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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

A GESTÃO DA ESCASSEZ:
Uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”

Lucas de Magalhães Freire

Rio de Janeiro
Dezembro de 2019
A gestão da escassez:
Uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”

Lucas de Magalhães Freire

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Antropologia Social.

Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Rio de Janeiro
Dezembro de 2019
CIP - Catalogação na Publicação

Freire, Lucas de Magalhães


F866g A gestão da escassez: uma etnografia da
administração / Lucas de Magalhães Freire. -- Rio
de Janeiro, 2019.
388 f.

Orientador: Adriana de Resende Barreto Vianna.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, 2019.

1. Crise. 2. Judicialização da Saúde. 3.


Escassez. 4. Direito à Saúde. 5. Necrogovernança.
I. Vianna, Adriana de Resende Barreto , orient.
II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos


pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
A gestão da escassez:
Uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”

Lucas de Magalhães Freire


Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,


Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.

Aprovada em 16 de dezembro de 2019


Banca Examinadora:

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Adriana de Resende Barreto Vianna (Presidente)
PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima
PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Leticia de Carvalho Mesquita Ferreira
IFCS/UFRJ

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Miriam Ventura da Silva
IESC/UFRJ

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Anelise dos Santos Gutterres (Suplente)
PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Waleska de Araújo Aureliano (Suplente)
ICS/UERJ
A todos aqueles que acreditam em,
lutam por e sonham com uma saúde
efetivamente pública, universal,
equânime e integral para todos
AGRADECIMENTOS

Por mais que seja um lugar-comum, escrever uma tese de doutorado é simultaneamente
um trabalho profundamente solitário e coletivo. Assim sendo, eu não poderia deixar de
agradecer aos muitos amigos, amigas e colegas que estiveram presentes – alguns ainda que à
distância – durante todo esse processo.
Antes de mais nada, agradeço às pessoas mais importantes do mundo: meus pais. Sou
profundamente grato por todo o esforço que fizeram ao longo desses 10 anos para me apoiar e
incentivar minha formação acadêmica. Sem eles, eu certamente não chegaria até aqui. Agradeço
também aos meus irmãos mais velhos, que sempre estiveram ao meu lado, especialmente nos
momentos em que isso era mais preciso. E claro, agradeço aos meus sobrinhos, que representam
para mim a esperança em um futuro melhor.
Quero também registrar meu profundo agradecimento ao ponto de partida desse
caminho: um imenso bloco de concreto chamado Universidade do Estado do Rio de Janeiro
que, apesar de soar estranho para os que não passaram por lá, é um dos lugares mais incríveis
e bonitos do mundo. Assim, gostaria de agradecer a todos aqueles que não conheço, mas que
lutaram pela efetivação da política de cotas na UERJ. Obrigado por acreditar que estudantes de
escolas públicas como eu – as quais vêm sendo sucateadas há décadas no Rio de Janeiro –
também devem estar nas salas da universidade. É desolador ver todos os ataques feitos pelos
governantes na tentativa de sucatear e acabar com uma das universidades mais plurais do Brasil.
Mas, a #UERJresiste.
Ainda sobre o concretão, quero deixar um agradecimento mais que especial aos meus
amigos da turma de 2009.1 do curso de Ciências Sociais: Aline Lopes, Conrado Pimentel,
Jenifer Bard, Josué de Souza (in memoriam), Karina Rodrigues, Marina Garcia, Pamella Liz,
Paula Carvalho, Paula Prado, Paulo Joaquim, Rafael Barreto, Tathiane Vitorino e Thayaná
Gonçalves. Entre grupos secretos, faccionalismos diversos, distâncias e sumiços, nós seguimos
aí, falando mal uns dos outros e nos amando acima de tudo. Gostaria também de agradecer
outros grandes amigos que fiz pelos incontáveis corredores dessa que é a “Hogwarts brasileira”
(muitos discordarão, mas eu não ligo): Margareth Gomes, Vanini Lima, Daniel Cardinali,
Fabíola Cordeiro, Cristiane Cabral, Marília Loschi, Raphael Werneck, Anastácia Cristina, entre
outros.
Separados por um Maracanã, passo agora aos agradecimentos aos amigos do Museu
Nacional, os quais foram como minha família nos últimos anos. Muitas são as memórias e fotos
dessa casa que já não estão mais lá e que, mesmo em reconstrução, já não é e não será mais a
mesma. Lembrando das muitas conversas ao redor da fonte no pátio do Museu (que sobrevieu!),
agradeço aos grandes amigos que fiz na turma de Mestrado de 2013: Aline Rabelo, Barbara
Pires, Everton Rangel, Marcela Rabello, Morena Freitas e Vlad Schüler. Agradeço também aos
amigos do grupo de orientação, que muito contribuíram para o desenvolvimento da tese.
Registro então todo meu carinho por Aline Sabino, Anelise Gutterres, Aymara Escobar, Bárbara
Dias, Camila Fernandes, Iréri Ceja, Jeferson Scabio, Laura Carvalho, Matheus Antonieto,
Nahuel Blazquez e Telma Bemerguy.
Agradeço ao pessoal do NUSEX, da organização do Seminário dos Alunos, da
representação discente, da mobilização, enfim, amigos que fiz por conta de tudo que foi minha
vida desde que cheguei ao Museu Nacional e que estiveram comigo em congressos, bares,
mesas redondas, praias, blocos de carnaval e tudo mais: Bárbara Rossin, Brena O’Dwyer,
Carolina Castellitti, Carolina Maia, Carolina Nogueira, Dibe Ayoub, Francesca Repetto,
Gustavo Onto, Lorena Mochel, Lucas Bártolo, María Rossi, Marlise Rosa, Michel Carvalho,
Natália Carvalhosa, Natália Maia, Nathalia Gonçales, Oswaldo Zampiroli, Renata Lacerda,
Samantha Gaspar, Samara Freire, Uliana Esteves, Veloso, Victor Hugo Barreto, Viviane
Fernandes e Wagner Guilherme.
Agradeço também aos maravilhosos membros da Secretaria do PPGAS por serem
imbatíveis no quesito resolução burocrática: a saudosa Adriana Valcarce, Anderson Arnaud e
Afonso Santoro. Ao pessoal da Biblioteca Francisca Keller, minha profunda admiração e
agradecimento por todo esforço empreendido para a reconstrução desse que é um espaço
inestimável para todos nós: Adriana Ornellas, Fernando Lima, Márcio Nunes e um
agradecimento mais que especial para Dulce de Carvalho.
Agradeço aos muitos professores que tive em minha vida. De alfabetização, ensino
fundamental, ensino médio, pré-vestibular, curso de idioma, graduação e pós-graduação.
Admiro profundamente quem permanece acreditando na educação, por mais atacada,
perseguida e desvalorizada que esteja a categoria ultimamente. Assim, agradeço aos professores
Antonio Carlos de Souza Lima, Luiz Fernando Dias Duarte e Miriam Ventura pelas
contribuições ao meu trabalho feitas na ocasião do meu exame de qualificação, bem como por
terem aceitado o convite para compor a banca final de minha tese. E aqui, estendo meu
agradecimento também à professora e amiga Leticia Ferreira, por também integrar a banca final.
Agradeço igualmente às professoras Anelise Gutterres e Waleska Aureliano por aceitarem o
convite para a suplência de minha defesa de tese. Gostaria também de agradecer nominalmente
algumas professoras que fizeram de mim o antropólogo que me tornei. Às professoras Claudia
Barcellos, Maria Claudia Coelho e Sandra Carneiro agradeço pelas aulas na graduação e por
terem despertado em mim o interesse pela Antropologia. Às professoras Adriana Vianna e
María Elvira Díaz-Benítez agradeço pelas disciplinas oferecidas, os eventos, os livros lançados,
os bares, as festas e o acolhimento. Vocês seguem sendo uma fonte de enorme inspiração.
E por falar em se tornar um antropólogo, quero deixar um registro – ainda que mínimo
e incapaz de expressar como me sinto – do quanto eu agradeço a minha muito mais do que
querida orientadora, Adriana Vianna. Não existem palavras no mundo que deem conta de
descrever o tamanho do meu carinho, estima, encantamento e admiração. Que o Sol e Lua em
Câncer nos mantenham sempre unidos e atentos.
Como dito, uma tese não se faz sozinho e sem diálogo. Quero então deixar meu
agradecimento às pessoas com quem pude compartilhar minhas reflexões ao longo desses
últimos anos em diferentes congressos e eventos: Cilmara Veiga, Everton de Oliveira, Julian
Simões, Juliana Farias, Larissa Nadai, Natália Lago, Natalia Negretti, Natália Padovani e
Roberto Efrem. Agradeço aos amigos que apesar de ainda não terem sido mencionados, não
são menos importantes: Amurabi Oliveira, Claudia Dantas, Diego de Souza, Diego Venceslau,
Filipe Marino, Francisco Vieira, Gustavo Saggese, Michele Escoura, Paulo Augusto Franco,
Raquel Oscar, Ted Gola, Timm Costa e Vinicius Martins. Agradeço também ao pessoal com
quem compartilhei casa ao longo desses últimos anos: Laura Aroso e Pedro Ferreira, do bunker
no Rio Comprido; e Frederico Magalhães, Rodrigo Reis e Jeferson Scabio, da república
Gloriosa do 703.
Mais do que um amigo, quero deixar registrado meu mais sincero agradecimento ao
meu namorado-amigo-companheiro-colega-de-quarto Igor Rolemberg. Obrigado por todo
apoio, carinho e suporte nesses últimos anos do doutorado, em especial durante a escrita da
tese. Eu aprendo e cresço com você todos os dias.
Agradeço também ao pessoal grupo de pesquisa na Escola Nacional de Saúde Pública
coordenado pela querida professora Roberta Gondim: Amanda Rodrigues, Leandro Gonçalves
e Lívia Nascimento. Trocar experiências e impressões com vocês nesses últimos meses foi
fundamental para a finalização do meu trabalho.
Quero agradecer também aos funcionários da biblioteca do Centro Cultural do Banco
do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB-Rio), local onde boa parte dessa tese foi escrita.
Apesar de não poder nominar cada um, agradeço aos funcionários da Câmara de
Resolução de Litígios de Saúde por compartilharem comigo seus conhecimentos e permitirem
que eu acompanhasse suas atividades e rotinas profissionais. Obrigado por possibilitar meu
acesso ao campo e ao material que dá sustentação ao meu trabalho.
Por fim, agradeço ao CNPq pela bolsa concedida durante o período do doutorado.
RESUMO

A gestão da escassez:
Uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”

Essa tese é o resultado de uma pesquisa sobre a administração de litígios de saúde em


tempos de “crise” no Rio de Janeiro. Meu argumento central é o de que a ideia da escassez e
finitude dos recursos públicos encontra-se na raiz de um conjunto variado de projetos de
intervenção estatal que vão desde planos de reorganização de serviços públicos de saúde até a
criação de um órgão que visa controlar o fluxo de novos processos judiciais e combater o
“excesso de judicialização da saúde”.
Na primeira parte da tese, abordo a conformação de diferentes discursos e narrativas que
culminam na produção de um enquadramento que define a conjuntura como uma “crise da
saúde pública no Rio de Janeiro”, utilizado para justificar uma série de medidas e decisões
acerca dos rumos das políticas de saúde nos âmbitos municipal, estadual e até mesmo federal.
Por meio de um apanhado dos principais discursos sobre a crise que começaram a circular na
mídia a partir de meados de 2014, exploro como estes configuram diferentes versões da crise
em uma disputa política acerca da “verdade”. Ao trazer uma perspectiva histórica para pensar
a situação contemporânea, sugiro que a crise decretada em 2015 não é um episódio pontual na
trajetória da saúde pública no Rio de Janeiro, mas sim um ponto crítico de um modo de governo
que se faz por meio da produção incessante da escassez.
A segunda parte tem a ver com o acionamento do Judiciário como forma de garantir
direitos e de tentar gerir e/ou contornar os efeitos dessa crise na vida daqueles que dependem
do Sistema Único de Saúde. Baseado em uma etnografia realizada entre os meses de dezembro
de 2016 e dezembro de 2017 em um órgão público chamado Câmara de Resolução de Litígios
de Saúde, busco discutir como o fenômeno da judicialização da saúde é gerenciado por meio
de procedimentos burocráticos que objetivam oferecer uma “resolução administrativa” para os
potenciais litígios. Ao descrever o cotidiano dessa instituição, pretendo explorar como a
precariedade e a escassez são administradas rotineira e continuamente por um grupo de agentes
ligados a diferentes instâncias e órgãos estatais. Considero essa gestão pela escassez um
elemento central da operação do chamo aqui de necrogovernança: um conjunto de ações
estatais de gestão de populações que tem por objetivo fazer morrer certos grupos sociais através
da corrosão das condições e possibilidades de vida das pessoas e da inviabilização de sua
existência.

Palavras-chave: Crise; Judicialização da Saúde; Escassez; Necrogovernança; Gestão Pública;


Direito à Saúde.
ABSTRACT

The management of scarcity:


An ethnography of administration of health care litigation in times of “crisis”

This thesis is the result of a research on the management of health care litigation in times
of “crisis” in Rio de Janeiro. My main argument is that the idea of scarcity and finitude of public
resources lies at the root of a wide variety of state intervention projects ranging from plans to
reorganize public health services to the creation of an institution to control the flow of new
lawsuits and to oppose the “excessive judicialization of health”.
In the first part of the thesis, I discuss the conformation of different discourses and
narratives that culminate in the production of a framing that defines the conjuncture as a “public
health crisis in Rio de Janeiro”, used to justify a series of actions and decisions about the
direction of health care policies at the municipal, state and even federal levels. Through an
overview of the main discourses about the crisis that began to circulate in the media from mid-
2014, I explore how these shape different versions of the crisis in a political dispute about the
“truth”. By bringing a historical perspective to think about the contemporary situation, I suggest
that the declared crisis in 2015 is not a one-off episode in the history of public health in Rio de
Janeiro, but a critical point of a way of governing that works by incessant production of scarcity.
The second part deals with the mobilization of the Courts as a way of guaranteeing
rights and trying to manage and / or circumvent the effects of this crisis on the lives of those
who depends on the Unified Health System (Sistema Único de Saúde). Based on an
ethnography carried out between December 2016 and December 2017 in a public institution
called the Health Litigation Resolution Chamber (Câmara de Resolução de Litígios de Saúde),
I seek to discuss how the phenomenon of judicialization of health is managed through
bureaucratic procedures aimed to provide “administrative resolutions” to potential litigation.
By describing the daily life of this institution, I intend to explore how precariousness and
scarcity are routinely and continuously administered by a group of agents linked to different
state levels and agencies. I consider this management through scarcity to be a fundamental
element in the operation of what I call here necrogovernace: a set of state actions on population
management that aims to make die certain social groups through the corrosion of people's living
conditions and possibilities and the unfeasibility of its existence.

Key words: Crisis; Judicialization of Health; Scarcity; Necrogovernance; Public Management;


Right to health.
RESUMEN

La gestión de la escasez:
Una etnografía de la administración de litigios de salud en tiempos de “crisis”

Esta tesis es resultado de una investigación sobre la administración de litigios de salud


en un tiempo de “crisis” en Rio de Janeiro. El argumento central del trabajo es que la idea de la
escasez y del carácter finito de los recursos públicos se encuentra en la raíz de un conjunto
variado de proyectos de intervención estatal que van desde planes de reorganización de
servicios públicos de salud hasta la creación de un órgano destinado a controlar el flujo de
nuevos procesos judiciales y combatir el “exceso de judicialización de la salud”.
En la primera parte de la tesis, abordo la formación de diferentes discursos y narrativas
que culminan con la producción de un marco que define la coyuntura como una “crisis de la
salud pública en Rio de Janeiro”, utilizado para justificar una serie de medidas y decisiones
acerca de los rumbos de las políticas de salud en los ámbitos municipal, estatal e inclusive
federal. Por medio de la recopilación y análisis de los principales discursos sobre la crisis que
comenzaron a circular en los medios de comunicación a partir de mediados de 2014, exploro
cómo éstos configuran diferentes versiones de la crisis en una disputa política acerca de la
“verdad”. Al traer una perspectiva histórica para pensar la situación contemporánea, sugiero
que la crisis decretada en 2015 no es un episodio puntual en la historia de la salud pública en
Rio de Janeiro, y si un punto crítico de un modo de gobierno que se ejerce a través de la
producción incesante de escasez.
La segunda parte tiene que ver con la activación del sistema judicial como forma de
garantizar derechos y de intentar administrar y/o sortear los efectos de esta crisis en la vida de
aquellos que dependen del Sistema Único de Salud. Basado en una etnografía realizada entre
los meses de diciembre de 2016 y diciembre de 2017 en un órgano público llamado Cámara de
Resolución de Litigios de Salud, busco discutir cómo el fenómeno de la judicialización de la
salud es gerenciado por medio de procedimientos burocráticos que tienen por finalidad ofrecer
una “resolución administrativa” para los potenciales litigios de salud. Al describir la
cotidianidad de esta institución, pretendo explorar cómo la precariedad y la escasez son
administradas rutinera y continuamente por un grupo de agentes ligados a diferentes instancias
y órganos estatales. Considero esta gestión a través de la escasez un elemento central de la
operación del llamado aquí necrogobernanza: un conjunto de acciones estatales de gestión de
poblaciones que tiene como objetivo hacer morir ciertos grupos sociales mediante de la
corrosión de las condiciones y posibilidades de vida de las personas, haciendo inviable su
existencia.

Palabras clave: Crisis; Judicialización de la Salud; Escasez; Necrogobernanza; Gestión


Pública; Derecho a la Salud.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1
Reprodução da página oficial de Marcelo Crivella 91
Figura 2
Reprodução da página oficial de Marcelo Crivella 92
Figura 3
Charge de Ricardo Barros 141

Figura 4
Entrada da CRLS 246
Figura 5
Hall da CRLS 246
Figura 6
Parede interna da CRLS 247

Figura 7
Escada interna da CRLS 247
Figura 8
Parede interna da CRLS 248
Figura 9
Parede interna da CRLS 248

Figura 10
Fluxo de atendimento na CRLS 250
Figura 11
Subsolo da CRLS 252
Figura 12
Composição do Número de Solicitação gerado pelo sistema da CRLS 255
Figura 13
Primeiro andar (loja) da CRLS 258

Figura 14
Segundo andar (sobreloja) da CRLS 264
Figura 15
Fluxograma de solução de demandas no setor de análise técnica da CRLS 293
Figura 16
Instruções para acessar a CRLS 332
Figura 17
Instruções sobre o SISREG 338
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1
Evolução da Cobertura da ESF na cidade do Rio de Janeiro (2008-2017) 79
Gráfico 2
Total líquido dos repasses do FNS para o FMS (2014-2018) 83
Gráfico 3
Comparativo das despesas de Saúde do município do Rio de Janeiro (2014-2018) 85

Gráfico 4
Comparativo das despesas de Saúde do
Governo do estado do Rio de Janeiro (2014-2018) 94
Gráfico 5
Total líquido dos repasses do FNS para o FES (2014-2018) 95
Gráfico 6
Percentual da receita anual aplicada em Saúde no estado do Rio de Janeiro (2007-2018) 147

Gráfico 7
Leitos Hospitalares de Internação no estado do Rio de Janeiro (2007-2018) 148
Gráfico 8
Leitos Hospitalares de Internação no município do Rio de Janeiro (2007-2018) 149
Gráfico 9
Recorrência do termo crise nos títulos de informes do CREMERJ (2013-2017) 174

Gráfico 10
Notícias do CFM que mencionam a palavra crise (2013-2018) 175
Gráfico 11
Matérias do jornal O Globo sobre a “crise da saúde” (2013-2018) 175
Gráfico 12
Matérias do jornal Extra sobre a “crise da saúde” (2013-2018) 175
Gráfico 13
Informes do CREMERJ que anunciam greves ou paralisações (2015-2018) 193

Gráfico 14
Distribuição dos gastos do Ministério da Saúde em compras por determinação
judicial, de 2010 a 2015, com destaque para três medicamentos 235
Gráfico 15
Resolução administrativa de demandas na CRLS (2013-2017) 240
Gráfico 16
Série histórica do Acervo Geral. Competências: Fazenda Pública
e Juizado Fazendário (2013-2018) 241
LISTA DE TABELAS

Tabela 1
Manifestações sobre “morosidade processual” na Ouvidoria do CNJ em 2018 217
Tabela 2
Ações judiciais de para fornecimento de medicamentos (2011-2012) 233
Tabela 3
Processos em 2ª instância no TJRJ que mencionam os termos “SUS”
e “Medicamentos e SUS” (2010-2018) 238

Tabela 4
Atendimentos realizados pela CRLS em 2014 239
Tabela 5
Produtos solicitados na CRLS em 2014 239
Tabela 6
Ações Judiciais Referentes à judicialização de medicamentos e insumos
relacionados ao SUS no TJRJ (2015-2017) 241

Tabela 7
Distribuição de processos contra a Saúde Pública e Suplementar
no estado do Rio de Janeiro 242

LISTA DE QUADROS

Quadro 1
Resumo das versões oficiais da crise da saúde 114

Quadro 2
Resumo das contraversões da crise da saúde 153
Quadro 3
Classificação de risco segundo o Protocolo de Manchester 336
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva


ACP – Ação Civil Pública
ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
ASPS – Ações e Serviços Públicos de Saúde
CADJ – Central de Atendimento de Demandas Jurídicas
CAP – Coordenadoria de Saúde da Área de Planejamento
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
CEAF – Componente Especializado de Assistência Farmacêutica
Cebes – Centro Brasileiro de Estudos da Saúde
CER – Coordenação de Emergência Regional
CF – Clínica da Família
CFM – Conselho Federal de Medicina
CGU – Controladoria Geral da União
CID – Classificação Internacional de Doenças
CMS – Centro Municipal de Saúde
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CNS – Conselho Nacional de Saúde
Conitec – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS
Coren-RJ – Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro
COSEMS-RJ – Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
CREMERJ – Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro
CRFB/88 – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
CRLS – Câmara de Resolução de Litígios de Saúde
CTI – Centro de Tratamento IntensivoDGH – Departamento de Gestão Hospitalar
DPE-RJ – Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
DPU – Defensoria Pública da União
ESF – Estratégia de Saúde da Família
FEEF – Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal
FES – Fundo Estadual de Saúde
Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz
FMS – Fundo Municipal de Saúde
FNS – Fundo Nacional de Saúde
ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INC – Instituto Nacional de Cardiologia
INCA – Instituto Nacional do Câncer
INPS – Instituto Nacional de Previdência Social
INTO – Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia
IOC – Instituto Oswaldo Cruz
IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano
LOA – Lei Orçamentária Anual
LOS – Lei Orgânica de Saúde
LRF – Lei de Responsabilidade Fiscal
MESC – Métodos Extrajudiciais de Solução de Controvérsias
MPF – Ministério Público Federal
MPRJ – Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
MS – Ministério da Saúde
NAF – Núcleo de Assistência Farmacêutica
NAT – Núcleo de Assessoria Técnica
NIR – Núcleo Interno de Regulação
NSSM – Movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos
ONG – Organização Não-Governamental
OS – Organização Social
PAJ – Procedimento de Assistência Jurídica
PAM – Posto de Assistência Médica
PCDT – Protocolo Clínico e Diretrizes e Terapêuticas
PEC – Projeto de Emenda Constitucional
PF – Polícia Federal
PGE-RJ – Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro
PGM-Rio – Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro
PGR – Procuradoria Geral da República
PIB – Produto Interno Bruto
PNAF – Política Nacional de Assistência Farmacêutica
REMUME – Relação Municipal de Medicamentos Essenciais
RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
REUNI-RJ – Central de Regulação Unificada do Rio de Janeiro
RIOFARMES – Farmácia Estadual de Medicamentos Especiais
RSB – Reforma Sanitária Brasileira
SAS – Secretaria de Atenção à Saúde (Governo Federal)
SER – Sistema Estadual de Regulação
SES – Secretaria de Estado de Saúde
Sinmed-RJ – Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro
SISREG – Sistema Nacional de Regulação
SMS – Secretaria Municipal de Saúde
SNS – Sistema Nacional de Saúde
SPA – Sistema de Pedido Administrativo
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
TCE-RJ – Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro
TCM-Rio – Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro
TCU – Tribunal de Contas da União
TJ – Tribunal de Justiça
TJRJ – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
TRE – Tribunal Regional Eleitoral
TRF – Tribunal Regional Federal
UBS – Unidade Básica de Saúde
UPA – Unidade de Pronto Atendimento
SUMÁRIO

Prólogo
Um dia na Câmara de Resolução de Litígios de Saúde 21

Introdução
Uma incessante fabricação da escassez:
direito à saúde, judicialização e o governo da crise 47
Regulação do acesso à Justiça e mediação de conflitos:
um breve panorama da CRLS e da judicialização de saúde 49

No avançar da crise: o aprofundamento da escassez 56

Trabalho de campo, materiais de pesquisa e organização da tese 59

Parte I – CRISE
1. “Não há recursos suficientes”:
as versões oficiais da crise da saúde segundo os três níveis de governo 76
1.1 – “O problema vem de antes”: a crise segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro 78

1.2 – A queda do preço do petróleo e a diminuição na arrecadação dos royalties:


a crise de acordo com o Governo do estado do Rio de Janeiro 93

1.3 – “O problema é o tamanho do SUS”:


a crise sob o ponto de vista do Governo Federal 105

2. “Crise do que? Crise para quem?”:


as críticas e contraversões da crise da saúde no Rio de Janeiro 115
2.1 – Escolhas erradas: a crise como fruto da má gestão 121

2.2 – “Roubaram demais”: a crise como produto da corrupção 130

2.3 – O “desmonte do SUS”: a crise como um projeto político 139

3. “A pior crise na saúde pública do Rio de Janeiro”:


crise, temporalidade e modos de governo 154
3.1 – Os problemas crônicos da saúde pública brasileira:
as crises do passado e o projeto do SUS 157

3.2 – A “pior crise da saúde no Rio de Janeiro”: o enquadramento do presente 172

3.3 – Políticas da crise: soluções e projetos para o futuro 182


Parte II – JUDICIALIZAÇÃO
4. “A CRLS surge com o intuito de resolver a situação”:
as “falhas do Sistema de Justiça” e a criação da CRLS 202
4.1 – Diagnosticando problemas:
“o excesso de judicialização” e a “morosidade do Judiciário” 204

4.2 – “É preciso dialogar”: um breve histórico dos mecanismos de resolução


administrativa dos litígios de saúde no Rio de Janeiro 224

4.3 – A questão da falta: crise e judicialização da saúde na CRLS 231

5. “Todos saem daqui com uma resposta no mesmo dia”:


a estrutura e o funcionamento da CRLS 245
5.1 – Triagem 251

5.2 – Atendimento 256

5.3 – Análise Técnica 261

5.4 – Retorno da Análise 277

6. “Resolução em saúde, é conversando que a gente se entende”:


mediação e judicialização enquanto tecnologias da gestão estatal 282
6.1 – A ameaça da Justiça: disciplinando relações e procedimentos 283

6.2 – “O SUS é para todos, para todos que reivindicam”:


“resoluções administrativas”, burocracias e as práticas de gestão estatal 298

6.3 – Segmentação e ausência de diálogo: as múltiplas divisões da CRLS 309

7. Uma “tocaia de Estado”:


a necrogovernança e a gestão do tempo, do risco e do sofrimento 321
7.1 – O Estado contra o Estado:
“resoluções administrativas” e conflitos de interesses estatais 323

7.2 – “Classificações de risco”: mensurando tempos e sofrimentos (in)suportáveis 334

7.3 – O ritmo da gestão: uma “loteria de Estado” e a necrogovernança 349

Considerações finais
A gestão pela escassez: recursos finitos, demandas infinitas 362

Referências 369
Nesta tese serão utilizadas aspas duplas para citações e termos ou expressões êmicas,
bem como para indicar o sentido metafórico de certas palavras ou frases. O itálico será
utilizado para palavras estrangeiras, conceitos analíticos – tanto próprios quanto de
outros autores –, nomes de medicamentos, empresas públicas e privadas, Organizações
Não-Governamentais, jornais, revistas, programas de TV e de políticas públicas, bem
como para destacar vinhetas etnográficas e enfatizar alguns pontos do texto.
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PRÓLOGO

Um dia na Câmara de Resolução de Litígios de Saúde

Terça-feira, abril de 2017, Centro da cidade do Rio de Janeiro. São 9:45 da manhã e há
uma fila de 20 pessoas aguardando a abertura das portas da Câmara de Resolução de Litígios
de Saúde (CRLS). Dentro do edifício, os funcionários conversam sobre as notícias da manhã e
sobre os casos que estão por vir no expediente que está prestes a começar. Neste dia, o assunto
principal é a operação “Fratura Exposta” da Polícia Federal e a denúncia do Ministério Público
que culminou na prisão do antigo secretário de Saúde do estado do Rio de Janeiro e outros dois
empresários, acusados de participar de esquemas de fraude nas licitações de aquisição de
próteses para o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO). Aos poucos, todos
vão ocupando seus devidos lugares. Os funcionários que trabalham nos setores de análise
técnica e retorno da análise permanecem no refeitório tomando café e conversando, pois os
casos só chegarão em suas mesas depois de pelo menos meia hora do início das atividades.
Quando o relógio marca 10h da manhã, o segurança da CRLS destranca e abre as portas
da instituição. Em fila, as pessoas se dirigem à mesa de distribuição de senhas localizada no
subsolo do prédio. Na tentativa de agilizar o processo, a senhora responsável pela entrega das
senhas pergunta de modo apressado qual a demanda, onde mora e se está com todos os
documentos necessários para que o cadastro seja feito. Sem conferir as informações, ela clica
no botão “gerar senha” que fica no centro da tela de seu computador e pede para que a pessoa
aguarde ser chamada ou explica ao sujeito que, por alguma razão, sua demanda não é de
competência da CRLS.
Conforme vão adquirindo sua senha de atendimento, os assistidos se sentam nas quase
60 cadeiras disponíveis na sala de espera. Antes das 10:05, o monitor localizado no centro do
recinto começa a piscar um aviso e é possível escutar em alto e bom som a seguinte mensagem:
“senha 1, compareça ao guichê 1”. O som de uma voz feminina computadorizada que diz
“fulano de tal, senha X, compareça ao guichê Y” permanece incessante até por volta das 17h.
Dos quatro guichês disponíveis para a triagem dos assistidos, apenas os dois primeiros estão
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ocupados. Duas assistentes sociais se revezam para atender pessoas que já aguardavam na fila
sabe-se lá desde que horas.
Senha 1: Uma senhora se aproxima do guichê com alguma dificuldade e se senta diante
da assistente social. Dona Selma1 é uma aposentada de 66 anos que mora em Inhoaíba com seu
irmão, sua neta e seu bisneto. No início de 2014 ela foi matriculada no Instituto Nacional do
Câncer (INCA) para tratar de um câncer de mama. Em maio daquele ano, ela realizou o
procedimento de mastectomia e desde então faz quimioterapia paliativa com o medicamento
Herceptin, pois há recidiva da doença no fígado. Em sua ficha médica há a informação de que
a quimioterapia está tendo um bom resultado e que não há previsão de suspensão do tratamento.
Além do câncer, dona Selma é também diabética. Nesse dia, ela compareceu à CRLS para
informar que estava sem receber o referido medicamento desde novembro do ano anterior e que
não tem condições de comprá-lo, de modo que seu tratamento estava interrompido há cerca de
cinco meses. Por conta da falta, seu médico alterou seu tratamento e ela passou a tomar outra
medicação. No laudo, o médico afirma que ainda é cedo para avaliar os benefícios da
modificação da estratégia terapêutica, mas que em razão da toxicidade do novo remédio, dona
Selma estava tendo como efeitos colaterais diarreia e o inchaço de suas mãos e pés. Assim, ele
indica que a paciente deveria retomar a quimioterapia com o Herceptin. Após passar pela
triagem, dona Selma foi encaminhada para ser atendida pela Defensoria Pública da União
(DPU), categorizada como um “atendimento prioridade”.
Senha 2: Carla chegou acompanhada de sua filha mais velha. Ela tem 47 anos, não
completou o ensino médio, está desempregada e reside na Taquara com suas duas filhas mais
novas, ambas menores de idade. Carla foi diagnosticada com Síndrome de Parkinson em agosto
de 2016. Através da política da Farmácia Popular, ela adquiria a medicação que compunha seu
tratamento por cerca de R$ 7,00 a caixa. Em janeiro de 2017, o Ministério da Saúde modificou
as condições de acesso à política alegando que essa medida combateria fraudes no sistema, de
forma a impedir que “pessoas que não teriam direitos” usufruam de tal política. Dentre essas
alterações estava a idade mínima para dispensação de determinados medicamentos, que, no
caso dos pacientes que necessitam de medicação para Parkinson, passou para 50 anos. Carla
começou a enfrentar dificuldades para manter o tratamento, pois sem o subsídio o medicamento
que ela precisava passou a custar R$ 40,00 a caixa. Após passar mal, Carla foi atendida em
caráter emergencial em um ambulatório de um hospital federal. Nesse atendimento, o médico

1
Como de praxe em pesquisas antropológicas, todos os nomes citados nesta tese são pseudônimos utilizados para
proteger a identidade dos interlocutores. As únicas exceções são as figuras públicas mencionadas, tais como
secretários de saúde, prefeitos, governadores, presidentes, vereadores, deputados, especialistas, entre outros.
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constatou que a dosagem de seu tratamento estava muito baixa e por isso ela estava
apresentando os sintomas da doença novamente. Sem conseguir a medicação no hospital – uma
vez que não era uma paciente regular do ambulatório –, Carla se viu com duas receitas novas.
Ao buscar o preço da medicação nas farmácias, ela descobriu que seu tratamento custaria quase
R$ 300,00 por mês. Alegando não ter condições de custear um tratamento desse valor, Carla
foi à CRLS pedir ajuda. Durante todo o tempo, ela enfatizou que não fazia questão de receber
gratuitamente a medicação, mas sim que gostaria de poder comprar novamente os remédios na
Farmácia Popular. Mesmo sem um laudo médico atestando sua patologia, Carla foi
encaminhada para ser atendida pela DPU, já que a receita que ela trazia consigo era oriunda de
um hospital federal.
Senha 3: A filha do senhor Bernardo foi até o guichê visivelmente abatida. Era a segunda
vez que ela comparecia à CRLS. 16 dias antes ela esteve lá para solicitar Imunoglobulina
Humana Venosa, um medicamento que custa cerca de R$ 1.200,00 o frasco e que compunha o
tratamento do seu pai. O paciente era portador de Polineuropatia Inflamatória Desmielizante
Crônica (PIDC), uma doença que causa a perda ou diminuição progressiva dos reflexos, da
sensibilidade táctil e da força muscular. Naquela primeira ocasião, ela havia entregado todos os
documentos necessários para abrir uma solicitação na CRLS: documentos de identificação do
assistido, comprovantes de renda e residência, laudo e receituário médicos. O parecer fornecido
no primeiro atendimento informou que o medicamento pleiteado era indicado para o tratamento
dessa patologia e que estava incluído na lista de medicamentos do Componente Especializado
de Assistência Farmacêutica (CEAF). Contudo, a classificação diagnóstica do assistido não
fazia parte dessa lista, de modo que ele não pôde obter o medicamento pela chamada “via
administrativa”. Assim, o caso foi encaminhado para a Defensoria para que fosse aberto um
processo judicial solicitando a referida medicação. No dia corrente, a filha do senhor Bernardo
disse que seu atendimento era um retorno, pois ela estava ali para dar baixa no processo e
apresentar o atestado de óbito de seu pai, que havia falecido há oito dias.
Senha 4: Regina se aproximou do guichê falando em um tom de voz alto que aquela era
a terceira vez que ela iria à CRLS. Sua demanda era um exame oftalmológico para confirmação
de diagnóstico e indicação de tratamento, uma vez que sua visão estava ficando cada vez mais
deteriorada. Após verificar que a paciente não havia trazido a guia de solicitação do exame, a
assistente social tentou explicar que ela precisaria retornar em outro momento porque ela não
havia trazido os documentos necessários para o atendimento. Regina protestou falando que
estava sempre “faltando alguma coisa” e que ela já não sabia mais o que fazer. A assistente
social insistiu que ela não deveria prosseguir, pois em algum momento seu pedido resultaria em
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uma negativa e que isso poderia levar horas, de modo que ela perderia tempo na CRLS. Cada
vez mais irritada, Regina pediu para falar com a chefe da instituição. A assistente social tentou
fazer com que Regina entendesse que a coordenadora diria o mesmo que ela, mas a assistida
permaneceu irredutível. Para não ter que continuar a discussão e preocupada com a quantidade
de pessoas na fila, a funcionária desistiu e inseriu a demanda de Regina no sistema da Câmara.
Ela pediu que Regina aguardasse ser chamada para o atendimento no primeiro andar. Após
Regina sair, ela virou para mim e disse: “a gente tenta fazer com que a pessoa não perca tempo,
mas se ela quer passar três horas aqui dentro para ouvir que vai precisar voltar depois, tudo
bem”.
“Senha 5, compareça ao guichê dois”, era o recado piscando no monitor e anunciado
pela voz computadorizada. Ninguém se dirigiu ao guichê. Poucos segundos depois, o mesmo
aviso. As pessoas começam a se olhar entre si e murmurar. Terceira vez, o guichê permanecia
vazio. Na quarta vez, a assistente social se levantou e perguntou: “alguém aí com a senha 5?”
Nenhuma resposta. Quinta vez, ela pergunta novamente e diz que vai “abandonar a senha”:
“está todo mundo de prova que eu chamei. Eu vou abandonar aqui no sistema”. Ninguém se
manifesta. Ela clica no botão “abandonar senha” e depois em “chamar”. Quem quer que tivesse
pegado a senha 5, caso retornasse, teria que adquirir uma nova senha e retornar ao final da fila.
Senha 6: Um assistido passou rapidamente pelo guichê e informou que estava ali apenas
para saber informações sobre o andamento do seu processo.
Por volta das 10:20 da manhã, o sistema de som anuncia: “senha 1, Selma Maria de
Souza, compareça ao guichê 8”. No monitor, apareceu o nome da assistida e o guichê no qual
ela seria atendida. Dona Selma se levanta com alguma dificuldade e vai caminhando em direção
às escadas que dão acesso ao hall, para então seguir para o primeiro andar. Ao perceber a
dificuldade de locomoção da senhora, a funcionária responsável pela distribuição de senhas se
levanta e chama a ascensorista para que dona Selma possa ir ao primeiro andar de elevador.
Enquanto isso, o sistema de som volta a anunciar: “senha 7, compareça ao guichê 2”.
Senha 7: Marcelo, um rapaz de 27 anos, chegou no guichê informando que precisava
realizar um exame de ressonância magnética com urgência. Ao olhar os documentos que ele
havia trazido, a assistente social informou que não poderia seguir com seu atendimento, pois a
guia de solicitação do exame era de cinco meses atrás e esses pedidos só são válidos por 90
dias. Marcelo então começou a explicar sua situação: ele trabalhava como auxiliar de serviços
gerais em uma famosa rede de lanchonetes quando sofreu um acidente de trabalho que resultou
em uma grave lesão em sua coluna. Com isso, ele foi afastado. Após o período inicial de
afastamento, Marcelo se dirigiu ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Apesar de
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possuir os laudos dos médicos peritos que afirmavam sua impossibilidade de retornar, Marcelo
teve sua solicitação de benefício negada por não ter apresentado o resultado da ressonância
magnética que comprovaria sua incapacidade momentânea. Exame esse que ele afirmou não
conseguir fazer porque não havia vaga em nenhuma instituição pública. Com o afastamento
negado e sem ter condições físicas de voltar a trabalhar, Marcelo foi acusado de abandonar o
emprego, sendo demitido por justa causa. Sem nenhuma fonte de renda, o rapaz foi expulso da
casa que alugava informalmente em Queimados, passando a morar nas ruas do Centro do Rio
de Janeiro. Ainda na tentativa de relatar o que aconteceu, Marcelo comentou que estava com
medo de ser preso, pois desde que ficou sem receber, ele parou de pagar a pensão de sua filha.
Ainda que estivesse visivelmente comovida com o relato do assistido, a assistente social disse
a ele que não havia nada que pudesse ser feito para ajudá-lo, uma vez que o exame de
ressonância por si só não seria capaz de desfazer tudo que havia acontecido. Marcelo insistiu
que precisava fazer o exame, ao passo que a funcionária afirmou que ele até poderia retornar à
Câmara com uma guia de solicitação nova para tentar agendar a realização do exame, mas que,
naquele momento, ele deveria ir à sede da Defensoria Pública e ao Tribunal Regional do
Trabalho para obter orientações sobre como solucionar sua situação. Com um semblante
chateado, Marcelo se retirou sem que sua solicitação fosse inserida no sistema da CRLS. Após
sua saída, a assistente social, ainda bastante desconfortável diante da sua incapacidade de ajudar
o rapaz, comentou comigo: “nós estamos mesmo perdidos... por causa da falta de vaga para
fazer um exame, a pessoa teve a sua vida completamente destruída”.
Senha 8: Geraldo chegou no guichê e disse que seu atendimento era um retorno para
entrega de documentos. Ele alegou não receber o medicamento Ranibizumabe – utilizado como
tratamento para a perda de visão causada pela diabetes – há mais de três meses e que hoje estava
trazendo a “declaração negativa” para anexar ao seu processo.
Senha 9: medicamento para hipertensão em falta na Clínica da Família. Senha 10: outro
retorno para entrega de documentos. Senha 11: mais um medicamento em falta na rede pública.
Senha 12: solicitação de informações sobre o processo. Senha 13: outra medicação em falta.
Senha 14: uma pessoa sem todos os documentos necessários para o atendimento. Senhas 15,
16, 17, 18 e 19: todas relataram a falta de algum medicamento na rede pública. Senha 20: o neto
de um senhor de 86 anos reclamou que seu avô estava esperando há mais de seis meses para a
marcação de um exame.
Senha 21: O marido de Vânia estava bastante preocupado com a situação de sua esposa,
que estava internada em um hospital particular por conta de um estágio avançado de câncer.
Ele explicou que havia sido demitido recentemente e que perderia o benefício do plano de saúde
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ao final do mês e que, por conta disso, temia que sua esposa ficasse sem assistência médica, já
que não havia qualquer previsão de alta. Diante disso, ele solicitou que sua esposa fosse
transferida para uma unidade pública de saúde. Outra opção sugerida por ele foi “entrar com
um processo” para que ela pudesse permanecer internada onde estava. Após conferir a
documentação, a assistente social explicou que se ele quisesse solicitar a transferência, isso
seria feito pela CRLS, mas se ele preferisse que a esposa permanecesse onde estava, ele deveria
procurar o Núcleo de Defesa do Consumidor (NUDECON) da DPE-RJ. Ele disse que tentaria
resolver a questão pelos dois caminhos, pois não era possível “perder tempo”. A assistente
social então registrou seu pedido no sistema da Câmara, classificando-o como uma “urgência”.
Senha 22: Carlos afirmou que precisava fazer um exame médico, mas que ele não tinha
nenhum laudo ou documento que comprovasse tal necessidade. Questionado sobre os motivos
de não ter uma indicação médica, ele relatou que os profissionais da Clínica da Família que fica
perto da sua casa haviam se recusado a atendê-lo. Sem a documentação, seu pedido não foi
inserido no sistema. Contudo, ele foi encaminhando para os guichês da DPE-RJ para retirar um
formulário/ofício que deveria ser respondido pela direção da unidade. Teoricamente, através
desse documento, os profissionais de saúde teriam de explicar a recusa do atendimento.
Senha 23: a filha de Michele compareceu à CRLS para reclamar que sua mãe estava
esperando a marcação de uma consulta com médico angiologista há muito tempo. A assistente
social verificou a documentação trazida pela moça, registrou o solicitação no sistema e pediu
que ela aguardasse ser chamada novamente.
Senha 24: José Carlos era um senhor de 62 anos, fumante desde os 15. Havia se
aposentado há pouco tempo após ter trabalhado durante décadas como cobrador de ônibus.
Entretanto, como o dinheiro da aposentadoria não era suficiente para arcar com as despesas de
sua família, ele ainda trabalhava informalmente como pedreiro e fazia pequenos reparos na rede
elétrica e no encanamento de casas na região de Bangu e Campo Grande, onde ele morava.
Apesar de dizer que tem “um monte de doença”, José afirmou que estava ali porque não
quiseram dar seu “remédio de pressão” na Clínica da Família. Ao ouvir isso, a assistente social
se assustou e perguntou enfatizando o verbo por ele utilizado: “como assim, seu José, não
quiseram dar o remédio do senhor? O senhor está sem receita?”. Ele respondeu: “não, minha
filha, o médico me deu a receita. Só que o rapaz da farmácia falou que ele não pode liberar só
com isso e me mandou vir aqui buscar um papel para depois voltar lá”. Começamos a entender
o que estava acontecendo na medida em que a funcionária fez algumas perguntas ao senhor.
Como o estoque do medicamento para controle da hipertensão arterial estava baixo, o gerente
da Clínica havia decidido que os que restaram na farmácia deveriam ser reservados para atender
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às determinações judiciais de fornecimento, já que o não cumprimento de uma decisão de um


magistrado poderia resultar na aplicação de multa, na condução coercitiva do gerente até a
delegacia para prestar depoimento ou, nos casos mais graves, em um mandado de prisão.
Obedecendo às ordens do gerente, o responsável pela farmácia da Clínica falou para José que
além do receituário, ele teria que apresentar uma “ordem judicial” para retirar o medicamento,
“papel” que, segundo o funcionário, ele conseguiria na Câmara. Para concluir, José disse: “foi
por isso, minha filha, que eu peguei o trem lá em Campo Grande e vim andando da Central até
aqui. Quero ver se ainda dá tempo de voltar lá hoje, porque eu estava trabalhando trocando os
pisos de uma casa essa semana e não tive tempo de ir lá buscar. Nessa brincadeira eu já estou
sem tomar o remédio há cinco dias”. Estarrecida, a assistente social começou a explicar o quão
absurdo isso era, que o gerente não poderia definir critérios que não fossem clínicos para a
distribuição de um medicamento e que isso era uma deturpação do fluxo do SUS. Ela afirmou
que o funcionário da farmácia também estava errado ao dizer para José que ele conseguiria uma
determinação judicial na Câmara, já que ali não é um Tribunal. Sem entender – ou sem ter
nenhum interesse em entender – o que ela estava dizendo, José interrompeu calmamente a fala
da funcionária para perguntar se ele conseguiria ou não retirar seu medicamento. A assistente
social respondeu que ele conseguiria sim, que ele sairia da CRLS com um “papel” que faria o
funcionário da Clínica liberar sua medicação. José agradeceu e enquanto a funcionária
registrava suas informações no sistema, ele retornou aos bancos da sala de espera.
Senha 25: O filho de Elaine foi à CRLS para denunciar a demora para a marcação de
uma consulta para sua mãe em uma unidade de referência na área de cardiologia no estado do
Rio de Janeiro. O representante da assistida afirmou que sua mãe estava há meses esperando
ser chamada e que ele já estava ficando preocupado. A assistente social verificou a
documentação trazida e pediu que ele aguardasse ser chamado novamente.
Senha 26: Era a segunda vez que o filho de Genésio comparecia à CRLS naquele mês.
Cerca de três semanas antes, ele havia informado que seu pai estava aguardando há muito tempo
a realização de um urgente procedimento de cateterismo cardíaco. Genésio tinha 66 anos e
morava na Zona Oeste do Rio. Apresentava quadro de cardiopatia isquêmica, pequenas anginas
e também era portador de Diabetes Melitus tipo II. Na primeira vez em que seu filho foi à
Câmara, o parecer elaborado pelo analista técnico informou que foi havia sido feito contato
com o Núcleo Interno de Regulação (NIR) da unidade de saúde que atendeu o paciente e que o
material necessário para a realização do procedimento ainda estava em fase de licitação. Diante
disso, foi solicitado um prazo de 7 dias para que a instituição se posicionasse em relação ao
caso. No final do mês, o filho de Genésio se dirigiu novamente à CRLS para informar que a
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situação ainda não havia sido resolvida. Nervoso, o homem perguntou à assistente social:
“agora a Justiça vai fazer alguma coisa ou vocês vão deixar meu pai morrer em casa?”. A
funcionária pediu para que ele tentasse manter a tranquilidade, pois provavelmente o caso de
seu pai seria enviado para a Defensoria Pública, que pediria uma liminar ao juiz de plantão, mas
que ela não poderia garantir nada, já que não era ela a responsável por definir o encaminhamento
do caso. Após explicar isso, ela informou que cadastrou o assistido como um caso de prioridade
e solicitou que ele aguardasse ser chamado novamente.
Senha 27: Quando a senha 27 foi chamada, eu estava com pressa para subir até o
primeiro andar para acompanhar o atendimento de um caso que já havia passado pela triagem.
Apesar de não ter anotado nada sobre quem foi atendido, fotografei aquilo que mais me chamou
atenção naquele momento: um pequeno pedaço de papel que a pessoa disse ter recebido dos
próprios recepcionistas do hospital no qual havia sido atendida. Nele estava escrito o endereço,
o telefone e horários de funcionamento da Câmara. Na última linha, a frase: “Para os casos de
agilização em saúde!”.
Senha 28: A avó de Luana sentou-se rapidamente na cadeira diante da assistente social
e colocou sobre a mesa um conjunto de papéis que ela retirou de uma pasta de plástico. A
funcionária fez com que a mulher parasse de separar os documentos ao dizer firmemente: “bom
dia senhora, tudo bem? Não precisa ter pressa e separar isso agora que já já eu olho os
documentos da senhora. O que trouxe a senhora aqui?”. A avó de Luana disse que estava com
pressa porque havia deixado a neta com uma vizinha. A senhora tinha três filhos: uma de 22
anos, um de 20 e outra de 19. Luana era filha de sua primogênita, uma bebê de pouco mais de
três meses de idade cuja mãe não produzia leite o suficiente para amamentá-la. Diante da
configuração familiar da criança, o pediatra havia indicado o fórmula infantil Pre NAN para
complementar a alimentação de Luana, que já estava abaixo do peso ideal para a sua idade. A
avó de Luana disse que eles – no caso, a família – precisavam muito desse “leite”, pois o
hospital “não tinha para dar” e que a lata custava mais do que o que ela recebia como diarista.
Em seu apelo, ela disse que se não conseguisse, a mãe de Luana teria de parar de estudar e
começar a trabalhar para dar conta de comprar o “leite”, já que uma lata de Pre NAN de 400g
custa em média R$ 130,00 e dura pouco mais de três dias. Após verificar a documentação, a
assistente social disse que ela deveria ficar atenta ao monitor enquanto aguardava ser chamada
novamente. A avó de Luana perguntou se demoraria muito pra ela ser atendida, pois ela não
poderia passar tanto tempo na rua, ao passo que a funcionária disse que o atendimento poderia
levar cerca de duas a três horas para sua conclusão. A mulher reclamou, disse que isso era muito
tempo e perguntou se não teria como ela ser atendida mais rapidamente. Apesar dela não
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aparentar ter muito mais de 40 anos, a assistente social perguntou se ela tinha mais de 60 anos,
que respondeu ter 43. A funcionária disse que ela não teria prioridade, a não ser que ela estivesse
com Luana. Decepcionada, a mulher voltou a se sentar em uma das cadeiras da sala de espera.
Depois de cerca de uma hora e meia do início das atividades – ou seja, por volta das
11:30 da manhã –, o movimento na triagem diminuiu um pouco, de modo que as assistentes
sociais já não estavam mais correndo para atender rapidamente todos os assistidos. As senhas
continuam a ser chamadas até às 15h, 15:30, chegando, geralmente, até o número 90 ou um
pouco mais. Quando a senha número 100 é atendida, algo que, de acordo com elas, está se
tornando cada vez mais comum, elas brincam entre si dizendo que “atingiram a meta”.
Enquanto as assistentes sociais realizam a triagem no subsolo, as funcionárias da DPE-
RJ e da DPU atendem os assistidos no primeiro andar. O expediente começou por volta das
10:20, após o primeiro “número de solicitação” ter sido gerado pela equipe de triagem. No
primeiro andar há também um monitor que indica para qual guichê a pessoa deve se dirigir,
mas, ao contrário do que acontece na triagem, não há um aviso sonoro. Mesmo sem uma
incessante voz eletrônica, o ambiente no primeiro andar é ainda mais barulhento que o subsolo.
Com tantos assistidos sendo atendidos ao mesmo tempo, é difícil acompanhar tudo o que
acontece durante os atendimentos.
Uma das atendentes da DPU abriu sua página no sistema da CRLS e chamou sua
primeira assistida do dia. No monitor localizado na frente da sua mesa aparece o aviso:
“SENHA 1 / SELMA MARIA DE SOUZA / GUICHÊ 8”. Após alguns minutos, a assistida
saiu do elevador em direção ao guichê. Dona Selma se sentou e contou para a funcionária do
atendimento as mesmas coisas que havia dito momentos antes para a assistente social na
triagem: que ela teve câncer de mama, realizou uma mastectomia radical em 2014 e que desde
então faz tratamento com um medicamento que estava em falta. No atendimento, dona Selma
também incluiu a informação de que ela ouviu de um funcionário do hospital que o estoque não
estava zerado, mas que em razão da baixa quantidade disponível do medicamento e da não
previsão de normalização do estoque, a direção do hospital decidiu distribuir a medicação
apenas aos pacientes em estados pré- ou pós-operatório. Além do relato da assistida, alguns
dados foram solicitados: CPF, RG, data de nascimento, nome da mãe, endereço completo,
telefone para contato e e-mail. A funcionária pediu também que dona Selma respondesse às
perguntas contidas no questionário socioeconômico da Defensoria Pública: escolaridade,
profissão, estado civil, situação laboral, quantidade de pessoas que compõem o núcleo familiar,
renda familiar total, situação do imóvel em que reside, se paga pensão alimentícia e se participa
de algum programa social do Governo Federal. A atendente registrou as informações prestadas
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por dona Selma tanto no sistema da CRLS quanto no da DPU e então pediu que ela entregasse
os seguintes documentos para que ela pudesse digitaliza-los e assim encaminhar a demanda da
assistida para o setor de análise técnica: documentos de identificação, documentos médicos
(laudo/relatório médico e receituário) e comprovantes de residência e de renda. Após digitalizar
os documentos, a funcionária imprimiu outras quatro folhas para que a assistida assinasse: a
“redução a termo do atendimento inicial”, o questionário socioeconômico, a “outorga de
poderes” e o “termo de renúncia”. Depois que dona Selma assinou, a funcionária repetiu o
processo de digitalização e pediu que ela voltasse ao subsolo e aguardasse ser chamada
novamente com uma resposta para sua demanda. Dona Selma disse que tem tido dificuldades
para se locomover e perguntou se poderia ficar ali no primeiro andar. A atendente disse que ela
poderia esperar em uma das poucas cadeiras que ficam disponíveis, mas avisou que o resultado
da análise provavelmente demoraria mais de uma hora para sair e que ela teria que prestar
constante atenção ao monitor, já que ali não havia um alerta sonoro. Dona Selma resolveu então
retornar para a sala de espera no subsolo.
Pouco depois de dona Selma ter sido chamada no guichê 8, Carla foi chamada no guichê
11, também da DPU. Por se tratar de um primeiro atendimento, uma das primeiras coisas feitas
pela estagiária que estava atendendo foi pedir os documentos da assistida e perguntar o motivo
da procura de Carla. A assistida explicou novamente tudo que havia dito para a assistente social
durante a triagem, enfatizou que não estava querendo “tirar vantagem” de nada e que seu
objetivo na CRLS não era obter a medicação gratuitamente, coisa que ela só havia conseguido
uma única vez, pois logo em seguida o estoque acabou e ela passou a adquirir o medicamento
em farmácias privadas. O que ela estava demandando era a recuperação do direito ao acesso ao
programa Farmácia Popular para comprar o medicamento a um preço acessível. No meio do
relato, Carla disse que queria aproveitar que estava ali para reclamar que estava aguardando há
meses os profissionais da Clínica da Família inserirem seus pedidos de consultas com
neurologista e ortopedista no Sistema Nacional de Regulação (SISREG). Após ouvir o longo
relato da assistida, a estagiária explicou que as formas de proceder da CRLS não fariam com
que ela pudesse obter o medicamento por meio da Farmácia Popular, uma vez que esse era um
programa do Governo Federal cujas regras não eram passíveis de intervenção por parte da
Câmara. Assim, o que ela poderia fazer seria solicitar a medicação gratuitamente ao SUS, seja
de forma administrativa, seja pela via judicial.
Nesse momento, a estagiária verificou que Carla não possuía um laudo médico atestando
sua patologia e nem qualquer encaminhamento para hospital federal ou pedido de consulta. Sem
saber o que fazer, ela pediu que uma das funcionárias efetivas a ajudasse. Após algum tempo,
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a estagiária esclareceu que sem uma impressão da “tela do SISREG” ou encaminhamento para
uma unidade federal, nada poderia ser feito pela DPU e que, caso Carla quisesse demandar algo
da CRLS sobre esse assunto, deveria pegar uma nova senha para ser atendida pela DPE-RJ.
Quanto ao medicamento, ela explicou a assistida que sem um laudo médico seu caso não
poderia ser remetido ao setor de análise técnica e que ela deveria retornar quando estivesse com
o documento. Carla disse que não tinha ideia de como obter um laudo, pois ela não fazia
acompanhamento em nenhum ambulatório por conta da falta de vaga e que desde que passou a
comprar o medicamento por conta própria, ela não mais tentou se inserir em um serviço público
de saúde. A estagiária e a funcionária questionaram como ela havia conseguido as receitas de
um hospital federal. Carla então contou que no dia anterior ela estava se sentindo tão mal que
foi atendida em caráter de exceção, após o expediente do ambulatório. Diante disso, valendo-
se da receita apresentada pela assistida, a funcionária decidiu remeter um ofício ao hospital no
qual foram solicitados o laudo da paciente, o preenchimento do formulário médico padrão da
CRLS e as receitas atualizadas da medicação indicada. O atendimento de Carla durou cerca de
50 minutos. No fim, a estagiária imprimiu uma cópia do ofício para Carla, explicou que ela
deveria entregar o documento no hospital e retornar à CRLS somente após conseguir reunir
toda a documentação necessária. Durante o tempo em que permaneci frequentando a CRLS,
nunca mais tive notícias de Carla.
Enquanto Carla era atendida no guichê 11, a filha do senhor Bernardo foi chamada no
guichê 6. Sem maiores delongas, ela disse que estava ali para “dar baixa no processo” e entregar
uma cópia do atestado de óbito de seu pai. A funcionária abriu a página do assistido no sistema
da DPU, digitalizou o documento entregue pela moça e registrou a informação no campo “razão
do retorno”. Ela devolveu o atestado à filha de Bernardo e disse que era só isso. Tudo foi feito
quase que em completo silêncio, o que era muito incomum naquele setor.
Do outro lado do corredor, Regina havia sido chamada para ser atendida no guichê 16,
da DPE-RJ. Como já havia dito na triagem, ela estava ali para conseguir a marcação de um
exame oftalmológico “com urgência”. Regina trazia consigo uma grande quantidade de papéis
amassados em uma pasta, os quais ela entregou para a atendente quando solicitado. Muitos
eram de fato documentos médicos antigos, mas, após procurar atentamente por uma impressão
da tela do SISREG ou um pedido de exame recente e não encontrar, a funcionária informou que
não poderia enviar a demanda da assistida para o setor de análise técnica. Regina protestou e
disse que não era a primeira vez que ela tinha seu pedido era negado. Tentando explicar o
mesmo que a assistente social já havia falado, a funcionária do atendimento disse que os
analistas não tinham como elaborar um parecer sem a documentação, pois “não basta pedir”, é
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preciso comprovar a necessidade de uma dada consulta, exame, procedimento etc. Regina
insistiu em dizer que precisava fazer o exame porque sua visão estava ficando cada vez pior e
que se esperasse mais tempo, era capaz de ficar cega. Depois de cerca de 20 minutos de
discussão e sem saber o que havia acontecido no subsolo entre Regina e a assistente social, a
funcionária da DPE-RJ disse que Regina não queria entender o que ela estava dizendo. Alterada,
Regina respondeu que quem não estava entendendo era a funcionária, já que não era ela que
corria o risco de perder completamente a visão. Sem saber o que responder e um pouco
constrangida pelo que a assistida havia dito, a funcionária disse que enviaria o caso de Regina
para o setor de análise técnica com os documentos que ela possuía na ocasião, mas que isso não
significava que ela conseguiria marcar o exame. Após digitalizar os documentos de Regina, a
atendente pediu que ela retornasse ao subsolo e aguardasse ser chamada novamente. Regina se
levantou e disse: “se Deus quiser eu vou sair daqui hoje com esse exame marcado”. Sem muita
paciência, a atendente revirou os olhos em um sinal de que Regina estava enganada.
Ao mesmo tempo, outros assistidos eram atendidos nos guichês da DPU e da DPE-RJ.
Muitos deles preocupados com o andamento dos seus processos. Quase todos reclamando da
demora do Judiciário em oferecer uma solução para os seus problemas e das consequências que
essa morosidade tem em suas próprias vidas e nas de suas famílias.
Por se tratar de um caso de urgência, o marido de Vânia foi logo chamado em um dos
guichês da DPE-RJ. Ao explicar novamente a situação de sua esposa, a funcionária do
atendimento reiterou que, na CRLS, a única resposta possível seria a transferência para uma
unidade pública de saúde e que caso ele preferisse que sua esposa ficasse no mesmo hospital
em que estava, ele deveria procurar ajuda em outro posto de atendimento da Defensoria. Ele
disse que já havia entendido, mas que tentaria primeiro a transferência para um hospital público.
A atendente pediu então os documentos da assistida e explicou que se o caso de transferência
dela fosse realmente uma urgência, ele seria encaminhado para a Defensoria ao mesmo tempo
em que o setor de análise tentaria oferecer uma solução administrativa para a situação. Contudo,
como ela ainda poderia permanecer duas semanas no hospital onde estava sem que fosse
cobrado nenhum valor a mais da família, o caso iria apenas para o setor de análise técnica. Após
digitalizar os documentos trazidos pelo marido de Vânia, a atendente pediu que ele retornasse
para o subsolo e aguardasse ser chamado novamente.
Outra urgência também estava sendo atendida ao mesmo tempo. O senhor José foi
chamado no guichê 14, da DPE-RJ. Ao ser perguntado sobre a sua demanda, ele disse que
estava ali para pegar o “papel do juiz” para retirar seu “remédio de pressão” na Clínica da
Família. A atendente da DPE-RJ teve uma reação muito com a da assistente social e começou
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a fazer a mesma série de perguntas que a outra funcionária já havia feito. Enquanto respondia,
José disse que só queria conseguir pegar seu medicamento naquele mesmo dia. Balbuciando
sobre o absurdo dessa situação, a atendente digitalizou os documentos de José e fez questão de
registrar o que ele havia contado no campo “redução a termo” do sistema da CRLS.
Por volta das 11:30 da manhã, Geraldo foi chamado no guichê 9. Com a “declaração
negativa” da instituição responsável pela dispensação do medicamento Ranibizumabe em mãos,
ele disse que precisava voltar a fazer o tratamento o mais rápido possível, pois sua visão estava
ficando cada vez mais debilitada. Após abrir o histórico do assistido, a funcionária da CRLS
pediu para digitalizar o documento trazido pelo assistido. Na declaração negativa constava a
informação de que ele havia comparecido para retirar a medicação, mas que o estoque estava
zerado e sem previsão de normalização. A atendente disse a Geraldo que com essa declaração
seu processo provavelmente andaria mais rápido e que ele deveria retornar para casa que alguém
da DPU entraria em contato.
O nome de Elaine foi chamado em um guichê da DPE-RJ. Seu filho se apresentou
rapidamente e em pouco tempo havia colocado em ordem todos os documentos que precisavam
ser apresentados para que o caso de sua mãe pudesse ser analisado. Ao ser questionado sobre
qual era a demanda, ele disse que sua mãe estava aguardando há muito tempo a marcação de
uma consulta com médico especialista em cardiologia e que a situação era preocupante, pois
havia fortes suspeitas de que ela precisaria passar por uma cirurgia para colocação de um marca-
passo. Conforme verificava os documentos trazidos, a atendente da DPE-RJ informou que não
poderia registrar como “produto” o pedido de cirurgia, ao que o filho de Elaine respondeu que
a demanda era somente pela marcação da consulta em um serviço de reconhecida especialidade
e competência, já que quem decidiria o melhor tratamento a ser realizado seria o médico. Depois
de ouvir a explicação da atendente sobre como se dá o procedimento de análise técnica e
proposição de “resolução administrava” da CRLS, o filho de Elaine se certificou de que todos
os documentos haviam sido digitalizados corretamente e retornou ao subsolo.
O nome de Genésio foi chamado cerca de 20 minutos depois que seu número de
solicitação foi aberto pelas assistentes sociais da triagem. Logo que se sentou na cadeira de
frente para a funcionária da DPE-RJ, ele informou que estava ali porque o prazo solicitado pela
Câmara em seu primeiro atendimento já havia se esgotado. A funcionária leu atentamente o
parecer e concordou com ele, dizendo que tanto o prazo da “classificação de risco” quanto o
determinado pela CRLS já haviam sido ultrapassados. Apesar do filho de Genésio ter trazido
novamente toda a documentação apresentada na primeira vez, a atendente se limitou a
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digitalizar o próprio parecer fornecido pela instituição e pediu que ele aguardasse ser chamado
novamente, pois o caso de seu pai provavelmente seria judicializado.
A filha de Michele foi atendida em um dos guichês da DPE. Ela disse que sua mãe
estava aguardando há mais de setes meses para a marcação de uma consulta com um médico
angiologista. Contou também que Michele precisava fazer uma cirurgia de varizes com
urgência, pois estava tendo dificuldades para se locomover e que, por conta disso, ela não teve
como ir pessoalmente à CRLS. A funcionária pediu então para ver os papéis trazidos pela
representante da assistida e após verificá-los, disse que ali não havia nenhum documento
médico indicando que ela precisaria fazer uma cirurgia. A filha então respondeu que sua mãe
esperava que o médico especialista a encaminhasse para a cirurgia, pois esse seria o tratamento
mais eficaz para sua condição. Diante disso, a atendente explicou que não poderia registrar
como o “produto” solicitado a cirurgia, mas somente a consulta, já que não havia documentação
comprobatória para o pedido de cirurgia. A filha de Michele assentiu e então a funcionária
prosseguiu com o atendimento.
Cerca de 50 minutos depois de ter passado pela triagem, a avó de Luana foi chamada no
setor de atendimento da CRLS. Visivelmente agitada, a mulher chegou já com os documentos
em mãos. A atendente pediu que ela lhe explicasse qual era sua demanda. A mulher respondeu
que estava “atrás do leite” de sua neta, pois a mãe não produzia muito leite materno e a criança
ainda não podia tomar leites de origem animal porque ela havia completado apenas 3 meses de
idade recentemente. A atendente conferiu a documentação, digitalizou o que era preciso e pediu
que a avó de Luana retornasse à sala de espera e aguardasse ser novamente chamada. Sem
entender, ela perguntou se já não havia acabado e por qual motivo ela seria chamada mais uma
vez. A funcionária explicou que na etapa seguinte os documentos que ela havia trazido seriam
analisados e que elaborariam um parecer sobre como a situação deve ser resolvida. A mulher
reclamou que ficou na sala de espera por uma hora e perguntou se teria de aguardar por mais
uma hora até ser chamada novamente. A atendente disse que não tinha como prever, pois o
tempo da análise depende de uma série de fatores, mas que era provável que ela esperaria pelo
menos mais uma hora. A avó de Luana protestou novamente e afirmou que não poderia demorar
tanto porque havia deixado a neta com uma vizinha. A funcionária respondeu que entendia a
situação, mas que ela não poderia fazer nada, pois ela sequer tinha como ver quantas pessoas
estão na fila do setor de análise técnica. Conformada, a mulher fez uma última pergunta: “tudo
bem, mas eu vou sair daqui com esse leite para minha neta, não é?”. Com um tom de surpresa,
a atendente respondeu: “não, senhora. Aqui na Câmara a gente não distribui nada. Nem
medicamento, nem fórmula infantil, nada. O que o pessoal da análise técnica vai fazer é
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verificar se tem esse leite em algum hospital para senhora ir lá pegar ou mandar o seu caso para
a Defensoria, para a Justiça decidir se o Estado vai depositar o dinheiro para senhora comprar
ou alguma outra coisa”. Desconfiada, a mulher questionou: “você tem certeza? Não é aqui que
eles resolvem essas coisas de saúde?”; e foi respondida: “sim, senhora, eu tenho certeza. A
senhora vai sair daqui com um encaminhamento. A Câmara não é uma unidade de saúde, a
gente não tem nada aqui para distribuir para os assistidos. O que a gente faz aqui é tentar uma
articulação com quem pode resolver a situação, entende?”. A mulher retrucou que já tinha
“rodados todos os hospitais” e nenhum deles tinha o Pre NAN, que ela tinha ido até a Câmara
porque sua neta já estava abaixo do peso ideal e que a família não tinha dinheiro para comprar
a fórmula na farmácia ou mercado. A funcionária respondeu: “então, isso a equipe de análise
vai verificar. Eles vão ligar para um monte de lugar, se ninguém tiver, eles vão encaminhar a
senhora para a Defensoria”. A avó de Luana insistiu que “isso não daria em nada”. Em ultimato,
a atendente perguntou: “a senhora quer que mande a documentação para o setor de análise ou
não?”. Visivelmente contrariada, a mulher respondeu que sim. A atendente então pediu que ela
voltasse para a sala de espera porque ela precisava chamar o próximo assistido para o
atendimento.
Assim permanece a rotina no setor de atendimento até às 16h, geralmente. Em dias de
“muito movimento”, o trabalho pode durar até por volta das 17h.
Próximo das 13:30min, na sala de espera, um assistido que havia chegado às 10h da
manhã na CRLS perguntou a uma das assistentes sociais se ainda demoraria muito para ele ser
atendido, pois ele estava com fome e queria saber se daria tempo de ir na rua comer algo e
voltar. A assistente social perguntou se ele já havia sido chamado no primeiro andar e ele
respondeu que sim. Ela disse que não teria como prever quanto tempo demoraria para ele ser
chamado novamente, mas, que, por ele já ter sido atendido uma primeira vez, ele poderia sair
sem preocupar, desde que voltasse antes do fechamento das portas, às 15h, e caso sua senha
fosse chamada, ele poderia ser atendido depois, porque o próximo passo seria apenas “pegar a
resposta da análise”.
Pouco tempo antes, uma senhora esperou até que os guichês da triagem estivessem
vazios para se aproximar. Ela trazia consigo um menino de aproximadamente três anos e uma
caixa de bombons que ela deu para as assistentes sociais. A mulher fez questão de mostrar como
a criança estava saudável e agradeceu às funcionárias pelo que elas “fizeram pelo seu neto”.
Com os olhos lacrimejando, a avó do menino disse: “muito obrigado. Eu não sei o que teria
acontecido com esse menino se vocês não tivessem salvado ele. Vocês são anjos aqui na Terra”.
As assistentes sociais disseram que ela não precisava agradecer, que elas estavam ali apenas
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fazendo o seu trabalho e que ficavam muito felizes de finalmente conhecer a criança e ver que
ele estava bem. A senhora ainda falou mais algumas palavras e depois foi ao primeiro andar
agradecer aos outros funcionários da Câmara. Quando ela saiu, perguntei sobre a situação. Uma
das assistentes sociais me confidenciou que essa senhora tinha ido à Câmara dois meses antes
e que seu neto estava com quadro grave de infecção, precisando ser internado em um Centro de
Tratamento Intensivo (CTI) pediátrico com urgência. O menino foi internado naquele mesmo
dia e, após um mês, ele saiu do hospital completamente recuperado.
No segundo andar da CRLS, o trabalho começou por volta das 11h da manhã, quando
começaram a “subir” os primeiros casos do dia. Um farmacêutico do setor de análise técnica da
equipe da Secretaria de Estado de Saúde (SES) abriu sua página no “Sistema Câmara de Saúde”
e visualizou três nomes que aguardavam a elaboração de um parecer.
Ele clicou em SELMA MARIA DE SOUZA. Ao verificar o “produto” registrado,
constatou se tratar de uma medicação não inclusa em nenhuma lista oficial de medicamentos
disponibilizados pelo SUS. O funcionário então abriu o “anexo” dessa assistida. Lá estava toda
a documentação digitalizada pela equipe de atendimento. Sem sequer olhar os documentos de
identificação, de comprovação de renda, de residência etc., ele buscou os documentos médicos
apresentados pela assistida. Encontrou um Relatório Médico digitado, assinado e carimbado
por um profissional do Instituto Nacional do Câncer (INCA) explicando quando e como foi
feito o diagnóstico de câncer de mama, quais foram os tratamentos aplicados e a atual situação
da paciente; um Laudo Médico escrito à mão por outro médico do INCA dizendo qual o
resultado da mudança da medicação e indicando o medicamento solicitado na CRLS; e o Cartão
de Acompanhamento, no qual havia o registro das consultas que Selma havia comparecido até
então e os medicamentos entregues a ela em cada ocasião, incluindo a situação em que o
profissional de saúde indicou a medicação que não estava disponível na farmácia do hospital.
Depois de verificar que toda a documentação apresentada pela assistida estava de acordo
com o que é solicitado, o farmacêutico ligou para o hospital. Quando foi atendido, ele se
apresentou como um funcionário da Câmara que estava atendendo a uma assistida que era
paciente da unidade e que foi até lá com a intenção de judicializar o pedido de um medicamento.
A pessoa do outro lado da linha informou que ele deveria falar com o setor de farmácia e
transferiu a ligação. Após ser transferido, ele explicou novamente o caso de Selma e ouviu
como resposta que a direção do hospital havia decidido que, por conta do baixo estoque e da
não previsão da chegada de uma nova remessa, a dispensação do medicamento seria apenas
para pacientes que estivessem em estágio pré- ou pós-operatório. Ao ouvir isso, o farmacêutico
perguntou: “entendi, o que eu faço então para resolver essa situação? Mando a paciente para a
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Defensoria Pública para ela entrar na Justiça e conseguir o medicamento?”. O funcionário do


outro lado da linha falou que ele deveria falar com alguém da direção para saber o que poderia
ser feito e então transferiu a ligação. Após contar pela terceira vez a situação de Selma, o
farmacêutico foi informado que não havia ninguém da chefia naquele momento, mas que o caso
seria repassado para a pessoa responsável no gabinete da direção. Diante disso, o farmacêutico
informou que enviaria um e-mail para a direção do hospital com um prazo de 15 dias para que
a instituição se posicionasse sobre o caso antes que ele encaminhasse a assistida para a
Defensoria Pública. Após desligar o telefone, ele escreveu a mensagem informado mais uma
vez qual era a situação de Selma e anexou toda a sua documentação. Em seguida, ele redigiu
no campo “parecer” do sistema da CRLS: “ENTRAMOS EM CONTATO COM A DIREÇÃO
DO INCA III QUE SOLICITOU PRAZO DE 15 DIAS PARA QUE POSSA SE
PRONUNCIAR SOBRE O CASO DA ASSISTIDA”. Depois de clicar em finalizar e
encaminhar para o setor de retorno, ele voltou à página inicial do sistema. Agora a “fila” já
contava com sete pessoas.
O nome de GENÉSIO BATISTA DA SILVA apareceu na lista de espera para análise
classificado como um caso prioritário. Após verificar qual era a demanda do assistido e o
parecer digitalizado pela equipe de atendimento, o farmacêutico responsável pela análise
procurou por outros documentos que pudessem ajudar na realização do procedimento de análise
em registros e números de solicitação abertos em nome de Genésio. Em consulta ao Sistema
Estadual de Regulação (SER), foi verificado que o pedido de cateterismo do paciente foi
inserido na plataforma cerca de três meses antes com “risco vermelho” – isto é, com um limite
de 30 dias para que o procedimento fosse realizado – e que ele aguardava na fila desde então.
Além disso, o analista percebeu que o assistido já havia solicitado a ajuda da CRLS três semanas
antes e que o prazo para a “resolução administrativa” do conflito já havia se esgotado. Em uma
última tentativa, ele entrou em contato com o setor de cardiologia do SER para se certificar de
que não teria nenhuma forma de resolver administrativamente a questão. Na ligação, ele foi
informado por uma médica que a regulação não estava sendo feita porque não havia material
para a realização do procedimento e nem houve repasse de verba para a compra dos mesmos.
O profissional da Câmara contestou alegando que o paciente era de “risco vermelho”, ao passo
que a médica no outro lado da linha respondeu que havia mais de 100 pessoas na mesma
situação que Genésio na frente dele na fila e que realmente não havia nenhuma vaga naquele
momento. Diante disso, o caso de Genésio foi encaminhado para a Defensoria Pública e o
parecer elaborado pelo analista informou que foram feitas tentativas de “resolução
administrativa” sem sucesso.
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REGINA DA CONCEIÇÃO foi uma das assistidas atendidas por uma farmacêutica da
Câmara. O “produto” demandado por Regina era um exame oftálmico. Ao abrir o registro da
assistida, a funcionária procurou os documentos médicos anexados pelo pessoal do
atendimento, mas não encontrou nenhuma solicitação de exame dentre os documentos
digitalizados. Na dúvida se o campo “produto” havia sido erroneamente preenchido, a analista
resolveu ler rapidamente os documentos anexados e percebeu que estes se tratavam de um
atestado de comparecimento a uma consulta com oftalmologista, uma receita de um colírio, um
encaminhamento para consulta com neurologista, entre outras coisas. Todos os documentos
tinham mais de 90 dias e nenhum deles mencionava a necessidade do exame solicitado. A
analista então resolveu verificar se o Cartão Nacional de Saúde de Regina havia sido
digitalizado ou se o seu número de registro constava em algum documento. O Cartão não estava
entre os documentos anexados naquele dia, mas ao verificar o histórico da assistida no sistema
da CRLS, a farmacêutica o encontrou no meio dos documentos digitalizados quando Regina foi
à Câmara pela primeira vez. Com o número de registro da assistida, a analista abriu a página
do SISREG para verificar se havia algum pedido recente de consulta ou exame cadastrado. Ao
observar o histórico de Regina, ela percebeu que a última consulta da assistida com um
oftalmologista havia sido há seis meses. Sem maiores informações, a analista escreveu em seu
parecer que não havia como analisar a demanda da assistida por conta da falta de documentação.
Assim, ela encaminhou a assistida para a Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima de sua
residência, ressaltando que a CRLS não é uma porta de entrada do SUS e que as pessoas devem
inicialmente buscar ajuda na sua UBS de referência para que seja corretamente inserida no fluxo
de atendimento. Em seguida, ela clicou em finalizar e remeteu o caso para o retorno.
O caso de ELAINE RIBEIRO LOPES foi um dos atendidos por uma médica. Depois de
verificar a documentação anexada ao registro da assistida, a funcionária consultou tanto o
SISREG quanto o SER e percebeu que a solicitação de consulta com médico cardiologista havia
sido inserida há pouco mais de seis meses, classificada como “risco amarelo” – cujo prazo para
efetivação é de até 90 dias. Uma vez que a solicitação estava referenciada para uma unidade de
saúde específica, a médica decidiu por entrar em contato não com a regulação, mas sim
diretamente com o hospital. Após explicar a situação algumas vezes para diferentes
funcionários, sempre mencionando e enfatizando que por conta do prazo já ter sido
ultrapassado, a paciente teria o direito de demandar judicialmente a resolução da questão, a
médica foi transferida para um dos chefes de setor da unidade. Na conversa, a analista explicou
que o caso de Elaine era sério, pois ela não era uma senhora idosa, mas sim uma mulher de
pouco mais de 50 anos que ainda trabalhava e que havia suspeita de que ela deveria ter um
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marca-passo implantado. Pouco tempo depois a médica desligou o telefone e começou a redigir
seu parecer. Ela indicava que Elaine deveria comparecer ao hospital dali a dois dias, na parte
da manhã, para que a situação fosse “resolvida administrativamente”. Após finalizar o parecer,
ela comentou comigo que o chefe do setor havia prometido um “encaixe” para Elaine na agenda
de um dos cardiologistas do hospital.
JOSÉ CARLOS MENDONÇA teve sua demanda atendida por um farmacêutico. Ao
verificar o pedido, em um primeiro momento, ele pensou que a situação das Clínicas da Família
estava tão crítica que até mesmo os medicamentos mais baratos para o controle da hipertensão
arterial estariam em falta na rede municipal de saúde. Após ligar para a Clínica e ouvir do
responsável pela farmácia da unidade que o medicamento estava disponível para distribuição,
ficou irritado. Por não ter verificado outros documentos que não o laudo e o receituário médicos,
ele não soube da situação narrada por José às assistentes sociais e atendentes de que o gerente
da Clínica havia determinado que o estoque de medicamentos estaria reservado para o
cumprimento de decisões judiciais. Sem saber do contexto que levou o assistido até a CRLS,
ele me disse que era por conta de usuários como José que a Câmara estava sobrecarregada de
trabalho, uma vez que, supostamente, ele seria apenas um sujeito desinformado sobre o
funcionamento do “fluxo do SUS”. Em seu parecer, ele encaminhou o assistido para a Clínica
da Família na qual ele é atendido para retirar a medicação e enfatizou que os profissionais da
rede de atenção primária devem informar aos usuários dos serviços acerca dos procedimentos
para dispensação de medicação.
Como trabalham cerca de 20 pessoas por dia no setor de análise técnica, é impossível
acompanhar o que cada um está fazendo durante todo o tempo. Nesse dia, não consegui
acompanhar o desfecho do caso de Vânia, cujo marido veio solicitar uma transferência para
uma unidade pública de saúde. O mais provável de ter acontecido é algum funcionário ter
determinado um prazo de 7 dias para que uma das Secretarias Municipal ou de Estado de Saúde
resolvesse a questão da vaga e indicasse para qual hospital Vânia seria transferida.
MICHELE CARVALHO MARINO teve sua solicitação analisada por uma enfermeira
que atua na CRLS. Primeiramente, a funcionária verificou qual era o pedido da assistida e se a
documentação digitalizada estava de acordo com o que foi demandado. Ela abriu a página do
SISREG e verificou se havia alguma solicitação de consulta em aberto. No histórico de Michele
estava registrado que a solicitação havia sido inserida na plataforma há cerca de sete meses,
com “risco azul”. Constava também que o pedido havia sofrido uma alteração duas semanas
antes do atendimento de Michele na CRLS, mas que ele permaneceu com a mesma
“classificação de risco” – o que significa que seu atendimento seria eletivo e poderia levar mais
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de 180 dias para acontecer. A funcionária resolveu então verificar o motivo que levou Michele
a solicitar a assistência da Defensoria. Ao olhar os documentos médicos anexados, ela percebeu
que no laudo de Michele o médico afirmava que sua situação era preocupante, pois a paciente
sentia muitas dores e estava impossibilitada de realizar suas tarefas diárias. Por conta desse
laudo, a enfermeira decidiu por encaminhar Michele novamente à sua UBS de referência com
um parecer pedindo para que os profissionais da rede de atenção básica avaliassem melhor a
“classificação de risco” da assistida. Enquanto escrevia o parecer, a funcionária também redigiu
um e-mail para a CF que atende Michele especificando que ela havia ido à CRLS com intenção
de judicializar o caso e que o laudo médico apresentado dava a entender que sua “classificação
de risco” não deveria ser aquela.
O nome LUANA MESQUITA foi selecionado para atendimento por um dos
farmacêuticos da Câmara. Ao verificar que se tratava de “fórmula infantil”, ele avisou a uma
das nutricionistas da equipe e disse que finalizaria o atendimento para que ela pudesse analisar
o caso. Naquele momento, a profissional estava ocupada elaborando o parecer de outro caso.
Cerca de meia hora depois, ela “pegou o caso de Luana para analisar”. Depois de verificar a
documentação médica da bebê, a nutricionista confirmou algumas informações sobre cálculos
nutricionais na internet e começou fazer algumas contas. Quando terminou, ela chegou à
conclusão de que a quantidade de Pre NAN solicitada por mês estava muito alta. Nesse
momento, ela me confidenciou que isso poderia acontecer por dois motivos: 1) os profissionais
de saúde teriam demandado uma “quantidade exagerada” de fórmula infantil para que a família
pudesse fazer uma espécie de estoque individual, já que esse tipo de produto estava
constantemente em falta na rede pública de saúde; 2) os familiares da criança teriam solicitado
uma quantidade maior do que a necessária para poder vender o excedente. Independentemente
da razão, ambas implicavam a não aceitação do pedido. Assim, a nutricionista me disse que não
seria possível analisar a demanda e que ela encaminharia a bebê de volta à unidade de saúde
para que o receituário fosse revisado, de modo que a quantidade de latas da fórmula infantil
fosse revista ou justificada com base em critérios clínicos.
Os funcionários do setor de análise técnica trabalham até às 17h, usualmente. Ainda que
o horário de atendimento ao público da CRLS seja oficialmente das 10h às 15h, os funcionários
permanecem trabalhando após o fechamento das portas da instituição.
De volta ao primeiro andar, no fundo da sala fica o “retorno da análise”. O trabalho
nesse setor é o último a começar e, consequentemente, o último a acabar. As funcionárias
costumam atender ao último assistido por volta das 17:30, às vezes um pouco antes. A primeira
pessoa foi chamada pouco depois do meio dia. No subsolo, foi anunciado: “Senha 1, SELMA
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MARIA DE SOUZA, compareça ao guichê 22”. Quando dona Selma chegou no guichê, a
funcionária abriu o parecer e o leu rapidamente. Ela imprimiu e entregou o papel para a assistida
e explicou o que o setor de análise havia decidido e como ela deveria proceder: “o pessoal da
análise entrou em contato com o hospital, que pediu 15 dias para dar uma resposta. Se depois
desses 15 dias ninguém entrar em contato com a senhora, volta aqui com a documentação
novamente e traz esse parecer que eu estou te entregando, que aí a gente vai mandar o caso para
a Defensoria para a senhora entrar na Justiça. Certo? A senhora tem alguma dúvida?”. Dona
Selma perguntou se ela deveria esperar 15 dias corridos ou 15 dias úteis, ao passo que a
funcionária disse que era para ela esperar 15 dias corridos. Após a assistida concordar, a
funcionária do retorno disse que ela estava liberada e desejou boa sorte.
Algum tempo depois, REGINA DA CONCEIÇÃO foi o nome chamado. Após dar uma
olhada no parecer da assistida e imprimir, a funcionária do retorno entregou o papel à Regina e
começou a dizer: “a senhora vai precisar voltar na Clínica da Família...”. Antes que a
funcionária conseguisse terminar a frase, Regina interrompeu dizendo que ela estava ali há
horas esperando e que aquela já não era a primeira vez que ele iria até a CRLS e era mandada
de volta “sem ter resolvido nada”. Sem saber sobre as discussões que a assistida havia tido com
outras funcionárias, ela continuou dizendo que “infelizmente, o pessoal da análise só pode fazer
alguma coisa se eles localizarem o seu pedido no sistema, mas aqui está dizendo que não tem
nada registrado no nome da senhora. A senhora tem que reclamar na Clínica da Família, porque
são eles que fazem esses pedidos”. Regina respondeu que já estava sem paciência para ficar
indo de um lugar a outro sem que ninguém fizesse nada enquanto sua visão estava ficando cada
vez pior. Sem alterar o seu tom de voz, a funcionária do retorno continuou: “olha dona Regina,
eu entendo a situação da senhora, mas infelizmente a gente não pode fazer nada sem a
documentação, porque se não tem negociação com o hospital, a gente manda para a Defensoria.
E como é que a gente vai encaminhar um caso para a Defensoria sem documentação, sem
comprovar que a senhora precisa desse exame? Não tem como abrir um processo sem provas,
não daria em nada”. A assistida insistiu em dizer que algo teria de ser feito, que ela estava ali
desde de manhã e que essa situação era um absurdo. Após ouvir muitas das reclamações, a
funcionária voltou a dizer: “é muito ruim dona Regina, eu realmente entendo a frustração e a
raiva da senhora, mas eu não tenho como fazer nada. Até porque não sou eu que escrevo essa
resposta e analiso o seu caso, eu estou aqui apenas para ler essa resposta e explicar como a
senhora deve proceder. Eu não tenho acesso ao seu histórico, não vi seu documentos. Eu só sei
o que os técnicos escrevem no parecer”.
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Nesse momento, Regina abriu a pasta e começou a tentar mostrar os documentos que
ela trazia consigo para a funcionária, que afirmou não precisar ver, pois não adiantaria de nada,
afinal, ela não teria como mudar o parecer elaborado pela análise técnica. Sem se dar por
vencida, a assistida permaneceu sentada, reivindicando que “algo fosse feito”. Mais uma vez, a
funcionária do retorno tentou explicar como ela deveria proceder: “dona Regina, o que acontece
é que a Câmara não é uma porta de entrada do SUS. A gente aqui tenta fazer uma mediação. A
senhora tem que ir na Clínica para que eles insiram o seu pedido no sistema. E pelo que a
senhora me falou, a senhora é ‘risco vermelho’, atendimento prioritário. Se na Clínica eles não
colocarem a senhora como ‘risco vermelho’, a senhora volta aqui que a gente envia um ofício
para lá para eles explicarem o motivo da senhora não ser colocada como urgência. Ou então, se
a senhora for colocada em ‘risco vermelho’ e em um mês não fizer exame, a senhora volta que
aí a gente tem com o que argumentar. Agora, sem nada disso, não tem nada que a gente possa
fazer aqui na Câmara. Ninguém da triagem ou do atendimento disse para a senhora quais são
os documentos que a senhora precisa trazer para abrir uma solicitação? A senhora não precisava
ter ficado esse tempo todo aqui esperando à toa”. Sem responder à pergunta feita pela
funcionária, Regina se levantou e foi embora.
O assistido GENÉSIO BATISTA DA SILVA foi chamado cerca de duas horas depois de
ter passado pela triagem. Seu filho se dirigiu rapidamente ao guichê 23. A funcionária fez uma
rápida leitura do parecer e o imprimiu. Antes de entregar o documento, ela disse: “nós tentamos
hoje novamente uma articulação com a Regulação estadual, mas não conseguimos. Como você
já veio aqui antes e o caso do seu pai é urgente, nós vamos te encaminhar para a Defensoria
para que o defensor possa ajuizar uma ação e pedir uma liminar para que seu pai faça o
procedimento do cateterismo o mais breve possível. Alguma dúvida?”. O rapaz perguntou o
que ele deveria fazer, ao passo que a atendente respondeu que ele deveria aguardar para ser
atendido novamente nos guichês da DPE-RJ para confirmar algumas informações, mas que ele
não se preocupasse, pois a ação seria protocolada pela própria equipe da Defensoria. O filho de
Genésio questionou que se a situação só se resolveria com a intervenção judicial, por que não
tinha sido encaminhado para a Defensoria antes. A funcionária explicou: “antes a gente tenta
uma solução administrativa, justamente para que o caso se resolva mais rapidamente. Quando
não dá para resolver com a mediação é que a gente encaminha para a Defensoria. Como o caso
do seu pai era urgente, nós demos o prazo de uma semana para a Regulação se pronunciar. Esse
prazo venceu tem duas semanas, se você tivesse vindo logo aqui, nessas duas semanas
certamente o juiz já teria se pronunciado sobre a situação. Eu não tenho certeza, mas por ser
‘risco vermelho’, o defensor com certeza vai pedir a antecipação de tutela. Fique tranquilo”.
43

Com o parecer em mãos, ele retornou ao setor de atendimento e a funcionária do retorno chamou
o próximo da fila.
JOSÉ CARLOS MENDONÇA foi chamado no guichê 22. Ao imprimir o parecer, a
enfermeira do retorno resolveu seguir a recomendação do analista e começou a explicar ao
assistido como funciona o fluxo do SUS para medicamentos do componente básico: “Seu José,
tudo bem com o senhor? Seu remédio está lá na Clínica para o senhor ir buscar, mas antes deixa
eu explicar uma coisa para o senhor. Esses remédios mais comuns, assim, de hipertensão, que
o senhor toma, são distribuídos na própria Clínica da Família onde o senhor é acompanhado.
Antes do senhor vir aqui na Câmara, passar essas horas todas sentado, trazer esse monte de
documento, dá uma passada lá na farmácia da Clínica para saber se o remédio chegou, se tem
alguma previsão, que aí o senhor não perde tempo vindo até aqui”. Aparentemente contrariado,
ele disse que sabia disso e que ele tinha ido à CRLS para conseguir uma “ordem do juiz” para
que o funcionário da farmácia liberasse a medicação para ele, contando novamente toda a
história sobre a decisão do gerente da Clínica de reter o que sobrou do estoque de medicamentos
para o cumprimento de decisões judiciais. Após ouvir o relato do assistido e se indignar tal
como as funcionárias da triagem e do atendimento, a enfermeira do setor de retorno informou
a ele que a Câmara não tinha como fornecer uma decisão judicial desse tipo para ele, que ela
precisaria ir até a análise técnica conversar com alguém da equipe para saber o que fazer nesse
caso. José interrompeu a funcionária com uma pergunta: “mas e esse papel que está aí na sua
mão?”, cuja resposta foi: “mas isso aqui é só um ofício, não é uma ordem judicial”. O assistido
retrucou: “quem me disse para vir aqui foi o rapaz da farmácia da Clínica, ele já tinha indicado
aqui para outros pacientes. Esse papel aí deve servir”. A funcionária replicou: “aqui está
dizendo que o analista entrou em contato com a Clínica, que informou que tem o medicamento
em estoque. Quando isso acontece, eles geralmente deixam o medicamento reservado para o
paciente ir lá buscar. O senhor quer tentar levar esse parecer aqui mesmo ou quer que eu
converse com alguém lá em cima para perguntar qual o melhor caminho?”. José respondeu que
levaria o “papel” impresso pela funcionária e que acreditava que era disso que ele precisava.
Ela entregou o parecer ao assistido, que agradeceu e foi embora aparentemente satisfeito.
ELAINE RIBEIRO LOPES foi chamada no guichê 23 imediatamente após a saída de um
assistido. Quando viu um rapaz se aproximar, a primeira pergunta feita pela funcionária foi
sobre a relação dele com a assistida, que afirmou ser filho dela. Com o parecer impresso, ela
perguntou se alguém estaria disponível para acompanhar Elaine ao hospital dali a dois dias, na
parte da manhã, pois foi esse o acordo feito entre a analista da CRLS e o funcionário da unidade
de saúde. O rapaz respondeu que sim, que poderia se organizar para ele mesmo ir com sua mãe,
44

ao passo que a funcionária respondeu: “ótimo. Então você chega bem cedo com a sua mãe e
talvez você tenham que ficar esperando lá algum tempo, mas com certeza sua mãe vai ser
atendida”. Para se certificar, o rapaz perguntou como ele deveria proceder e a funcionária
explicou que ele teria de chegar cedo, levar o parecer e aguardar, pois o atendimento de sua
mãe seria um “encaixe” na agenda do cardiologista. Por fim, ela lhe entregou o documento e
disse que se por alguma razão Elaine não fosse atendida, para ele retornar à CRLS, já que o
prazo para o atendimento de uma paciente em “risco amarelo” já havia se esgotado. O rapaz
agradeceu e se retirou.
A assistida MICHELE CARVALHO MARINO foi chamada quase em seguida. Após
imprimir o parecer, a funcionária da Câmara informou à representante da assistida que o pedido
não poderia ser judicializado, pois ainda estava dentro do prazo previsto para o atendimento de
acordo com a “classificação de risco” definida pelo profissional de saúde que inseriu a
solicitação no SISREG. A filha de Michele perguntou como ainda estaria no prazo se sua mãe
estava aguardando há meses essa consulta e que seu quadro estava cada vez pior. Com o papel
na mão, a funcionária do retorno explicou: “você está vendo aqui? A pessoa da Clínica da
Família disse que o caso da sua mãe é de ‘risco azul’. ‘Risco azul’ pode ser atendido em 180
dias ou mais, pois é considerado atendimento eletivo”. A filha então questionou como poderia
ser “atendimento eletivo” se sua mãe mal conseguia andar devido às fortes dores que estava
sentindo nas pernas. A profissional respondeu que foi por essa razão que o setor de análise
técnica emitiu um parecer pedindo para que os profissionais da Clínica reavaliassem o caso de
Michele, de modo a definir uma “classificação de risco” com um prazo menor. Ela seguiu
dizendo: “mas isso não garante que eles irão mudar, esse papel é só uma recomendação. A
decisão da mudança cabe ao profissional de saúde da Clínica”. Ela explicou também que esse
mesmo documento havia sido enviado por e-mail para a direção da unidade, mas que, de todo
modo, ela deveria ir lá para “mostrar que está correndo atrás” e que a situação de sua mãe não
era para “atendimento eletivo”. A filha de Michele então perguntou o que ela deveria fazer
depois, ao passo que a funcionária entregou uma cópia de um esquema explicativo dos prazos
para atendimento de acordo com a “classificação de risco” do SISREG e disse: “você
acompanha por aqui. Se eles mudarem o risco para ‘vermelho’, e é bom você ressaltar que ela
não está conseguindo andar para ver se eles fazem isso, o prazo é de trinta dias. ‘Amarelo’ é
sessenta. Se dentro desse prazo eles não marcarem a consulta da sua mãe, aí você volta aqui
para a gente encaminhar o caso para a Defensoria, porque eles já vão estar descumprindo
alguma regra. Por enquanto não dá para judicializar porque eles não estão fazendo nada de
errado de acordo com o sistema, entende?”. A filha de Michele perguntou o que ela deveria
45

fazer caso os profissionais da Clínica se recusassem a alterar a classificação de risco de sua


mãe. A funcionária disse que não tinha certeza, mas que ela também poderia voltar à CRLS
para verificar se o caso poderia ser encaminhado para a Defensoria. Com todas as dúvidas
esclarecidas, a filha de Michele agradeceu, se despediu e foi embora.
O nome de LUANA MESQUITA foi anunciado algumas vezes nos monitores da Câmara,
mas ninguém compareceu ao guichê. Ainda que ninguém tivesse aparecido, a funcionária do
retorno imprimiu o parecer e percebeu se tratar de uma bebê praticamente recém-nascida. Com
o parecer em mãos, ela foi até a sala de espera e anunciou em voz alta: “representante de Luana
Mesquita”. As pessoas sentadas se olharam entre si, mas ninguém atendeu ao chamado. Ela
repetiu o ato, ainda sem resposta. Uma das assistentes sociais perguntou qual era a demanda e
a nutricionista do retorno respondeu que era o caso de uma bebê de três meses com pedido de
fórmula infantil. Outra assistente social, que estava ouvindo a conversa e havia atendido a avó
de Luana mais cedo, comentou: “sim, a avó dela que veio” e levantou para ver se avistava a
senhora. Após se certificar de que a senhora não estava na sala de espera, a assistente social
disse: “pois é, ela estava mesmo apressada, disse que tinha deixado a menina com alguém...
talvez tenha ido embora”. A funcionária do retorno então falou que caso ela aparecesse, era
para ela ir direto ao retorno para pegar o parecer. Com o documento impresso nas mãos, ela
retornou para o seu posto no guichê 23.
O atendimento na CRLS permaneceu assim ao longo dia e terminou pouco depois das
17h. Quando deu 15h, o segurança trancou a porta da Câmara, mas não baixou as grades.
Próximo das 15:30, uma mulher e um homem tentaram entrar e não conseguiram. Ao verificar
a situação, o segurança foi até lá e explicou que o atendimento era até às 15h, depois desse
horário, eram atendidos somente os casos de emergência. A mulher tentou argumentar dizendo
que eles moravam longe e haviam enfrentado trânsito para chegar no Centro. O segurança
permaneceu irredutível. Ela então disse que seu caso era uma emergência, pois estava sem
receber um medicamento há alguns meses. O segurança retrucou dizendo que isso não era um
caso de emergência, ao passo que a mulher questionou o que seria então uma emergência. O
segurança pediu para que eles aguardassem ele chamar a pessoa responsável.
Uma funcionária do atendimento foi até a porta e perguntou o que estava acontecendo.
A mulher disse à funcionária da Câmara que um medicamento utilizado por seu marido estava
em falta no hospital há alguns meses e que a família já não estava mais conseguindo arcar com
o tratamento por conta própria. A funcionária então explicou que isso não era considerado uma
emergência e que ela precisaria retornar no dia seguinte, pois o expediente já havia sido
encerrado. A mulher então perguntou se isso não era uma emergência, o que mais poderia ser.
46

A funcionária respondeu que emergência eram os casos de transferência entre hospitais ou de


internação com risco de morte iminente, o que não era a situação relatada. A mulher então
repetiu a fala de que morava longe, que teria pegado trânsito intenso para chegar ao Centro e
que seria muito difícil retornar outro dia. A funcionária respondeu que entendia a situação, mas
que ela infelizmente realmente teria que voltar outro dia. Indignada, a mulher disse que era um
absurdo a Câmara fechar tão cedo, pois pessoas que trabalham teriam sempre muitas
dificuldades de chegar lá antes das 15h, como era o seu caso. Sem rebater os argumentos da
mulher, a funcionária manteve sua posição ao dizer que não poderia fazer nada. Após mais
algumas reclamações, a mulher o homem se retiraram. A funcionária retornou ao seu guichê e
o segurança trancou novamente a porta da instituição. Ao voltarmos para dentro do prédio, eu
questionei a funcionária sobre o horário de funcionamento da Câmara. Ela me disse que a CRLS
funcionava de fato em um horário complicado para as pessoas que trabalham em horário
comercial, principalmente porque entre a triagem e o retorno, as pessoas aguardavam muito
tempo, perdendo uma parte significativa do dia. Como forma de amenizar essa constatação, a
funcionária comentou que no atendimento elas ofereciam uma declaração de comparecimento
assinada pela DPU ou DPE para aqueles que precisassem justificar a ausência no trabalho.
Pouco depois das 15:30, quando todos os assistidos que haviam entrado até às 15h já
haviam passado pela triagem, as assistentes sociais do setor se revezaram para ir até ao refeitório
tomar café, de modo a permanecer na Câmara até o horário de bater o ponto. O mesmo
aconteceu com os funcionários de outros setores que foram encerrando o expediente de
atendimento ao público. As pessoas aproveitavam esse tempo para ir resolver alguma pendência
na rua, ler livros, acompanhar as notícias, estudar etc. Ás 17h, as funcionárias terceirizadas da
copa e auxiliares de serviços gerais foram embora. Depois das 18h, quase todas as luzes e
computadores da CRLS já haviam sido desligados. Cerca de uma hora depois já não haveria
mais ninguém no prédio a não ser um segurança.
47

INTRODUÇÃO

Uma incessante fabricação da escassez:


direito à saúde, judicialização e o governo da crise

Às vésperas do final do ano de 2015, no dia 21 de dezembro, os médicos da rede estadual


de saúde do Rio de Janeiro deliberaram pela entrada em “estado de greve” devido aos constantes
atrasos no pagamento dos salários e à sensível piora das condições de trabalho na rede pública
de saúde federal, estadual e municipal – especialmente nos hospitais localizados na Baixada
Fluminense e em cidades que não a capital. Dois dias depois, o fechamento do setor de
emergência do Hospital Getúlio Vargas – o maior e um dos mais importantes hospitais estaduais
da Zona Norte da cidade – fez com que o então governador do estado do Rio de Janeiro, Luiz
Fernando Pezão, publicasse no Diário Oficial do Estado (DOERJ) o Decreto nº 25.521. Por
meio desse ato, Pezão instituiu o “estado de emergência” no sistema estadual de saúde devido
à “grave crise financeira que atinge o país e, em especial, o estado do Rio de Janeiro” e
determinou a criação de um “gabinete de crise” a ser composto pelos Secretários Municipal e
de Estado de Saúde, um representante indicado pelo Ministério da Saúde (MS) e um
representante do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro
(COSEMS/RJ). Naquele mesmo dia, o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado
do Rio de Janeiro (CREMERJ) declarou em uma entrevista coletiva que essa era a “pior crise
de saúde pública vivenciada no estado”. O decreto assinado por Pezão e as palavras do
presidente do CREMERJ foram amplamente veiculados nas manchetes de reportagens sobre a
situação das unidades públicas de saúde no Rio de Janeiro de diferentes jornais.
Nos dias que se seguiram, o CREMERJ publicou um informe oficial no qual foram
divulgados os resultados de uma reunião entre o presidente do órgão, a presidente do Conselho
Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro (Coren-RJ) e três diretores de unidades públicas de
saúde. Com os hospitais estaduais Albert Schweitzer, Rocha Faria e Adão Pereira Nunes em
situação de “extrema gravidade”; os médicos do Hospital Federal de Bonsucesso atendendo os
pacientes em um setor de emergência improvisado em containers desde 2011; o fechamento
total e/ou parcial de 15 Unidades de Pronto Atendimento (UPA); a falta de verbas para o
48

pagamento de funcionários terceirizados; os estoques de vários medicamentos zerados; as


inúmeras denúncias feitas por profissionais da rede pública de saúde acerca da precariedade
enfrentada nos locais de trabalho etc., o diagnóstico emitido por eles era conclusivo: a saúde
pública no estado do Rio de Janeiro encontrava-se “profundamente debilitada”. Os agentes
etiológicos foram claramente identificados: “a culpa do caos que se encontra a saúde do estado
é dos Governos federal, estadual e municipais”, declarou o presidente do CREMERJ. O
tratamento emergencial também foi rapidamente apresentado: autoridades na área da saúde
como o CREMERJ e o Coren-RJ “foram à Justiça” contra o “governo” – categoria que engloba
membros do Executivo nos três níveis da administração pública – e as Organizações Sociais2
(OS) para que a situação pudesse ser minimamente normalizada e os atendimentos retomados.
Pouco mais de um ano depois, em abril de 2017, estou na Câmara de Resolução de
Litígios de Saúde (doravante CRLS ou apenas Câmara), no Centro da cidade do Rio de Janeiro,
acompanhando os atendimentos prestados aos “assistidos”3 no que diz respeito a demandas
relativas ao direito à saúde. Ao longo dos meses em que acompanhei o cotidiano e as rotinas de
trabalho na CRLS, escutei entre os guichês e biombos da instituição inúmeras reclamações
sobre a constante falta de vaga para marcação de uma consulta com um médico especialista; a
interminável espera para a realização de um exame que poderia confirmar ou descartar um dado
diagnóstico; a falta, há mais de cinco meses, de um medicamento de uso contínuo para o
tratamento dos sintomas de uma doença crônica; a demora para a realização de um
procedimento cirúrgico por conta da falta de materiais, equipamentos e condições adequadas
nas unidades de saúde; entre outras situações especialmente dramáticas e delicadas.
Os cenários descritos acima condensam as duas principais discussões que pretendo fazer
na tese. A primeira diz respeito à conformação de um conjunto de discursos e narrativas que
culminam na produção de um enquadramento (Goffman, 2012; Butler, 2015) que define a
conjuntura como uma “crise da saúde pública”, utilizado para justificar uma série de medidas e
decisões acerca dos rumos das políticas de saúde nos âmbitos municipal, estadual e até mesmo
federal. A segunda tem a ver com o acionamento do Judiciário – ou, mais especificamente, da

2
Organizações Sociais – também chamadas de OS – são organizações privadas sem fins lucrativos com a
qualificação necessária para a prestação de serviços e execução de atividades para o Estado por meio de contratos
firmados entre as partes. O chamado “modelo de organizações sociais” tem sua origem com a proposição de
“formas alternativas de administração pública no Brasil” preconizadas no Plano Diretor da Reforma do Aparelho
do Estado (PDRAE) (Brasil, 1995) e começou a ser aplicado após a promulgação da Lei 9.637 de 1998 que dispõe
sobre a caracterização das entidades enquanto organizações sociais.
3
Apesar da CRLS ser uma instituição composta por funcionários oriundos de distintos órgãos e setores
governamentais, as pessoas que procuram seus serviços são todas chamadas de “assistidos”, categoria que designa
os sujeitos que recebem assistência das Defensoria Públicas.
49

“Justiça”, conforme um discurso nativo – como forma de garantir direitos e tentar gerir e
contornar os efeitos dessa crise na vida cotidiana daqueles que dependem do Sistema Único de
Saúde (SUS).
Essas duas questões remetem, cada uma delas, ao duplo sentido da expressão governo
da crise utilizada no título dessa introdução, dos quais pretendo tratar na primeira parte da tese.
Por um lado, a decretação de uma crise legitima uma série de ações e determinações
administrativas, implicando a crise enquanto parte de um modo de governo – ou, mais
especificamente, uma crise que é capaz de direcionar projetos variados de intervenção, reforma
e reorganização na medida em que representa um ponto crítico de uma forma de gestão pública
que é marcada historicamente pela escassez. Por outro, o enquadramento das experiências
vivenciadas como conformadoras de uma “conjuntura de crise” demanda que algo seja feito em
um curto prazo, gerando uma crise que pode ser entendida enquanto uma situação que precisa
ser governada.

Regulação do acesso à Justiça e mediação de conflitos: um breve panorama da CRLS


e da judicialização de saúde

A Câmara de Resolução de Litígios de Saúde é um órgão composto originalmente pelas


Defensorias Públicas do Estado do Rio de Janeiro e da União (DPE-RJ e DPU,
respectivamente), as Procuradorias Geral do Estado e do Município do Rio de Janeiro (PGE e
PGM, respectivamente) e as Secretarias Municipal e de Estado de Saúde (SMS e SES,
respectivamente). Após algum tempo de atividade da instituição, funcionários ligados ao
Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) do Ministério da Saúde e ao Núcleo de Assessoria
Técnica (NAT) do Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro (TJ-RJ) foram designados para
trabalhar na Câmara também. A CRLS é composta por quatro setores: triagem, atendimento,
análise técnica e retorno. Tais setores compõem também o caminho percorrido pela demanda
dos assistidos no interior do órgão. Como descreverei mais detidamente na segunda parte da
tese, é importante notar como se dá a organização do espaço físico da Câmara, já que esses
pedidos “sobem” e “descem” de acordo com seu andamento no fluxo de gestão.
Como em qualquer serviço burocrático, para que o “atendimento inicial” possa ser
realizado, é preciso que o assistido ou o seu representante apresente um determinado conjunto
de documentos que servirá para legitimar o que está sendo demandado. Assim, a pessoa precisa
levar a carteira de identidade, número do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), comprovante de
50

residência, comprovante de renda, receita e laudo médico emitidos por profissionais


habilitados, de preferência vinculados ao SUS. Com alguma margem de negociação, quase
todos esses documentos são considerados indispensáveis para que um primeiro atendimento
seja realizado. O CPF é fundamental para que o cadastro do assistido seja feito no sistema de
gerenciamento interno da CRLS. O comprovante de residência é necessário para que a pessoa
prove que é residente do município do Rio de Janeiro, uma vez que a CRLS atende apenas os
moradores da cidade. Já a receita, a guia de referência, o laudo médico e outros documentos
emitidos por profissionais de saúde são considerados os mais indispensáveis pelos funcionários
do setor de análise técnica, pois são estes que comprovam (ou não) a necessidade do assistido
de ter sua demanda atendida e em quanto tempo isso deve ocorrer.
Como abordarei na segunda parte da tese, a criação da CRLS se dá em um contexto no
qual o crescimento da quantidade de processos judiciais na área de saúde era encarado como
um “problema” que precisava de uma urgente intervenção. Grosso modo, a expressão
“judicialização da saúde” vem sendo empregada para qualificar a atuação de membros do
Judiciário em processos judiciais de 1ª e 2ª instâncias que requerem a efetivação de uma
demanda elencada no âmbito do direito sanitário, sejam elas direcionadas ao sistema público
ou aos planos privados de saúde suplementar. Entre os autores que discutem a temática, há um
certo consenso historiográfico que localiza o início desse processo de intervenção judicial para
o cumprimento do direito à saúde nas ações por medicamentos antirretrovirais patrocinadas por
Organizações Não Governamentais (ONGs) especializadas em advocacy no campo do HIV-
Aids no início dos anos 1990 (Pepe et al., 2010b; Biehl e Petryna, 2013). Com o passar dos
anos, outros movimentos de pacientes e familiares se apropriam desse modus operandi e
passaram a litigar contra o Estado para que fossem fornecidos tratamentos gratuitos para outras
patologias e condições de saúde.
Como será discutido ao longo da tese, há uma série de consonâncias e disputas entre os
“especialistas” que debatem a questão da judicialização da saúde. Um ponto em comum entre
esses autores diz respeito ao “desafio administrativo e fiscal” colocado pelo crescente número
de demandas judicializadas, uma vez que o fenômeno é visto como tendo um enorme potencial
de acirrar ainda mais as desigualdades na prestação de serviços públicos de saúde (Ferraz,
2009). Além disso, como discute Pepe et al. (2010b), o acesso a medicamentos financiados com
dinheiro público via judicialização pode causar desequilíbrios nas políticas de assistência
farmacêutica do SUS ao fazer com que a alocação de recursos se dê de forma distinta do
planejamento orçamentário original. No terreno das disputas, por exemplo, de um lado,
encontram-se gestores públicos na área da saúde e representantes do Executivo que acusam
51

membros do Judiciário de extrapolarem suas funções ao influírem diretamente na distribuição


dos recursos públicos destinados à saúde; do outro, estão juízes, promotores, defensores
públicos etc. que questionam a eficiência dos responsáveis pela administração pública em
alocar corretamente tais recursos e cumprir com a obrigação constitucional de garantia do
direito à saúde.
Conforme o que foi noticiado por muitos jornais na ocasião da divulgação da mais
recente pesquisa sobre judicialização da saúde no Brasil encomendada pelo Conselho Nacional
de Justiça, as demandas judiciais por direito à saúde cresceram 130% em primeira instância
entre os anos 2008 e 2017 (Frisch, 2019). Nesse contexto, a Câmara foi arquitetada com um
propósito principal: resolver conflitos envolvendo direitos sanitários por uma “via
extrajudicial”. Isso significa que seu objetivo é ofertar soluções que prescindam da
judicialização e que sejam “rápidas, eficientes e, sobretudo, baratas”. Na prática, esse propósito
se desdobra em diferentes conjuntos de interesses que não são necessariamente harmônicos. Se,
para os que procuram ajuda na CRLS importa mais as duas primeiras características – isto é,
uma solução ágil e efetiva para o problema enfrentado –; para os agentes de Estado que atuam
nas Procuradorias e Secretarias de Saúde, o interesse está na última: a capacidade da Câmara
de frear o crescimento da judicialização e com isso reduzir o montante utilizado para arcar tanto
com as custas dos processos quanto com o cumprimento das ordens judiciais.
Segundo agentes da PGE-RJ, o desenho da CRLS tem a ver com uma mudança de
postura do órgão em relação às estratégias adotadas para a solução de conflitos entre os cidadãos
e o Estado, que passou a optar sempre que possível pela chamada “via extrajudicial”. De acordo
com o que foi publicado na página oficial da Procuradoria, o esforço para evitar a judicialização
tem “impactado positivamente toda a cadeia do poder público envolvida com a tramitação de
ações de saúde na Justiça”. Tal “impacto positivo” seria oriundo do fato de que “todos os custos
envolvidos com a tramitação de uma ação no Judiciário, além do que o ente público tenha que
pagar pela sua eventual condenação, deixam de existir com o atendimento na CRLS. E cada
ação a menos é menos dinheiro público gasto no ajuizamento de ações”, como declarou um dos
procuradores da PGE-RJ.
No pano de fundo de todas essas declarações e formulação de mecanismos
administrativos que visam controlar o fluxo da judicialização da saúde está a ideia de que não
é possível atender a todas as decisões judiciais favoráveis ao que foi pleiteado pelas pessoas. É
esse movimento de criação de políticas públicas, instituições, jurisprudências, regulações etc.
que compreendo como um mecanismo central de um processo incessante de fabricação da
escassez. Tais ações produzem e reproduzem a noção de que os recursos públicos são
52

“limitados” e “escassos”, de modo que sua distribuição e utilização dependem sempre do


estabelecimento de prioridades e do equilíbrio entre necessidades individuais e políticas
coletivas de saúde. Em suma, a escassez não é uma espécie de “dado bruto” da realidade, mas
sim fruto de um constante e excessivo trabalho de elaboração e reforço de uma ideia.
Em um cenário em que os recursos são parcos e restritos, consequentemente, os
“direitos” também o são. Tal entendimento é sintetizado quando, por exemplo, o então ministro
da Saúde, Ricardo Barros, declara em uma entrevista concedida em 2016 que o problema da
saúde no Brasil é o “tamanho do SUS”, já que “a Constituição prevê apenas direitos e não
deveres”. Em suas palavras: “Não adianta lutar por direitos que não poderão ser entregues pelo
Estado. Temos que chegar ao ponto do equilíbrio entre o que o Estado tem condições de suprir
e o que o cidadão tem direito de receber.” (Collucci, 2016).
Ainda que a concretização desses direitos seja sempre precária e exígua – ou justamente
por causa disso –, muitas pessoas buscam diferentes meios de reivindicar sua efetivação. A
judicialização da saúde é uma das expressões dessa empreitada. Sobre esse ponto, a já citada
página da PGE do Rio de Janeiro traz a seguinte informação:

Entre setembro de 2013 e setembro de 2016, mais de 15 mil pessoas


preferiram não ir à Justiça para reclamar que suas demandas não foram
atendidas na rede pública de saúde do Rio de Janeiro. Ao invés da
contenda judicial, elas preferiram o fórum da conciliação e da mediação
para marcar cirurgias, receber medicamentos ou obter transferências
entre unidades hospitalares.
Essa inédita escolha tem sido adotada, desde 2013, graças à atuação da
Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS), [...]. Por lá já
passaram cerca de 31 mil pessoas, das quais 50% preferiram a via da
mediação para resolver as pendências com a rede pública de saúde. A
opção do público pela conciliação tem crescido mês a mês ao longo dos
três anos de existência da Câmara. O índice de resolução administrativa
extrajudicial dos casos passou de 35%, no lançamento da CRLS, em
setembro de 2013, para mais de 53%, em setembro de 2016. (PGE-RJ,
2016, grifos meus).

Gostaria de colocar em questão o verbo e os termos relacionados a ele destacados no


trecho acima: preferir, opção e escolha. Sua utilização transmite a ideia de que as pessoas
possuem um direito de escolha dentre um leque de possibilidades para resolver suas demandas,
completamente livre de constrangimentos. Isso não é necessariamente uma mentira ou
informação falsa, mas também não é exatamente uma verdade. Na prática, alguém que possa
pagar um advogado particular pode “entrar na Justiça” para resolver uma demanda sanitária a
qualquer momento, de acordo com sua vontade. Já aqueles que dependem da assistência jurídica
53

gratuita fornecida pelas Defensorias Públicas não possuem tantas opções assim, pois desde que
a CRLS foi criada e as “resoluções administrativas” priorizadas, as pessoas e os defensores
públicos tiveram sua autonomia reduzida no que diz respeito ao ajuizamento de ações de saúde.
Antes, as pessoas poderiam se dirigir ao núcleo da DPE-RJ mais próximo de sua residência ou
ao posto de atendimento da DPU e receber o auxílio de um defensor público para a abertura de
um processo judicial contra o Estado. A partir do momento em que a CRLS iniciou suas
atividades, foi estipulado que os defensores só poderiam propor ações judiciais após o insucesso
e o esgotamento de todas as “vias administrativas” de solução da questão, uma decisão que, no
fim das contas, cabe aos próprios funcionários da Câmara.
Na medida em que o discurso da necessidade de solução extrajudicial para os conflitos
de direitos sanitário foi ganhando força – principalmente por conta da divulgação de números
como os citados acima –, a CRLS tornou-se protagonista na gestão do fluxo de litígios de saúde.
Isto é, através de convênios e acordos assinados entre os diferentes órgãos públicos, a Câmara
conseguiu se constituir enquanto uma espécie de “catraca” localizada em uma das portas de
entrada do Judiciário no que diz respeito aos pleitos em saúde: aquela que se dá por meio das
Defensorias Públicas. Esse dado se revela extremamente importante na medida em que se
observa que as Defensorias são as responsáveis por patrocinar a grande maioria dos casos
judicializados não só no Rio de Janeiro, mas em boa parte do Brasil (Messeder, Osorio-de-
Castro e Luiza, 2005; Pepe et al., 2010a; Travassos et al., 2013; Biehl, 2013b; Biehl e Petryna,
2013; entre outros).
Muitas das pesquisas atuais – não só no Direito e na Saúde Coletiva, mas também na
Antropologia – investigam a construção de um processo judicial e a judicialização propriamente
ditos, como, por exemplo, as etnografias de Biehl (2013b e 2016) com pacientes que demandam
tratamentos de alto custo no Rio de Grande do Sul; de Flores (2016) sobre os itinerários de
pacientes que buscam o auxílio judicial no Paraná; e de Pedrete (2019) acerca dos pedidos
judicias de home care4 de pacientes crônicos na cidade de Santa Maria. Em todos esses
trabalhos, os escritórios de defensores públicos figuram como locais que foram diretamente

4
O home care – cuja tradução literal seria “cuidado em casa” – é uma modalidade de atendimento médico em que
profissionais de saúde realizam procedimentos e cuidam do paciente em sua própria residência. Esse tipo de
tratamento é direcionado para pacientes que possuem doenças crônicas e/ou idosos cujo estado de saúde encontra-
se significativamente debilitado. No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Saúde coordena um serviço público
de home care chamado de Programa de Atendimento Domiciliar ao Idoso (PADI). Desde 2017, o PADI foi
interrompido diversas vezes tanto por conta da falta de medicamentos e insumos utilizados pelas equipes nos
atendimentos quanto por ocasião do fim do contrato com a Organização Social (OS) responsável pela prestação
do serviço. A última suspensão do serviço ocorreu em julho de 2019. Até o meados do mês de outubro o programa
ainda não havia sido retomado e nem havia previsão de quando isso ocorreria.
54

acompanhados pelos pesquisadores. Nesse sentido, o que pode ser destacado como uma
particularidade do meu trabalho em relação ao conjunto de dissertações, teses, artigos e livros
que discutem a judicialização da saúde é justamente o fato de ter direcionado meu olhar para
essa “porta de entrada do Judiciário” e para os processos de regulação do fluxo de
judicialização, um campo e tema ainda pouco explorados na bibliografia sobre o assunto.
Assim, em minha etnografia da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde, tenho como
um dos focos de minhas análises uma etapa anterior aos processos judiciais e ao atendimento
prestado pelas Defensorias Públicas propriamente ditos. Na segunda parte da tese, as discussões
desenvolvidas se estruturam a partir das situações acompanhadas nas quais são avaliados e
definidos aqueles que terão o direito a pleitear direitos. Argumento que esse controle do fluxo
de judicialização da saúde compreende um ritmo de gestão que é imposto pelos procedimentos
burocráticos executados pelos funcionários da CRLS. A determinação desse “ritmo” se dá por
meio de mensurações do “risco” ao qual uma pessoa está sujeita, o que estabelece por quanto
tempo ela pode aguentar uma dada condição de saúde sem que disso decorra uma grave sequela
ou morte. Ou seja, é através do ritmo da gestão que se regula quanto tempo levará e com que
velocidade uma demanda apresentada por um assistido poderá ser encaminhada para as
Defensorias, caso não seja possível “resolvê-la administrativamente”.
Ao examinar como essa gestão articulada do risco, do tempo e do sofrimento pode
resultar na desistência e/ou na morte das pessoas em alguns casos, defendo que o ritmo da
gestão é uma dimensão central da necrogovernança. Resumidamente, o que chamo aqui de
necrogovernança é um conjunto de ações estatais – que não podem ser lidas na chave da simples
omissão – de gestão de populações que tem por objetivo fazer morrer certos grupos sociais.
Como abordarei mais detidamente, essa forma de exercício do necropoder (Mbembe, 2016)
produz um modo legítimo de eliminar lentamente certos contingentes populacionais em um
Estado Democrático de Direito, de forma a dar um estatuto positivo ao que muitos qualificam
como uma mera “ausência do Estado”. Nessa formulação, a incessante fabricação da escassez
e da precariedade é um elemento central, pois é por meio dela que a necrogovernança opera
corroendo cotidianamente as condições e possibilidades de vida das pessoas, inviabilizando
suas existências.
Há ainda algumas últimas observações que gostaria de fazer nessa introdução sobre o
órgão etnografado. A primeira delas é a de que o texto do prólogo é a construção de um dia
fictício na CRLS. Ainda que nenhuma das situações relatadas seja inventada, elas não
ocorreram todas em um mesmo dia e nem se sucederam na ordem como é apresentada. Meu
objetivo é, antes de tudo, oferecer ao leitor um panorama do funcionamento da instituição. A
55

redação do texto possui um formato e intenção específicos. Ao escolher tal forma narrativa,
tento reproduzir algumas das sensações que tive ao longo do trabalho de campo, principalmente
a exaustão provocada pela constante semelhança e repetição não só das situações relatadas pelos
assistidos, mas também das respostas oferecidas pelos funcionários. Busco também retratar
como certas emoções perpassam e são expressadas nas interações entre esses diferentes sujeitos,
tais como a angústia da espera pela resposta; a indignação e a raiva diante de uma negativa ou
de um pedido para retornar outro dia; a gratidão de quem acredita que conseguiu salvar a vida
de um familiar; e o alívio daquele que finalmente obteve a marcação de uma consulta que já
aguardava há meses ou até mesmo anos.
Outro efeito que tento reproduzir através da escrita é a transformação no modo como os
assistidos são tratados conforme sua demanda vai passando pelos setores e avançando no fluxo
de atendimento. Assim, se na triagem, as pessoas são localizadas a partir de uma “senha” de
papel mostrada à assistente social quando chamadas no guichê, no momento em que chegam
ao segundo andar, no setor de análise técnica, elas se tornam nomes escritos em letras
maiúsculas na tela de um computador, acompanhados de um “número de solicitação” e um
arquivo que contém toda sua documentação digitalizada. Por fim, considero importante
observar que, ao optar por descrever os casos selecionados de modo descontínuo, a partir de
cada setor, e não em uma narrativa sucessiva e encadeada que indique como se deu seu início,
meio e fim, busco replicar tanto a maneira segmentada do atendimento realizado na CRLS,
quanto as sensações de aturdimento e desorientação causadas por essa forma de organização do
espaço e dos processos de trabalho. Além disso, viso também demonstrar as dificuldades
enfrentadas ao longo da pesquisa para acompanhar os rumos dos muitos casos atendidos
diariamente na Câmara de Litígios.
Como é possível observar nas narrativas que compõem o prólogo, boa parte dos relatos
dos sujeitos atendidos na CRLS possuíam três pontos em comum. O primeiro e mais óbvio é a
“falta generalizada” que assolava as unidades públicas de saúde no estado do Rio de Janeiro
naquele momento. O segundo diz respeito à conjuntura na qual essas faltas se davam, isto é,
uma situação de crise que era majoritariamente explicada pelos funcionários e assistidos como
um produto da má gestão e da corrupção dos governantes, bem como do incorreto
funcionamento do Estado. O terceiro ponto concerne a estratégia adotada por essas pessoas para
ter suas demandas atendidas: a busca pela “ajuda da Justiça”, o que significava, na prática, ir
até a Câmara para que o seu pedido fosse resolvido administrativamente ou encaminhado para
a Defensoria Pública para uma possível judicialização.
56

No avançar da crise: o aprofundamento da escassez

De acordo com o que foi mencionado, desde o início, os números apresentados


publicamente pela coordenação da CRLS refletem o “sucesso” da iniciativa. Já nos primeiros
70 dias de funcionamento, foi anunciado que o número de novos processos foi reduzido em
38%. Após um ano em atividade, foi constatado que 60% das demandas apresentadas pelos
usuários do serviço eram relativas ao acesso a medicamentos, sendo uma parte deles de
remédios que não figuravam em nenhuma lista de medicamentos distribuídos gratuitamente da
Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF) do SUS.
Durante o período em que realizei o trabalho de campo, muitos dos funcionários da
Câmara comentaram que desde que a “crise da saúde” se configurou enquanto tal, novas
demandas e situações têm se colocado no cotidiano da instituição. Quando o órgão começou a
funcionar, os casos mais complexos de pedidos de medicamentos diziam respeito aos fármacos
não incluídos nas listas da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), do
Componente Especializado de Assistência Farmacêutica (CEAF), e da Relação Municipal de
Medicamentos Essenciais (REMUME) do Rio de Janeiro. Desde meados de 2015, tornaram-se
comuns os casos de processos para acesso a medicamentos que estavam em falta devido aos
cortes orçamentários e aos atrasos no repasse de verbas. Isto é, a crise tem ocasionado uma série
de problemas no abastecimento de insumos básicos em unidades de saúde, tais como fraldas
geriátricas, material esterilizado, gazes, ataduras, entre outros; bem como na distribuição de
medicamentos que fazem parte de políticas nacionais de saúde consolidadas, como é o caso,
por exemplo, do fornecimento de insulinas, seringas, agulhas e glicômetros utilizados para o
tratamento e monitoramento de pacientes diabéticos.
Ao tornar ainda mais precários os serviços públicos de saúde, o avanço da crise da saúde
no Rio de Janeiro nos últimos anos também provocou transformações na busca pelo Judiciário
no que diz respeito ao não cumprimento e/ou violação de direitos sanitários. Tais alterações se
deram tanto em uma dimensão quantitativa – pois houve um aumento expressivo do número
de novos processos mesmo com o desenvolvimento de mecanismos que visavam sua
diminuição – quanto em um plano qualitativo – uma vez que o perfil dos demandantes e dos
pedidos sofreram modificações significativas. Com isso, poderia dizer que este trabalho tem
por objetivo perscrutar uma das dimensões envolvidas nesse movimento: a partir da etnografia
da CRLS, discuto como se dá a administração estatal e o controle do fluxo da judicialização
da saúde nessa conjuntura de crise – ou ainda, a “judicialização da crise”.
57

Do mesmo modo que a crise implica uma nova camada na configuração da


judicialização da saúde, é preciso destacar que essa “procura pela Justiça” como modo de
navegar por entre os efeitos devastadores da crise representa apenas uma das formas de
gerenciamento da escassez e não a única. Assim, se pretendo tomar a crise e a gestão dos seus
impactos por meio do acionamento do Judiciário enquanto objetos de reflexão, algumas
ressalvas se fazem necessárias. Antes de mais nada, é preciso deixar claro que para fazer da
crise da saúde pública o cerne de uma discussão antropológica é fundamental não tomá-la como
algo dado, cuja existência é tida como certa e inquestionável tanto em termos empíricos quanto
conceituais e analíticos. No entanto, se a tarefa primeira da antropologia é desconfiar das
categorias do senso comum que aparentam ter significados e conteúdos autoexplicativos,
também é necessário estar atento aos problemas políticos e teóricos que podem decorrer de um
exercício de relativismo irresponsável e capaz de produzir falsas simetrias.
Nesse sentido, considero fundamental reiterar que, ao colocar a crise no centro de minha
investigação, não pretendo, de forma alguma, dizer que ela é algo inteiramente fabricado pela
manipulação dos números ou que só existe em um plano discursivo, ou seja, que a crise seja
uma mera representação ou uma dimensão simbólica – até mesmo porque não compreendo
discurso e realidade como dimensões apartadas. Pelo contrário, a crise se faz demasiadamente
presente e palpável todas as vezes em que as pessoas vão até a farmácia da Clínica da Família
e o seu medicamento para controle da hipertensão está em falta; quando um familiar se acidenta
e não encontra um médico para atender na emergência do hospital; quando um paciente é
transferido para outra unidade para fazer uma cirurgia porque onde ele está internado não há o
material necessário para a realização do procedimento; quando alguém vai até a CRLS
demandar um remédio cujo estoque não é regularizado há cinco meses; quando as estatísticas
da Câmara começam a apontar para uma mudança no perfil das demandas dos assistidos, entre
outras situações. Em suma, a crise da saúde pública possui uma materialidade própria que não
pode ser negligenciada e muito menos negada, já que seus efeitos são sentidos de forma
devastadora por aqueles que dependem do SUS.
Assim, um dos propósitos da minha pesquisa é discutir de que maneira uma série de
discursos, documentos, decretos, falas, entrevistas, declarações etc. conformam uma apreensão
das experiências vivenciadas ao mesmo tempo como inseridas em e constitutivas de um
enquadramento de crise. Levar essa proposição a sério requer que as ideias de crise, falta,
escassez, precariedade, excesso, entre outras, sejam tratadas como essencialmente
polissêmicas, não possuindo uma definição única ou a priori. Isto é, seus significados e usos
são sempre situados, relacionais e contextuais, variando de acordo com o tempo (quando
58

ocorre), o espaço (onde ocorre), a escala administrativa (federal, estadual e municipal) e o


sujeito que as enuncia (quem fala): políticos da situação e da oposição, gestores públicos,
especialistas, profissionais de saúde, procuradores, defensores públicos, juízes, pacientes etc.
Encarar esses termos como polissêmicos tem a ver, antes de tudo, com as concepções e
perspectivas teóricas sobre o Estado que orientam as discussões que serão feitas ao longo da
tese. Parto de uma abordagem antropológica que entende o Estado a partir dos seus processos
de formação e tem como principal ponto de reflexão sua dimensão administrativa (Souza Lima,
2002; Souza Lima e Castro, 2015; Teixeira e Souza Lima, 2010). Nesse sentido, mais do que
dotadas de múltiplos significados, busco demonstrar como essas noções são fabricadas e
utilizadas para fins administrativos, uma vez que uma conjuntura de falta e escassez implica a
adoção de novas racionalidades estatais que são produzidas como imprescindíveis para a
manutenção do funcionamento da máquina pública.
Em suma, é através do aprofundamento da precariedade e da incessante fabricação da
escassez que sistemas de classificação de risco são “reformulados”, que a definição de
prioridades de atendimento é repensada e que o fornecimento de insumos e tecnologias são
“reestruturados” para se adequar ao que “o Estado pode fornecer”. Os inúmeros discursos sobre
a crise na saúde pública são elementos-chave nas disputas travadas acerca dos rumos da situação
da saúde pública no Rio de Janeiro, operando ativamente para moldar ações e direcionar as
políticas de assistência.
Para elucidar esse ponto, trago como exemplo as declarações feitas pelo governador do
estado do Rio na ocasião da publicação do referido decreto de “estado de emergência da saúde
pública”. Em uma entrevista coletiva, ele disse: “peço desculpas à população do Rio de Janeiro.
Tenho esperança que amanhã já estaremos com a situação melhor”, uma vez que o decreto faria
com que a transferência de recursos por parte do Governo Federal fosse agilizada e
“desburocratizada”. Levando em consideração o curto prazo mencionado para que a situação
das unidades públicas de saúde melhorasse, considero fundamental levantar algumas questões:
quais são os efeitos de um decreto como esse? De que modo as noções de crise, emergência e
calamidade fazem parte de estratégias de governo? Como o seu acionamento funciona na
imposição de determinados ritmos de gestão?
Por fim, considero importante destacar que é difícil questionar a ideia de que estamos
vivenciando uma crise sem que as interpretações apresentadas sejam tomadas por um conjunto
de “especialistas” – em especial os economistas – como ingênuas e/ou equivocadas. Um ponto
de vista formulado e apoiado por muitos daqueles que se posicionam criticamente em relação
aos discursos oficiais sobre a crise é o de que a crise é, na verdade, um projeto político de caráter
59

neoliberal que visa o “desmonte do Sistema Único de Saúde”. Uma tréplica direcionada aos
que defendem essa perspectiva é a de que eles não entendem de economia e não levam em
consideração que os recursos públicos são, de fato, finitos.
Tendo em vista que compartilho de alguns dos pressupostos que orientam essa que é
uma das contraversões da crise, acredito que é possível antecipar que tal crítica também poderia
ser feita ao meu próprio trabalho. Assim, adianto que busco me afastar dessa contraversão ao
mobilizar dados históricos – como as inúmeras crises anteriores na saúde pública brasileira,
antes mesmo da criação do SUS – e estatísticos – como, por exemplo, o fato de que há mais de
uma década do Governo do estado do Rio de Janeiro não investe o mínimo de 12% de sua
arrecadação total de impostos. Em síntese, como pretendo demonstrar ao longo da primeira
parte da tese, entendo a crise não como parte de um projeto político cuja finalidade é conhecida
antecipadamente, mas sim como um ponto crítico em modo de governo que se faz por meio da
incessante fabricação da escassez de recursos e da diminuição dos gastos públicos.

Trabalho de campo, materiais de pesquisa e organização da tese

Os sete capítulos que compõem a tese encontram-se agrupados em duas partes. Cada
uma delas representa um dos dois grandes temas do meu trabalho, como dito anteriormente: a
conformação de um enquadramento de crise para descrever a situação das unidades e serviços
públicos de saúde no estado do Rio de Janeiro; e a gestão da judicialização da saúde na cidade
feita na e pela Câmara de Resolução de Litígios de Saúde. Para finalizar esta introdução, abordo
de que maneira conduzi a pesquisa, bem como se dá a organização da tese. Assim, busco
explicitar quais foram as estratégias metodológicas adotadas, em que condições realizei o
trabalho de campo e como selecionei e obtive (ou não) acesso aos diferentes materiais que serão
discutidos e mobilizados ao longo do texto.
Na Parte I – CRISE, busco fazer um apanhado dos principais discursos sobre a “crise
da saúde pública” que começaram a circular a partir de meados de 2014 e como estes se
configuram enquanto diferentes versões oficiais e contraversões da crise da saúde pública no
Rio de Janeiro em uma disputa política acerca da “verdade da crise”. Ao trazer para o debate as
diferentes perspectivas sobre a questão, viso argumentar que termos como crise, escassez e
precariedade não são categorias dadas – cujos significados e conteúdo são fixos e se dão a
priori –, mas sim maneiras profundamente disputadas de atribuir sentido a certas situações.
60

Ao acompanhar os atendimentos e ouvir os relatos das pessoas que se dirigiam à CRLS,


comecei a me dar conta da centralidade da crise da saúde para a etnografia que estava fazendo.
Foi a partir desta percepção que passei a tentar compreender que crise era essa, quem detinha
legitimidade para diagnosticá-la, quais eram os sinais de sua existência, o que provocou essa
situação, quem era apontado como culpado, que medidas seriam adotadas para a sua superação
e quem seria o responsável por formular e colocar em prática uma solução. Em suma, passei a
investigar e observar mais atentamente o que estava sendo dito sobre a crise da saúde e em
nome da crise em diversos âmbitos e por diferentes pessoas.
Desse modo, em um primeiro momento, realizo um levantamento dos episódios
elencados como aqueles que sinalizam a existência inquestionável de uma conjuntura de crise
e que, no limite, dão materialidade ao próprio fenômeno. Com isso, pretendo expor um
mapeamento dos discursos de diversos atores e instituições que participam da disputa sobre as
explicações da crise e quais seriam as melhores formas de enfrentá-la, desenhando e compondo
o cenário da “crise da saúde pública no Rio de Janeiro”. Nesse sentido, direciono minha atenção
menos aos relatos de pacientes e usuários dos serviços públicos de saúde e mais ao que é dito
por atores-chave nessa disputa sobre a realidade da crise, tais como prefeitos, governadores,
ministros, secretários de saúde, políticos, ativistas, representantes de conselhos profissionais e
acadêmicos de Saúde Coletiva.
Para compor tal mapeamento, lanço mão de diferentes materiais de pesquisa. Os dados
discutidos ao longo da primeira parte da tese foram obtidos majoritariamente através de
consultas aos acervos de jornais de grande circulação na cidade – tais como O Globo, O Dia e
Extra – e aos acervos audiovisuais dos telejornais RJTV e Jornal Nacional do canal Globo, bem
como o programa de entrevistas Roda Viva da TV Cultura. Além disso, acessei também artigos,
entrevistas e matérias de revistas e outros portais de notícias disponíveis na internet tais como
Época, Exame, Piauí, Carta Capital, Veja Rio, G1, BBC Brasil, Nexo, Empresa Brasil de
Comunicação (EBC), R7, Folha de São Paulo, Estadão etc. Outras fontes de informação foram
as páginas oficiais de comunicação de políticos, órgãos e coletivos que participam dessa
disputa, tais como o site do prefeito Marcelo Crivella, a página oficial do ex-prefeito Eduardo
Paes no Facebook e no Twitter, a página institucional do movimento Nenhum Serviço de Saúde
a Menos e a página de informes do CREMERJ.
Além das falas, discursos, declarações, documentos, imagens etc. selecionados a partir
dessa pesquisa de caráter documental, trago também para a discussão dados de outra ordem,
como, por exemplo, gráficos com a recorrência da palavra “crise” em jornais e estatísticas sobre
a utilização de recursos públicos para o investimento na saúde. Muitos destes dados de caráter
61

quantitativo foram obtidos em plataformas online que visam performar uma certa
“transparência” das contas públicas e das instituições estatais, tais como o Rio Transparente,
da Prefeitura do município; e o Portal Transparência, do Governo do estado do Rio de Janeiro.
Além desses portais, foram consultadas outras fontes que agregam dados estatísticos oficiais
relevantes para a pesquisa, como o DataSUS – página do departamento de informática do SUS
que concentra as mais variadas estatísticas sobre os sistema de saúde nacional – e os relatórios
anuais de prestação de contas municipal e estadual.
Com relação ao recorte temporal escolhido, também é preciso fazer alguns
esclarecimentos prévios. O marco principal estabelecido foi o decreto de estado de emergência
na saúde pública assinado pelo então governador do estado do Rio de Janeiro em dezembro de
2015. Entretanto, como ficará explícito ao longo dos capítulos, a crise tem distintas
temporalidades, pois ela não atingiu toda a rede pública de uma mesma forma e nem ao mesmo
tempo. Por conta dessa característica, os períodos selecionados para a análise são mais amplos
ou mais reduzidos, a depender do âmbito e/ou da questão em discussão.
A primeira parte da tese está dividida em três capítulos. No Capítulo 1, abordo quais
são as versões oficiais da crise da saúde no Rio de Janeiro. Isto é, o que políticos da situação e
agentes estatais que exercem ou exerceram mandatos ao longo do período analisado disseram
sobre a questão. Na medida em que a cidade conta com unidades de saúde geridas e financiadas
pelos três níveis da administração pública, são incluídos os posicionamentos de prefeitos,
governadores, ministros da Saúde, secretários de saúde e outros gestores sobre a crise. Minha
intenção é demonstrar como esses atores quase sempre identificam as origens e os responsáveis
pela crise em situações e/ou sujeitos que estão fora de sua própria alçada administrativa, como,
por exemplo, quando a situação das Clínicas da Família do município é justificada pelo atual
prefeito como sendo produto da “expansão desenfreada” da rede de saúde efetivada pela gestão
anterior e as consequentes “dívidas herdadas” pela Prefeitura; quando os membros do Executivo
estadual afirmam que a culpa da crise é da “imprevisível tragédia” provocada pela queda do
preço do petróleo e a subsequente diminuição na arrecadação de royalties; e quando o ministro
da Saúde alega que o principal problema do setor é o “tamanho do SUS”, o qual ele afirma ser
muito maior do que as possibilidades orçamentárias do Governo Federal.
Já no Capítulo 2, elenco o que chamo de contraversões da crise. Ou seja, as críticas e
contestações aos discursos oficiais sobre a situação feitas por adversários políticos, militantes
do movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos, dirigentes do CREMERJ e especialistas de
distintas ordens: acadêmicos de Saúde Coletiva (representados pela Associação Brasileira de
Saúde Coletiva – ABRASCO), economistas, experts que atuam em ONGs voltadas para a
62

análise de orçamentos e contas públicas etc. A partir do material coletado, identifico que três
são os principais raciocínios que produzem os argumentos veiculados nessas contraversões da
crise: 1) a crise como resultado das escolhas, priorizações e, principalmente, da má gestão feita
por diferentes agentes estatais; 2) a crise como produto direto da corrupção e usurpação de
recursos públicos por parte dos políticos, gestores e empresários; e 3) a crise enquanto um
fenômeno produzido deliberadamente pelos políticos como parte de um projeto de “desmonte
do SUS” e de redução de serviços públicos e direitos.
No Capítulo 3, meu principal objetivo é demonstrar como se produziu uma certa
definição hegemônica da crise contemporânea. Busco discutir de que maneira a decretação do
“estado de emergência” – e, consequentemente, a declaração de uma crise na saúde pública – é
uma operação política-administrativa que deve ser observada com atenção. Entretanto, não
pretendo de forma alguma diagnosticar se estamos em crise ou não; explicar o que exatamente
é a crise; ou fazer um exercício de reflexão para chegar a uma versão própria e mais verdadeira
da crise. Minha intenção é interrogar que tipo de trabalho o termo crise mobiliza e para quais
propósitos uma definição como essa pode servir. Ao olhar com um certo distanciamento para o
passado (episódios anteriores caracterizados como uma crise), para o presente (o
enquadramento contemporâneo da “pior crise da saúde no Rio de Janeiro”) e para o futuro (as
propostas de solução apresentadas), construo um raciocínio que localiza a crise não enquanto
um projeto específico de “desmonte do SUS”, mas sim como um elemento que conforma o trio
crise-escassez-precariedade que caracteriza um modo de governo de certas populações
enraizado na história do Brasil.
Observar de que maneira as questões “macro” da crise da saúde pública se manifestam
localmente no cotidiano de uma parcela significativa da população, bem como apreender os
modos como essas pessoas “tocam suas vidas” ao tentar contornar os efeitos dessa precariedade
são exercícios que somente a etnografia é capaz de dar conta. Nesse sentido, na Parte II –
JUDICIALIZAÇÃO, trato das formas pelas quais as pessoas buscam o “auxílio da Justiça”
em suas tentativas de escapar ou amenizar os impactos da crise nas suas vidas, sejam estes
referentes ao orçamento da família, à qualidade de vida de um paciente crônico ou, no limite, à
própria sobrevivência dos sujeitos. Através de uma etnografia realizada ao longo de pouco mais
de um ano na CRLS, discuto como o “fenômeno” da judicialização da saúde é governado e
gerenciado por meio de uma série de procedimentos burocráticos em um órgão de Estado. Ao
descrever o cotidiano dessa instituição, pretendo explorar como a precariedade e a escassez são
administradas rotineira e continuamente por um certo conjunto de agentes ligados a diferentes
instâncias e órgãos estatais.
63

Antes de passar propriamente para a apresentação dos capítulos da segunda parte da


tese, considero fundamental explicitar quais foram as condições de realização da etnografia e
no que consiste o material que será analisado. Sobre o primeiro ponto, destaco que além do meu
interesse particular por temas que envolvem direitos, Justiça e judicialização, o contato prévio
com estagiários, servidores e defensores da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
(DPE-RJ) foi fundamental para a mediação de minha entrada em campo. Foi por meio do
acionamento de uma rede de amigos tecida durante o período em que realizei trabalho de campo
no Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS) da DPE-
RJ que a presente pesquisa começou a ser desenhada. Em um primeiro momento, após um
levantamento bibliográfico de caráter mais geral, notei que o tema da judicialização da saúde
vinha sendo discutido e disputado por profissionais de distintas áreas do conhecimento: Direito,
Saúde Coletiva, Administração Pública e Ciências Sociais.
Com um projeto amplo centrado no tema da judicialização da saúde, marquei um
encontro com um defensor público que trabalhava especificamente com esse tipo de demanda
para sondar a possibilidade de acompanhar o cotidiano de seu gabinete e dos processos sob sua
responsabilidade. Durante a conversa, o defensor me explicou que os casos que ele atendia eram
todos oriundos da CRLS, local onde ele havia trabalhado até a inauguração da nova sede da
Defensoria Pública da União (DPU). Nesse mesmo dia, ele circulou comigo pelos andares do
prédio da Defensoria e me apresentou a outros defensores que já haviam atuado ou que estavam
atuando na área de saúde, em especial nas chamadas “tutelas coletivas”5. Em seguida, ele me
levou para conhecer a Câmara. Na CRLS, fui apresentado como um pesquisador para a
secretária geral responsável pela equipe de profissionais da DPU que atende na CRLS. O
defensor pediu então que a funcionária me recebesse na Câmara e me auxiliasse em qualquer
dúvida que eu tivesse.
Na semana seguinte, comecei a acompanhar os atendimentos nos guichês da DPU, sem
muito contato com as pessoas que trabalhavam nos outros setores da instituição. Conforme fui
me apresentando a outros funcionários da Câmara, notei que muitos deles pareciam surpresos
ao saber que eu era um doutorando fazendo uma pesquisa de campo – surpresa que parecia

5
A “tutela coletiva” ocorre geralmente em Ações Civis Públicas (ACP), as quais podem ser referentes tanto aos
“interesses difusos” (interesses que não são de uma única pessoa ou grupo de indivíduos, mas sim de toda a
sociedade) quanto aos “interesses coletivos” (interesses de um grupo específico de pessoas). Um dos exemplos de
tutela coletiva mencionados pelos defensores públicos era o pedido de incorporação de um colírio para o
tratamento da perda da visão provocada pela diabetes aos protocolos terapêuticos e à lista de medicamentos
distribuídos gratuitamente pelo SUS. É imprescindível mencionar que a CRLS atende somente demandas
individuais e que, por conta disso, não tratarei de nenhum caso de tutela coletiva ao longo da tese.
64

ainda maior quando eu informava que meu doutorado era em Antropologia. A grande maioria
das pessoas acreditava que eu era somente mais um dos estagiários do curso de Direito que
trabalhavam na DPU.
Como já mencionado, foi na fase exploratória da pesquisa de campo que comecei a notar
a recorrência de situações em que as pessoas atendidas alegavam algum tipo de “falta” nas
unidades públicas de saúde. Tais faltas se davam em diferentes planos: medicamentos,
profissionais, equipamentos, insumos médicos, entre outras coisas. Nesse momento, falas sobre
crise, corrupção e má gestão eram mobilizadas nas narrativas elaboradas tanto pelos assistidos
quanto pelos funcionários da CRLS para explicar os episódios vivenciados nos hospitais, UPAs,
Clínicas da Família etc.
A repetição da demanda por algo que estava “em falta” e a constante associação entre
essa escassez e a crise me fizeram atentar para uma dimensão do fenômeno da judicialização
da saúde que estava sendo pouca discutida até então: o seu uso estratégico para tentar contornar
os efeitos da crise. A partir dessa constatação, fiquei interessado em compreender qual seria o
papel da Câmara na gestão e regulação dos impactos da crise da saúde no Rio de Janeiro,
principalmente para aqueles que dependem dos serviços públicos de saúde. Para cumprir essa
tarefa, seria fundamental acompanhar o que acontecia com os assistidos antes e depois do
atendimento nos guichês da DPU, de modo a realizar uma etnografia do funcionamento da
CRLS enquanto uma instituição.
Cerca de dois meses após o início do trabalho de campo com a equipe da DPU, solicitei
à coordenação da Câmara uma autorização para circular e acompanhar as rotinas de trabalho
dos funcionários de todos os setores. Recebido com uma certa desconfiança, fui questionado
sobre os objetivos de minha pesquisa, como eu pretendia executá-la e se o projeto de pesquisa
havia sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade, já que
“pesquisas na área da saúde” precisavam impreterivelmente passar por essa etapa de
verificação. A despeito de qual seria o foco do trabalho e da metodologia adotada em minha
investigação, o caráter “biocêntrico” (Sarti e Duarte, 2013) da regulamentação da ética em
pesquisa se fez presente desde o princípio do período em que permaneci acompanhando as
atividades da CRLS.
Diante desses questionamentos, resolvi adotar alguns procedimentos para garantir
formalmente meu acesso ao campo: submeti o projeto de pesquisa ao CEP da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o qual foi aprovado cerca de um mês depois; e apresentei
uma carta credencial fornecida pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS) contendo explicações sobre o caráter científico da pesquisa e os parâmetros éticos
65

adotados, bem como solicitando a cooperação por parte da CRLS para o desenvolvimento do
projeto. A carta expedida pelo Programa foi recebida sem protestos e cada uma das partes ficou
com uma cópia assinada por ambos pesquisador e coordenação. Ainda que eu tenha mobilizado
esses “documentos oficiais” para afiançar minha presença na instituição, fui desde o início
informado que minha pesquisa teria algumas limitações, na medida em que, por exemplo, os
dados estatísticos e os documentos produzidos pela CRLS seriam sigilosos, eu precisaria de
uma autorização expressa da Secretaria de Estado de Saúde (SES) para acessá-los. Tal pedido
nunca foi feito.
Após obter a anuência da coordenação para realizar a pesquisa, passei a frequentar a
CRLS de três a quatro dias por semana, tanto no horário de atendimento ao público (das 10h às
15h) quanto no expediente interno (entre 7h e 19h, aproximadamente). Ao longo do período
que permaneci em campo, circulei por quase todos os espaços da Câmara e conversei com quase
todos os funcionários, tendo por exceção a equipe de coordenação, os funcionários do Núcleo
de Assessoria Técnica (NAT) e as pessoas que trabalhavam nos gabinetes da DPE-RJ.
Algumas semanas depois de começar o campo, passei a levar minhas refeições para
comer no refeitório. Esse movimento se revelou fundamental para a realização da pesquisa, pois
não apenas me ajudou a construir laços com meus interlocutores, mas também porque era
durante o almoço que eu tinha a oportunidade de perguntar mais detalhes acerca de um
determinado caso; que me mantinha atualizado sobre o que estava acontecendo em outros
setores; que pedia a opinião pessoal de alguém sobre uma dada situação etc. Era também
durante o horário de almoço que eu era questionado sobre os objetivos da minha pesquisa, o
andamento do doutorado, entre outras inúmeras coisas.
É importante destacar algumas coisas em relação ao modo como organizei a pesquisa
de campo e as questões que decidi observar. A primeira e mais importante delas é que direcionei
minha atenção principalmente aos processos de trabalho dos funcionários da instituição.
Consequentemente, as pessoas com as quais estabeleci uma maior interlocução foram os
profissionais da CRLS e não tanto os assistidos. O contato com as narrativas e trajetórias dos
usuários quase sempre se deu na cena de atendimento, sendo mediado pela incontornável figura
do funcionário, com quem eu era frequentemente associado ou confundido. Além disso, o
interesse nos procedimentos executados e no expediente de cada setor fez com que eu
observasse atentamente as dinâmicas de interação entre os próprios funcionários. Nesse sentido,
foquei em tentar capturar os constrangimentos e regras explícitas e implícitas que orientam as
formas de atuação dos sujeitos enquanto pertencentes a uma dada categoria profissional –
66

técnico administrativo, médico, enfermeiro, farmacêutico, nutricionista, assistente social etc. –


e no que diz respeito ao setor no qual estava alocado.
A segunda questão que precisa ser mencionada diz respeito a uma difícil escolha
narrativa acerca da caracterização e descrição dos usuários da Câmara. Como é possível notar,
não há qualquer menção à raça ou à cor das pessoas no texto do prólogo e não será diferente ao
longo da tese. Digo que essa é uma escolha difícil porque reconheço o quanto o apagamento
racial faz parte de um violento processo que reforça o racismo cotidianamente ao reiterar uma
ideia de que “não é preciso falar de raça”. Contudo, a dimensão racial é profundamente ignorada
e apagada no cotidiano da CRLS. Ao passo que informações sobre sexo, idade, local de moradia
e renda são devidamente registradas – porque consideradas fundamentais para a abertura de
uma solicitação no órgão –, a raça não recebe a mesma atenção. Raríssimas foram as ocasiões
em que algum assistido foi perguntado sobre como ele se identificava racialmente. Nas poucas
vezes em que a raça foi anotada, essa era uma categoria preenchida a partir da pressuposição
de quem estava atendendo, a qual poderia se basear tanto nas características fenotípicas da
pessoa quanto nas fotografias ou na raça registrada na certidão de nascimento. Cabe também
ressaltar que nas poucas estatísticas publicamente acessíveis sobre a Câmara, a raça nunca
apareceu enquanto uma variável a ser considerada.
Outras situações em que a raça é irrelevante nas rotinas da CRLS se dão durante o
procedimento de análise técnica de uma demanda. Como discutirei mais adiante, em geral, os
funcionários que atuam nesse setor não lidam diretamente com os assistidos. Verificar se as
pessoas contemplam ou não os critérios de renda e residência para serem atendidas na Câmara
é tido como uma função que cabe às assistentes sociais da triagem e às equipes de atendimento.
O trabalho dos analistas é feito a partir do conjunto de documentos digitalizados pelo pessoal
do setor de atendimento. Dentre esses, os documentos mais importantes são os laudos e
receituários médicos. Assim, ainda que eles tenham acesso a tudo que foi digitalizado, os
documentos de identificação – isto é, os únicos em que fotografias ou menções explícitas à raça
estão disponíveis – são sumariamente ignorados por esses profissionais. Sendo este o setor
construído como o “mais importante” da instituição – pois é onde trabalham os médicos,
enfermeiros, farmacêuticos e nutricionistas que elaboram os pareceres e decidem qual será
encaminhamento da demanda – e o seu trabalho prescinde da raça, é possível dizer que a raça
figura na Câmara fundamentalmente pela sua ausência e apagamento.
Essa dinâmica de obliteração da raça se soma aos meus próprios limites em relação a
esse ponto. Como dito, na medida em que me detive mais no acompanhamento das rotinas de
trabalho dos profissionais e das interações entre funcionários da CRLS e assistidos do que
67

investigar extensamente o itinerário percorrido pelo usuário até a chegada na Câmara, as


informações de caracterização sociológica dos assistidos que possuo são praticamente as
mesmas das anotadas pelos funcionários da instituição. Nas situações em que pude conversar
diretamente com os assistidos – a sós ou acompanhado de algum profissional –, essa não me
parecia uma questão possível de ser perguntada sem produzir um ruído na interação.
Conforme já mencionado, os critérios fundamentais para o atendimento na Câmara são
renda e residência. Dado que a Defensoria Pública pode ser o destino final de muitas das
demandas, a “hipossuficiência”6 é uma das condições primordiais para que uma pessoa seja
elegível para receber assistência da CRLS. Para além disso, há uma regra que determina que
serão atendidos apenas sujeitos que moram no município do Rio de Janeiro. Em geral, as
pessoas que se enquadram nesses parâmetros são aquelas que dependem exclusivamente do
cuidado em saúde gratuito prestado pelo SUS.
Como espero deixar compreensível em minha tentativa de aproximar a gestão tutelar
(Souza Lima, 2014) e o exercício do necropoder (Mbembe, 2016) na formulação sobre a
necrogovernança, me parece fazer sentido pensar a Câmara como um órgão que opera a gestão
de uma população de abaixo-comuns (undercommons, no original), tal como caracterizada por
Harney e Moten (2013). Segundo os autores, aqueles que habitam o espaço dos abaixo-comuns
são os negros, os indígenas, os pobres, os queer7, em suma, todos os que são colocados abaixo
da linha de importância por um regime capitalista que define quais vidas valem algo e quais são
descartáveis.
Assim, levando em consideração a população pobre para a qual se destina essa política
pública, a falta de registro da informação sobre a raça dos assistidos e a recusa em atribuir
classificações raciais por conta própria, optei por me ater estritamente ao material dos meus
diários de campo e aos documentos acessados durante a etnografia. Como consta no item
“qualificação do assisto” do documento “Redução a termo de atendimento inicial”, aquilo que

6
As disposições constitucionais sobre o assunto são as seguintes: artigo 5º, inciso LXXIV, o qual diz “o Estado
prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”; e artigo 134, o
qual expõe: “a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica,
a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e
coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição
Federal”.
7
O termo queer em inglês era uma ofensa destinada principalmente aos homens gays afeminados, tal como as
ofensas “bicha”, “viado” e “marica” no Brasil. Assim como no caso brasileiro, a palavra foi apropriada por
militantes e transformada em uma identidade reivindicada pelos próprios sujeitos que antes eram ofendidos. Não
há uma tradução precisa para o português, mas, em geral, o termo queer é utilizado para designar lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais e outras pessoas que buscam romper com padrões hegemônicos de gênero e
sexualidade.
68

é relevante para o atendimento são nome, nacionalidade, data de nascimento, estado civil,
número de CPF, número de Registro Geral (RG), endereço, telefone e e-mail.
Um terceiro ponto que precisa ser explicitado no que se refere à organização do trabalho
de campo são os dois modos pelos quais efetivamente estruturei minhas observações. No
primeiro deles, os casos serviram de eixo condutor. Isto é, ao me deparar com situações que me
pareciam encerrar pontos chave para as discussões que eu pensava em desenvolver, acompanhei
a circulação dos documentos e o andamento da demanda entre os andares e setores da CRLS.
No segundo modo de observação, dediquei-me a apreender o fluxo de atividades em um setor
durante algumas semanas seguidas, ora tentando compreender o funcionamento deste como um
todo, ora sentando ao lado de um único funcionário durante pelo menos um turno inteiro de
trabalho.
As vinhetas etnográficas que serão apresentadas ao longo da tese guardam em seus
formatos a distinção entre essas diferentes maneiras de observar e participar das rotinas da
instituição. Nesse sentido, as descrições dos casos “acompanhados de perto” serão, muitas
vezes, mais ricas, detalhadas e longas; ao passo que outras serão mais apressadas, áridas,
limitadas e, de certo modo, “faltantes”. Como dito anteriormente, longe de serem fortuitas ou
descuidadas, as escolhas dos trechos dos meus diários de campo e outras formas de relato
etnográfico possuem intenções específicas.
Quanto aos períodos que me detive nos setores, destaco que passei cerca de dois meses
acompanhando a rotina de trabalho das atendentes da DPU. Com a autorização do defensor
público que me levou à CRLS, pude fazer cópias dos Procedimentos de Assistência Jurídica
(PAJ) que me pareciam mais interessantes ou fundamentais para os tópicos que pretendia
desenvolver naquele momento. Muitas vezes, nesses PAJs estavam incluídos documentos que,
de acordo com a coordenação da Câmara, eu não poderia ter acesso e muito menos uma cópia,
tais como os pareceres elaborados pelos analistas técnicos da instituição. Após os guichês de
atendimento da DPU, fiquei por volta de dois meses e meio junto à equipe de triagem. Nesse
setor, pude acompanhar os modos pelos quais a demanda de um assistido é avaliada em um
primeiro momento, podendo ser inserida no fluxo de atendimento da CRLS ou não. Por ser um
setor cujo trabalho girava em torno da ideia da “escuta qualificada” – e, mais especificamente,
da impossibilidade de realizar tal tipo de escuta –, dediquei-me a fazer anotações detalhadas
sobre tudo que eu estava vendo e ouvindo durante esse período.
Em junho de 2017, comecei a acompanhar as rotinas dos funcionários do setor de análise
técnica. Por ser o maior setor da CRLS e abrigar uma grande quantidade de profissionais, foi
onde permaneci por mais tempo: pouco mais de três meses. Primeiramente acompanhei a equipe
69

ligada à Secretaria Municipal de Saúde (SMS), depois passei a ficar junto dos funcionários da
Secretaria de Estado de Saúde (SES) e por último me detive na observação das rotinas das
funcionárias do Departamento de Gestão Hospitalar (DGH). Ainda que não me fosse permitido
solicitar fotocópias dos pareceres ou de quaisquer outros documentos que considerasse
importantes, eu podia observar tudo que os funcionários do setor faziam durante o expediente.
Assim, parte do meu trabalho na análise técnica foi anotar os diálogos travados entre
funcionários da CRLS e os profissionais de outros órgãos e/ou unidades de saúde, bem como
copiar manualmente os principais pontos dos textos dos pareceres.
Após o setor de análise técnica, passei a acompanhar a rotina da equipe do retorno da
análise, sendo essa a última etapa do trabalho de campo. Da mesma forma que no setor de
análise, não fui autorizado a fotocopiar documentos. Contudo, desde o início, me pareceu mais
importante atentar para as dinâmicas e interações entre as funcionárias e os assistidos do que
apreender exatamente o que o estava registrado no papel. Tal interesse se deu por duas razões
principais: a primeira é que os documentos entregues pela equipe aos assistidos eram
rigorosamente os pareceres emitidos pelos analistas e eu já havia acompanhado o seu processo
de elaboração nos meses anteriores; a segunda é que o momento do retorno da análise é quando
as pessoas obtêm as respostas para suas demandas, de modo que é também onde se dão as
maiores tensões entre assistidos e funcionários da CRLS.
Para finalizar as questões relativas ao trabalho de campo, considero imprescindível
destacar algumas coisas que não pude fazer ao longo desse período e as limitações que isso
implicou para o desenvolvimento da tese. O primeiro limite foi o já mencionado acesso aos
dados estatísticos acerca do funcionamento da CRLS. Sobre isso, pude observar apenas como
o banco de dados da instituição é configurado e categorizado, mas não os números apresentados
propriamente ditos, salvo aqueles que foram divulgados publicamente nas páginas das
Procuradorias Gerais do Estado e do Município, em artigos acadêmicos e em reportagens de
jornais.
Em relação aos espaços da CRLS, constrangimentos mais ou menos explícitos – tais
como portas constantemente fechadas e pedidos sem resposta – orientaram minha circulação
por entre as mesas, corredores e guichês. Assim, ressalto que não tive acesso aos gabinetes
localizados no segundo andar, o que implicou no desconhecimento quase total da rotina dos
funcionários da DPE-RJ que não trabalhavam no atendimento, isto é, os assessores e defensores
que eventualmente “davam plantão” na Câmara. Feita essa digressão sobre as condições de
realização da pesquisa etnográfica, passo agora para um breve resumo dos quatro capítulos que
compõem a segunda parte desta tese.
70

No Capítulo 4, recuo alguns passos e discuto como se construiu a ideia de que há um


“fenômeno” que pode ser retratado como um “excesso de judicialização da saúde” no Brasil,
uma questão que se relaciona com outros “problemas do Sistema de Justiça”, tais como a
“morosidade do Judiciário” e as dificuldades no acesso à Justiça. Trago para o debate alguns
dados históricos de modo a expor como o crescimento na quantidade de processos judiciais na
área de saúde vem sendo atualmente apresentado como um “problema” que necessita de uma
urgente intervenção estatal para sua resolução, o que levou à elaboração de mecanismos de
“resolução administrativa” desse tipo de litígio. Ao recapitular iniciativas anteriores, como o
Sistema de Pedido Administrativo (SPA) e a Central de Atendimento de Demandas Jurídicas
(CADJ), abordo o processo de acúmulo de experiências que culminou na criação da CRLS em
meados de 2012. No final do capítulo, exploro também as conexões entre a crise e a
judicialização da saúde no estado do Rio de Janeiro ao discutir de que maneira a declaração da
crise provocou mudanças quantitativas e qualitativas na configuração do fenômeno da
judicialização das demandas em saúde.
No Capítulo 5, apresento a estrutura física da CRLS e as linhas gerais das rotinas de
trabalho dos distintos funcionários da instituição. Através de descrições e fotografias,
demonstro como as ideias de que a Câmara é um “espaço de diálogo” e de que “todos saem
com uma resposta no mesmo dia” se materializam literalmente na arquitetura do órgão, pois
um conjunto de frases e palavras associadas a essas ideias encontram-se nas paredes de todos
os setores do órgão. Reproduzindo o fluxo de atendimento da Câmara, percorro os espaços, a
composição das equipes e o caminho trilhado pelas demandas apresentadas pelos usuários.
Assim, narro como esses pedidos “sobem” e “descem” enquanto passam pelo setor de triagem
no subsolo; são remetidos para o atendimento no primeiro andar; depois são encaminhados para
o setor de análise técnica no segundo andar; e voltam ao primeiro andar para que a resposta seja
dada pela equipe do setor de retorno de análise.
No Capítulo 6, aprofundo a discussão sobre como a Câmara se constitui enquanto esse
“espaço de diálogo”. Ao explorar como se dão os “diálogos interinstitucionais” promovidos
pelos funcionários da CRLS – mais especificamente pelos que trabalham elaborando os
pareceres no setor de análise técnica – e o papel do que chamo de ameaça da Justiça, viso
demonstrar como as “resoluções administrativas” propostas pela Câmara para atender aos
pedidos dos assistidos são construídas por meio de um mecanismo de pressão institucional que
tem como contraponto a “judicialização”. Nesse capítulo, descrevo também os argumentos
utilizados pelos funcionários para rebater a crítica de que a CRLS e a judicialização fazem com
que as pessoas “furem a fila do SUS”. A partir de um diálogo com diferentes autores que
71

pensam o funcionamento da burocracia e do Estado, discuto qual estatuto pode ser atribuído às
resoluções administrativas da Câmara e qual o papel do acionamento da Justiça em uma
conjuntura de escassez e precariedade nos serviços públicos de saúde. Por fim, retomo a divisão
espacial e laboral da CRLS para argumentar como a Câmara é marcada por uma profunda
segmentação e ausência de diálogo entre os profissionais e os setores que compõem o órgão, o
que, de certo modo, “impermeabiliza” a burocracia da instituição diante das lágrimas dos seus
próprios usuários.
No Capítulo 7, dedico-me a analisar como a Câmara se insere na malha de instituições
que constituem o Estado e como diferentes interesses institucionais se cruzam, se articulam e
se chocam no cotidiano do órgão, fazendo com que o Estado atue “contra o Estado” em
diferentes situações e definindo diferentes significados para as chamadas “resoluções
administrativas”. Parto da problematização de uma afirmação feita por uma das pessoas que
trabalham na CRLS de que a instituição é uma “tocaia de Estado” para discutir como se dá a
administração cotidiana do tempo, do risco e do sofrimento e como isso implica tanto um certo
ritmo da gestão quanto uma espécie de risco sistêmico em saúde. A partir de um conjunto de
vinhetas etnográficas, abordo as formas pelas quais a “classificação de risco” é em si mesma
um instrumento de gestão e como as escolhas dos funcionários produzem resultados aleatórios
que permitem que a Câmara seja pensada mais como uma “loteria de Estado” do que como uma
“tocaia” propriamente dita. Neste último capítulo da tese, explorarei também de que maneira a
CRLS se configura enquanto parte de um maquinário muito mais amplo de “gestão de mortes”
ao esquadrinhar as conexões entre o ritmo da gestão e a necrogovernança, de maneira a
produzir uma equação que iguala o “não fazer” ao “fazer morrer”.
72

PARTE I

CRISE

A saúde pública no Rio de Janeiro começou a enfrentar uma “crise” a partir do final do
ano de 2014 e meados de 2015. Ou, pelo menos, é esse o tema que praticamente domina o
debate público sobre o setor nos últimos anos. É sobre a crise que grande parte dos gestores,
políticos, especialistas, ativistas e profissionais de saúde fala quando questionados sobre quais
são suas avaliações, preocupações e projetos para a Saúde enquanto uma das principais áreas
do planejamento de governo. É a partir da perspectiva da crise – evidenciada pelas precariedade
e escassez de medicamentos, insumos, profissionais, aparelhos, leitos, água, comida, produtos
de limpeza etc. vivenciadas e relatadas cotidianamente – que os veículos de comunicação têm
tratado a situação dos hospitais, Clínicas da Família (CF), Unidades de Pronto Atendimento
(UPA), Centros Municipais de Saúde (CMS), entre outras unidades públicas de saúde. É por
conta do desabastecimento da Farmácia Estadual de Medicamentos Especiais (RIOFARMES),
da demora para marcação de uma consulta com médico especialista ou realização de um exame
e da urgente necessidade de internação que as pessoas passaram a procurar a ajuda da Câmara
de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) a partir de 2015, como é possível observar nas
situações narradas no prólogo da tese.
Um dos meus principais objetivos nessa primeira parte da tese é abordar a constituição
da “crise” enquanto uma questão problemática de máxima urgência a partir de uma perspectiva
teórica e metodológica das Ciências Sociais. Para isso, encontro inspiração nos escritos de Remi
Lenoir (1998) sobre o processo de construção de um fenômeno que é visto como um problema
social. Segundo o autor, “tratando-se de problema social, o objeto da pesquisa do sociólogo
consiste, antes de tudo, em analisar o processo pelo qual se constrói e se institucionaliza o que,
em determinado momento do tempo, é constituído como tal.” (p. 74). Nesse sentido, Lenoir
postula que é preciso sempre atentar ao fato de que:
73

Um problema social não é somente o resultado do mau funcionamento


da sociedade (o que pode levar a pensar na utilização, por vezes
abusiva, de termos como “disfunção”, “patologia”, “transgressão”,
“desorganização” etc.), mas pressupõe um verdadeiro “trabalho social”
que compreende duas etapas essenciais: o reconhecimento e a
legitimação do “problema” como tal. Por um lado, seu
“reconhecimento”: tornar visível uma situação particular, torná-la,
como se diz, “digna de atenção”, pressupõe a ação de grupos
socialmente interessados em produzir uma nova categoria de percepção
do mundo social a fim de agirem sobre o mesmo. Por outro lado, sua
“legitimação”: esta não é necessariamente induzida pelo simples
reconhecimento público do problema, mas pressupõe uma verdadeira
operação de promoção para inseri-lo no campo das preocupações
“sociais” do momento. Em suma, a essas transformações objetivas, sem
as quais o problema não seria levado em consideração, acrescenta-se
um trabalho específico de enunciação e formulação públicas, ou seja,
uma operação e mobilização. (Lenoir, 1998, p. 84).

Seguindo tal proposta, as primeiras empreitadas de pesquisa sobre os discursos da crise


da saúde pública no Rio de Janeiro colocaram uma questão em evidência: paradoxalmente, ao
mesmo tempo em que existem dois consensos fundamentais sobre a crise, há diferentes versões
sobre o que acontece na rede pública de saúde. Os consensos se referem 1) à existência da crise
em si mesma; e 2) ao que a palavra “crise” se refere ou qualifica, pois é unânime a ideia de que
a situação é, antes de tudo, uma crise de fundo econômico, uma situação causada pelo
“desfinanciamento” do Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, os raciocínios que explicam
e dão sentido a esse diagnóstico de “desifinanciamento” variam. Como pretendo evidenciar nos
três primeiros capítulos da tese, as narrativas sobre as causas, culpados e soluções para a atual
crise da saúde pública que aflige o Rio de Janeiro são muitas.
Ao investigar como diferentes autores operam o conceito de crise, Roitman (2014)
aponta como tal ideia vem sendo tratada como uma espécie de momento da verdade no qual é
disputado e construído um modo particular de narrar a história. No caso da crise da saúde no
Rio de Janeiro, pretendo explorar nas próximas páginas como a disputa em torno da definição
da “verdade sobre a crise” se dá entre variados atores, órgãos e instituições. Além disso, intento
também demonstrar como essas narrativas foram se modificando ao longo dos últimos anos na
medida em que novos “fatos” foram trazidos à tona, fazendo com que algumas das versões da
crise fossem “desmontadas”. Em outras palavras, nem todos falam da crise da mesma forma
ou, em última instância, da mesma crise.
Ao discutir como se dá a produção das “vítimas” e dos “afetados” por um incêndio
ocorrido em Buenos Aires em 2004 – que ficou conhecido como a “Tragédia de Cromañón” –,
74

Zenobi (2017) argumenta que o caráter trágico de um evento socialmente definido como crítico
depende de um processo coletivo de definição que é perpassado por relações de poder e disputas
de autoridade e legitimidade. Acredito que é possível pensar na caracterização de uma crise a
partir de um movimento semelhante de produção de uma espécie de definição coletiva que vai
culminar na elaboração de uma interpretação hegemônica para os episódios vivenciados nas
unidades públicas de saúde. Assim, ao explicitar e contrapor os distintos discursos sobre a “crise
da saúde no Rio de Janeiro”, busco evidenciar que tanto a crise quanto as categorias correlatas
de escassez, excesso, precariedade etc. não possuem significados fixos ou conhecidos
previamente, mas sim que se constituem enquanto formas de descrever e qualificar situações e
cenários que são objetos de uma incessante contestação. Busco também pensar de que maneira
acusações e explicações sobre a crise são mobilizadas para legitimar e deslegitimar não apenas
determinados sujeitos, mas também certas agendas e/ou projetos políticos.
Como ficará mais claro adiante, o embate em torno das causas e dos responsáveis pela
crise da saúde pública é marcado por uma dinâmica de troca de acusações de omissão, fraude e
calúnia que funciona como uma estratégia não apenas para estabelecer o que é “A verdade” e a
“realidade dos fatos”, mas também para direcionar os debates na esfera pública para
determinados assuntos. Uma vez que eu tenha me proposto a esquadrinhar essa disputa, as
denúncias de “mentira”; a imputação de “falsidade” ou “engodo” às declarações feitas por
distintos sujeitos; os dados e informações mobilizados por diferentes atores para sustentar suas
narrativas etc., se tornam, invariavelmente, materiais de pesquisa que precisam ser levados a
sério.
Entretanto, é preciso deixar claro que não tenho a intenção de “desmascarar” ou
“desvendar a verdade” sobre o que é dito acerca da crise, já que esse é, supostamente, o trabalho
de jornalistas e das contemporâneas agências de fact-checking8. Também não pretendo fazer
um exercício de comparação entre as diferentes “versões da crise” de modo a produzir uma
versão própria que se pretenda melhor e mais verdadeira que todas as outras, pois, como nos
dizem Teixeira, Cruvinel e Fernandes (2016), o papel do etnógrafo não é o de revelar a

8
O fact-checking – “checagem dos fatos”, em português – é uma técnica jornalística que vem ganhando projeção
internacional nos últimos anos. Ainda que esse seja um pressuposto básico da ética jornalística, a expressão ganhou
novos contornos com o surgimento de campanhas eleitorais baseadas em notícias falsas (também chamadas
popularmente de fake news). Mesmo que não me detenha mais detalhadamente sobre o assunto, considero
importante mencionar que o surgimento de agências de fact-checking está ligado a uma percepção de que alguns
políticos extrapolam a quantidade “aceitável” de mentiras que podem circular no jogo político, colocando em
cheque o regime democrático. Tal percepção vem sendo compartilhada por estudiosos da política em diferentes
lugares do mundo. Para análises das eleições de Donald Trump nos Estados Unidos, consultar McGranahan (2017),
Levitsky e Ziblatt (2018) e Runciman (2018). Para uma análise do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff no
Brasil, ver Teixeira, Cruvinel e Fernandes (2016).
75

“verdade” ocultada pela mentira, mas sim compreender os sentidos e usos da “mentira” e da
acusação de “mentiroso” no contexto pesquisado. Ambas as alternativas serviriam apenas para
reforçar a já mencionada construção da crise enquanto um momento da verdade (Roitman,
2014), ideia da qual procuro me afastar.
Atento às ressalvas desses autores, sigo então a proposta de mapeamento das
controvérsias (Latour, 2000) ou das disputas pelo enquadramento da realidade (Boltanski e
Thévenot, 1991) como ponto de partida da investigação. Nesse sentido, busco fazer um
mapeamento dos principais posicionamentos acerca da crise da saúde pública que começaram
a circular em diferentes plataformas midiáticas a partir de meados de 2014. Como mencionado
na introdução, elenco diferentes materiais de pesquisa para a composição desse mapeamento:
notícias de jornal, entrevistas, comunicados, informes oficiais, publicações em sites oficiais,
páginas de redes sociais, dados estatísticos disponibilizados pelas Secretarias de Saúde,
informações disponibilizadas sobre as contas públicas etc. Sobre esse ponto, considero
imprescindível fazer uma breve observação: ainda que eu tenha registrado em meus diários de
campo inúmeras passagens nas quais usuários e funcionários da CRLS falam da crise e dos seus
efeitos, optei por trabalhar principalmente com as informações obtidas através da pesquisa com
documentos, arquivos e acervos públicos nessa primeira parte da tese, deixando as vinhetas
etnográficas mais longas para os capítulos posteriores.
Em suma, é a partir de uma combinação entre materiais diversos – tais como
reportagens, entrevistas e dados dos portais de prestação de contas públicas – que procuro
montar um quadro que abarque os diferentes aspectos e versões da crise da saúde no Rio de
Janeiro, não somente entre os variados níveis de governo, órgãos, instituições e atores, mas
também ao longo dos últimos anos.
76

CAPÍTULO 1

“Não há recursos suficientes”:


as versões oficiais da crise da saúde segundo os três níveis de governo

A rede pública de unidades e serviços de saúde da cidade do Rio de Janeiro possui uma
particularidade que a difere da maioria dos outros municípios do Brasil. Por ter sido capital do
país até 1960, a cidade conta até hoje com inúmeras instituições de caráter “nacional”, cujo
financiamento e gestão estão sob responsabilidade de órgãos e/ou entidades federias, tais como
o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o próprio Museu Nacional. No que diz respeito ao
setor de Saúde, além de unidades gerenciadas pela Prefeitura e pelo Governo do estado, existem
também hospitais e institutos federais que compõem a rede.
Para entender como se deu o desenvolvimento da “crise da saúde no Rio de Janeiro”, é
necessário abordar – ainda que de modo breve e resumido – como o Sistema Único de Saúde
(SUS) é organizado e operacionalizado. Alguns dos “princípios organizacionais” do SUS são
Regionalização, Hierarquização e Descentralização. Em conjunto, eles dizem respeito ao
processo de alocação de recursos, divisão de poder e distribuição de responsabilidades e
competências. Nesse sentido, a conformação tanto do SUS quanto da Política Nacional de
Assistência Farmacêutica (PNAF) obedecem a uma “lógica de complexidade tecnológica
crescente”.
Assim, os municípios são responsáveis pela gestão dos serviços de Atenção Básica e
pela disponibilização dos medicamentos listados na Relação Municipal de Medicamentos
Essenciais (REMUME). Além disso, eles devem colaborar com políticas de saúde nacionais e
investir no setor um mínimo de 15% de sua arrecadação total. No Rio de Janeiro, a rede
municipal de saúde é composta por Clínicas da Família (CF), Centros Municipais de Saúde
(CMS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Coordenações de Emergências Regional
(CER), algumas Unidades de Pronto Atendimento (UPA), policlínicas, hospitais, institutos e
maternidades.
Ao Governo do estado cabe a definição das unidades de referência e o gerenciamento
dos locais de atendimentos complexos, bem como a dispensação de medicamentos que constam
77

na lista do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica (CEAF). Os estados são


responsáveis também pela formulação de políticas de saúde próprias e devem investir no setor
um mínimo de 12% de sua arrecadação total. A rede estadual de saúde do Rio de Janeiro é
constituída pelo Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ), UPAs, Postos de Assistência
Médica (PAM), , hospitais, institutos e instituições dedicadas à realização de exames, como o
Rio Imagem e o Laboratório Central Noel Nutels (LACEN-RJ). No que diz respeito à
dispensação de medicamentos, o Governo do estado é o responsável por gerenciar a Farmácia
Estadual de Medicamentos Especiais (RIOFARMES).
A União tem o dever de coordenar as políticas nacionais de saúde, elaborar e atualizar
os Protocolos Clínicos e Diretrizes e Terapêuticas (PCDT), financiar serviços de média e alta
complexidade, gerir a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec)
etc. Em suma, planejar e fiscalizar o SUS e suas ramificações em todo o país. Quanto à
assistência farmacêutica, além da manutenção do programa Farmácia Popular, a União é
responsável por definir a lista da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME),
bem como por adquirir e distribuir para os postos de dispensação os medicamentos que fazem
parte de políticas nacionais de saúde, tais como a de AIDS, de combate a diabetes etc. Sobre o
financiamento, o Ministério da Saúde responde por metade dos recursos destinados ao setor.
No Rio de Janeiro, a rede federal de saúde é formada por seis Hospitais Federais: Andaraí,
Bonsucesso, Cardoso Fontes, Lagoa, Ipanema e Servidores do Estado); e por três Institutos
Nacionais: do Câncer (INCA), de Cardiologia (INC) e de Traumatologia e Ortopedia (INTO).
Como discutirei ao longo dessa primeira parte da tese, a “crise da saúde” não é um
episódio homogêneo. Os efeitos da crise não foram os mesmos em todas as unidades públicas
de saúde e nem foram sentidos ao mesmo tempo. Os políticos e gestores de cada uma das esferas
da administração pública não defendem as mesmas causas e soluções para a crise. Pelo
contrário, há uma extensa troca de acusações entre eles. Na medida em que são formuladas por
agentes de Estado que ocupam formalmente determinados cargos, denomino essas construções
discursivas de versões oficiais da crise.
Por esses motivos, divido esse primeiro capítulo em três seções que correspondem aos
três níveis de governo que financiam e coordenam unidades de saúde no Rio de Janeiro. Na
primeira, mapeio a troca de acusações entre prefeito e ex-prefeito acerca de quem seria o
culpado e quais seriam as causas da crise da saúde no âmbito municipal. Na segunda parte, faço
um levantamento das explicações para a crise dadas pelo Governo do estado do Rio de Janeiro.
Na última seção, descrevo como o Governo Federal e o Ministério da Saúde entendem os
“problemas do SUS”.
78

1.1 – “O problema vem de antes”: a crise segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro

Conforme dito anteriormente, adoto um recorte temporal relativamente móvel para


compreender como se construiu a ideia de crise da saúde pública no Rio de Janeiro, mas tendo
como base o intervalo entre meados de 2015 e o fim de 2018. Durante esse período, houve a
troca do comando da Prefeitura do Rio de Janeiro após as eleições de 2016. Por conta disso,
essa seção encontra-se dividida em duas partes, principalmente porque a substituição de
Eduardo Paes por Marcelo Crivella representou uma descontinuidade e uma guinada em direção
a um projeto político diferente daquele que foi implementado pelo seu antecessor.

Eduardo Paes (prefeito da cidade do Rio de Janeiro entre 01/2009 e 12/2016)

Eduardo Paes ocupou diferentes cargos no Rio de Janeiro ao longo da sua vida política:
subprefeito da Zona Oeste, vereador, deputado federal, secretário de Turismo e, por fim, venceu
o pleito para prefeito da cidade nas eleições de 2008, permanecendo no cargo por dois mandatos
seguidos (2009-2012 e 2013-2016). Em entrevistas e coletivas de imprensa, Paes sempre
descreve sua gestão como sendo uma das que mais investiu na rede pública de saúde nas últimas
décadas. De acordo com os relatórios da Prefeitura, durante o seu governo foram inauguradas
115 Clínicas da Família9 na cidade: a primeira em novembro de 2009, no bairro de Realengo,
e a 115ª no final de dezembro de 2016, no bairro do Méier. Segundo as notas oficiais publicadas
pela Prefeitura e as informações disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a
criação dessas Unidades Básicas de Saúde (UBS) representou um importante passo na expansão
da Estratégia de Saúde da Família10 (ESF) no município do Rio. Assim, a população coberta
pela ESF na cidade saltou de 3,5% em 2008 para 70,4% em 2016.

9
As Clínicas da Família são Unidades Básicas de Saúde (UBS) responsáveis pela Atenção Primária na cidade do
Rio de Janeiro. As Clínicas estão alinhadas com a política nacional de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e tem
como foco de suas ações a prevenção de doenças, promoção da saúde e diagnóstico precoce de patologias. Para
mais informações sobre o funcionamento de uma Clínica da Família, consultar a etnografia de Nogueira (2016).
10
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) é uma iniciativa do Departamento de Atenção Básica do Ministério da
Saúde (DAB-MS) que visa reorganizar os procedimentos de Atenção Básica no país de acordo com os preceitos
do SUS. A ESF consiste na criação de equipes de Saúde da Família (eSF) que contam com profissionais de saúde
de distintas formações e que atendam parcelas da população (recomenda-se que cada equipe fique responsável
pelo atendimento de até 3 mil pessoas, podendo chegar a 4 mil dependendo das “condições de vulnerabilidade”
das populações e dos “territórios”) em seus locais de moradia e/ou em regiões próximas. Segundo o DAB, o
objetivo da ESF é “ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades, além de
propiciar uma importante relação custo-efetividade”.
79

Gráfico 1 – Evolução da Cobertura da ESF na cidade do Rio de Janeiro (2008-2017)

80%
70,4% 70,6%
70%
60%
50,8%
45,6% 48,7%
50% 44,2%
40% 37,8%

30% 24,6%
20%
9,2%
10% 3,5%
0%
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Fonte: elaboração própria a partir de dados da SMS.

Nas diferentes ocasiões em que foi questionado ou criticado por direcionar recursos para
a realização de obras de infraestrutura com intenção de “deixar a cidade pronta” para os
chamados “megaeventos” – a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 – e,
consequentemente, ter levado o município do Rio à crise, Paes argumentou que durante os seus
oito anos como prefeito, R$ 65 bilhões foram destinados aos setores de Saúde e Educação. No
início de 2016 – logo após a decretação do estado de emergência na saúde pública do Estado
do Rio de Janeiro –, o antigo prefeito afirmou que “para cada um real gasto com instalações
olímpicas, 59 haviam sido investidos em Educação e 49 em Saúde”. Essa informação foi
posteriormente verificada por uma agência de fact-checking por meio do portal Rio
Transparente e classificada como “exagerada”, dada à discrepância entre os valores
mencionados por Paes e aqueles que constam na prestação de contas públicas.
Como abordarei mais adiante, em junho de 2016, o governador em exercício decretou
“estado de calamidade pública” no Rio de Janeiro. No decreto, Francisco Dornelles afirmou
que devido à “grave crise econômica” que assolava o estado, seria preciso tomar “medidas
duras” no campo financeiro com o objetivo de cumprir as obrigações pactuadas para realização
dos Jogos Olímpicos e “impedir um total colapso na Saúde, Segurança, Educação e Mobilidade
do Rio de Janeiro”. Poucos dias depois, Eduardo Paes convocou uma coletiva de imprensa e foi
taxativo ao dizer que os recursos destinados aos Jogos Olímpicos não tinham qualquer ligação
com a crise financeira do Governo do estado. No evento, ele também afirmou que as finanças
municipais estavam saudáveis e questionou a interpretação dos especialistas que indicavam
uma conexão entre os investimentos nos Jogos e a crise econômica estadual. Em sua
80

apresentação, Paes argumentou que a Prefeitura era responsável pela execução de 93,5% das
obras para os Jogos Olímpicos e que, por essa razão, somente a gestão municipal poderia ser
afetada por essa questão, o que não estava acontecendo naquele momento.
Em julho de 2016, o então secretário de estado de Saúde, Luiz Antônio Teixeira, afirmou
que seria difícil manter todas as unidades estaduais de saúde funcionando e que alguns serviços
poderiam ser interrompidos, inclusive durante os Jogos Olímpicos. Diante dessa declaração,
Eduardo Paes teceu uma série de críticas ao Governo do estado. Para ele, o problema na saúde
pública do estado do Rio de Janeiro seria a “falta de gestão” e a inabilidade do governador e
sua equipe para elaborar um “planejamento eficiente”. Em um tom de indignação e desabafo,
Paes publicou em sua página oficial no Facebook um texto em que dizia que sua “paciência
tem limite”. Na reclamação, o antigo prefeito diz que tanto o Governo Federal quanto a
Prefeitura já haviam ajudado o Governo do estado como poderiam ao transferir recursos
emergenciais e municipalizar os hospitais estaduais Rocha Faria e Albert Schweitzer,
respectivamente. Com essas “ajudas”, caberia ao Governo do estado “tomar vergonha na cara
e fazer a sua parte” para que os Jogos transcorressem sem problemas, uma vez que a Prefeitura
estaria cumprindo com todas as suas obrigações. Paes também classificou a declaração de Luiz
Antônio Teixeira como “absurda” e sugeriu que se mesmo após o recebimento dos recursos
federais, as emergências dos hospitais estaduais fechassem, seria o caso do Secretário pedir
demissão. Segundo ele, o momento necessitava de “mais ação e menos desculpas” e, nessa
situação, o papel de um gestor seria o de “gerenciar” e “economizar custos”.
Nas eleições de 2016, Eduardo Paes apoiou o candidato Pedro Paulo, que foi secretário
executivo da Coordenação de Governo da Prefeitura desde meados de 2015. Mesmo com a
ajuda de Paes na campanha eleitoral e as promessas de continuidade de “crescimento” e
“desenvolvimento” da cidade, Pedro Paulo saiu da disputa pela Prefeitura do Rio de Janeiro já
no primeiro turno.
Próximo do fim de seu segundo mandato, em dezembro de 2016, Eduardo Paes
concedeu uma entrevista na qual afirmou que o próximo prefeito receberia a administração
“com as fianças no azul e as contas pagas”. Contudo, algumas informações não foram
mencionadas por ele naquele momento e nem ganharam muito destaque na época. Uma delas é
que o orçamento aprovado para o ano de 2017 já previa uma redução de R$ 3 bilhões (de R$
32,5 bilhões em 2016 para R$ 29,5 bilhões em 2017), além do crescimento do montante
comprometido para o pagamento de dívidas da Prefeitura. Em 2016, esse montante ficou em
R$ 989,5 milhões, para os anos seguintes, a previsão, na época, era de R$ 1,3 bilhão em 2017,
R$ 1,56 bilhão em 2018, R$ 1,78 bilhão em 2019 e R$ 1,77 bilhão em 2020. Outra questão não
81

abordada foram os empréstimos realizados pela Prefeitura cujas primeiras parcelas seriam
pagas a partir dos anos de 2017, 2018 e 2019, e que se estenderiam por todo o mandato do
próximo prefeito. Tais empréstimos, cujos valores variam entre R$ 247 milhões e R$ 1,3 bilhão,
foram tomados para executar algumas das obras que são apresentadas pelo antigo prefeito como
alguns dos grandes feitos de sua gestão, como, por exemplo, a pavimentação dos bairros de
Santa Cruz, Sepetiba e Guaratiba, todos na Zona Oeste da cidade.

Marcelo Crivella (prefeito da cidade do Rio de Janeiro a partir de 01/2017)

Marcelo Crivella foi eleito prefeito do Rio de Janeiro no segundo turno das eleições de
2016 contra o candidato Marcelo Freixo. Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD),
Crivella teve seu primeiro cargo político quando foi eleito Senador pelo estado do Rio de
Janeiro em 2002. Com sua reeleição para o Senado em 2010, ele permaneceu no cargo até
assumir a Prefeitura, em janeiro de 2017. Crivella também se candidatou aos cargos de prefeito
nas eleições de 2008 e de governador nas eleições de 2006 e 2014, não chegando ao 2º turno
em nenhum dos pleitos.
Se até 2016 a crise parecia estar restrita às unidades federais e estaduais de saúde, em
2017 seus efeitos começaram a ser sentidos de maneira significativa nas Clínicas da Família
(CF), Centros Municipais de Saúde (CMS) e hospitais municipais, afetando não apenas a
Atenção Básica, mas também as grandes emergências geridas direta e indiretamente pela
Prefeitura. No primeiro ano do governo de Crivella, a saúde pública foi um dos temas mais
questionados e criticados por opositores, pela mídia e pela população. A falta de medicamentos
e insumos básicos – tais como remédios para hipertensão, fraldas geriátricas, fórmula alimentar
infantil etc. – tanto nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) quanto nos hospitais de grande porte
foi denunciada semanalmente ao longo do ano de 2017.
Cerca de seis meses após assumir a Prefeitura, Crivella negou que a saúde pública
municipal estivesse em crise. Questionado ao vivo por repórteres, ele afirmou que a crise não
era da “saúde pública”, mas sim das diversas Organizações Sociais (OS) de Saúde responsáveis
por gerir as CF na cidade do Rio de Janeiro. Ao culpar as OS pela crise, Crivella estava dizendo
que apenas as unidades indiretamente gerenciadas pela prefeitura estavam enfrentando
problemas e que os hospitais públicos administrados pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS)
estavam, supostamente, funcionando normalmente. Nas palavras do prefeito: “Veja, faltou
dipirona nas clínicas da família, mas não faltou nos hospitais. Vamos lembrar que a crise não é
82

na saúde, a crise é das OS. A crise não é do Souza Aguiar, não é dos grandes hospitais” (G1
Rio, 2017b).
Essa declaração deflagrou uma extensa troca de acusações entre o prefeito e as empresas
encarregadas de gerir as Clínicas da Família. Em resposta, as OS alegaram que a crise se
alastrou para a rede municipal por causa da “má administração” de Crivella, acusando o prefeito
de descumprir acordos e atrasar o pagamento dos valores estabelecidos contratualmente desde
o princípio de sua gestão. Crivella, por sua vez, defendeu-se dizendo que quem não estaria
cumprindo com as obrigações contratuais seriam as OS, que, além de não executar o previsto
no plano de metas, estariam com os quadros de funcionários inchados.
As trocas de acusações não se deram apenas entre Crivella e as OS, mas também entre
o prefeito em exercício e o seu antecessor. Crivella alegou que o problema na saúde era mais
antigo e que a situação de crise pela qual a cidade estava passando era um reflexo da “má
gestão” do prefeito anterior, que, além de ter deixado dívidas para a Prefeitura, havia expandido
a cobertura dos serviços de Atenção Básica em saúde de maneira “irresponsável”, abrindo mais
Clínicas da Família e contratando mais equipes do que o orçamento previsto permitiria. Outra
“irresponsabilidade” de Eduardo Paes relativa ao aumento no número de Clínicas da Família
denunciada por Crivella era a de que o antigo prefeito havia inaugurado unidades que ainda não
estavam prontas e com equipes que era sabido que não se manteriam. Segundo o atual prefeito,
Paes teria aberto Clínicas para impulsionar a candidatura de Pedro Paulo mesmo sabendo de
antemão que estas não funcionariam por muito tempo após o início das atividades.
De acordo com Crivella, as ações “irresponsáveis” de Paes tinham fins eleitoreiros, pois
teriam sido cometidas para que ele pudesse construir uma imagem de “bom gestor” perante a
população carioca. Em uma polêmica reunião com pastores e outros líderes evangélicos,
Crivella comparou e diferenciou Eduardo Paes do antigo governador do estado Sérgio Cabral.
Em sua avaliação, os dois comandaram a cidade e o estado do Rio de Janeiro, respectivamente,
a partir de diferentes “projetos pessoais” – e não projetos políticos “técnicos” e “impessoais”
como se espera dos gestores em regimes burocráticos. Enquanto Paes teria um “projeto de
poder” específico, que beirava a megalomania e que levou o antigo prefeito a querer elevar seu
próprio nome usando o dinheiro público de modo inconsequente; Já Cabral teria um projeto de
enriquecimento pessoal e por isso havia “assaltado os cofres públicos”. Para Crivella, Paes não
teria necessidade de um projeto de enriquecimento por ter uma origem de classe alta.
Em um balanço feito pela equipe do prefeito após 100 dias de gestão – isto é, em meados
de abril de 2017 – foi apresentado que a gestão anterior havia deixado um déficit de R$ 3,2
bilhões para o orçamento do primeiro ano do governo Crivella, além de R$ 320 milhões em
83

restos a pagar e R$ 426 milhões em dívidas de bens e serviços. É importante ressaltar que, se
no mês de julho o prefeito negou publicamente a existência da crise na saúde, na ocasião da
apresentação desse balanço – que ocorreu alguns meses antes – o prefeito havia classificado a
situação como uma “crise fecunda, redentora e renovadora”, pois seria uma “crise de exaustão”
e de “cansaço” em relação ao modo como políticos e administradores vinham conduzindo a
máquina pública nas últimas décadas. Ou seja, seria uma crise causada pela “velha política”
corrupta e mentirosa, de modo a posicionar sua própria eleição enquanto uma “oportunidade”
para interromper esse ciclo e instaurar novas formas de “fazer política”.
Além das “dívidas herdadas”, Crivella também responsabilizava os Governos estadual
e Federal pela crise na saúde municipal, pois os principais cortes orçamentários teriam sido
provocados pela diminuição do montante repassado pelas referidas esferas para a gestão
municipal. Com relação ao Governo Federal, Crivella afirmou que a esfera recolhe cerca de R$
120 bilhões em impostos só no município do Rio de Janeiro, mas que repassa apenas R$ 4
bilhões para a Prefeitura, quantia que ele classifica como “injusta” e “desproporcional”.
No que diz respeito à Saúde, o repasse por parte do Governo Federal é feito através de
transferências diretas de recursos do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para o Fundo Municipal
de Saúde (FMS). Ao consultar a página do FNS, é possível perceber que o montante entregue
em 2017 sofreu uma redução de cerca de R$ 600 milhões, como fica explícito no gráfico a
seguir, elaborado a partir das informações disponíveis sobre os repasses realizados no período
entre 2014 e 2018:

Gráfico 2 – Total líquido dos repasses do FNS para o FMS (2014-2018)


R$1,50
Bilhões

R$1,45

R$1,40

R$1,35

R$1,30

R$1,25
2014 2015 2016 2017 2018

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do FNS.


84

Pouco depois da metade do ano 2017, a escassez de medicamentos nas Clínicas da


Família atingiu um ponto particularmente dramático. No início do mês de agosto, a Prefeitura
anunciou que fecharia 11 Clínicas na região de Jacarepaguá e Barra da Tijuca. Esse anúncio
deu início a uma série de manifestações realizadas por profissionais de saúde em diferentes
pontos do Rio de Janeiro, como será abordado mais adiante. Durante esse período, houve uma
forte pressão da imprensa para que o prefeito se pronunciasse sobre a questão. Ao longo de
semanas, jornalistas permaneceram nas portas de diversas unidades de saúde e foram publicadas
diariamente fotos, vídeos e entrevistas com pacientes e profissionais tanto nos telejornais
quanto nos jornais impressos sobre o “caos” na rede municipal de saúde. Sem que o prefeito
aparecesse pessoalmente para prestar esclarecimentos, os veículos de comunicação divulgavam
que as respostas oferecidas pela assessoria de Crivella eram todas no sentido de alegar o
desconhecimento das situações retratadas pelos jornalistas ou afirmar que as “soluções” já
haviam sido providenciadas, sem, no entanto, explicitar quais seriam estas ou comprová-las de
algum modo.
Nesse cenário, de um lado estavam os profissionais de saúde denunciando a
precariedade das condições de trabalho nos hospitais e clínicas e pedindo um posicionamento
por parte da Prefeitura; de outro, prefeito e gestores negando a situação ou afirmando que tudo
já estava em vias de se normalizar. Nesse embate pelo estabelecimento da “verdade”, ações
foram tomadas por ambas as partes. Como trarei mais adiante, os ativistas pela saúde pública
passaram a compartilhar diversas matérias, fotos, depoimentos etc. utilizando a hashtag11
“#crivellamente”. Do lado de Crivella, sua assessoria de imprensa abriu uma subpágina em seu
site oficial chamada “Espalhe a verdade”. Reproduzo na íntegra o texto que explica a existência
desse espaço no portal do prefeito:

As medidas do governo Marcelo Crivella, como corte de secretarias, de


verbas para o carnaval e veto ao aumento de passagens incomodam
muitas pessoas. Indivíduos inescrupulosos, de forma frequente e
ostensiva, vêm divulgando boatos sobre sua gestão, na mídia e na
internet. O objetivo desta página é esclarecer os fatos e espalhar a
verdade.
Acompanhe e divulgue esta página. Sua colaboração é fundamental
para manter a boa imagem do nosso gestor.
Desminta o boato!

11
Uma hashtag é composta pelo símbolo “#” e as palavras-chave de um assunto sobre o qual se deseja
compartilhar. Nas redes sociais, a utilização de hashtags serve para indexar publicações e permitir que as pessoas
acessem um conjunto variado de conteúdos relacionados ao tema. No caso da hashtag “#crivellamente”, sua
utilização permitiu que publicações feitas e/ou compartilhadas por diferentes perfis fossem agrupadas em uma
listagem acessível ao público.
85

Em sua defesa, Crivella diz que é alvo de perseguição por parte de seus opositores e que
vem sendo impedido de governar desde o início de sua gestão. De acordo com sua assessoria,
diferentes sujeitos, instituições e veículos de informação publicam e/ou reproduzem “mentiras”
acerca da gestão do prefeito com o intuito de prejudicar a reputação de Crivella entre a
população carioca.
No início de dezembro de 2017, após muita pressão da imprensa, dos movimentos
organizados de profissionais de saúde e de órgãos como o Ministério Público e a Defensoria
Pública, Crivella autorizou um repasse emergencial de R$ 100 milhões para a compra de
medicamentos básicos que estavam em falta nas unidades de saúde do munícipio. No dia 15
daquele mês, a Prefeitura assinou um acordo judicial com a Defensoria no qual se comprometeu
a regularizar até o último dia do ano não somente os salários dos funcionários, mas também os
estoques de medicamentos.
Como mencionado anteriormente, Crivella alegou que o orçamento previsto para o seu
primeiro ano de gestão já previa um déficit de R$ 3,2 bilhões em relação ao ano anterior. Sobre
esse ponto, destaco que as informações sobre as contas públicas disponibilizadas pela
Prefeitura, a evolução do montante previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) para a Saúde e
os valores que constam na prestação de contas do município entre 2014 e 2018 são os seguintes:

Gráfico 3 – Comparativo das despesas de Saúde do município do Rio de Janeiro (2014-2018)


R$6,5
Bilhões

R$6,0

R$5,5

R$5,0

R$4,5

R$4,0

R$3,5

R$3,0

R$2,5

R$2,0

R$1,5

R$1,0

R$0,5

R$0,0
2014 2015 2016 2017 2018

Previsto na LOA Dotação atualizada Despesas liquidadas

Fonte: Elaboração própria a partir de dados disponíveis no sítio da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
86

Duas questões saltam aos olhos quando observamos esse gráfico12. A primeira é que,
em termos do orçamento previsto, a Saúde não teve o déficit mencionado por Crivella: em 2016
esse valor era de aproximadamente R$ 5 bilhões e em 2017 ele passou para cerca de R$ 5,5
bilhões. A segunda é que 2017 foi o primeiro ano em que o valor total das despesas liquidadas
ficaram consideravelmente abaixo do que consta na LOA e da dotação atualizada: cerca de R$
1 bilhão a menos do que o previsto – o que explicaria, ao menos parcialmente, a penúria
vivenciada nas unidades de saúde do município ao longo daquele ano.
Ao final do primeiro ano do mandato de Crivella, a Agência Lupa de checagem de fatos
publicou um balanço do cumprimento das promessas feitas pelo prefeito em seu discurso de
posse. No que diz respeito à saúde pública municipal, a agência apontou uma série de
contradições entre o que o prefeito havia dito no início de 2017 e os dados enviados pela SMS.
Em um pedido de direito de resposta publicado pela própria agência, a assessoria de imprensa
da Prefeitura repudiou as categorias utilizadas para avaliar o que foi dito pelo Crivella, bem
como criticou o fato da checagem ter sido feita a partir do discurso de posse e não do Plano de
Governo protocolado no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) na ocasião de proposição da
candidatura. Segundo assessores, a agência não deveria utilizar as etiquetas “falso”,
“verdadeiro”, “contraditório” etc. para classificar as declarações, mas sim as categorias
“cumprido”, “não cumprido” e “cumprido parcialmente”.
Baseando-se nas propostas para a saúde contidas no Plano de Governo, a assessoria
enviou para a agência um e-mail detalhando qual o status de cada um dos compromissos
assumidos por Crivella. Nessa mensagem, foi declarado que o prefeito havia cumprido
integralmente apenas duas de suas promessas: a recuperação do programa Cegonha Carioca13
e a auditoria das OS. A vistoria dos acordos feitos entre a Prefeitura e as OS culminou na
revogação do contrato com o Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (IABAS) – a OS
responsável por gerenciar o Hospital Municipal Rocha Faria – por conta do não cumprimento

12
É preciso pontuar que até o meados de fevereiro de 2019 a prestação de contas de 2018 ainda não estava
disponível ao público. Quanto às informações constantes no gráfico, destaco que o orçamento previsto na LOA
diz respeito ao montante calculado antecipadamente e tido como necessário para manter funcionando tudo aquilo
que é gerido pela Saúde: instituições, programas, medicamentos etc.; a “dotação atualizada” equivale à quantia
autorizada para atender a uma determinada programação orçamentária; e as “despesas liquidadas” se referem a
todas as despesas cuja etapa de verificação do cumprimento – isto é, se o material adquirido foi entregue, se o
serviço contratado foi prestado etc. – já foi realizada.
13
O programa Cegonha Carioca tem o objetivo de “humanizar” e garantir o “melhor cuidado” para a mãe e o
bebê, de modo a reduzir a mortalidade materno-infantil. Dentre as atividades do programa estão o
acompanhamento da gestante do pré-natal ao parto; a disponibilização do local onde será realizado o parto até
cinco meses antes; o transporte da parturiente até a maternidade; e a participação nas atividades educativas do
programa, que tem como “presente final” o recebimento de um “enxoval cegonha”.
87

das metas estabelecidas. Outras promessas haviam sido cumpridas apenas parcialmente, como
a implantação de Coordenações de Atendimento Regional (CERs) ao lado dos Hospitais
Municipais Salgado Filho, Rocha Faria e Albert Schwaitzer (o que foi feito somente nos dos
últimos); o atendimento de todos que estavam na fila de espera de cirurgias (o que não
aconteceu, apesar de os mutirões de cirurgia organizados pela Prefeitura terem aumentado em
10% o número de cirurgias realizadas em 2017 em comparação ao ano anterior); e o
melhoramento da política de saúde de família, que, de acordo com o documento, era um
compromisso da gestão de Crivella não construir nenhuma Clínica da Família nova até que
todas estivessem funcionando plenamente.
O documento também enumera quais foram os compromissos assumidos para o
primeiro ano de governo não cumpridos: 1) a ampliação em 20% o número de leitos disponíveis
nas unidades municipais de saúde; 2) o estabelecimento de um novo plano de cargos e salários
para os profissionais baseado na meritocracia e no cumprimento de metas de produtividade; 3)
o aumento do orçamento destinado à Saúde em R$ 250 milhões. Sobre as promessas não
cumpridas, as justificativas oferecidas pela assessoria do prefeito são todas externas: o aumento
do orçamento e da quantidade de leitos não foi possível por conta do corte no valor repassado
pela União; pelo comprometimento do orçamento com o pagamento de empréstimos tomados
pela gestão anterior; e pela queda na arrecadação de impostos. Já a reestruturação do plano de
cargos e salários não ocorreu porque houve forte resistência por parte dos profissionais de
saúde.
Nos primeiros dias de 2018, a Prefeitura do Rio de Janeiro publicou uma nota na qual
buscava explicar os motivos que ocasionaram a crise na rede municipal de saúde no ano anterior
e as expectativas para o ano que estava começando. Reproduzo aqui parte dessa nota:

Toda essa situação orçamentária herdada causou impactos e muitas


dificuldades na gestão de saúde. Mesmo assim, a Prefeitura nunca
deixou de investir no setor, tendo inclusive inaugurado três clínicas da
família neste primeiro ano e as obras de outras estão sendo concluídas,
para que mais unidades possam ser abertas. Em 2017, até 27 de
dezembro, foram empenhados para a pasta R$ 4.812.427.819,85
(sujeito a atualização) e, para 2018, com previsão de aumento da
arrecadação do município, o orçamento da Saúde, conforme a Lei
Orçamentária Anual (LOA) aprovada na Câmara de Vereadores, será
de R$ 6.011.397.303, dos quais cerca de R$ 353 milhões para
investimentos em melhorias e modernização da rede própria, entre
empréstimos e recursos próprios. Além disso, há expectativa de mais
R$ 50 milhões, resultante de emendas parlamentares federais e já
divulgados pelo Ministério da Saúde. (RJTV, 2018, grifos meus).
88

Ao longo do ano de 2018, a situação da saúde na cidade do Rio de Janeiro deu poucos
sinais de melhora. Logo nos primeiros dias de janeiro, o prefeito declarou que o Governo
Federal havia repassado R$ 60 milhões que seriam investidos no setor. Desse montante, R$ 45
milhões seriam destinados exclusivamente à compra de equipamentos e os R$ 15 milhões
restantes seriam utilizados para a realização de procedimentos de média e alta complexidade,
tais como as cirurgias de catarata. Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou que
embora a expectativa orçamentária de 2018 fosse melhor que a do ano anterior e que o
abastecimento das unidades com medicamentos e insumos já havia sido solucionado, o órgão
ainda enfrentaria dificuldades na regularização do que era devido aos profissionais – salários,
13º, férias, rescisão de contrato etc. – nos primeiros meses do ano. Diante do não cumprimento
do acordo judicial feito entre a Prefeitura e a Defensoria Pública para o pagamento dos salários
atrasados e o reestabelecimento de condições mínimas de trabalho, os médicos da Atenção
Primária decidiram entrar em greve no final do mês de janeiro.
No dia 20 de fevereiro, o prefeito anunciou um corte de R$ 367 milhões no orçamento
da Saúde. Por volta da metade do ano, o corte já havia atingido a marca dos R$ 800 milhões, o
que fez com que o então secretário municipal de Saúde, Marco Antonio de Mattos, pedisse
demissão no final do mês de julho. Na semana anterior, o presidente da Empresa Pública de
Saúde do Rio de Janeiro (RioSaúde)14, Ronald Munk, também já havia solicitado seu
desligamento do cargo. Vale mencionar que os pedidos de demissão ocorreram ao mesmo
tempo em que a polêmica do “caso Márcia” ocupava boa parte dos noticiários da cidade do Rio
de Janeiro.
De acordo com o que foi divulgado por diferentes veículos de comunicação, o prefeito
Marcelo Crivella recebeu líderes de denominações evangélicas em uma reunião chamada “Café
da Comunhão”, realizado na sede da Prefeitura. No evento, cujo convite foi feito pela rede do
Whatsapp no dia anterior e não constava na agenda oficial do prefeito, a assessoria solicitou
que os participantes não utilizassem seus celulares e não fotografassem as pessoas presentes.
As reportagens afirmam que Crivella ofereceu uma série de vantagens aos pastores e fiéis
presentes. Dentre essas, estaria a agilização e priorização de fiéis na marcação e realização de
cirurgias de catarata, varizes e vasectomia. Nos textos e vídeos publicados, Crivella aparece
dizendo:

14
A Empresa Pública de Saúde do Rio de Janeiro foi criada em 2013, durante a gestão de Eduardo Paes. A
RioSaúde é vinculada à Secretaria Municipal de Saúde e atualmente administra cinco unidades de emergência no
município: o Hospital Municipal Rocha Faria, a CER Barra e as UPAs da Cidade de Deus, Rocha Miranda e
Senador Camará.
89

Nós estamos fazendo o mutirão da catarata. Contratei 15 mil cirurgias


até o final do ano. Então, se os irmãos tiverem alguém na igreja com
problema de catarata, se os irmãos conhecerem alguém, por favor falem
com a Márcia. É só conversar com a Márcia que ela vai anotar, vai
encaminhar, e daqui uma semana ou duas eles estão operando. [...] A
outra, são varizes. A maioria são mulheres que estouram uma variz na
perna e abre uma ferida que não fecha. E a senhora apenas troca o
curativo. Hoje existe uma maneira, injeta na veia dela uma espuma
medicinal e fecha a ferida, uma bênção. Também, por favor, falem com
a Márcia. E tem a vasectomia para os homens, estamos zerando a fila.
(Bom dia Rio, 2018; Abbud, 2018; Barbon e Vetorazzo, 2018).

As declarações do prefeito repercutiram durante algumas semanas e teve como


consequência pedidos de impeachment de Crivella por parte da oposição e uma decisão de
caráter liminar que proibiu o prefeito de utilizar prédios públicos para “atividades de interesses
pessoais ou de algum grupo”. Em resposta, a assessoria de comunicação da Prefeitura publicou
na já mencionada página “Espalhe a Verdade” do site do prefeito um texto no qual classificou
as reportagens como fake news e “acusação injusta”, negando que Crivella tivesse oferecido
quaisquer tipos de vantagens aos pastores evangélicos e que a reunião fazia parte de uma
“agenda secreta”. Segundo os assessores, o evento tinha o objetivo de prestar contas e divulgar
importantes serviços para a sociedade e que o prefeito já havia se reunido durante o seu mandato
com diferentes grupos e organizações, religiosos e laicos.
Em relação ao pedido de impeachment, a assessoria afirmou que Crivella recebeu a
notícia “com tranquilidade”. Em nota, o prefeito afirmou que essa atitude era parte do jogo
político da oposição e que tinha certeza de que tanto a Câmara dos Vereadores quanto o
Ministério Público saberiam “separar o que é realidade do que é manipulação”. A votação
ocorreu no dia 12 de julho de 2018 na Câmara dos Vereadores e resultou em 29 votos contra e
16 a favor, de modo que o pedido foi rejeitado. Quanto à proibição de utilização dos prédios
públicos, a Procuradoria Geral do Município (PGM-Rio) recorreu ao Supremo Tribunal Federal
(STF) para que a decisão do juiz da 7ª Vara de Fazenda Pública do Rio fosse revista. Em
dezembro de 2018, o Ministro do STF Dias Toffoli suspendeu a liminar afirmando não haver
evidências que comprovassem que Crivella estaria utilizando seu cargo de modo ilegal.
No final do mês de agosto, a gestão de Crivella foi novamente questionada pelos meios
de comunicação após a morte de uma senhora de 77 anos que aguardou por 18 dias uma cirurgia
cardíaca de emergência no Hospital Municipal Miguel Couto. O prefeito contestou os
questionamentos e respondeu que, apesar de lamentar e “pedir a Deus” que consolasse a família,
os atendimentos de “alta complexidade” – como é o caso das cirurgias cardíacas – seriam de
90

responsabilidade da rede federal de saúde. Nesse episódio, Crivella defendeu-se dizendo que
era injusto tanto cobrar da Prefeitura uma solução para o problema, quanto criticar as unidades
municipais de saúde por questões que estão fora de sua alçada.
Em outubro de 2018, após mais de uma semana de reportagens diárias sobre a situação
de precariedade vivenciada em diferentes unidades de saúde no Rio de Janeiro, a Defensoria
Pública da União (DPU) sugeriu que o prefeito decretasse estado de calamidade na saúde
pública do município após o período eleitoral. Durante uma manhã de inspeções realizada por
defensores e promotores do Ministério Público Federal (MPF) em hospitais públicos, foi
constatado que as condições nas quais se encontravam as instituições visitadas seriam
suficientes para configurar um quadro de “calamidade pública”.
A recomendação da Defensoria se deu após diversas manifestações e greves terem sido
convocadas por profissionais de saúde por conta dos mais de dois meses de salários atrasados
e das péssimas condições de trabalho enfrentadas. Na parte da tarde daquele mesmo dia,
diferentes jornais noticiaram que Crivella teria reagido de forma inesperada. Normalmente
calmo e tranquilo, o prefeito ficou irritado quando foi questionado em uma coletiva de imprensa
sobre a recomendação dos defensores. De acordo com o texto publicado, Crivella teria
respondido aos gritos que a Defensoria Pública “não tem moral para colocar o dedo na sua cara”
(Werneck, 2018). Por conta do contexto de período eleitoral, Crivella acusou o defensor público
Daniel Macedo de “agir politicamente” – em seu raciocínio, uma “ação política” seria o oposto
de uma “ação técnica” ou de uma “ação profissional”. Na ocasião, o prefeito disse ainda que
“não admitiria” que defensores criticassem o trabalho realizado por ele e sua equipe, o qual ele
classificou como “honesto” e “comprometido com o cuidado da população”.
Em resposta, a DPU lamentou a postura do prefeito e afirmou-se enquanto uma
instituição apartidária, interessada em defender os interesses e direitos da população e cuja
atuação não se encontra, de modo algum, vinculada ao calendário eleitoral. No texto enviado
para o jornal O Globo, é dito que a Defensoria vem acompanhando há algum tempo a situação
de desassistência na saúde pública da cidade e que é dever da instituição “recomendar ao senhor
prefeito a adoção de medidas que entende como impostergáveis, considerando um quadro já
delineado de situação de emergência no âmbito da prestação de serviços de Saúde” (Werneck,
2018). Por fim, a nota emitida pela DPU reitera que a recomendação do órgão tem a intenção
de oferecer “soluções para evitar que a situação futura torne-se insustentável”.
Em novembro, a gestão de Crivella na Saúde do Rio de Janeiro foi novamente alvo de
protestos, críticas e questionamentos. O suposto “vazamento” de um documento intitulado
“Reorganização dos Serviços de Atenção Primária à Saúde” gerou uma forte reação das
91

categorias de profissionais de saúde, como abordarei no próximo capítulo. A resposta da


assessoria do prefeito foi publicar em sua página “Espalhe a verdade” um texto chamado “A
Verdade Sobre a Saúde no Rio”. Antes do texto propriamente dito, há uma fotografia que
contrasta fortemente com as imagens de hospitais, Clínicas da Família e UPAs amplamente
divulgadas pela mídia desde o início da crise. Ao contrário dos equipamentos quebrados, ar
condicionado sem funcionar, pacientes “internados” em cadeiras, macas improvisadas ou
sentados no chão por conta da falta de leitos, corredores sujos, portas que não fecham, tetos
caindo aos pedaços, entre outras situações retratadas constantemente pelos noticiários, a
imagem utilizada pela equipe do prefeito para apresentar uma suposta “verdade” sobre a saúde
pública na cidade traz um cômodo limpo, com leitos vazios e aparatos tecnológicos novos e de
ponta. Em suma, diferentemente do “caos” provocado pela crise, a figura na página de Crivella
retrata um ambiente organizado e pronto para funcionar de acordo com o que é tido como ideal
para unidades de saúde. Cabe destacar que não há na página informações da autoria da
fotografia ou sobre o local fotografado. Isto é, nada indica que esse quarto seja de fato da rede
municipal de saúde do Rio de Janeiro.

Figura 1– Reprodução da página oficial de Marcelo Crivella

Fonte: www.marcelocrivella.com.br.

O cabeçalho da página diz: “Estão espalhando Fake News sobre as Clínicas da Família,
no Rio. Conheça as informações corretas da SMS para acabar com as dúvidas”. O texto que
segue a imagem tem um formato de pergunta e resposta. Através dessas questões retóricas, é
92

reproduzido aquilo que a assessoria diz ser uma “mentira contada pelos que se opõem ao
prefeito” e um esclarecimento posterior. Em uma espécie de disputa iconográfica pela “verdade
da crise”, as perguntas são apresentadas precedidas por um pequeno círculo vermelho –
indicando que algo está errado –, ao passo que as respostas aparecem após um símbolo de cor
verde – dando uma ideia de “correção” –, como é possível ver na seguinte imagem:

Figura 2– Reprodução da página oficial de Marcelo Crivella

Fonte: www.marcelocrivella.com.br.

De acordo com Crivella, as informações divulgadas pelos jornais eram falsas e visavam
desestabilizar não só a confiança dos eleitores, mas o seu governo como um todo. Entretanto, é
fundamental pontuar que apesar de negar os “boatos” e as fake news sobre os cortes no
orçamento, fechamento de clínicas e demissão de funcionários, o texto não apresenta dados
precisos sobre o que aconteceria com a rede municipal de saúde em 2019. Por exemplo, ao dizer
que não haveria um corte de R$ 700 milhões na saúde, a assessoria afirmou que o orçamento
de 2019 era muito próximo ao de 2018, mas sem especificar quais seriam esses valores; para
negar as demissões de profissionais, o prefeito disse que haveria um “redimensionamento” para
uma melhor distribuição dos recursos, mas sem descrever exatamente como isso seria feito;
para questionar a previsão de que o corte de pessoal faria com que as unidades ficassem
superlotadas, é dito que o “redimensionamento” foi elaborado a partir de “critérios técnicos e
de produção”, mas sem explicitar como se deu a escolha e a construção de tais critérios.
93

Em dezembro de 2018, após a greve dos funcionários da saúde agravar ainda mais as
dificuldades para o atendimento da população, uma juíza do Tribunal Regional do Trabalho
determinou o sequestro de R$ 210 milhões de contas da Prefeitura para o pagamento da folha
salarial do mês de novembro e do 13º salário dos profissionais. Mesmo após essa determinação,
a Prefeitura permaneceu em dívida com as OS. De acordo com o Secretário Municipal da Casa
Civil, Paulo Messina, além desse valor, seria preciso mais R$ 200 milhões para o pagamento
das despesas de custeio das unidades. Esse recurso só estaria disponível após o recebimento da
cota única do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o que só ocorreria no início de 2019.
Nesse sentido, Messina afirmou que “a população ainda pode sentir os reflexos da crise, ainda
que pontualmente, até fevereiro por causa da falta de insumos quando esperamos quitar as
dívidas e equipar as unidades”.

1.2 – A queda do preço do petróleo e a diminuição na arrecadação dos royalties:


a crise de acordo com o Governo do estado do Rio de Janeiro

Luiz Fernando de Souza – mais conhecido como Luiz Fernando Pezão ou apenas Pezão
– assumiu o Governo do estado do Rio de Janeiro em abril de 2014 após a renúncia do então
governador Sérgio Cabral. Pezão foi vice-governador durante os dois mandatos de Cabral, nos
períodos de 2007-2010 e 2011-2014; e chefe da Secretaria Estadual de Obras do Rio de Janeiro
entre os anos de 2007 e 2010. Pezão venceu as eleições para governador em 2014, o que fez
com que ele permanecesse no cargo até o fim de 2018. Antes de começar sua carreira na política
estadual, Pezão foi vereador da cidade de Piraí por dois mandatos, nos períodos de 1982-1988
e 1993-1996. Em seguida, foi eleito prefeito de Piraí por dois mandatos consecutivos, entre os
anos de 1997 e 2004.
Para compreender como o âmbito estadual da saúde começou a “colapsar”, é preciso
recuar um pouco no tempo e observar as alterações na estrutura de serviços de saúde sob
responsabilidade do Governo do estado do Rio de Janeiro a partir dos anos 2000. Com a criação
do SUS e a implementação do princípio da “descentralização”, os atendimentos em caráter de
urgência e emergência passaram a ser de responsabilidade da gestão municipal. Em 2007, com
o início do primeiro mandato de Sérgio Cabral, foi inaugurada a primeira Unidade de Pronto
Atendimento (UPA) 24h do país, localizada no Complexo da Maré. A criação das UPAs
representou a entrada do Governo do estado em uma área do cuidado em saúde que até então
94

era predominantemente realizado por unidades de saúde municipais. O “sucesso” das UPAs fez
com que a política se tornasse um interesse da esfera federal no ano de 2008, que patrocinou a
criação de Unidades de Pronto Atendimento em diferentes lugares do país.
Em 2015, o estado do Rio de Janeiro contava com 70 UPAs, sendo 32 delas localizadas
na capital (Konder; O’Dwyer, 2016). A iniciativa estadual representou um importante marco
na história da saúde pública do Rio de Janeiro, pois fez com que o número de atendimentos em
emergência e urgência subisse de 3 mil para 19,5 mil pessoas por dia. Com esse movimento de
expansão da rede de assistência, o orçamento estadual da pasta de Saúde aumentou
consideravelmente, passando de R$ 1,8 bilhão em 2007 para R$ 3,7 bilhões em 2013.
Para iniciar a exposição dos posicionamentos e declarações de Pezão acerca da crise da
saúde pública no Rio de Janeiro, trago dois gráficos. O primeiro é um comparativo das despesas
com Saúde do Governo do estado, o qual demonstra a discrepância entre os valores previstos
na lei orçamentária, a dotação atualizada, o que foi liquidado e o que foi efetivamente pago ao
longo dos últimos cinco anos. O segundo traz informações sobre o total líquido repassado do
Fundo Nacional de Saúde (FNS) para o Fundo Estadual de Saúde (FES).

Gráfico 4 – Comparativo das despesas de Saúde do Governo do estado do Rio de Janeiro


(2014-2018)
R$8,0
Bilhões

R$7,5
R$7,0
R$6,5
R$6,0
R$5,5
R$5,0
R$4,5
R$4,0
R$3,5
R$3,0
R$2,5
R$2,0
R$1,5
R$1,0
R$0,5
R$0,0
2014 2015 2016 2017 2018

Previsão Inicial Dotação Atualizada Liquidado Pago

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Portal Transparência do Governo do estado do Rio de Janeiro.
95

Gráfico 5 – Total líquido dos repasses do FNS para o FES (2014-2018)


R$900

Milhões
R$800
R$700
R$600
R$500
R$400
R$300
R$200
R$100
R$0
2014 2015 2016 2017 2018

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FNS.

Pezão assumiu o Governo do estado em um contexto no qual a ideia de uma crise ainda
estava se configurando enquanto tal. Às vésperas da realização da Copa do Mundo de 2014, a
atenção midiática e as preocupações do Governo estavam voltadas aos protestos e
manifestações que ocorriam em diferentes cidades do Brasil. Como já mencionado, até meados
de 2014, o termo “crise” estava sendo utilizado para descrever apenas as situações dos hospitais
federais localizados na cidade do Rio. Somente a partir da segunda metade de 2014 – ou seja,
após o fim da Copa do Mundo – começaram a surgir as primeiras notícias sobre a crise em
unidades estaduais de saúde, como foram os casos de falta de medicamentos e insumos no
Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti (Hemorio) e no Instituto
Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (IECAC).
Em setembro de 2014, médicos do Hemorio apresentaram uma denúncia ao CREMERJ
sobre a situação da instituição. Alguns dias depois, os diretores do Conselho visitaram a
instituição e constataram que ela estava “em crise”. Em uma reportagem divulgada pelo portal
de notícias G1, os profissionais que atuam no Hemorio relataram que a falta de medicamentos
na unidade fizera com que os pedidos de novos pacientes a ser acompanhados pela instituição
fossem rejeitados. Nessa mesma reportagem, a mãe de uma menina de 15 anos contou que sua
filha estava tendo dificuldades para obter a medicação necessária para o tratamento de leucemia
linfoide e que os médicos também haviam identificado um fungo em seu organismo. Sem os
medicamentos necessários, ela foi medicada com os remédios que estavam disponíveis na
unidade, o que não foi o suficiente. A jovem passou 17 dias em um Centro de Tratamento
Intensivo (CTI) e, segundo sua mãe, só conseguiu o medicamento que precisava após “entrar
na Justiça”.
96

No IECAC, instituição de referência na área de cardiologia adulta e pediátrica, a


escassez não apenas de medicamentos e insumos, mas também de profissionais e de materiais
de limpeza fizeram com que a unidade diminuísse significativamente o número de cirurgias
feitas. Em denúncia feita ao CREMERJ em dezembro de 2014, o corpo clínico do Instituto
afirmou que a falta de materiais para a realização de procedimentos básicos havia começado
em fevereiro daquele ano e que essa era uma das principais preocupações da instituição. De
acordo com o vice-presidente do CREMERJ na época, Nelson Nahon, o IECAC teria a
capacidade de fazer entre 200 e 250 procedimentos por mês, mas que, devido à falta de material,
estava realizando apenas 30 ou 40.
Em 2015, a situação da saúde pública no estado do Rio de Janeiro se agravou. No próprio
IECAC, por exemplo, a divulgação de um vídeo de macacos entrando pela janela nos quartos
dos pacientes teve bastante repercussão. Em uma matéria de cerca de oito minutos para o
telejornal RJTV, foram exibidos relatos de pacientes que disseram estar sem medicamentos;
sem roupas de cama; sem papel higiênico, sabão e outros itens de higiene pessoal; que tiveram
suas cirurgias adiadas ou sequer agendadas. O vídeo mostrou também os pacientes lavando os
banheiros da unidade, pois, os funcionários terceirizados haviam entrado em greve após mais
de dois meses de salários atrasados. Em seguida, foram exibidas as imagens dos macacos,
situação que representaria um dos maiores absurdos vivenciados na instituição e que foi narrada
como “inusitada” e “extremamente anti-higiênica”. Em resposta, a Secretaria de Estado de
Saúde (SES) negou a falta de medicamentos e materiais na instituição e afirmou que os repasse
para a empresa responsável pela limpeza e manutenção do IECAC seria normalizado.
O adiamento dos repasses para as OS responsáveis por administrar as UPAs e os
hospitais estaduais teve como efeito cascata o adiamento no pagamento dos salários dos
profissionais contratados, a demora na reposição dos estoques de insumos e medicamentos, a
paralização de obras e serviços de manutenção da infraestrutura, a protelação no conserto ou
aquisição de novos equipamentos etc. Essa situação ocasionou a suspensão de cirurgias, a
diminuição na quantidade diária de pessoas atendidas, a redução no número de exames
realizados, entre outras coisas.
O atraso no pagamento de aposentados, profissionais de saúde, professores e outros
servidores do estado foram uma constante ao longo de todo o ano de 2015. Em março, por
exemplo, o Governo do estado recorreu ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) para
que o órgão transferisse R$ 6 bilhões do Fundo de Depósito Judicial para o pagamento de
inativos e pensionistas. Segundo o projeto enviado ao Tribunal, essa medida seria fundamental
para “impedir uma crise nas finanças do Rio”. Outra medida tomada para tentar conter os efeitos
97

da crise que se anunciava foi a determinação de Pezão para que se reduzisse em 20% as despesas
de todos os órgãos e secretarias do Governo do estado.
Em maio daquele ano, o então secretário de Fazenda, Júlio Bueno, afirmou em entrevista
que o Governo do estado estava fazendo tudo o que era possível para cobrir um rombo de R$
2,4 bilhões nas contas públicas do Rio de Janeiro. Desse montante, metade estaria relacionada
às dívidas com fornecedores nas áreas de Saúde, Educação e Segurança. De acordo com o
secretário, quatro eram os principais motivos que levaram o estado do Rio de Janeiro a diminuir
sua receita e entrar em crise: 1) a redução da economia brasileira como um todo; 2) a queda no
preço do petróleo, que representava cerca de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do Rio de
Janeiro e cujos royalties seriam a principal fonte de renda da Rio Previdência; 3) a repercussão
da operação “Lava Jato” na Petrobrás e nos seus segmentos, o que paralisou uma série de
empresas e serviços e provocou a demissão de uma grande quantidade de pessoas; 4) a
diminuição na arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Segundo a previsão de Bueno, a superação da crise só começaria no final do ano de 2016.
Em dezembro, a crise atingiu um ponto particularmente dramático no âmbito estadual.
Os hospitais estaduais Albert Schweitzer, Rocha Faria e Adão Pereira Nunes foram decretados
pelo CREMERJ como estando em “situação de extrema gravidade”; 15 UPAs estavam fechadas
total ou parcialmente; a emergência do Hospital Getúlio Vargas havia sido lacrada com tapumes
e o atendimento foi restrito aos pacientes em “risco de morte”; e os médicos da rede estadual
haviam deliberado pela entrada em “estado de greve”.
Diante dessa conjuntura, Pezão optou por decretar “estado de emergência” na saúde
pública do Rio de Janeiro. De acordo com o Decreto 25.521 de 23 de dezembro de 2015, “a
grave crise que assola o sistema estadual de saúde, aí englobando a escassez de recursos
humanos e materiais, esta decorrente da grave crise financeira que atinge o país e, em especial,
o Estado do Rio de Janeiro”. O decreto deu ao secretário de estado de Saúde autorização para
editar os atos normativos necessários à regulamentação do “estado de emergência em saúde” e
também estabeleceu a criação de um “gabinete de crise” composto pelos seguintes membros:
os secretários municipal e de estado de Saúde do Rio de Janeiro, um representante indicado
pelo Ministério da Saúde e um representante do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde
do Estado do Rio de Janeiro (COSEMS-RJ).
A medida teve o objetivo de facilitar a liberação de recursos e reduzir os trâmites
burocráticos para a contratação de profissionais temporários e aquisição de medicamentos sem
necessidade de abertura de licitação. O resultado imediato foi a doação de 200 itens hospitalares
no valor de R$ 20 milhões por parte do Governo Federal, somados ao montante de R$ 297
98

milhões, dos quais R$ 100 milhões foram emprestados pela Prefeitura do Rio de Janeiro; R$ 45
milhões foram transferidos pelo Ministério da Saúde; e R$ 152 milhões foram adquiridos
através do recolhimento do ICMS.
No momento do decreto de “estado de emergência”, a crise da saúde pública no Rio de
Janeiro se tornou um tema amplamente debatido na esfera pública. Alguns jornais publicaram
editoriais e reportagens dedicados a explicar para a população o que estava acontecendo naquele
momento, como, por exemplo, as matérias “Saúde pública: Como o RJ chegou a uma de suas
piores crises no ano dos Jogos” (Puff, 2016a), veiculada no site da BBC Brasil; “Veja perguntas
e respostas sobre a crise que atinge a Saúde do RJ” (G1 Rio, 2015b); e “Entenda a crise e as
razões da revolta de servidores no Rio de Janeiro” (Carta Capital, 2016).
Em reposta a essas publicações, o secretário de estado de Fazenda veio a público
“esclarecer alguns fatos sobre a crise”. Em sua argumentação, ele destacou que boa parte do
que era arrecadado com os royalties do petróleo era destinada à previdência, e não “torrada” de
maneira irresponsável, como pontuou um dos especialistas entrevistados por um jornal. Na
tentativa de eximir o Governo do estado da responsabilidade sobre o que estava acontecendo,
Bueno afirmou que a queda na arrecadação do ICMS representou um “tombo inimaginável” e
que uma das principais e mais perversas características da crise que o estado do Rio de Janeiro
estava enfrentando era a sua “imprevisibilidade”. Para ele, a crise era “como um tsunami”: uma
tragédia inesperada e aleatória cuja responsabilidade não seria exatamente de ninguém. Por fim,
o secretário tentou desqualificar as opiniões dos especialistas dizendo que “em momentos de
crise, as críticas acabam sendo como as de jogo de futebol, é confortável comentar uma partida
já jogada”.
Nos primeiros dias de 2016, Pezão e o então prefeito, Eduardo Paes, anunciaram a
municipalização dos hospitais estaduais Albert Schweitzer e Rocha Faria como parte das
medidas para desonerar o Governo do estado para com a saúde pública. A expectativa era de
que essas transferências fizessem com que R$ 500 milhões fossem poupados dos cofres
estaduais. Além disso, o então secretário de estado de Saúde publicou a Resolução SES nº 1327
do dia 04 de janeiro de 2016, que tratava da “otimização” e “racionalização dos gastos
públicos”. Os principais objetivos da resolução eram a redução e/ou extinção de, no mínimo,
30% dos cargos comissionados e de 30% das despesas totais de custeio, o que deveria ser feito
através da revisão dos contratos com as OS e repactuação das obrigações previstas; da
renegociação dos preços, prazos e quantidades estabelecidas nos contratos de aquisição de bens
e de prestação de serviços em geral; da reformulação dos processos de licitação ainda não
adjudicados ou homologados; da reavaliação dos contratos de aluguel de imóveis utilizados
99

para atividades administrativas; e da redução dos gastos com passagens, diárias e locomoção
de servidores. O prazo estabelecido para o cumprimento das determinações foi de pouco mais
de dois meses: dia 31 de março de 2016.
Mesmo com essas medidas – ou justamente por causa delas –, a situação das unidades
estaduais de saúde não melhoraram durante 2016. Manchetes como “Crise na rede estadual de
saúde do Rio de Janeiro continua” (Jornal Nacional, 2016) se repetiram diversas vezes ao longo
do ano. Além da precarização dos hospitais e UPAs, a Farmácia Estadual de Medicamentos
Especiais (RIOFARMES) também estava sofrendo com os efeitos da crise. Em 2016, a
instituição enfrentou um grave problema de desabastecimento, pois ficou meses sem ter o
estoque de vários medicamentos reposto. Uma reportagem feita a partir de entrevistas com
pessoas que aguardavam na fila antes da abertura das portas revelou que muitos dos que
estavam lá haviam chegado por volta das 4h da manhã, ainda que o horário de abertura da
Farmácia fosse somente às 8h. O motivo: os medicamentos que estavam constantemente em
falta chegavam a conta-gotas, de modo que o quantitativo disponibilizado para a distribuição
acabava nos primeiros minutos do dia. Ainda que chegassem cedo, nada garantia que as pessoas
sairiam de lá com a medicação, o que aconteceu com um dos homens que foram entrevistados
para a matéria. Em seu depoimento, ele diz que “antes da crise”, os funcionários da
RIOFARMES entravam em contato com os usuários para informar sobre a disponibilidade do
medicamento, mas que isso já não estava acontecendo mais. Naquele momento, ele estava sem
tratamento há três meses e por isso havia “tentado a sorte” de ir até a Farmácia, sem sucesso.
Outra situação que se repetiu nesse ano foi a determinação judicial de bloqueio ou
arresto das contas do governo até que os salários dos servidores fossem pagos, principalmente
quando os vencimentos atrasados eram de funcionários do Judiciário. Como já mencionado
anteriormente, no dia 17 de junho de 2016 – ou seja, 49 dias antes do início dos Jogos Olímpicos
– o governador em exercício, Francisco Dornelles, decretou o “estado de calamidade pública”15
no estado do Rio de Janeiro. As razões alegadas para essa determinação foram a “crise
econômica”; a queda na arrecadação do estado; a insuficiência das medidas empreendidas

15
O decreto da Casa Civil da Presidência da República nº 7.257/10 (Brasil, 2010a) dispõe sobre o reconhecimento
de “situação de emergência” e de “estado de calamidade pública” por parte da União. A “situação de emergência”
é caracterizada pelo comprometimento parcial da capacidade de resposta do poder local (nos âmbitos municipal e
estadual); já o “estado de calamidade pública” caracteriza uma situação mais grave, na qual há o comprometimento
substancial ou total da capacidade de resposta do poder local. O decreto prevê que caso haja o reconhecimento de
umas dessas “situações anormais”, a União deve atuar para minimizar os seus efeitos e reestabelecer a
“normalidade social”. Além da transferência de recursos, as formas de cooperação com o poder local estabelecidas
no decreto se dividem em ações de socorro, de assistência às vítimas, de reestabelecimento de serviços essenciais,
de reconstrução e de prevenção.
100

anteriormente para o ajuste das contas estaduais; os problemas na prestação de serviços


essenciais; o iminente colapso da Segurança Pública, Saúde, Educação, Mobilidade e Gestão
Ambiental provocado pela crise; as dificuldades em cumprir os acordos feitos para a realização
dos Jogos Olímpicos; a proximidade do evento; e a importância da repercussão mundial da
imagem do país por conta do evento. O artigo mais importante desse Decreto é o 2º, o qual diz:
“ficam as autoridades competentes autorizadas a adotar medidas excepcionais necessárias à
racionalização de todos os serviços públicos essenciais, com vistas à realização dos Jogos
Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016.”
Dornelles afirmou em entrevista que a publicação do decreto permitiria que “medidas
duras” fossem tomadas no campo financeiro sem que isso acarretasse a responsabilização
pessoal dos gestores. Ou seja, o reconhecimento da “calamidade” por parte das autoridades
competentes permitiria que o governador e sua equipe de secretários descumprissem, ainda que
temporariamente, o que é estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).16
O decreto de “estado de calamidade pública” colocou em xeque as alegações do
Governo do estado de que a situação de penúria e corte de verbas enfrentada nos setores de
Educação, Saúde e Segurança Pública17 nada teria a ver com a realização dos megaeventos.
Como fica explicitado no artigo supracitado, os gestores estariam autorizados a adotar
quaisquer medidas necessárias para que os Jogos Olímpicos pudessem transcorrer sem maiores
problemas, inclusive ações de racionalização dos chamados “serviços essenciais”. A princípio,
o decreto seria válido até o dia 31 de dezembro de 2016. Alguns dias após a sua publicação, o
Governo Federal ajudou financeiramente o término das obras da linha 4 do metrô e liberou um
recurso emergencial de R$ 2,9 bilhões para os gastos com a Segurança Pública durante a
realização dos Jogos Olímpicos.

16
Em um contexto no qual a abertura do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff por conta das
chamadas “pedaladas fiscais” havia sido aprovada tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, era de
extrema importância assegurar que o Governo do estado poderia descumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal sem
que isso levasse à cassação do mandato.
17
Ainda que o foco da tese seja a crise da Saúde, é fundamental marcar que outros setores também estavam sendo
afetados pelo contingenciamento de verbas por parte do Governo do estado. No âmbito da Segurança Pública, uma
notícia de grande repercussão foi a de que viaturas da Polícia Militar deixaram de circular por falta de gasolina.
Outro “indicador” da “crise da segurança” foi o grande aumento no número de roubos e furtos registrados em
2016. Segundo os dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), em outubro, os casos de assalto em
transportes coletivos aumentaram 115% em relação ao mesmo mês do ano anterior, saltando de 719 para 1.544
casos registrados. Os roubos a transeuntes aumentaram 77% em relação ao ano anterior, indo de 5.076 para 8.980
casos registrados. Além disso, é preciso destacar que José Mariano Beltrame pediu demissão da Secretaria de
Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro também em 2016, após 10 anos ocupando o cargo. Já na Educação,
além do atraso no pagamento dos salários dos professores da rede estadual de ensino e da falta de merenda nos
colégios públicos, a crise afetou profundamente a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sem repasses
para custeio e com os salários dos professores atrasados, a Universidade permaneceu em greve por quase 6 meses
seguidos, tendo o seu primeiro dia letivo de 2016 somente em 29 de agosto.
101

Em novembro de 2016, Pezão retornou ao Governo do estado após passar alguns meses
licenciado para o tratamento de um câncer. Logo em seguida, o então governador anunciou que
o orçamento previsto para o ano seguinte só cobriria 7 dos 13 meses de salário dos servidores
e que por conta disso, novos cortes precisariam ser feitos. Como componentes de um pacote de
“ajuste fiscal”, Pezão determinou a extinção, diminuição e/ou alteração de diferentes programas
sociais estaduais, bem como enviou para apreciação da Assembleia Legislativa do Estado do
Rio de Janeiro (ALERJ) 22 Projetos de Lei para conter a “crise financeira” no estado do Rio de
Janeiro, os quais abordarei mais detidamente no terceiro capítulo.
Os decretos e Projetos de Lei que compunham o pacote de “ajuste fiscal” geraram uma
forte reação popular e dos opositores da chapa Pezão-Dornelles na ALERJ. Os acontecimentos
subsequentes enfraqueceram ainda mais a versão do Governo do estado sobre a crise e as
propostas apresentadas para a sua superação. No dia 16 de novembro de 2016, o então secretário
de governo de Campos dos Goytacazes e ex-governador do estado do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho, foi preso pela Polícia Federal (PF) acusado de utilizar um programa social de
transferência de renda para comprar votos. No dia seguinte, o também ex-governador do Rio,
Sérgio Cabral, foi alvo da operação “Calicute” – um dos desdobramentos da operação “Lava
Jato” no Rio – e acabou preso sob a acusação de ter recebido propina para a celebração de
contratos de obras públicas do governo estadual18. Naquele momento, a estimativa inicial era
de que Cabral teria recebido cerca de R$ 220 milhões em propina.
Sob pressão popular e da mídia, os deputados estaduais publicaram um Decreto
Legislativo invalidando o decreto de Pezão que extinguiu o programa Aluguel Social e adotaram
diferentes estratégias para contornar as “medidas de austeridade” propostas pelo Governo do
estado. Ao final de 2016, dos 22 projetos apresentados, apenas sete haviam sido votados: um
foi recusado e os outros seis sofreram profundas alterações ao longo do processo de debate e
votação. Dos outros projetos, alguns tiveram a votação adiada, outros foram retirados da pauta
da ALERJ e teve ainda os que foram devolvidos ao Governo. Dentre as propostas aprovadas,
estava a Lei 7.483 de 08 de novembro de 2016, na qual a Assembleia reconhecia e ampliava a
validade da decretação de “estado de calamidade pública” nas finanças do estado do Rio de
Janeiro até o dia 31 de dezembro de 2017.

18
Sérgio Cabral encontra-se preso desde novembro de 2016. Atualmente, ele acumula 26 acusações – das quais
seis já resultaram em condenações – de corrupção passiva, recebimento de vantagens indevidas, lavagem de
dinheiro, desvio de verbas, formação de quadrilha, participação em organização criminosa, fraude de licitação etc.
O somatório de penas de reclusão impostas ao ex-governador já ultrapassa os 100 anos.
102

O ano de 2017 foi marcado pelo agravamento da situação de escassez e precariedade


nas unidades públicas de saúde do Rio de Janeiro como um todo. Como mencionado acima, se
até 2016 a crise parecia afetar apenas as UPAs e os hospitais federais e estaduais, a partir de
2017, as unidades municipais de saúde começaram a ser atingidas, fazendo com que muitos
afirmassem que estávamos passando por uma “crise generalizada” na saúde pública.
O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) – duplamente afetado pela “crise da
saúde” e pela “crise da educação” –, por exemplo, suspendeu novas internações, determinou
que seriam feitas somente cirurgias de emergência, reduziu o número de leitos de 512 para 200,
desativou o setor de psiquiatria e fechou a emergência. No Hospital Getúlio Vargas, que até
então era referência na área de proctologia, teve o setor fechado. Em julho, mais de 50 médicos
da unidade foram demitidos repentinamente. A demissão em massa dos profissionais afetou o
funcionamento do hospital como um todo, mas foi mais sentida no setor de emergência, cujo
fechamento já havia desencadeado a decretação do “estado de emergência” na saúde pública do
Rio de Janeiro em dezembro de 2015.
No que diz respeito à distribuição de medicamentos, a situação da RIOFARMES
também se agravou. De acordo com o secretário de estado de Saúde da época, Luiz Antônio
Teixeira Júnior19, dos 154 medicamentos incluídos na lista do Componente Especializado de
Assistência Farmacêutica (CEAF), 40 estavam em falta e sem perspectiva de reposição. Ao ser
questionado sobre essa situação, o secretário respondeu que problema era devido não só à
diminuição do orçamento disponível para a pasta, mas também às dívidas acumuladas com os
fornecedores – que naquele período estavam por volta de R$ 200 milhões. Com pagamentos
atrasados e sem credibilidade, a Secretaria de Estado de Saúde (SES) estava tendo muita
dificuldade em encontrar empresas dispostas a vender medicamentos para o Governo do estado.
Teixeira Junior ainda acrescentou que a prioridade naquele momento era manter os setores de
urgência/emergência dos hospitais e as UPAs funcionando, pois seriam essas as unidades
responsáveis por atender aquela que seria a “demanda mais importante da população”: o
atendimento imediato.
Ainda que em meados de abril a divulgação da operação “Fratura Exposta” da PF tenha
adicionado mais um elemento que contradizia as justificativas dadas por Pezão para explicar a
crise, em 06 de junho de 2017, a ALERJ aprovou com 50 votos a favor e 9 contra, o projeto de

19
Cabe pontuar que Luiz Antônio Teixeira assumiu a Secretaria de Estado de Saúde em dezembro de 2015, poucos
dias após ser instituído o “gabinete de crise”. Sua indicação teve como objetivo retirar a saúde pública estadual da
crise e suas primeiras medidas como secretário foram reajustes de valores de contratos e outras medidas de
“austeridade”. Ele permaneceu no cargo até abril do ano de 2018, quando se afastou para concorrer ao cargo de
deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro.
103

adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) proposto pelo Governo Federal aos “estados
em crise”. Duas eram as principais exigências do Governo Federal para que unidades
federativas recebessem socorro para a “calamidade financeira”: 1) a imposição de um corte de
gastos; 2) a privatização de empresas públicas para gerar receita e diminuir a folha de
pagamentos e o custeio das operações. No caso do Rio de Janeiro, essas exigências se
traduziram na aprovação de uma “lei do teto de gastos” com duração de três anos, renováveis
por mais três; e na aprovação do processo de privatização da Companhia Estadual de Águas e
Esgotos (CEDAE), o qual enfrentou uma forte resistência popular e não se concretizou.
Antes do fim de sua vigência, a lei que reconhecia o “estado de calamidade pública” no
Rio de Janeiro foi alterada. A nova legislação não apenas prorrogou a validade da declaração
de calamidade até 31 de dezembro de 2018, mas também acrescentou um artigo ampliando o
poder do Governo do estado de determinar como, quando, quanto e em qual setor seriam
utilizados os recursos extraordinários obtidos por meio da abertura de créditos orçamentários.
Se antes havia uma indicação relativamente vaga de que esses recursos deveriam ser destinados
ao pagamento dos servidores e das despesas nas áreas da Saúde, Educação, Segurança Pública,
Assistência Social, Ciência e Tecnologia; em 2017, o novo artigo dizia que somente o
governador poderia regulamentar a “calamidade pública no âmbito da administração financeira
do estado do Rio de Janeiro”, invalidando qualquer ato regulamentar editado por outras
autoridades da administração pública.
Em agosto, reportagens sobre as filas e a falta de atendimento nas unidades de saúde do
Rio destacavam que, até aquele momento, o Governo do estado havia destinado menos da
metade do que havia sido gasto no ano anterior, cuja execução orçamentária teria ficado em
torno de R$ 5 bilhões. Se olharmos novamente para o gráfico 4, aquele do comparativo das
despesas de Saúde do Governo do estado, veremos que em 2016 e 2017, foram liquidadas
despesas aproximadamente nos valores de R$ 5 e R$ 6,5 bilhões, respectivamente. Entretanto,
em ambos os anos os valores efetivamente pagos ficaram por volta dos R$ 3 bilhões.
Em novembro, duas notícias mantiveram acesa a discussão sobre a precariedade dos
serviços de saúde: a morte de uma mulher no Hospital Getúlio Vargas, que ficou internada
durante 36 dias aguardando a realização de uma tomografia; e a morte de um homem no
Hospital Salgado Filho, após ter peregrinado entre a UPA de Sepetiba, o Hospital Pedro II e o
Hospital Albert Schweitzer em busca de atendimento. O senhor, de 63 anos, caiu de uma escada
e começou a ter fortes dores abdominais. Nenhuma das unidades de saúde em que ele esteve
pôde fazer o exame necessário para diagnosticar sua condição. Após cinco dias buscando ajuda
em diferentes unidades de saúde, ele morreu por conta de uma hemorragia digestiva.
104

Em dezembro, o Laboratório de Análise de Orçamentos e de Políticas Públicas do


Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (LOPP/MPRJ) publicou dados que apontavam
que até o dia 30 de outubro de 2017, o Governo do estado havia investido apenas 6,04% do que
foi arrecado em impostos, descumprindo a regulação que determina que no mínimo 12% da
arrecadação seja destinada à Saúde. Em resposta, o secretário de estado de Saúde declarou que
o Governo estadual liquidaria os 12% até o final do ano e que no início de dezembro, mais de
10% já havia sido liquidado. As contas públicas dos dois primeiros quadrimestres do ano
apresentadas pelo secretário apontavam que dos R$ 5,4 bilhões orçados para a Saúde em 2017,
apenas R$ 1,5 bilhão teria sido utilizado de fato até o fim do mês de agosto.
Com tantas “medidas de austeridade”, a situação das unidades estaduais de saúde
permaneceu crítica durante o ano de 2018. Por conta da suspensão do repasse de verbas por
parte do Governo do estado para as Prefeituras, algumas das UPAs que estavam sob
responsabilidade da gestão municipal fecharam. Das que estavam sob o gerenciamento
estadual, algumas passaram a funcionar intermitentemente e/ou a não funcionar durante a
madrugada.
Os estoques de medicamentos permaneceram baixos e com reposição irregular. Na
RIOFARMES, pacientes crônicos reclamaram da falta de medicamentos essenciais para o
controle dos sintomas de diferentes doenças. Em uma reportagem feita com usuários que foram
à instituição e não conseguiram retirar sua medicação, é narrado o caso de uma mulher de 51
anos que fazia uso de um medicamento que ajudava a amenizar as dores nas articulações, as
deformações e a dificuldade de caminhar provocadas pela artrite reumática. Em farmácias
comuns, uma caixa com quatro doses do medicamento custaria em média R$ 3.500. Ela
necessitava de uma dose por semana. No dia da matéria, a mulher havia se deslocado de sua
casa no bairro de Santa Cruz até a Cidade Nova carregando um isopor com gelo, pois a
medicação precisava ser mantida refrigerada. Assim como outros pacientes, ela voltou para casa
sem o medicamento e sem previsão de quando poderia retornar para retirá-lo.
Em julho, a operação “Ressonância” trouxe novamente a questão da corrupção para o
debate público sobre as origens da crise da saúde. Se a explicação do Governo do estado para
a crise baseada na diminuição da arrecadação de impostos e na queda do preço do petróleo já
estava bastante enfraquecida em meados de 2018, ela perdeu suas últimas forças perto do fim
do ano. Na manhã do dia 29 de novembro, Pezão recebeu voz de prisão no Palácio Laranjeiras
e se tornou o primeiro governador do estado do Rio de Janeiro a ser preso durante o exercício
do mandato. A prisão de Pezão ocorreu no âmbito da operação “Boca de Lobo” da Polícia
Federal, que também teve como alvo outros secretários de governo de Sérgio Cabral, servidores
105

públicos de órgãos reguladores e empresários. A acusação de corrupção que recaiu sobre Pezão
envolvia o recebimento de propina durante os oito anos em que foi vice-governador no mandato
de Sérgio Cabral e a formação de uma rede criminosa nos órgãos de fiscalização do estado do
Rio de Janeiro para encobrir casos de corrupção em diferentes pastas do Governo.
Mesmo preso, Pezão não teve seu mandato cassado. Assim, o vice-governador,
Francisco Dornelles, assumiu novamente o cargo. Em seu pouco tempo de mandato, Dornelles
foi responsável por aprovar o orçamento da ALERJ para o ano seguinte – cuja previsão era de
um déficit de cerca de R$ 8 bilhões – e também por prorrogar a validade do decreto de “estado
de calamidade pública” no Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2019.

1.3 – “O problema é o tamanho do SUS”: a crise sob o ponto de vista do Governo


Federal

Apesar do foco da pesquisa ser os efeitos da crise da saúde pública no Rio de Janeiro –
isto é, centrada em uma escala que poderia ser entendida como “micro” e/ou “local” –, é
impossível compreender o desenvolvimento dessa crise sem considerar o que estava
acontecendo na esfera federal ao longo do período recortado. As duas principais razões para
que se inclua alguns dados de um certo “contexto macro” são: 1) a já mencionada
particularidade da cidade do Rio de Janeiro no que diz respeito à composição da rede de
atendimento em saúde; 2) a “reorganização” e/ou extinção de políticas federais de assistência
em saúde que fizeram com que os seus antigos beneficiários procurassem soluções locais,
gerando novas demandas para os âmbitos municipal e estadual.
Como mencionado na primeira parte do capítulo, houve um rompimento tanto da forma
de gestão, quanto do projeto político que estava sendo implementado pela Prefeitura do Rio de
Janeiro após a troca do líder do Executivo municipal. Na esfera federal, essa ruptura se deu não
por meio de eleições diretas, mas sim por conta do impeachment da presidenta Dilma Rousseff
e a imediata substituição de sua equipe de ministros. Assim, esta seção também encontra-se
dividida em duas partes que correspondem ao período em que a Presidência da República foi
ocupada por Dilma Rousseff e posteriormente por Michel Temer.
106

Ministério da Saúde – Governo Dilma Rousseff (2013-2016)

As primeiras notícias sobre a “crise da saúde no Rio de Janeiro” diziam respeito aos
hospitais federais localizados na cidade. Dois anos antes do decreto de “estado de emergência
na saúde pública” assinado pelo governador, em 2013, os problemas da rede federal já
figuravam nas páginas dos portais de notícias e nos informes do Conselho Regional de Medicina
do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ). Em junho daquele ano, por exemplo, foi noticiada a
entrega de um relatório de fiscalização elaborado pelo CREMERJ aos procuradores do
Ministério Público Federal (MPF). Nesse relatório, o Conselho declarou que as três unidades
inspecionadas (Hospital Geral de Bonsucesso, Hospital Federal do Andaraí e Hospital Federal
Cardoso Fontes) estavam passando por uma “situação caótica”, sendo o principal problema da
rede a falta de recursos humanos. No Hospital Geral de Bonsucesso (HGB), por exemplo, o
setor de emergência havia sido fechado em 2011 para obras, de modo que os pacientes estavam
sendo atendidos e internados em containers há cerca de dois anos.
Em resposta, o então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, concordou que faltavam
médicos na rede federal, mas, que essa falta se daria principalmente em função da qualidade do
ensino de Medicina no Brasil. Segundo ele, as faculdades estariam formando médicos que não
apenas desconhecem, mas que também estariam despreparados para atender as necessidades de
saúde da população brasileira. Além disso, a demora para a contratação de novos profissionais
para os hospitais federais estava sendo causada pelo fato do Ministério do Planejamento não
responder à solicitação de autorização feita pelo Ministério de Saúde.
Em dezembro de 2013, o então diretor do Departamento de Gestão Hospitalar da
Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde (DGH/SAS/MS), João Marcelo
Ramalho, declarou que os problemas de infraestrutura já estavam sendo solucionados e que as
obras haviam sido paralisadas durante cerca de um ano por conta da identificação de
irregularidades nos processos licitatórios. Quanto à falta de recursos humanos, Ramalho disse
que estava planejada para o ano seguinte a contratação de 400 profissionais de saúde
temporários – dentre médicos, enfermeiros, nutricionistas etc. – e que não havia qualquer
previsão para a realização de concursos públicos na área.
No início de 2014, em meio a uma greve dos servidores federais da saúde, representantes
do CREMERJ, da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), do Sindicato dos Médicos do Rio
de Janeiro (Sinmed-RJ) e do Sindicato dos Trabalhadores Públicos Federais em Saúde e
Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro (Sindsprev-RJ) foram recebidos por
funcionários do Ministério da Saúde (MS). Diante dos problemas apresentados – emergências
107

improvisadas, número insuficiente de leitos, falta de recursos humanos, vínculos empregatícios


precários, desativação de salas de centros cirúrgicos e escassez de diversos insumos – a solução
dada pelo representante do Ministério foi a instalação de uma mesa provisória no Rio de Janeiro
para discutir “as mudanças que precisavam ser feitas no sistema”. Sem apresentar qualquer
proposta concreta, o MS limitou-se a dizer que precisava estabelecer uma “melhor
comunicação” com o Ministério do Planejamento, responsável por liberar a compra de
materiais, contratação de pessoal etc.
Ao longo do ano, setores, serviços e leitos nos hospitais federais foram fechando
progressivamente. Ao ser questionada sobre a situação das unidades, a diretora substituta do
DGH, Sônia Capellão, afirmou que o Ministério estava repassando os recursos necessários para
o funcionamento dos hospitais e institutos e que havia uma quantidade suficiente de médicos
alocados nas unidades. Segundo ela, os problemas relatados seriam decorrentes não da falta de
financiamento, mas sim das “graves falhas na gestão” dessas instituições. Com essa
justificativa, a diretora estava afirmando de maneira relativamente implícita que a falta de
profissionais nos hospitais federais era decorrente da ausência de controle e omissão das chefias
locais. As alegações de Capellão acabaram por reforçar um rumor constantemente mencionado
pelos veículos de comunicação de que os médicos da rede pública compareciam apenas para
“bater o ponto” e não permaneciam nas unidades para o atendimento da população.
Em 2015, além dos problemas enfrentados nos anos anteriores, novas questões
surgiram. O Hospital Geral de Bonsucesso, por exemplo, ficou sem direção por quase 7 meses,
o que aprofundou ainda mais os chamados “problemas de gestão” da instituição. A área de
oncologia do hospital foi uma das que mais teve de lidar com os efeitos da crise na rede federal
de saúde. A precarização da Atenção Básica e outras unidades que atendem primariamente os
usuários do SUS afetou profundamente os serviços de oncologia na medida em que a demora
para o diagnóstico de câncer estava fazendo com que os pacientes chegassem aos hospitais
federais em um estágio já avançado da doença. Nesse cenário, muitas das pessoas que eram
recebidas pelos profissionais apresentavam quadros graves de saúde, necessitando de
internações de emergência e com chances de cura significativamente comprometidas.
Mesmo que conseguissem o encaminhamento para a rede federal, muitos dos pacientes
oncológicos estavam sem o tratamento adequado, uma vez que os hospitais federais começaram
a enfrentar um grave desabastecimento de medicamentos quimioterápicos a partir de 2015.
Além disso, diversas unidades de saúde estavam sem os equipamentos necessários para a
realização de sessões de radioterapia, como foi o caso do Hospital Federal do Andaraí, o qual,
segundo os médicos da unidade, chegou a ter 260 pacientes aguardando na fila para o
108

tratamento. Funcionários do Instituto Nacional do Câncer (INCA) e dos serviços de oncologia


dos hospitais Cardoso Fontes, Clementino Fraga Neto e Bonsucesso foram categóricos ao
afirmar em uma reportagem que a “lei dos 60 dias” – Lei 12.732/2012, que garante aos pacientes
diagnosticados com câncer o início do tratamento no SUS em até 60 dias – não estava sendo
cumprida no Rio de Janeiro.
A crise nos hospitais e institutos federais pode ser entendida como um reflexo da “crise
econômica” e da “crise política” pelas quais o Governo Federal estava passando naquele
período. No que diz respeito ao aspecto financeiro da crise, dois decretos que determinaram
cortes no orçamento geral da União foram publicados pela Presidência da República em 2015,
sob a alegação de necessidade de “ajuste das contas públicas” e do “equilíbrio fiscal”. O
primeiro deles, editado em junho, determinou o contingenciamento de R$ 69,9 bilhões. Desse
montante, R$ 11,7 bilhões seriam “poupados” através de cortes nas despesas do Ministério da
Saúde. O segundo ocorreu no início de dezembro, quando o Ministério do Planejamento
anunciou o “contingenciamento adicional” de R$ 11,7 bilhões, dessa vez, sem afetar
diretamente o orçamento previsto para a Saúde.
Já a “crise política” é caracterizada pela forte tensão que atravessou o cenário político
nacional durante o ano de 2015. Após a vitória de Dilma Rousseff em outubro de 2014 no
segundo turno das eleições presidenciais, seu concorrente, o candidato do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB), Aécio Neves, questionou o resultado das eleições. Em um
pedido de auditoria feito pelo PSDB ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o coordenador
jurídico da campanha de Aécio Neves afirmou que a verificação da lisura do processo eleitoral
seria fundamental para descartar as “denúncias de fraude e a descrença nas urnas eletrônicas
amplamente manifestadas pela sociedade nas redes sociais”. Ao longo do ano, membros de
partidos políticos da oposição se juntaram a outros grupos para incentivar, financiar e conduzir
atos populares contrários ao Governo Federal. Durante 2015, foram realizados quatro protestos
cuja demanda principal era a renúncia ou impeachment da presidenta da República. Em 2 de
dezembro daquele ano, o então presidente da Câmara dos Deputados do Brasil e deputado
federal pelo Rio de Janeiro, Eduardo Cunha20, aceitou a denúncia de “crime de

20
A abertura do processo de impeachment por Eduardo Cunha foi alvo de muita polêmica. Na época, o então
deputado era réu no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados. Cunha aceitou o pedido
de impeachment horas depois do Partido dos Trabalhadores (PT) retirar seu apoio ao deputado nesse processo.
Além disso, pesa sob ele acusações de ter recebido propina no valor de R$ 1 milhão para comprar votos a favor
do impeachment. Cunha foi preso preventivamente em outubro de 2016 no âmbito da operação “Lava Jato” e
condenado a 15 anos e quatro meses de prisão em março de 2017 pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de
dinheiro e evasão de divisas.
109

responsabilidade” feita por Hélio Bicudo, Miguel Reale Junior e Janaina Paschoal, dando início
ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Ministério da Saúde – Governo Michel Temer (2016-2018)

Dilma Rousseff foi afastada da presidência em 12 de maio de 2016 após o Senado


aprovar a abertura do processo de impeachment propriamente dito. A cassação definitiva de seu
mandato ocorreu em 31 de agosto do mesmo ano. Com a deposição da presidenta e a ascensão
de Michel Temer à chefia do Executivo, houve a troca da equipe de ministros do Governo.
Nesse contexto, o político e empresário Ricardo Barros assumiu o cargo de ministro da Saúde.
No auge das crises tanto econômica quanto política, a indicação de Barros teve, desde o
princípio, o objetivo de “economizar” e “cortar custos”.
De início, o governo anunciou um bloqueio de R$ 23,4 bilhões do orçamento anual.
Desse montante, R$ 2,5 bilhões foram suspensos dos gastos com Saúde, que foi reduzido de R$
91,5 para aproximadamente R$ 89 bilhões. Cerca de um mês depois de ter assumido o
Ministério da Saúde, Ricardo Barros afirmou em uma entrevista concedida ao jornal Folha de
São Paulo que o país precisaria rever os direitos previstos na Constituição, pois não haveria
recursos suficientes para sustentá-los por muito mais tempo. Dentre os direitos mencionados
pelo então ministro estava o acesso universal à saúde. Em suas próprias palavras:

A Constituição cidadã, quando o Sarney promulgou, o que ele falou?


Que o Brasil iria ficar ingovernável. Por quê? Porque só tem direitos lá,
não tem deveres. Nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos
que a Constituição determina. Em um determinado momento, vamos ter
que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as aposentadorias,
e outros países que tiveram que repactuar as obrigações do Estado
porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las. Não adianta lutar
por direitos que não poderão ser entregues pelo Estado. Temos que
chegar ao ponto do equilíbrio entre o que o Estado tem condições de
suprir e o que o cidadão tem direito de receber. (Collucci, 2016).

Isto é, para Barros, o “tamanho do SUS” era o principal problema, uma vez que ele
custaria muito mais do que o Estado brasileiro poderia arcar, ou, como ele mesmo disse: “não
estamos em um nível de desenvolvimento econômico que nos permita garantir esses direitos
por conta do Estado”. Além de um “excesso de direitos”, outra causa para a crise da saúde seria
a “má gestão dos recursos” nos níveis estadual e municipal. Segundo o ministro, era preciso
110

saber “como é gasto cada centavo do SUS”, pois haveria um grande número de fraudes em
diferentes setores do Sistema, como, por exemplo, na dispensação de medicamentos: pessoas
usariam registros duplicados para retirar medicações em distintas unidades de saúde e revender.
Na entrevista, Barros declarou que iria trabalhar na revisão de variados Protocolos21 para que o
uso de recursos públicos se tornasse mais “eficiente”.
Outro problema identificado pelo ministro na área da Saúde poderia ser descrito como
o “excesso de usuários” do SUS. Em seu raciocínio, Barros alegou que decisões judiciais que
decidem por incluir determinados procedimentos na cobertura dos planos de saúde fazem com
que as empresas repassem o aumento dos custos aos clientes, que, por sua vez, acabam deixando
de ter um seguro de saúde privado por não conseguir arcar com sua manutenção, passando a
depender exclusivamente do atendimento prestado pelos profissionais do SUS. Diante dessa
situação, ele afirmou que uma das soluções para a crise da saúde seria incentivar a criação de
“planos de saúde populares”, tendo em vista que “quanto mais gente puder ter planos, melhor,
porque vai ter atendimento patrocinado por eles mesmos, o que alivia o custo do governo em
sustentar essa questão”.
Nesse cenário, uma das principais medidas adotadas pelo Governo Federal para conter
a crise e o “aumento da dívida pública” foi a promulgação de uma Emenda Constitucional que
limitou os “gastos públicos”. Outra iniciativa para reverter a crise da saúde foi a alteração do
programa Farmácia Popular22. Em 2004, quando foi lançado, o programa funcionava através
de parcerias com os governos estaduais e municipais e contava apenas com unidades próprias,
nas quais eram distribuídos gratuitamente ou vendidos a preço de custo cerca de 125 itens,
dentre medicamentos, anticoncepcionais, preservativos e fraldas geriátricas. Em 2006, a
expansão do programa recebeu o nome de Aqui tem Farmácia Popular e passou a oferecer esses
itens também em farmácias da rede privada de varejistas. Como abordarei adiante, a
reorganização do programa se deu, principalmente, por meio do estabelecimento de um critério
etário para o acesso aos medicamentos incluídos na política.

21
Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são documentos publicados pelo Ministério da Saúde
com o objetivo de estabelecer e uniformizar critérios diagnósticos, condutas, tratamentos, mecanismos de
monitoramento clínico e avaliações de resultados terapêuticos para cada patologia ou agravo à saúde. De acordo
com o Ministério, esses protocolos “devem ser baseados em evidência científica e considerar critérios de eficácia,
segurança, efetividade e custo-efetividade das tecnologias recomendadas”.
22
O programa Farmácia Popular – também conhecido popularmente como “farmácia do Lula”, em referência ao
ex-presidente da República – foi criado pelo Governo Federal em 2004 para promover o acesso a medicamentos
por meio de subsídios. Atualmente, constam na lista 35 medicamentos, sendo 20 distribuídos gratuitamente e os
outros 15 com descontos de até 90% no preço.
111

A reestruturação da Farmácia Popular foi sentida localmente de diferentes maneiras.


Sem acesso aos remédios, pacientes de doenças crônicas voltaram a apresentar sintomas e se
dirigiram às emergências dos hospitais na tentativa de obter tratamento. Os hospitais – que já
estavam passando por problemas de desabastecimento de variados medicamentos –, por sua
vez, afirmavam não poder liberar a medicação, pois isso provocaria a falta de remédios para os
pacientes de caráter ambulatorial. Com a escassez de medicamentos também nas unidades de
saúde, outro caminho acionado pelos sujeitos para assegurar seu tratamento a um custo reduzido
foi a procura de assistência na Câmara de Resolução de Litígios de Saúde, como discutirei na
segunda parte da tese.
A situação dos pacientes oncológicos no Rio de Janeiro também se agravou ao longo de
2017. Em junho, a revista Veja Rio divulgou uma reportagem com dados exclusivos fornecidos
por funcionários de diferentes unidades do Instituto Nacional do Câncer (INCA) na cidade. De
acordo com os profissionais, a realidade das pessoas que necessitavam de tratamento para os
mais diferentes tipos de câncer estava muito longe daquilo que é determinado pelos Protocolos
Clínicos e pela legislação específica. A reportagem traz o caso de um senhor de 61 anos que,
após um primeiro atendimento, aguardou por cerca de três meses a realização de uma
tomografia para a confirmação de um diagnóstico de câncer de pele. Com o resultado do exame,
ele entrou na fila para fazer a cirurgia de retirada do tumor. Na ocasião da publicação da matéria,
ele estava aguardando a cirurgia há oito meses, tendo o procedimento marcado e posteriormente
cancelado em duas oportunidades.
Em outros hospitais federais, a situação dos pacientes oncológicos estava tão grave
quanto no INCA. No Hospital Geral de Bonsucesso, por exemplo, os dirigentes do setor
declararam que não havia mais medicamentos disponíveis para dar continuidade ao tratamento
dos usuários acompanhados na unidade. Na CRLS, o número de assistidos que afirmavam estar
sem os medicamentos necessários para o tratamento de câncer era cada vez maior. Questionado
sobre os problemas enfrentados nos hospitais federais da cidade, o Ministério da Saúde
respondeu que as unidades tiveram, no primeiro semestre de 2017, um aumento de 9% nas
consultas e 6% nos procedimentos em relação ao mesmo período do ano anterior. Além disso,
o Ministério também negou a existências de filas para realização de procedimentos e afirmou
que houve um aumento de 60% no número de cirurgias feitas nas instituições.
Em maio de 2017, Barros havia dito que a crise dos hospitais federais no Rio era culpa
da “ineficiência” das unidades, de modo que somente um “plano de reorganização dos serviços”
poderia solucionar a questão. Assim, o plano de especialização dos hospitais em certas áreas de
assistência à saúde foi apresentado enquanto uma proposta capaz de aperfeiçoar os cuidados
112

oferecidos nos hospitais federais e otimizar a utilização dos recursos públicos, tornando a gestão
das unidades “mais eficiente”, como explorarei mais adiante.
Em 2018, o foco da mídia local não foram os hospitais federais, mas sim as “crise na
Atenção Básica” e nas unidades municipais de saúde. Contudo, alguns episódios foram
destacados ao longo do ano. Em março, por exemplo, o cancelamento de 14 cirurgias em um
único dia foi reportado em diferentes portais de notícias na internet. Se havia uma promessa de
não alteração na agenda de cirurgias com a reestruturação dos hospitais, na prática, muitos
pacientes tiveram suas cirurgias postergadas, não por conta do novo sistema de gestão, mas por
causa da falta de profissionais e materiais básicos, como luvas, gazes e roupas de centro
cirúrgico.
A emergência do Hospital Geral de Bonsucesso, que estava em obras desde 2011, foi
inaugurada no início do ano. Entretanto, devido à falta de profissionais para realizar os
atendimentos no setor, ela foi novamente fechada duas semanas depois. Segundo os informes
do CREMERJ, a decisão pelo fechamento partiu dos próprios funcionários do hospital após um
dia em que havia mais de 60 pacientes no setor e apenas um clínico geral, um pediatra e um
cirurgião de plantão. Ainda que o setor tenha reaberto pouco tempo depois, foram recorrentes
as denúncias de superlotação feitas pelo corpo clínico do hospital. Em novembro, um dos
funcionários da unidade informou que as salas amarela e vermelha23 da emergência
permaneceram inoperantes durante quase todo o ano.
No mês de fevereiro de 2018, em meio a um surto de febre amarela em diferentes pontos
do país, Ricardo Barros foi entrevistado no programa Roda Viva da TV Cultura. Questionado
sobre a crise e a diminuição no financiamento da saúde pública, o então ministro ressaltou que
o problema não era o montante repassado pelo Governo Federal ao SUS, mas sim a gestão dos
recursos pelos governos estaduais e municipais. Em suas palavras: “não há falta de recursos
para a área da saúde. O problema é que o Ministério passa o dinheiro, mas nem sempre ele é
bem utilizado”.
Para Barros, outro fator que levou a Saúde a entrar em crise foram as condutas dos
próprios profissionais, especialmente os médicos, que “desperdiçam tempo e dinheiro público”
com a prescrição de exames, consultas com especialistas, procedimentos e até mesmo
medicamentos “desnecessários”. Segundo o ex-ministro, 80% dos exames de imagem

23
A divisão por cores das salas de uma emergência médica faz referência ao mecanismo de “classificação de risco”
adotado nos serviços de saúde do país. Nesse sentido, a sala vermelha seria de uso exclusivo de pacientes que
necessitam de atendimento médico imediato, pois há risco de vida; a sala amarela seria para atender pacientes já
estabilizados que passaram pela sala vermelha e/ou que precisam de cuidados de enfermagem o mais rápido
possível, mas sem risco de vida.
113

realizados (como ultrassonografias e tomografias) teriam resultado “normal” e cerca de 50%


dos exames laboratoriais não seriam sequer visualizados, dando a entender que esses exames
não precisariam ter sido solicitados. Em seu raciocínio, os números são mobilizados para
construir e embasar um discurso de “irresponsabilidade” dos profissionais de saúde que atuam
no SUS, os quais não se importariam com os custos oriundos da realização desses exames e
consultas. Além disso, ele afirmou que a “prescrição excessiva” de exames por parte dos
médicos fazia parte de “esquemas de corrupção” estabelecidos entre profissionais, laboratórios
e companhias farmacêuticas, bem como funcionaria como um modo de os médicos se eximirem
da responsabilidade pela emissão de diagnósticos. Barros resumiu sua explicação para a
situação de crise da saúde pública da seguinte forma: “os médicos não agem corretamente com
o sistema”.
Essas afirmações corroboram com a declaração dada pelo ministro em julho de 2017 em
um evento realizado em Brasília. Ao anunciar o investimento de R$ 1,7 bilhões para a
“modernização” de Unidades Básicas de Saúde (UBS) – o que incluía a implantação do
prontuário eletrônico e instalação de equipamentos de biometria para controlar o horário de
entrada e saída dos profissionais de saúde –, Barros disse que os médicos precisavam “parar de
fingir que trabalham”, atribuindo a eles a culpa pela falta de atendimento relatada por um sem
número de pessoas em diferentes partes do país.
Barros deixou o Ministério da Saúde no início de abril de 2018 para concorrer ao cargo
de deputado federal pelo estado do Paraná. Na nota de avaliação oficial de sua gestão publicada
pelo Ministério, o destaque são os R$ 5 bilhões economizados pelo ministro durante os dois
anos em que exerceu o cargo. Expressões como “eficiência econômica” e “responsabilidade
fiscal” aparecem no relatório como as principais qualidades que marcaram sua gestão. Seu
substituto, Gilberto Occhi – que até então era presidente da Caixa Econômica Federal e não
possuía experiência ou formação na área de Saúde Pública –, assumiu o cargo com a promessa
de manter e ampliar as medidas formuladas pelo seu antecessor para tornar a gestão do SUS
cada vez mais “eficiente”.
114

Quadro 1 – Resumo das versões oficiais da crise da saúde

Nível de
Causas Soluções
Governo

Prefeitura do “Fazer gestão”; demissão do


Rio de Janeiro Má gestão do Governo do estado e da secretário de estado de Saúde;
(01/2009 - Secretaria de Estado de Saúde e reformulação de projetos
12/2016) políticos

Prefeitura do “Paciência”; “compreensão”;


Má gestão do prefeito anterior; má
Rio de Janeiro corte de custos;
gestão das Organizações Sociais; e
reestruturação dos serviços; e
(a partir de diminuição dos recursos repassados
aprimoramento de
01/2017) pelos Governos Federal e estadual
mecanismos de controle

Governo do Declarar “estado de


estado do Rio de emergência”; declarar “estado
Queda na receita do estado e
Janeiro de calamidade pública”;
diminuição dos recursos repassados
ajuste fiscal; e reforma da
(04/2014 - pelo Governo Federal
rede estadual de assistência à
11/2018) saúde

Falta de funcionários nos hospitais


Ministério da federais; má qualidade do ensino de
Mudanças na gestão;
Saúde e DGH Medicina no Brasil; falta de interesse
estabelecimento de uma
dos médicos de trabalhar na rede
(01/2011 - “melhor comunicação” com o
pública; má gestão local; entraves
02/2014) Ministério do Planejamento
colocados pelo Ministério do
Planejamento

Reforma do SUS; reforma


Ministério da O “tamanho” do SUS; o “excesso de constitucional; promoção de
Saúde e DGH direitos constitucionais”; má gestão planos privados de saúde a
dos níveis estadual e municipal; e preço popular; informatização
(05/2016 - irresponsabilidade dos médicos e total do SUS; e reorganização
04/2018) outros profissionais de saúde da rede federal de saúde no
município do Rio de Janeiro
Fonte: Elaboração própria.
115

CAPÍTULO 2

“Crise do que? Crise para quem?”:


as críticas e contraversões da crise da saúde no Rio de Janeiro

As versões oficiais e as contraversões da crise da saúde são coproduzidas. Isto é, desde


que o termo “crise” passou a ser utilizado para caracterizar os episódios de múltiplas escassezes
vivenciados nas unidades públicas de saúde, declarações de especialistas, políticos da oposição,
ativistas etc. contrárias e questionadoras dos discursos oficiais sobre a crise também passaram
a circular nas notícias publicadas por diferentes veículos de comunicação. Ambas são elementos
que compõem a narrativa de crise (Roitman, 2014) e só podem existir uma em relação a outra.
As duas participam da disputa que tem como objetivo estabelecer a “verdade por trás da crise”.
As críticas às versões oficiais apresentadas para explicar a crise da saúde partem de um
certo consenso: a precariedade que assola as instituições públicas de saúde é fruto direto das
práticas de gestão de pessoas ligadas aos diferentes órgãos do Poder Executivo. Ou seja,
enquanto políticos e gestores dos três níveis de governo acusam uns aos outros de serem os
“verdadeiros responsáveis pela crise”, os atores, organizações, instituições e coletivos que
produzem as contraversões são unânimes em dizer que a culpa da crise é exclusivamente da
classe política. Se no primeiro capítulo descrevi como políticos e gestores mobilizam um certo
conjunto de informações que são produzidas enquanto “dados” e “indicadores” incontestáveis
da crise; agora, busco observar de quais maneiras outros atores formulam leituras e
interpretações distintas para esse mesmo conjunto de informações, questionando “os fatos da
crise” apresentados por prefeitos, governadores, ministros e secretários.
Antes de mais nada, quero deixar claro que não tenho a pretensão de abordar todas as
contraversões da crise que circulam no debate público. Os atores e órgãos que foram escolhidos
para compor as discussões feitas nesse segundo capítulo da tese são o Conselho Regional de
Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ), o movimento militante Nenhum Serviço
de Saúde a Menos, os autodeclarados “políticos da oposição” e aqueles que são vistos
especialistas nas diferentes questões que circundam a crise da saúde: economistas entrevistados
por jornais, acadêmicos de Saúde Coletiva que assinaram notas e declarações, entre outros.
116

A escolha por trazer esses posicionamentos se deve a diferentes razões, as quais


mencionarei ao longo do texto. Além disso, acho importante explicitar que essa divisão dos
atores envolvidos nas contraversões da crise é relativamente artificial. Mais do que uma
segmentação “encontrada na realidade”, traço essas linhas em função de objetivos analíticos e
organizacionais específicos. Afinal, um médico que faça parte dos quadros do CREMERJ pode
também participar da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), bem como atuar
no movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos. A médica e deputada federal Jandira
Feghali deveria ter suas falas classificadas como parte dos discursos de especialistas ou das
figuras políticas da oposição? Ainda que eu busque privilegiar a posição a partir da qual o
sujeito fala – isto é, um médico que possua um cargo de diretoria no CREMERJ é visto como
representante do posicionamento institucional do Conselho e não como um especialista
individual –, os trânsitos entre as diferentes categorias e o atravessamento dos posicionamentos
são inevitáveis. Antes de abordar quais são as contraversões da crise identificadas no material,
apresento uma breve caracterização dos grupos, coletivos e instituições privilegiados no
capítulo.

Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ)


O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) é uma
autarquia federal cuja principal função é verificar se as práticas médicas de um profissional
estão de acordo com o previsto no código de ética profissional24. O CREMERJ possui em sua
página oficial na internet uma área dedicada à publicação dos informes assinados pelo órgão.
Tais informes versam sobre os mais variados assuntos: investidura de equipes de comitê de
ética; divulgação de eventos institucionais; reuniões locais e nacionais com outras entidades e
órgãos do setor de Saúde; notas de repúdio a concursos realizados por diferentes Prefeituras no
estado do Rio de Janeiro; ações de fiscalização do Conselho em hospitais públicos; campanhas
de saúde; entre muitos outros. Foi através dessa página de informes que pude analisar as
posições do órgão em relação à “crise da saúde no Rio de Janeiro”.

24
Gostaria de salientar que não desconheço a produção de posicionamentos institucionais sobre a crise da saúde
pública de entidades representativas e órgãos regulamentadores de outras profissões ligadas à saúde, tais como o
Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro (Coren-RJ), o Conselho Regional de Farmácia do Estado
do Rio de Janeiro (CRF-RJ) e o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ). A escolha por
priorizar os informes do CREMERJ não se dá, de maneira alguma, em função da reprodução de uma hierarquia
entre profissionais de saúde que privilegia os médicos, mas somente por conta da quantidade de material sobre a
crise disponível para consulta pública na página da instituição.
117

Movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos


O movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos (doravante, NSSM) é composto
majoritariamente por profissionais de saúde que atuam na rede municipal. O coletivo se define
como “uma campanha carioca contra o desmonte do SUS anunciado pelo prefeito Marcelo
Crivella”, cuja missão é “garantir um SUS público, estatal e de qualidade”. O movimento surgiu
em agosto de 2017, após o anúncio do fechamento de 11 Clínicas da Família na região de
Jacarepaguá e Barra da Tijuca ter deflagrado uma greve de funcionários que trabalhavam
especialmente na Atenção Primária e na Saúde Mental. Naquele momento, cerca de 700
trabalhadores receberam o aviso prévio de demissão, o que, segundo os profissionais,
representava uma estimativa de quase 300 mil habitantes que ficariam sem assistência à saúde.
As manifestações contra essa medida de Crivella ocorreram em diferentes pontos da cidade, de
modo que o prefeito rapidamente recuou de sua decisão e manteve as unidades funcionando.
Foi a partir das mobilizações iniciadas nesse período que o movimento foi criado.
A página oficial do NSSM no Facebook conta com mais de 31 mil seguidores. O
principal objetivo da página é divulgar as datas de plenárias do movimento e de mobilizações
“em defesa do SUS” na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o calendário do portal, 39
eventos foram realizados entre agosto de 2017 e dezembro de 2018, dentre plenárias, reuniões
locais e atos em vias públicas. O movimento foi responsável por organizar uma série de
protestos contra as medidas e projetos anunciados pela Prefeitura, como o que ocorreu no dia
13 de novembro de 2017 quando os profissionais de Clínicas da Família dos bairros de
Bonsucesso, Parada de Lucas, Rio Comprido, Copacabana, Rocinha etc. foram às ruas próximas
das unidades expor sua situação e pedir que a população apoiasse e defendesse o SUS.
Tomo como objeto de análise tudo aquilo que foi publicado ou compartilhado pela
página do movimento: textos de convocação para os atos, fotografias, críticas feitas ao prefeito,
relatos de profissionais de saúde replicados etc. Da mesmo forma que o CREMERJ, o NSSM
foi selecionado para figurar como um dos atores das contraversões da crise em função da
quantidade e da qualidade do material disponível para consulta pública. Para além disso, o
coletivo produziu sistematicamente narrativas que “desmentiam” o que o prefeito Marcelo
Crivella estava dizendo para explicar crise da saúde pública no município do Rio de Janeiro,
bem como foi – e, de certa forma, ainda é – protagonista na organização de ações contrárias às
medidas adotadas por Crivella e sua equipe para contornar a crise.
118

Especialistas
Os chamados especialistas também foram figuras importantes na produção de
contraversões da crise. Usualmente consultados por jornalistas, esse grupo inclui pessoas com
experiência em elaboração e análise de orçamentos, administração pública, gestão de unidades
hospitalares etc. e que possuem, geralmente, formação em nível superior nas áreas de
Economia, Medicina, Saúde Coletiva, Administração e/ou Direito.
Uma das instituições composta por especialistas cujos posicionamentos são trazidos
para a discussão é a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), fundada em 1979
por acadêmicos de programas de pós-graduação em Medicina Social e Saúde Coletiva. Alguns
dos principais objetivos da associação são fomentar a “cooperação” e o “diálogo” entre a gestão
em saúde e os centros de ensino e pesquisa; e participar da formulação e monitoramento de
políticas de saúde, educação, ciências e tecnologia. A decisão por incluir a ABRASCO no rol
de especialistas das contraversões da crise ocorreu em razão de seu longo histórico na luta
política e militância em prol do SUS, uma vez que seus integrantes estiveram envolvidos na sua
criação desde as primeiras empreitadas do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Além
de eventuais entrevistas com seus membros, o posicionamento da associação foi analisado a
partir das notas públicas disponibilizadas em sua página oficial na internet.
Outras instituições compostas por especialistas que tiveram uma presença relativamente
importante no questionamento de versões oficiais e na elaboração de contraversões da crise
foram as Organizações Não-Governamentais (ONGs) Contas Abertas e Fórum Popular do
Orçamento do Rio de Janeiro, ambas dedicadas ao controle social de orçamentos públicos.
Fundado em 1995, o Fórum busca analisar a composição do orçamento do município do Rio
de Janeiro com o objetivo de avaliar as prioridades do Poder Executivo e garantir que “as
políticas públicas sejam feitas de forma a atenuar a concentração de renda e a desigualdade
social”. Já a Contas Abertas foi criada em 2005 e tem como escopo o orçamento federal. Uma
das características destacadas pela ONG é o seu “princípio de independência”, o qual se traduz
na recusa de qualquer financiamento público para o custeio do seu funcionamento. A
organização se sustenta a partir de doações e da prestação de serviços como consultorias,
checagem de dados, palestras e elaboração de estudos orçamentários específicos para entidades
de classe, empresas, veículos de comunicação etc. Em seu site, a Contas Abertas define como
sua missão “oferecer permanentemente subsídio para o desenvolvimento, aprimoramento,
fiscalização, acompanhamento e divulgação das execuções orçamentária, financeira e contábil”
dos três níveis da administração pública brasileira.
119

A ABRASCO e as ONGs Contas Abertas e Fórum Popular do Orçamento foram


consultados por distintos veículos de informação em diferentes momentos no período analisado
em minha pesquisa. Seus membros foram chamados para demonstrar como a “crise financeira”
estava impactando a Saúde no Brasil; “simplificar” explicações dadas pelos gestores sobre a
conformação e os sucessivos cortes no orçamento; apresentar soluções diferentes daquelas que
estavam sendo propostas pelos governantes etc. Em quase todas as ocasiões, os dados
levantados pelas ONGs foram expostos de maneira a contrapor o que governantes e secretários
de Saúde estavam dizendo sobre a crise.

Políticos da oposição
Os “políticos da oposição”25 – principalmente aqueles que são membros de partidos
políticos considerados historicamente “de esquerda”26 – nos três níveis da administração
pública exerceram um papel fundamental no questionamento das versões oficiais apresentadas
pelos governantes para explicar a crise da saúde pública. Além disso, muitos deles contestaram
as medidas tomadas pelos governantes e seus gestores por meio de mecanismos e
procedimentos de controle político internos aos diferentes âmbitos do Legislativo.

25
Grosso modo, oposição e situação são termos da teoria política que designam a posição de um determinado
partido – e, ao menos no plano formal, dos seus membros – em relação ao Governo. Em um regime democrático
bipartidário, a situação é ocupada pelo partido eleito, enquanto a oposição cabe ao outro partido. Em regimes
pluripartidários, como é o caso brasileiro, há também outras possibilidades, como, por exemplo, declarar-se
neutro/independente ou formar uma coligação com o partido da situação ou com os da oposição.
26
Os termos direita, esquerda e centro se referem ao posicionamento dos partidos em um espectro político que
varia entre a extrema-esquerda e a extrema-direita. Uma das principais diferenciações entre os projetos políticos
enquadrados como “de esquerda” ou “de direita” diz respeito ao papel do Estado na regulação social de um modo
amplo: promoção de direitos civis, implementação de políticas públicas, regulação econômica etc. Os ditos
partidos “de esquerda” tendem a defender uma maior intervenção estatal em distintos domínios sociais, tais como
Saúde, Educação, distribuição de renda, redução das desigualdades sociais, entre outros, assim como tendem a ter
uma posição mais “liberal” no que diz respeito às chamadas “pautas morais”, como o aborto, a criminalização das
drogas, os direitos das minorias etc. Os denominados partidos “de direita”, por sua vez, inclinam-se a advogar por
uma menor ingerência do Estado e uma maior valorização da “iniciativa individual”, tais como a extinção de
empresas públicas, a redução de impostos a valores mínimos, o fim de políticas assistencialistas etc., bem como
costumam ter um posicionamento mais “conservador” quanto às “pautas morais”, defendendo a redução da
maioridade penal, a criminalização do aborto, entre outras. Já os partidos “de centro” podem adotar
posicionamentos que conjugam diretrizes tanto de direita quanto de esquerda, pendendo mais para um lado ou
para o outro, como, por exemplo, reivindicar uma menor interferência do Estado na economia ao mesmo tempo
em que defende a promoção dos direitos de grupos minoritários. A utilização das palavras direita e esquerda para
designar certos posicionamentos políticos remete ao período da Revolução Francesa. Na Assembleia Nacional
francesa, os que reivindicavam tratamento igualitário para nobres e plebeus se sentavam à esquerda do presidente
da Assembleia, ao passo que aqueles que defendiam a manutenção da monarquia e da desigualdade entre
estamentos se sentavam à direita. É nesse contexto que esquerda passa a caracterizar propostas e partidos políticos
“revolucionários” e promotores da “igualdade social”; e direita passa a classificar projetos de manutenção ou
restabelecimento da “ordem social”, também sendo chamados de “conservadores” e “reacionários”.
120

No Brasil, os partidos que se declaram como “de esquerda” são, por exemplo, o Partido
dos Trabalhadores (PT), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL) etc. Como exemplos de partidos “de direita” temos o Progressistas (PP), o
Partido Social Liberal (PSL), o Novo (NOVO), o Partido Social Cristão (PSC) etc. Os partidos
que se definem como “de centro” são, por exemplo, o Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB), o Movimento Democrático Brasileiro (antigo PMDB e atual MDB), o Democratas
(DEM), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Democrático Trabalhista (PDT) etc.
Ainda que eu me detenha momentaneamente nessas explicações e exemplos, não
pretendo fazer uma exegese da política partidária brasileira em suas dimensões formal e teórica.
Na medida em que um dos propósitos do meu trabalho é realizar uma análise antropológica da
política e do funcionamento do Estado, interessa-me muito mais atentar para os modos pelos
quais as palavras oposição, situação, direita, esquerda, centro etc. são acionadas pelos sujeitos
para se diferenciar de ou se identificar com determinadas figuras, partidos e/ou projetos
políticos. Para além disso, busco também observar como esses termos podem comparecer na
disputas políticas em torno da crise da saúde como “categorias de acusação”.
Feita essa observação, ressalto que o que estou chamando de “políticos da oposição”
são parlamentares que contestaram e rebateram os argumentos dados pelos “políticos da
situação” para explicar a crise e justificar as diversas medidas adotadas para conter os seus
efeitos nos diferentes níveis administrativos brasileiros. Os posicionamentos e questionamentos
feitos pelos políticos da oposição foram obtidos através de sites pessoais (quando disponíveis);
páginas oficiais em redes sociais; entrevistas publicadas por jornais e portais de notícias;
documentos protocolados; e registros de audiências públicas, reuniões e outros eventos
disponibilizados pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro e/ou pela ALERJ.
No âmbito municipal, um dos atores que mais denunciou as “mentiras do prefeito” e
mais criticou as decisões de Crivella foi o vereador Paulo Pinheiro (PSOL). Na esfera estadual,
os deputados do PSOL também tiveram um papel preponderante em ações de pressão política
contra os projetos de “ajuste fiscal” e “austeridade” apresentados pelo governador. O deputado
estadual Flávio Serafini, por exemplo, propôs a criação de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) para investigar os contratos celebrados entre o Governo do estado e as OS que
administravam unidades públicas de saúde. Já Marcelo Freixo, que na época era deputado
estadual, foi uma importante figura na disputa pelos votos dos parlamentares contra os projetos
de Pezão em discussão na ALERJ. Por fim, no nível federal, a médica e deputada federal Jandira
Feghali (PCdoB) foi uma das mais importantes vozes contra as diretrizes adotadas pelo
Ministério da Saúde para “equilibrar as contas” do Governo Federal e conter a crise.
121

***

É importante destacar que, distintamente do que acontece com as versões oficiais,


aqueles que produzem as contraversões da crise não as formulam enquanto “hipóteses”
excludentes entre si. Isto é, nenhum deles adota uma explicação única para a crise da saúde,
mas sim equacionam as diferentes contraversões para falar sobre os culpados, os motivos e as
soluções para a crise em diferentes momentos. Da mesma forma que as versões oficiais
apresentadas pelos gestores públicos foram sendo modificadas ao longo do tempo, as
contraversões também foram ganhando outros contornos conforme novos “fatos” e
“indicadores” eram adicionados como elementos de explicação da crise da saúde.
Diante da heterogeneidade de versões oficiais, as contraversões da crise podem parecer
relativamente mais homogêneas. Contudo, como espero deixar claro, essa homogeneidade se
dá somente no primeiro plano, uma vez que as práticas de gestão apontadas como
problemáticas pelos críticos da crise podem assumir significados variados, desdobrando-se em
diferentes contraversões. Assim, a crise da saúde pode ser explicada 1) como uma situação
causada pela “má gestão”; 2) como decorrência de uma “gestão corrupta”; e 3) como parte de
um “projeto de gestão” que visa o “desmonte do SUS” e a redução de direitos. São essas três
distintas formas alternativas de explicar a crise da saúde no Rio de Janeiro que estruturam a
divisão deste segundo capítulo da tese.

2.1 – Escolhas erradas: a crise como fruto da má gestão

Umas das primeiras contraversões aventadas pelos críticos da crise da saúde era a de
que estava havendo uma “má gestão” por parte dos governantes e de suas equipes de secretários
e diretores. Em um primeiro momento, a “má gestão” foi encarada como decorrente de dois
fatores complementares: o primeiro seriam as “escolhas erradas” no planejamento e execução
de políticas de saúde e custeio do SUS, bem como a priorização de recursos para outros setores
e/ou projetos, tais como a realização de obras para os Jogos Olímpicos de 2016; o segundo fator
seria a “falta de experiência” dos políticos eleitos e dos gestores por eles indicados no que diz
respeito ao funcionamento e organização dos serviços de saúde. Na medida em que a crise se
manteve através dos anos e que as medidas tomadas pelos responsáveis por conter os seus
efeitos só fizeram agravar ainda mais a situação de precariedade nas unidades públicas de saúde,
122

os atores e instituições que contestavam as versões oficias da crise passaram a incluir como
sinal da má administração o que foi interpretado como uma “irresponsabilidade dos políticos
para com a sociedade”.
Como abordado no primeiro capítulo, em meados de 2013, a crise da saúde parecia
atingir apenas os hospitais federais localizados na cidade do Rio de Janeiro e unidades de saúde
geridas por Prefeituras da Baixada Fluminense e da Região Serrana. De acordo com o
coordenador da comissão de saúde pública do CREMERJ, Pablo Vazquez, o principal problema
na saúde do Rio naquele momento era a falta de recursos humanos. Segundo o presidente do
Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro (Sinmed-RJ) na época, Jorge Darze, o primeiro passo
para melhorar o atendimento na rede federal seria a contratação imediata de pelo menos 1.500
médicos. Segundo Darze, a falta de concursos públicos para profissionais efetivos estava
fazendo com que os hospitais fechassem setores por conta das aposentadorias e do desinteresse
dos médicos de ocuparem vagas temporárias com salários “incompatíveis com o mercado”.
Em um informe do CREMERJ sobre uma reunião com o diretor do Departamento de
Gestão Hospitalar (DGH/SAS/MS) realizada em dezembro de 2013, o então presidente do
Conselho, Sidnei Ferreira, reiterou a falta de recursos humanos decorrente da escolha pela
contratação de profissionais em caráter temporário como um dos principais elementos que teria
levado as unidades de saúde federais a entrar em crise. Um trecho desse informe resume a
preocupação do órgão naquele momento:

Não temos dúvida de que há um interesse para resolver e de que o NERJ


[Núcleo Estadual no Rio de Janeiro do Ministério da Saúde] trabalha
para isso, mas nos preocupa porque, em visitas e fiscalizações, está
claro que a situação é gravíssima. Se não houver contratação imediata,
o que já é grave vai piorar, porque mais serviços serão fechados. Além
disso, emergências estão lotadas, médicos podem ser processados
injustamente, aumenta-se a chance de agressões, enfim o caos reinante.
As unidades precisam de uma solução rápida. Os médicos merecem
condições dignas de trabalho e a população tem direito a um
atendimento de qualidade. (CREMERJ, 2013, grifos meus).

Em 2014, a “crise dos hospitais federais” continuou sendo umas das principais pautas
dos informes do CREMERJ. Muitos deles faziam menção aos problemas de déficit de insumos
e medicamentos, equipamentos quebrados e falta de pessoal enfrentados nos hospitais federais
de Ipanema, Bonsucesso e Cardoso Fontes. A gravidade da situação tornou o “sucateamento da
rede federal de saúde no Rio de Janeiro” tema de uma audiência pública no Senado Federal em
junho de 2014. Acusando os governantes de realizarem uma “má gestão”, os médicos da rede
123

federal estavam em greve há mais de um mês e reivindicavam aumento salarial, revisão do


plano de carreira, redução da carga horária e melhorias consideradas indispensáveis nos
ambientes de trabalho. Outro ponto de tensão entre a categoria e os gestores era a “falta de
diálogo” e de propostas para superar a crise, uma vez que o movimento grevista havia se
colocado contra a posição do Ministério Público Federal (MPF) de pedir ao Judiciário que
declarasse a greve inconstitucional. A conclusão da audiência foi a de que a situação dos
hospitais federais do Rio de Janeiro estava crítica e necessitava de mudanças na gestão tanto
dos profissionais quanto dos recursos, apenas reiterando algo que já estava sendo dito pelos
dois lados da disputa.
Em um artigo intitulado “A saúde não pode esperar”, publicado em agosto de 2014 no
jornal O Globo e replicado na página de informes do CREMERJ, Sidnei Ferreira denunciou o
“descaso” com que a saúde estava sendo tratada naquele momento. Para ele, a situação era
extremamente grave e o direcionamento de recursos para as obras de reforma e/ou construção
de infraestrutura para a realização dos Jogos Olímpicos em 2016 estava fazendo com que outros
setores ficassem sem financiamento, em especial a Saúde. Ferreira também enfatizou que as
inúmeras denúncias feitas pelo CREMERJ às “autoridades” (gestores, secretários, membros do
Ministério Público, entre outros) foram respondidas laconicamente. O discurso oficial era de
que seria preciso esperar passar as eleições para que algo pudesse ser feito. Diante da negativa,
ele encerrou o artigo afirmando que essa espera seria fatal para inúmeros pacientes nas unidades
públicas de saúde e questionou quem se responsabilizaria por essas mortes.
Em uma “nota de esclarecimento aos médicos e à população”, publicada na manhã do
dia 23 de dezembro de 2015, o CREMERJ reafirmou que a situação nos estabelecimentos
públicos de saúde encontrava-se caótica não pela falta de médicos, mas sim pela precariedade
material enfrentada nos locais, o que impossibilitava os profissionais de realizarem
corretamente o seu trabalho. A nota também explica que mesmo com os salários atrasados e
sem o recebimento de parte do 13º, nenhum médico havia abandonado o posto até o momento
e que a restrição no atendimento de emergência no Hospital Estadual Heloneida Studart, por
exemplo, se deu não por conta da ausência de profissionais, mas devido ao limitado estoque de
materiais esterilizados disponíveis na unidade, os quais, segundo a nota, só seriam suficientes
para três dias de atendimento normal.
Naquele mesmo dia, os representantes do CREMERJ, do Sinmed-RJ, do Conselho
Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro (Coren-RJ), dos Ministérios Públicos Estadual e
Federal e das Defensorias Públicas do Estado e da União se reuniriam com o secretário de
estado de Saúde na expectativa de que fosse apresentado algum plano de ação para enfrentar a
124

situação. Ato contínuo, o governador Luiz Fernando Pezão decretou “estado de emergência” na
saúde pública do estado do Rio de Janeiro e anunciou a criação de um “gabinete de crise”. Após
a decretação do “estado de emergência”, o então Presidente do CREMERJ declarou em uma
entrevista coletiva que essa era “a pior crise de saúde pública vivenciada no estado”.
Além do CREMERJ, outros atores apontaram a “má gestão” dos governantes como um
dos principais fatores na explicação da crise da saúde no Rio de Janeiro, como, por exemplo,
alguns especialistas. Conforme dito no capítulo anterior, a decretação do “estado de emergência
na saúde pública do Rio de Janeiro” fez com que a crise se tornasse uma das principais pautas
dos veículos de comunicação nos dias posteriores à publicação do decreto. Na já mencionada
matéria de Jefferson Puff (2016a) para a BBC Brasil, as alegações dadas pela equipe de Pezão
foram confrontadas com as opiniões de especialistas em diferentes assuntos: dois economistas
(um deles com pós-doutorado em finanças públicas e outro professor universitário), uma
sanitarista que também é professora universitária e o diretor de ONG Contas Abertas. Apesar
de não refutarem as razões da crise apresentadas pelo Governo do estado, as pessoas
entrevistadas pelo jornalista apontaram como elementos que tiveram um papel preponderante
na configuração da situação a má administração e a irresponsabilidade dos gestores. Como
aparece na própria reportagem, “para os especialistas consultados pela BBC Brasil há consenso
de que houve importantes falhas de gestão que contribuíram de forma significativa para a
derrocada das finanças do Estado”.
Para os economistas, os erros e irresponsabilidades cometidos pelos gestores teriam
como base a utilização indiscriminada dos recursos provenientes da extração de petróleo.
Segundo eles, o Governo teria incorporando as riquezas oriundas da exploração do petróleo às
receitas para o custeio geral do estado sem considerar que essa é uma commodity finita e de
preço flutuante. Sobre esse ponto, um dos comentaristas da matéria comparou a situação do Rio
de Janeiro com a da Venezuela. Em sua opinião, a gestão estadual teria “torrado todo o
dinheiro” proveniente do petróleo, ao invés de ter criado um fundo soberano para momentos de
necessidade, como foi feito na Noruega e no Chile. Além disso, os especialistas destacaram
também os gastos realizados para a execução de obras para os Jogos Olímpicos e os efeitos que
esses tiveram no orçamento do estado.
Já a sanitarista e professora universitária de Saúde Coletiva entrevistada, sustentou que
aquilo que vem sendo colocado “na conta da crise” não são episódios pontuais no setor. Em sua
explicação, ela relembrou do ano de 200527, quando o Governo Federal declarou “estado de

27
Esse episódio foi também classificado como uma crise da saúde no Rio de Janeiro. Tratarei dele mais
detidamente no capítulo 3.
125

calamidade” na saúde do Rio e determinou uma intervenção no setor por meio da criação de
hospitais de campanha das Forças Armadas e da federalização compulsória dos seis principais
hospitais municipais da cidade. Para ela, a saúde pública no estado era de “péssima qualidade”
mesmo nos momentos em que não havia problemas de arrecadação e que caracterizar a situação
como uma “crise” não ajudava em nada, uma vez que essa discussão se concentraia em soluções
emergenciais e não em mudanças estruturais de longo prazo.
Em janeiro de 2016, o então secretário executivo da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (ABRASCO), Carlos Silva, concedeu uma entrevista para uma série de reportagens
chamada “Rio na UTI”, exibida no telejornal Balanço Geral, da rede Rercord. Na reportagem
em questão, uma jornalista abordou a falta de água na UPA de Bangu (Zona Oeste da cidade)
e da utilização da UPA de Engenho Novo (Zona Norte da cidade) como dormitório por pessoas
em situação de rua. Ao comentar esses casos, o representante da ABRASCO foi categórico e
afirmou que o problema das unidades estaduais de saúde eram devidos tanto às más escolhas
dos gestores quanto à falta de recursos financeiros.
A partir de 2016, um conjunto de situações foi relatado não somente nos informes do
CREMERJ, mas também nos jornais e portais de notícias em geral: o agravamento da crise em
diferentes municípios do estado do Rio e Janeiro; a incapacidade dos gestores das OS e políticos
de honrar pactos, compromissos e, especialmente, o pagamento dos profissionais; a demora do
Judiciário em determinar que órgãos municipais, estaduais e federais cumpram as leis que
regulam os percentuais obrigatórios de repasse de verbas para a saúde; o repúdio às propostas
de solução que se baseavam na redução dos salários dos profissionais de saúde e no corte e/ou
desativação de equipes; entre outros acontecimentos descritos como “absurdos”, “inaceitáveis”
e que colocavam a saúde da população “em risco”. Em todos os informes do Conselho, a culpa
dos gestores pela crise da saúde pública foi reiterada.
A decretação do “estado de calamidade pública” no âmbito das finanças do estado do
Rio de Janeiro em junho de 2016 fez com que alguns jornais procurassem especialistas para
analisar a questão. O jornalista Jefferson Puff da BBC Brasil, por exemplo, convidou quatro
especialistas para comentar o Decreto: dois professores universitários (um de Direito e outro de
Administração Pública), um economista com pós-doutorado em Finanças Públicas e um
pesquisador da área de Planejamento Urbano. Todos eles apontaram as “falhas da gestão” como
fatores que ocasionaram a “calamidade pública” no Rio de Janeiro. Um deles chegou a afirmar
de maneira incisiva que o Decreto era um “atestado de má gestão” (Puff, 2016b).
No final de 2016, a ONG Fórum Popular do Orçamento do Rio de Janeiro publicou
uma análise dos orçamentos e prestações de contas estaduais da última década no intuito de
126

demonstrar como uma “gestão irresponsável” fez com que a dívida pública do estado chegasse
a tal patamar. No artigo, as alegações sobre a queda no preço do petróleo e a diminuição na
arrecadação de impostos como explicações para a crise no Rio são destrinchadas. A ONG não
nega que de fato houve um menor recolhimento do ICMS. Entretanto, ao trazer para a discussão
a quantidade de empresas beneficiadas por renúncias fiscais, eles buscam colocar em questão a
declaração do secretário de estado de Fazenda, Júlio Bueno, de que o encolhimento da receita
oriundo de uma arrecadação menor de impostos representou um “tombo inimaginável”, fazendo
com que a crise fosse algo imprevisto. As conclusões do artigo são as seguintes:

O cenário internacional não pode ser o único responsabilizado pela crise


no Estado do Rio de Janeiro, apesar da queda da arrecadação dos
royalties, diversos fatores contribuíram para o atual momento. Foram
realizados investimentos em função dos megaeventos, que gerou mais
endividamento, além de uma aumento das despesas correntes, com a
criação de UPAs e UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], por
exemplo. Ademais, foram concedidos diversos benefícios fiscais sem
nenhuma transparência ou controle, o que afetou a arrecadação do
ICMS. [...]
Enfim, a LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal] e a sua priorização no
pagamento da despesa financeira não impede a gestão irresponsável,
seja por ignorar uma arrecadação em queda, seja por insistir em gastos
e incentivos fiscais de eficácia duvidosa. A calamidade é isso aí. (FPO-
RJ, 2016)

Em 2017, primeiro ano de Marcelo Crivella na Prefeitura do Rio de Janeiro, a crise se


expandiu para a rede municipal de saúde, afetando principalmente os Centros Municipais de
Saúde e as Clínicas da Família. Como mencionado no primeiro capítulo, no final do primeiro
ano do mandato de Crivella, jornais e agências de checagem de fatos publicaram matérias com
avaliações e balanços acerca das ações e medidas adotadas pelo prefeito. A Agência Lupa, por
exemplo, verificou o cumprimento das promessas feitas por Crivella em seu discurso de posse.
No que diz respeito à Saúde municipal, a agência apontou contradições entre o que o prefeito
havia dito no início de 2017 e os dados enviados pela Secretaria Municipal de Saúde em
dezembro daquele mesmo ano em relação ao número de pacientes inseridos no Sistema
Nacional de Regulação (SISREG) que aguardavam a realização de algum procedimento médico
na cidade do Rio de Janeiro.
O jornal O Globo, por sua vez, publicou um balanço do primeiro ano do governo de
Crivella. Apoiado em declarações de especialistas, políticos e membros da equipe de gestão do
prefeito, o artigo começa afirmando que “a realidade passou longe dos discursos em palanques
e das declarações dadas durante os horários de propaganda eleitoral” (Magalhães, 2017, grifos
127

meus) e que, apesar de ter prometido um volume maior de investimentos na saúde, o primeiro
ano do mandato de Crivella foi marcado por cortes significativos no orçamento do setor. Em
seguida, a veracidade das informações prestadas pela Prefeitura foi questionada e divergências
entre o que foi dito por Crivella durante sua campanha eleitoral e o que aconteceu na cidade ao
longo do ano foram salientadas. Dentre as discrepâncias destacadas, o jornal mencionou o
contraste entre o lema de campanha “vamos cuidar das pessoas” e a situação de precariedade
vivenciada nas unidades de saúde. Apesar de não desmentir as justificativas dadas pelo prefeito
para explicar a crise, foram publicadas avaliações de especialistas que assinalaram as “falhas
de gestão” cometidas pelo próprio Crivella, as quais contribuíram para que a situação se
agravasse, tais como os erros na definição de prioridades na alocação de recursos essenciais na
área da Saúde, como destacou um economista consultado. Além disso, a decisão de adiar o
pagamento de fornecedores e OS que administravam cerca de 170 unidades de saúde na cidade
resultou em greves dos profissionais e no severo desabastecimento das instituições.
Os políticos da oposição também acusaram os governantes de fazerem “escolhas
erradas” e de realizarem uma “má gestão”. Em meados de 2017, a equipe do então deputado
estadual pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Marcelo Freixo, publicou em seu site
oficial um texto cujo título era “Paes e Crivella são os responsáveis pela crise na saúde do Rio”.
Para o deputado, Paes teria expandido a quantidade de Clínicas da Família para além do que o
orçamento da Prefeitura comportaria, o que ele afirmou ser o pontapé inicial da crise da saúde
no município. Já os erros de Crivella estariam relacionados à sua incapacidade de administrar
e oferecer soluções para os problemas deixados pela gestão anterior. De acordo com o texto, o
prefeito deveria apresentar projetos para a “superação da crise” e não simplesmente cortar R$
523 milhões do orçamento, o que agravaria ainda mais a situação de precariedade das unidades
municipais de saúde. Ironizando o lema da campanha de Crivella, o texto termina com uma
frase que diz que a melhor maneira de “cuidar das pessoas” seria respeitar a classe trabalhadora
e a população que depende da rede pública para obter cuidado em saúde.
Como discutido no capítulo anterior, em 2017, a crise afetou profundamente os serviços
de oncologia de diversos hospitais públicos do Rio. Uma reportagem da revista Veja Rio sobre
os problemas do Instituto Nacional do Câncer (INCA) reforçou a ideia de que a situação de
“caos” e “precariedade” vivenciados na instituição era fruto dos “problemas de gestão”, como
fica claro no seguinte trecho:

O Inca é um colosso que acumula cifras portentosas. Em seus


complexos hospitalares instalados no Centro, na Vila Isabel e em Santo
Cristo foram registradas no ano passado 7 500 cirurgias, 14 500
128

internações, 40 000 sessões de quimioterapia, 67 000 de radioterapia e


240 000 consultas médicas. No entanto, basta uma visita a seu prédio
principal na Praça da Cruz Vermelha, o Hospital do Câncer 1 (HC1),
para perceber que, mesmo com esses números, problemas graves se
acumulam. Ao circular pelos onze andares do edifício, onde são
realizados os procedimentos mais complexos, torna-se evidente que a
instituição enfrenta problemas de gestão. Nos primeiros pisos, filas
quilométricas de pacientes se estendem por ambulatórios, salas de
emergência e de exames clínicos. A partir do 4º andar, o cenário é de
enfermarias lotadas, com macas improvisadas nos corredores para
atender os doentes em estado crítico. No entanto, nos andares
superiores, a visão muda radicalmente. Ali, no centro cirúrgico, os
leitos passam a maior parte do tempo desocupados, enquanto salas de
operação permanecem com as luzes apagadas, a despeito da sofisticada
aparelhagem disponível. A ociosidade das instalações é sinal de um
problema crítico da instituição: a falta de funcionários. (Barbosa e
Reschke, 2017, grifos meus).

A “crise na oncologia” – como descreveu um dos informes do CREMERJ de 2017 –


chegou a um ponto considerado tão grave que a Defensoria Pública da União (DPU) organizou
uma reunião com os diretores de 19 instituições que ofereciam serviços de oncologia no Rio de
Janeiro, dentre elas hospitais públicos, unidades que funcionam através de parcerias público-
privadas e instituições filantrópicas. Na ocasião, um defensor questionou os participantes acerca
das denúncias contidas em um relatório elaborado pelo CREMERJ e afirmou que se fosse
preciso, cobraria judicialmente as soluções para os problemas apresentados e que caso as
questões não fossem resolvidas, os “gestores poderiam ser responsabilizados”. É importante
destacar que na fala do defensor, a utilização da categoria “gestor” não se limitou aos políticos
e secretários dos órgãos do Executivo, mas fez referência também aos diretores de unidades de
saúde presentes no encontro.
No âmbito nacional, em meados de 2017, um estudo encomendado pelo Conselho
Federal de Medicina (CFM) e realizado pela ONG Contas Abertas revelou que o Brasil havia
se tornado o país das Américas que menos investe no sistema de saúde. De acordo com os dados
levantados pela organização, o gasto diário com despesas públicas de saúde no Brasil era de R$
3,89 por habitante. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), esse valor estaria
cerca de 70% abaixo da média registrada pelos demais países do continente (Estúdio ABC,
2017).
Próximo do fim de 2017, o CREMERJ se reuniu com outros conselhos profissionais da
área de saúde e entidades médicas para debater as dificuldades enfrentadas pelos profissionais
que atuavam em unidades de saúde municipais, estaduais e federais. Da reunião, foi decretado
129

o “estado de calamidade pública técnica” na Saúde. O principal objetivo dessa declaração foi
mais uma vez reiterar e explicitar que os profissionais de saúde não tinham nenhuma
responsabilidade sobre a situação enfrentada nas unidades e que o dever de solucionar a crise
era dos gestores de todos os níveis da administração pública. Para ilustrar o receio dos
representantes de categorias profissionais que participaram do encontro, trago um trecho da fala
do diretor do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), reproduzido em um informe do
CREMERJ sobre a reunião:

Nossa preocupação diante desse cenário é sermos responsabilizados


judicialmente por algum erro, mesmo tendo feito tudo para atender um
paciente nas condições em que a unidade está. É uma escolha difícil que
temos diariamente. Suspender o atendimento é condenar uma
quantidade imensa de pessoas à morte ou a uma sequela irreversível. Já
manter o hospital aberto é correr o risco de que algo possa dar errado e
isso gere uma punição injusta. (CREMERJ, 2017b).

No final do ano de 2018, após o “vazamento” e a divulgação do plano de reorganização


dos serviços de Atenção Primária à Saúde por parte da Prefeitura, o Fórum Popular do
Orçamento do Rio de Janeiro publicou uma análise dos investimentos municipais em Saúde
nos últimos anos. Ao comparar os valores empenhados e a composição do orçamento do setor
entre os anos de 2015 e 2018, os especialistas apontaram uma “tendência” de redução das
despesas de custeio iniciada em 2017, primeiro ano da gestão do prefeito Marcelo Crivella. De
acordo com o Fórum, tal redução faria parte de uma política de cortes sucessivos nos gastos
com Saúde – os quais, por sua vez, teriam sido motivados pela sensível queda na arrecadação
municipal. A conclusão do texto é a de que a redução do orçamento é “a principal causa da
deterioração da rede pública de saúde carioca” (FPO-RJ, 2018).
Com o passar do tempo e a continuidade e/ou agravamento da situação de precariedade
em inúmeras unidades públicas de saúde; a divulgação de novos elementos que colocavam em
xeque as alegações dos governantes e suas equipes para explicar a crise; e o surgimento da
“austeridade” como marca das propostas para a sua superação, outras contraversões – que, de
certo modo, já estavam presentes desde o início das contestações das versões oficiais –
ganharam força. Discutirei nas próximas seções as ideias de que a crise se deve ao fato de os
políticos e gestores terem “esvaziado os cofres públicos” ou de que, a crise, na verdade, faz
parte de um projeto político mais amplo.
130

2.2 – “Roubaram demais”: a crise como produto da corrupção

O ponto de vista de que a crise foi causada pelo desvio de verbas e por outras formas de
corrupção dos políticos esteve presente desde o princípio nos debates sobre a situação da saúde
pública no Rio de Janeiro, ainda que nem sempre explicitado e/ou replicado pelos veículos de
comunicação. Entretanto, acontecimentos que receberam ampla cobertura midiática – tais como
a deflagração de operações policiais, denúncias apresentadas pelo Ministério Público etc. –
fizeram com que essa contraversão ganhasse força e assumisse um certo protagonismo na
explicação da crise. Uma acusação subjacente aos discursos que equacionam crise e corrupção
apresentados por políticos de oposição, especialistas, profissionais de saúde, entre outros, é a
de “descompromisso com o bem público” e, mais especificamente, com a saúde pública e o
Sistema Único de Saúde (SUS).
A partir de meados de 2016, os informes do CREMERJ passaram a classificar a
corrupção como um dos principais problemas não apenas da Saúde, mas do Brasil como um
todo. Na sala de espera, corredores e balcões de atendimento da Câmara de Resolução de
Litígios de Saúde (CRLS), não raras foram as vezes em que a corrupção dos gestores foi
apontada como a “verdadeira causa” da escassez de medicamentos, da falta de profissionais de
saúde, da demora para a realização de um exame etc. Como disse um dos assistidos da
instituição ao ser atendido por uma das assistentes sociais: “roubaram demais, agora a gente é
quem paga”.
Em dezembro de 2016, o jornal O Estado de São Paulo publicou um levantamento feito
a partir de dados disponibilizados pela Controladoria Geral da União (CGU) sobre casos de
desvio de verbas federais repassadas aos municípios investigados pelo órgão. O estudo mostrou
que 70% dos casos de corrupção apurados entre 2003 e 2016 envolviam recursos destinados à
Saúde e à Educação. Segundo o jornalista Fausto Macedo, foram detectadas fraudes no uso de
recursos da União por políticos, secretários e gestores em Prefeituras de pelo menos 729
cidades, o que corresponde a 13% dos municípios existentes no Brasil. O valor mínimo
movimentado em esquemas de corrupção ao longo desse período foi estimado pela CGU em
cerca de R$ 4 bilhões. (Macedo, 2016).
Como discute Bezerra (2017 e 2018), a utilização da categoria corrupção para explicar
diferentes situações sociais possui um histórico no Brasil, de modo que interpretações
essencialistas colocam a corruptibilidade brasileira como uma espécie de traço do “caráter
nacional” que possui raízes históricas e culturais específicas. O autor também demonstra que
quando “escândalos” são “descobertos” e noticiados pela mídia, o tema da corrupção volta a
131

ocupar um lugar central no debate público, fazendo com que “heróis” e “culpados”
momentâneos sejam apontados.
É em um cenário de proliferação de “escândalos” que a contraversão que coloca a crise
da saúde como produto da corrupção da classe política ganha força. O contexto de constantes
“escândalos” envolvendo diferentes formas de corrupção praticadas por políticos, gestores,
empresários, servidores públicos etc. aqui analisado é indissociável do desenvolvimento da
operação “Lava Jato”. Isto é, a operação e seus inúmeros desdobramentos se encontram no pano
de fundo dos debates públicos sobre as origens das crises tanto política quanto econômica no
Brasil. Iniciada em 2014 e descrita por muitos – até mesmo pelo Ministério Público e pela
Polícia Federal – como “a maior investigação de corrupção, fraude e lavagem de dinheiro da
história do país”, a Lava Jato conta, atualmente, com mais de 60 fases operacionais. Em janeiro
de 2017, peritos da Polícia Federal afirmaram que os valores das transações investigadas no
âmbito da operação somavam cerca de R$ 8 trilhões. No Rio de Janeiro, a Lava Jato deu origem
a outras operações que resultaram no indiciamento e/ou prisão de governantes, secretários de
governo, servidores públicos e empresários, tais como as operações “Calicute”, “Eficiência”,
“Fratura Exposta”, “Ressonância” e “Boca de Lobo”.
A deflagração das operações da Polícia Federal se transformaram em acontecimentos
cruciais para que a contraversão da crise enquanto produto da corrupção ganhasse mais
destaque do que outras em determinados momentos. Em novembro de 2016, as prisões, em
sequência, dos ex-governadores do Anthony Garotinho e Sérgio Cabral foram dois desses
episódios. Garotinho foi preso sob a acusação de corrupção eleitoral. De acordo com a denúncia
apresentada, ele teria utilizado o programa municipal Cheque Cidadão para comprar votos para
sua esposa, Rosinha Garotinho, candidata à reeleição para a Prefeitura de Campos dos
Goytacazes em 2016. Já Cabral foi preso no âmbito da operação “Calicute”. O ex-governador
foi acusado de receber propina para a celebração de contratos com empreiteiras para a
realização de obras públicas durante o seu mandato.
É importante lembrar que, no final de 2016, o pacote de “ajuste fiscal” apresentado por
Pezão estava sendo votado pelos deputados na ALERJ e que as medidas propostas pelo
governador tinham como argumento a falta de recursos provocada pela crise. Para os membros
da oposição e os movimentos sociais organizados contra o pacote, a detenção dos antigos
governadores serviu de argumento para questionar as origens da crise no estado do Rio de
Janeiro e para fortalecer a objeção aos projetos de “cortes” e “reorganizações” do então
governador. O principal argumento dos opositores era o de que “não caberia aos trabalhadores
pagar a conta da corrupção dos políticos”. Durante o período da votação, os servidores da área
132

de Segurança Pública realizaram uma manifestação na frente da Assembleia Legislativa e


chegaram a invadir o plenário. Os dias seguintes foram marcados por uma série de protestos
realizados por servidores ativos e aposentados de diferentes categorias, o que resultou no
fechamento das galerias do plenário para o público e na instalação de grades ao redor da ALERJ
e em vias próximas.
Nesse contexto, um dos mais ferrenhos opositores ao Governo do estado, o então
deputado estadual Marcelo Freixo, declarou em um vídeo que parte da culpa pela crise no Rio
de Janeiro era da “gestão corrupta” de Sérgio Cabral e dos políticos do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB). Ele também aproveitou para lembrar que o PSOL havia
solicitado a abertura de uma CPI para investigar as reformas do estádio do Maracanã e a
contratação da construtora Delta Engenharia para fazer outras obras no Rio de Janeiro. Em suas
palavras: “essa crise econômica é fruto da péssima gestão, da gestão corrupta, quadrilheira de
Sérgio Cabral e sua turma. Eles faliram o Rio de Janeiro com a sua maneira de governar, com
empréstimos irresponsáveis e com corrupção” (UOL-Rio, 2016a).
Logo após a prisão de Sérgio Cabral, a ideia de que os governadores do PMDB foram
os pivôs da crise também foi replicada por jornalistas de diferentes portais de notícias e blogs,
como, por exemplo, nos textos “Cabral e Pezão faliram o estado do Rio” (Jakobskind, 2016) e
“Sérgio Cabral: mesadas, helicópteros, lancha, … assim o Estado faliu” (Auler, 2016). Além
dos políticos e membros de determinados partidos, atores que faziam parte diretamente do
Judiciário – como juízes e desembargadores – e/ou que atuavam em órgãos que lidam com o
Sistema de Justiça – tais como defensores públicos e procuradores – também emitiram opiniões
acerca do papel da “corrupção dos governantes” na crise financeira do Estado. Na ocasião da
prisão de Sérgio Cabral, um procurador federal do Ministério Público Federal do Paraná (MPF-
PR) declarou que a situação do Rio de Janeiro era um exemplo dos efeitos da corrupção na
administração pública. Segundo ele: “a sociedade sofre muito com a corrupção. Aqui no Rio,
vemos faltar o mínimo por conta da corrupção” (UOL-Rio, 2016b).
Em janeiro de 2017, a operação “Calicute” se desdobrou na operação “Eficiência”, na
qual foi determinada a prisão do empresário Eike Batista, acusado de pagar propinas para o ex-
governador Sérgio Cabral. Na decisão judicial que estabeleceu a prisão preventiva do
empresário, o juiz responsável por conduzir as fases da operação “Lava Jato” no âmbito do Rio
de Janeiro declarou que a corrupção foi um dos elementos que fez com que o governador
decretasse o estado de “calamidade pública”. Para justificar a necessidade de privação de
liberdade do acusado, o juiz argumenta que
133

os casos que envolvem corrupção, de igual forma, têm enorme potencial


para atingir, com severidade, número infinitamente maior de pessoas.
Basta considerar que os recursos públicos que são desviados por
práticas corruptas deixam de ser utilizados em serviços públicos
essenciais, como saúde e segurança públicas.
Nota-se ainda que, com a corrosão dos orçamentos públicos,
depreciados pelo “custo-corrupção”, toda a sociedade vem a ser
chamada a cobrir seguidos “rombos orçamentários”. Aliás, essa é a
razão que levou o governador do Estado do Rio de Janeiro a decretar
recentemente o estado de calamidade pública devido à crise financeira.
(Folha Política, 2017).

Em meados de abril de 2017, a divulgação da operação “Fratura Exposta” enfraqueceu


ainda mais as justificativas dadas por Pezão para explicar o cenário da crise e reforçou a ideia
de que a situação de precariedade enfrentada nas unidades públicas de saúde era o resultado de
anos de uma “gestão corrupta”28. A operação resultou na prisão do secretário de estado de Saúde
durante o governo de Sérgio Cabral entre os anos de 2007 e 2013, Sérgio Côrtes – o mesmo
que foi elogiado por ter identificado um “esquema de corrupção” no Instituto Nacional de
Traumatologia e Ortopedia (INTO) após ser nomeado diretor da instituição em 2002 e que foi
indicado pelo Ministério da Saúde como coordenador da intervenção federal durante a crise da
saúde no Rio de Janeiro em 2005. Além do ex-secretário, foram presos os empresários na área
da saúde Miguel Iskin e Gustavo Estellita. Todos eles foram acusados de estar envolvidos em
um esquema de fraude de licitação para compra de materiais hospitalares, em especial as
próteses ortopédicas usadas no INTO. Além de licitações e contratos superfaturados, houve
também o desvio de recursos do Fundo Estadual de Saúde (FES) para a Secretaria de
Comunicação Social com o intuito de realizar propaganda governamental. De acordo com o
Ministério Público, na época da denúncia, havia uma estimativa de que mais de R$ 300 milhões
haviam sido desviados da Secretaria de Estado de Saúde (SES).
Em julho de 2018, a operação “Ressonância”, trouxe novamente a questão da corrupção
para a discussão pública sobre as origens da crise da saúde. A ação da PF se baseou nas provas
e depoimentos obtidos na operação “Fratura Exposta” e visou desbaratar o cartel que atuava

28
Não foram somente os membros do Executivo os alvos dos desdobramentos da “Lava Jato” no Rio. Em
novembro do 2017, o então presidente da ALERJ e deputado estadual, Jorge Picciani, teve sua prisão preventiva
determinada após ser conduzido coercitivamente para prestar depoimento no âmbito da operação “Cadeia Velha”.
Nessa mesma operação foram presos os também deputados estaduais do PMDB Paulo Melo e Edson Albertassi; e
os empresários Jacob Barata Filho (dono de 11 empresas de ônibus que circulam no Rio de Janeiro e conhecido
como o herdeiro do “Rei dos Ônibus”) e Felipe Picciani, filho de Jorge Picciani. O objetivo da operação era
investigar e apurar o uso da presidência e outros postos-chave na ALERJ para a prática de corrupção, de formação
de organização criminosa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
134

nas licitações promovidas pela SES e pelo INTO. A operação cumpriu 22 mandatos de prisão
(sendo 13 de prisão preventiva e 9 de prisão de temporária) e 43 mandatos de busca e apreensão.
Próximo do fim do ano, a prisão do então governador Pezão no âmbito da operação
“Boca de Lobo” tornou ainda mais frágeis as já desgastadas justificativas da redução na
arrecadação de impostos e queda do preço do petróleo como motores da crise no estado do Rio
de Janeiro. Como dito no capítulo anterior, além de Pezão, outros secretários do governo de
Cabral e servidores de órgãos públicos foram presos nessa operação. A acusação de que todas
essas pessoas estariam envolvidas em esquemas de pagamento e/ou recebimento de propinas
ao longo dos oito anos de mandato de Cabral serviu para reforçar a argumentação de que o
quadro atual de crise derivaria de um histórico “assalto aos cofres públicos”.
É importante salientar que as acusações de corrupção dos governantes não se limitou
aos políticos e gestores do nível estadual. Embora não tenha sido formalmente acusado até o
momento, o ex-prefeito do Rio, Eduardo Paes, vem sendo investigado em diferentes
desdobramentos da operação “Lava Jato” nos últimos anos. Em abril de 2017, um dos chefes
do chamado “departamento de propinas” do grupo Odebrecht29 e outros executivos da empresa
afirmaram em suas “delações premiadas”30 que o antigo prefeito havia recebido mais de R$ 15
milhões para favorecer a empreiteira na contratação de obras para a realização dos Jogos
Olímpicos de 2016.
Pouco tempo depois, em agosto do mesmo ano, Alexandre Pinto, o ex-secretário de
obras do Rio de Janeiro durante os dois mandatos de Eduardo Paes, foi preso preventivamente
após ser acusado de receber mais de R$ 30 milhões em propinas por meio da cobrança de 1%
do valor dos contratos para a execução de obras como a construção do corredor de ônibus
Transcarioca, a drenagem dos córregos da Bacia de Jacarepaguá etc. Apesar do texto ser sobre

29
O grupo de empresas controlado pela empreiteira Odebrecht foi um dos principais alvos da operação “Lava
Jato” no Brasil. De acordo com as inúmeras reportagens sobre as “delações premiadas” de seus antigos executivos,
a empresa contava com um “Setor de Operações Estruturadas” que, na verdade, funcionava como um
“departamento de propina” responsável por administrar os pagamentos feitos a políticos por vias legais (doação
oficial para os partidos) e ilegais (criação de caixa 2 de campanhas eleitorais). Os depoimentos prestados pelos
empresários falam sobre valores pagos a políticos de muitos partidos, que atuavam tanto no Legislativo quanto no
Executivo, em diferentes níveis de gestão (municipal, estadual e federal) e para diferentes finalidades
(favorecimento em licitações, superfaturamento de contratos etc.).
30
A “delação premiada”, nome pelo qual ficou popularmente conhecida a colaboração premiada, é um mecanismo
de investigação e obtenção de provas previsto na Lei de Organizações Criminosas (Lei 8.250/2013) que dispõe
sobre os benefícios concedidos ao réu que contribua efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo
criminal. Em um contexto de avanço da operação “Lava Jato”, a “delação premiada” passou a ocupar um
importante espaço no debate público sobre corrupção, bem como ganhou contornos político-administrativo-
jurídicos específicos, funcionando como elemento de barganha entre réus de diferentes categorias (políticos,
empresários, gestores etc.) e atores ligados ao Sistema de Justiça (promotores, procuradores, juízes,
desembargadores etc.). Por fim, é preciso lembrar que foi a “delação premiada” do doleiro Alberto Youssef o
pontapé inicial para as outras fases da operação.
135

a prisão do antigo secretário, a revista Fórum publicou a notícia com o título “Operação Lava
Jato chega em Eduardo Paes”, como forma de enredar o antigo prefeito em um esquema de
corrupção comandado pela chamada “organização criminosa” chefiada pelo ex-governador
Sérgio Cabral e que possuía ligações com o PMDB em todo o estado do Rio de Janeiro. Em
resposta, Paes afirmou que Alexandre Pinto era um “funcionário de carreira” (ou seja, um
servidor público concursado) da Prefeitura do Rio e que sua nomeação para a Secretaria da
Obras não foi uma “indicação política”. Paes também se colocou em uma posição de
surpreendido ao dizer que “caso confirmadas as acusações, será uma grande decepção o
resultado dessa investigação” (Bittencourt, 2017).
Em depoimento divulgado no dia 04 de outubro de 2018 – ou seja, três dias antes do
primeiro turno das eleições de 2018, na qual Eduardo Paes estava concorrendo ao cargo de
governador do estado do Rio de Janeiro –, Alexandre Pinto declarou que havia testemunhado o
fechamento de acordos entre empreiteiras e Paes no próprio gabinete do prefeito. O antigo
secretário afirmou que muitas das maiores obras realizadas na cidade naquele período eram
encaminhadas para a Secretaria de Obras já com a determinação de qual empresa ganharia a
licitação, de modo que o órgão seria responsável apenas por dar “ares de legalidade” ao
processo licitatório e garantir que empresas de fora do cartel não conseguissem sequer
participar. Em sua defesa, Paes publicou uma nota dizendo que as acusações de Alexandre Pinto
eram “totalmente mentirosas” e contrárias aos seus depoimentos anteriores, nos quais nunca
havia mencionado a participação do ex-prefeito nas negociações com as empreiteiras. A nota
também buscou colocar a credibilidade de Alexandre Pinto em xeque ao sugerir que ele só teria
feito tais acusações naquele momento para tentar desestabilizar a candidatura de Paes e garantir
cargos e vantagens em um eventual governo chefiado por outro candidato (Platonow, 2018).
Além da divulgação das operações policiais e das denúncias feitas por políticos da
oposição, as análises e opiniões de diferentes especialistas também compõem o enquadramento
que define a crise da saúde como produto da corrupção. De acordo com as notas publicadas
pela ONG Contas Abertas, a corrupção político-empresarial não tem apenas um papel crucial
no engendramento da crise, mas é um elemento que se encontra na própria conformação do
“Estado brasileiro”. A centralidade da deturpação dos cargos, interesses e bens públicos no
Brasil parece ser um dos temas que mais preocupam a Organização, haja visto que sua página
na internet conta com uma seção exclusiva de notícias e artigos dedicados ao debate de questões
envolvendo essa questão.
Entre novembro de 2016 e dezembro de 2018, a Contas Abertas publicou 140 textos
contidos na aba “Corrupção”. Em alguns desses textos, a Saúde e a Educação são mencionadas
136

como os setores mais afetados pelas práticas corruptas dos governantes. Dentre esses 140
textos, 6 deles mencionam expressamente em seus títulos a ligação entre os problemas da saúde
pública brasileira e os desvios cometidos por políticos. Em um artigo cujo objetivo é explicar
como o “Caixa 2” causa desemprego e prejudica a Educação e a Saúde, a corrupção como traço
histórico da administração pública brasileira e a conexão entre corrupção e crise são colocadas
de modo claro e direto, como se pode ver nos seguintes trechos:

A corrupção desenfreada no Brasil, que envolve políticos de quase


todos os partidos, afeta não apenas os grandes investimentos. A
população sofre porque o desvio de recursos retira investimentos da
educação, saúde, saneamento básico, transporte público. O resultado é
que vivemos em um país que não cresce há três anos, tem uma educação
deficiente, 13 milhões de desempregados e uma das mais altas taxas de
desigualdade social.
[...]
Se há algo de positivo que podemos retirar deste turbulento período de
crise econômica e corrupção é que os brasileiros estão começando a
associar as práticas ilegais à crise econômica e aos poucos resgatam a
noção de República e democracia. (Agência Contas Abertas, 2017b).

Ainda que não tão explicitado, o nexo corrupção-crise aparece em outros textos da
ONG. Em um deles, é apresentado um cálculo do que poderia ser feito com os R$ 10 bilhões
que a Odebrecht disse ter pago em propinas entre os anos de 2010 e 2017. Tendo como base os
valores relatados pelo Ministério do Planejamento e pela Comissão de Orçamento do Congresso
Nacional, o presidente da Contas Abertas afirma que esse montante poderia ter sido utilizado
para melhorias na infraestrutura pública de saúde, como, por exemplo, a construção de 5.150
Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou a compra de 83.944 ambulâncias (Agência Contas
Abertas, 2017a).
Outros especialistas que também reforçaram a contraversão da crise como produto da
corrupção foram os membros da ABRASCO e os conselhos, associações e sindicatos de
diferentes categorias de profissionais de saúde. Da mesma forma que a ONG Contas Abertas,
a Associação Brasileira de Saúde Coletiva descreve a corrupção como aquilo que caracteriza o
“modo perverso de funcionamento do Estado e da Sociedade brasileira”, como é possível
observar no trecho que inicia o texto de uma nota oficial da ABRASCO publicada em março
de 2016:

A política no Brasil está marcada, há décadas, pela relação promíscua


entre partidos, lideranças, congressistas e governantes com empresas e
grupos de interesse privado. Esta forma de atuar, infelizmente, não é
137

atributo deste ou daquele partido, ou deste ou daquele governo mas,


infelizmente é o modus operandi predominante na tradição do país. Esse
padrão degradado de negócios com a coisa pública tem gerado
corrupção, mas também tem permitido a apropriação privada do
orçamento público, supostamente destinado a assegurar políticas
públicas e o bem-estar. (ABRASCO, 2016a).

De acordo com a ABRASCO, a consequência mais imediata dessa “apropriação privada


do orçamento público” é o enfraquecimento do SUS e o acirramento de desigualdades sociais
de diferentes ordens: concentração de renda, degradação urbana, acesso a serviços de saúde etc.
A ideia de que é a corrupção um dos elementos essenciais que faz com o Sistema Único de
Saúde enfrente uma crise foi replicada dois anos depois pelo então presidente do CREMERJ,
Nelson Nahon, ao afirmar que “a viabilidade do SUS só depende do financiamento, de uma boa
gestão e do fim da corrupção”.
A fala de Nahon foi uma resposta a uma declaração dada em julho de 2017 pelo então
ministro da Saúde, Ricardo Barros. Como mencionado no capítulo anterior, o antigo ministro
afirmou que um dos principais problemas do SUS seriam os médicos que “fingem trabalhar”.
Naquela época, a Associação Médica do Espírito Santo já havia rebatido a acusação de Barros
ressaltando o papel da corrupção dos políticos e gestores na composição do quadro de crise da
saúde. O posicionamento da instituição fica explicitado em uma nota na qual consta o seguinte
trecho:

Em mais uma declaração infeliz, o ministro da Saúde, Ricardo Barros,


tenta atribuir aos médicos do SUS a culpa pelos problemas que o
sistema apresenta desde o seu nascedouro. Dizer que os médicos do
SUS 'fingem que trabalham' é uma afirmação leviana e desrespeitosa de
quem não conhece a realidade da saúde pública no Brasil. O ministro e
os políticos, de forma geral, deveriam olhar para o próprio umbigo. Não
são os médicos do SUS que estão sendo investigados por corrupção e
desvio de bilhões em recursos públicos que deveriam ter sido
destinados aos serviços públicos em benefício da sociedade. Quem
finge que gerencia são esses mesmos políticos, que vão parar nas
cadeiras de gestores públicos para satisfazer as vontades pouco ou nada
republicanas de partidos políticos. (Oliveira, 2017).

O pagamento e/ou recebimento de propina; o desvio de verbas; as falsificações dos


processos licitatórios; o superfaturamento de contratos e outras fraudes de cunho financeiro
figuram como as principais formas de expressão da “corrupção dos governantes” diretamente
ligadas às origens da crise. Contudo, a leitura dos artigos de jornal, notas institucionais e
discursos de políticos da oposição revela que outras “práticas comuns” dos políticos também
138

são colocadas sob essa designação, como, por exemplo, as acusações de “clientelismo”. Ou
seja, a corrupção pode também assumir outras configurações que levam a população a ter que
lidar com a falta de atendimento nos hospitais públicos e com as dificuldades para a marcação
de consultas e/ou exames, tais como o favorecimento de pacientes diretamente indicados por
pessoas que ocupam cargos de gestão não só nas Secretarias Municipal e de Estado de Saúde,
mas também nas próprias unidades de saúde.
Um exemplo de acusação de “gestão clientelista” e de argumentação que coloca os
obstáculos enfrentados pelos pacientes nas unidades públicas de saúde não apenas como fruto
da crise financeira, mas também como resultado de práticas igualmente corruptas dos políticos,
gestores e até mesmo dos profissionais de saúde, seu deu em torno do “caso Márcia”,
apresentado no capítulo anterior. Ao pedir que os pastores “falassem com a Márcia” para que
os membros de suas igrejas conseguissem “furar fila” no agendamento de cirurgias de catarata,
varizes e vasectomia, o prefeito Marcelo Crivella foi acusado de estar favorecendo
determinados grupos no acesso a serviços de saúde que, ao menos no plano formal, são para
todos os cidadãos.
A situação rendeu ao prefeito do Rio três pedidos de impeachment protocolados por
políticos da oposição. Nos informes do CREMERJ, o episódio foi descrito como absurdo e em
grave discordância com as diretrizes de Universalidade e Igualdade que orientam o SUS, de
modo que o Conselho entraria com uma representação contra Crivella no Ministério Público.
A ABRASCO, por sua vez, se colocou contra a “política clientelista” do prefeito e reafirmou o
compromisso da instituição em “lutar por reformar a gestão pública para restringir as
possibilidades de corrupção e de clientelismo, bem como para assegurar um Estado laico e
aberto ao controle da sociedade civil” (ABRASCO, 2016c). Em setembro de 2017, pouco mais
de dois meses depois da reunião com os líderes religiosos, Crivella se tornou réu em uma Ação
Civil Pública (ACP) que o acusava de “improbidade administrativa”.
Com o passar dos anos e o agravamento da situação de precariedade em incontáveis
unidades públicas de saúde, propostas para a “superação da crise” baseadas em cortes no
orçamento, reorganização de serviços e políticas, redução de salários etc. começaram a ser
sugeridas por políticos e gestores dos três níveis da administração pública brasileira. É a partir
do surgimento e intensificação do debate acerca desses projetos que as contraversões tanto da
crise enquanto fruto da má gestão quanto da crise como produto da corrupção passaram a dividir
o terreno com outra argumentação: a de que a crise, na verdade, faz parte de um projeto muito
bem delineado de “desmonte do SUS”.
139

2.3 – O “desmonte do SUS”: a crise como um projeto político

Como dito anteriormente, desde que os governantes começaram a dar as primeiras


declarações afirmando que os problemas enfrentados nas unidades públicas de saúde eram
oriundos de uma situação de “crise financeira”, essa ideia foi questionada por diferentes atores,
órgãos e instituições. Na medida em que surgiram as primeiras propostas para a superação da
crise baseadas no argumento de que seria preciso chegar a um equilíbrio entre o que o Estado
poderia ofertar e o que estaria incluído no “direito à saúde”, outra forma de criticar as versões
oficiais da crise passou a ganhar espaço entre especialistas, políticos da oposição e
representantes de movimentos sociais. As objeções apresentadas por esses sujeitos colocavam
em xeque não somente as causas da crise, mas, de certo modo, a própria ideia da existência de
uma crise tal como ela é entendida no senso comum. É essa contestação da “verdade da crise”
por meio da enunciação de sua “finalidade política” que classifico como uma terceira
contraversão: a crise enquanto um projeto de “desmonte do SUS”.
Como venho discutindo ao longo do capítulo, as contraversões da crise formuladas por
diferentes atores e instituições não são necessariamente excludentes entre si. Assim, ainda que
a ideia de que a crise faz parte de um plano específico de “desmonte do SUS” seja o fundamento
da última contraversão que discuto neste capítulo, ela se configura a partir de dois raciocínios
distintos. De maneira resumida, o primeiro deles se articula às outras contraversões, dando a
entender que a crise é fruto da má gestão e/ou da corrupção e que está sendo utilizada como
justificativa para a implementação de “políticas de austeridade”; já o segundo argumento
descarta a hipótese de que há uma “má gestão” no sentido de “falha” ou “erro”, de modo a
colocar a própria origem da crise como parte do “projeto de desmonte”. Ou seja, nesse segundo
raciocínio, a crise nada mais é do que o resultado de escolhas políticas e cortes orçamentários
arbitrários que objetivam a produção de uma situação caótica e problemática para justificar a
necessidade de uma urgente “reforma” e intervenção estatal.
Uma das primeiras manifestações “em defesa do SUS” e contra o “projeto de desmonte”
foi feita pela ABRASCO – em conjunto com outras instituições e associações de saúde, tais
como a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) e a Associação Brasileira de Saúde
Bucal (ABRASBUCO) – no primeiro semestre de 2016, logo após Michel temer assumir
interinamente a Presidência da República e trocar a equipe de ministros. Como dito, naquela
ocasião, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, havia afirmado que um dos grandes
problemas da saúde brasileira era o “tamanho excessivo do SUS”. Diante dessa declaração, a
Associação publicou uma nota oficial na qual classificou a declaração do ministro como
140

“inaceitável” e “indignante”. A ABRASCO também manifestou que, naquele momento, uma


das preocupações da entidade era com o “retrocesso” promovido pelas políticas de austeridade
implementadas pelo Governo Federal. Segundo a nota, as medidas propostas por Temer
estariam “rasgando” a Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã” que “consagrou
o Direito à Saúde e o Dever do Estado para com a saúde de todos os brasileiros, inscrevendo o
Brasil no rol dos países civilizados”. A ideia de que a crise faz parte de um projeto é explicitada
no primeiro parágrafo do texto, o qual dize o seguinte:

Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo publicada em 17


de maio de 2016, o atual ministro da Saúde, revelou com toda a clareza
o projeto político do governo provisório de Michel Temer com relação
à Saúde, explicitando que ‘o país precisa rever o direito universal à
saúde’. Suas palavras, fundamentadas em um discurso neoliberal que
prevê a redução do papel do Estado na economia e na garantia dos
direitos sociais, causa indignação a mais de 200 milhões de brasileiros
usuários do Sistema Único de Saúde. (ABRASCO, 2016b).

Durante o afastamento temporário da presidenta Dilma Rousseff por conta do processo


de impeachment, a ABRASCO publicou uma série de notas e manifestos. Naquele momento, a
Associação estava empenhada em denunciar o “sucateamento do SUS” provocado pelos cortes
orçamentários executados por Michel Temer e sua equipe de ministros. Para os membros da
ABRASCO, estava claro que as sucessivas reduções dos recursos destinados à Saúde tinham
como objetivo tornar as condições de trabalho nas unidades públicas de saúde cada vez mais
precárias a ponto de colapsar os serviços. Uma vez colapsado e diagnosticado como
“problemático” e “inviável”, o serviço e/ou unidade poderia ser fechado ou entregue à iniciativa
privada para que passasse por uma “reformulação” e se tornasse “eficiente” novamente. Além
disso, a precarização contínua do SUS e as dificuldades para conseguir atendimento serviriam
para impulsionar a adesão aos “planos de saúde populares” propostos pelo ministro da Saúde
como uma das soluções para a crise da saúde pública no Brasil.
A figura a seguir ilustra um texto publicado pela ABRASCO alguns meses depois de
Barros ter assumido o Ministério da Saúde. A nota da entidade teve o objetivo de divulgar um
artigo publicado no The Lancet – um dos mais prestigiados periódicos científicos da área de
Ciências da Saúde do mundo – sobre o perigo colocado pelo corte de verbas ao funcionamento
do SUS. Intitulado “Austerity threatens universal health coverage in Brazil” (Austeridade
ameaça o direito universal à saúde no Brasil), o artigo de Doniec, Dall’Alba e King (2016)
dedica-se a pensar nos possíveis efeitos caso o programa denominado Uma Ponte para o Futuro
fosse aprovado. De acordo com os autores, se a redução dos gastos públicos ocorresse como
141

prevista no projeto, as pessoas que dependem exclusivamente do SUS – as quais, segundo o


texto, representam cerca de 80% da população brasileira – estariam correndo um grave risco de
ficar sem acesso aos cuidados mais básicos em saúde.

Figura 3 – Charge de Ricardo Barros

Autoria: Aroeira. Fonte: ABRASCO.

No final julho de 2017, após o então ministro da Saúde declarar que o problema da saúde
pública no Brasil era que os “médicos apenas fingem trabalhar”, a ABRASCO mais uma vez
publicou uma nota na qual reitera o absurdo das medidas adotadas pelo Governo Federal para
combater a crise e convoca toda a sociedade a se colocar contra elas. O texto era também um
manifesto que exigia a destituição imediata de Ricardo Barros da liderança do Ministério da
Saúde por conta de sua “incompatibilidade com o cargo ocupado”. Segundo a Associação, era
preciso que a pessoa que ocupasse o cargo de ministro da Saúde fosse “comprometida” com o
fortalecimento e melhoria do SUS e não com as seguradoras privadas de saúde. Segue um trecho
da nota em que o projeto de “desmonte do SUS” – descrito como um “pacto antissocial” – é
mencionado:

o SUS vem se enfraquecendo a cada dia, a cada mês: hospitais públicos


e universitários fecham leitos, restringem procedimentos diagnósticos,
cirurgias e até o atendimento às urgências. A Estratégia de Saúde da
Família, em várias cidades, vem perdendo profissionais que compõem
suas equipes, principalmente enfermeiros e médicos. Esta maneira
ardilosa de destruir uma política pública, essencial para o povo
brasileiro, precisa ser denunciada e interrompida. O Ministério da
142

Saúde e, em grande medida, autoridades sanitárias têm sido cúmplices


com esse genocídio anunciado.
Convocamos os gestores éticos e comprometidos com o SUS, os
profissionais de saúde, a mídia, os movimentos sociais, as igrejas e toda
a sociedade para que rompamos com este pacto antissocial. Que cada
pessoa, grupo, movimento, denuncie este desmonte e se mobilize para
o fortalecimento do SUS. (ABRASCO, 2017a).

Na ocasião da publicação dessa nota, o Ministério da Saúde havia anunciado dias antes
o plano de reorganização da rede de hospitais federais no Rio de Janeiro. Além disso, o antigo
chefe da emergência do Hospital Geral de Bonsucesso havia sido exonerado após denunciar ao
CREMERJ o fim dos contratos temporários e as sucessivas recusas do Ministério em sanar os
problemas de recursos humanos da instituição. Semanas depois, o prefeito Marcelo Crivella
comunicou que fecharia 11 Clínicas da Família na Zona Oeste da cidade. Diante desse cenário,
a ABRASCO publicou uma nota cujo título é “Abrasco contra o desmonte do SUS – crise
crônica na rede do Rio de Janeiro”, da qual reproduzo o seguinte trecho:

O Rio de Janeiro, município com a maior capacidade hospitalar em todo


o país, agoniza em meio a uma crise econômica sem precedentes,
deixando como marca o caos e a descontinuidade de atendimentos nas
três esferas de gestão dos serviços de saúde, o que só interessa àqueles
comprometidos com o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS). A
Abrasco segue na sua missão institucional de defender o SUS e de
denunciar movimentos que demostram claramente o interesse em
fragmentar o sistema – seja por inanição de recursos, seja por má
condução da racionalidade de gestão. O fazemos pelo SUS e pela saúde
do Rio de Janeiro: resistiremos e lutaremos.
A rede federal na cidade encontra-se num processo de dita
reorganização que só a esfacela, enquanto a estadual sofreu cortes na
ordem de R$ 1 bilhão, e a municipal é obrigada a absorver uma
demanda reprimida e multiplicada. (ABRASCO, 2017b).

Nesse contexto, outros atores também reforçaram a narrativa de “desmonte do SUS” e


da necessidade de combatê-lo. O CREMERJ, por exemplo, participou de um ato público
realizado na manhã do dia 03 de agosto de 2017 cuja pauta era o “sucateamento da saúde” no
Rio de Janeiro, em especial dos hospitais federais. O ato foi batizado de “Fora Barros”, pois a
principal reivindicação dos manifestantes era a saída do ministro da Saúde dos quadros do
governo. Na ocasião, um grupo de instituições e profissionais de saúde divulgaram o manifesto
“SUS fica! Barros sai”. O documento elaborado por esses sujeitos denunciou o interesse do
ministro em promover planos de saúde privados em detrimento do SUS. Durante o ato, o então
presidente do CREMERJ, Nelson Nahon, declarou:
143

Estamos assistindo a um desmonte cruel de toda a rede pública do


Estado do Rio. São serviços sendo fechados, profissionais sendo
demitidos, medicamentos e insumos em falta, superlotação, péssimas
condições de trabalho, além da longa fila para cirurgias e falta de leitos.
Isso tudo é resultado do modelo de administração que vem sendo
adotado pelas três esferas de governo, com clara intenção de
privatização. Nós não aceitamos este modelo. Não vamos permitir o fim
do SUS. (CREMERJ, 2017a).

Outro assunto em voga naquele momento era o plano de reestruturação dos hospitais
federais na cidade do Rio de Janeiro, o qual foi recebido com suspeitas tanto pelo CREMERJ
quanto pelos membros da DPU e do MPF. Para os médicos do Conselho, os dados apresentados
pelo secretário da Atenção à Saúde, Francisco de Assis Figueiredo, não condiziam com a
realidade das unidades. Em sua contestação, declararam que se as filas diminuíram – como
disse o secretário na reunião na qual o plano foi exposto –, não foi porque mais procedimentos
cirúrgicos foram feitos, mas sim por causa da suspensão de novos inscritos desde o mês de abril
de 2017. Além disso, para a diretoria do CREMERJ, o plano serviria para encobrir as principais
causas de um possível colapso na rede federal de saúde: 1) o fim dos contratos temporários de
cerca de um quarto dos profissionais que atuavam nos hospitais, os quais o Ministério da Saúde
já havia anunciado que não seriam renovados; e 2) a não previsão de realização de concursos
públicos para recompor o quadro de funcionários. Em outras palavras, para os representantes
do CREMERJ, a reestruturação seria parte, na verdade, do “projeto de desmonte da rede
federal” que estava sendo capitaneado pelo ministro da Saúde e seus secretários.
Já os representantes da DPU e do MPF afirmaram que a reestruturação era uma demanda
antiga e fundamental para atender aos interesses e necessidades da população. Contudo, eles
manifestaram preocupação quanto ao modo como essa reorganização seria feita, pois de forma
alguma ela poderia levar a uma redução da qualidade e da quantidade de atendimentos
realizados nas unidades. A desconfiança dos defensores e promotores era de que o discurso de
“reestruturação dos hospitais” estaria sendo usado para executar um plano de demissão de
profissionais e fechamento de setores e serviços. Tanto defensores quanto promotores se
comprometeram a “acompanhar de perto” todo o processo de reestruturação.
A situação de precariedade nos hospitais federais da cidade também atraíram a atenção
de alguns parlamentares. A médica e deputada federal Jandira Feghali (PCdoB) foi uma das
principais vozes nas denúncias das péssimas condições em que se encontravam os hospitais
federais do Rio de Janeiro na Câmara dos Deputados e na “defesa do SUS” no âmbito nacional.
Ela integrou uma Comissão Externa responsável por visitar e avaliar as unidades federais de
144

saúde no Rio. Uma das iniciativas das quais Feghali fez parte – junto ao CREMERJ e outras
entidades médicas – foi uma ação judicial em prol da contratação imediata de profissionais de
saúde para os hospitais federais do Rio.
Em junho de 2017, momento agudo da crise na rede de hospitais federais, Feghali
apresentou uma representação na Procuradoria Geral da República (PGR) contra Ricardo
Barros. Segundo a deputada, o então ministro estava fazendo uma gestão “orientada por
planilhas” com o objetivo único de “reduzir despesas”, uma forma de administração que estava
levando a óbito inúmeros pacientes que dependiam da rede pública de saúde. Em sua denúncia,
ela pediu que Ricardo Barros fosse responsabilizado criminalmente, uma vez que

a exposição a perigo para a vida ou saúde, a lesão corporal e a morte da


população do Rio de Janeiro por falta de atendimento médico é
decorrência lógica, óbvia e previsível da conduta do ministro, que
possui o múnus público, o dever de agir enquanto agente do Estado e
de garantir o fornecimento de serviços de saúde nos hospitais federais.
Todavia, assim não procedeu o ministro de Estado. (Jandira Feghali)

Para além da situação das clínicas e hospitais públicos no Rio de Janeiro, os cortes no
orçamento da União para a Saúde e o avanço na tramitação da PEC 241 fizeram com que fosse
criada uma “Frente Parlamentar Mista em Defesa do SUS” no Congresso Nacional no início de
julho de 2016. Coordenada pelo deputado federal Odorico Monteiro (PROS) e contando com
214 Deputados e 26 Senadores signatários, o principal objetivo dessa Frente era “funcionar em
harmonia com os movimentos sociais na luta contra o enfraquecimento do sistema público de
saúde do país”. Através de um “Manifesto em Defesa do SUS”, os parlamentares se
posicionaram de maneira contrária aos planos de “ajuste fiscal” que estavam sendo discutidos
pelo então presidente Michel Temer e seus ministros, principalmente o “congelamento de
gastos” que seria promovido com a aprovação da PEC 241. Para os que assinaram esse
manifesto,

A dignidade humana e a solidariedade, preconizadas pela Constituição


como fundamentos da República, estarão violadas se se retrair o
financiamento da saúde pública em nome do ajuste fiscal. Não se
acalma o mercado com desassossego da população, uma vez que motivo
primeiro e último do Estado é a garantia de bem estar de sua população.
Ajuste fiscal que desajusta o direito e a vida das pessoas não pode ser
sustentado por representantes do povo que tem o dever de garanti-lo.
(CNS, 2016).
145

É preciso salientar que não foi somente no âmbito federal que as medidas adotadas pelos
governantes para conter a “crise” foram classificadas pelos políticos da oposição como parte de
um plano de “desmonte do SUS” e de “supressão de direitos sociais”, o mesmo aconteceu nas
esferas estadual e municipal. No que diz respeito ao plano estadual, pouco mais de um mês após
a publicação do decreto de “estado de emergência na saúde pública” por Pezão, o deputado
estadual Flávio Serafini propôs um pedido de abertura de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) para investigar a crise da saúde no âmbito do estado do Rio de Janeiro. No
documento protocolado, o deputado alegou que as auditorias feitas pelo Tribunal de Contas do
Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) apontaram irregularidades em várias unidades de saúde
administradas por diferentes Organizações Sociais (OS). Assim, seria fundamental investigar
os contratos estabelecidos entre o Governo e as empresas prestadoras de serviços. Apesar da
proposta ter sido assinada por 24 deputados – o mínimo necessário para que o pedido fosse
efetivado –, a instalação da CPI pelo presidente da ALERJ nunca aconteceu.
Os políticos da oposição do nível estadual não criticaram somente as medidas
estritamente relacionadas à saúde pública propostas por Pezão e seus gestores. Os decretos e
Projetos de Lei que compunham o “pacote de ajuste fiscal” também fizeram com que os
opositores da chapa Pezão-Dornelles na ALERJ reagissem, classificando o ato de proposição
de tal “pacote” como uma “confissão da incompetência” por parte do Governo do estado. Os
projetos apresentados pelo então governador – todos eles fortemente marcados por uma ideia
de “austeridade indispensável” – foram chamados por alguns desses políticos de “pacote de
maldades do governo Pezão”, especialmente em referência à criação uma alíquota para
servidores aposentados. Além dos parlamentares opositores, o Ministério Público do Estado
do Rio de Janeiro (MPRJ) também analisou as propostas apresentadas pelo Governo do estado
e concluiu que dos 22 Projetos de Lei protocolados, 17 eram inconstitucionais ou incompatíveis
com a legislação vigente. Em entrevista, o procurador-geral de Justiça do Estado, Marfan
Martins Vieira, classificou as propostas do governador como “cruéis” e “perversas”, em
especial aquelas que dispunham sobre a extinção, revisão de critérios e/ou redução de
programas sociais. Uma cópia do parecer do MPRJ foi entregue a cada um dos deputados
estaduais. A expectativa de Vieira era de que as avaliações feitas pela instituição fossem levadas
em consideração no momento da votação dos projetos.
Além das referidas figuras políticas, outras pessoas afirmavam que a crise tinha a
finalidade de implementar um projeto político específico. Em 2016, o portal de notícias Brasil
de Fato publicou um artigo no qual afirmava que os antigos governadores do estado Sérgio
Cabral e Luiz Fernando Pezão foram os responsáveis por “falir o Rio de Janeiro”. Em seu texto,
146

o jornalista Mário Augusto Jakobskind argumentou que as contas do Estado já haviam


colapsado muitos anos antes da crise e que essa estava sendo produzida e utilizada pelos
políticos para encobrir o modelo de gestão que vinha sendo executado pelo PMDB há muitos
anos. O jornalista concluiu seu artigo da seguinte forma:

Portanto, a crise que o Rio de Janeiro enfrenta hoje não é um fenômeno


de 2015. Ela vem sendo gestada ao longo dos nove anos da política
econômica dos governos do PMDB. Agora, Pezão usa a desaceleração
da economia como desculpa para tentar encobrir a responsabilidade que
seu partido tem. (Jakobskind, 2016).

Com um tom menos acusatório do que o utilizado pela ABRASCO e pelos políticos da
oposição – ao menos em relação às críticas feitas aos políticos e gestores do nível estadual –,
órgãos como o CREMERJ e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) também
reforçaram – muitas vezes de maneira sútil e implícita – o argumento de que a crise da saúde
no estado do Rio de Janeiro era produto de um projeto de gestão do SUS. Para o Conselho, uma
das principais causas da crise era o modelo de administração em saúde que vinha sendo aplicado
nos últimos anos, o qual entregou um enorme montante de recursos da Saúde nas mãos das
Organizações Sociais (OS), de modo a terceirizar a responsabilidade estatal pelo cuidado em
saúde da população.
Em um evento chamado “Reage, Rio” e promovido pelos jornais O Globo e Extra, o
promotor de Justiça do MPRJ, Daniel de Lima Ribeiro, apresentou um conjunto de dados para
explicar as razões de as unidades públicas de saúde do Estado estarem passando por uma
situação de crise. As informações mais importantes destacadas na apresentação feita pelo
Promotor foram: 1) o Governo do estado do Rio de Janeiro estava descumprindo a lei
orçamentária desde 2014 ao investir menos do que os obrigatórios 12% da arrecadação anual;
2) o valor de despesas pagas com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) em 2016 foi
cerca de 44% menor em relação ao ano de 2014; e 3) A queda no pagamento das despesas de
ASPS não estava sendo proporcional à frustração da receita – isto é, ainda que estivesse
arrecadando menos do que o previsto, o Governo do estado estava destinando um percentual
ainda menor de recursos para a rede pública de saúde. De acordo com a análise feita pelo MPRJ,
o investimento estadual em saúde seguiu em queda desde 2014.
Os dados apresentados pelo promotor tornaram-se manchete em diferentes jornais e
portais de notícias, bem como foram imediatamente utilizados por muitos dos atores e órgãos
que questionavam as explicações da crise da saúde dadas pelo governador. Munido dessa
147

informação, o CREMERJ passou a defender que o que estava causando a precarização contínua
das unidades estaduais de saúde era a redução do investimento de recursos do Governo do
estado no setor. Uma das iniciativas do Conselho foi se reunir com representantes da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membros dos Conselhos Regionais de Enfermagem (Coren-RJ),
Farmácia (CRF-RJ), Psicologia (CRP-RJ) e de Nutricionistas da 4ª Região (CRN-4) para criar
um comitê que reunisse as diferentes categorias de profissionais de saúde para pensar em formas
de atuação coletiva contra o “desmonte dos hospitais públicos”. Dentre as ações previstas pelo
grupo naquele momento estavam a organização de outros atos públicos em diversos municípios
e a elaboração de um dossiê com informações sobre o “desmonte das unidades” a ser enviado
para o Conselho Nacional de Saúde, de modo a “comprovar de forma técnica os problemas da
rede”.
A seguir, apresento alguns dados que demonstram como o SUS foi subfinanciado na
última década e como esse processo se agravou desde que a narrativa da crise passou a dominar
o debate público sobre saúde não só no Rio de Janeiro, mas no Brasil como um todo. Tais dados
foram mobilizados por diferentes atores e instituições como evidências de que o projeto de
“desmonte do SUS” em prol da privatização e do fortalecimento da rede particular de saúde
esteve em curso na última década no estado do Rio, sendo a crise uma espécie de fator de
aceleração desse processo de “sucateamento da rede pública de saúde”.

Gráfico 6 – Percentual da receita anual aplicada em Saúde no estado do Rio de Janeiro


(2007-2018)
14%

12%

10% 10,8% 11,0% 10,7%


10,5%
9,7% 9,9%
9,1% 9,4%
8%
8,1%
6%
6,1%
4% 5,1%
4,6%

2%

0%
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Investimento Mínimo Constitucional

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Secretaria de Estado de Fazenda do Rio de Janeiro.
148

Gráfico 7 – Leitos Hospitalares de Internação no Estado do Rio de Janeiro (2007-2018)


39.000

36.069 35.876
36.000 34.750
34.223
32.851
33.000
30.707

30.000 28.959 28.964

27.019 26.791
27.000 26.044
24.607
24.160
23.532
24.000 23.065
22.211
21.019 21.141 20.672
21.000 19.963 20.071 19.767 19.623 19.446

18.000
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

SUS Não SUS

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do DataSUS/CNES.

O gráfico 6 diz respeito ao percentual da receita anual aplicada em Ações e Serviços


Públicos de Saúde (ASPS) pelo Governo do estado entre 2007 e 2018. A partir dele é possível
visualizar duas coisas: 1) o investimento do mínimo constitucional de 12% da arrecadação não
ocorre há mais de 10 anos; 2) a queda significativa no montante destinado ao setor a partir do
ano de 2015, quando o então governador decretou “estado de emergência” na saúde pública do
Rio de Janeiro. Já o gráfico 7 é referente à variação na quantidade de leitos hospitalares
cadastrados no estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2007 e 2018, o qual mostra um ritmo
de diminuição no número de leitos do SUS e aumento da quantidade de leitos da rede privada
até 2014, quando estes também começaram a diminuir.
Ao olhar para o estado do Rio de Janeiro como um todo, é possível perceber que, mesmo
em uma “conjuntura de crise”, a quantidade de leitos hospitalares públicos para internação de
pacientes permanece maior do que o número de leitos privados. Contudo, essa tendência não se
repete da mesma maneira na capital, como mostra o seguinte o gráfico:
149

Gráfico 8 – Leitos Hospitalares de Internação no município do Rio de Janeiro (2007-2018)

16.000

15.000 14.795 14.949


14.398
14.668 14.094
14.000 14.406
13.974 13.955 13.859
13.596
13.000

12.640 12.605
12.000 12.373 12.296
11.472
11.776
11.643 10.974
11.000 11.250 10.831
10.555

10.564
10.000 10.243 10.134

9.000
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

SUS Não SUS

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do DataSUS/CNES.

Essa discrepância em relação ao que estava acontecendo no restante do estado do Rio


de Janeiro é apontada por alguns sujeitos e organizações como uma marca da faceta local da
crise da saúde e do projeto de “desmonte do SUS”. No âmbito municipal, as mais duras críticas
às versões oficiais divulgadas pela Prefeitura para explicar a crise da saúde no Rio foram feitas
pelos membros do movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos (NSSM). Desde o seu
surgimento, o NSSM adota a perspectiva de que há em marcha um explícito projeto de
“desmonte do SUS” contra o qual é preciso lutar. Essa ideia está presente em quase todas as
publicações da página. Para os militantes do movimento, a crise não é um momento pontual na
história do SUS, mas sim consequência de uma “doença” que atinge o sistema: o
“subfinanciamento crônico”. No texto de convocação para o primeiro ato realizado pelo
coletivo, no início de agosto de 2017, é construído um raciocínio que coloca a crise da saúde
como parte do histórico de execução desse plano, como é possível observar no seguinte trecho:

Não é de hoje que estamos sempre vigilantes e atentos com os


desmontes que o poder público tem feito no SUS. Começaram
entregando a administração da saúde para as organizações sociais,
depois com atrasos de salários e falta de materiais e medicamentos e
agora querem tirar os únicos serviços que ainda funcionam do povo
150

carioca! Foi anunciado ontem o fechamento de 11 clínicas da família


da zona oeste, a previsão de fechamento de mais clínicas, o aviso prévio
dos trabalhadores da UPA Manguinhos e o fechamento da emergência
psiquiátrica do Instituto Municipal Philippe Pinel. Diante da rápida
mobilização dos trabalhadores da saúde e dos usuários do SUS, o
prefeito voltou atrás e disse que não haverá fechamento das clínicas,
mas não se posicionou quanto à diminuição de trabalhadores e número
de equipes. Além disso, já temos visto nos últimos meses a precarização
dos Hospitais Federais e Estaduais, com demissões, corte de verbas e
falta de materiais e medicamentos. (NSSM, 2017).

Além de se colocar contra um amplo “desmonte do SUS”, o NSSM vem realizando


assembleias e atos públicos contrários às iniciativas específicas dos gestores municipais, as
quais são descritas como “desmontes pontuais” de determinadas políticas de saúde. Como
exemplos desses “desmontes pontuais”, os membros do coletivo elencam o “desmonte da
Estratégia de Saúde da Família” (ESF), a ameaça à rede de saúde mental por meio da
possibilidade de fechamento do Instituto Municipal Nise da Silveira, entre outras situações.
Não foram somente os profissionais de saúde que fazem parte do NSSM que
denunciaram o “desmonte” executado pelo prefeito Marcelo Crivella na saúde municipal, os
membros do CREMERJ e os associados da ABRASCO também reiteraram essas críticas em
diferentes momentos. O Conselho, por exemplo, afirmou em diversas ocasiões que a crise nas
unidades municipais de saúde estava sendo causada pela priorização de recursos para outras
pastas e setores. Como a própria instituição afirmou em um de seus informes, “desde o início
da atual gestão da Prefeitura do Rio, em 2017, o CREMERJ vem denunciando os cortes no
orçamento da Secretaria Municipal de Saúde e suas consequências para a rede” (CREMERJ,
2018a).
Como discutido no primeiro capítulo, seis meses depois de Crivella ter assumido a
Prefeitura do Rio, os cortes orçamentários já estavam gerando consequências nas unidades
municipais de saúde. Após o prefeito confirmar a diminuição de repasses para o setor em agosto
de 2017, um profissional da Rede de Médicas e Médicos Populares declarou em uma entrevista
que o Rio estava passando por uma situação de sobreposição de diferentes crises na área da
saúde. De acordo com ele

As três esferas, municipal, estadual e federal estão passando por um


cenário de calamidade na saúde, o que torna a situação da cidade bem
complicada. Estamos vendo o desmantelamento do SUS, crise dos
serviços da rede estadual e agora o orçamento limitado no município.
O que está se desenhando são mais cortes, demissões e encerramento
de serviços. (Corrêa, 2017).
151

Perto do fim do primeiro ano do mandato de Crivella, em novembro de 2017, o


CREMERJ se reuniu com outras associações e sindicatos de médicos para redigir uma carta de
repúdio não somente aos cortes feitos ao longo do ano, mas também aos que estavam sendo
anunciados para o ano seguinte. Pouco mais de um mês depois, o Conselho entrou com uma
representação contra o prefeito na Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
solicitando a averiguação de uma possível improbidade administrativa cometida por Crivella
ao descumprir com suas obrigações na área da saúde.
A denúncia do CREMERJ tinha como base uma análise dos cortes orçamentários
municipais feita pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ). De acordo
com a investigação, os dados constantes no portal Rio Transparente demonstravam que os
cortes definidos pelo prefeito não obedeceram a regra constitucional de priorização das áreas
que constituem os chamados “direitos fundamentais” – como Saúde e Educação –, uma vez que
o próprio Gabinete do prefeito e as Secretarias Municipais de Meio Ambiente, Assistência
Social, Emprego, Fazenda e Ordem Pública receberam um aumento no seus orçamentos ou
tiveram cortes percentuais inferiores aos da Secretaria Municipal de Saúde.
Em agosto de 2018, o Conselho replicou em um informe os dados levantados por
jornalistas do jornal O Globo que apontavam uma redução de 28,5% no número de cirurgias,
consultas e exames realizados nos hospitais municipais entre janeiro e maio de 2018 em
comparação ao mesmo período no ano de 2016. Para o CREMERJ, esses dados eram evidências
dos efeitos da crise nas unidades de saúde e da tentativa de “asfixiar a rede pública de saúde”
na cidade do Rio de Janeiro (CREMERJ, 2018b). Alguns meses depois, em novembro de 2018,
quando a Prefeitura do Rio anunciou o plano de “Reorganização dos Serviços de Atenção
Primária à Saúde”, o Conselho solicitou uma reunião com a então secretária municipal de
Saúde, Ana Beatriz Busch, para manifestar a preocupação da instituição diante desses cortes e
solicitar que a Prefeitura se comprometesse em não fechar nenhuma Clínica da Família e não
reduzir a cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no município.
Outras categorias e associações de profissionais de saúde foram mais incisivas em suas
reações ao plano de “reorganização” apresentado por Crivella e manifestaram seu repúdio às
propostas do prefeito. O Movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos, por exemplo, se
posicionou absolutamente contrário ao projeto. Já a ABRASCO descreveu a proposta como
parte da “política de desmonte do SUS” e tornou pública uma análise crítica feita por
pesquisadoras da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Nessa análise, os critérios utilizados para
o planejamento do ano de 2019 foram duramente questionados, bem como uma série de
“incoerências” foram apontadas. Para uma das autoras, a reorganização tentou “se revestir de
152

uma aparência e um caráter técnicos” para esconder “finalidades políticas”, quais sejam: a
concepção de um novo modelo de saúde pública – modelo esse que estaria em descompasso
com os princípios do SUS – e o rompimento com os compromissos assumidos durante a
campanha eleitoral. No texto, as autoras concluíram que o plano do prefeito puniria duplamente
as pessoas mais pobres: por um lado, o setor mais afetado pelos cortes seria a Atenção Básica
nas regiões menos favorecidas da cidade; por outro, ao prever o desligamento de muitos agentes
comunitários de saúde, o projeto acabaria por cortar o emprego dos trabalhadores que mais
precisavam (ABRASCO, 2018).
Os políticos da oposição também tiveram um papel preponderante na constante
denúncia do “desmonte do SUS” no âmbito municipal. A bancada do Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL) na Câmara Municipal e na ALERJ propuseram uma Ação Popular pleiteando
a concessão de uma liminar para suspender o Plano de Reorganização dos Serviços de Atenção
Primária da Saúde apresentado pela Prefeitura do Rio. Além disso, a ação demandou que
Crivella e Messina explicassem detalhadamente e tornassem públicos os estudos que
embasaram o projeto.
Um dos parlamentares do PSOL que se destacou nesse movimento foi o vereador Paulo
Pinheiro. Líder da Comissão de Saúde da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em diversas
ocasiões, Pinheiro “desmentiu” as declarações feitas pelo prefeito e pelo secretário municipal
de Saúde em relação a crise, bem como denunciou o “sucateamento” e o “descaso” com que o
setor estava sendo tratado nos últimos anos. Em uma entrevista, o vereador declarou que projeto
de reorganização da Atenção Primária proposto por Crivella era, na verdade, uma “economia
porca” e que deixava explícita a não priorização do setor por parte do prefeito. As afirmativas
de Pinheiro geraram um embate entre ele o então secretário da Casa Civil, Paulo Messina – o
qual o Vereador chamou ironicamente de “Primeiro-Ministro”, por ser apontado como o
responsável por tomar as decisões do prefeito. Em um evento na Fundação Oswaldo Cruz,
Pinheiro relatou que Messina afirmou que “pé da Saúde não caberia no sapato da Fazenda” e
que ao invés de “aumentar o sapato”, a Prefeitura decidiu por “amputar o pé da saúde” ao
reduzir o número de equipes de saúde da família.
Em suma, os atores e instituições que pensam a crise da saúde enquanto parte de um
projeto afirmam que os discursos da crise estariam sendo utilizados como justificativas não só
para “reformas”, “reestruturações” e “reorganizações” dos serviços e políticas de saúde, mas
também para a implementação de agendas específicas de “desmonte” e “sucateamento” do
SUS. Essas medidas estariam alterando radicalmente a oferta de cuidados em saúde no país,
tanto em termos quantitativos, quanto nos aspectos qualitativos. Como explicitado em uma nota
153

oficial da ABRASCO, para aqueles que se posicionavam “em defesa do SUS”, os gestores
públicos de todos os níveis do governo estariam alinhados ao que eles consideravam um
“discurso neoliberal” que reduziria cada vez mais os “direitos sociais”. O objetivo último de tal
projeto seria a total inviabilização do Sistema Único de Saúde para a promoção de um novo
modelo de assistência em saúde no Brasil, cujo foco seria a desoneração estatal e o incentivo
ao desenvolvimento de unidades, serviços e seguros privados de saúde (ABRASCO, 2018).

Quadro 2 – Resumo das contraversões da crise da saúde

Contraversão(ões)
Ator/Instituição Soluções propostas
defendida(s)

Disputa eleitoral; abertura de


Má gestão, corrupção e projeto CPI; pressão para aprovação ou
Políticos da oposição
de desmonte do SUS reprovação de Projetos de Lei;
e judicialização

Má gestão, corrupção e projeto Reforma política; greve dos


CREMERJ
de desmonte do SUS profissionais; e judicialização

Movimento Reforma política; promoção de


“Nenhum Serviço de Projeto de desmonte do SUS eventos e atos públicos; e
Saúde a Menos” militância virtual

Reforma política; promoção de


Corrupção e projeto de desmonte eventos e atos públicos; e
ABRASCO
do SUS elaboração de “análises
críticas”

ONG “Contas Redução do Estado e


Má gestão e corrupção
Abertas” privatização

ONG “Fórum
Popular do Recomposição do orçamento
Má gestão
Orçamento do Rio público em Saúde
de Janeiro”
Fonte: Elaboração própria.
154

CAPÍTULO 3

“A pior crise na saúde pública do Rio de Janeiro”:


crise, temporalidade e modos de governo

CRI·SE | s. f.
(do latim crisis, -is, do grego krísis, -eós, ato de separar,
decisão, julgamento, evento, momento decisivo)
1. [Medicina] Mudança súbita ou agravamento que
sobrevém no curso de uma doença aguda (ex.: crise
cardíaca; crise de epilepsia).
2. Manifestação súbita de um estado emocional (ex.: crise
de choro; crise nervosa). = acesso, ataque.
3. Conjuntura ou momento perigoso, difícil ou decisivo.
4. Falta de alguma coisa considerada importante (ex.: crise
de emprego; crise de valores).
5. Embaraço na marcha regular dos negócios.
6. Desacordo ou perturbação que obriga instituição ou
organismo a recompor-se ou a demitir-se.
(Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

O processo de precarização dos serviços públicos de saúde nos últimos anos é inegável.
Não só no Rio de Janeiro, mas no Brasil como um todo. Além de objeto de minha própria
pesquisa, esse tem sido um tema relevante – quando não incontornável – para uma parte
daqueles que se interessam pelo campo da Antropologia da Saúde. Uma série de trabalhos vem
sendo desenvolvida sobre a questão, como, por exemplo, os artigos de Fazzioni (2018) sobre o
cotidiano da (falta de) Atenção Básica no Complexo do Alemão; de Longhi (2018) acerca do
adoecimento de mulheres idosas paraibanas por conta dos efeitos da “crise da previdência” e
das propostas apresentadas para combatê-la; e de Franch (2018) sobre o impacto das políticas
de austeridade brasileiras e europeias nas vidas de imigrantes brasileiros que vivem com
155

HIV/aids na Catalunha. Esses textos compõem o eixo “etnografias em contextos de crise” do


livro “Antropologias, saúde e contextos de crise” (Castro, Engel e Martins, 2018), uma
publicação que é resultado da II Reunião de Antropologia da Saúde realizada na cidade de
Brasília em novembro de 2017, cujo tema foi “antropologias e políticas em contextos de crise”.
Em que pese as muitas discussões que têm sido feitas sobre essa temática, afirmar que
o quadro contemporâneo de aprofundamento da escassez e da precariedade dos serviços
públicos de saúde é, ao mesmo tempo, consequência e evidência de uma situação de crise é
uma ação de cunho político-administrativo que não só pode, mas deve ser escrutinada. Como
colocado por Roitman (2014), há um ponto cego na produção das Ciências Sociais acerca da
noção de crise, pois a maior parte da bibliografia sobre o tema busca discutir e inquirir as causas
e origens das crises, de modo que o questionamento da própria ideia de crise é quase sempre
negligenciado. Assim, neste último capítulo da primeira parte da tese, ambiciono somar
algumas questões ao debate sobre o que vem sendo colocado atualmente sob o desígnio da crise
e como isso se relaciona com uma espécie de precariedade perene que funciona como um modo
de governo de populações historicamente marginalizadas no Brasil.
Antes de passar propriamente para a discussões, acho importante reiterar que um exame
das maneiras pelas quais se constrói a ideia de crise da saúde pública no cenário contemporâneo
pressupõe colocar em xeque um amplo conjunto de alegações, sem, no entanto, negar a
existência material da precariedade enfrentada cotidianamente pelos usuários do SUS. Isto é,
ao argumentar que a crise é uma forma de enquadramento que produz um certo sentido de
realidade, não pretendo afirmar que ela é apenas uma forma de “representação”. Como colocado
no já citado artigo de Zenobi (2017), a descrição de um evento como crítico – ou seja, como
um episódio ou momento que se diferencia da vida cotidiana (Das, 1995) – é uma operação
fundamentalmente social e depende de que o autor chama de uma definição coletiva da
situação.
Como afirma Lenoir (1998), é tarefa do sociólogo investigar o trabalho social de fazer
circular certas ideias e concepção que culmina na criação e difusão de uma categoria de
percepção do mundo social. Nesse sentido, meu principal objetivo neste terceiro capítulo é
discutir como se produziu uma espécie de “hegemonia interpretativa”, ou ainda, uma “definição
coletiva da crise”, a qual eu abordo analiticamente enquanto um enquadramento de crise.
Contudo, tal como Roitman (2014), não pretendo explicar o que é a crise ou chegar a uma
conclusão do que exatamente significa “estar em crise”. Minha intenção é interrogar que tipo
de trabalho o termo crise faz ou deixa de fazer na construção de formas narrativas e
156

enquadramentos, bem como pensar nos propósitos aos quais uma definição como essa serve.
Em outras palavras, busco pensar na prática do conceito de crise (Roitman, 2014).
O mapeamento dos diferentes discursos e posicionamentos que fazem da crise da saúde
pública no Rio de Janeiro um fenômeno com múltiplas versões apresentado nos capítulos
anteriores pretende dar conta de um primeiro passo dessa empreitada de investigação sobre a
crise: mostrar que o diagnóstico de uma “conjuntura de crise” é atravessado por uma série de
disputas em torno das definições das causas, culpados e soluções para a situação. Uma vez feito
isso, passo agora para a discussão sobre como se produz o enquadramento das situações
vivenciadas atualmente como sinais inegáveis de uma crise e como elas são concebidas como
diferentes dos episódios passados e das crises anteriores.
Uma das principais razões que justificam essa necessidade de investigar quais são as
particularidades dos episódios recentes diz respeito à relação entre o conceito de crise e a noção
de tempo, ou, mais especificamente, à construção de marcos temporais que definem certos
períodos como “em crise” em oposição aos “tempos normais”. Conforme mencionado na
introdução dessa primeira parte da tese, ao ser entendida como um momento da verdade, a crise
possui uma profunda vinculação com a história. Na medida em que a designação de uma
situação como uma crise funciona como uma espécie de diagnóstico do tempo presente
(Roitman, 2014), essa operação implica a construção de uma narrativa que encadeie os erros
do passado, os problemas do presente e as ameaças ao futuro em uma sequência temporal cujos
contornos precisam estar muito bem delineados. Além disso, essa necessidade de uma
diferenciação temporal calaramente delimitada tem a ver com uma certa filosofia do progresso
que entende a história a partir de um horizonte teleológico de “futuro melhor” e que posiciona
a própria noção de “progresso” enquanto uma tarefa moral da humanidade (Koselleck, 1999).
No caso da crise brasileira, como bem apontam Castro, Engel e Martins (2018) na
introdução do já citado livro “Antropologias, saúde e contextos de crise”, “ao nos referirmos ao
termo [crise] estamos diante de uma disputa política sobre a narrativa do tempo e as
perspectivas de futuro” (p. 12). Apesar de concordar que a crise é, antes de tudo, uma disputa
política que tem como objetivo a construção de um discurso sobre o tempo – quem errou, quais
são os resultados imediatos desses erros e o que é preciso fazer para impedir um colapso
iminente –, procuro me afastar da ideia de contextos de crise. Como pretendo explicitar ao
longo do texto, não considero a palavra “crise” simplesmente como um substantivo utilizado
para descrever uma dada conjuntura que se apresenta na realidade, mas sim como uma operação
política que intenta criar um contexto particular ao nomeá-lo enquanto tal e que, no caso em
questão, poderia ser caracterizado como uma conjuntura de crise.
157

A organização deste capítulo tem como objetivo replicar a estrutura narrativa da crise
desde de uma espécie de “ponto de vista nativo” acessado através de notícias, entrevistas,
decretos, informes, projetos de lei etc. – isto é, reproduzindo a maneira dos economistas,
sanitaristas, profissionais de saúde, políticos da situação e da oposição, acadêmicos etc. de
concatenar e determinar o que está no passado, como esses episódios são refletidos no presente
e quais são as expetativas para o futuro. Assim, o capítulo encontra-se dividido em três seções.
Na primeira, apresento um breve histórico da constituição das políticas de saúde de caráter
nacional e da Saúde Pública no Brasil enquanto área de atuação do governo e campo do
conhecimento. Na segunda, abordo de que maneira se produziu a crise enquanto um
enquadramento para as situações vivenciadas nas unidades públicas de saúde
contemporaneamente. Na última, discuto as propostas de solução aventadas até o momento e
como elas se baseiam em projeções sobre o futuro da saúde – e, mais especificamente, do SUS
– não somente no âmbito local, mas como uma questão de preocupação nacional.
Apesar de compartilhar – ainda que parcialmente – das ideias discutidas por aqueles que
pensam na crise enquanto um projeto político, busco oferecer uma perspectiva própria para a
compreensão da questão que se distancie dessa que poderia ser encarada como uma abordagem
construtivista da crise e que aprofunde essa posição crítica. Em outras palavras, viso construir
um raciocínio que entenda a crise não apenas como um projeto político aplicado com
finalidades específicas e conhecidas de antemão, mas sim enquanto um ponto crítico em um
modo de governo que possui raízes históricas no Brasil.

3.1 – Os problemas crônicos da saúde pública brasileira: as crises do passado e o


projeto do SUS

A ideia de que as doenças e o adoecimento se constituem enquanto problemas políticos


remonta aos processos de desenvolvimento da medicina clínica e da biopolítica vastamente
analisados por Foucault (1979, 2008, 2010 e 2011) e atualmente figuram como um tipo de
“senso comum intelectual”. Foi nesse contexto de consolidação de conceitos que as ideias de
medicina social e saúde pública foram elaborados para dar conta das dimensões política e social
que atravessam as próprias concepções de saúde e de doença. Na apresentação do livro
“Medicina e Saúde Pública na América Latina”, os historiadores Marcos Cueto e Steven Palmer
(2016) afirmam que as “consequências sociais e políticas da doença e da saúde têm estado no
158

centro da história do hemisfério” (p. 9). Na primeira seção deste capítulo, exploro o
entrelaçamento entre a história política brasileira e o desenvolvimento do campo da Saúde
Pública e das políticas de saúde no país. Meu objeto é abordar como diferentes crises estiveram
presentes em momentos decisivos da construção das ações, serviços e políticas de saúde no
Brasil.

Antes do SUS: da “polícia sanitária” ao INAMPS

As primeiras ações de controle sanitário em terras brasileiras se deram em função da


chegada da Família Real e da transferência da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808,
estabelecendo a capital do Império Ultramarino Português na cidade do Rio de Janeiro. Junto
com a fundação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro foram criados diferentes órgãos
públicos para a promoção da saúde da população. Nesse primeiro momento, as principais
atividades dessas instituições tinham como objetivos estabelecer um controle sanitário mínimo
dos portos e tornar a medicina acadêmica a única forma terapêutica autorizada e oficializada no
Brasil – reprimindo severamente aqueles que exerciam outras formas e “artes de curar”
(Pimenta, 2004).
Na passagem do século XIX para o século XX, a falta de um modelo sanitário – ou o
não sistema de saúde (Paim, 2009) – fez das cidades brasileiras lugares atingidos por epidemias
de febre amarela, tuberculose, varíola e peste. Na medida em que essas doenças passaram a
prejudicar significativamente as atividades econômicas de agroexportação, o poder público
iniciou uma série de ações para o saneamento dos portos e adoção de medidas sanitárias nas
cidades, como o combate ao mosquito transmissor da febre amarela e a vacinação compulsória
da população urbana. As campanhas de intervenção em saúde desse período possuíam um
caráter semelhante às operações militares e eram marcadas por um viés autoritário no qual uso
da força e a intimidação eram os principais instrumentos de atuação da chamada “polícia
sanitária” (Paim, 2009).
Foi a aprovação da lei nacional de vacinação obrigatória contra a varíola em 1904 que
desencadeou o episódio que ficou conhecido na história do Brasil como a Revolta da Vacina.
Durante alguns dias, parte da população do Rio de Janeiro se rebelou contra a imposição tanto
das medidas sanitárias implementadas sob a liderança do médico Oswaldo Cruz, quanto das
reformas urbanas que estavam sendo executadas pelo então prefeito da cidade, Pereira Passos
(Sevcenko, 1999).
159

Resumidamente, para alguns dos autores que discutem as políticas de saúde no período
da Primeira República (1889-1930), as ações governamentais possuíam mais um caráter de caso
de polícia do que de questão social. Desse modo, eles argumentam que as ações não eram
orientadas por um objetivo de promover práticas de cuidado em saúde entre os cidadãos, mas
sim para proteger minimamente a mão de obra e os produtos exportados nos portos brasileiros
(Nunes, 2000; Paim, 2009; Corvino, 2017). Na contramão da literatura que subordina o
desenvolvimento de políticas públicas de saúde apenas aos interesses econômicos das elites
locais – fossem elas cafeeiras, industriais ou burguesas –, Hochman (2012) enfatiza a relação
entre o surgimento de políticas nacionais e o próprio processo de formação de um Estado
brasileiro. Ou seja, para o autor, “as políticas de saúde e de saneamento tiveram um papel
importante no incremento substancial da penetração do Estado na sociedade e no território do
país.” (p. 16).
É também no início do século XX que se desenvolvem uma série de debates médicos
sobre as conexões entre doença, política e o “futuro da nação”. Como exemplos de trabalhos
que abordam essas questões, é possível citar o artigo de Trindade e Hochman (2004) e os livros
de Carrara (1996) e Corossacz (2009). Como parte de uma coletânea que reúne trabalhos sobre
a história da medicina, da saúde e das doenças na América Latina e no Caribe, o texto de Nísia
Trindade e Gilberto Hochman (2004) tem como questão central o papel do movimento
sanitarista na produção de imagens sobre o Brasil e os brasileiros tendo a doença como um
elemento distintivo do caráter nacional, produzindo uma percepção do povo brasileiro como
“atrasado, indolente, doente e resistente aos projetos de mudança” (p. 495). Segundo os autores,
a presença do pensamento higienista pode ser facilmente percebida nos debates acerca das
chamadas “resistências culturais à mudança” e nos primeiros textos das ciências sociais no país,
que haviam começado seu processo de institucionalização por meio da criação de cursos
superiores de Sociologia e Antropologia.
Já Sérgio Carrara (1996) discute como a sífilis ocupava um lugar central no imaginário
colonial europeu sobre o Brasil. O país era visto pelos estrangeiros como uma “terra do pecado”;
um lugar em que a permissividade sexual, a miscigenação e as doenças delas decorrentes
explicavam não só a “inferioridade” e “decadência moral e física” dos brasileiros, mas também
o “atraso econômico” do país. De acordo com o autor, na medida em que a sífilis figurava como
um problema fundamental da “raça brasileira” no início do século XX, os médicos foram
alçados a “salvadores da pátria”, responsáveis por resgatar a nação e garantir seu progresso
futuro.
160

Em “O Corpo da Nação”, Valeria Corossacz discute os vínculos instaurados entre


medicina, controle da reprodução, nação e racismo na primeira metade do século XX. Segundo
a autora, a classificação racial e o controle da reprodução no Brasil estão ligados ao
desenvolvimento de uma medicina fortemente engajada em um projeto de Estado que
subordinava o “futuro da nação” à saúde dos cidadãos. Em uma época de ampla aprovação
pública da eugenia e das explicações “naturais” para “problemas sociais”, a procriação era
percebida mais do que como a mera reprodução biológica, mas também como o locus da
perpetuação de hábitos e valores. Ou seja, a procriação teria um lugar central no campo da
reprodução da ordem social e, portanto, necessitava da intervenção médica.
No início de 1920 ocorreu a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública
(DNSP), ligado ao Ministério da Justiça. Sua fundação reforçou um certo caráter nacionalista
na formulação de políticas de saúde. Seu primeiro diretor, o médico Carlos Chagas, era um dos
participantes de movimentos que reivindicavam uma maior intervenção do Governo Federal
em assuntos de saúde e saneamento básico. Os médicos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) – que
também era dirigido por Chagas – classificaram como “trágico” o quadro sanitário do interior
do Brasil após as expedições científicas realizadas por diferentes grupos de médicos nas
primeiras décadas do século XX (Nunes, 2000). Ainda que permanecesse atuando através de
campanhas, uma das inovações do DNSP foi o incentivo a propagandas e iniciativas de
educação sanitária, alterando radicalmente o modelo policial e fiscal das políticas propostas
por Oswaldo Cruz no início do século (Paim, 2009).
Segundo Mendes (1996), o modelo do sanitarismo campanhista prevaleceu nas ações
de saúde pública no Brasil até meados dos anos 1960. Contudo, reivindicações dos
trabalhadores para o estabelecimento de mecanismos mínimos de seguridade social também
começaram a se desenrolar a partir dos anos 1920. Com a criação da Previdência Social em
1923 e a implementação das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP) – que davam aos
trabalhadores e seus dependentes o direito a cuidados médicos em casos de doenças –, deu-se
início ao que alguns autores chamam de período da medicina previdenciária. Nesse contexto,
a promoção da saúde no país contava menos com ações preventivas de caráter coletivo – o que
seria o fundamento da saúde pública – e dedicava-se ao atendimento individual marcado por
práticas curativas e terapêuticas.
Durante a Era Vargas, entre os anos 1930 e 1945, uma reforma administrativa da saúde
pública liderada pelo médico João de Barros Barreto implementou uma descentralização do
planejamento das ações e políticas de saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) em oito regiões
sanitárias (Cueto e Palmer, 2016). Foi também nesse período que foi criado o Ministério da
161

Educação e Saúde Pública (MESP), em 1930 – cujo ministro entre 1934 e 1945 foi o advogado
Gustavo Capanema –; que o DNSP se tornou apenas Departamento Nacional de Saúde (DNS),
em 1937; e que foi criado o Serviço Nacional de Febre Amarela, financiado pela Fundação
Rockfeller31, também em 1937. A reforma também resultou na criação de um novo sistema de
proteção social, que substituiu as CAP pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP), de
modo que os trabalhadores estavam organizados não mais por empresas nas quais trabalhavam,
mas pela ocupação que exerciam.
De acordo com Hochman (2005), no início dos anos 1930, o quadro sanitário brasileiro
era “dramático”: “a febre amarela ainda ameaçava a capital e os portos litorâneos, a malária
grassava pelo interior do país, a hanseníase ganhava a atenção dos médicos e a tuberculose
continuava sendo o mais grave problema sanitário das cidades” (p. 129). Diante desse quadro,
o período varguista foi marcado por uma série de continuidades em relação ao movimento
sanitarista da Primeira República, mas também por ações de ruptura e reformas estatais
centradas no reordenamento e criação de órgãos administrativos na área da saúde pública, como
as mencionadas acima.
Em 1941 foi realizada a I Conferência Nacional de Saúde, com o apoio do Governo
Federal. Naquele momento, ainda não existia algo como o “direito à saúde amplo e irrestrito”.
Em 1949 foi criado o Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU) e em
1955 o Serviço de Assistência Médica da Previdência Social (SAMPS), ambos custeados pelos
institutos previdenciários e sob controle do Ministério do Trabalho. Como pontuam Fidelis,
Reis e Fonseca (2010), “o caráter fragmentário e corporativo da previdência social, ao vincular
a prestação de serviços médicos e assistenciais à contribuição trabalhista regulamentada,
excluía boa parte da população brasileira dos benefícios do sistema” (p. 119). Por mais que
tenham sido feitas reformas, esse período foi marcado por políticas de saúde incipientes. De
acordo com Marcus Vinicius Polignano

A escassez de recursos financeiros associada à pulverização destes


recursos e de pessoal entre diversos órgãos e setores, aos conflitos de
jurisdição e gestão, e superposição de funções e atividades, fizeram com
que a maioria das ações de saúde pública no estado novo se reduzissem
a meros aspectos normativos, sem efetivação no campo prático de

31
A Fundação Rockfeller foi criada nos Estados Unidos da América em 1913 pelo magnata da indústria petrolífera
John Rockfeller, seu filho John Rockefeller Jr. e Frederik Taylor Gates. A instituição filantrópica tem como missão
promover pesquisas, ensino e ações de saúde pública ao redor do mundo, principalmente nos chamados “países
subdesenvolvidos”. De acordo com Cueto e Palmer (2016), a organização partia do pressuposto de que o “atraso”
e a “pobreza” desses países eram causados por doenças infecciosas, de modo que caberia aos supostos “poderes
civilizatórios” da medicina promover o progresso desses locais.
162

soluções para os grandes problemas sanitários existentes no país


naquela época. (Polignano, s. d., s. p., grifos meus).

Após o fim da ditadura varguista houve a criação de um Ministério da Saúde


independente, em 1953; do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERU), em 1956;
a promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social, em 1960; e da lei que instituiu o Fundo
de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL), em 1963. No que diz respeito à saúde
pública, o início dos anos 1960 foi marcado pelos debates acerca do papel da desigualdade
social na determinação das condições de saúde da população. No entanto, devido às sucessivas
crises políticas daquele momento, não houve grandes mudanças nas formas de organização e
atuação dos serviços de saúde.
A unificação dos IAP, que já estava sendo discutida desde 1941, só foi consolidada após
o golpe militar de 1964 e a instituição de um regime ditatorial. Em 1967, os militares criam o
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Em 1974 houve a criação do Ministério de
Previdência e Assistência Social e do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). No
ano seguinte foi instituído – ao menos em termos burocráticos – o Sistema Nacional de Saúde
(SNS). Em 1978, o regime militar resolveu que era preciso uma estrutura administrativa
especializada nos serviços de saúde, criando o Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (INAMPS), o qual tinha por finalidade atender os trabalhadores que
contribuíam para a previdência social e que permaneceu ativo até 1993, quando suas
competências foram transferidas para o recém-criado SUS.
Para Fidelis e Nascimento (2010), foi no período da ditadura militar que a saúde
começou a ser entendida como uma “mercadoria” e um “direito de poucos”. Houve uma
significativa diminuição na participação direta do Estado no atendimento à população, que foi
cada vez mais substituído pela rede privada. Segundo os autores, em 1979, 70% dos recursos
do FAS havia sido destinado aos hospitais particulares do eixo Rio-São Paulo. A maior parte
desse dinheiro foi transferido para a iniciativa privada por meio de empréstimos extremamente
vantajosos aos empresários, em um processo descrito como de drenagem de recursos públicos,
transformando a saúde em uma espécie de “negócio lucrativo” (Fidelis e Nascimento, 2010, p.
187).
Foi também entre o final dos anos 1960 e ao longo da década de 1970 que tiveram lugar
os primeiros debates sobre a necessidade de uma reforma sanitária no Brasil. O movimento da
Reforma Sanitária Brasileira (RSB) teve início na segunda metade da década de 1970 e surgiu
no bojo da luta contra a ditadura e a favor de uma reformulação da política nacional de saúde
163

brasileira, sempre defendendo uma noção de saúde que não se limitasse ao mero atendimento
médico, mas como uma dimensão da vida que é profundamente influenciada por questões
políticas e sociais (Nogueira, 2016; Paiva e Teixeira, 2014). Como parte desse movimento, foi
criado o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), em 1976, que visava fomentar e
organizar a discussão sobre a reforma sanitária por meio da publicação da revista Saúde em
Debate; e fundada a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), em 1979, cuja
principal proposta naquele momento era a formação de um novo tipo de profissional de saúde
– principalmente de Medicina –, mais preocupado com os aspectos sociais que influenciam as
condições de saúde da população.
É a partir da RSB que se tenta alterar o paradigma de uma medicina tradicional curativa
e tratada enquanto um “bem de consumo” para uma medicina baseada em um modelo
preventivo e com ampla participação social no processo de formulação e decisão acerca da
implementação de políticas públicas de saúde. Nesse sentido, as principais reivindicações do
movimento reformista eram a melhoria geral das condições de saúde da população brasileira e
o reconhecimento da saúde enquanto um “direito social universal”, atribuindo ao Estado o dever
de assegurar o acesso irrestrito aos serviços de saúde para todos os cidadãos.
Em 1976, pessoas ligadas ao movimento foram incorporados ao aparelho de Estado
enquanto técnicos do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS).
O programa, que tinha pretensões de se estender por todo o território nacional, resultou numa
grande expansão da rede ambulatorial pública. Em 1979, o Cebes participou do 1º Simpósio
sobre Política Nacional de Saúde na Câmara Federal e apresentou o documento intitulado “A
questão democrática na área da saúde”, no qual já se fazia presente a ideia de universalidade do
direito à saúde que orientaria a criação do SUS alguns anos depois.
Uma das iniciativas do movimento pela reforma sanitária foi a tentativa de aprovação
do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREV-SAÚDE) em 1980. O programa
previa a concepção de uma rede de cobertura de serviços de atenção básica para todos os
brasileiros e na qual estivessem articuladas organizações estatais e privadas. Por conta do lobby
da Federação Brasileira de Hospitais e das empresas que operam planos privados de saúde, o
projeto sofreu inúmeras alterações propostas por congressistas, sendo finalmente arquivado
(Corvino, 2017).
Diante de um conjunto de denúncias de fraudes no INAMPS e do agravamento de uma
crise financeira da Previdência, foi criado em 1981 o Conselho Consultivo de Administração
da Saúde Previdenciária (CONASP). O órgão tinha o objetivo de conter os gastos públicos com
ações de saúde e fiscalizar a prestação de contas das instituições contratadas para fornecer
164

determinados serviços. Durante o período de transição democrática, uma das estratégias dos
membros do movimento de reforma sanitária foi a ocupação de posições-chave no CONASP
para apoiar os projetos de novos modelos assistenciais. Em 1983 surgiram as primeiras Ações
Integradas de Saúde (AIS), um projeto do qual participavam os Ministérios da Previdência, da
Saúde e da Educação e que tinha o objetivo de estabelecer uma nova forma de assistência
pública em saúde centrada em ações que eram ao mesmo tempo curativas, preventivas e
educativas (Polignano, s. d.). Além disso, as AIS pretendiam também a racionalização da
assistência médica e melhor utilização dos recursos públicos (Ribeiro, 2010).
Em 1986 ocorreu a 8ª Conferência Nacional de Saúde, logo após o fim do regime militar.
Com cerca de cinco mil participantes, esse evento é visto por muitos autores como um grande
marco na história da saúde pública brasileira (Mendes,1996; Paim, 2009; Polignano, s. d.; Paiva
e Teixeira, 2014; entre outros). Foi no painel intitulado “Saúde e Constituição” que os ideais
do movimento pela reforma sanitária foram consolidados. Os debates ocorridos na Conferência
culminaram na criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) em 1987,
cuja implementação objetivava o fortalecimento dos sistemas estaduais e municipais de saúde
e o planejamento do uso integrado da rede pública de saúde (Ribeiro, 2010).
Além disso, foi no âmbito das discussões promovidas durante a Conferência que se deu
a redação dos artigos 196 a 200 da Constituição Federal de 1988, os quais instituem a saúde
enquanto “direito de todos e dever do Estado”. Como discutirei adiante, esses artigos são
descritos pelos atores envolvidos na construção da saúde pública no Brasil como o mais
importante marco histórico contemporâneo do campo e serviram de base para a criação do
Sistema Único de Saúde (SUS), de modo que figuram até hoje como fundamento das ações
judiciais que demandam do poder público o fornecimento de medicamentos, realização de
consultas e exames médicos, internação etc.

A democratização da saúde e do Brasil: o “projeto civilizatório” e a criação do SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu de um anseio amplo por democratização, não
só do acesso aos serviços públicos de saúde, mas no campo da política brasileira como um todo.
Além da melhoria e da criação de uma rede efetivamente pública de estabelecimentos e serviços
de saúde, o movimento pela Reforma Sanitária Brasileira (RSB) também reivindicava o fim do
regime militar no Brasil. De acordo com os defensores da reforma, a garantia do direito à saúde
era um componente imprescindível do exercício da cidadania e, para sua efetivação, seria
165

preciso realizar uma série de “mudanças no Estado, na sociedade e na cultura” (Paim e Teixeira,
2007). Naquele momento, o que estava em jogo era um novo projeto de sociedade. Para alguns
dos estudiosos da história do SUS e da RSB, as propostas apresentadas naquele contexto faziam
parte de um grande “projeto civilizatório” que deveria ser implementado no Brasil (Paim e
Teixeira, 2007; Paim, 2008; Silva, 2014; Corvino, 2017; entre outros). Como explicitado e
reforçado no documento final do 8º Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, realizado em
2005 em Brasília:
O processo da reforma sanitária brasileira é um projeto civilizatório, ou
seja, pretende produzir mudanças dos valores prevalentes na sociedade
brasileira, tendo a saúde como eixo de transformação e a solidariedade
como valor estruturante. O projeto do SUS é uma política de construção
da democracia que visa a ampliação da esfera pública, a inclusão social
e a redução das desigualdades. Todas as propostas devem ter como
principal objetivo a melhoria das condições de saúde da população
brasileira, a garantia dos direitos do cidadão, o respeito aos pacientes e
a humanização da prestação de serviços. (Carta de Brasília, 2005).

Inspirado no National Health Service do Reino Unido, o SUS foi criado no início dos
anos 1990, após o fim da ditadura militar e a promulgação da Constituição Federal Brasileira
de 1988. Em termos oficiais, a criação do Sistema Único de Saúde se deu com a publicação das
duas Leis Orgânicas de Saúde (LOS): Lei nº 8.080/1990 e Lei nº 8.142/1990. De acordo com
Ribeiro (2010), “a partir das mudanças constitucionais estruturou-se um sistema de seguridade
social universal e equitativo, orientado a assegurar saúde, previdência e assistência social como
direitos sociais a todo e qualquer cidadão brasileiro” (p. 209). Além disso, essa transformação
na forma como o país encarava a seguridade social previa também a criação do Orçamento da
Seguridade Social, que seria composto por receitas fiscais e contribuições sociais e utilizado
para financiar benefícios, serviços e ações governamentais das três áreas.
Como mencionado anteriormente, a publicação de uma nova Constituição representa o
mais importante ponto de inflexão na história contemporânea da saúde pública brasileira, pois
foi a partir dela que a saúde se tornou “um direito de todos e um dever do Estado”. Antes da
criação do SUS, o acesso aos serviços de saúde eram restritos àqueles que contribuíam para a
Previdência Social, de modo que as possibilidades de obter assistência em saúde eram
demasiadamente desiguais. Os mais pobres e os que estavam fora do mercado de trabalho
formal dependiam exclusivamente do atendimento prestado por instituições filantrópicas, como
a Santa Casa de Misericórdia. Isto é, na medida em que a saúde não era um “direito social”, os
brasileiros encontravam-se divididos em três categorias: os que podiam pagar por serviços
privados; os que possuíam direito ao atendimento em hospitais públicos porque contribuíam
166

com a Previdência Social (os trabalhadores formais que possuíam “carteira assinada”); e os que
não tinham qualquer direito, da qual fazia parte a grande maioria da população (Corvino, 2017).
No cerne das discussões sobre a construção de um sistema público de saúde houve uma
transformação moral profunda. Entendido até então como um tipo de favor ou caridade, após
a promulgação da Constituição de 1988, o acesso aos serviços de saúde foi concebido enquanto
um direito fundamental legítimo.
O SUS foi formulado com base em três princípios que o regem até hoje: Universalidade,
Equidade e Integralidade. Grosso modo, o primeiro princípio diz que o acesso gratuito aos
serviços de saúde é um direito que pertence a todos, independentemente de classe, sexo, raça,
ocupação etc.; o segundo busca reduzir as desigualdades e garantir que as pessoas com
necessidades distintas sejam tratadas de maneiras diferentes; o último diz respeito à necessidade
de se considerar “as pessoas como um todo” e de entender a promoção da saúde como algo
maior do que a simples oferta de medicamentos e cuidados médicos e que depende de uma
articulação intersetorial para a promoção de políticas públicas que beneficiem e melhorem a
qualidade de vida de toda a população.
É essa proposta de acesso irrestrito que faz com que a criação do SUS seja entendida
como uma “ruptura com o padrão histórico de intervenção estatal na área da saúde” (Ribeiro,
2010, p. 210); ou como uma “modificação radical” em relação ao INAMPS e uma contraposição
à corrente neoliberal que dominava o debate sobre os serviços de saúde na América Latina
naquele momento (Cueto e Palmer, 2016, p. 272-3). Corvino (2017) sintetiza esse posição ao
afirmar que “o SUS não é o sucessor do SUDS ou do INAMPS, e sim uma nova forma de
política organizacional estabelecida na CRFB/88 e pela legislação específica para reorganizar
os serviços e ações em saúde.” (p. 44).
Apesar das muitas expectativas e da grandiosidade do projeto, o programa de prestação
de assistência à saúde universal, equânime e integral previsto pelo SUS nunca foi plenamente
realizado e consolidado em todo o território nacional. Autores como Silva (1995), Paim e
Teixeira (2007), Ocké-Reis (2008), Menicucci (2009), Carvalho (2013), Marques (2017), Paim
(2018), entre muitos outros, demonstram como o sistema público de saúde brasileiro vem
enfrentando problemas permanentes desde a sua fundação, os quais desde o subfinanciamento
crônico até as crises pelas quais o SUS já passou.
Ao comentar sobre os primeiros anos após a implementação do SUS no contexto da
abertura democrática, Menicucci (2009) e Machado, Lima e Baptista (2017) falam sobre os
processos de “reformas, ajustes e crises fiscais” da época. As questões levantadas pelas autoras
167

são espantosamente semelhantes às discussões travadas atualmente, 30 anos depois da criação


do SUS, como é possível ver nos seguintes trechos:

O contexto político nacional e internacional de implantação do SUS não


se mostrou favorável. A configuração conservadora dos governos no
período da transição democrática estava em perfeita sintonia com o
ambiente internacional, marcado pela rediscussão do papel do Estado,
que se traduzia em propostas de novos modelos de políticas sociais,
com focalização do gasto público nos setores mais pobres. Ao processo
de democratização se seguiram os de ajuste e estabilização econômica,
acompanhados das reformas estruturais, em sentido inverso à
ampliação das atribuições governamentais e dos direitos sociais recém-
consagrados na Constituição Federal, em sintonia com o receituário
internacional.
A conjuntura de crise fiscal, associada ao fortalecimento de posições
conservadoras e voltadas para o mercado, colocou constrangimentos à
implantação do SUS, limitando a possibilidade de ampliação dos
serviços de saúde para garantir a universalização. Ao se traduzir na
redução do gasto público, funcionou como freio objetivo e ideológico à
atuação redistributiva do Estado. (Menicucci, 2009, p. 1621, grifos
meus).

os avanços institucionais na saúde foram paralisados diante da crise


econômica no período. As imprecisões do texto constitucional se
explicitavam e a saúde ficou fragilizada pelas indefinições do governo.
(Machado, Lima e Baptista, 2017, p. S150, grifos meus).

Alguns anos depois da criação do SUS, Silva (1995) publicou no periódico Saúde e
Sociedade um paper apresentado por ele no I Encontro Paulista de Epidemiologia. Intitulado
“O SUS e a crise atual do setor público da saúde”, o texto do autor também parece descrever o
cenário contemporâneo da saúde pública brasileira:

[...] terminamos escolhendo tentar fazer uma síntese de numerosas


manifestações e colocações recentes, que têm aparecido em periódicos
da área, como na imprensa geral, sobre o que parece ser uma crise sem
precedentes na organização social dos serviços de saúde e atenção
médica.
Em poucos anos passamos de um momento de extremo otimismo e
entusiasmo, até certo ponto justificável, para a atual sensação de
perplexidade e desânimo. (Silva, 1995, p. 15, grifos meus).

Nos anos seguintes, uma nova crise financeira provocada pelas mudanças cambiais e a
desvalorização do Real precisou ser enfrentada entre 1998 e 1999. Os debates da época giravam
em torno de um dos principais fatores que haviam provocado “o desequilíbrio da política
168

econômica nacional” entre os anos de 1995 e 1997: os gastos públicos. A essa altura não será
nenhuma surpresa dizer que as soluções propostas para esse problema partiam de uma
combinação entre diminuição dos gastos e aumento das receitas. Também não causará
estranheza repetir que essa necessidade de “conter as despesas públicas” teve impacto no
financiamento da rede pública de saúde.
Diante da falta de recursos e para impedir o colapso do setor, o então ministro da Saúde
Adib Jatene negociou a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
(CPMF), um imposto que incidiu sobre as movimentações bancárias no país e cuja arrecadação
seria destinada principalmente ao financiamento da saúde pública. Logo após sua aprovação no
Congresso Nacional, Jatene pediu demissão. Muitos anos depois, em entrevista, o ex-ministro
afirmou que sua saída teve “relação direta” com a CPMF. Ele contou que havia feito uma
negociação com o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, para que não
houvesse a diminuição no orçamento da pasta, de modo que o montante arrecado por meio da
CPMF seria um “adicional” para a Saúde. No final de 1996, o Ministério da Fazenda
determinou cortes no orçamento do Ministério da Saúde alegando que a perda seria compensada
pelo novo imposto. Na prática, a aprovação da CPMF significou menos dinheiro para a saúde,
o que fez com que Jatene se desligasse do Governo (Jamildo, 2007).
Como mencionado brevemente no capítulo anterior, em 2005 o Rio de Janeiro enfrentou
uma grave crise na saúde que gerou uma intervenção por parte do Governo Federal. Ou seja,
dez anos depois da publicação de Silva (1995), uma nova crise despontou no horizonte da saúde
pública carioca. Tal como venho argumentando para o cenário atual, a crise da saúde de 2005
foi também alvo de inúmeras controvérsias. A mais importante delas se deu em torno das
decisões tomadas para conter os efeitos da crise e quem seriam os responsáveis por executar
essas ações.
O Governo Federal decretou arbitrariamente o “estado de calamidade” na saúde do Rio
de Janeiro e determinou uma intervenção no setor. A Prefeitura do Rio não acatou a
determinação e decidiu recorrer judicialmente da intervenção, alegando que teria condições de
superar a crise por conta própria. O Governo do estado também se posicionou contrário à
intervenção federal. Enquanto o imbróglio judicial se desenrolava, o ministro da Saúde nomeou
Sérgio Côrtes como interventor federal – que veio a se tornar secretário de estado de Saúde do
governo Sérgio Cabral alguns anos depois e, como assinalado no capítulo anterior, foi preso em
2017 no âmbito da operação “Fratura Exposta” da Polícia Federal. Duas das medidas adotadas
por Côrtes naquele momento foram a transferência de alguns hospitais municipais para a gestão
federal e o início das investigações acerca de possíveis irregularidades nos processos de
169

licitação realizados pelo Instituto Nacional Traumatologia e Ortopedia (INTO). Nesse contexto,
foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde após a divulgação de um
relatório do Tribunal de Contas do Município (TCM) no qual foram apontados déficits
financeiros na grande maioria dos hospitais municipais. Cerca de um mês depois, o Supremo
Tribunal Federal (STF) ordenou a suspenção da intervenção federal nos hospitais municipais
do Rio de Janeiro, o que não foi bem recebido pelo Ministério da Saúde, que ainda tentou
retomar a gestão dos hospitais nos meses seguintes. Ao longo desse período, Côrtes foi
ameaçado de morte caso não se afastasse das investigações do INTO e uma granada chegou a
ser encontrada em sua sala.32
Ao mesmo tempo em que se desenrolava essa crise no Rio de Janeiro, falava-se nas
necessidades de reformas nas políticas nacionais de saúde suscitadas pelas transformações do
capitalismo e pela “crise do estado de bem-estar social” no plano internacional (Pires e Demo,
2006). Ao discutir o desenvolvimento do Programa de Saúde da Família (PSF) no contexto
das reformas do sistema de saúde em andamento naquele período, Viana e Dal Poz (2005)
argumentam que a crise vivenciada na década anterior foi a principal propulsora de uma
“reforma da reforma da saúde” ou uma “reforma incremental” do SUS. Naquela ocasião, o
papel da crise na definição dos rumos das políticas nacionais de saúde já era destacado pelos
autores, como fica claro no seguinte trecho: “quanto às exigências econômicas, o quadro de
crise das finanças públicas e de adoção de políticas de ajuste não é, por si só, um limitador da
reforma, e sim um impulsionador de novas modalidades de gestão, economizadoras de custos.”
(Viana e Dal Poz, 2005, p. 242, grifos meus).
Em 2007, um novo capítulo da crise da saúde pública no Brasil foi delineado, tendo
como marco o fim da CPMF após 11 anos em vigor. Naquele momento, autores como Ocké-
Reis (2008) demonstravam grande preocupação com o impacto das decisões políticas de
contenção, cortes e ajustes fiscais na diminuição do financiamento do SUS. Em suas palavras:
“considerando esta restrição orçamentária, o Estado não tem sido capaz de responder às

32
Nas entrelinhas dessa disputa, uma série de acusações de “interesse político” na crise foram trocadas. Em 2005,
César Maia era o prefeito da cidade do Rio de Janeiro e Luís Inácio Lula da Silva era o presidente da República.
Maia pretendia se candidatar à presidência nas eleições de 2006 pelo então Partido da Frente Liberal (PFL) – que
hoje é o Democratas (DEM) – e acusava Lula de utilizar a intervenção federal para desgastar sua imagem. Lula,
por sua vez, sempre negou tais acusações e dizia que a intervenção se justificava por conta da preponderância do
Rio de Janeiro não só para a imagem do Brasil no exterior, mas também por conta da importância da rede pública
de saúde para a população carioca. No cenário político nacional, as denúncias que ficaram conhecidas como o
“Escândalo do Mensalão” eram lidas por políticos da situação como uma tentativa de prejudicar a imagem de Lula
para as eleições seguintes. No fim das contas, César Maia foi preterido e a coligação “Por um Brasil Decente” –
que reunia o PFL, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido Popular Socialista (PPS) – indicou
Geraldo Alckmin para a disputa presidencial. Alckmin perdeu para Lula no 2º turno das eleições, que obteve
60,83% dos votos válidos.
170

necessidades de cobertura, a um só tempo, impedindo que o SUS se fortaleça e deixando espaço


para o crescimento do mercado de planos de saúde.” (Ocké-Reis, 2008, s. p., grifos meus).
Na mesma semana em que o Senado votou pelo encerramento da cobrança da CPMF, o
Governo Federal publicou o projeto Mais Saúde. Machado, Lima e Baptista (2017) elencam o
programa como parte um esforço mais amplo de social desenvolvimentismo que estava sendo
implementado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) naquele período. De fato, a primeira frase
da 3ª versão documento, publicada em 2010, deixa clara a conexão entre as ações de saúde
pública e desenvolvimento: “O Ministério da Saúde lançou, em dezembro de 2007, um plano
inovador ao colocar em toda a sua estrutura a clara percepção de que Saúde não é somente uma
política social, mas parte integrante do desenvolvimento econômico do país.” (Brasil, 2010b).
No que diz respeito ao cenário contemporâneo da saúde pública no estado do Rio de
Janeiro, é possível identificar um primeiro “momento de crise” no início da década. Em 2011,
o telejornal RJTV da rede Globo, exibiu uma série de reportagens intitulada “A Saúde do Rio”,
na qual um jornalista acompanhou durante seis meses a situação de diferentes postos de saúde,
Clínicas da Família, UPAs e hospitais para mostrar as “falhas” no setor no estado do Rio de
Janeiro. Foram exibidas ao todo cinco matérias compostas por vídeos – alguns deles obtidos
através de câmeras escondidas – de funcionários afirmando que não havia garantia de
atendimento naquele dia; que a unidade estava sem alguns especialistas, como ortopedistas e
pediatras; de pacientes que chegaram nas filas antes mesmo do raiar do dia etc. Além disso, as
reportagens contaram também com entrevistas realizadas com médicos, pacientes, especialistas
– pesquisadores, professores de Saúde Coletiva etc. – e autoridades – gestores, diretores de
departamentos, secretário de Saúde etc. – que explicavam as razões da situação e quais seriam
as saídas possíveis.
Nesse período, o termo crise ainda não estava sendo utilizado para descrever o cenário.
Contudo, sua repercussão foi fundamental para que um dos primeiros fatores que são elencados
como motivos da crise contemporânea se consolidasse: o plano de repasse da gestão de
determinadas UPAs para as mãos de Organizações Sociais (OS). O projeto de implementação
das OS na gestão da saúde pública estadual – idealizado pelo então secretário de estado de
Saúde, Sérgio Côrtes – foi aprovado na ALERJ em setembro de 2011 com 49 votos a favor e
12 contra. Os deputados estaduais da oposição criticaram duramente o projeto, afirmando que
esse representaria um primeiro passo na “privatização da saúde”.
Em sua defesa, Côrtes afirmou que a gestão por OS não retiraria o caráter público das
instituições e não acarretaria nenhum tipo de prejuízo aos pacientes do SUS. De acordo com o
secretário, as OS fariam com que as unidades se tornassem muito mais “eficientes”. O
171

incremento na “eficiência” se daria por duas razões: a primeira seria a facilitação e agilização
na contratação de profissionais e aquisição de equipamentos e insumos, que não dependeriam
mais de concursos públicos e licitações, respectivamente; e a segunda seria provocada pela
alteração no regime de contrato e vínculo empregatício – de estatutários para celetistas –, o que
permitiria não apenas um estabelecimento de metas e sistemas de avaliação dos funcionários
contratados, mas também oneraria menos os cofres públicos com gastos previdenciários. Para
além da questão da “eficiência”, o antigo secretário defendeu sua proposta afirmando que isso
tornaria a gestão das unidades de saúde muito mais “transparente”33.
No âmbito municipal, a lei que regulamenta e reconhece entidades como OS havia sido
aprovada em 2009, durante o mandato de Eduardo Paes enquanto prefeito. Como demonstrado
no Gráfico 1 do primeiro capítulo, entre 2009 e 2016, houve uma significativa expansão da
cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) na cidade. Tal ampliação se deu através da
criação de Clínicas da Família, todas elas geridas por diferentes Organizações Sociais. Alguns
anos depois, o prefeito subsequente passou a acusar essas mesmas OS de serem as responsáveis
pela situação caótica das unidades municipais de saúde, afirmando que as empresas não
cumprem as metas estabelecidas e superdimensionam os quadros de funcionários.
Como abordado anteriormente, para muitos daqueles que criticam as versões oficiais da
crise, as “inovações” incorporadas por esses mecanismos de gestão indireta têm um papel
crucial na atual configuração dos problemas enfrentados pela rede pública de saúde. Isto é, foi
a terceirização da administração das unidades e as dispensas de concursos públicos e licitações
que pavimentaram o caminho para a crise, tornando as já existentes “brechas para a corrupção”
ainda mais abertas e afrouxando os parcos mecanismos de fiscalização. Passo agora para
discussão dessa que vem sendo descrita por muitos atores como “a pior crise na saúde pública
do Rio de Janeiro”.

33
Ainda que eu não vá me aprofundar na questão da “transparência”, considero importante pontuar que essa ideia
da “transparência da gestão pública” passou a figurar como uma agenda política nas últimas décadas e culminou
na criação de plataformas digitais onde – teoricamente – é possível encontrar um amplo conjunto de dados públicos
que vão desde os salários dos servidores até a quantidade de leitos em um determinado município. Contudo,
também considero fundamental destacar que esses portais – tais como o Portal Transparência, do Governo do
estado, e o Rio Transparente, da Prefeitura – não são nada “transparentes”. O acesso à informação não é intuitivo
e os dados não se encontram sempre disponíveis ou são disponibilizados de modo disperso e de difícil leitura e
agregação. O portal Rio Transparente foi criado para tornar públicas as informações sobre os gastos municipais.
Entretanto, ao buscar os contratos firmados pela Prefeitura, são encontrados documentos digitalizados a partir de
fotocópias de baixa qualidade, com muitas rasuras, partes ilegíveis e até mesmo páginas faltando. Longe de
classificar isso como um simples “erro” do Estado, penso a criação e a forma de organização desses portais como
fundamentais para o funcionamento do próprio Estado, performando uma certa “transparência” ao mesmo tempo
em que assegura que as informações confidenciais estarão acessíveis apenas aos sujeitos autorizados, o que, como
apontado por Herzfeld (1993), é imprescindível para o funcionamento dos órgãos burocráticos e do próprio Estado.
172

3.2 – A “pior crise da saúde no Rio de Janeiro”: o enquadramento do presente

Conforme tentei demonstrar nos dois primeiros capítulos da tese, os significados


atribuídos aos episódios contemporâneos de precariedade e escassez vivenciados nas unidades
públicas de saúde do Rio de Janeiro vêm sendo disputados por diferentes atores na esfera
pública. Ainda que contraversões sejam frequentemente anunciadas por aqueles que se opõem
aos discursos dos governantes, a ideia que “estamos vivendo a pior crise na saúde pública do
Rio de Janeiro” – como anunciada pelo presidente do CREMERJ em dezembro de 2015 –
tornou-se a intepretação hegemônica do cenário atual, até mesmo por quem argumenta que a
crise é na verdade um “projeto político”.
Como colocado por Roitman (2014), declarar uma crise significa definir uma maneira
específica de interpretar acontecimentos. Para a autora, tal definição dependeria, antes de mais
nada, da obliteração dos outros modos pelos quais a mesma situação poderia ser compreendida,
o que implica a permissão e estímulo para que certos questionamentos sejam feitos enquanto
outros são sumariamente apagados ou bloqueados. Uma vez que eu já tenha explorado
extensamente o conteúdo das versões oficiais e das contraversões da crise da saúde nos
capítulos antecedentes, não irei trazê-los novamente para a discussão. Pretendo tratar agora de
como o termo crise adquiriu centralidade na descrição da situação atual da saúde pública no
Rio de Janeiro, ou seja, de que maneira a crise se tornou o enquadramento por meio do qual o
cenário presente é interpretado.

O enquadramento da crise

A noção de enquadramento aqui utilizada parte das formulações elaboradas por


Goffman (2012) e Butler (2004 e 2015). Ambos se interessam pela discussão das formas pelas
quais aquilo que é tido como real é produzido socialmente. Enquanto um teórico do social
adepto de um rigor etnográfico e de descrições minuciosas, Erving Goffman (2012) atenta para
os detalhes mais ínfimos da interação cotidiana com a intenção de compreender como se
configura a estrutura de significados que orienta os sujeitos em suas ações e reações. Para
Goffman, o quadro é um dos elementos básicos que organizam a experiência dos sujeitos e
atuam na “definição de uma situação” ao fornecer um esquema interpretativo para a leitura de
determinados acontecimentos e episódios. Atento às possíveis críticas que poderiam ser feitas
ao seu raciocínio, o autor deixa explícito que as “definições do real” não são feitas de maneira
173

completamente livre e individual, mas sim como parte de um processo marcado por
constrangimentos de variadas ordens.
Judith Butler (2004 e 2015) se apropria das formulações de Goffman para analisar como
se dão os debates acerca do significado de certos eventos históricos. A autora propõe a ideia de
enquadramento [frame] enquanto uma espécie de moldura que não apenas delimita o que está
dentro e o que está fora do quadro, mas também estabelece como o seu conteúdo deve ser
observado. Butler trabalha com uma noção de esfera pública que é constituída tanto por aquilo
que pode ser mostrado ou discutido, quanto pelo que não pode ser exibido ou falado, de modo
que a regulação do campo de visão seria uma forma de definir o que vai contar como realidade
e o que não será. Assim, o ato de enquadrar é descrito pela autora como uma operação do poder
que visa organizar a forma de apresentação de uma ação para conduzir a sua interpretação
(Butler, 2015, p. 23).
Ambos os autores se preocupam em demonstrar que a definição do real é sempre
atravessada por tensões e disputas entre diferentes lados ou versões sobre uma mesma situação.
Isto é, segundo Goffman, uma pergunta tão elementar quanto a do tipo “o que está acontecendo
aqui?” admite uma multiplicidade de repostas que depende do enfoque dado por quem a
responde, de modo que “a variabilidade é complicada aqui pelo fato de que aqueles que trazem
perspectivas diferentes para os ‘mesmos’ acontecimentos estão propensos a empregar aberturas
e níveis de enfoque diferentes.” (Goffman, 2012, p. 31). Assim, existiria em diferentes
contextos um conflito entre distintas aberturas e níveis de enfoque que buscam se estabelecer
enquanto um “ponto de vista real” ou “oficial”. Butler, por sua vez, procura estar atenta às
relações de força que atravessam os conflitos para estabelecer uma versão dada e inquestionável
da realidade. Ela reflete sobre esse ponto ao discutir como a produção da hegemonia de um
discurso antiterrorista após o 11 de Setembro nos Estados Unidos se fez por meio da fabricação
de um consenso acerca do significado e dos usos de determinadas palavras (Butler, 2004). A
autora complexifica seu pensamento ao colocar o enquadramento não como uma mera
interpretação de uma situação ou fenômeno, mas como uma peça fundamental de sua própria
fabricação (Butler, 2015).
Ao colocar a ideia de crise da saúde sob escrutínio, sigo as propostas de Butler. Isto é,
se para a autora “os enquadramentos de guerra são parte do que constitui a materialidade da
guerra” (Butler, 2015, p. 51), penso que o enquadramento de crise é um elemento fundamental
na produção da própria crise. Para dar início à discussão, trago um conjunto dados sobre a
174

circulação do termo crise em uma dimensão da esfera pública34. Assim, apresento a seguir
informações sobre: 1) a recorrência da palavra crise nos títulos de informes publicados pelo
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ); 2) as notícias
publicadas na página oficial do Conselho Federal de Medicina (CFM) em que o termo crise é
mencionado; e 3) a quantidade de matérias nas quais constam a expressão “crise da saúde” no
acervo digital dos jornais O Globo e Extra35. Ainda que tenha adotado como marco histórico
principal da crise da saúde no Rio de Janeiro a decretação do “estado de emergência na saúde
pública” por parte do Governo do estado em dezembro de 2015, optei por incluir nesse
levantamento os dois anos anteriores. Tal escolha se deu em função das primeiras aparições do
termo crise para descrever a situação dos hospitais federais na cidade a partir desse período.
Uma análise com um viés quantitativo mais restrito ou rigoroso poderia dizer que essas
informações são insignificantes e não permitem que nenhuma inferência seja feita, uma vez
que, por exemplo, o termo aparece em menos de 2% total dos títulos de informes do CREMERJ.
Não discordo totalmente. Entretanto, ao relacionar o uso da palavra crise com as narrativas de
diferentes atores e instituições em um contexto mais amplo – ou seja, combinar materiais
qualitativos e quantitativos –, busco discutir como se consolida uma certa interpretação da
situação social como característica de um cenário de crise.

Gráfico 9 – Recorrência do termo crise nos títulos de informes do CREMERJ (2013-2017)


12 11

10
8 8
8
6
6 5

2
0
0
2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: Elaboração própria a partir de informações no sítio do CREMERJ.

34
A ideia de esfera pública utilizada aqui tem como base as discussões de Butler (2004) acerca de como
determinados temas, eventos e questões de relevância social são discutidos publicamente pela mídia. A autora, por
sua vez, inspira-se no conceito habermasiano de esfera pública.
35
A ideia inicial era buscar informações nos principais jornais impressos que circulam na região metropolitana do
Rio de Janeiro. Entretanto, os jornais O Dia, Meia Hora e Expresso não possuem um acervo digital disponível
para consulta – nem mesmo mediante pagamento de assinatura – e por isso não puderam ser incluídos na análise
mais estritamente quantitativa.
175

Gráfico 10 – Notícias do CFM que mencionam a palavra crise (2013-2018)


40
35
35 33

30 28 28
25
25
20
20

15

10

0
2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: Elaboração própria a partir de informações do sítio do CFM.

Gráfico 11 – Matérias do jornal O Globo sobre a “crise da saúde” (2013-2018)


80
68
70

60

50 43 42
40

30 25 25

20
11
10

0
2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: Elaboração própria a partir do acervo digital do jornal O Globo.

Gráfico 12 – Matérias do jornal Extra sobre a “crise da saúde” (2013-2018)


40
34
35

30 27
25 22
20
15
15

10
4
5 2
0
2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: Elaboração própria a partir do acervo digital do jornal Extra.
176

As leituras possíveis desses gráficos apontam para diferentes questões relacionadas ao


enquadramento da crise. Começo por aqueles que dizem respeito ao modo como a crise vem
sendo debatida na esfera pública: os gráficos 11 e 12. Ambos os jornais pertencem ao mesmo
grupo empresarial (Infoglobo), estão baseados no Rio de Janeiro e são impressos diariamente,
sendo o Extra um jornal de enfoque e circulação local e O Globo uma publicação de caráter
nacional, com notícias não só sobre o Rio de Janeiro, mas também sobre o Brasil como um
todo. Eles foram escolhidos porque possuem um acervo digital organizado e de acesso público
a um restrito conjunto de dados, tais como a quantidade de páginas e matérias digitalizadas, a
classificação por data de publicação e os títulos dos artigos.
Os gráficos apresentam números distintos nas quantidades de artigos sobre a crise da
saúde publicados ao longo dos últimos seis anos: enquanto foram publicadas ao todo 104
matérias no Extra, o jornal O Globo publicou 214. Essa diferença pode ser parcialmente
explicada pelo próprio tamanho de cada um dos jornais. Independentemente da quantidade de
artigos publicados, ambos os jornais apontam para o significativo crescimento do uso do termo
a partir de 2015, tendo como o auge das publicações sobre o assunto o ano de 2016, no qual
ocorreu o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Sobre o ano de 2015, é preciso lembrar
do decreto de “estado de emergência na saúde pública” editado pelo governador no dia 23 de
dezembro. Assim, destaco que das 43 matérias publicadas em O Globo em 2015, 21 foram
publicadas no mês de dezembro (sendo 13 até a data do decreto); e das 15 do jornal Extra, 8
saíram no jornal naquele mês (sendo 5 até a data do decreto).
Além dos jornais impressos, outros veículos de comunicação também estavam
discutindo a crise naquele momento, ainda que nem sempre utilizando especificamente esse
termo. Um exemplo dessa situação foi a série de treze reportagens intitulada “O Rio na UTI”.
Exibidas entre dezembro de 2015 e janeiro de 2016 no telejornal Balanço Geral da rede Record,
essas reportagens traziam gravações feitas nas unidades de saúde, entrevistas realizadas com
pacientes e profissionais de saúde, documentos publicados por gestores etc. Através de um
conjunto de metáforas médicas, o SUS é antropomorfizado nessas matérias e descrito como um
ser que está “em estado grave”, que “está na UTI” ou até mesmo que “está agonizando”.
Como é possível visualizar nos gráficos, a diferença na quantidade de artigos publicados
pelos diferentes veículos de comunicação mantém uma certa proporcionalidade ao longo dos
anos: em quase todos eles, o jornal O Globo publicou mais matérias que o Extra, exceto em
2017. Essa distinção se dá, principalmente, em função do público do jornal e da sua esfera de
circulação. Na medida em que o Extra é um jornal voltado para questões do interesse da
população carioca e 2017 foi o ano em que a rede municipal de saúde do Rio de Janeiro passou
177

por uma série de dificuldades, não é de se estranhar que mais notícias tenham sido veiculadas
nele do que no jornal de público nacional.
Essa análise faz ainda mais sentido quando se observa o gráfico 10, relativo às notícias
publicadas pelo CFM que mencionam a palavra “crise” ao longo dos últimos anos. Por se tratar
de um órgão federal, poucos dos textos publicados na página do Conselho Federal falam
especificamente sobre as “crises locais”. Sendo o seu foco os eventos e decisões de caráter
nacional, é compreensível que a quantidade de textos publicados tenha sido maior em 2014, um
ano que, como demonstrado nos primeiros capítulos, foi marcado por muitos problemas na rede
federal de saúde, em especial na cidade do Rio de Janeiro.
Com a intenção de explorar como se deu o avanço da discussão pública sobre a crise da
saúde no Rio de Janeiro nos últimos anos, passo agora para uma análise mais detida e qualitativa
dos informes do CREMERJ. O Conselho possui em sua página oficial uma área dedicada aos
informes assinados pela instituição. Estão disponibilizados para consulta pública mais de 3 mil
informes publicados desde abril de 2009, listados de acordo com a data de sua publicação,
divididos por mês e ano. Dentre o grande número de informes disponíveis, tive como um
primeiro critério de seleção aqueles cujo título apresentava o termo “crise”. Após ter verificado
a recorrência da palavra nos títulos, adotei um recorte temporal, analisando então os informes
publicados entre os anos de 2013 e 2018, obtendo um universo de 2.202 informes. Uma rápida
busca pela palavra “crise” nessa página revelou que o termo apareceu 39 vezes36 nos títulos
desses informes institucionais nos últimos dez anos, sendo a esmagadora maioria dos registros
localizada entre os anos de 2013 e 2017.
Em 2009, por exemplo, a palavra aparece uma única vez, em referência à pandemia de
gripe A/H1N1 (também chamada de “gripe suína”) que se espalhou rapidamente pelo mundo.
Isto é, naquele ano, a crise não era do funcionamento sistema público de saúde, mas sim uma
crise epidemiológica que dizia respeito a uma doença específica. Após três anos sem ser
mencionada, a crise reaparece em 2013 para descrever os problemas de financiamento que
estavam começando a afetar a infraestrutura dos serviços públicos de saúde do Rio de Janeiro.
Naquele momento, a crise parecia atingir apenas os hospitais sob administração federal e de
outros municípios que não a capital. Dos seis registros, dois falam sobre os hospitais federais;
três falam sobre unidades de saúde nos municípios de São João de Meriti (na Baixada

36
Ainda que eu tenha selecionado para entrar na contagem apenas os informes cujos títulos continham
necessariamente a palavra “crise” – especialmente por conta dos limites da minha capacidade de processar e
analisar dados quantitativos –, considero fundamental ressaltar a ideia da crise aparece de outras formas em
inúmeros outros informes, como, por exemplo, quando é dito que as “Unidades municipais têm situação agravada
pela falta de verbas” ou que “Hospital Cardoso Fontes segue em situação crítica”.
178

Fluminense), Petrópolis e Teresópolis (na Região Serrana); e um fala sobre a agenda de ações
dos médicos fluminenses contra a “situação caótica da saúde pública e a desvalorização da
medicina por parte do governo federal”.
Em 2014, a maior parte dos informes ainda era sobre a situação de crise nos hospitais
federais da cidade. A “situação crítica das unidades estaduais de saúde” (CREMERJ, 2015) só
começou a figurar nas publicações do Conselho em meados de 2015. Próximo do fim daquele
ano, o uso da palavra crise nos títulos dos informes se intensificou: dos oito registros, sete deles
se deram nos últimos dois meses do ano (dois no mês de novembro e cinco em dezembro).
Segundo esses informes, foi nesse o período que a classificação da situação da saúde pública
no Rio de Janeiro como “em crise” se consolidou.
Se entre 2013 e 2014 o tom desses informes era o de “denúncia” sobre o que estava
acontecendo nos hospitais públicos e clínicas, a partir de 2015 a situação se alterou. Ao longo
daquele ano, os informes do CREMERJ não se limitaram mais a tornar público o que estava se
passando nas unidades no tempo presente, mas também expandiram a temporalidade da crise
para o futuro ao começar a veicular certos “avisos” e “alertas” sobre os perigos da falta de
determinados medicamentos, do não pagamento dos profissionais, do corte de verbas para
manutenção dos hospitais etc. Assim, o tom não era mais somente o de “denúncia do agora”,
mas também o de “temor” e “preocupação” em relação ao que estaria por vir, como nos
informes publicados durante 2015 que dizem: “[Hospital Estadual] Carlos Chagas: superlotação
e falta de medicamentos preocupam”; “Médicos federais denunciam situação crítica na
oncologia do RJ”; “CREMERJ alerta para o desabastecimento de penicilina benzatina”;
“Desativação de serviços nos postos de saúde preocupa médicos”; “Superlotação na emergência
do HGNI [Hospital Geral de Nova Iguaçu] preocupa Ministério Público”; entre outros. Para os
membros do Conselho, o que estava em jogo naquele momento era o possível colapso total de
algumas unidades e, consequentemente, a morte de inúmeras pessoas que dependiam
exclusivamente do SUS para o cuidado em saúde.
A partir de 2016, além da “denúncia” e do “alerta”, os informes do CREMERJ
começaram a ser marcados por um tom de “indignação”. Informes cujos títulos são “Angra dos
Reis: crise na saúde pública se agrava”; “UPAs em Barra Mansa continuam em crise”;
“Emergência do HFB [Hospital Federal de Bonsucesso] sofre com superlotação”; “Crise na
saúde avança pelo Estado”; entre outros, mostram que essa “indignação” tem como fonte o
“descaso com a saúde pública” e um conjunto de situações de precariedade relatado pelo
Conselho, tais como os atrasos nos pagamentos dos profissionais; a demora na reposição do
estoque de medicamentos e insumos; o descumprimento da lei que obriga os municípios e o
179

estado a repassar para a saúde um percentual mínimo do montante arrecado; entre outras. Em
suma, a raiz da indignação do CREMERJ estava no fato de que os políticos e gestores estavam
dificultando o trabalho dos médicos e “colocando a população em risco” ao negligenciar as
unidades públicas de saúde.
No ano seguinte, a crise nos hospitais federais e estaduais saíram do foco dos informes
do CREMERJ. Na verdade, quando um informe de 2017 se refere à rede federal de saúde, um
único assunto domina o debate: os problemas enfrentados por pacientes oncológicos em
diferentes unidades. A maior parte dos textos publicados pelo Conselho durante aquele ano
tinha como objetivo não só denunciar, mas também se posicionar contra as escolhas do então
prefeito Marcelo Crivella para a gestão dos problemas que estavam afetando o funcionamento
das Clínicas da Família e Centros Municipais de Saúde.
Se em 2017 a recorrência do termo crise nos títulos dos informes do CREMERJ foi a
maior nos últimos anos – contando com 11 registros –, chama atenção o fato da palavra ter
desaparecido dos títulos ao longo de 2018. Isso não significa, de maneira alguma, que o assunto
deixou de ser pauta do Conselho ou que a crise foi superada. A leitura dos informes do ano de
2018 sugere que o foco das discussões do órgão deixou de ser a crise em si mesma e passou
para os efeitos dos projetos de solução apresentados e/ou colocados em prática por gestores
municipais, estaduais e federais que se fundamentavam em “políticas fiscais de austeridade”.
Nesse sentido, o tema da crise apareceu em informes que relatam a demissão de funcionários;
a redução dos serviços oferecidos à população; o fechamento de unidades de saúde etc. Isto é,
ainda que não tenha sido explicitamente mencionada nos títulos, a crise apareceu no corpo do
texto dos informes cujos títulos são “Hospital Ronaldo Gazolla volta a sofrer com a falta de
verbas”; “SMS confirma desativação de 184 equipes de saúde da família”; “CREMERJ fiscaliza
hospitais municipais e encontra caos”; “Prefeitura do Rio: saúde reduz atendimentos em 28%”;
“Prefeitura do Rio: corte de R$ 800 milhões na saúde”; entre inúmeros outros.

A construção de um problema social: a crise documentada

De acordo com Lenoir (1998) o processo de institucionalização de um problema social


passa pela fixação de categorias com o propósito de torná-las autoevidentes. Em estrito diálogo
com Lenoir, Zenobi (2017) discute o papel das instituições estatais e dos especialistas na
produção de significados e explicações de determinados eventos ao pesquisar os programas de
atenção aos “afetados” pelo incêndio do clube Cromañón em Buenos Aires. Em suas
180

conclusões, o autor argumenta que “as políticas públicas contribuem fortemente para modelar
a percepção social sobre as questões que elas mesmas definem como problemáticas, fornecendo
uma interpretação e definindo as soluções possíveis” (Zenobi, p. 38, tradução minha).
Concordo com as proposições tanto de Lenoir quanto de Zenobi e afirmo que não só as
políticas públicas influenciam no reconhecimento e na legitimação de uma questão enquanto
um problema, mas também os variados documentos que produzem essas políticas e são por ela
produzidos: relatórios, estatísticas, decretos etc. Meu raciocínio parte da ideia de que esses
papéis materializam os fenômenos ao estabilizar certos modos de interpretação das situações e
estabelecer certas definições e categorias como “oficiais”.
Assim, argumento que esse conjunto de materiais formado pelos diferentes tipos de
registros, tais como decretos, projetos de lei, reportagens, artigos de opinião, entrevistas,
declarações, informes etc., funcionam como documentos que configuram e consolidam o
enquadramento de crise. Sem ignorar as especificidades de cada um, trato todos eles se não
como documentos no sentido estrito do termo, como artefatos de documentalização, uma vez
que eles produzem registros – escritos, visuais e sonoros – que podem ser posteriormente
arquivados, acessados e mobilizados das mais variadas formas para os mais distintos fins. Por
mais que eles tenham pesos e poderes diferentes – afinal, um decreto oficial assinado por
governador não é a mesma coisa que uma entrevista de um ministro em um programa de
televisão –, todos concorrem na produção e reiteração da interpretação das situações
vivenciadas na rede pública de saúde como sinais inegáveis de uma crise, ou, como proposto
por Roitman (2014), como indicadores e “fatos históricos da crise”.
Nesse sentido, além da ideia de enquadramento, outras teorias de Butler ressoam em
minhas análises sobre a produção da crise da saúde no Rio de Janeiro. Seus escritos sobre
performatividade e materialidade enquanto elementos intrinsecamente conectados (Butler,
1993) são fundamentais para a construção de um pensamento que compreende as reportagens,
notas do CREMERJ, entrevistas etc. elencados nos dois primeiros capítulos como objetos
performativos (Freire, 2016). A proposta de tratar certos documentos como objetos
performativos encontra inspiração também nas ideias de Vianna (2014), Riles (2006), Ferreira
(2015) e Lowenkron e Ferreira (2014) acerca da capacidade de os documentos construírem
determinados mundos sociais ao produzir conhecimento e realidade.
Tratar esses diferentes tipos de registros e documentos como objetos performativos
significa pensá-los não como meras descrições ou reflexos da realidade, mas como capazes de
produzir os fenômenos sobre os quais eles se referem por meio de um efeito de verdade causado
por uma constante reiteração. Nesse sentido, corrupção, má administração, queda na
181

arrecadação de impostos, baixa no preço do petróleo, priorização de investimentos, direitos


excessivos, dívidas deixadas pela gestão anterior etc., devem ser encarados como elementos em
uma disputa discursiva que tem por objetivo construir, dar materialidade e estabelecer a crise
como o enquadramento dominante para a interpretação da conjuntura atual da saúde pública.
Um enquadramento de crise não é um enquadramento de tipo qualquer. Uma crise é,
antes de tudo, uma espécie de problema social para o Estado (Lenoir, 1998; Bourdieu, 1996b),
ou seja, uma questão que precisa ser politicamente resolvida. Declarar uma crise significa
atribuir significados que se pretendem precisos acerca de dados estatísticos, acontecimentos,
posicionamentos políticos etc., dando a estes um caráter de realidade. Com isso, intenta-se
conduzir a uma interpretação axiomática autoevidente de que algo está errado e/ou que houve
um desvio do caminho do “progresso”, de modo que uma intervenção se faz necessária e
urgente para que o pior não aconteça.
Da mesma forma que as autoras citadas acima, Bourdieu também afirma que a produção
da realidade social se dá por meio do seu processo de descrição. Sua especificidade está no
destaque dado ao papel do Estado na construção da realidade, uma vez que ele compreende
como um dos principais poderes do Estado a sua capacidade de produzir e impor as categorias
de pensamento utilizadas para descrever “o real”. O autor argumenta também que o Estado
encarna tanto na “objetividade” quanto na “subjetividade”, pois é através de aparatos estatais
variados – como, por exemplo, a organização e regulação das instituições de ensino – que são
impostos esquemas de percepção e pensamento por meio dos quais é possível apreender o
mundo. Para Bourdieu, essa operação encontraria seu ponto máximo no efeito de naturalização
dessas categorias e de um consequente reconhecimento coletivo da realidade social (Bourdieu,
1996b, p. 97).
É seguindo esse raciocínio que afirmo que esses documentos produzem a crise como
um problema social. Ainda que cada uma das versões oficiais e contraversões possua uma
definição e uma explicação particular de quais são as origens e causas principais da crise, todas
elas compartilham da ideia de que é necessário apresentar saídas e soluções para as situações
vivenciadas nas unidades públicas de saúde, por mais que estas variem de acordo com a
perspectiva adotada.
Ao decretar “estado de emergência” na saúde pública estadual, o governador do Rio de
Janeiro utilizou suas prerrogativas enquanto uma autoridade de Estado para estabelecer os
marcos da crise da saúde enquanto um problema social de contornos específicos. De acordo
com Bourdieu, a fabricação de problemas sociais faz parte da produção simbólica do próprio
Estado. Sobre esse ponto, uma das críticas feitas por ele diz respeito ao fato de que muitas vezes
182

um problema sociais fabricado pelos aparatos estatais é tomado como problema sociológico
por cientistas sociais. Em última instância, ainda que sob a aparência de refletir sobre o Estado,
tais estudos acabariam por participar da construção do próprio Estado.
A crítica de Bourdieu encontra ressonância na já mencionada observação de Roitman
(2014) acerca do ponto cego das Ciências Sociais nos debates sobre crise. Isto é, ao tomar a
crise como um problema sociológico cujo significado é autoexplicativo e se concentrar em
discutir as causas e culpados pelas diferentes crises, tais autores estariam participando da
própria produção do fenômeno por não questionar a existência da crise em si mesma. Como
abordado anteriormente, a mesma observação é válida para aqueles que contestam as versões
oficiais da crise: eles também participam de um mesmo jogo retórico que, no fim das contas,
impede que outras leituras da realidade social sejam feitas.
Em síntese, os gráficos, informes, decretos, notícias, artigos, reportagens etc. funcionam
como documentos que estabelecem um dado enquadramento para a situação contemporânea da
saúde pública do Rio de Janeiro; um enquadramento de crise que é, no fim das contas, o
diagnóstico de um problema social. Nesse sentido, tais documentos não apenas corroboram
uma dada cronologia para a crise da saúde no Rio de Janeiro – que começa entre 2013 e 2014
nos hospitais federais, passa a afetar as unidades estaduais em meados de 2015 e encontra seu
auge em 2017, quando atinge a rede municipal de saúde –; mas também definem as bases para
um tipo de “narrativa apocalíptica” que produz colateralmente uma demanda moral para que
“algo seja feito”. É sobre essa necessidade de intervenção que trata a próxima e última seção
do capítulo.

3.3 – Políticas da crise: soluções e projetos para o futuro

De acordo com Koselleck (1999), crise e crítica são conceitos cognatos, pois definir
algo como uma crise pressupõe uma forma de narrar que visa determinar como as coisas
deveriam funcionar e quais foram os desvios de sua verdadeira função que geraram tal situação.
Ou seja, na medida em que a crise é o resultado da discrepância entre a “experiência vivida” e
a “expectativa da história”, uma declaração de crise sempre engendra uma certa forma de
crítica. Roitman (2014) parte do postulado de Koselleck ao afirmar que uma crise sempre deve
ser observada desde o ponto de vista da política da crise, uma vez que é a classificação de uma
“conjuntura de crise” que prepara o terreno para que os projetos de um “futuro novo”
183

apresentados sejam entendidos como parte de um imperativo moral incontornável. Para a


autora, o conceito de crise possui uma natureza que é ao mesmo tempo normativa e teleológica,
já que a retórica da crise exige que se estabeleça um “futuro outro”, de modo a fundamentar
diferentes planos e ações políticas transformativas e/ou intervencionistas.
As elaborações de Koselleck e Roitman condizem com as diferentes acepções
dicionarizadas da palavra crise listadas na epígrafe do capítulo, principalmente a última, que a
define como um “desacordo ou perturbação que obriga instituição ou organismo a recompor-se
ou a demitir-se”. É a partir das colocações desses autores e dessa definição do termo que
argumento que a produção de uma crise é sempre um processo de constituição mútua de causas
plausíveis e soluções viáveis para a sua superação. Assim, para encerrar as discussões deste
capítulo, coloco em questão as propostas apresentadas tanto por governantes, quanto pelos
críticos da crise para que os distintos “futuros catastróficos” vaticinados pelas heterogêneas
versões da crise da saúde pública não se realizem.

Reestruturação, endurecimento e austeridade: as soluções propostas por governantes

Como dito anteriormente, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, negou
diversas vezes que as unidades municipais de saúde estivessem enfrentando condições de
precariedade e escassez. Logo, se não havia crise, não havia também qualquer proposta para
sua solução. Em situações nas quais era insustentável manter um discurso de negação ou
desconhecimento da crise nos hospitais, Clínicas da Família e UPAs, a resposta dada por
Crivella diante do anseio de resolução do problema era a de que todos precisavam ter
“paciência”: população, profissionais de saúde e gestores de Organizações Sociais. Os pedidos
de “paciência”, “compreensão” e “tolerância” se repetiram desde o início do governo de
Crivella. No levantamento realizado, foi possível encontrar declarações do prefeito nesse
sentido desde o seu discurso de posse até o início do ano de 2019. Ao assumir o cargo de
prefeito, Crivella disse que:

O povo entende que governar exige, muitas vezes, contrariar interesses


quando esses são contrários ao bem-estar comum. Em momentos assim,
não é raro que a fúria dos inconformados se derrame pela via da injúria,
da calúnia e da difamação. Se isso ocorrer, peço ao povo, de antemão,
compreensão e paciência. (G1 Rio, 2017a, grifos meus).
184

Em seu balanço de 100 dias de governo, o pedido foi repetido. Após um ano na liderança
da Prefeitura, também. Em uma entrevista concedida no final de 2017, Crivella iniciou uma de
suas respostas reconhecendo que havia cometido alguns erros durante o seu primeiro ano de
gestão. Como justificativa, ele afirmou que “não foi eleito para ser perfeito, mas para ser
prefeito” e que, sabendo disso, a população carioca deveria “ter paciência com ele” (Pleno
News, 2017).
Ao longo dos seus dois primeiros anos de gestão, poucas vezes Crivella foi explícito
quanto aos seus projetos e medidas para a superação da crise da saúde pública. A maioria dos
pronunciamentos feitos por ele se referiu aos atos já cometidos, como, por exemplo, quando ele
afirmou que havia liberado R$ 100 milhões para a compra de medicamentos. Quando
questionado sobre o futuro, a promessa de resolução se resumia em declarações do tipo
“estamos trabalhando para resolver essa questão”; “os salários serão pagos até o fim da próxima
semana”; “os medicamentos começarão a chegar nas clínicas a partir de amanhã”.
A postura de indefinição e de respostas vagas do prefeito e assessores mudou no final
de 2018, quando foi apresentado o já mencionado plano de “Reorganização dos Serviços de
Atenção Primária à Saúde”. Inicialmente, o plano previa a redução de R$ 725 milhões do
orçamento da Saúde, o que acarretaria a demissão de cerca de 1.200 funcionários do Programa
de Saúde da Família da cidade. Foi a partir dessa ocasião que Crivella afirmou explicitamente
que a saída para a crise residiria em medidas de austeridade fiscal e reestruturação do modelo
de saúde vigente até então, ou, nas palavras do próprio prefeito, no “redimensionamento dos
serviços de saúde”.
Em janeiro de 2019, Crivella anunciou a criação de mecanismos de controle e vigilância
dos gastos das OS que gerenciam as Clínicas da Família. Se a crise da saúde na cidade do Rio
de Janeiro teve origem na má gestão das empresas encarregadas de administrar as unidades
municipais de saúde, a abertura da “caixa-preta das OS” por meio do monitoramento da
produtividade e das metas estabelecidas nos contratos com as instituições seria fundamental
para que ela fosse superada. De acordo com a equipe do prefeito, quando essa medida for
efetivamente aplicada, coisas como a “transparência dos custos”, o “acesso total aos dados” e
a “especificação das despesas” estarão disponíveis para que a Prefeitura possa “controlar
efetivamente” as OS e realizar uma “gestão eficaz da saúde municipal”.
No âmbito estadual, as decretações do “estado de emergência” na saúde pública em
dezembro de 2015 e do “estado de calamidade pública” em meados de 2016 representaram
momentos decisivos na implementação de projetos de “ajuste fiscal” e “austeridade” para
impedir que a crise se tornasse ainda maior. De acordo com o governador em exercício na
185

época, Francisco Dornelles, era preciso adotar “medidas duras” – e contrárias às diversas leis
que regulam de que maneira o Governo do estado deve utilizar os recursos públicos
provenientes tanto dos repasses federais quanto do arrecadamento estadual – para conter o
crescimento do “rombo” nas contas públicas do estado do Rio de Janeiro.
Um exemplo de “medida dura” aplicada por Dornelles enquanto ocupou a chefia do
Governo do estado foi a suspensão dos programas sociais Renda Melhor – cujos benefícios
variavam entre R$ 30 e R$ 300 e eram destinados a 122 mil famílias em situação de “extrema
pobreza” (isto é, cuja renda per capita era inferior a R$ 100) – e Renda Melhor Jovem – o qual
oferecia auxílio financeiro para que jovens pobres pudessem concluir o ensino médio. A medida
foi criticada pelo próprio secretário de estado de Assistência Social e Direitos Humanos da
época, Paulo Melo. De acordo com o gestor, o corte resultaria em uma economia mínima nos
gastos do Governo, ao passo que impactaria profundamente a vida dos beneficiários. Alegando
que o aumento do Bolsa Família previsto para setembro daquele ano compensaria o valor
perdido, Dornelles manteve o decreto que suspendeu os programas.
O decreto de “estado de calamidade pública” foi assinado às vésperas dos Jogos
Olímpicos de 2016. Dornelles afirmou em diferentes ocasiões que esse ato era imprescindível
para que o Governo do estado pudesse cumprir suas obrigações para a realização do evento.
Além disso, como mencionado no primeiro capítulo, o decreto visava “impedir um total colapso
na Saúde, Segurança, Educação e Mobilidade do Rio de Janeiro”. Na prática, a decretação do
“estado de calamidade pública” significou, por exemplo, que o secretário de estado de Saúde
pôde determinar a interrupção na dispensação de certos medicamentos – inclusive aqueles cujo
estado havia sido sentenciado a fornecer – sem que isso suscitasse um pedido de prisão por
descumprimento de decisão judicial.
Luiz Fernando Pezão retornou ao Governo do estado em novembro de 2016. Uma de
suas primeiras ações foi anunciar a criação de um pacote de “ajuste fiscal” para solucionar a
crise no Rio de Janeiro. Nesse sentido, Pezão determinou por meio de decretos: a extinção do
programa Aluguel Social37a partir de junho do ano seguinte; a transferência da gestão dos
Restaurantes Populares38 para as Prefeituras ou a sua extinção; a diminuição de 8 Secretarias

37
O Aluguel Social é um benefício assistencial de caráter temporário destinado a atender necessidades advindas
da remoção de famílias domiciliadas em áreas de risco, desabrigadas em razão de vulnerabilidade temporária ou
calamidade pública.
38
Os Restaurantes Populares – também chamados de Restaurante Cidadão – fazem parte do programa de
segurança alimentar do Governo do estado do Rio de Janeiro. Sua missão é fornecer refeições de alta qualidade a
preços acessíveis para a população de baixa renda. O estado do Rio chegou a ter 18 Restaurantes Populares em
funcionamento. Entre junho de 2016 e julho de 2017, todos eles permaneceram fechados por conta da crise
financeira do estado. Atualmente, 5 deles estão em funcionamento, sendo administrados e financiados pelas
186

do Governo, que seriam extintas ou incorporadas por outras; a redução de 30% do valor das
gratificações pagas aos trabalhadores em cargos comissionados e do salário de governador,
vice-governador, secretário de estado e presidente de autarquia estadual; a redução de 30% do
número de cargos comissionados em todas as áreas do Governo do estado; o aumento do valor
da integração e limitação no total mensal subsidiado pelo Bilhete Único39; e a regulamentação
do Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (FEEF), que passou a receber o depósito de todos os
estabelecimentos estaduais que recolhem o IMCS.
Além dos decretos, Pezão, protocolou 22 Projetos de Lei na Assembleia Legislativa.
Dentre as propostas apresentadas, estavam o aumento do ICMS relativo aos produtos dos
setores de fumo, energia, telecomunicações, gasolina, refrigerantes e cervejas; a utilização dos
fundos específicos da ALERJ, da Defensoria Pública e do Tribunal de Justiça para o pagamento
dos servidores dessas instituições; o maior controle no repasse de verbas para outros poderes,
que ficaria vinculado à receita corrente líquida; o fim da gratuidade das barcas para os
moradores da Ilha Grande da ilha de Paquetá; a extinção dos triênios dos servidores estaduais
e estabelecimento de um teto para os reajustes salariais; o adiamento dos reajustes salariais
aprovados para entrar em vigor em 2016 e 2017 para o ano de 2020; a proibição de anistias ou
refinanciamento de dívidas com o estado; o reconhecimento do “estado de calamidade pública”
do Rio de Janeiro por parte da ALERJ; e, tidas como as principais “medidas de combate à
crise”, o aumento da alíquota previdenciária do servidores ativos de 11% para 14% e do
Governo do estado de 22% para 28% , assim como a instituição de “percentual de contribuição
global” por meio criação de uma alíquota temporária extraordinária para servidores inativos,
aposentados e pensionistas de 30% e a criação de uma alíquota adicional temporária para os
servidores ativos para que o somatório final resultasse em 30% do total recebido.
No encerramento da sessão legislativa de 2016, apenas sete dos 22 projetos apresentados
por Pezão haviam sido votados, sendo que um deles foi recusado integralmente e os outros seis
sofreram alterações profundas durante o processo de debate e votação. Dentre as propostas
aprovadas, estava a ampliação da validade do decreto de “estado de calamidade pública” até o
dia 31 de dezembro de 2017. Como mencionado, a última renovação desse decreto estendeu
sua validade até o final de 2019.

respectivas Prefeituras: três na cidade do Rio de Janeiro (Bangu, Bonsucesso e Campo Grande), um em Niterói e
um em Petrópolis. Os restaurantes oferecem café da manhã a R$ 0,50 centavos e almoço a R$ 2,00.
39
O programa Bilhete Único previa a integração entre diferentes modais que circulam no estado do Rio de Janeiro
e também a possibilidade de utilização de um segundo ônibus de circulação municipal sem que o valor da segunda
passagem fosse cobrado. Em 2017, por exemplo, havia integração entre o trem e o metrô e entre o trem os ônibus
municipais. Atualmente, poucos modais contam com integrações subsidiadas e descontos no valor da passagem.
187

Foi na esfera federal que se desenharam os primeiros cortes orçamentários do Ministério


da Saúde que desencadearam crises locais em diferentes cidades do país. Se, em 2014, o
investimento em saúde estava na casa dos R$ 5,87 bilhões, em 2015 esse número caiu para R$
4,92 bilhões. Em 2016 e 2017, houve pouca oscilação, sendo investido R$ 5,11 e R$ 4,97
bilhões, respectivamente. Em 2018, o montante de recursos destinados à saúde não passou dos
R$ 4,12 bilhões, sendo a menor quantia dos últimos cinco anos (Salati, 2018).
Em um plano geral, uma das principais propostas do Governo Federal para solucionar a
crise financeira no país foi o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 241 – também conhecida
como “PEC do teto de gastos públicos” ou, como chamada por seus opositores, “PEC do fim
do mundo”. A PEC 241 foi apresentada à Câmara dos Deputados pelo Poder Executivo em
junho de 2016 com o propósito de instituir o “Novo Regime Fiscal”. Muito resumidamente, o
projeto propunha a “estabilização do crescimento” das chamadas “despesas primárias”; na
prática, uma das consequências de sua aprovação foi o congelamento dos “gastos públicos” em
Saúde e Educação por 20 anos, que terão seus orçamentos corrigidos anualmente a partir da
inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). No documento
protocolado, seus propositores indicavam o estabelecimento de um percentual fixo da Receita
a ser destinado para os referidos setores como um dos motivos que levaram o país a entrar em
crise, como é possível ver no seguinte trecho:

Um desafio que se precisa enfrentar é que, para sair do viés procíclico


da despesa pública, é essencial alterarmos a regra de fixação do gasto
mínimo em algumas áreas. Isso porque a Constituição estabelece que
as despesas com saúde e educação devem ter um piso, fixado como
proporção da receita fiscal. É preciso alterar esse sistema, justamente
para evitar que nos momentos de forte expansão econômica seja
obrigatório o aumento de gastos nessas áreas e, quando da reversão do
ciclo econômico, os gastos tenham que desacelerar bruscamente. Esse
tipo de vinculação cria problemas fiscais e é fonte de ineficiência na
aplicação de recursos públicos. Note-se que estamos tratando aqui de
limite mínimo de gastos, o que não impede a sociedade, por meio de
seus representantes, de definir despesa mais elevada para saúde e
educação; desde que consistentes com o limite total de gastos. (PEC
241/16, Brasil, 2016).

O projeto tramitou durante cerca de seis meses, sendo alvo de inúmeras controvérsias,
críticas, lobbies e protestos. Em outubro de 2016, o texto foi aprovado em dois turnos na
Câmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal. No Senado, a PEC recebeu um novo
número (PEC 55) e após dois turnos de votação – um em novembro e outro em dezembro – foi
novamente aprovada. O texto foi promulgado pelo Congresso Nacional em 15 de dezembro de
188

2016 sob o título de Emenda Constitucional nº 95, que estabeleceu o Novo Regime Fiscal no
âmbito dos orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União.
Como soluções para a crise da saúde, o ministro da Saúde da época, Ricardo Barros,
sempre apontou para a necessidade de “reformar o SUS” para que ele “coubesse” no orçamento
disponível, já que, para ele, “o modelo do SUS hoje financia a doença não a saúde. Se ninguém
ficar doente durante um mês inteiro, quebra o sistema. Hospitais, laboratórios, todos deixam de
faturar”. Nesse sentido, todos os planos apresentados pelo antigo ministro tiveram como ponto
principal a economia de gastos. Durante uma entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura,
ele ressaltou a proposta de criação de “planos de saúde populares” como uma alternativa
razoável para que a população pudesse garantir atendimento em saúde, de modo a também
“desafogar o SUS”.
Outra forma de economizar os gastos com Saúde defendida pelo antigo ministro se
baseava na “total informatização de todas as unidades públicas de saúde”. Em diferentes
momentos ele apontou essa ideia como o principal passo para a implementação de uma “gestão
eficiente”, capaz de rastrear onde e como estavam sendo empenhados os recursos destinados à
Saúde. Através do combate a fraudes e do monitoramento de condutas médicas, a
informatização do SUS foi apresentada por Barros em diversas ocasiões como uma medida que
acabaria com o problema do “desperdício de recursos” e que resultaria em um total de cerca de
R$ 22 bilhões poupados.
No início de 2017, o Governo Federal tomou a decisão de “reestruturar” o programa
Farmácia Popular após uma auditoria conduzida pelo Ministério da Saúde em 480 farmácias
encontrar inúmeras irregularidades nas prescrições de medicamentos elencados na política. De
acordo com seus idealizadores, os grandes objetivos desse plano de reestruturação foram
“combater as fraudes no sistema”, “aperfeiçoar o programa” e implantar “formas eficientes de
controle na distribuição de medicamentos”. Na prática, a principal medida tomada foi
estabelecer uma nova regra etária para o acesso a medicamentos. Assim, a idade mínima para
adquirir medicamentos subsidiados para o tratamento de colesterol alto passou a ser 35 anos;
para Parkinson, 50 anos; para Osteoporose, 40 anos etc.
Alguns meses depois, o Governo Federal anunciou que deixaria de financiar a rede
própria de farmácias do programa e que todas as unidades seriam fechadas até o final daquele
ano. Sob a égide do “necessário corte de gastos”, a decisão foi descrita como parte dos esforços
do Ministério da Saúde de tornar o programa “mais eficiente”, uma vez que, do valor total
destinado ao financiamento do Farmácia Popular, apenas 20% seria gasto efetivamente com a
compra de medicamentos e os outros 80% seriam utilizados para pagar salário de funcionários,
189

aluguéis de imóveis e outras despesas de manutenção estrutural. Para justificar o fechamento


das unidades, o Governo alegou que não haveria nenhum corte no valor total do financiamento
do programa e que tudo que era gasto até então seria repassado para os estados e municípios,
de modo a aumentar a quantidade de medicamentos comprados e expandir o acesso da
população aos mesmos.
A rede federal de unidades de saúde no Rio de Janeiro também foi alvo de projetos de
“reestruturação”. Em 2017, após o ministro da Saúde alegar que os hospitais federais eram
“ineficientes” e que “desperdiçavam o dinheiro do contribuinte”, foi anunciado um plano de
reorganização desses estabelecimentos. O projeto apresentado previa a especialização dos
hospitais em determinadas áreas de assistência e serviços de saúde, de modo a torná-los mais
“eficientes” e “otimizados” tanto na prestação de atendimento à população, quanto no uso de
recursos públicos. De acordo com o secretário da Atenção à Saúde do Ministério da Saúde,
Francisco de Assis Figueiredo, o remanejamento de equipes para qualificar os hospitais
aumentaria cerca de 20% o número de atendimentos especializados em oncologia, ortopedia e
cardiologia realizados nas unidades. Além disso, esses hospitais extinguiriam suas filas próprias
de cirurgia e entrariam em um sistema único de filas a ser gerenciado pelas unidades estaduais
e municipais de saúde a partir de uma Central Única de Regulação. De acordo com o secretário,
a redução das “quilométricas filas” dos hospitais era uma das principais metas do projeto.
Apesar da ideia de reestruturação se basear na “urgente necessidade de cortar custos”,
Figueiredo reiterou diversas vezes durante a coletiva de imprensa na qual o plano foi
apresentado que a reorganização dos serviços não implicaria suspensões, cortes e nem
diminuições nos atendimentos prestados aos cidadãos e que a nova forma de regulação da fila
não alteraria os atendimentos e cirurgias já agendados. Assim, a reestruturação teria como mote
a realocação de setores qualificados como de “baixa produtividade” para alguma unidade cuja
infraestrutura existente pudesse fazer com que as equipes especializadas fossem “melhor
aproveitadas”. Ou seja, se antes havia a oferta de serviço de cardiologia em quatro hospitais da
rede – e, consequentemente, em diferentes pontos da cidade –, após a reestruturação haveria
apenas um setor no qual, supostamente, estariam disponíveis os melhores equipamentos e
profissionais.
190

“Não aos cortes”: contrapropostas e saídas alternativas para a crise

Na medida em que os políticos da oposição, o CREMERJ, as ONGs, a ABRASCO etc.


questionaram as causas da crise da saúde alegadas pelos gestores dos três níveis administrativos,
esses atores e instituições postularam também projetos alternativos para a sua superação. Para
encerrar este capítulo, enumero as iniciativas e propostas dos críticos da crise para a mitigação
dos seus efeitos na rede pública de saúde.
Um dos órgãos mais ativos na proposição de medidas contra a crise da saúde no Rio de
Janeiro foi o CREMERJ. As ideias do Conselho para superar a crise ou ao menos mitigar os
seus efeitos variaram ao longo dos anos. Um clamor por “mudanças políticas necessárias e
fundamentais” está presente nos informes do órgão desde o início da crise, ainda que tais
mudanças não tenham se traduzido em planos de ação mais concretos em um primeiro
momento. Além disso, o CREMERJ adotou sistematicamente duas estratégias para fazer
pressão nos gestores e escapar aos constrangimentos materiais impostos pelos planos de
contingenciamento: 1) ajuizar de Ações Civis Públicas contra Prefeituras, Governo do estado e
Governo Federal ou apresentar denúncias ao Ministério Público relativas à falta de pagamentos
e às precárias condições de trabalho nos hospitais públicos; 2) apoiar as greves realizadas pelos
profissionais de diversas unidades.
O CREMERJ acionou a “Justiça” – categoria que aparece em diversos informes da
instituição e que abarca não somente os órgãos do Judiciário propriamente dito, mas também
instituições que atuam junto ao Judiciário, tais como as Defensorias Públicas, os Ministérios
Públicos e as Procuradorias Gerais – ao longo dos últimos anos para fazer valer um conjunto
variado de interesses da categoria médica fluminense. Nesse sentido, a instituição ingressou
com ações nos Tribunais de Justiça solicitando a impugnação de concursos públicos vistos
como ilegais; pedindo que resoluções emitidas por outras entidades de classe fossem suspensas,
entre outras situações.
Em um contexto descrito como “em crise”, o acionamento do Judiciário e de mediações
extrajudiciais é utilizado como forma de garantir que determinados deveres constitucionais
sejam cumpridos nos âmbitos municipal, estadual e federal da gestão pública. Esses deveres
são relativos não somente ao percentual de repasse obrigatório para a saúde por parte dos órgãos
da administração, mas também à garantia das condições mínimas de trabalho nas unidades e ao
pagamento da folha salarial dos profissionais que atuam na rede pública. A página de informes
do CREMERJ indica que, desde meados de 2013, a instituição vem repetidamente ajuizando
Ações Civis Públicas e denunciando a situação das unidades ao Ministério Público para que
191

esse apresente o caso ao Judiciário. Os réus variam de acordo com a já mencionada cronologia
do avanço da crise. Isto é, entre 2013 e 2014, as ações eram movidas principalmente contra a
gestão dos hospitais federais no Rio de Janeiro; em 2015 e 2016 o principal acusado era o
Governo do estado; e em 2017, ano em que mais ações foram ajuizadas, a Prefeitura do Rio era
o principal alvo do Conselho.
De certa maneira, esses processos buscavam promover as “mudanças políticas”
indicadas pelo Conselho como soluções para a crise, tendo em vista que alguns deles visavam
destituir prefeitos, governador, secretários e até o ministro da Saúde dos seus cargos. Além
disso, o acionamento da Justiça ocorreu como uma espécie de reação a episódios específicos,
como, por exemplo, o já mencionado caso dos macacos entrando pela janela do Instituto
Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (IECAC), noticiado em um telejornal em 2015.
Diante da repercussão das imagens, o então presidente do CREMERJ, Pablo Vasquez, declarou:
“estamos já iniciando hoje uma ação judicial contra a situação de desamparo que a população
está por falta de ação do governador do Rio de Janeiro. Vamos responsabilizá-lo
criminalmente” (G1 Rio, 2015a).
Alguns dos informes publicados anunciam a “vitória” do Conselho em certos processos,
como, por exemplo, nos intitulados “Vitória: Justiça determina renovação dos contratos
temporários”; “Justiça ordena que Prefeitura de Belford Roxo pague atrasados”; “Justiça
determina que Estado do RJ crie fundo para saúde” etc. Outros, ao contrário, criticam a falta de
ação por parte do Ministério Público ou questionam decisões do Judiciário que vão de encontro
aos interesses do órgão, tais como os pedidos negados de impugnação de concursos; a não
determinação do pagamento imediato dos profissionais; entre outros, como, por exemplo, nos
informes cujos títulos são “CREMERJ recorre de decisão sobre Hospital do Andaraí” e
“Médicos denunciam coações causadas por Judiciário e gestores”.
Na segunda metade de 2016, o Conselho começou a debater uma proposta de pedido de
intervenção federal na Saúde do Rio de Janeiro, uma vez que, como mencionado, o Governo
do estado não estava repassando o percentual obrigatório para o Fundo Estadual de Saúde
(FES). De acordo com os dirigentes do CREMERJ, essa solução foi pensada após várias
tentativas frustradas de contornar os efeitos da crise por meio do Judiciário – inclusive propondo
uma ação contra o governador por improbidade administrativa – e de diálogos com os
secretários municipal e de estado de Saúde e o secretário de estado de Fazenda. O pedido de
intervenção tinha o objetivo de impedir que episódios como os do final do ano anterior – que
culminaram no decreto de “estado de emergência da saúde pública” no Rio de Janeiro – se
repetissem. A reunião entre os representantes do Conselho e o então ministro da Saúde
192

aconteceu em novembro de 2016. Mesmo com a entrega dos relatórios das vistorias realizadas
e a exposição do presidente do CREMERJ acerca da situação dos hospitais municipais,
estaduais e federais no Rio, o ministro negou o pedido feito pelo órgão.
O ano de 2017 foi crítico no que diz respeito às ações do CREMERJ de enfrentamento
da crise. Ao longo daquele ano, os processos judiciais movidos pelo Conselho não eram
relativos somente ao atraso nos pagamentos de salários e falta de infraestrutura para o
atendimento da população. Em 2017, muitas das ações ajuizadas tinham como objetivo impedir
que as propostas de cortes de gastos por meio da demissão de funcionários e suspensão de
serviços apresentadas por órgãos e secretarias de gestão municipais, estaduais e federais fossem
aprovadas. Em alguns casos, a intenção era reverter cortes já estipulados. Trago como exemplos
informes publicados naquele ano cujos títulos são: “CRM entra com ação contra prefeito do
Rio”; e “STF suspende cortes na saúde previstos para 2018”.
Outra forma de combater os efeitos da crise nas unidades públicas de saúde e de fazer
pressão política para que as “autoridades” cumprissem seus deveres acionada pelo Conselho foi
endossar as ações dos médicos em greve. Além disso, o CREMERJ publicou uma série de
informes que pretendiam alertar a população sobre a possibilidade de suspensão de serviços e
de fechamento de setores e/ou unidades de saúde por completo. Como exemplos de informes
marcados por esse tom de “aviso”, cito aqueles cujos títulos são: “Hospitais de Teresópolis
podem fechar devido à falta de verbas”; “Atendimento neonatal pode ser suspenso no Rio”;
“HUPE [Hospital Universitário Pedro Ernesto] vê crise se agravar e pode fechar nos próximos
dias”; “Maternidade do Hospital de Acari corre risco de fechar”; “Emergência do HFB
[Hospital Federal de Bonsucesso] fecha devido à falta de médicos”; “Hospitais de Barra Mansa
ameaçam reduzir atendimento” etc.
Além das greves propriamente ditas, diferentes categorias de profissionais de saúde
fizeram também paralisações pontuais em alguns estabelecimentos por um ou dois dias. As
principais reivindicações dos grevistas eram sempre o pagamento dos salários atrasados e a
providência de condições mínimas para o atendimento da população nas unidades públicas de
saúde, tais como a compra de materiais esterilizados, a manutenção de equipamentos
necessários para a realização de exames médicos, a regularização dos estoques de
medicamentos e insumos etc.
A busca pelos termos “greve” e “paralisação” na página de informes do CREMERJ
revela a seguinte recorrência desde que a crise da saúde pública se instaurou:
193

Gráfico 13 – Informes do CREMERJ que anunciam greves ou paralisações (2015-2018)


18

17
15

14
12

6
6
3 4

0
2015 2016 2017 2018
Fonte: Elaboração própria a partir de informações no sítio do CREMERJ.

Como é possível observar no gráfico 13, há um aumento expressivo na quantidade de


informes institucionais que abordam as greves e as paralisações realizadas pelos profissionais
nos últimos dois anos. Se em um primeiro momento, a principal estratégia do CREMERJ para
escapar dos efeitos da crise foi ingressar com ações na Justiça, a percepção dos limites dessa
forma de atuação e a implementação de “planos de austeridade” por gestores em todos os níveis
– em especial os cortes executados pelo prefeito Marcelo Crivella a partir de 2017 – geraram
como reação um grande aumento no número de suspensões do atendimento tanto por meio de
greves de média e longa duração, quanto por meio de paralisações pontuais.
A busca pela Justiça na tentativa de amenizar não só os efeitos já sentidos da crise nas
unidades públicas de saúde, mas também para evitar o agravamento da situação que poderia
ocorrer com a aprovação das propostas elaboradas por diferentes gestores não foi feita somente
pelo CREMERJ. A ABRASCO, por exemplo, na ocasião da criação de um Grupo de Trabalho
(GT) no Ministério da Saúde para discutir a concepção e desenho do projeto Plano de Saúde
Acessível, afirmou por meio de uma nota que estava estudando a possibilidade de mover uma
ação judicial contra o Ministério solicitando a extinção do GT.
Conforme descrito anteriormente, os políticos da oposição também adotaram a
estratégia de acionar o Judiciário. Em 2017, a deputada federal Jandira Feghali entrou com um
pedido de representação na Procuradoria Geral da República (PGR) contra Ricardo Barros,
solicitando que o então ministro da Saúde fosse responsabilizado criminalmente pelas mortes
que estavam ocorrendo em decorrência da precariedade vivenciada nos hospitais federais na
cidade do Rio de Janeiro.
194

Na esfera local, os membros da bancada do PSOL na Câmara Municipal do Rio de


Janeiro e na ALERJ também tentaram impedir que Crivella levasse a cabo o projeto de
reorganização dos serviços municipais de atenção primária à saúde através de uma Ação
Popular na qual solicitaram a suspensão do plano. A decisão de caráter liminar favorável ao
pleito dos parlamentares foi publicada em 23 de novembro de 2018 e era explícita quanto à
proibição de extinção, “desabilitação” ou transferência das 184 equipes de saúde que seriam
cortadas de acordo com o plano de reorganização. Além disso, o juiz estipulou um prazo de 15
dias para que a Prefeitura apresentasse os documentos e estudos referentes ao projeto. Nesse
mesmo dia, a Justiça Federal negou um pedido de concessão de liminar feito pelo prefeito para
que o Governo Federal assumisse 24 unidades municipais de saúde, entre hospitais, centros
municipais de saúde e policlínicas. As duas decisões foram noticiadas na página do movimento
Nenhum Serviço de Saúde a Menos como uma “dupla derrota de Crivella na Justiça”. O prefeito
recorreu da primeira decisão e, cerca de 10 dias depois, a liminar que o impedia de avançar com
o plano de reestruturação das equipes de saúde da família foi revogada.
Os políticos da oposição não se limitaram a recorrer ao Judiciário para combater as
medidas tomadas pelos governantes em nome da superação da crise, muitos deles também
tentaram executar ações dentro do próprio Poder Legislativo. Os dois exemplos mais
significativos desse tipo de conduta foram o pedido de abertura de uma “CPI da Saúde” na
ALERJ proposto pelo deputado estadual Flávio Serafini, a qual nunca foi instituída pelo
presidente da Assembleia; e a liderança exercida pelo deputado estadual Marcelo Freixo contra
o “pacote de ajuste fiscal” proposto pelo governador do estado, Luiz Fernando Pezão, no final
de 2016.
A principal iniciativa do Nenhum Serviço de Saúde a Menos foi a organização de atos
públicos e assembleias com profissionais de saúde e militantes. O movimento também foi
responsável por coordenar e/ou apoiar greves e paralisações em distintas unidades de saúde da
cidade. Nas redes sociais, o NSSM pautou a criação da hashtag “#crivellamente”, que vem
sendo utilizada para contestar as falas do prefeito de que as unidades de saúde do município
não estavam passando por problemas e/ou que esses problemas já haviam sido solucionados.
Junto aos artigos, matérias, reportagens ou comunicados oficiais da assessoria de imprensa da
Prefeitura nos quais há alguma “declaração falsa” de Crivella, os apoiadores do movimento
compartilham depoimentos, fotos e vídeos da unidade que contradizem o que foi dito pelo
prefeito.
Entre os diferentes especialistas consultados, as ideias de solução para a crise variaram.
Para acadêmicos de Saúde Coletiva, a situação das unidades públicas de saúde só melhoraria
195

caso o SUS deixasse de ser subfinanciado e passasse a receber o montante que lhe cabe, como,
por exemplo, os percentuais mínimos definidos constitucionalmente. Entre os estudiosos do
campo do Direito, as soluções para a crise são discutidas em debates que giram em torno da
necessidade do equacionamento entre o “princípio do mínimo existencial” – que diz respeito
aos direitos considerados fundamentais para que se tenha uma vida digna – e o “princípio da
reserva do possível” – o qual visa impor um “limite razoável” para a prestação de direitos
sociais por parte do Estado.
Para aqueles ligados às áreas de Economia e Administração Pública, uma das opiniões
era de que seria preciso que os gestores pensassem em como alocar “recursos escassos” a partir
de definições de setores e pastas prioritárias. Outra perspectiva de economistas sobre como
solucionar o problema da crise é exemplificada pelo posicionamento de Gil Castello Branco,
presidente e porta-voz da ONG Contas Abertas. Como dito anteriormente, a principal
explicação da instituição para a crise brasileira seria “a corrupção da classe política”. Nesse
sentido, o economista afirma que a única forma de acabar com o pagamento de propinas para a
celebração de contratos públicos seria a redução do próprio Estado, a qual deveria ser feita por
meio do fechamento da maior parte das empresas públicas do país, tais como o Banco do Brasil,
a Caixa Econômica Federal e a Petrobrás, pois, segundo ele, “o ambiente prostituído, de
boquinhas e mamatas, tem sempre o Estado no meio” (Agência Contas Abertas, 2017c).
Por fim, é possível perceber que todas as versões da crise – sejam elas oficiais ou
contraversões – compartilham de dois elementos fundamentais e inseparáveis: o catastrofismo
e o salvacionismo. Ou seja, todas elas pressupõem um futuro calamitoso que se aproxima e
diante do qual são formulados planos de solução. Enquanto para uns é preciso frear o
crescimento da dívida pública e “salvar a economia” do município, do estado ou até mesmo do
país; para outros é preciso resguardar o “direito fundamental à saúde”, impedir o “desmonte do
SUS” e garantir que a população tenha acesso aos serviços de saúde de maneira universal,
equânime e integral. Em todas elas, há um problema social que precisa ser resolvido por uma
intervenção estatal.

***
196

Como demonstrado na primeira parte do capítulo, o Sistema Único de Saúde brasileiro


vem passando por diferentes crises ao longo dos seus 30 anos de existência. No entanto, um
dos mais intrigantes efeitos da declaração de uma crise é sua capacidade de isolar
temporalmente certos eventos e fenômenos, de modo a demarcar diferenças irreconciliáveis
entre um “presente alargado” e um “passado distante”. A crise produz uma espécie de tempo
presente pulsante e interminável, que, de acordo com o modo como é narrado, pode se contrair
e se dilatar tanto para trás – quando a atualidade é atrelada aos acontecimentos de um passado
próximo –, quanto para frente – quando o hoje representa uma ameaça ao amanhã ou quando é
pressuposto que o quadro presente se reproduzirá indefinidamente e comprometerá o futuro
caso nenhuma solução seja colocada em prática.
Tal movimento de expansão e estreitamento temporal pode ser percebido na medida em
que os sujeitos traçam as linhas que delimitam onde e quando a crise da saúde teve início em
diferentes pontos. Por exemplo, diversas pessoas relacionam a expansão da Estratégia de Saúde
da Família iniciada em 2009 pelo então prefeito da cidade, Eduardo Paes, ao quadro atual de
precariedade das Clínicas da Família cariocas. Ou seja, um “erro” cometido há cerca de dez
anos pode ser mobilizado na explicação do presente, mas parece não haver qualquer ligação
entre o que estava acontecendo em 2017 ou 2018 e a crise de 1995, ou até mesmo antes disso.
A despeito de todas as diferenças de perspectivas acerca das causas, consequências e soluções
para a crise, a grande maioria dos atores envolvidos na disputa pela sua definição atribuem ao
cenário contemporâneo um certo ineditismo. Como disse o presidente do CREMERJ em 2015,
esta é a “a pior crise da saúde pública no Rio de Janeiro”.
Além de um isolamento temporal, pensar a situação nos termos de uma crise implica
também uma segregação e desconexão espacial muito específicas. Afinal, o grave
desabastecimento de medicamentos básicos só passou a ser descrito como um dos principais
elementos indicadores de uma crise da saúde pública quando ele atingiu não só as Clínicas da
Família cariocas em meados de 2017, mas também as unidades de saúde em outras capitais e
regiões metropolitanas do Brasil.
Diante dessa formulação de crise, é fundamental que nos perguntemos se e quando os
sinais desse desabastecimento surgiram em outras partes do país, como, por exemplo, nas áreas
rurais. Ou até mesmo se em algum momento da história do SUS os municípios do interior foram
de fato “abastecidos”. As diversas pesquisas sobre a desproporção da oferta de equipamentos;
das políticas públicas implementadas; da disponibilidade de recursos a serem investidos; da
quantidade de profissionais de saúde etc. em diferentes regiões do país apontam que a
desigualdade no acesso aos serviços de saúde é uma questão perene para a saúde pública
197

brasileira (Rodrigues Filho, 1987; Buss, 1995; Arruda, Maia e Alves, 2018; Viacava et al.,
2019).
“Ilhas de excelência” – como são retratadas algumas unidades de saúde como, por
exemplo, o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO) – e hospitais nos quais
faltam dipirona e paracetamol existem simultaneamente no mapa sanitário brasileiro desde
muito antes do início do processo de idealização e concretização do Sistema Único de Saúde.
Levando isso em consideração, é preciso questionar por que situações análogas às ocorridas no
Rio de Janeiro nos últimos anos não escandalizam e não caracterizam uma crise quando se
passam em outros lugares. Dessa pergunta, suceder-se-iam outras, como, por exemplo, que SUS
é este que está sendo “desmontado” pelo “projeto da crise”?
No fim das contas, um evento só é enquadrado como uma crise quando ele provoca uma
ruptura na expectativa de normalidade tanto temporal quanto espacial. Isto é, quando aquilo
que não poderia acontecer de forma alguma acontece não só no tempo errado, mas também no
lugar errado.
Em suma, concordo com Roitman (2014) em sua afirmação de que a crise não é um
contexto no qual as ações e projetos políticos se desenrolam. A crise produz o contexto e incita
intervenções. Nesse sentido, ao trazer a crise da saúde pública no Rio de Janeiro para o centro
do debate, não pretendo apenas contextualizar o leitor no cenário e/ou no marco temporal no
qual realizei minha etnografia. Meu objetivo é evidenciar como o trio crise-escassez-
precariedade conforma a própria condição de possibilidade para o desenvolvimento de órgãos,
mecanismos, procedimentos e práticas de gestão como as que eu pude acompanhar durante o
trabalho de campo na Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS).
198

PARTE II

JUDICIALIZAÇÃO

O atendimento na DPU começou por volta das 10:10 da manhã. Três funcionárias
estavam atendendo e nenhum estagiário havia chegado até então. Nesse dia, resolvi anotar
quais eram as principais demandas apresentadas por cada um dos usuários. Para isso, passei
o dia inteiro em pé andando de um guichê para o outro, sem acompanhar detidamente nenhum
dos atendimentos.
A solicitação do primeiro assistido era relativa a dois medicamentos indicados por seu
médico para o tratamento de um câncer no sistema linfático, os quais estavam em falta no
hospital em que era tratado.
A segunda pessoa a ser atendida reclamou que não estava recebendo insulina para o
tratamento da diabetes há mais de um mês.
O terceiro necessitava de dois remédios para aliviar sua dificuldade de urinar causada
por uma hiperplasia prostática benigna (conhecida popularmente como “próstata
aumentada”), os quais não estavam disponíveis no estoque do hospital no qual foi atendido e
nem havia qualquer previsão de regularização do fornecimento.
O quarto assistido necessitava urgentemente de um aparelho respiratório para seu pai,
um idoso com graves problemas pulmonares.
A quinta assistida demandou um medicamento para o tratamento de asma de seu filho
de 12 anos, o qual estava em constante falta na Clínica da Família de sua área de residência.
A sexta precisava com urgência de um fármaco para retomar seu tratamento contra o
Lúpus Eritematoso Sistêmico, uma doença inflamatória crônica e autoimune que faz com que
o sistema imunológico ataque seus próprios tecidos saudáveis.
O sétimo e a oitava apresentaram a mesma queixa de falta de insulinas para controlar
o diabetes.
A nona assistida também estava enfrentando problemas causados pela diabetes.
Contudo, sua demanda não era por insulina e sim por um medicamento injetável que combate
a retinopatia diabética, isto é, a perda progressiva da visão ocasionada pelo descontrole
glicêmico característico de quem tem a doença.
Da mesma forma que a quinta, a décima também estava com seu tratamento de Lúpus
interrompido por conta da falta de medicamento.
199

O décimo primeiro estava tendo problemas no acesso ao medicamento para o


tratamento de psoríase, uma doença crônica que provoca manchas e a escamação da pele.
A décima segunda necessitava de quatro remédios diferentes não incluídos em nenhuma
lista oficial de distribuição de medicamentos para o tratamento de coágulos sanguíneos em
suas pernas, os quais causavam muitas dores e dificuldades para se locomover.
O décimo terceiro demandou dois medicamentos para a alteração de seu esquema
terapêutico de Hepatite C, pois os previstos no Protocolo e disponibilizados pelo SUS não
estavam sendo eficazes.
A falta dos fármacos que controlam os sintomas do Lúpus também foi a queixa da
décima quarta assistida atendida pela DPU.
A décima quinta reclamou que estava esperando há meses a realização de uma
ressonância magnética para confirmar o diagnóstico de uma possível deficiência na produção
de hormônios e demandou a marcação imediata do exame.
O décimo sexto buscou a CRLS para conseguir um medicamento para tratar de uma
Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), pois esse não consta na lista de medicamentos
distribuídos gratuitamente e, por ter pedido o emprego, não estava mais condições de arcar
com os custos do próprio tratamento.
A décima sétima pleiteou a aquisição de dois tipos de colírios distintos para retardar a
diminuição da perda da visão ocasionada pela Catarata, doença que já havia atingido seus
dois olhos. Ela também aproveitou a situação para protestar contra a demora na marcação da
cirurgia de substituição do cristalino, que é o único tratamento realmente eficaz contra a
doença.
O décimo oitavo demandou um remédio de alto custo utilizado para tratar os sintomas
da artrite reumatoide soropositiva que acomete sua mãe, uma doença grave, progressiva e
incapacitante. Segundo ele, a família não tem condições de arcar com o valor total do
tratamento.
A décima nona assistida estava desesperada para conseguir a marcação de um exame
de colonoscopia, o qual seria fundamental para confirmar as fortes suspeitas que seu médico
tinha de que ela apresentava um quadro de câncer no cólon.
O vigésimo procurou a CRLS porque seu filho de 8 anos, diagnosticado com autismo,
estava sem a medicação necessária para controlar os sintomas da doença.
O vigésimo primeiro queria entregar uma “declaração negativa” que ele havia obtido
na farmácia do hospital. O documento indicava expressamente que a unidade não tinha o
medicamento demandado no estoque e que não havia sequer uma licitação de compra do
mesmo em andamento.
[...]

(Diário de campo, 16.12.2017)

***
200

Na primeira parte da tese, busquei demonstrar como a categoria crise se fixou enquanto
o enquadramento dominante para explicar as dramáticas situações de escassez e precariedade
vivenciadas nas unidades públicas de saúde da cidade nos últimos anos. Na última seção do
terceiro capítulo, descrevi uma das formas pelas quais os efeitos dessa crise vêm sendo
gerenciados nos últimos anos: por meio do acionamento da “Justiça”. Isto é, abordei como a
estratégia de demandar a atuação de órgãos e atores do Poder Judiciário – ou ligados a ele, como
as Defensorias e os Ministérios Públicos – como um caminho para tentar amenizar e/ou reverter
os impactos causados pela crise foi levada a cabo tanto por sujeitos singulares – como os
políticos da oposição – quanto por coletivos institucionais – como o Conselho Regional de
Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ).
Contudo, a ideia de que essa entidade múltipla nomeada por “Justiça” seria capaz de
garantir aquilo que é “justo” e “correto” – a saber, o acesso da população aos serviços públicos
de saúde, aos medicamentos necessários para o seu tratamento, aos exames que precisam fazer
etc. – não é compartilhada apenas entre sujeitos que ocupam posições de poder e autoridade
específicas e que, por conta disso, são capazes de amplificar suas opiniões e argumentos por
meio de diferentes veículos de comunicação, tais como parlamentares, membros de um
conselho profissional, economistas, acadêmicos de Saúde Coletiva e especialistas em
orçamento e gestão pública. O “clamor por justiça” diante de incertezas, esperas intermináveis
e precariedade material experimentados nas unidades públicas de saúde é feito também por
aqueles que poderíamos chamar de “pessoas comuns”. Trabalhadores, desempregados,
aposentados, funcionários públicos, idosos, jovens, mães, pais, filhos, netos, sobrinhos, entre
inúmeros outros que dependem dos cuidados prestados diariamente no âmbito do SUS; todos
se dirigiram à Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) na tentativa de obter uma
ordem judicial que garantisse o atendimento de suas demandas.
Nesse sentido, é sobre a busca pela Justiça de pessoas comuns que trata a segunda parte
de minha tese. Por meio de histórias e narrativas ouvidas e acompanhadas durante o trabalho
de campo na CRLS, pretendo abordar os modos pelos quais os esforços de pessoas e famílias
em demandar soluções para os problemas de saúde enfrentados por eles naquele momento são
governados e gerenciados burocraticamente em um órgão estatal. Ao fazer isso, detenho-me
em uma dimensão menos visibilizada da precariedade dos serviços públicos de saúde no Rio de
Janeiro, uma vez que relatos como os apresentados acima apontam para aquilo que – de uma
maneira aparentemente paradoxal – poderia ser descrito como uma espécie de crise
permanente, a qual se dá em um plano ordinário e implica uma administração rotineira e
contínua da escassez.
201

Ou seja, o foco das minhas discussões não estará mais nos grandes dramas da saúde
pública que vêm sendo frequentemente noticiados pela mídia nos últimos anos; mas sim em um
aspecto mais ordinário não só da precariedade, mas também das formas pelas quais as pessoas
tentam contorná-la a partir do que pude apreender durante o trabalho de campo na CRLS.
Assim, de certo modo, o que acompanhei em minha etnografia pode ser entendido como uma
forma de “judicialização da crise”.
Como espero demonstrar nessa segunda parte da tese, a crise enquanto um modo de
governo mencionada no capítulo três diz respeito não só às formas rotineiras de gerenciamento
das ações e ferramentas utilizadas pelas pessoas para tentar conter ou contornar os efeitos
cotidianos da crise da saúde; mas também à gestão do tempo, do risco, das condições de vida e
das possibilidades de sobrevivência desses sujeitos.
202

CAPÍTULO 4

“A CRLS surge com o intuito de resolver a situação”:


as “falhas do Sistema de Justiça” e a criação da CRLS

Como venho argumentando ao longo da tese, é através da produção de problemas


sociais que determinadas práticas e projetos de intervenção estatal são justificados. No que diz
respeito ao acesso aos serviços de público de saúde – e, no limite, ao próprio direito à saúde –,
dois são os principais problemas contemporâneos alvos dos projetos de “remanejamento” e
“reorganização” elaborados por agentes dos mais distintos âmbitos do Estado enquanto
soluções: o “excesso de judicialização de demandas de saúde” e a “crise da saúde pública no
Rio de Janeiro”. O segundo já foi extensamente discutido na primeira parte da tese; o primeiro
será tratado a partir de agora. O encontro e a gestão simultânea desses dois problemas que é
feita na Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) configuram o “terreno” a partir do
qual desenvolvo as discussões dessa segunda parte do meu trabalho.
Tal como a crise, a judicialização da saúde – que se configura enquanto um objeto tanto
de estudos, quanto de intervenções – é atravessada por um conjunto de controvérsias. Um trecho
da introdução da mais recente pesquisa nacional sobre essa questão encomendada pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sumariza os principais pontos de disputa entre os diferentes
especialistas que lidam com esta temática, os quais serão abordados ao longo do capítulo:

A judicialização da saúde é também um fenômeno de elevada


complexidade. A literatura científica por exemplo, diverge sobre quem
procura o Judiciário requerendo serviços e produtos de saúde (pobres
ou ricos?), diverge sobre o que requerem (medicamentos e serviços que
são parte das listas, protocolos e contratos ou fora destes?) ou ainda
diverge sobre os efeitos dessas ações judiciais sobre a política geral de
saúde pública e privada (qual a magnitude dos distúrbios causados?).
Ademais, a divergência perpassa, inclusive, os próprios pressupostos
normativos do conflito, ou seja, sobre quais devem ser os parâmetros
de justiça e de quem é a competência para decidir. (Azevedo e Aith,
2019, p. 14).
203

Antes de passar para as discussões deste quarto capítulo, é preciso explicar


resumidamente o que é e como se organiza o Sistema de Justiça no Brasil. A estrutura judiciária
brasileira encontra-se dividido em três instâncias: Primeira (composta por juízes que decidem
monocraticamente); Segunda (composta por desembargadores e cujas decisões podem ser
monocráticas ou colegiadas); e Superior (composta por ministros e cujas decisões também
podem ser monocráticas ou colegiadas). De acordo com a Constituição Federal de 1988, são
órgãos do Poder Judiciário:

 Supremo Tribunal Federal (STF);


 Conselho Nacional de Justiça (CNJ);
 Superior Tribunal de Justiça (STJ);
 Tribunais Regionais Federais (TRF) e Juízes Federais;
 Tribunais e Juízes do Trabalho;
 Tribunais e Juízes Eleitorais;
 Tribunais e Juízes Militares;
 Tribunais e Juízes dos Estados (TJ) e do Distrito Federal e Territórios (TJDFT)

Além disso, há também órgãos de Estado que não são parte do Sistema de Justiça, mas
que realizam as chamadas “funções essenciais à Justiça”, as quais se dividem em:

 Ministério Público: órgãos que exercem defesa de interesses da sociedade, como interesses
coletivos e difusos, e promoção de ações penais, além de outras atribuições, sendo
composto pelos Ministérios Públicos dos Estados (MPE) e da União (MPU), o qual, por
sua vez, encontra-se dividido em Ministério Público Federal (MPF), do Trabalho (MPT),
Militar (MPM) e do Distrito Federal e Territórios (MPDFT);

 Advocacia Pública: instituições que exercem a advocacia de Estado e defesa da Fazenda


Pública, sendo composta pela Advocacia Geral da União (AGU) e pelas Procuradorias
Gerais dos Estados (PGE) e dos Municípios (PGM);

 Defensoria Pública: órgãos que exercem representação e defesa judicial e extrajudicial dos
hipossuficientes, sendo composta pelas Defensoria Pública da União (DPU) e dos Estados
(DPE).
204

O capítulo está dividido em três seções. Na primeira delas, concentro-me em demonstrar


como o volume de novos processos judiciais se configurou enquanto um problema de Estado
contemporâneo e como ele é descrito como decorrente de projetos que visavam solucionar
“falhas” consideradas históricas do Sistema de Justiça, como a “morosidade do Judiciário” e a
“falta de acesso à Justiça”. Na segunda seção, trago um histórico resumido da concepção da
CRLS ao expor como, no Rio de Janeiro, a resposta estatal ao diagnóstico de “excesso de
judicialização” se baseou na ideia de que era preciso estabelecer diálogos entre os membros das
Procuradorias Gerais, das Defensorias Públicas, dos Tribunais de Justiça e das Secretarias de
Saúde, o que implicou a criação da Câmara. Na última, demonstro como as questões abordadas
na primeira parte da tese se articulam aos tópicos e questões que pretendo abordar neste segundo
momento ao explorar de que maneira o enquadramento de crise modificou o debate sobre a
judicialização da saúde e introduziu uma nova pergunta no rol de controvérsias acerca do tema:
seria a judicialização um caminho viável para contornar os impactos e os efeitos materiais da
crise da saúde?

4.1 – Diagnosticando problemas: “o excesso de judicialização” e a “morosidade do


Judiciário”

Antes de começar propriamente as discussões que pretendo desenvolver nesta seção,


considero imprescindível fazer uma breve ressalva, uma vez que esquadrinhar as formas pelas
quais o “excesso de judicialização da saúde” a “morosidade do Judiciário” se configuram
enquanto problemas que demandam a urgente e indispensável atuação estatal renderia uma tese
por si só ou, ao menos, uma terceira parte no presente trabalho. Tal como a crise da saúde
pública, o nexo causal entre um alegado “aumento exagerado” no número de ações judiciais e
o seu consequente prolongamento do prazo para a apreciação de um processo – isto é, a
articulação entre um suposto “excesso de judicialização” e a sua contribuição para a sustentação
e o fortalecimento da “morosidade do Judiciário” – é também alvo de controvérsias.
Um estudo detalhado sobre quem tem a autoridade e a expertise necessárias para definir
um amplo conjunto de questões ligadas ao que seria o direito à saúde, poderia ser feito por meio
de um exame atento de um grande volume de artigos acadêmicos, livros, entrevistas, artigos de
opinião etc. A partir desse material, seria possível mapear as perspectivas de especialistas como
advogados, magistrados, defensores públicos, procuradores, promotores, sanitaristas, gestores
205

públicos, médicos e economistas acerca das questões envolvidas na judicialização da saúde.


Proponho-me a realizar tal empreitada não tanto para fazer um extenso mapeamento de todas
as possíveis controvérsias que perpassam o tema; mas sim para atentar ao modo pelo qual o
“excesso de judicialização” e a “morosidade do Judiciário” são mobilizados como justificativas
para a formulação de uma série de intervenções estatais que resultarão na criação de um órgão
que, em princípio, tinha por objetivo lidar com esses dois problemas ao mesmo tempo: a
Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS).
É preciso também deixar claro que tanto o “excesso de judicialização”, quanto a
“morosidade do Judiciário” são diagnósticos sobre o funcionamento de diferentes órgãos de
Estado – mais precisamente, das instituições que compõem o Sistema de Justiça. Uma das
principais características dessas ideias é que elas se constituíram ao longo do tempo como
vulgatas (Lugones, 2012) de múltiplas camadas sobre os modos de operação do Judiciário, ou
ainda, como um tipo de senso comum erudito alimentado pelos posicionamentos de diferentes
especialistas. Segundo Lenoir (1998), os detentores de certas expertises e/ou conhecimentos
atuam enquanto agentes que legitimam determinadas representações que, ao serem incluídas
em normativas, políticas públicas etc., instituem um efeito de direito e contribuem para a
definição do mundo social. Em suma, tais diagnósticos são elaborados por distintos agentes do
próprio Estado e ambos fazem parte de um processo de fabricação de problemas com quais o
Estado deve lidar que é ao mesmo tempo resultado e produtor tanto de agentes, quanto de
formas de intervenção (Vianna, 2013).
O “excesso” de demandas apresentadas ao poder público é um problema cujo debate
não é feito na esfera pública e com ampla participação da “sociedade civil”. Isto é, ele é
discutido muito mais entre especialistas e agentes de Estado do que por representantes de
diferentes setores da sociedade. Além disso, ele é visto como o resultado de um descompasso
nas relações entre diferentes aparatos estatais – tais como Defensorias Públicas, Secretarias de
Saúde, Tribunais de Justiça, Procuradorias e Ministérios Públicos – identificado pelos próprios
agentes e cujos projetos de solução são elaborados, conduzidos, apreciados, mensurados e
atestados por eles mesmos. Em um esquema cíclico e de interferência recíproca, o “excesso de
judicialização” é formulado de uma maneira que tem como causa e consequência o
desequilíbrio entre os Poderes Executivo e Judiciário, o que, em última instância, representa
uma ameaçar ao próprio funcionamento do Estado. Assim, sugiro que este seja lido como uma
espécie de problema interno ao Estado, uma vez que ele se configura enquanto um importante
terreno de disputas entre agentes e órgãos estatais que possuem diferentes visões sobre como o
Estado deve funcionar e quais são os limites de suas obrigações e responsabilidades.
206

Já a demora para o Judiciário julgar e determinar o que deve ser feito diante de um
pedido representa um tipo de problema externo ao Estado40, ou, para utilizar os termos de
Lenoir (1998), um problema social. Argumento que a “morosidade do Judiciário” representa
um problema externo ao Estado porque ela diz respeito fundamentalmente ao modo como o
Judiciário é visto pela grande maioria dos cidadãos. Isso faz com que as soluções propostas
para a superação do problema sejam do interesse não só dos agentes estatais, mas da sociedade
como um todo, de modo que a “eficácia” das respostas institucionais precisam ser publicamente
demonstradas e atestadas. Ou seja, a lentidão do Judiciário importa na medida em que ela tem
a ver com as avaliações feitas pela “sociedade civil” acerca da qualidade dos serviços prestados
pelo Estado, performando uma dada forma de “participação democrática” que produz e reforça
um efeito de Estado (Mitchell, 2006).
Além disso, afirmo que a “morosidade do Judiciário” pode ser considerada também um
problema social, pois sua construção cumpre com os dois fatores decisivos indicados por Lenoir
(1998): 1) ela afeta a vida cotidiana dos indivíduos e tais efeitos diferem de acordo com os
grupos sociais; 2) ela recebeu uma formulação pública amplamente compartilhada na percepção
do mundo social. Como abordarei mais adiante, a lentidão no andamento dos processos é vista
por alguns autores como uma marca histórica do Judiciário brasileiro, sendo percebida enquanto
uma questão que precisa ser resolvida tanto pelos especialistas quanto pela sociedade em geral.
Por ora, trago um trecho do artigo de Sadek (2014) que condensa como são apreendidos os
efeitos da “morosidade do Judiciário” no Brasil:

A lentidão acaba por minar a confiança no Poder Judiciário e por


provocar impactos que extrapolam o âmbito individual, atingindo a
sociedade como um todo. Na esfera econômica, por exemplo, o grau de
litígio e o tempo até uma solução judicial afetam as empresas, o
ambiente de negócios, o governo e o ritmo de desenvolvimento do país.
(Sadek, 2014).

No entanto, seguindo o que sublinha Adriana Vianna, considero fundamental deixar


explícito que as classificações de determinados problemas como internos e outros como
externos ao Estado “não se referem a localizações ou estatutos precisos, mas a possibilidades
de nomeação, qualificação, aliança e oposição entre atores diversos.” (Vianna, 2013, p. 21).
Nos casos do “excesso de judicialização” e da “morosidade do Judiciário”, mais do que alusivo

40
A distinção entre problemas de Estado internos e externos é importante na medida em que as chamadas
“resoluções administrativas” propostas pela CRLS adquirem sentidos diferentes “para dentro” e “para fora” do
Estado, como discutirei mais adiante.
207

às possíveis alianças e oposições entre atores e agentes de Estado diversos, os posicionamentos


interno e externo – ou “dentro” e “fora” do Estado – dizem respeito ao âmbito para o qual os
resultados das intervenções precisam ser apresentados. Em suma, ao passo que o controle da
quantidade de ações protocoladas nos Tribunais é algo que interessa fundamentalmente aos
gestores e servidores públicos; a eficácia das soluções propostas para enfrentar a lentidão do
Judiciário deve ser demonstrada publicamente para toda a sociedade.
Antes de passar para a discussão sobre os procedimentos extrajudiciais de resolução de
conflitos adotados na CRLS e descrever o atual funcionamento da Câmara, considero
fundamental abordar como são construídos os raciocínios que produzem um encadeamento
entre a ampliação do acesso à Justiça; o protagonismo do Judiciário para a solução de conflitos
de diferentes ordens; o aumento na quantidade de ações protocoladas nos Tribunais de Justiça
referentes ao direito à saúde; a morosidade do Judiciário em oferecer soluções para tais
contendas; e a necessidade de criação de vias extrajudiciais para responder a esse conjunto de
problemas de Estado.

A judicialização da saúde como expressão da judicialização da política

A judicialização da saúde representa uma das faces daquilo que estudiosos da política e
do Estado chamam de judicialização da política e das relações sociais (Vianna et al., 1999).
Grosso modo, a expressão “judicialização da política” qualifica um processo de transformação
do papel político do Judiciário que vem acontecendo na América Latina desde meados da
década de 1980 (Sieder, Schjolden e Angell, 2005) e que está ligado a discussões sobre ativismo
judicial e politização da justiça. De acordo com Arantes (2005), o desenvolvimento da
judicialização da política no Brasil se deve a uma série de elementos, os quais figuram na teoria
política como aqueles que propiciam um cenário favorável ao fortalecimento da intervenção
judicial no processo de tomada de decisões políticas, a saber: 1) o estabelecimento do regime
político democrático seguido da promulgação de uma nova Constituição com um amplo
conjunto de direitos; 2) o aumento de grupos de interesse que demandam soluções judiciais
para conflitos coletivos; 3) um sistema político frágil no qual membros da oposição tentam
atacar judicialmente as decisões e projetos dos políticos da situação; 4) um modelo
constitucional que relega ao Judiciário e ao Ministério Público o dever de garantir os interesses
e direitos tanto individuais quanto coletivos.
208

Nesse sentido, a expressão judicialização da saúde vem sendo empregada de maneira


tanto descritiva quanto conceitual/analítica para designar a atuação de membros do Judiciário
em processos judiciais de 1ª e 2ª instâncias que requerem a efetivação de uma demanda elencada
no âmbito da Saúde, sejam essas direcionadas ao sistema público ou aos planos privados de
saúde suplementar. Para uma parte da literatura sobre a temática, é por meio do julgamento
dessas ações e do ativismo judicial – e aqui, o ativismo muitas vezes figura como uma categoria
de acusação (Corvino, 2017) – que o Judiciário se tornaria uma espécie de formulador e
executor de políticas públicas na área da saúde, excedendo suas competências e decidindo sobre
assuntos os quais não possui conhecimento (Silva e Jucatelli, 2017).
Outros autores sustentam que não existe necessariamente uma conexão entre o ativismo
judicial e o “excesso de judicialização de saúde”, pois o Poder Judiciário não desrespeitaria
suas competências ao julgar as demandas que lhe são apresentadas a partir do direito
constitucional à saúde. Segundo Selayaran, Machado e Morais (2018), para ser entendida como
expressão do ativismo judicial, a “excessiva” judicialização da saúde deveria estar sob o
controle do Poder Judiciário e ser uma iniciativa dos próprios magistrados, o que não é a
realidade, já que o Judiciário age apenas se for provocado.
Para os inúmeros autores e instituições que debatem os diferentes temas relativos a essa
questão, a judicialização da saúde é, antes de tudo, um fenômeno complexo e multifacetado
(Azevedo e Aith, 2019; Oliveira et al., 2015; Ferraz, 2009; Ventura et al., 2010; Messeder,
Osorio-de-Castro e Luiza, 2005; Corvino, 2017; entre outros). Enfatizo a utilização da palavra
fenômeno – isto é, um acontecimento observável, delimitável e passível de tanto de uma
explicação quanto de uma “solução científica” – para caracterizar e agrupar esse tipo de
processo judicial, pois essa classificação é uma condição fundamental e, de fato, representa o
primeiro passo para que a judicialização da saúde seja posteriormente tratada como um
problema de Estado.
Como colocado por Biehl (2013b e 2016), a judicialização da saúde encontra-se na
fronteira entre a Medicina e o Direito, de modo a colocar questões que interessam à
Antropologia Médica, à Antropologia do Direito e à Antropologia da Política. Para além da
Medicina e do Direito, eu incluiria um terceiro campo disciplinar na discussão do tema: a
Administração Pública, o que faz com que esse fenômeno seja também do interesse daqueles
que discutem a Antropologia do Estado.
O surgimento desse fenômeno é relativamente recente no cenário político institucional
brasileiro e tem a ver com os próprios processos de desenvolvimento do SUS e com a concepção
de democratização do acesso à saúde defendida pelos membros do movimento pela Reforma
209

Sanitária Brasileira (RSB), trabalhados anteriormente. Pautados na garantia do direito à saúde


preconizado na Constituição Federal de 1988, profissionais ligados a Organizações Não
Governamentais (ONGs) especializadas em advocacy no campo do HIV-Aids levaram aos
tribunais brasileiros os primeiros casos de demandas por fornecimento gratuito de
medicamentos antirretrovirais feitos em face do Estado brasileiro no início dos anos 1990. Em
1996, a Lei n. 9.313 – a qual dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos para pessoas
com HIV – foi promulgada com o intuito de reduzir a discricionariedade de juízes nos
julgamentos das ações e, por conseguinte, a “interferência” do Poder Judiciário na área da saúde
(Oliveira et al., 2015). Entretanto, o efeito causado por tal legislação foi justamente o contrário.
Nos anos seguintes, esse tipo de ação se espraiou para movimentos de familiares e pacientes
acometidos por outras doenças crônicas e/ou de tratamentos de alto custo. Em muitos casos, a
ações judiciais foram impulsionadas e financiadas por laboratórios farmacêuticos que visavam
introduzir novos medicamentos no país (Chieffi e Barata, 2010) e/ou manipular a legislação
brasileira em matéria de direito à saúde para garantir a consolidação de um mercado para seus
produtos (Biehl, 2013b; Biehl e Petryna, 2013).
Além de ser encarada como um fenômeno, há ainda outros dois pontos em comum nas
concepções de especialistas de distintos campos do conhecimento acerca da judicialização da
saúde que gostaria de assinalar. A primeira afinidade entre eles é a percepção de que o
crescimento do número de processos judiciais envolvendo o direito à saúde nos últimos anos
representa um “verdadeiro desafio administrativo e fiscal” para a saúde pública no país. No
entanto, a forma assumida por tal “desafio” não é um consenso sequer entre os acadêmicos de
uma mesma área. As perspectivas dos especialistas em torno do tema são variadas: de um lado,
os gestores públicos do SUS e acadêmicos de Saúde Coletiva acusam membros do Judiciário
de extrapolarem suas funções ao influir diretamente na distribuição dos recursos destinados à
saúde pública; do outro, juízes, promotores, defensores públicos etc. questionam a eficiência
dos administradores em alocar corretamente tais recursos e tomam para si a missão de assegurar
a efetivação dos direitos fundamentais prestacionais.
No campo jurídico, as controvérsias sobre o tema orbitam ao redor de questões como a
separação dos Poderes e a legitimidade do Direito – e, consequentemente, do Judiciário – para
constranger ou obrigar o Estado a implementar um dado “direito”. O professor da King’s
College London, Octavio Ferraz (2009), salienta que a crescente judicialização de demandas
relativas à saúde possuem um enorme potencial de acirrar ainda mais as desigualdades na
prestação de serviços de saúde na medida em que pessoas menos necessitadas poderiam
mobilizar o Judiciário em proveito próprio, diminuindo os recursos disponíveis para ações de
210

saúde em prol da coletividade. Já a professora de Direito Constitucional da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Jane Reis Gonçalves Pereira (2015), afirma que as críticas
feitas à judicialização superestimam as “falhas” e os efeitos negativos desse mecanismo.
Segundo a autora, diante do clientelismo e patrimonialismo que influenciam a distribuição de
recursos públicos no Brasil, a intervenção judicial é capaz de reduzir desigualdades ao “corrigir
assimetrias e desobstruir canais bloqueados pelo aparato burocrático” (p. 2083), promovendo o
acesso à saúde para uma população mais pobre e carente.
As controvérsias acerca da judicialização da saúde também se estendem para a área de
Saúde Coletiva e Administração Pública. A sanitarista Vera Lucia Pepe e outras colegas (Pepe
et al., 2010b) argumentam que existem três ordens de problemas vinculados ao fenômeno da
judicialização: problemas de gestão, ligados aos custos econômicos e à distribuição de recursos;
problemas médicos/científicos, representados pela ausência de evidências que comprovariam
as melhorias terapêuticas de medicamentos ainda não listados e/ou registrados; e problemas
dos pacientes, que dizem respeito à necessidade de tratamento dos sujeitos. Assim, as autoras
discutem como o acesso a medicamentos financiados com dinheiro público via judicialização
pode causar desequilíbrios nas políticas de assistência farmacêutica do SUS ao fazer com que
a alocação de recursos se dê de forma distinta do planejamento orçamentário original. Além
dos problemas para a gestão da assistência farmacêutica, a judicialização também teria outros
efeitos negativos, como o acirramento de desigualdades no acesso a bens de saúde e o
comprometimento do princípio da integralidade que rege o SUS e, consequentemente, a Política
Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF).
A situação se torna ainda mais complexa quando o pleito judicial é referente a um
medicamento ainda não registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Nesses casos, além da questão da reorganização da distribuição de recursos públicos, os
gestores de políticas de assistência farmacêutica manifestam sua preocupação em relação à
segurança dos pacientes, já que muitas vezes os efeitos a longo prazo do uso de um novo
medicamento são desconhecidos (Pepe et al., 2010b).
A também sanitarista Maria dos Remédios Mendes de Oliveira e seus colegas (Oliveira
et al., 2015) consideram que o aumento da judicialização no campo da saúde decorre
principalmente da discrepância entre o que está previsto na Constituição Federal de 1988 e o
que é de fato entregue à população em termos de serviços e bens públicos de saúde. Para os
autores, esse descompasso é fruto do “mau gerenciamento” dos políticos, assessores e gestores,
de modo que cabe ao cidadão exigir judicialmente que seu direito seja cumprido. Já Miriam
211

Ventura et al. (2010) concordam que, apesar de ser uma estratégia legítima, a judicialização por
si só não é suficiente para a concretização do direito à saúde.
Para Guimarães e Palheiro (2015), ambos ligados à Secretaria de Estado de Saúde (SES)
do Rio de Janeiro, a judicialização apresenta outros problemas. Uma vez que a aquisição de
produtos e/ou medicamentos para atender uma decisão judicial é feita em caráter de emergência,
esse procedimento gera um alto custo para os cofres públicos, pois as compras são realizadas
de modo individual no mercado varejista, elevando significativamente o valor pago pelo
governo em determinado item. Para eles, a aplicação de vultosos recursos para a satisfação de
tratamentos individuais implica dificuldades no planejamento a longo prazo, bem como a
redução do montante direcionado para políticas de saúde coletivas, já que o orçamento previsto
para o setor não é alterado pela sentença do juiz. Os autores estabelecem também uma
correlação entre a judicialização da saúde e a possibilidade de fraudes, pois a necessidade de
responder rapidamente a uma determinação judicial – especialmente em um contexto no qual o
descumprimento de ordens judiciais pode gerar mandados de prisão e multas em face dos
gestores municipal e estadual – faz com que tais produtos sejam obtidos sem que haja o devido
processo licitatório.
Além do problema da “individualização da demanda em detrimento do planejamento
coletivo”, a sanitarista Ana Luiza Chieffi e a professora de Medicina da Universidade de São
Paulo (USP), Rita de Cássia Barradas Barata (2010), identificaram outra sensível questão
abrangida pela judicialização da saúde, a saber, a possível conexão entre advogados particulares
e laboratórios farmacêuticos. Ao analisar um conjunto de quase três mil processos judiciais
cadastrados no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), as autoras perceberam que
mais de 70% das ações ajuizadas que requeriam um mesmo medicamento estavam sob a
responsabilidade de um único advogado. A interpretação que elas fazem desse dado é a de que
essa seria uma estratégia das indústrias farmacêuticas para introduzir seus produtos no mercado
de medicamentos nacional. Ou seja, os laboratórios estariam contratando advogados
particulares e oferecendo os seus serviços aos pacientes no intuito de se aproveitar das
“brechas” na legislação brasileira para fazer com que seus novos medicamentos fossem
comprados pelo poder público e eventualmente incorporados às listas de distribuição gratuita
de fármacos pelo SUS.
O segundo entendimento partilhado pela grande maioria desses autores diz respeito à
disponibilidade orçamentária para a saúde pública. Boa parte deles não questiona – e até mesmo
reforça – a ideia de que os recursos públicos são limitados ou escassos, de modo que suas
212

proposições quase sempre partem da necessidade de estabelecer prioridades e balancear a a sua


distribuição. No já citado artigo de Pereira (2015), a autora é categórica ao afirmar que

O desafio está em definir quais são os limites da aplicação direta de


comandos constitucionais no contexto de recursos materiais limitados,
no qual o papel do Judiciário não depende apenas de condições
normativas dadas pelas instâncias tradicionais de representação
democrática, mas também das condições fáticas e avaliações técnicas,
com impactos importantes na gestão dos serviços públicos. (Pereira,
2015, p. 2085, grifos meus).

Para citar outro exemplo dessa perspectiva, menciono o livro de Gustavo Amaral
(2001), cujo título é “Direito, Escassez e Escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com
a escassez de recursos e as decisões trágicas”. Ao analisar decisões judiciais acerca do
fornecimento de medicamentos para pacientes com HIV, o autor indaga como os operadores do
Direito estabelecem (ou não) um equilíbrio entre a necessidade individual de um paciente – o
que ele chama de microjustiça – e o planejamento de políticas coletivas de saúde – que seria a
macrojustiça. Uma das perguntas que orientam suas discussões é sobre os critérios
estabelecidos por juízes e desembargadores para definir quais demandas serão atendidas e quais
serão negadas, uma vez que “a escassez de recursos, a escassez de meios para satisfazer direitos,
mesmo fundamentais, não pode ser descartada” (Amaral, 2001, p. 185).
Da mesma forma que em uma situação de crise econômica, os conflitos que perpassam
a judicialização da saúde em um cenário de escassez convertem-se em uma disputa pela
distribuição de recursos parcos, cuja alocação vai depender da definição do que será visto como
prioritário e de quais setores e serviços serão passíveis de cortes, reduções e/ou reorganizações.
Uma passagem da já citada pesquisa coordenada por Azevedo e Aith (2019) é bastante
elucidativa quanto a essa questão:

Considerando que a prestação de saúde envolve a distribuição de


recursos escassos em uma sociedade complexa, com padrões
epidemiológicos que aproximam o Brasil ao mesmo tempo de países
desenvolvidos e subdesenvolvidos, determinar o que é prioritário e
quem deve ser o foco dessas prioridades, é um tema que envolve
necessariamente disputas. A chamada “judicialização da saúde”, assim,
é uma expressão desta disputa estrutural por recursos, mas atinge
níveis ainda mais expressivos do que seria de se esperar por sua
relevância no mundo das relações socioeconômicas. (Azevedo e Aith,
2009, p. 13, grifos meus).
213

São as disputas que giram em torno da necessidade de produzir uma “resposta à


judicialização da saúde” que fazem desse fenômeno um tema provocativo, alvo de uma intensa
produção de dados, interpretações, protocolos, resoluções, normativas e políticas públicas. No
contexto nacional atual, a questão vem sendo debatida em diferentes esferas do Poder
Judiciário. Em abril de 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu o julgamento do
recurso repetitivo e fixou critérios fundamentais para que os magistrados possam determinar o
fornecimento de medicamentos não incluídos na lista do SUS, como se pode observar na
seguinte passagem da decisão:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos


do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
(i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e
circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da
imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da
ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo
SUS;
(ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento
prescrito;
(iii) existência de registro na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância
Sanitária] do medicamento. (STJ, 2018, grifos no original).

Além da decisão do STJ, esse ponto vem sendo discutido também no âmbito nacional
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do julgamento conjunto dos Recursos
Extraordinários (RE) nº 657.718 – sobre o fornecimento gratuito de medicamentos ainda não
registrados pela Anvisa – e nº 566.471 – sobre o financiamento público de tratamentos de alto
custo para pessoas acometidas por doenças graves e que não possuem condições de arcar com
tais custos. Atualmente, o julgamento encontra-se interrompido e sem previsão de conclusão.
Dos onze Ministros que compõem o STF, apenas o relator dos RE e outros dois Ministros já
apresentaram seus votos.
Além do julgamento desses RE, o STF realizou uma Audiência Pública entre os meses
de abril e maio de 2009. Na ocasião, foram ouvidos cerca de 50 pessoas diretamente envolvidas
com o tema, dentre especialistas – tais como médicos, técnicos de saúde, enfermeiros,
professores universitários e advogados –, agentes de Estado – tais como promotores,
magistrados, defensores públicos, procuradores de Justiça e servidores da área de gestão em
saúde médicos – e usuários do SUS que passaram por experiências de litígio em saúde. O
resultado imediato dessa Audiência foi a proposição e divulgação de uma série de
214

recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para uniformizar os procedimentos nos


Tribunais de Justiça estaduais e homogeneizar as decisões proferidas pelos magistrados
(Oliveira et al., 2015).
Em abril de 2010, o CNJ aprovou a Resolução n.107, a qual instituiu a criação do Fórum
Nacional do Judiciário para Saúde. O Fórum é composto por magistrados envolvidos com a
matéria e membros dos Sistemas de Justiça e de saúde. Seu objetivo é desenvolver estudos,
propor, oferecer e incentivar caminhos para a “qualificação das demandas e redução da
judicialização da saúde”. Durante os anos seguintes, os integrantes desse Fórum discutiram a
construção de uma plataforma a ser alimentada com “dados” e “informações técnicas” que
poderiam ser utilizados para subsidiar as decisões de magistrados em todo o país no que diz
respeito aos pedidos judiciais na área da saúde. Em 2016, o CNJ aprovou a Resolução n. 238,
estabelecendo a criação de Comitês Estaduais de Saúde tanto nos Tribunais de Justiça (TJ),
quanto nos Tribunais Regionais Federais (TRF). De acordo com o texto dessa resolução, as
principais funções de tais Comitês seriam o monitoramento do fenômeno e a especialização dos
magistrados. Também em 2016, o CNJ assinou um Termo de Cooperação Técnica com o
Ministério da Saúde para a produção de um banco de dados que ofereça

subsídios técnicos para a tomada de decisão com base em evidências


científicas nas ações relacionadas com a atenção à saúde, visando
assim, a aprimorar o conhecimento técnico dos magistrados para a
solução das demandas, conferindo maior celeridade ao julgamento das
ações judiciais nas quais figurem a atenção à saúde. (Ofício nº 694 do
Gabinete do Ministro/Ministério da Saúde).

No estado do Rio de Janeiro, segundo os dados do Conselho, os processos judiciais


envolvendo demandas de saúde saltaram de 12.208 casos em 2007 para 29.970 processos em
2014. Na medida em que se pensa os recursos como escassos e há um aumento progressivo no
número de processos – e, consequentemente, de decisões obrigando que os governos realizem
“gastos não previstos” com a saúde da população –, as tensões entre distintos órgãos do poder
público foram se tornando cada vez maiores. É nesse cenário de disputas que o “excesso de
judicialização de saúde” se configurou enquanto um problema que precisava de uma imediata
intervenção estatal para o seu controle. A resposta do Estado a essa “situação de emergência”
foi a criação de diferentes mecanismos de regulação quantitativa e qualitativa dos casos
efetivamente judicializados, o que culmina na criação da Câmara de Resolução de Litígios de
Saúde (CRLS), como tratarei na próxima seção do capítulo.
215

Ampliação do acesso à Justiça: mais processos = mais lentidão do Judiciário

Ainda que o crescimento no número de processos judiciais não seja visto como um
problema que afeta apenas a área da saúde – mas sim como uma questão que precisa ser
enfrentada pelos diferentes órgãos que compõem o Sistema de Justiça –, o “excesso” de
judicialização de demandas de saúde foi construído enquanto um “fenômeno problemático”
cuja solução passava por inevitáveis intervenções estatais em distintos âmbitos, níveis e órgãos
da administração pública. Além da “enorme” quantidade de ações judiciais requerendo
medicamentos, insumos, exames, consultas, internação etc., havia ainda outro problema que
representava um grave risco à efetivação do direito à saúde não só no Rio de Janeiro, mas em
todo o Brasil: a “morosidade do Judiciário”.
Como mencionado anteriormente, a percepção de que o Judiciário é lento e demorado
configura-se como uma espécie de senso comum ou vulgata (Lugones, 2012) no Brasil, tendo
até mesmo um artigo intitulado “Morosidade da justiça” na página da Wikipédia em português.
Tal vulgata possui também a qualidade de uma “marca histórica”, uma vez que registros sobre
a vagareza do Judiciário podem ser encontrados em textos e documentos há pelo menos um
século, como, por exemplo, no discurso escrito por Rui Barbosa na ocasião da formatura de
1920 dos bacharéis em Direito da faculdade do Largo do São Francisco – que atualmente faz
parte da Universidade de São Paulo (USP). Publicado posteriormente com o título “Oração aos
Moços”, reproduzo aqui um trecho no qual o autor menciona explicitamente a questão da
“morosidade da Justiça” e os problemas que dela decorrem:

Nada se leva em menos conta, na judicatura, a uma boa fé de ofício que


o vezo de tardança nos despachos e sentenças. Os códigos se cansam
debalde em o punir. Mas a geral habitualidade e a conivência geral o
entretêm, inocentam e universalizam. Destarte se incrementa e
desmanda ele em proporções incalculáveis, chegando as causas a contar
a idade por lustros, ou décadas, em vez de anos.
Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e
manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o
direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e
liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum
vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que
o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso, em
cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente. (Barbosa, 1997).

Mais recentemente, essa vulgata tem se constituído em diferentes camadas a partir de


um conjunto de números e estatísticas, depoimentos de litigantes, matérias de jornal, análises
216

de especialistas etc. Ou seja, são certas formulações e reiterações que dão à esse diagnóstico de
lentidão um caráter de “verdade indiscutível” (Bourdieu, 1996a) e de aspecto fundante do
Sistema de Justiça brasileiro.
Como exemplos de dados quantitativos que consolidam essa visão de um Judiciário
vagaroso há os levantamentos que conformam o Índice de Confiança na Justiça brasileira41
(ICJBrasil) elaborado por pesquisadores da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de
São Paulo (FGV-SP). Os relatórios do ICJBrasil vêm sendo elaborados desde 2009. Em todos
eles, a “morosidade na prestação jurisdicional” é um dos principais problemas que levam a
população a não confiar no Judiciário no país. Uma certa “insatisfação difusa” da sociedade
para com a Justiça no Brasil e as críticas geradas pelo seu “mau funcionamento” vêm sendo
discutidas por pesquisadores há décadas. De acordo com o último relatório publicado, referente
ao primeiro semestre de 2017, 81% das pessoas entrevistadas responderam que o Judiciário
resolve os casos de forma lenta ou muito lentamente (Ramos, 2017).
Desde 2003, CNJ elabora anualmente um relatório chamado “Justiça em Números”, no
qual é apresentado um amplo conjunto de dados estatísticos oficiais sobre o funcionamento do
Poder Judiciário no país. Dentre as muitas informações contidas nesse levantamento, destaco
aquelas relativas às taxas de congestionamento – que é um cálculo entre o total de casos novos
que ingressaram, os casos baixados e o estoque pendente ao final do período anterior em relação
ao período base e que mede a efetividade do tribunal em um período – nos diferentes Tribunais
de Justiça brasileiros; e o tempo médio de tramitação dos processos – que engloba a duração
de um processo judicial desde a sua distribuição até sua sentença. Sempre “altos”, esses
números são mobilizados como as principais evidências da lentidão do Judiciário no Brasil.
Como aparece em um trecho das considerações finais do relatório de 2016,

Algumas constatações extraídas do Relatório, embora confirmem as


impressões do senso comum, oferecem elementos para a reflexão.
Confirmou-se que o Judiciário apresenta problemas relativos à

41
O Índice de Confiança na Justiça brasileira (ICJBrasil) é um levantamento periódico realizado em sete estados
brasileiros e no Distrito Federal. Na parte qualitativa, a pesquisa se baseia em entrevistas feitas com uma amostra
representativa da população brasileira. O principal objetivo do índice é acompanhar de forma sistemática o
sentimento da população em relação ao Judiciário, entendendo a “confiança” como o fato da pessoa acreditar que
as instituições jurídicas cumprem suas funções de forma adequada. O ICJBrasil é composto por dois subíndices:
um subíndice de percepção, pelo qual é medida a opinião da população sobre a Justiça e a forma como ela presta
o serviço público; e um subíndice de comportamento, o qual busca identificar se a população recorre ao Judiciário
para solucionar determinados conflitos.
217

morosidade – situação, todavia, agravada na fase da execução dos


processos42. (CNJ, 2016, grifos no original).

Já o relatório anual da Ouvidoria do CNJ apontou que das 21.585 manifestações


recebidas pelo órgão em 2018, 54,42% eram relativas ao tema da “morosidade processual”.
Dentre essas, a esmagadora maioria foi classificada como uma reclamação, como é possível
observar na seguinte tabela:

Tabela 1 – Manifestações sobre “morosidade processual” na Ouvidoria do CNJ em 2018

Motivo do contato Quantidade


Reclamação 11.385
Informação 88
Solicitação 146
Denúncia 126
Acesso à informação -
Sugestão 1
Elogio -
Total 11.746

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do CNJ.

Para além das estatísticas e indicadores, a “morosidade do Judiciário” também tem sido
uma questão central em pesquisas de caráter qualitativo. Nesse sentido, perguntas sobre as
causas e consequências da demora para o desfecho dos processos; os sentidos atribuídos à
espera por litigantes, magistrados e servidores dos tribunais; as possíveis soluções para tornar
o Judiciário mais ágil etc. orientam investigações conduzidas por autores dos diferentes campos
das Ciências Sociais. A partir de diferentes perspectivas e enfoques, a questão da temporalidade
da Justiça vem sendo o tema principal de uma diversificada produção bibliográfica nas últimas
décadas.
Para sinalizar as controvérsias acerca das origens da morosidade, cito o texto de Bonelli
(2010) sobre a interação entre distintos profissionais do Direito em uma Comarca do estado de
São Paulo. Com base em entrevistas, a autora aborda de que maneira diferentes atores culpam
as leis e as ações do Legislativo pela lentidão no andamento dos processos. De acordo com ela,

42
Os processos judiciais possuem duas fases: conhecimento e execução. A primeira compreende o período desde
a distribuição até que se tenha uma sentença transitada em julgado; e a segunda diz respeito ao período de
cumprimento da decisão judicial após a promulgação da sentença ou de acordo extrajudicial.
218

“os promotores, advogados, delegados de polícia e funcionários de cartório se juntaram aos


magistrados identificando as acusações de morosidade da justiça como responsabilidade do
Poder Legislativo e dos instrumentos legais que eles colocavam à disposição do Judiciário.” (p.
48-9). Além dos problemas estruturais – que abrange desde as “falhas” nas normativas legais
até a falta de verbas, de funcionários, de espaços de trabalho adequados etc. –, alguns dos
magistrados ouvidos também afirmaram que a lentidão da Justiça se deve a características
pessoais de cada juiz. A fala de um dos entrevistados transcrita pela autora é elucidativa quanto
a esse ponto:

Cada juiz é um juiz. Tem juiz que é mais rápido, tem juiz que é mais
lento. Então, a morosidade eu acho, praticamente até contrariando a
minha classe que sempre atribui essa morosidade a essa deficiência da
justiça, da falta de verbas, falta de estrutura, falta de juiz, eu também
acrescento uma coisa: há uma questão pessoal de cada juiz. Está certo
que tem juiz que toca uma comarca normalmente e tem outro que é mais
lento. Então, é uma questão de homem para homem, de pessoa para
pessoa. A morosidade está em tudo, em todos os aspectos material e
pessoal de cada juiz. (Bonelli, 2010, p. 56).

Com relação ao modo como a espera por uma solução judicial para uma demanda é
vivenciada e os significados e impactos dessa experiência na vida das pessoas, a cientista
política Maria Tereza Sadek (2014) argumenta que a morosidade do Judiciário é um dos
principais obstáculos que impedem a população de acessar à Justiça de modo amplo. Esse
argumento é também defendido por Wânia Pasinato (2003) quando ela afirma em sua tese que
“a morosidade judicial integra o rol de obstáculos que precisam ser enfrentados por políticas
que tenham como objetivo ampliar o acesso à Justiça pelos cidadãos” (p. 40).
De modo contrário, o sociólogo Luís Flávio Sapori (1995) aponta para os problemas que
podem ser causados pela agilidade processual quando se fala em justiça criminal. Segundo o
autor, o julgamento de um delito deve ser feito em um ritmo mais lento e moroso do que a
aprececiação de processos de outra natureza, pois o objetivo desse tipo de ação seria esclarecer
os fatos encontrar a “verdade real” sobre o acontecimento, o que, em última instância, significa
verificar se houve crime ou não. Nesse sentido, a agilidade na resolução processual poderia
comprometer sua própria finalidade e implicar o desrespeito ao direito de ampla defesa do
acusado.
Com preocupação semelhante a de Sapori em relação ao modo como o tempo e a
duração do julgamento de um processo são percebidos no âmbito da justiça criminal, os
sociólogos Sérgio Adorno e Wânia Pasinato (2007) postulam que “o tempo é medida da
219

justiça”. Assim, uma extensão temporal “incorreta” resultará sempre em uma “injustiça”, posto
que, se, por um lado, um processo que demore muito para ser julgado transmite a sensação de
que as leis não estão sendo cumpridas e pode implicar, por exemplo, a impossibilidade de
localização de testemunhas e agressores; por outro, se julgado muito rapidamente há o risco de
que os direitos assegurados pela Constituição e os procedimentos determinados pelas leis
processuais penais não estejam sendo respeitados.
Ao abordar a mesma temática desde um ponto de vista da Antropologia, Paula Lacerda
(2015) demonstra como no caso dos “meninos emasculados de Altamira”43, o sentido de justiça
está profundamente ligado à ao julgamento dos perpetradores. Nesse contexto, a morosidade
do Judiciário foi vista pelos familiares das vítimas como expressões do descaso e da omissão
dos atores responsáveis por encaminhar o processo, de modo a reforçar e multiplicar as
violências vividas e fazer com que o tempo do processo fosse percebido como o tempo da
impunidade. Isto é, na “luta por justiça” etnografada pela autora, a morosidade era percebida
pelas famílias não só como um problema estrutural do Sistema de Justiça, mas também como
produto da conivência e da corrupção de certos promotores e juízes, reiteradamente
denunciadas nas manifestações promovidas pelos parentes dos meninos assassinados.
Também a partir de uma perspectiva antropológica, Adriana Vianna (2015) explora
como o tempo esperado por mães que tiveram seus filhos assassinados por agentes do Estado
para que seus “casos” sejam julgados funciona como um tipo de “teste” capaz de revelar “a
verdade” sobre vítimas, perpetradores e familiares. Para além disso, a autora destaca que essa
espera é capaz não só de prolongar, mas também de fazer com que essas mulheres revivam as
dores da perda de seus filhos inúmeras vezes. Já Lugones (2012) associa o controle do tempo
ao exercício do poder nos Tribunales Prevencionales de Menores na cidade de Córdoba, como,
por exemplo, quando os sujeitos são chamados a comparecer em dado dia e horário.
Em trabalho anterior, abordei as relações entre tempo e espaço envolvidas na espera de
pessoas transexuais que buscavam atendimento no Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e
Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS) da Defensoria Pública para a realização da alteração
do nome e/ou sexo em seu registro civil. Em minha etnografia, descrevi o núcleo como uma
espécie de “grande sala de espera” que tem por função a manutenção de uma condição de
provisoriedade e suspensão por um período indeterminado, o que muitas vezes produzia nos
assistidos sentimentos de incerteza, apreensão e sofrimento (Freire, 2015).

43
O caso dos “meninos emasculados” da cidade de Altamira, no estado do Pará, compreende um conjunto de
assassinatos, mutilações genitais e desaparecimentos cometidos entre 1989 e 1993 contra crianças e adolescentes
do sexo masculino.
220

Em suma, ainda que recorrente há muitos anos na literatura não apenas das Ciências
Sociais, mas sobretudo do Direito (Stumpf, 2008; Bastos, Fonsêca e Valença, 2011; Oliveira,
2004; Araújo e Gonçalves, 2010; Lopes 2007; entre outros), um novo elemento foi
recentemente introduzido no debate das controvérsias sobre as causas da “morosidade do
Judiciário”: a ampliação do acesso à Justiça. Nesse raciocínio, o aumento na quantidade de
ações propostas nos Tribunais do Justiça de todo o país e o reforço do protagonismo do Poder
Judiciário na resolução de conflitos variados seriam decorrências evidentes da novas formas e
iniciativas de acesso ao Sistema de Justiça. Isto é, se o Judiciário já era lento quando acionado
apenas por uma ínfima parte da população, é óbvio que a abertura de suas portas de entrada e o
crescimento do número de litígios fez com que o tempo para a conclusão de um processo
também se estendesse.
O argumento de que a ampliação do acesso à Justiça está conectada ao crescimento de
demandas judiciais tem como pressuposto a ideia de que os processos de “redução das barreiras
econômicas, culturais e legais” e de institucionalização de canais de “incentivo à judicialização”
são os motores de tal expansão. Dentre as iniciativas que estariam estimulando a via litigiosa e
fazendo do acionamento do Judiciário uma das principais – senão a principal – forma de
resolução de conflitos de interesses, foram elencadas, por exemplo, a estruturação de
Defensorias Públicas em vários estados do Brasil e a criação de Juizados Especiais. Tal tese é
explicitada nas conclusões da pesquisa coordenada por Gabbay e Cunha (2010) acerca das
causas de aumento das demandas judiciais cíveis. Como exposto no título do relatório final da
investigação, as autoras diagnosticam:

A criação de novas portas de acesso ao Judiciário, como os juizados


especiais, não necessariamente reduz o volume de demandas, podendo
gerar um crescimento deste volume e a visibilidade de demandas que
antes não chegavam ao Judiciário. Abre-se uma porta, surgem mais
demandas. (Gabbay e Cunha, 2010, p. 160, grifos no original).

É nesse ponto que a expansão do acesso à Justiça e o problema do “excesso de


judicialização” esbarram nas questões da judicialização da política e do ativismo judicial,
tratadas anteriormente. Antes, o Judiciário era acionado apenas por uma pequena parte dos
cidadãos brasileiros – aqueles que possuíam algum nível de instrução –, o que tornava a
judicialização mais uma forma de manutenção e reprodução da desigualdade social no país.
Agora, com a atuação defensores públicos, promotores e procuradores tanto na defesa de
direitos individuais quanto em tutelas coletivas, teoricamente, os “hipossuficientes” e os menos
favorecidos podem se valer da Justiça para reivindicar seus direitos.
221

A ideia de que a judicialização da política provocada pela ampliação do acesso à Justiça


representa um problema que precisa ser solucionado/enfrentado é também objeto de muitas
controvérsias e disputas. A título de exemplo, menciono que, na concepção de Corvino (2017),
esse movimento acarreta um esvaziamento das instâncias políticas tradicionais – como o
Congresso Nacional – para o debate de temas de “cunho político” e repercussão social, fazendo
com que o Judiciário funcione como uma espécie de “legislador secundário”. Para a autora,
essa “invasão da Política pelo Direito” reforçaria o desprestígio da política no Brasil e
provocaria o desequilíbrio entre os Poderes, levando ao enfraquecimento da própria
democracia. Já Cardinali (2018) defende a função contramajoritária do Judiciário e o seu papel
na efetivação dos direitos fundamentais das minorias, constantemente ameaçados e/ou
negligenciados pelo Poder Legislativo, como nos casos que envolvem a judicialização dos
direitos LGBT no Supremo Tribunal Federal (STF) examinados em sua dissertação. Nesse
sentido, segundo o autor, a atuação do Judiciário serviria de obstáculos aos desejos de uma
“maioria democrática” que não visem o “bem comum”, fortalecendo e efetivando os preceitos
do sistema de freios e contrapesos que fundamenta a noção de Estado Democrático de Direito.
Se as críticas ao Judiciário são antigas, as propostas de reforma institucional para
melhorar seu funcionamento e as consequências imprevistas destas também o são. O aumento
do número de processos em tramitação decorrente de ações de ampliação do acesso à Justiça
vem sendo elencado há décadas como uma das razões para a morosidade de Judiciário. Essa
forma argumentativa é utilizada para explicar o aumento significativo na quantidade de trabalho
dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) resultante da extensão da prerrogativa de
propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) para mais pessoas, entidades e órgãos que
deu com a promulgação da Constituição Federal de 198844.
Apesar das diversas iniciativas e projetos implementados ao longo dos últimos 30 anos,
outro ponto conflituoso nas explicações sobre a lentidão judicial diz respeito ao papel da criação
da Secretaria de Reforma do Judiciário45 (SRJ) nessa recente guinada no aumento da procura
pelo Judiciário e na ampliação do acesso ao Sistema de Justiça. Vinculada ao Ministério da

44
Até 1988, apenas o Procurador Geral da República tinha legitimidade para propor ADI ao STF. Com o advento
da nova Constituição, essa legitimidade foi ampliada, passando a ser uma prerrogativa também do presidente da
República; da Mesa do Senado Federal; da Mesa da Câmara dos Deputados; da Mesa de Assembleia Legislativa
ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; dos governadores de estado ou do Distrito Federal; do Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); dos partidos políticos com representação no Congresso
Nacional; e de confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.
45
A SRJ foi criada em 2003 e encerrada em março de 2016, em nome da política de “ajuste fiscal” e necessidade
de redução de custos do governo. De acordo com a nota que explica a sua extinção, as atribuições da Secretaria
foram absorvidas por outros órgãos, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
222

Justiça, a SRJ visava estabelecer uma estreita articulação entre os Poderes Executivo e
Judiciário para a otimização do trabalho das instituições, de modo a tornar a Justiça mais ágil e
acessível. Uma das principais ações do órgão foi conseguir a aprovação da Emenda
Constitucional 45/04 – conhecida como a Emenda da Reforma do Judiciário –, por meio da
qual foi criado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ); determinada a autonomia financeira,
administrativa e funcional das Defensorias Públicas em todo o Brasil; e estabelecida a exigência
de um “tempo razoável” para duração dos processos judiciais.
Para pesquisadores como Trentin (2012), a simples expansão do acesso à Justiça não dá
conta de explicar o crescimento do número de processos judiciais em andamento, já que há
também uma mudança social que acompanha esse maior acionamento do Judiciário para a
resolução de contendas variadas. De acordo com a autora, fatores como a globalização e o
desenvolvimento das tecnologias de comunicação propiciaram o que ela chama de “crescimento
das relações sociais”, posto que diminuíram distâncias e tornaram mais fáceis o estabelecimento
de relações de diferentes tipos, como, por exemplo, de compra e venda. Ter a capacidade e a
possibilidade de estabelecer “mais relações” significa aumentar potencialmente a quantidade
dos conflitos sociais existentes. A expansão quantitativa e qualitativa desses conflitos somadas
a essa abertura das portas do Judiciário geraram uma crise paradigmática do direito, expressão
utilizada pela autora para caracterizar o “abarrotamento do sistema judiciário” provocado pela
crescente demanda jurisdicional e o colapso das estruturas estatais de resolução de conflitos.
Contrário à tese de que a morosidade do Judiciário deriva da ampliação do acesso à
Justiça, o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Eduardo Alves da
Silva, declarou que

A leitura que se faz atualmente esquece do conceito original. Pensamos


em volume de processos da perspectiva do gabinete, mas, da
perspectiva da população, ela não se sente com tanto acesso à Justiça.
Os litígios no Brasil envolvem grandes empresas contra pequenos
indivíduos. É importante saber quem usa o Judiciário para sabermos se
de fato existe acesso à Justiça antes de imputar o acesso à Justiça como
causa da morosidade. (Crepaldi e Valente, 2019).

Sua fala se deu no painel intitulado “Acesso à Justiça e causas da morosidade do


processo judicial” do seminário “Acesso à ordem jurídica justa”, realizado na Faculdade de
Direito da USP em fevereiro de 2019. Na mesma mesa esteve a já citada Maria Tereza Sadek,
que apresentou dados de sua mais recente pesquisa que apontam que entre 2004 e 2019, o
número de processos que continuam não resolvidos permaneceu na casa dos 70%. A perspectiva
223

de que a morosidade é um problema crônico do Judiciário brasileiro foi um consenso entre os


participantes do painel.
Além do crescimento da demanda, outros dois fatores são elencados nas explicações do
que torna o tempo para a resolução dos processos demasiadamente longo no país. O primeiro
deles diz respeito a questões estruturais do Judiciário, como o número insuficiente de
magistrados e servidores nos Tribunais de Justiça – o que vem sendo apontado como uma das
principais causas da morosidade do Judiciário há décadas (Sadek e Arantes, 1994). De acordo
com os relatórios anuais do CNJ, o Judiciário terminou o ano de 2016 com 18.011 juízes de
direito, desembargadores e ministros, montante que representa uma média de 8,2 juízes por
grupos de 100 mil habitantes no Brasil, um número considerado muito baixo para atender ao
contingente populacional brasileiro. (CNJ, 2017).
O segundo tem a ver com a lentidão imposta pela formalidade burocrática do Judiciário
e envolve os próprios procedimentos e ritos processuais que balizam o funcionamento dos
Tribunais. Isto é, são as próprias etapas e normas judiciais estabelecidas por lei que prolongam
o tempo para se chegar a uma sentença ao fixar prazos e possibilitar que diversos recursos sejam
apresentados ao longo do julgamento de uma ação, postergando sua conclusão por tempo
indefinido, como dito pelos já mencionados entrevistados de Bonelli (2010).
Em síntese, como já mencionado, a ideia de que a justiça precisa ser mais rápida e
eficiente está presente no senso comum brasileiro há muito tempo e esse ideário tornou-se
presente na Constituição Federal a partir da já mencionada Emenda Constitucional 45/04 que
incluiu no artigo 5º o inciso LXXVIII, o qual diz que “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação”. Parte do que compõe a noção de “eficiência do Judiciário” tem
a ver com a própria ampliação do acesso à Justiça para os mais pobres, os menos instruídos, as
minorias, entre outros grupos sociais tidos como vulneráveis, posto que este é um direito basilar
e diz respeito ao “direito a ter direitos” (Schritzmeyer, 2012).
Como destaca Sadek (2014), a concretização do direito ao acesso à Justiça depende da
possibilidade de o sujeito litigante percorrer o caminho entre as portas de entrada e de saída do
Judiciário dentro de um intervalo de tempo razoável. Logo, a morosidade na solução de
conflitos representa um obstáculo para que tal direito possa ser de fato usufruído. Para as
demandas de saúde, a preocupação com o ritmo dos julgamentos adquire um caráter especial,
tendo em vista que a não efetivação tanto do direito à saúde, quanto do direito de acesso à
Justiça podem ter resultados particularmente catastróficos, como uma sequela irreversível ou
até mesmo a morte de uma pessoa.
224

Como em quase todas as questões abordadas até aqui, o tema da temporalidade do


julgamento quando se trata da judicialização da saúde também é alvo de múltiplas
controvérsias. Por um lado, argumenta-se que uma demanda em saúde quase sempre é uma
emergência que precisa ser resolvida o mais rápido posível – ou que pode se tornar uma
emergência caso nada seja feito em um tempo hábil. Portanto, estas não podem ser submetidas
à morosidade judicial, ocasionando inúmeras decisões liminares nas quais os magistrados
determinam que uma das esferas de governo cumpra o mandado de fornecimento de tratamento,
de internação, de agendamento de consulta etc. Por outro, afirma-se que os juízes que concedem
essas liminares não possuem a expertise necessária para avaliar as demandas, bem como
desconhecem como os órgãos do Executivo – o Ministério da Saúde e as Secretarias Municipal
e de Estado de Saúde – planejam e administram as políticas públicas de saúde. Para os
representantes dessa perspectiva, essas decisões são emitidas “rápido demais”, pois os
magistrados julgam tais casos “no calor da emoção”, sem tomar o tempo e a distâncias
necessários para “uma avaliação técnica e rigorosa” da situação tanto em termos de gestão de
políticas de saúde, quanto em termos médicos – ou seja, no que se refere à melhor escolha para
a saúde do paciente.
É em nome da superação de tal controvérsia que surgiram os primeiros esforços para
resolver “resolver administrativamente” esses conflitos. Abordarei a seguir o histórico de
iniciativas interinstitucionais cujo objetivo era oferecer respostas que sejam ao mesmo tempo
“rápidas” e “técnicas” aos possíveis litigantes na área da saúde e que pavimentaram o caminho
para a criação da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS).

4.2 – “É preciso dialogar”: um breve histórico dos mecanismos de “resolução


administrativa” dos litígios de saúde no Rio de Janeiro

Ao refletir sobre os diferentes obstáculos que dificultam e até mesmo impedem a


efetivação do direito ao acesso à Justiça no Brasil, a cientista política Maria Tereza Sadek é
categórica ao expor as prováveis consequências do recente crescimento do número de processos
judiciais e da lentidão do Judiciário em oferecer soluções para as demandas que lhe são
apresentadas: “a explosão da litigiosidade e a morosidade na solução de conflitos são questões
225

que têm que ser enfrentadas sob pena de erodirem, além da credibilidade do Poder Judiciário,
também a qualidade da democracia brasileira”. (Sadek, 2014, p. 64).
Como discuti na seção anterior, quando se fala de judicialização da saúde, além do
excesso de ações em andamento e do longo tempo de espera para que esses processos sejam
julgados, há também outras duas questões que se fazem presentes no debate. A primeira é o já
apontado “desconhecimento técnico” dos magistrados no que diz respeito não só aos aspectos
biológicos da saúde – tais como os métodos diagnósticos, os procedimentos terapêuticos, os
quadros do desenvolvimento de uma dada patologia etc. –; mas, sobretudo, acerca da gestão
pública em saúde – como, por exemplo, a repartição de competências entre municípios, estados
e União no que se refere ao SUS. A segunda questão é a alegada “falta de diálogo” entre os
atores do Sistema de Justiça e os responsáveis pelo planejamento e execução das políticas
públicas de saúde. São esses diagnósticos e projeções calamitosas como as de Sadek que servem
de pano de fundo para o desenvolvimento de uma série de iniciativas, tecnologias e mecanismos
de gestão que culminaram na criação da CRLS.

Das iniciativas anteriores à criação da CRLS

Com o aumento dos gastos públicos gerado pelas decisões judiciais determinando a
procedência das demandas de saúde feitas em face do poder público, as Secretarias Municipal
e de Estado de Saúde (SMS e SES, respectivamente) propuseram um acordo com a Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ) em 2007, já que uma parte significativa desses
pedidos era representada por defensores públicos. O objetivo dessa iniciativa era estabelecer
regras mínimas e determinar o fluxo dos pedidos de medicamentos que fossem da competência
do município ou do estado atendidos pelo órgão. Através desse “acordo de cooperação”, os
defensores se comprometeram a: 1) exigir dos assistidos um laudo médico fornecido por algum
profissional do SUS; 2) consultar os entes federativos acerca da disponibilidade do
medicamento e definir um prazo para a resposta antes de propor a ação ao Judiciário.
Também em 2007, foi criada a Central de Atendimento de Demandas Jurídicas (CADJ).
Composta por funcionários da SMS e da SES, o objetivo da CADJ era centralizar a gestão das
intimações recebidas por ambos os órgãos nas ações judiciais referentes a diferentes demandas
sanitárias. Segundo Guimarães e Palheiro (2015), essa Central foi pensada e desenhada para
“dar cumprimento às decisões judiciais e organizar e controlar o estoque dos medicamentos e
insumos destinados ao atendimento das ordenas judiciais, a fim de evitar a utilização da
226

dispensa de licitação por emergência para a aquisição desses itens” (p. 4). Para isso, foram
adotados procedimentos de registro e análise de dados dos medicamentos mais judicializados,
de modo a incluir sua aquisição no planejamento das Secretarias. Essa ação fez com que o
número compras de medicamentos em caráter emergencial e com dispensa de licitação chegasse
a zero em 2012.
Naquele momento, as principais reclamações dos magistrados do TJRJ eram o
descumprimento das determinações judiciais e ausência de resposta das Secretarias de Saúde
após o recebimento das sentenças. Esse aparente descaso dos gestores públicos provocou
situações nas quais juízes e desembargadores expediram uma série de mandados de prisão e
fixaram multas diárias a serem aplicadas aos secretários municipal e de estado de Saúde em
casos de não cumprimento de uma decisão judicial. Para Guimarães e Palheiro (2015), a criação
da CADJ desempenhou um importante papel no estabelecimento de um canal de comunicação
até então inexistente entre o TJRJ e as SMS e SES, fazendo com que o Judiciário “voltasse a
confiar” nas Secretarias de Saúde.
Em 2009, foi implantado o primeiro Núcleo de Assessoria Técnica (NAT) no Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Compostas por médicos, enfermeiros,
farmacêuticos, nutricionistas e fisioterapeutas – a grande maioria deles cedidos pela SES –, as
equipes do NAT têm a função de elaborar pareceres para subsidiar “tecnicamente” os
magistrados em processos judiciais que envolvem o fornecimento de medicamentos, insumos
para saúde, alimentos especiais para pacientes intolerantes e tratamentos médicos. Nos anos
seguintes, o projeto se expandiu para a Justiça Federal e, no Rio de Janeiro, para as comarcas
do interior. De acordo com Guimarães e Palheiro (2015), dois princípios estruturam a ação dos
NAT: celeridade e imparcialidade. Celeridade porque os pareceres eram emitidos em até 48h e
imparcialidade porque estes profissionais supostamente exerceriam um “papel puramente
técnico”, tendo liberdade para formular pareceres favoráveis ou contrários tanto aos interesses
do autor, quanto aos do réu.
Ainda que sejam descritas por muitos autores e atores como “iniciativas de sucesso”,
tanto a CADJ quanto os NAT atuavam apenas após a protocolização de uma ação judicial
propriamente dita. Isto é, eles se mostraram eficazes na gestão da efetiva judicialização da
saúde. Entretanto, nenhum dos seus procedimentos era capaz de impedir o exponencial
crescimento do número de processos que envolviam esse tipo de demanda. Para diminuir as
proposituras e controlar o chamado “excesso de judicialização” seria preciso criar mecanismos
e tecnologias que atuassem em etapas pré-processuais e que resolvessem tais questões
“administrativamente”.
227

Nesse sentido, outro serviço foi criado em paralelo: o Sistema de Pedido Administrativo
(SPA). O SPA era fruto de um convênio entre PGE, PGM, DPE-RJ, SES e SMS e funcionou
entre os anos de 2008 e 2012, atendendo solicitações de medicamentos e de realização de
exames de tomografia computadorizada e ressonância magnética. Nas pesquisas feitas por
Teixeira (2011) e Souza (2016), o SPA é apresentado como o resultado de um Grupo de
Trabalho formado por procuradores do estado e do município que atuavam em processos que
envolviam demandas por direitos sanitários. Após alguns encontros entre procuradores, eles
convidaram representantes da DPE-RJ e das Secretarias de Saúde para participar das reuniões
seguintes e compor um grupo, dando início ao processo que resultou na criação do SPA em
agosto de 2008 (Teixeira, 2011).
A CADJ, os NAT e o SPA foram pensados em relação a um contexto que era percebido
como problemático por diversos atores e setores da administração estatal, pois estaríamos
vivendo um “excesso de judicialização” de questões ligadas ao direito à saúde. Assim, todas
essas parcerias tinham por objetivo formular tanto mecanismos de gestão, controle e/ou
diminuição da judicialização, quanto proporcionar aos magistrados informações qualificadas
para embasar suas decisões. A partir do acúmulo das experiências dos três serviços, gestores de
saúde dos níveis municipal e estadual apontaram a “falta de diálogo” entre os diferentes atores
e órgãos implicados nesses processos como um dos principais problemas referentes ao
gerenciamento da judicialização da saúde.
Ao longo do tempo em que funcionou o SPA, os atores que participavam da iniciativa
perceberam que a “qualificação da judicialização” na área de saúde poderia ser expandida para
outras demandas além das solicitações de medicamentos e exames. Para isso, bastaria que o
problema da “falta de diálogo” fosse resolvido. Essa percepção de que não havia diálogo entre
as instituições residia na ideia de que mesmo estabelecendo acordos e formas coordenadas de
conduta, esses atores ainda trabalhavam em gabinetes e salas em seus próprios órgãos de
atuação, isto é, em lugares distintos e separados. Para superar tal limitação, seria preciso uma
estrutura maior, com mais profissionais e órgãos envolvidos. Com base nessa necessidade de
um “espaço de diálogo” – e aqui, a ideia de “espaço de diálogo” abarca tanto uma disposição
para trabalhar em conjunto, quanto um espaço físico comum aos distintos atores – e nos
expedientes e protocolos de atendimento do SPA, da CADJ e dos NAT, foram estabelecidas as
premissas do funcionamento da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde.
228

Como já mencionado, a CRLS é um órgão estatal que funciona através da parceria e


cooperação46 entre outros órgãos de Estado: as Secretarias Municipal e de Estado de Saúde
(SMS e SES), as Defensoria Públicas do Estado do Rio de Janeiro e da União (DPE-RJ e DPU),
as Procuradorias Gerais do Estado do Rio de Janeiro e do Município (PGE-RJ e PGM-RJ), o
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) e o Departamento de Gestão Hospitalar da
Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde (DGH/SAS/MS). A iniciativa de
proposição e a instituição responsável pela administração da CRLS não é facialmente
localizável, uma vez que elas também são alvos de disputas. Enquanto algumas notícias
veiculadas na época da inauguração da Câmara afirmam que esse é um projeto pensado por
funcionários da Secretaria de Estado de Saúde, outras apontam a Procuradoria Geral do Estado
do Rio de Janeiro como a idealizadora e financiadora do órgão. No site da PGE-RJ, por
exemplo, a CRLS é descrita como um dos “empreendimentos” criados pelo órgão no âmbito
do programa + Consenso47. De todo modo, a coordenação da CRLS cabe a pessoas ligadas à
SES, ao passo que a responsabilidade pela manutenção do espaço físico e contratação de
seguranças, ascensoristas e auxiliares de serviços gerais que trabalham na Câmara é da PGE.
A criação da CRLS ocorreu em junho de 2012, quando foi assinado um convênio com
validade de 60 meses entre os já citados órgãos estatais. Segundo Souza (2016), no convite para
compor o convênio foram incluídos também a Advocacia-Geral da União (AGU) – que nunca
aceitou tal convite – e o Ministério da Saúde (MS) – que recusou a participação na instituição
em um primeiro momento. Apesar de ter sido instituída em junho de 2012, a Câmara só foi
inaugurada e começou a funcionar efetivamente pouco mais de um ano depois, em setembro de
2013. O desenho do projeto da CRLS, em teoria, coloca em diálogo os três principais atores
que lidam com os processos judiciais na área da saúde: defensores públicos, promotores e
gestores das Secretarias de Saúde. Como diz uma nota divulgada pela Assessoria de Imprensa
da Defensoria Pública da União,

46
Os termos parceria e cooperação encontram-se enfatizados porque os entendo não apenas como categorias
nativas que descrevem as relações entre diferentes órgãos estatais, mas também como tecnologias de gestão que
estabelecem de quais maneiras essas instituições podem ou não atuar conjuntamente para a resolução de um
problema. Discutirei essa questão mais detidamente no capítulo 6.
47
De acordo com a página oficial da PGE-RJ, o programa + Consenso representa a consolidação de uma “nova
postura da advocacia pública, com ênfase na solução administrativa para os litígios”. O programa tem o objetivo
de estimular a prevenção e conciliação de conflitos, evitando que esses sejam efetivamente judicializados. Em
2016, após verificar a “eficiência” e os “bons resultados” obtidos pela CRLS, a PGE-RJ resolveu criar também a
Câmara Administrativa de Solução de Conflitos (CASC) para mediar litígios e demandas na área de Educação,
como a expedição de diplomas, certificados de conclusão de curso e, principalmente, as disputas envolvendo
matrículas na rede pública de ensino. A CASC é fruto da parceria entre a PGE-RJ, a Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro (DPE-RJ) e a Secretaria de Estado da Educação (Seeduc). Tal como a CRLS, o objetivo da
CASC é evitar o ajuizamento de ações na Justiça e estimular acordos administrativos de forma rápida e simples.
229

A DPU foi convidada a participar do convênio por patrocinar e assistir


à maior parte das demandas dirigidas ao Estado e ao Município para
satisfação do dever de Saúde Pública. Esses atendimentos, na maioria
dos casos, requerem medidas urgentes para salvaguardar o direito do
paciente, o que muitas vezes era dificultado pela falta de informação
acerca dos Programas de Saúde Pública e da própria estrutura do SUS.
A CRLS surge com o intuito de resolver a situação. (Assessoria de
Imprensa da DPU, grifos meus).

O trecho destacado – o mesmo que dá título ao presente capítulo – sintetiza a finalidade


da concepção da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde: solucionar tanto a questão do
desconhecimento do fluxo de atendimento do SUS e do planejamento de políticas e ações de
saúde por parte de magistrados, defensores públicos e procuradores; quanto o problema da falta
de comunicação entre atores do Sistema de Justiça e os gestores e profissionais de saúde. De
acordo com os idealizadores do projeto, essa “situação” poderia ser resolvida por meio do
estabelecimento de diálogos entre esses diferentes agentes de Estado e da busca por “soluções
administrativas” para qualquer demanda na área de saúde. Supostamente, essa “mediação” de
contendas potencialmente judicializáveis entre cidadãos e Estado serviria para “facilitar” o
acesso a medicamentos, “agilizar” a marcação de exames e consultas, “acelerar” o processo de
procura por uma vaga para internação etc. Em suma, reduzir tanto o tempo quanto os custos
colocados pela solução judicial dos conflitos por direitos sanitários.
Nesse sentido, a instituição assume uma espécie de papel de mediação e de gestão de
demandas judiciais envolvendo o direito à saúde através de uma atuação “extrajudicial” que
preza pela solução de litígios de maneira “consensual” e “conciliadora”. Esse objetivo orienta
não apenas as atuações dos múltiplos órgãos que compõem a CRLS, mas também se materializa
na estrutura física da instituição, como abordarei no próximo capítulo. Por ora, termino a seção
discutindo a constituição mútua de problemas e soluções envolvida no processo de elaboração
de uma política pública.

A criação de um órgão público e a consolidação de problemas de Estado

Em sua discussão sobre a construção de problemas sociais, Lenoir (1998) afirma que os
organismos e regulações estatais instituem tais problemas ao influírem sobre as categorias de
percepção e de pensamento que orientam e informam a visão corrente do mundo social. Assim,
a produção e o reconhecimento de uma “situação problemática” são questões caras ao
230

funcionamento do Estado porque é através delas que o poder público pode legitimar sua
atuação. Nas palavras do autor:

A constituição de uma situação como “problema social” interessa os


poderes públicos por dois motivos: a essa definição estão associadas
“soluções” que o Estado poderá aplicar através de medidas apropriadas;
ou tal situação é suscetível de ser apreendida e avaliada com uma
aparente exatidão, dando assim a impressão de que os podres públicos
têm condições de controlá-la, o que acaba por reforçar a representação
de um Estado onisciente e, portanto, onipotente. (Lenoir, 1998, p. 103).

Ao refletir sobre quais seriam as possíveis contribuições de uma perspectiva etnográfica


e antropológica para o estudo das políticas públicas, Shore (2010) sugere que estas podem ser
compreendidas como estatutos de legitimidade, tecnologias políticas, mecanismos de exercício
da governamentalidade etc. De um modo relativamente semelhante ao de Lenoir, Shore
argumenta que as instituições do Estado buscam influenciar a percepção social acerca das
questões que elas mesmas formulam como problemáticas por meio da criação de políticas
públicas. Tal movimento teria como objetivo fazer com que o debate público sobre um assunto
seguisse somente uma única forma de interpretação da situação – a definição oficial – e, por
conseguinte, que somente as soluções propostas no âmbito da própria política pública fossem
encaradas como legítimas e, se não como as únicas, ao menos como as melhores que poderiam
ser executadas em um dado contexto.
Mais recentemente, Zenobi (2017) destacou a importância da mobilização de dados
quantitativos para a fundamentação e elaboração de uma política pública ao construir
interpretações e diagnósticos que dão a um determinado problema uma magnitude que demanda
uma incontornável intervenção estatal. Para ele, uma das mais importantes características da
estatística é a sua capacidade de produzir “indicadores” que transformam fenômenos variados
em questões claras, impessoais e sem nenhuma ambiguidade. O autor também sublinha que o
Estado e as políticas públicas estatais possuem um papel preponderante na construção da
definição coletiva de uma situação problemática, uma vez que fazem circular um amplo
conjunto de discursos de diferentes agentes estatais (políticos, gestores etc. e paraestatais
(especialistas de diferentes campos do conhecimento) sobre a questão. Nesse sentindo, Zenobi
afirma que: “longe de ver as políticas públicas como instrumentos cirúrgicos assépticos que
intervêm no ‘corpo social’ para ‘melhorar sua saúde’, considero-as como ferramentas poderosas
para construir a realidade.” (p. 32, tradução minha).
231

Assim, seguindo as proposições desses autores, argumento que a criação da CRLS não
pode ser vista apenas como uma resposta estatal aos problemas do “excesso de judicialização”
de demandas em saúde e da “morosidade do Judiciário” que se apresentam a priori na realidade.
Pelo contrário, a instituição de um órgão de Estado cuja finalidade é resolver tais questões
representa um ponto decisivo no próprio processo de formulação e consolidação desses
“fenômenos” enquanto problemas de Estado. Ou seja, ao implementar uma política pública de
resolução extrajudicial de litígios de saúde, o Estado não somente reconhece oficialmente esses
problemas, mas, principalmente, legitima seus próprios modos de atuação para a superação
deles. Tal como o ato de fundação da CRLS, o conjunto de dados que será discutido na próxima
seção também participa da elaboração dos referidos problemas. Assim, termino o capítulo
discutindo como o enquadramento de crise utilizado para designar o cenário contemporâneo
adicionou uma nova camada nas questões orbitam a judicialização da saúde.

4.3 – A questão da falta: crise e judicialização da saúde na CRLS

Como mencionado, a crise da saúde pública introduziu um novo tópico nas discussões
acerca do fenômeno da judicialização da saúde no Rio de Janeiro, pois provocou não só o seu
aumento, mas também a alteração do perfil dos demandantes e das demandas judiciais em saúde
nos últimos anos na cidade. Além disso, a crise também implicou modificações significativas
nas rotinas de trabalho na CRLS, que passou a ter que lidar com um número cada vez maior de
pessoas que acionam o Judiciário em busca de solução de demandas sanitárias, bem como com
a transformação no que era solicitado.
Nesta terceira parte do capítulo, busco reconstruir o histórico dessas mudanças.
Contudo, como salientado na introdução da tese, não pude acessar os dados estatísticos
produzidos pela Câmara, tampouco solicitei ao Tribunal de Justiça (TJRJ) que me fornecesse
os números dos processos judiciais cujos pleitos envolviam o direito à saúde no estado do Rio
de Janeiro. Assim, as informações e dados apresentados aqui fazem parte de um esforço de
composição que reúne o que pude ouvir e observar nas conversas que tive com funcionários e
assistidos da Câmara durante o trabalho de campo e aquilo que foi disponibilizado publicamente
em auditorias, relatórios e documentos de órgãos governamentais; dissertações de mestrado,
teses de doutorado e artigos acadêmicos; matérias jornalísticas etc. ao longo da última década.
232

Apesar de já ter abordado como o “excesso de judicialização da saúde” se configurou


enquanto um problema de Estado que precisa ser enfrentado na primeira parte do capítulo,
considero importante retomar a discussão sobre o tema a partir de outra perspectiva. Isto é, na
seção anterior, concentrei-me em descrever os debates em torno da legitimidade ou não da
intervenção do Judiciário nas política públicas de saúde e nos problemas que isso pode causar,
como, por exemplo, as dificuldades orçamentárias provocadas pelas decisões dos magistrados.
Agora, interesso-me menos pelos números absolutos da judicialização da saúde – ou seja, a
quantidade total de processos abertos, julgados e em andamento – e mais pelo caracterização
do seu conteúdo, principalmente no que diz respeito ao perfil dos solicitantes e às principais
demandas apresentadas ao poder público.

Judicialização da saúde no Brasil: indicadores gerais

Em meados de 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) encomendou uma grande


pesquisa acerca do fenômeno da judicialização do saúde no Brasil, a qual fazia parte do projeto
“Estudo multicêntrico sobre as relações entre Sociedade, Gestão e Judiciário na efetivação do
direito à saúde”, coordenado pelos professores do Instituto de Medicina Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), Felipe Asensi e Roseni Pinheiro (2016). A
investigação buscou analisar o cenário da judicialização da saúde e a política judiciária de saúde
no Brasil a partir de dados de processos judiciais dos anos de 2011 e 2012 obtidos junto aos
Tribunais de Justiça de seis estados da Federação. Os TJ foram selecionados a partir de critérios
como quantidade de servidores e magistrados, tamanho do Tribunal, carga de trabalho etc., de
modo a compor uma amostra representativa do fenômeno no quadro nacional.
A pesquisa evidenciou que de um universo de 1.748 processos analisados, 1.339 tiveram
o “fornecimento de medicados” como pelo menos um dos objetos da ação – já que um mesmo
processo pode conter múltiplos pedidos. Ou seja, 76,6% das demandas judiciais em saúde entre
os anos de 2011 e 2012 envolveu solicitações de algum tipo de tratamento farmacológico. Já a
categoria “realização de tratamento” somou 111 processos nesse mesmo período, o que
equivale a 6,35% do total. A seguir, reproduzo uma tabela elaborada pelos autores acerca da
distribuição dos processos sobre fornecimento de medicamentos entre os seis Tribunais de
Justiça considerados na pesquisa.
233

Tabela 2 – Ações judiciais de para fornecimento de medicamentos (2011-2012)

Fornecimento TRIBUNAL DE JUSTIÇA


de Total
medicamento? SP MG PR MS RN AC

Sim 152 250 482 233 219 3 1.339


80,85% 76,69% 81,97% 76,14% 66,16% 33,33% 76,60%
Não 36 76 106 73 112 6 409
19,15% 23,31% 18,03% 23,86% 33,84% 66,67% 23,40%
Total 188 326 588 306 331 9 1.748
100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Fonte: Adaptada de Asensi e Pinheiro (2016).

Em 2017, o Tribunal de Contas da União (TCU) promoveu uma auditoria nacional sobre
a judicialização da saúde com foco no Ministério da Saúde (MS) e em alguns estados e
municípios selecionados. Para a realização dessa auditoria, o órgão solicitou acesso aos dados
do Ministério, dos Tribunais de Justiça estaduais e das Secretarias Municipal e de Estado de
Saúde. O objetivo da fiscalização foi conhecer e caracterizar o fenômeno da judicialização da
saúde no Brasil e produzir dados acerca do seu impacto nos orçamentos da União, dos estados
e dos municípios para a área de Saúde. Com mais de 100 páginas e contendo tanto o relatório
da auditoria, quanto o voto do relator, o acórdão disponibilizado pelo TCU foi sumarizado da
seguinte maneira:

SUMÁRIO:
Auditoria operacional. Fiscalização de Orientação Centralizada (FOC).
Judicialização da saúde. Identificar o perfil, o volume e o impacto das
ações judiciais na área da saúde, bem como investigar a atuação do
Ministério da Saúde para mitigar seus efeitos nos orçamentos e no
acesso dos usuários à assistência à saúde. Constatação de ações
individuais, de caráter curativo, com alta probabilidade de êxito. Gastos
crescentes, que saltaram de R$ 70 milhões em 2008 para R$ 1 bilhão
em 2015. Deficiências de controle. Pagamentos por fármacos sem
registro na ANVISA ou já disponibilizados pelo SUS. Falta de adoção
de recomendações do CNJ. Ausência de procedimentos de
ressarcimento interfederativo. Determinações e recomendações.
Ciência e arquivamento. (Brasil, 2017, grifos meus).
234

A primeira questão mencionada pelo relator da auditoria em seu voto foi a controvérsia
política e o dilema administrativo-moral que paira sobre a judicialização da saúde e já antes
mencionados. Nas palavras do Ministro do TCU, Bruno Dantas:

De início, destaco o grande desafio posto neste trabalho de enfrentar


tema tão complexo e de difícil solução. Se, por um lado, há o dever de
proteção do Estado a um direito fundamental, por outro, tem-se a
limitação do orçamento público, incapaz de atender a todas as
demandas” (Brasil, 2017).

Na sequência, o relator elencou de forma sintética as principais informações obtidas


pelo levantamento dos dados e as recomendações do TCU para 1) atenuar os efeitos da
judicialização na composição orçamentária; e 2) para promover práticas que busquem diminuir
a quantidade de ações dessa pretensão ajuizadas nos Tribunais de Justiça estaduais e Regionais
Federais (TJ e TRF, respectivamente). Destaco agora alguns dos principais dados e achados
descritos no relatório de auditoria:

16. Em relação “ao perfil, volume e impacto das ações judiciais na área
de saúde”, as informações colhidas pela equipe de auditoria revelaram,
em síntese, que:

16.1. as ações judiciais versam predominantemente sobre


mecanismos curativos de saúde (medicamentos, tratamentos,
insumos etc.), em oposição a mecanismos preventivos;
16.2. a litigância é predominantemente individual e a taxa de
sucesso é alta, com antecipação de tutela sem pedido de
informações, na maioria dos casos;
16.3. não obstante a forte atuação do CNJ para tratar
sistematicamente a matéria, a maioria das decisões judiciais
pesquisadas não toma como referência os normativos do CNJ e
nem menciona os NAT-JUS, criados para assessorarem os
magistrados nesses assuntos;
16.4. a judicialização da saúde é consideravelmente mais intensa
na Justiça Estadual;
16.5. dentre os tribunais estaduais com maior número de processos,
citam-se os de São Paulo, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais,
sendo a maior parte das demandas por fornecimento de
medicamentos, seguida de tratamento médico-hospitalar;
16.6. as causas envolvem geralmente valores acima de 60 salários
mínimos na Justiça Federal e 40 salários mínimos na Justiça
Estadual;
235

16.7. a maior parte das ações são ajuizadas por advogados,


seguidos de perto por defensores públicos;

17. Além das informações descritas acima, a equipe de auditoria


também observou que, no âmbito federal, os gastos são crescentes e
concentram-se em três medicamentos que não fazem parte da Rename,
sendo que um deles, o Soliris, sequer possuía registro na Anvisa até
13/3/2017.

18. Entre 2008 e 2015, os gastos do Ministério da Saúde para cumprir


decisões judiciais aumentaram aproximadamente 1300%, saindo de R$
70 milhões para cerca de R$ 1 bilhão. A título de comparação, registre-
se que o orçamento total autorizado do Ministério da Saúde para 2015
foi de R$ 121 bilhões.

19. Verificou-se, também, que a situação é ainda mais grave nos


estados. Da amostra examinada, percebeu-se que os estados de São
Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina gastaram juntos, entre 2013 e
2014, mais do que a União. No total de despesas com judicialização, os
medicamentos representaram mais de 80%, sendo que 19
medicamentos responderam por mais de 50% em São Paulo e Santa
Catarina, entre eles, nove fármacos não incorporados ao SUS. (Brasil,
2017).

Gráfico 14 – Distribuição dos gastos do Ministério da Saúde em compras por determinação


judicial, de 2010 a 2015, com destaque para três medicamentos

Fonte: (Brasil, 2017)


236

Além disso, o relatório do TCU também apontou que, no período entre 2007 e 2015,
85,49% dos “processos sobrestados”48 envolvendo demandas de saúde diziam respeito ao tema
do “dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não
possui condições financeiras para comprá-lo”. Como descrito na seção anterior, esse tema
aguarda o julgamento do Recurso Extraordinário nº 566.471 pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) desde o ano de 2007.
No primeiro semestre de 2019, o CNJ divulgou uma nova pesquisa sobre a
judicialização da saúde no Brasil. Para além dos dados quantitativos, essa nova investigação
também teve um caráter qualitativo e envolveu entrevistas com atores do Sistema de Justiça e
gestores das Secretarias de Saúde de cinco estados da Federação. Todas as manchetes que
anunciaram a publicação mencionaram o que foi considerado um dos achados mais importantes
da pesquisa: o aumento de 130% da judicialização da saúde entre os anos de 2008 e 2017. Os
principais resultados dessa investigação foram apresentados pelos coordenadores Azevedo e
Aith (2019) na III Jornada Nacional da Saúde, evento que ocorreu no primeiro semestre de
2019, na cidade de São Paulo. O grande objetivo dessa Jornada foi debater os “problemas
inerentes à judicialização da saúde”.
As conclusões e análises dos coordenadores da pesquisa corroboram e qualificam
algumas das hipóteses discutidas na literatura sobre a temática, ao mesmo tempo em que
desfazem outras. Uma das informações consolidadas pelo levantamento diz respeito à grande
porcentagem de solicitações de medicamentos nos processos relacionados ao SUS, que chegou
ao patamar de 73,86% dos processos em primeira instância do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo (TJSP), sendo 11% destes de fármacos importados.
Um dos “mitos” refutados pelo levantamento contemporâneo, por exemplo, é o de que
as ações individuais tendem a ser mais bem sucedidas do que as coletivas – algo que, como
descrito anteriormente, figura como um dos principais problemas colocados pela judicialização
da saúde. Para os coordenadores, as pesquisas pontuais acerca do fenômeno contribuíram para
a consolidação de uma crença de que os juízes preferem conceder direitos individuais do que
realizar reformas de caráter estrutural nas políticas públicas de saúde por meio do julgamento
favorável das ações coletivas. Azevedo e Aith (2019) defendem que, ao contrário do que vem
sendo discutido pelos especialistas, o fato de uma ação ser coletiva faz com que suas chances
de sucesso sejam cerca de 7% maior do que das ações individuais.

48
De acordo com o glossário do STF, um “processo sobrestado” é um processo cujo andamento foi suspendido
até que se tenha o julgamento de mérito de uma ação com tema de “repercussão geral reconhecida”.
237

Judicialização da saúde no Rio de Janeiro: crise e transformação

Ainda que exista uma profusão de artigos, dissertações e teses que tomam a
judicialização da saúde como objeto de estudos, os dados estatísticos sobre os processos
judiciais de saúde no estado do Rio de Janeiro são parcos. Embora tenham recebido as
informações solicitadas ao Tribunal de Justiça de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ),
os coordenadores do mais recente levantamento sobre a questão no Brasil não selecionaram os
dados fluminenses para uma análise detalhada na produção do relatório final e nem
disponibilizaram tais dados para consulta pública.
Especificamente sobre a demanda judicial por medicamentos no âmbito estadual,
algumas dissertações e teses demonstram que pouco menos da metade das ações judiciais tem
como objeto a solicitação de medicamentos não incluídos nas listas do SUS. Borges (2007), por
exemplo, se concentrou nos processos do TJRJ do ano de 2005. Dos 334 medicamentos
solicitados nas ações analisadas pela autora, 159 eram produtos que ainda não haviam sido
padronizados pelo Ministério da Saúde.
Santana (2009), por sua vez, teve como recorte para sua pesquisa um universo de 27
processos julgados em segunda instância no ano de 2006 que continham nos acórdãos as
palavras “medicamento” e “essencial”. Dos 115 medicamentos que constam nos difrentes
pedidos, 49 não estavam incluídos em nenhuma das listas oficiais de medicamentos distribuídos
pelo SUS. Além disso, o autor ressalta que dos 27 processos selecionados, em 22 havia a
solicitação de pelo menos um medicamento não incluído nas listas.
Ao buscar na jurisprudência do TJRJ decisões de 2ª instância que continham os termos
“SUS” e, em seguida, refinar a pesquisa para filtrar os que mencionavam ambos os termos
“medicamento” e “SUS” entre os anos de 2010 e 2018, é possível perceber que a grande maioria
dos acórdãos e decisões monocráticas nos quais o Sistema Único de Saúde é citado há também
alguma alusão de que tais processos tratam – ainda que não exclusivamente – do fornecimento
de medicamentos. Isto é, há um indicativo de que cerca de 75,9% do total de litígios de saúde
em 2ª instância desse período era referente a pedidos de medicamentos feitos ao poder público
e à rede pública de saúde nesse período, como demonstrado na seguinte tabela:
238

Tabela 3 – Processos em 2ª instância no TJRJ que mencionam os termos “SUS” e


“Medicamentos e SUS” (2010-2018)
SUS MEDICAMENTO E SUS
Ano
Quant. Quant. %
2010 802 675 84,2%
2011 799 631 79,0%
2012 797 608 76,3%
2013 864 671 77,7%
2014 946 745 78,8%
2015 879 648 73,7%
2016 845 601 71,1%
2017 1.002 699 69,8%
2018 1.212 908 74,9%
TOTAL 8.146 6.186 75,9%

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TJRJ

Conforme abordado na seção anterior, apesar de ter sido criada em 2012, a CRLS só
começou a funcionar efetivamente em setembro de 2013. Em uma notícia publicada pela
Empresa Brasil de Comunicação (EBC) cerca de dois meses depois da inauguração da Câmara,
a coordenação da instituição afirmou que eram atendidas em média cerca de 60 pessoas por dia
e que a principal demanda dos usuários era o fornecimento de medicamentos, o qual chegou a
quase 60% do total de solicitações. Ainda de acordo com os dados fornecidos pela coordenação
ao jornalista, nos primeiros trinta dias de funcionamento, houve a “solução administrativa” de
511 demandas, o que resultou em uma redução de 37% o no número de novos processos
judiciais de saúde contra o Estado (Chagas, 2013).
Guimarães e Palheiro (2015) demonstram que, ao longo de 2014 – ou seja, após um ano
de funcionamento do órgão –, a CRLS atendeu quase 9 mil assistidos, os quais demandaram
mais de 12 mil “produtos”. Segundo os autores, os números de “resoluções administrativas”
disponibilizados pela Câmara indicam que cerca de 37% das demandas apresentadas pelos
usuários foram resolvidas de forma administrativa, isto é, sem que a Defensoria Pública
precisasse ajuizar uma ação. Dessas demandas, pouco mais da metade (54,33%) eram
solicitações de medicamentos, como consta nas seguintes tabelas:
239

Tabela 4 – Atendimentos realizados pela CRLS em 2014

DPE DPU TOTAL


Quant. % Quant. % Quant. %
Assistidos 3.575 40,25% 5.207 58,62% 8.882 98,87%
Produtos demandados 6.266 50,18% 6.220 49,82% 12.486 100%
Enc. Administrativo 2.250 40,47% 678 29,24% 2.928 37,17%
Enc. para a Defensoria 3.341 60,10% 1.609 69,38% 4.950 62,83%
Abandono - - - - 100 1,13%

Fonte: Adaptada de Guimarães e Palheiro (2015).

Tabela 5 – Produtos solicitados na CRLS em 2014

Enc. para a Enc.


Produto Geral
Defensoria Administrativo
Consultas 7,78% 17,09% 82,91%
Exames 6,45% 24,72% 75,28%
Internação 2,99% 32,98% 67,02%
Cirurgias 3,64% 35,87% 64,13%
Procedimento 0,50% 37,93% 62,07%
Alimento Infantil 1,80% 44,27% 55,73%
Insumos 9,55% 58,85% 41,15%
Medicamentos 54,53% 73,69% 26,31%
Equipamentos 1,86% 80,34% 19,66%
Tratamento Oncológico 4,90% 80,63% 19,37%
Transferências 4,72% 90,20% 9,80%
Transporte 0,40% 92,31% 7,69%
Itens de Nutrição 0,54% 97,44% 2,56%
Home Care 0,21% 50% 0
Cosméticos 0,08% 0 0
Outros 0,05% 0 0
Total 100 % 62,83% 37,17%

Fonte: Adaptada de Guimarães e Palheiro (2015).


240

Segundo reportagens, artigos acadêmicos e notas publicadas por órgãos administrativos,


o percentual de casos solucionados administrativamente pela CRLS foi aumentando ao longo
dos anos. Em junho de 2017, por ocasião da inauguração de um órgão semelhante à CRLS no
município de Belford Roxo, o jornal O Globo publicou uma pequena reportagem sobre a
quantidade de litígios que a Câmara havia resolvido através da “mediação” e “conciliação”
desde o início de suas atividades. Diferentemente dos dados apresentados por Guimarães e
Palheiro (2015), o jornal informou que o percentual de resoluções administrativas de 2014 foi
de 34,3%, como demonstrado no seguinte gráfico:

Gráfico 15 – Resolução administrativa de demandas na CRLS (2013-2017)


70

60 57,9%
53,1%
50
45,2%

40
35,3% 34,3%

30

20

10

0
2013 2014 2015 2016 2017 (até junho)
Fonte: (Brunet, 2017).

A dissertação de Polakiewicz (2018) traz dados mais recentes sobre o perfil das
demandas na judicialização da saúde na Justiça estadual. Ao analisar os processos judiciais no
TJRJ referentes a pedidos de medicamentos e insumos nos últimos anos, o autor constatou que
os fármacos não padronizados pelo SUS e os ainda não registrados pela ANVISA correspondem
a uma pequena porcentagem do total de medicamentos que são solicitados pela via judicial. A
categoria “outros” – na qual estão incluídos os remédios que deveriam estar disponíveis na rede
pública de saúde – representa a esmagadora maioria dos itens demandados, como é possível ver
na seguinte tabela:
241

Tabela 6 – Ações Judiciais Referentes à judicialização de medicamentos e insumos


relacionados ao SUS no TJRJ (2015-2017)
ASSUNTO 2015 2016 2017
Medicamento não padronizado pelo SUS 4.432 4.352 3.722
Medicamentos – Outros 240.401 255.181 219.325
Medicamento sem registro junto à Anvisa 313 513 325
Fornecimento de leite 3.040 2.921 2.031
Fornecimento de fraldas 1.566 1.583 1.114
Equipamento médico-hospitalar 1.560 1.412 945
Fornecimento de insumos – Outros 10.129 9.500 6.753
Medicamentos e outros insumos de saúde –
33.930 40.299 32.633
Juizados Fazendários

Fonte: Adaptada de Polakiewicz (2018).

Apesar dos esforços de diferentes órgãos para reduzir a judicialização da saúde no Rio
de Janeiro e dos dados sobre a CRLS indicarem um percentual cada vez maior de casos
resolvidos sem a necessidade de uma “intervenção judicial”, o número total de ações de saúde
em andamento no TJRJ só vem aumentando ao longo dos últimos anos. Segundo as estatísticas
disponibilizadas pelo Comitê Estadual de Saúde do Tribunal, aproximadamente 69% das ações
judiciais protocoladas são referentes a pedidos de medicamentos variados e insumos como leites
especiais para crianças alérgicas e fraldas. A evolução do acervo geral dos processos de saúde
em que algum ente do Estado figura como parte é a seguinte:

Gráfico 16 – Série histórica do Acervo Geral. Competências: Fazenda Pública e Juizado


Fazendário (2013-2018)
60.000
49.178 50.833
50.000 44.998
43.001
39.557
40.000 36.099

30.000

20.000

10.000

0
2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: Adaptado do Comitê Estadual de Saúde do TJRJ.
242

Em uma notícia sobre o levantamento feito pelo Comitê, o crescimento na quantidade


de ações ajuizadas é apresentado como uma consequência direta da “crise econômica que assola
o Rio de Janeiro”. Segundo a reportagem, a crise estaria afetando tanto os serviços públicos de
saúde – os quais estavam recebendo cada vez menos recursos – quanto os cidadãos em geral –
que com a recessão econômica e o aumento do desemprego deixaram de poder arcar com os
custos de um plano privado de saúde e de medicamentos de uso contínuo. A matéria contou
também com entrevistas com a coordenadora do Núcleo de Fazenda Pública da Capital da
Defensoria Pública, Samantha Monteiro de Oliveira, e com o juiz do TJRJ especializado em
direito médico, Vitor Moreira Lima. A defensora corroborou a ideia de que o crescimento da
judicialização tinha a ver com os efeitos da crise na “economia doméstica” das pessoas e das
famílias. Já o juiz, acrescentou que o problema estava também nas decisões tomadas pelos
gestores estatais, em especial os do nível municipal. De acordo com Lima, seria o “abandono”
do atendimento na Atenção Primária à saúde que seria a causa desse quadro de “judicialização
extrema” (Carvalho e Ramalho, 2019).
A ideia de que a crise exerce um importante papel no desenho da judicialização da saúde
no Rio de Janeiro foi também aventada pelos coordenadores do levantamento mais recente do
CNJ acerca do fenômeno no Brasil. De acordo com os dados coletados pelos pesquisadores, há
uma maior quantidade de processos judiciais de saúde em andamento na 2ª instância do que na
1ª no estado do Rio de Janeiro. Além disso, esses números mostram que pouco mais da metade
da litigância em saúde na Justiça estadual é contra a rede pública de saúde, como é possível
observar na seguinte tabela:

Tabela 7 – Distribuição de processos contra a Saúde Pública e Suplementar


no estado do Rio de Janeiro

Processos contra a Processos contra a


Instância Saúde Suplementar Saúde Pública Total

Quantidade % Quantidade %
1ª Instância 27.827 46% 32.113 54% 59.940

2ª Instância 40.714 43% 53.950 57% 94.664

Fonte: Adaptada de Azevedo e Aith (2019).


243

Um dos principais resultados dessa investigação nacional foi a percepção de que existem
certas recorrências regionais quando se observa a judicialização da saúde, as quais fazem com
que o fenômeno se configure de diferentes maneiras nas distintas áreas do país. Em estados
como São Paulo, Ceará e Pernambuco, cujas populações apresentam uma cobertura por plano
de saúde mais ampla, a maior parte das demandas judiciais são feitas contra empresas e
organizações privadas de saúde suplementar. Os dados coletados pelos pesquisadores apontam
o Rio de Janeiro como uma exceção a esses casos, pois, mesmo que uma parte significativa da
população tenha acesso aos serviços privados de saúde, a quantidade de pleitos relativos ao
SUS é maior do que a solicitada aos planos de saúde. A hipótese dos autores para o “caso
atípico” do Rio é que este “pode eventualmente ser explicado pela elevada crise fiscal, que
compromete já há mais de quatro anos a qualidade e cobertura da saúde pública, justificando-
se, assim, o elevado grau de participação de casos relativos ao sistema público.” (Azevedo e
Aith, 2019).
Conforme mencionado anteriormente, o impacto da crise da saúde pública era um dos
assuntos predominantes no período em que realizei o trabalho de campo na CRLS. Os
problemas enfrentados pela rede pública de saúde no Rio de Janeiro foram em inúmeras
ocasiões o principal tema das conversas travadas entre funcionários e assistidos. A própria
quantidade de pessoas que era atendida diariamente pelo órgão havia aumentado
consideravelmente. Enquanto no primeiro ano de funcionamento da Câmara esse número girava
em torno de 60 pessoas por dia, em 2017, esse quantitativo ficava sempre entre 90 e 100
pessoas.
Para aqueles que trabalhavam na instituição desde a sua inauguração, as mudanças tanto
no perfil das demandas quanto dos demandantes eram perceptíveis. Antes da crise, as principais
solicitações atendidas pela DPU era relativas a cirurgias, colocação de próteses e realização de
procedimentos de média e alta complexidade; atualmente, a maior parte dos pedidos é referente
aos medicamentos para pacientes portadores de algum tipo de câncer que estão em falta nos
hospitais e institutos federais, assim como aos diferentes tipos de insulina e insumos para sua
aplicação e medição dos níveis de glicose na corrente sanguínea, cuja distribuição vem sendo
feita de maneira irregular desde meados de 2014.
O mesmo acontece com os requerimentos atendidos pelas funcionárias da DPE-RJ. Se
no primeiro ano de funcionamento da Câmara os profissionais de análise técnica da Secretaria
de Estado de Saúde (SES) atendiam principalmente os casos de pacientes que demandavam
medicamentos que faziam parte das listas do SUS, mas que por alguma razão não constavam
nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) indicados para a patologia que os
244

acometiam, ou ainda, que solicitavam fármacos não incorporados ao SUS; em 2017, esses
funcionários lidavam basicamente com pedidos de fornecimento de medicamentos de uso
contínuo que estavam em falta na RIOFARMES e com a escassez de insumos e medicamentos
básicos na rede municipal de saúde, tais como fraldas geriátricas, gaze, esparadrapo, remédios
para hipertensão etc.
Foi nessa conjuntura de alegações de crise por parte dos gestores públicos, políticos da
oposição e especialistas; aumento da quantidade de litígios de demandas sanitárias; escassez e
falta generalizada de profissionais de saúde, medicamentos e insumos etc. que realizei meu
trabalho de campo. Era para fugir dos efeitos e/ou solucionar problemas causados pela crise nos
serviços e políticas públicas de saúde que a maior parte das pessoas buscava o atendimento da
CRLS. Era para tentar conter e controlar essa nova “onda” de judicialização da saúde que as
“resoluções administrativas” propostas pela Câmara deveriam servir, como abordarei no
capítulo seis.
Em suma, a crise da saúde inaugura uma nova área no fenômeno da judicialização da
saúde no Rio de Janeiro ao alterar não só a quantidade de litigantes, mas também a qualidade
dos litígios. Ao mesmo tempo, a judicialização também é mobilizada como uma resposta aos
impactos da crise. Ou seja, o enquadramento de crise configura o contexto contemporâneo da
atuação institucional da Câmara e se soma aos problemas de “excesso de judicialização” e
“morosidade do Judiciário”, para os quais a CRLS já precisava oferecer uma resposta desde a
sua inauguração.
245

CAPÍTULO 5

“Todos saem daqui com uma resposta no mesmo dia”:


a estrutura e o funcionamento da CRLS

O escopo deste quinto capítulo é apresentar o órgão no qual realizei minha etnografia,
descrever sua estrutura física e o seu funcionamento em termos gerais. A Câmara de Resolução
de Litígios de Saúde ocupa um imóvel de aproximadamente 760 m², estruturado em três andares
– subsolo, loja e sobreloja – anexado a um prédio localizado na Rua da Assembleia, no Centro
da cidade do Rio de Janeiro. O imóvel em que se localiza a CRLS é de propriedade da
Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ), cuja aquisição se deu por meio de
desapropriação. O pagamento de indenização ao proprietário anterior, a reforma do imóvel e o
fornecimento do mobiliário básico para a implantação da Câmara foram financiados pela PGE-
RJ. Além disso, como mencionado acima, a Procuradoria é também responsável pelos custos
mensais de manutenção do espaço. Os outros órgãos que compõem a CRLS fornecem materiais
de informática e escritório, tais como computadores, impressoras, cartuchos de tinta, papel para
impressão, canetas, grampeadores etc.
O acesso à CRLS é feito através de uma pesada porta dupla de um vidro levemente
escurecido. Essa porta possui dobradiças que a fecha automaticamente aos poucos depois de
aberta. Do lado de fora dessa espécie de “vitrine” há também uma porta de rolar de metal que
é fechada após o fim do expediente e protege a estrutura de vidro. Ao entrar no hall da Câmara,
as pessoas se deparam com duas escadas: uma em frente à porta principal, que desce para o
subsolo; e outra à esquerda, que dá acesso ao primeiro andar. Além das escadas, há também um
elevador para o uso exclusivo de pessoas com dificuldades de mobilidade e uma mesa na lateral
esquerda na qual fica o segurança da instituição e a ascensorista de plantão.
246

Figura 4 – Entrada da CRLS

Fonte: Assessoria de Comunicação/PGE.

Figura 5 – Hall da CRLS

Fonte: elaboração própria.

É de extrema importância destacar como se dá a organização do espaço físico da


Câmara, uma vez que a separação e a composição dos ambientes refletem não só a divisão dos
setores que a compõem – isto é: triagem, atendimento, análise técnica e retorno –, mas também
os ideais que norteiam o funcionamento do órgão como um todo. Uma das primeiras coisas que
chamam a atenção é o fato da missão institucional da CRLS estar literalmente inscrita em sua
estrutura física, como dito anteriormente. Palavras como entendimento, acordo, eficácia,
parceria, resolução, paciência, comunicação etc.; e frases como “resolução em saúde: é
247

conversando que a gente se entende” e “o poder da união de vários entes com ações individuais
que geram uma força coletiva para sua resolução de saúde” são encontradas nas paredes de
todos os andares e ambientes da Câmara, como é possível observar nas fotografias a seguir.

Figura 6 – Parede interna da CRLS

Fonte: acervo do autor.

Figura 7 – Escada interna da CRLS

Fonte: acervo do autor.


248

Figura 8 – Parede interna da CRLS Figura 9 – Parede interna da CRLS

Fonte: acervo do autor. Fonte: acervo do autor.

O atendimento ao público da CRLS funciona de segunda a sexta-feira, das 10h às 15h,


sendo permitida a entrada de “casos urgentes” até as 17h. Após o horário de encerramento do
atendimento, os assistidos permanecem aguardando a apreciação de suas demandas dentro da
CRLS. É comum ver pessoas esperando o parecer dos seus pedidos até as 17h ou 18h, a
depender da quantidade de senhas distribuídas no dia. Como é veiculado tanto nas páginas
institucionais que falam sobre a CRLS quanto nos discursos dos funcionários do órgão, todas
as pessoas que passam pela Câmara saem de lá com uma “resposta no mesmo dia”, ou seja, o
órgão só fecha quando o último assistido do dia tem o seu atendimento concluído.
A composição dos funcionários da CRLS é bastante diversificada. Cerca de 100 pessoas
trabalham na Câmara ao todo, entre atendentes, analistas técnicos, seguranças, auxiliares de
serviços gerais, estagiários etc. Há uma média de 60 funcionários por dia na instituição, pois
uma parte dos funcionários não trabalha no órgão todos os dias da semana. A maioria dos
setores se organiza por plantões, de modo que apenas as auxiliares de serviços gerais e as
atendentes da DPU e da DPE-RJ cumprem uma carga horária de 40h semanais e, por conta
disso, trabalham diariamente na CRLS. Os outros funcionários trabalham em regimes de escalas
e/ou turnos, de modo a dividir sua carga horária semanal em dois ou três dias.
249

Existem cargos comissionados (como é o caso de alguns funcionários oriundos da DPE-


RJ), funcionários concursados de nível médio e superior (como é o caso da maioria dos analistas
técnicos), terceirizados de todas as ordens (como seguranças, auxiliares de serviços gerais,
copeiras e ascensoristas) e estagiários do curso de Direito que atuam tanto na DPE-RJ, quanto
na DPU. Quanto aos funcionários com nível superior, as áreas de formação também variam.
Assim, trabalham na CRLS farmacêuticos, médicos, assistentes sociais, nutricionistas etc. Não
é incomum que os funcionários de nível superior possuam duas matrículas públicas e/ou tenham
mais de um vínculo empregatício. Por exemplo, quase todos os médicos do setor de análise
técnica também atendem em consultórios privados ou trabalham em hospitais públicos nos dias
em que não estão na Câmara.
É importante salientar que não existe um setor de recursos humanos na Câmara, tendo
em vista que a instituição não possui funcionários próprios, mas sim pessoas ligadas a outros
órgãos e lotadas/designadas para ocupar determinados cargos na CRLS. Essa configuração faz
da Câmara um órgão público com algumas peculiaridades. Uma delas é que tal situação faz
com que os funcionários sejam submetidos a múltiplas chefias e formas de organização da
rotina profissional, tendo que, por vezes, manejar suas ações de acordo com diferentes objetivos
e planos de trabalho. Outra particularidade da CRLS é que os empregados de cada uma das
instituições que compõem a Câmara recebem seus salários e benefícios diretamente da fonte
contratante original. Este quadro gera não apenas disparidades em relação aos vencimentos de
pessoas que realizam trabalhos muito semelhantes, mas também influencia a questão da
estabilidade do pagamento, uma vez que, por exemplo, a grande maioria dos servidores públicos
e terceirizados do estado do Rio de Janeiro receberam seus salários e benefícios de maneira
irregular entre os anos de 2016 e 2017, momento agudo da crise econômica estadual.
Da triagem ao retorno da análise, os assistidos da CRLS costumam aguardar uma média
de três horas ao todo. Com relação ao tempo médio do atendimento, acho importante destacar
que enquanto para a equipe de assistentes sociais esse tempo é considerado demasiadamente
longo para que as pessoas obtenham respostas para suas demandas; funcionários de outros
setores – como, por exemplo, os analistas técnicos – acreditam que o objetivo da CRLS de dar
aos usuários uma resposta no mesmo dia representa um verdadeiro “sinal de eficiência” quando
comparado à “morosidade” tanto dos processos judiciais propriamente ditos, quanto das longas
filas de espera nas instituições públicas de saúde.
Há um sistema interno e de uso exclusivo da CRLS que faz a gestão de todas as fases
do atendimento dos assistidos chamado de “Sistema Câmara de Saúde”. Esse sistema teve seu
desenvolvimento financiado pela SES e não apenas controla o fluxo de atendimento, mas
250

também produz o banco de dados utilizado para as avaliações periódicas do funcionamento da


instituição. Além disso, essa plataforma armazena todos os documentos que são trazidos pelos
sujeitos e digitalizados durante o atendimento, bem como aqueles que são gerados pelos
próprios funcionários da CRLS, como por exemplo, os pareceres técnicos dos casos.
O capítulo encontra-se dividido em quatro seções, as quais correspondem aos setores da
CRLS. Com esse modo de organização, busco replicar o fluxo básico de atendimento na Câmara
e o caminho percorrido pelos papéis que compõem o “caso” de um assistido. Assim, em um
primeiro momento, a pessoa passa por uma triagem para saber qual é a instituição responsável
pela possível judicialização de sua demanda, caso isso venha a ser necessário; em seguida, ela
é enviado para o setor de atendimento (“sobe para o atendimento”) para ter o seu pedido inserido
no sistema da CRLS pelas funcionárias de uma das duas Defensorias Públicas que atuam na
instituição e, uma vez que sua demanda tenha sido devidamente registrada, ela aguarda na sala
de espera ser chamada novamente; enquanto isso, a documentação apresentada é enviada para
o setor de análise técnica (“sobe para análise”), que ficará responsável por oferecer alguma
“resolução administrativa” para a questão ou embasar o argumento a ser apresentado por
defensores caso seja preciso judicializar; após a elaboração do parecer técnico, esse documento
é enviado para o setor de retorno da análise (“desce para o retorno”), cujas funcionárias são
incumbidas de explicar as informações contidas no documento para os assistidos, bem como
encaminhar os sujeitos de acordo com o que foi indicado pelo analista da Câmara.

Figura 10 – Fluxo de atendimento na CRLS

Fonte: elaboração própria.


251

5.1 – Triagem

Quando a senha 27 foi anunciada na caixa de som, Célia se dirigiu ao guichê de número
2. A assistida era uma mulher de 43 anos que morava na Vila da Penha com o marido e o filho.
Ela apresentou seus laudos e receituários médicos para solicitar o medicamento Azatioprina,
que alegou não receber do Estado há cinco meses. Célia estava fazendo acompanhamento no
Hospital Federal de Bonsucesso após ter o rim transplantado. Ela pediu que alguém “a
ajudasse”, pois ela não poderia interromper o tratamento e estava “se virando” para comprar
a medicação, a ponto de estar correndo o risco de ser despejada por conta dos três meses de
aluguel atrasados. Após ouvir seu relato, a assistente social registrou sua demanda e pediu que
ela aguardasse ser chamada para o atendimento e tentou consolá-la dizendo que algo seria
feito para que sua situação fosse resolvida.

O filho de Lauro chegou à CRLS por volta das 11h da manhã. Ao se dirigir até a mesa
onde são distribuídas as senhas, foi questionado sobre sua demanda e se teria trazido a
documentação necessária para a abertura de procedimento, o que foi confirmado por ele. Após
a primeira hora de atendimento, 32 pessoas já haviam passado por ali, de modo que ele pegou
a senha 33. No entanto, nem todas essas pessoas já haviam sido chamadas para a triagem.
Cerca de 15 minutos depois, a senha do filho de Lauro foi chamada. No guichê, o rapaz
informou que seu pai estava precisando realizar com urgência um exame de tomografia com
contraste, pois havia suspeita de um tumor na bexiga. Ele relatou que os médicos do hospital
sugeriram que ele procurasse a CRLS para tentar “agilizar” o exame de seu pai. A fila no
hospital era de aproximadamente quatro anos para a realização do procedimento e, devido ao
seu quadro do clínico, Lauro não poderia esperar todo esse tempo. Após apresentar toda a
documentação, a assistente social solicitou que ele aguardasse ser chamado novamente.

Por volta do meio dia, a senha 46 foi chamada. A senhora que se dirigiu ao guichê
aparentava ter cerca de 50 anos. A filha de Maria da Graça, moradora do bairro de
Cascadura, no subúrbio do Rio, é responsável por cuidar de sua mãe, uma senhora idosa que,
por conta de seu estado de saúde, passa o dia inteiro deitada, levantando somente para tomar
banho. Além da mãe, a mulher toma conta também dos seus três netos para que suas duas filhas
possam trabalhar e ajudar com as despesas da casa. Ela falou que tinha ido até a Câmara para
pedir fraldas geriátricas, pois esse item estava em falta na Clínica da Família há mais de dois
meses. A ponto de começar a chorar, a filha de Maria da Graça pediu desculpas à funcionária
e disse que pedir fralda poderia parecer pouca coisa, mas que ela não tinha condições de parar
a todo momento para ajudar a sua mãe a se levantar para ir ao banheiro e que pagar mais de
R$ 100 por mês em fraldas estava prejudicando as contas da família. Comovida, a assistente
social interrompeu a mulher e disse que ela não precisava pedir desculpas por nada, que ela
estava absolutamente certa de ter vindo até a Câmara e que receber as fraldas gratuitamente
era um direito de sua mãe. Ela classificou o atendimento da senhora como prioritário na DPE-
RJ e falou que em breve ela seria chamada novamente. Para tentar consolar a mãe de Maria
da Graça, a funcionária pediu que ela não se preocupasse, pois ela conseguiria resolver a
situação.
252

Descendo as escadas em frente à porta de entrada da Câmara, no subsolo, encontram-se


os quatro guichês onde atendem as funcionárias do setor de triagem – embora apenas três deles
funcionem –, a mesa de distribuição de senhas e a área que funciona como sala de espera com
cerca de 60 cadeiras. As mesas são agrupadas em dois conjuntos de dois computadores
separados por finas baias, com uma larga pilastra entre eles. No corpo da pilastra que separa os
dois conjuntos de guichês e na parede que há entre a mesa de distribuição de senhas e os guichês
há duas grandes televisões e uma caixa de som fixadas. Esses instrumentos são ligados pela
manhã e servem para anunciar visual e sonoramente para qual guichê o assistido deve se dirigir.
Além disso, no subsolo também há o único bebedouro que os assistidos podem utilizar,
o almoxarifado da instituição e uma mesa do projeto desenvolvido pelas assistentes sociais
chamado “Câmara de Leitura”. Nessa mesa, ficam disponíveis alguns livros de literatura e
folhetos de campanhas e serviços públicos de saúde. De acordo com as assistentes sociais, a
ideia da surgiu da constatação de que os sujeitos passam longas horas esperando o atendimento
ser concluído. Assim, elas incentivam os funcionários e assistidos da Câmara a doarem livros
para que as pessoas possam ler enquanto aguardam. Apesar de ter um aviso dizendo que não é
permitido levar os livros para casa, esses desaparecem constantemente, sendo motivo de
reclamação por parte das assistentes sociais.

Figura 11 – Subsolo da CRLS

Fonte: elaboração própria.


253

A equipe da triagem é composta por cinco assistentes sociais concursadas da Fundação


Saúde do Governo do estado do Rio de Janeiro49 que trabalham em um regime de escala de dois
ou três dias por semana. Além das assistentes sociais, há também uma funcionária de cargo
comissionado da DPE-RJ que é responsável pela distribuição de senhas e que trabalha na CRLS
diariamente. Nos dias em que essa funcionária está ausente, outra pessoa ligada à Defensoria
Pública estadual assume a sua posição na distribuição de senhas.
O primeiro passo do atendimento na CRLS é o cadastro do usuário, momento no qual
ele recebe uma senha que será utilizada durante todo o período. A distribuição das senhas se dá
por ordem de chegada na fila. De certo modo, esse cadastro pode ser considerado como uma
“pré-triagem”, pois quando a funcionária que o realiza percebe que a demanda apresentada pelo
assistido não pode ser atendida na CRLS ou quando a pessoa não está com todos os documentos
necessários para a abertura da solicitação, ela “desencoraja” o prosseguimento do cadastro.
Algumas vezes, mesmo quando percebe que será possível cadastrar o usuário, a responsável
pela distribuição de senhas “deixa a pessoa passar” para obter alguns encaminhamentos e
informações mais precisas com as assistentes sociais da triagem, como por exemplo, quando o
caso é uma solicitação de internação de um familiar que é dependente químico.
Na mesa da distribuição de senhas há uma série de instruções fotocopiadas que são
eventualmente entregues a algum assistido. Dentre esses papéis estão lista de documentos
necessários para abertura de processo, horário de funcionamento da CRLS, endereços de
atendimento da DPE-RJ nos bairros do município do Rio de Janeiro e nas outras cidades do
estado, abrangência dos postos de atendimento da DPU no estado do Rio de Janeiro, entre
outros.
Após o cadastro, os usuários passam efetivamente por uma triagem. O atendimento no
setor também é feito por ordem de chegada, de acordo com as senhas distribuídas. É no
momento da triagem que é verificado se a demanda da pessoa é de competência da CRLS e se
o assistido/a está com todos os documentos necessários para a “abertura de solicitação”. Quando
o caso é considerado como fora da alçada da Câmara, as profissionais buscam encaminhar o
sujeito para outras instituições e/ou fornecem dicas de como proceder em determinadas
situações para ter suas demandas atendidas. Quando a pessoa não está com toda a
documentação, as assistentes sociais não necessariamente negam a inserção do pedido no

49
A Fundação Saúde do Governo do estado do Rio de Janeiro é uma empresa pública vinculada à Secretaria de
Estado de Saúde (SES) e é responsável pela gestão de algumas unidades públicas de saúde no Estado do Rio de
Janeiro. Dentre suas atribuições, estão a realização de concursos públicos para contratação de pessoas para os
quadros da saúde no Estado e a gestão da alocação desses funcionários.
254

sistema, mas também “desencorajam” ou “desaconselham” o assistido a dar prosseguimento no


atendimento e pedem pra ele retornar em outro momento, munido de todos os documentos.
Geralmente, esse “desencorajamento” se dá através da explicação de que a pessoa
provavelmente ficará lá horas esperando para que em uma das próximas etapas – isto é, no
atendimento ou na análise – ele tenha sua solicitação recusada por conta da ausência de algum
documento. Se a pessoa insiste em ser atendida, a depender do momento do dia, as profissionais
evitam discutir e dão continuidade ao trabalho.
É no processo de triagem que é decidido para qual setor da CRLS a pessoa será
direcionada e, consequentemente, qual instituição será responsável tanto pelo seu atendimento,
quanto por executar certos procedimentos em uma eventual judicialização da demanda. A
lógica da distribuição dos assistidos entre as Defensorias segue um critério de origem do
paciente, isto é, se o sujeito apresenta algum laudo ou receituário oriundo de um hospital ou
instituto federal, ele é direcionado para a DPU; caso ele seja atendido por unidades municipais,
estaduais ou privadas de saúde, ele é encaminhado para atendimento na DPE-RJ.
Na primeira hora do dia, os atendimentos na triagem costumam ser feitos de modo
apressado, pois sempre há mais ou menos 20 pessoas na fila antes da CRLS abrir. Nesse
momento, as assistentes sociais costumam apenas verificar se os documentos estão todos em
conformidade com o exigido. Com o passar das horas e a diminuição do movimento, os
atendimentos no setor passam a demorar mais, pois são feitos “com mais calma”. É quando o
fluxo de assistidos diminui que as assistentes sociais conseguem realizar – ainda que sempre
longe das condições que elas consideram ideais – o que elas chamam de “escuta qualificada” e
“acolhimento”, coisas que são elencadas como parte de suas obrigações enquanto profissionais
do Serviço Social.
É também na triagem que são estabelecidas as prioridades de atendimento. Os critérios
utilizados para a definição dos casos prioritários geralmente ocasionam algum tipo de conflito
entre os assistidos e as assistentes sociais. Além dos parâmetros legais de priorização – ter 60
anos ou mais, estar amamentando ou com criança de colo etc. – há também “critérios de
urgência”, os quais são aplicados aos casos de transferência ou internação em que a pessoa
esteja correndo risco de vida. Contudo, alguns dos assistidos que vão à CRLS resolver suas
próprias demandas – o que é bastante incomum – tentam utilizar suas patologias ou condição
de saúde como forma de argumentação para solicitar atendimento prioritário, quase sempre
dizendo que estão se sentindo mal e que não aguentarão aguardar para obter uma resposta. Esses
casos geralmente terminam com as assistentes sociais explicando que todos ali possuem
problemas de saúde e que isso não pode ser um critério para a priorização no atendimento.
255

A organização da fila de atendimento após a triagem se dá de modo automatizado, pois


é definida pelo próprio sistema de gestão de fluxo da CRLS. Quando clicam em “atender”, as
assistentes possuem três opções principais de encaminhamento: DPE-RJ, DPU ou “abandonar
senha”. Se o caso é para “abandono de senha”, há um campo a ser preenchido com o motivo
dessa ação. Geralmente, o descarte de uma senha se dá em situações em que a demanda não é
da alçada da CRLS; quando o assistido não possui os documentos mínimos necessários; ou
quando ninguém responde ao chamado. Se o caso é para atendimento na DPU, existem quatro
opções disponíveis: primeiro atendimento, retorno, primeiro atendimento prioridade e retorno
prioridade; já para a DPE-RJ as opções são três: atendimento, retorno e prioridade.
Após a definição de qual setor e qual o tipo de atendimento, é o sistema que determina
o lugar da pessoa na fila. Ainda que a os assistidos sejam chamados pelo número da senha e
nome completo nas etapas e setores seguintes, é nesse momento de triagem que ocorre a
primeira transformação no modo como uma pessoa é codificada pela CRLS. Quando um
assistido tem sua demanda cadastrada no Sistema Câmara de Saúde, para fins internos, ele deixa
de ser uma “senha” e passa a ser um “número de solicitação” gerado pela própria plataforma de
gerenciamento. Esse número é utilizado para localizar a demanda de um assistido no sistema.
É importante destacar que todas as vezes que uma pessoa vai até a Câmara, é gerado um novo
número de solicitação que fica atrelado ao nome e número de CPF do assistido, sendo possível
consultar quantas vezes e em quais datas aquele mesmo sujeito – ou, mais provavelmente, um
dos seus representantes – compareceu ao órgão. É também o número de solicitação a unidade
contabilizada na produção dos dados estatísticos da CRLS, como discutirei em outro momento.
O número de solicitação é composto por 14 dígitos, ordenados da seguinte maneira: ano,
mês, data e quantidade de solicitações abertas naquele dia até o momento do registro. O número
final – ou seja, os últimos dois ou três dígitos – não necessariamente coincide com a senha
adquirida pela pessoa na triagem, mas geralmente é próximo. Ao clicar no botão “finalizar”, o
caso é remetido para uma das defensorias e a tela então volta para o ponto de partida, de modo
que outra senha possa ser chamada.

Figura 12 – Composição do Número de Solicitação gerado pelo sistema da CRLS

Fonte: elaboração própria.


256

5.2 – Atendimento

Logo que um assistido se retirou, a funcionária do atendimento da DPU clicou no botão


“atender” na página do sistema. A próxima pessoa na fila era Célia. Ao chegar no guichê, ela
informou que estava há mais de cinco meses sem receber o medicamento Azatioprina, o qal
estava em falta tanto na farmácia do Estado, quanto no hospital onde ela fazia
acompanhamento. Após registrar a narrativa e as informações pessoais de Célia, a funcionária
solicitou seus documentos e disse que precisaria digitalizá-los. Dentre os diversos papéis
solicitados, Célia não trazia consigo os comprovantes de renda do seu marido e do filho. Em
seguida, a atendente imprimiu os documentos que Célia precisava assinar e informou que se o
seu caso fosse encaminhado para a Defensoria para ser judicializado, ela teria de trazer os
comprovantes de renda das outras pessoas que compõem o seu núcleo doméstico. Além disso,
a funcionária comentou também que seria bom se ela trouxesse uma declaração negativa do
hospital informando que não havia previsão para a regularização do estoque do medicamento.
Célia assinou os documentos, anotou o que a funcionária havia dito e voltou para o subsolo
para aguardar ser chamada novamente.

Por volta de 12:30 o monitor e o sistema de som localizados no subsolo anunciaram


pausadamente: “senha 20. Lauro Aguiar da Costa. Compareça ao guichê 10”. Imediatamente
o filho de Lauro se dirigiu ao primeiro andar e foi até a mesa na qual estava uma das
estagiárias da DPU. Ele explicou que estava ali para solicitar um exame de tomografia com
contraste para seu pai, que estava em casa extremamente debilitado e com suspeita de câncer
na bexiga. Ele comentou também que foram os próprios médicos do hospital que o
aconselharam a buscar a ajuda da CRLS. Enquanto o filho de Lauro falava, a estagiária
anotava sua narrativa em um documento em branco no computador. Em seguida, ela pediu que
ele entregasse os seus documentos de identificação e os do seu pai, além da documentação
médica para comprovar a necessidade do exame. Após transcrever algumas das informações
médicas contidas nos papéis trazidos pelo filho do assistido, ela iniciou os procedimentos de
atendimento no sistema da Câmara. Além disso, ela também abriu a plataforma específica da
DPU para registrar o assistido e suas demandas. Após preencher todas as informações
necessárias para prosseguir o atendimento, ela digitalizou os documentos e pediu que ele
assinasse outros que ela havia acabado de imprimir a partir do sistema da DPU. Por fim, após
digitalizar toda a documentação, ela pediu que ele retornasse ao subsolo e aguardasse ser
chamado novamente para saber a “resposta da análise”.

A filha de Maria da Graça foi atendida por volta de 12:40. Ela disse a atendente que
tinha ido à CRLS porque estava faltando muita coisa na Clínica da Família que fica perto de
sua casa, não só as fraldas geriátricas de sua mãe, mas principalmente medicamentos. A
funcionária comentou que a situação da saúde no Rio de Janeiro estava realmente “muito
crítica” e que pelo que ela estava vendo trabalhando ali na Câmara, parecia que os hospitais
públicos estavam “sem nada”. Enquanto conversavam, a atendente pediu para verificar os
documentos trazidos por ela. Atenta ao que a filha da assistida havia falado sobre a falta de
medicamentos, a atendente mencionou que não havia nenhuma receita de medicamento dentre
257

os papéis entregues, apenas um pedido médico de fraldas geriátricas e que sem a receita, ela
não poderia registrar nenhum medicamento como um dos “produtos” solicitados. A filha de
Maria da Graça respondeu que “graças a Deus” não estava faltando nenhum remédio para
sua mãe, esclarecendo o mal entendido. Após registrar o pedido no sistema da Câmara e
digitalizar toda a documentação trazida, a funcionária pediu que ela aguardasse que dentro
de uma hora ela deveria ser chamada novamente para receber uma resposta.

No primeiro andar – também chamado de loja – encontram-se os guichês de


atendimento, os guichês de retorno e os banheiros que os assistidos da CRLS podem utilizar.
Ao subir as escadas que dão acesso ao primeiro andar, os assistidos se deparam com duas filas
de oito guichês cada, sendo os da direita para atender demandas direcionadas à DPE-RJ e os da
esquerda para o atendimento de questões da alçada da DPU. Na parte superior da parede do
lado direito, há uma televisão que anuncia as senhas chamadas, mas, ao contrário do que
acontece no subsolo, esse aparelho não emite som algum, limitando-se a mostrar apenas os
nomes e senhas na tela.
Assim como no subsolo, os guichês do primeiro andar são separados por finas baias que
não impedem de forma alguma que outras pessoas escutem o que está sendo dito durante o
atendimento, sejam assistidos ou a funcionária ao lado. No guichê número 15 não há
computador e não é incomum que todos os dias ao menos um deles esteja com seu
funcionamento comprometido total ou parcialmente. Após essas duas fileiras de guichês, estão
localizados os banheiros que podem ser utilizados pelos assistidos da CRLS. Há um banheiro
masculino, um feminino e um sem distinção sexual, para o uso exclusivo de pessoas com algum
tipo de deficiência física.
O atendimento após a triagem acontece nos guichês da DPU (5 ao 12) e da DPE-RJ (13
ao 20). Na DPU, há ao todo quatro atendentes fixas – uma concursada e outras três terceirizadas
– mais os estagiários do curso de Direito, que costumam ser de dois a três por dia. A DPE-RJ
também conta com quatro atendentes fixas mais quatro estagiários. As atendentes fixas tanto
da DPU quanto da DPE-RJ trabalham diariamente na CRLS. Os estagiários da DPE-RJ são
fixos e trabalham na Câmara quase todos os dias, já os estagiários da DPU trabalham por escalas
de plantão nos diferentes postos de atendimento da Defensoria, de modo que é muito raro ver
o mesmo estagiário mais de uma vez a cada 15 dias. Ainda que quase todas as pessoas que
trabalham no setor de atendimento já tenham concluído ou estejam cursando o ensino superior,
a contratação desses funcionários tem como requisito a conclusão do ensino médio, ou seja, são
aqueles considerados “técnicos de nível médio”.
258

Figura 13 – Primeiro andar (loja) da CRLS

Fonte: elaboração própria.


259

É no momento do atendimento que o assistido deve especificar sua demanda, relatar sua
história e apresentar os documentos necessários para que sua solicitação seja encaminhada para
o setor de análise técnica: carteira de identidade, CPF, comprovante de residência, comprovante
de renda, laudo e receituário médicos, exames, a “tela do SISREG”50, dentre outros. Quando se
trata de um “primeiro atendimento”, todos esses documentos são digitalizados e anexados ao
cadastro do usuário, passível de localização através do “número de solicitação” gerado no setor
de triagem.
A rotina de atendimento é basicamente a mesma para as duas defensorias: registro da
demanda do usuário – preenchida em um campo do sistema denominado “produto” –,
digitalização dos documentos e envio da solicitação para o setor de análise técnica. Contudo, o
atendimento na DPU possui algumas particularidades. A primeira delas é que além de registrar
todas as informações do assistido no sistema interno da CRLS, as atendentes precisam inserir
o usuário no Sistema de Informações Simultâneas da Defensoria Pública da União (SIS-DPU)
e assim gerar um número de Procedimento de Assistência Jurídica (PAJ) que servirá para o
assistido acompanhar o andamento do seu processo nos casos em que a demanda é efetivamente
judicializada pelos defensores públicos.
Outra particularidade do atendimento prestado pela DPU é que os relatos dos assistidos
são descritos em um campo de preenchimento obrigatório chamado “redução a termo”, que
nada mais é que um resumo da narrativa dos sujeitos. É importante notar como se dá esse
processo de “redução a termo”, já que muito do que é dito pelo assistido não é registrado. Os
casos de primeiro atendimento cuja demanda é somente por um medicamento funcionam como
exemplos de como as histórias dos assistidos são de fato reduzidas a poucos termos, pois existe
um modelo a ser preenchido, no qual não cabe uma narrativa propriamente dita. Na prática, são
transcritas somente os dados necessárias para o para a satisfação de campos burocráticos:
doença/código da CID51; hospital que faz acompanhamento; medicamento e/ou insumos e
quantidade (mensal ou diária); e o número da solicitação na CRLS. Quando se trata de um caso
de falta de medicamento, a narrativa passa a incluir além dessas informações, a data em que a
pessoa parou de receber a medicação. Nesses casos são solicitadas também “declarações

50
O SISREG – ou Sistema Nacional de Regulação – é uma plataforma online do Ministério da Saúde criada para
gerenciar o “fluxo do SUS” e otimizar do uso de recursos na área da saúde. A “tela do SISREG” seria uma espécie
de fotografia das informações inseridas nesse sistema. A solicitação da “tela do SISREG” é feita geralmente aos
assistidos que reclamam da demora para o atendimento e demandam a marcação ou adiantamento de algum tipo
de consulta com especialista, exame médico e/ou cirurgia. Abordarei essa questão adiante.
51
A CID – ou Classificação Internacional de Doenças – é uma publicação da Organização Mundial de Saúde
(OMS) que fornece códigos que padronizam a classificação de doenças para a produção de estatísticas globais
relativas aos problemas de saúde que afetam as populações.
260

negativas”52 fornecidas por instituições de distribuição de medicamentos para que essas sejam
anexadas ao processo.
O trabalho de atendimento das equipes da DPU e da DPE-RJ difere no que diz respeito
aos procedimentos após a judicialização dos casos. A DPE-RJ oferece apenas um atendimento
pré-processual – ou seja, anterior ao ajuizamento da ação –, de modo que a única coisa feita
pelos profissionais após o encaminhamento formal do caso é informar ao assistido o número do
processo e o local para o qual ele deve se dirigir caso tenha alguma dúvida ou necessite de
maiores informações. Já um assistido da DPU precisa retornar à CRLS quando quer se informar
pessoalmente sobre o andamento do seu processo e, assim, precisa passar por todo o
procedimento da Câmara: retirar senha, passar pela triagem e aguardar ser chamado por alguém
do setor de atendimento.
Como é na situação do atendimento que os sujeitos são instados a falar sobre suas
demandas e problemas – ainda que a escuta e o registro do que é dito obedeçam a um roteiro
prévio e significativamente restrito –, não é incomum que aconteçam algumas tensões entre as
funcionárias da CRLS e os assistidos. Muitas vezes, as pessoas desejam rememorar suas
trajetórias a longo prazo, como por exemplo, desde que manifestaram os primeiros sintomas,
passando pelas tentativas de obtenção de um diagnóstico até o que elas vêm enfrentando como
um problema atualmente: a necessidade de uma cirurgia, a falta de um tratamento
medicamentoso, uma preocupação diante de um sintoma persistente etc. Na grande maioria
dessas situações, as funcionárias tendem a não permitir que as pessoas se alonguem muito nas
suas narrativas, uma vez que grande parte dessas informações não são anotadas, já que são
consideradas irrelevantes para o processo de proposição de uma “resolução administrativa”.
Além disso, as equipes de atendimento afirmam não poder deixar um assistido “falar o quanto
quiser” porque sempre há outras pessoas aguardando para serem atendidas.
Outro ponto de tensão entre funcionárias e assistidos diz respeito diretamente ao registro
do que é demandado. Tendo em vista que cabe ao pessoal do atendimento digitalizar os
documentos levados pelos assistidos, as funcionárias buscam inserir no sistema da CRLS
apenas as solicitações que possuem documentação probatória. Contudo, não raro os assistidos
dizem precisar de mais coisas – outros exames, consultas com outros especialistas, dosagens
ou quantidades de diferentes medicamentos, entre outras coisas – do que os profissionais de
saúde prescreveram em seus laudos e receituários. Nessas situações, a funcionária do

A “declaração negativa” é um documento fornecido por uma unidade de saúde responsável pela dispensação de
52

um medicamento e/ou insumo no qual é atestada a falta do item solicitado. Para alguns casos de pedidos de
medicação “em falta”, tal documento é considerado imprescindível para que a situação possa ser judicializada.
261

atendimento tenta dialogar e explicar ao assistido que não adianta ela inserir um pedido que não
tenha uma justificativa atestada em um documento médico, pois quando o caso for remetido ao
setor de análise técnica, o parecerista negará o pedido com base na ausência de comprovação
da necessidade do “produto” demandado. Algumas vezes essa tensão dura por alguns minutos
e pode terminar quando a funcionária diz que não há possibilidade de registrar tal demanda.
Outro caminho possível se dá quando elas resolvem “passar o problema adiante”, isto é, a
atendente anota o pedido do assistido como um dos “produtos” solicitados e deixa a equipe da
análise técnica resolver a questão.
Após o atendimento nos guichês das Defensorias, os documentos digitalizados são
enviados para o setor de análise técnica e o assistido é mandado novamente para a sala de espera
localizada no subsolo. Nesse momento, a atendente pede ao sujeito que ele aguarde ser chamado
pelo pessoal do setor de retorno de análise para receber o parecer elaborado pela análise técnica
acerca da apreciação da sua demanda.

5.3 – Análise Técnica

Célia Vieira Machado era o única pessoa na fila no momento em que uma médica da
equipe da SES atualizou sua página no sistema da CRLS. Ela abriu o registro da assistida, os
documentos anexados e então verificou qual era sua demanda. Por se tratar de um
medicamento incluído na lista do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica
(CEAF) do Estado do Rio de Janeiro, a primeira coisa que ela fez foi verificar se a assistida
possuía cadastro na plataforma da Farmácia Estadual de Medicamentos Especiais
(RIOFARMES) e seu histórico de dispensação. Por meio do CPF de Célia, a analista confirmou
que ela estava sem retirar o medicamento Azatioprina há mais de cinco meses. A médica então
abriu uma planilha compartilhada entre os funcionários da CRLS na qual são registrados todos
os medicamentos que estão em falta no Rio de Janeiro e percebeu que a última consulta acerca
da disponibilidade do medicamento havia sido feita há cerca de uma semana. Ela então enviou
um e-mail para a RIOFARMES questionando se a medicação já havia chegado ou se havia
alguma previsão de quando o estoque o seria reposto. Enquanto esperava a resposta ao e-mail,
a funcionária se levantou, pegou um café e foi ao banheiro. Cerca de 10 minutos depois ela
voltou para sua mesa de trabalho, mas ainda não havia recebido nenhum retorno sobre seu
questionamento. A resposta, que chegou quase 20 minutos depois, não era animadora: o
medicamento ainda estava com estoque zerado e não havia previsão de quando seria
normalizado. Diante disso, a analista abriu o modelo de parecer para o medicamento
solicitado e começou a preencher com algumas informações relativas ao caso de Célia, ou
seja, sua patologia, sua atual condição médica, há quanto tempo estava sem receber a
262

medicação etc. No modelo havia informações técnicas sobre o medicamento e suas indicações,
as quais permaneceram exatamente da mesma forma. Sem a possibilidade de oferecer uma
“solução administrativa”, a médica da análise técnica enviou seu parecer para o setor de
retorno, encaminhando a assistida para a Defensoria Pública.

Lauro Aguiar da Costa teve sua demanda analisada por um farmacêutico da equipe da
SMS. O funcionário da CRLS abriu a solicitação do usuário e seus anexos e após verificar os
documentos médicos, ele leu o que constava no campo “narrativa” do documento digitalizado
pelas atendentes da DPU. Lá estava escrito que o paciente necessitava fazer uma tomografia
com contraste em caráter de urgência e que seu filho alegou que a fila para a realização do
exame no hospital em que Lauro faz acompanhamento era de mais de quatro anos. O
farmacêutico buscou então o número do Cartão Nacional de Saúde do assistido e abriu a
página do SISREG. Ao consultar o sistema de regulação, ele percebeu que não havia nenhum
pedido de exame naquele número de registro. Para não restar dúvidas, ele repetiu a consulta,
mas dessa vez utilizando o número do CPF. Mais uma vez nenhum registro foi encontrado. O
analista mencionou a situação do assistido para os analistas da equipe da SES e perguntou se
o Rio Imagem estava fazendo esse tipo de exame naquele momento. Um dos profissionais disse
que havia ligado para a instituição no dia anterior e que os funcionários haviam informado
que por conta da falta de insumos, nenhum exame com contraste estava sendo realizado. Ao
voltar para sua mesa, o farmacêutico me disse que havia tentado ajudar, mas que sem uma
solicitação registrada no SISREG e com essa situação no Rio Imagem, ele teria que
encaminhar o assistido para sua UBS de referência para que eles inserissem o pedido de exame
no SISREG. Em seguida, ele começou a digitar seu parecer informando que não foi encontrado
nenhum pedido de exame registrado em nome do assistido e que devido ao fato da CRLS não
ser uma porta de entrada do SUS, o assistido deveria retornar à Clínica da Família mais
próxima de sua residência para que a solicitação fosse inserida na plataforma do Sistema
Nacional de Regulação.

O caso de Maria da Graça dos Santos foi analisado por um dos médicos da equipe da
SMS. Apesar de alguns nomes estarem há mais de meia hora na fila da análise, o funcionário
da CRLS escolheu o caso de Maria da Graça para atender, pois este havia sido registrado pela
equipe de triagem como um “atendimento prioritário”. Ao abrir os documentos anexados ao
cadastro da assistida, o profissional verificou se estava tudo de acordo com o que é solicitado.
Eu estava sentado ao seu lado quando ele virou a tela do computador na minha direção e
comentou: “você está vendo aqui a quantidade de fraldas solicitadas? O médico pediu 200
fraldas por mês. Antigamente, a gente nem se importava com isso. Entrava em contato com
quem tivesse o insumo e mandava o assistido ir buscar. Agora, por conta dessa crise, está tudo
em falta e quem tem não quer se solidarizar com quem está sem. Por isso estabeleceram um
limite de 120 fraldas por pessoa ao mês”. Eu então perguntei qual era a justificativa dessa
limitação e ele respondeu: “nós fizemos um cálculo com base em quantas fraldas a pessoa
troca por dia, que é no máximo 4. Nenhum cuidador ou parente troca o idoso mais de 4 vezes
ao dia, isso dá muito trabalho... então, 4 fraldas por dia, 30 dias ao mês, 120 fraldas. Dá e
sobra”. Em seguida, perguntei qual seria o encaminhamento da assistida nessa situação, ao
passo que ele respondeu que nesses casos eles “mandam de volta” para a Clínica da Família
263

para que um novo documento médico fosse preenchido com a quantidade ajustada ou com uma
explicação clínica que justificasse a necessidade de mais de 120 fraldas ao mês. Anotei sua
explicação em meu diário de campo enquanto ele digitava seu parecer no sistema da Câmara:
“ENCAMINHAMOS A SENHORA MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS PARA SUA UNIDADE
DE SAÚDE DE ACOMPANHAMENTO PARA QUE A QUANTIDADE DE FRALDAS
SOLICITADAS SEJA REVISTA OU JUSTIFICADA POR SEU MÉDICO”.

Para acessar o segundo andar da CRLS é preciso subir por uma pequena escada
localizada na lateral esquerda do primeiro andar. Nesse andar – também chamado de sobreloja
– ficam o refeitório, os banheiros de uso exclusivo dos funcionários da Câmara, uma ampla sala
de reuniões, o setor de análise técnica, a coordenação da CRLS e algumas salas que funcionam
como gabinetes para os funcionários das Defensorias Públicas que não trabalham no
atendimento, principalmente os da DPE-RJ.
Antes da inauguração da nova sede da DPU – que também fica no Centro da cidade, a
alguns quarteirões de distância da Câmara –, os defensores públicos da União que lidavam com
demandas judiciais na área da saúde trabalhavam no próprio espaço da CRLS, especificamente
nos gabinetes 1 e 2. Atualmente, o gabinete 2 é utilizado pela secretaria geral da DPU que
trabalha na CRLS e o gabinete 1 funciona como uma espécie de depósito de materiais de
escritório com defeito e/ou não utilizados, tais como computadores, impressoras, cadeiras,
mesas, teclados etc.
Os gabinetes 3 e 4 são ocupados por servidores e assessores da DPE-RJ. Já o gabinete
5 é ocupado pelo defensor público estadual que esteja de plantão, o que não ocorre todos os
dias. Antes, existia um gabinete 6 que era ocupado pela coordenação da Câmara. Contudo, esse
gabinete foi removido e atualmente as mesas da coordenadora e da subcoordenadora ficam
próximas do espaço central no setor de análise técnica, posicionadas de um modo que permite
que a coordenação observe o que cada um dos funcionários da análise está fazendo durante o
expediente.
O setor de análise técnica é o que concentra a maior quantidade de funcionários da
instituição. Pouco mais de 30 profissionais se dividem em quatro subsetores que correspondem
aos órgãos contratantes originais: onze funcionários da Secretaria Municipal de Saúde (SMS),
todos estatutários, exceto um terceirizado; treze da Secretaria de Estado de Saúde (SES), todos
concursados, exceto a secretária, que também é terceirizada; três do Departamento de Gestão
Hospitalar da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde (DGH/SAS/MS); e
cinco do Núcleo de Assessoria Técnica em Ações de Saúde (NAT) do Tribunal de Justiça do
264

Rio de Janeiro (TJRJ). Os funcionários da análise são considerados “técnicos de nível superior”.
A distribuição das formações se dá do seguinte modo: são onze farmacêuticos, oito médicos,
quatro enfermeiras, duas nutricionistas, duas assistentes sociais, duas advogadas, uma psicóloga
e duas funcionárias administrativas, as únicas que não possuem formação em nível superior.

Figura 14 – Segundo andar (sobreloja) da CRLS

Fonte: elaboração própria.


265

O procedimento de “análise” de um pedido leva entre uma ou duas horas para ser
realizado, a depender não somente do fluxo de usuários no dia e do tipo de demanda, mas
também de quem é o responsável pela elaboração do parecer. Solicitações de medicamentos
costumam ser mais rapidamente “analisadas” do que demandas por internação, exames
complexos ou cirurgias. A organização e distribuição dos casos no interior da CRLS mimetiza,
de certo modo, a lógica de organização de competências do Sistema Único de Saúde (SUS).
Isto é, seu ordenamento se dá de acordo com a complexidade tecnológica em questão.
Assim, os funcionários ligados à SMS são responsáveis pelos casos de consultas,
exames e cirurgias inseridos na plataforma do SISREG, bem como pelas solicitações de
medicamentos incluídos na Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME) do
Rio de Janeiro e de insumos básicos, tais como fralda geriátrica, material para curativos e
suplemento alimentar infantil. Além disso, as assistentes sociais que atuam na equipe da SMS
são as responsáveis por atender exclusivamente os assistidos que solicitam a internação
compulsória de algum familiar.
De acordo com os profissionais da SES, eles são incumbidos de resolver tudo aquilo
que a SMS não tem competência para atuar. Na prática, estes funcionários analisam as
demandas por transferências entre unidades de saúde, pedidos de internação, de transporte para
realização de procedimentos – como, por exemplo, o traslado recorrente de pessoas que
necessitam de sessões de hemodiálise – e solicitações de procedimentos inseridos na plataforma
do Sistema Estadual de Regulação (SER). No que diz respeito a medicamentos, o pessoal da
SES é responsável tanto pelos fármacos incluídos na lista do Componente Especializado de
Assistência Farmacêutica (CEAF), quanto aqueles que são considerados como “zona cinzenta”,
ou seja, que não estão incluídos nas listas oficiais, mas que são considerados eficazes para o
tratamento de determinadas patologias.
As demandas de assistidos em acompanhamento ou que envolvem, em algum nível, os
seis hospitais federais e os três Institutos federais que existem na cidade do Rio de Janeiro são
designadas às funcionárias ligadas ao Departamento de Gestão Hospitalar (DGH/SAS/MS). Ou
seja, elas ficam responsáveis por pedidos de consultas, exames, procedimentos, cirurgias,
medicamentos etc. Além disso, a equipe do DGH é aquela que realiza um trabalho constante de
verificação do andamento das solicitações apresentadas pelos assistidos da CRLS. Munidas de
uma “tabela de pendências” em que são registrados os dados do solicitante, a resposta dada pela
unidade de saúde e o prazo estipulado pela analista da Câmara, cerca de uma vez a cada 10 dias,
as funcionárias entram em contato com os estabelecimentos e com os assistidos para saber “se
a situação já foi resolvida”.
266

Os funcionários do NAT realizam o mesmo trabalho que os outros profissionais da


análise técnica – isto é, elaboram pareceres acerca de diversas demandas. A diferença é que esta
equipe não atende os assistidos da CRLS em uma fase que poderia ser considerada como “pré-
processual”. Como são ligados ao TJRJ, a eles cabe a função de auxiliar os magistrados a
fundamentar suas decisões em processos que já estejam efetivamente em andamento. Como
mencionado pelos funcionários da CRLS, boa parte dos atendimentos prestados pela equipe do
NAT é oriunda de municípios do interior do estado do Rio de Janeiro, pois estes não possuem
um serviço e uma estrutura como a Câmara.
Assim como em outros setores da CRLS, a rotina de trabalho no setor de análise técnica
compreende um certo conjunto de procedimentos burocráticos mais ou menos padronizados.
Ao acessar o sistema da Câmara a partir do seu login, o funcionário da análise consegue
visualizar os casos que estão aguardando atendimento a partir do nome do assistido. Ao lado
do nome consta informações que caracterizam o caso: se ele foi priorizado como uma urgência
e se é um primeiro atendimento ou um retorno. De maneira distinta dos funcionários do
atendimento, cuja ordem da fila é dada diretamente pelo Sistema Câmara de Saúde, os analistas
técnicos – também chamados de “pareceristas” – podem escolher qual caso querem atender
primeiro. Isso permite, por exemplo, que eles remetam os casos para outros subsetores, quando
isso se faz necessário.
A possibilidade de mandar o caso para outro subsetor é fundamental porque muitas
vezes os assistidos demandam múltiplos “produtos” que são de responsabilidade de distintos
subsetores da análise em uma mesma solicitação. Isso acontece quando, por exemplo, alguém
solicita insumos básicos, tais como fraldas geriátricas e/ou suplemento alimentar – que, como
dito acima, são responsabilidade dos funcionários ligados à SMS – ao mesmo tempo que
necessita de algum medicamento que é distribuído pela política do CEAF – que cabe aos
profissionais da SES analisar. Nessas situações, o analista do subsetor elabora o(s) parecer(es)
para o(s) produto(s) que lhe cabe(m), finaliza e “envia o assistido” para que outra pessoa possa
terminar a emissão de pareceres e então remeter o caso ao setor de retorno da análise. Ao
observar situações desse tipo, fica claro que a quantidade de pareceres emitidos/“casos
analisados” – considerada extremamente importante para a produção de dados estatísticos sobre
o funcionamento da CRLS – está vinculada não ao número de pessoas que são atendidas, mas
sim à quantidade de “produtos” que são demandados. Nenhum caso pode ser remetido ao setor
de retorno sem que o campo “parecer” do sistema seja preenchido. Assim, em casos em que são
solicitados múltiplos “produtos”, mesmo que um assistido não apresente nenhum documento
267

que comprove a necessidade de suas demandas, é preciso emitir um parecer para cada “produto”
registrado, e não um só parecer geral.
Desse modo, ao abrir um “caso”, a primeira coisa a ser feita pelo profissional é atualizar
a página do sistema para assegurar que o caso foi selecionado, pois é possível que dois
funcionários cliquem ao mesmo tempo em um mesmo nome, o que faz com que alguém
“trabalhe à toa”. Isto é, cada caso só pode ser analisado por um parecerista por vez. Após se
certificar de que o caso do assistido está mesmo em suas mãos, o analista verifica qual é o
“produto” vinculado ao número de solicitação e se a elaboração de um parecer acerca de tal
produto é de sua alçada. A distribuição dos casos para cada um dos subsetores é feita de modo
automatizado pela plataforma de gerenciamento da CRLS a partir das informações registradas
pelas equipes do atendimento, contudo, não é incomum que ocorram alguns erros. Quando isso
acontece, o funcionário clica em “finalizar” sem anexar um parecer, de modo que o sujeito é
enviado novamente para a fila de outro subsetor.
Uma vez que tenha se certificado de que o caso não está com mais ninguém do setor e
que a análise da demanda apresentada faz parte de suas atribuições, o analista abre os
documentos anexados ao registro do assistido. Esses documentos são aqueles digitalizados
pelos funcionários no atendimento. Com a documentação acessível, o analista verifica se o
“produto” registrado no sistema é o mesmo que consta nos documentos médicos trazidos pelo
sujeito ou seu representante. De acordo com os funcionários do setor de análise técnica, erros
no registro daquilo é solicitado acontecem porque o atendimento não é feito por profissionais
da área da saúde, o que faz com que às vezes as pessoas não saibam do que se trata determinado
medicamento, exame, consulta etc.; ou porque eles não entendem o que está escrito nos laudos,
receituários e pedidos; ou porque os assistidos também não sabem informar exatamente – isto
é, “tecnicamente” – o que precisam.
Quando o “produto” registrado pelos atendentes não é o mesmo que consta nos papéis
médicos apresentados pelos assistidos, os analistas buscam entender o que aconteceu. Se a
diferença for considerada “pequena” – como por exemplo, quando no sistema da CRLS consta
um medicamento na sua dosagem de 400mg e o receituário médico diz 600mg –, os
funcionários alteram o registro na plataforma e emitem o parecer de acordo com aquilo que
aparece na documentação. Quando a discrepância é vista como “muito grande” – como por
exemplo, quando no sistema consta uma solicitação de consulta com um especialista, mas a
documentação apresentada diz respeito a um pedido de exame –, o procedimento padrão é
observar o que consta no campo “narrativa” do documento “redução a termo de atendimento
268

inicial” ou o campo “razão do retorno” no documento “atendimento de retorno” na tentativa de


compreender o motivo pelo qual “produto” e documentação falam sobre coisas distintas.
Em último caso – e isso acontece muito raramente –, se na “narrativa” não é possível
identificar algo que justifique a divergência, o profissional da análise vai até a sala de espera da
CRLS procurar o assistido e pede que ele explique a situação. Quando é o caso de o assistido
ter solicitado algo que não foi expressamente indicado por um médico, o funcionário da CRLS
explica que é preciso voltar ao serviço de saúde e pedir que o profissional forneça algum
documento que justifique seu pedido e que não é possível avançar na tentativa de “resolução
administrativa” sem a documentação, pois caso seja preciso judicializar, tal documento será
imprescindível para a instauração de um processo. Entretanto, na grande maioria das vezes, os
funcionários da análise apenas emitem um parecer dizendo que não foi possível analisar a
demanda por conta da ausência de documentação, fazendo com que fique nas mãos da equipe
do retorno da análise a função de explicar ao assistido porque sua demanda não pôde ser
atendida e, eventualmente, lidar com a sua frustração.
Outra informação verificada antes de se iniciar o processo de análise propriamente dito
é a data de emissão dos pedidos de exames, receituários etc., tendo em vista que esses só são
válidos por 90 dias. Caso o prazo do documento médico esteja vencido, o parecerista alega que
não é possível realizar a análise e solicita que o assistido retorne à unidade de saúde que o
acompanha para obter uma nova documentação médica. Dificilmente os funcionários do setor
de análise examinam outros documentos digitalizados que não os médicos, tais como os de
identificação, comprovação de renda etc.
Somente após se certificar de que o produto que consta no sistema da CRLS é o mesmo
que está escrito na documentação médica e que esses documentos estão de acordo com os
critérios estabelecidos é que os funcionários “analisam” a demanda propriamente dita. Antes
de passar para a descrição do que consiste o trabalho e os procedimentos de “análise”, gostaria
de destacar uma percepção compartilhada por alguns dos funcionários que lá trabalham: a de
que o “verdadeiro trabalho da CRLS” é executado no setor de análise, uma vez que são eles os
responsáveis por buscar as almejadas “soluções administrativas” para os problemas enfrentados
pelos assistidos e seus familiares.
Os procedimentos-padrão de análise variam de acordo com o tipo de “produto”
solicitado pelo assistido, tais como consultas, exames, medicamentos, cirurgias, entre outros.
Para fins de controle interno e produção de dados estatísticos, os “produtos” elencados no rol
de atribuições da SMS, por exemplo, são agrupados nas seguintes categorias:
269

 Consultas  Atendimento em saúde mental


 Procedimentos e exames  Suplemento nutricional
 Fórmula infantil  Medicamentos
 Material médico-cirúrgico  Internação hospitalar
 Reabilitação  Transporte
 Tratamento Fora do Domicílio53 (TFD)  Oxigenoterapia
intermunicipal
 Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso54
(PADI) e casa de repouso

Ainda que variem segundo o tipo de “produto” em questão, os pareceres emitidos pelos
profissionais da CRLS seguem determinados modelos predefinidos que se encontram em uma
pasta virtual compartilhada entre todos os funcionários do setor de análise técnica. A quantidade
de modelos é imensa, na medida em que existe, por exemplo, um modelo para cada fórmula de
medicamento, em cada dose – 100mg, 200mg, 1g etc. – e forma de administração – xarope,
comprido, cápsula, injeção, supositório etc.
Como abordado no capítulo anterior, as principais solicitações atendidas pela CRLS
dizem respeito a consultas, exames e remédios, em especial aqueles que se encontram
atualmente “em falta” nas unidades básicas de saúde e nos postos de dispensação pública de
medicamentos. Outras demandas atendidas em menor quantidade – mas não menos graves e
importantes – estão relacionadas à falta de insumos e materiais necessários para a realização de
cirurgias e outros procedimentos; pedidos de transporte para tratamentos ambulatoriais, como
por exemplo, sessões de hemodiálise; demanda por suplementos nutricionais especiais para
pessoas com algum tipo de intolerância e/ou dificuldade de digestão de nutrientes; entre outros.
Passo agora para uma descrição geral dos procedimentos de trabalho de acordo com o tipo de
“produto” demandando.

53
O Tratamento Fora do Domicílio (TFD) é um “instrumento legal” que garante a um pacientes do SUS que ele
receba cuidados fora de seu município de domicílio caso não haja recursos técnicos disponíveis para o seu
tratamento. O programa de TFD foi instituído pelo Ministério da Saúde e consiste em assegurar que a pessoa
realize consultas, exames, tratamentos ambulatoriais, cirurgias etc. necessários, mas também oferecer uma ajuda
de custo para o deslocamento, hospedagem e alimentação tanto do paciente, quanto de seu acompanhante, caso
seja necessário.
54
O Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso (PADI) é uma espécie de serviço de home care oferecido pela
Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro desde 2010. De acordo com a página oficial do serviço, “O PADI cuida de
pessoas com doenças crônicas agudizadas, portadores de incapacidade funcional provisória ou permanente,
pacientes oriundos de internações prolongadas e/ou recorrentes, com dificuldade ou impossibilidade física de
locomoção, pacientes em cuidados paliativos e outros agravos passíveis de recuperação funcional”.
270

Medicamentos

Quando o “produto” demandado é um medicamento, o procedimento é verificar se o


receituário e o laudo médico apresentados pelo assistido são coerentes, ou seja, conferir se a
medicação receitada é condizente com a patologia inscrita no laudo. Quando o medicamento
faz parte da lista da Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME) do Rio de
Janeiro, o analista da SMS entra em contato com o Núcleo de Assistência Farmacêutica (NAF)
da Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência do assistido55, tendo em vista que a
dispensação dos “medicamentos básicos” deve ser feita por essas unidades. Nesse contato – que
pode ser feito por e-mail ou através de uma ligação telefônica – o analista geralmente se
identifica como um funcionário da CRLS, explica resumidamente a situação do assistido e
pergunta se há o medicamento em estoque; se há previsão de compra; se tem como solicitar
uma transferência entre unidades; ou seja, se existe alguma possibilidade da pessoa ter acesso
ao medicamento sem que o caso precise ser judicializado. Em casos em que a pessoa do outro
lado diz que é possível tentar algo, o analista da CRLS solicita então um prazo de 7 dias úteis
para que a instituição se pronuncie sobre a situação. Após esse período, se nenhum tipo de
“resolução administrativa” é oferecida, o assistido é encaminhado para a Defensoria Pública
para que o caso seja judicializado.
Para os casos de medicamentos elencados no CEAF, o procedimento é um pouco
diferente. Primeiramente porque essas medicações são consideradas “especializadas” e, por
isso, sua dispensação é mais rigorosamente controlada do que a de outros medicamentos. Uma
das distinções em relação aos medicamentos básicos é que o fluxo normal de distribuição de
remédios do Componente Especializado está diretamente subordinado às regras estabelecidas
nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) publicados pelo Ministério da Saúde
(MS). Assim, a primeira coisa a ser feita pelos analistas ligados a SES – que, como dito, são os
responsáveis pelos medicamentos do CEAF – é verificar se o número da CID informado no
laudo do assistido está contemplado nos critérios de dispensação definidos pelo MS. Nos casos
em que o código da CID não consta na lista de patologias para os quais o medicamento é

55
A Unidade Básica de Saúde (UBS) ou Unidade de Atenção Primária de referência de uma pessoa depende do
seu endereço de residência. No site da SMS há uma página chamada “Onde ser atendido?” que indica o território
de atuação de cada unidade. Quando é preciso “referenciar” um assistido, os profissionais da CRLS utilizam essa
ferramenta.
271

indicado, mas que a literatura médica tem apontado como um tratamento adequado56 o parecer
informa que não é possível obter a medicação pela “via administrativa” e encaminha o caso
para a Defensoria Pública.
Quando a CID do assistido integra a lista de patologias para as quais a medicação está
oficialmente indicada, o passo seguinte é saber se a pessoa já possui cadastro no CEAF do Rio
de Janeiro. Quando não, o assistido e/ou representante é mandado para a Farmácia Estadual de
Medicamentos Especiais (RIOFARMES) para cadastrar-se, uma vez que não é possível ter
acesso a esse tipo de medicamento sem o devido registro. Caso já seja paciente cadastrado, os
analistas verificam o histórico do assistido em busca de informações sobre quando foi a última
dispensação, há quanto tempo está em tratamento, qual a periodicidade do uso do remédio etc.
Como a grande maioria dos casos de solicitação de medicamentos especializados se dá por
conta da falta deles na unidade de dispensação – que, ao contrário dos medicamentos básicos,
é centralizada na RIOFARMES –, o passo seguinte é olhar uma tabela compartilhada por todos
os analistas da CRLS na qual são registrados todos os medicamentos que estão com a
distribuição irregular e/ou intermitente. Nesse arquivo são anotados: 1) a data quando a situação
começou a ocorrer; 2) se há previsão de normalização do estoque; e 3) quem foram as pessoas
responsáveis tanto por obter (um funcionário da CRLS), quanto por dar tal informação (um
funcionário do CEAF).
De todo modo, semanalmente os analistas entram em contato com os profissionais
responsáveis do CEAF com intenção de saber se houve alguma mudança recente no status de
uma dada medicação. Para os medicamentos de estoque zerado e sem previsão de nova compra
– ou seja, a grande maioria –, o procedimento é encaminhar o assistido para a Defensoria
Pública com um parecer que informa resumidamente a sua situação: patologia,
gravidade/urgência, necessidade do tratamento, há quanto tempo está sem acesso e outras
informações que eventualmente são consideradas pertinentes.
Outra situação relativamente comum aos pedidos de medicamentos – sejam eles básicos
ou especializados – é a proposição de um substitutivo e/ou de alteração do esquema terapêutico.
Isso ocorre quando a medicação solicitada pelo assistido não faz parte de nenhuma lista oficial
do SUS e existem outros medicamentos constantes dessas listas que são indicados para o
tratamento da patologia segundo os PCDTs. Tal situação é comum quando, por exemplo, o
médico do paciente indica como tratamento um determinado medicamento em uma dose de

56
De acordo com os funcionários da análise, muitas vezes os medicamentos não constam nas listas e/ou a CID não
é contemplada devido à morosidade da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) no
processo de inclusão de novos medicamentos e tecnologias no SUS e de revisão dos protocolos clínicos.
272

400mg, mas na REMUME há a opção desse mesmo medicamento na dose de 150mg. Outros
episódios em que se costuma propor uma substituição se dão com os pedidos de insulina para
portadores de Diabetes Melitus tipo I e II. De acordo com a equipe da CRLS, esses pedidos são
recorrentes porque o PCDT para diabetes é antigo e não inclui na lista de medicamentos
disponibilizados pelo SUS as tecnologias de tratamento mais atuais, as quais possuem menos
efeitos colaterais, são mais fáceis de aplicar etc. Nesse sentido, a proposição de um substitutivo
é a primeira opção dos analistas quando se deparam com situações desse tipo. Caso o médico
do assistido recuse a substituição ou já venha no laudo médico algo que informe expressamente
que não é possível substituir a medicação indicada – histórico de tratamento do paciente dizendo
que já fez uso o medicamento disponível, mas não obteve efeito; alergia a algum componente
ou qualquer outra razão –, o analista da Câmara encaminha o caso para a Defensoria Pública.
Uma coisa que precisa ser destacada sobre os pareceres que sugerem a substituição de
um medicamento ou alteração de esquema terapêutico é que este é o único tipo de parecer que
não é somente enviado por meio do sistema de gerenciamento interno da CRLS, os quais são
assinados apenas eletronicamente. Esses pareceres – que são feitos apenas por médicos ou
farmacêuticos – são impressos diretamente pelo analista em um papel timbrado da Câmara,
assinados manualmente e carimbados com o seu nome completo e número de registro
profissional, ou seja, o número de inscrição no CRM (Conselho Regional de Medicina) ou no
CRF (Conselho Regional de Farmácia) do responsável pela elaboração do documento.

Consultas e Exames

Quando o “produto” solicitado é um exame e/ou uma consulta com algum médico
especialista, a primeira coisa a ser feita é localizar o pedido em um dos sistemas de regulação
do serviços públicos de saúde: o SISREG ou SER. A maioria das demandas do SISREG são
atendidas por funcionários que trabalham para a SMS, ao passo que a equipe da SES lida
principalmente com os casos inseridos no SER. Se os funcionários não conseguem localizar a
solicitação nos sistemas, o procedimento padrão é encaminhar o assistido de volta para a
unidade de saúde que o acompanha para que o pedido seja “regulado”57. Conforme enfatizado
em diversos momentos por diferentes profissionais ao longo do período em que realizei o

57
“Regular” é o verbo utilizado pela equipe de análise técnica para indicar a ação de inserir uma determinada
solicitação nos sistemas de regulação utilizados para administrar as demandas nas área da saúde no Brasil.
273

trabalho de campo, a CRLS não é uma instituição de “porta de entrada do SUS”. Por esse
motivo, os funcionários não podem, por exemplo, inserir pedidos diretamente nos sistemas de
regulação, cadastrar pacientes no CEAF, alterar receituários médicos unilateralmente, entre
outras situações. Quando a solicitação é localizada, o próximo passo é verificar o histórico do
assistido, em especial a data em que o seu pedido foi inserido no sistema e qual foi sua
“classificação de risco”58, uma vez que são essas informações que indicam se o pedido do
assistido ainda está “dentro da validade”, isto é, se já ultrapassou ou não o prazo máximo para
o atendimento da solicitação e/ou realização do procedimento.
Se o pedido ainda está dentro do prazo para marcação, os pareceres elaborados pelos
analistas seguem dois caminhos. O primeiro deles é pedir que o assistido aguarde até que o
prazo esteja esgotado e só então retornar à CRLS. Isso acontece quando não há na
documentação anexada nenhum indício de que a situação do assistido seja “mais grave” do que
consta na “classificação de risco” feita pelo profissional que o atendeu ou quando não há
nenhum tipo de reclamação sobre a demora e a espera na narrativa dos sujeitos, o que raramente
acontece. O segundo caminho, mais comum que o primeiro, é encaminhar o assistido
novamente para a unidade de saúde e solicitar à equipe médica da instituição que altere a
“classificação de risco” do paciente. Além do parecer impresso entregue ao assistido, os
analistas geralmente enviam um e-mail para a UBS de referência informando sobre o desejo do
assistido de judicializar a questão.
Nos casos em que o pedido já ultrapassou o prazo estipulado pela “classificação de
risco”, o procedimento padrão é entrar em contato com a Central de Regulação municipal do
SISREG, com algum chefe de setor ou responsável por área do SER ou com o Núcleo Interno
de Regulação (NIR) do hospital que realiza o acompanhamento do assistido. Nesse contato –
que também pode ser feito por e-mail, mas é mais comum uma conversa ao telefone – são
informados os dados do assistido e é cobrada uma solução por parte dos órgãos reguladores.
Geralmente, o funcionário da Câmara estipula um prazo que varia de 7 a 15 dias para que as
instituições se posicionem. Nessa situação, é solicitado ao assistido que aguarde esse período
determinado pela CRLS e, caso ninguém entre em contato para a marcação da consulta e/ou
exame, será preciso retornar à Câmara para que o caso seja encaminhado para a Defensoria
Pública e efetivamente judicializado.

58
A tabela de “classificação de risco” adotada pelo SISREG para a regulação de vagas ambulatoriais é organizada
por cores, do seguinte modo: Vermelho (até 30 dias para o atendimento); Amarelo (até 90 dias para o atendimento);
Verde (até 180 dias para o atendimento); e Azul (atendimento eletivo / mais de 180 dias para o atendimento).
Reflexões sobre essa forma de categorização e “gestão de riscos” serão apresentadas mais adiante, no capítulo 7.
274

Insumos e materiais médicos

Os pedidos de insumos e materiais médicos – tais como fraldas, gaze, esparadrapo etc.
são atendidos pela equipe da SMS e seguem uma lógica de análise semelhante a dos
medicamentos. Isto é, o primeiro passo é verificar se a UBS de referência do assistido dispõe
do material que está sendo solicitado. Em seguida, as pessoas responsáveis são questionadas
acerca dos prazos para reposição do material e normalização do estoque, tendo em vista que a
grande maioria desses pedidos chega na CRLS devido a um cenário de constantes faltas
vivenciado nas unidades públicas de saúde no Rio de Janeiro. Em caso de não previsão de
aquisição desses materiais ou de meios alternativos de solução da questão, os casos são
encaminhados para a Defensoria Pública.
Sobre os insumos, vale ainda salientar algo que foi mencionado algumas vezes durante
a pesquisa de campo. Segundo os funcionários da Câmara, antes da crise não havia uma análise
rigorosa ou um questionamento acerca da quantidade de fraldas solicitadas por um mesmo
assistido. Contudo, a partir do momento em que esses materiais começaram a escassear, foi
instituído um limite de quatro fraldas diárias por pessoa. Nesse sentido, solicitações cujos
documentos médicos indiquem o uso de mais de 120 fraldas por mês são recusadas, de modo
que o assistido é encaminhado de volta para sua unidade de saúde para que essa quantidade seja
revisada ou justificada e um novo documento médico preenchido.

Suplementos nutricionais e “fórmula infantil”

Os casos de pedidos de suplementos nutricionais e “fórmula infantil” são analisados


quase que exclusivamente pelas nutricionistas que compõem a equipe de analistas da SMS, uma
vez que a aquisição desses produtos é de responsabilidade do município. Da mesma forma que
os pedidos de insumos passam por uma averiguação da quantidade solicitada. Assim, a
demanda por suplementos nutricionais implica um cálculo feito pelas nutricionistas a partir das
informações sobre o assistido contidas nos documentos médicos, tais como peso, altura, idade,
grau de intolerância alimentar, entre outros. Esse cálculo toma como referência o que é definido
nos protocolos clínicos de tratamento. Caso seja considerado “excessivo”, o pedido é mandado
de volta para que o documento médico apresentado pelo assistido seja readequado de acordo
com o que foi determinado pela análise técnica enquanto a quantidade ideal do produto.
275

Distintamente do que acontece com os pedidos de insumos e medicamentos, poucas


vezes há uma verificação da disponibilidade dos suplementos nutricionais nas instituições
públicas encarregadas pela sua distribuição. Isso significa que, caso a solicitação esteja dentro
do montante considerado apropriado, ela é quase sempre imediatamente encaminhada para a
Defensoria Pública. A primeira razão elencada pelos profissionais para justificar essa forma de
atuação é que tais suplementos nutricionais e “fórmulas infantis” são, na maioria das vezes,
indicados para bebês recém-nascidos que não possuem nenhuma outra fonte possível de
alimento, o que faz da resolução desses casos algo “urgente”. Em segundo lugar, a grande
maioria desses pedidos já “sobem” com uma “declaração negativa” da instituição. Além disso,
os funcionários da CRLS – não somente da análise, mas de todos os outros setores – alegam já
conhecer a atual situação de crise do Programa Municipal de Acolhimento de Crianças com
Intolerância Alimentar do Hospital Municipal Menino Jesus, que, de acordo com os
profissionais, vem sendo sucateado desde meados do ano de 2015.

Transferências e internações hospitalares

Os casos de demanda por internação ou transferência entre hospitais são frequentemente


considerados os mais “urgentes” de todos. De um modo distinto dos outros casos atendidos na
CRLS, os pedidos por internação e transferência entre hospitais são enviados simultaneamente
para a Defensoria Pública e para o setor de análise técnica, uma vez que sua resolução precisa
ser imediata. Enquanto os profissionais da Câmara “fazem articulações” entre as unidades de
saúde que possuem internações em busca de uma vaga, o defensor público deve solicitar uma
liminar para garantir a internação ou transferência do usuário.
A urgência desses casos é explicada por diferentes motivos. Nos casos de pedidos de
internação, geralmente o assistido se encontra em um estado muito grave e/ou debilitado, de
modo que o “risco de morte” é considerado alto. É para evitar a morte iminente que táticas e
procedimentos de emergência são adotadas para o atendimento de casos desse tipo. Os únicos
casos de internação que raramente são vistos como urgências são os pedidos de internação
compulsória de dependentes químicos, como descreverei na próxima subseção.
Para os casos de transferência, a urgência pode se dar por distintas razões: uma delas é
a necessidade de atendimento e internação em algum hospital com uma unidade especializada,
como por exemplo, um paciente que esteja internado em uma Unidade de Pronto Atendimento
(UPA), mas necessita passar por uma cirurgia no coração que não pode ser feita na emergência,
276

mas somente em um serviço de referência em cardiologia ou cirurgia cardíaca. Outra situação


de transferência comum ocorre quando o assistido foi internado em uma clínica ou hospital
privado, mas os familiares alegam que não podem manter o paciente internado nesse local por
conta do alto custo da internação. Nesses casos, o motivo da urgência não é necessariamente o
elevado risco de morte, já que o assistido encontra-se internado, mas sim uma razão econômica
e orçamentária. Quando a solicitação de uma vaga para internação em uma unidade pública de
um paciente que já esteja internado em uma unidade privada não é bem sucedida, uma das
soluções propostas pelos defensores públicos é manter a pessoa internada onde ela está, mas
transferir os custos da internação para o poder público por meio de uma ação judicial. Em ambos
os casos, o procedimento padrão no setor de análise técnica é o contato telefônico com chefes
de unidades públicas de saúde na tentativa de articular a abertura de uma “vaga zero” 59 para
acolher o paciente.

Outros pedidos

Como dito anteriormente, a CRLS acolhe qualquer tipo de demanda que tenha a ver com
o direito à saúde. Assim, outros tipos de pedidos são atendidos com menos frequência no
cotidiano da instituição, tais como oxigenoterapia, fisioterapia, reabilitação, transporte para
realização de tratamentos ambulatoriais ou procedimentos pontuais etc. Esses pedidos, por não
fazerem parte da rede de atendimento do SUS e muitas vezes não possuírem políticas públicas
consolidadas com as quais se poderia tentar uma “articulação” para resolver a questão
administrativamente, são quase sempre encaminhados para a Defensoria Pública.
Outro tipo de atendimento menos comum na CRLS se refere aos pedidos de internação
compulsória para pessoas “em surto” e/ou que façam “uso abusivo de álcool e drogas”. Tais
atendimentos são feitos pelas assistentes sociais que atuam em conjunto com a equipe da SMS
em um lugar reservado, geralmente no “espaço de mediação” localizado no segundo andar. Por
conta das políticas implementadas e das revisões de critérios para internação colocadas em
prática desde a reforma psiquiátrica, o atendimento desses casos na CRLS parte do princípio de

59
A abertura de uma “vaga zero” é o procedimento que garante ao paciente em risco de morte iminente e/ou
sofrimento intenso o atendimento em uma unidade que não possua uma vaga regular disponível. De acordo com o
Conselho Federal de Medicina (CFM), a prerrogativa de abertura de “vaga zero” é exclusiva do médico regulador
de urgências, que deve entrar em contato com o profissional responsável por receber o paciente na unidade para
assegurar que este será atendido. Ainda segundo o CFM, essa ferramenta “deve ser considerada como situação de
exceção e não uma prática cotidiana na atenção às urgências.”
277

que é preciso comprovar que a internação é a única solução possível para lidar com a situação
do assistido. Apesar de não ter acompanhado diretamente nenhum desses atendimentos – pois
estes eram feitos sempre de uma maneira muito mais sigilosa que os demais –, pude perceber
que o trabalho das assistentes sociais é semelhante ao dos outros analistas do setor, isto é, elas
também entram em contato com outras instituições e órgãos competentes – como os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS) – para tentar “articular” uma forma para que o assistido seja
atendido. Dos casos de internação compulsória presenciados ao longo do trabalho de campo,
não acompanhei nenhum cujo desfecho fosse o encaminhamento para a Defensoria Pública.

5.4 – Retorno da Análise

O nome Célia Vieira Machado foi chamado no guichê 26 por volta das 14h. A
funcionária imprimiu o parecer formulado por um de seus colegas de trabalho e leu as
informações ali contidas. O atendimento no setor de retorno da análise de Célia não durou
muito. Quando a assistida se sentou na cadeira em frente à funcionária, a profissional já
começou a informar que os funcionários da análise técnica haviam entrado em contato com a
RIOFARMES e foram informados de que havia um prazo para que o estoque do medicamento
solicitado fosse normalizado e que, diante disso, o caso de Célia seria encaminhado para a
Defensoria. Ela continuou sua explicação afirmando que a própria Defensoria entraria com
uma ação na Justiça contra o Estado para que o medicamento fosse fornecido. Em seguida, ela
perguntou se Célia havia entregado todos os documentos no atendimento, pois seu caso só
seria judicializado depois que toda a documentação estivesse com a Defensoria. Após explicar
tudo, ela questionou se a assistida tinha alguma dúvida. Célia perguntou quanto tempo levaria
para que ela conseguisse sua medicação, pois como ela não podia interromper o tratamento,
ela e família estavam arcando com os custos do medicamento por conta própria e estavam se
endividando cada vez mais. A enfermeira disse que não era possível estabelecer um prazo, pois
a partir daquele momento, a situação seria “resolvida na Justiça”, mas que em menos de uma
semana alguém da DPU entraria em contato com ela para informar sobre o andamento do
processo e que ela poderia comparecer ao setor de atendimento da DPU sempre que quisesse
alguma informação específica. Por fim, Célia perguntou se ela teria que fazer algo ou ir a
algum lugar para “abrir o processo”. A funcionária respondeu que não, pois isso seria feito
pela própria equipe de atendimento da DPU. A única ressalva feita pela funcionária do retorno
foi a mesma feita pela do atendimento: Célia precisaria retornar à Câmara pelo menos mais
uma vez para trazer os comprovantes de renda de seu marido e filho, pois tais documentos
seriam fundamentais para a comprovação da hipossuficiência que garantiria a ela tanto o
direito de ser atendida pela Defensoria Pública, quanto o de receber a medicação
gratuitamente por meio do Estado.
278

O assistido Lauro Aguiar da Costa foi chamado ao guichê 23. Pouco depois chegou um
rapaz que aparentava ser bem mais novo do que a idade indicada no parecer. Assim que ele se
sentou, a funcionária perguntou o que ele era do assistido e o rapaz respondeu que era filho
de Lauro. Ela então imprimiu o parecer e começou a explicar para ele que os analistas da
Câmara não haviam encontrado nenhuma solicitação em nome do seu pai no sistema de
regulação (SISREG) e que ele deveria ir até a Clínica da Família mais próxima da residência
do assistido solicitar aos profissionais da unidade que inserissem o pedido de exame no
sistema. O filho de Lauro disse que não estava entendendo a situação, pois o próprio médico
havia solicitado o exame, como poderia ser verificado no documento que ele havia trazido. A
funcionária então respondeu que o pedido médico não é inserido no SISREG automaticamente
e que às vezes é preciso “ficar em cima” da equipe da Clínica para que eles não esqueçam de
inserir nenhum pedido. De maneira categórica, o filho do assistido perguntou: “então eu vim
até aqui e fiquei essas horas todas esperando à toa?”. Desconcertada, a funcionária do retorno
tentou argumentar dizendo que não era exatamente à toa, mas que ele precisava entender que
eles não podem tentar nenhum tipo de solução administrativa se o pedido do assistido não
estiver inserido no fluxo de atendimento do SUS. Ela explicou também que essa inserção só
pode ser feita pelos profissionais das unidades de saúde e não pela CRLS, pois as senhas de
acesso ao SISREG possuídas pelos funcionários da Câmara permitem apenas consultar dados
na plataforma e não inseri-los. Com um semblante visivelmente irritado, o filho de Lauro
“agradeceu” à funcionária de modo irônico e se retirou.

O nome de Maria da Graça dos Santos foi chamado no guichê 22 pouco depois das
13:30. Normalmente, as pessoas chegam em menos de um minuto ao local de atendimento. A
filha de Maria da Graça levou um pouco mais do que isso e quando se sentou em frente à
funcionária, logo pediu desculpas pela demora e disse que não tinha entendido a indicação da
assistente social para onde ela deveria ir e ficou perdida. A funcionária esperava o computador
voltar a funcionar para que pudesse imprimir o parecer da análise técnica. Nesse intervalo, a
atendente do retorno perguntou: “Maria da Graça é a senhora?” e a mulher respondeu: “não,
é a minha mãe. Ela não levanta mais da cama, por isso que eu que tive de vir aqui para pedir
fralda para ela”. Um breve silêncio se instaurou e a funcionária pediu para a senhora
aguardar um minuto enquanto ela tentava consertar o que estava errado. Após cerca de cinco
minutos, a enfermeira do retorno conseguiu imprimir o parecer e antes de entregar para a filha
de Maria da Graça, explicou: “então, o que acontece... como a senhora deve saber, tem muita
coisa em falta nos hospitais e postos de saúde aqui do Rio, não é? É por isso que a senhora
veio até aqui pedir as fraldas geriátricas para sua mãe. Como um monte de gente precisa e
realmente as coisas estão chegando a conta-gotas nas unidades, a gente recebeu uma
determinação dizendo que não pode mais aceitar pedidos com mais de 120 fraldas por mês.
Então a senhora então vai lá na Clínica da Família com esse parecer, pede uma receita nova
para o médico com uma quantidade menor ou então pede para ele explicar direitinho no
relatório médico as condições de saúde da sua mãe que fazem com que ela precise usar 200
fraldas por mês. Quando você estiver com esse documento, você traz aqui para a gente, que aí
a gente vai dar andamento na sua solicitação, está bem?”. Sem entender muito bem, ela pediu
para a funcionária repetir a explicação. Após ouvir tudo novamente, a filha de Maria da Graça
perguntou: “mas vocês não podem fazer isso? Mudar o pedido aí no sistema de 200 para 120.
279

Eu tenho que ir na Clínica da Família, conseguir que o médico que acompanha minha mãe me
atenda sem levar ela, porque ela não tem condições de ir, para depois voltar aqui com um
papel e esperar esse tempo todo de novo?”. Um pouco constrangida, a funcionária respondeu:
“sim, senhora. Infelizmente nós não podemos dar prosseguimento porque a gente não pode
alterar o documento que a senhora apresentou. Só um profissional de saúde pode emitir um
novo relatório, inclusive explicando se sua mãe realmente precisa de 200 fraldas ao mês”. A
filha de Maria da Graça permaneceu murmurando sobre o absurdo que era a situação. Logo
depois, a funcionária falou: “Olha, eu não estou dizendo isso da senhora, mas a gente também
é pressionado a fazer esse controle porque tem muita gente que pede para o médico colocar na
receita mais coisas do que o necessário para poder vender depois o que sobra. É por isso que
a gente tem que pedir ao usuário esse relatório médico detalhado”. Irritada e provavelmente
se sentindo ofendida, a filha de Maria da Graça disse que entendia a situação, mas que essa
orientação poderia ter sido dada desde o início do atendimento e que ela não precisava ter
esperado tanto tempo para ouvir isso. A funcionária se desculpou, disse que ela tinha razão e
que levaria essa questão para a coordenação da Câmara. Em seguida, ela entregou o parecer
impresso à filha de Maria de Graça, que foi embora da CRLS visivelmente frustrada com a
resposta recebida.

Nos fundos do primeiro andar, relativamente isolados, estão os guichês do setor de


retorno da análise, divididos em duas fileiras de três baias, uma em cada lado. Do mesmo modo
que os guichês do atendimento, há pelo menos dois computadores que não funcionam há meses
no setor de retorno da análise. Também no fundo há outro elevador para o uso exclusivo de
pessoas com alguma deficiência ou dificuldade de mobilidade que leva ao segundo andar da
CRLS. Durante todo o tempo em que estive fazendo trabalho de campo, nunca presenciei esse
elevador ser utilizado.
Após a elaboração do parecer pelo setor de análise técnica, o usuário volta a ser
chamado, mas dessa vez para o que eles chamam de “retorno”. O setor de retorno da análise
fica localizado após os banheiros, em um espaço relativamente reservado, pois não é possível
ver quem está no setor de atendimento e vice-versa. A equipe do retorno é composta por três
nutricionistas e três enfermeiras, todas concursadas da Fundação Saúde do Governo do estado
do Rio de Janeiro. As seis funcionárias se revezam em dois turnos e trabalham em um regime
de escala de três ou quatro dias por semana. Durante o período em que realizei a pesquisa de
campo, duas das enfermeiras estavam afastadas da CRLS por motivos de saúde, de modo que,
na prática, o trabalho era realizado apenas por quatro profissionais.
O trabalho no setor consiste basicamente em imprimir o parecer elaborado pelos
funcionários da análise, ler em voz alta os pontos principais desse documento – ou seja, os
“encaminhamentos” –, explicar algo que o assistido eventualmente não compreenda e entregar
280

o parecer. Além disso, não é incomum que essas funcionárias façam anotações a mão nos
pareceres, principalmente quando a indicação do analista é a de que o assistido deve retornar à
sua unidade de saúde de referência com algum tipo de solicitação. Essas anotações variam desde
uma forma mais “simples” e “menos burocrática” de explicar o que consta no parecer até
“orientações extras” sobre o que elas acreditam que poderá ajudar o assistido a resolver suas
demandas, tais como tentar procurar diretamente o/a gerentes da Clínica da Família e levar o
parecer em um envelope pardo para que o documento pareça mais “sério” e legítimo.
O resultado da análise é sempre um “encaminhamento”, seja para uma unidade de saúde
– e nas “unidades de saúde” estão incluídos hospitais, Clínicas da Família, farmácias públicas,
Centros Municipais de Saúde etc. –, seja para a Defensoria Pública. Quando o setor de análise
técnica não encontra nenhuma forma de “resolução administrativa” para o pedido – isto é,
quando ele não localiza nenhum local que possa distribuir o medicamento, realizar o exame ou
consulta etc. –, o assistido sai da CRLS com um encaminhamento para a Defensoria Pública
(DPU ou DPE-RJ) para que seu caso seja propriamente ajuizado.
Os casos encaminhados para as unidades de saúde, por sua vez, possuem algumas
particularidades que precisam ser levadas em consideração. Primeiramente, esses casos são
aqueles que serão contados como “resoluções administrativas” para a produção de um banco
de dados e estatísticas sobre a CRLS. Como abordarei mais adiante, nem todas essas respostas
da análise representam uma “solução” propriamente dita, já que uma parte significativa dos
casos direcionados às unidades de saúde se resumem a indicações para que o assistido retorne
à CRLS com um laudo e/ou receituário mais específico e detalhado; a proposição de
substituição da medicação solicitada; um pedido para que o médico responsável pela inserção
dos pedidos no SISREG reavalie a classificação de risco atribuída ao assistido, entre outras.
Como é possível imaginar, as situações em que a resposta oferecida pelos analistas
técnicos são pedidos para que o assistido retorne outro dia por alguma razão são marcadas por
uma série de tensões entre os usuários e as funcionárias do setor de retorno. O primeiro ponto
de tensão é o tempo que as pessoas esperam até que seu atendimento seja concluído. O segundo
é o resultado da análise em si, que por muitas vezes não é considerado satisfatório. Isto é, as
pessoas costumam se indignar após aguardar três ou quatro horas apenas para descobrir que
será preciso voltar outro dia com outro documento; ir por conta própria negociar com o médico
para que ele altere a “classificação de risco” de um familiar que se encontra debilitado; esperar
mais 15 dias para que o hospital se pronuncie sobre a situação etc.
As formas que a indignação assume são variadas: alguns assistidos alteram o tom de voz
e discutem com as funcionárias do retorno; outros choram copiosamente e dizem não saber o
281

que fazer e que já perderam as esperanças; outros ainda afirmam o absurdo da situação sem se
exaltar; e há também aqueles que na tentativa de convencer que eles realmente precisam de
ajuda, mostram exames, receitas, lesões, tumores e outros sintomas que os acometem.
Em quase todos os casos, o modus operandi da equipe de retorno é o mesmo: emudecer
e fazer minguar o desespero dos sujeitos. Nesse sentido, as funcionárias afirmam que
compreendem a situação do assistido, que concordam com suas reivindicações, mas que
“infelizmente, não há nada mais que a instituição possa fazer”. As justificativas para essa
impossibilidade de fazer alguma coisa variam em termos de escala, mas sempre apelando para
algo ou alguém que está “acima”, seja de suas capacidades e competências, seja na hierarquia
instituição. Ou seja, por vezes não é possível fazer nada porque foi assim que o setor de análise
técnica decidiu; em outras porque a CRLS não é uma instituição de “porta de entrada” do SUS;
e em algumas porque os documentos apresentados não foram suficientes para sustentar
juridicamente a necessidade do que foi demandado.

***

Até aqui me ocupei de fazer um trabalho descritivo minucioso sobre a CRLS: onde ela
está localizada, qual seu horário de funcionamento, quem são seus funcionários, como a
instituição é organizada, quais são os critérios de elegibilidade para o recebimento de uma
demanda etc. Por meio de vinhetas etnográficas sobre os casos de Célia, do filho de Lauro e da
filha de Maria da Graça, tentei demonstrar como todos os assistidos saem da Câmara com “uma
resposta no mesmo dia”, por mais que estas sejam muitas vezes profundamente insatisfatórias
e desperadoras.
Nos próximos capítulos, explorarei de que maneira esses fluxos de atendimento e
procedimentos de assistência são mobilizados nas relações entre os profissionais da Câmara e
outros agentes de Estado. Além disso, pretendo abordar bem como eles são significados e
vividos pelas pessoas que vão à Câmara em busca da efetivação do seu direito à saúde.
282

CAPÍTULO 6

“Resolução em saúde, é conversando que a gente se entende”:


mediação e judicialização enquanto tecnologias da gestão estatal

Como discutido anteriormente, a Câmara de Resolução de Litígios de Saúde foi criada


com os objetivos de reduzir a quantidade de demandas de saúde que são efetivamente
judicializadas nos Tribunais do Rio de Janeiro e diminuir o tempo para que essas demandas
sejam respondidas pelo poder público – uma vez que o Judiciário é tido como “moroso”. Para
realizar sua missão, a instituição atua na “mediação de conflitos” por meio de mecanismos
extrajudiciais, de modo a oferecer “soluções consensuais” e que promovam a “conciliação”
entre as partes. Na prática, como veiculado em alguns portais de notícias em reportagens de
2013 sobre a criação da Câmara: sua função é resolver as demandas antes que os pacientes
decidam “entrar na justiça”.
As múltiplas ações de mediação executadas na e pela a CRLS são classificadas pela
instituição como “resoluções administrativas”, uma categoria que se constrói a partir de uma
relação sempre tensa com outra: “judicialização”. Isto é, uma tentativa falha ou obstaculizada
de articular uma “resolução administrativa” pode resultar na “judicialização” do caso. De todo
modo, seja pela via do “diálogo interinstitucional” ou por meio do encaminhamento da demanda
para a Defensoria Pública, “resolução administrativa” e “judicialização” são ambas formas de
solucionar os litígios de saúde presentes no cotidiano da CRLS. São essas as duas categorias
que conformam o banco de dados estatísticos utilizado para mensurar o quão eficiente a
instituição é em cumprir com o seu principal objetivo.
O capítulo está dividido em três seções. Na primeira delas, abordo como as “resoluções
administrativas” oferecidas pela CRLS implicam sempre configurações triádicas. Assim,
descrevo como as atuações dos funcionários da Câmara dialogam com e transitam entre três
formas ideais de solução extrajudicial de conflitos – mediação, conciliação e arbitragem – sem
necessariamente aderir a nenhuma delas. Discuto também como as práticas de “diálogo
interinstitucional” que visam “solucionar administrativamente” as demandas dos assistidos por
meio da ameaça da Justiça atribuem três sentidos distintos à judicialização da saúde: 1) como
283

estratégia de intimidação; 2) como denúncia da violação de direitos; e 3) como punição para o


descumprimento de determinações.
Na segunda parte do capítulo, exploro como os funcionários da CRLS respondem à
crítica feita ao trabalho da instituição no que diz respeito ao ordenamento do fluxo do SUS. De
acordo com muitos dos profissionais que trabalham na Câmara, diferentes gestores em saúde
acusam a CRLS de fazer com que algumas pessoas “furem a fila do SUS”, o que, em última
instância, significa apontar a judicialização da saúde como a principal causa da formação de
uma espécie de “fila paralela” que anda por meio de ordens judiciais. A partir da etnografia,
intento discutir qual o sentido de uma crítica como essa em um cenário de crise como o
vivenciado nas unidades públicas de saúde do Rio de Janeiro. Por fim, busco também refletir
analiticamente sobre o que constitui, na prática, uma “resolução administrativa” e como ela se
comunica com outras práticas de gestão estatal.
Na terceira e última seção, questiono a ideia de que a Câmara é, acima de tudo, um
“espaço de diálogo”. Ao esmiuçar as múltiplas divisões no interior da instituição e as dinâmicas
de interação estabelecidas não apenas entre os profissionais-administradores e os assistidos-
administrados, mas também entre funcionários de diferentes setores, demonstro como a
segmentação do espaço, das atividades e do acesso à informação faz da CRLS um espaço
marcado por divisões e pela ausência de diálogo entre as partes.
Por fim, uma breve observação acerca do material trazido para a discussão. Ainda que
a função de oferecer “resoluções administrativas” para as demandas dos usuários seja da CRLS
como um todo, as vinhetas etnográficas apresentadas ao longo do capítulo têm como foco o que
acontece com os casos dos assistidos enquanto eles são atendidos no setor de análise técnica,
onde se dão os chamados “diálogos interinstitucionais”.

6.1 – A ameaça da Justiça: disciplinando relações e procedimentos

Como abordado anteriormente, para os gestores, uma das causas que levaram ao grande
crescimento no número de processos judiciais envolvendo o direito à saúde era a “falta de
diálogo” entre os agentes e instituições estatais responsáveis por lidar com essa questão:
membros de Secretarias de Saúde dos âmbitos municipal e estadual, defensores públicos,
procuradores e magistrados de todas as instâncias do Judiciário. É a partir desse diagnóstico
que se institui a Câmara de Resolução de Litígios de Saúde, um órgão cuja função é estabelecer
284

diálogos entre esses atores e no qual boa parte deles são reunidos em um mesmo espaço para
trabalhar de maneira conjunta e articulada em prol da “resolução administrativa” das demandas
dos assistidos.
A ideia dessa primeira seção do capítulo é discutir como a judicialização funciona como
espécie de instrumento de pressão em disputas interinstitucionais acerca da gestão e resolução
de demandas relacionadas à saúde apresentadas por assistidos e/ou seus representantes à CRLS.
Pretendo também refletir como o litígio em saúde configura um terreno no qual são disputados
não somente “direitos” – a partir da perspectiva dos demandantes –, mas também a atribuição
de “deveres” e “responsabilidades” entre as diferentes instituições com as quais a Câmara
“dialoga”.

“Diálogos interinstitucionais”: mediação, conciliação e arbitragem como tecnologias


de gestão

Danilo era um senhor de 63 anos que precisava fazer um cateterismo. Ao verificar a


situação do paciente na fila de espera, um dos médicos do setor de análise técnica resolveu
entrar em contato com o Núcleo de Regulação Interna (NIR) do hospital público que deveria
realizar o procedimento. Logo que foi atendido, o funcionário afirmou: “bom dia, aqui é o
fulano da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde. Eu estou com um paciente aqui que está
querendo “entrar na Justiça” porque ele está precisando fazer um cateterismo e não foi
marcado até agora. Você pode me ajudar?”. Após receber uma negativa e insistir em afirmar
que Danilo precisava fazer o procedimento com urgência, a ligação terminou em uma tentativa
frustrada de negociação com a instituição, pois o hospital estava sem os insumos necessários
para a realização do procedimento. Com isso, o caso de Danilo foi encaminhado para a
Defensoria Pública.

Um médico da SMS clicou no nome de João Ferreira dos Santos para atender, cuja
demanda era um medicamento em falta. Ao abrir o registro do assistido, o médico reagiu com
surpresa diante do “produto” solicitado, uma vez que o medicamento era considerado um dos
mais básicos para o controle dos sintomas da hipertensão Ao entrar em contato com a Clínica
da Família (CF) de referência de João por meio de uma ligação telefônica, o médico foi
informado que o estoque do medicamento de fato havia sido zerado há cerca de uma semana,
mas que no dia anterior havia chegado uma nova remessa. O médico então respondeu que
encaminharia o assistido para retirar o medicamento no local. O funcionário da CRLS
começou a elaborar o seu parecer ao mesmo tempo que começou a redigir um e-mail para a
CF que ele havia entrado em contato informando que paciente esteve lá e que foi orientado a
retornar à Clínica para retirar a medicação e, caso não conseguisse, deveria voltar à Câmara
para que a situação fosse judicializada. Em seu parecer, o analista escreveu que entrou em
285

contato com a unidade de saúde e que a informação a ele prestada era a de que o estoque do
medicamento havia sido normalizado e que, portanto, o assistido deveria ir até lá com seus
documentos médicos para adquirir a medicação nas próximas 24 horas.

As vinhetas etnográficas acima descrevem as situações de Danilo – um senhor de 63


anos, morador do bairro de São Cristóvão – e João – um senhor de 55 anos, morador do bairro
de Deodoro. Ambos apresentavam problemas cardíacos de “gravidade” variada: enquanto o
primeiro encontrava-se sensivelmente debilitado e foi representado na CRLS por sua esposa; o
segundo necessitava apenas de um medicamento para o controle da pressão arterial para que
pudesse continuar realizando suas atividades cotidianas. Assim como as narrativas trazidas
tanto no prólogo, quanto no capítulo anterior, os casos de Danilo e João ilustram como as formas
utilizadas pelos funcionários da análise técnica para “resolver administrativamente” as
demandas dos usuários da Câmara posiciona-os enquanto um terceiro elemento que busca
mediar o conflito entra duas partes.
A importância do terceiro elemento para a solução de conflitos foi objeto de reflexão
em um texto clássico de Simmel (2013). Ao comentar o trabalho do autor, Coelho (2013)
argumenta que na teoria simmeliana é a constelação de três que faz surgir o domínio do social
propriamente dito, instaurando formas sociais que não podem existir quando se trata de um
indivíduo isolado – cujo relacionamento com a sociedade se dá por meio da sua negação ou
ausência – ou das relações diádicas – cuja ameaça é sempre do retorno ao uno, seja por meio
da fusão ou da separação absoluta. Ou seja, para Simmel, a presença do terceiro elemento é
aquilo que permite que as duas partes mantenham-se em relação enquanto unidades separadas.
Simmel identifica três formas tipológicas das relações triádicas: 1) quando o terceiro
exerce o papel de árbitro ou de mediador; 2) o tertius gaudens: quando o terceiro se aproveita
da sua posição afastada em um conflito entre as duas partes; e 3) o divide et impera: quando o
terceiro incita o conflito para manter sua posição dominante ao produzir duas partes afastadas
e não solidárias entre si. Interesso-me aqui pela primeira delas: a relação de mediação ou
arbitragem estabelecida entre o terceiro elemento e as duas partes conflitantes. Para o autor, um
mediador é diferente de um árbitro, pois o primeiro deve conduzir o processo de conciliação
entre as partes a partir de uma perspectiva supostamente neutra, ao passo que o segundo, ao
deter um poder de decisão, sempre penderia para um dos dois lados do conflito. Segundo
Simmel,
286

Temos um tipo diferente de mediação quando o terceiro elemento


funciona como um elemento apartidário. Ou o apartidário produz a
concordância entre duas partes em colisão das quais ele se afasta depois
do esforço de criar contato direto entre as partes desconectadas ou em
litígio; ou, então, funciona como um árbitro que pesa as duas
reivindicações contraditórias, eliminando o que é incompatível entre
elas. (Simmel, 2013, p. 46).

As preocupações e formulações simmelianas ainda se encontram em pleno vigor nas


discussões contemporâneas sobre métodos de solução de conflitos que buscam evitar o litígio
judicial propriamente dito. Assim, antes de passar para a discussão sobre as práticas de
“resolução administrativa” dos litígios de saúde executadas na CRLS, é preciso contextualizar
como esse tipo de atuação extrajudicial vem se destacando atualmente no quadro das ações de
administração e governança dos múltiplos órgãos e instâncias que compõem o Estado brasileiro.
O desenvolvimento dos Métodos Extrajudiciais de Solução de Controvérsias (MESC)
tem a ver com o já mencionado problema do “excesso de judicialização” – e o consequente
congestionamento do Judiciário – e tem como os mais importantes marcos a promulgação da
Lei que instituiu o novo Código de Processo Civil (CPC), em março de 2015 e da Lei nº
13.140/2015, a qual dispõe sobre “a mediação entre particulares como meio de solução de
controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública”.
Valério (2016) salienta que as soluções extrajudiciais podem se dar por autocomposição –
quando as duas partes envolvidas no conflito negociam a melhor forma de resolver a questão
sem a necessidade de um terceiro elemento – ou por heterocomposição – quando há a
intervenção de uma terceira figura neutra que avalia os dois lados do conflito. As três maneiras
heterocompostas de resolver disputas entre partes e demandas por direitos que prescindem do
ajuizamento de uma ação são a mediação, a conciliação e a arbitragem. Todas elas pretendem
solucionar diferentes contendas de forma “rápida, eficiente, barata e acessível”.
A mediação e a conciliação são constituídas de um mesmo procedimento básico: o
estabelecimento de uma terceira parte isenta no conflito que tem o dever de “facilitar e
promover o diálogo” entre os litigantes para que eles cheguem a um consenso e/ou acordo que
seja satisfatório para ambos. A diferença é que a primeira é indicada para solucionar disputas
entre partes que possuam uma relação duradoura – e que podem, eventualmente, entrar em
conflito novamente – e a segunda dever utilizada para responder a litígios pontuais, cujas partes
dificilmente manterão contato após o fim do processo. Além disso, a conciliação é feita em
juízo – podendo ser judicial ou extrajudicial –, de modo que o terceiro elemento deve conduzir
o diálogo e o processo de negociação. A arbitragem, por sua vez, é sempre extrajudicial e
287

depende de um acordo e/ou contrato prévio entre que possua uma “cláusula arbitral” ou um
“compromisso arbitral”. Na arbitragem, são as partes que estabelecem tanto as regras quanto a
indicação do responsável pelo processo de arbitragem (Valério, 2004).
É difícil categorizar a CRLS de acordo com as divisões e classificações propostas pelos
MESC, pois suas práticas combinam e embaralham essas três formas extrajudiciais de solução
de conflitos. Alguns dos procedimentos adotados pelos funcionários da instituição podem ser
lidos como formas de mediação, principalmente se levarmos em consideração os pacientes
acometidos por doenças crônicas que necessitam de medicamentos de uso contínuo e vão à
Câmara regularmente para “renovar” a decisão judicial ou administrativa que determina o
fornecimento gratuito do seu tratamento. Outras formas de atuação poderiam ser entendidas a
partir da chave da conciliação – quando, por exemplo, alguém apresenta uma demanda pontual
de consulta ou exame. Contudo, ao se tornar uma espécie de “catraca” na porta de entrada da
judicialização de demandas em saúde para aqueles que recorrem ao atendimento das
Defensorias Públicas, a CRLS assume um caráter de arbitragem, pois passa a definir quem,
quando e sob quais condições alguém pode ingressar de fato com uma ação judicial.
Digo que a Câmara se configura como uma “catraca” na porta de entrada da
judicialização da saúde porque o acordo firmado entre as instituições que a compõem prevê que
as pessoas que por ventura procurarem os núcleos regionais da DPE-RJ e da DPU, sejam
encaminhadas para um “primeiro atendimento” na Câmara. Além disso, esse convênio também
determina que as Defensorias não ajuízem ações até que sejam esgotadas todas as possibilidades
de “solução administrativa” da demanda, cuja avaliação e decisão final cabem, na maioria das
vezes, à própria CRLS. Tendo em mente a distinção entre problemas internos e externos
discutida anteriormente, argumento que os funcionários – e, no limite, a própria CRLS –
figuram como terceiro elemento em diferentes configurações triádicas, podendo transitar entre
as categorias propostas pela tipologia simmeliana. Ou seja, eles podem se aproximar tanto do
papel de mediador – quando em interação com os assistidos –, quanto do de árbitro – quando
em interação com outros agentes estatais. Esses deslizamentos se dão na medida em que há
sempre a possibilidade de se acionar mais ou menos poder e/ou autoridade do que se tem
oficialmente, de acordo com o contexto da interação.
Como dito anteriormente, no plano institucional, a Câmara foi criada para “mediar” o
conflito entre os cidadãos e o Estado no que diz respeito às chamadas demandas de saúde, de
modo a buscar “resoluções administrativas” para a questão. Seu objetivo último seria tentar
promover uma espécie de “conciliação” entre aquilo que se encontra disponível na rede pública
de saúde em termos de equipamentos, profissionais e tecnologias; e o que é concebido abstrata
288

e idealmente na Constituição Federal de 1988 enquanto um “direito” de toda a população e um


“dever” do Estado. Ou ainda, entre o que seria o ideal e o que é possível.
Tal formulação se parece bastante com o que postulou Simmel (2013) em sua tipologia
sobre a tríade: a mediação é entendida como um processo de tradução objetiva das demandas
apresentadas pelas partes e o mediador tem a função de transmitir ao outro lado somente o que
seria objetivo, de forma a reduzir os elementos que alimentariam o conflito interminavelmente
e resolvê-lo de uma “maneira razoável”. No cotidiano da CRLS, os funcionários se deparam a
todo tempo com situações nas quais de um lado estão sujeitos que reivindicam uma série de
bens de saúde – inclusive medicamentos, exames etc. não prescritos pelos profissionais de
saúde – e do outro estão agentes e órgãos estatais que afirmam que o Estado não tem condições
de arcar com tudo que é demandado. Enquanto um terceiro elemento de mediação dessa disputa,
os analistas técnicos verificam, quantificam e avaliam as solicitações feitas pelos assistidos em
um processo que busca determinar o que é e o que não é essencial, razoável e possível quando
se trata da efetivação do direito à saúde, produzindo um certo efeito de justiça, uma vez que “a
execução da justiça pode, portanto, ser comparada à realização de uma disposição justificável
de pessoas e coisas” (Boltanski, 1990, p. 93, tradução minha).
Em suma, mais do que mediar e conciliar os conflitos entre os cidadãos e o Estado e
arbitrar as divergências entre atores do Sistema de Justiça e gestores públicos de saúde; ao
estabelecer “diálogos interinstitucionais”, a CRLS configura-se como um terceiro elemento que
cumpre as funções de disciplinar as relações entre diferentes sujeitos e órgãos governamentais
e regular os procedimentos e regras por meio das quais essas demandas devem ser geridas.
Nesse sentido, mediação, conciliação e arbitragem são entendidas aqui não apenas como
“métodos extrajudiciais de solução de conflitos”, mas fundamentalmente como tecnologias de
gestão. Ou seja, penso que esses aparatos administrativos funcionam para modelar não só o
conteúdo prático do direito à saúde – ao definir, por exemplo, que receber um medicamento
para o tratamento de uma doença crônica é “razoável”, mas que pedir 150 fraldas geriátricas
por mês é “descabido” e “exagerado” –, mas também quem deve arcar com os custos do seu
financiamento, como esse direito deve ser implementado, qual instância administrativa é
responsável pela sua execução e qual o prazo máximo para o seu cumprimento.
289

“Para evitar uma demanda judicial”: a judicialização como instrumento de pressão,


forma de denúncia e mecanismo de punição

O filho de Bruno compareceu à CRLS no início do mês de junho de 2017 alegando que
seu pai estava aguardando a marcação de uma consulta em urologia há muito tempo. Após
passar pela triagem e pelo atendimento, os documentos do assistido foram encaminhados para
o setor de análise técnica da CRLS. Lá, um dos funcionários verificou que a solicitação havia
sido inserida pelo profissional de saúde que acompanha o quadro de Bruno no Sistema
Nacional de Regulação (SISREG) em dezembro de 2016, classificada como “risco amarelo” –
cujo prazo máximo para atendimento é de até 90 dias. Portanto, a data limite para a
autorização do pedido e marcação da consulta já havia sido ultrapassada há bastante tempo.
Diante disso, o farmacêutico ligou para a Central de Regulação Unificada do Rio de Janeiro
(REUNI-RJ). Durante a conversa, ele afirmou que o filho de Bruno estava na CRLS e tinha a
intenção de judicializar a questão. A pessoa do outro lado da linha solicitou que os documentos
de Bruno fossem encaminhados por e-mail para a Central e que eles resolveriam a situação.
Após desligar o telefone, o funcionário da Câmara começou a escrever seu parecer, no qual
ele solicitou uma posição da REUNI em um prazo de 7 dias, caso contrário o caso seria
encaminhado para a Defensoria Pública para que fosse efetivamente judicializado.

O assistido Roberto foi representado na CRLS por sua filha mais velha. Com 64 anos,
sua demanda era por consultas em gastroenterologia e hepatologia. O paciente apresentava
um quadro clínico de varizes esofagianas, úlcera gástrica e cirrose hepática, de modo a sentir
muitas dores abdominais e eventualmente vomitar sangue. Ao consultar o nome do assistido
na plataforma do SISREG, a analista da Câmara percebeu que a solicitação das consultas
havia sido inserida pela equipe de uma Clínica da Família com a “classificação de risco
amarelo” nos últimos 15 dias, de modo que o prazo ainda não havia sido ultrapassado. Em seu
parecer, encaminhado para a Clínica que atendeu Roberto, ela informou que a consulta ainda
estava dentro do período possível para a regulação. No entanto, no meio do parecer consta os
seguintes frases: “PEDIMOS AO NÚCLEO INTERNO DE REGULAÇÃO DA CAP DE
REFERÊNCIA QUE AUXILIE AS EQUIPES ASSISTENTES DO CASO NO INTUITO DE
OTIMIZAR O PROCESSO DE REGULAÇÃO DA DEMANDA AQUI APRESENTADA.
PEDIMOS, NO INTUITO DE EVITAR DEMANDA JUDICIAL, QUE AS EQUIPES
RESPONSÁVEIS ASSISTAM AO CASO COM EMPENHO PARA A RESOLUÇÃO DA
DEMANDA PELAS VIAS ADMINISTRATIVAS PRECONIZADAS PELA SMS/RJ.”

A representante de Gerson compareceu à CRLS em agosto de 2017 solicitando fraldas


geriátricas e bolsas coletoras de fezes. Gerson tem 59 anos e sofre de incontinência fecal.
Enquanto me mostrava como é feito o procedimento de análise e de elaboração do parecer, o
médico da Câmara me explicou que as bolsas coletoras não fazem parte da lista oficial de
insumos dispensados pelo SUS, mas que mesmo assim seria possível tentar uma “solução
administrativa” para o caso, já que essas bolsas são amplamente utilizadas nas internações
dos hospitais. Sem entrar em contato prévio com ninguém, ele elaborou um parecer que deveria
ser encaminhado para a Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência do assistido e para a
290

Coordenadoria de Saúde da Área de Planejamento (CAP)60 correspondente. No documento, o


médico solicitou que fosse feita uma “articulação” entre algum hospital público da região e a
Clínica da Família que atende Gerson, de modo que as bolsas coletoras fosse transferidas para
a unidade básica, para que a farmácia de lá pudesse fornecer e regular a dispensação do item
ao paciente. Ele informou também que caso essa articulação não fosse possível, a UBS deveria
responder ao e-mail e anexar um relatório a ser direcionado para a Defensoria Pública
detalhando os motivos da falha na “articulação interinstitucional”. Além disso, o funcionário
pediu a revisão da quantidade de fraldas solicitadas por parte do médico do paciente, tendo
em vista que o número estava fora do limite de 120 fraldas mensais. Por fim, o parecer
comunicou ao assistido que caso a CAP não respondesse à solicitação em 15 dias, ele deveria
retornar à CRLS para que o caso fosse encaminhado para a DPE-RJ.

A filha de Jorge foi à CRLS pela primeira vez em maio de 2017. Ela alegou que seu pai
tem 72 anos e estava aguardando a realização de uma cirurgia para tratar de uma hérnia
inguinal desde agosto de 2016. Na época em que o pedido foi inserido no Sistema de Regulação,
Jorge foi classificado como um paciente de “risco amarelo”. Entretanto, sua família foi
informada que não havia material no hospital para a realização do procedimento e que eles
deveriam aguardar. Na ocasião de seu primeiro atendimento na CRLS, houve uma tentativa de
contato com o hospital federal que faz o acompanhamento do paciente e foi solicitado um prazo
para que a unidade se pronunciasse sobre o caso. No início do mês de julho, a filha de Jorge
se dirigiu novamente à CRLS e recebeu a mesma resposta: que seria preciso aguardar mais 15
dias para que a direção do hospital se pronunciasse. No final do mês, após o vencimento do
novo prazo, ela compareceu à Câmara pela terceira vez. Quando a demanda chegou ao setor
de análise, a funcionária conferiu o histórico do caso no sistema e tentou entrar em contato
com o hospital para falar sobre a situação de Jorge. Após duas ligações não atendidas em um
período de 40 minutos, ela conseguiu falar com um profissional do setor de cirurgias. Ela
informou que o caso do paciente era grave, que o prazo para a realização do procedimento já
havia sido ultrapassado há muitos meses e que razão de seu contato era para “evitar uma
demanda judicial”. O profissional do outro lado da linha pediu que ela retornasse a ligação
no turno da tarde, que ele levaria o caso para apreciação. Enquanto aguardava para entrar
em contato novamente com o hospital, outra analista da CRLS havia selecionado o caso para
análise. A outra profissional também entrou em contato com o hospital que faz o
acompanhamento de Jorge e foi informada que ele precisaria ser operado em outro local, pois
por conta dos problemas com equipamentos e da falta de material e de pessoal, a unidade não
estava realizando o procedimento cirúrgico indicado em pacientes maiores de 70 anos. Com
essa informação, a funcionária da Câmara emitiu um parecer encaminhando Jorge para que
a UBS de sua região inserisse novamente a solicitação no SISREG.

60
O município do Rio de Janeiro encontra-se dividido em cinco grandes Áreas de Planejamento (AP). No campo
da saúde, essas APs são divididas em dez Coordenadorias de Saúde das Áreas de Planejamento (CAP): 1.0 (Centro,
Zona Portuária e Ilha de Paquetá), 2.1 (Botafogo e adjacências), 2.2 (Tijuca e adjacências), 3.1 (Ramos e
adjacências), 3.2 (Méier e adjacências), 3.3 (Madureira e adjacências), 4.0 (Barra da Tijuca e adjacências), 5.1
(Bangu e adjacências), 5.2 (Campo Grande e adjacências) e 5.3 (Santa Cruz e adjacências).
291

A mãe de Marcela foi pela primeira vez à CRLS no final de maio de 2017. Sua filha, de
12 anos, estava aguardando a chegada do material necessário para a realização de uma
cirurgia no fêmur direito para corrigir uma dismetria de 10cm em relação à perna esquerda.
A solicitação do material foi feita através de um memorando em março de 2017 e a mãe de
Marcela foi informada que o procedimento seria feito imediatamente após a chegada dos
insumos. Diante da não previsão para a aquisição do material, a representante da assistida
solicitou que seu caso fosse “agilizado” com o auxílio da Defensoria Pública da União (DPU).
No final de julho, a mãe de Marcela compareceu novamente à CRLS para informar que a
situação de sua filha ainda não havia sido resolvida e que a criança estava desenvolvendo
outras complicações de saúde relacionadas à diferença no tamanho de suas pernas. Nessa
ocasião, a profissional da Câmara tentou entrar em contato com o hospital diversas vezes, sem
sucesso. O parecer elaborado pela analista foi um pedido de 7 dias para que a unidade de
saúde se pronunciasse sobre o caso. Dois dias depois, a funcionária da CRLS tentou novamente
entrar em contato com o hospital, mais uma vez sem sucesso. Diante disso, ela comentou
comigo que ligaria para a mãe de Marcela e pediria a ela que retornasse à CRLS para que
demanda fosse judicializada e o caso encaminhado para a Defensoria, uma vez que a assistida
– e, de certo modo, a própria funcionária – já havia esperado bastante tempo e o hospital não
havia oferecido nenhuma solução ou resposta.

Cristina compareceu pela primeira vez à CRLS em dezembro de 2016. Ela sentia dores
constantes no ombro direito e já havia feito cerca de três radiografias ao longo daquele ano
na tentativa de diagnosticar a origem do sintoma, todas sem sucesso. Diante disso, o médico
que a atendeu da última vez solicitou uma ressonância magnética. O pedido foi inserido no
SISREG em setembro de 2016 com “classificação de risco verde”, ou seja, com um prazo de
até 180 dias para o atendimento. Na ocasião, ela foi à Câmara dizer que estava sentindo muitas
dores e que não poderia esperar todo esse tempo para fazer o exame, pois ela enfrentava cada
vez mais dificuldade de executar seu trabalho e não poderia pedir afastamento sem um
diagnóstico. Nesse primeiro atendimento, os documentos médicos entregues pela assistida
atestavam a necessidade do exame e a sua condição de dor crônica. Diante disso, o analista
encaminhou um e-mail para a UBS de referência da assistida pedindo que a classificação de
risco da paciente fosse revista, uma vez que a data limite para a realização do exame ainda
estava distante. Em abril de 2017, Cristina compareceu novamente à Câmara para demandar
a judicialização do pedido de exame. No setor de análise, a funcionária observou o histórico
da assistida e verificou na página do SISREG qual era a situação da solicitação de Cristina.
Para sua surpresa, a classificação de risco da assistida havia sido alterada em janeiro de 2017
para “risco vermelho”, o que estabelecia um prazo de 30 dias para o seu atendimento. Ao ler
atentamente os detalhes da modificação do pedido, ela encontrou a seguinte frase no campo
do formulário no qual o regulador deve dizer as razões do pedido ou da alteração:
“SOLICITAÇÃO DE RISCO ALTERADA A PEDIDO DA CRLS”. Reproduzo aqui a caixa alta
porque ela não é comum no preenchimento do formulário de inserção de pedido do sistema de
regulação. A funcionária da Câmara não reagiu bem ao ler isso e quando lhe perguntei o
motivo ela me respondeu que a alteração da classificação de risco deveria ser feita por conta
do quadro clínico da paciente e não por ser um “pedido da CRLS”. Segundo ela, escrever isso
na plataforma é a forma que muitos dos profissionais de saúde têm de mostrar
292

descontentamento com a atuação da Câmara, o que reforçaria uma ideia de que a CRLS é um
órgão que “fura a fila” do SUS. Independente do motivo da alteração, a classificação de risco
foi modificada, o que estabeleceu um novo prazo para a realização do exame de Cristina, que
em abril já havia sido ultrapassado há 3 meses. Em seu parecer, ela pediu que a regulação se
pronunciasse sobre a questão em 7 dias. Caso o contrário, a assistida seria encaminhada para
a Defensoria Pública.

No capítulo anterior, descrevi que o cerne do trabalho da CRLS é buscar “soluções


administrativas” para os pleitos dos assistidos. Como consta nos manuais para a solução
extrajudicial de conflitos e mencionado por alguns dos funcionários da Câmara durante o
trabalho de campo, o papel de um mediador é “abrir caminho ao diálogo”. Na subseção anterior,
abordei quem são os atores que figuram nos “diálogos interinstitucionais” promovidos pela
CRLS e quais posições eles ocupam. Agora, discuto como tais “diálogos” se dão, qual seu
conteúdo e como estes se transformam ou não em uma “resolução administrativa”. Meu foco
está no questionamento sobre o que faz com que a ameaça da Justiça seja eficaz em alguns
casos e em outros não.
A busca por uma “resolução administrativa” consiste em basicamente tentar estabelecer
um “diálogo interinstitucional” – especialmente no que diz respeito à comunicação entre órgãos
do Poder Judiciário e instituições do setor da Saúde – que, se bem sucedido, fará com que o
caso não seja encaminhado para a Defensoria Pública e posteriormente judicializado. Como
mencionei no início do capítulo, as “resoluções administrativas” constituem-se sempre em uma
relação tensa com a possibilidade de “judicialização”. Essas categorias se encontram em pontos
distintos de em um modelo ideal de solução de demandas sanitárias. Isto é, parte-se sempre do
princípio de que o Estado precisa cumprir seu dever constitucional de promover e garantir o
acesso à saúde para toda a população e que a judicialização está no horizonte de possibilidades
para responder a essa necessidade, mas que é preciso tentar todas soluções alternativas
disponíveis antes de apelar para tal caminho. Assim, três são as possibilidades de andamento
das demandas: 1) há casos em que é possível “solucionar administrativamente” a questão e
responder ao pleito do assistido; 2) pode-se tentar primeiramente uma “resolução
administrativa” e diante da impossibilidade de efetivação, por qualquer motivo que seja,
recorre-se à “judicialização” para resolver a questão; 3) existem casos em que não há a
possibilidade de tentar uma “solução administrativa” e são encaminhados diretamente para a
Defensoria Pública.
293

O fluxograma a seguir visa mostrar como são feitas as tentativas de solução das
demandas por parte dos funcionários do setor de análise técnica da Câmara.

Figura 15 – Fluxograma de solução de demandas no setor de análise técnica da CRLS

A demanda está Não Encaminhamento


de acordo as para a Unidade
regras da CRLS? Básica de Saúde

Sim Tentativa de
“diálogo interinstitucional”
bem sucedida?

“Resolução
Sim
administrativa”
efetiva?
Não
Encaminhamento
Não para a Defensoria

Sim
Fim

Judicialização

Fonte: Elaboração própria.

Ao acompanhar as rotinas de trabalho dos funcionários da CRLS, pude perceber como


um domínio indefinido frequentemente chamado de “Justiça” – que apesar de semelhante, não
deve ser confundido com o Sistema de Justiça propriamente dito – e, mais especificamente, a
possibilidade do seu acionamento adquire três sentidos diferentes de acordo com o contexto.
Enquanto permanece como uma virtualidade, a ameaça da Justiça pode ser entendida como um
instrumento de pressão no processo de mediação do conflito entre um assistido e o Estado.
Quando efetivada – isto é, quando o caso é encaminhado para a Defensoria e não
necessariamente judicializado –, ela se torna tanto uma forma de apresentar uma denúncia de
que os direitos dos cidadãos estão sendo descumpridos e/ou violados; quanto uma espécie de
mecanismo de punição para as instituições que não obedecem aos prazos e determinações
estabelecidas pelos funcionários da Câmara.
294

Os “diálogos interinstitucionais” são estabelecidos de diferentes maneiras, de acordo


com o nível de formalidade do meio de comunicação escolhido pelo funcionário no momento
da análise técnica: ligações telefônicas, troca de e-mails ou envio de ofícios. Obviamente, essas
formas de estabelecer contato com os agentes e instituições estatais possuem “pesos” distintos
e implicam diferentes reações, uma vez que, por exemplo, há uma obrigação formal de
responder a um ofício e um e-mail pode vir a figurar enquanto prova da tentativa de negociação
com os gestores das Secretarias de Saúde em um eventual processo judicial. De todo modo,
nem sempre tais tentativas são bem sucedidas. Muitas vezes ninguém atende ao telefone ou
responde a um e-mail. Contudo, isso não impede os funcionários de produzirem pareceres que
estabelecem prazos para a solução da demanda, os quais performam e sustentam a existência
de um “diálogo interinstitucional” entre a CRLS e outros órgãos estatais tanto de gestão da
saúde, quanto do Sistema de Justiça.
Como um instrumento de pressão, a ameaça da Justiça é capaz de mobilizar um certo
conjunto de atores sociais – médicos, farmacêuticos, chefes de setor, diretores de unidades de
saúde etc. – e de fazer com que se movimentem determinadas engrenagens no processo de
gestão do fluxo de acesso ao Sistema Único de Saúde. Isto é, a possibilidade do caso ser
encaminhado para a Defensoria Pública é utilizada como espécie de estratégia de negociação
interinstitucional para oferecer uma “resolução administrativa” para as demandas levadas à
CRLS pelos assistidos e/ou seus representantes.
É importante notar que os funcionários não enxergam a possibilidade de judicialização
como um instrumento de pressão mobilizado apenas por eles próprios, mas também pelos
assistidos da Câmara. Essa perspectiva foi compartilhada comigo por um dos profissionais da
análise técnica durante um atendimento. Ao ler os documentos médicos trazidos por uma
assistida que estava solicitando a marcação de uma consulta com especialista em oftalmologia,
ele verificou que não havia nada naqueles papéis que indicavam que aquele era um caso urgente.
Ao acessar a página do SISREG, ele constatou que não havia nenhuma solicitação registrada
em nome da assistida. Enquanto conversávamos, ele disse que via essa situação como uma
tentativa da assistida de coagir os profissionais de saúde da Clínica da Família ao retornar à
instituição portando um “ofício da Defensoria Pública”. Na construção de sua explicação, ele
deduziu que os profissionais da unidade não haviam inserido o pedido no sistema de regulação
porque uma consulta em oftalmologia era uma das mais difíceis de se conseguir na rede pública
de saúde do Rio de Janeiro nesse momento de crise. Assim, como o caso dela não era uma
emergência, a equipe da Clínica provavelmente teria optado por não “se dar ao trabalho e perder
tempo” inserindo na fila de espera uma paciente que não “necessitava” de um serviço tão
295

especializado e escasso como o que ela demandou. Ou seja, sua vontade de ser vista por um
médico oftalmologista foi considerada ilegítima pelo funcionário da Câmara, o qual escreveu
em seu parecer que a CRLS não era uma “porta de entrada do SUS” e que a assistida deveria
procurar o núcleo de regulação da sua Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência.
A promessa de encaminhamento do assistido para a Defensoria Pública é mencionada
pelos funcionários da Câmara em todas as interações entre eles e outros agentes de Estado na
busca por uma “solução administrativa” para o litígio. É essa constante presença que é ao
mesmo tempo espectral – pois figura como uma espécie de fantasma – e virtual – pois pode vir
a se tornar “real” a qualquer momento – da “Justiça” que me autoriza a afirmar que a
possibilidade de judicialização opera como uma espécie de mecanismo resolutivo em si mesmo.
Isto é, na medida em que exerce uma determinada forma de pressão para que outras instituições
cumpram com aquilo que é considerado como parte de suas atribuições, a ameaça da Justiça
pode ser o suficiente para que um conflito e/ou uma reivindicação não venha a se tornar
efetivamente um litígio.
Tal mecanismo só pode ser eficaz em um contexto no qual os sujeitos compartilham a
ideia de que a judicialização é algo que deve ser evitado. Em uma perspectiva como essa, a
interferência ou investigação impostas por um processo judicial podem representar um tipo de
perigo não só para as instituições, mas também para os funcionários que respondem por elas.
Por conta disso, haveria uma espécie de acordo ora tácito, ora explícito, entre diferentes órgãos
e agentes estatais para que as situações conflitivas sejam resolvidas sem que se apele para a
judicialização e a intervenção de um terceiro elemento.
Assim como a mediação, o estabelecimento de acordos e convênios entre distintos
órgãos e pastas também funcionam como tecnologias de gestão que administram
procedimentos e condutas executados por certos agentes de Estado, assim como disciplinam as
relações entre distintos órgãos estatais. Um exemplo de acordo estabelecido entre instituições
para evitar a intervenção do Judiciário é o celebrado entre a CRLS e a Central de Regulação do
SISREG no município do Rio de Janeiro. Por meio desse pacto, a Câmara se comprometeu em
não encaminhar para a Defensoria os casos cujo prazo para a regulação já estivesse vencido
sem comunicar à Central antes. Em contrapartida, a Central deve apresentar não apenas uma
justificativa, mas, principalmente, uma solução para a questão em um período de 7 dias. Se após
esse tempo a Central não agendar a consulta e/ou exame solicitado, a Câmara está autorizada a
encaminhar o assistido para a Defensoria Pública.
Para compreender a eficácia da ameaça e a movimentação por ela imposta, é preciso
recuar alguns passos e buscar entender de que modo “A Justiça” se constitui como um domínio
296

que possui o poder de fazer com que ordens sejam obedecidas – o tão questionado “cumpra-se”
dos mandados judiciais. Uma das pistas para construir esse raciocínio é pensar que no âmbito
do diálogo entre a CRLS e as instituições de saúde pública, é o desconhecimento e a
imprevisibilidade do funcionamento do Poder Judiciário que sustentam essa espécie de poder
simbólico (Bourdieu, 1989) contido na ameaça de que o caso pode ser encaminhado para a
Defensoria e, consequentemente, ser judicializado.
Compreendo tal imprevisibilidade não como um ponto falho do Sistema de Justiça –
uma vez que a “letra fria da lei” se pretende objetiva e imparcial – ou como resultado de
supostas “lacunas” existentes na legislação relativa ao direito à saúde, como apontado por
aqueles que possuem posições críticas em relação à judicialização da saúde. A
imprevisibilidade e a aleatoriedade são traços fundamentais de uma concepção de Estado que
é, antes de tudo, um conjunto de processos que não são fixos nem institucional e nem
geograficamente (Trouillot, 2001; Gupta, 2012) e cuja opacidade que caracteriza os atos e
práticas políticas é oriunda da própria máscara que produz o Estado enquanto uma ideia
(Abrams, 2006).
Contudo, a eficácia da ameaça da Justiça não se fundamenta somente na
imprevisibilidade do Judiciário. Outro elemento que precisa ser levado em consideração quando
pensamos o eventual êxito da pressão da judicialização é a convivência de uma visão
compartilhada do que seria o ideal do direito à saúde – e quais seriam as atribuições de cada
instituição para sua efetivação – com uma certa pragmática das possibilidades – isto é, as
construções discursivas que sustentam uma narrativa do tipo “fazer o que dá com o que se tem”.
Isto é, pressionar para que as unidades de saúde atendam um determinado paciente é um tipo
de constrangimento que só faz sentido e adquire força em um contexto no qual o universo moral
compartilhado entre os atores entende o valor da vida (value of life) como algo sagrado e que
precisa ser preservado a todo custo, ao mesmo tempo em que a cotação das vidas (worth of
lives)61 permanece profundamente desigual entre diferentes grupos populacionais e em distintos
contextos empíricos (Fassin, 2016).
Assim, ao encaminhar o caso para a Defensoria, os funcionários da CRLS realizam uma
forma denúncia de que algo está “errado” e uma acusação de que talvez esses sujeitos do outro
lado não estejam cumprindo devidamente as suas funções. O encaminhamento para uma das
Defensorias Públicas que compõem o conjunto de órgãos que constitui a CRLS significa o

61
Opto por traduzir value of life e worth of lives como “valor da vida” e “cotação das vidas”, respectivamente,
para reproduzir o raciocínio do autor de “commoditização” e precificação das vidas no mundo contemporâneo em
oposição a um “valor sagrado” atribuído à noção de vida. Agradeço à amiga Carolina Maia pela ajuda na tradução.
297

“fracasso” do empreendimento de “resolução administrativa”. Entretanto, ao mesmo tempo em


que representa o esgotamento dessas possibilidades, o envio do caso para a Defensoria abre um
caminho alternativo e com outro potencial de solução para a demanda sanitária de uma pessoa.
Assim, os pareceres técnicos elaborados pelos analistas da Câmara remetidos aos defensores
configuram uma peça fundamental para a construção de uma denúncia de que os direitos de um
paciente estão sendo violados e/ou descumpridos, em especial o direito à vida e o direito à
saúde.
Em sua discussão sobre a justiça como competência, Boltanski (1990) propõe um
sistema actancial da denúncia composto por quatro elementos: vítima: aquele que sofre algum
infortúnio e/ou violência; denunciante: a pessoa moralmente comprometida em denunciar uma
determinada mazela ou violação e que pode ser a própria vítima ou não; perpetrador: aquele
que é acusado de causar o sofrimento da vítima; e juiz: o responsável por julgar a veracidade
da denúncia e a culpa do perpetrador. Ainda que seja composto por quatro figuras, tal formação
acaba por se tornar também uma configuração triádica, uma vez que mesmo que o denunciante
e a vítima sejam pessoas diferentes, suas perspectivas se aglutinam de um modo que faz com
que eles se encontrem em um mesmo lado da disputa.
Tendo esse esquema como modelo, não é difícil localizar a posição ocupada por cada
um no contexto da CRLS. Em uma etapa pré-processual, os assistidos são as vítimas, a Câmara
é a denunciante, a unidade de saúde – que representa o Estado – é a perpetradora e a Defensoria
é o juiz responsável por avaliar a legitimidade da demanda. No entanto, quando o pedido é
efetivamente judicializado e a denúncia alcança outro patamar, os defensores deixam de ocupar
a posição de juízes e se tornam também denunciantes junto com os analistas da Câmara.
Na ocasião de instauração de um processo judicial, os pareceres elaborados pelos
analistas da CRLS figurarão como documentos que são simultaneamente uma prova técnica –
afinal, é um profissional de saúde que assina e atesta a necessidade do medicamento, exame,
consulta etc. do paciente – e moral – ao narrarem que foram feitos esforços de resolver a questão
administrativamente, porém sem sucesso. É levando isso em consideração que argumento que
ao mesmo tempo em que opera como uma denúncia, o encaminhamento para a Defensoria
Pública funciona também como um mecanismo de punição para as instituições que descumprem
os acordos estabelecidos e/ou que não respondem às determinações estabelecidas pelos
funcionários da Câmara.
Durante o trabalho de campo, pude acompanhar em diferentes ocasiões a reação
indignada de um membros da equipe de análise diante do não cumprimento de um prazo e da
recusa ou impossibilidade do agente no outro lado de oferecer uma “solução administrativa”
298

para a questão. Em uma delas, registrei a seguinte fala de um dos analistas da CRLS enquanto
ele estava ao telefone com um funcionário da Central de Regulação do município: “A gente fez
um acordo com vocês para não mandar a pessoa para Defensoria e aí passa o prazo e ninguém
responde? Isso está errado. Se é assim que vai ser, a gente vai parar de tentar articular e vai
deixar o juiz cobrar da regulação”. Após desligar, o funcionário fez questão de encaminhar o
caso para a Defensoria Pública e redigir em seu parecer que o prazo para atendimento da
demanda do assistido em questão já havia sido ultrapassado e que o agente da regulação não
ofereceu nenhuma explicação razoável para o descumprimento do acordo estabelecido entra a
CRLS e a Central de Regulação.
Em resumo, como as vinhetas etnográficas descritas no início da subseção deixam
explícito, a ameaça de judicialização constitui um dos caminhos pelos quais algumas demandas
sanitárias podem ser ou efetivamente são resolvidas. Quando o itinerário de resolução
administrativa não surte o efeito pretendido, apela-se para a judicialização de fato. A CRLS
pode ser entendida, então, como um órgão de Estado que opera através da negociação com e da
ameaça a outros órgãos do Estado. É por meio desse processo de constrangimento – o qual é
operado sob um verniz de “mediação e “conciliação” – que as práticas de gestão executadas na
e pela Câmara disciplinam as relações entre diferentes órgãos estatais, bem como modelam e
orientam como variados procedimentos burocráticos devem ser feitos.
As particularidades desse cenário em que “o Estado ameaça o Estado” serão discutidas
no capítulo seguinte. Por ora, apresento na próxima seção algumas reflexões sobre o lugar
ocupado por tais práticas de gestão encerradas nos “diálogos interinstitucionais” na malha de
processos e instituições burocráticas que compõem e conformam uma certa ideia de Estado.

6.2 – “O SUS é para todos, para todos que reivindicam”: “resoluções


administrativas”, burocracias e as práticas de gestão estatal

De acordo com alguns dos funcionários da CRLS, uma das principais críticas recebidas
pelo órgão por parte de outros agentes de Estado é a de que a Câmara faz com que as pessoas
“furem a fila do SUS”, criando uma espécie de “fila paralela” que andaria de acordo com os
“mandos e desmandos judiciais”. Para eles, essas pessoas erroneamente enxergam a CRLS de
uma maneira equivocada ao pensa-la como uma instituição que promove arranjos e jeitinhos
299

para que não haja uma intervenção judicial em uma dada situação. Em última instância, tais
atores perceberiam a atuação da Câmara como algo que acaba por reproduzir aquilo que os
gestores e profissionais de saúde que atuam nas unidades de saúde propriamente ditas – e não
aqueles que ocupam cargos de gestão nas Secretarias de Saúde – apontam como um dos
principais problemas da judicialização da saúde: a desorganização do fluxo de atendimento
provocada pela interferência de agentes e/ou órgãos externos que não sabem como o SUS
funciona “na prática”.
Para as pessoas que trabalham na Câmara, essa crítica nem sempre era explicitada ou
diretamente endereçada à instituição. Muitas vezes, a ideia de que agentes externos enxergavam
a CRLS dessa maneira era uma interpretação feita a partir das respostas recebidas pela Câmara
em suas tentativas de “articulação” com outras instituições – em especial nas situações em que
os pareceres emitidos sugeriam a necessidade de uma reavaliação da “classificação de risco”
atribuída a um determinado pedido de consulta e/ou exame. Em uma dada ocasião, essa
acusação deixou de ser uma “censura velada”.
Em meados de julho de 2017, enquanto estava acompanhando o trabalho do setor de
análise técnica, a coordenação da Câmara teve uma reunião com representantes de algum órgão
estatal local. Como mencionado na introdução, tive pouco contato com a equipe de coordenação
e por isso não acompanhei e nem perguntei diretamente às coordenadoras o motivo do encontro
ou sobre o que ele tratou. Porém, conversando com os profissionais da análise, todos disseram
que aquela havia sido uma reunião tensa, cujo objetivo foi apresentar o funcionamento da
Câmara para tais agentes. A informação que circulou entre os funcionários era de que aqueles
eram membros do Ministério Público – ninguém soube precisar se Estadual ou Federal – que
teriam ido averiguar uma denúncia de que a intervenção da Câmara fazia com que algumas
pessoas “furassem a fila do SUS”.
Visões e críticas como essas não são entendidas como resultado exclusivo da atuação
da CRLS, mas sim como uma consequência não necessariamente prevista e/ou desejada da
intervenção judicial na área da saúde. No segmento qualitativo da já mencionada pesquisa sobre
a judicialização da saúde no Brasil encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os
coordenadores Azevedo e Aith (2019) afirmam que “os pedidos de vagas concedidos pela via
judicial podem ter o efeito de ‘furar a fila’ de espera por leitos, o que não só é potencialmente
injusto com os pacientes, mas também desorganiza a regulação de vagas em geral.” (p. 29). De
acordo com eles, muitos dos agentes estatais ouvidos durante a pesquisa entendem a
judicialização como elemento central na criação de “filas paralelas”, como mencionado na
seguinte passagem:
300

Os gestores entrevistados entendem que a judicialização pode ser lida


como uma “epidemia injusta”, que prejudica a parcela mais carente da
população, ao desequilibrar o sistema. Um dos desequilíbrios
mencionado é o das filas para cirurgias. Em seu exemplo, quando há
um processo judicial demandando cirurgias, aqueles que ingressam
judicialmente “pulam a fila”, pegando o lugar daqueles que entraram
pelo SUS e aguardam seu lugar regularmente. (Azevedo e Aith, 2019,
p. 25).

Nesta seção, exploro como os funcionários da Câmara respondem a essa crítica e como
eles entendem a via da judicialização como um dos únicos caminhos possíveis para a
concretização dos direitos sanitários em um cenário de intensificação da escassez e da
precariedade das unidades de saúde. Isto é, se em “situações normais” a judicialização pode
provocar o “desequilíbrio do sistema”; quando o “sistema está desiquilibrado” – como, por
exemplo, em um período de crise – é por meio da intervenção judicial que as pessoas tentam
corrigir tal “sistema” e fazer com que ele funcione minimamente.

“Encaixes”, reservas e verificação de possibilidades: uma institucionalização do


“jeitinho brasileiro”?

O representante de Jaime foi até a CRLS no início do mês de julho solicitar


imunoglobulina humana para controlar os sintomas de uma doença degenerativa que causa a
diminuição progressiva dos reflexos e da força muscular. Na ocasião, a documentação do
assistido estava incompleta, de modo que foi solicitado que ele retornasse outro dia portando
todos os documentos necessários para que o caso fosse analisado. No início de agosto, ele
voltou à CRLS com a documentação. Durante a análise, foi constatado que o paciente faz
acompanhamento em um hospital federal na Zona Sul da cidade. Ao consultar a planilha de
medicamentos disponibilizados pelo Componente Especializado de Assistência Farmacêutica
(CEAF)62, a profissional da Câmara constatou que o medicamento é passível de
disponibilização pelo SUS, mas que o código na Classificação Internacional de Doenças (CID)
constante no laudo do paciente não era contemplado para dispensação na RIOFARMES.

62
Como mencionado anteriormente, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF) se divide em três
componentes: básico, especializado e estratégico. Do mesmo modo que a organização do SUS, a PNAF se articula
a partir de níveis de complexidade, de modo que os municípios são responsáveis pelo componente básico, os
estados pelo especializado e à União cabe os medicamentos do componente estratégico. Nesse sentido, o CEAF é
responsável pela dispensação de medicamentos excepcionais para doenças raras, de baixa prevalência ou
prevalentes cujo tratamento unitário ou crônico seja considerado de alto custo. A dispensação dos medicamentos
pelo CEAF está atrelada aos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) definidos pelo Ministério da
Saúde (MS), os quais estabelecem para quais patologias determinados fármacos são indicados e qual deve ser a
ordem padrão das estratégias terapêuticas adotadas pelos profissionais de saúde.
301

Segundo a funcionária, apesar de não ser contemplado pelo CEAF, o medicamento receitado
era considerado pela literatura médica como o tratamento adequado para o quadro clínico do
paciente. Diante dessa situação, um dos caminhos possíveis seria encaminhar o caso
diretamente para a Defensoria Pública. Contudo, a analista tentou buscar uma solução
administrativa para a situação. Ela entrou em contato com o hospital no qual o assistido é
acompanhado. Na ligação, ela foi informada que a unidade possui o medicamento, mas que
seu uso é restrito aos pacientes internados na unidade. A funcionária da CRLS pediu então
para falar com chefe do setor de farmácia, argumentando que caso o paciente judicializasse o
caso, quem seria processado seria o hospital que o acompanha. Ela conversou com o chefe da
farmácia do hospital, que informou que o setor não estava ciente do caso. Ao elaborar seu
parecer, a analista solicitou um prazo de 15 dias para que a situação fosse resolvida e pediu
que o assistido ou seu representante comparecesse à direção do hospital na parte da manhã
para explicar sua situação e tentar solucionar a questão sem que fosse preciso judicializar.

O pai de Tales foi à CRLS em agosto de 2017 para solicitar a antecipação de uma
consulta pediátrica para seu filho em um hospital federal da cidade. O pedido de consulta
havia sido inserido em julho e a marcação foi feita para janeiro de 2018, tempo que o
responsável do assistido considerou demasiadamente alto. Ao consultar os documentos
médicos do menino, a analista da CRLS não encontrou nada que atestasse a urgência da
consulta e, portanto, a necessidade de antecipação. De todo modo, ela enviou um e-mail para
o hospital relatando a situação e perguntando se seria possível adiantar o atendimento de
Tales. Em seu parecer, a funcionária escreveu: “prezados, o SISREG não disponibiliza
antecipação de consulta. Encaminhado e-mail ao hospital para verificação da possibilidade de
antecipação. Orientamos que aguarde o nosso contato, no prazo de 15 dias úteis”.

O marido de Bianca foi à CRLS pela primeira vez em janeiro de 2017 reclamar sobre
a demora na marcação do exame de ressonância magnética da bacia de sua esposa, que, de
acordo com os documentos médicos apresentados, sofria de constantes episódios de dor aguda.
Nessa primeira ocasião, o analista da Câmara verificou que a solicitação já havia sido
registrada no SISREG sob a classificação de “risco azul”, o que fazia desse exame um
procedimento eletivo a ser atendido sem um prazo específico. Uma vez que pedidos cujo prazo
não foi ultrapassado não devem ser encaminhados para a Defensoria, o funcionário da CRLS
encaminhou a assistida novamente para a sua UBS de referência e solicitou que os
profissionais da Clínica da Família reavaliassem a classificação de risco da paciente. Em abril
de 2017, ele retornou à Câmara para informar que o exame ainda não havia sido realizado.
Em nova consulta ao SISREG, o funcionário responsável pela elaboração do parecer – que
coincidentemente foi o mesmo da primeira vez – notou que o pedido havia sido alterado no
início de fevereiro, cerca de uma semana depois do primeiro atendimento na CRLS, e que a
classificação de risco atribuída nessa outra consulta médica foi “risco vermelho”. Com o
prazo para a realização do exame expirado há mais de dois meses, o analista entrou em contato
com a regulação, que pediu ao funcionário da Câmara que aguardasse algum tempo que o
exame seria autorizado ainda naquele mesmo dia. Cerca de uma hora depois, o médico da
CRLS atualizou a página do SISREG de Bianca e o exame havia sido não só autorizado, mas
também agendado em um laboratório privado para aquela mesma semana. O parecer
302

elaborado por ele informou que a assistida deveria chegar ao laboratório com uma hora de
antecedência para se informar sobre o procedimento com um profissional de saúde e que ela
não poderia deixar de comparecer na data agendada, sob o risco de ter sua solicitação
cancelada e eventualmente ter que reinserir o pedido no SISREG desde o início.

A partir das vinhetas etnográficas apresentadas até aqui, é possível perceber de que
maneira a administração burocrática e a solução extrajudicial de conflitos se encontram e se
relacionam na Câmara. Afinal, a busca por maneiras alternativas de resolver a demanda só se
inicia após a execução de uma série de procedimentos burocráticos de registro, classificação,
comprovação e avaliação da solicitação apresentada por um usuário. Na medida em que
resultam em situações como a “reserva” de um medicamento para uma pessoa específica; no
“encaixe” de uma paciente na agenda do médico de um hospital público; ou na alteração da
“classificação de risco” de uma pessoa atendida em uma Clínica da Família, os “diálogos
interinstitucionais” realizados em prol das resoluções administrativas oferecidas pela CRLS
conformam determinados arranjos institucionais.
A princípio, tais arranjos poderiam ser lidos como o paradoxal absurdo de uma espécie
de oficialização ou burocratização do “jeitinho brasileiro” enquanto um modo de gestão das
disputas envolvidas na judicialização do direito à saúde. Entretanto, busco oferecer uma outra
leitura para a situação ao demonstrar como a judicialização vem sendo incorporada ao “fluxo
normal do SUS” em um tempo de crise e escassez generalizada na área da saúde pública.
Na tipologização ideal weberiana, a eficiência da burocracia reside em princípios como
racionalidade, neutralidade, impessoalidade, regularidade, tecnicismo, mecanicismo e
transparência (Weber, 1982). Para o autor, a burocracia se tornou indispensável nas sociedades
modernas e o seu desenvolvimento está relacionado ao crescimento da economia mercantil
capitalista, a qual necessitava de uma administração rápida, constante, precisa e impessoal. Ou
seja, na concepção weberiana, o governo burocrático e o patrimonialismo compreendem os
polos opostos da administração estatal, de modo que as regras burocráticas surgiriam como uma
forma de eliminação das autoridades pessoais arbitrárias.
Ao comentar as ideias de Weber, Graeber (2015) afirma que mais do que indispensável
aos administradores, a manutenção da gestão burocrática é também do interesse daqueles que
ela administra. Se, para Weber, o apelo da burocracia residiria em sua eficiência; para Graeber,
a impessoalidade ocuparia esse lugar central, uma vez que as relações supostamente impessoais
proporcionadas pela burocracia não seriam apenas convenientes, mas também a própria
impessoalidade estaria no fundamento das nossas noções de racionalidade, justiça e,
303

principalmente, liberdade. Segundo o autor, o paradoxo da liberdade – ou, a utopia das regras
que dá título ao seu livro – se torna evidente quando percebemos que as normas são
essencialmente restritivas e que algo como uma “liberdade absoluta” é impossível, pois tornaria
o mundo um lugar caótico e imprevisível (Graeber, 2015).
A comparação entre a tipologia ideal weberiana e os achados de um amplo conjunto de
pesquisas etnográficas sobre como os sujeitos lidam com a lei e com os aparatos burocráticos
de modos particulares e criativos na prática cotidiana tem produzido contribuições para os
debates antropológicos sobre o Estado e a burocracia há décadas. Stoler (2004), por exemplo,
é uma das autoras que se preocupam em discutir como a racionalidade burocrática não
representa um domínio administrativo apartado e esterilizado, de modo que não há uma
separação efetiva entre “emoção” e “política”. Segundo ela, a unidade do Estado se estabelece
através de uma educação moral que produz não só o sentimento de pertencimento à nação – ou
uma coletividade sentimental –, mas também sensibilidades, aspirações e disposições afetivas
nos cidadãos nacionais.
Herzfeld (1993), por sua vez, conclui que o funcionamento da burocracia no Estado-
nação é análogo ao sistema ritual de uma religião e encontra-se fundado em um princípio da
identidade, seja ela pessoal, social ou nacional. Nesse sentido, a indiferença burocrática seria
fruto não das práticas racionais de uma gestão igualitária e democrática, mas resultado da
distinção entre “nós” e “eles”, a qual implica uma fronteira entre os que estão do lado de cá –
para quem é possível manipular, alargar e interpretar as normas da burocracia em benefício
próprio – e os que estão do lado de lá – para quem resta somente a indiferença da aplicação
restrita e desencarnada das regras e leis.
Na antropologia brasileira, o clássico “Carnavais, Malandros e Heróis” de Roberto
DaMatta (1997), publicado originalmente em 1979, já continha algumas discussões acerca do
assunto. Para o autor, o dilema da sociedade brasileira repousaria na distinção entre os
indivíduos – seres regidos pelas regulações formais e pelo tratamento igualitário de todos – e
as pessoas – seres das relações pessoais e que demandam um tratamento de acordo com a
posição social ocupada – em um universo no qual as dinâmicas e práticas das relações sociais
nada tem a ver com o mundo previsto nas leis. Alguns anos depois, DaMatta (1984) publicou
uma série de ensaios sobre as origens da brasilidade e quais são as características que fazem do
Brasil o país que ele é. Em um dos textos, ele aponta o “jeitinho”, a “malandragem” e o “você
sabe com quem está falando?” como características intrincadas no modo de navegação social
brasileiro. O “jeitinho” seria uma forma de resolver uma disputa entre interesses de partes
distintas de uma forma harmoniosa e conciliadora, ao passo que a pergunta “você sabe com
304

quem está falando?” seria uma maneira mais conflituosa de fazer a mesma coisa por meio da
aposta em um princípio hierárquico no qual quem reivindica tal posição estaria em uma situação
mais favorável.
Ainda que bastante importante para as discussões sobre como as pessoas acionam
posições de autoridade e lidam com a burocracia no Brasil, o raciocínio construído por Da Matta
na diferenciação entre indivíduos e pessoas produz uma certa interpretação culturalista sobre o
que ele chama de brasilidade. Seguir sua proposta para pensar as atuações dos funcionários e o
papel da CRLS no conjunto de órgãos e processos que compõem o Estado conduziria a uma
compreensão da Câmara como uma política pública que é em si mesma um “jeitinho” criado
pelo Estado para suprir suas próprias “falhas” e/ou “ausências” na assistência a uma parcela da
população. Isto é, a criação da CRLS e o estabelecimento dos seu modo de funcionamento
representariam a oficialização de uma prática estritamente “informal” de solução de conflitos
que se apoia em poderes e autoridades específicos oriundos dos cargos ocupados por
determinados agentes de Estado. Não é esse o caminho analítico que pretendo seguir, como
abordarei a seguir.

Uma infraestrutura não tão paralela assim: a judicialização da saúde em uma


conjuntura de crise

A filha de Júlio esteve na CRLS no dia 19 de maio de 2017 para pedir a marcação de
um exame de cintilografia de corpo inteiro para seu pai, que estava muito debilitado e com
suspeita de metástase de um câncer em diferentes partes do corpo. O pedido havia inserido
como “risco vermelho” e, de acordo com o médico regulador, não teria como ser realizado
dentro desse prazo em nenhuma unidade pública de saúde. Assim, foi dada uma autorização
para a sua realização em um laboratório particular que possuía um convênio com o poder
público para o atendimento de demandas que o SUS não é capaz de absorver. Entretanto, ainda
que tivesse sido autorizado, o exame não havia sido especificamente “regulado” – isto é,
agendado de fato. Ao entrar em contato com a central de marcação de exames da clínica, o
analista da Câmara descreveu a situação e disse que o caso já era passível de judicialização.
A conversa entre eles durou pouco tempo. Logo após desligar o telefone, o funcionário
começou a redigir seu parecer informando que um novo agendamento havia sido feito por meio
de contato telefônico com uma funcionária do laboratório e que Júlio deveria comparecer à
unidade para realizar a cintilografia no dia seguinte, às 9:30 da manhã, levando os seguintes
documentos: autorização de consulta, pedido médico, identidade e CPF, cartão do SUS,
comprovante de residência e o ofício de parecer entregue pela CRLS.
305

Francisco se dirigiu à CRLS no início de setembro de 2017. Afetado por uma condição
crônica de saúde, ele necessitava de um medicamento de uso contínuo dispensado pela
RIOFARMES através do programa estadual de medicamentos excepcionais cujo estoque
estava zerado e a reposição irregular. Por volta do meio dia, um dos profissionais da análise
técnica começou a realizar os procedimentos para decidir qual seria o encaminhamento dado
ao caso. Ao consultar a tabela com a situação dos medicamentos do CEAF compartilhada por
todos os funcionários, o analista percebeu que a última checagem de disponibilidade da
medicação solicitada por Francisco havia sido feita há pouco mais de uma semana. Assim, ele
ligou para a RIOFARMES e explicou a situação. A pessoa do outro lado da linha respondeu
que o medicamento em questão havia chegado naquela manhã e que no final do dia eles iriam
conferir a remessa para dar início à dispensação no dia seguinte. O funcionário da Câmara
afirmou que Francisco relatou ter ido três vezes até a RIOFARMES e em nenhuma delas havia
conseguido retirar a medicação, o que fez com que ele procurasse a ajuda da CRLS. Pouco
depois ele encerrou a ligação e me disse que quem o atendeu havia dito que deixaria o
medicamento de Francisco “reservado” e disse que ele deveria ir na primeira hora do dia para
garantir que conseguiria retirar os remédios. Em seu parecer, o funcionário escreveu que
entrou em contato com a RIOFARMES, que informou que o estoque do medicamento havia sido
recentemente regularizado. Ele também reforçou que era imprescindível que Francisco fosse
retirar a medicação no dia seguinte e que caso não conseguisse, deveria retornar à CRLS o
mais brevemente possível.

Edna era uma mulher de 42 anos, diagnosticada com Lúpus Eritematoso Sistêmico
(LES), uma doença inflamatória crônica e autoimune que faz com que o sistema imunológico
ataque seus próprios tecidos saudáveis. Em agosto de 2017 ela compareceu à CRLS para
informar que estava sem receber um dos medicamentos que fazem parte do seu tratamento: o
Rituximabe. A assistida fazia acompanhamento ambulatorial em um hospital universitário e
retirava o medicamento em outra unidade de saúde, que passou a dizer que o medicamento
estava em falta desde o início do ano. Segundo Edna, ela ficou sabendo pelos funcionários da
farmácia que a direção do hospital havia determinado novos critérios para a dispensação do
medicamento por conta da intermitência do fornecimento e da possibilidade do estoque ficar
zerado. Por também ser utilizado para evitar a rejeição de órgãos transplantados, o fármaco
teria sido reservado pelos gestores para pacientes em estado pós-operatório. Os funcionários
do hospital sugeriram que Edna deveria procurar ajuda na Câmara, pois se ela tivesse uma
ordem judicial, eles não poderiam se negar a entregar o medicamento a ela. Com essa
informação, a assistida foi à CRLS. No setor de análise técnica, um dos profissionais da
Câmara entrou em contato com a farmácia do hospital, que não confirmou o que foi relatado
por Edna. O analista disse que o caso poderia ser judicializado e que ele estava propondo uma
solução administrativa que resultaria em menos trabalho para o hospital, para Edna, para a
Câmara, para a Defensoria Pública e para o Tribunal. Após alguns minutos, o analista
desligou o telefone e disse que a pessoa do outro lado da linha estava irredutível e afirmou
diversas vezes que o estoque de Rituximabe estava zerado e por isso a instituição estava com
a dispensação interrompida. Sem nenhuma resolução administrativa possível, o analista
elaborou seu parecer e encaminhou o caso de Edna para a Defensoria Pública da União.
306

Em suas pesquisas, o antropólogo João Biehl (2013b e 2016) descreve a judicialização


como uma espécie de infraestrutura paralela do acesso ao direito à saúde. Nas palavras do
autor: “a judicialização da saúde se tornou uma para-infraestrutura através da qual pacientes
crônicos e vários atores públicos e privados entram em contato, se enfrentam e promovem
missões de resgate ‘caso a caso’.” (Biehl, 2016, p. 100, tradução minha). Ou seja, para o autor,
o surgimento dessa para-infraestrutura teria a ver com os esforços empreendidos por diferentes
sujeitos para enfrentar uma série de obstáculos na concretização do direito à saúde colocados
por “problemas de infraestrutura”, “instituições públicas inadequadas” e a “ineficiência dos
programas de distribuição de medicamentos”.
Concordo plenamente com Biehl que existem problemas estruturais de adequação e
eficiência na formulação e implementação de políticas públicas de saúde no Brasil. Não é isso
que está em jogo aqui. No entanto, como concluí na primeira parte da tese, o argumento central
do meu trabalho é o de que a escassez crônica constitui-se enquanto um modo de governo e
uma forma positiva de operação do Estado – na conceituação foucaultiana de um poder que não
é apenas repressor, mas sim produtor (Foucault, 2010) – que induz, produz e reproduz a
desigualdade social por meio da criação, reforma e extinção de “instituições públicas
inadequadas” e “programas ineficientes” em distintos momentos e conjunturas políticas e
econômicas no país.
Nesse sentido, busco entender tais situações não como sinais das “lacunas” na
legislação; como produto dos “erros” e “defeitos” no desenho das políticas; ou como
consequências de uma suposta “ausência” do Estado que deixa “desassistidos” certos territórios
e/ou populações. Afasto-me também das formas explicativas que entendem a conjuntura atual
das unidades públicas de saúde como produto unicamente da “crise da saúde” em seus mais
distintos níveis administrativos. Como já mencionado, a crise não é necessariamente um projeto
político elaborado para fins específicos, mas sim um momento de agudização de uma
precariedade que se dá em múltiplos planos e de longa duração na história das instituições e
políticas públicas de saúde brasileiras.
Em um cenário de aprofundamento da precariedade dos serviços públicos de saúde
como é o da “crise da saúde no Rio de Janeiro”, a judicialização se configura não enquanto uma
infraestrutura paralela, mas fundamentalmente como parte do “fluxo normal do SUS”. Afirmo
isso a partir de relatos como os de Francisco e Edna – narrados acima – e Selma e José Carlos
– apresentados no prólogo da tese. Suas narrativas são atravessadas por episódios em que
dirigentes de farmácias públicas e unidades de saúde condicionam a distribuição de um
medicamento à apresentação de uma ordem ou documento judicial, os quais têm se tornado
307

cada vez mais comuns. Como colocado por diferentes funcionários da CRLS ao longo do
período em que realizei meu trabalho de campo, a crise agravou de modo profundo a questão
da falta nos hospitais públicos, fazendo com que “tudo fosse judicializado”, até mesmo itens
básicos como fraldas geriátricas, fórmulas infantis e medicamentos para hipertensão.
Em um dia em que estava acompanhando o trabalho no setor de análise técnica, um dos
funcionários comunicou aos seus colegas de equipe que as últimas tentativas de articulação para
resolver pedidos cujo principal problema era falta de cateter63 não foram bem sucedidas.
Segundo ele, a partir daquele momento, o procedimento padrão para esse tipo de demanda
deveria ser a “judicialização” e não mais a tentativa de “resolução administrativa”, pois os
gestores só estavam adquirindo os insumos para os casos em que havia uma ordem judicial
expressa. A partir da situação narrada, é possível perceber que quando “está tudo em falta”, um
dos únicos caminhos possíveis para contornar tal precariedade é “judicializar tudo”. Em um
contexto desse tipo, a judicialização é rotinizada e passa a integrar o “fluxo do SUS”,
configurando-se como mais uma etapa – ou, se preferirmos, um gargalo – do acesso ao direito
à saúde. Como disse o funcionário na ocasião relatada, “com essa crise de agora, parece que o
SUS só está funcionando mediante judicialização” (grifos meus).
De acordo com alguns dos profissionais que trabalham na Câmara, os médicos das
Clínicas da Família e dos Centros Municipais de Saúde veem os pedidos de alteração da
“classificação de risco” atribuída a pedidos de exame e/ou consulta como uma forma de
interferência da CRLS em sua autonomia profissional. Os funcionários não necessariamente
discordam desse modo de interpretação, mas entendem suas atuações – e, por extensão, a
própria judicialização – como uma espécie de “mal necessário”, principalmente nessa
conjuntura de crise e aprofundamento da escassez nos serviços públicos de saúde.
Esse entendimento de rotinização da judicialização no “fluxo normal do SUS” foi
condensado por uma das funcionárias da análise técnica – que também ocupou durante mais de
uma década diferentes cargos de gestão na Secretaria Municipal de Saúde – em uma de nossas
conversas. Enquanto falávamos sobre a crise da saúde no Rio de Janeiro, ela enfatizou que a
crise não afetava e não era sentida do mesmo modo em todas as partes da cidade, pois haveria
uma enorme desigualdade na distribuição de recursos do SUS entre as regiões administrativas
do município que faz com que as unidades de saúde localizadas na Zona Sul possuam melhores
equipamentos, mais profissionais de saúde contratados etc. Segundo ela, para além da questão

63
Um cateter é um tubo fino flexível utilizado em diferentes procedimentos cirúrgicos tanto terapêuticos quanto
diagnósticos. Eles geralmente são inseridos em vasos sanguíneos e podem ser usados para a drenagem de fluído,
injeção de medicamento, inserção de instrumentos cirúrgicos etc.
308

da renda, tal desigualdade se daria principalmente em função do grau de instrução e da


capacidade de mobilização dos moradores da região para pressionar o poder público e exigir
que o Estado cumpra seus deveres. Em seguida, ela estabeleceu uma analogia entre a capacidade
de mobilização e a garantia do direito à saúde em níveis mais básicos. Para ela, com o advento
da crise, o acesso aos serviços públicos de saúde estava sendo cada vez mais dificultoso e
dependente da manifestação de agentes e/ou órgãos do Sistema de Justiça.
A funcionária concluiu seu raciocínio com uma pergunta retórica: “e quem são as
pessoas que importam para o Sistema de Justiça e que são capazes de fazer barulho suficiente
para eles intervirem na situação?”. No fim do nosso diálogo, ela disse uma frase bastante
sarcástica e profundamente significativa, a mesma que dá título a essa seção: “O SUS é para
todos, para todos que reivindicam”. Ou seja, apropriando-me da já mencionada distinção que
Fassin (2016) faz entre o valor da vida e a cotação das vidas, poderia dizer que o direito à saúde
tal como ele se encontra descrito formalmente é igualitário – tal como o “valor da vida” –, mas
as formas concretas de acesso a esse direito são demasiadamente desiguais – como as diferentes
“cotações das vidas”.
Em suma, longe de constituir um tipo de “jeitinho” ou como uma “infraestrutura
paralelea” para a resolução dos litígios, argumento que as práticas de gestão executadas na e
pela CRLS fazem parte do próprio fazer do Estado. Compreendo a busca pela Justiça e a
judicialização como parte dos aparatos criados pela Constituição Federal de 1988 que visam
promover uma certa “participação democrática” ao proporcionarem recursos, órgãos e
instâncias para que as pessoas e a “sociedade civil organizada” possam não só questionar o
funcionamento do Estado, mas demandar dele uma reparação. Nesse raciocínio, o “acesso à
Justiça” funcionaria como um dos mecanismos de performatização de um Estado Democrático
de Direito ao oferecer aos cidadãos um lugar na proposição dos caminhos de “correção do
Estado”, o que, afinal, serviria muito mais para resguardar a própria ideia/imagem do Estado
enquanto um ente autônomo e fortemente unificado que é capaz de administrar sujeitos e
conflitos da melhor e mais correta maneira possível.
Isto é, as práticas de “resolução administrativa” e a “judicialização” não são exteriores
e nem se encontram nas margens do Estado; elas fazem parte de modos próprios de operação
do Estado. Contudo, afirmar que as formas de solucionar propostas pela Câmara também são
modos estatais de administração não significa dizer que elas são a mesma coisa ou que
produzem resultados iguais. Uma pessoa que “entre na Justiça” para tentar garantir e agilizar a
realização de uma cirurgia pode ter um desfecho bastante diferente daquele que aguarda na fila
por um agendamento regular. Mas suas conclusões também podem ser semelhantes, já que a
309

judicialização per se não é muito mais do que uma promessa. Olhar para essas práticas como
formas de atuação estatal nos permite enxergar que o Estado não é uma entidade fixa e coesa,
de modo que as fronteiras entre aquilo que está no centro do Estado e o que está à sua margem
(Das e Poole, 2004) ou entre o que está “dentro” e o que está “fora do Estado” são linhas
desenhadas por mecanismos institucionais que visam principalmente a manutenção da ordem
social e política (Mitchell, 2006).
Os diferentes interesses de Estado(s) que orientam a atuação da CRLS e os distintos
sentidos atribuídos às “resoluções administrativas” serão abordados mais adiante. Agora, para
encerrar esse sexto capítulo, discuto como uma instituição cuja principal função é fazer com
que diferentes órgãos e agentes de Estado se comuniquem e trabalhem juntos pode ser marcada
por uma profunda divisão interna e falta de comunicação.

6.3 – Segmentação e ausência de diálogo: as múltiplas divisões da CRLS

Por volta das 10:15 da manhã, o monitor localizado no primeiro andar da CRLS
começou a piscar um anúncio: “Senha 18, compareça ao guichê 7”. Ao olhar para as escadas
que dão acesso ao setor de atendimento, pude ver uma mulher se aproximando rapidamente
em busca do guichê para o qual foi chamada. Emília foi atendida por uma das funcionárias
que atuam na DPU. Em sua narrativa, a assistida afirmou que estava há cerca de sete meses
aguardando a marcação de uma consulta com um médico oftalmologista. De acordo com ela,
seu estado de saúde era preocupante, pois a Catarata estava avançando e ela estava tendo
cada vez mais dificuldades para enxergar. Durante o atendimento, a profissional fez pouco
contato visual com a assistida e se limitou a consultar os documentos trazidos por Emília.
Enquanto isso, a assistida dizia que os hospitais públicos estavam cada vez pior; que era um
absurdo ela aguardar tanto tempo apenas para uma consulta; que só Deus saberia quanto
tempo mais ela aguardaria pela cirurgia depois de passar pela consulta; entre outras
reclamações acerca dos problemas enfrentados pela rede pública de saúde. Após imprimir os
formulários e documentos que precisavam ser assinados pela assistida, a atendente digitalizou
os documentos trazidos por Emília e pediu que ela retornasse ao subsolo para aguardar ser
chamada novamente para. Não sei o que aconteceu depois disso. Depois que Emília se levantou
e retornou à sala de espera, não mais a vi durante o restante do dia. Horas depois, lembrei-me
de seu caso e fui até o subsolo para ver se a encontrava, mas Emília já não estava mais lá. Não
sei qual foi a resposta obtida por Emília e nem se ela conseguiu finalmente ter sua consulta
agendada.
310

Uma das características da CRLS que me mais chamou a atenção em um primeiro


momento do trabalho de campo foi o tamanho da instituição. Como descrevi anteriormente,
seus três andares e cerca de 100 funcionários passavam para a mim a impressão de ser a Câmara
um órgão de muita importância dentro da malha institucional estatal. Conforme fui me
familiarizando com as rotinas da instituição, passei a entender como estava organizada a divisão
do trabalho entre essa grande quantidade de profissionais. É sobre as múltiplas divisões da
Câmara que trata esta última seção do capítulo. Argumento que há na CRLS uma tripla
segmentação64: 1) uma segmentação espacial, uma vez que cada setor ocupa um determinado
lugar relativamente isolado no prédio; 2) uma segmentação laboral, já que diferentes atividades
são executadas por distintos profissionais de acordo com o setor no qual estão alocados; 3) uma
segmentação informacional, pois cada funcionário tem acesso somente às informações
pertinentes ao seu próprio trabalho no Sistema Câmara de Saúde.
Como já mencionado, meu primeiro contato com a Câmara se deu através das atendentes
da Defensoria Pública da União (DPU). Ao escrever meu diário de campo no fim do dia, após
acompanhar os atendimentos prestados pelas funcionárias e estagiários do setor, comecei a
sentir que eu estava deixando algo escapar, que não estava conseguindo “observar tudo”. Essa
sensação de incompletude foi se tornando cada vez mais forte ao longo do primeiro mês em
que fiz pesquisa de campo na CRLS. Todas as vezes em que eu terminava de descrever a história
e a interação com algum assistido/a e não sabia responder que fim teve o atendimento dessa
pessoa; se ela conseguiu ter sua demanda atendida; se seria preciso voltar outro dia; esse
sentimento de não estar conseguindo fazer o meu trabalho corretamente se fazia presente. Nas
semanas seguintes, passei a fazer essas perguntas às atendentes da DPU e percebi que elas
também não tinham as respostas para tais questionamentos. Foi só então que me dei conta de
que não era minha “culpa” o fato de eu não conhecer os desfechos dos casos, mas sim que eram
essas as informações que eu teria acesso a partir daquele setor. Ou seja, foi a impressão de estar
perdendo “algo importante” para a pesquisa que me fez atentar para uma das principais marcas
do trabalho de gestão feito na e pela CRLS: a segmentação das atividades exercidas pelos
profissionais dos diferentes setores que compõem a Câmara.

64
As ideias de segmento e segmentação utilizadas aqui não fazem referência aos conceitos presentes no clássico
livro de Evans-Pritchard sobre a dinâmica segmentar dos Nuer. Como ficará claro mais adiante, essa noção se
constrói em diálogo com a categoria de fragmento do trabalho de Lugones (2012). A imagem proporcionada pela
segmentação é usada como forma de descrever uma espécie de divisão do trabalho em um esquema de esteira
industrial na qual cada funcionário/setor realiza apenas uma parte do serviço e que o próximo passo só pode ser
executado quando a etapa anterior é corretamente encerrada.
311

“Não há nada que eu possa fazer”: a segmentação laboral e informacional na CRLS

Ao acompanhar o cotidiano de atuações de funcionárias nos Tribunales Prevencionales


de Menores na cidade de Córdoba e refletir sobre o exercício do poder administrativo-judicial
sobre menores de idade e seus responsáveis nos casos em que há a presunção da condição de
vítima, Lugones (2012) traz uma série de contribuições sobre as práticas de administração e as
técnicas de gestão que constroem o poder do Estado. Os fragmentos são elaborados como uma
ferramenta tanto descritiva/narrativa, quanto analítica, pois são capazes de reproduzir o modo
pelo qual se dá a dinâmica de poder entre administradoras e administrados nas interações
ocorridas nesses Tribunais. Nas palavras da autora,

El propósito de este constructo es (re)presentar cómo se ejercía el poder


en esta administración judicial, en una tentativa de capturar esos
ejercicios, de representar en la escritura las actuaciones, la experiencia
vivida y el sufrimiento episódico en los procesos. (Lugones, 2012, p.
26).

Nesse sentido, a ideia de fragmento tem a ver com o funcionamento dos próprios
Tribunais, cujas atuações pontuais e personalizadas das chamadas pequenas juízas são descritas
ao longo do livro como “tramitações fragmentadas” e “procedimentos para integrar essa
fragmentação”. Isto é, os fragmentos não são apenas um recurso metodológico que tenta trazer
para o texto a fragmentação das atuações das funcionárias, mas também uma forma de
representa-los como uma modalidade de gestão em si mesma que permitia a essas profissionais
lidar com as dramáticas situações com as quais elas se deparavam cotidianamente.
Apesar das muitas semelhanças entre o que Lugones observou nos Tribunais de Córdoba
e o que pude acompanhar na CRLS, opto por utilizar os termos segmento e segmentação para
descrever o cotidiano do órgão no qual realizei minha pesquisa. Da mesma forma que nos
Tribunales Prevencionales de Menores, as atuações das pessoas que trabalham na Câmara de
Resolução de Litígios de Saúde também são, ao seu modo, descontínuas e fragmentadas.
Entretanto, ao invés de ter uma única pessoa responsável por “levar a causa” como um todo –
como nos Tribunais de Córdoba –, há uma rigorosa divisão do trabalho no interior da CRLS,
de modo que os funcionários de cada setor são incumbidos de lidar apenas com uma única etapa
do atendimento do usuário. Assim, mais do que tramitações fragmentadas, essas ações são
profundamente segmentadas, uma vez que o passo seguinte do serviço só pode ser iniciado após
a conclusão do anterior.
312

Além disso, de modo análogo à estrutura de setores da Câmara, o sistema de gestão do


fluxo de assistidos é dividido em quatro partes: triagem, atendimento, análise e retorno. Cada
funcionário possui apenas um login e uma senha, os quais dão acesso somente à parte do sistema
que diz respeito às suas atribuições. Assim, as assistentes sociais da triagem só podem gerar o
número de solicitação e definir se o atendimento será prioritário ou não; as funcionárias do
atendimento só conseguem registrar as informações e documentos dos usuários no sistema e
não possuem nenhum poder sobre o ordenamento da fila; os analistas técnicos não conseguem
anexar nenhum tipo de documento ao cadastro do usuário, sendo o documento de parecer por
eles formulado – aquele que é impresso na etapa seguinte e entregue para o assistido – gerado
automaticamente por meio do preenchimento de uma aba do sistema da CRLS; e as
profissionais do setor de retorno de análise apenas conseguem visualizar o parecer elaborado
pelo analista, sem poder fazer qualquer tipo de alteração no documento. Isto é, cada pessoa tem
acesso unicamente ao que ele mesmo precisa fazer para que o atendimento possa prosseguir e
não é possível saber como aquele caso chegou até ali nem como está o seu andamento depois
dele ter sido remetido a outro setor.
Foi somente quando passei a frequentar outros espaços da CRLS que novos aspectos e
perspectivas acerca dessa limitação e dessa quase completa ausência de diálogo entre os
funcionários de diferentes setores se tornaram evidentes. Como mencionei acima, as atendentes
da DPU também não sabiam como era feito o processo de triagem e nem o que acontecia depois
delas enviarem os documentos para o setor de análise técnica. Quando questionei se elas não
tinham curiosidade em conhecer os desfechos de algumas das situações ouvidas durante o
atendimento, as respostas foram vagas. Elas mencionaram que nunca havia tempo de perguntar
a alguém da análise técnica ou do retorno sobre o que teria acontecido com determinado
assistido, pois sempre há muito mais gente aguardando atendimento do que a equipe é capaz de
dar conta, o que faz com que elas permaneçam atarefadas durante todo o expediente. Desse
modo, as segmentações laboral e informacional funcionam como um tipo de “proteção” para
as atendentes das Defensorias diante da escuta cotidiana de inúmeras narrativas e histórias de
vida demasiadamente dramáticas e desesperadoras.
Uma perspectiva crítica dessa forma segmentada de trabalhar foi proporcionada pelas
assistentes sociais da triagem. Para elas, essa divisão tanto das atividades executadas por cada
um quanto do “sistema” representa uma “alienação” do trabalho na CRLS. Elas consideram
isso não como uma situação de simples descaso com a construção do software ou como uma
logística laboral que visa tornar o atendimento mais rápido e eficiente; mas sim como uma
forma de organização deliberada e imposta pela coordenação da instituição. Ainda de acordo
313

com elas, apenas a coordenação possui “A senha” que é capaz não só de verificar tudo que
acontece no sistema, mas também de alterar, excluir e incluir novos registros no Sistema
Câmara de Saúde.
Para os profissionais da análise técnica, parecia não haver qualquer tipo de limitação
colocado pela divisão do trabalho – e talvez não houvesse de fato. Na medida em que esses
profissionais tinham “permissão” para acessar tudo aquilo que eles consideravam relevante para
a execução de seu trabalho – isto é, os documentos médicos entregues pelos assistidos –, as
minhas perguntas a respeito de como funcionava o processo de registro das demandas dos
usuários pareciam irrelevantes e, muitas vezes, sem sentido. Os passos anteriores eram
percebidos por esses profissionais enquanto “atividades menores”, “burocráticas” e
“administrativas”, ao passo que o “verdadeiro trabalho da Câmara” – ou seja, o “trabalho
técnico e especializado” de analisar a procedência de pedidos médicos e estabelecer diálogos
entre diferentes instituições e órgãos de Estado – aconteceria somente ali, naquele setor.
Como dito, quando havia alguma discrepância entre o “produto” registrado no sistema
e os laudos, receitas etc. digitalizados, a presunção era a de que alguém teria simplesmente
cometido um erro durante o atendimento. Erros que poderiam ser facilmente corrigidos por
meio da alteração do campo “produto” no sistema ou que implicariam uma “negativa de
análise” por conta da falta de documentos e um pedido para que o assistido retorne outro dia
munido destes. Ou seja, para a equipe do setor não importava muito como aquele pedido havia
chegado até ali e qual seria a reação de alguém que tivesse sua solicitação negada. Eles estavam
“longe” das pessoas atendidas pela Câmara e suas funções enquanto “analistas técnicos”
estavam sendo cumpridas.
Como disse anteriormente, é no setor de retorno da análise que se dão os maiores
embates e tensões entre assistidos e funcionários da CRLS. A sensação de desamparo
experimentada por aqueles que, depois de horas aguardando, recebem uma resposta
insatisfatória à sua solicitação, provoca reações marcadas pela raiva, angústia, desespero,
tristeza, entre outros sentimentos. Nessas cenas, não é incomum que as funcionárias busquem
interromper a manifestação de emoções dos assistidos através da afirmativa de que não são elas
as responsáveis pela elaboração do parecer e que elas não podem fazer nada para remediar a
situação. Não seria uma surpresa dizer que esse tipo de argumento não ameniza em nada os
sentimentos de um usuário indignado. Pelo contrário, essa resposta geralmente potencializa sua
frustração e reforça essa sensação de indiferença produzida pela máquina burocrática (Herzfeld,
1993).
314

Nesse sentido, uma concepção completamente diferente dessa limitação imposta pela
segmentação do trabalho é compartilhada entre as funcionárias do setor de retorno de análise.
Longe de ser um “problema” ou uma questão irrelevante, a limitação é um ponto fundamental
no trabalho dessas profissionais, pois é justamente o elemento mobilizado por elas para explicar
que não possuem qualquer responsabilidade e/ou autoridade sobre o conteúdo dos pareceres.
Tal argumento se mostra bastante caro nas situações em que elas precisam dizer a um assistido
que seu pedido foi negado por falta de documentação; que ele terá de retornar outro dia; que
será preciso esperar mais 15 dias para uma resposta; entre outras situações que provocam uma
intensa frustração e indignação naqueles que buscam a ajuda da Câmara.
Assim, se para as pessoas que trabalham no atendimento essa limitação funciona como
uma proteção quase que “natural” – “é assim que as coisas são” –, para as funcionárias do
retorno da análise, a limitação é uma espécie de “respaldo consciente” e até mesmo desejado.
Afinal, não são elas que negam ou aprovam os pedidos, mas sim os analistas técnicos. Elas são
apenas as porta-vozes dessas notícias. Seu trabalho não é técnico, mas meramente burocrático
e despersonalizado. Como discutido por autores como Arendt (1999) e Gupta (2012), a
indiferença não é necessariamente um traço moral ou uma disposição psicológica característica
dos funcionários públicos, mas o resultado de aparatos burocráticos que permitem pouco ou
nenhum questionamento e reflexão sobre seus modos de operação, fazendo da burocracia essa
máquina capaz matar enormes contingentes populacionais sem que isso seja necessariamente
percebido pelo seus operadores.

Lugar de “trabalho técnico”: distância moral e segmentação espacial na CRLS

Além dos fragmentos e da noção de fragmentação, há outro ponto do trabalho de


Lugones que considero importante abordar e colocar em diálogo com minha própria pesquisa.
No capítulo intitulado “una administración (no tan) pública”, ao descrever o Palacio de Justicia
da cidade de Córdoda, a autora argumenta que existe uma espécie de “arquitetura das relações
de poder” que se faz através da disposição espacial das salas, corredores, balcões, mesas etc. e
que é capaz de produzir uma “desorientação” naqueles que não estão familiarizados com o
prédio. Outra característica arquitetônica do poder elencada pela autora tem a ver com aquilo
que é dado a ver aos administrados: as portas de madeira e os vidros foscos impedem quem está
nos corredores de visualizar o que acontece dentro das salas, o que faz com que as funcionárias
se sintam menos interpeladas pelo olhar direto de quem está aguardando.
315

Identifico na Câmara algumas formas arquitetônicas de exercício do poder que se


aproximam do contexto dos Tribunais estudados pela autora. Nesse sentido, aponto como uma
dessas formas a segmentação espacial da CRLS em diferentes setores, uma vez que, como dito
anteriormente, esse modo de organização faz com que as demandas “subam” e “desçam” de
acordo com seu andamento, sendo a triagem feita no subsolo, o atendimento no primeiro andar,
a análise técnica no segundo andar e o retorno da análise volta ao primeiro andar.
Assim como as demandas, os assistidos também caminham entre os espaços da
instituição. A circulação entre os setores não é nada intuitiva e a necessidade de subir escadas
ou aguardar o lento elevador adaptado para pessoas com dificuldade de locomoção é
desgastante para os idosos e para aqueles cujo estado de saúde encontra-se debilitado. Não raras
foram as vezes que presenciei alguém perguntando após o atendimento se poderia esperar no
primeiro andar para não ter que descer as escadas novamente. Em nenhuma dessas vezes foi
dito ao assistido que ele não poderia permanecer no primeiro andar. Entretanto, eles são
“aconselhados” a retornar ao subsolo, pois a resposta da análise técnica “pode demorar mais de
uma hora” e há somente três cadeiras disponíveis no final do corredor do primeiro andar, as
quais ficam longe do monitor que anuncia para qual guichê/setor a pessoa precisa se dirigir;
bem como não há uma caixa de som que emita um alarme sonoro que chame a atenção do
assistido. Assim, no caminho percorrido, a sala de espera localizada no subsolo é um ponto
central, pois é nela que os assistidos passam a maior parte do tempo em que permanecem na
CRLS; é para lá que eles precisam sempre retornar ao final de cada etapa do atendimento para
aguardar a conclusão da próxima.
O único espaço da CRLS no qual não há assistidos circulando em nenhum momento é
o segundo andar. Como já mencionado, é nesse andar que é feito o trabalho de análise técnica.
Durante o tempo em que realizei a pesquisa de campo, nunca vi nenhum assistido ser chamado
no segundo andar durante o atendimento. Nas muito incomuns ocasiões em que um analista
precisou solucionar alguma dúvida com algum assistido – e destaco que registrei não mais do
que três dessas situações em meus diários de campo –, o funcionário foi ao encontro do usuário
na sala de espera, e nunca o contrário.
Como descrito no capítulo anterior, o acesso ao segundo andar da CRLS é feito através
do elevador ou por uma escada localizada na lateral esquerda do primeiro andar. Sendo a única
escada fechada da instituição, há uma placa na porta que diz:
316

ACESSO AO 2º ANDAR:
– APOIO TÉCNICO
– ESPAÇO DE MEDIAÇÃO
ÁREA RESTRITA.
AGUARDE SER CHAMADO.

Muitos autores têm discutido o papel das emoções e da demonstração pública do


sofrimento na busca por direitos, em especial nas situações de interação entre os que demandam
e os que têm poder de julgar a legitimidade de tal pedido. O já mencionado trabalho de Lugones
(2012) aponta como a performance e a comunicação de sentimentos nas cenas de interação
entre as pequenas juízas e os administrados – e nessa categoria estão incluídos não só os
menores, mas também os seus responsáveis – configuram uma espécie de linguagem
compartilhada e compreendida por ambas as partes, o que é fundamental para o sucesso de uma
denúncia ou demanda.
Fassin (2012), por sua vez, analisa distintos cenários – pedidos de legalização de
residência na França, distribuição dos recursos de um Fundo de Emergência Social etc. – para
demonstrar como a emergência de uma razão humanitária marca os modos contemporâneos de
fazer política. Ao acompanhar os pedidos de refúgio de colombianos no Brasil, Facundo (2017)
discute a conformação de uma competência que ela chama de compaixão profissional. Segundo
a autora, a compaixão profissional – que é diferente da “compaixão comum” – seria fruto do
desenvolvimento de uma expertise por parte dos agentes de Estado em avaliar e interpretar as
emoções mobilizadas pelos solicitantes de refúgio em suas narrativas. Assim, ao invés de ser
orientada por uma “empatia pessoal” – como acontece com a “compaixão comum” –, a
compaixão profissional dependeria de uma empatia profissional, a qual obedeceria a princípios
de objetividade, racionalidade e competência técnica.
O contexto por mim pesquisado é distinto daqueles analisados pelos autores citados.
Não há na Câmara um “governo” exercido por meio da compaixão (Fassin, 2012), já que os
assistidos não podem sequer apelar para algum tipo de compaixão profissional (Facundo,
2017). Apartados da interação face a face com os usuários da Câmara ou seus representantes e,
consequentemente, das aflições, conflitos e trocas de acusação que perpassam o contato entre
clientes e burocratas (Herzfeld, 1993), os funcionários do setor de análise realizam um trabalho
“técnico” e distanciado que é orientado tanto pela racionalidade administrativa quanto pelo
ideário contemporâneo da “medicina baseada em evidências científicas”, o que, supostamente,
tornaria a sua atividade moral e emocionalmente “asséptica”. Como dito por um dos médicos
317

que atua no setor de análise em uma ocasião no qual o “produto” registrado no sistema era
diferente do que constava nos documentos médicos: “primeiramente é preciso olhar a
documentação anexada e só depois a ‘historinha’ contada pelo assistido”. A “historinha”
mencionada pelo analista nada mais é do que aquilo que consta no já mencionado campo
“narrativa” do documento “redução à termo” elaborado pelas profissionais do setor de
atendimento, no qual supostamente o assistido deve explicar quais são os motivos de suas
demandas.
No cotidiano da instituição, a segmentação tanto do espaço físico da instituição, quanto
do trabalho em si, faz com que, de certo modo, a “verdadeira gestão” feita pela e na CRLS
também não seja tão pública quanto pode parecer a princípio. Os procedimentos de análise –
aqueles que, em última instância, definirão se a pessoa sairá com uma resposta satisfatória à sua
solicitação ou não – são executados à revelia dos sujeitos mais interessados em acompanhar o
seu andamento. Ainda que eles não ocorram atrás de portas fechadas e vidros foscos como nos
Tribunais estudados por Lugones (2012), os analistas da Câmara encontram-se afastados dos
assistidos. Seu único “contato” com os sujeitos demandantes ou seus familiares e representantes
se dá através de documentos digitalizados, acessados a partir de um software e visualizados em
um monitor de computador.
Dos documentos digitalizados, somente aqueles escritos, preenchidos e assinados por
outros profissionais de saúde interessam aos analistas técnicos. Os documentos de identificação
– os únicos que possuem alguma foto que permitiria ao funcionário atribuir um rosto ao nome
e ao número de solicitação que ficam em destaque na sua tela – são quase completamente
ignorados. A única exceção se dá em relação ao comprovante de residência, utilizado para
referenciar o assistido para a Unidade Básica de Saúde (UBS) responsável por atender os
moradores de um determinado bairro ou região. Ou seja, de maneira oposta ao que Vianna
(2013) descreve como a produção de sujeitos singulares pela gramática dos direitos – a qual
fabrica sujeitos de direitos como “pessoas de carne e osso” por meio de narrativas detalhadas
acerca de como, quando, onde e por quem elas tiveram seus direitos violados –; na CRLS, a
garantia do direito à saúde dos assistidos é feita através de uma gestão pretensamente técnica,
isolada e, na maior parte do tempo, descarnada.
Digo que a gestão é distanciada e descarnada porque os funcionários da análise técnica
não são interpelados pelos gritos, pelo choro angustiado, pelas súplicas, pelos cheiros, pela
aparência, pela exposição de feridas abertas e tumores visíveis, pelas expressões de desolação
e desespero apreensíveis não só no rosto – e, mais especificamente, no olhar – daqueles que se
veem sem saber o que fazer para solucionar seus próprios problemas de saúde ou de seus
318

familiares; mas também nas suas disposições corporais, tais como ombros encolhidos, músculos
tensos, pernas que não param de chacoalhar, dedos constantemente estalados etc. No entanto,
os analistas também não são alvo do reconhecimento e da gratidão dos assistidos que são bem
sucedidos em suas empreitadas: eles não recebem flores ou caixas de bombom como forma de
agradecimento pelo agendamento de uma consulta esperada há meses; as crianças recuperadas
e sadias não são levadas até suas mesas e mostradas a eles como um sinal do seu “bom trabalho”.
Diferentemente do que escreve Fernandes (2019) sobre o Núcleo de Defesa do
Consumidor (NUDECON) da DPE-RJ, onde a acolhida carinhosa é vista como uma questão
importante para os funcionários e a exibição do sofrimento é capaz de gerar comoção e empatia
por parte de representantes de instituições financeiras; nos setores de triagem, atendimento e
retorno da análise da CRLS – isto é, nos espaços onde, teoricamente, essas demonstrações de
emoções “podem” acontecer –, a exposição do sofrimento raramente surte o efeito desejado
pelo usuário. Nas ocasiões em que presenciei alguém “fazendo cena” – uma categoria utilizada
para classificar as situações em que alguém buscava chamar atenção de todos a sua volta através
de algum tipo de performance corporal/emocional –, os resultados variavam entre o conflito
aberto, o desprezo e um acolhimento e compreensão momentâneos que não se convertiam em
nenhuma ação prática mais benevolente do que um pedido de desculpas e/ou o oferecimento de
um copo de água para que a pessoa se acalmasse. Logicamente, o desenrolar dessas “cenas”
dependiam tanto do “nível de agressividade” do demandante quanto da disposição do
funcionário para lidar com a situação: quanto mais bravo e hostil estivesse o assistido, maiores
eram as chances de ele ser simplesmente ignorado ou, nos casos mais graves, de entrar em um
“bate-boca” com o funcionário responsável pelo seu atendimento; quanto mais suplicante e
obsequiosa fosse a sua postura, o desfecho mais comum era a demonstração de solidariedade e
uma lamentação protocolar do próprio profissional.
Ao privilegiar esses pontos em minhas descrições e trazer para o debate as questões das
múltiplas segmentações e da ausência de diálogo no interior da CRLS, não pretendo dizer que
as pessoas que trabalham na Câmara são insensíveis ou moralmente condenáveis por não se
afetarem com a dramática situação dos que dependem dos serviços e políticas públicas de saúde,
em especial na conjuntura de crise que assola o Rio de Janeiro. Pelo contrário, críticas ao modo
de funcionamento da Câmara; questionamentos acerca da própria existência da instituição; e
falas sobre o sentir-se engajado em uma empreitada moral de garantir o direito à saúde dos
assistidos foram feitas por vários profissionais em diferentes momentos, principalmente pelas
assistentes sociais.
319

É preciso ponderar uma série de fatores antes de se chegar a uma conclusão como essa.
O primeiro deles diz respeito a uma dimensão metodológica e ao modo como conduzi a
pesquisa. Como dito na introdução, meu interesse estava em observar e compreender os
mecanismos e procedimentos de gestão da judicialização da saúde da CRLS e não em
compreender como os funcionários avaliavam seu próprio trabalho, ainda que eu tenha
registrado algumas falas espaçadas sobre o que eles pensam do funcionamento da CRLS, as
quais serão discutidas no próximo capítulo.
O segundo fator tem a ver com as condições de possibilidade de alguém ser capturado
emocionalmente pelas narrativas de sofrimento apresentadas e com as próprias limitações desse
tipo de apreensão. Em “O Sofrimento à distância” (La Souffrance à distance), Boltanski (1993)
discute os modos pelos quais o contato com cenas e relatos de sofrimento através de plataformas
midiáticas podem produzir causas políticas e fazer com que as pessoas se engajem em tais
causas. Ou seja, o autor se interessa por entender em que condições a exposição ao sofrimento
faz com que determinados sujeitos se sintam inclinados à mobilização. Uma das contribuições
trazidas por ele diz respeito às escalas de mediação e mensuração do sofrimento. De acordo
com o autor, é preciso medir corretamente a exibição de um infortúnio para que a indignação
seja moralmente aceitável. Assim, o sofrimento não pode ser insignificante a ponto de não
mobilizar os atores, tampouco catastrófico de mais que faça com que as pessoas se sintam
incapazes de ajudar.
Boltanski tenta demonstrar como a mídia pode fazer de um sofrimento tão distante
quanto o provocado pela guerra ser experimentado pelos espectadores como algo próximo. Ao
pensar o cotidiano da CRLS, busco abordar de que maneira um sofrimento tão próximo quanto
o de uma pessoa chorando copiosamente na frente de um atendente pode ser vivenciado como
uma experiência muito distante. Meu raciocínio é o de que a segmentação presente na Câmara
também produz uma exibição calculada do infortúnio. Contudo, ao invés de estimular o
engajamento – como trabalhado por Boltanski –, as divisões do espaço, do trabalho de cada
setor na CRLS e das informações a que cada um tem acesso produzem alienação e
distanciamento. Ou seja, é a segmentação o que torna a captura moral e emocional dos
funcionários pelo sofrimento dos assistidos que impossível. Afinal, os profissionais que são
constantemente expostos às dores desses sujeitos “não podem fazer nada” para remediar a
situação, ao passo que aqueles que supostamente podem fazer alguma coisa encontram-se
encastelados no segundo andar da Câmara, fora do campo de visão dos assistidos e seus
representantes.
320

Além disso, como já descrito, cerca de 90 a 100 pessoas são atendidas diariamente na
Câmara. Com tanta gente aguardando uma resposta, o pouco tempo disponível para o
atendimento e a quantidade insuficiente de pessoal para dar conta de todo o trabalho, seria
impossível para os funcionários da CRLS envolverem-se mais profundamente em todos os
casos por eles recebidos. Sem algum distanciamento, a captura por essa enxurrada de situações
dramáticas e infortúnios faria com que esses profissionais atingissem um nível de sobrecarga
emocional que seria difícil de suportar. Isto é, do mesmo modo que as atuações fragmentadas
são uma forma das pequenas juízas dos Tribunais de Córdoba de lidar com as situações que são
cotidianamente expostas a elas (Lugones, 2012), a segmentação do trabalho e do espaço
ocupado por cada setor permite aos funcionários da Câmara aguentar o excesso de sofrimento
que lhes é narrado diariamente por uma quantidade muito grande de pessoas.
Em suma, apesar de ter sido criada sob o mote de ser um “espaço de diálogo”, a Câmara
é paradoxalmente um lugar marcado pela ausência de comunicação tanto entre profissionais e
assistidos, quanto entre os próprios funcionários. Isso não quer dizer que CRLS é um espaço
permeado de silêncios. Nada estaria mais longe do cotidiano extremamente barulhento da
instituição, principalmente na sala de espera no subsolo, onde os ruídos de crianças chorando e
idosos roncando se misturam às vozes de assistidos reclamando da demora para serem
chamados, de assistentes sociais chamando alguma senha e da elevada voz eletrônica que sai
das caixas de som. Isto é, apesar de muito ser dito nos guichês e mesas – seja na triagem, seja
no atendimento –, poucas coisas são de fato ouvidas e registradas. A distância colocada pelas
múltiplas formas de segmentação e o modo de gestão “técnica” e “burocrática” fazem da CRLS
um terreno praticamente impermeável ao sofrimento, à dor e às lágrimas dos seus próprios
usuários.
A extensa burocratização e uma profunda segmentação do trabalho provocam uma certa
“insensibilidade” que atravessa o cotidiano da Câmara. Diante dessa insensibilidade, o
comprometimento para que “todos saiam com uma resposta no mesmo dia” não parece ser mais
do que uma promessa vazia ou, mais precisamente, como uma aposta que pode dar certo ou
não. É sobre a combinação entre essa promessa e a multiplicidade de interesses institucionais
que estão em jogo na CRLS que tratará o último capítulo da tese.
321

CAPÍTULO 7

Uma “tocaia de Estado”:


a necrogovernança e a gestão do tempo, do risco e do sofrimento

Como demonstrei anteriormente, a CRLS foi criada e anunciada publicamente como um


órgão que é capaz de oferecer a todos que procuram o seu atendimento uma “resposta no mesmo
dia”. Ou seja, ela se constitui a partir de uma promessa de “solução rápida e eficiente” para as
demandas de saúde apresentadas pelos usuários. Durante o trabalho de campo, conversei com
quase todos que trabalhavam na CRLS. Em uma dessas ocasiões, uma dessas pessoas descreveu
a Câmara como uma “tocaia de Estado”. Em seu raciocínio, o discurso de que “tudo é resolvido
no mesmo dia” atrai as pessoas para uma instituição que, na verdade, tenta “barrar a
judicialização” por meio da colocação de barreiras burocráticas e que acaba por dificultar ainda
mais o acesso ao direito à saúde para a parcela mais pobre e necessitada da população. É sobre
essa ideia de que a Câmara funciona como uma espécie de “armadilha” ou uma “tocaia de
Estado” que trata o último capítulo da tese.
Dedico-me a refletir sobre como a promessa de celeridade e os diferentes interesses de
Estado podem se alinhar ou se chocar em diferentes situações. Argumento que o (des)encontro
desses elementos conformam o que chamo de ritmo da gestão. A ideia de ritmo – isto é, não
apenas uma sucessão de tempos, mas fundamentalmente a velocidade com que esses tempos se
sucedem – é utilizada para caracterizar a regulação dos fluxos de atendimento dos assistidos da
instituição. Assim, por meio de uma reflexão sobre o ritmo, tento compreender as formas pelas
quais tempo, risco e sofrimento imbricam-se nas vidas de pessoas que aguardam a vacância de
um leito em um hospital público; que esperam que o estoque do medicamento utilizado para
controlar os sintomas de uma doença crônica seja reposto; que permanecem em filas para a
realização de uma cirurgia durante anos; em suma, que se dirigem à CRLS para demandar
judicialmente o direito à saúde em um tempo de agravamento da escassez e de crise nas políticas
e serviços públicos de saúde.
O capítulo encontra-se dividido em três seções. Na primeira delas, trato da maneira
como a CRLS se situa na malha institucional que compõe o Estado e como essas distintas
322

instituições repartem entre si uma série de atribuições, responsabilidades e finalidades que não
são apenas divergentes, mas, muitas vezes, contraditórias. Argumento que é sua composição
híbrida e multifacetada o que faz com que a Câmara se configure enquanto um espaço no qual
gestores, defensores públicos, procuradores e profissionais de saúde – os quais representam e
orientam suas ações a partir de diferentes interesses estatais – disputam e estabelecem os
procedimentos e mecanismos de gestão dos litígios de saúde e da luta das pessoas pela
efetivação do seu direito à saúde. Afirmo também que é esse caráter múltiplo dos órgãos e
interesses de Estado que compõem a CRLS o que faz com que as “resoluções administrativas”
propostas pela instituição possuam diferentes sentidos “para fora”, mas fundamentalmente
“para dentro do Estado”.
Na segunda seção, exploro como se dá a administração das reclamações sobre a demora
para marcação de uma consulta com especialista e/ou exame médico. Por meio de uma
descrição sobre como os funcionários da CRLS operam e manejam as “classificações de risco”
utilizadas para ordenar as demandas ambulatoriais registradas na plataforma do Sistema
Nacional de Regulação (SISREG), discuto como esse esquema dividido por cores e prioridades
gera uma forma de risco sistêmico em saúde. Assim, busco demonstrar como uma lógica de
gestão de riscos em saúde implica sempre uma mensuração de quanto tempo uma pessoa é
capaz de aguentar um dado sofrimento ou condição precária de saúde sem que isso provoque
graves consequências.
Na última parte do capítulo, argumento que, enquanto uma “tocaia de Estado”, a Câmara
não deve ser vista apenas como uma armadilha perversa que apenas barra a judicialização, mas
como uma espécie de “loteria de Estado” que produz resultados aleatórios e arbitrários para as
demandas apresentadas pelos assistidos. Nessa terceira seção, exploro também de que maneira
essa aleatoriedade é um elemento central na determinação do ritmo da gestão ao impor certa
velocidade para a resolução dos pedidos. Por fim, abordo como o ritmo da gestão compõe uma
dimensão do que proponho chamar de necrogovernança65, um modo de gestão que tem como
objetivo último fazer com que parte da população morra por meio de uma precarização
constante que compromete e inviabiliza suas possibilidades de vida.

65
Trata-se mais de uma categoria tentativa do que uma formulação conceitual que se pretende precisa e inovadora.
Como espero deixar explícito ao longo do texto, a diferença entre o que estou chamando de necrogovernança e o
conceito de necropolítica de Mbembe (2016) encontra-se na ênfase dada ao que busco descrever como uma
dimensão rotineira e cotidiana de uma “gestão da mortes”.
323

7.1 – O Estado contra o Estado: “resoluções administrativas” e conflitos de


interesses estatais

Como descrito no capítulo cinco, a Câmara de Resolução de Litígios de Saúde é uma


instituição estatal peculiar, uma vez que seu corpo administrativo e profissional é formado por
funcionários e agentes que permanecem ligados aos mais distintos órgãos que compõem o
Estado, cujas funções, interesses e escopos de atuação variam significativamente. É essa
composição múltipla de saberes acionados; de categorias profissionais e especialistas atuantes;
e de órgãos e instâncias estatais implicados nos processos de regulação da judicialização da
saúde que faz da CRLS uma espécie de híbrido institucional, cujas diferentes partes são
imantadas pelos próprios procedimentos e tecnologias de gestão, como os acordos, convênios
e compromissos assinados por dois ou mais desses órgãos estatais.

Um microcosmo estatal: a localização da CRLS na malha de instituições do Estado

A Câmara é um locus privilegiado para a investigação e o estudo do funcionamento do


Estado, pois seu caráter heterogêneo e compósito permite que a instituição seja encarada como
um tipo de microcosmo estatal. Contudo, ao dizer que a Câmara pode ser vista dessa forma,
não tenho a intenção de alegar que a instituição é uma miniatura ou um fac-símile do Estado,
de modo que minhas análises e conclusões não podem ser extrapoladas para explicar como “O
Estado” opera, até mesmo porque minhas reflexões partem de um pressuposto de que não existe
algo como “O Estado”. Assim, o que faz com que a Câmara se configure enquanto um objeto
de investigação extremamente interessante é justamente a sua capacidade de demonstrar como
o Estado não é uma entidade fixa e coesa, mas sim um composto de crença e materialidade
(Teixeira e Souza Lima, 2010) que opera por meio de mecanismos, instituições e práticas que
que repartem e distribuem deveres e responsabilidades administrativas diversas e, muitas vezes,
conflitantes.
Ao direcionar o olhar para o cotidiano das práticas de gestão da CRLS, é possível
observar como o Estado é composto por um conjunto complexo de instituições que possuem
diferentes funções, modos de operação, instâncias administrativas e agendas. Afinal, como falar
de um Estado singular em um contexto no qual um órgão de Estado se coloca contra o outro?
Como compreender uma cena em que um funcionário público concursado da Secretaria
Municipal de Saúde (um agente de Estado) ameaça acionar um defensor público (outro agente
324

de Estado) para que um trabalhador do Sistema Nacional de Regulação (um terceiro agente de
Estado) atenda a demanda apresentada por um assistido da CRLS? Como tecer análises
generalistas sobre o funcionamento e os interesses de algo como “O Estado” em um cenário
como o da Câmara, em que os ideais de garantia de direitos dos cidadãos que norteiam a criação
das Defensorias Públicas se choca com o objetivo de representar e defender o Estado em
processos judiciais das Procuradorias Gerais?
Diante desses questionamentos, é preciso deixar claro que adoto uma visão de Estado
não como um organismo auto evidente, unificado, autônomo e propositivo – o qual Abrams
(2006) conceitua como sendo a dimensão do Estado-ideia –, mas sim do Estado enquanto
administração (Teixeira e Souza Lima, 2010). Compreender o Estado a partir de sua função
administrativa significa encarar que a sustentação e o efeito de unidade do Estado como
produtos da distribuição de deveres, competências, agendas e atribuições entre um conjunto
diversificado de agentes, órgãos, instâncias e serviços burocráticos. Isto é, atentar para o Estado
em ação (Castilho, Souza Lima e Teixeira, 2014) significa compreendê-lo como “feixes de
relações de poder” que fazem do Estado algo que nunca estará pronto, finalizado e delimitado,
mas sim que se constitui permanente e cotidianamente através de suas práticas e dos seus
agentes.
Assim, argumento que a Câmara não só produz, mas é também o produto e a
materialização de um efeito de Estado (Mitchell, 2006) por excelência, já que uma malha
complexa de instituições e dimensões que compõem o Estado se articulam de modo a construí-
la enquanto uma entidade separada e independente capaz de regular e administrar tanto os
conflitos entre os cidadãos e o Estado, quanto as discordâncias entre os distintos órgãos, níveis
administrativos e poderes estatais. Como diz Mitchell, as práticas políticas que constituem o
Estado estão fundamentadas em relações de poder internas que adquirem uma aparência de
estrutura externa, dando a este um duplo caráter: força material e construção ideológica.
As reflexões apresentadas nesta seção dialogam com essas concepções de Estado e
inspiram-se nas propostas de Souza Lima (2012) e Gupta (2012) de que o Estado não pode ser
um ponto de partida para a pesquisa e que a sua unidade e racionalidade devem ser tomadas
como um problema teórico e metodológico que precisa ser atentamente observado pelo
pesquisador. Isto é, de que o Estado é “um fato social que requer explicações sociológicas e
antropológicas” (Gupta, 2012, p. 57, tradução minha). Segundo Gupta, a maior parte das
análises contemporâneas sobre o Estado reforçam seu caráter unitário e propositivo/intencional
(purposive), mesmo quando se concentra em pensar criticamente nos modos de exercício do
poder estatal.
325

Ao defender que é fundamental “desagregar o Estado” (Gupta, 2012) e não pressupor


um Estado-nação finalizado e sem deslizamentos (Souza Lima, 2012), os autores privilegiam
uma perspectiva etnográfica para abordagem do Estado. Ambos sugerem que é preciso focar
nas práticas administrativas cotidianas levadas a cabo pelos mais variados agentes nos
diferentes lugares, órgãos e burocracias estatais. Como escreve Souza Lima,

Assim, queremos valorizar as dimensões de processo, fluxo, e


performance, não apenas aquelas apreensíveis pela via das análises dos
grandes rituais e eventos, mas também a da sua atualização cotidiana
numa miríade de ações estereotipadas e rotinizadas, em disposições
profundamente incorporadas, apreensíveis na análise das condutas,
desde os modos de pensar, falar, agir, como também de sentir, expressar
emoções e se apresentar na interação cotidiana. (Souza Lima, 2012, p.
561).

Essa atenção ao Estado na prática do dia a dia permitiria a visualização de que “longe
de ser uma organização unitária agindo a partir de uma intenção singular, o Estado é
caracterizado por vários níveis que se movem em diferentes direções” (Gupta, 2012, p. 46,
tradução minha). Em suma, os autores compreendem o Estado como um conjunto de
“instituições, agências e agendas em diferentes níveis que não são necessariamente bem
conectados entre si” (Gupta, 2012, p. 55, tradução minha) e como um Estado que se faz
constantemente por meio de processos de objetificação e subjetivação (Souza Lima, 2012) que
é capaz de se apresentar para a grande maioria das pessoas como uma entidade unificada, ou,
nos termos de Gupta (2012), como um imaginário social que surge por meio de práticas e
discursos.
Mesmo que pareça e se apresente aos assistidos como uma instituição única, a CRLS
reúne – de forma justaposta – em seu núcleo constitutivo e espaço físico órgãos estatais cujas
agendas e interesses são profundamente distintos e, por vezes, contraditórios e conflitantes. O
problema do “excesso de judicialização” que justifica a criação da Câmara pode ser descrito
como um prisma que é construído por diferentes agentes, agências e instâncias estatais. Na
medida em que os funcionários que lá trabalham são ligados a órgãos que enxergam tal questão
a partir de ângulos consideravelmente distintos, suas atuações e atribuições seguem em direções
não só diferentes, mas muitas vezes opostas. Narro a seguir um exemplo marcante do encontro
de interesses antagônicos não só em um mesmo setor da CRLS, mas em um mesmo agente de
Estado no exercício de suas funções em dois momentos diferentes.
326

Camila é uma das nutricionistas concursadas da Secretaria Municipal de Saúde (SMS)


do Rio de Janeiro que atua na CRLS. Lotada no setor de análise técnica, sua principal função
consiste em verificar e elaborar pareceres para os pedidos de “fórmula infantil” e outros
suplementos alimentares. Entretanto, devido ao grande número de pessoas atendidas
diariamente pela Câmara, Camila também “analisa” outros tipos de demanda conforme a
necessidade da equipe, como, por exemplo, solicitações de exames e consultas cujos prazos
para atendimento já foram extrapolados.
Para as solicitações no campo da alimentação e nutrição, em geral, o procedimento de
trabalho adotado por Camila era primeiramente se certificar de que a quantidade de latas,
pacotes etc. desses suplementos alimentares estavam de acordo com os limites estabelecidos.
Caso não estivessem dentro do padrão estipulado, os assistidos eram reenviados aos seus
médicos para que uma nova documentação fosse preenchida. Nos casos em que os pedidos
estavam dentro dos limites, ela encaminhava diretamente para a Defensoria Pública, pois já era
sabido há meses que não adiantava tentar qualquer “resolução administrativa” para esse tipo de
solicitação por conta do “descaso do prefeito” para com o Programa de Assistência à Criança
Portadora de Diarreia Persistente e Alergia Alimentar (PRODIAP). Nos documentos remetidos
aos defensores, Camila sempre ressaltava a urgência no atendimento e a legitimidade desse tipo
de demanda enquanto um elemento que faz parte do direito à saúde.
Durante o trabalho de campo, em alguns dias sentei ao seu lado por pelo menos um
turno de trabalho para acompanhar suas atividades. Em quase todas as vezes, observei a
funcionária preparando pareceres que seriam entregues aos usuários da CRLS. Em uma manhã
de julho de 2017, encontrei Camila no refeitório da CRLS antes do expediente começar e
perguntei se poderia me sentar ao seu lado até o horário do almoço. Ela me respondeu que não
atenderia ninguém naquela manhã e que passaria os próximos dias elaborando pareceres
pendentes. Intrigado, perguntei como poderia haver pareceres pendentes se todas as pessoas
que são atendidas pela CRLS saem de lá com uma resposta no mesmo dia. Ela respondeu
vagamente que os pareceres não eram para assistidos da Câmara, mas sim uma demanda que
foi feita por uma das gerentes da SMS. Curioso, insisti que gostaria de acompanhar seu trabalho,
já que ela faria uma coisa nova, sobre a qual eu ainda não tinha anotado nada. Aparentemente
sem se importar, ela concordou.
Quando nos sentamos em sua mesa, ela pegou uma lista impressa com vários nomes,
alguns deles já marcados como concluídos. Enquanto abria uma série de arquivos no
computador, Camila me explicou que uma das suas superiores na Secretaria Municipal de Saúde
havia solicitado que ela auxiliasse o trabalho da Procuradoria Geral do Município (PGM) do
327

Rio de Janeiro em alguns casos. Como não há uma instituição como a Câmara (que,
teoricamente, deve colaborar estritamente com o trabalho das Defensorias Públicas) ou como
os Núcleos de Assessoria Técnica (que prestam assistência aos magistrados do Tribunal de
Justiça), a PGM havia solicitado à SMS que destacasse alguém dos seus quadros para a
formulação de pareceres técnicos que embasassem a contestação de sentenças e liminares que
obrigavam o município do Rio a fornecer “fórmulas infantis” ou suplementos alimentares
especiais.
Isto é, Camila estava elaborando pareceres que ajudariam os procuradores do município
a recorrer de decisões judiciais que determinavam a obrigação do Estado de fornecer esses itens
a pessoas que alegavam não ter condições de arcar com seus custos por conta própria. Ao longo
do dia, as indicações e conclusões técnicas oferecidas por Camila para justificar a revisão das
decisões judiciais giravam em torno da sugestão de substituição do produto solicitado; da
alegação de que as quantidades demandas estavam acima do necessário; de que o fornecimento
do suplemento alimentar não era algo “essencial” para o indivíduo; e de que o aprovisionamento
de fórmulas infantis caracterizaria uma “demanda social” e não “de saúde”, de modo que a
determinação fundamentada no direito à saúde seria inválida.
O ponto máximo dessa mudança de forma de atuação ocorreu quando Camila se deu
conta de que deveria elaborar um “parecer contrário” para um caso que havia passado pela
CRLS e que ela mesma havia encaminhado para a DPE-RJ com um “parecer favorável” à
demanda. Ainda que não tivesse acesso ao conteúdo inteiro dos autos processuais – ou, se tinha,
não os verificou nenhuma vez enquanto eu a acompanhava –, a nutricionista reconheceu o caso
de Fabiano, uma criança de pouco mais de um ano de idade que havia desenvolvido uma severa
alergia alimentar após sua mãe precisar interromper a amamentação.
Camila havia analisado o caso de Fabiano algumas semanas antes e havia comentado
com os colegas do setor sobre a gravidade da situação da criança. Naquela ocasião, ela
encaminhou o caso para a Defensoria e assinalou a situação de emergência vivenciada pelo
assistido e seus familiares em seu parecer técnico. Suas rogativas aparentemente surtiram efeito.
O pedido judicial foi feito por uma defensora poucos dias depois e uma liminar foi concedida
logo em seguida, obrigando a SMS a fornecer uma significativa quantidade de “fórmula
infantil” para Fabiano. Algumas semanas depois, um dos procuradores da PGM do Rio de
Janeiro decidiu recorrer da decisão e, para embasar o recurso, solicitou à SMS que fornecesse
um documento técnico de um especialista em nutrição que questionasse a “real necessidade”
da criança de receber o que havia sido determinado pelo magistrado.
328

Sem demonstrar não mais do que uma leve surpresa, Camila chegou a verbalizar o
absurdo da situação. Contudo, ela começou a escrever o parecer que lhe foi solicitado. Em seu
texto, ela não menciona que já havia apreciado o caso antes e que, portanto, poderia ter cometido
um equívoco que necessitava de uma revisão. O novo documento não tinha nenhuma relação
com o primeiro. Não havia concordância ou discordância, ele apenas não foi mencionado. Em
suas considerações, Camila alegou que apesar da comprovada alergia alimentar de Fabiano, a
fórmula não era um componente essencial para sua sobrevivência e desenvolvimento. O
argumento principal da contestação era o de que uma criança de pouco mais de um ano já
poderia consumir outros alimentos que dariam conta de suas necessidades nutricionais, como
frutas e legumes cozidos e batidos.
Enquanto Camila digitava o parecer, perguntei se ela mesma assinaria o documento ou
se pediria para outra pessoa da equipe fazer isso. A nutricionista respondeu que ela mesma o
faria. Incrédulo, perguntei se não seria um problema que as duas partes envolvidas no processo
apresentassem pareceres tão díspares assinados por uma mesma profissional. Sem hesitar,
Camila respondeu que esse parecer era uma “mera burocracia”, que ninguém que pegasse os
autos processuais para consultar ou avaliar leria os pareceres com atenção suficiente para
perceber que eles haviam sido emitidos por uma única nutricionista.
Por fim, perguntei qual era sua avaliação particular sobre o caso e ela disse que achava
que o município deveria sim fornecer o que foi solicitado para Fabiano, especialmente porque
sua família não tinha condições de arcar com os custos por conta própria. Camila disse inclusive
que acreditava na “real necessidade” de vários dos casos que ela analisou, não só esse. Sem que
eu precisasse de fato formular o óbvio questionamento seguinte sobre o motivo dela não se
recusar a elaborar um parecer contrário, Camila se adiantou afirmando que se ela não o fizesse,
outra pessoa com certeza o faria. Além disso, ela comentou que sua negativa poderia render
atritos desnecessários com a superior que havia lhe designado tal tarefa, como, por exemplo,
ser acusada de utilizar isso como uma “desculpa para não trabalhar”. Desse modo, ela concluiu
que seria melhor cumprir com o que lhe foi pedido. Como uma forma de auto exoneração, ela
disse que quase nenhum dos recursos apresentados pela PGM são levados em consideração
pelos desembargadores e reafirmou que esses pareceres eram “só burocracia”, dando a entender
que as decisões judiciais independem deles e do seu conteúdo textual.
329

Uma promessa, muitas respostas: os múltiplos sentidos de uma “resolução


administrativa”

O incidente ocorrido com Camila ilustra de maneira exemplar como a ideia de


“resolução administrativa” possui múltiplos significados, a depender do modo como ela é
construída enquanto uma solução para problemas que são também multifacetados. Para
compreender a construção desse raciocínio, é preciso antes recapitular algumas questões.
Conforme já repetido inúmeras vezes, a CRLS foi criada para resolver
administrativamente demandas por direito à saúde apresentadas ao poder Judiciário, as quais 1)
não poderiam estar sujeitas ao problema da “morosidade da justiça”; e 2) estariam provocando
um “excesso” no número de processos. Isto é, o contexto de criação da Câmara era de um
intenso debate sobre como resolver os problemas colocados pelo “crescimento” da
judicialização da saúde tanto em termos de custos (dos processos judiciais, das sentenças
ordenando que o Estado forneça certos insumos, medicamentos, exames, entre outras coisas),
quanto de efetividade (o tempo que se leva para um processo ser julgado, a avaliação da “real
necessidade” de certo medicamento para o tratamento de um paciente etc.). Se, como discutido
no capítulo 4, o “excesso de judicialização” representa um problema interno e a “morosidade
do Judiciário” um problema externo ao Estado, faz sentido pensar que as “resoluções
administrativas” que são formuladas enquanto capazes de solucionar ambos possuem também
uma dupla dimensão, uma para a chamada sociedade civil (ou “para fora do Estado”) e outra
para os órgãos parceiros (ou “para dentro do Estado”). Além disso, é preciso destacar que há
também uma multiplicidade de sentidos para os atores e agentes estatais envolvidos no
fenômeno da judicialização de saúde: profissionais de saúde, pacientes, familiares,
procuradores, defensores e gestores.
Como abordado no capítulo cinco, a “agilidade” e “eficiência” da CRLS encontram sua
expressão máxima em uma fala proferida pela coordenadora do órgão ao dizer que “ninguém
sai da CRLS sem uma resposta no mesmo dia” – mesmo que essa resposta seja “volte outro
dia” ou algo do tipo. Ressaltar tal celeridade é uma estratégia para se contrapor à morosidade
dos processos judiciais e das longas filas de espera nas instituições públicas de saúde. Assim,
para a sociedade civil, as “resoluções administrativas” propostas produzem um efeito de
eficiência que é demonstrado por meio de entrevistas, gráficos, dados etc., os quais, desde a sua
inauguração, refletem o “sucesso” da iniciativa. Conforme discutido anteriormente, de acordo
com os dados fornecidos pela coordenação da Câmara a um jornalista, nos primeiros trinta dias
de funcionamento, houve a “solução administrativa” de 511 demandas, resultando em uma
330

redução de 37% o no número de novos processos judiciais de saúde contra o Estado (Chagas,
2013).
A forma como a instituição constrói seu banco de dados e apresenta as estatísticas sobre
o seu funcionamento são elementos centrais na produção dessa imagem pública da CRLS.
Como ressaltei desde o início, não tive acesso aos números e dados quantitativos da Câmara
propriamente ditos. Contudo, pude acompanhar e conversar com uma das pessoas responsáveis
por alimentar esse banco de dados e elaborar relatórios estatísticos parciais sobre a quantidade
de pessoas atendidas em um determinado período; acerca de quais foram os principais
“produtos” demandados; qual o perfil dos assistidos; entre outras coisas.
Um dos dados mais importantes contidos nesse banco é a proporção de “resoluções
administrativas” alcançadas pela Câmara. É de extrema importância para a CRLS apresentar
números que atestem a competência da instituição, afinal, como aponta o já citado texto de
Zenobi (2017), as estatísticas são capazes de dar magnitude e relevância social a um
determinado “fenômeno”. Ao delimitar um problema de uma maneira supostamente precisa,
técnica e impessoal, os dados quantitativos são mobilizados para legitimar argumentações,
interpretações, diagnósticos e, principalmente, intervenções estatais.
Assim, gostaria de ressaltar algumas questões sobre o modo como a Câmara quantifica
e classifica seus próprios atendimentos. Como já mencionado em outros momentos do texto, só
existem duas categorias de qualificação do atendimento no banco de dados da CRLS:
“resolução administrativa” e “judicialização”. O rótulo “judicialização” é utilizado para
classificar os casos encaminhados para as Defensorias Públicas. Todos os outros são colocados
sob o signo da “resolução administrativa”. Isto significa que contam como “resoluções
administrativas” os pareceres técnicos cujos desfechos são o estabelecimento de um prazo para
a resposta da unidade de saúde ou da Central de Regulação; o encaminhamento para que a
Clínica da Família insira a solicitação do assistido no SISREG; o pedido de reformulação do
laudo ou receituário médico; a proposição da substituição do medicamento solicitado; a
constatação de que o tempo máximo para o agendamento de uma consulta ou exame ainda não
foi ultrapassado e que, portanto, não há nada a fazer; e toda e qualquer situação que não termine
sendo encaminhada aos defensores públicos.
Quanto ao método de quantificação, é preciso destacar que o cálculo é feito a partir das
demandas particularizadas – ou seja, tendo como valor de referência a variável “produto
solicitado” – e não pessoas atendidas. Assim, se alguém solicita cinco medicamentos diferentes,
comparece na CRLS três vezes e em nenhuma das ocasiões seu caso é encaminhado para a
Defensoria Pública, são contabilizadas 15 “resoluções administrativas” na planilha de dados.
331

Na medida em que é possível tentar solucionar administrativamente uma mesma demanda


múltiplas vezes – e cada tentativa conta efetivamente como uma “resolução administrativa” –,
ao passo que o encaminhamento para a Defensoria é único, tal contagem tende sempre a um
desequilíbrio em favor das resoluções administrativas. No dia em que acompanhei o processo
de tabulação dos dados, pude ver que as estatísticas parciais relativas ao trabalho de uma das
equipes que compõem o setor de análise técnica da CRLS indicavam um percentual
significativamente alto de resoluções administrativas, mantendo-se acima dos 85% desde
janeiro de 2017.
Diálogos sobre a estruturação desse banco de dados foram extremamente raros durante
o tempo em que permaneci em campo. Esse me pareceu sempre um tema delicado e de difícil
abordagem, sendo tópico central da conversa em apenas duas ocasiões. A primeira foi no já
referido dia que me sentei ao lado da pessoa que estava alimentando o banco, que me disse
quase em um tom confessional que sabia que nem tudo que consta na planilha é, de fato, uma
resolução administrativa. A segunda situação foi quando uma das pessoas que trabalham na
CRLS me descreveu essa “teoria nativa” de que a Câmara é uma “tocaia de Estado”. Em sua
explicação, a combinação entre a promessa de “resposta no mesmo dia” e as estatísticas sobre
o funcionamento da instituição produz um efeito de “eficiência” e “agilidade” que constrói a
imagem pública da CRLS e convence assistidos, agentes de Estado e profissionais de saúde de
que o órgão vem realizando um trabalho de mediação que não é apenas essencial, mas que
também merece reconhecimento.
Um episódio de reconhecimento público dos serviços prestados pela Câmara ocorreu
em 2014, quando a instituição concorreu ao XI Prêmio do Instituto Innovare66, dedicado a
inovações no campo da prestação jurisdicional. Inscrita nas categorias “Defensoria Pública” e
“Advocacia”, membros das Procuradorias Geral do Município (PGM) e do Estado (PGE) e da
Defensoria Pública estadual (DPE-RJ) envolvidos na criação da CRLS receberam uma menção
honrosa por suas atuações na proposição de “uma prática extrajudicial que opta pela via
consensual de solução de conflitos e que funciona como um instrumento efetivo para a
diminuição da judicialização da saúde”.
Em suma, esse efeito de “eficiência” e “agilidade” se traduz em um discurso de que a
Câmara é uma instituição que não apenas garante, mas também acelera o andamento das

66
De acordo com a página do Instituto Innovare, o prêmio foi criado em 2004 e é hoje uma das premiações mais
respeitadas da Justiça brasileira. Dividido nas categorias “Ministério Público”, “Defensoria Pública”,
“Advocacia”, “Juiz”, “Justiça e Cidadania” e “Tribunal”, o prêmio é concedido a “iniciativas inovadoras” que
qualifiquem a prestação jurisdicional e contribuam com a modernização do Justiça no Brasil.
332

solicitações feitas ao SUS. Ao longo do tempo em que realizei meu trabalho de campo, vários
assistidos informaram durante o atendimento que foram os próprios profissionais de saúde que
os aconselharam a buscar a ajuda da Câmara. Em duas ocasiões específicas, deparei-me com
materializações desse discurso em pequenos pedaço de papel que foram entregues aos usuários
nas unidades de saúde. Esses papéis continham instruções sobre como acessar a CRLS, bem
como o endereço, o telefone e os horários de funcionamento da Câmara. Em um deles, o título
era “CÂMARA DE LITÍGIOS DE SÁUDE: VAGA OU TRANSFERÊNCIA PARA
HOSPITAL PÚBLICO E UTI”. O outro, que havia sido entregue para uma usuária que
necessitava de um exame oftalmológico, eu consegui fotografar:

Figura 16 – Instruções para acessar a CRLS

Fonte: acervo do autor.

Em geral, “para dentro do Estado”, a CRLS se constitui como uma espécie de “gargalo
da judicialização” – ou, como dito na introdução, uma “catraca” localizada em uma das portas
de acesso ao Judiciário –, uma vez que ela controla o fluxo de casos que chegarão aos Tribunais
para serem julgados, de modo a realizar a contenção de uma grande quantidade de coisas que
são demandas judicialmente no que diz respeito ao direito à saúde. Isto é, levando em
consideração a lógica de construção do banco de dados da instituição, uma “resolução
administrativa” é, na prática, tudo aquilo que bloqueia ou retarda a efetiva judicialização de
uma demanda. Contudo, uma vez que o Estado não é essa entidade fixa, coesa e que possui
apenas um único interesse, não existe um só sentido das resoluções administrativas “para dentro
do Estado”. Seus significados variam de acordo com cada uma das instituições envolvidas e
interessadas no funcionamento da Câmara.
Assim, para as Procuradorias Geral do Estado e do Município, a utilidade da Câmara se
dá na medida em que ela é capaz de fazer com que menos casos sejam judicializados em
números absolutos. Assim, há uma significativa diminuição dos recursos públicos gastos não
só com as custas dos processos judiciais, mas também com o atendimento das demandas dos
pacientes determinado pelas decisões judiciais favoráveis aos pleitos apresentados. De acordo
333

com alguns funcionários, foi esse o principal argumento apresentado em uma reunião que
ocorreu em 2017 entre a coordenação da CRLS e membros das Procuradorias para tratar da
renovação do convênio que estabelece o financiamento e a atividade da Câmara.
Para o Ministério da Saúde e as Secretarias Municipal e de Estado de Saúde, a contenção
dos processos judiciais realizada pela CRLS significa uma menor interferência do Poder
Judiciário nos setores de planejamento e execução de políticas públicas de saúde – isto é, no
Poder Executivo. Além disso, ao avaliar e questionar os receituários médicos apresentados
pelos assistidos, a atuação da Câmara representa para os gestores um mecanismo que possibilita
um controle – ainda que mínimo – sobre a utilização da legislação brasileira de direito à saúde
em prol de laboratórios farmacêuticos que incentivam médicos e grupos de pacientes a “recorrer
à Justiça” para obter determinados medicamentos e tecnologias terapêuticas, garantindo assim
seus lucros por meio da criação de um certo “mercado cativo” para seus produtos.
A questão financeira também figura como um dos interesses do Ministério e as
Secretarias de Saúde nas resoluções administrativas. De acordo com uma das funcionárias do
setor de análise técnica, a SMS apresentou uma atrativa proposta de “bonificação por
produtividade” para os servidores que aceitassem trabalhar na CRLS. Em nossa conversa, ela
mencionou que no início do funcionamento da Câmara essa gratificação era de
aproximadamente R$ 600,00 e que em 2016 chegou ao patamar dos R$ 2.000,00. Em 2017, sua
preocupação era de que a crise fizesse a Prefeitura cortar essa “recompensa”. Para ela, o
acréscimo na remuneração era não apenas justo, mas também irrisório diante da “economia”
gerada pelos funcionários que trabalhavam na CRLS, uma vez que eles atuavam diretamente
na redução da quantidade de processos ajuizados contra a Prefeitura do Rio de Janeiro.
Para as Defensorias Públicas do Estado e da União, a triagem executada pela CRLS não
somente “desafoga” os defensores, uma vez que faz com que menos casos sejam remetidos para
as Defensorias; mas também prepara e qualifica os processos a serem eventualmente ajuizados.
Em teoria, o procedimentos de verificação dos documentos médicos apresentados pelos
assistidos (laudos, receituários, exames etc.) funciona como uma tipo de “filtro técnico” que
faz com que somente aquilo que seja “estritamente necessário” chegue ao Judiciário. Além
disso, a elaboração de pareceres de profissionais de saúde e, principalmente, a digitalização de
tudo que é entregue pelos assistidos e emitido pela Câmara, conformam um corpus documental
que pode eventualmente constar nos autos processuais como prova cabal da necessidade do
assistido de ter sua demanda atendida, dando força ao pedido.
A função da Câmara não é entendida de modo diferenciado apenas a partir dos pontos
de vistas das instituições. Os funcionários da Câmara também formulam suas próprias visões
334

acerca dos conflitos de interesse presentes nas diferentes lógicas que orientam o funcionamento
do órgão, os quais se traduzem nos modos pelos quais eles enxergam não só o seu próprio
trabalho, mas a função da Câmara como um todo. Boa parte dessas divergências de opinião se
dão entre profissionais com formações distintas e que atuam nos diferentes setores.
Para além do episódio vivenciado enquanto acompanhava Camila, elaborações sobre
esses antagonismos foram compartilhadas comigo espaçadamente em outros momentos menos
dramáticos. Assim, para alguns a Câmara existe porque o Estado é incapaz de promover o
direito à saúde para toda a população e que é seu dever tentar fazer com que esse problema seja
superado. Para outros, a CRLS cumpre uma função pedagógica de ensinar aos usuários que seu
vínculo deve ser com a Unidade Básica de Saúde de sua área de residência e não com a Câmara
ou com a “Justiça”. Há também aqueles que entendem que parte do trabalho da instituição é
reinserir o paciente no “fluxo normal do SUS”. E, por fim, há ainda os que são claros em afirmar
que a Câmara na verdade dificulta o acesso ao direito à saúde, pois passou a colocar empecilhos
para a efetivação da judicialização, representando uma “tocaia de Estado”.
Para os que adotam essa perspectiva da “tocaia”, a CRLS opera atraindo as pessoas com
uma promessa de “solução rápida e eficiente” das demandas e posteriormente adiando e
dilatando prazos indeterminadamente ao interpor uma série de “obstáculos burocráticos”.
Retornarei a essa questão posteriormente. Agora, passo ao debate sobre como as disputas em
tono da “classificação de risco” de um paciente produz uma gestão e uma mensuração imbricada
do tempo e do sofrimento.

7.2 – “Classificações de risco”: mensurando tempos e sofrimentos (in)suportáveis

As tabelas de “classificação de risco” são protocolos de priorização de atendimento


adotados em diferentes serviços de saúde no Brasil, tanto emergenciais, quanto ambulatoriais.
Sua construção toma como ponto de referência a possibilidade de uma pessoa adquirir uma
grave sequela ou vir a óbito, afinal, a principal ameaça que paira nessas situações é sempre o
“risco de morte”. Ou seja, classificar o risco de um paciente é mensurar e determinar quanto
tempo ele é capaz de suportar uma determinada forma de sofrimento – sentir dores corporais
regularmente, não ser capaz de andar, ter dificuldades para respirar, apresentar distúrbios do
sono etc. – sem que isso resulte no seu falecimento; em um comprometimento profundo de seu
estado de saúde, como tornar-se dependente de diálise, passar a utilizar um medicamento de
335

forma crônica etc.; ou em uma deficiência física irreversível, como a perda da visão, da
audição, de parte dos movimentos etc.
Nos hospitais, clínicas, UPAs etc., o processo de classificação de risco é feito por
profissionais de enfermagem durante a fase chamada de “acolhimento” que antecede o
atendimento médico. Na medida em que um dos princípios organizacionais do SUS é a
“descentralização”, não existe um protocolo único de classificação de risco adotado por todas
as unidades públicas de saúde do país. No município do Rio de Janeiro, a Prefeitura vem
implementando um sistema de classificação de risco informatizado por meio da contratação de
uma empresa privada que desenvolveu um software específico para a realização desse
procedimento. De acordo com as informações disponibilizadas pela Prefeitura do Rio, esse
processo de informatização foi implementado para garantir aos usuários uma maior “segurança”
e “rapidez” quanto ao processo de avaliação da classificação de risco. Na explicação que consta
na página oficial da Empresa Pública de Saúde do Rio de Janeiro é dito o seguinte:

Nesta etapa inicial do atendimento, o objetivo é avaliar a gravidade de


cada paciente e, assim, determinar a prioridade nas filas dos
consultórios médicos. É um trabalho feito por enfermeiros, que além de
ouvir as queixas do paciente, avaliam fatores como temperatura,
batimentos cardíacos e pressão arterial.
É um processo que, no geral, demorava entre 6 e 8 minutos e que, com
ajuda da tecnologia, caiu para 2 minutos por paciente e, mais
importante, com maior precisão.
Como isso é possível? A chave está na padronização do atendimento.
Tradicionalmente, o tempo de atendimento e a qualidade da
classificação de risco dependem muito da experiência e da sensibilidade
do enfermeiro. Já com o esta solução, as perguntas são sugeridas pelo
aplicativo, e os sinais vitais são obtidos por medidores integrados ao
aparelho. Assim, padroniza-se o roteiro de perguntas, tendo como base
o protocolo usado pelo município, e diminuem-se os erros decorrentes
da transcrição dos sinais vitais. (EPS-Rio, s. d.)

Nos serviços de urgência e emergência municipais que utilizam o sistema contratado, a


classificação de risco se baseia no Protocolo de Manchester, o qual estabelece cinco categorias
de priorização orientada por cores e mensurações do risco, como é possível observar no seguinte
quadro:
336

Quadro 3 – Classificação de risco segundo o Protocolo de Manchester

Nível de Exemplo de quadro Tempo para


Classificação Risco
prioridade clínico atendimento

Parada
(1) Risco imediato à
Emergência cardiorrespiratória, Imediato
Vermelho vida do usuário
queimaduras graves
(2) Risco imediato de Comportamento
Muita urgência perda de função de alterado/violento, Até 10 min.
Laranja órgãos ou membros hemorragia moderada
Risco moderado Convulsão, desmaios,
(3)
Urgência agravamento da paciente com mais de 60 Até 60 min.
Amarelo
condição de saúde anos

(4) Torcicolo, drenagem de


Pouca urgência Risco leve Até 120 min.
Verde abcesso.

(5) Escoriações, garganta


Não urgência Sem risco Até 240 min.
Azul inflamada, gripe
Fonte: elaboração própria a partir de informações da página do Grupo Brasileiro de Classificação de Risco.

O Protocolo de Manchester consiste em um sistema de triagem de emergências em


serviços de saúde que começou ser aplicado no National Health Service (NHS) do Reino Unido
no final da década de 1990 e que rapidamente foi adotado em outros lugares do mundo. No
Brasil, diversos serviços municipais e estaduais adotam esse protocolo para a classificação e
triagem dos seus pacientes. No que diz respeito ao atendimento de demandas ambulatoriais,
esse protocolo foi adaptado para designar diferentes níveis de priorização de agendamento,
como descreverei mais adiante.
Todas as solicitações de exames e consultas especializadas de caráter ambulatorial
demandadas ao SUS são registradas no Sistema Nacional de Regulação (SISREG), uma
plataforma online do Ministério da Saúde criada para gerenciar o controle dos fluxos do SUS e
otimizar o uso de recursos na área da saúde. De acordo com o Protocolo para o Regulador
elaborado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do Rio de Janeiro,

As vagas para esse nível de complexidade são finitas e portanto o


encaminhamento para consultas e a solicitação dos exames
complementares deve ser uma conduta reservada apenas àqueles
pacientes com boa indicação clínica, baseada nas melhores evidências
disponíveis. (SMS-Rio, 2016).

No momento da inclusão da demanda no SISREG, o responsável pelo preenchimento


necessita informar uma série de informações sobre o paciente – como idade, local de moradia,
337

condição de saúde – e sobre o pedido em si – como o motivo do pedido, qual o código da


Classificação Internacional de Doença (CID) vinculado e a “classificação de risco” atribuída.
Por se tratar de um sistema que atende pedidos de caráter ambulatorial, seu prazo é contado não
em minutos, mas sim em dias. Para pacientes que necessitam da regulação imediata de algum
tipo de encaminhamento para especialista ou remoção, o profissional não deve utilizar o
SISREG, mas sim acionar a Central de Regulação Hospitalar e solicitar a abertura de uma “vaga
zero”, como já mencionado anteriormente.
De acordo com o Protocolo citado acima, o médico regulador tem autonomia para
decidir sobre a regulação das vagas. Nesse sentido, o profissional responsável por dar o
encaminhamento à solicitação pode responder ao pedido de quatro maneiras: 1) “negar”:
quando o regulador não concorda com a conduta sugerida por quem inseriu a solicitação no
sistema – por exemplo, se o médico julga que o exame solicitado é incompatível com o tipo de
diagnóstico que se quer estabelecer; 2) “devolver”: quando o regulador considera as
informações prestadas pelo solicitante insuficientes – por exemplo, se ele acredita que o quadro
clínico do paciente não foi razoavelmente descrito e pede que o registro seja complementado;
3) “deixar como pendente”: quando o médico regulador deixa a análise do pedido em aberto,
passando ele para uma lista de pendências – isso geralmente ocorre quando ele concorda com
a conduta do outro profissional, mas não há no sistema nenhuma vaga disponível no momento
da regulação; 4) “autorizar”: quando o médico regulador a) encontra uma vaga e efetivamente
marca a data e horário para realização da consulta ou exame ou b) não encontra a vaga, mas
autoriza o pedido mesmo assim, transferindo ele para uma lista de espera que não é gerida por
ele, mas por outro profissional da Regulação.
As Unidades de Atenção Primária ocupam a posição tanto de “solicitante”, quanto de
“regulador” das consultas e exames que são realizados no próprio estabelecimento. Já as
Unidades de Atenção Secundária – policlínicas e ambulatórios especializados – ocupam a
posição de “executantes” e devem registrar e colocar todas as suas vagas disponíveis no sistema.
Assim, na rede pública de saúde da cidade do Rio de Janeiro, a inserção de solicitações no
SISREG é feita por médicos que atuam principalmente nas Clínicas da Família e nos Centros
Municipais de Saúde, os quais encaminham os pacientes para a realização de exames em
instituições como o Rio Imagem, assim como para consultas com médicos especialistas em
policlínicas e serviços ambulatoriais de hospitais municipais, estaduais e federais.
Como dito anteriormente, a classificação de risco adotada pelo SISREG está dividida
em quatro níveis de categorização de prioridades divididas por cores. Cada uma dessas
classificações impõe um prazo máximo para que uma demanda seja atendida. Ao longo do
338

trabalho de campo, percebi que a principal reclamação feita pelas pessoas que procuravam a
assistência da CRLS em relação ao SISREG era o tempo que elas estavam aguardando para a
marcação de uma consulta e/ou exame. Segundo os funcionários da Câmara, essa demora
poderia se dar em função do não cumprimento do prazo estabelecido – o que tornava a situação
mais suscetível à pressão da ameaça de judicialização; ou por conta de uma atribuição de
“classificação de risco” feita no momento da inserção do pedido no SISREG que não
necessariamente condizia com o estado de saúde do paciente – como, por exemplo, designar
“risco verde” para um paciente cujo risco seria “vermelho”.
Dentre as já mencionadas instruções e cartilhas que a CRLS disponibiliza aos assistidos,
há uma sobre como funciona o SISREG e como as pessoas devem proceder caso suas
solicitações não sejam marcadas. Reproduzo aqui tal cartilha:

Figura 17 – Instruções sobre o SISREG

Fonte: acervo do autor.

Passo agora para uma descrição do que compreende cada um desses níveis. Para isso,
trago um conjunto de vinhetas etnográficas que ilustram como as diferentes classificações de
risco eram entendidas e manejadas pelos funcionários da CRLS.
339

Risco Azul

Geralda era uma mulher de 54 anos e moradora do bairro de Vila Isabel. Com um
quadro clínico de dores abdominais persistente e um resultado inconclusivo de uma
ultrassonografia, ela foi à CRLS no final de junho de 2017 demandar a marcação de um exame
de colonoscopia. Ao verificar seu histórico no SISREG, a analista da Câmara percebeu que o
pedido estava pendente. A solicitação foi inserida no dia 06/06/2017 com classificação de risco
azul e desde então houve quatro tentativas de agendamento nos dias 09/06, 12/06, 13/06 e
16/06, todas sem sucesso por conta da falta de vagas. Sem nenhum documento médico
indicando que esse exame era algum tipo de urgência, a funcionária foi sucinta ao elaborar
um parecer informando à assistida que cabe ao profissional de saúde da unidade básica
estabelecer a classificação de risco e que a paciente deveria aguardar o agendamento de
acordo com o prazo estipulado no protocolo.

Em maio de 2017, a mãe de Renato compareceu à CRLS para reclamar da demora para
a realização de uma consulta em odontologia para seu filho. Renato era um rapaz de 12 anos
e segundo os documentos médicos obtidos em uma consulta com um dentista particular, ele
precisava realizar alguns procedimentos em dois dos seus dentes. Ao acessar a página do
SISREG, o analista da CRLS verificou que a solicitação de consulta havia sido inserida no
sistema em fevereiro daquele ano e estava pendente desde então. De acordo com o funcionário
da Câmara, o documento médico anexado pelo assistido era demasiadamente vago e dava a
entender que o tratamento indicado pelo dentista privado tinha uma finalidade mais estética
do que terapêutica. Levando isso em consideração, ele julgou como correta a classificação de
risco atribuída pelos profissionais da Clínica da Família e informou em seu parecer que o caso
não era passível de judicialização porque o prazo máximo para atendimento da demanda ainda
não havia sido ultrapassado.

A classificação de “risco azul” é último nível de prioridade do SISREG, atribuída aos


casos de “não urgência”. As consultas e exames cujo risco é azul são considerados “eletivos” e
não possuem um prazo máximo para o atendimento (segundo a tabela do sistema, isso pode
demorar 180 dias ou mais). Ou seja, estes só são marcados quando existem vagas disponíveis e
não há mais ninguém esperando na fila. No referido Protocolo para o Regulador, figuram como
exemplos de quadros clínicos de risco azul: incontinência urinária, insuficiência venosa, úlcera
de difícil cicatrização, disfunção erétil, entre outros.
Não é difícil imaginar que as solicitações classificadas como risco azul podem levar
mais de um ano para serem atendidas, quando o são. Durante o tempo em que fiz campo, a
percepção compartilhada entre os profissionais da Câmara era a de que designar risco azul para
340

uma demanda significava basicamente que ela nunca seria atendida, principalmente em um
período de crise como o que o Rio de Janeiro estava vivendo.
As reações dos funcionários aos casos classificados como risco azul variavam. Por um
lado, para as situações que eles consideravam essa classificação incorreta, ela era vista como
uma estratégia estimulada por vários gestores e dirigentes de unidades de saúde para evitar
penalidades ou condenações caso os prazos para o atendimento não fossem cumpridos. Nesses
casos, o parecerista geralmente solicitava aos profissionais da UBS que reavaliassem a
classificação de risco do usuário. Por outro, eles argumentavam que os assistidos que se
dirigiam à Câmara para reclamar da demora para um agendamento, mas cujas demandas não
eram realmente uma “urgência”, deveriam ser mais conscientes da “situação crítica” nos
hospitais públicos da cidade. Como descrito nas vinhetas etnográficas acima, nessas ocasiões
os profissionais da Câmara informavam ao assistido que ele deveria simplesmente aguardar que
seu pedido fosse atendido.

Risco Verde

Em julho de 2017, Carmem, uma senhora de 64 anos, foi à CRLS demandar a marcação
de uma consulta com oftalmologista e uma cirurgia para tratamento de catarata. Ao acessar a
página do SISREG, a funcionária da Câmara verificou que o pedido da assistida havia sido
inserido no dia 09/01/2017 com classificação de risco verde. Uma semana depois, no dia
16/01/2017, o pedido foi alterado para risco vermelho, sob a alegação de uma possível perda
total da visão da paciente. Seis meses depois, nem a consulta e nem a cirurgia haviam sido
agendadas. Além do parecer, a analista da CRLS encaminhou um e-mail para a Central de
Regulação ressaltando que o prazo já havia sido ultrapassado, até mesmo se a classificação
de risco não houvesse sido alterada. Por fim, ela estabeleceu um prazo de 7 dias para que a
Central se pronunciasse sobre o assunto.

Na primeira semana de agosto de 2017, o filho de Adélio foi à CRLS reclamar que seu
pai, um senhor de 61 anos, estava aguardando há muito tempo a marcação de uma consulta
com angiologista. Durante o atendimento, ele entregou a impressão da “tela do SISREG” que
foi feita por um profissional da Clínica da Família na ocasião em que o médico generalista
solicitou a consulta. No setor de análise técnica, o funcionário da Câmara acessou a página
do SISREG e percebeu que o pedido foi inserido em março daquele ano com classificação de
risco verde e que havia sido autorizado há cerca de duas semanas, sendo agendado para o dia
19 de setembro de 2017. Na medida em que a marcação estava dentro do prazo e que a
demanda do assistido não era por antecipação, o parecerista apenas indicou que o paciente
341

deveria ir à Clínica da Família retirar a guia de autorização e que era função dos profissionais
da atenção básica manter os usuários informados sobre o agendamento de consultas e exames.

A classificação de “risco verde” é o terceiro nível de prioridade do SISREG, atribuída


aos casos de “pouca urgência”. Seu prazo máximo para atendimento é de aproximadamente seis
meses (180 dias). De acordo com o Protocolo para o Regulador, os quadros clínicos de risco
verde são aqueles que necessitam de um encaminhamento para um especialista e um
agendamento minimamente prioritário, tais como os casos de hipertensão pulmonar, arritmia
cardíaca, varizes sintomáticas e a presença de alguns tipos de cistos.
Segundo alguns dos funcionários da CRLS, atribuir risco verde a uma solicitação
significa, na prática, deixá-la em suspenso. Para eles, seis meses seria um tempo
consideravelmente longo para se esperar, de modo que em muitas dessas situações as pessoas
“se viram” e buscam meios alternativos de atendimento, esquecem de acompanhar o
agendamento ou simplesmente desistem. Em uma conversa no refeitório da Câmara, um
funcionário em particular comentou que, para ele, as demandas de risco azul deveriam ser
inseridas como risco verde e que este deveria ser o último nível de prioridade do SISREG, pois
não faz sentido inserir uma solicitação em um sistema de regulação que não tenha um prazo
máximo para ser atendida. Nesse sentido, as demandas que fossem “realmente eletivas” – isto
é, que fossem algo puramente da vontade do paciente e não fruto de uma indicação clínica
embasada – não deveriam ser sequer inseridas, tendo em vista que a rede pública de saúde
possui uma quantidade limitada de vagas e recursos disponíveis.
O procedimento adotado pelos profissionais da CRLS nos casos de assistidos
classificados como risco verde é o mesmo das situações de risco azul. Isto é, a possibilidade de
que o parecerista demande a revisão e/ou alteração da classificação de risco depende da
avaliação que ele faz do quão urgente é a necessidade do paciente e do quão correta ele acha
que foi a conduta definida pelo médico que inseriu a solicitação no SISREG.

Risco Amarelo

Benedito se dirigiu à CRLS pela primeira vez em junho de 2017. Seu pedido era a
marcação de uma consulta com médico especialista em urologia. Ao verificar o histórico do
assistido, o analista técnico da Câmara notou que o pedido de Benedito havia sido inserido na
plataforma do SISREG em dezembro do ano anterior e que já havia passado do prazo para o
342

seu atendimento. Em seu parecer, ele afirmou que o assistido deveria aguardar 7 dias para que
a Central de Regulação do município explicasse o motivo da consulta ainda não ter sido
agendada.

Glória era uma mulher de 45 anos e moradora do bairro de Copacabana. Em julho de


2017 ela foi à CRLS para solicitar o agendamento de um exame de eletroneuromiografia dos
membros superiores, pois seu médico estava suspeitando de que ela poderia estar com
síndrome do túnel do carpo. Ao verificar a página do SISREG, a funcionária da Câmara notou
que foi atribuída a classificação de risco amarelo ao pedido de Glória, o qual havia sido
inserido há cerca de duas semanas. Alegando que os sintomas estavam afetando a rotina
profissional da assistida, de modo que ela não poderia esperar os 90 dias para a realização do
exame e posterior confirmação do diagnóstico para dar início ao tratamento, a analista
encaminhou o caso para a Clínica da Família de referência da paciente e solicitou que a
classificação de risco dela fosse revisada. Poucos dias depois, a funcionária da Câmara
compartilhou comigo que a unidade havia respondido de maneira ríspida que aquela era a
classificação de risco correta, pois a paciente apresentava um quadro clínico de dor moderada
e intermitente, e não aguda e constante, o que justificaria uma classificação de risco vermelho
e um atendimento prioritário.

A classificação de “risco amarelo” é o segundo nível de prioridade do SISREG,


atribuída aos casos de “urgência”. Seu prazo máximo para atendimento é de cerca de três meses
(90 dias). Segundo o Protocolo para o Regulador, as condições de saúde que ensejam o risco
amarelo são aquelas que necessitam de um atendimento por médico especialista em um prazo
relativamente curto e, por isso, devem ser priorizados. São exemplos de risco amarelo: sopro
cardíaco patológico, acompanhamento de anticoagulação, aneurismas de aorta abdominal,
alteração detectada em exame de toque retal etc.
Para algumas das pessoas que trabalham na Câmara, o risco amarelo é aquele que impõe
um prazo razoável para o agendamento de consultas e exames que não são emergenciais. Em
um cenário ideal – isto é, em que houvesse unidades de saúde, profissionais e equipamentos
suficientes para atender a todos –, três meses seria tempo o bastante para realizar todos os
atendimentos que as pessoas precisam, desde aquelas que necessitam de acompanhamento
ambulatorial para doenças crônicas e/ou tratamentos de longa duração até aa consultas
preventivas para pacientes que apresentem fatores de risco específicos.
No cotidiano da CRLS, na maioria das vezes em que os analistas se deparam com uma
reclamação acerca da demora para o agendamento de uma consulta ou um exame que foi
classificado como risco amarelo, o prazo máximo para atendimento já foi ultrapassado. Nesses
casos, o procedimento padrão é determinar que a Central de Regulação ofereça uma solução
343

para a situação em até 7 dias e, se isso não ocorrer, encaminhar o assistido para uma das
Defensorias Públicas.
Para os casos em que o prazo máximo para atendimento ainda não foi alcançado, a
decisão sobre o que fazer é sempre mais ponderada, sendo objeto de reflexão e cálculo. Quando
o assistido procura a CRLS e falta cerca de um mês ou um pouco mais para o vencimento do
prazo, os profissionais da análise informam que a pessoa deve aguardar a marcação. Nesses
casos, um pedido de reavaliação da classificação de risco é tido como potencialmente
prejudicial, pois a alteração da solicitação no SISREG geraria um novo prazo para atendimento.
Ainda que esses cálculos e estratégias nunca sejam colocados por escrito nos pareceres
formulados pelos analistas técnicos, eles são explicados pelas funcionárias do setor de retorno
da análise no momento de entrega do parecer, especialmente nas ocasiões em que os assistidos
se mostram nervosos e indignados com a “inútil” resposta ofertada pela instituição.
O encaminhamento dado aos casos em que falta mais de 45 dias para o vencimento do
prazo pode seguir dois caminhos: o mesmo dos casos em que falta menos de 45 dias – isto é,
simplesmente aguardar – ou pode ser que o analista solicite a reavaliação da classificação de
risco atribuída ao pedido do usuário, como foi o caso de Glória, narrado acima. Como em todos
os outros casos, essa decisão depende da avaliação do funcionário da Câmara em relação ao
que foi descrito pelo profissional de saúde que inseriu a solicitação no SISREG.
Entretanto, os critérios dessa avaliação são um pouco mais ampliados quando se trata
de classificações de risco amarelo. Tal alargamento se deve a um conjunto de fatores. O
primeiro é que eles não acreditam que a alteração da classificação de risco aumente a
probabilidade de uma pessoa ser atendida de acordo com o “fluxo normal do SUS”, como
discutirei a seguir. O segundo tem a ver com as baixas chances de sucesso de um pedido de
reclassificação de risco amarelo para vermelho. O terceiro diz respeito aos atritos e desgastes
nas relações entre CRLS e as Unidades Básicas de Saúde provocados pelos pedidos de
modificação da classificação de risco de um paciente. Como dito anteriormente, de acordo com
os funcionários da Câmara, os médicos da rede pública não veem tais pedidos com “bons
olhos”, pois vivenciam isso como uma forma de intervenção no “fluxo do SUS” e de
interferência em sua autonomia profissional. Nesse sentido, os agentes da Câmara julgam que
nem sempre “vale a pena” pedir a mudança de uma classificação de risco amarelo.
344

Risco Vermelho

Fátima era uma senhora de 68 anos com uma lesão no ombro provocada pelos anos de
trabalho como costureira. Em agosto de 2017, ela compareceu à CRLS pela primeira vez para
solicitar a marcação de um exame de ressonância magnética. Naquela ocasião, o funcionário
da Câmara verificou que o pedido havia sido inserido no SISREG em março daquele ano com
a classificação de risco azul e que permaneceu pendente desde então. Ao olhar os documentos
médicos da assistida, viu que seu pedido de marcação com urgência se devia ao fato de que
ela havia sido agendada para fazer uma cirurgia no ombro em novembro, mas para isso,
precisaria apresentar o laudo do exame. Diante daquela situação, o analista solicitou que a
classificação de risco de Fátima fosse revista pelos profissionais da Clínica da Família para
que ela não perdesse essa oportunidade de operar. Na semana seguinte, ainda em agosto, a
classificação foi alterada para risco vermelho. No início de outubro de 2017, logo depois do
vencimento do prazo para o seu atendimento, Fátima foi novamente à Câmara. Desesperada,
ela disse que o exame não havia sido agendado até aquele momento e que ela temia perder a
vaga da cirurgia caso não apresentasse o laudo da ressonância. Em seu parecer, a analista
que atendeu o caso de Fátima pela segunda vez solicitou uma resposta da Central de Regulação
em 7 dias e ressaltou o quão difícil era para um paciente ter uma cirurgia agendada.

Pouco depois da metade do mês de junho de 2017, a filha de Guilherme compareceu à


CRLS pela segunda vez. Seu pai tinha 54 anos, estava bastante debilitado e internado em um
hospital público da cidade. No início do mês, o médico havia solicitado a realização de uma
ressonância magnética das vias biliares do paciente, pois ele suspeitava que Guilherme
poderia ter desenvolvido um tumor. O pedido foi inserido no SISREG no dia 06/06 com a
classificação de risco amarelo. No dia seguinte, o pedido foi negado pela médica reguladora
sob a justificativa de que a demanda é muito maior que a oferta e que “diante da escassez, me
vejo obrigada a fazer escolhas de Sofia67”. Além disso, a profissional da Central de Regulação
escreveu que “os médicos solicitam ressonâncias de mais” e que atualmente os pedidos
prioritários de ressonância magnética eram para pacientes com lesões cerebrais ou na coluna,
pois o tratamento seria mais emergencial e envolveria a realização de cirurgias extremamente
minuciosas e que necessitam de precisão. Nesse mesmo dia a filha de Guilherme esteve na
CRLS e saiu de lá com um parecer solicitando que o hospital reinserisse o pedido no SISREG.
A solicitação foi feita novamente no dia 08/06 e classificada como risco vermelho. No dia 12/06
o pedido foi negado mais uma vez por conta da falta de vagas. Alguns dias depois, a filha de
Guilherme retornou à Câmara para informar a situação. Dessa vez, o caso foi encaminhado
para a Defensoria Pública estadual.

67
A expressão “escolha de Sofia” faz referência ao nome do romance William Styron posteriormente transformado
em filme. Na história, Sofia é forçada por um soldado do regime nazista a escolher um dos seus dois filhos para
ser morto e, caso ela se recusasse a escolher, os dois seriam assassinados. Desde então, a expressão vem sendo
utilizada para designar situações em que é preciso optar entre duas alternativas igualmente ruins e difíceis.
345

A classificação de “risco vermelho” é o primeiro nível de prioridade do SISREG,


atribuída aos casos de “muita urgência”. Seu prazo máximo de atendimento é de um mês (30
dias). Conforme determinado no Protocolo para o Regulador, os quadros clínicos que precisam
ser classificados como de risco vermelho são aqueles que precisam ser atendidos o mais rápido
possível, pois correm o risco de passar de uma “urgência” para uma “emergência”. Constam
como exemplos de risco vermelho: retenção urinária grave e repetitiva, má rotação intestinal,
insuficiência cardíaca moderada, cardiopatia congênita em recém-nascidos, arritmias crônicas,
anginas instáveis, entre outras condições de saúde.
Ao longo do trabalho de campo, pude perceber alguns sentidos dados ao risco vermelho
por parte dos profissionais da Câmara. Primeiramente, é preciso destacar que, para os
funcionários da CRLS, esse é o “melhor risco” com que uma demanda pode ser classificada, já
que é o que possui o menor prazo máximo para atendimento. Nesse sentido, muitos dos pedidos
de alteração da classificação de risco de um paciente estabelecem como meta ideal a atribuição
de um risco vermelho.
Sobre tais pedidos, considero importante destacar que nem sempre os profissionais da
CRLS acreditam que o quadro clínico do assistido justifica, de fato, uma classificação desse
tipo. Entretanto, ainda assim essas solicitações são feitas constantemente. Não porque eles
creem que a alteração da classificação de risco fará com que a consulta e/ou exame que a pessoa
precisa será realizado de acordo com o “fluxo normal do SUS” dentro do prazo de 30 dias. Pelo
contrário, como visto no caso de Guilherme narrado acima, um risco vermelho pode gerar uma
pronta-resposta negativa.
Assim, o motivo pelo qual os funcionários da Câmara insistem em requerer que uma
solicitação seja classificada como risco vermelho tem a ver com a possibilidade do caso ser
judicializado dentro de um período mais curto. Uma negativa rapidamente recebida em poucos
dias ou uma pendência de risco vermelho por mais de um mês são, inquestionavelmente,
situações passíveis de serem encaminhadas para uma das Defensorias Públicas que atuam na
CRLS. Como mencionado no capítulo anterior, em uma conjuntura de crise e escassez
generalizada que faz da judicialização uma das etapas do fluxo do SUS, o pedido de alteração
da classificação de risco para vermelho funciona quase sempre como uma estratégia que visa
impor um certo “ritmo” para que se chegue a uma solução, seja pela via administrativa, seja
pela judicialização.
346

Gestão de risco: controle do tempo e mensuração do sofrimento

Ao estudar a espera dos pacientes atendidos pelo National Health Service, Sophie Day
(2016) argumenta que a demora é a principal reclamação dos usuários do sistema público de
saúde do Reino Unido. Segundo a autora, o tempo da espera adquire sentidos diferentes para os
atores envolvidos nesse processo. Assim, “para o demandante, a espera é um tempo morto, uma
forma de aprisionamento que acentua sua inferioridade e rouba sua vida, enquanto que para os
gestores, ela pode ser contada e auditada da mesma maneira que outras commodities.” (Day,
2016, p. 168, tradução minha). Encontrei um cenário bastante semelhante na CRLS, pois, como
dito anteriormente, acelerar o agendamento de uma consulta e/ou exame é a principal demanda
dos assistidos em relação ao SISREG. Assim, para encerrar esta segunda seção do capítulo,
proponho uma discussão que articula a gestão do risco, o controle do tempo e a mensuração do
sofrimento no cotidiano da CRLS.
Antes de mais nada, é preciso deixar claro com qual conceito de risco estou trabalhando.
No livro “Sociedade de Risco”, o sociólogo Ulrich Beck (2011) elabora sua tese de que o risco
é um elemento central na organização sociopolítica das sociedades modernas, pois uma série
de riscos – financeiros, climáticos, bioquímicos, militares etc. – é vivida como algo onipresente
no mundo contemporâneo. Outro autor importante para a ideia de risco adotada aqui é Michael
Power (2007). Em “Incerteza Organizada” (Organized Uncertainty), Power retoma a distinção
entre risco (uma forma calculável de indeterminação) e incerteza (uma forma incalculável de
indeterminação) de Frank Knight para formular sua própria definição de risco: uma incerteza
organizada.
Power critica as formulações de Beck ao afirmar que o autor dá ao risco um estatuto
ontológico. De acordo com ele, ao tomar o risco como algo que se encontra “lá fora”, Beck
operaria uma forma de reificação e colocaria o risco como uma “coisa” que existe no mundo.
Apesar de considerar essa uma leitura demasiado simplista das teorias de Beck, concordo com
a proposição de Power de que o risco não deve ser entendido como algo que precisa ser
governado, de modo a diminuir ou evitar danos; mas sim que os sistemas de gestão e análise de
riscos produzem os riscos ao mesmo tempo em que apresentam ideias sobre o seu
gerenciamento, identificação, avaliação e minimização.
Power toma como objetos centrais de suas elaborações o risco e os sistemas de análise
de riscos transformados em serviços e/ou produtos comercializáveis por e para instituições
financeiras de diferentes tipos. Nesse sentido, quanto maior o risco, maiores podem ser os lucros
e os prejuízos daqueles que estão dispostos a arriscar. Essa característica pervasiva do risco em
347

uma economia de mercado financeiro é conceituada como o risco sistêmico e tem a ver com a
possibilidade de uma falha em uma única instituição causar o colapso de todo o sistema
financeiro. Poon (2010) argumenta que em uma perspectiva de risco sistêmico, as crises
econômicas e perdas são situações certamente indesejadas, mas encaradas como parte da
atividade financeira e como um resultado possível diante de investimentos arriscados. Assim,
o que realmente precisaria ser evitado a todo custo é um fracasso de nível catastrófico que
poderia comprometer todo o funcionamento da economia.
A partir da apropriação dessas ideias, sugiro que o processo de gestão da “classificação
de risco” atribuída a uma determinada solicitação inserida na plataforma do SISREG seja
entendido como uma dimensão que compõem uma espécie de risco sistêmico em saúde. Tal
como no risco sistêmico financeiro, parece haver no esquema de classificações de risco do
SISREG uma certa quantidade de perdas e sofrimentos “menores” que são entendidos como
suportáveis e que não implicam ações emergenciais de nenhum tipo, como, por exemplo, a “dor
moderada e intermitente” vivenciada por Glória.
Além disso, se um risco maior pode tornar o investimento mais profícuo ou mais
prejudicial, a classificação de risco vermelho também possui um potencial ambivalente, na
medida em que, como dito anteriormente, ela pode fazer com que a pessoa seja atendida em um
prazo mais curto ou com que a sua solicitação seja negada mais prontamente. O caráter
sistêmico dessa exposição ao risco no âmbito da saúde fica ainda mais evidente quando os
funcionários do setor de análise técnica da CRLS chamam o SISREG ironicamente de
“SISNEG”. Segundo eles, é um fato de que uma grande quantidade de solicitações é negada
pelos médicos reguladores e que a “crise” só fez agravar esse quadro.
A maior diferença entre a gestão do risco sistêmico financeiro e do risco sistêmico em
saúde se dá em função do “material” com quem cada uma delas opera. Enquanto no risco
econômico é avaliado o montante em dinheiro que pode ser obtido ou perdido em um dado
investimento financeiro; no risco em saúde, o tempo e o sofrimento são transformados em
commodities que, ao serem mensuradas e equacionadas, atuam diretamente na produção da
cotação das vidas (Fassin, 2016). Isto é, o prazo máximo que pode ser aguardado e o
padecimento a que a pessoa está sujeita são elementos centrais na determinação da gravidade
da condição de saúde e da classificação de risco de uma demanda.
O controle e a disposição do tempo de alguém são temas que perpassam o trabalho de
muitos autores que discutem burocracia e administração estatal. Herzfeld (1993), por exemplo,
argumenta que o controle e a desconsideração pelo tempo dos clientes dos serviços burocráticos
é um dos componentes centrais da indiferença que caracteriza as tecnologias de administração
348

do Estado. Lugones (2012), por sua vez, associa o controle do tempo ao exercício do poder nos
Tribunales Prevencionales de Menores na cidade de Córdoba, como por exemplo, quando os
sujeitos são chamados a comparecer em dado dia e horário. Nessas situações, para além de um
exercício de poder, são estabelecidas mensurações e valorações distintas aplicáveis ao tempo
de cada um.
As formas como os sujeitos vivenciam a passagem do tempo e a relação da
temporalidade com variadas formas de sofrimento também já foram exploradas em diferentes
trabalhos. Das (1999 e 2007), escreve sobre o trabalho do tempo na reconstrução da vida das
mulheres após os episódios violentos da Partição da Índia em 1947. Segundo a autora, é o tempo
que permite a acomodação das violências vividas e/ou presenciadas no cotidiano. Já Vianna
discute o “trabalho exercido sobre e no tempo” (2015, p. 411) ao abordar como a passagem do
tempo é sentida por mães que aguardam a realização do julgamento dos agentes de Estado
acusados de matar seus filhos. Assim, o período em que permanecem esperando provoca uma
profunda sensação de injustiça da mesma forma que é uma matéria fundamental da luta dessas
mulheres, as quais exercem sua resistência no e através do tempo.
Ao etnografar o cotidiano da CRLS e acompanhar os relatos dos assistidos que
buscavam atendimento na instituição, me deparei com uma certa configuração da relação entre
tempo e sofrimento. Para além das sensações de angústia e desrespeito descritas nos inúmeros
trabalhos que tratam da espera, no espaço da Câmara pude identificar como a passagem do
tempo é vivenciada como uma forma de ameaça e, mais especificamente, como um risco. Nesse
cenário, o tempo não promove uma cura, pois não é capaz de dissipar ou amenizar as dores
vividas pelas pessoas. Pelo contrário, a passagem do tempo é algo que se luta contra, já que o
correr do tempo é um fator da própria condição do adoecimento ao perpetuar e agravar ainda
mais o sofrimento dos sujeitos. Em inúmeras ocasiões presenciei assistidos desesperados por
conta da demora para a realização de uma cirurgia de Catarata, cujo maior risco é a perda total
da visão; que demandavam uma atuação mais rápida para o fornecimento de insulinas para o
controle glicêmico, já que uma complicação pode levar à amputação de um membro; ou que
estavam aflitos aguardando que se conseguisse uma vaga de internação para um familiar
profundamente debilitado.
Em suma, penso nas classificações de risco adotadas pelo SISREG como mecanismos
que formatam e criam contextos, e não como tecnologias que operam em um dado contexto.
Nessa perspectiva, a classificação de risco não é uma realidade objetiva que precisa ser
gerenciada e cuja regulação é disputada por funcionários da Câmara e profissionais que atuam
nas unidades de saúde. A classificação de risco é em si mesma uma tecnologia de gestão; é
349

através dela que se governa quanto tempo uma pessoa é capaz de aguentar uma dada condição
de saúde, ou seja, é por meio do controle do tempo da espera e da mensuração do sofrimento
que se opera a necrogovernança, como discutirei a seguir.

7.3 – O ritmo da gestão: uma “loteria de Estado” e a necrogovernança

Perto do fim do ano de 2015, no dia seguinte à decretação do “estado de emergência”


na saúde pública por parte do ex-governador do estado do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão,
o jornal O Globo publicou em sua versão impressa uma matéria cujo título era “Crise na saúde
pode ter causado primeira morte no Rio” (Ferreira e Nascimento, 2015). Na reportagem, são
apresentadas duas versões sobre a morte por infarto de um senhor na porta do Hospital Getúlio
Vargas: a versão oficial do Hospital era de que ele teria chegado já morto nas dependências da
unidade; outros funcionários contaram aos jornalistas que os profissionais da triagem teriam
avaliado erroneamente o estado de saúde do paciente, recusando sua admissão na emergência.
Naquela ocasião, por conta da falta de médicos na unidade, estavam sendo atendidos apenas
pacientes que apresentassem “risco de morte”.
Em maio de 2018, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ)
denunciou a situação dos hospitais no Rio de Janeiro para a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH). De acordo com o documento protocolado pelo órgão, um
levantamento feito pela DPE-RJ a partir dos dados do plantão judiciário noturno apontou que,
em média, três pessoas estavam morrendo por dia à espera de uma vaga em Centro de
Tratamento Intensivo (CTI) ou Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Outras informações
contidas nas alegações da Defensoria eram: 1) a de que o número de mortes provavelmente
aumentaria se fossem considerados os atendimentos regulares da DPE-RJ, e não somente o
plantão noturno; 2) a de que até 2015, as ordens judiciais de transferência hospitalar eram
cumpridas em até 24h após a sentença e que, naquele momento, muitas dessas ordens só
estavam sendo executadas depois de passadas 48h.
Em agosto de 2018, dias depois de uma paciente de 54 anos falecer aguardando
atendimento no Hospital Getúlio Vargas, o número de pessoas que morrem esperando uma vaga
em CTI ou UTI foi atualizado. Em parceria com a DPE-RJ, a Defensoria Pública da União
(DPU) revelou que, em média, estavam morrendo 14 pessoas por dia por conta da falta de vagas
no estado do Rio de Janeiro. Em uma entrevista, o defensor público Daniel Macedo afirmou
350

que essa média era de 6 pessoas por dia em 2011 (G1 Rio, 2018)68. No dia 02 de maio de 2019,
os números fornecidos pelas Defensorias apontaram que do início do ano até aquele momento
– ou seja, em quatro meses –, 429 pessoas haviam morrido por conta da falta de vaga ou de
tratamento médico adequado para seus quadros clínicos (G1 Rio, 2019).
Durante o período em que acompanhei o cotidiano da CRLS, cenas em que uma pessoa
compareceu ao órgão para dar baixa em um processo e entregar o atestado de óbito de um
familiar – como foi o caso da filha de Bernardo descrito no prólogo da tese – não eram
necessariamente cotidianas, mas também não eram incomuns. Na maioria das vezes, as
situações que resultavam na morte de um paciente envolviam casos de necessidade de
internação imediata ou de tratamento emergencial, como oxigenoterapia. Entretanto, casos
menos dramáticos de falecimento e irreversibilidade de doenças e/ou condições de saúde –
como, por exemplo, a perda da visão ou audição, a amputação de um membro, a atrofia dos
músculos, entre outras situações – não foram tão incomuns. Nessa última parte do capítulo,
dedico-me a discutir como a gestão combinada do risco, do tempo e do sofrimento vão
produzindo uma inviabilização da vida, configurando o que um conjunto de pesquisadores vem
tentando elaborar como uma necrogovernança.

Uma “loteria de Estado”: a aleatoriedade da burocracia e o ritmo da gestão

Em Red Tape, Gupta (2012) tem como ponto de partida de suas discussões a pergunta
sobre como um Estado que tem como um dos seus principais focos de atuação e intervenção
promover o desenvolvimento mantêm uma enorme quantidade de cidadãos abaixo da linha da
pobreza, privados de necessidades básicas, como vestimenta, moradia, água potável e
saneamento. O autor argumenta que, apesar de ser considerada a quarta maior economia do
mundo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Índia está entre os mais baixos do
mundo, ocupando a posição 134 dentre os 182 Estados-nação reconhecidos.
Gupta propõe essa discussão a partir de uma leitura crítica da ideia de produção social
da indiferença defendida por Herzfeld (1993). Ele argumenta que ao organizar “campos de

68
Por mais alarmante que esse dado possa parecer – e ele de fato é – e ainda que esse número seja muito maior do
que o apresentado alguns meses antes, é preciso ter em mente que os dados produzidos pelas Defensorias Públicas
levam em consideração apenas as pessoas que recorrem ao Judiciário para tentar solucionar a questão. Uma
estatística mais próxima da realidade das pessoas que dependem do SUS para obter atendimento em saúde ainda
parece estar longe de ser alcançada.
351

atendimento”69 para os mais pobres, o Estado indiano não demonstra indiferença, mas
justamente o contrário: uma grande preocupação e cuidado com uma população menos
favorecida economicamente. Nesse sentido, o autor propõe que para compreender como,
mesmo diante dessa atuação assistencial, os “pobres” continuam morrendo prematuramente na
Índia, é preciso pensar em uma produção sistemática da arbitrariedade gerada pelo
funcionamento dos aparatos burocráticos. Nas palavras de Gupta: “por mais nobres que sejam
as intenções dos programas, e por mais sinceras que sejam as autoridades encarregadas deles,
o objetivo último de ajudar os pobres é subvertido pelos próprios procedimentos da burocracia.”
(p. 23, tradução minha).
O autor afirma que mais importante do que analisar ou apontar se um determinado
programa ou ação de governo funciona ou não, a tarefa do pesquisador é tentar iluminar como
se produz a aleatoriedade e a arbitrariedade nesses contextos. A partir do diálogo com as
elaborações de Gupta, pretendo discutir como uma Câmara criada para “agilizar” e “facilitar”
a resolução dos litígios na área da saúde resulta em uma gestão de uma das “portas de entrada”
da judicialização. Assim, pretendo discutir como, ao invés de “resolver administrativamente”
as demandas dos assistidos, a CRLS acaba por restringir o acesso à Justiça e perpetuar – quando
não aprofundar – a condição de violação do direito à saúde vivenciada por aqueles que
dependem exclusivamente do SUS e das Defensorias Públicas.
Como discutido ao longo da tese, os dados tornados públicos pela Câmara indicavam
que, após um ano de funcionamento, foi constatado que 60% das demandas apresentadas pelos
usuários do serviço eram relativas ao acesso a medicamentos, muitos desses referentes aos
chamados “tratamentos de alto custo” ou aos produtos ainda não registrados pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Alguns anos depois, principalmente depois que a
crise da saúde pública no Rio de Janeiro se configurou enquanto tal, novas demandas e situações
foram se colocando no cotidiano da CRLS. Se antes os casos mais complexos de pedidos de
medicamentos diziam respeito a fármacos não incluídos na Relação Nacional de Medicamentos
Essenciais (RENAME), no período em que realizei o trabalho de campo, eram comuns os
processos para fornecimento de medicamentos e insumos que apesar de fazerem parte de
políticas nacionais de saúde consolidadas – como as insulinas, seringas, agulhas e glicosímetros
utilizados no controle da Diabetes – estavam “em falta”.

69
Os “campos de atendimento” descritos por Gupta se parecem com os “mutirões de ação social” realizados
eventualmente em bairros pobres e/ou periféricos nas cidades brasileiras. Geralmente, nesses eventos são feitos
mutirões de consulta com médicos e dentistas, verificação da pressão arterial, aplicação de flúor, corte de cabelo,
testagem de tipo sanguíneo, cadastramento em programas governamentais de assistência, entre outras “ações
sociais”.
352

Como argumentei, isso fez com que o fenômeno da judicialização de saúde adquirisse
uma nova camada, uma vez que o acionamento do Judiciário passou a figurar como uma
estratégia possível para contornar os efeitos da crise. Nesse cenário de rápido e expressivo
aumento da procura pela “Justiça” como forma de garantir o acesso ao direito à saúde, a Câmara
adquire a função de impor um certo ritmo de gestão para o andamento dessas demandas,
fazendo com que determinados processos sejam acelerados e com que outros sejam retardados
ou até mesmo completamente estagnados.
Tal como nos campos de atendimento acompanhados por Gupta, o dia a dia da CRLS
também é marcado por uma série de aleatoriedades e arbitrariedades que determinam desde a
inserção de um pedido no Sistema Câmara de Saúde até o encaminhamento da demanda
apresentada por um assistido. Nos setores de triagem e atendimento, por exemplo, é possível
que uma solicitação seja aberta ainda que a pessoa não apresente todos os documentos
considerados necessários para que isso ocorra. É importante notar que, como mencionado no
capítulo anterior, as “cenas” protagonizadas pelos assistidos que choram descontroladamente
ou que respondem agressivamente às negativas dos funcionários raramente fazem com que os
profissionais mudem seus posicionamentos.
No entanto, isso não quer dizer que não existe empatia entre as pessoas que trabalham
na CRLS e que elas não sejam afetadas pelas histórias de vida dos assistidos, mas apenas que a
exibição do sofrimento não produz o efeito desejado, pois estas são lidas na chave da situação
inevitável contra a qual não há muito a ser feito ou, ainda, como uma forma de trapaça. Ou seja,
muitos desses episódios são chamados de “fazer cena” justamente por conta de um caráter
farsesco atribuído a eles pelos funcionários da Câmara, principalmente quando alguém diz estar
se sentindo mal e pede para ser atendido prioritariamente. Em resumo, a afetação e a comoção
por parte dos funcionários depende de uma espécie de interpretação e avaliação espontâneas do
sofrimento feita por eles. Qualquer tentativa mais direta ou explícita de influencia-los acaba por
produzir o efeito contrário.
Certo dia, um senhor afirmou que não conseguia atendimento em uma Clínica da
Família porque não possuía um comprovante de residência, documento que ele jamais
conseguiria por estar em situação de rua há alguns anos. Em princípio, a ausência de tal
comprovante também tornaria impossível o registro do pedido no sistema da Câmara. No
entanto, para tentar romper com a sequência de exclusões que o homem estava relatando, a
funcionária do atendimento preencheu o formulário com o endereço da praça onde ele disse que
costumava dormir e emitiu um ofício da DPE-RJ a ser entregue ao gerente da Clínica
requerendo explicações sobre a recusa de atendimento. Em outra ocasião, a mesma funcionária
353

explicou a uma senhora que havia esquecido de levar o comprovante de residência que não seria
possível prosseguir o atendimento sem o referido documento, pedindo a ela para retornar outro
dia. A mulher tentou convencer a profissional a atendê-la dizendo que seria muito difícil voltar
outro dia, empreitada que não foi bem sucedida.
Desfechos casuais também são produzidos no setor de análise técnica, pois a apreciação
dos pedidos depende em muito de qual funcionário é o responsável pela elaboração do parecer.
Ainda que, como dito anteriormente, a “historinha” contada pelo assistido que consta na
“redução a termo” escrita pela equipe do atendimento seja completamente ignorada na grande
maioria das vezes, ela é ocasionalmente acessada por um analista que se depare com um
desacordo entre o “produto” solicitado pelo assistido e o que consta nos seus documentos
médicos. Nessas situações, eles procuravam avaliar se a discrepância era fruto da falta de
conhecimento da equipe do atendimento – ou seja, uma discrepância “pequena” que poderia ser
facilmente corrigida – ou se tinha outra razão. De todo modo, o que determinava se o caso seria
considerado impossibilitado de ser analisado ou se receberia outro encaminhamento era a
vontade e a disposição do funcionário da Câmara de tentar elucidar a questão.
Esses resultados aleatórios, arbitrários e imprevistos compreendem uma importante
dimensão dessa “tocaia de Estado” que é a CRLS. Contudo, mais do que uma armadilha
perversa montada intencionalmente para cativar pessoas e atirá-las em uma espécie de “limbo
burocrático”, acredito que é mais justo pensar a promessa de resolução rápida e eficiente como
um chamariz que atrai os sujeitos para uma certa “loteria de Estado”, uma vez que a burocracia
que organiza os procedimentos e a forma de atuação da Câmara produz desfechos e
consequências casuais, tendenciosas e, por vezes, autoritárias. Tal como em uma loteria na qual
muitos apostam, mas apenas alguns poucos conseguem ganhar algum prêmio, da média de 90
pessoas que eram atendidas diariamente na CRLS, somente algumas saíam de lá com uma
“resolução administrativa” de fato. Isto é, a promessa da Câmara é uma forma de aposta que é
efetivamente cumprida, ainda que para poucos. Da mesma forma que em uma loteria, para os
que não deram sorte em uma determinada vez, é possível continuar tentando. Como diz Gupta
(2012), é preciso substituir “a noção de que as burocracias representam a racionalização do
poder em uma sociedade disciplinar por uma imagem muito diferente – na qual todo o processo
é atravessado por pouco controladas contingências e caos.” (p. 14, tradução minha).
É através dessa aleatoriedade que se configura o ritmo da gestão. Ao definir quais casos
serão remetidos para as Defensorias Públicas e quais terão outro tipo de encaminhamento e
precisarão retornar outro dia, os funcionários da Câmara fixam prazos para a proposição de
soluções; determinam que alguém deve aguardar mais alguns dias ou semanas para obter uma
354

resposta da instituição de saúde ou do órgão regulador; enfim, fazem com que as situações
apresentadas pelas pessoas sejam resolvidas mais rápida ou mais lentamente.
Em suma, é por meio do estabelecimento de uma certa velocidade e ritmo para o
prosseguimento das demandas dos sujeitos que a CRLS funciona como uma das engrenagens
que operam a necrogovernança. O tempo – e, mais precisamente, a espera – agrava
determinadas condições de saúde e também ocasiona outras. Quanto mais tempo alguém
aguarda para ter sua demanda atendida, maior é a inviabilização de sua vida.

Nas engrenagens da necrogovernança: não fazer é fazer morrer

De acordo com Ortner (2016), a ascensão do neoliberalismo enquanto uma configuração


que é ao mesmo tempo social, política e econômica a partir dos anos 1980 fez surgir uma
corrente no pensamento antropológico focada na discussão de temas como dominação,
desigualdade, exploração etc. A autora dá a esse movimento teórico a alcunha de antropologia
sombria (dark anthropology, no original). Independente de concordar ou não com a
denominação sugerida por Ortner, os temas da morte, da precariedade, da violência, da
desigualdade, do sofrimento, entre outros, têm ocupado um espaço significativo na produção
antropológica contemporânea.
Assim, conceitos e teorias propostas por filósofos como Foucault (1999 e 2008), Butler
(2004 e 2015), Agamben (2010), e Mbembe (2016) sobre biopolítica, governamentalidade,
vida nua, tanatopolítica, precariedade, vidas precárias e necropolítica vêm sendo apropriados,
mobilizados, criticados e atualizados por uma série de sociólogos e antropólogos que buscam
entender como essas ideias podem ou não ser aplicadas para a compreensão dos mais variados
contextos empíricos. Exemplos de como essas questões são tratadas nas Ciências Sociais podem
ser vistos nas reflexões de Bauman (2005) sobre o que fazer com o refugo humano produzido
pela sociedade de consumo, bem como na etnografias conduzida por Biehl (2013a) em uma
zona de abandono social no Brasil; por Gupta (2012) com os programas de assistência social
para os mais pobres na Índia; por Farias (2014) sobre o governo de mortes a gestão de
“populações indesejáveis” nas favelas do Rio de Janeiro, dentre inúmeras outras.
Na tentativa de dar aos relatos e situações que acompanhei durante o trabalho de campo
na CRLS uma formulação analítica, proponho que a instituição seja encarada como parte de um
maquinário mais amplo de “gestão de mortes”, uma espécie de engrenagem da
necrogovernança. A ideia de necrogovernança vem sendo pensada e formulada no âmbito das
355

discussões promovidas por Adriana Vianna (2018) e seus orientandos. Inspirados nas leituras
dos autores citados acima, buscamos escapar do binarismo matável/não-matável por meio do
esquadrinhamento etnográfico de um conjunto variado de situações concretas nas quais
contingentes populacionais são administrados e determinados corpos e pessoas são “salvos” ou
mortos/deixados para morrer pelos mais distintos aparatos de Estado.
Assim como muitos dos trabalhos que discutem temas semelhantes, a discussão sobre a
necrogovernança tem como um dos seus pontos de partida as elaborações de Foucault sobre a
biopolítica. A famosa equação foucaultiana do “fazer viver e deixar morrer” que caracteriza o
regime biopolítico – em contraposição à equação “fazer morrer e deixar viver” que caracteriza
o regime da soberania (Foucault, 1999) – é insuficiente para apreender o cenário político atual.
Sua insuficiência, tal como apontada por Mbembe (2016), se dá por duas razões: a primeira se
refere aos limites da ideia de biopolítica para compreender a configuração de Estados não-
europeus, principalmente os que passaram por regimes coloniais como os implementados na
África e na América Latina; a segunda diz respeito aos formatos assumidos pela soberania
contemporaneamente. Para Mbembe, o necropoder se exerce através das práticas de
extermínio, nas quais o racismo – e o autor se refere especificamente ao racismo que atinge os
corpos negros e não à formulação de racismo de Estado foucaultiana – produz uma lógica de
guerra cuja eliminação do inimigo é o objetivo primário e absoluto da prática política. Ou seja,
a política é o trabalho de morte e a soberania, o direito de matar. Nas palavras do autor, nos
contextos em que opera o necropoder, “a soberania é a capacidade de definir quem importa e
quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” (p. 135).
Ancorado nas teses de Mbembe (2016) sobre a necropolítica e em diálogo com as
reflexões de Souza Lima (2014) sobre a tutela enquanto tradição de gestão de determinados
segmentos sociais que forma historicamente o Estado brasileiro; de Pacheco de Oliveira (2014)
sobre a governança como um mecanismo de produção categórica do “outro” que justifica ações
de intervenção; e de Gupta (2012) sobre a violência estrutural e a tanatopolítica que permite o
Estado indiano matar anualmente um enorme contingente de cidadãos nacionais sem que isso
seja percebido enquanto um escândalo, proponho uma ideia de necrogovernança como uma
forma de administração de populações presente no contexto nacional contemporâneo.
A partir de uma ancoragem etnográfica, Gupta (2012) dialoga tanto com a noção de
biopolítica de Foucault, quanto com as ideias de vida nua e tanatopolítica de Agamben. Para o
autor, a pobreza na Índia precisa ser tratada como uma questão crônica que remete ao legado
colonial ainda presente no território e na política indiana. Gupta aponta que morrem cerca de 2
milhões de pessoas anualmente por conta de doenças, desnutrição, falta de saneamento básico,
356

de moradia, de água potável, entre outras “causas evitáveis”. Para explicar como isso não se
configura como uma questão urgente em um debate público, Gupta lança mão da ideia de uma
violência estrutural cometida pelo Estado por meio aparatos que a tornam invisível e
normalizada, sendo percebida por todos como uma questão inevitável e contra a qual não há
muito o que fazer. Em suas palavras: “a extrema pobreza deve ser teorizada como uma forma
direta e imputável de matar tornada possível por políticas e práticas estatais, e não uma como
uma situação na qual os pobres são meramente ‘deixados para morrer’ ou ‘expostos à morte’.”
(Gupta, 2012, p. 5-6, tradução minha). Por fim, o autor qualifica essas ações como uma das
dimensões da tanatopolítica, cuja formulação proposta por ele não é exatamente a mesma de
Agamben (2010).
Apoiado em pesquisas históricas e etnográficas sobre aparatos de Estado e políticas
públicas voltadas para a gestão de populações indígenas no Brasil, Souza Lima (2014)
argumenta que, no contexto brasileiro, o poder tutelar é direcionado para grupos sociais
produzidos e classificados como relativamente incapazes para a vida cívica ou hipossuficientes.
Segundo o autor, essa forma de exercício do poder reproduz a dominação por meio de práticas
que performatizam o Estado no cotidiano administrativo e que, por se darem em fluxo contínuo,
se tornam rotinizadas e imperceptíveis. Nesse sentido, a tutela teria como finalidade explícita a
defesa e proteção daqueles colocados sob seus cuidados, bem como a preparação desses sujeitos
para o exercício pleno da cidadania. Na prática, o exercício do poder tutelar visa o controle dos
espaços, da mão de obra e das chamadas “populações perigosas”.
Mas o que acontece quando certos segmentos sociais são tomados como “contingentes
excedentes” que não são apenas descartáveis, mas cuja eliminação é tida como condição
fundamental para a manutenção da segurança da sociedade? O que se passa quando essas
práticas administrativas cotidianas visam não mais a preparação e integração de populações
marginalizadas na vida cívica, mas sim objetivam o seu extermínio? É essa forma de exercício
do necropoder que estou chamando de necrogovernança: uma dimensão menos espetacular e
mais burocratizada da função assassina do poder soberano – e porque menos ostensiva, mais
normalizada, habitual, obscura e difícil de capturar70.
O regime da necrogovernança se configura a partir de mortes que não se fazem em um
instante, mas que se dão no dia após dia, nos meandros da burocracia, da espera, das solicitações
negadas, dos pedidos para aguardar setes dias para que o hospital possa se pronunciar sobre a
questão, dos encaminhamentos para retornar outro dia, entre outras situações já narradas ao

70
A aproximação entre práticas de gestão ancoradas no poder tutelar discutido por Souza Lima (2014) e o que
estou chamando aqui de necrogovernança é um tema que pretendo explorar com maior rigor no futuro.
357

longo da tese. Isto é, precarizações contínuas que vão minando cotidianamente as condições e
possibilidades de vida das pessoas. De modo semelhante ao que descreve Gupta (2012), a
necrogovernança da qual falo trata da produção de um modo legítimo de matar em um suposto
Estado Democrático de Direito, pois induz e expõe sujeitos e coletividades ao risco de morte
sem que essas mortes possam ser imediatamente creditadas aos órgãos e práticas de Estado e,
portanto, questionadas.
No caso do cotidiano da CRLS, busquei demonstrar até aqui como são avaliados os
casos que podem prosseguir e os que devem retornar outro dia. Agora, meu objetivo é analisar
como, quando e sob quais razões uma pessoa pode ser não apenas “deixada para morrer”, mas
efetivamente morta aos poucos. A gestão estatal das mortes compreende um amplo conjunto de
aparatos que operam de distintas maneiras. Dentre as mais escandalosas estão as cenas de
extermínio dos corpos negros nas favelas e de mortes por falta de medicamentos, equipamentos
e/ou profissionais nos corredores dos sucateados hospitais públicos. Embora a CRLS fabrique
uma ilusão de ser uma instituição voltada para a “resolução administrativa” dos litígios de saúde
– e, nesse sentido, ela possa parecer não só distante, mas absolutamente contrária a esse
mecanismo de governo de morte – argumento que a Câmara faz parte de tal aparato.
Ao pensa-la como uma das engrenagens da necrogovernança, pretendo sublinhar a
capacidade do órgão de gerir lentamente a morte de pessoas. Mortes estas que não são, de forma
alguma, fruto direto da atuação da CRLS, já que são também provocadas por uma série de
outros fatores como, por exemplo, os cortes no orçamento das políticas de saúde. Assim, essas
mortes são fabricadas para parecem externas aos mecanismos de gestão e controle de
populações marginalizadas, como se esses padecimentos fossem decorrências “naturais” –
como um câncer, uma doença respiratória etc. – que nada têm a ver com condições de
precariedade e escassez politicamente fabricadas para matar os mais pobres.
Não considero possível uma comparação imediata e sem mediações entre as formas
contemporâneas de guerra da necropolítica, da tanatopolítica assistencialista indiana e das
práticas burocráticas da CRLS. É por conta dessa impossibilidade de estabelecer paralelos
diretos que reivindico o uso da noção de necrogovernança. Apesar de ter consciência de que
essa não é uma formulação teórica absolutamente original, acredito que a concepção de
necrogovernança aqui apresentada traz outros elementos para pensar nas políticas de morte em
voga na atualidade e coloca o foco em questões ligeiramente diferentes.
Se, em um primeiro momento, é possível considerar a apropriação da ideia de
necropolítica para compreender as práticas da CRLS como algo demasiadamente exagerado,
tendo em vista que não seria plausível identificar os assistidos imediatamente como esses
358

inimigos que precisam ser eliminados, acredito que para melhor explicar os motivos da inclusão
da Câmara nos mecanismos da necrogovernança é preciso destacar duas coisas. A primeira
delas diz respeito à presença de uma metáfora não necessariamente de “guerra”, mas sim de
“combate” e “luta”, na construção da CRLS enquanto um órgão de Estado. Como dito
anteriormente, o interesse de instituições como as Procuradorias Gerais do Estado e do
Município e as Secretarias Municipal e de Estado de Saúde na construção da CRLS se dá na
medida em que o órgão é apresentado como uma solução, pois capaz de frear e combater o
“descontrolado” e “excessivo” fenômeno da judicialização da saúde que vem corroendo os
cofres públicos com processos judiciais milionários e desestabilizando os orçamento da Saúde.
Assim sendo, não seria cabível a comparação entre uma “guerra” que tem como inimigo uma
“população” e outra que tem como inimigo um “fenômeno”.
Uma vez que considero que a presença de uma metáfora de confronto não é o suficiente
para justificar a apropriação do referido conceito, passo então para o segundo ponto que merece
atenção. Mbembe (2016) assinala que nas guerras contemporâneas o necropoder assume, entre
outras formas, a face de uma guerra infraestrutural que objetiva a eliminação das condições de
sobrevivência do inimigo. Contudo, ainda que a dinâmica burocrática da CRLS sirva
exatamente para solapar as condições de vida dos assistidos por meio da espera e dos retornos
intermináveis, me parece desmedido comparar tal situação ao que o autor elenca como parte
dessa guerra infraestrutural, principalmente porque a longa cadeia de mediação e produção da
precariedade torna difícil a identificação de um dado órgão do Estado como um perpetrador
intencionado e dos pobres como o inimigo a ser aniquilado.
Por outro caminho, o que acompanhei em minha etnografia se assemelha em muitos
pontos ao que foi observado por Gupta (2012) nos campos de atendimento aos pobres na Índia.
Tal como nas cenas narradas pelo autor, é muito difícil descrever os procedimentos burocráticos
executados pela CRLS como uma forma de violência, pois 1) eles são criados com a intenção
de ajudar; e 2) não existem eventos que tornam essa violência algo palpável. Gupta afirma que
as pessoas em situação de extrema pobreza na Índia se configuram como um perfeito exemplo
da figura do homo sacer discutida por Agamben (2010): alguém cuja morte não é percebida
como uma violação, uma anormalidade ou uma injustiça. Assim, como dito anteriormente,
Gupta entende a tanatopolítica como uma modalidade específica do “matar” muito mais do que
“deixar morrer” ou “expor à morte”.
Ao recuperar a noção foucaultiana de governo – isto é, uma forma de organizar e dispor
as coisas não para um bem comum, mas para os objetivos adequados de cada coisa governada
(Foucault, 1979) – e colocar os procedimentos burocráticos da CRLS sob o signo da
359

necrogovernança, pretendo explicitar que o que está em jogo na Câmara não é o desenho ou a
execução de políticas públicas de saúde, mas sim as formas pelas quais essas políticas são
monitoradas e reguladas para que “funcionem corretamente”, pressionando para que certas
demandas sejam mais rapidamente atendidas, enquanto outras permanecem estagnadas
aguardando novos documentos, assinaturas, carimbos, prazos etc.
É nesse sentido que a CRLS existe para dar conta de um problema de Estado: a
“judicialização excessiva” que ameaça colapsar o funcionamento do Estado tanto em termos
financeiros, quanto no que diz respeito à divisão dos Poderes. Com um discurso de promoção
de um bem comum – a garantia do cumprimento do dever constitucional do direito à saúde de
maneira rápida e eficiente –, a instituição atua diretamente no controle do fluxo de demandas
de saúde feitas ao Judiciário. É através de suas práticas institucionais que a Câmara é capaz de
resguardar não a vida ou a saúde da população que busca o seu atendimento, mas sim assegurar
os interesses e a manutenção do próprio Estado.
Para concluir esse raciocínio, gostaria de refletir sobre como o “não fazer” se iguala ao
“fazer morrer” na “tocaia de Estado” que é a CRLS. Para isso, retomo brevemente os três
aspectos que diferenciam o que estou chamando de necrogovernança da necropolítica de
Mbembe (2016): 1) a dimensão técnica, rotineira e burocrática das práticas de morte
implementadas; 2) a longa temporalidade envolvida no processo de fazer morrer por meios que
não o assassinato direto ou a guerra infraestrutural; 3) a extensa cadeia de mediações que gera
uma opacidade que impede que estas práticas de morte sejam percebidas como parte de um
projeto mais amplo de “eliminação do inimigo” – portanto, necropolítico.
É levando em consideração esses aspectos que opto por utilizar a expressão “fazer
morrer” para caracterizar o objetivo último da necrogovernança na Câmara. Por um lado, a ideia
do “deixar morrer” não condiz com o que acontece na CRLS. Essa ideia é problemática na
medida em que ao descrever pessoas como “deixadas para morrer” estaríamos reforçando
justamente a opacidade que encobre essa política de morte, ignorando o lugar ocupado pelas
práticas de Estado nesse projeto. Ou seja, a causa da morte seria de algum modo tomada como
“natural” e o problema seria apenas a “negligência” e/ou a “ausência” de atuação por parte dos
agentes de Estado.
Por outro, a concepção de “matar” utilizada por Gupta (2012) em sua teorização sobre
a tanatopolítica indiana também não é diretamente aplicável ao contexto no qual realizei minha
etnografia. Conforme discutido anteriormente, os mecanismos por meio dos quais se opera a
necrogovernança estão afastados do assassinato e da morte espetacular das cenas nas quais a
guerra se impõe mais visivelmente. Entre um ponto e outro, a ideia do “fazer morrer” parece
360

dar conta de compreender um cenário no qual o Estado atua em múltiplos planos para fazer
com que populações mais pobres e marginalizadas morram, ainda que não o faça de maneira
direta.
Desse modo, é através das lentes da necrogovernança que é possível observar como esse
Estado que se faz por meio do “não fazer” – ou, em alguns casos, do “fazer de qualquer modo”
–, amplamente apontado nas etnografias de Vianna (2015), Ferreira (2015), Nogueira (2016),
Facundo (2017), Fernandes (2017), entre outras. Ao refletir sobre uma série de aparatos e
práticas estatais que produzem mortes e inviabilizações variadas das vidas, Vianna (2018)
escreve que a necrogovernança é “tecida nas rotinas policiais, judiciárias, hospitalares e
escolares capaz de deslocar a conhecida fórmula foucaultina do ‘fazer viver/deixar morrer’ para
um ‘fazer morrer alguns’ e ‘deixar morrer outros (e outras) tanto(a)s’.” (p. 37).
Meu argumento é o de que na Câmara essa questão alcança um patamar particularmente
dramático, pois o “não fazer” equivale ao “fazer morrer”. Em uma conjuntura de escassez e
crise, o “não fazer” operado nos guichês da CRLS significa eliminar cotidianamente, aos
poucos, as possibilidades e condições de vida das pessoas; é fazer com que uma mãe se angustie
por ter voltado a apresentar os sintomas de Síndrome de Parkinson porque lhe foi retirado o
direito de comprar um medicamento subsidiado; é levar um rapaz a ser demitido por justa causa
e despejado por não ter dinheiro para pagar o aluguel por conta da não realização de um exame
médico; é causar o desespero em uma mulher cuja visão está se deteriorando cada vez mais
diante da falta de vagas para consulta com um médico especialista; é provocar uma situação em
que uma filha precisa levar o atestado de óbito do pai para dar baixa em um processo porque
ele morreu enquanto aguardava uma resposta.
Na medida em que dizem ao assistido ou ao seu representante que ele mesmo deve levar
o parecer sugerindo a alteração da “classificação de risco” atribuída ao pedido na plataforma
do SISREG para os profissionais da Clínica Família; informar que ele deve ligar, comparecer e
pressionar para que seu agendamento seja feito; que cabe a ele solicitar “declarações negativas”
dos órgãos públicos responsáveis pela distribuição de medicamentos do SUS para que possam
ser anexadas aos autos processuais; enfim, ao designar aos próprios sujeitos o dever moral de
“correr atrás” da resolução de sua demanda, a CRLS funciona como um instrumento de Estado
que gere não só uma das portas de entrada da judicialização da saúde, mas também as famílias
ou os laços familiares. Isto é, ao transferir para a própria pessoa a responsabilidade sobre o
cuidado de si mesma e/ou de seu parente, o Estado “cuida” mais de si e de suas condições de
reprodução e perpetuação do que dos cidadãos.
361

Autores como Han (2012) e Biehl (2013a) relacionam a emergência desses modos de
(não) atuação do Estado a um conjunto de reformas de cunho neoliberal que transferem a
responsabilidade sobre o cuidado para a família e para os próprios indivíduos, retirando
encargos e atribuições cruciais do Estado na garantia do bem-estar da população. Já Butler
(2018) argumenta que a economia neoliberal fabrica noções específicas de individualismo e
responsabilidade ao mesmo tempo em que estrutura instituições e serviços públicos cada vez
mais precarizados ou potencialmente precários. Para a autora, a criação de populações
descartáveis está intimamente conectada a uma expansão da racionalidade do mercado que
define quais vidas devem ser protegidas e quais não. Nos Estados Unidos, país onde vive Butler,
não existe algo como o SUS. Como ela mesma descreve, lá a saúde é uma “mercadoria” como
outra qualquer e não um “bem público”. É nesse contexto da saúde enquanto um produto
comercializável e de fortalecimento da crença de que nenhum de nós é responsável pelo outro
que proliferam o que Butler chama de políticas de negligência sistemática, as quais permitem
que certas pessoas e/ou populações morram. Em suas palavras: “a implicação é claramente que
aqueles que não são capazes de conseguir empregos que garantam o seguro de saúde pertencem
a uma população que merece morrer e que, por fim, são responsáveis pela sua própria morte.”
(Butler, 2018, p. 18).
Em síntese, ao atrair pessoas para essa que é uma das inúmeras “tocaias de Estado”, a
CRLS impede que uma grande quantidade de demandas por direito à saúde seja apresentada ao
Poder Judiciário. Ao impor um certo ritmo de gestão, a instituição decide quem, quando e de
que maneira tais demandas poderão chegar aos Tribunais. Digo que essa é apenas uma das
muitas possíveis “tocaias de Estado” porque, como mencionando anteriormente, a
judicialização pura e simples de uma demanda não é muito mais do que uma promessa, de modo
que nada garante a efetivação do “direito à saúde” para os casos judicializados. Pelo contrário,
adentrar no sistema de Justiça pode significar ter que encarar toda uma outra sorte de “tocaias”
e “armadilhas” de Estado.
A Câmara faz parte dos aparatos que operam a necrogovernança por meio de
mecanismos burocráticos de controle do tempo, de manejo dos riscos e de mensuração das dores
e sofrimentos que os sujeitos são capazes de suportar. Quando determinam que a pessoa deve
“correr atrás” para ter a sua ou a demanda do seu familiar atendida, a Câmara cria famílias e
reconhece vínculos ao mesmo tempo em que transfere a responsabilidade pelo cuidado da
pessoa enferma para ela mesma ou para o próprio vínculo/pessoa vinculada, eximindo o Estado
de qualquer culpa pela morte daqueles que aguardam indefinidamente um atendimento.
362

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A gestão pela escassez:


recursos finitos, demandas infinitas

Crônica corrupta

Se contecesse com s crônic s o que contece com s úde


públic br sileir, este texto começ ri ssim, b nguel. "O que t
rol ndo?", pergunt ri o leitor, perdido. "T rol ndo é que
hoje é di de envi r crônic, m s cabou letr " " no estoque.
Ou o governo n o rep ssou s verb s necess ri s, ou s verb s
for m desvi d s pelos gestores, f to é que n o tem letr " " e
tenho que m nd r crônic de qu lquer jeito. "Por que neo use
o "E" no luguer do " "?", sugere o leitor, "É ume voguel
perecide". "Boe! Temos que improviser, essim como um
médico improvise ume sonde de urine ne luguer de ume
sonde nesoguéstrique, ume secole pléstico de
supermerquede em vez de frelde geriétrique, tem que
ministrer pre todes es infecções o único entibiótico que
tem nes preteleires. Tregédie.

Pronto, parei, vamos dizer que chegou mais "A" no


estoque, sigamos em frente, agora temos todas, todas as
vogais, mas algo, algo ainda parece errado, estranho, nesta
crônica corrupta, algo, sei lá, parece um tanto, diria,
truncado, repetitivo, cadenciado, sim, é verdade, é o
excesso de vírgulas, 20 até agora, "É pra imitar o
Saramago?", não, não é, é que além de cronista eu sou
dono de uma fábrica de vírgulas, sim, eu que as fabrico e a
Folha me paga não só pela crônica, como também pelas
vírgulas da minha fábrica, então eu encho de vírgulas,
melhor, eu superfaturo as vírgulas, cobro dez vezes o
preço por cada uma, é como esses golpes que a gente vê
por aí a toda hora, o sujeito é diretor da Organização
Social que gere um hospital público, aí o sujeito, não, não
tô dizendo que toda Organização Social é corrupta, as
Organizações Sociais honestas e eficientes gerindo
hospitais públicos são uma benção, mas muitas,
infelizmente, não são nem uma coisa nem outra, enfim (já
foram 41 vírgulas neste parágrafo! Tô, vamos dizer, tipo,
rico!), enfim o sujeito faz o SUS comprar insumos
363

produzidos por ele próprio, em licitações fraudadas,


enchendo malas com o dinheiro que deveria salvar criança
doente, não dá pra acreditar, eu com as minhas vírgulas
pelo menos não mato ninguém, só de tédio, talvez, mas
tédio nunca foi crime na literatura, muito pelo contrário,
vide o Nobel pro Saramago.
Sim, di-lo-ei quantas vezes for necessário: o Saramago é
chato pra burro. Por que Saramago, agora, perguntar-me-
ás tu, numa crônica sobre corrupção na saúde? A questão
não é o Saramago, meu amigo, é a mesóclise. Há médicos
que ganham das empresas fabricantes de próteses, eu
ganho de uma empresa fabricante de mesóclises. (O
Temer também). Esses médicos inserem válvulas e joelhos
desnecessários nos pacientes, eu insiro mesóclises
desnecessárias nos textos. Não me importa se uma mera
ênclise ou próclise daria conta do recado, enfadar-lhes-ei,
mas entupir-me-ei de dinheiro. Censurar-me-ás, talvez,
mas é assim que o Brasil funciona, esta é a ética do
mercado, eu só furto, Deus é quem matá-los-Á.
Como acaba esta crônica corrupta? Abruptamente, como a
luz caindo num hospital cuja rede elétrica está há anos sem
reparo, como a parada cardiorrespiratória do motoqueiro
de 19 anos que espera por um leito estirado no corredor,
como a boa vontade da enfermeira que não recebe há três
meses, como a vergonha na cara dos filhos da
piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmm, apita o monitor
cardíaco, linha reta na tela, fim.

Antônio Prata
Crônica publicada no jornal Folha de São Paulo
em 10 de setembro de 2017.

Em dezembro de 2017, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou os primeiros


resultados de um levantamento feito pelo órgão acerca da quantidade de pessoas que estavam
na fila do SUS aguardando a realização de uma cirurgia eletiva nos últimos anos. Tal
mapeamento foi feito a partir de uma solicitação enviada pelo Conselho a todas as Secretarias
Municipais e de Estado de Saúde (SMS e SES, respectivamente) do país. De acordo com o
CFM, apenas 16 Secretarias de Estado e 10 Secretarias Municipais de capitais responderam ao
pedido. A SES e a SMS do Rio de Janeiro não responderam ao pedido do Conselho e nem
justificaram o não envio dos dados requisitados.
364

A partir das informações disponibilizadas pelas Secretarias, o CFM constatou que


haviam mais de 900 mil pacientes aguardando a realização de procedimentos cirúrgicos, sendo
801 mil pessoas em unidades estaduais de saúde e 103 mil em unidades municipais. Segundo o
Conselho, quase metade de todos os procedimentos pendentes estavam concentrados em apenas
cinco tipos diferentes de cirurgias: correção de catarata, reparação de hérnia, retirada de
vesícula, tratamento de varizes e procedimentos terapêuticos para problemas de amígdalas ou
adenoide. Em alguns estados, a pessoa que era a primeira da fila já estava esperando há muitos
anos. No Rio Grande do Sul, por exemplo, quem ocupava o primeiro lugar da fila teve seu
pedido de cirurgia para tratamento da catarata inserido em 2009.
A divulgação desses números foi acompanhada de um editorial publicado na edição n.
272 do jornal Medicina – um periódico editado pelo CFM – cujo título era “Indignação,
coragem e esperança”. No texto, o autor Tiesenhausen (2017) afirmou que os números
apresentados pelas Secretarias causam indignação, principalmente se for levado em
consideração que estados populosos como o Rio de Janeiro não haviam fornecido os dados
solicitados. Já a coragem dizia respeito não à bravura, mas sim ao fato de tomar uma atitude
diante da indignação e que, no caso, seria o próprio ato de tornar públicos e disseminar esses
alarmantes dados sobre o SUS. Por fim, a esperança tinha a ver com a expectativa de que essa
denúncia provocasse mudanças que pudessem eliminar e/ou sanar as causas primeiras da
indignação.
Pouco tempo depois, representantes do CFM entregaram o relatório final desse
levantamento aos membros da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara
dos Deputados em um seminário realizado por ocasião dos 69 anos da Declaração Universal de
Direitos Humanos. Nesse evento, os médicos e diretores do Conselho também aproveitaram
para reiterar uma antiga denúncia sobre o “subfinanciamento crônico” e histórico que aflige a
rede pública de saúde no Brasil. Além disso, os profissionais também afirmaram que todas as
justificativas apresentadas pelos gestores para explicar o grande volume de pessoas na fila
tinham uma mesma origem: “recursos finitos para administrar uma demanda que é infinita.”
(CFM, 2017).
Como o título da tese sugere, a gestão da escassez – ou ainda, o moco como se dá a
administração desses “recursos finitos” – é o fio condutor das discussões apresentadas em cada
um dos capítulos. A ideia do descompasso entre o que a população precisa e o que o poder
público pode oferecer atravessa todo o meu trabalho, de modo a estar presente tanto nos
discursos sobre a crise analisados na primeira parte, quanto nas justificativas ouvidas pelos
funcionários da CRLS em suas tentativas de “articulação interinstitucional” narradas na
365

segunda parte. Nesse sentido, para concluir a tese, pretendo abordar de que maneira a reiteração
desse enunciado sobre recursos finitos e demandas infinitas é uma condição fundamental para
a manutenção de um modo de governo que tem na fabricação da limitação, da escassez, da
precariedade e do risco seus principais instrumentos de uma gestão que produz mortes e
sofrimentos que são tidos como naturais e inevitáveis.
Assim, em diálogo com o editorial citado acima, quero discutir como a indignação, a
coragem e a esperança conformam ao mesmo tempo um idioma do que chamo de teodiceia da
saúde pública e uma dinâmica de ações que se pautam na “reestruturação”, “reorganização” e
reordenamento dos serviços e políticas públicas de saúde. Na teologia cristã, a teodiceia é aquilo
que pode explicar a existência simultânea da maldade no mundo e da bondade infinita de Deus.
Para Weber, a teodiceia está conectada ao processo de racionalização e justificação do
sofrimento a partir da ideia de uma salvação futura, fazendo parte dos processos de construção
de formas de acomodação das contradições internas das religiões.
Ao descrever as convenções e representações comuns sobre a “maldade burocrática”,
Herzfeld (1993) argumenta que o fatalismo da previsibilidade do “mau funcionamento” e a
possibilidade de denúncia acerca de sua ineficiência são condições fundamentais para a própria
existência da burocracia. Assim, o autor alega que a gestão burocrática pressupõe uma forma
particular de teodiceia, denomina por ele de teodiceia secular. Em seu raciocínio, é por meio
desse conceito que poderia ser explicada a persistência de um regime burocrático mesmo diante
das constantes reclamações sobre sua ineficácia e incompetência. Isto é, a teodiceia secular é
uma espécie de linguagem que permite que se fale contra o Estado sem necessariamente colocar
em xeque sua crença fundante; é o que permite o questionamento daquilo que é descrito como
errado ou disfuncional, sem descrer na cosmologia do Estado como um todo e sem desacreditar
– ou minar completamente a esperança – que esse “centro ideal” poderá um dia ser alcançado
e que o Estado funcionará tal como previsto.
A ideia de uma teodiceia da saúde pública inspira-se diretamente na concepção de
Herzfeld (1993) sobre a teodiceia secular. Nesse sentido, formulo a seguinte pergunta: como
pode haver tantas mortes por falta de assistência médica e cuidado em saúde em um país em
que há tanto um direito à saúde constitucionalizado, quanto um Sistema Único de Saúde regido
pelos princípios da Universalidade, Equidade e Integralidade? Meu argumento é de que a
resposta para esse questionamento encontra-se na naturalização da escassez que sustenta e
permite a expansão contínua de projetos de “restruturação de serviços” e “repactuação de
direitos”, o que, em última instância, reforça e atualiza uma série de práticas de
necrogovernança.
366

Na medida em que uma certa racionalidade neoliberal avança e faz da autossuficiência


um importante valor moral apoiado em concepções bastante específicas de individualismo e
responsabilidade (Butler, 2018), a violência cometida contra certos contingentes populacionais
torna-se muito mais estrutural do que direta. De acordo com Gupta (2012), é esse caráter
estrutural que faz com que a morte e o sofrimento dessas pessoas e populações sejam,
paradoxalmente, absolutamente normalizados e tidos como incontornáveis, ao mesmo tempo
em que funcionam como o motor de inúmeros projetos de intervenção que visam o
desenvolvimento social e a erradicação da miséria.
Afirmo que isso pode ser visto como uma teodiceia da saúde pública porque dos
projetos de reestruturação dos serviços públicos de saúde – como o plano de “Reorganização
dos Serviços de Atenção Primária à Saúde” apresentado pelo prefeito do Rio de Janeiro – à
criação da CRLS diante do “excesso” de processos judiciais em saúde, subjaz a crença de que
o SUS – e no limite, o próprio Estado – não está operando como deveria e/ou que os agentes
estatais não estão exercendo corretamente as suas funções. Ou seja, o ponto de partida e a linha
de chegada; as causas do problema e os responsáveis pela sua solução encontram-se no exato
mesmo lugar: o funcionamento do Estado e os seus agentes.
Apropriando-me do raciocínio de Butler (2018) acerca da questão democrática não ser
meramente sobre “estender o reconhecimento a todos” – já que toda forma de ampliação do
reconhecimento implica também a ampliação do poder diferencial que relega alguns ao plano
do desconhecimento –, argumento que tanto os planos para a superação da crise, quanto as
“resoluções administrativas” propostas pela CRLS para a solução de litígios individuais em
saúde acabam por corroborar essa teodiceia da saúde pública. Todas essas iniciativas reforçam
a centralidade e o poder do Estado de determinar como, quando e em prol de quem serão
empenhados os recursos públicos de saúde, seja em termos de uma coletividade, seja para
contemplar anseios e necessidades particulares.
Como demonstrado na primeira da tese, o SUS vem passando por diferentes crises ao
longo dos seus 30 anos de existência, já que o subfinanciamento é um problema crônico. Mais
do que isso, busquei evidenciar como a precariedade, a escassez e a desigualdade no acesso aos
serviços públicos de saúde sempre foram traços da saúde pública no Brasil. Assim como as
diversas “crises”, os objetivos de corrigir os erros de Estado e preservar o “funcionamento da
economia” encontram-se como fundamento e justificativa de projetos políticos na área da saúde
desde o controle das epidemias nos portos no início do século XIX até os episódios
contemporâneos de defesa da necessidade de ajuste fiscal e redução dos gastos públicos com
saúde para interromper o crescimento da dívida pública e contornar os efeitos da crise.
367

É por essa razão que reitero em diferentes momentos que compartilho apenas
parcialmente da visão da “crise enquanto um projeto político”. Ao construir uma argumentação
que coloca a crise a serviço de um plano único e específico de “desmonte do SUS”, muitos dos
políticos da oposição, especialistas, militantes etc. reforçam o caráter de excepcionalidade da
situação e negligenciam e/ou ignoram uma dimensão histórica mais ampla, reforçando uma
narrativa que entende os “problemas” da saúde pública brasileira mais como uma questão
conjuntural do que como uma questão estrutural.
Ou seja, através dessas diferentes retóricas da crise, somos levados a pensar que, antes
desse episódio contemporâneo de aprofundamento da escassez, o SUS estava “montado”, ou
ainda, que havia indicativos de que em algum momento do futuro o sistema público de saúde
funcionaria tal como ele foi pensado décadas atrás. Tal raciocínio reforça um equívoco
apontado por Souza Lima (2012) de que muitas vezes as análises sobre o Estado e as políticas
públicas não levam em consideração as significativas diferenças entre o que acontece nos
Estados-nação neocoloniais – como é o caso brasileiro – e o ideal de “Estado de bem-estar
social” (Welfare State) que norteou a construção dos serviços públicos em países da Europa e
nos Estados Unidos durante o século XX.
Quando proponho que a crise deve ser entendida não enquanto um projeto arquitetado
para um fim determinado e conhecido previamente, mas sim como um ponto crítico em um
dado modo de governo, sugiro que a precariedade e a escassez não podem ser vistas como algo
momentâneo e transitório, mas sim como aspectos fundantes e duradouros da administração
pública no Brasil. Em um país marcado pelo “permanente engendramento de assimetrias
instaladas em padrões históricos de (re)produção da desigualdade econômica, política e
simbólica” (Souza Lima, 2012), o Estado desempenha um papel crucial na produção e
reprodução da miséria humana, tornando uma condição politicamente induzida de precariedade
e escassez a forma de gestão de determinadas populações.
Assim, argumento que a insuficiência, a exiguidade, a precariedade e o risco não
constituem os objetos últimos da gestão estatal, mas sim o seu próprio instrumento, método e
mecanismo. Ou seja, a escassez não é aquilo que deve ser administrado – como se supõe quando
é dito que é preciso reorganizar serviços e repensar prioridades diante da falta de recursos e
cortes orçamentários –, mas sim o próprio maquinário através do qual são produzidas as
condições e práticas de governo. A precariedade politicamente induzida pelos aparatos e
procedimentos estatais é o elemento central que configura as situações de emergência e crises
que incitam intervenções do Estado.
368

Em suma, o que está em jogo aqui não é tanto uma gestão da escassez, mas sim uma
gestão pela escassez; ou ainda, uma “gestão pobre para os pobres”: uma ideia que se refere aos
cenários em que nunca há recursos, funcionários, tempo etc. para atender a todos, de modo que
“aquilo que é possível fazer” é sempre precário em algum nível. A finalidade do Estado em um
regime capitalista não é gerir a precariedade com vistas a sua erradicação, mas sim reproduzir
suas próprias condições de existência e mecanismos de atuação por meio da incessante
fabricação da escassez e das desigualdades sociais. O Estado governa territórios e populações
através da precariedade, delimitando o quanto e como as pessoas podem viver. Nesse sentido,
entendo a crise da saúde não como um episódio pontual da história do SUS no Rio de Janeiro,
mas sim como um momento de agudização em um ciclo que conforma esse modo de gestão que
só pode funcionar mediante a produção contínua de escassez e privação.
Por fim, se não há dúvidas de que “todos vão morrer um dia”, uma investigação sobre
como opera a gestão pela escassez e a necrogovernança se faz pertinente na medida em que é
capaz de demonstrar que nem todos morrem da mesma forma, muito menos das mesmas causas.
A distribuição das possibilidades de vida entre as pessoas está longe de ser a mesma para todos
e as condições históricas de desigualdade no Brasil se fazem presentes até mesmo em como,
quando e do que se morre. Parafraseando a já parafraseada ironia que aparece na crônica de
Antônio Prata que abre essas considerações finais: o que mata são as doenças, o Estado só
“ajusta o orçamento”.
369

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