
como base nos direitos individuais, considerados atributos naturais, por serem eles
que garantem a vida em sociedade. Eles são complementados pelos direitos
políticos que incluem a participação do cidadão no governo da sociedade, que em
boa parte visa à garantia desses direitos civis. Os direitos civis e políticos também
são chamados de direitos de primeira dimensão. No esquema de Marshall, os
direitos sociais baseados na igualdade não tiveram, durante longo tempo, a mesma
significação nos países europeus que os direitos civis e políticos.
No Brasil a situação se processou de forma diferente, como assinala Carvalho
(2003). Aqui houve uma inversão desse modelo clássico de cidadania. Esta
formação está relacionada com a construção histórica da sociedade brasileira;
portanto, a nossa cidadania é um reflexo dessa historicidade. Os direitos sociais
chegaram antes dos direitos civis e políticos, criando a idéia da organização da
sociedade como algo difícil de alcançar. Por outro lado, a luta pelos direitos se
realizou dentro das fronteiras geográficas do Estado-Nação, se caracterizando como
luta nacional, e o cidadão que emergiu dessa luta é um cidadão nacional. Como no
Brasil houve essa inversão do acesso aos direitos a cidadania brasileira, mesmo
após a Constituição de 1988, ainda está por ser conquistada na prática: problemas
de segurança individual, dificuldades de acesso à justiça, educação de qualidade,
saúde, moradia, além da ameaça constante a direitos já estabelecidos. Enfim,
existem os cidadãos e os não cidadãos, situação que fica bem evidente quando aos
telejornais exibem filas quilométricas dos que necessitam de atendimento do
Sistema Único de Saúde (SUS). O que dizer das minorias étnicas e raciais? O que
dizer dos direitos indígenas? Do direito à diferença? Como a democracia lida com a
questão indígena?
O estudo demonstrou que apesar do aparato legal significativo dos direitos
indígenas, existe ameaça constante para redução ou extinção dos mesmos,
requerendo contínua vigilância por parte das organizações indígenas. Portanto, há
exigência por maior participação nos diferentes fóruns e ganho de
representatividade. Se assim acontecer, a cidadania dos indígenas, o direito a
diferença, começará a se delinear com maior precisão na face participativa da
democracia.
O que foi possível apreender desta reconstituição histórica sobre a ação do
Estado, expressada pelas políticas indigenistas em sua atuação sobre os povos
indígenas e a reação provocada pelas políticas indígenas? O primeiro aspecto teve
relação com as implicações para o estudo do tema, a construção do caminho
teórico, que exigiu a conjugação de diversas abordagens ligadas à literatura dos
estudos de contato interétnico, educação escolar, terra indígena, movimentos
sociais, novos direitos, democracia e reconhecimento.
O segundo aspecto envolveu a escolha do fio condutor que pudesse alinhavar
abordagens de origens tão diversas. A noção de democracia participativa
apresentou-se como possibilidade de análise para entender o papel e o espaço que
identidades minoritárias passaram a expressar e ocupar em decorrência dos
conflitos étnicos, agudizados pela globalização com exigência de participação
política (BENHABIB, 1996; FRASER, 2001; SANTOS, 2003).
O terceiro aspecto envolveu a revisão histórica das relações Estado/Índios,
com ênfase sobre os órgãos indigenistas, enquanto produtores e agentes da política
indigenista oficial, e o movimento indígena, cujas políticas étnicas colaboraram para
a transformação do cenário indígena atual. A revisão também demonstrou a riqueza
de leis em alguns períodos, ausência em outros, com a constante negação e
invisibilidade dos direitos, gerando políticas que causaram o desaparecimento de
inúmeros povos indígenas. De acordo com os dados do Instituto Socioambiental/ISA
(2005), existiam mil povos, aproximadamente 2 a 4 milhões de pessoas no início do
contato com os colonizadores, que em razão das políticas de diferentes períodos do
Estado brasileiro hoje totalizam 220 povos, 180 línguas e uma população de 370 mil
indígenas.
Os interesses econômicos orientaram as políticas desde o período colonial,
provocando a destruição da vida social de numerosos grupos indígenas, escravidão
e morte, respostas à visão preconceituosa com que as populações indígenas eram
vistas pelos colonizadores e, por conseguinte, excludente. A solução para o
problema indígena foi pensada mediante um órgão de Estado que tomasse para si a
assistência e proteção ao índio.
O estudo sobre o Serviço de Proteção ao Índio, o SPI, abordado no Capítulo
II, procurou mostrar o papel do poder tutelar, na expressão de Souza Lima (1995),
como poder estatizado que deflagra sobre os povos indígenas a guerra de
conquista, apoiado em legislações e normas que entendiam os índios como
elementos transitórios, distintos da sociedade, necessitando ser incorporados
mediante a política de integração/civilização, e aplicação de uma metodologia cujo
ponto básico era a pacificação, finalizada com a emancipação definitiva na vida
civilizada. Objetos do interesse de diversos grupos e atores sociais, argumentos em
favor da diminuição das terras indígenas, estavam presentes no discurso e
propostas tanto de conservadores quanto de progressistas (GOMES, 1988).
A reflexão sobre as mudanças sofridas pela Fundação Nacional do Índio, a
FUNAI, agência responsável pelo indigenismo oficial, e do movimento indígena
como produtor de políticas étnicas, foram os temas trabalhados no Capítulo III.
Consideramos fazê-lo levando em conta a reforma do Estado, as demandas do
movimento indígena requisitadas pelas organizações indígenas, a produção e
influência das políticas indígenas sobre as instituições, o conjunto de documentos
legais nacionais e internacionais, que imprimiram uma nova juriscidade, e o papel
dos demais atores envolvidos na questão.
Acontecimentos políticos decorrentes da redemocratização do país
produziram impactos de diversas ordens, como a produção de documentos legais
instituindo novos paradigmas para as relações entre o Estado e a sociedade. Para o
caso indígena, a promulgação da Constituição Federal de 1988, com os princípios
estabelecidos no Artigo 231, na Convenção 169 da OIT trazendo para o plano legal
o conceito de povos indígenas, o novo Código Civil de 2001, que eliminou a relativa
capacidade dos índios fixada pelo Código de 1916, colocaram por terra um dos
pilares de sustentação da instituição, que foi o regime tutelar. A proteção tutelar
presente no Estatuto do Índio (lei 6001/73) seria revista pelo Novo Estatuto, a Lei
2.057/97, que propõe a substituição do nome para Estatuto das Sociedades
Indígenas aguarda aprovação até hoje. Mesmo sem aprovação do novo estatuto, o
instituto da tutela, considerada por Sampaio (1982) como uma bizantice, não tem
mais aplicação em face do que são hoje os povos indígenas. Estes se auto-
representam através das associações e organizações indígenas, ocupam cargos em
administrações regionais da FUNAI, são professores, agentes indígenas de saúde,
universitários, dirigentes de Ong’s indígenas, têm, enfim, diferentes papéis sociais.
Da mesma maneira, efeitos dessas mudanças podem ser observados no âmbito
interno das aldeias, com a presença de escolas, postos de saúde, luz elétrica,
antenas parabólicas, ou seja, um quadro muito diferente daquele verificado nos anos
70 do século XX.
No processo de enfraquecimento da FUNAI, o Ministério Público Federal/MPF
desponta como agência mediadora entre o Estado e a sociedade (LOPES, 2000). É
a instância do Estado a quem os indígenas recorrem, seja como grupo ou
organizações indígenas. A instituição indigenista, cuja morte é tantas vezes
anunciada, às vezes se comporta como a Fênix. Construindo parcerias com as
organizações indígenas, ONG’s indigenistas, universidades e agências
internacionais, se recria à espera do novo perfil que poderá ter no futuro. Até o
momento, apesar das críticas, as organizações indígenas ainda apostam na
instituição permitindo que a mesma prossiga como um registro da necessidade de
existência de um órgão estatal que represente a face do Estado brasileiro ante os
assuntos indígenas.
Em suma, o capítulo procurou mostrar a complementaridade existente entre
as duas políticas onde as organizações indígenas afetam o órgão indigenista, mas
também são afetados pelas reformas e mudanças no Estado (MARCH e OLSEN,
1984).
Os Capítulos IV e V trataram, respectivamente, da educação escolar indígena
e das terras indígenas, pretextos escolhidos para refletir sobre o tema dos direitos
indígenas. No Capítulo IV a educação bilíngüe e intercultural foram tratadas como
sendo exemplos de busca da equidade social. Educação em todos os níveis,
garantia de acesso e permanência tem sido a reivindicação de organizações de
professores indígenas, que encontram eco no discurso das autoridades de ensino. A
avançada legislação escolar indígena se revela pouco funcional, em razão da
estrutura social do país, solidificada no monoculturalismo, retirando o véu quando se
confronta com a exigência de tomadas de decisão, como ocorre com as Ações
Afirmativas que dividem opiniões, espelhando as dificuldades do multiculturalismo
brasileiro, mostrando o quanto é soturno o racismo brasileiro.
Foram também identificados constrangimentos em diferentes áreas que
atrapalham o fluxo da política de educação: dificuldades nos diferentes níveis da
administração pública federal, estadual e municipal; a injunção das políticas locais
estaduais e municipais, cujos apelos partidários terminam por deixar de lado a
capacidade técnica, fomentando a cultura do rodízio de técnicos, contribuindo para a
descontinuidade das políticas públicas, acarretando embargos em diversos projetos
educacionais; simples reprodução das políticas em nível estadual e municipal, o que
significa desconhecimento por parte dos poderes locais da realidade indígena; fraca
ou quase nenhuma consulta aos grupos indígenas locais, exceto onde há
organizações com certo peso político; problemas orçamentários, na forma de cortes
ou dotações inexpressivas nos Planos Plurianuais dos Estados (PPA), situando a
educação escolar indígena em segundo plano nos estados e municípios.
A existência de terras indígenas tem sido o calcanhar de Aquiles na relação
Estado/Índios, em razão dos interesses econômicos de diversos grupos e do próprio
Estado. O Capítulo V procurou mostrar que os direitos territoriais são os mais
ameaçados, o ponto de maior tensão entre índios e demais atores sociais, sendo a
defesa da terra, de seu território, um dos símbolos da identidade enquanto povo
detentor de uma história e de uma cultura.
Apesar do que estabelece a Constituição de 1988, no Artigo 231, parágrafo 2,
de que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse
permanente, do reconhecimento dos direito originários e substituição da noção
presente no Estatuto do Índio, há diversas proposições de parlamentares na Câmara
dos Deputados com pretensões de mudanças atinentes às terras indígenas,
principalmente por parte da bancada de Roraima.
O conceito de terra indígena como ocupação tradicional retirou a idéia de
tempo de existência, substituindo-a pela noção de lugar onde um povo vive, onde se
reproduz física e culturalmente. Apesar dos avanços das demarcações, que estão
em torno de 411 terras indígenas, segundo o ISA (2005), a vigência do decreto
1775/96, que permite a contestação, é a nuvem negra sobre o horizonte fundiário
indígena. As pressões no entorno dessas terras representadas pela existência de
fazendas, assentamentos do INCRA, estradas que cortam as terras indígenas ou
são limítrofes, projetos hidrelétricos, produzem mudanças estruturais nas
populações indígenas que nelas habitam. A pressão fundiária é tão intensa que o
moto da discussão não está mais circunscrita à demarcação, mas também na
sustentabilidade dessas terras, nas condições de vida das populações humanas,
sobrevivência da floresta, do que resta da fauna, dos recursos hídricos, enfim, do
patrimônio cultural desses povos. Segundo a avaliação do movimento indígena
através da carta que resultou da Mobilização Indígena Nacional, realizada em abril
de 2005, falta vontade política ao governo para regularizar as terras indígenas,
aliadas à ausência de representação indígena nos assuntos que lhes dizem respeito.
Segundo os dados do Instituto Socioeconômico/INESC (2003-2005), houve corte
representativo nas verbas destinadas à proteção e gestão das terras indígenas, o
que significa impedimentos ao etno-desenvolvimento, facilitando invasões,
negociações escusas pelos próprios indígenas, obstrução de projetos de outras
agências governamentais.
Em que um estudo como este pode ser útil para os indígenas e suas
organizações, estudiosos da questão, ou técnicos que estão trabalhando em
projetos de intervenção junto às populações indígenas? Foi pensando na
possibilidade de alguma utilidade, tendo em vista a pouca divulgação dos assuntos
indígenas, inclusive entre estudantes interessados na questão indígena, que
tecemos algumas considerações a título de recomendações:

a) Criar oportunidades de participação política indígena em diversos


fóruns e a garantia da representatividade;
b) Criação de cursos específicos pelo poder público de capacitação,
algo como “escola de governo”, possibilitando condições para
formação política de parlamentares indígenas;
c) Buscar mecanismos que possam agilizar os preceitos legais,
garantindo os direitos indígenas;
d) Ampliar os estudos sobre as políticas étnicas, buscando as variantes
nacionais, bem como, estudos comparativos com outros estados
nacionais;
e) Realizar estudos avaliativos interdisciplinares das políticas
indigenistas, bem como dos poderes estatais;
f) Favorecer maior divulgação da temática indígena como assunto que
faz parte da vida política e não apenas um tema exótico.
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