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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

ANDRÉ HENRIQUE DOS SANTOS FRANCISCO

SEX TAPES:
Questões de corporalidade, performance e masculinidade numa etnografia de um fetiche

Niterói, RJ
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

ANDRÉ HENRIQUE DOS SANTOS FRANCISCO

SEX TAPES:
Questões de corporalidade, performance e masculinidade numa etnografia de um fetiche

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito à
obtenção do título de Mestre em Antropologia.

Orientadora: Drª Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto

Niterói, RJ
2015
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

F818 Francisco, André Henrique dos Santos.


SEX TAPES: questões de corporalidade, performance e
masculinidade numa etnografia de um fetiche / André Henrique dos
Santos Francisco. – 2015.
135 f. ; il.
Orientadora: Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto.

Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal


Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento
de Antropologia, 2015.
Bibliografia: f. 124-135.

1. Pornografia. 2. Sex tapes. 3. Masculinidade. 4. Gênero. 5. Corpo.


I. Pauletto, Lygia Baptista Pereira Segala. II. Universidade Federal
ANDRÉ HENRIQUE DOS SANTOS FRANCISCO

SEX TAPES:
Questões de corporalidade, performance e masculinidade numa etnografia de um fetiche

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da


Universidade Federal Fluminense, como requisito à obtenção do título de Mestre em
Antropologia.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________

Profª Drª Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto (Orientadora)

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________

Profª Drª Simoni Lahud Guedes (Examinadora Interna)

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________

Prof Dr Bruno Dallacort Zilli de Jesus (Examinador Externo)

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

_________________________________________________________

Prof Dr Jair de Souza Ramos (Examinador Suplente Interno)

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________

Profª Drª Sílvia Aguião Rodrigues (Examinadora Suplente Externa)

Universidade Estadual do Rio de Janeiro


#GRATIDÃO

A Deus - seja ele/a qual divindade ou força for - agradeço por me prover a
energia necessária para seguir em frente, com esse trabalho e com a vida.
À minha família - especialmente minha mãe, Therezinha - agradeço pelo apoio e
encorajamento constante no caminho que resolvi seguir. O amor de vocês é um grande
alimento.
À minha orientadora, Lygia Segala, agradeço pela acolhida generosa, pelas
palavras sábias e pela coragem de encarar esta tarefa junto comigo.
Ao PPGA – professores, alunos, funcionários... amigos - agradeço por direta ou
indiretamente terem contribuído para a minha formação e para a confecção deste
trabalho. Um abraço especial para Simoni Lahud, Luiz Rojo e Laura Graziela Gomes,
pelos textos, discussões, sugestões etc. Até no carinho vocês contribuíram.
À Maria Elvira Díaz-Benítez e Ana Lúcia Ferraz, agradeço a generosidade com
que me trataram, não apenas na banca de qualificação de projeto, mas em todo o trajeto
dessa pesquisa.
À Iracema Teixeira e Izabel Nuñez, agradeço pela amizade sempre atenta, pelo
incentivo a buscar cada vez mais conhecimento e por me direcionarem para a
Antropologia.
Aos colegas do Núcleo de Estudos de Corpo e Gênero (UFF/NECGen), Núcleo
de Estudos (UFF/NEX) e Núcleo de Estudos (NuSEX), novas fontes de conhecimento,
de onde tive o prazer de beber. Um abraço mais apertado na Mariana Baltar, na Sara
Sousa e no Victor Hugo Barreto, por sugestões e críticas inestimáveis.
Aos colegas do mestrado, agradeço por caminharem junto comigo até aqui.
Espero que, juntos, todos caminhemos para ainda mais longe!
Nominalmente, agradeço a Aline Ribeiro, Ana Beatriz Cunha, Ana Carolina
Fernandes, Larissa Barcellos, Leticia Marques Camargo, Márcia Mesquita, Natalia
Sales, Suellen Correa, Rafael Velasquez e Thaís Chaves Ferraz, pelas leituras atentas
dos meus textos chatos, por brincarem comigo de massinha e playmobil, por me
acompanharem nos karaokês da vida, por comprarem doces e pornografia para mim,
pela companhia nos pontos de ônibus e nas dancinhas no meio da rua, pelos rabiscos no
cimento fresco, por racharem a pizza baratinha, por todas as conversas, sugestões,
ideias, pelas incontáveis horas de apoio, de risos e de choros, que só me fizeram
perceber que estou no caminho certo, acompanhado das pessoas certas.
Aos amigos da Dataprev, agradeço pelo incentivo e ao ‘apoio logístico’ que me
proporcionaram para que eu pudesse realizar essa caminhada.
À Pollyanna Assumpção, agradeço pelo empenho extraordinário em buscar
possíveis entrevistados para esta pesquisa. E a AfroDotado, Edu, Kinkynoki,
MachoAtivoRio e SaJoao, pela coragem de se abrir e se expor tão a fundo nas
entrevistas que nortearam essa pesquisa.
À Vanessa Ortega, Renato Veríssimo e Tati Leite, agradeço o carinho e o ‘apoio
técnico’ que me proporcionaram.
To Marina Borges, thanks a lot for all efforts and those necessary words... in
English!

A todos vocês, que torceram por mim, agradeço!


RESUMO

Os avanços tecnológicos, especialmente os mais recentes, propiciaram uma


maior facilidade de circulação e de acesso a diversos produtos culturais. A pornografia é
uma expressão cultural e, como tal, se apresenta nos diversos elementos da cultura
material e imaterial. Dessa forma, sua difusão e consumo se beneficiaram dessas
facilidades proporcionadas pela tecnologia.
A pornografia imbui-se de um caráter subversivo ao trazer à tona o sexo – um
assunto de ‘bastidores’ - e promover um discurso acerca da sexualidade diferente do
socialmente estabelecido. Além de possibilitar alcance a esse discurso antes ‘indizível’,
as mudanças tecnológicas – num contexto de maior abertura para se tratar de sexo na
sociedade – possibilitaram também a facilidade de produção e circulação de material
pornográfico caseiro, notadamente as sex tapes.
Se partimos do princípio que a sex tape representa uma pornografia de cunho
mais íntimo e pessoal, mais conectada com a realidade do público (posto que é o
espectador que a produz), além de possibilitar um discurso libertário, são produzidas
imagens de corpos, performances e masculinidades diferentes do padrão estabelecido e
socialmente aceito.
Ao entender o comportamento como uma construção social e a pornografia
(tradicional ou caseira) como um produto cultural, podemos entender que as sex tapes
tratam-se de um importante objeto de estudos, especialmente no que tange ao
comportamento sexual humano.
Analisando essa produção caseira, em comparação com os produtos clássicos do
pornô tradicional (produzido sob medida, de acordo com as noções e orientações
estabelecidas pelo mercado), podemos buscar uma maior compreensão das relações que
se estabelecem entre a pornografia e a construção de padrões de comportamento, de
identidades, de imagens e corporalidades, de performances e performatividades.
Dessa forma, ao analisarmos as entrevistas de pessoas que se engajaram em sex
tapes – ou seja, espectadores que se tornaram agentes/produtores – podemos tentar
desvelar aspectos dessa produção dessas imagens, corpos e práticas, buscando entender
as diversas questões e noções de masculinidades, corporalidades e performances que
afloram desse pornô pessoal grafado/desenhado na tela.

Palavras-chave: pornografia, sex tapes, masculinidades, gênero, corpo


ABSTRACT

Technological advances, especially the latest, have provided a greater ease for
the circulation and access to diverse cultural products. Pornography is a cultural
expression and as such presents the various elements of the material and immaterial
culture. Thus, its dissemination and consumption have benefited from these facilities
provided by technology.
Pornography fills in with a subversive character when it brings up sex - a
‘backstage’ subject - and promotes a discourse about sexuality different from the
socially established one. Besides enabling reaching this speech, which was
‘unspeakable’ before, technological change - in a context of greater openness to deal
with sex in society - has also enabled easier production and circulation of homemade
pornographic material, notably sex tapes.
If we assume that sex tapes represent pornography of a more intimate and
personal nature, more connected to the reality of the public (since it is the viewer that
produces it), besides allowing a libertarian discourse, they are produced images of
bodies, performances and masculinities different from the established and socially
accepted standard.
By understanding the behavior as a social construction and (traditional or
homemade) pornography as a cultural product, we can understand that sex tapes are an
important object of study, especially concerning human sexual behavior.
Analyzing this homemade production, compared with the classical products of
traditional porn (produced customized, according to the notions and guidelines set forth
by the market), we can seek a greater understanding of the relationships established
between pornography and the building of behavior, identity, image and corporeality,
performances and performactivities standards.
Thus, when analyzing the interviews of people who engaged in sex tapes - i.e.
viewers who have become agents/producers - we can try to reveal aspects of this
production of images, bodies and practices, seeking to understand the various issues and
notions of masculinities, corporealities and performances that outcrop this personal porn
spelled/drawn on the screen.

Keywords: porn, sex tapes, masculinities, gender, body


SUMÁRIO

PRELIMINARES (ou ‘Introdução’) ....................................................... página 09

LUZ NA COXIA:
A pornografia em cena e seus bastidores ................................................. página 19

MASCULINIDADES E PORNOGRAFIA:
Um mesmo roteiro, um elenco diferente .................................................. página 53

SHOWTIME:
Uma câmera na mão, muitas ideias na cabeça ........................................ página 76

CLÍMAX (ou ‘Considerações finais’) ...................................................... página 116

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................. página 124


PRELIMINARES:
Uma breve introdução

“A ciência nunca resolve um problema sem criar pelo menos outros dez”.
- George Bernard Shaw –

Era uma vez um jovem que queria entender um monte de coisas da vida. Sua
vontade de compreender melhor a sociedade a sua volta o levou a estudar ciências
sociais. Por estar habituado a observar a si mesmo e o(s) outro(s), a buscar entender
comportamentos, certo dia, o jovem decidiu fazer mestrado em antropologia... E assim
começa minha história.
Há algum tempo – não muito, coisa de poucos meses – eu participava
esporadicamente de um grupo de estudos sobre sexualidade. O grupo era
multidisciplinar, formado por profissionais de diversas áreas ligadas à sexualidade:
psicólogos, urologistas, cirurgiões, educadores sexuais etc. Cada reunião versava sobre
um tema, baseado na especialidade de cada um dos participantes que se propunha a
apresentar. Aproveitando que um dos membros se inscrevera para falar sobre
relacionamentos virtuais, resolvi me inscrever também, para falar sobre pornografia e
internet numa das reuniões futuras. As expressões de surpresa, de excitação e mesmo de
assombro me chamaram a atenção. Vários membros desse grupo me interpelaram para
saber mais, para indagar sobre o assunto, para contar pequenas histórias e mesmo para
expor seus pontos de vista sobre os efeitos positivos e/ou negativos da pornografia.
De fato, nunca cheguei a apresentar nenhum tipo de trabalho nesse grupo de
estudos porque fui sendo sistematicamente afastado por seus organizadores: parei de
receber os e-mails com convocatórias e material para reunião. Mesmo quando eu
perguntava sobre as datas das reuniões ou questionava o não-recebimento do material,
recebia os textos com atraso, em cima da hora, até finalmente ser solenemente ignorado.
E, francamente, fiquei chocado – e aborrecido – que um grupo de pessoas tão
esclarecidas demonstrassem tamanho desprezo, preconceito ou necessidade de silenciar
um assunto que faz parte da nossa sexualidade, direta ou indiretamente.
Se dentro de um ambiente como esse núcleo de estudos, de forte vinculação
acadêmica e de comprometimento com o saber científico, o tema da pornografia foi
tratado com certas doses de silenciamento, suspeição e preconceito, acredito que a
receptividade em outros ambientes não seja muito melhor. Por ser um assunto que ainda

9
é tabu, há uma forte carga de preconceito incidindo sobre a pornografia. Mesmo dentro
da comunidade científica, a pornografia é tratada com certo descaso, ainda que
apresente uma forte vinculação com o comportamento humano (não apenas o
comportamento sexual, diga-se de passagem). Parece que a pornografia está relegada a
um segundo plano, como objeto de estudos, é tema de curiosidade, de espanto e de riso,
de comentários jocosos, provocações.
De fato, falar de pornografia é algo que sempre causa duas reações nas pessoas,
de maneira geral: curiosidade e estranheza. Tenho observado essas reações há alguns
anos, desde que a pornografia se tornou assunto do meu interesse, antes mesmo do
momento em que enveredei pelas searas das ciências sociais.
Desde muito jovem estive bem atento aos assuntos ligados ao sexo e ao
comportamento sexual. Longas conversas com amigos, a excitação de conseguir um
filme pornô, rodinhas para consumo e troca de imagens de sexo e nudez, as descobertas
das anatomias nos vestiários, tudo isso me era caro, me despertava interesse, me
suscitava opinar, a buscar saber mais.
À medida que colegas e amigos passaram a me confidenciar experiências e a me
procurar para tirar dúvidas, esclarecer questões, o que era só um hobby começou a se
delimitar como objeto de estudos. Tornei-me, então, educador sexual – oficialmente, um
sexólogo.
A necessidade de produzir um conhecimento mais específico sobre a relação
entre a pornografia e o comportamento sexual humano, porém, me direcionou para a
Antropologia. Ao entender o comportamento como uma construção social e a
pornografia como um produto cultural, nada mais adequado do que buscar
conhecimento numa ciência que estuda o homem e a humanidade de forma tão
multifacetada e interdisciplinar.
Por um sentido mais amplo, podemos entender a Antropologia como a ciência
que investiga as relações humanas e a cultura. Cabe a esta ciência estudar as interações
do ser humano com o seu próprio meio, seus costumes, suas práticas e representações.
A Antropologia busca compreender as relações humanas dentro do contexto no qual os
indivíduos se encontram, é uma ciência que produz um conhecimento sobre os
comportamentos humanos dentro das diferentes sociedades que se constituíram ao
longo do tempo e do espaço. De maneira ampla, meu interesse é buscar uma maior
compreensão das relações que se estabelecem entre a pornografia e a construção de

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padrões de comportamento masculino, de identidades, de imagens e corporalidades, de
performances e performatividades.
Ao me deparar com as experiências e questões dos amigos, se formava com mais
força na minha mente uma série de ideias e questões acerca da nossa vida sexual, do
nosso comportamento e da sua ligação com a pornografia. Há, de fato, uma ligação
entre a pornografia e nosso comportamento? A pornografia nos afeta tanto assim, a
ponto de produzirmos e reproduzirmos seus padrões?
Compreender a pornografia envolve fazer uma reflexão sobre seu surgimento
como qualidade e/ou como gênero libertino, sobre seus contextos de produção e
difusão, sobre o modo como ela afeta ou desafeta a nossa sexualidade, nossos
comportamentos, nossas fantasias; sobre como ela está ligada à moralidade, à liberdade,
à transgressão.
O objetivo desta dissertação é investigar a elaboração de tipos específicos de
corpos, performances e masculinidades expressos na produção da indústria da
pornografia mainstream1 e que se refletem na produção videográfica de pornografias
caseiras, representadas pelas sex tapes.
Para isso, foi preciso proceder a pesquisas de acervo e documental, porque falar
de pornografia é entender que, embora este conceito tenha surgido no século XIX como
herança direta da Renascença, ela está tão intimamente ligada ao nosso comportamento
social que sua representação (pictórica, imagética, textual etc.) acompanha toda a
experiência humana desde os tempos mais remotos.
Falar de pornografia é entender que ela se manifesta de diversas formas na nossa
sociedade, e que suas representações se encontram presentes no nosso cotidiano de uma
forma muito maior que imaginamos: para além das sex shops2, filmes da seção
específica na locadora ou das imagens pornográficas que circulam amplamente pela
internet, há representação do sexo na novela, nudez parcial ou total em revistas e filmes,
e mesmo nas insinuações de cunho erótico em músicas e danças.

1
Termo inglês usado nas artes para designar um pensamento ou gosto corrente da maioria da população.
Refere-se a algo comum, usual, familiar às massas, que está disponível ao público geral e/ou que tem
laços comerciais. Assim, o mainstream inclui tudo o que diz respeito à cultura popular, de maneira
especial refere-se a tudo aquilo que é disseminado principalmente pelos meios de comunicação de massa.
2
Sex shops são lojas – físicas ou virtuais - que comercializam produtos com finalidades sexuais, tais
como vibradores, bonecas infláveis, acessórios de sadomasoquismo, lingerie erótica, fantasias, filmes
pornográficos, preservativos, cremes, calcinhas comestíveis, entre outros produtos. As lojas físicas podem
estar equipadas com cabines para exibição de vídeos (onde podem ocorrer encontros sexuais, inclusive).
Algumas sex shops dispõem de estruturas mais elaboradas, de acesso pago, próprias para promover o
intercurso sexual entre seus clientes/frequentadores.

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Falar de pornografia é compreender que ela é uma expressão cultural, um
discurso sobre o sexo que se forma na fricção entre o livre pensamento e a proibição,
entre livre expressão e censura. Ao falarmos de liberdade e interdição, cabe apontar que
a pornografia tem um caráter libertário porque floresce justamente do embate com a
censura3. O conceito de pornografia surge com trabalhos textuais ou iconográficos os
mais diversos, empenhados em se opor à moralidade dominante, em transgredir a ordem
vigente (HUNT, 2010). Essas produções desafiam aos padrões socialmente aceitos e,
com isso, suscitam repressão, interdição e, é claro, novas formas de regulamentação
(MORAES, 2003).
A sociedade, de maneira geral, arbitra sobre os limites entre liberdade de
expressão e interdição e a pornografia não escapa de sua área de ação. A pornografia
assume um caráter subversivo por promover um discurso acerca da sexualidade que é
diferente daquele admitido que se quer transmitir. Na tentativa de evitar a difusão dessas
ideias transgressoras e subversivas, foram criados diversos órgãos públicos e sociedades
beneméritas que se responsabilizavam pela fiscalização e/ou apreensão de material
danoso à manutenção do status quo vigente. Há uma questão de legalidade, estabelecida
a partir de valores morais, em torno da produção e circulação da pornografia. A
distinção entre o que é ou não aceitável e, portanto, legalizado ou não, perpassa pela
distinção entre dois lados de uma mesma moeda: erotismo e pornografia.
O erotismo pode ser entendido como o conjunto de expressões culturais e
artísticas humanas referentes ao sexo. É algo que está ligado a Eros, o deus grego do
amor, da paixão, do desejo intenso. Pelo entendimento comum, “o erótico está
associado à sexualidade ‘limpa’, legal e organizada, já aceita por grupos socialmente
reconhecidos e com poder de fazer valer seus ideais e sentenças” (LEITE JR., 2008, p.
48). Já a pornografia é vista como algo que se relaciona à devassidão sexual,

3
Apontamos, aqui e ao longo desta dissertação, a pornografia como uma expressão cultural libertária e
transgressora. Cabe ressaltar que esta é uma concepção relativa, posto que a pornografia é considerada
libertária e transgressora, grosso modo, no sentido desse desvelamento do âmbito íntimo, dos
questionamentos que ela promove sobre privacidade, intimidade, legalidade, legitimidade, bem como da
crítica que ela pode promover ao status quo vigente. Embora não seja a intenção deste trabalho, devemos
apontar que, enquanto expressão cultural, a pornografia também pode reproduzir diversos elementos das
sociedades onde é produzida, ecoando, por exemplo, padrões de corpos e comportamentos que refletem
diversos espectros de repressão, de objetivação e de exploração, entre outros. O movimento pós-pornô,
por exemplo, tem com uma de suas bases a crítica à pornografia tradicional, apontando o quanto ela pode
ser conservadora, reacionária, machista etc. De acordo com Sarmet (2014, p. 02), “poderíamos dizer que
as obras, performances e ações pós-pornográficas têm em comum o desejo de desconstruir (ou ao menos
confrontar) o imaginário pornográfico e sexual vigente, a partir da representação de corpos, gêneros e
práticas sexuais historicamente marginalizadas, juntamente com a recusa dos discursos, estéticas e
narrativas tradicionais da pornografia comercial, heterossexualmente orientada”.

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obscenidade, licenciosidade e indecência: uma representação do sexo ilegítimo e
desestruturador dos valores estabelecidos.
Assim, a diferença entre o pornográfico e o erótico está nos conteúdos e formas
mostrados. O âmbito do erótico é demarcado pela expressão da sensualidade, enquanto
o pornográfico é tudo aquilo que é explícito e obsceno (PICAZIO, 1998). A pornografia
seria algo mais cru, mais explícito, mais despido de emoção, mais vulgar. Já o erotismo,
estaria mais ligado ao âmbito da emoção, da afetividade. Se formos traçar um paralelo,
a pornografia liga-se mais ao tesão e ao desejo, da mesma forma que o erotismo liga-se
à sensualidade. Essa separação entre um e outro é, na verdade, uma divisão entre aquilo
que é aceito e aquilo que é proibido dentro de uma realidade social ou numa cultura
específica. A pornografia e o mercado a ela associado se alimentam exatamente da
‘indefinição’.
Através do mercado é que as representações da pornografia, especialmente as
menos evidentes, se difundem no nosso cotidiano. Encontram-se disfarçadas ou
escamoteadas de modo a ‘caber’ nos padrões de moralidade socialmente aceitáveis. Há
uma grande variedade de produtos que podem ser considerados pornográficos: filmes,
revistas, livros, músicas, esculturas, objetos utilitários, roupas, programas de TV
(aberta, a cabo ou pay-per-view), empresas de disk-sexo, sites, salas de bate-papo e até
mesmo locais físicos como saunas, termas, casas de massagem.
Ao se desenvolver como indústria e construir um mercado legal, a pornografia
ramificou-se de forma rápida, alcançando atualmente, através das milhares de páginas
da internet consideradas pornôs, uma quantidade inimaginável de gêneros e categorias.
Se o avanço tecnológico permitiu o crescimento e popularização da pornografia,
encontramos também mudanças de mentalidade que permitiram que se falasse mais
abertamente sobre sexualidade – discursos antes ‘indizíveis’ - sobre a intimidade e a
privacidade, sobre a experiência pessoal do sexo.
Dessa forma, o contexto recente se mostrou favorável para o ‘boom’ das sex
tapes. Como são gravações caseiras de sexo, envolvem baixo custo de produção, cenas
rápidas que lhe dão mais dinamismo, pouca importância a uma história ou enredo,
privilegiando a ação a ser exibida na tela, pouca preocupação com a qualidade técnica
do material produzido e contando com ampla circulação.
Como tratam-se de produtos caseiros, sua linguagem parece ser bem menos
elaborada e preocupada com cânones e padrões estéticos do que os filmes pornográficos
tradicionais, produzidos em escala industrial. Numa analogia pobre, porém eficaz, as

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sex tapes podem ser entendidas como a linguagem coloquial, do ‘povão’, enquanto
pornografia mais tradicional – qualificada como mainstream - representaria a ‘norma
culta da língua’, o repertório qualificado diante do mercado.
Ora, o filme pornográfico - seja da grande indústria, amador ou caseiro4 - pode
ser entendido como um elemento pedagógico de construção e de reprodução de ideais
de corpo, de masculinidade, de performance e performatividade. Falar de pornografia
caseira é entender que esta trata-se de uma expressão cultural produzida por agentes
reais5, envolvendo corpos e práticas mais próximos desse realismo que se tornou uma
demanda do público espectador. A ideia mais comum sobre uma sex tape é de que ela é
a representação mais próxima do sexo real, justamente por ser produzida por um
espectador que transpôs as barreiras que o separam do papel de ator/agente do
intercurso sexual (a ser) registrado.
Se tomarmos essa afirmação, chegamos ao cerne deste trabalho: a indústria do
filme pornô está criando uma expressão de tipos específicos de corpos, performances e
masculinidades que se refletem nas práticas gravadas nas produções caseiras? Como os
comportamentos sexuais e os vídeos caseiros se apropriam dessas noções criadas e
estabilizadas na indústria do filme pornô? Quais seriam as particularidades das
gravações domésticas em sex tape?
Através da pornografia, podemos encontrar alguns caminhos para (re)pensar
diversas questões, inclusive algumas perguntas que norteiam este trabalho de pesquisa:
que corpos são percebidos no filme pornô? Como a(s) masculinidade(s) é(são)
percebida(s)? Quais são os papéis desempenhados pelos atores dos filmes? Qual a
expectativa que o consumidor cria a respeito da performance sexual com base nos
vídeos pornôs? Como tais percepções acerca da pornografia mainstream afetam e/ou
refletem numa sex tape, considerando o ponto de vista de quem produz e de quem
assiste?
Na busca por responder essas perguntas, falar de pornografia é algo que envolve
percalços. E percalços, inclusive, não faltaram no caminho deste estudo, desde a
delimitação de objeto até mesmo o reconhecimento de limitações minhas na realização
4
Cabe ressaltar que a gravação caseira de sexo é algo diferente da pornografia amadora, especialmente
porque esta última possui um apuro maior que a primeira, em termos de linguagem, estética e aspectos
técnicos de produção. Embora ‘caseiro’ e ‘amador’ não sejam sinônimos, nas entrevistas e em alguns
momentos desta dissertação, os termos foram utilizados indistintamente, como contraposição à
pornografia mainstream.
5
Neste caso, o real é definido em contraposição ao ficcional. Assim, a pornografia tradicional seria
encarada como uma expressão cultural mais próxima da ficção, enquanto a pornografia caseira teria um
compromisso maior com a representação da realidade.

14
deste trabalho – porque não é fácil ter que se despir de certas ideias e conceitos, ter que
desconstruir tanta coisa para poder construir esta dissertação.
Minha ideia inicial, para tratar dessa relação da pornografia com a construção de
ideias e imagens de masculinidades, corporalidades e comportamentos, era de
acompanhar a rotina de recrutamento de atores para os filmes do mainstream – através
da visão dos recrutadores, poderia chegar a noções sobre corpos, de masculinidade, de
expectativas de padrões de comportamento. Após conversas com estudiosos mais
experientes, fui desaconselhado a seguir por esse caminho, posto que a entrada no
campo compreenderia um processo muito mais longo do que os 24 a 30 meses
oferecidos pelo programa de mestrado.
Como essas questões ainda fervilhavam na minha mente, entendi que um
caminho mais rápido de acessar essas informações seria a utilização de entrevistas com
pessoas que já tivessem se engajado em algum tipo de atividade pornográfica,
preferencialmente que tivessem participado como atores de filmes pornôs. Há uma
circulação grande de ‘novos talentos’ na indústria pornô brasileira, que não parece ser
muito bem organizada quanto aos contatos com seus ‘astros’, ou então não parece ser
muito receptiva a lidar com os e-mails cansativos de estudantes de mestrado
interessados em pornografia.
Dessa forma, pensei em procurar pessoas que pudessem ter se engajado em
produções amadoras e fui atrás de michês6, pois imaginei que, como pessoas que
vendem sua força sexual como instrumento de trabalho, poderiam ter participado de
gravações de filmes pornôs amadores ou caseiros, ou mesmo que tivessem já posado
para fotos de arte erótica, por exemplo. Alguns dos michês com quem conversei – numa
conhecida sauna da zona sul do Rio de Janeiro, voltada especialmente para a promoção
da interação desses rapazes com potenciais clientes – admitiram ter participado de
alguns vídeos caseiros. Um dos michês – bastante falante, empolgado, que me pareceu
ser um bom interlocutor - até comentou ter participado de um pornô amador bem
produzido (quase profissional, como ele disse) e que, como esse filme teve uma boa
distribuição, acabou se ‘popularizando’, causando-lhe certos dissabores na comunidade
onde ele mora.
O que me chamou a atenção é que, sendo pessoas que trabalham com sexo e
mesmo tendo participado de vídeos de conteúdo sexual com total exposição de suas

6
Michê se refere ao profissional do sexo, aquele que presta serviços de ordem sexual mediante
pagamento - isto é, prostituição masculina.

15
performances sexuais, nenhum dos michês aceitou a proposta de entrevista. Apesar de
me confidenciarem vários detalhes de sua intimidade, mesmo com a garantia do
anonimato, nenhum deles se propôs a revelar esses mesmos detalhes em entrevista.
Seguindo essa linha, optei, então, por trabalhar com pessoas que tivessem se
engajado em algum tipo de gravação caseira. Optei por entrevistados que tivessem
gravado sex tapes justamente por se tratar de um tipo diferenciado de público
consumidor de pornografia: mais que espectadores passivos, eles também produzem seu
material.
Neste ponto, cabe ressaltar que a escolha por entrevistas se justifica porque a
possibilidade de estar presente na gravação da sex tape inviabiliza o campo: já que esse
tipo de vídeo caseiro envolve apenas os participantes da gravação, muito raramente um
‘voyeur’ (mesmo sendo um pesquisador) seria aceito. Tornar-me um ‘produtor’ de sex
tape me pareceu uma ideia interessante, mas também de difícil execução, pois
envolveria o consentimento de outras pessoas não só em participar da produção de um
tipo de pornografia, mas também de fazê-lo com o propósito acadêmico7.
Assim, além de trabalhar com entrevistas, me propus analisar o material
pornográfico caseiro produzido pelos entrevistados, bem como tentar fazer uma
contraposição ao trabalho de campo desempenhado com atores pornôs do circuito
mainstream – notadamente, com a pesquisa de Diaz-Benítez (2010) e também tomando
como base as experiências, relatos e conversas com colegas do Núcleo de Estudos do
Excesso nas Narrativas Audiovisuais (NEX/PPGCOM/UFF). No momento em que isto
foi definido, chegou a hora de por mãos à obra.
Falar de pornografia envolve falar de sexo. E falar de sexo é tocar em temas de
intimidade, algo que nem todo mundo se dispõe a fazer. É até surpreendente a
quantidade de pessoas que participaram de gravações de material pornográfico – e que
tiveram coragem para expor visualmente suas práticas sexuais - mas que, no entanto, se
esquivaram ou se negaram – até veementemente - a conversar sobre essas experiências,
mesmo com a garantia do anonimato. E isso não ocorreu somente com os michês da
sauna. Pude notar isso especialmente entre as pessoas que procurei em busca de
entrevistas para este trabalho.

7
Destaco ainda que essa questão da participação e do consentimento é algo apontado por vários
entrevistados: uma certa dificuldade em encontrar pessoas dispostas a se engajar na ação/produção de
uma sex tape. Maior do que essa dificuldade, foi apontada também a resistência dos participantes em
consentir que seu material se torne público, mesmo com garantias de anonimato. Se já foi difícil encontrar
quem se dispusesse realmente a falar sobre suas experiências, imagino que as dificuldades encontradas
pelos entrevistados para conseguir estes parceiros sejam as mesmas.

16
Como escolhi não trabalhar com pessoas que já tivessem um certo
‘reconhecimento’ como produtores de vídeos caseiros, comecei a procurar ‘anônimos’
em grupos secretos do Facebook que falavam sobre sexo. Após algum tempo
observando a dinâmica de participação nesses grupos, comecei a sondar alguns
participantes, mas nenhum deles se mostrou receptivo a participar de entrevistas.
Como a abordagem direta não surtiu resultados, passei a perguntar nos murais
dos grupos quem estaria disposto a participar de uma entrevista aberta sobre sex tapes,
garantindo o anonimato do entrevistado. Continuei sem obter respostas. Mesmo quando
pedi que me indicassem possíveis entrevistados, o silêncio a respeito das minhas
solicitações continuava imperando, e as pessoas continuavam a interagir virtualmente
nos grupos, ignorando completamente minhas postagens/pedidos.
Por fim, somente quando divulguei no meu perfil pessoal do Facebook as
minhas intenções de pesquisa e minha necessidade de conseguir entrevistados é que
encontrei gente realmente disposta a falar – bem como apoio, indicações, sugestões.
Como o objetivo principal deste trabalho é de captar a percepção do
produtor/espectador acerca do filme pornográfico e de entender como este afeta o
comportamento sexual masculino, delimitei um pequeno ‘grupo de referência’ para
investigação. O grupo envolve pessoas que já se engajaram na produção de uma sex
tape. A proposição metodológica é de estudar alguns casos em profundidade, através de
conversas informais, entrevistas abertas, análise dos trabalhos realizados8. Para atender
aos objetivos da pesquisa, era preciso que as entrevistas, de fato, funcionassem mais
como uma conversa informal entre dois interlocutores do que um modelo rígido ou mais
formal de contato e troca de informações.
De um amplo universo – de amigos, de amigos de amigos, de gente conhecida
ou não – foi possível selecionar incialmente doze indivíduos que se dispuseram a falar
sobre suas experiências com gravações caseiras. Após uma breve triagem, foram
finalmente selecionadas cinco pessoas, não apenas por sua coragem e disponibilidade,
mas também por sua variedade de histórias, de experiências, de motivações. Pessoas
que se dispuseram a falar de uma pornografia que lhes é muito própria.

8
As garantias de anonimato incluíam o uso apenas de material autorizado pelo entrevistado. A indicação
de sites próprios dos entrevistados foi autorizada pelos mesmos. De forma semelhante, as imagens
utilizadas foram fornecidas pelos próprios entrevistados e utilizadas com sua autorização. Nas
transcrições de entrevistas, a pedido de alguns entrevistados, foram suprimidos trechos que revelassem
sobre suas identidades. Com relação aos pseudônimos, foram escolhidos pelos entrevistados e adotados
nesta dissertação. Como há referências nas entrevistas a outras pessoas, os nomes delas também foram
substituídos por pseudônimos nas transcrições, como medida de proteção de suas identidades.

17
O objetivo primordial desse estudo é discutir uma pornografia íntima e pessoal,
comparada a uma pornografia tradicional e industrial, para desvelar uma relação de
construção de corpos, performances e masculinidades voltados para uma busca
incessante do prazer, seja ele consumido ou produzido.
Falar de pornografia é trazê-la dos bastidores para o centro da cena. Assim, o
primeiro capítulo desta dissertação tem como proposta lançar uma luz sobre as coxias
ao falar da pornografia no sentido de conceituá-la, contextualizar seu surgimento,
florescimento e entender sua relação com a sociedade. Uma relação conturbada – porém
deliciosa - que envolve expressão e silenciamento, liberdade e censura, jogos de poder e
uma moralidade que condena a pornografia à marginalidade e ao ocultamento.
Quando entendemos que corpos, performances e masculinidades estão
relacionados à representação de um mesmo script com diferentes elencos, falar de
pornografia é tentar entender quais são os roteiros, as coreografias, os figurinos e os
desempenhos que os atores devem encenar. No segundo capítulo, partiremos do
princípio de que corpos e performances masculinas são construções baseadas nos
modelos socialmente estabelecidos. E, assim, a intenção é entender como se processa a
difusão desses modelos através da pornografia e a apropriação que os sujeitos fazem
desses padrões, de modo a (re)produzi-los em sua vida cotidiana e mesmo em
performances nos vídeos caseiros.
Pornografia implica em pornô-grafias: com uma câmera na mão e muitas ideias
na cabeça, o espectador deixa seu papel de consumidor passivo para se tornar um
produtor, sendo que seus produtos – as gravações caseiras de sexo – representam uma
pornografia pessoal. No terceiro capítulo, tomando como base as entrevistas dos
produtores de sex tapes, o objetivo foi o de proceder uma análise de questões de
masculinidades, corporalidades e performances que afloram na produção dessas
imagens, corpos e práticas, desse pornô pessoal grafado/capturado na tela.

18
LUZ NA COXIA:
A pornografia em cena e seus bastidores

“Enquanto isso, eu procuro minha pornografia íntima...”


- Berzek -

Quando se fala em Inferno, o que a mente das pessoas evoca? Um lugar de


danação e sofrimento eternos para as almas pecadoras? Um ambiente de tortura e
suplício, de tormenta espiritual? Um local cheio de demônios ou outras entidades
assustadoras? Algo cheio de fogo e enxofre? Um lugar feio, sujo, habitação eterna de
depravados?
Entende-se que Inferno é um conceito criado em oposição à ideia de Paraíso,
estabelecendo-se, assim, uma ligação extrema e dicotômica entre ambos. Paraíso,
enquanto lugar perfeito, envolve tudo aquilo que é bom, aprazível e delicioso. O Inferno
é seu oposto. Inclusive, por isso, o Inferno é usado figurativamente para nos referirmos
a coisas desagradáveis, à balbúrdia e confusão, ou ainda a uma vida atribulada,
desassossegada e dolosa.
Mesmo orientada por noções religiosas ou literárias, a ideia (e mesmo a
experiência) de Inferno é algo pessoal. Para muitos, a ideia é de que o Inferno é um
lugar físico, em que se chega, condenado, depois da morte, como bem apresentou Dante
na sua Divina Comédia. Para outros é um estado presente de danação íntima, de
autoflagelo, de angústia depressiva, de psicopatia1 ou ainda situação individual ou
coletiva radical de desordem social e de privações. Nas perspectivas várias, apropriadas
de formas diversas nas práticas ordinárias e extraordinárias da vida cotidiana, definem-
se situações limites, liminares.
Em 2007, a Bibliothèque national de France (Biblioteca Nacional da França, ou
simplesmente BnF) inaugura uma grande exposição, a partir do seu acervo, que
mobilizou especialmente a crítica de especialistas, intitulada L’Enfer de la Bibliothèque:
Eros au secret (‘O Inferno da Biblioteca: Eros em Segredo’, numa tradução livre). Nela
apresenta um segmento particular da biblioteca, o Inferno, conservado na Reserva de
Livros Raros, e protegido do olhar comum. Criado em 1830, na então Biblioteca Real,

1
É instigante, a respeito da psicopatia, o texto de Sedeu (2013), que apresenta uma abordagem
psicanalítica da personagem ‘Jack, o Estripador’ como apresentado no filme Do Inferno. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-
94792013000100015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 08/08/2015.

19
foi guardando imagens e textos ditos suspeitos e indecentes, de “leitura perigosa”,
expressões “contra a moral e os bons costumes”. Desde então, tornou-se um “lugar
mítico, objeto de todas as curiosidades e de todos os fantasmas”.2 Reunia, desde textos
considerados obscenos de Pietro de Arentino (século XVI) aos romances libertinos do
século XVIII. A coleção se alarga no século XIX, incluindo séries de gravuras e
fotografias pornográficas e vários livros, frequentemente anônimos ou sob pseudônimo,
que circulavam, no período, furtivamente. Do século XX, o Inferno recebeu livros de
autores como Guillaume Apollinaire, Aragon, George Bataille, Jean Genet, Pierre
Guyotat que, não raro, tiveram problemas com a crítica e a censura. Escritos do
Marques de Sade, tratados como de ‘subversão radical’, ‘envolvendo volúpia, desejo e
crime’, nos oitocentos, entre outros tantos títulos, estavam também aí alinhados 3.
Não importa aqui detalhar autores e títulos, mas antes sublinhar o modo pelo
qual estas publicações do Inferno foram tratadas e representadas. A ideia de Eros em
segredo, presente no título da exposição, realça os sensos de apartação, acusação,
proibição e desejo que recortam e qualificam essa produção gráfica e editorial, ela
mesma voltada, por vezes, à atmosfera atabafada construída como licenciosa dos ‘lieux
clos’ (numa tradução livre, são lugares fechados, reservados), os boudoirs, bordeis,
conventos, prisões. O voyeurismo se define por relatos em primeira pessoa ou pelo olhar
seleto, escondido, mas insinuado nas imagens, através da porta entreaberta, da fresta
atrás da cortina, do buraco da fechadura. A própria ideia do ‘obsceno’ pode ser
entendida como a negação de uma corruptela do vocábulo scena (algo que está à
mostra). Indica o que é de mau agouro, o que não se expõe, o que está ‘fora de cena’. O
exibir e o olhar são clandestinos.
Existe também um Inferno na Biblioteca Nacional (BN)4, no Rio de Janeiro,
Trata-se de um conjunto de obras condenadas, especialmente livros e outros escritos que
foram considerados ofensivos, heréticos ou... pornográficos. Alguns desses livros,
inclusive, marcam presença na coleção somente pela (má) fama de seus autores.
A ideia do Inferno é de preservar obras textuais e iconográficas que, num
determinado ponto do tempo e do espaço, se tornaram impróprias para o consumo
social. Ou seja, como na França, são imagens e sobretudo de escritos que, de alguma

2
Ver Dossier de l’Exposition: L’Enfer de la Bibliothèque. Bibliothèque national de France 2007; Érotisme
et pornographie. Revue de la Bibliothèque national de France no 7, 2001.
3
O Inferno da Biblioteca Nacional da França foi extinto em 1969.
4
Foi publicada uma matéria sobre o ‘Inferno’ da Biblioteca Nacional no Jornal O Globo, que pode ser
acessada através do link: <http://oglobo.globo.com/cultura/quem-arde-no-inferno-da-biblioteca-nacional-
16655474#ixzz3fDdY1sxJ>. Acesso em 05/07/2015.

20
forma, dentro de um momento específico, foram classificados como indecorosos ou
mesmo ameaçadores para a sociedade.
Devido às suas características, essas obras foram escondidas, espalhadas em
diversos setores da biblioteca, para que pudessem sobreviver ao poder da censura e da
interdição, preconizadores do esquecimento, do controle ou da destruição. Assim,
podemos inferir que o Inferno da BN não é necessariamente um lugar físico e
específico, mas sim algo abstrato: é uma filosofia, uma mentalidade.
A grande questão do Inferno envolve, justamente, mentalidades e costumes.
Muitas obras são antigas mas tratam de bandeiras atuais: homossexualidade, legalização
da prostituição, direitos das mulheres, questões raciais/étnicas, entre outras. Por conta
de seu conteúdo ‘impróprio’, tais obras sofreram com perseguição, condenadas ao
esquecimento do Inferno para não parar na fogueira da destruição.
No Inferno da BN, há, ainda, casos de obras que foram condenadas por questões
políticas, como o livro “O mundo da paz”, de Jorge Amado, sobre sua viagem à URSS,
que fez o escritor baiano ser processado pela Lei de Segurança Nacional. É um exemplo
claro de que a interdição é expressão contextual de poder e regulação.
Por que, então, os escritos pornográficos acabam fazendo parte daquilo que deve
ser escondido, estar fora de cena? Que motivos levam uma obra a ser considerada
pornográfica e, dessa forma, condenada ao Inferno da BN, ao esquecimento ou mesmo à
inexistência?
O Inferno da BN é um bom exemplo de que as sociedades se transformam, que
interesses e ideias mudam: o que antes era considerado perigoso e proibido (e, portanto,
necessitava ser escondido/disfarçado para assegurar sua existência futura), passa
gradativamente a se tornar algo socialmente mais aceitável, mais ‘palatável’ (e, assim,
com mais liberdade de circulação).
O caminho contrário também é válido, ou seja, o status de liberdade conferido à
circulação de certos escritos, imagens e ideias pode sofrer algum tipo de censura ou
interdição. A pornografia costumeiramente se torna algo condenável, então, por regras
de moralidade e pela vigência da legalidade5.

5
Os artigos 233 e 234 do Código Penal Brasileiro apontam uma criminalização da exposição pública de
atos, escritos e objetos ‘obscenos’, através da venda, da distribuição, de representação teatral ou exibição
teatral (ou, ainda, qualquer outro espetáculo). Transpor tais obscenidades para um lugar (acessível ao)
público é algo passível de penalidades, desde multas à reclusão. Para maiores informações, consultar link:
<https://pt.wikisource.org/wiki/C%C3%B3digo_Penal_Brasileiro/Parte_Especial/T%C3%ADtulo_VI/Ca
p%C3%ADtulo_VI> (Acesso em 10/08/2015).

21
Em termos de moralidade, a noção do que é ou não é moralmente aceitável é
algo que se modifica através de tempo e também entre as diferentes culturas. Cada
sociedade, em determinada época, compreende diversas obras – produzidas dentro desta
mesma cultura ou não - como algo que ameaça seus costumes, sua moral.
A própria noção do que pode ou não ser considerado material pornográfico é
algo variável. O que é considerado como pornográfico na atualidade pode não sê-lo
dentro de algumas décadas, anos ou mesmo dentro de meses. O que é entendido como
obsceno dentro da cultura ocidental é diferente da concepção de obscenidade dentro da
cultural oriental. Inclusive, essas diferentes concepções podem ocorrer dentro de uma
mesma cultura, de uma mesma região e até mesmo dentro de unidades familiares.
Um exemplo disso é a questão da exposição do (próprio) corpo. Em diversos
países da Europa, a prática do topless na praia é comum. No Brasil, embora tal prática
seja socialmente tolerada por muitos grupos, ainda pode ser considerada um ‘ato
obsceno’ (criminalizado, passível de penalidade). Que se dirá, então, das culturas
muçulmanas atuais, que solicitam às mulheres que usem pesadas burcas cobrindo seu
corpo quase inteiramente – tornando obsceno, impróprio ou pornográfico tudo aquilo
que fica coberto: braços, tornozelos, joelhos...
Essa mudança na percepção do que é pornográfico ou não pode ser observada
também dentro de uma mesma sociedade, em momentos diferentes. Se hoje, por
exemplo, podemos ver beijos ardentes nas novelas sem sentirmos o mínimo de pudor,
na década de 1950 o primeiro beijo televisionado causou furor e protesto, sendo taxado
por muitos como obsceno (MORAES & LAPEIZ, 1985).
Além disso, “vale dizer que a dança do maxixe, o teatro de revista, as peças de
Nelson Rodrigues (1912-1980), o chamado ‘funk carioca’ e mesmo a obra de William
Shakespeare (1564-1616), em algum momento, já foram chamados de ‘pornográficos’”
(LEITE JR., 2008, p. 50).
Até mesmo dentro da família – vista como uma das menores unidades de
convívio social – podemos encontrar diferentes ideias a respeito do que pode ser
chamado de comportamento indecente.
Dentro de casa, no ambiente familiar, alguns comportamentos são permitidos e
incentivados, enquanto outros são seriamente refutados. É o caso de famílias que
recriminam seus membros por andarem sem roupa dentro de casa: dentro desta pequena
realidade de convívio social, um ou mais membros se sentem incomodados com tal

22
comportamento, por considerar que a exposição do corpo do outro é algo ofensivo à sua
moral própria.
Podemos apontar, por exemplo, que discursos a respeito do sexo, da sexualidade
e da prática sexual quase sempre tiveram um status de tabu dentro da cultura ocidental,
fortemente marcada pela tradição judaico-cristã. Sob essa perspectiva, à pornografia era
(e ainda é) atribuído um caráter de imoralidade, de impureza, de sujeira, de... Inferno!
E não foram poucos os esforços empreendidos para erradicar ou, ao menos,
coibir a pornografia. O viés mais recente, no entanto, pretende dominá-la – e esta
dominação se dá inclusive pela força da lei.
Tudo aquilo que potencialmente ameaça um status quo estabelecido deve ser
controlado, regulado ou então banido. Por isso que a aceitação ou condenação de (tipos
de) pornografia é algo que envolve uma questão de legalidade: construída com base na
moralidade e mentalidade da sociedade, a legislação determina aquilo que pode ou não
ser aceito, quais materiais podem ter liberdade – total ou restrita – de circulação ou
quais devem ser condenados ao esquecimento, à inexistência, à categoria ‘X’6.
Definir o que é pornografia perpassa pela oposição circunstancial entre o aceito
e o proibido. Perpassa, então, pela trajetória, através de séculos de história da
experiência humana, de construção daquilo que pode ou não ser mostrado, falado,
comentado. “Definir pornografia é, portanto, falar sobre transgressão. Mas significa
também falar de sua maior contraparte ao longo de sua história: a censura”
(FRANCISCO, 2012).
Desse modo, a pornografia se define em função dos esforços de proibi-la,
controlá-la ou mesmo de regulamentá-la. Então, além de se definir em contraposição à
ordem vigente e à censura, a pornografia é categorizada pelo seu caráter questionador.
Ela emerge como um mecanismo de crítica social e política, de questionamento de
costumes e padrões (HUNT, 1999). A pornografia surge tanto para chocar e como para
gozar e divertir.
Assim, o conceito de pornografia, tal como o entendemos atualmente, se forma
na oposição entre o livre pensamento e proibição, entre livre expressão e censura. A
censura caminha de mãos dadas com a pornografia ao longo de sua história.
Pode-se dizer que a pornografia, enquanto manifestação transgressora, se
alimenta da proibição. Se entendemos que o erótico se define e se legitima pela

6
Nos anos 1970 foi criada a classificação ‘X’ para filmes pornográficos, aqueles que registravam sem
simulacro nem trucagem atos sexuais. Cf. ELLEZAM (2001, pg. 76).

23
sensualidade do segredo (ou seja, algo que não está claro, que está escondido ou
escamoteado), a tentativa de desvendá-lo é sempre transgressora. E transgressão “é um
ato cultural: só ela pode dar sentido à proibição. Se a pornografia é uma das formas
organizadas de transgressão, ela ultrapassa sua própria ordenação ao anunciar algo que
lhe escapa: o erotismo” (MORAES & LAPEIZ, 1985, p. 59).
Como podemos ver, a distinção entre pornografia e erotismo está sempre ligada
a definições de posições dicotômicas: dominante versus dominado, moral versus imoral,
implícito versus explícito, público versus privado.
Porém, de fato, não há como fazer uma dissociação completa entre pornografia e
erotismo. “Erotismo e pornografia representam os dois lados de uma mesma moeda de
prazeres, desejos e comportamentos” (LEITE JR., 2008, p. 48). No âmbito da
sexualidade humana, ambos são quase sinônimos, são conceitos que estão intimamente
ligados, tais como sexo e sexualidade, corpo e afeto. Erotismo e pornografia são dois
aspectos da expressão da sexualidade humana que se entrecruzam e se retroalimentam.
Para entender um pouco mais de pornografia, da sua relação com o erotismo,
com a legalidade e legitimidade, com a interdição e liberdade, é necessário compreender
processualmente tais conceitos, como foram formulados em nossa história recente, e
que pornografia e erotismo fazem parte da experiência humana há muito, muito tempo.
A pornografia, para além das discussões sobre sua legalidade ou não, é um
fenômeno mais comum e mais presente em nossas sociedades do que se imagina. Desde
leves insinuações eróticas em anúncios de produtos que usamos cotidianamente até
produtos de sex shop, sua presença se faz sentir com cada vez mais força. Alusões ao
sexo e seus temas estão presentes em nossa vida cotidiana, podendo ser encontradas
praticamente em qualquer lugar:
“discretas, quase escondidas, invariavelmente embaladas em saquinhos
plásticos transparentes, algumas portando uma tarja preta ou vermelha com a
inscrição ‘proibida para menores de 18 anos’, lá estão elas, inevitavelmente
em todas as bancas, com menor destaque que as familiares revistas femininas
e os sisudos jornais, mas suficientemente à mostra para seu fiel e também
disfarçado público: as revistas pornográficas” (MORAES & LAPEIZ, 1985,
p. 68).

Em qualquer direção que se olhe, podemos encontrar representações do erotismo


e da pornografia: em bancas de jornais e revistas, em outdoors, na vizinha que faz
topless se sentindo protegida pelas paredes mas traída pelas janelas de sua casa, em
anúncios de jornal, em clubes, numa bundinha que aparece despretensiosamente na
novela, na pichação no muro da esquina, nos versinhos eróticos na parede do banheiro,

24
em letras de música com (forte) teor sexual, nos adesivos com propagandas de garotas
de programa colados em telefones públicos etc.
Em vários aspectos de nossa vida, a pornografia e o erotismo estão presentes. E
isso não é uma característica das sociedades atuais e contemporâneas: faz parte de nossa
história e mesmo de nossa pré-história.
Nos versos da canção intitulada “Homem primata”, os Titãs nos dizem que
“desde os primórdios até hoje em dia, o homem ainda faz o que o macaco fazia”.
Guardadas as devidas proporções, essa afirmação pode ser considerada verdadeira:
ainda (re)produzimos práticas e comportamentos que remontam a épocas longínquas.
Entre essas práticas que nos acompanham, o ato de registrar os eventos e
acontecimentos – comuns ou não, cotidianos ou extraordinários – faz parte da nossa
experiência. Ao longo do tempo e do espaço, é comum observar que as diferentes
sociedades humanas registram sua rotina, suas experiências, seu aprendizado.
As chamadas pinturas rupestres, por exemplo, são as mais antigas representações
artísticas conhecidas7, podendo tais registros serem considerados como “os únicos
vestígios deixados consciente e voluntariamente pelos homens pré-históricos” (PROUS
apud CAVALCANTE, 2008, p. 50).
Gravadas em abrigos ou cavernas, em suas paredes e tetos rochosos, ou também
em superfícies rochosas ao ar livre, mas em lugares protegidos, os registros rupestres
são representações do cotidiano do homem primitivo.
Com sua engenhosidade crescente, o homem pré-histórico dispunha de
quaisquer materiais que pudesse para usar como meio para fixar referências
significativas de seu cotidiano8: sangue, saliva, argila, excrementos de animais, extratos
de plantas, entre outros materiais .
Podemos assumir que o sexo – entendido aqui como as práticas sexuais, com
finalidades reprodutivas e/ou de busca por prazer – é também uma atividade que faz

7
A arte rupestre é tema de bastante interesse e curiosidade, especialmente na área acadêmica. Além da
representação de alta sensibilidade produzida pelo homem primitivo, este tipo de arte desperta a atenção
de estudiosos e leigos porque “o observador recebe uma mensagem direta dos autores de tais inscrições,
mesmo que na maioria dos casos tais mensagens sejam indecifráveis” (CAVALCANTE, 2008, p. 50).
8
Lins & Braga (2005) apontam a utilização dos materiais que os homens primitivos tinham ao seu
alcance, tais como sangue, saliva e fezes - materiais que, assim como as pinturas, também eram produtos
de seus corpos. Bednarik (1968) aponta também para o uso de carvão, argilas de várias cores e minerais
triturados para a obtenção de pigmentos. Presume-se ainda que possam ter sido usados sangue,
excrementos e gordura animal, ceras e resinas vegetais, clara ou gema de ovos e saliva humana na
obtenção de pigmentos para a criação das pinturas rupestres (MELLO & SUAREZ, 2012).

25
parte da experiência humana desde o princípio de sua existência. O balé dos corpos –
sejam corpos humanos ou não – foi e ainda é objeto de nossa atenção.
Assim sendo, o ato de registrar, de representar corpos e performance sexual faz
parte da experiência humana desde tempos muito antigos, como se pode observar em
várias manifestações artísticas, mitos, lendas, fábulas e histórias (LINS & BRAGA,
2005).
Os primeiros registros de representação de cunho erótico/sexual englobam desde
gravuras do acasalamento de animais até a representação de falos e/ou do ato sexual
humano9.

Figura 1 – Trecho de parede rochosa coberta com pinturas rupestres.


Como pode ser observado na imagem, os desenhos tem formas diferentes: tratam de homens, de animais,
das interações dos povos primevos com o ambiente que os rodeava, apresentando um registro do
cotidiano do homem pré-histórico. O destaque em amarelo na figura aponta a representação de um ato
sexual, aparentemente entre entre dois seres humanos.10

9
Nos estudos de Arqueologia, assume-se que a pintura rupestre tenha se originado no Paleolítico
Superior, por volta de 35.000 anos a.C., no momento posterior à fixação do homem de Cro-Magnon na
Europa. Acredita-se que, cronologicamente, seu surgimento seja posterior ao aparecimento de objetos
“artísticos” móveis, como artefatos em osso ou pedra esculpida. Apesar disso, seu florescimento
corresponde ao período Magdaleniano do Paleolítico Superior (cerca de 15.000 a 9.000 a.C.). Para
maiores informações, conferir os textos de Poikalainen (2001) e Martin (1993).
10
Fonte:<http://porquecreerenlabiblia.blogspot.com.br/2012/01/pintura-rupestre-la-caza-del-
dinosaurio.html>. Acesso em 27/11/2014.

26
Além das pinturas, as esculturas, as cerâmicas, as armas e os utensílios
trabalhados em pedra, ossos ou metais são elementos que testemunham a vida do
homem primitivo em tempos remotos (e também de culturas extintas). Posteriormente,
temos as imagens esculpidas na pedra – como falos de diversos tamanhos e formatos ou,
ainda, mulheres de seios fartos e/ou abdomens proeminentes.

Figura 2 – Diversos exemplos de arte pré-histórica


Para além da representação erótica, estes objetos e pinturas podem ser considerados registros do cotidiano
do homem primitivo, bem como podem ser entendidos como expressões sagradas, ritualísticas. 11

11
Fontes:

A:<http://2.bp.blogspot.com/-KAB73ioaELo/TpRRIK-
A0MI/AAAAAAAAACA/f408wBxNQaI/s1600/pre-historia_1.jpg>

B: <http://www.kimage.com.br/pintura-rupestre-zoomorfica-no-piaui.html>

C: <http://img.historiadigital.org/2012/12/Sexo-Mesopotamia.jpg>

D: <http://cienciahoje.uol.com.br/banco-de-imagens/lg/web/images/ch-on-line/2009/145033b.jpg>

E: <https://meninasemarte.files.wordpress.com/2012/02/venus-de-willemdorf.jpg>

F e K: <http://www.mundogump.com.br/>

G: <http://www.culture.gouv.fr/culture/arcnat/chauvet/fr/zmpt21-02.htm>

H: <http://viajanteseconomicos.blogspot.com.br/>

I: <http://2.bp.blogspot.com/_M6o2YmPwpQQ/R1QWV4XIgpI/AAAAAAAAIro/9qBNyfuA77I/s1600-
R/Taschen+-+Neret+Erotica+Universalis_Page_009_Image_0001.jpg>

J:
<http://3.bp.blogspot.com/_l_rkG4M4WAA/TEg3zkyOYCI/AAAAAAAAMH0/huMfNR19YA8/s1600/c
onsolo3.jpg>

Todos os links foram acessados em 27/11/2014.

27
Nas hipóteses levantadas por estudiosos como Leroi-Gourhan (1982), Lewis-
Williams & Clottes (1998) e Wadley (2001), a intenção por trás dessas expressões
artísticas não é necessariamente provocar excitação, mas sim que tais esculturas tenham
caráter de certa forma ‘religioso’: são entendidos como símbolos de fertilidade, família
numerosa, poder/proteção e, também, de sobrevivência12. Comumente entendidas como
manifestações artísticas, o âmbito do sagrado é um marcador do caráter utilitário dessas
representações13.
Com o advento da escrita, diversas civilizações puderam elaborar, através da arte
e/ou de compêndios, “conjuntos de técnicas reunidas em manuais e experiências
transmitidas, muitas vezes sob sigilo, de gerações antigas às contemporâneas” (LINS &
BRAGA, 2005, pág. 93). Tais ‘compêndios’ ou ‘manuais’ ultrapassam o aspecto
artístico ou de entretenimento: seu objetivo primordial é orientar na busca do prazer,
fornecendo regras e sugestões para nortear o comportamento social, conjugal e sexual.
Em muitos casos, tais obras tratam-se de verdadeiros tratados de erotologia: sua
produção apresenta um forte caráter científico voltado para o estudo do amor físico, da
busca do prazer e do estabelecimento e manutenção de relações amorosas. Há todo um
saber produzido no sentido de orientar a vida – social e sexual – dos indivíduos. Esse
conhecimento compilado nesses ‘manuais’ é, muitas vezes, oriundo de uma tradição
oral e, especialmente, revestido de um caráter de sacralidade.

12
A importância do estudo da arte rupestre deve-se não tanto à interpretação das figuras existentes, mas
antes obter um entendimento dos motivos e contextos que levaram uma comunidade a usar muito do seu
tempo e esforço na execução da dita arte (WADLEY, 2001). Como estas sociedades primitivas são
consideravelmente diferentes das nossas vivências atuais, o estudo da arte rupestre de forma científica
permite analisar o comportamento do homem em contextos muito díspares, especialmente numa
perspectiva multidisciplinar de estudos que envolvem áreas como a psicanálise, a antropologia e a própria
história da arte. Em diversos sítios arqueológicos ou mesmo em diferentes grutas, as pinturas do homem
pré-histórico impressionam pela crueza, pelo realismo; um registro diferenciado, porém fidedigno, das
mentalidades dos povos (LEWIS-WILLIAMS & CLOTTES, 1998). Para alguns pesquisadores, como
aponta Leroi-Gourhan (1982), representam “a magia propiciatória” destinada a garantir o êxito do
caçador, enquanto para outros estudiosos, era a pura vontade de produzir arte.
13
Acredita-se que a designação de ‘arte’, adjetivada como ‘rupestre’ e/ou como ‘erótica’, se deva a uma
utilização pouco cuidadosa do termo: algumas correntes dentro da história da arte não os reconhecem
como arte, pois levam em conta fatores como riqueza de detalhes e/ou aspectos estéticos específicos
(MARTIN, 1996). Porém, sem desconsiderar tais fatores estéticos, mas levando em conta
primordialmente os aspectos gráficos e simbólicos, bem como conteúdos arqueológicos, pode-se falar em
diferentes tipos de arte, como a arte de determinados grupos pré-históricos (CAVALCANTE, 2008) ou,
ainda, a arte erótica. Além disso, como é bastante empregado o uso da palavra arte para designar tanto os
registros rupestres quanto a produção de material erótico, não há motivo para abandonar essa
denominação em detrimento de outra que caracterize essas expressões da experiência humana. Afinal, a
obra de arte é “uma ‘finalidade sem fim’, ou seja, sua própria finalidade, objeto de contemplação estética
quase que mística; sem que as outras culturas deixem de possuir um sentido estético, raramente suas obras
que têm valor artístico não possuem valor utilitário” (PROUS apud CAVALCANTE, 2008, p. 51).

28
Um dos tratados de erotologia mais conhecidos é o Kama Sutra. Escrito por
Vatsyayana por volta dos séculos V e IV a.C., na Índia do séc. IV d.C., este compêndio
trata não apenas de descrever posições sexuais, mas é também um manual de orientação
para os casais de amantes em sua busca por maiores níveis de excitação e prazer no
desempenho da prática sexual (LINS & BRAGA, 2005).
O Kama Sutra é um compêndio de forte teor pedagógico, para doutrinar corpos e
práticas sexuais, conjugais e mesmo de higiene. O título advém do antigo sânscrito,
onde ‘Kama’ faz referência a uma divindade masculina hindu que simboliza o desejo e
o amor carnal, e ‘Sutra’ significa “conjunto de ensinamentos”.

Figura 3 - Algumas imagens extraídas da edição ilustrada do Kama Sutra.


A explicitude das gravuras do Kama Sutra evidencia o caráter manualista desta obra: o texto e as imagens
têm por finalidade promover uma orientação do comportamento social e sexual de homens e mulheres.

No Kama Sutra, Vatsyayana “enfatiza a arte que deve orientar o comportamento


sexual humano, visto que os cinco sentidos devem ser envolvidos na procura da
transcendência e da revelação epifânica, aspectos também buscados em toda e qualquer
manifestação de natureza artística” (MELOTTO & MARINHO, 2009, p. 29). Assim
sendo, ao longo do tempo, o Kama Sutra assumiu um sentido tanto profano quanto
religioso, o que pode demonstrar que a liminaridade entre religião e arte é bastante
tênue.
Além do Kama Sutra, um outro exemplo marcante de tratado de erotologia é o
Jardim Perfumado, um manual de origem árabe, escrito entre os séculos XIV e XV, pelo

29
xeique Nefzaui. Também conhecido como “O Jardim das Delícias” ou “Os Campos
Perfumados onde se obtêm os prazeres”, o livro apresenta opiniões e conselhos sobre
sedução para homens e mulheres, trata de técnicas sexuais, avisos sobre a saúde sexual e
receitas para algumas doenças sexuais. Contém, ainda, uma lista de nomes para o pênis
e a vagina, uma seção sobre a interpretação de sonhos, assim como descreve atos
ilícitos, como o homoerotismo feminino e a zoofilia.
O Jardim Perfumado conta com várias histórias e fábulas, utilizadas como
exemplos para aludir seus ensinamentos, que têm como base o Alcorão - o livro sagrado
norteador dos muçulmanos. O Alcorão e as palavras do profeta Maomé são tidos como
ideais a serem seguidos.
Como o livro sagrado valoriza a sexualidade como algo positivo14, há uma
sacralização do sexo no Islã (BOUHDIBA apud PORTO & COSTA, 2011). Essa forte
vinculação com o sagrado é um dos aspectos mais interessantes do Jardim Perfumado:
“esta obra assim como muitos outros tratados de erotologia/sexologia do
mundo muçulmano veem a sexualidade como algo sagrado, ou seja, o Islã
tem – historicamente – uma valorização positiva do sexo. Isso pode explicar
o uso de saudações ao sagrado emitidas ao lado de frases como ‘destinadas a
provocar ereção no momento propício’, ou ‘que criou a mulher e suas
belezas, com sua carne apetitosa’” (PORTO & COSTA, 2011).

Estas obras são importantes exemplos da preocupação e da atenção de povos


orientais com o erotismo, não apenas como parte integrante do universo artístico, mas
também como uma cosmologia. Há uma forte influência da dimensão do sagrado nas
filosofias orientais. Podemos citar como exemplo as filosofias do tantrismo15 e do
taoísmo16, que apresentam visões sobre a sexualidade e a sagrada busca pelo prazer.

14
Sobre essa questão da valorização da sexualidade, cabe a reflexão apontada por Soares (2009, p. 87):
“A sociedade árabe-islâmica fez do sexo seu assunto. Por que se escreveu tanto sobre ele? Pode-se pensar
numa dezena de respostas. Porque era orgulho dos homens; porque sexo era tido como ciência; porque se
precisava aprender a ‘arte do gozo’; porque sexo também fazia rir. Inúmeras possibilidades que
confirmam igual teoria: o sexo não era manifestação do corpo; era o próprio corpo. Tudo podia – e
deveria cheirar a sexo. A beleza da mulher, o perfume, o banho, a fruta que se come, o gosto que se tem.
O gozo é, de fato, uma preocupação e precisa se fazer sentir. Se o sexo não foi inventado pelos árabes, é
provável que o cenário do prazer o tenha sido. De modo que não basta penetrar e ser penetrado, gozar
uma vez, e gozar depois. Há uma aura de inquietação rondando o pré coito, de maneira tão irresistível,
que se faz necessário refletir sobre ele e reinventá-lo, ou, talvez, criá-lo. O certo é que, dessa ânsia pelo
deleite, surgem não apenas as teorias sexuais – que poderiam se pautar nos escritos médicos, em anedotas,
fabulações e desejos -, como também uma erótica própria”. Cabe ressaltar, ainda, o aspecto ritualístico do
sexo, evidenciado no texto do Jardim Perfumado, especialmente quando remete ao Alcorão.
15
Tantrismo é uma filosofia comportamental, um tratado sobre ritual, meditação e disciplina. De acordo
com o Internet Sacred Texts Archive (http://www.sacred-texts.com/tantra/index.htm - acesso em
21/03/2015), o Tantra (‘Tan’ = expansão, ‘tra’ = libertação) é um complexo sistema de descrição da
realidade objetiva e, essencialmente, sua prática tem por objetivo o desenvolvimento integral do ser
humano nos seus aspectos físico, mental e espiritual. Está centrado no despertar da kundaliní – poder
espiritual ou físico primordial, uma energia cósmica, de natureza neurológica e manifestação sexual, a

30
Também de origem oriental, mas massivamente difundida pelo Ocidente, a
própria Bíblia cristã traz ensinamentos e conselhos para a manutenção sadia da vida
sexual e dos relacionamentos. Como exemplo, podemos citar o “Cântico dos Cânticos”
- também chamado de Cantares ou Cântico Superlativo ou, ainda, Cântico de Salomão
(a quem credita-se sua autoria).
Pertencente ao Antigo Testamento e escrito aproximadamente em 400 a.C., o
Cântico dos Cânticos é um livro poético, que engloba uma coleção de cantos populares
e hinos de amor, comumente usados em festas de casamento, com orientações e
conselhos para os parceiros sexuais. É um dos livros pertencentes ao agrupamento dos
Sapienciais – classificação segundo a Bíblia Sagrada / Edição Pastoral (1990)17 -, que
condensam a sabedoria infundida por Deus no povo de Israel, algo reconhecido pelas
autoridades cristãs e judaicas18.
No mundo ocidental, além dos manuais e tratados de erotologia, os romances e
as novelas de cunho erótico ultrapassam o âmbito do entretenimento puro e simples:
podem ser vistos como registros do cotidiano ou mesmo expressões de desejos, fetiches
e sexualidades que habitam nossas mentes e nossas experiências. A expansão da escrita
de ficção, por exemplo, abre espaço para o crescimento de uma literatura erótica, que
trata de expor, de criar e de retroalimentar fantasias e desejos.
Com a invenção da imprensa e uma maior difusão de obras literárias, os manuais
e livros ganharam um novo fôlego e, também, um maior alcance de público consumidor.
Na rasteira desse processo de popularização e difusão de material impresso, difunde-se
de forma mais ampla, porém clandestina, a produção de textos eróticos, ilustrações,

força vital. Uma das maneiras de despertar essa energia é obter a união entre Shiva e Shakti, entidades
que representam pares opostos, porém complementares: ativo/passivo, masculino/feminino,
esquerda/direita, claro/escuro. No Tantrismo, o corpo não é visto como um obstáculo, mas como um meio
para o conhecimento: todo o complexo humano é vivo e possui consciência independente da consciência
central e, por isso mesmo, é merecedor de atenção, respeito e reconhecimento. Assim sendo, e até pela
característica desrepressora do tantrismo, a busca de prazer sexual é algo incentivado, posto que é um dos
fatores do despertar da kundaliní.
16
Taoísmo é uma tradição filosófica e religiosa de origem chinesa. Preconiza a vida em harmonia com o
Tao (道), termo que significa ‘caminho’, ‘via’ ou ‘princípio’, entendido como a fonte, a dinâmica e a
força motriz por trás de tudo que existe (SCHAFER, 1979). No taoísmo, encontramos a combinação de
dois princípios básicos do universo: yin e yang. Algumas das associações comuns ao yang e ao yin são
respectivamente: masculino/feminino, luz/sombra, ativo/passivo, movimento/quietude. Os taoístas
acreditam que nenhum dos dois é mais importante ou melhor que o outro, desse modo, são entendidos
como pares opostos, porém complementares. O taoísmo prega que cada pessoa aja de acordo com a
natureza. Em essência, a maioria dos taoístas sente que a vida deve ser apreciada como ela é, em lugar de
forçá-la a ser o que não é. Idealmente, não se deve desejar nada, nem mesmo não desejar. Assim sendo,
no que tange ao desejo sexual e à busca por prazer, a atitude é mais contemplativa do que repressiva.
17
Disponível em http://www.paulus.com.br/biblia-pastoral/_INDEX.HTM. Acesso em 21/03/2015.
18
No judaísmo, corresponde a um dos cinco rolos da última seção do Tanakh, conhecida como Ketuvim
(“Escritos”).

31
caricaturas e desenhos considerados artísticos, buscados pela polícia e condenados ao
Inferno.

Figura 4 - Ilustrações eróticas do século XIX. 19


Gravuras do cartunista francês Aubrey Beardsley, bastante representativas da arte erótica da Belle Époque
– um período de contrastes, marcado pela moral vitoriana, mas de comportamentos privados bastante
libertinos. É uma época de exuberância nas suas manifestações externas, mas decadente no seu interior.
Apresenta um grande florescimento das expressões artísticas, especialmente uma pornografia libertária
questionadora. Podemos citar como exemplo a literatura de Oscar Wilde, com obras de forte carga erótica.

Como aponta Leite Jr. (2008):


“as novas tecnologias de impressão do século XVI, por exemplo,
aumentaram a produção de livros e gravuras obscenas, causando seu
barateamento, aumento do público consumidor e consequente preocupação
social com as ‘terríveis consequências’ do conhecimento – religioso, político
ou sexual – caso estivessem fora das mãos da elite culta. São também da
mesma época as primeiras representações sexuais de cunho mais realista, na
forma de desenhos que detalhavam partes do corpo para exaltá-las. Do
mesmo modo, termos populares usados para nomear os genitais e as práticas
sexuais ganharam importância fundamental neste tipo de produção” (p.51).

A sexualidade explícita e sugestiva é, portanto, uma forma antiga de


representação iconográfica. Porém, essas representações eróticas ultrapassam o âmbito
do entretenimento e da curiosidade voyeurística, assumindo, não raro, um caráter
sagrado, demonstrativo e pedagógico.
Um dos motivos pelo qual a pornografia é um tipo de manifestação que encontra
seu eco na sociedade é seu forte apelo (ao) popular. A produção pornográfica faz uso do
grosseiro (lançando mão de palavrões e expressões chulas, por exemplo) e mesmo do
19
Fonte: <http://obviousmag.org/>. Acesso em 12/01/2015.

32
grotesco (marcado pelo exagero, pela abundância)20, o que lhe confere uma atmosfera
libertária, orbitando entre o libidinoso e o cômico.
O aspecto cômico e lúdico exerce uma forte influência na aceitação desse tipo de
arte marginal. Toda a graça reside em aspectos como a exuberância (algo diferente do
comum, do ordinário), traição conjugal, ditos populares, trocadilhos, paródias,
bebedeira, palavras de baixo calão, indecências e exageros diversificados.
A liminaridade se torna atraente aos olhos do público consumidor: em
contraposição à seriedade dos assuntos da vida, age como um reflexo
distorcido/exagerado de sua realidade, de seus prazeres, suas práticas, seus fetiches.
Esta produção textual e iconográfica liminar, aliada a outras manifestações
artísticas afins (eruditas ou populares), formam a base do que conhecemos hoje por
pornografia21. Sua evolução está atrelada à própria evolução humana e aos construtos
sociais que são criados para garantir e nortear a existência. Por orbitarem na esfera do
lúdico, da diversão, do formativo e do comportamental, essas manifestações culturais
apresentam-se sob um aspecto multifacetado: entretenimento, sagrado e aprendizado.
Apesar da longa trajetória de representações de corpo e sexo na experiência
humana, o surgimento do conceito de pornografia remonta ao século XIX. Tal conceito
está inicialmente ligado a uma ars erotica que trata de escritos referentes ao trabalho
das prostitutas.
Arqueólogos italianos descobriram nas ruínas de Pompéia uma série de objetos e
imagens sexuais bastante ‘explícitos’ que, considerados impróprios para circulação e
exibição, foram mantidos em área reservada no Museu de Pompéia, proibindo a
visitação de mulheres, crianças e homens incultos. O diretor do museu chamou essa área

20
Na análise da obra de Rabelais, Bakhtin (1984) propõe que no realismo grotesco – ou seja, no sistema
de imagens da cultura cômica popular – o corpo e a vida corporal adquirem caráter cósmico e universal.
Não se trata de um corpo apenas individual, mas popular, universal. O realismo grotesco está
essencialmente associado com a carnavalização, a um tipo específico de manifestações da cultura cômica
popular. Em Rabelais, os gigantes Pantagruel e Gargantua são manifestações de uma comicidade
longamente instituída na sociedade: através dos exageros, no realismo grotesco se destaca, sobretudo, a
imagem do corpo. O corpo grotesco possui dimensões e apetites exagerados, preconizando a abundância,
não apenas de comida e bebida, mas também as necessidades fisiológicas e sexuais. Esse corpo é modelo
para uma sociedade carnavalesca, que se alimenta em abundância, festeja alegremente e se entrega
livremente aos prazeres sexuais. O realismo grotesco é uma concepção estética que foi relegada às
margens, praticamente como o oposto da beleza canônica e retomada na contemporaneidade nas artes de
vanguarda.
21
As manifestações artísticas de cunho erótico não se esgotam na produção textual e iconográfica. O
universo erótico se expande para outras manifestações como a dança, a música, o vestuário, o anedotário
popular, as narrativas orais, entre outros. Como aponta Crumpacker (2009), até mesmo alimentos e
bebidas foram cultivados nesta dimensão, como podemos notar na própria existência de comidas
chamadas de ‘afrodisíacas’, as diversas poções do amor ou as fórmulas para garantir virilidade e desejo
sexual.

33
de ‘gabinete de objetos’, sendo depois chamada de ‘gabinete de objetos reservados’.
(HUNT, 1999).
Em 1860, sob a direção do escritor francês Alexandre Dumas (pai), esse
conjunto mantido em segredo no Museu de Pompéia passou a ser chamado de ‘coleção
pornográfica’, expressão originada do termo ‘pornografia’, que teria algo a ver com
escritos sobre prostitutas (LEITE JR., 2012).
De fato, a origem etimológica grega sugere que a expressão ‘pornografia’ surgiu
no século II e deriva das palavras πόρνη (porné = prostituta, a mulher que se vende e se
compra) e γράφω (gráphein = escrever, descrever). Sugere, então, uma série de escritos
sobre prostitutas, porém ultrapassa esse sentido, tratando de descrever na verdade
práticas sexuais comuns entre os homens e as prostitutas (BAUDRY, 2008). A partir
deste entendimento, a pornografia é vista como algo que se relaciona à devassidão
sexual, obscenidade, licenciosidade e indecência: “é a encarnação do sexo ilegítimo e
desestruturador dos valores preestabelecidos” (LEITE JR., 2008, p. 48-49). Por esse
caráter é que tal coleção do Museu de Pompéia era reservada e voltada para a
apreciação de poucos.
Em situação semelhante se encontra o Enfer da BnF que, por longos anos,
guardou coleções de livros ‘obscenos’ - de flagelos, torturas e lubricidade -, gravuras e
fotografias que ficaram escondidas do público em geral por serem considerados
pornográficos.

Figura 5 - Ilustrações pornográficas. Enfer, Biblioteca Nacional da França22.


Embora a seção tenha sido criada em 1830, conta com obras produzidas em diversos períodos históricos,
oriundas de regiões diferentes do mundo.

22
Ver Dossier de l’Exposition: L’Enfer de la Bibliothèque. Eros au secret. Bibliothèque Nationale de
France, 2007.

34
Interessante notar o caráter simbólico que essa coleção especial – e secreta - da
BnF recebeu: diversas religiões, especialmente as de origem judaico-cristã, entendem o
Inferno como um ‘mundo inferior’ que está intimamente ligado, entre outras coisas, à
concupiscência.
Assim, o Enfer da BnF é justamente o lugar de armazenamento de infâmias,
depravações, imoralidades, imundícies, palácio das obras que atentam contra a moral
socialmente estabelecida. Uma coleção obscura que, assim como o Inferno das religiões,
deve estar localizado nas ‘profundezas’, preferencialmente fora do alcance dos olhos.
Novamente, podemos sentir a dimensão do léxico sagrado tangenciando a pornografia,
condenando a sua expressão artística e sua exibição pública.
Há, aqui, uma correspondência direta e relacional com a ideia do Inferno da BN
do Rio de Janeiro. É de se supor que esse expediente de criar um Inferno seja
amplamente utilizado para a preservação dessas obras que são consideradas heréticas,
impróprias, proibidas, indecentes, que atentam contra a moral e os bons costumes. O
Inferno está além de um local físico/fixo: é um esconderijo, mas também um lugar de
esquecimento obrigatório, de conhecimento marginal e clandestino.
A partir desta compreensão da pornografia nos ‘bastidores’ é que começam a ser
travadas as discussões acerca de questões sobre a legitimidade, a legalidade e a
utilização deste tipo de produção cultural diante da preservação da moral e costumes, da
civilidade, entre outros aspectos. Legalidade, legitimidade e liberdade de expressão (e
de circulação) conformam prescrições e valores, relações de vigilância e de controle que
a sociedade exerce – ou tenta exercer – sobre a pornografia.
Como aponta Hunt (1999, p. 10), “o desenvolvimento da pornografia ocorreu a
partir dos avanços e retrocessos da atividade desordenada de escritores, pintores e
gravadores, empenhados em pôr à prova os limites do ‘decente’ e a censura da
autoridade eclesiástica e secular”.
Porém, a pornografia não surge de forma tão espontânea, enquanto conceito e
categoria. Ela se define em decorrência dos conflitos entre a arte de pintores, escultores,
gravadores e escritores e as formas de regulamentação que se desenvolviam junto com
as sociedades europeias (MORAES, 2003).

35
“A pornografia moderna inicial revela algumas das mais importantes
características da cultura moderna. Vinculada ao livre-pensamento e à
heresia, à ciência, à filosofia natural, e aos ataques à autoridade política
absolutista, ressalta especialmente as diferenças de gênero que se
desenvolviam na cultura da modernidade. (…) Os esforços empreendidos
para controlar a pornografia contribuíram, em parte, para a sua definição”
(HUNT, 1999, p. 11-12).

Neste contexto, a pornografia ainda não era considerada um gênero literário à


parte: era considerada um material subversivo, juntamente com escritos políticos,
charges, obras anticlericais, panfletos críticos, entre outros. Desse modo, “seu
significado político e cultural não pode ser separado de seu aparecimento como
categoria de pensamento, representação e regulamentação” (HUNT, 1999, p. 11).
Os esforços para controlar e regulamentar a pornografia não foram poucos,
notadamente na Inglaterra vitoriana (1837-1901). Sob a égide da Rainha Vitória, no que
tange aos costumes, vivenciava-se um discurso altamente moralista, caracterizado por
forte repressão sexual: o sexo e suas manifestações eram vistos como algo sujo,
indecente e depreciativo – exceto dentro do casamento e com finalidade de procriação.
Ao sexo antes do casamento, à prostituição e à arte erótica, os códigos vitorianos
contrapuseram uma moral rígida. Em termos de comportamento, porém, mantinha-se
somente uma aparência de moralidade, enquanto desejo e tensão sexuais eram
secretamente descarregados em bordéis e orgias (STEARNS, 2010), na circulação
clandestina de títulos e imagens pornográficas. Observa-se nesse período vitoriano um
duplo padrão moral: discurso repressor versus atitude hipócrita (BARBOSA, 2007).
A pornografia, nesse período, assume um caráter subversivo por promover um
discurso acerca da sexualidade que é diferente daquele que se quer transmitir. Na
tentativa de evitar a difusão dessas ideias transgressoras e subversivas, foram criados
diversos órgãos públicos e sociedades beneméritas que se responsabilizavam pela
fiscalização e/ou apreensão de material danoso à manutenção do status quo vigente,
incluindo figuras e escritos pornográficos. Porém, quanto mais essas instituições se
empenhavam em coibir a difusão do material pornográfico, mais a pornografia florescia,
pois encontrava eco nas expectativas de transformação social entre seu público
consumidor (HUNT, 1999).
Cabe frisar que, entre os séculos XVIII e XIX, com o avanço da Revolução
Francesa e da Revolução Industrial, é que se experimenta um verdadeiro boom da
pornografia. Surgem novas tecnologias, novas formas de produção e manufatura,
mudanças de valores e de comportamentos, transformações no modo de entender,

36
definir e classificar o material pornográfico. Se a produção e a circulação cresce ‘por
baixo dos panos’, a polícia de costumes busca manter as ‘obscenidades’ longe dos olhos
do público: no lixo, no esquecimento, no Inferno.
É inegável que, ‘escondida’ ou não, a pornografia desperta curiosidades diversas
e interesses de mercado. A crescente produção, divulgação e apropriação da pornografia
como mercado material e simbólico estão ligadas especialmente às prescrições de
técnicas corporais específicas e de uma tecnologia do prazer23. O mercado é o
instrumento de legalização da pornografia: sua conversão em produto mercadológico é
sua ‘redenção’, seu resgate das profundezas do Inferno.
Já em fins do século XIX, a pornografia é entendida como a representação da
sexualidade, e a produção de objetos para uso sexual torna-se um negócio que visa
primordialmente o lucro econômico e possui um mercado específico (GREGORI,
2012).
“Aparecem então as primeiras revistas e almanaques pornográficos,
estes trazendo desenhos e ilustrações sempre muito apreciados pelo público
leitor. A fotografia, uma recente descoberta, estabelece as bases para o
rendoso negócio de ‘retratos indecentes’. Os grandes clássicos do gênero, já
devidamente catalogados pelos editores, começam a ser publicados com
ilustrações, o que incentiva ainda mais os aficcionados” (MORAES &
LAPEIZ, 1985, p. 32).

Com o incremento das gráficas e editoras e um aumento substantivo de


consumidores e leitores, surge, então, a pornografia como uma classe independente de
obra literária: “a pornografia começou a aparecer como gênero distinto de representação
quando a cultura impressa possibilitou às massas a obtenção de escritos e ilustrações”
(HUNT, 1999, p. 13).
No caminho aberto por essas novas formas de pensar e agir dentro das
sociedades, a pornografia passa a ter maior alcance, atingindo cada vez mais parcelas
significativas das populações. A grande difusão de obras e textos de autores

23
As correntes construtivistas apontam que relações afetivas e sexuais seguem um script determinado,
isto é, são estruturadas e atualizadas por um sistema de significados, dado pela cultura, e, portanto,
determinadas por padrões de gênero, diferenças de ordem socioeconômica e especificidades regionais.
Como apontam Leal & Knauth (2006, p.1), “partimos da premissa de que a relação sexual, e tudo o mais
que a envolve, isto é, a sexualidade no seu sentido mais amplo, é principalmente uma relação social
envolvendo relações de poder, hierarquias, expectativas e significados sociais. A sexualidade se constitui
num campo privilegiado para a análise do social, um microcosmo em que se atualizam identidades de
gênero, pertencimentos de classe e trajetórias sociais. É, assim, uma forma de pensar e sentir, que se
caracteriza por ter uma existência que está para além das consciências individuais; é um domínio da vida
social em que o indivíduo é levado a agir de acordo com um conjunto de disposições previamente
estabelecido e fundado nas representações sociais”.

37
considerados pornográficos permitiu sua popularização24. Tornam-se ainda mais
conhecidas e reconhecidas obras como “O amante de Lady Chatterley”25 e “Madame
Bovary”26, bem como o trabalho de autores renomados, tais como Marquês de Sade27 e
Bocage28 (STEARNS, 2010).

24
No Brasil, um dos grandes beneficiários da expansão do mercado editorial foi o dramaturgo Nelson
Rodrigues. Em suas obras, apresentava histórias transcorridas na sociedade carioca do início do século
XX com um toque de tragédia grega, conferindo um tom contemporâneo. Mesmo sendo classificada
como obscena e imoral, sua obra é referência dentro da literatura brasileira contemporânea (CASTRO,
1992).
25
O Amante de Lady Chatterley (“Lady Chatterley's Lover”) é um romance escrito em 1928 por D. H.
Lawrence. Impresso confidencialmente em Florença em 1928, só foi impresso no Reino Unido após 1960.
Lawrence acabou considerando enternecer seu livro e fez alterações significativas no manuscrito original
a fim de fazê-lo palatável aos leitores. A publicação do livro causou um escândalo, devido a suas
descrições explícitas dos atos sexuais, pelo uso de palavras ‘censuráveis’, e talvez particularmente porque
os amantes eram um homem da classe trabalhadora e uma mulher burguesa.
26
No contexto da Revolução Francesa, com o florescimento da ideia de selvageria natural do homem
aperfeiçoada por uma sociedade ancorada no vício e na perversidade, é que Gustave Flaubert escreve
“Madame Bovary”, em 1857. O livro, pioneiro entre os romances realistas, tornou-se famoso por sua
originalidade. É um romance de caráter subversivo “por causa da situação de adultério feminino
contumaz que o autor introduz no universo doméstico do casal Bovary, perturbando a ordem natural dos
valores burgueses” (MELOTTO & MARINHO, 2009, p. 30).
27
Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, foi um aristocrata francês e escritor libertino
do século XVIII. Muitas das suas obras foram escritas enquanto estava na Prisão da Bastilha, por causa de
suas ideias e comportamentos, demasiado escandalosos para a sociedade da época. Como apontam
Melotto & Marinho (2009, p. 30), “Sade vai além dos demais libertinos e livre-pensadores de seu tempo.
Ao sujar altares com suas blasfêmias, ele procura arrastar consigo o ideal de autonomia moral da razão e
da bondade natural do ser humano”. De seu nome surge o termo médico sadismo, que define a perversão
sexual de ter prazer na dor física ou moral do(s) parceiro(s). A notar que as obras completas de Sade só
foram publicadas em 1947, por Jean-Jacques Pauvert, o que lhe valeu um processo só concluído em 1958.
(Cf. Dossier de l’Exposition: L’Enfer de la Bibliothèque. Eros au secret. Bibliothèque Nationale de
France, 2007).
28
Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage foi um poeta português do século XVII. Até o
surgimento dos escritos de Bocage, a literatura erótica portuguesa fazia alusões a eventuais relações de
natureza sexual, de maneira tímida e apenas sugestiva (MELOTTO & MARINHO, 2009).

38
Figura 6 - Imagem de obras raras do Marquês de Sade, expostas no Enfer da BnF.
As obras, além de forte carga erótica na construção textual, contêm imagens bastante explícitas e
descritivas de atos sexuais envolvendo dominação, abuso, violência e outras características que conferiam
o caráter libertino e imoral atribuído às produções deste e de outros artistas.

Cabe sublinhar que, na sociedade ocidental, o erotismo afirma-se como gênero


literário e artístico, especialmente por conta da literatura europeia:
“A Itália e a França fazem, naquele período [pós-Renascimento], o exercício
de uma originalidade única capaz de influenciar outras nações. Também nas
artes plásticas o Erotismo instaura parâmetros estéticos que terminam por
marcar todo o Modernismo. Do famoso quadro ‘Le Déjeuner sur l’herbe’, de
Édouard Manet, ao ‘Démoiselles d’Avignon’, de Pablo Picasso, ícones do
nascimento e enraizamento das estéticas da Arte Moderna, o Erotismo
desestrutura o objeto, desconstrói perspectivas canônicas do Ocidente,
elabora a colagem de novas representações do universo e torna-se uma
ferramenta para a própria autorreflexão sobre o fazer artístico. A obra de arte
reveste-se de caráter erótico nas relações entre sujeito-fruidor e objeto-fruído,
na medida em que pode conduzir ao êxtase contemplativo e à revelação
epifânica sobre o universo” (MELOTTO & MARINHO, 2009, p 31).

O mesmo ocorre com a fotografia (inventada em 1839) e o cinema: com seu


surgimento, novas possibilidades de representação e expressão da sexualidade se
desenvolvem. Do processo fotográfico às imagens em movimento, no fim do século
XIX, podemos encontrar os primeiros filmes pornográficos, produzidos cerca de um ano
depois dos irmãos Lumière inventarem o cinema (HUNT, 1999).
Novas técnicas de reprodução de imagens incrementaram o ‘negócio da
pornografia’, que se tornou um fenômeno de massa. O material impresso era vendido
cada vez mais rapidamente e em maior quantidade.

39
Figura 7 - Representações artísticas do corpo nu.
Ao pesquisar por ‘nu artístico’ na internet, as ferramentas de busca exibem farto material. Embora se
costume associar ao erotismo, a nudez pode ter diversas interpretações e significados, tais como
religiosidade, mitologia, estudo anatômico, representação da beleza e ideal estético da perfeição.29

Mais marcadamente no início do século XX, algumas revistas expunham o nu e


o sexo softcore - uma pornografia mais ‘leve’, branda, mas que também ainda era
encarada como algo impuro, imoral, obsceno (ABREU, 2010). Ou seja, o obsceno trata-
se de tudo aquilo que normalmente não se apresenta na cena autorizada da vida
cotidiana em público, algo que deve estar escondido e que, às margens da vigilância, é
resgatado da alcova, trazido dos bastidores para a cena (MORAES & LAPEIZ, 1985).
Por seu sentido etimológico, obsceno não significa necessariamente algo ‘agressivo’:
seria tudo aquilo que se insere no âmbito privado e que é exposto, trazendo à tona um
questionamento da moral vigente. Todos os comportamentos que não se enquadram
nesse padrão moral – determinado e legitimado pelas classes dominantes – são
considerados impróprios, impuros, imorais.
Dessa forma, por sua própria origem, vinculada à descrição da vida sexual
de/com prostitutas, à pornografia é conferida uma dimensão obscena (BAUDRY, 2008),
já que representa uma série de práticas e comportamentos – reprováveis, em sua maior
parte – que deveriam permanecer no âmbito privado, do segredo. A pornografia, então,

29
A arte sempre foi uma forma de representação do mundo e do ser humano e, dessa forma, a nudez se
faz presente como fonte de inspiração do trabalho artístico (CALVO SERRALLER, 2005). A nudez na
arte é, então, reflexo da vida, representando os padrões sociais para a estética e a moralidade da época em
que a obra foi produzida: “como o corpo é construído historicamente, para cada época a arte evoca, por
meio de representações corporais, significados e percepções que afetam e modificam o imaginário
popular. E esses significados do corpo trazidos naqueles discursos iconográficos, moldam, ainda hoje, a
materialidade do corpo real” (BRASILIENSE, 2007, p. 147).

40
poderia ser entendida como o discurso e a imagética do obsceno, ou seja, aquilo que é
explicitado mas que deveria ser escondido.
No âmbito das produções obscenas ou pornográficas cabe lembrar ainda das
revistas que apresentavam ‘fotonovelas eróticas’, nos anos de 1920, bem como os
primeiros comic books30, pequenos impressos que foram precursores das revistas
masculinas coloridas.
O aumento expressivo dessas manifestações culturais ‘fora de cena’ permitiu
que a pornografia se tornasse, então, um conceito cada vez mais amplo, abrangendo
textos, imagens e o retratamento de práticas inseridas no contexto cultural onde tais
elementos são produzidos, sempre mantendo seu caráter pedagógico e erotológico.
Entendendo a pornografia como uma expressão de nossa imaginação, fruto da
criatividade social, “se o que se quer é diversão, o divertimento aí está como evasivo,
como possibilidade para satisfazer em parte a nossa necessidade de ficção ou heroísmo”
(MORAES & LAPEIZ, 1985, p. 13).
Porém, estigmatizada, a pornografia se torna assunto de ‘bastidores’, de ‘coxia’,
algo que não está em cena – algo literalmente obsceno (LEITE JR., 2008). Tal como no
Museu de Pompéia, o Enfer da BnF e o Inferno da BN (bem como diversos outros
museus e espaços culturais), a pornografia como objeto de estudos ainda é algo que se
coloca numa ‘sala reservada’, para a apreciação de poucos, proibida para menores.
No que tange ao comportamento humano, liberdades e censuras caminham de
mãos dadas. A pornografia, ligada ao comportamento sexual, não escapa disso: ao
mesmo tempo em que provoca, que se imbui de um forte caráter pedagógico, torna-se
um assunto a ser escamoteado, um ‘não-assunto’. Esse velamento, no entanto,
potencializa a fantasia e aquece o mercado.
De fato, a pornografia é assunto que começa a ganhar corpo nas polêmicas sobre
corpo, direito e comportamento apenas no começo do século XX, quando se
desenvolvem os maiores debates sobre a sua legalidade, especialmente na Europa e nos
Estados Unidos (DÍAZ-BENÍTEZ, 2010; STEARNS, 2010; FRANCISCO, 2012). Mais
que uma questão de validação moral, a pornografia vai se tornando cada vez mais

30
Nessa linha dos comic books, podemos citar as obras de Carlos Zéfiro. Entre as décadas de 1950 e 1970
circularam por todo o Brasil os chamados ‘catecismos’, pequenas revistas de 32 páginas que contavam
histórias de ‘conteúdo adulto’. O acesso às revistas era feito às escondidas: eram passadas de mão em
mão ou também vendidas veladamente nas bancas. Hélio Brandão, amigo de Zéfiro e editor de
periódicos, providenciava a impressão e distribuição clandestinas dos catecismos, que chegaram a ter
mais de 2 mil edições diferentes, das quais cerca de 800 continham os desenhos de Zéfiro
(D’ASSUNÇÃO, 1984).

41
legalizada para viabilizar um ramo de comércio com grande e diversificado potencial de
crescimento (LEITE JR., 2012). Esse jogo de interesses só confere à pornografia um
caráter mais legítimo à medida que ela se torna mais e mais emaranhada às lógicas
lucrativas do mercado e ao consumo do prazer.
Fora desse recorte de economia material e simbólica, a pornografia tende a ser
associada à ‘alteridade’, ao avesso da distinção, da civilidade e das maneiras cultivadas:
é o sexo do ‘outro’, das outras pessoas, das camadas populares, dos imorais, dos
ignorantes, dos pobres31. “A tragédia da pornografia é pertencer ao ramo popular, ser
barata e, por isso mesmo, estar associada simbolicamente a camadas sociais de menor
poder sociocultural” (LEITE JR., 2008, p. 49-50). Nesse ponto, firma-se a fortemente a
delimitação diletante que distingue a pornografia do erotismo.
Levando em conta as proposições de Foucault (1979) acerca das estruturas de
poder e dominação, a pornografia deve ser entendida, então, como um produto das
novas formas de regulamentação, bem como dos novos desejos do saber. 32
De acordo com Williams (2008), a crescente preocupação de governos e
empresas33 com a pornografia se justifica pela entrada maciça das representações
eróticas nas casas, bem como das questões morais que isso suscita. Afinal, sexo ainda é
um tema que é tabu na sociedade porque envolve as liberdades e os comportamentos
mais íntimos dos indivíduos. Sua vinculação explícita com a pornografia e o erotismo
ainda é algo contornado pelos discursos da culpa e da acusação, pelos sentimentos da
honra e da vergonha.

31
Elias (1994) nos chama a atenção para o caráter singular da relação entre indivíduo e sociedade e isto
significa dizer que não há relação igual ou análoga em qualquer outra esfera da existência. Segundo ele,
deve-se começar pensando na estrutura do todo para se compreender a forma das partes individuais. Esses
e muitos outros fenômenos têm uma coisa em comum, por mais diferentes que sejam em todos os outros
aspectos: para compreendê-los é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas, únicas e
começar a pensar em termos de relações e funções. E nosso pensamento só fica plenamente
instrumentado para compreender nossa experiência social depois de fazermos esta troca.
32
Foucault (1984) entende a história da sexualidade a partir da forma como se exerce o controle da
sexualidade na história. De acordo com ele, a sexualidade permeia a ligação desejo-verdade, descobrir no
desejo a verdade de si mesmo, pois com ele se remete a atenção a si próprio. Buscar a identidade gera
poder. Para ele, não há sujeito sem a noção de poder. A sexualidade é uma experiência histórica singular
que inclui a preocupação moral e o cuidado ético e liga as técnicas de si às práticas em relação a si. A
história da sexualidade foi construída seguindo a estrutura da constituição de si, dos jogos de verdade e da
interação com as regras de conduta. A problematização feita foi a partir das práticas que envolvem o dito
objeto de estudo, ou seja, o simbólico em torno da sexualidade.
33
Embora não tratado por Williams (2008), cabe aqui ressaltar, também, o papel das instituições
religiosas e de sua gerência interessada dos seus bens de salvação. Nesse aspecto, a permeabilidade do
âmbito do sagrado nas questões de honra e moralidade, intimidade e privacidade se faz sentir com mais
força.

42
A grande questão da pornografia é que ela desvela toda uma gama de práticas e
comportamentos íntimos, privados e que, de certa forma, são considerados moralmente
vexatórios ou indecentes. O cerne é, novamente, a obscenidade: “obsceno então é aquilo
que mostra o que deveria esconder, explicita o implícito, apresenta o oculto, revela
segredos proibidos” (LEITE JR., 2008, p. 51), arguindo a ordem prescrita.
O discurso pornográfico é, portanto, obsceno porque traz à luz as coxias, aquilo
que se deve deixar no escuro. É um discurso libertário – em certa medida – porque tira a
sexualidade e suas diversas expressões da margem da sociedade e as coloca como tema
legítimo da discussão (MAINGUENEAU, 2010). É um discurso transgressor porque
fere a ordem social:
“Em estrita fidelidade ao sentido moderno do termo ‘obsceno’ – já que o
vocábulo latino obscenus significava originalmente ‘mau agouro’ – a tradição
pornográfica que se inaugurou na Europa a partir do Renascimento
caracterizou-se pela difusão de imagens e palavras que feriam o pudor, fazendo
da representação explícita do sexo sua pedra de toque” (MORAES, 2003, p.
123-124).

Não se trata apenas do embate entre moralidade e imoralidade: “a obscenidade


existiu justamente como distinção entre o comportamento privado e público” (HUNT,
1999, p. 13). Como está ligada ao conceito de obscenidade, a pornografia se define na
relação de circularidade entre o exposto e o implícito. Podemos dizer que a pornografia
seria uma expressão/exibição daquilo que temos de mais íntimo, de mais secreto.
A partir do momento em que se torna um assunto cada vez mais recorrente, a
função da pornografia seria a de desvelar aquilo que se quer esconder ou, ainda, de
revelar aquilo que intencionalmente esconde os mercados da fantasia. Não podemos
esquecer que o sigilo, o mistério e a proibição provocam a fantasia: há uma relação
também de circularidade do secreto, do íntimo, do indecente com o fetiche, com o
desejo, com a busca do prazer (BATAILLE, 2003).
É fato que, desde a década de 1960, estamos experimentando momentos de
maior abertura para tocar em assuntos de cunho sexual. Podemos observar a influência
das mudanças de mentalidade e de comportamentos que experimentamos, especialmente
no Ocidente, com o florescimento de movimentos sociais - de liberdade sexual,
feminista e hippie – que abriram espaço para o debate, a discussão e a produção de
novos valores, novas formas de ser, de pensar, de agir, de usar o corpo (CARVALHO,
2010).

43
Tais movimentos se imbuíam de ideologias de valorização do sexo, da busca do
prazer, do empoderamento da mulher, do amor livre, da multiplicidade de parceiros, se
contrapondo a outras visões mais conservadoras sobre hierarquia familiar, fidelidade
conjugal, obrigações sexuais e reprodução. Aos poucos, portanto, alguns segmentos da
sociedade já não sentiam tanta vergonha de seu interesse pelo sexo – que,
gradativamente, torna-se foco, tema, assunto público.
É notável o interesse crescente do conjunto da sociedade por assuntos que
envolvem a sexualidade: o sexo “agora é uma rubrica quase obrigatória na maior parte
das revistas [e mesmo da grande imprensa], os debates sociais que participam mais ou
menos dele de perto ou de longe (o casamento homossexual, a pedofilia, o feminismo, o
uso do véu, a clonagem, a pornografia etc.) encontram-se no núcleo da esfera midiática”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 110).
Podemos, inclusive, notar a evolução do sexo como tema ou assunto se
observarmos a música brasileira contemporânea. No princípio da década de 1990, com a
explosão dos grupos de axé music, popularizaram-se letras de música repletas de
trocadilhos e frases de duplo sentido, todos com forte conotação sexual. Tomemos
como exemplo o grupo É o Tchan, notadamente conhecido por suas coreografias com
elementos eróticos e dançarinas com visual bastante sensual. O caráter erótico era
evidenciado pela união das coreografias com as letras das músicas, brincando com as
palavras para fazer menção conotativa ao sexo (“joga ela no meio, mete em cima, mete
embaixo”), ao corpo e suas partes (“pega no bumbum, pega no compasso”, “bota a
tcheca pra mexer”), ao flerte e à sedução (“tá de olho no decote dela / tá de olho no
balanço das cadeiras dela”), propondo jogos sexuais diversos (“na festa do passa-a-
mão”).
Já no final da década de 1990 e especialmente na década de 2000, ganha maior
expressão e notoriedade o funk. Ritmo de início liminar, oriundo especialmente de
favelas ou comunidades, tornou-se popular por sua representatividade da realidade dos
espaços sociais onde é produzido, mas é bastante conhecido pelas críticas que sofre
quanto ao conteúdo de suas músicas. De princípio, as músicas com temas eróticos
seguiam o mesmo expediente de escamoteação do axé music, com trocadilhos e duplo
sentido. Gradativamente, as letras e os conteúdos foram se tornando mais libertários e
mais libertinos: influenciados pela estética da ostentação, os ‘funkeiros’ e ‘funkeiras’
passaram apresentar mais abertamente a temática sexual em suas músicas.

44
O conteúdo se tornou marcadamente mais explícito, inclusive com a utilização
de linguagem obscena. Nessa gradação, enquanto Claudinho & Buchecha caprichavam
no vocabulário para falar de paixões arrebatadoras proibidas (“seus doze aninhos
permitem somente um olhar”), Tati Quebra-Barraco brincava com as palavras para falar
de sexo anal ao referir a uma marca de fogão (“Dako é bom”) e Deize Tigrona bradava
pelo empoderamento feminino com vocabulário popular considerado bastante impróprio
(“a porra da boceta é minha”). Atualmente, a explicitude sexual é um dos grandes
marcadores – e um dos elementos mais criticados – do funk, já que as músicas trazem
temas como traição (“hoje eu vou zoar, hoje eu vou trair”), orgias sexuais (“hoje vai
rolar a putaria”) e genitalização (“pau, pau, pau, ela quer pau”).
A crítica que o axé music sofria por ser ‘erotizante’ foi multiplicada ao se tratar
do funk. E, por maior que seja a abertura que tenhamos para falar de sexo, ainda há a
questão da moralidade e da obscenidade a se observar dentro da sociedade. Afinal, se
uma música fala abertamente sobre sexo, ela só pode ser... pornográfica! A música com
conotação sexual e a dança erótica que a acompanha, seja no axé ou seja no funk,
causam impacto no comportamento das pessoas.
É importante falar de pornografia por conta de sua influência no comportamento
sexual, seja positiva ou negativa. Os filmes pornôs, cada vez mais inseridos no contexto
mercantilista de produção da Indústria Cultural34, atuam de forma massiva no
imaginário – individual e coletivo – e reforçam ideias, estereótipos, padrões de
comportamento que podem ser reproduzidos e aceitos como representação da realidade,
como verdade.
Todo esse processo de abertura possibilitou o crescimento e expansão dos
domínios da pornografia. Além de um discurso – antes ‘indizível’ – sobre sexo e
sexualidades, a pornografia se difunde, populariza e massifica, tomando formas de
indústria.

34
O conceito de Indústria Cultural trata da conversão da cultura em mercadoria (ADORNO, 2010). Tal
conceito não se refere especificamente aos veículos de comunicação em si, tais como televisão, jornais,
rádio. Trata, entretanto, do uso dessas tecnologias por parte da classe dominante, para a disseminação de
ideias e a massificação de comportamentos. A produção cultural e intelectual passa a ser guiada pela
possibilidade de consumo mercadológico. Surge uma legítima indústria midiática de fabricação de
produtos (sobretudo culturais), informações e discursos que são consumidos como mercadoria pela
população. Os indivíduos são transformados em massa, um grupo homogêneo de consumidores
(GOLDESTEIN, 1987). A Indústria Cultural idealiza produtos adaptados ao consumo das massas, assim
como também pode determinar esse consumo trabalhando sobre o estado de consciência e inconsciência
das pessoas. Ela pode, ainda, ter função no processo de reprodução ideológica de um sistema, na
reorientação de massas e no desenho e imposição de comportamento.

45
Não é à toa, portanto, que se fala da existência de uma Indústria do Pornô: todo
o contexto de produção do material pornográfico (filmes, revistas, acessórios etc.) está
voltado para as necessidades mercadológicas (DÍAZ-BENÍTEZ, 2010), que são
estabelecidas de acordo com os padrões da Indústria Cultural, legitimadas por seus
paradigmas.
O público, em geral ou específico, deve ser instigado a consumir o Paraíso:
“As promessas de delícias ou desvelamentos de segredos do sexo que se
acumula a cada nova capa, incitam o consumidor à compra, favorecendo o
filão mercadológico e motivando a constante produção de revistas masculinas
que venham saciar a avidez do público que quer fugir do lugar-comum no
que se refere às coisas do sexo” (MORAES & LAPEIZ, 1985, p. 69).

A produção dos filmes pornográficos segue a tendência de espetacularização dos


produtos culturais da sociedade atual. Vivemos, na contemporaneidade, uma
experiência de sociedade organizada em função da produção e consumo de espetáculos,
expressos através de imagens, mercadorias e eventos culturais.
De acordo com Kellner (2003, p. 05), espetáculos seriam fenômenos da cultura
da mídia “que representam os valores básicos da sociedade contemporânea, determinam
o comportamento dos indivíduos e dramatizam suas controvérsias e lutas, tanto quanto
seus modelos para a solução de conflitos”. Toda a nossa vivência - até mesmo as coisas
mais simples e básicas do cotidiano - está sujeita a tornar-se espetáculo e, portanto,
produto para o consumo, notadamente de massa.
A visualidade assume uma centralidade na produção de espetáculos, já que a
televisão – considerada um dos maiores meios de comunicação de massa na atualidade -
está em praticamente todos os lares, transmitindo os espetáculos especificamente
desenhados35. A influência da televisão, por exemplo, é muito grande nos padrões de
comportamento: “o imperativo da visualização, se pode inegavelmente dar margem a
encantadoras produções imagéticas, pode também incidir perniciosamente no modo
como concretamente vivemos nossas vidas, percebemos o mundo e nele nos inserimos”

35
O apelo pela exibição do ‘real’ tornou-se uma marca da contemporaneidade no Ocidente. É importante
ressaltar que essa espetacularização construída da realidade pode seguir caminhos distintos. Ao promover
uma comparação entre o documentário “Edifício Master” e o reality show “Big Brother Brasil” – modelos
de produção diferentes, mas com a mesma finalidade: ocupar-se do real - Andacht (2005, p. 95) considera
“uma tendência central na atual cultura das mídias, qual seja: o desenvolvimento tecnológico e artístico
de uma ilusória intimidade à distância, como forma de refletir sobre a identidade. O funcionamento do
reality show procura exorbitar a normalidade dos participantes num lugar anômalo; o documentário,
entretanto, tenta oferecer uma visão circunspecta e moral do mundo cotidiano lá onde a vida acontece”.
Assim, a produção da pornografia, com seus vídeos amadores e caseiros, não poderia estar respondendo a
essa necessidade quase mercadológica de (super) valorização de uma realidade?

46
(ROCHA & CASTRO, 2009, p.55). Desse modo, podemos entender que a pornografia
também pode apresentar e impor padrões de comportamento.
Nesse ponto, a mídia – especialmente por seu amplo alcance - é fundamental
para cristalizar e reforçar opiniões (ENZENSBERGER, 1983). Dentro de nossa
sociedade e cultura baseadas no poder da informação, a mídia possui um peso muito
grande: “recebemos indiretamente uma carga de valores e normas enviesados (...). A
mídia tem o poder de reforçar algumas atitudes e emitir julgamentos sobre o que é mais
ou menos adequado” (PICAZIO, 1998, p. 109).
A mídia é um dos grandes exponentes no recente processo de transformação que
temos experimentado. Conforme aponta Castells (1999), esta transformação nos levou à
atual Sociedade da Informação, um modelo de organização das sociedades baseado no
poder e no valor da informação, vista como o meio de criação de conhecimento e,
assim, de produção de riquezas. É importante, então, que a informação seja difundida,
ganhe maior alcance, tenha seu acesso massificado.
A mídia, pelo seu papel de centralidade nesse processo de conservação e de
transformação da sociedade, está fortemente ligada aos contextos de produção de ‘bens’
e ‘mercadorias’ da Indústria Cultural. Novos padrões de produção e de consumo se
desenharam em nossa sociedade capitalista. Dessa forma, a produção massificada da
Indústria Cultural contribui para ‘moldar’ o comportamento humano, por estratégias de
inculcação: o conteúdo é fornecido de maneira calculadamente impositiva, estreitando
as margens de manipulação do receptor.
A pornografia, enquanto discurso do sexo e manifestação cultural, também não
escapa dessa tendência à espetacularização. Afinal, de forma contínua, “a difusão passa
a incluir nos programas televisivos e nas peças publicitárias conteúdos referidos à
sexualidade” (CARVALHO, 2010, p. 218).
O entretenimento é o principal produto fornecido pela mídia, “que espetaculariza
o cotidiano de modo a seduzir suas audiências e levá-las a identificar-se com as
representações sociais e ideológicas nela presentes” (ROCHA & CASTRO, 2009, p.
50). São difundidos discursos e imagens muito específicos acerca do prazer:
“O erotismo transmitido pela televisão, pela publicidade ou pelo cinema
carregado de apelos sexuais, atua de forma impositiva. A sexualidade aí não é
um ato em que existe a troca, a comunicação, o atuar e participar junto. Os
meios de comunicação, ao contrário, apresentam um modo já ritualizado e
codificado de prazer. Trata-se da utilização, nos gestos eróticos, de
movimentos e ações sígnicas, que buscam substituir ‘por pretender ser sua
síntese’ a verdadeira atividade sexual” (MARCONDES FILHO apud
CARVALHO, 2010, p. 220).

47
Ao transformar o cotidiano em espetáculo, a televisão - assim como quaisquer
outros meios de comunicação de massa - produz novos significados (ou ressignifica os
antigos), de acordo com uma lógica de mercado (MAKSUD, 2008). O sexo e suas
representações se deslocam para um eixo mercadológico.
Novamente, a pornografia é encarada para além das questões morais que suscita:
regida pela lógica de mercado, se transforma em produto, algo fabricado e pronto para
consumo. De fato, a pornografia torna-se um produto industrializado, com tendências à
homogeneização da sexualidade. Porém, diferente de outros bens comuns e ordinários, é
um produto que estabelece uma relação diferenciada com seu consumidor. Como mexe
com a imaginação e com a fantasia de cada um, é de se supor que cada consumidor se
relacione com a pornografia de modo único, singular (MORAES & LAPEIZ, 1985).
No que tange à pornografia alternativa, especialmente a caseira (e mais
especialmente ainda no caso das sex tapes):
“a performance amadora on-line vale-se da encenação compactuada do
próprio corpo e da nudez para brincar incessantemente com as fronteiras da
intimidade; com as fronteiras entre a persona pública e privada; entre o
exibidor e a audiência; entre a fantasia da representação ‘anônima’ e
fisicamente distante e a factualidade da imagem simultânea de corpos
expostos de variadas formas, de rostos emoldurados por decorações de um
quarto de solteiro, de um escritório num posto de trabalho, por piercings,
maquiagens e às vezes mesmo por máscaras que lembrariam determinadas
etapas de jogos presentes em rituais tribais” (KLEINSORGEN, 2014, p. 17).

Embora a pornografia alternativa tenha surgido com o intuito de difundir uma


plástica e um discurso (especialmente imagético) diferente e à margem do circuito
mainstream, Parreiras (2012) aponta que não é possível negar totalmente seu caráter
comercial: com o circuito alternativo florescem também novos mercados, que atendem
às especificidades de um público consumidor mais variado, que busca vários tipos de
produções e estéticas próprias. Assim, “pornografias alternativas (netporn) têm sido,
desde os sites kink36 até as pornografias subculturais, alimentadas pelas imagens da
pornografia comercial (porn on the net) que aparentemente subvertem. Se as
pornografias independentes se apropriam de elementos do chamado pornô mainstream
enquanto abandona ou ignora outras, este é um caso em que há vice-versa”
(PAASONEN, 2010, p. 1301).

36
Kink ou kinky é uma expressão de origem inglesa, que costuma qualificar algo como bizarro ou
pervertido. Refere-se, então, a um conjunto de práticas e desejos sexuais que são pouco usuais ou mesmo
socialmente inaceitáveis, tais como a escatologia e a zoofilia, entre outras. A terminologia é utilizada,
então, para qualificar e classificar os filmes pornográficos que retratam tais práticas.

48
Pornô alternativo, a produção amadora, o vídeo caseiro: todos bebem
diretamente da fonte da pornografia mainstream e podem ser apropriados por esta
indústria como gêneros ou subgêneros. Esta pornografia, que se pretende mais próxima
da realidade ou de estéticas diferentes, é afetada pelo discurso do mainstream. Cabe,
então, questionar: e nossos comportamentos, nossas ideias de masculinidade, de
virilidade, de performance e performatividade também não o são?
Por conta do modo como a pornografia pode afetar nas práticas e
comportamentos sexuais que produzimos e reproduzimos, entendemos que o estudo da
pornografia e de sua ação no comportamento sexual humano pode, então, ser uma
maneira de entender aspectos da sociedade e da cultura sob novas perspectivas, de
desmistificar ideias, de encarar nosso próprio comportamento sob uma ótica diferente.
A pornografia – espetacularizada, massificada e vendida como produto cultural -
acaba por transformar os hábitos das pessoas dentro das nossas sociedades, afetando
diretamente a (re)produção de comportamentos sexuais humanos (FRANCISCO, 2012).
A utilização erótica de sites de live webcam, por exemplo, não seria uma reinvenção do
fetiche do voyeurismo e da exibição em locais liminares mais ou menos públicos?
Podemos encontrar outro exemplo bastante contundente da forma como a
pornografia pode afetar o comportamento com o famoso filme “Garganta Profunda”,
clássico do pornô de 1972.
A história do filme é centrada numa mulher com problemas para atingir o
orgasmo. Ela se queixa ao seu médico por não ter prazer nas relações sexuais com
penetração vaginal. O médico, após examiná-la, descobre seu problema: o clitóris da
protagonista não se localizava na vulva, mas sim no fundo de sua garganta. Por conta
dessa ‘especificidade anatômica’, a mulher passa a protagonizar cenas de sexo oral para
alcançar o orgasmo. Ao todo, o filme conta com 15 cenas de felação de profundidade,
conhecida como ‘garganta profunda’. Essa prática consiste na inserção do pênis em sua
totalidade (ou da sua maior parte) no interior da boca do/a parceiro/a, até atingir a
garganta. Certamente, a prática da felação de profundidade existe há muito tempo,
porém ganhou mais notoriedade após o filme. Desde então, esse fetiche é usado com
frequência nos filmes pornôs. Há, inclusive, filmes especializados, definindo um gênero
dedicado inteiramente ao sexo oral.
“Garganta Profunda” é um filme pornô emblemático justamente porque seu
surgimento e sua ampla difusão acabaram por ditar novos padrões de comportamento
sexual: uma supervalorização da performance feminina no sexo oral e um certo aumento

49
no grau de exigência em cima das mulheres - e também dos homens - pela felação com
profundidade.

Figura 8 - cartaz do filme “Garganta Profunda


A inscrição - “até onde uma mulher pode ir para desenredar seu ardor”, numa tradução muito
livre - revela o plot do filme, faz alusão à busca do prazer através da prática da felação de profundidade.

Um outro exemplo é o fetiche do cumshot. Trata-se da retirada do pênis no


clímax do ato sexual para que a ejaculação ocorra não dentro mas sobre o corpo do/a
parceiro/a: boca, rosto, barriga, nádegas, costas, costelas, dobrinha do joelho – qualquer
ponto do corpo pode ser alvo do líquido seminal. Este tipo de prática provavelmente
existe há muito tempo - principalmente se considerarmos que o coito interrompido é
considerado uma (antiga e antiquada) forma de prevenção de gravidez – mas sua
erotização, sua transformação num fetiche está intimamente ligada à produção de
materiais pornográficos.
Tanto Williams (2008) quanto Leite Jr. (2012) apontam que, no filme pornô, a
cena de orgasmo masculino - na qual um homem ejacula sobre o rosto ou o corpo de um
ou vários parceiros sexuais - é um comportamento que foi reforçado por uma

50
necessidade da indústria do filme pornográfico de garantir a veracidade do prazer no ato
sexual apresentado na tela.
Como aponta Parreiras (2012, p.220),
“talvez um dos maiores achados até o momento foi mostrar que a junção
entre pornografia e internet gera relações que podem ir para além do erótico e
do online. O que se tem são pessoas, categorias, convenções, tecnologia,
sexo, pornografia, avatares, espaços, lugares e corpos em constante
movimentação e circulação”.

Pelo exposto, podemos entender que pornografia e comportamento sexual


humano se retroalimentam. O conteúdo erótico amplamente difundido – através de
qualquer meio – se alimenta dos fetiches preexistentes, confere-lhes novas roupagens e
mais importância, ou ainda leva a internalizar e apropriar37 novas demandas de
comportamento sexual. Novas categorias surgem e demandam novas formas de análise.
A pornografia não é um tipo de obra cultural específica, mas, antes de tudo, uma
forma de ordenação conceitual38. Ela assume um caráter de classificação, torna-se “uma
maneira de organizar e selecionar produções culturais, no caso, relacionadas às
representações da sexualidade. Sendo assim, ela é indissociável das ideias e do
momento histórico que a conformaram e que ainda hoje a organizam” (LEITE JR.,
2012, p. 3) 39.

37
Aqui entende-se apropriação de acordo com a perspectiva de Chartier (1990). As manifestações da
cultura podem ser analisadas e entendidas no âmbito produzido pela relação interativa entre as noções
complementares de ‘práticas’ e ‘representações’. Nessa interação é que pode ocorrer a apropriação, que
consiste – grosso modo - em tornar própria/singular a utilização dos produtos que lhes são impostos. O
sujeito sofre influência, porém não a absorve e a reproduz de forma integral: é afetado por ela, mas a
transforma/ressignifica ao apropriar-se dela. A construção das identidades sociais, por exemplo, seria o
resultado da relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e
de nomear e a definição - submetida ou resistente - que cada comunidade produz de si (BARROS, 2005).
38
Ao se desenvolver como indústria e construir um mercado legal, a pornografia ramificou-se de forma
rápida. Dessa forma, atualmente, apresenta-se como fonte de ordenação dentro das milhares de páginas da
internet consideradas pornôs, exibindo uma quantidade de divisões e subdivisões inimagináveis há
algumas décadas. Podemos, por exemplo, encontrar páginas como a Elephant List, que possui 113 opções
de subclassificações de pornografia, que vão de 18 years old à wild girls; ou a Xnxx, que possui 118
opções que podem se subdividir, através de referências cruzadas, em quase mil outras (LEITE JR., 2012).
Nesse ponto, conforme dito anteriormente, vídeos caseiros e amadores transcendem sua condição e
passam também a ser categorias de classificação do sistema catalográfico da pornografia.
39
Sobre classificação, cabe lembrar que, na indústria do sexo como entretenimento, existe uma demanda
crescente de representação do ‘bizarro’, do ‘não-convencional’. Esses corpos e práticas, que ‘escapam’ do
que é tradicional ou socialmente aceitável, costumam estar associados aos discursos médicos e morais,
porém, atualmente, através da relação entre oferta e demanda, tal discurso está associado aos
publicitários. Como aponta Pelúcio (2007, pp. 482-483): “Assim, alguns comportamentos, práticas e,
mesmo, estilos corporais, que há pouco tempo não seriam classificados como transgressivos – como a
gordura corporal e o tabaco – ganham cada vez mais espaço na produção pornô. Fumar enquanto se faz
sexo, exibir um corpo adiposo e praticar o sexo anal prazerosa e repetidamente é, de alguma maneira,
brincar provocativamente com a visão higienista que prega a ‘qualidade de vida’ como a forma ideal de
existência do sujeito contemporâneo, aquele composto a partir do sutil controle de uma vida de privações
alimentares voluntárias, de vigilância permanente sobre si e de abdicações de prazeres finamente
calculados”.

51
A pornografia pode ser compreendida, como já se notou, como um tipo de
entretenimento ao mesmo tempo em que representa uma forma de aprendizado. Um
olhar mais atento às práticas e performances da pornografia caseira – influenciada ou
não por uma pornografia mainstream - pode nos mostrar que o papel pedagógico da
pornografia no comportamento sexual dos indivíduos é maior do que se poderia supor.
Se entendermos as sex tapes como um olhar que registra a (re)produção ou não
de comportamentos, poderemos, então, lançar um ‘olhar sobre o olhar’. Mas, dessa vez,
além do olhar que registra, é um olhar que vê, analisa e busca compreensão com
penetrabilidade. Trata-se, enquanto objeto, de uma via de compreensão da nossa
realidade que, por ser estigmatizada, talvez não seja tão explorada como poderia.
Tendo como finalidade a compreensão de ideias, imagens e comportamentos
através da pornografia, a intenção primordial é, de fato, de apontar caminhos. Velhos e
novos – e, por que não, prazerosos? - caminhos.

52
MASCULINIDADES E PORNOGRAFIA:
Um mesmo roteiro, um elenco diferente

“Um corpo quer outro corpo. Uma alma quer outra alma e seu corpo.”
- Adélia Prado -

Da difusão científica da biologia à sabedoria popular imagina-se, até com certa


frequência, uma ‘linha evolutiva’ ou ‘escada de vida’ – em que o ser humano nasce,
cresce, se reproduz e morre. Esse é tido pelo senso comum como o ‘caminho natural’
das coisas - guardadas as devidas proporções e desconsiderando-se um ou outro desvio,
ou mesmo algum acidente de percurso.
Nesse ‘caminho natural’, há ações que o ser humano desempenha,
deslocamentos de posições sociais, não raro, marcadas por rituais de passagem. Entre o
nascimento e a morte, aprendemos a andar, a comer, a nos comunicar, a (con)viver uns
com os outros, a produzir nossa própria subsistência, nossas crenças e nossas
comemorações. A palavra-chave dessa proposição é ‘aprendemos’. Afinal, vários de
nossos comportamentos, mesmo que pareçam somente naturais, puramente inatos, são
construções sociais, que aprendemos, apreendemos e recriamos ao longo do tempo e do
espaço definidos por nossa trajetória social.
A título de exemplo, o sentimento de ‘fome’ é algo natural, um comportamento
biológico. Porém, quando comemos e o modo como comemos determinados alimentos é
algo cultural. Algumas sociedades comem utilizando talheres, outras se alimentam com
o auxílio dos hashis1 ou, ainda, usando apenas as mãos. Em algumas culturas, os
indivíduos nem fazem uso de pratos, cuias ou vasilhames para armazenar a comida
enquanto se alimentam. Em outras, o que varia é o lugar onde se come: alguns se
alimentam em pé enquanto coletam frutos, já outros povos são habituados a utilizar todo
um ferramental para desempenhar a ação de comer, que envolve desde a utilização de
um espaço específico - tal como uma sala de jantar - ao uso de móveis e acessórios -
mesas, cadeiras, bancos, talheres, guardanapos, entre outros (CRUMPACKER, 2009).
O próprio preparo do alimento, como observa Lévi-Strauss (2010), reflete toda
uma série de simbolismos existentes dentro de uma sociedade. Às vezes, o alimento
1
Hashi é o nome dado às pequenas varetas que são utilizadas como talheres em parte dos países do
Extremo Oriente, como China, Japão, Vietnã e Coreia. A palavra hashi significa “objetos de bambu para
comer rapidamente”, mas podem usualmente ser feitos de outras madeiras, bem como podem ser de
marfim ou metal, ou ainda de plástico. Tornaram-se bastante conhecidos no Ocidente nas últimas décadas
com a popularização de restaurantes de comida ‘oriental’.

53
assume um significado específico, como é o caso das comidas afrodisíacas, às quais são
atribuídas características ou mesmo ‘poderes mágicos’ no despertar da libido e no
desempenho sexual.
Aliás, até aquilo que pode ou não ser considerado ‘alimento’ varia ao longo do
tempo e do espaço: é o caso, por exemplo, de culturas que introduzem insetos em sua
alimentação, enquanto outras os desprezam como alimentos; ou, ainda, grupos sociais
que não comem determinados tipos de carne de animais por motivos religiosos.
“Esses ‘hábitos’ variam não simplesmente com os indivíduos e suas
imitações, mas, sobretudo, com as sociedades, as educações, as
conveniências e as modas, com os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra
da razão prática coletiva e individual, ali onde de ordinário veem-se apenas a
alma e suas faculdades de repetição” (MAUSS, 1974, p. 214).

Desde que nascemos, então, somos submetidos a um intenso e contínuo processo


de aprendizado chamado de socialização. Cada indivíduo deverá aprender a reconhecer
padrões de comportamento, identificando modelos a seguir ou a refutar, de acordo com
aquilo que se espera dele. “Para cada profissão, sexo, idade, há uma expectativa de
comportamento específico, supostamente adequado” (DUTRA, 2002, p. 361).
Segundo Bourdieu (2007), os indivíduos são atores sociais que interagem por
meio de jogos, sem normas explícitas, nos quais as pessoas fazem suas escolhas de vida
marcadas pelo habitus, como sistema de pré-disposições. Ou seja, suas decisões ao
longo de sua trajetória, (per)passam por constrangimentos econômicos, políticos,
culturais e sociais, no mais das vezes desconsiderados ou naturalizados no senso
comum2.
Foucault (1979) aponta, também, os corpos dóceis e disciplinados, normalizados
por essa lógica do pensamento ocidental. São corpos pensados e adestrados por e para
uma estrutura político-econômica de dominação. O corpo, o gênero, o sexo tornam-se
elementos-chave de fundação da sociedade3.

2
É interessante notar que, nesse processo decisório, as escolhas dos indivíduos nem sempre refletem seus
pontos de vista pessoais em termos de preferência, mas sim em termos de conveniência tática ou
estratégica. Isto é, se analisada no âmbito do segmento social de onde se origina e/ou se insere, a escolha
de determinadas opções se dá pelo seu maior proveito.
3
Conforme aponta o autor, “o domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos
pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular,
a nudez, a exaltação do belo corpo... tudo isto conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um
trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados,
sobre o corpo sadio. Mas, a partir do momento em que o poder produziu este efeito, como consequência
direta de suas conquistas, emerge inevitavelmente a reinvindicação de seu próprio corpo contra o poder, a
saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor. E,
assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por que ele é atacado... O poder penetrou no corpo,
encontra−se exposto no próprio corpo... Lembrem−se do pânico das instituições do corpo social

54
Laqueur (2001) parte dessa centralidade do corpo na ordem social para tratar da
diferenciação entre os corpos. Para esse autor, as diferenças entre os sexos ou a própria
ideia de dois sexos biológicos distintos é uma concepção que depende do contexto
histórico e social. Por exemplo, as sociedades ocidentais haviam herdado dos gregos a
percepção de que haveria apenas um sexo biológico, enquanto o gênero se apresentaria,
ao menos, em duas possibilidades. Nesse modelo, homem e mulher não seriam
definidos por uma diferença intrínseca em termos de natureza: não são dois corpos
distintos, mas sim um mesmo corpo, uma mesma carne, diferenciada apenas pelo grau
de perfeição.
Já no século XVIII, com o avanço da revolução científica, um novo pensamento
acerca dessa diferenciação de corpos surge: passa-se a considerar a existência de um
modelo de dois sexos, dois corpos diferentes. Assim, reduz-se o(s) corpo(s) apenas ao
plano - meramente físico e/ou fisiológico - da natureza. Essa mudança de mentalidade
só foi possível devido ao contexto político do período, especialmente centrado nas
divisões entre esfera pública e esfera privada, homens e mulheres, partidários e contra-
partidários da autonomização feminina.
Como aponta Laqueur (2001), a fundação dessa diferença não estaria mais em
algo transcendental, mas sim numa diferença sexual física e em suas implicações
utilitaristas - ou seja, na constatada força superior dos homens e na frequente
‘incapacidade’ das mulheres, em decorrência de suas funções reprodutivas.
Desse modo, o corpo perdeu boa parte de seu aspecto de ‘signo’ e, puramente
materializado/biologizado, passa a ser o fundamento da sociedade civil. As diferenças
biológicas diagnosticadas pelos cientistas passam a oferecer a base para que pensadores
sociais dissertem sobre as diferenças inatas entre homens e mulheres e a consequente
necessidade de diferenciações sociais. A natureza já se encarregou de postular a divisão;
cabe à sociedade respeitá-la e promover um comportamento adequado.
De acordo com a argumentação de Laqueur (2001), somente a partir do século
XX – e especialmente após o surgimento da psicanálise e dos estudos de Freud sobre a
sexualidade humana – é que o entendimento do(s) corpo(s) volta a transcender o âmbito
da matéria, daquilo que é puramente biológico. E, na rasteira desse processo de
transcendência, é que novas visões de corpo como discurso ganham forma.

(médicos, políticos) com a ideia da união livre ou do aborto... Na realidade, a impressão de que o poder
vacila é falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares... e a batalha continua”
(FOUCAULT, 1979, pp. 145-146).

55
Dessa forma, a noção de corpo transcende a parte física, está para além daquilo
que se considera ‘natural’. O corpo carrega significados, é expressão material de uma
linguagem, de discursos:
“A linguagem é, pois, fruto de relações de poder, gera efeitos de poder e está
intrinsecamente relacionada e implicada com a produção daquilo que
reconhecemos como sendo nós e eles, certo e errado, igual e desigual,
equivalente e diferente; ou seja, a linguagem está implicada com a produção
das identidades e das diferenças, das hierarquizações e das desigualdades
dentro e entre diferentes sociedades e/ou culturas, e é com esse sentido que o
conceito é utilizado neste trabalho” (SOARES & MEYER, 2003, p. 137).

De acordo com essa perspectiva, entende-se que nada está dado de antemão:
“A cultura (em sentido lato) é a responsável pela transformação dos corpos
em entidades sexuadas e socializadas, por intermédio de redes de significados
que abarcam categorizações de gênero, de orientação sexual, de escolha de
parceiros. Valores e práticas sexuais modelam, orientam e esculpem desejos e
modos de viver a sexualidade, dando origem a carreiras sexuais/amorosas.”
(HEILBORN apud FLAUSINO, 2002, p. 10).

Na sociedade contemporânea, a cultura adquiriu um status de centralidade no


entendimento dos processos de significação. Essa circulação de sentidos corresponde a
uma circulação política, econômica e financeira, através de diferentes meios,
especialmente da mídia (HALL, 2000).
Como aponta Flausino (2002, p. 139) o conceito de pedagogias culturais trata do
reconhecimento e problematização da importância educacional e cultural da imagem,
das novas tecnologias da informação, “enfim, da relação entre educação e cultura da
mídia nos processos de organização das relações sociais e na produção das identidades”.
Assim sendo, o processo de subjetivação internaliza disposições socioculturais. A
construção de um ‘eu’ está intrinsecamente ligada à sociedade em que o sujeito se
insere.
De acordo com Fischer (2002), estes processos de subjetivação são históricos e
devem ser encarados em sua ampla diversidade, nos modos de existência que produzem,
conforme a época, a sociedade e a cultura em que estejam sendo inseridos. Isso significa
que podemos entender ‘corpo’, ‘gênero’, ‘identidade’ e ‘sexualidade’ como fenômenos
biopsicossociais que, para além dos caracteres inatos, se definem também - e
primordialmente - como construções sociais.
Como afirma Bozon (2004), a sexualidade humana não é produto da natureza e
sim da sociedade. Como construção social, é aprendida por meio da cultura, capaz de
coordenar a atividade mental e corporal dos indivíduos. A atividade sexual depende de

56
uma teia de significados sociais dentro dos quais está inscrita. Para esse autor, entender
a sexualidade é estabelecer relações múltiplas entre fenômenos sexuais e outros
processos sociais.
Foucault (1988) já atenta para o fato de que a sexualidade é um ‘dispositivo
histórico’. Como tal, é compreendida como uma invenção social, uma vez que se
constitui, historicamente, a partir de múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que
regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem ‘verdades’. Como
apontam Soares & Meyer (2003, p. 144), “a sexualidade se tornou o lugar da verdade do
sujeito, um lugar visto como incontestável na expressão de um suposto eu íntimo e mais
verdadeiro”. Essa definição foucaultiana de dispositivo sugere ainda a direção e a
abrangência de nosso olhar:
“um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas (...) o dito e o não-dito são elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos”
(FOUCAULT, 1979, p. 244).

Especialmente a partir da década de 1960, o conceito de gênero, por exemplo,


surge com a efervescência dos discursos feministas e seus estudos, com o intuito de
traduzir as diversas formas de interação humana. Entende-se o gênero como forma de
legitimar e construir as relações sociais (GOMES, 2003), referindo-se às diferenças
biopsicossociais entre homens e mulheres.
Ainda que seja comumente usado como sinônimo de ‘sexo’ – aqui entendido
como uma categoria que ilustra a diferença biológica entre homens e mulheres -, o
termo ‘gênero’ refere-se basicamente às diferenças sociais que se estabelecem com os
papéis de gênero – os comportamentos, ações e características que são atribuídos aos
indivíduos ao serem classificados em algum gênero: “de fato, não existe uma
determinação natural dos comportamentos de homens e de mulheres, apesar das
inúmeras regras sociais calcadas numa suposta determinação biológica diferencial dos
sexos usadas nos exemplos mais corriqueiros” (GROSSI, 2010, p. 04).
A divisão sexo/gênero funcionava como uma espécie de pilar fundacional da
política feminista e parte da ideia de que o sexo é natural e o gênero é socialmente
construído. Concepções mais recentes, especialmente se considerarmos as ideias de
Bourdieu (2007) e Butler (2003), permitiram que se questionasse e relativizasse cada
vez mais essa concepção dualista.

57
Butler (2003) promoveu um trabalho de desconstrução desses conceitos – sexo e
gênero. Para ela, essa premissa dualista natural/social da qual se origina a distinção
sexo/gênero é insuficiente. Afirma que:
“quando a ‘cultura’ relevante que ‘constrói’ o gênero é compreendida nos
termos dessa lei [cultural, inexorável] ou conjunto de leis, tem-se a impressão
de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que a
biologia é o destino. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o
destino” (BUTLER, 2003, p. 26).

Esta concepção se coaduna com a perspectiva de Bourdieu (2007), que entende a


biologia e o corpo como lugares onde as desigualdades internalizadas entre os sexos,
resumidas na ideia de dominação masculina, seriam naturalizadas. O autor discute o
poder dessa visão androcêntrica na imposição de significados, tidos como legítimos, de
forma a dissimular as relações de força que sustentam a própria força. Em termos de
gênero, aponta para relações dicotômicas de poder simbólico, na concepção
hierarquizada do masculino e do feminino.
O trabalho de Ortner (2005), por exemplo, ao falar da fundação de mosteiros
Sherpa, desvela toda uma gama de relações sociais entre ‘homens’ e ‘mulheres’, mas
também entre ‘homens’ e ‘grandes homens’, revelando que as relações de gênero que se
estabelecem estão além do âmbito do sexo biológico: são performances de gênero que
se baseiam em construções sociais muito próprias daquela sociedade e que nela
constituem relações de poder.
Gênero é uma categoria que pode – e (por que não?) deve – ser pensada para
além de detalhes anatômicos. É algo que se constrói nas relações sociais, especialmente
as de poder. Esse tipo de visão torna-se bastante evidente na etnografia de Rojo (2007)
sobre relações de gênero no hipismo: o autor aponta que as distinções de papéis e as
relações de poder que se dão entre os treinadores de salto e os adestradores de animais,
que fazem com que tais categorias – saltadores e adestradores - sejam, de fato,
categorias de gênero, que independem do sexo biológico dos atores que desempenham
esses papéis.
Tanto Butler (2003) quanto Bourdieu (2007) desvelam um modo de pensar as
questões de gênero pautadas nas dicotomias e oposições: mais que masculino/feminino,
encontramos relações de poder em pares como alto/baixo, rico/pobre, claro/escuro.
Inclusive, afirma Butler (2003, p. 25): “talvez o sexo sempre tenha sido o
gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente
nenhuma”. Dessa forma, o próprio sexo não é entendido como natural, mas também

58
como algo do âmbito discursivo e cultural, para além dos aspectos físicos do corpo, tal
como o gênero.
O gênero, então, é uma categoria utilizada para determinar algo que é social,
cultural e historicamente constituído (GOMES, 2003). De acordo com Grossi (2010, p.
05), “nenhum indivíduo existe sem relações sociais, isto desde que se nasce. Portanto,
sempre que estamos nos referindo ao sexo, já estamos agindo de acordo com o gênero
associado ao sexo daquele indivíduo com o qual estamos interagindo”.
A perspectiva de que a performance de gênero é uma construção está presente
em Beauvior, especialmente com sua clássica afirmação de que um indivíduo não nasce
mulher, mas sim torna-se mulher. Para além dessa afirmativa, Butler aponta para o fato
de que “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que se
torna mulher seja necessariamente fêmea” (2003, p. 27).
Ao analisarmos a obra de Kulik (2008) sobre travestis, por exemplo, podemos
perceber que se o sexo for tomado pelo gênero, não parece válido definir este último
como sendo uma mera interpretação cultural do primeiro. Mais que isso, pode-se
perceber que nem sempre o gênero ocupa na cultura um papel similar ao que o sexo
exerce na biologia. Afinal, no caso de travestis, tratam-se de indivíduos de sexo
biológico masculino que estão desempenhando, prioritariamente, uma performance
socialmente entendida como feminina (embora, em vários casos de travestis, haja uma
alternância para performances masculinas).
Na obra ‘Travesti’, Kulik (2008) desempenha um estudo etnográfico com
travestis da zona de prostituição de Salvador. O autor aponta as travestis
majoritariamente como seres humanos biologicamente masculinos que passaram por
uma série de tratamentos estéticos e intervenções cirúrgicas para mimetizar uma
corporalidade tida como feminina, isto é, uma aparência de mulher.
Essa concepção de Kulik (2008) se coaduna com a visão de Vencato (2002),
baseada em seu trabalho de campo com drag queens, travestis e outros indivíduos trans,
em cidades do sul do país. A autora aponta a travesti como um indivíduo que
“busca realizar uma construção corporal que o aproxime a um corpo
feminino, contudo, não quer tornar-se uma mulher ‘de verdade’, ou seja, não
deseja extirpar seu falo. Geralmente passa por vários processos de construção
corporal em direção ao feminino (colocando silicone, fazendo depilação,
fazendo cirurgias plásticas, etc.), sendo esses processos mais ou menos
rudimentares dependendo, principalmente, do poder aquisitivo das travestis,
que determina acesso a técnicas mais avançadas ou não de remodelação
corporal” (VENCATO, 2002, p. 15).

59
Tanto Vencato (2002) quanto Kulik (2008) assumem a noção beauvoiriana de
que todo feminino é inventado, sendo construído dentro de lógicas culturais que variam
de uma sociedade para outra. Assim, Kulik (2008) nos mostra que as travestis podem
desempenhar uma performance entendida como feminina, não apenas pela aparência,
por gestos e atitudes desse ‘feminino inventado’ e socialmente aceito, como também
podem em vários momentos ter uma performatividade considerada masculina. Essa
possibilidade de oscilar entre papéis mais masculinos ou mais femininos, inclusive,
seria justamente possível para as travestis dada a sua situação corporal considerada
‘híbrida’.

Figura 9 – Imagens dos ‘corpos híbridos’ das travestis


Podemos observar que as travestis apresentadas exibem caracteres fisiológicos aparentes de ambos os
sexos. Como a performatividade também perpassa pela dimensão da fisicalidade corporal, de certa forma,
essa ambiguidade de carateres legitima ou justifica o hibridismo de sua performatividade. A construção
de um ‘masculino’ ou ‘feminino’ dependerá menos da expressão material dos corpos do que de práticas,
do gestual, da entonação da voz, de atitudes etc.

Assim, reforça-se a ideia de inspiração beauvoiriana do indivíduo ‘tornar-se’ um


‘ser’ que performa algum gênero. Poderíamos, então, nos fazer a pergunta: o mesmo
valeria, então, para os homens? Ou seja, como não há uma masculinidade naturalmente
dada de antemão, um indivíduo que se torna ‘homem’ pode não ser necessariamente um
macho? As ideias de gênero como algo socialmente construído, que se apresentam até
aqui, parecem indicar uma resposta positiva.
Bourdieu (2007) dá ênfase a esse âmbito sócio-cultural na construção das
identidades, afirmando que essas concepções ‘invisíveis’ que chegam a nós nos levam à
formação de esquemas de pensamentos impensados. Isso significa que mesmo que
pareça que temos a liberdade de pensar alguma coisa, esse ‘livre pensamento’ está

60
marcado por interesses, preconceitos e opiniões alheias, ou seja, por construções sociais
e relações de poder e de dominação que se estabelecem na sociedade.
Assim, pode-se dizer que o termo ‘gênero’ se refere às construções sociais e
culturais de masculinidades e feminilidades. A noção de gênero “daria conta de que as
mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e não poderiam ser
entendidos separadamente” (TORRÃO FILHO, 2005, p. 129), já que a construção do
gênero perpassa pelas relações sociais que se estabelecem entre eles.
Neste contexto, como propõe Gomes (2008), são minimizadas as referências de
diferenças biológicas e entram em foco as diferenças culturais. A partir da noção de
gênero:
“pode-se perceber a organização concreta e simbólica da vida social e as
conexões de poder nas relações entre os sexos; (…) pois o gênero se
preocupa com a consolidação de um discurso que constrói uma identidade do
feminino e do masculino que encarcera homens e mulheres em seus limites,
aos quais a história deve libertar. (…) O gênero expõe, ainda, o dilema da
diferença, a construção de desigualdades binárias, de diferenças
pretensamente naturais, significa lutar contra padrões consolidados”
(TORRÃO FILHO, 2005, p. 136).

Segundo Grossi (2010), o conceito de gênero está colado, no Ocidente, ao


conceito de sexualidade. Isso promove uma grande dificuldade no senso comum em
realizar uma separação entre a identidade de gênero e a sexualidade. Em sua tentativa de
‘desnaturalizar’ a noção de gênero, Butler (2003) propõe libertá-lo daquilo que ela
chama de ‘metafísica da substância’. Na maioria das teorias feministas o sexo é aceito
como substância, como aquilo que é idêntico a si mesmo, em uma proposição
metafísica. Ao contrário do que defendiam as teorias feministas, o gênero deveria ser
visto como um fenômeno fluido - inconstante e contextual - que não denotaria um ser
substantivo, “mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de
relações, cultural e historicamente convergente” (BUTLER, 2003, p. 29).
Devemos, então, entender que a identidade de gênero se refere, da forma mais
basal, ao gênero com o qual o indivíduo se identifica. Mas pode também ser usada para
referir-se ao gênero que se atribui a um indivíduo, tendo como base o que se reconhece
como elementos indicativos do papel social de gênero: roupas, corte de cabelo, etc.
No que tange à sexualidade e à construção de identidades sexuais e de gênero, é
comum se pensar no corpo como elemento central para sua definição. Mas, de fato,
gênero é construção social operativa também para além do corpo. Papéis e modelos
existem previamente, são transmitidos, reforçados ou modificados. Conforme aponta

61
Louro (2008), o gênero é uma das dimensões centrais da sociedade, dimensão cultural
articulada num campo representacional que envolve a todos antes do nascimento.
Butler (2003) aponta na direção do deslocamento do sujeito como identidade
fixa para algo que deixa em aberto a questão da identidade, entendendo-a não como
algo que necessariamente organiza a pluralidade, mas que a mantem aberta, sob
permanente vigilância. Aqui, novamente, voltamos à proposição de Mauss (1974) do
corpo educado, treinado, algo que está além das diferenças biológicas que nos separam
em ‘macho’ e ‘fêmea’:
“a construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras
aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é
empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável
de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre
inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se,
por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo”
(LOURO, 2008, p.18).

Em decorrência disso, a própria socialização dos corpos estaria tingida por essas
ideias. De acordo com Bourdieu (2007) o corpo é politizado, socialmente modelado: os
princípios fundamentais de sua construção são transformados em ‘aspectos naturais’.
Tendo em vista que os comportamentos são construídos socialmente, pode-se afirmar
que a própria noção de masculinidade também o é.
Os próprios modos como as sociedades ocidentais entendem o ‘masculino’
atualmente já diferem do modo como era entendido há 20 ou 30 anos. Dessa forma, as
distinções que marcam as categorias ‘homem’ e ‘mulher’ variam histórica e
contextualmente (MACCORMACK, 1980).
Tal como a sexualidade, gênero é, portanto, discurso. E, como discurso, está
bastante presente na mídia, mesmo que de maneira indireta. Papéis e comportamentos
são amplamente difundidos de forma massiva, pela grande inserção dos meios de
comunicação em nossa vida cotidiana. Esses comportamentos apresentados ou
espetacularizados, como já se comentou no capítulo anterior, afetam de forma bastante
direta a construção não apenas da identidade de cada um, mas também seu
comportamento sexual:
“A teorização cultural tem afirmado, também exaustivamente, que as
possíveis respostas à pergunta Quem e o que nós somos? – enquanto corpo e
enquanto sujeito – que nos é colocada, cotidiana e reiteradamente, pelas
diversas instâncias culturais contemporâneas, se definem nas mesmas
relações que nos permitem reconhecer o que nós não somos, e a operação de
poder que está envolvida nestas definições nos posiciona de diferentes
formas, em diferentes lugares, com diferentes efeitos, nas sociedades e
grupos em que vivemos” (SOARES & MEYER, 2003, p. 137).

62
De acordo com Felipe (2007), a sexualidade, para além do aspecto biológico,
deve ser vista como uma construção social, uma invenção histórica. O sentido e a
importância a ela atribuídos são criados em situações sociais concretas: a sexualidade
remete a normas, crenças, valores, comportamentos, relações e identidades sociais
construídas dentro de um contexto sócio-cultural e histórico.
Sexualidade é, portanto, discurso. E, como discurso estético ou provocativo, está
fortemente presente na mídia contemporânea, mesmo que de forma velada.
“A composição das sexualidades, a incursão da sexualidade nos corpos é
uma atividade midiática. Dá-se como um contexto cultural, até pela
manutenção da audiência. Deixando de ser percebida como individual, a
sexualidade é abordada a partir do exercício de relações de poder. Se os
corpos são significados pela cultura, os produtos culturais midiáticos também
vão ser alterados pela cultura, pelas mudanças de hábitos, por estilos de vida
e lutas sociais” (FLAUSINO, 2002, p. 02).

Giddens (1992) afirma que o exercício da sexualidade é uma decisão modelada e


limitada pela realidade em que se inserem os indivíduos. E o instrumento através do
qual se modela, se difunde ou mesmo se impõe essa sexualidade construída é a mídia.
Desse modo, “se existe relação de identidade entre o que a pessoa é e o que consome,
existe também entre o que faz na cama e com quem faz, além do que pensa de si”
(FLAUSINO, 2002, p. 09, grifos do autor). Prontas para fundamentar o funcionamento
da vida coletiva, as representações de identidade e de sexualidade na mídia “tentam
regular a conduta sexual, definem o certo e o errado, o desviante e o inusitado”
(FLAUSINO, 2002, p. 05).
Como sugere Louro (2008, p.17), “nesse embate cultural, torna-se necessário
observar os modos como se constrói e se reconstrói a posição da normalidade e a
posição da diferença, e os significados que lhes são atribuídos”. E é nesse ponto que se
insinua e/ou se afirma a pornografia.
A criação de um ideário figurado de masculinidade e a proposição
convencionalizada de comportamentos masculinos, apresentados pelos filmes
pornográficos, são referências potentes na construção da identidade masculina.
Basicamente, entende-se que alguns comportamentos “são definidos pela cultura como
sendo pertencentes a um ou outro sexo, aos quais o homem e a mulher devem recalcar
para serem reconhecidos como homem e mulher” (NOLASCO apud TORRÃO FILHO,
2005, p. 140).

63
Figura 10 - Anúncios de serviços sexuais, encontrados na internet.
Na atualidade, podemos observar com bastante clareza que o sexo é produto de consumo. Como
a pornografia está ligada etimologicamente ao mundo da prostituição e visando a excitação ‘desregrada’
dos sentidos e apetites sexuais, há uma demanda muito própria por certos tipos de corpos, com estéticas
bem específicas. Ligada à lógica do mercado, intensifica-se a produção dessas peças pornográficas, para
atender a determinadas demandas e mesmo criá-las (LEITE JR., 2012; KULIK, 2012). Tais anúncios
exemplificam uma espécie de marketing desenhado para atender a essas necessidades, (re)produzindo não
só uma estética corporal muito específica, mas uma série de poses e atitudes muito próprias do padrão que
se pretende vender/consumir.

A masculinidade, sob esse viés, refere-se, portanto, às marcas, às ‘técnicas’


reconhecidas de aproximação e conquista, à imagem estereotipada de tudo aquilo que
seria próprio de indivíduos machos. Ou seja, a masculinidade se faz em torno de uma
série de qualidades, características, normas e valores considerados típicos de um homem
ou mesmo necessários para sua formação. Em muitas culturas, especialmente a cultura
ocidental, as características básicas da masculinidade incluem capacidades físicas,
coragem e liderança (TORRÃO FILHO, 2005). Conforme apontado no primeiro
capítulo, essas referências predominantes foram destacadas historicamente e
estabilizadas através de práticas rituais e das diferentes linguagens expressivas.
A construção da identidade masculina demanda um trabalho de aprendizado
continuado por processos pedagógicos diversos, explícitos ou dissimulados, envolvendo
espaços sociais, relações pessoalizadas ou não, meios autorizados, reservados ou
clandestinos.
A construção da masculinidade ultrapassa a fisicalidade dos corpos:
“nem nossos corpos pessoais, nem nossos corpos sociais podem ser vistos
como naturais, no sentido de existirem fora de um processo de auto-criação
chamado trabalho humano (...), de modo que, enquanto traço da ideologia, o
corpo natural universalizado é a base de ouro para o discurso social
hegemônico” (HARAWAY apud VENCATO, 2005, p. 243-244).

64
A identidade masculina e sua própria corporalidade e performatividade se
constroem nas relações estabelecidas com os outros sujeitos. Leva em consideração a
diferenciação e a negação de outros papéis, outras dicotomias (DAMATTA, 1997).
Assim,
“A identidade é marcada pela diferença, sendo ambas produzidas, ao mesmo
tempo, no interior de processos de diferenciação, cujos resultados são,
exatamente, a diferença e a identidade. O corpo é tomado, aqui, tanto como
um operador quanto como um território importante dos processos de
diferenciação, e isso é ainda muito mais evidente e significativo quando se
trata de discutir questões relativas à sexualidade e ao gênero, em sua relação
com a juventude, por exemplo” (SOARES & MEYER, 2003, p. 138).

Identidade é um conceito relacional, que pressupõe a diferença. Podemos


observar que a definição identitária implica em um constante aprendizado de signos,
referências e influências, construída em função da alteridade, isto é, no confronto com o
outro. Podemos nos apropriar da perspectiva de Barth (2000) sobre a identidade étnica e
expandi-la para outras/diversas identidades: a identidade seria algo relacional e
situacional, pois se constitui a partir de categorias de atribuição e identificação
construídas pelos próprios atores dentro de seu(s) grupo(s). Assim sendo, diversos
elementos característicos do grupo social (língua, moradia, vestuário, padrões de
comportamento) são negados ou exibidos/(re)produzidos pelos indivíduos deste grupo,
conforme a situação e o contexto. Cabe aqui, então, o entendimento da construção de
identidades masculinas e femininas sob esse prisma do ‘conflito’, constituído também
nas relações que se estabelecem com base na alteridade, nas semelhanças e diferenças
entre o ‘eu’ e o ‘outro’.
A construção de uma identidade masculina, por exemplo, pode ser feita como
contraponto de outra identidade que ela não é – o ‘outro’, ou a ‘diferença’. O indivíduo
precisa convencer os demais e a si próprio de que não é uma mulher, um bebê ou, ainda,
um homossexual (DUTRA, 2010; DAMATTA, 1997). Isto significa que, ao construir
sua versão individual de comportamento masculino, o homem deve ‘provar’
socialmente – dar-se a ver e ser visto - que não possui ou reproduz padrões de
comportamento que são próprios de outras identidades.
E é justamente nesse ponto que reside o problema: a identidade masculina “é
hesitante justamente por estar articulada, obsessivamente, sobre esta negação (…); no
mundo masculino, as afirmações de virilidade apoiam-se em escoras externas, de modo
que a falta de um único elemento coloca em risco todo o edifício” (DUTRA, 2010, p.

65
365). Por exemplo, ao longo do tempo, foi construída socialmente a ideia de que
‘homens não choram’. Assim, indivíduos do sexo masculino que (repetidamente)
choram em público têm sua masculinidade questionada – tanto por si quanto por outrem
– justamente por apresentarem um padrão de comportamento atribuído ao feminino (ou
ao homossexual, ou ainda – saindo do âmbito da sexualidade e tocando na questão da
maturidade - ao bebê).
Dessa forma, para se compreender o masculino, é necessário relacioná-lo ao
feminino “e vice-versa, e para entender a ambos é necessário entender a
homossexualidade. A homossexualidade masculina é parte constituinte, e constitutiva,
da masculinidade, o mesmo valendo para o lesbianismo em relação à feminilidade”
(TORRÃO FILHO, 2005, p. 145).
A identidade masculina, ao se definir - de forma reacional e relacional - pela
negação de outras identidades, engendra certas performances de gênero, estabilizadas
socialmente como o cortejo e o desempenho sexual bem-sucedido. Como aponta Gomes
(2003, p. 827): “o homem também pode concentrar a sua preocupação de, mesmo sendo
equipado para funcionar como macho, falhar na hora H. Nesse sentido, mais do que ter
um pênis, é saber se relacionar”. Nesse ponto, como aponta DaMatta (1997), o ‘saber se
relacionar’ desloca a questão do ‘ser homem’ para o ‘sentir-se como homem’, ou seja,
ser socialmente validado e legitimado como ‘homem’ – tanto por outros ‘homens’
quanto por ‘não-homens’.
Para os homens, como já foi indicado, a construção da representação
homem/macho passa por correlações entre atividade sexual e gênero (FLAUSINO,
2002). Ser definido como ‘homem’, ‘macho’, ‘masculino’ é também legitimar uma
relação de poder e dominação sobre outras identidades - feminino, homossexual etc.
(SEFFNER, 2003).
De acordo com Oliveira (2004, p. 285), apesar de todas as mudanças
sócioestruturais e todos os movimentos que continuamente contestam a hegemonia
masculina, “esse lugar simbólico ainda é bastante valorizado e funciona como bússola
de orientação para a construção de identidades em diversos segmentos sociais”.
Devemos lembrar, porém, que a identidade masculina e a identidade feminina se
constroem em cima de caracteres variáveis e, por isso, são conceitos mutáveis. Com
isso, levando-se em consideração a realidade de incertezas experimentada pelos
indivíduos em nossa sociedade atual, pode-se afirmar que:

66
“(...) é característica muito difundida dos homens e mulheres
contemporâneos, no nosso tipo de sociedade, eles viverem permanentemente
com o ‘problema da identidade’ não-resolvido. Eles sofrem, pode-se dizer, de
uma crônica falta de recursos com os quais pudessem construir uma
identidade verdadeiramente sólida e duradoura, ancorá-la e suspender-lhe à
deriva” (BAUMAN, 1998, p.38).

Como apontam Soares & Meyer (2003) e Butler (2003), entre outros autores,
complexificando esta discussão, no mundo contemporâneo não há espaço para
delimitações estanques: ao longo da nossa vida, experimentamos identidades múltiplas,
fragmentadas, mutantes, de forma concomitante e, às vezes, conflituosa. Não é por
acaso que, na sociologia contemporânea, os papéis de gênero masculino e feminino são
tratados como ‘masculinidades’ e ‘feminilidades’: estão propositalmente no plural com
o intuito de enfatizar a diversidade de papéis e identidades de gênero.
Atualmente, a fragmentação de um padrão hegemônico de comportamento
masculino, da identidade masculina única, é um dos fatores que está por trás desse
problema de identidade apontado por Bauman (1998). De acordo com Goldenberg
(2000), talvez esteja realmente em crise a mais tradicional das identidades masculinas,
construída ao longo do tempo por uma sociedade patriarcal como instrumento de
dominação. Ou seja, este modelo hegemônico de masculinidade - com base na força,
poder e virilidade - deve conviver, na atualidade, com outras formas de expressão do
comportamento masculino.
Com o surgimento em nossa sociedade, ao longo do tempo, de variadas formas
de vivenciar a masculinidade, podemos também entender que “o masculino não está em
crise, uma vez que ele, em si, é um gênero que vive em estado de crise permanente e
endêmica na sociedade patriarcal. Nesse sentido, a masculinidade não é algo dado, mas
algo que constantemente se procura conquistar” (GOMES, 2003, p. 827).
Experimentamos, na atualidade, a possibilidade de construirmos a sexualidade
masculina a partir de outros referenciais.
Identidades e papéis, tais como ‘heterossexual’, ‘homossexual’, ‘homem’ ou
‘mulher’, estão para além da questão do ‘ser’: são resultados de um processo de ‘tornar-
se’. Este processo de ‘tornar-se’
“envolve aprendizagens profundamente inscritas no corpo, aprendizagens
essas que são invisibilizadas e apresentadas como comportamentos normais,
‘naturalmente’ decorrentes de uma dada anatomia sexual e/ou de uma dada
configuração hormonal que marcaria estes corpos com determinadas
identidades sexuais e de gênero desde o nascimento” (SOARES & MEYER,
2003, p. 138).

67
No que tange aos gêneros e à sexualidade, atualmente, podemos perceber não
apenas que se multiplicaram as posições, mas sobretudo que não se pode mais lidar com
elas a partir de esquemas binários simplistas e tipificados, tais como
masculino/feminino, heterossexual/homossexual:
“o desafio maior talvez seja admitir que as fronteiras sexuais e de gênero vêm
sendo constantemente atravessadas e – o que é ainda mais complicado –
admitir que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a
fronteira. A posição de ambiguidade entre as identidades de gênero e/ou
sexuais é o lugar que alguns escolheram para viver” (Louro, 2008, p.21).

Pelo exposto, podemos concluir que ‘sexo’ – tanto o ato sexual quanto tudo
aquilo que diz respeito a ele (corpos, gêneros, papéis, performances etc.) – é
processualmente produto e produção de uma pedagogia cultural socialmente pautada. O
sexo transcende aquilo que é puramente biológico. E, de fato, também não se esgota na
ideia dicotômica de sexo/biológico e gênero/cultural.
Butler (2003) aponta a prática sexual como uma questão de performance ou atos
performativos. Qual seja, trata-se de um conjunto de atos reiterados, são frutos do
aprendizado de atos performativos no processo de ‘tornar-se’.
Atos e gestos são sempre performáticos. Dessa maneira, o gênero precisa ser
considerado como algo maior que uma expressão cultural do sexo: é intencional e, por
si só, performático4. Entendendo que gênero é uma construção social complexa,
modelada e reinventada incessantemente por subjetividades atuantes, compreendemos
que não há de fato papéis sexuais biologicamente determinados: a maleabilidade do
gênero aponta para a própria complexidade do ser - especialmente entendido como um
ser social - e das estruturas sociais que o abrigam e que atuam sobre ele.
Maleabilidade e flexibilidade são mais do que fatores expressivos do não-
binarismo do gênero. Tais elementos são bastante demonstrativos de que os papéis de
gênero apresentam uma diversidade grande de roteiros e possibilitam uma ampla
variedade de performances.
Assim sendo, ao entendermos que sexualidade e identidades de gênero são
questões de performatividade, de desempenho de papéis, podemos entender que a
própria construção de masculinidades e feminilidades está intrinsecamente ligada a essa

4
Butler (2003) entende que gênero é performativo porque a repetição de atos, gestos e signos –
produzidos no âmbito cultural - reforça a construção dos corpos masculinos e femininos. Sendo assim, o
gênero é um gesto performativo que produz significados. É também um ato intencional no sentido de que
essa performatividade, através da (re)produção de oposições binárias - construídas dentro do pensamento
ocidental, tais como macho/fêmea, homem/mulher, masculino/feminino – teria primordialmente o intuito
de assegurar uma estabilidade à matriz heterossexual de comportamentos, práticas etc.

68
lógica de aprendizado e de introjeção de papéis5. Apesar das ambiguidades, impõe-se
socialmente, como já se viu, uma espécie de script legítimo a ser seguido, no que tange
aos comportamentos dos indivíduos dentro da sociedade.
No âmbito da sexualidade, dificilmente há algum tipo de reflexão prévia do
indivíduo que o leve a compreender e mesmo a buscar formas de escapar desses
‘roteiros sexuais consagrados’: assim como no comportamento social, em termos de
relacionamento e sexo - no âmbito da prática sexual - existem scripts delineados para
tudo. Como aponta Gagnon (2006), o ser humano, em todos os aspectos da sua
existência, tende a responder a um roteiro de pré-disposições, performando e reiterando
padrões de comportamento, recriados.
Esses atos, porém, nunca estão desprovidos de sentido e significados. Segundo a
perspectiva de Bozon (2004), para que os seres humanos executem atos sexuais, não
basta que aprendam os procedimentos, faz-se necessário elaborar e atribuir sentido ao
que consideram sexual. É através dos roteiros ou scripts que os indivíduos podem
identificar e significar atos, sensações, palavras, estados corporais, atribuindo-lhes uma
conotação sexual, por exemplo. Sua função primordial é, então, de estruturação do
imaginário social e, assim, da performatividade desempenhada no estabelecimento das
relações sociais, interpessoais e individuais.
Embora pareça que, na argumentação de Gagnon (2006), haja uma relação
fatalista de mera reprodução de roteiros, podemos compreender que seguir um script
não implica necessariamente em reproduzi-lo com fidedignidade: a própria
experimentação durante os atos sexuais se torna um amálgama, uma adaptação do
roteiro à performance como pode ser realmente executada. Quase como se fosse pelo
método da tentativa-e-erro, vamos testando scripts e descobrindo como funcionam,
quais funcionam melhor em cada situação e mesmo como modificá-los para gerar uma
experiência mais prazerosa (ou mais adequada ao que se espera).
Como apontam Bozon (2004) e Gagnon (2006), um dos elementos de maior
importância para esse percurso são os veículos de circulação dos bens culturais
(literatura, cinema, novelas etc.). Apresentam relatos, cenários e performances que
funcionam como protocolos de orientação (os roteiros e scripts) para a definição e

5
Por introjeção entende-se o processo pelo qual o ser humano incorpora valores, ideias e padrões de
comportamento – que lhes são apresentados pelos pais, escola e outras instituições da sociedade -
transformando-os em seus próprios. Essa estratégia de introjeção também está relacionada ao conceito de
habitus, de Bourdieu (2007), que se refere à capacidade de incorporação de uma determinada estrutura
social por parte dos agentes/indivíduos, por meio de disposições para sentir, pensar e agir.

69
redefinição dos significados da sexualidade. Como já foi notado, a mídia tem um
importante papel na construção de identidades, de comportamentos e de subjetividades,
pois seus discursos acionam efeitos de ‘verdade’. Pode-se, ainda, afirmar que a mídia
“pode ser considerada como um espaço educativo, uma vez que produz conhecimentos
a respeito da vida, do mundo que nos cerca, de como devemos ser ou nos comportar, do
que devemos gostar” (FELIPE, 2007, p. 254).
Reconhecer-se numa identidade midiática é resposta, em termos de audiência, a
uma interpretação da realidade. É também uma resposta que confirma a aceitação de
pertencimento a um grupo social. Assim, sobre as identidades e sua multiplicidade:
“nada há de simples ou de estável nisso tudo, pois essas múltiplas identidades
podem cobrar, ao mesmo tempo, lealdades distintas, divergentes ou até
contraditórias. Somos sujeitos de muitas identidades. Essas múltiplas
identidades sociais podem ser, também, provisoriamente atraentes e, depois,
nos parecerem descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e abandonadas.
Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes. Portanto, as
identidades sexuais e de gênero (como todas as identidades sociais) têm o
caráter fragmentado, instável, histórico e plural” (LOURO, 2000, p. 06).

Dessa forma, ao aceitarmos que corpo, gênero e identidade são elementos que se
constroem de acordo com as relações e suas posições dentro da sociedade, podemos
inferir também que o comportamento sexual humano é socialmente instruído. Assim
como aprendemos a ficar em pé, a andar, a correr, a comer, também aprendemos a fazer
sexo.
E esse aprendizado também pode derivar da observação e apropriação de
modelos: “aprendemos a viver o gênero e a sexualidade na cultura, através dos discursos
repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis e também, contemporaneamente,
através dos discursos dos movimentos sociais e dos múltiplos dispositivos tecnológicos”
(FLAUSINO, 2002 p. 22-23).
A mídia, na atualidade, também assume esse aspecto ‘manualista’, à medida que
oferece e valoriza padrões de comportamento (SOARES & MEYER, 2003). A mídia
contemporânea exerce grande impacto nas relações sociais que se estabelecem entre os
indivíduos, impondo seus ‘conselhos’ e ordens de entendimento. Somos afetados por
seus mecanismos de justificação, controle e censura, por suas potentes pedagogias
culturais:

70
“‘Especialistas’ das mais diversas áreas dizem-nos o que vestir, como andar,
o que comer (como e quando e quanto comer), o que fazer para conquistar (e
para manter) um parceiro ou parceira amoroso/a, como se apresentar para
conseguir um emprego (ou para ir a uma festa), como ‘ficar de bem com a
vida’, como se mostrar sensual, como aparentar sucesso, como... ser. (…)
Conselhos e palavras de ordem interpelam-nos constantemente, ensinam-nos
sobre saúde, comportamento, religião, amor, dizem-nos o que preferir e o que
recusar, ajudam-nos a produzir nossos corpos e estilos, nossos modos de ser e
de viver” (LOURO, 2008 , p. 18-19, grifos do autor).

A arte erótica e a pornografia mexem com a imaginação, aguçam os sentidos,


despertam o desejo. Para além do aspecto de entretenimento, está também em jogo uma
dimensão propositiva, de exemplaridade valorada. Pode, então, ser vista como um
referencial socialmente produzido, pela grande influência do filme pornográfico, de
modo a atuar na construção e reprodução de padrões de comportamentos sexuais
humanos.
Por exemplo, as novelas produzidas no Brasil têm uma força persuasiva muito
grande na vida cotidiana das pessoas que as assistem (GOMES, 1998). É comum ter
‘surtos’ de crianças com nomes semelhantes, inspirados em algum personagem de
novela. Itens de vestuário e acessórios, especialmente aqueles utilizados por atores e
atrizes que estejam em grande evidência na mídia, ganham as ruas, as colunas e frames
de moda, disparam no mercado. “O imperativo da visualização, se pode inegavelmente
dar margem a encantadoras produções imagéticas, pode também incidir perniciosamente
no modo como concretamente vivemos nossas vidas, percebemos o mundo e nele nos
inserimos” (ROCHA & CASTRO, 2009, p.55).
A pornografia, por estar ancorada a este tipo de variabilidade cultural e por sua
vinculação com o lúdico, com a diversão, com o mundo do entretenimento, tem trilhado
um caminho que radicaliza sua aproximação com a ‘lógica de mercado’. Esta produz
imagens, corpos, performatividades muito próprias, que alimentam demandas
específicas.
Tal como acontece na novela – em outras expressões massificadas de
arte/entretenimento - a indústria do filme pornográfico, de certa forma, vende ilusões,
fantasias, sonhos. Muitas vezes, essas representações da realidade podem ultrapassar as
circunstâncias do mundo real, se tornando ícones e ditando padrões de comportamento -
mesmo os comportamentos sexuais humanos, inseridos no âmbito do pessoal, da
intimidade, da subjetividade.
Levando isso em conta, o papel desempenhado pelos meios de comunicação
social torna-se mais importante na formação e (re)processamento do imaginário social

71
cada vez mais interligados e, por isso, cada vez mais amplos. A naturalização de
conteúdos massificados estabelecidos pela economia de mercado pode fazer parte dos
padrões de comportamento socialmente aceitos (DURAND, 2010).
No caso da pornografia, trata-se da reprodução e naturalização de padrões
desejáveis de comportamento, para além do âmbito sexual. Com isso, criam-se
expectativas as mais variadas acerca do desempenho sexual do indivíduo. As ilusões e
expectativas, quando transportadas para a prática, podem gerar resultados diversos. Isto
pode ser observado ao colocarmos em análise o modo como, por exemplo, a novela
‘retrata’ elementos de nossa sociedade, bem como fornece novos marcadores culturais
que influenciam em nosso comportamento (FISCHER, 2002). É uma espécie de ciclo de
realimentação. E o mesmo acontece com os filmes pornográficos.
Neste ponto, cabe indagar: como o comportamento sexual masculino é
apropriado no filme pornográfico e mesmo na construção de ‘masculinidades’ – e por
outro lado como conformam práticas e sentidos considerando que tais produções, em
sua maioria, se voltam para um mercado composto por homens?
Como qualquer dispositivo midiático, apesar de também construir um discurso e
impor comportamentos para o público feminino, o público-alvo da ação midiática do
filme pornográfico é o público masculino, independentemente de sua orientação sexual
(DÍAZ-BENÍTEZ, 2010; MORAES & LAPEIZ, 1985).
Conforme foi apontado por Díaz-Benítez (2010), no contexto de produção do
filme pornográfico, uma série de fatores ‘vendáveis’ (de acordo com os padrões
mercadológicos) são levados em consideração. No que diz respeito aos atores e atrizes
que estrelam as produções, há diversos elementos acerca do corpo e da postura em cena
que são exigidos em função da imagem que se quer vender.

72
Figura 11 – Imagens de ‘corpos masculinos’ na internet
A figura mostra os primeiros resultados encontrados numa busca por imagens na internet. O parâmetro de
procura foi o termo genérico ‘corpos masculinos’. Ao observarmos essas imagens, podemos notar alguns
padrões referentes ao corpo masculino idealizado, tais como a musculatura bastante trabalhada, o
posicionamento para ressaltar essa musculatura, o semblante mais ‘fechado’ (sérios, sem exibir sorrisos),
as cuecas bem justas para marcar/acentuar o volume do pênis. Há uma predominância de corpos jovens.
A ausência de pelos corporais, por exemplo, é notável e tornou-se um elemento estético importante para a
indústria pornográfica, pois permite uma melhor visualização da musculatura, do corpo e especialmente
do pênis.

Um exemplo desse tipo de estética e de comportamento diz respeito aos homens


que atuam como ativos/penetradores nos filmes heterossexuais ou gays. Sobre esses
homens recaem expectativas e cobrança de atitudes e posturas consideradas másculas –
de ação, de potência, de mando. Trata-se de vender uma masculinidade idealizada,
assentada numa preferência comum. Os homens devem possuir pênis de tamanhos
consideráveis, não só porque um pênis grande é visualmente estimulante para os
espectadores/consumidores, mas também porque, durante a felação ou penetração,
permite uma melhor captação de imagens no processo de filmagem.
Essas imagens de virilidade cultivada e transmitida pelo corpo, bem como a
potência ensaiada pela performance, conteúdos estabelecidos pela Indústria Cultural,
tornam-se referências exemplares, reais ou imaginadas, para o cotejo das práticas
cotidianas. O consumidor/espectador deseja ser como aquele ‘garanhão’ que ele vê nos
filmes, deseja ter um corpo igual ao dele, um pênis tão grande quanto o dele, quer
penetrar mulheres e/ou homens tão bonitos ou instigantes quanto aqueles que ele vê na
tela, espera que seus parceiros sexuais também tenham a resistência, a flexibilidade e o
desempenho que os atores e atrizes demonstram nos filmes.
Por comparação, imitação ou reinterpretação, os consumidores fermentam outros
comportamentos e outros segmentos do mercado como o de adereços, de indumentárias,
de ‘trilhas’ sonoras, atiçando a teatralização do gozo. É compreensível que as pessoas –
especialmente o público consumidor de pornografia - queiram reproduzir padrões
apresentados pelo filme pornô, se sujeitando a uma cobrança (auto)imposta no uso do

73
corpo e no desempenho de papéis. A construção dos diversos comportamentos pode,
então, ser afetada pela introjeção de uma série de fatores externos, de modelos e
exemplos que são reproduzidos, recriados ou sistematicamente refutados.
O comportamento sexual não se restringe apenas ao âmbito do ato sexual em si,
mas envolve toda uma gama de elementos que está direta ou indiretamente ligada a este
ato: a autoestima, o estilo de buscar contato, de mostrar o desejo, o peso das opiniões
alheias, as expectativas próprias e as do parceiro6.
É nesse âmbito que cabem diversos questionamentos acerca da expectativa e da
cobrança em cima do desempenho sexual humano e especialmente, nesta dissertação
sobre o desempenho masculino: são os ‘homens’ mostrados no pornô? Que imagens de
masculinidade são produzidas por esses filmes para além daquelas já indicadas no
texto? Quais os ideais de masculinidade que são produzidos na pornografia
contemporânea? Quais são as performances que se espera que sejam reproduzidas? A
indústria do filme pornô está gerando uma demanda por uma performance sexual
específica?
O comportamento sexual é construído, entre outros modos, como já se frisou,
através da observação e reprodução de padrões contidos nos filmes pornográficos.
Podemos perceber também que a lógica do mercado impõe ao filme pornográfico uma
estética e um roteiro próprios e bem delineados.
Se o padrão de corpos e comportamentos apresentado pelo filme pornográfico é
algo que povoa o imaginário coletivo, mas que está bem longe do que pode ser
encontrado ou reproduzido, é possível inferir que, quanto mais longe da realidade do
indivíduo se encontra tal lógica e tal estética, maior é o grau de frustração (sexual) do
indivíduo? Por sentir-se incapaz de reproduzir estes padrões estabelecidos pela
indústria, há um potencial crescimento em sua insatisfação, em seus sentimentos de
inadequação? 7 Não conseguir (re)produzir um padrão apresentado leva a repensar sobre
esses padrões?
Ao tratarmos de uma ‘realidade’ – e de uma demanda de consumo de uma
‘realidade’ – poderíamos também perguntar: as sex tapes – registros não profissionais
da performance sexual - são uma expressão mais próxima da realidade performática do

6
Nesse aspecto, tomamos como ponto de partida a ideia de Goffman (1989) de que o desempenho dos
papéis sociais está relacionado à maneira como cada indivíduo concebe a sua própria imagem e pretende
mantê-la.
7
Ver a propósito a imensa publicidade bombardeada na internet de ‘soluções’ para aumento do pênis,
contra a impotência, a ejaculação precoce e tantos outros exemplos de ‘problemas’ que afetam na
performance e no desempenho sexual.

74
ato sexual? Que realidade performativa é essa? Quanto que essa performatividade está
próxima ou distante da pornografia mainstream?
Uma das características mais marcantes da pornografia, para além dos embates
entre o público e o privado, o socialmente aceito e o marginalizado, moral e imoral,
explícito e implícito, é que ela se define pelo seu caráter libertário e transformador.
Libertário porque abre espaço para explicitar práticas e representações sexuais
liminares. Transformador porque produz padrões e comportamentos sexuais não apenas
secretamente desejados pelos seus consumidores, mas também marcantes em sua vida
sexual.
Por que a pornografia, que desponta há séculos como algo libertário e
transformador, insiste em retratar papéis e performances de gênero calcados num ideal
dicotômico – masculino/feminino já tão arguido nos debates sobre gênero e
sexualidade? Poderia a pornografia se libertar dos ‘grilhões’ do mercado que a prendem
- coerção, espetacularização atlética, domesticação ou perversão dos corpos, já
cristalizados e naturalizados em nossas sociedades - e agir de forma realmente
transformadora? Através da pornografia, é possível na produção audiovisual e nos
debates contemporâneos ressignificar o corpo, o sexo, os gêneros e a própria
sexualidade humana?

75
SHOWTIME:
Uma câmera na mão, muitas ideias na cabeça

“Metade do mundo não consegue compreender os prazeres na outra metade”.


- Jane Austen -

As sociedades estão em constante transformação. Nada é estanque: ideias,


mentalidades, conceitos, moralidades etc. estão sempre sujeitos a mudar. Podemos
perceber, por exemplo, que algumas mudanças no padrão de comportamento sexual
humano se processam conjuntamente com as transformações de desejos, expressões e
mesmo inovações tecnológicas. Como foi visto no primeiro capítulo, a evolução técnica
dos suportes (papel impresso, gravura, fotografia, estereoscopia, litografia, cinema...) da
pornografia acompanharam o desenvolvimento tecnológico. Então, não é de se admirar
que a pornografia na contemporaneidade tenha adquirido novos contornos e recursos,
com o acesso cada vez maior à internet e aos diferentes gadgets1.
Na década de 1990, ainda nos primórdios de utilização da internet pelo público
em geral, algumas das principais finalidades desta rede mundial de computadores eram
facilitar a comunicação, estabelecer relações, criar vínculos, desenvolver comunidades
e, é claro, veicular os mais diversos tipos de conteúdos (ABREU, 2009). Com isso, mais
e mais serviços foram sendo desenvolvidos voltados para este ambiente, ampliando o
espaço da virtualidade na vida das pessoas.
A chamada ‘vida virtual’ hoje se tornou uma parte integrante da sociabilidade,
especialmente dentro das sociedades ocidentais. Há diversos exemplos de plataformas
onde avatares são criados e convivem entre si em espaços virtuais de socialização. É o
caso dos buddy pokes – avatares que faziam parte da rede social Orkut e que
apresentavam pequeno nível de detalhamento técnico, usados para desempenhar ações
básicas de contato social com outros avatares.

1
Gadgets (ou gizmos) são equipamentos que tem um propósito e uma função específica, prática e útil no
cotidiano. São comumente conhecidos por essa alcunha os dispositivos eletrônicos portáteis como PDAs,
celulares, smartphones, leitores de MP3, entre outros. Também pode se referir a pequenos softwares,
módulos, ferramentas ou serviços agregados a um ambiente maior (podendo ser chamados de widgets).
Os gadgets possuem um forte apelo de inovação em tecnologia, sendo considerados como tendo um
design mais avançado ou tendo sido construídos de um modo mais eficiente, inteligente e incomum.
Assim, em muitos casos, adquirem uma função social de status (além da lógica finalidade do aparelho),
especialmente quando se tratam de equipamentos ostensivos. Há também uma ‘fetichização’ do gadget,
ou seja, a lógica de mercado alimenta o desejo do público consumidor em possuir determinados gadgets,
a ponto de alcançar prazer com o status que essa posse proporciona.

76
No mesmo caso, podemos falar do Second Life2, uma plataforma com alto grau
de detalhamento, não apenas no quesito técnico mas também no âmbito das regras e
normas que regem a vida social neste ambiente virtual.
De certa forma, essa crescente virtualização da vida social também explica o
sucesso de diversos outros ambientes virtuais, tais como sites de relacionamentos e
social media: se é verdade a máxima de que a internet encurta distâncias e diminui
barreiras, é compreensível e justificada uma transposição da vida social para os
ambientes virtuais.
Obviamente, esse avanço da internet também possibilitou um acesso mais
amplo, rápido e fácil aos conteúdos pornográficos. Temos desde as trocas de sexpics3
através de ferramentas de chat4 (SLATER, 1998), perpassando por performances em
frente de câmeras em ambientes virtuais e sites de telepresença5, até o acesso integral às
grandes produções da pornografia mainstream.

2
O Second Life (ou SL) é um ambiente virtual e tridimensional que simula aspectos da vida real e social
do ser humano. Criado em 1999 e desenvolvido em 2003 pela empresa Linden Labs, o SL é o mais
conhecido e mais populoso dos ambientes virtuais atuais, contando com cerca de um milhão de usuários
ativos. Dependendo do tipo de uso, pode ser encarado como um jogo, um mero simulador, um comércio
virtual ou uma rede social, embora no SL não haja objetivos específicos a serem alcançados ou missões a
serem cumpridas. Traduzindo do inglês, o nome Second Life significa ‘segunda vida’, que pode ser
interpretado como uma vida paralela, uma segunda vida além da ‘principal’, a ‘vida real’ (referida como
Real Life ou simplesmente RL pelos usuários). Esta aplicação em 3D cria um meta-universo para
comunidades virtuais, simulando com fidedignidade um ambiente tridimensional através da animação em
3D e avatares. Como apontam Leitão & Gomes (2012), graças ao realismo da animação, os avatares
podem sentir, ver ou experimentar uma interação real. O corpo do avatar é parte ativa do processo de
existir e interagir com e no ambiente. A criação de um avatar implica na construção de sua aparência, mas
também considera sua socialização na plataforma a partir de sua identidade própria. O sucesso desse tipo
de plataforma deve-se especialmente à imersão, que é “o principal diferencial dos mundos virtuais,
demarcando inclusive suas fronteiras com relação a outras plataformas digitais online. A imersão poderia
ser relacionada com a produção de presença e, no caso dos mundos virtuais, teríamos um tipo de presença
no qual não apenas temos a sensação de que o outro está presente, mas no qual sentimos que estamos lá,
noutro ambiente, nesse caso um ambiente digital e virtual” (LEITÃO & GOMES, 2011, p. 24). É
importante levar em consideração que, apesar da experiência de uma vida virtual similar à vida real, um
dos chamarizes do SL, bem como de ambientes semelhantes, é o relativo anonimato nas redes. Este
anonimato permite certas liberdades que seriam impraticáveis na vida real. Na internet, o indivíduo
‘anônimo’ pode ser quem quiser, quem almeja ser. O anonimato permite a utilização de ‘máscaras’ e a
construção de ‘personas’.
3
Imagens, geralmente pessoais, de nudez parcial ou total, masturbação, fetiches e/ou outras atividades de
cunho sexual. São fotos entendidas como qualquer material sexualmente explícito, amplamente trocadas
via web.
4
Significa conversação ou ‘bate-papo’ em inglês. Refere-se, aqui, a sites, programas ou aplicações
utilizadas para conversação em tempo real, tais como o mIRC, ICQ, Skype, Viber, Whatsapp ou outros
sistemas de mensageria instantânea. Além da conversa com elementos textuais, muitos desses
mecanismos podem permitir o compartilhamento de arquivos entre os usuários (SLATER, 1998).
5
Basicamente, telepresença é a denominação que se dá a um ambiente virtual compartilhado por
diferentes usuários (que podem estar geograficamente em lugares distintos), onde tais indivíduos estão
imersos e interagem em maior ou menor escala (KLEINSORGEN, 2014).

77
Com diversos computadores ligados em rede – e, no caso, uma enorme rede que
possui alcance mundial – a amplitude da difusão do material pornográfico atinge níveis
cada vez mais altos:
“Só para dar uma amostra do peso da pornografia na internet: de acordo com
algumas pesquisas quantitativas, cerca de 40% das atividades realizadas
online envolvem algum conteúdo pornográfico. Uma das pesquisas neste
sentido, conduzida pela HitWise (empresa de consultoria e marketing online)
em 2008, calcula que cerca de 10% das buscas feitas pelos internautas
envolvem pornografia (sex e porn aparecem como algumas das palavras mais
procuradas no Google). Outras pesquisas feitas em 2009 afirmam que, em
média, 43% dos usuários da internet ao redor do mundo acessam material
considerado pornográfico e que 35% de todos os downloads realizados
envolvem pornografia” (PARREIRAS, 2012, p. 200).

Com o avanço da internet, é marcante a entrada maciça dos produtos de cunho


pornográfico de forma mais direta nas casas e nas vidas das pessoas.6 O ambiente online
permite interação em tempo real e a própria colocação do internauta – por meio de seu
avatar e da virtualização de seu corpo – no meio da cadeia de relações:
“As experiências de cyberporn de hoje podem abranger alugar ou comprar um
DVD, fazer o download de um jogo, logar em um site como cam.whore,
comprar um one-shot-only pay for play, visitar variados websites que oferecem
diversos shows sexuais e orientações, ou interagir através de sexo virtual
através dos corpos de seus avatares em jogos ‘massively multi-player’ como o
Second Life” (WILLIAMS, 2008, p. 321).

Quando falamos em ‘facilidades de acesso’, não ficamos restritos apenas às


facilidades proporcionadas pela internet. De olho no mercado consumidor, diversas
indústrias investiram massivamente na produção e popularização de aparelhos
eletrônicos, ampliando os limites do alcance tecnológico. Investiram também em
tecnologia de ponta, para tornar os produtos cada vez mais ‘apetecíveis’ ao consumidor,
especialmente no caso dos gadgets. Isso pode ser percebido especialmente nos últimos
quarenta anos: através das diferentes décadas, nota-se a popularização de diversos
aparelhos eletrônicos, tais como televisores, videocassetes, filmadoras, câmeras

6
Em se tratando de avanços tecnológicos, há uma reportagem recente do jornal O Globo (09/08/2015)
que apresenta uma série de inovações na área dos ‘brinquedos sexuais’, na busca por experiências de sexo
‘quase real’. A matéria cita a criação de ambientes virtuais para encontros sexuais, com o suporte da
internet, câmeras e vibradores que, sincronizados, permitam para os participantes a reprodução do
movimento na outra pessoa. Chama-se a atenção ainda para as bonecas ultrarrealistas: artesanalmente
criadas em silicone para reproduzir com certa fidelidade o corpo humano - e depois incorporadas à
indústria pornô para a satisfação sexual - há projetos que pretendem incorporar elementos robóticos e
inteligência artificial a essas bonecas, para proporcionar mais realismo a elas (ou aos seus consumidores).
Nota-se que existe uma preocupação crescente com o hiperrealismo, com uma relação cada vez mais
próxima da verossimilhança sensorial que o ato sexual provoca. A matéria pode ser acessada no link:
<http://oglobo.globo.com/sociedade/brinquedos-tecnologicos-oferecem-sexo-quase-real-17131491>.
Acesso em 10/08/2015.

78
fotográficas (primeiramente as analógicas, depois – e massivamente – as digitais),
telefones celulares cada vez mais bem equipados etc.
Então, por facilidades de acesso também podemos entender, por exemplo, a
chegada das câmeras filmadoras domésticas às mãos do cidadão comum, propiciando
uma expansão de pequenos filmes caseiros de sexo – e, subsequentemente, sua
transformação em uma espécie de gênero da pornografia.
Não é mais necessário todo um aparato tecnológico para se produzir um vídeo
pornográfico caseiro: com apenas um simples aparelho (um notebook, um tablet ou
mesmo um smartphone) pode-se gravar imagens, editá-las e, se for o caso,
disponibilizá-las na internet.
Há, inclusive, vídeos de conteúdo pornográfico que não envolvem pessoas
‘reais’, feitas de ‘carne e osso’. Em algumas buscas pela internet, podemos encontrar
vídeos que mostram a interação sexual de avatares do Second Life, por exemplo. Ou
mesmo podemos encontrar diversos filmes pornográficos que utilizam variadas técnicas
de animação. O mais impressionante é que é tudo feito de maneira amadora, rápida,
fácil e gratuita.

Figura 12 - Interações sexuais utilizando o Second Life.


Numa pesquisa rápida por figuras ou vídeos no Google, podemos encontrar uma infinidade de imagens
7
pornográficas, produzidas com utilização de avatares do Second Life e tecnologias de fácil utilização.

Conforme aponta Leite Jr. (2006), a adoção da perspectiva da ‘câmera subjetiva’


- que acompanha o ponto de vista do ator/protagonista – nos filmes pornôs é uma
espécie de inovação na técnica cinematográfica e na narrativa que traz em si uma
mudança no modo de se comunicar com o público: ao acompanhar a ação pelo ângulo

7
Se entendermos que essas interações sexuais que ocorrem num ambiente virtual se dão entre pessoas
reais, cabe questionar: esse tipo de pornografia se encaixaria na produção de fitas caseiras de sexo?

79
do protagonista, o espectador deixa de ser uma audiência passiva (ou seja, sem tomar
parte na ação), tornando-se ele próprio um elemento atuante, sujeito da ação, tal como
um ‘voyeur ativo’ ou mesmo um... ‘observador-participante’.
Por conta das tais ‘facilidade de acesso’, não é mais necessário um know-how
específico, uma expertise para utilizar os programas de edição de vídeo e de áudio.
Além disso, com a mobilidade que a tecnologia ganhou com o desenvolvimento dos
diversos gadgets, percebe-se um aumento de possibilidades de produção,
comercialização e interação.
Dessa forma, qualquer pessoa é um potencial produtor de conteúdos para a web,
o que pode ser percebido claramente pelo aumento expressivo na rede de videologgers –
ou vloggers, indivíduos que usam plataformas virtuais de vídeo (como o YouTube, por
exemplo) para hospedar seus vídeos caseiros com conteúdos variados: esporte, política,
religião, música, moda, opiniões diversas etc.
Se a expansão da produção e difusão de conteúdos amadores foi impulsionada
pelo avanço tecnológico, podemos entender que essa perspectiva se reflete
especialmente nos conteúdos pornográficos8: expande-se a quantidade de vídeos
amadores, “o aparecimento de uma série de sites com interação via webcam e, como um
efeito interessante desse processo, o fortalecimento de gêneros alternativos ao
mainstream, como, por exemplo, o altporn9, o kink10 (pornografia BDSM11 e fetichista)
e a pornografia feminista” (PARREIRAS, 2012, p. 202).

8
Plataformas que hospedam vídeos e imagens costumam ter políticas de utilização e regras rígidas sobre
conteúdos permitidos e proibidos no site. Apesar de constante varredura e fiscalização, há várias formas
de burlar esses controles, mesmo que momentaneamente. As políticas de segurança do YouTube, por
exemplo, ressaltam a proibição de material ‘ofensivo’, porém o usuário pode fazer upload de vídeos
pornográficos utilizando títulos e tags que nada tenham a ver com o conteúdo disponibilizado e, assim,
burlar por certo período de tempo os mecanismos de vigilância. Plataformas que hospedam pornografia
também tem regras específicas – especialmente sobre disponibilização e reprodução de conteúdo - e
mecanismos de controle (KLEINSORGEN, 2014), mas isso pode ser burlado com maior ou menor
facilidade.
9
Altporn é a abreviatura de alternative porn e refere-se à ‘pornografia alternativa’, um tipo de produção
geralmente independente (produzida por pequenos sites e/ou cineastas específicos com recursos próprios)
e que costuma envolver membros de ‘subculturas’, tais como os góticos, punks, ou ravers, entre outros
indivíduos que apresentam diversos tipos de modificações corporais (tatuagens, piercings e
escarificações, ou ainda cabelos tingidos com as chamadas ‘cores fantasia’, por exemplo).
10
Kink ou kinky é uma expressão de origem inglesa, que costuma qualificar algo como bizarro ou
pervertido. Refere-se, então, a um conjunto de práticas e desejos sexuais que são pouco usuais ou mesmo
socialmente inaceitáveis, tais como a escatologia e a zoofilia, entre outras. A terminologia é utilizada,
então, para qualificar e classificar os filmes pornográficos que retratam tais práticas.
11
BDSM é o termo para designar um conjunto de práticas sexuais: Bondage e Disciplina (BD),
Dominação e Submissão (DS), Sadismo e Masoquismo (SM). O objetivo é alcançar prazer sexual através
da troca erótica de poder, que pode ou não envolver dor, submissão, tortura psicológica, cócegas e outros
meios. Por padrão, a prática é aplicada por um parceiro(a) em outro(a). Muitas das práticas BDSM são
consideradas, num contexto de neutralidade ou não sexual, não agradáveis, indesejadas, ou desvantajosas

80
Grosso modo, entende-se como ‘amadora’ toda e qualquer produção que não é
profissional – são como categorias opostas. Podemos, inclusive, brincar com os diversos
sentidos que o termo ‘amador’ pode ter: trata-se não apenas da produção realizada por
alguém sem a devida qualificação profissional, mas também algo que é feito com
carinho, com amor. Assim, se amador é quem exerce um ofício ou arte mais por uma
questão de gosto pessoal do que pelo interesse profissional, podemos entender que uma
produção amadora esteja muito mais ligada a um investimento de ordem pessoal do que
algo voltado para comercialização. Porém, no que diz respeito à pornografia, existe uma
infinidade de subclassificações dentro da categoria ‘amador’. Há também toda uma
discussão acerca da categoria ‘amador’ como sendo parte integrante mesmo da
produção profissional da pornografia, como se fosse um gênero.
É nesse âmbito de ação da pornografia na (re)produção de conteúdos e
comportamentos sexuais - aliando-se a fetiches de exibicionismo/voyeurismo e às
facilidades de acesso à tecnologia de gravação - que despontam as chamadas ‘produções
caseiras’ de pornografia.
Termo de origem francesa, fetiche é um conceito comumente utilizado na
psicologia para se referir a determinados desejos e atividades sexuais, que podem ou
não ser tomados como ‘desviantes’. O termo tem relação direta com a palavra feitiço,
por conta da ‘magia’ e da ‘atração’ que certos objetos (e, subsequentemente, práticas)
exercem sobre o comportamento humano.
No âmbito da psicologia e da sexologia, o fetiche tem conotação sexual,
representando um comportamento específico que encontra prazer em certas atividades,
objetos ou partes do corpo. Também pode representar uma pessoa admirada/desejada
por outra.
O fetiche relaciona-se à fantasia e ao simbolismo que paira sobre algo,
projetando nesse objeto (ou numa pessoa tornada objeto) uma relação social definida,
estabelecida entre os indivíduos. Em se tratando de fetiches, a relação entre
exibicionismo e voyeurismo parece dar a tônica do interesse na produção e no consumo
dos vídeos caseiros.

(ZILLI, 2009). Porém, no contexto BSDM, estas práticas são levadas a cabo com o consentimento mútuo
entre os participantes, levando-os a desfrutarem em conjunto. No BDSM, preserva-se a segurança, bem
como os limites pessoais das partes envolvidas: as práticas devem ser sãs, seguras e consensuais. Apesar
da forte conotação sexual envolvida, as atividades de BDSM não envolvem necessariamente a penetração.
Talvez caiba aqui a ideia de Bataille (1987) de que o erotismo da situação está na transgressão, na ruptura
de certas normais sociais que regulam uma sexualidade considerada sadia.

81
A concepção comum de exibicionismo refere-se às condutas dos indivíduos em
busca de se fazer notar pelos demais. Porém, no âmbito sexual, o exibicionismo se
manifesta por um desejo quase incontrolável de obter satisfação sexual no fato puro e
simples de exibir seu corpo – por inteiro ou por partes – para outros indivíduos
(PELÚCIO, 2012). Ser visto é o fetiche, a exibição da própria performance sexual –
solo ou não – é o meio de alcançar o prazer.
Se por um lado temos os fetichistas que gostam de se exibir, por outro temos
aqueles que se interessam pela observação da performance sexual alheia. Chamamos de
voyeurismo a obtenção de prazer sexual pela observação de pessoas. Essas pessoas
podem estar envolvidas em atos sexuais, nuas, em roupa interior, ou com qualquer
vestuário que seja apelativo para o indivíduo voyeur (LEITE JR., 2006). Ver, observar,
acompanhar, este é o fetiche do voyeur: as imagens realmente enfeitiçam este tipo de
indivíduo.
A internet possibilitou que se criasse e se fortalecesse um grande canal de
contato entre esses públicos, espaços virtuais para a exibição e apreciação dos
comportamentos íntimos das pessoas. Sobre a questão da preservação da intimidade em
contraposição à grande exposição da privacidade que é proporcionada pela internet,
podemos citar uma reflexão feita com base num site de live webcam:
“é curioso notar que, num ambiente supostamente dedicado a um público de
‘exibidores e voyeurs’, milhares e milhares de perfis de usuários de mais de
uma centena de países preocupem-se em preservar a ‘privacidade’ do sujeito
em contextos distintos das performances amadoras online. Mesmo os
performers que optavam preferencialmente e tornavam-se reconhecidos no
portal por suas performances da nudez, da exibição da masturbação e de
relações sexuais naquilo que venho chamando de ‘jogos de sedução da
atenção’ não fugiam do temor de serem ‘flagrados’ fora do CAM4, muito
embora não exista qualquer recurso que limite ou selecione a
audiência/público-interator das performances. Como disse anteriormente,
sequer é necessário um cadastro para observar qualquer uma das milhares de
janelas de exibição, sendo obrigatório apenas para compartilhar a transmissão
de sua webcam ou para interagir nos chats anexos às performances. Em
outras palavras, não há nada que impeça que um vizinho, parente, colega de
trabalho ou namorado(a) encontre por acidente e reconheça um dado
performer” (KLEINSORGEN, 2014, p. 16).

Assim, “não se trata mais apenas de um espectador passivo que olha para a tela,
mas de um corpo/avatar que interage e que se transforma em alguém que produz (o
exemplo que ela mais explora são os sites de interação por webcam)” (PARREIRAS,
2012, p. 206).
Temos, então, o surgimento e a popularização daquilo que se chama sex tape.
Este anglicismo refere-se à fita ou ao vídeo de sexo tipicamente caseiro. É considerado

82
também um tipo de vídeo amador, no sentido de não ser algo ‘profissional’ ou mesmo
de, inicialmente, não fazer parte da produção mais tradicional da pornografia.
Tais gravações de vídeo podem envolver duas ou mais pessoas engajadas em
algum tipo de interação sexual, bem como podem conter apenas imagens de uma única
pessoa exibindo partes do seu corpo, nudez completa e/ou atividade masturbatória.

Figura 13 - Imagens extraídas de sex tapes comuns na internet.


Pode-se notar que não há uma preocupação muito grande com a estética, bem como outros detalhes
técnicos (cenário, maquiagem, iluminação, enquadramento e mesmo a qualidade do material utilizado e
produzido). Trata-se, de fato, de material amador, caseiro.

Em muitos casos, as sex tapes são divulgadas sem o consentimento dos


envolvidos na filmagem. Este tipo de filmagem caseira adquiriu certa notoriedade nos
últimos anos, não só por representar o crescimento de um fetiche pessoal, mas também
porque muitas delas envolvem uma ou mais pessoas famosas e/ou celebridades, o que
desperta o interesse de fãs e/ou das pessoas ‘comuns’.
Uma sex tape que, potencialmente, poderia prejudicar as carreiras das
celebridades12, na atualidade, apresenta em geral o efeito inverso: na maioria dos casos,
muitas celebridades têm se beneficiado da publicidade resultante da liberação de uma
sex tape.

12
No final da década de 1980, o jovem galã norte-americano Rob Lowe, estrela em ascensão, enfrentou a
crítica severa da opinião pública após o vazamento de uma gravação contendo seu intercurso sexual com
duas jovens que ele conhecera numa boate em Atlanta. Lowe só recuperou seu prestígio anos depois – e o
caso da sua sex tape ainda foi parodiado por ele mesmo numa apresentação no programa de comédia
“Saturday Night Live”. Para mais informações, acessar:
<http://www.people.com/people/archive/article/0,,20117104,00.html>

83
O surgimento desses vídeos de sexo caseiro e amadorístico se tornou tão comum
que algumas sex tapes são propositalmente divulgadas na mídia – como se tivessem
sido ‘vazadas’, isto é, divulgadas sem consentimento dos seus participantes e/ou
ilegalmente - como uma ferramenta de marketing para promover ou estabelecer uma
carreira13.
O principal exemplo de sucesso devido ao vazamento de uma sex tape é o caso
da socialite norte-americana Paris Hilton, ocorrido no início dos anos 2000. Conhecida
herdeira da rede mundial de hotéis Hilton, Paris e Rick Salomon - seu namorado, na
época - gravaram um vídeo caseiro de sexo num quarto de hotel. De alguma forma, esse
vídeo vazou na internet e se tornou um dos mais acessados em questão de minutos.
Paris Hilton, inicialmente, entrou com ações judiciais para impedir a difusão desse
material, porém a repercussão de sua sex tape foi tão grande que deslanchou a carreira
artística da socialite. Inclusive, segundo o jornal “The New York Times”14, Paris Hilton
lucrou com a venda e royalties da distribuição dessa sex tape, comercializada com o
título “Night in Paris” – uma brincadeira de duplo sentido utilizando a semelhança do
nome da capital da França e da protagonista do vídeo.
O vazamento de uma sex tape também abriu as portas da fama para a socialite
Kim Kardashian. Kim era conhecida por ser filha de um célebre advogado, responsável
pela defesa de um famoso jogador de futebol nos Estados Unidos. Em 2003, Kim
gravou um vídeo caseiro com seu namorado. Em 2007, após o término do
relacionamento, o vídeo de sexo de Kardashian vazou e se tornou um sucesso na
internet, mesmo contra a vontade da socialite. O grande êxito dessa sex tape deixou Kim
na mídia e, na esteira de seu sucesso, suas irmãs também se tornaram famosas, com a
exibição de um reality show sobre todas as elas, intitulado “Keeping Up with the
Kardashians” 15.

13
Num período em que o fenômeno da veiculação de notícias sobre vídeos com conteúdo erótico/sexual
de personalidades públicas ainda não tinha ganhado força, acredita-se que boa parte do material caseiro
exposto na internet era realmente ‘vazado’. Tais vídeo eram transpostos pra a internet por questões de
exibição pessoal, por ação maliciosa de pessoas para expor a intimidade do ‘protagonista’ da sex tape ou
mesmo por acidente. Parte desse material era oriundo, inclusive, de gravações não autorizadas de usuários
de serviços de live webcam. Assim, grande parte dos performers assíduos destes sites destacam em seus
perfis trechos de “leis de direito autoral sobre o uso de imagens de alguém e, principalmente, suas
penalidades e multas em caso de infração/desrespeito” (KLEINSORGEN, 2014, p. 09).
14
The New York Times, 03/03/2014, pode ser visto no link:
<http://www.nytimes.com/2006/03/19/fashion/sundaystyles/19tapes.html?_r=1&pagewanted=all&>
Acesso em 14/04/2015.
15
Extraído do artigo de Noelle Hancock – “Kim Kardashian to Sue Over Sex Tape Release” – para a
revista US Weekly, em 02/08/2008.

84
No caso de celebridades já conhecidas - tais como ator irlandês Colin Farrell, a
skatista norte-americana Tanya Harding e o cantor de rock Genne Simmons -, o
vazamento de sex tapes deu novo fôlego às suas carreiras: o crescente número de
acessos em função da curiosidade dos fãs gerou enorme repercussão e publicidade
gratuita para os artistas envolvidos e seus projetos artísticos em execução16.
Num âmbito mais pessoal, as sex tapes (sejam de famosos, sejam de anônimos)
representam um modo dos indivíduos expressarem sua sexualidade e seus fetiches.
Podem ser encaradas como uma representação da realidade. Afinal, assim como no
filme pornô tradicional e/ou mainstream, no ato sexual das sex tapes também há corpos,
identidades e performances.
Pode-se considerar que o objetivo das sex tapes, como pornografia alternativa, é
produzir um material com um discurso diferente da pornografia tradicional. O que se
pretende é que os conteúdos sejam mais diversificados, para além dos padrões
(estéticos, imagéticos etc.) mais rígidos e bem definidos do circuito mainstream:
“por detrás do empreendimento, há a vontade de criar em torno do pornô
alternativo uma comunidade de pessoas que partilham certas ideias e gostem
de uma determinada estética, cujo objetivo inicial é fugir dos ditames – de
corpos, sexualidades, desejos e prazeres - da pornografia mais convencional,
mas não se resume apenas a ela. Envolve um estilo de vida com músicas,
jeitos de vestir, lugares e pessoas que consomem esse estilo” (PARREIRAS,
2012, p. 200).

As tais ‘facilidades de acesso’, então, permitem um rápido crescimento de novas


formas de pornografia online e de gostos culturais que crescem em torno delas. Assim, a
pornografia alternativa – amadora, caseira – ganha novos contornos, tornando mais
difusas as fronteiras entre o mainstream e outras estéticas, “entre formas de sexo
comercial e não-comercial, entre consumo e comunidade e entre sexo como
representação e auto-apresentação, recreação e relação” (ATTWOOD, 2007, p. 453).
A ideia de uma sex tape é a de um olhar realista, que registra o sexo como um
ato performativo, sujeito a mais improvisos, deslizes impensados. Assim, as práticas
sexuais exibidas seriam entendidas como mais ‘naturais’, diferentemente das
performances coreografadas do pornô mainstream. Mas será que a sex tape realmente

16
No Brasil, a divulgação de gravações caseiras – contendo cenas sexo, masturbação e/ou pura exibição
da nudez – também parece estar mais voltada para satisfazer a curiosidade do público-consumidor, pois
tratam-se de vídeos de celebridades já estabelecidas na mídia, como o ator Kadu Moliterno e o jogador de
futebol Ronaldinho Gaúcho. Para alavancar a fama, o vazamento de sex tapes parece atingir
principalmente os participantes de reality show – caso de Jonas Sulzbach, Yuri Fernandes e de Ariadna
Arantes, primeira participante transexual de um programa do gênero.

85
está tão livre de reproduzir performances e papéis já cristalizados no nosso
entendimento e comportamento? A performatividade expressa nas sex tapes não é
afetada pela pornografia mainstream?
A própria ‘espontaneidade’ – um dos marcadores de ‘realidade’ e mesmo de
legitimação neste tipo de produção caseira - é algo que pode ser afetado pela simples
presença de uma câmera a ser usada na gravação. A perspectiva de estar sendo gravado
pode afetar o comportamento e o desempenho do ator/protagonista/produtor/performer.
Ao invés de gravar uma performance realmente mais próxima do sexo que costuma
praticar em sua intimidade, o(s) indivíduo(s) envolvido(s) pode(m) agir diante das
câmeras de uma forma diferente do usual, na tentativa de atender determinadas
expectativas de exibição seletiva, na condução/ direção do “olho mecânico”.
Num estudo sobre representações de nudez e sexo num portal adulto de live
webcam, Kleinsorgen (2014) aponta que essa espontaneidade não se refere a uma
postura neutra diante da câmera: o dispositivo faz parte da interação entre os sujeitos – o
que pode ser notado pelo ângulo (geralmente frontal) e o posicionamento direto para a
câmera – quase como que delimitando uma ‘espontaneidade-performática’. Ou seja,
diferentemente da perspectiva que demanda a separação entre ‘atores’ e ‘público’, é a
interatividade entre ambos que se torna o elemento que garante a autenticidade da
performance, norteando a atenção e o comportamento dos sujeitos nesse ambiente
virtual. Como em qualquer relação que se estabelece dentro da vida social, essa
interação é permeada por regras e pactos simbólicos (KLEINSORGEN, 2014). Criam-
se, assim, padrões de comportamento a serem reproduzidos, dependendo do quanto e do
como afetam as pessoas.
Essa mesma lógica circular de afetação se dá com a pornografia, em todos os
seus âmbitos: sua produção é balizada por parâmetros socialmente construídos, ao
mesmo tempo em que afeta a (re)produção de padrões de comportamento, como já foi
apresentado no segundo capítulo.
De acordo com Ellezam (2001), o filme pornográfico deve cumprir uma série de
critérios de desempenho na representação do objeto, sendo que tais critérios são os
elementos que garantem sua pertinência: a eficácia visual, a narrativa linear e única, e o
entendimento de que o espectador é uma espécie de ‘ator fora do campo’.
No que tange à eficiência visual, trata-se de “mostrar o ato [sexual] em todas as
suas formas possíveis, de todos os ângulos, sem omitir nada, independentemente da sua
qualidade ou natureza” (ELLEZAM, 2001, p. 78), utilizando-se de técnicas que

86
privilegiem essa visualidade exacerbada, envolvendo desde a utilização de diversas
câmeras - inclusive câmera subjetiva – até a direção cênica que exige dos atores um
verdadeiro trabalho de contorcionismo em certas posições sexuais.
A narrativa linear e única é outro fator primordial: se a intenção original do
filme pornográfico é provocar o desejo do espectador, o que importa de verdade, no
caso da pornografia, é o intercurso sexual longo, especialmente seu clímax. Tudo aquilo
que consta no roteiro além disso, é apenas ‘enfeite’, variações de tema para se chegar ao
objetivo principal: divertir e excitar o consumidor.
O terceiro critério de eficácia apontado por Ellezam (2001) trata-se de uma
tendência cada vez mais atual, que é a de encarar o espectador como um ‘ator fora
campo’. O espetáculo pornográfico encontra a sua completude quando atinge o olhar e
partilha a cumplicidade do espectador, que é chamado a interagir com essa produção,
seja como voyeur, seja como participante ativo.
A linearidade, o forte apelo visual e a inclusão do espectador são mais do que
marcas do sucesso de uma obra pornográfica: são elementos importantes na produção de
produtos culturais dentro das sociedades ocidentais atuais. A força desses critérios se
faz sentir especialmente dentro da pornografia, dadas as ligações de força e os
componentes culturais das sociedades onde é produzida. Como faz parte do
comportamento humano, a pornografia lida com intimidade e privacidade, trata de
práticas e técnicas e, dessa forma, é um elemento capaz de provocar simultaneamente
admiração e repúdio, curiosidade e repulsa (MORAES & LAPEIZ, 1985).
Além disso, a pornografia torna-se um produto industrializado, com tendências à
homogeneização da sexualidade. Porém, diferente de outros bens comuns e ordinários, é
um produto que estabelece uma relação diferente com seu consumidor (FRANCISCO,
2012), posto que este consumidor é chamado a participar direta ou indiretamente dela
(ELLEZAM, 2001). Por mais massificada que seja, cada experiência com a pornografia
é uma experiência individual e singular. Ao transpor-se para o centro da ação, o
espectador-ator das sex tapes está, assim, produzindo uma pornografia íntima, um
produto que é único, fruto daquilo que ele aprendeu e apreendeu a respeito de sexo, de
performance, de seu papel numa relação sexual.
Afinal, o filme pornográfico – desde a super-produção do circuito mainstream
até o mais simples dos vídeos amadores - pode ser entendido como um elemento
pedagógico de construção e de (re)produção de ideais de corpo, de masculinidade(s) – e

87
de feminilidade(s) -, de performance e, nesse mesmo âmbito, também de
performatividade.
A produção de peças de pornografia orienta um consumo e a formação de
demandas cada vez mais específicas, sempre antenada e bastante ligada às
transformações culturais.
Rocha & Castro (2009) apontam na direção da espetacularização do cotidiano
ao tratar de questões da imagem dentro da cultura do consumo e, particularmente, da
mídia. A produção dos filmes pornográficos segue a tendência de espetacularização dos
produtos culturais da sociedade atual. Como observa Debord (1997), vivemos, na
contemporaneidade, uma experiência de sociedade organizada em função da produção e
consumo de espetáculos, expressos através de imagens, mercadorias e eventos culturais.
De acordo com Kellner (2003, p. 05), espetáculos seriam fenômenos da cultura
da mídia “que representam os valores básicos da sociedade contemporânea, determinam
o comportamento dos indivíduos e dramatizam suas controvérsias e lutas, tanto quanto
seus modelos para a solução de conflitos”. Segundo esse argumento, toda a nossa
vivência, até mesmo as coisas mais simples e básicas do cotidiano, está sujeita a tornar-
se espetáculo e, portanto, produto para o consumo. A visualidade assume uma
centralidade na produção de espetáculos, já que a televisão está em praticamente todos
os lares, transmitindo os espetáculos especificamente desenhados (Debord 1997).
A pornografia, enquanto discurso do sexo e manifestação cultural, também não
escapa dessa tendência à espetacularização. Afinal, de forma contínua, “a difusão passa
a incluir nos programas televisivos e nas peças publicitárias conteúdos referidos à
sexualidade” (CARVALHO 2010, p. 218). O entretenimento é o principal produto
fornecido pela mídia, “que espetaculariza o cotidiano de modo a seduzir suas audiências
e levá-las a identificar-se com as representações sociais e ideológicas nela presentes”
(ROCHA & CASTRO, 2009, p. 50). São difundidos discursos e imagens muito
específicos acerca do prazer: “o erotismo transmitido pela televisão, pela publicidade ou
pelo cinema carregado de apelos sexuais, atua de forma impositiva. (...) Trata-se da
utilização, nos gestos eróticos, de movimentos e ações sígnicas, que buscam substituir
‘por pretender ser sua síntese’ a verdadeira atividade sexual” (MARCONDES FILHO
apud CARVALHO, 2010, p. 220).
Ao transformar o cotidiano em espetáculo, a televisão - assim como quaisquer
outros meios de comunicação de massa - produz novos significados (ou ressignifica os
antigos), de acordo com uma lógica de mercado (MAKSUD, 2008). A pornografia é

88
encarada para além das questões morais que suscita: regida pela lógica de mercado, se
transforma em produto, algo fabricado para dar lucro.
Seguindo a lógica da espetacularização do cotidiano e da busca por uma maior
similaridade com a experiência real, há também um apelo por uma maior participação
do espectador: para além de vídeos mais clássicos da pornografia mainstream,
encontramos diversas produções em que os atores interagem com a câmera como se
interagissem com o próprio espectador, quase que convidando-o a participar da ação.
São filmes amadores, normalmente, mas é uma tendência que pode ser observada
também no mainstream.
É nesse contexto, fortalecido pelo número crescente de reality shows e
impulsionado pelas facilidades de acesso às tecnologias, que fica marcado tanto o
surgimento das sex tapes quanto o despontar de um mercado consumidor desse tipo de
material. Como o registro do cotidiano é algo que faz parte da experiência humana
desde tempos muito remotos, é de se supor que o registro amador da intimidade sexual
também já exista há muito tempo: coleções fotográficas, por exemplo, mostram isso.
Aliado, pois, ao fetiche de exibição, à demanda por realidade, às facilidades
tecnológicas e a esse chamamento a uma participação mais ativa, o espectador se
desloca para o centro da produção. É o ‘boom’ das sex tapes, percebido desde meados
dos anos 2000.
Apontamos anteriormente que a pornografia possui um forte caráter libertário e
transformador. Ao entendermos que as sex tapes são um produto pornográfico, fruto da
expressão da realidade e da espetacularização do cotidiano sexual, elas se tornam um
importante objeto de estudos - especialmente para esta pesquisa.
As mudanças de mentalidade que acompanham a evolução tecnológica
produziram novas demandas e é nisso que consiste a inovação das sex tapes: os sujeitos
escapam da condição de passividade, de meros espectadores e se tornam eles próprios
produtores de um cotidiano transformado em espetáculo.
Novamente, podemos apontar uma relação de retroalimentação entre a produção
pornográfica e a lógica de mercado. A questão do realismo e hiperrealismo é
importante: enquanto a pornografia mainstream, embora bastante variada no que tange
aos temas que abrange, se volta para uma estética muito bem desenhada e definida que
envolve padrões de corpos e masculinidades bem delimitados e bastante idealizados, o
filme caseiro segue essa tendência de espetacularizar o rotineiro e mostra aquilo que se
considera como o ‘real’.

89
A fita de sexo caseira é feita pelos próprios agentes e isso lhe confere esse status
de realismo. Falar de (maior) realismo talvez seja falar da construção de uma ficção que
se apresenta a partir do hiperreal, mas de um hiperreal que se constrói como
caseiro/doméstico como ruptura de um padrão e que igualmente constrói e está ali
propondo um novo modo de apresentar o ato sexual e a intimidade. Na busca por essa
experiência de produção de um ‘realismo’, as sex tapes apresentam o sexo de outras
formas, diferentes daquelas apresentadas pela pornografia mainstream?
Dado que a produção de filmes pornôs é majoritariamente voltada para o
público masculino (DÍAZ-BENÍTEZ, 2010), foram escolhidos, nesta pesquisa,
indivíduos do sexo masculino, com idade superior a 18 anos, de vida sexual ativa e que,
de alguma forma, tenham participado de pelo menos uma sex tape – preferencialmente
com algum tipo de interação do entrevistado com ao menos um parceiro. Tal recorte se
deveu ao fato de que esses indivíduos seriam os mais diretamente afetados pela
pornografia no que tange à construção de performances, corpos e masculinidades,
justamente por serem o público-alvo deste tipo de produção cultural. Não importou a
orientação sexual, etnia ou credo do entrevistado, mas sim suas impressões e sua relação
com os conteúdos produzidos e expressos na pornografia. Os princípios na seleção, de
certa forma, buscaram garantir uma grande variedade de indivíduos entrevistados,
abrindo assim o espaço para uma variedade também grande de impressões, expressões,
relatos e proposições.
Como era necessário que o entrevistado tivesse participado de pelo menos
algum tipo de sex tape, foram priorizados os que tinham vida sexual ativa ou que, ao
menos, já tivessem iniciado sua vida sexual. O recorte de idade se baseou em questões
de maioridade legal, tanto com relação ao tema - que abarca questões de privacidade,
sigilo e intimidade - quanto à permissão/consentimento da utilização da entrevista na
pesquisa que se pretende desenvolver.
Foram selecionados 5 interlocutores, entrevistados entre maio de 2014 e julho
de 2015. O período de tempo parece longo, porém, apesar das facilidades de produção
de sex tapes encontradas por qualquer indivíduo, isso não significa que quaisquer
pessoas se sintam confortáveis para falar delas, da experiência de intimidade que elas
encenam. O primeiro passo foi quebrar essa barreira – um tanto incongruente - de
timidez e silêncio que se forma em torno da produção caseira de sex tapes.
Assim, após um período de buscas e de contatos com diversos indivíduos, de
uma série de doze possíveis candidatos que se mostraram interessados em contribuir

90
para este estudo, os cinco entrevistados foram escolhidos levando em conta sua
disponibilidade, a variedade de sujeitos (em termos de idade, de origens, de
preferências, de orientações sexuais etc.) e especialmente por causa da diversidade de
‘propostas de trabalho’ que suas sex tapes representavam.
Um dos fatores mais interessantes sobre os cinco interlocutores é que, na
condução da entrevista, para as mesmas perguntas-chave, numa grande miríade de
respostas diferentes, várias delas de entrecruzavam, desvelando um panorama de ideias,
impressões que, ao mesmo tempo, diferiam e se incluíam.
Nas entrevistas, pode ser percebido que a motivação maior da produção de uma
sex tape é... a busca do prazer. Mas não é necessariamente o prazer sexual, o clímax
decorrente do intercurso que se estabelece entre os corpos. Como a relação com a
pornografia é algo íntimo e pessoal, o prazer envolvido no registro de uma performance
sexual própria é bastante subjetivo. E, para além da relação sexual em si, esse prazer
pode apresentar uma ampla variedade de razões e de significados: está no fetiche de
registrar, de poder se exibir, de contar vantagens, de rememorar conquistas, de ser
admirado ou mesmo de admirar sua própria performance, entre outros.
Com base nisso, podemos notar três grandes vertentes que orientam a produção
das sex tapes desses entrevistados. Essas vertentes podem ser entendidas como a
motivação dos entrevistados para a produção de seus vídeos, o motor que os impulsiona
a performar diante de uma câmera.
Primeiramente, podemos apontar o caráter afetivo da sex tape. Um vídeo caseiro
pode ser o registro de um ato sexual prazeroso a ser guardado com carinho pelos
participantes, como sinal ou símbolo do afeto que existe entre eles.
Quando falamos de pornografia, de maneira geral, podemos entender que o ato
sexual é transposto do privado para o público e tornado um espetáculo. Junto com ele,
espetaculariza-se também o prazer através da super-valorização da corporalidade. O
eixo central da prática sexual se desloca do afeto que une os parceiros para o corpo. O
afeto é entendido como um estado psicoemocional que permite ao ser humano
demonstrar os seus sentimentos e emoções a respeito de outro ser. Pode também ser
considerado como o laço criado entre humanos, ou ainda o sentimento de
carinho/apego, intimidade ou mesmo de desejo (TEIXEIRA, 2009). Porém, para a
indústria do pornô regulada pelas necessidades de mercado, esse afeto é quase que
completamente dissociado das sensações de prazer experienciadas pelo corpo, como se
este corpo não fosse capaz de se emocionar para além dos sussurros ensaiados. Para que

91
seja transformado em espetáculo, então, o sexo deve estar centrado na corporalidade e
na performance sexual. Mas, de fato, essa corporalidade é negligenciada, já que são
priorizados nas narrativas os efeitos visuais. Mais que o culto ao corpo e ao prazer,
nota-se uma apologia da estética (FRANCISCO, 2012).
Ao considerarmos o caráter afetivo das sex tapes, no entanto, a produção
transcende essa questão da estrita corporalidade: no relacionamento que se estabelece
entre as pessoas que desempenham o intercurso, o que conta com mais força é o
vínculo17 estabelecido entre os participantes, a vontade de agradar o parceiro ao realizar
em conjunto uma fantasia, um fetiche. Ao tratarmos do caráter afetivo da sex tape, a
principal motivação é a necessidade dos envolvidos em construir juntos uma memória:
co-memorar. Essa é uma das rupturas que a sex tape promove com relação ao pornô
tradicional.
Esse tipo de concepção de agrado ao parceiro fica bastante evidente na entrevista
de Edu18. Apesar do fetiche da gravação ser algo majoritariamente ligado ao desejo do
seu parceiro, Edu se comprazia em desempenhar um papel nas gravações, pois seu
fetiche primordial era a satisfação do parceiro: “eu não era assim o foco da transa,
nunca fui (...), o fetiche sempre foi transar com ele, até hoje é! Gosto muito de transar
com ele”.
Kinkynoki19, em sua entrevista, ainda aponta o fetiche da gravação como algo
interessante para a dinâmica do relacionamento. Para ele, gravar o ato sexual é um ato
de afeto porque trata-se de uma estratégia de ‘apimentar’ a relação: “Eu acho isso
engraçado, como dar um pouco de spice na relação. Eu gosto de inovar, simplesmente,
eu gosto”.
Sobre as sex tapes, na fala de Edu, denota-se sua posição sobre o controle
afetivo da experiência “a gente via juntos (...), eu mostrava, ele via, depois eu deletava,

17
De acordo com o entendimento da Sexologia, com base na Psicologia Formativa, vínculos afetivo-
sexuais fazem parte da história humana. Unir-se em pares compõe ações de buscar e trazer o outro para si,
a fim de compartilhar algo. Esse pulso de proximidade/distância configura uma dança de corpos: dois
corpos com histórias e realidades próprias que se encontram para criarem uma nova história. Portanto, a
experiência da vinculação é essencial para o crescimento pessoal, pois atende a um anseio humano de
estabelecer contato e conexão com um ‘outro’ (TEIXEIRA, 2009).
18
Edu é professor de uma escola particular na zona oeste do Rio de Janeiro. À época da entrevista, tinha
35 anos, estava solteiro e morava só. Após contato travado através do Facebook, nos encontramos no bar
Sindicato do Chope, no Flamengo (Rio de Janeiro - RJ), onde foi realizada a entrevista em 27/04/2014.
19
Kinkynoki é documentarista, formado em cinema e entende bem de linguagem cinematográfica. É
mexicano e, na época da entrevista, tinha 28 anos e morava num quarto alugado na Gávea (Rio de Janeiro
- RJ). Veio ao Brasil para rodar um documentário sobre esportes. Único entrevistado heterossexual, tem
uma namorada brasileira (citada na transcrição da entrevista com o pseudônimo ‘Amorcito’), que mediou
nosso contato. A entrevista foi realizada em 31/08/2015, na minha casa (Botafogo - Rio de Janeiro - RJ).

92
tanto que eu não tenho, né? Tenho saudade, tenho vontade de ter, tenho
arrependimento de não ter, mas ao mesmo me sinto seguro em não ter”.
Já na entrevista de AfroDotado20, por exemplo, fica bem marcado esse interesse
em guardar e reatualizar a experiência afetiva como prova de distinção, relativizando a
saudade. Ao falar de suas fotos e da sex tape gravada com uma personalidade da mídia,
AfroDotado aponta o caráter de recordação (para si) e mesmo de colecionismo (para o
parceiro) da gravação: “Ele disse que fez isso com outras pessoas, então eu acho que
eles meio que guardam isso. (...) Eu fiz a minha pra eu levar como recordação, tipo, já
que é pra guardar recordação da celebridade, então eu vou tirar foto também.
Entendeu? Então, eu fiz isso”.
MachoAtivoRio21 também aponta um caráter fetichista na conservação de uma
memória na gravação de um vídeo caseiro: “Tem pessoas que (...) querem gravar pra
guardar aquilo, como uma recordação, sei lá... aí é uma fantasia da pessoa também”.
Além do testemunho materializado na narrativa fílmica, a sex tape se torna um
objeto de estimação. Objetos e histórias tornam-se inseparáveis, elementos
indissociáveis (DASSIÉ, 2010). Assim, uma sex tape pode ser entendida como
lembrança afetiva ou nostálgica de um momento, de todo um relacionamento, de
pessoas específicas. Cabe notar que os três entrevistados que executaram essas
gravações caseiras de cunho primordialmente afetivo paradoxalmente dizem ter
‘perdido’ este material, interditando a consulta22. É possível pensar que guardar, neste
contexto, talvez signifique preservar a sex tape do olho intruso, devolvendo-a à esfera

20
AfroDotado é arquiteto e designer, autônomo. À época da entrevista, o carioca radicado em São Paulo
há cerca de 4 anos tinha 40 anos de idade, estava solteiro e morava em num apartamento alugado junto
com uma amiga. Conheci o entrevistado através de um grupo secreto, criado no Facebook por um amigo
em comum há cerca de 2 anos. AfroDotado é um dos administradores e um dos membros mais
participativos do grupo. No grupo há uma intensa troca de experiências e informações, ricos debates sobre
assuntos diversos (porém, notadamente, os debates de temática sexual dominam os tópicos de discussão),
indicações de filmes, livros, eventos. Há também uma grande difusão e troca de diversos materiais
eróticos (fotos, sites, textos etc.). A entrevista foi realizada em 22/11/2014, no lobby do hotel San
Gabriel, em São Paulo.
21
MachoAtivoRio é carioca e mora só desde 2003. À época da entrevista, tinha 51 anos de idade, estava
solteiro e levava uma vida sexual bastante ativa. Homossexual assumido, é militante e participou por
muitos anos de uma ONG voltada para orientação e auxílio do público LGBT. É professor universitário
em duas instituições privadas, exercendo cargo de coordenação de curso numa delas. Ele mantém um
blog, onde divulga as sex tapes que ele mesmo produz. Os vídeos podem ser encontrados no link:
<http://www.machoativo.blogspot.com.br/> (Acesso em 12/03/2015). A entrevista foi realizada em
09/03/2014, no apartamento do entrevistado, no Catete (Rio de Janeiro – RJ).
22
Embora todos lamentem (com certa nostalgia) não possuírem mais esse tipo de material, somente
Kinkynoki alegou problemas de ordem técnica como justificativa por não possuir mais a sua pornografia
íntima. Como os entrevistados não possuíam – ou disseram que não possuíam - mais essas sex tapes, isso
impossibilitou a análise da produção deles. Mas as entrevistas fornecem um panorama interessante sobre
esse eixo afetivo norteador da produção.

93
secreta da intimidade. Nesses casos, a finalidade das sex tapes não era a de exibir, nem
de disponibilizar o vídeo para outras pessoas além das envolvidas na gravação.
A segunda vertente que norteia a produção das fitas caseiras de sexo trata do
fetiche da exibição nas sex tapes. Como apontado anteriormente, para uma gama de
indivíduos a exibição é um forte componente de satisfação sexual. Essa exibição pode
ocorrer em vários locais – próprios para isso ou não – mas é inegável que a internet se
tornou um meio privilegiado de alcançar este prazer. A exibição do corpo e da própria
performance sexual é, portanto, um fetiche que alimenta a produção de pornografias
íntimas.
O caso de MachoAtivoRio é o exemplo mais claro dessa questão da exibição
norteando a produção de sex tapes: ele mantém um blog, onde divulga os vídeos que ele
mesmo produz. Os vídeos pornográficos que ele produz contam tanto com suas
performances solo (exibindo seu corpo, seu pênis, se masturbando) como acompanhado
de algum outro parceiro. Segundo MachoAtivoRio, seu objetivo primordial não é
produzir um tipo de vídeo profissional, mas sim o prazer de realizar um fetiche: “Meu
objetivo é uma coisa, uma fantasia minha. É realizar uma fantasia sem fins
profissionais. É fazer uma coisa caseira mesmo”.
De acordo com sua entrevista e com o material disponibilizado no seu site, é
importante mostrar o corpo, o pênis ereto, uma ejaculação farta, uma performance
sexual visualmente interessante. O que se vê, para ele, tem que ser atrativo, tem que
comunicar aos olhos do espectador a potência e a virilidade da pessoa23, tem que
produzir excitação e fascínio em quem (o) aprecia.
Aliado ao prazer, há uma espécie de auto-adulação na exibição e/ou
disponibilização do material pornográfico produzido. Como afirma MachoAtivoRio:
“Eu gosto de fazer. É uma coisa que me dá prazer. Já me deu muito mais prazer porque
eu já tive mais tempo disponível pra fazer todo esse processo de editar, não sei o que.
Hoje nem tanto. Mas eu gosto. É uma coisa que... é por conta do narcisismo mesmo, do
exibicionismo”.

23
É interessante apontar que, por maior que seja o prazer de MachoAtivoRio em gravar suas
performances em vídeo e disponibilizá-las na internet, o entrevistado afirma não se sentir confortável em
desempenhar esse mesmo tipo de ação num ambiente... ‘real’. Ou seja, se engajar em atividades onde a
exposição ao vivo do ato sexual é permitida – e até mesmo incentivada – é algo que passa longe do prazer
de exibição de MachoAtivoRio, como podemos perceber em suas próprias palavras: “Ao vivo, não. Eu
não faço. E aqui no Rio existem festas, ‘Festa do Apê’ etc., as pessoas transam e as outras ficam
olhando, é o tipo de coisa que eu não gosto. Eu nem vou. Até já fui pra ver como é que era, mas eu não
gosto. (...) Sério, eu não ficaria tranquilo, (...) confortável”.

94
Essa questão do orgulho de sua produção também pode ser percebida quando
MachoAtivoRio fala da receptividade do público acerca de sua própria performance. É
com um sorriso de satisfação nos lábios que ele diz: “E muita gente me fala isso, ‘ah, eu
bati punheta vendo seus vídeos’. Aí eu falo assim, ‘ah, que legal’, entendeu? (...) Eu
gosto disso”.
Receptividade do público parece ser, então, um quesito importante para esse tipo
de sex tapes, já que o fetiche da exibição exige que a performance apresentada atinja
algum tipo de público, de espectadores, de pessoas que possam apreciá-la visualmente e
comentá-la na rede ou nas rodas.
Com relação ao exibicionismo e a divulgação do material, é interessante notar
que MachoAtivoRio tem uma preocupação - que parece ser comum aos que produzem
sex tapes por fetiche de exibição - com o alcance de difusão de seu material. Como diz
MachoAtivoRio: “Existe uma estatística disso, quantas visualizações foram feitas, qual
o período”.
Nas plataformas de disponibilização de material pornográfico caseiro há uma
série de instrumentos para verificar a quantidade de visualizações dos vídeos, entre
outros dados estatísticos. Essa quantificação funciona como um elemento que confere
maior prazer a MachoAtivoRio, pois seu fetiche de exibição se alimenta da perspectiva
de uma quantidade cada vez maior de acessos.
Além do aspecto da quantificação, há uma preocupação também com um
marketing pessoal e mesmo com o estabelecimento de uma rede de contatos. Como
aponta MachoAtivoRio em sua entrevista:
“se você divulga muito o blog e existe um buzz na internet, e aquilo é muito
divulgado, propagado, muita gente vê, visualiza e comenta. É interessante
você analisar, também, são os comentários que as pessoas fazem sobre os
vídeos, muitas se candidatando a ser filmados também. (...) Tem um
marketing [pessoal] também. Isso tem um marketing muito forte. Quanto
mais você se divulga, mais você consegue seguidores, gente pra seguir seu
blog etc. etc. etc. Ou você se torna favorito de algumas pessoas em sites de
relacionamento também”.

A entrevista de SaJoao24 também aponta um direcionamento positivo quanto a


isso:

24
SaJoao é natural de Vitória (ES), mas mora no estado do Rio de Janeiro há cerca de 10 anos, tendo se
mudado inicialmente para a Niterói para cursar a graduação em Cinema na Universidade Federal
Fluminense (UFF). À época da entrevista, SaJoao tinha 29 anos e dividia o aluguel de um apartamento
amplo em Botafogo com outros 3 amigos. Declaradamente homossexual, estava solteiro e tinha vida
sexual ativa. A entrevista foi realizada em 28/07/2015, na residência do entrevistado, em Botafogo (Rio
de Janeiro - RJ).

95
“A receptividade que eu tô vendo é, obviamente, majoritariamente, de
público gay masculino, de pessoas que vem falar comigo, assim, de pessoas
que eu conheço e que eu não conheço, que vem se manifestar. Em relação a
isso, é uma receptividade muito positiva, tanto no sentido de ser algo que as
pessoas consideram mais uma coisa que elas consomem de pornografia,
então logo que elas acham excitante, acham bonito de ver, como o projeto
em si, o discurso do projeto, a questão política envolvendo o que eu faço no
Tumblr25”.

A participação do espectador, nesse tipo de pornografia caseira, tem uma função


dupla: além do elemento voyeurístico que instiga o prazer do agente da exibição,
encontramos no feedback fornecido pelo espectador uma forma de validar a produção da
excitação26.
Mas, em termos de participação, existem outros sujeitos além dos espectadores
que são necessários para a produção de pornografia caseira. Excetuando-se as sex tapes
que apresentam performances solo, a produção de pornografia caseira exige a
participação ativa de um ou mais agentes, sujeitos que interagem sexualmente na
gravação. A participação de mais de uma pessoa no vídeo caseiro esbarra quase sempre
em duas questões importantes: a coragem de realizar o fetiche e o consentimento
negociado para exibição.
SaJoao delimita bem essa questão da coragem – ou da falta dela – de se envolver
na produção de pornografias domésticas:
“existe uma relutância muito grande das pessoas participarem do projeto.
Porque muita gente chega e fala ‘eu acho lindo, maravilhoso’, e aí eu falo
‘então vamos fazer uma coisa juntos’, e a pessoa fala ‘mas aí já é demais,
isso aí eu não tenho coragem’. Ou já até acha errado, vê aquela coisa como
muito distante, como sempre ‘o outro’, não se coloca no lugar, não
necessariamente se identifica com as questões que eu tô querendo tratar no
projeto”.

Essa declaração de SaJoao realça a ideia de transgressões convenientes ligadas a


um certo padrão de moralidade vigente nas sociedades atuais e, de certo modo,

25
Tumblr é uma plataforma que permite aos usuários publicarem textos, imagens, vídeo, links, citações,
áudios, entre outros conteúdos. Os usuários são capazes de ‘seguir’ outros usuários e verem suas
publicações em seu painel (dashboard). Também é possível ‘favoritar’ (gostar/curtir) ou ainda ‘reblogar’
(que consiste em compartilhar) os conteúdos de outros usuários.
26
Podemos citar aqui a argumentação de Goulemot a respeito de ilustrações do século XVIII para
compreender um pouco melhor o papel do espectador/consumidor de material cultural produzido com a
intenção de provocar excitação. Interessa ao autor compreender, a partir do livro “Thérèse Philosophe”
(1748), os modos pelos quais essas ilustrações eram feitas com o intuito de mobilizar o interesse e o
‘desejo libertino’ do leitor. Nesse tipo de livro, a “narrativa pornográfica utiliza técnicas particulares
colocando o leitor na posição de voyeur” (GOULEMOT, 2001, p. 32, tradução nossa). Esse olhar intruso
e anônimo é conduzido por representações de detalhes como a porta entreaberta, o buraco da fechadura, a
nesga através da cortina, que permitem ver sem ser notado, uma intimidade sexual desvelada. Essa
possibilidade – que causa paradoxalmente repúdio e/ou admiração - é um fator preponderante na
experiência do prazer de quem se exibe.

96
corrobora a visão do senso comum que entende a pornografia, em contraposição ao
erotismo, como o sexo do ‘outro’. Assim sendo, por maior que seja o apuro técnico ou
artístico envolvido, a pornografia – especialmente a caseira e de baixo orçamento - está
majoritariamente associada uma ‘alteridade’ muito própria - a saber, às camadas sociais
de menor poder sociocultural (LEITE JR. 2008; FRANCISCO, 2012).
Conforme apresentado no primeiro capítulo, a pornografia é um discurso
considerado obsceno justamente porque traz à cena aquilo que se quer deixar fora de
cena. A produção de pornografia caseira, então, não escapa de ‘áreas veladas’, de
silenciamentos e interdições. De novo, se coloca aqui a questão da circulação dessas
produções e dos próprios sensos de exibição pública. De um lado estão aqueles que
disputam a larga difusão como promoção e gozo íntimo, de outro os que gostam de se
expor, mas em circuitos mais controlados, evitando - pela extensa circulação e pelo
olhar grosseiro - a degradação e o rebaixamento do corpo e das cenas mostradas.
Como aponta SaJoao, com certa indignação, em sua entrevista,
“hoje em dia, todo mundo tem celular na mão, todo mundo tira foto pelado,
tira foto transando, grava vídeo transando, manda pros amigos. Mas aí,
colocar num Tumblr pra qualquer pessoa ver, aí já é demais! Sendo que você
pode gravar no seu celular, mostrar pra um amigo e esse amigo vai pegar
esse vídeo e passar pra uma cacetada de gente que vai ver essa porra de
qualquer jeito”.

A exibição pública como forma de produzir excitação seria a contraparte dessa


área de obscuridade e suspeição em que a pornografia é colocada. Logo, a produção e a
disponibilização das sex tapes faz parte de um caminho de desvelamento, de trazer à
tona imagens, corpos, papéis, de forma a provocar questionamentos acerca da nossa
sexualidade.
Em se tratando de interdições, poderíamos encarar a questão do consentimento
com uma delas. Afinal, via de regra, se a participação no vídeo caseiro envolve a
concordância mútua dos participantes, a permissão para divulgação e circulação do
material é uma exigência apontada por quase todos os que produzem sex tapes com a
finalidade de exibição – ou, pelo menos, apontada pelos entrevistados.
Afinal, quando da gravação do intercurso sexual, não há apenas um
agente/produtor envolvido, nem sempre as motivações que levam à produção da sex
tape são as mesmas ou têm o mesmo peso no processo decisório. Por exemplo, se
tomarmos uma situação em que um dos parceiros pretende satisfazer seu fetiche de

97
exibição enquanto o outro se motiva pelo afeto da recordação, pode haver um conflito
de interesses com relação à exibição/circulação da sex tape.
Podemos citar ainda, como exemplo, os vários casos documentados nas mídias e
nas redes sociais sobre a chamada revenge porn: como forma de ‘vingar-se’ do parceiro
após o término do relacionamento, um dos agentes da sex tape faz circular publicamente
algum material pornográfico que envolva a ação/agência sexual deste parceiro. Cabe
apontar que não só o material é disponibilizado sem o consentimento – com a intenção
de desmoralizar o parceiro – como, em vários casos, o próprio material pode ter sido
gravado também sem a concordância do parceiro envolvido27.
Como apontado anteriormente, a exposição involuntária dessas pessoas pode ser
prejudicial: pode abalar carreiras de celebridades, mas pode também afetar
negativamente a vida social/profissional/pessoal de pessoas comuns, já que a exposição
da intimidade sexual ainda é algo considerado impróprio para a maioria das pessoas.
Como MachoAtivoRio e SaJoao são os entrevistados que demonstraram um
interesse na divulgação do material pornográfico produzido - cada um deles tem seu
próprio local de exibição das sex tapes - a atenção sobre a questão do consentimento
tornou-se pauta nas entrevistas.
MachoAtivoRio afirma, por exemplo, que seus vídeos são gravados em comum
acordo com os parceiros e que a disponibilização dos mesmos depende do
consentimento prévio deles:
“Eu, quando faço um vídeo, normalmente é com o intuito de colocar na
internet. (...) E tem a questão de se respeitar a privacidade do outro. Porque
muitos caras têm namorada, ou são casados com mulher, ou são casados
com homem. (...) Tem uma série de coisas específicas que eles não deixam ou
deixam. Tipo, não ligo. (...) E mesmo aquelas que deixam ser gravadas e
deixam que eu coloque no Disponível28 ou em qualquer outro site, depois, se
elas me pedem pra tirar, ‘ah, MachoAtivoRio, eu não quero que fique aí,
pode tirar?’, eu tiro. Eu respeito muito a opinião do outro. Se quer que eu
deixe disponível ou não. Porque é uma fantasia. E aí, o outro entra na sua
fantasia também. E, às vezes, ele descurte aquela fantasia, acha que tá sendo
exposto29 e eu tiro também”.

27
Apenas AfroDotado admitiu ter feito fotos de conteúdo explícito sem o consentimento dos indivíduos,
porém sua finalidade era apenas afetiva/colecionista. Além das sex tapes que gravou com consentimento
das parceiras, Kinkynoki revelou ter feito pequenos vídeos no celular, com segundos de duração, de suas
atividades sexuais, mas não ficou claro se houve consentimento ou não das parceiras. Em ambos os casos,
nenhum desses materiais chegou a ser disponibilizado para circulação e/ou apreciação alheia.
28
Disponível ou Disponível.com é um site de relacionamentos entre homens, onde podem ser
disponibilizados fotos e vídeos, inclusive de teor pornográfico. De acordo com a propaganda do próprio
site, trata-se do “maior site de relacionamento gay do Brasil com mais de 800 mil homens do mundo todo
buscando namoro, sexo, amizade, relacionamentos e muito mais”. Pode ser acessado através do link
www.disponivel.com, mas para ter acesso aos conteúdos do site é preciso criar um perfil pessoal (ou
login).
29
Cabe notar o uso por MachoAtivoRio da palavra ‘exposto’. A exibição é valorizada positivamente,

98
SaJoao resolveu esse problema de outra forma: ele se propõe a gravar sex tapes
somente se o parceiro, de antemão, consentir com a (futura) exibição: “Não
disponibilizaria [uma sex tape cujo parceiro não consentisse a exibição], mas eu já não
gravaria também com a pessoa, porque isso já deveria ser discutido de antemão, pra
mim”. SaJoao aponta que dificilmente se proporia a disponibilizar uma gravação que
não fosse prioritariamente voltada para exibição.
Nota-se que o consentimento se constrói nas constantes negociações entre os
agentes da sex tape. A preservação da identidade dos participantes é algo que veio à
tona nas entrevistas, no que tange à construção desse consentimento. De acordo com a
entrevista de MachoAtivoRio e observando seu material disponível, há uma
preocupação em não deixar visível o rosto do parceiro (utilizando toucas/máscaras
próprias para isso) ou outros sinais de identificação (como uma camisa ou uma meia
que escondem uma tatuagem, por exemplo).
SaJoao revela que, em seu primeiro vídeo, os dois outros participantes
concordaram com a exibição e disponibilização dos vídeos desde que sua identidade
fosse preservada. Assim, a solução encontrada foi manter os rostos dos indivíduos
sempre fora do enquadramento das cenas: somente outras partes de seus corpos foram
exibidas na sex tape.
Podemos notar que até na questão do consentimento há uma série de acertos que
norteiam a construção da concordância na participação e exibição das sex tapes. Por
mais que haja concordância, há velamentos e interdições, demarcadas pelo uso de
máscaras ou pelo enquadramento que oculte rostos e/ou outros sinais de
reconhecimento dos indivíduos engajados na atividade sexual do vídeo caseiro30. Estes
cuidados são mais evidentes nas gravações cujo eixo norteador é a exibição para
produção de excitação (seja do produtor, seja do espectador).

levando em consideração que gera prazer na satisfação de fantasias. Esse entendimento se contrapõe à
noção de exposição, que carrega um forte valor negativo, pois pode resultar num efeito desmoralizante
dos sujeitos envolvidos na sex tape quando esta é transposta desse âmbito de fantasia para uma ‘vida
real’. Percebe-se que, no jogo de negociação de consentimentos, há um embate entre esses valores de
fantasia e os valores da vida corrente.
30
É interessante perceber, nessas estratégias de velamento, uma contraposição às regras de ‘retrato’,
convencionadas desde o século XVIII: ao se fotografar corpos, o rosto é o centro da imagem. Enquanto as
regras de fotografia preconizam uma valorização dos elementos de identificação, as sex tapes apresentam
uma preocupação que segue no sentido oposto: os rostos e marcas reveladores da identidade devem ser
preservados, protegidos da exposição ou exibição. No que diz respeito às representações corporais da
produção caseira, podemos dizer que há um corpo recortado, de nome oculto no sexo explícito...

99
No caso específico do uso de enquadramentos que escondam marcas identitárias,
pode-se perceber, na análise dos vídeos de MachoAtivoRio e de SaJoao, uma certa
preocupação estética com esses arranjos. Afinal, se o objetivo destes entrevistados é
exibir para produzir excitação, é compreensível que haja uma preocupação com a
estética da produção. Até a entrevista com SaJoao, um aspecto importante da produção
de vídeos caseiros havia passado despercebido: a questão da ambição artística e/ou
estética da produção de sex tapes. Em maior ou menor escala, de acordo com os
entrevistados, existe uma preocupação estética que pode ser percebida basicamente por
dois elementos: apuro técnico e preocupação com corpo e performance, relativizando a
ideia corrente das sex tapes como uma produção mais artesanal, livre dos padrões
estabelecidos.
De todas as entrevistas anteriores à de SaJoao, apenas Kinkynoki havia
brevemente revelado uma certa preocupação com a qualidade artística de suas sex
tapes:
“Eu estava fazendo um projeto de filosofia e o professor pediu pra eu fazer
um vídeo, assim, como um ‘autorretrato’. Então, aí eu comecei com uma
câmera de frente pro espelho e iniciava o vídeo assim, nu, na câmera e aí
surgiu assim ‘cara, se eu fosse uma menina, eu estaria fazendo isso aqui?’.
Pensaria, porque nesse momento, eu parava na frente do espelho e me via e
via um outro corpo nu e tinha um pensamento erótico, tinha sensações
eróticas. Então eu falava ‘será que as meninas também’? E aí foi outro tipo
de despertar sexual, foi como entender que as mulheres são os mesmo que os
homens, só temos químicas diferentes, nas partes de cérebro”.

Kinkynoki revelou também que seu vídeo preferido foi o terceiro que produziu,
em grande parte por conta de aspectos técnicos: o uso de uma câmera GoPro31 permitiu
a realização de filmagens sob uma perspectiva de câmera subjetiva, o que garantia, na
visão dele, uma dose maior de apuro técnico e qualidade estética à gravação.
Ainda com relação ao apuro técnico, MachoAtivoRio aponta que a produção de
suas sex tapes – com a finalidade específica de exibição e produção de excitação – não
se resume à simples gravação do ato sexual:

31
GoPro é a denominação dada a um tipo de câmera semi-profissional que capta fotos e vídeos por meio
de lentes grande-angulares de fácil operação e configuração pelos usuários. Esse tipo de câmera recebe tal
denominação por causa da empresa de câmeras digitais de mesmo nome. Por sua versatilidade e por
possibilitar a gravação sob um ponto de vista subjetivo, é utilizada principalmente por um público
esportista e aventureiro, mas tem crescido a sua utilização em diversas outras atividades, que vão desde a
gravação de shows musicais até a produção de material pornográfico (tradicional, amador ou caseiro).

100
“O processo dá trabalho: a gravação, o processo de gravação, a edição,
botar no site. Tudo isso envolve muito trabalho, tempo. Tem que ter muito
tempo disponível pra fazer isso. (...) A música eu não coloco, porque dá
trabalho e tira o som original. Mas eu coloco, por exemplo, uma entrada,
dizendo a data, o local, mais ou menos, quem era a pessoa, passivo não sei
da onde, tem o filme e tem o final [cartela textual]. Ou assim, ‘continuação’.
Porque os vídeos não podem ser muito longos, porque se for muito longo, o
site não aceita. (...) Existe uma limitação de tamanho, se for muito longo o
site não aceita. Então, você tem que colocar dentro daquela quantidade de
megabytes”.

Já AfroDotado e Edu, cujas sex tapes possuíam um caráter mais voltado para o
afeto/recordação, não demonstram o mesmo grau de preocupação com os aspectos
técnicos. Num episódio em que foi gravado num banheiro, AfroDotado revela, por
exemplo, que a gravação foi feita com uma câmera de celular, de forma bem
‘mambembe’, pois a intenção era apenas de captar como recordação um momento de
descontração dos envolvidos.
Edu chega a apontar na direção contrária ao apuro técnico. Com certa
descontração, ele afirma:
“Às vezes, a gente desencanava do vídeo e ia embora, deixava gravando e
íamos para cama... e deixava gravando o sofá. (...) Eu esquecia do vídeo, às
vezes. Eu não tinha que ficar o tempo todo filmando. (...) Tipo, ‘vamos para a
cama’, estava muito bom e eu não queria interromper nada para pegar o
equipamento, que ia ser ruim, pegar o laptop e achar uma tomada e ter um
lugar para nos focalizar na cama, então. (...) Mas tinha que ter o laptop,
porque tinha que ser a câmera do laptop, né? Íamos para o sofá, porque a
mesa é perto do sofá, então dava.... e teve uma vez na cama, assim, eu
coloquei [o laptop apoiado] no armário e filmou a gente”.

Essa diferença de preocupação com os aspectos técnicos (e mesmo cênicos)


evidencia, inclusive, a diferença de motivação entre uma sex tape para exibição e uma
fita caseira como peça de recordação.
Em todas as entrevistas, no entanto, há uma preocupação com aspectos estéticos
relacionados com questões de performance e corporalidade nas sex tapes, sejam quais
forem os eixos norteadores principais de sua produção. Mesmo que o âmbito de suas sex
tapes seja mais afetivo, Kinkynoki e AfroDotado apresentam preocupação com a
imagem corporal, com corpos que sejam capazes de provocar desejo e admiração, com
o resultado visual do balé desses corpos no ato sexual.
No caso de Kinkynoki, ao comentar - com certo pesar e gravidade - sobre seu
desempenho sexual, pode ser percebido um direcionamento para a correlação entre as
questões de estética corporal e de desempenho:

101
“Acho que é porque não sentia gosto comigo mesmo também. (...) Porque
aumentei muito de peso. E minhas performances sexuais não eram tão
vigorosas. Não eram... eram de uma relação, de um relacionamento em que,
sim, tínhamos amor, compreensão e tudo, mas não eram mesmo sexual como
‘super erótico’. Era simplesmente por uma função orgânica mesmo. (...)
[Era] uma performance normal, por exemplo, como (...), no momento que
você percebe que seu par quer ter uma relação, quer ter coito, deve ser
porque você está se preparando, o sangue está fluindo pro seu pênis, esse
tipo de coisas, como que lubrificando mesmo também. (...) Acho que é isso.
De repente, tenho falta de libido. E acho que é pelo meu sobrepeso, Pode ser
depressão, esse tipo de coisas. Acho que por isso é como ‘ah, não tenho esse
rendimento’. (...) Mas, por exemplo, quando estou ou sei que vou ter um
encontro sexual, por exemplo, essas vezes dos vídeos, dos sex tapes, eu sabia
que ia ter relações, eu tinha duas semanas de preparação. Mas não era tanto
física, não. Me mentalizava, me tranquilizava, assim como, ‘ah, bem, vai ser
legal’... Me mentalizava, chegava super relaxado nesse dia, e deixava fluir as
coisas e era legal. (...) Acho que deve ter pessoas que, não sei, que é
atleticamente superior, que deve ter uma performance diferente, mas... eu
conheço minha performance”.

AfroDotado apresenta muitas questões ligadas à percepção de sua corporalidade


e aponta a timidez – que também pode ser entendida como juízo de valor - como fator
preponderante na questão da (sua) exposição:
“Eu não sou muito bem resolvido com o meu corpo a ponto de tirar a roupa e
ir até ali pelado. Eu não faria isso nem fodendo. (...) Trocar roupa na frente
das pessoas, eu não fico, eu não me exibo, não fico nu na frente das pessoas.
(...) Eu sou tímido em alguns aspectos com meu corpo, não gosto de me
expor e tal. Mas não por isso, acho que de trocar a roupa... é uma situação
ok. Mas eu procuro me preservar um pouco. Em casa mesmo, no Rio,
pelado? Mas nem fodendo! Não fico pelado. (...) O vídeo que o Ator fez,
também achei super ok ter visto. Achei que, nossa, gente, até porque não
aparecia meu rosto, aparecia só daqui [da cintura] pra baixo. Então falei,
‘nossa, olha isso, como assim’. É um vídeo que eu gostaria de ver de novo,
Mas acho que eu aparecer inteiro, acho que rola uma timidez mesmo, acho
que sou tímido ainda com relação a esse aspecto. (...) É, eu não tenho corpo
escultural, eu não, tipo, eu não vou sentir tesão de me ver barrigudo, de me
ver assim assado. (...) Tenho manchas no rosto, manchas na perna, você não
quer que isso apareça. (...) Porque se você não tá bem com a sua sexualidade
e com o seu corpo, você não vai se expor nunca”32.

Ainda na entrevista de AfroDotado pode ser notada a questão da performance


sexual e do desempenho:

32
Além do velamento de rostos e/ou marcas de identificação, podemos notar que a linguagem visual da
pornografia caseira também se preocupa em esconder as diversas imperfeições do corpo. Há grande
espaço para a produção de vídeos que, por exemplo, mostram apenas os genitais em ação, ou ainda
produções que dão destaque a outras partes do corpo. A declaração pesarosa de AfroDotado, preocupado
com as diferenças (de valor negativo) que seu corpo apresenta na comparação com o (seu) ideal de padrão
de beleza corporal, denota essa tendência a tornar invisíveis ou disfarçadas as imperfeições. Como
apontado, em maior ou menor medida, essas preocupações permeiam as falas de todos os entrevistados. O
corpo apresentado na pornografia caseira pode ser percebido, na maioria das vezes, como um corpo
recortado, mostrado apenas em partes.

102
“Eu ainda sou tímido com relação a me ver, à minha nudez. (...) O fato de me
ver em desempenho tem a questão de você se exigir, de você ser... a coisa de
você querer que seu desempenho seja bom, até pra que você veja isso e fique
‘ah, legal, eu fiz isso, eu fiz aquilo’. Então, eu ainda tenho uma certa
ressalva de fazer, eu me gravar e eu me assistir. (...) Óbvio, a gente quer
aparecer bem na fita. Então eu ficaria 3 dias, 4 dias sem tocar punheta.
Gravaria aquela coisa ‘cachoeira’ e colocaria. Eu gozo pouco, porque eu
toco muita punheta. (...) Eu me sinto muito incomodado por gozar pouco, por
exemplo. (...) O engraçado é que tem umas fases em que a gente tá mais [faz
barulho pra indicar excitação]. E o Ator me pegou na fase que eu tava [faz
barulho pra indicar excitação]. Só você estando com muito tesão e muito
[faz barulho pra indicar excitação], pra você comer um cara num espaço de
tempo de meia-noite às 3 da manhã, eu comi o Ator 3 vezes. (...) Esse dia,
realmente... foram as duas performances minhas que merecem um Oscar!
(...) Que merecia ser gravado e postado no XTube33: eu, Ator, namorado e
amante. Tipo, eu dei conta de todo mundo”.

Se o aspecto técnico e estético aparece em todas as entrevistas, ele pode ser


notado de forma mais marcante com o apuro estético pretendido por SaJoao. Aliás,
SaJoao foi o último dos entrevistados a ser escolhido e foi selecionado justamente por
apresentar e disponibilizar online um projeto muito próprio de pornografia: de acordo
com ele, sua intenção é justamente de quebra de tabus, de libertação sexual e mental.
Esse tipo de libertação perpassa também por promover mudanças na percepção da
pornografia, bem como dos corpos, performances e performatividades presentes nela.
Como foi dito no primeiro capítulo, pelo seu caráter subversivo e transgressor, a
pornografia pode ser entendida como uma expressão cultural disruptiva e libertária. A
proposta de SaJoao é de ir mais além, ou seja, ele pretende agregar à pornografia mais
transgressão do que ela já possui:
“A pornografia é uma transgressão por si, mas ela tem os seus problemas,
ela é uma coisa heterogênea. Então, o aspecto transgressor da pornografia
eu quero manter, eu não quero mudar isso. O que eu quero mudar é o que
não é transgressor, é o que reforça o discurso conservador, é o que reforça
questões ligadas à sexualidade, que são, pra mim, retrógradas. Então, é essa
questão da heterogeneidade da pornografia que causa essa ideia da
transgressão da transgressão. O que eu quero, na verdade, é elevar o
aspecto transgressor da pornografia, não modificá-lo”.

Com o propósito de promover uma série de questionamentos e transformações


dentro da pornografia, de torná-la ainda mais libertária, SaJoao aponta na direção de
uma mudança em certos paradigmas e padrões, inclusive na linguagem visual da
pornografia:

33
Plataforma de disponibilização de diversos tipos de material pornográfico, notadamente os vídeos. Pode
ser acessado através do site <www.xtube.com>.

103
“Eu não tenho interesse em repetir nada. Porque se fosse pra repetir, eu não
ia produzir, eu só ia consumir, já tem o que eu quero consumir, então eu vou
só consumir, não vou produzir nada. O meu interesse é, vendo isso [a
pornografia, especialmente a produção mainstream], ver o que me
incomoda, prestar atenção no que me incomoda, no que eu não gosto, no que
eu acho que deveria ser diferente, e tentar fazer isso”.

A ambição estética como fonte de motivação da produção de sex tapes ganha


força e forma na entrevista de SaJoao. Ela pode se delinear nas suas declarações de que
pretende fazer algo diferente, como uma resposta àquilo que o incomoda, e de forma a
provocar reflexão:
“[A proposta é de] fazer o que não é feito, fazer da forma como não é feito.
Mas não só por ‘fazer o que não é feito’, mas de forma a provar que é
possível fazer diferente e ainda assim ser interessante, ser algo que as
pessoas vão gostar, as mesmas pessoas que consomem essa pornografia
tradicional vão se interessar. Porque talvez são coisas que elas nem saibam
que as incomodam, que elas não gostam ou que elas prefiram de outra
forma, elas vão descobrir vendo essa coisa diferente... ou que seja alguma
coisa que realmente todo mundo se incomoda, mas que todo mundo aceita
porque se considera o padrão, se considera o paradigma ali, que não vai ter
como mudar e vai ser aquilo ali pra sempre”.

Se partirmos do princípio de que a pornografia encerra em si uma série de


questões acerca das sociedades onde ela é produzida, o motivador de SaJoao é provocar
uma reflexão acerca da pornografia através da própria pornografia: “Eu quero que a
pessoa tenha a experiência dela bater punheta e pensar na vida ao mesmo tempo”.
A ambição estética de SaJoao se revela, então, em usar sua pornografia pessoal
para romper com cânones, com padrões estéticos, com uma linguagem visual:
“Você tem a questão de que existe esse senso comum de que, por exemplo,
uma das coisas que diferencia um filme pornô de um filme que tenha cena de
sexo, ou um filme erótico ou um filme de arte que tenha sexo, não sei que, é
que a linguagem não é tão bem tratada, tão bem trabalhada no filme pornô,
não existe uma preocupação estética ou técnica tão grande quanto no filme
de arte, erótico. E aí, entra a questão de que isso leva a uma falácia, que eu
acredito ser falácia, que é de você achar que, pra ser pornografia, não dá
pra fazer isso, se você fizer isso, você não só vai deixar de ser pornografia
como você provavelmente vai perder o aspecto sensacionalista-sexual
[sensacionalista no aspecto das sensações] da coisa, porque você vai parar
de prestar atenção no sexo e vai prestar atenção na fotografia e na estética,
de não sei que e parará. E vai achar aquele filme bonito e não vai sentir
tesão com aquilo. Eu acho que isso é um mito. Eu acho que existem essas
duas coisas, que existe essa a dicotomia, mas é uma dicotomia que pode e
deve ser quebrada. E aí, isso é uma das intenções do meu trabalho: é fazer
uma coisa que tenha uma técnica e uma estética apuradas, que você vai ver o
negócio e vai admirar isso e, ao mesmo tempo, você vai achar excitante”.

Para ele, produzir seus vídeos é uma questão política, social, ideológica. Além
de excitação, SaJoao pretende produzir conscientemente discursos diferentes daqueles
que são (re)produzidos pela pornografia tradicional e mesmo caseira:

104
“A pornografia surgiu pra mim como uma forma de poder expressar minha
sexualidade e de poder usar ela como discurso, pra defender as minhas
ideologias ligadas à sexualidade. É por isso que eu acabei desenvolvendo o
projeto do Tumblr, que eu quis, na verdade, fazer um projeto que fosse uma
coisa ligada à pornografia, e que se propusesse a quebrar paradigmas tanto
da indústria pornográfica, quanto da linguagem usada pra representação do
sexo em diferentes mídias, e das questões sexuais também. As representações
do sexo, do lugar, das pessoas, as relações de poder que existem tal, não só
na ficção como na vida real, e querer questionar paradigmas que eu
considero preconceitos e tal, que, enfim, poderiam ser quebrados. Uma
dessas questões é justamente é a questão da própria intimidade, dessa
questão de privacidade, das pessoas, de sexo ser uma coisa que todo mundo
faz, mas que as pessoas não falam, não admitem, não conversam, não
demonstram, tem que ser uma coisa velada. Então, eu achei que se eu fosse
fazer um projeto que fosse expor essas questões, se eu não colocasse a minha
cara no projeto eu estaria sendo hipócrita, porque eu estaria me colocando
sempre atrás da câmera, eu estaria reforçando um desses discursos que eu
queria desconstruir”.

Figura 14 - Imagens do Tumblr de SaJoao


Sobre a sua produção imagética, SaJoao se define como pornógrafo e não como ator pornô. Na
entrevista, ele explica que a diferença entre um papel e outro é uma questão de agência: o ator pornô não
tem o domínio total sobre sua ação na produção da peça pornográfica. Por isso, participantes de sex tapes
estão mais próximos do conceito de pornógrafos do que de atores pornôs.

Ora, dentro de diversos ramos da pornografia podemos encontrar estéticas que


escapam de um determinado padrão ou paradigma. Várias (sub)classificações de
pornografia podem encerrar em si algum tipo de ruptura interna relativa ao padrões de
produção, como é o caso de filmes pornôs que parodiam filmes de terror, que

105
promovem práticas escatológicas no ato sexual ou ainda que apresentam indivíduos
esteticamente incomuns na indústria, tais como anões e amputados, entre outros.
A produção de vídeos caseiros de sexo, por si só, é também uma ruptura com
uma linguagem e um modo de produção tradicional de pornografia. Aliando-se essa
perspectiva ‘acidentalmente’ disruptiva a uma nova concepção de produzir excitação
com as imagens em movimento, podemos entender que a ambição estética pode ser um
elemento motivador de produção de sex tapes. Se entendermos que a pornografia tem
um papel de subversão, podemos entender que a proposição de SaJoao é ainda mais
subversiva, porque propõe diferentes representações da experiência de realismo:
“Então ele [o ato sexual nos vídeos] pode ser engraçado, ele pode ser terror,
ele pode ser repulsivo, ele pode ser love, ele pode ser divertido, não no
sentido de engraçado, mas divertido de tipo sair a noite com os amigos, ele
pode ter toda uma gama de ambiências e de sentimentos ligados ao ato
sexual que você tá representando, você pode ter tantas outras formas, que eu
acho que a indústria pornô não explora. E a alternativa, que seriam esses
filmes de arte que mostram sexo explícito, exploram de uma forma rasa, que
eu acho que não é interessante. Que eu acho que ela tenta tirar a
sexualidade do sexo pra tornar aquilo bonito, e isso eu acho o erro. Não é
pra ser tirado, não precisa tirar. Pra tornar uma cena de sexo bonita, você
não precisa tirar a sexualidade da cena de sexo, você não precisa de
silhuetas à luz da lua pra fazer uma cena de sexo ser bonita. Você pode fazer
uma cena de sexo que tenha closes de pinto entrando no cu e isso ser bonito
de alguma forma. E não é ser só bonito, que eu tô dizendo bonito de conceito
filosófico grego de elevação do espírito: é um bonito de você achar legal, de
você admirar aquela cena, de achar interessante de uma forma estética”.

Ao analisarmos os vídeos e a entrevista de SaJoao, podemos inferir que sua


pornografia é algo diferente das sex tapes dos demais entrevistados, justamente porque
sua motivação é diversa das duas vertentes já apresentadas. Dessa forma, podemos
entender que essa ambição estética seria o terceiro pilar da produção de sex tapes. E, em
certa medida, essas três vertentes apresentadas – fetiche de exibição, peça de recordação
e ambição estética - podem ser consideradas como os principais eixos norteadores da
produção de qualquer sex tape.
Isso, inclusive, não significa que tais eixos sejam mutuamente excludentes: pelo
contrário, podem agir em conjunto, com diferentes graus de influência sobre a produção
das sex tapes. O entrecruzamento de vertentes pode ser notado, por exemplo, num
trecho da entrevista de Kinkynoki, que revela seu orgulho pela exibição do vídeo
caseiro para suas parceiras: “No momento mesmo, as três. As três assistiram o vídeo, as
três gostaram, pelo menos falaram assim ‘uau’. Gostaram assim, ‘muito bom’, não
ficaram assim como chateadas com nada”.

106
Ainda nesse aspecto de múltiplas influências de vertentes, em todas as
entrevistas, por exemplo, podemos notar a presença em maior ou menor grau de uma
certa ambição estética: conforme apontado anteriormente, Kinkynoki perpassa pelas três
vertentes; SaJoao se interessa majoritariamente na promoção de mudanças estéticas,
mas conta com uma certa dose de exibição; MachoAtivoRio prima pelo fetiche de
exibição como motivador, porém questões de estética também norteiam sua produção;
já AfroDotado e Edu, que gravaram performances afetivas, também apresentam uma
preocupação estética com relação ao corpo e à performance.
Aliás, para além do âmbito da ambição estética, como já foi apontado, pode ser
percebida, também em maior ou menor grau, a preocupação com corpos e com
performances. O ato sexual é algo que se expressa nos corpos que (se) envolve(m).
Como um espetáculo visual, envolve uma coreografia, isto é, um roteiro de passos e
gestos que coordenam a movimentação da dança entre os corpos. A produção da
excitação perpassa tanto pela coreografia quanto pelos corpos que a executam. A
produção da pornografia envolve, então, padrões de corpos e de comportamentos.
No que tange ao corpo, a preocupação principal é de entender a relação dos
espectadores/consumidores com os corpos mostrados na produção pornográfica, corpos
que se tornam desejados e também almejados. Diaz-Benitez (2010) aponta que há uma
preocupação grande na pornografia mainstream com a escolha dos corpos que
participam dos filmes. A grande indústria do filme pornô, na busca por produzir
excitação, apresenta corpos masculinos atléticos, com músculos bem demarcados, com
poucos pelos (ou mesmo nenhum), especialmente na região genital. Como a
centralidade da ação sexual reside basicamente na penetração, a região genital recebe
amplo destaque na visualização, especialmente o pênis – que, como o restante do corpo
masculino, deve ser amplo e imponente34.

34
A explicitude parece ser uma marca importante da produção de material pornográfico, e pode ser
percebida não apenas na produção atual. Sobre a “Thérèse Philosophe”, por exemplo, Goulemot (2001)
aponta uma estética de explicitude que usa a repartição das luzes – num jogo de esconder e de revelar -
onde distinguem-se o pênis ereto, as coxas entreabertas, as nádegas oferecidas ou em coito. A deformação
anatômica dos órgãos sexuais, aumentando-os, possibilita uma maior aproximação visual que insinua com
ajuda do texto, a experiência tátil, os cheiros, o ímpeto da ação – o que se coaduna com os closes e as
narrativas utilizados na produção de vídeos. Tais elementos quase sempre são mostrados de frente,
enquanto a cópula – assim como em muitos filmes pornográficos - é apresentada de perfil, garantindo que
as penetrações entre os corpos apareçam sem máscaras. Para o autor, a penetração anal é a mais explorada
“não por uma questão de transgressão moral, mas por necessidade iconológica” (GOULEMOT, 2001, p,
32, tradução nossa), uma busca por nitidez visual para melhor compreensão da imagem. Mais do que a
representação dos sexos, porém, importa a grande variedade de posições, repertório apropriado da arte
erótica já conhecida, instigante na gravura galante.

107
Todos os entrevistados, enquanto consumidores de pornografia, reconhecem que
há um padrão estético corporal na produção visual da pornografia mainstream. Há
algumas variantes, é claro, mas o cerne do padrão permanece o mesmo: o privilégio de
uma estética corporal que resvala na superlatividade dos aspectos de masculinidade –
músculos, força e vigor devem estar expressos, inscritos no corpo. Um breve olhar
sobre filmes pornôs tradicionais recentes, disponibilizados em diversos sites específicos
de pornografia, confirma essa tendência à superlatividade dos caracteres corporais35.
O comportamento masculino, como já se discutiu, pode ser considerado como
algo socialmente construído, através da observação e reprodução de padrões contidos
nos filmes pornográficos, entre outros fatores. Podemos perceber também que a lógica
do mercado impõe ao filme pornográfico uma estética e um roteiro próprios e bem
delineados36. Difundidos de forma massiva, esses padrões de comportamento são
apresentados à massa de consumidores e por ela introjetados, assumidos como
‘naturais’ e sua reprodução na vida cotidiana se torna algo desejável.
De fato, os filmes pornôs contemporâneos apresentam, por exemplo,
performances sexuais atléticas: vigorosas, de longa duração, contemplando corpos
malhados, ampla variedade de posições sexuais e com fartura de ejaculação. O sexo se
torna um espetáculo, o ato sexual é convertido nesse ideal da performance sexual
atlética (DÍAZ-BENÍTEZ, 2010).
Nas imagens do filme pornô, criam-se também ideias de masculinidades que são
produzidas e reproduzidas numa estética corporal e num padrão de ações e
comportamentos. A imagem apresentada é, em grande medida, a que reproduz a ideia
do homem másculo e conquistador, retratado como um garanhão, sexualmente
incansável/insaciável.
A performance sexual masculina é predominantemente ativa, não apenas na
execução do ato sexual. Como podemos observar, a questão da performance está muito

35
Há uma grande variedade de sites que disponibilizam vídeos pornográficas, dos quais destacamos o
PornTube (<http://porntube.uol.com.br/>), o RedTube (<http://www.redtubebrasil.tv/ >) e XTube
(<http://www.xtube.com/>). Para pornografia gay masculina, ainda pode ser acessado o site SoloBoys
(<http://soloboys.club/category/videos/>)
36
A narrativa linear apontada por Ellezam (2001) é um critério adotado para garantir eficácia à produção
pornográfica. Assim, no que tange aos filmes pornográficos, apresentam-se as coreografias sexuais de
forma progressiva, encaixadas no fio condutor da história a ser contada. Díaz-Benítez (2010) aponta que,
na pornografia mainstream, pode-se observar, em maior ou menor medida, um roteiro que norteia a ação
sexual: existe uma situação que leva os atores ao ato sexual, que deve começar por beijos e carícias entre
os envolvidos, segue pelo sexo oral (em apenas um ou em todos) e daí, então, contempla-se a penetração
em três ou mais posições, culminando com gozo dos atores. Cabe ressaltar que este pode ser assumido
como o roteiro básico, mas há variações. Mas, de maneira geral, nesta roteirização é que são validadas ou
legitimadas as práticas sexuais que se pretende (re)produzir.

108
ligada ao corpo, posto que os padrões de masculinidade estão ligados não apenas a uma
anatomia superlativa, mas a uma fisicalidade muito bem demarcada no intercurso
sexual.
Os entrevistados também apontam para essas questões de performance e
desempenho. Quando tratam, por exemplo, de suas expectativas e frustrações a respeito
da (re)produção das relações sexuais apresentadas na pornografia mainstream, estão
levantando questões e preocupações a respeito de suas próprias performances, não
apenas nas sex tapes que produzem, mas em todos os aspectos de sua própria intimidade
sexual.
Elementos como ejaculação farta, ereção prolongada, corpos bem desenhados
segundo uma estética que denota masculinidade, variedade de posições, entre outros,
também são preocupações presentes na produção de sex tapes. Mesmo a produção
caseira que é voltada para a recordação dos parceiros esbarra nessas preocupações.
Kinkynoki, por exemplo, admite ter tido uma certa preparação para garantir um
desempenho mais natural. AfroDotado aponta que não é qualquer desempenho sexual
que ele gravaria em vídeo: com certo orgulho, revela que sua preferência seria por
gravar suas performances mais espetaculares, ou seja, aquelas que merecem ser tornadas
‘espetáculo’, (re)produzindo esses cânones da produção mainstream.
A preocupação com corpo e com performance aponta para um outro elemento
cênico, presente não apenas na pornografia, mas na própria vida social dos indivíduos: a
performatividade. Ao falarmos de performatividade, como apontamos no segundo
capítulo, estamos tratando da repetição de atos, gestos e signos, do âmbito cultural, que
reforçam a construção dos corpos, dos gêneros e dos papéis, tais como nós os vemos
atualmente.
As masculinidades são discursos, que se constroem diariamente no exercício de
viver em sociedade. Como a pornografia é uma expressão cultural, ela também produz
elementos que afetam na construção das masculinidades, através dos padrões e ideais de
corpos e de performances que ela apresenta, que ela torna desejáveis.
Os filmes pornôs (marcadamente no caso da pornografia mainstream), na
atualidade, apresentam performances sexuais dignas de obras de ficção, e que acabam
por povoar as mentes e os desejos dos espectadores. Atendendo às necessidades de
produção da Indústria Cultural, são vendidos corpos ideais, inspirados nos de heróis
clássicos representados nas belas artes e na mídia ou ainda nos de tipos esportivos
consagrados, atléticos, musculosos, tonificados. São produzidas cenas onde o ato

109
sexual, atrelado à corporalidade, é vigoroso, com performance de longa duração,
contemplando várias posições e múltiplas ejaculações.
Instiga-se a fantasia de um ‘super-sexo’ como um padrão de comportamento e é
gerada uma expectativa de repeti-los - pois somente através dessa performance é que se
pode atingir o prazer em sua plenitude. Valoriza-se uma estética corporal muito
específica como padrão de beleza a ser atingido e/ou a ser buscado. Apresentam-se
papéis sexuais muito bem demarcados, em performances desenhadas, coreografas,
roteirizadas. A construção das masculinidades perpassa por ter/possuir um corpo
apresentado como masculino, desempenhar uma coreografia elaborada como masculina
e seguir um script específico de masculinidade, (re)produzindo papéis e padrões de
comportamento.
Essa perspectiva, que relaciona corpo, performance e masculinidades, pode ser
bem percebida nas falas e opiniões dos entrevistados. A opinião de AfroDotado sobre
um bom desempenho reflete também a sua realidade como contraparte: “Acho que seria
bacana mostrar num vídeo um desempenho que eu tivesse com muito tesão, que eu
tivesse um desempenho tipo fodendo por horas, digamos assim. Eu nunca fodi por
horas, eu não sou desses de foder, eu não tenho nem paciência pra ficar fodendo uma
hora”.
Já a entrevista de Kinkynoki denuncia esse ‘falseamento’ da realidade que o
pornô promove:
“É tipo comparado com programas de Miss Universo, de Miss USA. É um
concurso de beleza. Quem assiste esse tipo de negócio é porque gosta disso,
é como a novela, um pouco assim, que dizem ‘você tem que ser bonzinho,
assistir tevê, se não nenhum mauricinho vai vir por você, para gosta de você.
É igualzinho [na pornografia mainstream]: tens que medir 1,80m, ter um pau
de 30 cm, transar por mais de 1 hora, senão nenhuma mulher com seios de
60 a 90 vai querer transar contigo. (...) É um problema quando pessoas de
13 anos, 14 anos, começam a assistir esse tipo de pornô, porque aí gera uma
[preocupação] estética neles. Eu acho que sim, um problema”.

Como apontamos no capítulo anterior, há um script, um roteiro, uma


coreografia: toda ação na pornografia é desenhada para produzir excitação, mas também
para gerar padrões de comportamento igualmente desejáveis. Os papéis são bem
demarcados e apostam em dicotomias e oposições para a sua construção. A dicotomia
primordial se ancora justamente na diferenciação de masculino e feminino: a construção
de masculinidades perpassa a negação daquilo que é feminino. Assim, a essa dicotomia
primordial, se associam várias outras na composição dos papéis sexuais: força versus

110
delicadeza, dominante versus dominado (ou dominação e submissão), atividade versus
passividade.
À construção da identidade masculina cabe a incorporação de corpos fortes e
viris, de gestual assertivo, de dominância no ato sexual. E isso extrapola a pornografia
tradicional heterossexual, pois o filme pornô gay também é recheado dessas posições
dicotômicas: embora haja dois elementos do sexo masculino envolvidos no intercurso
sexual, há um padrão de comportamento desenhado para cada um deles, cada qual
representando uma das posições dicotômicas da relação – ou seja, um deles apresentará
caracteres mais associados a um padrão de comportamento masculino enquanto o outro
apresentará caracteres não necessariamente associados ao padrão de comportamento
feminino, mas sim um padrão de comportamento ‘menos masculino’.
Essas diferenciações que afetam a construção dos padrões de comportamento e
das corporalidades podem ser percebidas mais claramente na produção de pornografia
mainstream ao se desenvolver certo grau de abstração e pensamento crítico. Embora os
entrevistados reconheçam que há padrões específicos e desenhados, SaJoao é o único
que aponta claramente essa dicotomia (e se exalta ao se posicionar contra esses
padrões):
“Você vai olhar, você passa nos canais de pornografia gay e você vai ver que
a maioria dos caras que são ativos são caras mais altos, mais fortes, mais
corpulentos, e os passivos são mais magrinhos. Muito dificilmente você vai
ver cenas de sexo em que o ativo é o cara magrinho e feminino e que o
passivo é o cara mais forte e masculino, mas é justamente a exceção que
confirma a regra: é interessante porque é um negócio que é diferente, então
é uma cena pra quem tem esse gosto específico, é uma cena fetichista. E que
não deveria ser, porque na verdade isso aí é uma coisa que não tem nada a
ver com a outra, a sua preferência por ser ativo ou passivo não tem nada a
ver com o tipo de corpo e personalidade que você tem. (...) [É um padrão de
estética corporal e gestual] que vem obviamente do mundo heterossexual,
porque você tem as questões do gênero masculino e feminino, que o
masculino é o cara dominador, é o cara forte, é o cara alto, e o feminino é a
mulher indefesa e tal. E isso se repete na estética gay masculina, na estética
gay entre homens. (...) E até quando você tem uma personagem feminina [no
sentido do sexo biológico] dominante, predominante, ela no ato sexual, ela
se entrega ao homem. Porque aquele homem é tão superior e tão forte, e tão
essa figura alfa, que ela vira, ela se torna aquela personagem inferior por
causa dele, mesmo fora do contexto sexual ela sendo o personagem
superior”.

Para MachoAtivoRio, esses papéis são demarcados pelo script, por ações verbais
e não verbais. De acordo com sua visão, expressa na entrevista, nesse tipo de vídeo, a
relação entre o ativo e o passivo seria na verdade uma relação de dominação, onde o
ativo seria mais ‘dominador’ e o passivo mais ‘dominado’. Os papéis também são

111
definidos, portanto, em termos da agência de cada sujeito. Com certo tom de
desapontamento na voz, mas de forma bastante assertiva, ele afirma:
“Eu fico meio decepcionado, porque, quando você tá vendo um filme [pornô
mainstream], você imagina que um é o ativo e o outro é o passivo, e de
repente os papéis se invertem, aí eu fico meio decepcionado com aquilo
(risos). (...) [O que determina esses papéis, essas agências] são as ações!
Que tem a ver com a questão da dominação também... que pode ser verbal.
Isso que é o mais importante: são as ações das pessoas no vídeo. As ordens.
Tem muito imperativo: faça isso, faça aquilo, chupa, não sei o que”.

Essa percepção de dominância/masculinidade/atividade em contraposição à


submissão/feminilidade/passividade encontra um grande reflexo na entrevista de Edu:
“[O passivo no ato sexual] teria que ser completamente obediente, eu acho
que a maneira de ser passivo é isso. (Risos). Assim, eu gosto muito de ser
ativo e muito de ser passivo... Eu gosto muito dos dois. (...) Mas se eu me
disponho a dar para um cara, eu vou virar putinha, entendeu? (...) Eu vou
servir o cara, eu vou honrá-lo. Eu vou honrar esse cara, vou cuidar dele, do
pau dele, vou dar pra ele. (...) Ele vai enfiar assim e eu vou aguentar, porque
ele quer, entendeu? (...) Aí, também, [quando] eu vou comer alguém, tem que
aguentar, porque eu quero. (...) Vou virar machão”.

Como qualquer relação que se estabelece dentro da sociedade, a relação sexual


carrega em si relações de poder. E quanto mais caracteres indicadores de masculinidade
um indivíduo possuir, mas poder/dominância ele tem dentro de uma relação.
Os juízos de valor que se estabelecem com esse jogo de poder ficam
evidenciados num trecho específico da entrevista de AfroDotado, ao falar - com certo
desconforto - sobre sua performance com ‘ativo’ ou ‘passivo’ na relação sexual:
“[Teria problema em ser gravado como passivo] porque ser passivo é uma
coisa que ainda não tá resolvida na minha cabeça. Eu não consigo ser
passivo, entendeu? E aí entra na questão do desempenho: eu não consigo ser
passivo e ter um desempenho bacana, aceitável, prazeroso, que seja, como
passivo. Filmar isso vai ser muito doloroso pra mim. Eu não ia... eu jamais...
eu descarto total a possibilidade. Não tem nenhum traço de machismo, de
preconceito, absolutamente. Porque eu não consigo ser passivo. E aí entra
também o meu medo de dar alguma coisa errada, de sujar, ou de sangrar, ou
o que seja. E, definitivamente, eu não ia curtir ser filmado como passivo. (...)
Então, eu acho que quando isso estiver resolvido na minha cabeça, muito
bem resolvido na minha cabeça, pode ser que eu tope fazer. (...) Só o fato de
terem gozado nas minhas costas, já fiquei incomodado. De eu estar de costas
e mostrar as minhas costas toda gozada, assim, me incomodou”.

O incômodo que se estabelece para AfroDotado não se trata, como ele aponta, de
preconceito. Mas outros indícios nos permitem entender que esse incômodo se deve ao
juízo de valor que associa as masculinidades a elementos de dominância e ao papel de
ativo, enquanto a passividade é encarada como submissão, subversão sem gozo, sujeita
ao erro, à dor e à sujeira – e AfroDotado, em sua entrevista, se define como
predominantemente ativo e revela traços de dominador no ato sexual.

112
Em se tratando dessas questões de corporalidade, de performatividade e de
masculinidades, pode ser interessante notar (e problematizar) a própria escolha dos
apelidos de alguns entrevistados. No caso de AfroDotado e MachoAtivoRio, os apelidos
são referências bastante claras à importância que reservam aos aspectos estéticos
apontados: enquanto o apelido MachoAtivoRio está associado a uma tomada de posição
(de dominação, proeminência e masculinidade) dentro da (rel)ação sexual, o codinome
AfroDotado remete à fantasia do homem negro cuja masculinidade se sustenta na
corporalidade (virilidade e pênis grande, por exemplo). No caminho contrário,
Kinkynoki é um apelido que revela uma identificação com a passividade: ‘kinoki’ se
refere a ‘camarão’, entendido como um ‘corpo bom de se comer’, ou seja, em sua
concepção, ele que é ‘comido’ pela parceira.
A grande inovação que a sex tape traz, ao possibilitar que o espectador se
transponha para o lugar de produtor, é abrir o caminho para a transformação dos
padrões de corpos, de comportamentos, de performances e de masculinidades que são
apresentados na pornografia tradicional. É uma transformação com vistas a uma
representação mais próxima do que é o comum do sexo, dos corpos envolvidos no
intercurso, das práticas e performances executadas na ação sexual registrada em
imagens. A ideia primordial é de que uma sex tape, através da espetacularização do
cotidiano, do banal, do usual, possa promover uma revolução imagética a respeito da
forma de registrar e apresentar nossa experiência sexual.
As facilidades que possibilitaram o aumento da produção e difusão de material
pornográfico, então, permitiram também uma democratização da produção e difusão de
diversidade, de diferenças. Com as sex tapes, os corpos que seriam rejeitados pela
grande indústria do pornô - por não serem entendidos como atraentes - encontram um
lugar para que possam se expressar publicamente, para que possam provocar uma
mudança de mentalidade do que é um ‘corpo atraente’. Essa democratização pode
atingir também a forma de representar práticas e performances, padrões de
comportamento divergentes daqueles mais socialmente aceitos e que são reproduzidos
na pornografia mainstream. É uma forma de poder expressar e representar
masculinidades diversas, masculinidades ‘outras’, para além dos padrões cristalizados
pela grande mídia e pela indústria pornográfica.

113
Sobre mudanças e transformações nos padrões que as sex tapes podem
promover, SaJoao aponta o exemplo da questão dos corpos e performances ligados aos
papéis de ‘ativo’ e ‘passivo’ na relação sexual registrada:
“O ativo, ele é uma característica, tipo assim, é uma persona do ativo, e
existe uma persona do passivo, não é apenas uma característica de
preferência do cara, que prefere comer ou dar. É uma coisa que, se você
prefere comer, você tem [que ter/reproduzir/mimetizar] uma série de outras
características que estão intrinsecamente ligadas a isso. (...) E aí, você tem,
por exemplo, que o ativo é mais masculino e o passivo é mais feminino. O
ativo é dominador e o passivo é dominado. E aí, mesmo que você tenha uma
cena de diálogo antes, no diálogo o ativo é mais preponderante que o
passivo e tudo mais. E isso não é realidade. E mesmo que não fosse a
realidade, não é a única forma de se retratar a ficção, você pode fazer uma
coisa diferente, e ainda assim vai estar gerando mimese”.

Como apontado por SaJoao, a produção de sex tapes apresenta uma linguagem
visual de fluidez e organicidade do ato sexual. A ideia do senso comum, como foi
apontado anteriormente, é que a produção caseira tem uma aproximação muito maior
com a experiência de realidade, especialmente do indivíduo comum. Ali, ele pode se
sentir retratado mais fielmente, em termos de práticas, de corpos, de performances, de
masculinidades.
Porém, na comparação entre o que é exibido e o imaginado, há uma série de
modelos, de padrões, a serem reproduzidos e (re)transformados nas sex tapes. A
transformação que a fita de sexo caseiro propõe, na atualidade, ainda não é tão profunda
quanto se imagina. Indica mais uma ampliação de acesso à tecnologia portátil de
registro do que uma ruptura de narrativa e de linguagem corporal.
Na comparação com a produção da pornografia mainstream, mesmo que a
produção caseira apresente uma forma diferente e mais democrática de representação
das pessoas, dos corpos e da diversidade de masculinidades, a sex tape ainda não tem
esse peso de representação do real como se imagina. Porém, o avanço que as sex tapes
proporcionam reside nas rupturas: essa pornografia caseira permite representar com
maior clareza performances, masculinidades e corpos (dos) ‘outros’, isto é, diferentes
das referências corporais idealizadas, presentes no pornô mainstream e tomadas como
padrão.
Enquanto produção pornográfica, o vídeo caseiro de sexo ainda é afetado pela
mesma lógica circular que afeta a pornografia mainstream. Nas próprias entrevistas, que
envolvem pessoas que produzem sua pornografia íntima e pessoal, podemos perceber
diversos elementos da impessoalidade, da reprodução e da apropriação dos modelos
produzidos pela pornografia tradicional. O mesmo acontece se compararmos os

114
conteúdos pornográficos disponibilizados em sites diversos: os vídeos produzidos pela
grande indústria pornográfica, em maior medida, reproduzem uma série de modelos e
cânones, e os vídeos caseiros, em menor medida, também acabam por refletir tais
modelos – se não tanto no que tange à representação da diversidade corporal, mais
forçadamente é notado na apropriação e repercussão de práticas, ações, gestuais,
posicionamentos, bem como no reforço de modelos de masculinidade.
E se essa pornografia tradicional não tem o compromisso de refletir com
fidelidade a realidade das práticas sexuais, promovendo uma visão quase que puramente
ficcional do sexo, as sex tapes também não o fazem. Porém as sex tapes evidenciam o
caráter disruptivo da pornografia ao possibilitar uma pluralidade de linguagens,
narrativas e corporalidades, apontando caminhos para a transposição dos portões (da
obscuridade regrada) do Inferno e ensaiando o Paraíso.

115
CLÍMAX:
Considerações finais

“As ciências começam e acabam com um crepúsculo, com um ponto de interrogação”.


- Paolo Mantegazza –

O que é ‘ser homem’?


Ao contrário da concepção do senso comum, ‘ser homem’ não é algo natural,
nem fisiológico e está além da fisiologia corporal e genital. Se tomarmos como base o
argumento beauvoiriano sobre a construção do feminino, podemos afirmar que não se
nasce homem: torna-se homem! E tornar-se homem faz parte de um longo processo de
socialização e de individuação que envolve aprender e apreender diversos elementos
identitários, apropriando-se de uns, refutando outros, enfim, utilizando tais elementos
para construir-se.
Construir uma identidade masculina é, primordialmente, um exercício de
aprendizado constante, uma experiência muito pessoal. Existem noções e ideias que
orientam esse processo pedagógico de construção, mas não há um único padrão, uma
única masculinidade. Então, certamente, não há um conceito único que abranja toda a
variedade de modos de ‘ser homem’, de expressar a masculinidade – e, por isso, usamos
o termo no plural: masculinidades.
A construção de masculinidades demanda um processo pedagógico de análise e
apropriação de modelos. Tal processo na contemporaneidade é fortemente marcado pela
ação da mídia. Através dos diversos meios, tais como os veículos de comunicação de
massa (televisão, jornais, outdoors, rádio, entre outros), são produzidos e difundidos os
padrões de corpo e de comportamento. Mais recentemente, o processo de difusão desses
modelos encontrou um grande aliado na internet: com a grande expansão da área
abrangência da rede mundial de computadores, há uma maior capacidade (e velocidade)
de circulação de padrões, facilitando seu consumo e (re)produção.
A pornografia se insere no panorama de produção midiática. A arte erótica e a
pornografia mexem com a imaginação, aguçam os sentidos, despertam o desejo. E o
desejo do espectador não se orienta somente para consumir tais produtos, mas também
em apropriá-los. Isto significa que se trata de uma experiência que envolve tanto um
‘ter’ quanto um ‘ser’. Para além do aspecto de entretenimento, há nessas produções uma
dimensão prescritiva e valorativa.

116
No caso da pornografia, esse processo pedagógico e formativo trata da
reprodução e naturalização de padrões desejáveis de comportamento, especialmente no
âmbito sexual. As masculinidades, as corporalidades e as performances são elementos
que também se constroem sob a influência destes parâmetros estabelecidos e
propagados pela pornografia, mais notadamente aquela produzida no circuito conhecido
como mainstream.
O grande ‘truque’ da mídia – e dos interesses sociopolíticos que a orientam – é
justamente apresentar tais modelos como... naturais. Assim, carregam em si um certo
caráter de imutabilidade, de confiabilidade e de certezas convencionalizadas.
Conforme apontado anteriormente, não há nada de puramente natural nesses
elementos, sobretudo porque a pornografia está ligada a fatores culturais e, mais
especialmente, de mercado e de consumo. Isto é notável, primeiramente, pela
etimologia: trata de escritos de prostitutas, profissionais que estão ligadas não apenas à
venda do prazer sexual físico, mas são também ‘comerciantes de fantasias’. Depois, por
sua vinculação com o avanço da indústria tecnológica, regido por padrões de mercado.
E, por fim, também por sua intensa relação com o modo de produção da Indústria
Cultural, que trata da conversão da cultura em mercadoria, utilizando-se de diversas
tecnologias para a disseminação de ideias e a massificação de comportamentos.
Ao transformar o cotidiano ou o exótico em espetáculo, são produzidos novos
significados (ou se ressignificam os antigos), de acordo com uma lógica de mercado. O
sexo e suas representações se deslocam para um eixo mercadológico. De fato, a
pornografia torna-se um produto industrializado, com tendências à homogeneização da
sexualidade.
O exercício da sexualidade, como se viu, marca o movimento identitário. E é
nesse ponto que se faz sentir a influência da pornografia: a criação de um ideário de
masculinidade e a imposição de comportamentos masculinos, apresentados pelos filmes
pornográficos, tem uma agência intensa sobre a construção de identidades masculinas.
O ato sexual é transposto do privado para o público e, transformado em espetáculo,
converte-se o prazer em elemento de protagonismo do show que apresenta. Este prazer
torna-se uma meta, um elemento obrigatório que o ator e o espectador devem buscar.
Esse objetivo deve ser alcançado incansavelmente, destacando e colocando em
concorrência corporalidades e performances sexuais superlativas. Vinculado ao corpo –
um corpo mecânico, no sentido físico do termo - e ao desempenho, o prazer dissocia-se
de afetos, vínculos, emoções.

117
O público consumidor da pornografia mainstream recebe os modelos
apresentados como padrão de comportamento e os reprocessa por comparação em sua
vida cotidiana. Essas imagens de virilidade, de corpo bem desenhado, de dominação e
potência, de assertividade e atividade, de performances e desempenhos vigorosos e
atléticos, tornam-se os elementos de referências para a construção - e para a frustração -
das masculinidades.
É possível acreditar que essas imagens do ‘masculino’ transmitidas pela postura,
pela potência e pelo corpo dos atores pornôs é algo que fica cristalizado no inconsciente
coletivo dos espectadores. Se os filmes pornográficos da indústria mainstream
apresentam performances sexuais atléticas, o imaginário coletivo se povoa do ideário de
um ‘super-sexo’. Em certa medida, tal ideário acaba por fomentar expectativas, desejos,
anseios, fantasias. Logo, essa é a performance sexual que se espera reproduzir.
Porém, cabe notar que a pornografia, diferentemente de outros bens comuns e
ordinários, é um produto que estabelece uma relação diferente com seu consumidor.
Como ela mexe com a imaginação e com a fantasia de cada um, é de se supor que cada
consumidor se relacione com a pornografia de modo único, que cada experiência seja
singular.
Se cada pessoa tem uma relação própria com a pornografia, apropriando-se cada
um à sua maneira dos padrões que ela oferece, podemos crer que as sex tapes expressam
com mais acuidade esse processo de aprendizado, de reprocessamento dos elementos
identitários. Como entendemos que essas fitas caseiras de sexo são a produção de uma
pornografia íntima, é justo compreendermos que são um reflexo desse processo
individual de aprendizado e construção de corpos, performances e masculinidades.
A concepção mais intuitiva e imediata que se pode ter a respeito das sex tapes,
por serem produzidas por um espectador deslocado para o papel de produtor/agente, é
de que elas são um produto cultural que apresenta/representa uma ação sexual e uma
performatividade mais próximas da experiência do sexo cotidiano, aquele
experimentado pelas pessoas comuns. Por conta dessa ideia de realismo, os corpos,
performances e masculinidades que se encontram expressos nas sex tapes estariam mais
próximos dos homens comuns, do sexo ‘real’.
Ao entendermos as sex tapes como um olhar que registra a (re)produção de
comportamentos, a ideia primordial deste estudo é lançar um ‘olhar sobre o olhar’. Mas,
dessa vez, além do olhar que registra, é um olhar que vê, analisa e busca compreensão.

118
A importância de se pesquisar acerca das masculinidades na pornografia,
especialmente através das sex tapes, reside na busca de uma maior e melhor
compreensão de nossos comportamentos, do quanto fatores socioculturais - que
norteiam a produção pornográfica, em maior ou menor escala - podem influenciar e
marcar a construção de identidades.
Podemos perceber que os discursos dos entrevistados expressam claramente essa
multiplicidade de entendimentos e de significados da noção de masculinidade que
povoa o imaginário coletivo. Todos os entrevistados para esta pesquisa são
consumidores de pornografia e, ao mesmo tempo, agentes de sex tapes. Cada um deles
mostra a singularidade do entendimento dos elementos de construção de identidades e
de comportamentos. Cada um deles tem um modo particular de (se) apropriar (d)esses
discursos e de (re)produzi-los. Cada um deles traz à tona aspectos pessoais de suas
pornografias íntimas, com questionamentos e afirmações, transformações e
permanências que lhes são próprias.
A pornografia, tal como entendemos atualmente, além de se definir em
contraposição à ordem vigente e à censura, é categorizada pelo seu caráter questionador.
Num sentido amplo, este caráter questionador se deve aos desvelamentos que ela
provoca. Ao trazer todos esses elementos do comportamento sexual do âmbito do
privado para uma esfera pública, a pornografia emerge como um mecanismo de crítica
social e política, de questionamento de costumes e padrões estabilizados. E esta, na
verdade, é a contradição da pornografia: ao mesmo tempo que permite que se questione
e se transforme a vida sexual e social, ela se torna um instrumento midiático de
cristalização de padrões.
Nesse aspecto, se a pornografia possui mesmo esse caráter libertário e
transformador, é através do vídeo caseiro que essas características se fazem sentir com
mais força. Afinal, se toda pornografia mostra padrões de comportamentos, tais padrões
se constroem com base num eixo norteador correspondente aos valores da sociedade em
que esta mesma pornografia se produz. Porém, nem toda pornografia se prende a esses
padrões estabelecidos: o caráter libertário e transformador se faz sentir mais fortemente
na produção de imagens de corpos e práticas sexuais – e comportamentais, num sentido
mais amplo – que diferem daqueles padrões socialmente aceitos – e mais facilmente
incorporados.
São as produções caseiras que, essencialmente, surgem como novas formas de
representar a realidade: a produção caseira é, por excelência, o espaço de representação

119
dos corpos e das práticas que diferem – e mesmo divergem – dos padrões apresentados,
difundidos e naturalizados pela pornografia mainstream.
Mas essa mesma produção caseira não está totalmente livre dos padrões
estabelecidos pelo circuito mainstream da pornografia. Uma análise de diversos vídeos
e mesmo das falas dos entrevistados revela que, mesmo com total liberdade de criação
de material, há uma preocupação – consciente ou não – em reproduzir padrões, imagens
e estéticas relativamente comuns da pornografia tradicional como garantia de produção
da excitação.
Basta apontar que, ao lançarmos um olhar sobre a produção de sex tapes – tanto
dos entrevistados como outras disponibilizadas em diversos sites de hospedagem de
conteúdo pornográfico – é bem perceptível uma apropriação da linguagem de gravação
do pornô tradicional, tanto em enquadramentos (como nos closes na área genital durante
o intercurso) quanto na roteirização da ação sexual (como na variedade de posições
sexuais representadas numa única gravação), por exemplo.
Ainda podemos notar o impacto dessa estética do mainstream sobre as sex tapes
quando percebemos que, em maior ou menor medida, todos os entrevistados revelaram
alguns de seus medos, desejos, anseios e expectativas: tudo isso é um reflexo da
preocupação com performance e desempenho, com a semelhança ou diferença de seus
corpos se comparados com aqueles consumidos através do vídeo, com o modo de
representar suas masculinidades através dos elementos do padrão socialmente entendido
como característico - tais como virilidade, dominância, força, vigor, assertividade, pro-
atividade, entre outros.
Com a pornografia mainstream, são estabelecidos padrões de práticas, ações e
comportamentos de cunho sexual que se tornam cada vez mais difíceis de ser
acompanhados e reproduzidos. Tendo esse ideário de um ‘super-sexo’ como base, cria-
se uma expectativa de performance e desempenho sexuais que são irreais – ou, talvez,
pouco conectadas com a realidade fisiológica e emocional – e que possuem poucas
chances de serem fielmente reproduzidas tendo em vista nossas próprias limitações.
Essa preocupação com a reprodução de uma estética corporal e performativa
pode ser percebida nas sex tapes. Como são vídeos caseiros produzidos pelo espectador
transformado em agente/produtor de pornografia, refletem sua construção pessoal do ato
sexual e de tudo aquilo que ele envolve: corpos, coreografias, práticas, entre outros
elementos.

120
Desse modo, pode-se inferir que, quanto mais longe da realidade do sujeito se
encontra tal lógica e tal estética, maior é o grau de frustração – sexual, social, pessoal -
do indivíduo, por sentir-se incapaz de reproduzir fielmente – ou apenas parcialmente -
estes padrões estabelecidos pela indústria pornô.
Como vimos, um dos fatores definidores das identidades masculinas reside no
desempenho sexual bem-sucedido. Essa cobrança pela performance atlética e sempre
bem-sucedida é basicamente auto-imposta, sobretudo quando tratamos das expectativas
de performance sexual masculina.
Além da cobrança auto-imposta, há também a cobrança por parte dos parceiros
sexuais, independente do seu gênero. Esses parceiros até podem não ser consumidores
diretos dos produtos da indústria pornográfica, mas estão sujeitos indiretamente a
aprender e apreender padrões de comportamento delimitados pelos filmes e, com isso,
gerar expectativas. Neles também se reflete a expectativa do consumidor a respeito do
parceiro. Ou seja, com base no que se vê e se aprende com os filmes pornôs, gera-se
uma cadeia de expectativas de comportamentos, práticas e performances. Sendo essas
expectativas baseadas num ‘mundo de fantasia’, sua transposição para o âmbito da
realidade nua e crua do sexo está fortemente sujeita a angústias, frustrações e
decepções.
Então, é compreensível que essas pessoas queiram reproduzir tais padrões de
comportamento, ou seja, assumir uma postura de masculinidade bastante semelhante
àquela que é percebida no filme pornô. Esse tipo de reprodução de padrões de
comportamento e ideias de masculinidade é notável também na produção de sex tapes.
Embora pareçam ser mais livres dos padrões que norteiam a produção da pornografia
mainstream, é desta fonte que se inspiram as ações sexuais, práticas e performances
apresentadas na fita caseira de sexo.
A produção caseira de pornografia é uma expressão mais comprometida com o
‘realismo’, porém não está totalmente desvinculada dos ideais e padrões estabilizados,
representados na pornografia mainstream. As sex tapes tendem a atender uma demanda
por produções realistas e, embora elas não se distanciem dos modelos estabelecidos,
promovem uma ruptura ao permitir que seja representada uma pluralidade de corpos,
performances e masculinidades.
Se a angústia do indivíduo é não conseguir desempenhar aquele sexo
performático que ele vê no filme pornográfico, como percebemos nas preocupações
expressas nas entrevistas dos produtores de sex tapes, talvez este seja o momento de

121
começar a entender que tais práticas e performances não têm uma correspondência
direta com as práticas recorrentes na vida cotidiana - e nem precisam ter. Num âmbito
pessoal, é preciso compreender que as performances sexuais apresentadas nos filmes
fazem parte de uma fantasia, de um ideal, de uma aventura íntima em que os corpos
vistos são cuidadosamente escolhidos para satisfazer uma concepção estética construída
por uma lógica de mercado. A grande preocupação, no contexto de produção do filme
pornográfico, é com uma estética que seja ‘vendável’.
Talvez a própria pornografia possa, inclusive, se orientar e se pautar pela busca
de performances mais realistas do que atléticas/estéticas. Se partimos do princípio de
que a pornografia é realmente uma expressão cultural disruptiva e transformadora,
talvez seja agora o momento de pensarmos como, através da pornografia, cada um de
nós se apropria dos elementos apresentados, como transformamos essas performances
em ações etc.
O estudo das sex tapes pode apontar direções interessantes. Ao transportar o
espectador para o papel de produtor e colocá-lo no centro da ação, a produção caseira
denuncia esses elementos naturalizados e nos permite percebê-los, desconstrui-los,
reinterpretá-los. É através dessa produção caseira que se podem processar as mais
profundas transformações acerca dos corpos, performances e masculinidades: à sex tape
cabe a tarefa de se deslocar do eixo da apresentação dos modelos e se privilegiar a
representação da pluralidade.
Enquanto o futuro da pornografia mainstream está na elaboração de ficção - em
grande parte, isso significa voltar para as ‘historinhas’ -, o pornô caseiro, de cenas mais
curtas e dinâmicas, mostra envolvimento entre os atores/agentes do intercurso. Se essa
ideia de que as sex tapes apresentam um sexo normal/cotidiano é um atrativo, elas
podem contribuir para a construção do entendimento de que o verdadeiro ‘super-sexo’
não é aquele que é mostrado nos filmes pornográficos, mas sim aquele que o ser
humano é capaz de desempenhar, com seu corpo, seu desejo e seu afeto.
Da mesma forma, é através das sex tapes que poderemos compreender mais
claramente que a masculinidade não é algo estanque, presa a um único conjunto de
padrões de comportamento. A construção de masculinidades não se encerra em corpos e
performances padronizadas, mas num processo de aprendizado que envolve – ou
deveria envolver – um pensamento crítico.
A produção caseira de vídeos de sexo é uma pornografia íntima e pessoal,
informada por múltiplos saberes internalizados. Como é produto, é uma construção. E

122
desse modo, a sex tape abre um campo de possibilidades para compreender essa
multiplicidade de corpos, de atos performativos e de masculinidades que constroem o
‘ser’ homem. Nesse constante movimento de ‘tornar-se’, entre gritos e sussurros, em
suas pornografias muito próprias, cada homem conhece o Inferno e o Paraíso de ser o
que é.

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