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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

THALINE LUIZE RIBEIRO FONTENELE

PENSANDO A QUESTÃO ECOLÓGICA NO BRASIL A PARTIR DOS


ECOFEMINISMOS

RIO DE JANEIRO-RJ
2021
THALINE LUIZE RIBEIRO FONTENELE

PENSANDO A QUESTÃO ECOLÓGICA NO BRASIL A PARTIR DOS


ECOFEMINISMOS

Trabalho para defesa de Doutorado, sob


orientação da Prof.ª Dr.ª Susana de Castro
Amaral Vieira e coorientação do Prof. Dr.
Fabio Alves Gomes de Oliveira, para o
Programa de Pós-Graduação em Filosofia –
UFRJ, na área de Ética e Filosofia prática.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Susana de Castro


Amaral Vieira
Coorientador: Prof. Dr. Fabio Alves Gomes de
Oliveira

RIO DE JANEIRO-RJ
2021
CIP - Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a)
autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

Ribeiro Fontenele, Thaline Luize


RF683p Pensando a questão ecológica no Brasil a partir dos ecofeminismos /
Thaline Luize Ribeiro Fontenele. -- Rio de Janeiro, 2021.
149 f.

Orientadora: Susana de Castro Amaral Vieira. Coorientador: Fabio


Alves Gomes de Oliveira.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em
Filosofia, 2021.
1. América Latina. 2. Brasil. 3. Ecofeminismo.
4. Educação. 5. Interculturalidade. I. de Castro Amaral Vieira, Susana ,
orient. II. Alves Gomes deOliveira, Fabio, coorient. III. Título.
THALINE LUIZE RIBEIRO FONTENELE

PENSANDO A QUESTÃO ECOLÓGICA NO BRASIL A PARTIR DOS


ECOFEMINISMOS

Trabalho para defesa de Doutorado, sob


orientação da Prof.ª Dr.ª Susana de Castro
Amaral Vieira e coorientação do Prof. Dr.
Fabio Alves Gomes de Oliveira, para o
Programa de Pós-Graduação em Filosofia –
UFRJ, na área de Ética e Filosofia prática.

Aprovada em ___/____/_______

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________
Prof.ª. Dr.ª Susana de Castro de Amaral Vieira/PPGF/UFRJ (Orientadora – Presidente)

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Fabio Alves Gomes de Oliveira/INFES/PPGBIOS/UFF (Coorientador)

________________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre da Silva Costa /PPGF/UFRJ/PPGBIOS

________________________________________________________________
Prof.ª. Dr.ª Daniela Rosendo/UFSC

_______________________________________________________________
Prof.ª. Dr.ª Maria Clara Marques Dias/IFCS/PPGBIOS/UFRJ

_________________________________________________________________
Prof.ª. Dr.ª Tânia Aparecida Kuhnen/UFOB

SUPLENTES: Prof.ª. Dr.ª Maria Alice da Silva/UFSC


Prof.ª. Dr.ª Adriany Ferreira de Mendonça/IFSC/PPGF/UFRJ
AGRADECIMENTOS

A todas as pessoas que passaram pela minha vida e têm contribuído para minha travessia
neste mundo. Isso me faz lembrar das pessoas que conheci nas escolas por onde passei, na
minha graduação em Teresina, cidade na qual nasci e cresci, no mestrado em João Pessoa, por
meio do qual passei a me reconhecer a partir de uma identidade e me compreender como raiz,
no meu primeiro emprego como professora na cidade de Coroatá, no Maranhão, que marcou
minha vida para sempre, e pude entender o que é empatia, e o que também é responsabilidade,
até chegar em Penedo, Alagoas, com minhas alunas e alunos que alegram meus dias e me
estimulam a buscar a esperança de uma possibilidade de outro mundo. Aproveito para agradecer
ao Instituto Federal de Alagoas, em especial ao campus Penedo, instituição que financiou meus
estudos e meu afastamento da instituição;
Um agradecimento especial ao professor Fabio Oliveira, que se disponibilizou a passar
esse atravessamento teórico comigo, mesmo com momentos tão desafiadores, com muitos
diálogos, mensagens de cuidado e afeto e, principalmente, com muita paciência e compreensão
nos últimos meses. Fabio, sou muito grata por toda sua disponibilidade e por toda troca de
conhecimentos que tivemos esse tempo. Sentirei saudades desses momentos;
Quero fazer um agradecimento às pessoas que deixaram minha travessia mais leve
durante minha estada no Rio, as quais tive a oportunidade de conhecer por meio do LEA e do
PPGF, compartilhando narrativas, angústias, cafés, viagens, risadas e receitinhas: Ana Paula,
Amiel, Cláudia, Dionísio, Gabi Berti, Jeferson, Karen, Letícia, Lucas, Larissa, Maria Clara,
Martina, Milena, Mônica, Suane e Wilker. Através de vocês, estou levando do Rio as melhores
lembranças.
Às minhas amigas e amigos, Bruna, Esme, Laís, Lenise, Lucas, Pry, Tainah, Thaís,
Gisele, Ednilson, Joallan e Tiago, sou muito grata por ter a amizade de vocês. Cada um de vocês
é parte fundamental dessa travessia;
À Sônia Machado do PPGF, por sempre ter sido muito atenciosa comigo;
Às professoras Maria Clara Dias, Susana de Castro, Rita Paixão e ao Professor
Alexandre Costa, que tornaram essa travessia de saberes tão agradável;
À Alicia Puleo, pela troca de conhecimentos e por ter dedicado parte do seu tempo na
minha estada em Valladolid;
Às professoras que compõem a banca, Daniela Rosendo e Tânia Kuhnen, Maria Alice
da Silva e Adriany Ferreira, agradeço pela disponibilidade de acesso e tempo;
A todas/os as/os funcionárias/os terceirizados da UFRJ, por facilitarem e otimizarem
meu acesso a esse espaço;
Ao cachorro Luke e à gatinha Gal, mesmo que não possam ler meu agradecimento,
deixo registrado aqui o quanto alegraram meus dias nesses últimos passos do trabalho, com
suas brincadeiras e companheirismo;
Um agradecimento especial à minha mãe, que possibilitou por toda sua luta diária,
inclusive abdicando de seus projetos pessoais, para se dedicar à minha formação como ser
humano; à minha Dindinha e Paizinho, que, mesmo não estando mais nesse mundo, foram
responsáveis pelas bases materiais e afetivas para que eu pudesse seguir com meus sonhos; e
ao apoio dos meus irmãos Diego e Rafael;
E um agradecimento cheio de saudade, ao meu pai, vítima da Covid-19, que facilitou
meu acesso a todas essas trilhas e caminhos que me permitiram chegar aqui;
E deixo aqui meu respeito a todas as mulheres que lutaram e continuam lutando para
que hoje eu pudesse ocupar lugares como esse e, em especial, as mulheres que estão na
resistência pela terra e pelo direito à comida saudável na mesa de todas as pessoas.
RESUMO

PENSANDO A QUESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL A PARTIR DOS


ECOFEMINISMOS

Thaline Luize Ribeiro Fontenele

Orientadora: Prof.ª. Dr.ª Susana de Castro de Amaral Vieira/PPGF/UFRJ


Coorientador: Prof. Dr. Fabio Alves Gomes de Oliveira/INFES/PPGBIOS/UFF

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Filosofia na


Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título em Doutora em Filosofia.

Neste trabalho, buscamos analisar em que medida o aporte ecofeminista – enquanto ferramenta
teórica de investigação filosófica – auxilia-nos a compreender e a enfrentar a disseminação das
desigualdades e opressões sociais e geopolíticas que afetam grupos de indivíduos
vulnerabilizados historicamente, em especial o grupo de mulheres, em sua interface ecológica.
Diante dos principais acontecimentos políticos, sociais e ambientais na América Latina, em
especial no Brasil, parece haver uma urgência em buscar uma abordagem da filosofia prática
que faça sentido diante do contexto ambiental sobre o qual se pretende pensar. Afinal, a questão
ambiental tornou-se um dos pilares mais fundamentais dos problemas morais e políticos do
século XXI. Nesse caso, a proposta é identificar como os “ismos” de dominação denunciados
pelos ecofeminismos interferem na soberania alimentar e, consequentemente, repercutem e se
imbricam em outras formas de violências, aprofundando o empobrecimento de grupos em
condições de vulnerabilidade; denunciar a relação existente entre o agronegócio, o racismo
ambiental e a migração ambiental; e, por último, levantar uma crítica à educação que não
evidencia tais conexões, reproduzindo e naturalizando paradigmas violentos na sociedade. Com
isso, se encaminha para defender o que chamo de “atravessamentos ecofeministas”: uma
perspectiva que ao mesmo tempo que atravessa é atravessada, semeando para a necessidade de
uma educação crítica intercultural.

Palavras-chave: América Latina; Brasil; ecofeminismo; educação; interculturalidade.

Rio de janeiro
Setembro/2021
ABSTRACT

PENSANDO A QUESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL A PARTIR DOS


ECOFEMINISMOS

Thaline Luize Ribeiro Fontenele

Orientadora: Susana de Castro Amaral de Vieira


Coorientador: Fábio

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Filosofia na


Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título em Doutora em Filosofia.

In this paper I seek to analyze the measure which the ecofeminist contribution – as theoretical
tool of philosophical investigation - assists us to understand and face the spread of social and
geopolitical oppressions and inequalities that affect groups of individuals historically
vulnerable, especially women, in their ecological interface. In view of the main political, social,
and environmental events in Latin America, especially in Brazil, there seems to be an urgency
to search an approach of practical philosophy that is meaningful in view of the environmental
context about which one intends to reflect. After all, the environmental issue has become one
of the most fundamental pillars of moral and political problems of the XXI century. In this case,
the proposal is to identify how the isms of domination denounced by ecofeminists interfere with
food sovereignty and, consequently, reverberate and overlap other forms of violence, deepening
impoverishment of groups in vulnerable conditions, denounce the existing relation between
agribusiness, environmental racism, and environmental migration; and lastly, raise criticism to
education which does not highlight such connections, reproducing and naturalizing violent
paradigms in society. With that, this work moves towards defending what I call “ecofeminist
crossings”: a perspective that crosses and its crossed, at the same time, sowing to the need for
a critical intercultural education.

Keywords: Latin America; Brazil; ecofeminism; education; interculturality.

Rio de Janeiro
Setembro/2021
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................. 8

1 ECOFEMINISMOS PLURAIS.................................................................... 15
1.1 A crítica ecofeminista.................................................................................... 16
1.2 Por que pensar em ecologia e feminismo juntos?....................................... 20
1.2.1 Colonização, branquitude e feminização da pobreza...................................... 22
1.3 As diferentes correntes.................................................................................. 25
1.3.1 Ecofeminismo espiritual.................................................................................. 31
1.3.2 Ecofeminismo social/crítico............................................................................ 44
1.4 Conclusão........................................................................................................ 61

2 FEMINISMOS E ECOLOGIA: ENTRELAÇOS E SENTIDOS NA


AMÉRICA LATINA..................................................................................... 63
2.1 O ecofeminismo em Abya Ayla.................................................................... 64
2.2 O feminismo comunitário.............................................................................. 69
2.3 Da Teologia da Libertação à Teologia Ecofeminista.................................. 73
2.4 Da ética do cuidado ao ecofeminismo animalista....................................... 76
2.4.1 Colonização do paladar................................................................................... 87
2.5 Conclusão........................................................................................................ 88

3 ATRAVESSAMENTOS ECOFEMINISTAS: INSEGURANÇA


ALIMENTAR, RACISMO AMBIENTAL E MIGRAÇÃO
AMBIENTAL................................................................................................. 90
3.1 Colonização da alimentação e soberania alimentar................................... 93
3.2 Racismo ambiental e migração ambiental.................................................. 111
3.2.1 Samarco-Mariana-Minas Gerais...................................................................... 118
3.2.2 Vale-Brumadinho-Minas Gerais..................................................................... 118
3.2.3 Braskem-Macéio-Alagoas............................................................................... 119
3.2.4 Queimadas no Pantanal e Amazônia............................................................... 119
3.2.5 Usina Hidrelétrica e Agronegócio-Quilombo Pixaim-Piaçabuçu- 119
Alagoas............................................................................................................
3.2.6 Migração ambiental......................................................................................... 120
3.3 Semeando horizontes: um caminho............................................................. 126
3.4 Conclusão....................................................................................................... 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 134

REFERÊNCIAS............................................................................................. 139
8

INTRODUÇÃO

Na última década, no Brasil, podemos enumerar alguns crimes ambientais que podem
ter definido uma nova concepção para as consequências diretas e indiretas do padrão de
consumo e dos aspectos globais econômicos e sociais na vida de seres humanos, mas que
também se refletiram na vida dos animais não humanizados. Recordo aqui, as tragédias
ocasionadas pela Vale e pela Samarco, ocorridas em 2015 e 2019, respectivamente, nas cidades
mineiras de Mariana e Brumadinho1. Assim como o derramamento de óleo no litoral nordestino,
em 20192; o aumento das queimadas na Amazônia e no Pantanal nos últimos dois anos3; e o
aumento de assassinatos de lideranças indígenas e campesinas na última década4. Destaco esses
últimos acontecimentos, porque, além de ganharem proporção internacional e das
consequências nefastas para as comunidades locais, ocorreram paralelamente à realização da
minha pesquisa de doutorado. Portanto, enquanto estudava a proposta de pensar a ética
ambiental que pudesse analisar a relação do ser humano com a natureza, essas tragédias
ocorriam e pareciam ser tratadas com negação e sem responsabilidade pelas instituições
públicas do Estado.
Em 2020, uma pandemia causada pelo Sars-Cov-25, acabou expondo a fragilidade de
um sistema econômico, político, social e moral que não é capaz de oferecer condições de
“proteger” sua própria população, e de atender à medida preventiva proposta pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) para a contenção do vírus: o distanciamento social. Sob essa
condição, vimos todas as feridas que o Brasil carrega ficarem expostas de maneira tão cruel
quanto o próprio vírus: a extrema pobreza, a fome, o racismo, a violência doméstica às
mulheres, o descaso com a população idosa, o egoísmo e o niilismo de parte da população, que
desacredita dos efeitos do vírus e da ciência.
Em termos de representação política, temos à frente da Presidência do Brasil aquele que
é considerado o pior líder político para administrar a situação da pandemia no país 6. Essa

1
Disponível em: https://www.metrojornal.com.br/foco/2019/01/28/mariana-e-brumadinho-tragedia-que-se-
repete.html. Acesso em: 05 mar. 2020.
2
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/10/procuradoria-entra-com-acao-para-que-
governo-acione-plano-de-incidentes-com-oleo.shtml. Acesso em: 05 mar. 2020.
3
Disponível em:
https://www.dw.com/pt-br/queimadas-na-amaz%C3%B4nia-podem-causar-danos-irrevers%C3%ADveis/a-
50161460. Acesso em: 05 mar. 2020.
4
Disponível em: http://www.soldepando.com/aumenta-a-matanca/. Acesso em: 05 mar. 2020.
5
Disponível em: https://www.infoescola.com/doencas/sars-cov-2/. Acesso em: 05 junho 2020.
6
Disponível em: https://www.opovo.com.br/coronavirus/2020/04/15/bolsonaro-e-eleito-o--pior-lider-mundial--
no-enfrentamento-a-pandemia--em-publicacao-do-washington-post.html. Acesso em: junho de 2020.
9

avaliação se deu em decorrência não só do menosprezo à doença, mas também pela reprodução
de falas que conduziam a população de volta às ruas, a estimulação pelo uso de um kit de
medicamentos ineficazes para prevenir a doença que, como resultado, legitima todas as
opressões contra a população mais vulnerabilizada do país. E, para além disso tudo, despreza a
morte, a favor da movimentação do mercado, com o slogan: “O Brasil não pode parar”7. Diante
do descaso, da ausência de políticas públicas, assistimos a grupos, movimentos e coletivos se
organizando em suas regiões, bairros e comunidades, em forma de cuidado para com os seus8.
Diante dos fatos, a ideia de se pensar um novo mundo se mostra necessária, mas origina
questões sobre as possibilidades dessa construção: Como? Por quem? Para quem?
A leitura que pretendo construir, percorre as bases ecofeministas – relação entre
feminismo e ecologia. Pretendo mostrar como essa teoria passa a ser objeto de debate nas
últimas décadas, considerando que a intensa produção industrial, o desmatamento, as atividades
extrativistas e agroindustriais têm ameaçado todas as formas de vida. Quais mudanças devem
ser feitas para o rompimento com esse modelo de desenvolvimento que ameaça povos
originários, objetifica a natureza e oprime silenciosamente diferentes grupos sociais de seres
vivos?
Da mesma maneira, a proposta de uma investigação filosófica sobre ética ambiental de
matriz ecofeminista, voltada para o contexto da realidade brasileira, mostra-se fundamental para
não só compreender como a relação exploratória com a natureza está imbricada ao processo de
colonização do território brasileiro, mas, também, lança uma hipótese: seria possível enfrentar
os conflitos ambientais existentes no Brasil sem serem reconhecidos e assumidos os processos
históricos de formação das desigualdades que desembocam no processo que inicia com a
concentração de terras, reflete-se na falta de alimentos saudáveis e, consequentemente, no
paradigma do racismo ambiental e no deslocamento forçado, e que se fortaleceu a partir dessa
lógica colonizadora ocidental? Nesse sentido, o próprio ecofeminismo precisa se encontrar com
outras ferramentas teóricas que nos permitem pensar a partir do Sul global.
Logo, a ideia de se debruçar sobre essa história para refletir acerca do papel da ética
ambiental de matriz ecofeminista pode ser entendida como uma proposta de ruptura com a
lógica da opressão, repressão e colonização, que nos impede de reconhecermos não somente os
processos de violência aos quais estamos submetidas, mas principalmente de tomarmos para

7
Disponível em: https://odia.ig.com.br/brasil/2020/03/5890844-governo-apaga-publicacoes-com-slogan--o-
brasil-nao-pode-parar.html. Acesso em: maio de 2020.
8
Disponível em: https://www.brasil247.com/brasil/coronavirus-sem-acao-dos-governos-periferias-favelas-e-
ocupacoes-se-organizam-como-podem. Acesso em: maio de 2020.
10

nós a autonomia relativa ao reconhecimento de nossas identidades. Cabe aqui, portanto,


enfrentar o perigo da história ocidentalizada instituída contra o povo do território pindorama, a
partir da narrativa estabelecida pela colonização intelectual que sustenta a monocultura do
pensamento, tal qual afirma Vandana Shiva (2005).
Portanto, repensar os alicerces históricos que auxiliaram no processo de formação da
América Latina e, especialmente da sociedade brasileira, contribui para a reflexão espaço-
temporal que rompe com o modelo tecnocapitalista, amparado na colonização resultante da
coerção intelectual à qual fomos submetidas. Dessa forma, é relevante trazer para o debate
elementos do contexto histórico-social do Brasil, para, então, resgatar a educação que esteja
comprometida a enfrentar o colonialismo, o racismo e o patriarcado. Se tomarmos como
exemplo o contexto de formação do Estado brasileiro, desde o seu processo de colonização até
os dias atuais, podemos perceber que a natureza está a serviço dos interesses econômicos
coloniais e da globalização, nessa ordem. Nesse processo, as minorias étnicas, raciais e os
grupos socialmente vulnerabilizados, tais como os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos,
pessoas negras, população LGBTQIA+ e mulheres da América Latina, foram condenados pelo
imperialismo do Norte global, marcado pelo elogio à branquitude e à cultura ocidentalizada,
em exercício bio e necropolítico de dominação absoluta (MBEMBE, A. 2018).
Tal modelo, assentado em uma suposta hierarquia moral, ridicularizou as culturas
internas dos povos colonizados. Ao longo do tempo, condenou essa mesma população à baixa
autoestima como resultado de apropriação e colonização. Como Vandana Shiva (2006) afirma,
existiu e ainda persiste a subjugação de outros conhecimentos e culturas que escapam dos
alicerces político-culturais definidos pelo imperialismo ocidental promulgado pela globalização
econômica. Por meio desse modelo econômico, é possível desconsiderar e anular não somente
a autonomia, mas a diversidade de povos e etnias inteiras. Tal paradigma, segundo Shiva
(2006), imbricado e intensificado pelo processo patriarcal presente na globalização, permitiu e
disseminou a concepção sexista de civilização, ao mesmo tempo em que incentivou a
domesticação de culturas do sul. Na contemporaneidade, esse paradigma é reforçado pelos
interesses das grandes corporações, na exploração dos recursos naturais e no desprestígio por
outros saberes fora do eurocentrismo.
Pode-se afirmar que a natureza ocupa, nesse contexto, lugar a ser explorado e
manipulado pelas condições geográficas e intenções políticas para a manutenção e o
aprofundamento do poder vigente, a saber: a globalização. Neste trabalho, avaliamos a hipótese
ecofeminista de que o local destituído de valor destinado à natureza está associado às mesmas
bases de dominação que subjuga as mulheres e os povos tradicionais latino-americanos na
11

mentalidade colonizadora. Anulados, passam a serem percebidos como mão de obra barata ou
descartável.
As mulheres9, dentro da condição geográfica latina, são ameaçadas na sua existência,
diariamente, por diversas formas de violência. A colonização é apontada aqui como uma dessas
formas, que repercute em opressões físicas, morais ou psíquicas. Dentro da esfera colonizadora,
o corpo feminino passa a ser mais uma mão de obra da globalização, com a finalidade apenas
de lucro e suas formas de se relacionar com a natureza são inferiorizadas, subjugadas a um
modelo científico e tecnológico, ao qual a filósofa Greta Gaard deu o nome de modelo
tecnocientífico masculinista (GAARD, 2015). Se seu trabalho passa a ser mediado pelo lucro,
as condições de ambiente nele não estarão voltadas para essas mulheres, mas para atender ao
sistema. Portanto, a saúde é comprometida, assim como a natureza, como esfera viva e atuante.
Ambas passam a ser utilizadas como ferramentas do capital. A autonomia da natureza e das
mulheres, principalmente do Sul global, passa a ser delegada pela cultura do neoliberalismo.
Mesmo tendo como fio condutor deste trabalho, tanto o aporte teórico de teorias
ecofeministas, bem como de outras teorias feministas em diálogo com questões ecológicas, no
decorrer do diálogo aqui exposto, buscaremos situar e encaminhar por outras perspectivas que
permitirão atravessamentos críticos fundamentais para as reflexões ecofeministas desde o Sul
Global, em especial desde o Brasil. Portanto, o uso de conceitos ecofeministas tornam-se não
somente um sustento teórico, mas eles mesmos uma travessia que possibilitará a construção de
novos caminhos e aberturas. Dessa forma, o desenvolvimento dessa tese será construído em
três capítulos: O primeiro, denominado de Ecofeminismos plurais; o segundo capítulo,
Feminismos e ecologia: entrelaços e sentidos na América Latina; e o último capítulo,
Atravessamentos ecofeministas: insegurança alimentar, racismo ambiental e migração
ambiental.
O primeiro capítulo será pensado em compreender a teoria ecofeminista, a partir de suas
principais vertentes, dando destaque às abordagens espirituais e construtivistas, com as autoras
Vandana Shiva e Maria Mies; e Alicia Puleo e Val Plumwood, respectivamente. Procuro
mobilizar essas autoras e destacar suas propostas, pensando não somente o ecofeminismo como
um projeto ético, mas como uma práxis política, dialogando com as autoras de forma a
aproximá-las.

9
O uso do termo mulheres, sempre no plural, assim como feminismos e ecofeminismos, é sempre para demostrar
que há diversidade de mulheres, que não se definem a partir de concepção universal, abrangendo diferentes
narrativas, corpos e sexualidades.
12

Em ambas as abordagens, procuro identificar o projeto ecofeminista que possa


contribuir com um projeto educativo. Em cada qual, procuro destacar conceitos que oferecem
condições básicas para compreender os conflitos ecológicos no Brasil em sua íntima conjugação
com a agenda feminista. Na abordagem espiritual, trabalho com o conceito do paradigma
científico reducionista e os conceitos de monocultura da mente, desenvolvidos por Vandana
Shiva, que vai refletir na industrialização da alimentação. No ecofeminismo denominado como
construtivista ou crítico, a proposta é pensar sobre o conceito de crise ecológica da
racionalidade de Plumwood, reforçado como uma crítica não somente ao sistema, mas à
tradição filosófica. Uma das teses centrais da pensadora é apresentada, mostrando que a
racionalidade foi construída como uma forma de poder e fomentou os ismos de dominação, que
apontei ao longo de todo o trabalho, tais como: o sexismo, o racismo, o colonialismo, o
especismo, entre outros. Com Alicia Puleo, detalho a definição de patriarcado e sua crítica à
educação ambiental. Destaco que é a partir de sua proposta que no terceiro capítulo surge a
ideia de pensar uma educação crítica, que esteja comprometida não somente com a educação
ambiental, mas que rompa com práticas desse sistema educativo que nos impossibilita de
construir outro mundo. O primeiro capítulo, portanto, me oferece toda a base argumentativa
crítica para compreender não só como foram estruturadas as opressões, mas também as bases
conceituais ecofeministas.
No segundo capítulo, dedico à análise de como se estabelece a relação entre feminismo
e ecologia na América Latina. Nesse caso, opto por apresentar grupos e movimentos de
mulheres que estabelecem a discussão de gênero e ecologia sem necessariamente se
autoproclamarem ecofeministas. Por isso, abordo as críticas do feminismo comunitário como
aspecto crítico ao feminismo hegemônico, mas também por ser um movimento no qual a
questão do dualismo entre seres humanos e natureza é questionado. Um ponto que destaco no
pensamento no movimento é a denúncia ao patriarcado como sendo anterior à colonização para
as comunidades indígenas nas quais se referem. Isso demonstra que a luta anticolonial deve
estar conjugada à luta antipatriarcal, conforme reafirmo no capítulo seguinte.
Além do feminismo comunitário, pretendo apresentar a teologia ecofeminista
desenvolvida no Brasil, a partir da pensadora Ivone Gebara, em seu trabalho Teologia
ecofeminista (1997). Destaco, sobretudo, sua abordagem crítica à própria estrutura do
Cristianismo, reforçando práticas e violências patriarcais, a partir da instituição religiosa. Por
último, apresento a corrente ecofeminista animalista, idealizada e construída no Brasil, a partir
das pensadoras Daniela Rosendo, Fabio Oliveira e Tânia Kuhnen, de forma a denunciar como
os sistemas de dominação atuam principalmente, mas não de modo exclusivo, com relação à
13

questão animal e reforçando a importância da construção da práxis ecofeminista, cujo cuidado


e a vulnerabilidade sejam recuperados para o pensar de perspectiva ética. Tal proposta pode
contribuir na compreensão da noção de interdependência entre espécies, assim como o lugar do
cuidado nessas relações e na própria sociedade. Enfatizando sempre o quanto o cuidado deve
ser pensado e praticado independente de gênero. Por fim, o segundo capítulo já me possibilitará
pensar considerando as vozes e as questões apresentadas nesse território, propondo outras
formas de conjugações ao ecofeminismo. Todas essas abordagens, tecidas no contexto
brasileiro, facilitarão minha compreensão acerca do ecofeminismo, mas as possibilidades de
pontes de diálogo e não de abandono, necessariamente. Tanto a teologia feminista, quanto o
ecofeminismo animalista descolonial me ajudarão a compreender as narrativas e vozes
silenciadas pela persistente hegemonia colonial.
No terceiro capítulo apresento o que chamarei de atravessamentos ecofeministas. E por
qual razão atravessamentos? Nesse percurso, como coloco no início, assim como a teoria
ecofeminista denuncia esses dualismos de violências, quando chega a esse território, ao mesmo
tempo que atravessa por essas denúncias, é atravessada por outras questões apresentadas por
outras perspectivas. Objetivo destacar três elementos centrais nesse capítulo à luz do conceito
de atravessamento ecofeminista: a insegurança alimentar; o racismo ambiental e a migração
ambiental. A partir desse olhar tripartido. A insegurança alimentar para mostrar que os padrões
alimentares são uma questão ecofeminista, em primeiro lugar. Ou seja, para evidenciar a
feminização da pobreza ao mesmo tempo que foi preciso denunciar que a soberania alimentar
ainda é a uma luta em curso em países empobrecidos do sul global. Em segundo lugar, para
destacar que os padrões alimentares são fruto de um processo éticopolítico proveniente de um
paradigma reducionista que afeta saberes locais de comunidades originárias e periféricas, mas
também as práticas, do cultivo de alimentos que escapem da lógica industrial capitalista. Utilizo
o pensamento de Emma Siliprandi, para pensar como a Revolução verde chega ao Brasil e como
os movimentos agroecológicos se colocam como resistência a esse sistema, pensando em
especial a partir de movimentos construídos por mulheres, que denunciam suas opressões
domésticas e sua invisibilidade frente ao mundo. Falar de agroecologia é falar de feminismo,
é falar de território. Por isso, que os padrões alimentares mantêm padrões coloniais sobre a
terra, assim como promove a destruição dos saberes, influenciando na desapropriação da
comunidade humana e não-humana, bem como o paradigma do racismo, seja pelas condições
precárias que expõe as pessoas empobrecidas e racializadas, sem oferecer saneamento, água,
alimentos, transporte, seja pelo deslocamento forçado, sobre o qual, decidi pensar a partir do
conceito migração ambiental.
14

Apresento o conceito de racismo ambiental, a partir de Tânia Pacheco e Selene


Herculano em diálogo com feminismo de Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, na tentativa de situá-
lo igualmente enquanto um atravessamento ecofeminista; ou seja, em uma articulação entre
gênero, ecologia, raça e território. No caso da migração ambiental, o principal ponto que busco
abordar é a ideia de fronteira e como elas são determinantes para se pensar a questão ecológica
no mundo contemporâneo e no Brasil em especial. A ideia, então, é a de pensar a fronteira como
um espaço geográfico, do qual não há limites para os efeitos ambientais, consequências das
ações antrópicas. E no sentido simbólico, pensar a fronteira, como um espaço a ser rompido,
dentro dessa lógica colonial, no sentido do pensamento.
Diante desse processo e elementos, apresento a importância de uma educação crítica,
informada pelos atravessamentos ecofeministas, dado que vou tecendo argumento que
permitam afirmar como processo ético-político desagua no processo educativo. Investigo como
a educação deve se propor a sempre ser crítica, mas uma crítica intercultural atravessada pelos
ecofeminismos, no qual se proponha a decolonizar a si mesma; construir diálogos de forma
horizontal; evidenciar o protagonismo de grupos sociais invisibilizados ao longo da história;
enaltecer as diversidades, de forma a combater as desigualdades; descentralizar o pensamentos
e as práticas, pensar numa perspectiva mais plural, e eu me coloco como parte desse processo,
criticando inclusive meu próprio papel e minhas práticas nessa estrutura.
Ao final, o objetivo do trabalho consiste em reconhecer as estruturas de opressões
mantidas pelo processo de colonização do Sul global e como elas devem atravessar o debate
ecofeministas da mesma forma que o ecofeminismo deve informar possibilidades reflexivas
para um debate e ação; para uma práxis ecofeminista. Além disso, objetivamos analisar a
educação intercultural crítica, a partir de atravessamentos ecofeministas, que refute práticas
ecocidas, especistas10, machistas e racistas, rastros da colonização ainda presentes.
Para melhor compreensão e discussão do trabalho, apresentamos uma pequena lista de
conceitos e termos frequentemente utilizados pela literatura feminista e ecofeminista aqui
referenciada, com a tentativa de delimitar melhor o enfoque dessa perspectiva.

10
Especismo consiste em discriminação mantida por um sistema, no qual, se coloca a espécie humana como
superior a diferentes tipos de espécies animais.
15

CAPÍTULO 1
ECOFEMINISMOS PLURAIS
16

1 ECOFEMINISMOS PLURAIS

O primeiro capítulo consiste em mostrar como se desenvolveu a crítica ecofeminista, a


partir dos aspectos históricos que impulsionaram a construção de suas abordagens e seus
enfoques. A intenção não é construir uma cronologia, já que entendemos que a teoria
ecofeminista foi construída em diferentes pontos do planeta. Nesse sentido, a ideia central é a
de destacar as circunstâncias que possibilitaram que a crítica ecofeminista fosse desenvolvida.
Para que isso ocorra, o trabalho vai apresentar algumas das pluralidades e das divergências
desenvolvidas no interior das correntes ecofeministas a seguir detalhadas.

1.1 A crítica ecofeminista

Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tomou


conhecimento de um surto de pneumonia de causa desconhecida que estava atingindo
moradores da cidade de Wuhan, na China. Logo, foi identificado que o causador da doença se
tratava de uma nova cepa do coronavírus − família de vírus responsável por doenças com
síndromes respiratórias agudas graves SARS e MERS –, nomeada Covid-2019. A OMS
declarou que, dentre as medidas de prevenção, duas eram imprescindíveis: higienizar as mãos
e evitar as aglomerações sociais – o que resultou, em razão desta última, na medida de
distanciamento social, ou seja, o isolamento das pessoas em suas casas. Diante da pandemia
ocasionada pela Covid-19, muito se questionou sobre o atual modelo econômico mundial, que
ficou evidenciado a partir da necessidade de isolamento social. Ficou mais evidente a relação
que a sociedade possui com a natureza e também com diversas atividades, como a arte, a
educação, a ciência, mas, principalmente, com a alimentação e a saúde. Ou seja, demonstrou-
se, com isso, a interdependência entre ofícios, países, continentes, também denunciando um
sistema de violências históricas e expondo, de forma cruel, as faltas de direitos já tão presentes
na rotina do brasileiro que vive em situações de extrema vulnerabilidade.
A partir do isolamento social, reafirmaram-se a necessidade de se pensar a relação dos
seres humanos com o meio ambiente e a possibilidade de se pensar um mundo diferente deste,
um mundo mais interligado entre si. Portanto, o ecofeminismo enumera dilemas, levanta
problemas que nos colocam diante de uma questão: de fato, esse outro mundo é possível? Será
que a teoria ecofeminista pode ser um caminho para diagnosticar as relações de submissão ainda
tão presentes na sociedade e propor a construção de uma trilha ou, ao menos, como fala Alicia
Puleo (2019), um jardim-horta que nos direcione para essa possibilidade de mundo?
17

Apesar de a preocupação ambiental ser algo muito recente em debates acadêmicos


ocidentais, para muitos povos originários ou setores sociais, essa discussão é inseparável da sua
própria vida. Isso se percebe na luta indígena, pela demarcação de suas terras, nas
reinvindicações do Movimento Sem-Terra (MST) e nos movimentos campesinos, dentre tantos
outros. De acordo com Emma Siliprandi (2015), a existência de movimentos de mulheres e de
movimentos pela luta ecológica foi fortemente percebida na década de 1960, havendo relatos
desses movimentos na Europa e nos Estados Unidos, que questionavam os modelos políticos e
econômicos, as instituições sociais e os valores pregados na época. Ou seja, esses movimentos
questionam não só o uso de produtos ou da empresa, mas problematizam toda a forma de pensar
e viver daquele projeto. Portanto, denunciavam o imperialismo, as guerras, as violências
sexistas, racistas, especistas e a relação que as pessoas têm com a natureza. Nesse contexto de
movimentos críticos, surge a perspectiva ecofeminista.
Não se pode afirmar, contudo, que toda e qualquer obra que estabeleça uma relação
íntima entre esses âmbitos seja ecofeminista. Porém, pode-se mostrar a relevância e a influência
delas para a formulação dessas perspectivas, no sentido de que auxiliam na formulação de
percepções críticas, cujo enfoque se articula com os ideais ecofeministas. Cabe destacar que
um dos primeiros contatos tecidos entre a questão ambiental e a saúde, tanto relacionada à saúde
da espécie humana quanto em relação a outras espécies de seres vivos, consta na obra da bióloga
estadunidense Rachel Carson, “Primavera Silenciosa”, publicada em 1962. Nessa obra, Carson
(1962) demostrou que o uso dos inseticidas agrícolas estava relacionado ao desaparecimento
dos pássaros e também ao aumento de doenças cancerígenas nos EUA, nas décadas de 1940 e
1950. A autora mostra que a ideia de controle do homem com a natureza provoca mudança em
seu ciclo, causando uma destruição sem fim em todas as formas de vida. Assim, a contaminação
do mundo por pesticidas comprometia a vida de pássaros, minhocas, peixes e de pessoas
também. Esse questionamento acerca da pulverização provocou discussões em torno desses
produtos e, consequentemente, da produção agrícola. Para além do trabalho de Carson, a
questão entre ecologia e feminismo foi abordada também por outras autoras a partir dos direitos
reprodutivos femininos.
No que se refere à preocupação sobre o aumento da população e os efeitos disso para a
ecologia, surge o texto de Françoise D’Eaubonne, em 1974, “Le féminisme ou la mort”11. Pelo

11
De acordo com Puleo, na perspectiva de D’Eaubonne, o controle da natalidade era apenas parte da equação,
sendo a outra o modelo econômico produtivista excludente, dominado pelos homens, que orientava os países
industrializados (tanto capitalistas quanto socialistas) e que estava levando a humanidade ao colapso, numa
clara relação entre superpopulação, devastação da natureza e dominação masculina (Puleo, 2004, p. 23).
18

que se sabe até o momento, o termo “ecofeminista” foi utilizado pela primeira vez pela francesa
Françoise d’Eaubonne, em 1974, na sua obra “O feminismo ou a morte”. Na época, as
opressões ainda não estavam sendo relacionadas com a sexualização da natureza, mas, sim, com
a naturalização das mulheres. A principal reivindicação da teórica era em relação ao controle
de natalidade, relacionado à superpopulação de pessoas com a ameaça ao meio ambiente,
denunciando que toda a origem dessa reprodução era fruto da violência patriarcal ao corpo das
mulheres.12 Nessa obra, D’Eaubonne afirma que

[...] esse feminismo é toda a humanidade em crise, e é a transformação da espécie; é


realmente o mundo que mudará sua base. E muito mais: não há escolha; se o mundo
recusa esta mutação que superará qualquer revolução, assim como a revolução foi
além do espírito da reforma, está condenado à morte. E a morte no menor tempo
possível. Não só pela destruição do meio ambiente, mas pela superpopulação cujo
processo passa diretamente pela gestão de nossos corpos confiados ao Sistema
Masculino. 13 (D’EAUBONNE, 1974, p. 10, tradução nossa).

Os estudos de Françoise d’Eaubonne mostraram que era insustentável a forma com que
a população seguia crescendo e que isso causaria efeito ecológico para todas as vidas. A
pensadora também mostrou com seu trabalho que a dominação ao controle do corpo feminino
resultou nesse problema de superpopulação, já que a maternidade foi construída como
imposição social, como ferramenta de controle desse corpo. Por isso, o ecofeminismo, nesse
primeiro momento, reforça a pauta feminista da livre e consciente decisão sobre a reprodução
biológica.
A grande crítica apresentada pelo ecofeminismo se percebe a partir da relação que se
estabeleceu entre as mulheres e a natureza. Muito dessa associação ocorre por conta do seu

12
De acordo com Puleo, o laço estabelecido por D’Eaubonne entre feminismo e ecologia se apoia em uma
hipótese sobre o passado da humanidade. Nos albores de nossa espécie, não estava clara a conexão entre
gestação e união sexual. O descobrimento da função paterna na procriação fez com que a mulher ocupasse o
lugar de possuir e fecundar. Fertilidade e fecundidade se haveriam convertido, assim, em capacidades
manejadas por homens, surgindo as sociedades patriarcais, que excluem as mulheres do poder de decisão. O
que a autora francesa acreditava é que, antes dessas sociedades, havia formas de organização que colocavam
as mulheres no centro de sua organização equitativa. Sua tese é a de que o desequilíbrio entre homens e
mulheres gerou a crise ecológica. O homem tem mantido esse patriarcado guerreiro de controle,
superpopulação e esgotamentos dos recursos. A mentalidade falocêntrica está na base do ciclo de consumo e
produção de objetos supérfluos e efêmeros, incentivando mais o trabalho e o consumo, impulsionados pela
indústria, deixando as mulheres alheias ao corpo e ao tempo. Para ela, a conquista do controle dos seus corpos
seria o começo de um caminho não consumista, ecológico e feminista. Por isso, ela fala: o feminismo ou a
morte. (PULEO, 2013).
13
“Mais que le féminisme, c'est l'humanité tout entière en crise, et c'est la mue de l'espèce; c'est véritablement le
monde qui va changer de base. Et beaucoup plus encore: il ne reste plus le choix; si le monde refuse cette
mutation qui dépassera toute révolution comme la révolution a dépassé l'esprit de réforme, il est condamné à
mort. Et à une mort à la plus brève échéance. Non seulement par la destruction de l'environnement, mais par
la surpopulation dont le processus passe directement par la gestion de nos corps confiée au Système Mâle.”
(D’EAUBONNE, 1974, p. 10).
19

corpo, do seu papel social ligado à maternidade e, como consequência, do psicológico, por
causa desses papéis de gênero que lhes foram e continuam sendo atribuídos/impostos. Portanto,
o ecofeminismo pode ser compreendido como uma teoria que se ocupa em estudar as opressões
às mulheres e outros grupos sociais vinculados com a dominação da natureza, buscando práticas
que denunciem essas opressões.
Para além da teoria, o ecofeminismo se reconfigura a partir de práticas políticas. A base
da construção delas e de sua formulação teórica é questionar os problemas ambientais e a
relação do ser humano com outras vidas e com a esfera ambiental. Outra questão apontada pela
teoria está relacionada à racionalidade predominante no Ocidente, marcada por características
que estimulam a competição e a agressividade.
Sendo assim, a ecofeminista Marti Kheel traz a definição como

[...] um campo teórico de estudo quanto um movimento social que surgiu em resposta
à degradação crescente do mundo natural. [...] O ecofeminismo refere-se à ideia de
que a desvalorização das mulheres e da natureza tem andado de mãos dadas na
sociedade ocidental patriarcal. Essa desvalorização se reforça mutuamente, por
exemplo, as mulheres são associadas com a natureza e por isso são desvalorizadas; e
a natureza é vista como feminina e por isso é também desvalorizada. A desvalorização
das mulheres é também comumente vista como conectada com outras formas de
opressão, tais quais racismo, classismo, heterossexismo e especismo. (KHEEL, 2019,
p. 32).

A partir da definição acima exposta, objetivamos compreender os argumentos, as


construções e as conexões estabelecidas pelas teóricas ecofeministas − estabelecendo diálogos
para identificar a relação entre ecologia e feminismo no Brasil e o modo como as violências e
as desigualdades são intensificadas sob esse mesmo discurso. Para isso, seguimos os próximos
passos em um diálogo estreito entre ecologia e feminismo, costurando e tecendo suas roupagens
desde o Sul global.
20

1.2 Por que pensar em ecologia e feminismo juntos?

AS MUDAS ROMPERAM O SILÊNCIO

Havia um silêncio, sepulcral


sobre dezoito mil hectares roubados
dos povos tupi-guarani
sobre dez mil famílias quilombolas expulsas dos seus
territórios
sobre milhões de litros de herbicidas derramados nas
plantações
...
De repente milhares de mulheres se juntaram e
destruíram mudas a opressão e a mentira

As mudas gritaram de repente

E não mais que de repente


O riso da burguesia fez-espanto
Tornou-se esgar, desconcerto
...
De repente, não mais que de repente milhares de
mulheres destruíram o silêncio
Naquele dia
Nas terras da Aracruz,
As mulheres da via Campesina foram o nosso gesto
Foram a nossa fala
(Via Campesina. O latifúndio dos Eucaliptos. Rio
Grande do Sul: Pontocom, 2006).

O poema acima retrata uma ação política organizada por duas mil mulheres camponesas
gaúchas no dia 8 de março de 2006, contra a empresa Aracruz Celulose14, responsável pela
produção de eucalipto na região gaúcha, na cidade de Barra de Ribeiro. O ato teve como
principal objetivo denunciar os grandes latifúndios de monocultura, mostrando também os
riscos desse tipo de produção para a população e para o meio ambiente, dando maior
visibilidade aos debates sobre os Desertos Verdes15, responsáveis pelo controle de grande parte
de hectares de terras para a produção de celulose e papel.

14
“A empresa Aracruz é um multinacional, que tem sociedade com dois grandes grupos internacionais: Grupo
Lorentzen e Banco Safra, além dos grupos Votorantim e BNDES. No ano em que foi escrita a cartilha da Via
Campesina, já contava com mais de 247 mil hectares de terra, utilizados na plantação de eucaliptos, nos
territórios que abarcam os estados da Bahia, do Espírito Santo, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul.” (VIA
CAMPESINA, 2006, p. 14-15).
15
Os desertos verdes são monoculturas de produções agrícolas – no caso acima citado, eucalipto e pinus. Essas
produções fazem parte do projeto de desenvolvimento dos anos 1950, denominado Revolução Verde, que
almejava atender a produção em alta escala, seguindo um modelo tecnocientífico da época. No Brasil,
destacamos a produção de soja, café, agropecuária, cana de açúcar, mas vindo a ser também de arroz, algodão,
frutas, milho e monocultivo de espécies de seres vivos. O eucalipto, em especial, é uma espécie trazida de fora
do país, mas que se adaptou ao clima e ao solo brasileiro. Porém, o monocultivo da espécie em uma mesma
região provoca um excessivo consumo de água, algo em torno de 30 litros de água por dia para um único pé
de eucalipto. Como resultado, falta água para outras espécies de seres vivos, provocando, inclusive, a estiagem
21

Essas mulheres já denunciavam os efeitos dessa globalização: a seca no sul do estado,


que possui a maior área de produção de eucalipto; as alterações bruscas de temperatura; o
desaparecimento do bioma Pampa, levando à perda de grande parte da biodiversidade; a
diminuição da produção de alimentos; o ressecamento de fontes hídricas; a poluição e a
diminuição do fluxo de água nos rios; e o enfraquecimento do solo, além do racionamento de
água na região. “Além disso, havia os efeitos nocivos na saúde das pessoas, como doenças de
pele e alergias, provocadas pelo excesso de agrotóxicos para o cultivo do eucalipto”
(BARCELLOS; FERREIRA, 2007, p. 8-9).
Desse modo, segundo Siliprandi (2015), a ação dessas mulheres foi desacreditada por
movimentos da época, pois se, por um lado, não se encaixava em pautas clássicas do movimento
feminista, por outro lado, o protagonismo de mulheres camponesas tampouco era reconhecido
como legítimo, além de elas não serem percebidas como sujeitas responsáveis pelo ato.
No entanto, se as mudas foram capazes de romper o silêncio, talvez se deva pensar,
juntamente a elas, em formas de se reorganizar social e politicamente diante dos problemas
ambientais. E por que pensar a partir dessas lutas? Quando mulheres camponesas, rurais,
indígenas, quilombolas, da floresta se organizam, elas chamam atenção para várias questões,
como: as condições de trabalho, a saúde, a representação política, a igualdade de direitos, a
biodiversidade e a natureza. Além disso, elas demonstram que essas questões não podem ser
pensadas dissociadas umas das outras. Entendemos que essa seria razão suficiente para afirmar
o motivo pelo qual enfatizaremos o protagonismo dessas mulheres na luta que converge
feminismo e ecologia.16

da região. Outro ponto negativo é que, mesmo na época de chuvas, essa água não é absorvida pelo solo. Além
disso, interfere na diversidade biológica da região, tanto para plantas quanto para outras espécies de animais,
que não resistem. Para que a produção de eucalipto fosse satisfatória ao mercado, a tecnologia foi utilizada
aqui, tanto no melhoramento genético, quanto na clonagem, para uniformizar a produção e consolidar os lucros
para atender às indústrias de produção de papel e celulose. Como exemplo citado na cartilha da Via Campesina
sobre o Latifúndio dos Eucaliptos, no Espírito Santo já secaram mais de 130 riachos com a produção de
eucalipto (2006, p. 17). Como consequência, o projeto de desertificação verde, além de ocasionar diversos
outros crimes ambientais, que possuem relação direta com a destruição de comunidades locais, ainda é
responsável pela concentração de renda, pela injustiça social e pelo êxodo rural.
16
O trabalho de Carme Valls-LLOBET (2018) expõe que os últimos impactos ambientais do século XXI têm
criado alterações no ecossistema global, alterando a flora e a fauna da terra, dos mares e dos rios. Segundo a
autora, o resultado dessa contaminação tem seu maior efeito nas mulheres, causando problemas diretamente
associados ao prejuízo na saúde integral, tais como câncer, alteração na tireoide, obesidade, diabetes, parkison,
alzhaimer, fribolmagia, sensibilidade química múltipla, dentre outras patologias que, para Valls-LLOBET
estão diretamente associadas às causas ambientais. A autora observa que essa relação se dá em função do
contato com inúmeras substâncias químicas que possuem efeitos, inclusive, multigeracionais, com uma
repercussão por longas gerações, principalmente nas mulheres. Valls-LLOBET observa que, antes de 1990, a
maioria dos estudos científicos não incluíam mulheres nesses tipos de investigações, ou mesmo os resultados
traziam o recorte de gêneros. O resultado desses anos todos em que; a mulher foi apagada dos estudos em saúde
pública teria repercutido tanto péssimos diagnósticos, inclusive de níveis psicológicos ou psicossomáticos, bem
como a impossibilidade de identificar a necessidade de um olhar mais direcionado à relação do corpo com um
22

Em uma estrutura patriarcal, são as mulheres que serão obrigadas a sobreviver em


péssimas condições, dobrando seus serviços tanto no cuidado do lar e dos filhos e, em alguns
casos, lidando com ameaças de violência doméstica. Por último, dentro desse sistema, as
mulheres sempre foram delegadas ao cuidado, seja de outras pessoas, seja de animais, seja da
terra, o que faz naturalizar tais práticas como pertencentes ao seu sexo/gênero. Mesmo com
grupos de mulheres trabalhando pelo bem comum, elas têm sido subjugadas a um patriarcado
capitalista, que se preocupa em conquistar e objetificar as coisas sob a lógica do mercado.
Assim argumenta Siliprandi (2015),

As explicações para esses fenômenos teriam que ser buscadas no caráter patriarcal da
sociedade em que as mulheres estavam inseridas, comentado anteriormente. No
contexto da agricultura familiar (agroecológica ou não), o poder sobre as decisões que
afetam a família enquanto unidade de produção e também enquanto núcleo de
convivência é outorgado aos homens, cabendo às mulheres um lugar subordinado. As
atividades consideradas “produtivas” (que geram renda) valem mais que as
“reprodutivas” (de manutenção das pessoas), sendo as primeiras identificadas com os
homens e as segundas, com as mulheres. Homens e mulheres, na verdade, transitam
entre essas atividades sem se restringirem obrigatoriamente a apenas um dos campos; e
nem se “comportam” necessariamente de acordo com esses modelos. Entretanto,
mesmo que a atividade venha a ser realizada por pessoas do outro sexo, a forma de
valorização do que é masculino ou feminino permanece; assim como, mesmo que o
comportamento das pessoas não corresponda ao modelo esperado, é esse conjunto de
representações que serve como referência. (SILIPRANDI, 2015, p. 107).

Com isso, podemos também pensar: qual a relação existente entre as opressões sexistas
e ecocidas? Será que a proposta de relacionar essas opressões naturaliza mais ainda as mulheres
ou pode nos oferecer ferramentas teóricas para nos compreender como parte vitimada desse
processo? A resposta pode ser aventada ao se questionar quem assume o lugar de privilégio e
repercute os paradigmas coloniais na sociedade.

1.2.1 Colonização, branquitude e feminização da pobreza

ambiente insalubre. Para a ecofeminista queer Greta Gaard (2011), é bom estamos atentas que, embora
estejamos falando de mulheres numa perspectiva biológica, essa estrutura também consiste como um reforço
a outros dualismos, como da erotofobia, descrita por ela, como práticas sexuais-afetivas não reprodutivas que
são entendidas como desvio moral ou perversão, e das práticas homoafetivas também. Como consequência,
desvaloriza a natureza, as mulheres, os animais e a sexualidade. No qual, deve-se combater das mesmas formas
as naturalizações, aquilo que também se colocou pelos paradigmas ocidentais, como algo visto como contrário
à natureza., Ambas percepções, para Gaard, contribuem com as estruturas opressoras.
23

A colonização ainda se manifesta no comportamento e nos padrões de uma branquitude


do Sul global17, que reproduz em suas práticas a lógica do mercado e de opressões que mantém
alguns sujeitos brancos em um lugar de privilégios diante de diferentes povos ou grupos sociais
racializados. De acordo com Lia Schucman (2012, p. 23), “a branquitude é entendida como uma
posição em que sujeitos que ocupam esse lugar foram sistematicamente privilegiados no que
diz respeito ao acesso aos recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo
colonialismo e pelo imperialismo e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade”.
Dessa forma, ser branco é assumir lugares de privilégios raciais, simbólicos e materiais.
De acordo com a psicóloga e ativista sobre o tema Maria Aparecida Silva Bento18, há
no Brasil um acordo entre as pessoas brancas de reconhecerem as desigualdades sociais, ao
passo que não se reconhecem como responsáveis pela manutenção delas. Esse processo a autora
denomina de pacto narcísico. Inclusive, deve-se destacar que esse discurso pode ser (e é) muitas
vezes reforçado em algumas teorias feministas, quando as violências são compreendidas única
e exclusivamente a partir de mulheres brancas que universalizam suas experiências e narrativas.
Bento (2002) aponta esse pacto como sendo um dos principais problemas da branquitude. Essa
questão merece destaque em nossa discussão e será abordada para mostrar que a questão
ecológica é uma questão a ser abordada sob a égide da branquitude.
Portanto, nesse percurso de evidenciar as relações entre feminismo e ecologia,
procuramos fazê-lo a partir de um olhar crítico sobre a branquitude e a sua
participação/determinação na distribuição das injustiças ambientais. Mesmo as mulheres ainda
presas a essa lógica que nos anula diante das nossas capacidades e não nos permite desenvolver
habilidades, é preciso pensar os feminismos a partir de diferentes narrativas, para que o processo

17
“As questões referentes ao desenvolvimento científico e tecnológico, bem como suas implicações (positivas
ou negativas), serão entendidas como parte de contextos geopolíticos e bioeconômicos mais amplos que
tentamos explorar neste artigo a partir da relação assimétrica entre Norte e Sul, considerando o Brasil e a
América Latina como parte desse Sul global. A divisão entre Norte e Sul é entendida em termos de uma
geopolítica do poder econômico e uma geopolítica específica do conhecimento e da tecnociência, ambas em
constante interação. Esse entendimento parte de referenciais da colonialidade do saber/poder como
contribuições teóricas que permitem um enfrentamento das desigualdades históricas e contemporâneas na
América Latina. O Sul, portanto, é entendido de forma não estritamente geográfica, mas em termos de
estabelecer uma crítica situada que considera aspectos históricos, étnicos, geográficos, como metáfora para as
nações, os povos, as comunidades que são colocados na periferia do acesso aos recursos e à produção de
conhecimentos. Quando nos remetemos ao Sul, estamos dialogando principalmente com o grupo
Modernidade/Colonialidade e a proposta de “giro descolonial” a partir da América Latina (ESCOBAR, 2003;
MIGNOLO, 2015): uma proposta de construção de alteridade do eixo sul, a partir do Oriente e da América
Latina (GROSFOGUEL, 2008). Também estamos promovendo esse entendimento a partir da noção de
“epistemologias do Sul” (SANTOS, 2009) e da luta e da resistência de “povos e mulheres do Sul” (SHIVA,
2001, 2007). (LIMA; FELTRIN; COSTA, p. 7, 2019).
18
Para uma melhor compreensão sobre o conceito de branquitude e o de pacto narcísico da branquitude,
sugerimos a leitura da obra organizada por Maria Aparecida Bento: Carone, I.; Bento, M. A. S. (Org.). (2002).
Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 189 p.
24

de liberdade e emancipação não seja realizado de forma individual, e, sim, coletiva. As raízes
das violências foram universalizadas, mas é preciso descobrir como as opressões são exercidas
dentro de uma esfera local, para que, assim, sejam pensadas formas de combatê-las.
A intenção, no entanto, não é reafirmar estereótipos que foram sendo construídos ao
longo dos tempos sobre as mulheres, associando-as às atividades do cuidado e reproduzindo a
ideia de uma responsabilidade exclusiva delas. Inclusive, essa ideia de responsabilidade
evidenciada por algumas lideranças políticas e pela mídia nas últimas décadas deve ser
combatida, sob o risco de estar endossando outras práticas de opressões que naturalizam as
violências sexistas. A proposta aqui é a de reafirmar que são os padrões sociais atribuídos à
masculinidade e à feminilidade que têm reforçado a violência e as opressões de gênero. Tais
padrões ameaçam, inclusive, toda a esfera socioambiental.
Dito isso, destacaremos que, comumente, os sujeitos que estão vitimados por essas
práticas que criam risco socioambiental são, principalmente, as mulheres e as crianças, a
população rural mais empobrecida, a população negra e os povos indígenas. Por isso, é possível
afirmar que a devastação da natureza escolhe a quem atingir. Os grupos sociais privilegiados
que não estão nesses espaços serão menos atingidos, ao passo que são, na sua grande maioria,
os grandes responsáveis por essas consequências.
De acordo com Siliprandi (2015):

A “feminização” da pobreza, a segregação ocupacional, a pequena presença em


espaços de poder, a dupla jornada de trabalho, o tráfico de mulheres, o
recrudescimento da violência de gênero mesmo em países onde as condições legais e
econômicas são relativamente mais igualitárias são apenas algumas das evidências de
como as iniquidades vividas pelas mulheres estão vinculadas a padrões sociais e
culturais sexistas ainda não superados, profundamente arraigados e constituintes das
subjetividades. (SILIPRANDI, 2015, p. 45).

Desde o período das navegações, marcada pelo processo de exploração e colonização


das Américas, há um processo de desumanização de tudo aquilo que não representava a ideia
de civilidade construída pela Europa. Portanto, os estigmas e as dicotomias serão construídos
com a ideia de associar a América a um lugar de atraso, primitivo, que deve ser civilizado. Esses
estigmas legitimaram as práticas de violência aos povos originários dessa terra e construíram
um imaginário daqui como um lugar a ser explorado ou catequizado. E essa colonização refletiu
também na ruptura dos seres humanos com a natureza, na invisibilidade e na desvalorização de
atividades sociais que não representam essa ideia de “desenvolvimento”, sendo isso impresso
nas violências de gênero e no racismo.
25

No Brasil, em grande parte, os graves problemas ambientais começam com a devastação


das terras para cultivo de monoculturas ou mineração, desapropriando gente, concentrando
renda e terras, poluindo solos e águas e destruindo a biodiversidade da região. Desse modo,
ruralistas e/ou empresas multinacionais se apropriam da natureza, em uma relação de posse e
de mercantilização, objetivando anular e apagar os trabalhos de quem vive ao redor. Empresas
colocadas acima de outros interesses básicos autorizam e ampliam as formas de violência e a
invisibilidade das atividades do cuidado e da economia do sustento, assim como contribuem
com a exclusão das mulheres em atividades públicas e políticas.
Podemos afirmar que grande parte das éticas ambientalistas ainda mantém um caráter
antropocêntrico e androcêntrico em seus argumentos reproduzidos a partir dos dualismos que
são mantidos socialmente, como cultura/natureza, mente/corpo, razão/emoção. Esses dualismos
são construídos de forma hierárquica (atribuindo superioridades e inferioridades), ou seja, não
só destacando um dualismo, mas associando cada uma das partes ao universo do masculino
(superior, valorizado) e ao do feminino (inferior, desvalorizado), em oposição. Assim, os
teóricos responsáveis pelo paradigma antropocêntrico – androcentrismo ambiental – acabam
por sustentar uma ética ambiental que reproduz esses dualismos e não dá conta de compreender
as origens das explorações sofridas pelas mulheres, pelas crianças, pelos animais não
humanizados e pelos grupos sociais vulnerabilizados na sociedade. Compreender as opressões
constitui o principal desafio ecofeminista para sair de uma ética ocidental “heroica” e
possibilitar uma ética que reintegre os dualismos que impossibilitaram que se pensasse de forma
integrada19.

1.3 As diferentes correntes

O ecofeminismo faz uma junção reflexiva entre o ecologismo e o feminismo. Com a


ecologia, retoma a consciência sobre os limites físicos do planeta e da dependência dos seres

19
A ecofeminista estadunidense Marti Kheel desenvolve uma metáfora acerca das éticas ocidentais, para
desenvolver argumentos críticos acerca das éticas ambientalistas e da libertação animal. A ética heroica, termo
utilizado pela autora para nomear as éticas ocidentais, seria proveniente de sociedades machistas, mantidas por
rituais de controle e violência autorizados contra a natureza, por meio das atividades de caça esportiva, rodeios,
entre outros. Com relação às mulheres, na sociedade contemporânea, pode-se ver isso pelas práticas de
pornografia e estupro. Portanto, ainda se mantêm sobre o impulso de proteger a “donzela”, a partir de valores
apontados por esses próprios teóricos éticos e hierarquizados por eles. De acordo com Mendonça (2010, p. 4),
Kheel fundamenta sua crítica às éticas ambientais e ao liberalismo animal, afirmando que seus argumentos
sempre foram construídos em uma tentativa de restabelecer racionalmente essas hierarquias de valores. Porém,
ela acredita que regras vindas de um pensamento que separa a razão da emoção e desconsidera que o campo
da ética ambiental possui um apelo muito forte emocional não se mantêm, porque a relação com a natureza é
construída a partir de uma conexão de afeto, de amor.
26

humanos aos recursos naturais, assim como dos efeitos e das consequências das ações humanas
para o mundo. Com o feminismo, tenta mostrar a visão de mundo patriarcal em que nos
encontramos, destacando as formas de opressão e exploração vividas principalmente pelas
mulheres.
A preocupação com a natureza na sociedade ocidental vai surgir nos meados da década
de 1960, quando o feminismo, como teoria, já estava se fortalecendo institucionalmente.
Podemos elencar alguns acontecimentos que provocaram o debate e a preocupação: no ano de
1956, no Japão, descobriu-se que uma indústria lançava dejetos contendo mercúrio na baía de
Minamata desde a década de 1930. Somente vinte anos depois, começaram a surgir sintomas
de contaminação: peixes, moluscos e aves morriam. Em 1956 foi registrado o primeiro caso de
contaminação humana: uma criança com danos cerebrais. Muitos outros casos foram surgindo.
Moradores morreram devido às altas concentrações de mercúrio; a moléstia ficou conhecida
como “doença de Minamata”. Em 2 de dezembro de 1984, na cidade de Bhopal, Índia, um
vazamento de 40 toneladas do gás isocianato de metila causou um dos mais graves acidentes
industriais da história. Nas primeiras 72 horas, mais de oito mil pessoas morreram. Muitos
outros foram a óbito nos meses seguintes. Milhares de gatos mortos, cães, vacas e aves estavam
espalhados pela cidade. O acidente ocorreu devido ao vazamento de gás da fábrica da Union
Carbide. Em 26 de abril de 1986, um acidente na Usina Nuclear de Chernobyl, localizada na
Ucrânia, antiga União Soviética, provocou a explosão do reator nuclear, lançando na atmosfera
grande volume de radiação. Milhares de pessoas morreram de doenças relacionadas com o
acidente. No dia 24 de março de 1989, o navio petroleiro Exxon Valdez naufragou no estreito
de Prince William, no Alasca, causando o derramamento de mais de 40 milhões de litros de
petróleo. O vazamento, o mais grave da história dos EUA, atingiu uma área de,
aproximadamente, 28.000 quilômetros quadrados de oceano e mais de 2.000 quilômetros da
costa do Alasca, levando à morte milhares de animais, como aves, peixes, focas, baleias e
lontras marinhas. Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, da
Samarco, em Mariana (MG), provocou a liberação de uma onda de lama de mais de dez metros
de altura, contendo 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Em Minas Gerais, na última
década, ocorreram desastres ambientais com mineração em Nova Lima (2001), Miraí (2007) e
Itabirito (2014). Também houve o rompimento da Barragem da Vale, em Brumadinho, em
2019: a barragem de rejeitos de minério de ferro da Mina do Feijão rompeu no início da tarde
do dia 25 de janeiro, uma sexta-feira, deixando mais de 232 vítimas.
Mas, ao construir essa junção de ecologia com o feminismo em meio aos “desastres
ecológicos”, alguns grupos de mulheres não só estarão à frente de algumas dessas denúncias
27

relacionadas ao meio ambiente, como também são as que mais sofrerão com essas
consequências decorrentes dos crimes contra natureza. Todo esse processo é fruto dessas
opressões estruturais do patriarcado, que introduz as mulheres na sociedade como a responsável
por todo o cuidado, em vez de esse ser um processo a ser compartilhado pelos seres humanos
independentemente do sexo/gênero.
As éticas ocidentais ainda são bastante influenciadas por uma compreensão de
moralidade restrita à comunidade humana. Para a ecofeminista estadunidense Marti Kheel
(2019), mesmo que alguns teóricos ambientalistas já falem acerca da empatia, ainda assim, seus
argumentos são abstratos e desconsideram uma preocupação moral sobre os animais, não
ampliando o debate em relação à alimentação vegetariana e ao veganismo. Ou seja, se
constituíram em uma perspectiva androcêntrica a partir de valores e atitudes que foram
responsáveis pela organização de uma lógica hierárquica de dominação, tão presente e tão
atuante na sociedade, e que acabou sendo naturalizada. Para Marti Kheel,
[...] alguns teóricos chegam tão longe a ponto de tolerar a caça e os
experimentos laboratoriais, enquanto outros, como o renomado teórico
ambiental Holmes Rolston (2006), chegam a afirmar que a preocupação animal
é antiecológica e indicativa de falta de maturidade moral. Também descobri que
nenhuma das principais organizações ambientais nos Estados Unidos
condenava a caça e nenhuma defendia o vegetarianismo, tampouco o
veganismo, e elas geralmente citavam os experimentos com animais ao pedir a
eliminação do uso de determinados químicos ou pesticidas no meio ambiente.
Estava começando a parecer que o movimento ambientalista não oferecia um
lugar hospitaleiro para aqueles que abraçavam a empatia e o cuidado aos
animais”. (2019, p. 31).

As teorias ecofeministas20 se firmam a partir da prática e de narrativas de vida, já que


se moldam com base nas experiências de mulheres e nas suas lutas em prol da natureza e da
ecologia, ao mesmo tempo em que se firmam como um projeto a ser consolidado pelo intuito
de transformar a realidade. De acordo com Sanchez (2014), o ecofeminismo tem se alinhado a
uma atitude de crítica e de suspeita diante da ciência e da tecnologia. Assim, tanto as
ecofeministas clássicas como as do Sul, que serão apresentadas no próximo ponto deste
capítulo, têm denunciado a postura reducionista da ciência e da tecnologia e as consequências
do seu uso irresponsável para a saúde humana e para a natureza – de forma geral, para a
sobrevivência das diferentes espécies e formas de vida no planeta.
A primeira visão que guia o mundo ocidental parte do antropocentrismo, no qual o ser
humano é legitimado a ser o centro de toda a ordem e a organização do mundo, usando tudo à

20
Nesse primeiro momento, estaremos tratando o ecofeminismo no plural, compreendendo que a teoria possui
diferentes perspectivas que serão apresentadas mais à frente.
28

sua volta como meio e instrumento de seus interesses. Nesse sistema, a natureza e tudo que está
ligado a ela se separam do humano, de modo que ela passa a ser designada como algo a ser
utilizado e, se for necessário, destruído diante de alguma necessidade humana. Deixamos
evidente que essa concepção de antropocentrismo é restrita a um grupo de pessoas: uma classe
branca, cisheteronormativa, burguesa, que se limita a aprovar aquilo que exalta a cultura da
masculinidade em detrimento de qualquer outra forma de pensamento, cultura ou saberes
diferentes.
Ao delegar a esse homem branco um poder superior a todos os outros seres não
humanos, institucionalizar e fortalecer o conhecimento científico como ferramenta política,
econômica e cultural, cria-se um abismo entre a relação humana com toda a natureza. E isso
inclui a perda não só de autonomia do ser humano em relação ao seu próprio corpo e à sua
identidade, mas também no que tange às suas ferramentas de trabalho, com seu próprio
conhecimento e suas crenças, além de uma total alienação e de uma falta de empatia e
cooperação pelos seres e pela natureza. Ou seja, tudo o que está ao seu redor é subjugado a lhe
servir.
Dentre as vertentes ecofeministas, duas leituras têm se complementado para oferecer
alternativas: (1) uma no âmbito mais social, que faz essa crítica mais antropocêntrica acerca das
éticas tradicionais, tanto sobre gênero como sobre sua relação com o meio ambiente; e (2) outra
leitura mais espiritualista, a qual denuncia esses dualismos, como forma de enfrentamento, mas
sem deixar de fazer uma aproximação dos seres humanos com a natureza, mostrando toda a
interdependência existente entre os seres e o mundo natural. Seus discursos são construídos de
acordo com seus próprios contextos sociais. Portanto, mesmo quando se fazem discordantes,
são capazes de construir diálogos que as unem por uma alternativa moral.
Importante destacar que essas leituras ou compreensão acerca das teorias ecofeministas
de forma categorizada e nomeada foi realizada pela ecofeminista Alicia Puleo, em sua obra
Ecofeminismo para otro mundo es posible (2011). As abordagens ecofeministas categorizadas
facilitaram o processo de compreensão da autora dessa tese para entender as formas de
imbricações e conexões de violências denunciados pelas diferentes vozes ecofeministas,
evidenciando que a proposta de um projeto ecofeminista não precisa ser unívoca, mas sim
territorial.
A tendência social tem visto essa relação entre mulher e natureza como mais uma forma
de opressão do patriarcado para condicionar o uso das mulheres e dos seus trabalhos no campo
do privado, bem como o uso da natureza. A perspectiva mais espiritual, que se difere das
primeiras abordagens mais essencialistas, nos convida para o redescobrimento da
29

interdependência e as conexões entre toda a comunidade da vida, excluindo toda forma de


hierarquia e lógica de dominação. Essa integração contextualiza o histórico social do lugar que
cada teórica escreve, ou seja, essa estrutura espiritual questiona o monoteísmo patriarcal, para
mostrar uma espiritualidade conectada com os seres vivos. Por isso, a espiritualidade é no
sentido de entender e denunciar o abismo ocidental entre o espiritual e material, e não deve ser
compreendida em termos de uma espiritualidade que desconsidera os aspectos materiais e
históricos ou que está mais compreendida como algo sublime, mas sim, como algo mais
próximo da subsistência, como assim explica as pensadoras ecofeministas Maria Mies e
Vandana Shiva (2014)21.
O ecofeminismo não espiritualista universaliza práticas do cuidado historicamente
reconhecidas por serem femininas e que são ainda desvalorizadas por estarem associadas às
mulheres. Esse caminho trilhado por essa vertente nos permite encontrar uma saída para a
compreensão de trabalhos historicamente desvalorizados e que foram reforçados pelas lógicas
de dominação sexista.
Ambas as perspectivas ecofeministas reforçam o conceito de responsabilidade,
considerando as ações humanas diante de todos os seres vivos e da própria natureza, para se
responsabilizar e construir práticas ecológicas e justas para além das mulheres e dos seres não
humanos. Como modo de pensar, os ecofeminismos têm sido construídos de forma a ampliar a
representatividade dos agentes morais, compreendendo o processo a partir do contexto, dos
povos, e as condições de opressões, para destruí-las e requerer a justiça social pela natureza e
pelos outros seres vivos.
Como teoria ética, o ecofeminismo não se constitui como algo pronto, porque sempre
se propõe a refletir sobre suas próprias teorias – se reproduzem ou silenciam lógicas de
dominação, devendo, portanto, serem refutadas. Mas propõe como necessária ao debate a união
da ecologia com o feminismo, como forma de denúncia e ruptura com os valores binários, as
instituições sociais, os sistemas econômicos e a posição humana nesse ecossistema.

Os ecofeminismos, para além de suas diferenças, coincidem na ideia básica de que a


opressão das mulheres – e dos homens – e a superexploração da natureza são parte de
um mesmo fenômeno. Denunciam uma ordem cultural-simbolica – o patriarcado – e
uma ordem econômica – o capitalismo – que inviabilizam, desprezam, violentam e se
apropriam do trabalho de cuidado da vida humana com a superexploração dos corpos
e das mulheres, além de levar a natureza aos limites da desapropriação, mesmo que a
natureza constitua a base fundamental para o bem-estar e a sustentabilidade da vida
no planeta. (BELTRÁN, 2019, p. 115).

21
Ver mais em MIES, M.; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. 2014.
30

Os ecofeminismos acabam assumindo dois papéis: criticar o sexismo oculto dentro de


algumas tradições éticas e formular uma ética que renuncie a lógica de dominação
androcêntrica. Devemos entender a importância de se pensar em uma ética feminista que
abranja a ecologia e analisar quais as críticas que as ecofeministas trazem acerca das éticas
tradicionais e que caminhos são indicados por elas.

As grandes críticas feitas a esse ecofeminismo estavam relacionadas ao seu caráter


“essencialista” por defender que todas as mulheres seriam portadoras de certas
características, genericamente chamadas de “feminilidade” (propensão ao cuidado,
afetividade, docilidade, não agressividade), dadas pelo potencial de seus corpos de se
tornarem mães. Essas características biológicas teriam o poder de aproximá-las da
natureza e as tornariam mais cuidadosas com a manutenção de todas as formas de
vida, e, por consequência, também do meio natural. O essencialismo foi (e é) criticado
em dois sentidos: primeiro, porque uniformiza todos os possíveis comportamentos
humanos, masculinos e femininos, definindo-os previamente, de forma a-histórica; e,
em segundo lugar, porque, ao aceitar a existência e valorizar as características ditas
“femininas”, reforça justamente o que a cultura ocidental sempre utilizou como base
para a opressão das mulheres e sua segregação ao mundo privado. Seria como se as
mulheres aceitassem “livremente” o lugar subalterno que lhes foi designado pelo
patriarcado e passassem, em vez de denunciar o seu caráter injusto, a se orgulhar dele.
(SILIPRANDI, 2015, p. 69).

As ecofeministas que se consolidaram naquele momento, hoje denominado como


clássico ou essencialista, localizaram-se em um solo teórico de feministas muito reforçadoras
do sexo biológico. Isso influenciou a relação das mulheres com a natureza, por conta da sua
capacidade de parir, como expõe Alicia Puleo, em sua obra “Ecofeminismo para otro mundo
posible” (2013). Essa discussão acaba reforçando alguns argumentos do patriarcado, assim
como lugares ou estereótipos que a mulher deveria ou devesse ocupar na sociedade. Para as
ecofeministas da época, como Susan Griffin, Sherry Otner ou Mary Daly, a proposta acabou
reafirmando a necessidade de reverter a estrutura hierárquica entre natureza e cultura, na qual
a natureza e as emoções assumiam um lugar inferior na história do pensamento ocidental. Como
consequência, foram reforçadas e enaltecidas práticas que socialmente foram correspondidas às
mulheres e foram depreciadas outras que socialmente ficaram categorizadas aos homens.

As ecofeministas dessa corrente questionaram (de forma semelhante a outros


ecologistas) os valores judaico-cristãos que estavam na base do relacionamento das
culturas ocidentais com o meio natural (a ideia de que o mundo foi criado para ser
dominado pelos seres humanos) e buscaram uma religação entre humanidade e
natureza em deusas “corporificadas”, “encarnadas”, situadas neste planeta. Essas
crenças permitiram a construção de uma nova espiritualidade, em que a diversidade e
o conjunto dos componentes da natureza foram valorizados em uma visão não
utilitarista do mundo. Tiveram o mérito, também, de recriar uma mística de
“irmandade” feminina, de valorização e congraçamento de comunidades de mulheres,
resgatando a autoestima de um coletivo que vinha sendo constantemente
desvalorizado. (SILIPRANDI, 2015, p. 70).
31

Apesar de D’Eaubonne ter divulgado essa expressão, o ecofeminismo como conceito


expandiu para além do Norte global e do contexto eurocêntrico. Tentaremos trazer, neste
primeiro momento, a proposta teórica a partir do pensamento de duas autoras: Vandana Shiva
e Maria Mies, ecofeministas espirituais. Sob a perspectiva social e crítica, citaremos o
pensamento de Val Plumwood e Alicia Puleo. No segundo capítulo, propomo-nos a trazer
perspectivas brasileiras que estão pensando em um ecofeminismo a partir da teologia e a
construção de um ecofeminismo animalista, por intermédio de Daniela Rosendo, Fabio Oliveira
e Tânia Kuhnen.

1.3.1 Ecofeminismo espiritual

Nos anos 1980, as formulações ecofeministas se juntam às abordagens das teóricas do


Sul, que enfatizavam os problemas da globalização neoliberal: a miséria, a exclusão, as
explorações racistas e o imperialismo cultural. Pela primeira vez, inverte-se o conhecimento,
que ia do Norte para o Sul. E uma das principais contribuições ecofeministas é expressa na voz
da física indiana Vandana Shiva,22 inspirada pelo pensamento de não violência de Gandhi. Para
Shiva, o inimigo da natureza é o homem branco e o seu racionalismo reducionista que havia
desembocado no complexo tecnocientífico atual e na sua organização mercantil do mundo.
A base de sua denúncia parte da ciência moderna, do projeto patriarcal abordado por
Francis Bacon. Para Vandana Shiva, o reducionismo patriarcal é violento das seguintes
maneiras: contra as mulheres, os povos camponeses e os indígenas. E se reflete contra a
natureza, contra os benefícios do conhecimento, pois a ciência, aos moldes do mercado, reduz
e declara como irracionais os saberes tradicionais, privilegiando a especialização e a
fragmentação do modo de fazer e praticar esses saberes.
Para Shiva, a visão reducionista ocidental refletiu nesse abismo ontológico entre
natureza e seres humanos. Segundo ela, a crise ecológica é, em sua raiz, a morte do princípio
feminino, simbolicamente – muitas vezes, não somente em forma e símbolo, senão também no
processo cotidiano de viver e sobreviver.

22
Vandana Shiva é uma ecofeminista, física e ativista antiglobalização, nascida na Índia, no ano de 1952. Fez
seus estudos em Física na Universidade Panjab, em Chandigarh, formando-se em bacharela em Ciência em
1972, mestra em Ciência em 1974 e, posteriormente, doutora em Ciências Físicas. É uma ativista contra a
globalização e a favor dos direitos dos povos. Por isso, seus estudos são voltados para a questão dos alimentos
e da agricultura.
32

A teórica aponta esse reducionismo como fruto do processo de fragmentação do


conhecimento, que divide as áreas de conhecimento e que trata os saberes não especializados
como ignorância. Ela define, então, a epistemologia moderna do patriarcado ocidental como
tal, porque reduz a capacidade de os seres humanos conhecerem a natureza, a excluir tanto as
outras conhecedoras como a outras formas de saber, e porque tem reduzido a capacidade de
regeneração e renovação criativa da natureza ao manipulá-la, como se se tratasse de uma
matéria inerte e fragmentada. Essa forma de pensar reducionista nada mais é que uma forma
violenta para a natureza e as mulheres, porque subjuga suas capacidades e seus potenciais. De
acordo com Shiva (2014):

As metáforas mecanicistas do reducionismo reconstruíram socialmente a natureza e a


sociedade. Em contraste com as metáforas orgânicas, em que os conceitos de ordem
e poder se baseavam na interdependência e reciprocidade, a metáfora da natureza vista
como máquina baseava-se no pressuposto da divisibilidade e manipulabilidade. 23
(SHIVA, 2014, p. 75, tradução nossa).

De acordo com a teórica, o padrão reducionista segrega a forma de pensar, refletindo


nas práticas sociais, nas instituições, na forma de apropriação e de controle do conhecimento.
Shiva afirma que, quanto mais dividimos o conhecimento, mais nos esvaziamos dele e das
possibilidades de termos aprofundamento em algo, seja acerca da natureza, seja acerca do
corpo, da mente e do trabalho. Isso se amplia para a sociedade, na qual a homogeneização e a
segregação de práticas e pensamentos têm um viés de poder.

As premissas epistemológicas do reducionismo estão relacionadas às suas premissas


ontológicas: a uniformidade permite que o conhecimento das partes de um sistema
seja apresentado como conhecimento da totalidade. A divisibilidade permite a
abstração do conhecimento independente de seu contexto e cria critérios de validade
baseados na alienação e na não participação, que são apresentadas como objetividade.
Os especialistas apresentam-se, portanto, como os únicos pesquisadores e produtores
legítimos do saber.24 (SHIVA, 2014, p. 76, tradução nossa).

23
“Las metáforas mecanicistas del reducionismo han reconstruido socialmente la naturaleza y la sociedad. En
contraste con las metáforas orgánicas, donde los conceptos de orden y de poder estaban basados en la
interdependencia y la reciprocidad, la metáfora de la naturaleza vista como una maquina se basaba en el
supuesto de la divisibilidad y la manipulabilidad.” (SHIVA, 2014, p. 75).
24
“Las premissas epistemológicas del reducionismo están relacionadas con sus premisas ontológicas: la
uniformidad permite que el conocimiento de partes de un sistema se presente como conocimiento de la
totalidad. La divisibilidad permite la abstracción de conocimientos independentemente de su contexto y crea
criterios de validez baseados en la alienación y la no participación, que luego se presentan como objetividad.
Los expertos y especialistas se presentan, así, como los únicos buscadores y productores legítimos de saber.”
(SHIVA, 2014, p. 76).
33

Além disso, o reducionismo responderia e atenderia, para a autora, aos anseios de uma
organização econômica e política. A concepção reducionista do mundo, a revolução industrial
e a economia capitalista são os componentes filosóficos, tecnológicos e econômicos de um
mesmo processo. A redução da natureza a um produto, como a madeira que se transforma em
uma folha de papel, reformula os valores, para atender ao que o mercado vai considerar rentável.
O controle será ampliado para tudo aquilo que possui capacidade de autogerar. A
desvalorização das mulheres e da natureza é reforçada a partir da ideia de atribuição de valores
aos atos de colonização que retratam essa ideia de desenvolvimento. O capital se apropria da
natureza com o intuito de roubar, separar, para depois fragmentar. Essa fragmentação pode ser
refletida em diferentes áreas da vida humana: no controle da reprodução das mulheres e na
reprodução dos processos ecológicos, em que não só divide o processo, mas que transforma a
natureza em sinônimo de benefício.
Como exemplo, Shiva (2015) expõe a patente das sementes na Índia. As sementes se
transformam em insumos caros que agricultoras/agricultores agora precisam comprar, causando
a destruição da diversidade e aumentando o monopólio de posse delas na mão das indústrias.
Isso se torna um processo injusto com relação à agricultura familiar, mas toda a sociedade paga
o preço – principalmente, a natureza. As famílias que vivem de agricultura passam a fazer
grandes empréstimos para adquirir essas sementes, já que o processo de alteração genética delas
é induzido para isso, para que não possam se reproduzir, o que se torna um controle sobre
aquelas espécies. Esse processo de industrialização das sementes reforçou a ideia de alta
produção, exportando grãos para outras regiões, mas de baixa qualidade e baixo valor nutritivo.
As consequências desse processo afetam diretamente a vida das trabalhadoras e dos
trabalhadores rurais, em termos de saúde física e mental, assim como em relação ao prejuízo
em longo prazo para todo o planeta.
Na sua obra Monoculturas da Mente (2003), Vandana Shiva apresenta a Revolução
Verde como um projeto político e econômico introduzido após a II Guerra Mundial, aplicada
como estratégia de desenvolvimento aos países considerados subdesenvolvidos. A aplicação
desse projeto se efetuava a partir da biotecnologia, com a introdução de sementes produzidas
em laboratório, que geravam plantas dependentes de altas quantidades de fertilizantes químicos
e da extinção da biodiversidade, com a introdução dos monocultivos – no caso da Índia, o arroz
e o trigo; no Brasil, a soja.
De acordo com Shiva (2003), o monopólio da empresa Monsanto sobre as sementes, a
destruição das alternativas, a obtenção de superlucros no conceito dos royalties e a crescente
vulnerabilidade das monoculturas criaram um contexto que propicia o crescimento das dívidas
34

e a angústia agrícola que alimenta a epidemia de suicídios dos camponeses hindus. O controle
sistêmico se intensificou com o algodão Bt na Indía e por isso a maioria dos suicídios ocorre na
cultura algodoeira. A arrecadação de royalties por parte da Monsanto e o elevado custo das
sementes e dos produtos químicos afogaram os camponeses em dívidas. Segundo dados do
governo da Índia, quase 75% da dívida rural provém da compra de insumos. À medida que
crescem os lucros da Monsanto, cresce também a dívida dos agricultores. É nesse sentido que
as sementes da Monsanto são denunciadas pela autora como sementes do suicídio.
Hoje, a agricultura da Revolução Verde25 é continuada por meio da criação industrial
corporativa que permanece a nos dar sementes e colheitas que não são apenas nutricionalmente
vazias, mas também carregadas de toxinas. Porém, Shiva denuncia que essa colonização da
alimentação é resultado de um paradigma que foi moldado pela industrialização e pela
mecanização dos seus processos. Portanto, não é um acidente, mas parte de um sistema de
violências que almeja a produção, transformando tudo em mera matéria. Assim resume a
teórica:

Uma economia baseada na desregulamentação do comércio e na privatização e


mercantilização de sementes e alimentos, de terra e água, de mulheres e crianças,
degrada os valores sociais, reforça o patriarcado e intensifica a violência contra as
mulheres. Os sistemas econômicos influenciam os valores culturais e sociais. Uma
economia de mercantilização cria uma cultura de mercantilização, na qual tudo tem
um preço e nada tem valor.26 (SHIVA, 2014, p. 22).

De acordo com a física, essa cultura da exploração, mantida por esse sistema, é
amparada pela religião e pelo capital, que acaba dominando outros seres vivos, desvalorizando
a classe trabalhadora, as mulheres e os animais não humanos e menosprezando qualquer outra
cultura que não seja a de povos ditos como “civilizados”. A globalização fortalece-se a partir
de duas visões: a centrada nas mulheres e nos sistemas produtivos que garantem o sustento e o
uso comum; e a focada nos sistemas patriarcais de economia baseados na guerra e na violência.
Porém, tanto a globalização quanto a religião matam, seja nas condições que esses sistemas
vêm sendo impostos, seja com o feminicídio que repercute no controle do corpo e da vida da
mulher em todas as esferas. Para Shiva, o problema está nesse mau desenvolvimento, não

25
O conceito de Revolução Verde apresentado pela autora será desenvolvido por nós no terceiro capítulo desta
tese.
26
“Una economia basada en la desregulación del comercio y en la privatización y la mercantilización de las
semillas y los alimentos, de la tierra y el agua, de las mujeres y los niños, degrada los valores sociales, refuerza
el patriarcado e intesifica la violencia contra las mujeres. Los sistemas económicos influyen en los valores
culturales y sociales. Una economía de la mercantilización crea una cultura de la mercantilización, en la que
todo tiene un precio y nada tiene valor.” (SHIVA, 2015, p. 22).
35

exclusivamente nos homens. Inclusive, algumas classes de homens nem participam desse
debate político, por conta das suas condições sociais. O mau desenvolvimento seria o
colonizador dessa homogeneização cultural e econômica, objetificando e dominando esses
corpos, saberes e essas estruturas de violências.
No seu livro “Ecofeminismo. Teoría, crítica y perspectivas” (2014), escrito em parceria
com Maria Mies27, Shiva mostra que as condições das mulheres rurais só pioraram, porque,
para atender ao mercado, suas zonas de trabalho foram exploradas e devastadas. Portanto, a
fome e a desnutrição provêm do mau desenvolvimento, e não da falta dele. Como proposta,
Shiva enfatiza a destruição do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo antes da destruição
do planeta. O caminho proposto está nos cuidados, na criatividade e na compaixão das
mulheres. Não que essas práticas estejam restritas somente a elas, mas são elas que têm
desenvolvido esse potencial.
Shiva apresenta, em sua obra “Manifiesto para una Democracia de la Tierra” (2006),
uma concepção de economia que será utilizada para a compressão dos seus argumentos
ecofeministas. Para a teórica, o impacto da globalização tem exaltado não somente as diferenças
entre Norte e Sul global, mas uma política econômica de morte, que condena as biodiversidades
da vida e apaga as economias da natureza e do sustento. Shiva (2006) separa assim, a economia
em três tipos: a economia da natureza, a economia do sustento e a do mercado. A economia de
mercado separa a natureza das pessoas e a ecologia da economia, sendo agora a natureza um
espaço selvagem, livre de seres humanos, mas em áreas definidas como “selvagens”, espaços
destinados agora como área de proteção ambiental. O restante passa a ser posse dessa economia
de mercado, servindo apenas à produção.
Por essa razão, a compreensão de mercado também passa a ser dividida. No primeiro,
os mercados são baseados em troca, reunião, cultura – espaços com pessoas, que trocam
diretamente produtos adquiridos ou cultivados por elas. Já o outro mercado é configurado pela
mão invisível do capital, no qual os processos de troca são substituídos por processos invisíveis,
e as pessoas são excluídas como produtoras. Esse mercado apaga as economias de sustento, em
que as pessoas trabalham com o intuito de terem condições para manter suas vidas em equilíbrio
com a natureza, em uma relação de colaboração, mutualidade e reciprocidade.
De forma geral, Shiva classifica as mulheres como as protagonistas dessa economia de
sustento, já que se trata de atividades reprodutivas que sustentam e apoiam todas as outras
atividades humanas. E, dentro dessa estrutura, essas atividades têm sido apagadas. Essas

27
Maria Mies é socióloga ecofeminista, nascida no ano 1931, na Alemanha. Começou seu ativismo em
movimentos feministas e, posteriormente, nos movimentos de ecologia, paz e contra a globalização.
36

atividades são realizadas em equilíbrio com a natureza, como o artesanato, a agricultura, as


economias florestais etc. Pelas razões já apresentadas aqui, são as mulheres também que mais
pagarão o preço com as destruições ocasionadas pelo mercado, multiplicando suas funções de
cuidado. Um dos exemplos que Shiva traz é o fato de as mulheres caminharem mais para buscar
água em épocas de estiagem. Inclusive, isso ocorre muito em algumas regiões do Brasil, por
falta de abastecimento de água e por grande parte das casas serem administradas por mulheres.
Mies e Shiva citam alguns exemplos da resistência e do protagonismo feminino pelo
mundo frente a alguns crimes ambientais: os movimentos como o Whyl, por exemplo, contra a
construção de projetos nucleares na Alemanha; o desastre de Chernobyl, que impulsionou uma
postura das mulheres contra a indústria e a tecnologia bélica; as atividades do cinturão verde
no Quênia; as mulheres japonesas contra a indústria da alimentação e a favor da rede
autossuficiente de produtores e consumidores locais; as mulheres do Equador na luta para
preservar os manguezais; a luta das mulheres do Sul pelo abastecimento adequado de água,
assim como da terra e do solo.
Essas consequências ambientais ocorrem como fruto das apropriações e das
privatizações da natureza, bem como das doenças ocasionadas pela contaminação de empresas,
já que a produção almeja a quantidade, a qual é alcançada fora do tempo pautado por uma
economia da natureza28. Tal economia se refere à produção que a própria natureza realiza, a
partir de processos ecológicos e cíclicos, como o ciclo hidrológico, a fertilidade do solo
produzida pelos microrganismos, a polinização do solo e das plantas de forma orgânica,
realizada por agentes polinizadores etc. Com o crescimento econômico estimulado pelas
grandes multinacionais, há um confronto entre uma “economia de destruição e as economias
favoráveis à vida”, como a economia de sustento e da natureza – inclusive, esses processos
passam a ser invisibilizados. No caso, as pessoas são destituídas de participarem da economia,
sendo os direitos destinados ao mercado e ao seu bem-estar. Nesse sentido, Shiva (2006) afirma:

A pobreza do Terceiro Mundo foi o resultado de séculos de drenagem de recursos


roubados da economia de subsistência. A globalização acelerou e expandiu os
métodos usados para dizimar essa economia: privatização da água, patenteamento de

28
No seu livro “Manifiesto para una democracia de la terra” (2006, p. 23), Vandana Shiva separa três tipos de
economia: a economia da natureza, a economia do sustento e a do mercado. A economia de mercado separa a
natureza das pessoas e a ecologia da economia, sendo agora a natureza um espaço selvagem, livre de seres
humanos, mas em áreas definidas como selvagens, sendo que elas devem ser conservadas. O restante passa a
ser posse dessa economia de mercado, servindo à produção. “A conversão do mercado no centro de atenção
principal não somente tem ocultado a existência das economias da natureza e do sustento, como também tem
silenciado o dano ocasionado pelo crescimento desse mercado. Ignoram-se, principalmente hoje em dia,
sobretudo, nos países do terceiro mundo, a necessidade que a própria natureza tem dos recursos determinados.
Oculta-se também as novas formas de pobreza e subdesenvolvimento”.
37

sementes e biodiversidade e industrialização corporativa da agricultura. Este


estrangulamento deliberado da economia de subsistência é uma das razões centrais
para a violência da globalização29. (SHIVA, 2006, p. 26).

Ou seja, a globalização se reflete não somente na apropriação de recursos, terras, da


natureza como um todo, mas na forma de pensar, na cultura. Isso é demonstrado com a chegada
de grandes redes de comidas industrializadas, que introduzem modelos na cultura alimentar
local, além de desviarem pessoas do direito à água e ao alimento. Esse processo de destruição
da cultura local é reforçado por essa monopolização da mente, de colonização e designação de
algo considerado como superior a outro. A fome é mantida por esse processo de globalização,
que não pretende matar a fome de ninguém, mas busca, sim, a manutenção do mercado. Isso
tem ficado bem evidenciado no discurso dos líderes das nações nos últimos anos: a manutenção
da economia do mercado.
Esse processo de monopolização se constitui em etapas. Primeiramente, excluem-se as
pessoas do acesso aos recursos da natureza, necessários para sua própria sobrevivência, como
a água ou mesmo o território. No segundo momento, as pessoas são objetificadas e retiradas
das condições de humanas, perdendo os direitos comuns. Posteriormente, criam-se
propriedades privadas: substitui-se a diversidade da produção pelo monocultivo, atendendo
diretamente ao mercado. Como consequência, isso será refletido na mente, no comportamento
das pessoas, que passam a adotar práticas e a considerar aquilo como progresso, modernidade.
Como fim, todo esse processo ocasionará o aumento de privilégios de uma minoria social –
inclusive, material – e refletirá no empobrecimento de outros grupos sociais e raciais. No final,
como Shiva (2006) alerta,

Em vez de programas de regeneração ecológica gradual da natureza para restaurar


a economia do sustento, sua exploração imediata e mais efetiva é prescrita a partir
de um maior investimento de capital e recursos naturais. A privatização e a
mercantilização da água são oferecidas como um remédio para o esgotamento e
contaminação dos recursos hídricos (esgotamento e contaminação que, na
realidade, ainda são "externalidades" de mercado causadoras da crise hídrica,
como expliquei em The Water Wars). E, da mesma forma, a comercialização da
biodiversidade por meio de patentes sobre a vida é proposta como uma solução
para a crise de extinção de espécies causada pelas monoculturas que estão na base
dos mercados comerciais globais. Assim, e em última análise, o que se oferece
como remédio é a própria doença.30 (SHIVA, 2006, p. 66, tradução nossa).

29
“La pobreza del Tercer Mundo ha sido el resultado de siglos de sangría de recursos hurtados a la economía
del sustento. La globalización ha acelerado y ampliado los métodos utilizados para diezmar esa economía:
privatización del agua, patentado de semillas y de la biodiversidad e industrialización empresarial de la
agricultura. Este estrangulamiento deliberado de la economía del sustento es uno de los motivos centrales de
la violencia de la globalización.” (SHIVA, 2006, p. 26).
30
“En vez de programas de regeneración ecológica gradual de la naturaleza para restablecer la economía del
sustento, se receta su explotación inmediata y más efectiva a partir de una mayor inversión de capital y de
recursos naturales. La privatización y la mercantilización del agua se ofrecen como remedio del agotamiento
38

Shiva aponta que a fragmentação do conhecimento tem sido um grande risco à natureza
e à sociedade. Agora, o saber, quando não é especializado, é visto como ineficaz. Ela aponta o
problema que tem sido a exclusão da capacidade dos seres humanos para conhecer a natureza,
quando se elimina a possibilidade de novos conhecedores e também de outras formas de saber.
Além disso, o reducionismo provocou a capacidade de regeneração e renovação criativa da
natureza ao ser manipulada, como se se tratasse de uma matéria inerte e fragmentada. O
reducionismo é caracterizado em uma lógica uniforme e mecânica e, a partir disso, compreende
todos os processos e os seus sujeitos dessa forma, com base na divisão e na capacidade de serem
manipulados, de modo que, por isso, não são capazes de reconhecer a interdependência
existente entre seres, entre a natureza, entre conhecimentos. Na verdade, o grande projeto, que
até o momento tem sido bem-sucedido, é de os seres humanos esvaziarem inclusive sua
percepção do que seja essa interdependência, parte do projeto que Shiva vai denominar de
monopolização da mente (SHIVA, 2014). Ela prossegue:

O reducionismo, portanto, limita os ecossistemas complexos a um único componente


e um componente isolado a uma única função. Além disso, também permite a
manipulação do ecossistema de forma a maximizar a exploração de uma única função
de componente. No paradigma reducionista, uma floresta é reduzida à madeira
comercializável e à fibra de celulose destinada à indústria de papel.31 (SHIVA, 2014,
p. 77, tradução nossa).

Por isso, a perspectiva feminista – em especial, uma perspectiva que seja ecológica,
considerando a interdependência entre espécies – tanto é pautada de forma a combater as
estruturas do patriarcado, que para a autora, definiu os conceitos e as relações com a natureza,
quanto questiona a produção e ativa novos sujeitos, inclusive novos olhares, rompendo com a
lógica da produção que foi imposta à natureza e aos seres vivos como recursos a serem
consumidos.

y la contaminación de los recursos hídricos (un agotamiento y una contaminación que, en realidad, no dejan
de ser «externalidades» del mercado causantes de la crisis del agua, tal y como expliqué en Las guerras del
agua). Y, asimismo, se propone la comercialización de la biodiversidad por medio de patentes sobre la vida
como solución a la crisis de la extinción de especies provocada por los monocultivos que constituyen la base
de los mercados comerciales globales. Así pues, y en definitiva, lo que se ofrece como remedio es la propia
enfermedad.” (SHIVA, 2006, p. 66).
31
“El reducionismo limita, por consiguiente, los ecosistemas complejos a un solo componente, y un componente
aislado a una única función. Además, también permite la manipulación del ecosistema de um modo que
maximice la explotación de una única función de un solo componente. En el paradigma reduccionista, un
bosque queda reducido a la madera comercializable y ésta a la fibra de celulosa destinada a la industria
papelera.” (SHIVA, 2014, p. 77).
39

Shiva e Mies (2014) reconhecem que, considerando a cosmologia moderna, com base
em reproduzir e manter dicotomias da realidade, estabelece-se uma posição hierárquica com as
diferenças, em que uma se estabelecerá como superior à outra e alcançará progresso à custa
desse lado. A natureza vai aparecer subordinada ao homem; a mulher, ao homem; o consumo,
à produção; o local, ao global. Porém, ao invés de tentar superar essa dicotomia hierárquica,
muitas mulheres têm se limitado a inverter os termos, considerando a mulher superior aos
homens e a natureza superior à cultura. Mas a estrutura de opressão segue sendo a mesma,
inclusive mantendo uma relação oposta entre as partes separadas e ordenadas hierarquicamente.
Essa visão acaba percebendo o outro e a outra não somente como distintos, mas também como
inimigos. E muitos sobreviverão com a subordinação e a apropriação desses outros e outras.
Para as autoras, o termo “ecofeminista” nada mais é que uma nova concepção usada
para designar o que já se realiza no Sul global, por movimentos sociais organizados por
mulheres. Percebemos que as mulheres, frente às lutas ambientais, sentem os efeitos do mau
uso da ciência nos seus territórios. De acordo com Mies e Shiva (2014), o ecofeminismo
espiritual, considerado por ambas, assimila a ideia de integração com espírito e matéria. Essa
ideia não se constrói dissociada, principalmente para as mulheres do Sul global, no qual não
consideram essas divisões. Por exemplo, a ideia de Pachamama, para alguns povos originários
de Abya Ayla, é pensada enquanto ser vivo inseparável de suas vidas, de sua sobrevivência.
Portanto, o respeito à terra é um respeito consigo mesma e uma luta pela não mercantilização
do seu território. Com isso, elas procuram pensar em uma ecologia da subsistência, partindo
das necessidades fundamentais da vida.

Para sair do relativismo cultural, é preciso contemplar não só as diferenças, mas


também a diversidade e a interconexão que existem em escala global entre mulheres,
entre homens e mulheres, entre seres humanos e outras formas de vida. O terreno
comum para a libertação das mulheres e a proteção da vida na Terra deve ser
encontrado nas atividades que foram vítimas do processo de desenvolvimento e que
lutam pela conservação de sua base de subsistência, como as mulheres Chipko. Na
Índia, as mulheres e homens que se opõem ativamente à construção de barragens
gigantes, as mulheres que lutam contra as usinas nucleares e o despejo irresponsável
de lixo tóxico em todos os lugares e muitas outras ações ao redor do mundo. 32
(SHIVA; MIES, 2014, p. 58, tradução nossa).

32
“Para encontrar una salida frente al relativismo cultural, es preciso contemplar no sólo las diferencias, sino
también la diversidad y la interconexión que existen a escala mundial entre las mujeres, entre hombres y
mujeres, entre los seres humanos y las demás formas de vida. El terreno común para la liberación de la mujer
y la protección de la vida sobre la Tierra debe buscarse en las actividades que han sido víctimas del proceso
de desarrollo y que luchan por la conservación de su base de subsistencia, como por ejemplo, las mujeres
chipko en India, las mujeres y los hombres que se oponen activamente a la construcción de presas gigantes,
las mujeres que luchan contra las plantas nucleares y contra el vertido irresponsable de residuos tóxicos en
todas partes, y muchas otras acciones en todo el mundo”. (SHIVA; MIES, 2014, p. 58).
40

Maria Mies (2014) argumenta que, mesmo com a emancipação de mulheres do Norte,
referenciada pelo Iluminismo, isso só serviu para um grupo específico de mulheres brancas,
que almejavam o mesmo que os homens. Essa ideia de emancipação nesse padrão do Norte
vem atrelada à colonização da natureza, de outros grupos de mulheres, povos e territórios.
Portanto, para superar esse lugar de subordinação e apropriação, precisamos compreender que
o processo de valorização da cultura do Norte vem com a desvalorização do Sul, tendo a
violência e a força como necessárias para manter essas relações, sendo reforçadas por
propagandas, leis, educação, dependência econômica. Tudo é elaborado para que a cultura, o
trabalho, o estilo de vida, as instituições sejam desvalorizadas frente ao modelo de
“desenvolvimento”.
Diante disso, perguntamo-nos: é esse o modelo que almejamos? Esse modelo tem
funcionado para a população do Norte? É requerida uma melhora de vida para as mulheres, as
crianças e os animais dali? Como diz Mies (2014), em vez de querermos nos sentar à mesa com
ricos do Norte, não seria melhor nos questionarmos que riqueza é essa e tomarmos a rédea da
própria situação? Porém, como a própria assinala, ainda estamos sendo mantidos no mito da
recuperação do atraso no desenvolvimento33, e o Norte ainda não foi capaz de sair do seu estado
de comodismo, opressão e distração.
O que a pensadora alemã aponta é que há na sociedade um estado de esquizofrenia ou
de duplo pensamento, em que as pessoas possuem consciência das catástrofes ambientais, do
aquecimento global, do uso de agrotóxicos, da contaminação dos rios, inclusive sabendo que
isso afeta sua vida, mas não fazem nada para mudar seus padrões, seus consumos. Essa
esquizofrenia é colocada como se houvesse uma esperança buscada a partir do Norte, no qual
conservam a ideia de que podemos continuar comprando, consumindo e que isso não afetará o
nosso modo de vida. Esperam que a ciência dê um jeito de resolver isso, sem precisarem mudar
seus padrões de consumo e produção. Em termos institucionais, ninguém questiona esse
pensamento, porque a população não aceita essa ideia de mudança. A ideia de acumulação de
matérias, bens, serviços ainda é associada à qualidade de vida.
Mies argumenta que ainda existe um pensamento acerca dos recursos do planeta como
ilimitados, assim como a tecnologia. Portanto, o Estado reproduz em suas práticas a ilusão de
que não haveria com o que se preocupar. Somente se esquecem de que esse mito do ilimitado

33
Mies (2014) define que as políticas públicas internacionais econômicas têm se mantido pelo mito da
recuperação do atraso de “compensar” o Sul global com o desenvolvimento do Norte, ainda tratando a natureza
como objeto e fonte de recursos ilimitados. O sistema econômico se mantém sob a lógica das relações Norte-
Sul, mesmo quando se fala em desenvolvimento sustentável, porque cria a ilusão de que esses países podem se
desenvolver como os países do Norte.
41

é mantido pelas divisões coloniais, entre centro e periferia, sociedade industrial moderna do
norte e sociedade tradicional e subdesenvolvida do Sul, por exemplo. E consequentemente, a
ideia de progresso é mantida por relações coloniais, e essa relação praticada por meio de coerção
e violência. Promove-se também a ideia de um estilo de vida do Norte global como um modelo
de vida bom, e isso se reproduz em uma lógica de pensamento que desvaloriza as práticas
culturais, de trabalhos, de estilo do Sul global, as quais passam a ser compreendidos
internamente assim, como em um lugar de atraso, mas que, seguindo o “protocolo do
desenvolvimento”, pode obter esse desenvolvimento.

A relação entre colonizado e colonizador não se baseia em nenhum tipo de


cooperação, mas sim na coerção e na violência deste no trato com o primeiro. Nessa
relação, de fato, está o segredo do crescimento ilimitado nos centros de acumulação.
Se não fosse possível externalizar todos os custos da produção industrial, se recaíssem
sobre os próprios países industrializados, ou seja, se fossem internalizados, o
crescimento ilimitado inevitavelmente chegaria ao fim. (MIES, 2014, p. 127)34.

Como proposta, Shiva e Mies reforçam a ideia de se pensar a partir do protagonismo


feminino. Como foi falado acima, a ideia é subverter a lógica e romper o que foi estruturado
pelo patriarcado, e a forma pensada pelas autoras é iniciar essa ruptura epistemológica pelos
movimentos de mulheres. É fundamental inverter a lógica de subordinação mantida nesse
sistema agressivo. O sistema mantido pelo patriarcado possibilitou a violência não só à mulher,
como também às crianças e ao meio ambiente, causando empobrecimento para todas essas
vidas. Portanto, reverter isso é também reintegrar o ser humano com a natureza, recuperando
sua capacidade de reconhecer, repensar e proteger o direito à vida e à diversidade de todas as
espécies do mundo (MIES; SHIVA, 2014).
A proposta de Shiva e Mies é a da construção de um projeto com uma abordagem de
subsistência ou de sobrevivência, reforçado a partir do contexto. As autoras expõem:

Essa ideia foi desenvolvida pela primeira vez para analisar o trabalho oculto e mal
pago ou não pago das donas de casa, agricultores de subsistência e pequenos
produtores do chamado setor informal, especialmente no Sul, em seu papel de
sustentação e base do modelo de crescimento ilimitado de bens e dinheiro do
patriarcado capitalista. O trabalho de subsistência como trabalho que cria e mantém a
vida foi e continua sendo uma condição necessária para a sobrevivência em todas as

34
“La relación entre colonizado e colonizador no se basa en ningún tipo de cooperación sino más bien en la
coacción y violencia del segundo en sus tratos con el primero. En esta relación reside de hecho el secreto del
crecimiento ilimitado en los centros de acumulación. Si no fuese posible externalizar todos los costes de la
producción industrial, si éstos recayesen sobre los propios países industrializados, o sea, si se interiorizasen,
el crecimiento ilimitado tocaría inevitablemente a su fin.” (MIES; M. In: MIES, M.; SHIVA, 2014, p. 127).
Como essa obra foi escrita em parceria com Vandana Shiva, alguns capítulos serão escritos somente por Maria
Mies, enquanto otros capítulos foram desenvolvidos somente por Shiva.
42

relações de produção. Aqueles que fazem a maior parte deste trabalho são mulheres. 35
(MIES, 2014, p. 466, tradução nossa).

O novo projeto de uma sociedade não patriarcal, não colonial e não exploradora, que
respeite a natureza e não cause a destruição dela, deve ser pautado por esses movimentos sociais
tanto do Sul quanto do Norte global, que vêm lutando pela sobrevivência e contra esse sistema
de industrialização. Mies destaca o protagonismo dessas mulheres na luta pela conservação e
pela proteção à natureza (MIES; SHIVA, 2014). Além de serem mais criativas e
comprometidas, elas estão pautadas por práticas anticapitalistas. Se não houver um
questionamento e uma luta contra essa atual forma de produção, não somente a crise ecológica,
mas a crise ética e política continuará a se ampliar.
As mulheres que estão à frente dessa luta sabem, pautadas por suas próprias histórias e
experiências, que só podem continuar mantendo suas vidas de forma digna, livre e garantindo
seus alimentos se controlarem seus meios de sobrevivência. Caso contrário, não só a natureza
estará atrelada ao mercado, mesmo quando aparecem essas “ecocomercializações” atreladas ao
capitalismo verde, como também seus corpos, suas vidas e suas formas de sobreviver. De
acordo com Mies (2014), para a realização dessa abordagem, precisamos repensar os princípios
centrais que vão reconduzir esse projeto:
1) Romper com o mercado dominante e nos reorganizarmos pelo autoabastecimento, na
autossuficiência, na regionalidade, e na descentralização, para construir relações das
necessidades humanas a partir do seu uso e não de exploração ou apenas acumulação de
produtos;
2) essas relações devem ser pautadas e pensadas em relação com a natureza,
reintegrando-nos a ela e reconhecendo sua própria subjetividade, a partir do respeito, da
cooperação e da reciprocidade, ampliando essa mudança com relação às pessoas e refletindo,
por exemplo, nas divisões do trabalho e dos cuidados;
3) para a realização desse projeto é fundamental que as propostas sejam conduzidas em
condições democráticas e de participação da sociedade, pautados por uma compreensão que as
práticas individuais sejam indissociáveis das comunitárias e que as responsabilidades sejam
conduzidas para além das representações políticas eleitas;

35
“Esta idea se desarolló por vez primera para analizar el trabajo oculto y mal remunerado o no remunerado
de las amas de casa, los campesinos y campesinas de subsistencia y los pequeños productores y pequeñas
productoras del denominado sector extraoficial, sobre todo del Sur, en su función de sostén y base del modelo
de crecimiento ilimitado de bienes y dinero del patriarcado capitalista. El trabajo de subsistencia en cuanto
trabajo que crea vida y la mantiene era y sigue siendo una condición previa necesaria para la supervivencia
en todas las relaciones de producción. Quienes realizan la mayor parte de este trabajo son las mujeres.”
43

4) As opressões e os ismos de dominação como as desigualdades sociais, a pobreza, o


racismo, as relações de violências patriarcais devem ser pensados de forma conectada e
juntamente aos problemas ecológicos;
5) O trabalho deve ser ressignificado no âmbito social e econômico, devendo ser
pensando e tratado não mais dentro de uma esfera de anulação e sacrifício diante de outras
esferas da vida humana;
6) Romper com os dualismos existentes entre espírito e matéria, refutando também as
abordagens científicas fragmentadas e as espiritualidades sublimes;
7) Se opor à privatização dos bens comuns: água, terra, ar;
8) Nos dois últimos pontos, Mies defende que os homens devem também assumir a
responsabilidade pelo mundo, já que o projeto não deve ser exclusivo de mulheres. Portanto,
devem repensar suas práticas e atividades nas quais estão relacionadas apenas com a produção
e acúmulo e contribuir com as atividades de cuidado. Nisso consiste também em adquirir e
expandir seu olhar de carinho e afeto diante das relações e dos seres. Nesse caso, os homens
devem redefinir seu papel nesse mundo e começarem a construir esse projeto juntamente às
mulheres, de forma prática, por exemplo, compartilhando atividades do trabalho não
remunerados realizado até agora pelas mulheres.
9) Por último, tanto os homens quanto a sociedade devem se desmilitarizar, e com isso,
ao invés de se dedicarem à violência, poderão se ocupar mais com as atividades de subsistência
da sociedade a qual fazem parte.
Com esse projeto, para Maria Mies (2014), o mundo também deve ser reconfigurado de
forma que os princípios como a justiça, a igualdade, a dignidade humana, assim com a ideia de
belo e de alegria não sejam pautados pelo desenvolvimento, denunciando inclusive que toda
essa lógica e suas concepções sempre foram pautadas em destruição dos recursos, do trabalho
e da vida de pessoas e de diferentes espécies de seres vivos. Portanto, a construção de um projeto
ecofeminista de subsistência é um projeto de ruptura com o paradigma da exploração.
No capítulo seguinte, essa argumentação será ampliada quando enumeraremos os
dualismos dessa sociedade patriarcal por Plumwood e expandiremos a proposta de uma
educação ambiental a partir do pensamento de Alicia Puleo, dentro do que as próprias autoras
vão definir como ecofeminismo social/crítico.
44

1.3.2 Ecofeminismo social/crítico

A utilização do termo social, crítico ou construtivista adotado por algumas teóricas


ecofeministas pontua uma abordagem que abrange as críticas feitas ao ecofeminismo clássico.
O trabalho de pontuar essas perspectivas será considerar os conceitos, as abordagens e os
direcionamentos – no caso, escolhemos aqui começar pelo trabalho teórico de Val Plumwood
e Alicia Puleo. Como foi colocado anteriormente, o ecofeminismo, como práxis teórica,
movimenta-se – e, portanto, é capaz de responder a críticas ou de ser reformulado –
considerando o tempo histórico-social e as narrativas de quem o compõe.
Quando a filósofa ecofeminista australiana Val Plumwood36 utiliza o termo “crise
ecológica da razão”, ela traz uma crítica à racionalidade no modo que se consolidou nas
tradições, a partir de teorias que favoreciam sempre a exclusão e que não se colocavam
disponíveis ao debate, porque, ao se constituir como teoria racional, já eliminava outras formas
de conhecimento, de seres vivos e o próprio meio, como percebemos com a teoria dualista de
Platão. (PLUMWOOD, 1993).
Em sua obra “Feminismo e Maestria da Natureza” (1993), Val Plumwood afirma que,
desde a civilização clássica, tenta-se colocar a racionalidade como forma de dominação. E quem
detinha esse poder? – indaga a autora. Seus representantes, ou seja, uma elite masculina, que
ocupa seu tempo ócio pensando e que não se ocupa com as coisas práticas ou materiais da vida.
A razão sempre associada à superioridade foi usada para justificar certas práticas humanas,
como o colonialismo, a escravidão e o patriarcado.
Podemos perceber nas obras de Platão e de Aristóteles como o lugar da mulher na
sociedade e a escravidão estavam justificadas. Não apenas as mulheres foram construídas em
oposição à racionalidade ocidental, cultural e filosófica, mas também os seres humanos que
foram escravizados, os animais e o considerado bárbaro foram tratados como seres não
racionais, sendo, portanto, retirados de participar da vida pública.
De início, houve um grande investimento em supor que essas concepções arraigadas da
razão como a província dos homens de elite sejam meramente “ideias”, “abusos” de um
conceito basicamente neutro que não tiveram nenhum efeito em sua interpretação e sua
construção. Em vez disso, eles construíram a razão como o personagem principal de uma
narrativa racionalista moderna de dominação dos outros. A partir dessa narrativa, derivamos os
mitos – ainda fortemente persistentes – da natureza emocional e instável das mulheres, bem

36
Val Plumwood nasceu na Austrália, no ano de 1939, e faleceu em 2008, escreveu obras como “Feminism and
the Mastery of the Nature” (1993) e “Environmental Culture: The Ecological Crisis of Reason” (2002).
45

como os mitos contemporâneos de uma tecno-razão invencível e heroica, codificada pelo


“homem”, que resolverá os problemas atuais e buscará um futuro promissor.
Esse conceito de racionalidade reduziu outras formas de conhecimento, como já foi
apresentado anteriormente por Shiva e Mies, e universalizou um único padrão, desconsiderando
outros sujeitos e formas de saberes que não necessariamente abarcassem a definição de
racionalidade moderna. Portanto, áreas que hoje são consideradas o cerne da razão, como o
direito, a justiça, a ciência, a ética e até mesmo a política, caem nesse viés. Partem de um
pressuposto no qual delimitam a natureza a algo passivo e ilimitado, de serventia a algo ou
alguém. Na linha dessa serventia estariam o corpo, a ecologia e a natureza, sendo diminuídos
para um racionalismo que proclama a negação das emoções como fonte de conhecimento.
Apesar de estarmos falando de racionalidade, a crítica não se estabelece a ela enquanto razão,
fonte também de conhecimento, mas às formas de poder e dominação que se apropriam de um
tipo de racionalismo que rejeita qualquer outro caminho para conhecer.37
Os dualismos criados reforçam essas posturas e a ideia de dominador como sendo aquele que
possui mais razão, fortalecendo a distância que temos hoje com relação ao meio ambiente.
Como consequência, ao querer fazer parte do grupo dos dominadores, recusamo-nos a estar no
dos perdedores, inclusive, não reconhecendo que certas consequências de um grupo podem
interferir não só nessa natureza, mas no nosso corpo e em diferentes grupos sociais. Portanto,
se passamos a distanciar e a negar seu lugar nesta sociedade, consequentemente nos
distanciamos das consequências resultadas também disso. Esse é um dos traços reforçados pela
Val Plumwood no que diz respeito não só à teoria da dominação, mas também a algumas teorias
decoloniais38. O poder dado ao homem para as coisas e a natureza foi mantido e naturalizado
por meio dessa lógica de pensamento, fazendo-nos acreditar que somos superiores a tudo o que
está fora dessa racionalidade, negando, inclusive, sua interdependência com os seres não

37
De acordo com Mbembe (2016, p. 124), “[...] com base em uma distinção entre razão e desrazão (paixão,
fantasia) que a crítica tardo-moderna tem sido capaz de articular uma certa ideia de política, comunidade,
sujeito – ou, mais fundamentalmente, do que abarca uma vida plena, de como alcançá-la e, nesse processo,
tornar-se agente plenamente moral. Nesse paradigma, a razão é a verdade do sujeito, e a política é o exercício
da razão na esfera pública. O exercício da razão equivale ao exercício da liberdade, um elemento-chave para a
autonomia individual.”
38
O sociólogo peruano Aníbal Quijano, juntamente a Wagner Mignolo, Catherine Walsh, dentre outros, foi
fundador do grupo Modernidade/Colonialidade, grupo de estudos formado por teóricas e teóricos latino-
americanos, com o intuito de formular teorias decoloniais pensadas por e a partir de nossa própria realidade,
promovendo, assim, o que vai ser chamado de giro decolonial. Quijano argumentava que o modo de
conhecimento é eurocentrado, sendo denominado como racional e imposto no mundo capitalista como a única
racionalidade válida e símbolo da modernidade, de forma que colonialidade e modernidade operam sob a
mesma lógica da dominação. Esse fenômeno foi denominado como colonialidade do poder e do saber,
caracterizando-se como um padrão de poder de medida das desigualdades políticas e econômicas na América
Latina, resultado do processo de colonização (BALLESTRIN, 2013).
46

humanos e com a natureza como um todo. Inclusive, se tomarmos o contexto político da


América Latina, a ideia de investir em conhecimentos científicos, classificando-os como algo
limitado somente às ciências exatas ou às engenharias, desqualifica práticas campesinas,
conhecimentos populares e, dentro da própria academia, as áreas de humanas e artes.
Consequentemente, isso se refletirá na formação cultural e social de uma sociedade, já que a
objetificação do pensamento influenciará diretamente em uma razão também objetiva,
trabalhando para alcançar coisas úteis ou que levem a algo útil. Esse conceito de utilidade é tão
inserido nesse meio que se amplia na natureza, nos seres não humanos, mas também na própria
classe de seres humanos, eliminando socialmente todo aquele ou aquela que não se vê como
algo rentável na sociedade, ou seja, que não gera lucro.
Verificamos que a razão sempre foi tratada como algo oposto à natureza e à emoção e
como objeto a ser dominado pela razão – inclusive, alguns autores insistem em afirmar que o
grande fim do ser humano seria obter esse domínio. Quanto mais longe e mais radicalmente
separamos nós mesmos da natureza para justificar sua dominação, mais perdemos a capacidade
de responder a isso em termos éticos e comunicativos. Plumwood argumenta que, no processo,
também ganhamos uma falsa ideia de nosso próprio caráter e nossa localização, incluindo um
sentimento ilusório de independência da natureza. Isso pode trazer resultados perigosos,
tornando-nos insensíveis aos limites ecológicos, às dependências e às interconexões.
Na sua obra “Environmental Culture: the ecological crisis of Reason” (2002), na
introdução, Plumwood faz uma relação da crise ecológica atual com o filme Titanic (1997): por
um lado, vemos um navio que representa fascínio, progresso, mas, pelo outro, temos o iceberg,
que, na conjuntura, pode ser visto na direção que estamos tomando. Mesmo sendo avisados dos
riscos ambientais, se pensarmos no filme Titanic, a maioria de nós pode ser representada pelos
músicos do navio, que continuam a levar a vida como se nada estivesse acontecendo. Utilizando
a mesma metáfora, Shiva e Mies (2014) relembram essa relação a partir da obra de Ruth Sidel,
“Women and Children Last”, na qual a autora mostra que as mulheres e as crianças, em sua
maioria, se não forem de classes privilegiadas socialmente, serão as primeiras a morrer,
representando o lugar dessas minorias na economia global – o navio na representação. A ideia
de Plumwood e Sidel, levantada por Shiva e Mies, permite-nos pensar comparativamente no
Brasil por meio da construção de barragens hidrelétricas, que configuram um fim anunciado
para os povos indígenas, quilombolas, as mulheres e as crianças, além dos animais. Nesse
sentido, as autoras denunciam a invisibilidade que o discurso racionalista de nossa tradição
oferece, no qual, diante de uma lógica econômica, o progresso, seja de que forma ele possa vir,
sempre será mais enaltecido diante de outras vidas.
47

Mesmo sendo proposta a construção de um plano de sustentabilidade e isso sendo


explorado por diversas vezes, inclusive no marketing de produtos e marcas famosas, a discussão
ainda se mantém muito distante do problema. Na verdade, tudo o que se tem feito possui a
bênção do capitalismo – inclusive, enxurrando o mercado com produtos que prometem chegar
a esse nível de sustentabilidade, quase como uma carteirinha de “sou sustentável”. Todos os
desastres ambientais e os alertas que se têm dado não estão sendo tratados com prioridade,
mesmo quando atingem uma população, causando a morte de seres humanos e não humanos.
Segundo a referida filósofa, os dualismos mantidos pelo racionalismo só promoveram o
afastamento e o controle da natureza em relação ao outro. Para Plumwood (2002), é ensinado
como “natural” para os indivíduos, desde pequenos, que cada ser precisa se tornar independente
de tudo aquilo que se aproxima do natural. Paralelamente, é estabelecido um entendimento de
que é preciso dominar e explorar aquilo que permanece em condição de “natural” como forma
de expor publicamente seu afastamento dessa condição. Nesse sentido, há um incentivo oculto
em atingir uma escala de independência baseada em dominar seu corpo, seu espaço e
mercantilizar vidas humanas e não humanas. De acordo com Val Plumwood (2002), “[...] a
crise ecológica que enfrentamos é, ao mesmo tempo, uma crise da cultura dominante e uma
crise da razão, ou melhor, uma crise da cultura da razão ou do que a cultura global dominante
fez da razão.”

O dualismo homem / natureza, como argumentei em Feminismo e Maestria da


Natureza, é um sistema de ideias que considera uma razão radicalmente separada
como a característica essencial dos seres humanos e situa a vida humana fora e acima
de uma natureza inferiorizada e manipulável. O racionalismo e o dualismo humano /
natureza estão ligados através da narrativa que mapeia a supremacia da razão na
supremacia humana através da identificação da humanidade com mente e razão ativas
e de não humanos com corpos passíveis e comercializáveis. (PLUMWOOD, 2002, p.
4, tradução nossa)39.

Na mesma obra citada acima, “Feminismo e Maestria da Natureza” (1993), a autora


apresenta uma lista na qual enumera os principais dualismos que repercutiram na sociedade:

Cultura/Natureza
Razão/Natureza
Macho/Fêmea
Mente/Corpo (Natureza)

39
“Human/nature dualism, as I argued in Feminism and the Mastery of Nature, is a system of ideas that takes a
radically separated reason to be the essential characteristic of humans and situates human life outside and
above an inferiorised and manipulable nature. Rationalism and human/nature dualism are linked through the
narrative which maps the supremacy of reason onto human supremacy via the identification of humanity with
active mind and reason and of non-humans with passive, tradeable bodies.” (PLUMWOOD, 2002, p. 4).
48

Mestre/Escravo
Razão/Matéria (fisicalidade)
Racionalidade/Animalidade
Razão/Emoção
Mente e Espírito/Natureza
Liberdade/Necessidade
Universal/Particular
Humano/Natureza (não humana)
Civilidade/Primitividade (Natureza)
Produção/Reprodução (Natureza)
Público/Privado
Subjetivo/Objetivo
Eu/Outro

E complementa afirmando que esses dualismos são fundamentais para a manutenção


desse pensamento ocidental e refletem nas principais formas de opressão dessa cultura, em
particular, os dualismos entre masculino e feminino, mente e corpo, civilizado e primitivo,
humano e natureza, enquanto naturalizam o gênero, classe, raça e opressões da natureza,
respectivamente, embora uma série de outros dualismos estejam indiretamente envolvidos.
A ecofeminista queer Greta Gaard partindo dessa lista, acrescenta os dualismos entre
brancas(os)/não brancas(os), heterossexual/queer e razão/erótico, como mais uma forma de
compreender os vínculos simbólicos e materiais de violências, no qual, não somente desvaloriza
as mulheres, os animais, a natureza, mas também a sexualidade. De forma a compreender a
sexualidade como um fenômeno socialmente construído, que varia de um contexto histórico e
social, e não numa esfera apenas biológica, ou reforçada por uma lógica de distanciamento com
a “natureza”. Portanto, a natureza não seria apenas, dentro desse sistema ocidental, feminizada,
mas erotizada e queerizada. E devemos estar atentas a desmantelar esses dualismos e inseri-lo
como parte do projeto queer, enquanto já se tornaram parte da identidade do mestre, ou seja, de
quem está nessa lógica do domínio (Gaard, 2011).
A crise ecológica apontada por Plumwood poderia ser compreendida como
consequência dessa cultura racionalista e, segundo a autora, como fruto das formas de
dominação que possuem uma origem comum e antiga. Para a pensadora, esses modos de
dominação não somente não teriam começado agora, mas teriam sobrevivido graças ao amparo
moral e econômico na Modernidade. Portanto, a crise ecológica seria parte de uma crise
cultural, que teria distanciado o ser humano do exercício de cuidado e o teria lançado a uma
condição existencial incapaz de viver de forma responsável e ecológica. Como consequência,
estaríamos fadados a um círculo vicioso que nos impede de conviver harmoniosamente com
outras formas de vida e com a natureza em especial.
49

Plumwood (1993) distingue quatro estágios do desenvolvimento da lógica do domínio.


O primeiro deles é a instauração dos dualismos no sentido derridiano de oposição hierarquizada
entre mente e corpo, razão e natureza. O segundo corresponde ao dualismo de Descartes, que
tira toda a capacidade mental dos animais não humanos e todo o conceito de trabalho produtivo
de Locke como apropriação legítima individual da natureza. O terceiro estágio é identificado
como o da apropriação por meio da instrumentalização sistemática – o ego busca utilidade na
natureza, e o outro fica reduzido ao estado de mercadoria. O último estágio, o qual estamos
vivendo, refere-se a devorar o outro. Tudo passa a ser instrumentalizado, tendo como objetivo
maior o controle de tudo o que é alheio à cultura e a destruição de qualquer resistência que a
terra pode impor.
Porém, a crise ecológica é detectada pela própria forma de colonizar práticas, sistemas,
que não nos permitem pensar ou sair disso. Abrange um tipo de razão que inferioriza tudo o
que diz respeito às vidas que não sejam humanas e à natureza, assim como ao corpo e à ecologia.
Essa racionalidade tem sido manipulada por poderes que naturalizam e reforçam privilégios,
bem como excluem outros modos de vida. Os dualismos existentes e intensificados por esse
racionalismo enaltecem grupos que se tornam sempre alheios ao mundo ao seu redor, como se
seus atos não refletissem em nenhuma das categorias apresentadas acima, havendo uma perda
da empatia com alguns grupos sociais. Esses sistemas naturalizam a opressão e falham em nos
oferecer condições de adaptação aos ambientes que de fato nos mantêm presos.
O racionalismo não é o mesmo com a razão, mas influenciou um conceito de razão e
ciência que redefine o lugar dela na vida humana. A proposta não é defender a irracionalidade,
mas mostrar que o racionalismo defendido tem negado o corpo e a natureza, definindo formas
de racionalidade sob uma única lógica, que impede outras formas de organização, de modo que
tudo passa a ser consolidado sob essa lógica única. A racionalidade monológica definida no
pensamento de Val Plumwood é assim denominada porque o outro ser só é reconhecido na
perspectiva de quem o define, ou seja, tudo existe para satisfazer ou se moldar às necessidades
desse “homem”. Todas as existências ficam impossibilitadas de continuarem vivendo. Isso se
amplia não só para a dependência com a natureza, mas até as suas formas de viver que foram
condicionadas: as relações, os tipos de corpos, a estrutura psicológica.

O racionalismo nos deu uma narrativa da razão profundamente antiecológica que


guiou muito do desenvolvimento da cultura ocidental, com a crise ecológica como seu
clímax. Essa narrativa ou ideologia nos diz que a razão, acima de tudo, é suprema no
mundo, e essa razão está associada especialmente com a classe dominante, até mesmo
definindo-a. O universo é ordenado completamente por princípios racionais, que os
50

representantes da razão podem descobrir e usar na reordenação do mundo para o


benefício de seres racionais. (PLUMWOOD, 2002, p. 18, tradução nossa)40.

Como a razão é o principal elemento impulsionado por essa lógica, o mercado se


apropria disso totalmente, estimulando esse sistema monológico. Os poderes desse mercado são
definidos pelo próprio domínio e pelo controle sobre a vida como um todo. O cuidado e o afeto
ao outro não se aplicam aqui, porque não correspondem ao que foi definido como racional. Ao
contrário, o caráter ecológico é algo a ser mesmo abolido, como o mercado tem se manifestado
como algo que é livre de aspectos irracionais e é eficiente, sua marca maior tem sido a
“neutralidade”, que tem assumido a posição de guiar nossas vidas.
Fica evidente que os personagens, as suas narrativas históricas e, consequentemente, a
própria história desaparecem. A negação desta é que tem possibilitado a permanência do
mercado como a forma ideal de organizar a vida humana. Quando falamos em vida humana,
reiteramos que a lógica de pensamento segue padrões antropocêntricos e androcêntricos. Se há
um forte empenho para a manutenção dessa racionalidade, isso implica na reprodução e no
fortalecimento dos dualismos em todas as esferas da vida – inclusive, sua sobrevivência é
mantida assim –, além da neutralidade e do esvaziamento histórico. A natureza é categorizada
como parte desse aparelho e dessa lógica. Para a autora, a única esperança reside em uma
mudança cultural para uma genuína democracia futura. Para isso, a teórica distingue duas
tarefas fundamentais: recolocar o ser humano nesse campo ecológico e depois pô-lo no campo
ético, unificando-os e desmistificando essa separação que foi produzida ao longo do tempo.
Assim como Plumwood, Alicia Puleo41 centrará suas discussões em ampliar o campo
moral para os animais não humanos. Como referência para pensar um ecofeminismo não
essencialista, Puleo nos convida a construir um ecofeminismo crítico, como assim define,
inclusive apontando críticas às outras teorias ecofeministas que induzem a um pensamento
essencialista.
O pensamento de Alicia Puleo se orienta como um convite a um jardim-horta aos moldes
epicuristas, mas ecofeminista (PULEO, 2019). Seria um lugar aberto a se pensar sobre
possibilidades de outro mundo, que estejam orientadas pela paz com a natureza, pela igualdade,

40
“Rationalism has given us a deeply anti-ecological narrative of reason that has guided much of the
development of western culture, with the ecological crisis as its climax. This narrative or ideology tells us that
reason, above all else, is supreme in the world, and that reason is associated especially with the dominant
class, even defining of it. The universe is ordered completely by rational principles, which the representatives
of reason can discover and use in re-ordering the world for the benefit of rational beings.” (PLUMWOOD,
2002, p. 18).
41
Filósofa ecofeminista argentina, radicada na Espanha, propõe a formulação de um ecofeminismo crítico,
refutando críticas ao ecofeminismo e inclusive ao ecofeminismo essencialista.
51

pelo respeito à diversidade, sem exploração humana e animal e livre de opressões como o
androcentrismo e o antropocentrismo.
Se Plumwood nos convida a uma análise crítica sobre a questão da crise ecológica com
uma analogia ao filme Titanic, Alicia Puleo propõe que repensemos os mitos, a partir do
Minotauro42. Assim, a pensadora percebe Ariadna como protagonista, redirecionando o fim
dessa história com empatia e solidariedade pelo ser vivo, de forma a libertá-lo e não o levar à
morte, como sinônimo de um ato heroico executado por Teseu. Segundo Puleo (2019, p. 75,
tradução nossa) sua

[...] elaboração para o século XXI faz que Ariadna entre com Teseo no labirinto e
juntos liberam o Minotauro, que é o Outro, a Natureza maltratada, incompreendida e
sofrível, nossa natureza interna e natureza externa, o mundo vivo não humano. A bola
de lã de Ariadna representa os saberes, atitudes e sentimentos desvalorizados por
terem sido historicamente femininos: empatia com o Outro, cuidado e compaixão... É
símbolo de uma chave para a superação do preconceito androantropocêntrico da
cultura. E sublinho historicamente femininos, porque os considero um resultado de
potencialidades presentes em maior e menor medida em todos os seres humanos.

Para Puleo (2013), a junção do feminismo com o ecologismo representa também uma
nova maneira de reassumir práticas, sujeitos, aspectos até então inferiorizados ou tratados de
forma diferente na sociedade.
Assim Puleo define o ecofeminismo:

O ecofeminismo é um outsider, ou seja, um pensamento e movimento diferente das


formas mais conhecidas de feminismo. Surgiu do encontro entre feminismo e
ecologia. Não é um simples feminismo ambientalista que se limita a propor um uso
racional dos recursos naturais. Este é um propósito necessário, claro, mas o
ecofeminismo é muito mais do que isso. Implica uma nova visão empática da Natureza
que redefine o ser humano em uma chave feminista para avançar em direção a um
futuro livre de qualquer dominação.43 (PULEO, 2019, p. 19-20, tradução nossa).

42
Minotauro é um mito grego que fala de um ser com cabeça e cauda de touro, o qual habitou o labirinto de
Creta. Minotauro nasceu da união de Pasífae, esposa de Minos, com um touro, resultando em um ser com
cabeça e cauda de touro e corpo de humano. Isso teria sido fruto de um castigo de Poseidon a Minos, em razão
do último ter tentando lhe enganar, já que não havia sacrificado o touro enviado por Poisedon, como forma de
alcançar o seu desejo de ser o rei de Creta. Então, Minos, por medo do Minotauro, enviou-o para dentro do
labirinto. Após vencer uma guerra contra Atena, ela enviou, como vingança pela perda de um dos filhos,
atenienses para matar o Minotauro. Após três anos, Teseu apareceu decidido a matar o Minotauro e teve a ajuda
de uma das filhas do rei, pela qual estava apaixonado, levando a vida desse ser à morte.
43
“El ecofeminismo es un outsider, es decir, un pensamiento y un movimiento diferentes a las formas más
conocidas del feminismo. Surgió del encuentro del feminismo y la ecología. No es un simple feminismo
ambiental que se limite a proponer un uso racional de los recursos naturales. Este es un propósito necesario.
Desde luego, pero el ecofeminismo es mucho más que eso. Implica una nueva visión empática de la Naturaleza
que redefine al ser humano en clave feminista para avanzar hacia un futuro libre de toda dominación”.
52

Para a autora, as crises ecológicas e econômicas e os estilos de vida se entrelaçam, e


isso têm se demonstrado nas últimas reuniões políticas sobre mudanças climáticas e
desenvolvimento sustentável. Nelas, mesmo que se demonstre preocupação, mantém-se longe
de uma proposta satisfatória e realista. As únicas propostas são pensadas a partir de um
capitalismo verde, no qual os interesses econômicos prevalecem acima da condição de vida do
planeta e são mantidos pela mercantilização de vidas e da natureza.
Puleo define seu ecofeminismo como crítico, fazendo referência ao Iluminismo
moderno e pedindo revisão dele: “É evidente que todos os ecofeminismos são críticos na
medida em que criticam o sistema vigente, mas escolhi esse adjetivo como referência às
promessas não cumpridas do Iluminismo e sua conexão com os novos desafios do milênio”
(PULEO, 2019, p. 50). A teórica acredita que as mulheres não devem ser somente as agentes
para essa mudança, mas o aporte ecológico que procura também essa igualdade. O objetivo de
Puleo é pensar em um novo mundo sem opressão e exploração, que relacione outros seres vivos
entre si com a natureza44. Para isso, é necessário pensar a razão em conjunto com a emoção.

Razão e emoção têm que estar conectadas para que o ser humano seja um ser
equilibrado capaz de alcançar uma qualidade de vida que não passe pela multiplicação
ad infinitum dos objetos materiais, mas pelo aprimoramento das relações interpessoais
em igualdade, por ter mais tempo livre e ser capaz de usá-lo de maneiras não
alienadas. (PULEO, 2013, p. 14).

Pensar em uma proposta ambiental é também pensar na sobrecarga da divisão social dos
trabalhos, porque não há intenção de a teoria salvar o meio ambiente a partir das lutas das
mulheres, que já lidam com muitas jornadas de tarefas. A tarefa agora não é somente reivindicar
o lugar das mulheres na cultura, como se propuseram as primeiras feministas, requisitando
espaços até então dominados por homens, mas valorizar as experiências e os lugares que as
mulheres possuem juntamente à natureza, para, dessa forma, contribuir para a expansão da
sensibilidade ecológica para além dos seres humanos.
De acordo com Puleo, mesmo após o movimento iluminista, que impulsionou a
formação das democracias modernas, as mulheres ainda eram excluídas do pensamento, de um
lugar político e social, sempre ainda declarando seu lugar no âmbito doméstico. Mesmo quando
trabalhavam, estavam sempre tutoradas pelo pai, pelo irmão ou pelo marido.

44
Alicia Puleo pontua a intenção de ressignificar os nomes em sua abordagem. Meio ambiente tem se
demonstrado um termo definido pelo antropocentrismo e que o instrumentaliza. A natureza se reduz ao meio
ambiente sobre essa lógica do homem. A visão ecológica quer ampliar o conceito de natureza, inclusive por
abranger concepções filosóficas, artísticas, emotivas. (2013, p. 14).
53

Apesar da participação determinada de muitas mulheres no ambiente intelectual e nas


ações revolucionárias, as democracias modernas nascidas da crítica esclarecida
acabaram excluindo as mulheres do mundo público por serem mais próximas da Mãe
Natureza e inadequadas, portanto, para a elevada racionalidade da esfera pública. Em
vez disso, presumiam que os homens pertenciam, devido às suas capacidades
intelectuais (embora com diferenças, de acordo com a classe e a raça) ao mundo da
cultura. Com a modernidade, o racismo, o sexismo, a homofobia, o classismo e o
antropocentrismo extremo deixaram de ser legitimados a partir de narrativas bíblicas
e comentários teológicos para se tornarem justificados com um discurso secularizado.
(PULEO, 2013, p. 47).

A proposta de Puleo é a de pensar e ser pensada com outra perspectiva na urgência dos
tempos da mudança climática, sem desandar o caminho percorrido pelo feminismo nem
abandonar os fundamentos que nos têm permitido avançar nele. A cultura do cuidado esteve
associada historicamente ao coletivo feminino por inúmeros fatores: a história individual, as
relações de classe social, as crenças religiosas, as doutrinas políticas e outros fatores que
determinaram as formas da sua expressão e do seu alcance. Como Puleo refuta alguns
argumentos da vertente mais clássica, ela destaca a importância de se reconhecer que as
mulheres são protagonistas da mudança ecológica para um viés não androcêntrico, mas
argumenta que elas devem ser livres para manter suas escolhas, porque não haveria de ser uma
condição inata a elas – ao contrário, isso se deve muito à divisão do trabalho e ao sistema
dualista de sexo/gênero.
Como foi um processo imposto por essas condições externas às próprias mulheres,
algumas assumirão esse cuidado e essa defesa para com os animais não humanos e a natureza
como um todo, mas nem todas assumirão tal tarefa ecológica. Porém, Puleo alerta para o fato
de que a sobrecarga de trabalhos para elas só aumenta com os crimes ambientais, e isso também
traz efeitos negativos no que diz respeito à alimentação, assim como aos cuidados de saúde para
mulheres e crianças.
As mulheres não são mais naturais que os homens. Portanto, não se pode exigir delas
que sejam cuidadoras do ecossistema. Nesse sentido, destacamos que as mulheres
historicamente assumiram as atividades que desenvolveram seu lado de empatia e cuidado mais
forte que os homens. Todavia, isso não quer dizer que todas as mulheres são ou foram capazes
de ser empáticas. Isso, na verdade, expõe o quanto o patriarcado conduz padrões de identidade
a figuras masculinas e femininas, reproduzindo formas de dominação sobre práticas e corpos.
Ou seja, Puleo nos alerta do risco também de não estarmos reafirmando estereótipos a partir
dessa lógica patriarcal e reafirma que as potencialidades de cuidado estão em todas as pessoas,
mas foram mais desenvolvidas pelas mulheres por causa dos motivos apresentados acima.
54

Assim, a teórica afirma que não se trata de ter uma essência feminina do cuidado, senão
de reconhecer, desde uma perspectiva nominalista, o fato de as obrigações, até o momento,
serem mais assumidas pelo coletivo de mulheres, justamente porque seu âmbito de ação
coincide com o doméstico e o privado, local no qual se determina ou mesmo se situa o início
dessa consciência e desse exercício ecológico. As vozes das mulheres devem ser escutadas,
para que se tenha um futuro digno a ser vivido. As práticas do cuidado devem ser
universalizadas para além das mulheres e devem se estender ao mundo natural (PULEO, 2015).
O feminismo demonstra que a luta pela igualdade não é só pelo acesso aos recursos, mas
também pelo desenvolvimento da autonomia e o protagonismo de mulheres. Por isso, o
ecofeminismo tem exigido a valorização do conhecimento que as mulheres rurais do Sul
possuem sobre ecossistemas. Nesse caso, a cooperação não pode ser tratada desde uma
perspectiva paternalista e produtivista, como se a escada fosse levar a um modelo de mundo
desenvolvido. Os exemplos que foram colocados a serem seguidos ou atingidos é que devem
ser repensados. O projeto de desenvolvimento deve ser rompido.
As relações com os países classificados como desenvolvidos ou subdesenvolvidos são
marcadas por injustiças, que os mantêm em uma condição de dependência e dívida, colocando
seus territórios como lugares para a exploração de diferentes domínios. Por isso, a proposta
deve ser pautada na mudança do conceito de progresso que foi construído e adotado até o
momento. Outra proposta é pensar acerca de políticas públicas, pensadas por mulheres rurais e
urbanas, para intensificar as nascentes redes sociais e comerciais, alternativas que fazem
possível a resistência da produção sustentável e do comércio justo frente ao avanço das grandes
corporações.
Porém, ao pensar o meio ambiente a partir do gênero, devemos considerar que as
mulheres rurais, agricultoras, quilombolas, ribeirinhas são menos favorecidas para chegarem à
tão sonhada igualdade. Um dos problemas do meio rural é o despovoamento massivo das
mulheres: encontram poucos serviços, um maior controle e mais pressão social que dificultam
a evolução dos trabalhos de gênero. A saída para a zona urbana se dá, muitas vezes, pela falta
de perspectiva e pelo desejo de independência das mulheres. Ao se dar de frente com uma
escolha que ameaça seu futuro, elas tomam como decisão o afastamento daquilo que ameaça
sua autonomia. Por algumas dessas situações, as mulheres são tratadas como guerreiras, fortes,
capazes de assumir desafios e tomar novos rumos, sem pensar nessas consequências para si.
Essa condição é fruto também de tal construção ao identitário de gênero dessas hierarquias: “as
mulheres são seres capazes de suportar qualquer dor e, portanto, podem sofrer ou passar por
diferentes circunstâncias, porque resistirão.”
55

Aplicando essa afirmação ao projeto de um ecofeminismo crítico, tentaremos


aprender com as culturas sustentáveis como um corretivo oportuno à nossa civilização
suicida, mas teremos que fazê-lo tentando não cair na admiração feliz do estrangeiro.
Também devemos ser capazes de reconhecer em nós mesmos algo a oferecer aos
outros. Trata-se de construir juntos uma cultura ecológica de igualdade, não de venerar
os próprios costumes ou os dos outros apenas por fazer parte da tradição cultural. O
passado geralmente foi cruel com mulheres e animais não humanos.45 (PULEO, 2013,
p. 35, tradução nossa).

Como diz Puleo, se o feminismo quer manter seu caráter internacionalista, deve tomar
essa perspectiva ecologista no pensamento, considerando que as mulheres do Sul são as
primeiras vítimas da destruição do meio natural, por conta de uma política neoliberal, que utiliza
o meio que elas vivem e os seus corpos para produzir coisas para o “primeiro mundo”. Os
recursos naturais são consumidos sem atender à possibilidade ou à impossibilidade de sua
renovação. Portanto, é importante reivindicar uma ecojustiça e uma sororidade. E o
ecofeminismo deve ser pensado também em termos interculturais, reconhecendo a importância
de que se pensem as culturas, em uma relação de aprendizagem e trocas, mas sem deixar de
construir um olhar crítico para as sociedades, sem desconsiderar aspectos históricos e sociais,
porque uma romantização de relações humanas com a natureza pode também encobrir
violências.
Destacamos esse aspecto para levar em conta que o patriarcado, em um contexto
capitalista, mascara-se por meio de diferentes opressões – nem sempre da mesma forma ou na
mesma intensidade nas sociedades. Puleo (2019) nos alerta para o fato de que nenhuma
sociedade tem sido satisfatória para as mulheres, assim como grupos racializados, étnicos ou
que diverge da sexualidade dominante (cishetero) e separa duas formas para compreender de
que maneira essas violências têm sido apresentadas. A teórica divide a compreensão da
estrutura do patriarcado em duas: coerção e consentimento. Essa estrutura é utilizada por ela
para pensar as formas que foram utilizadas para continuar a violentar as mulheres. E ela constrói
essa relação até mostrar a conexão entre a dominação das mulheres e dos animais não humanos.
O patriarcado de coerção, fortemente utilizado nas primeiras sociedades antigas ou
como o próprio continente europeu do século 19, por exemplo, no qual, as mulheres eram
limitadas aos estudos ou ao voto. É uma estrutura aplicada por meio de normas ou leis sobre

45
“Aplicando esta afirmación al proyecto de un ecofeminismo crítico, trataremos de aprender de culturas
sostenibles como oportuno correctivo a nuestra civilización suicida, pero tendremos que hacerlo tratando de
no caer en una admiración beata de lo ajeno. También tenemos de ser capaces de reconocer en lo propio algo
que ofrecer a los démas. Se trata de construir en conjunto una cultura ecológica de la igualdad, no de venerar
las costumbres propias o de otros sólo por ser parte de la tradición cultural. El pasado, ha sido, por lo general,
cruel con las mujeres y los animales no humanos.” (PULEO, 2013, p. 35).
56

condutas, práticas, com forte demarcação de gênero. É facilmente identificado a partir de


realidades em países nos quais as mulheres são submetidas a padrões de comportamento que as
proíbem de frequentar universidades ou a trabalhar apenas com autorização dos maridos ou
pais, ou até mesma da instituição religiosa dominante na sociedade. Nesse patriarcado, as
mulheres são limitadas e definidas a partir do seu sexo, portanto a estrutura passa a controlar
também seus desejos e consequentemente sua sexualidade.
Já o patriarcado de consentimento, reproduzido pelas sociedades ocidentais e
capitalistas, induz pressões e condições sob um manto da falsa escolha, no qual as mulheres
vão acabar optando por aquilo que as afeta negativamente ou lhes sobrecarrega, mas
acreditando que tinham escolhas ou que agiram de forma autônoma. Esse tipo de patriarcado
usa o consumo e o desejo como mecanismo para essa violência, sem necessariamente estar
atrelado a uma violência de adequação às leis.
A violência se reproduz agora por meio de simbologias atribuídas à ideia de
empoderador e desejante, estruturadas pelo sistema econômico neoliberal. Como exemplo,
podemos citar a eterna busca pelos padrões de beleza, a constante preocupação em se manter
jovem e a idealização da mulher forte, que é capaz de dar conta de todas as tarefas e as funções
socais, como as de ser mãe, esposa, trabalhadora etc. Inclusive, a maternidade compulsória é
apresentada de forma livre a essa mulher moderna. Esses traços são mascarados nessa lógica,
como pertencentes ao desejo da mulher, mas escondem o controle dos nossos corpos. Resume
Puleo (2019, p. 61): “[...] no patriarcado do consentimento, se invoca a liberdade como álibi da
opressão”.
Como Puleo (2019) expõe, as mulheres, no patriarcado de consentimento, passam a
entrar no mercado como corpos para o prazer e para a reprodução. No jardim ecofeminista
defendido pela autora, “[...] não será cultivado nem no chão de um passado opressor, nem de
um presente alienado” (PULEO, 2019, p. 68). Por isso, no seu jardim, a maternidade deve ser
realizada de forma livre e não forçada, e o aborto deve ser uma garantia das mulheres. Como
afirma a referida teórica, “[...] uma cultura ecológica da igualdade exige o reconhecimento das
mulheres como sujeitas de poder de decisão sobre sua própria vida e, portanto, sobre os
processos que têm lugar em seu corpo. A maternidade forçada é incompatível com os direitos
das mulheres e com a sustentabilidade do planeta”46.

46
“Una cultura ecológica de la igualdad exige el reconocimiento de las mujeres como sujetos con poder de
decisión sobre su propia vida y, por lo tanto, sobre los procesos que tienen lugar en su cuerpo. La maternidad
forzada es incompatible con los derechos de las mujeres y con la sostenibilidad del planeta”. (PULEO, 2019,
p. 58).
57

Assim como as mulheres, os animais não humanos dentro dessa cultura


androantropocêntrica serão avaliados na categoria do feminino, de modo que todas as violências
a esses seres serão justificadas para manter atitudes e práticas consideradas masculinas e
destrutivas, dentro dessa forma de pensar hierarquizada e agressiva. Os seres não humanos estão
à serviço desse sistema por duas razões, apresentadas por Puleo: experimentar a vontade de
poder e afirmar uma identidade de gênero que foi construída e ainda é mantida pela repressão
de sentimentos como empatia e compaixão. Como exemplo, a pensadora cita as corridas de
touros espanholas, mostrando os valores patriarcais de dominação sendo usados para “garantir”
a virilidade desse homem “racional”.

A questão dos touros não é uma simples discussão sobre gostos, mas uma questão de
valores, compaixão, justiça. Em uma palavra: ética. E não é uma questão de gosto
porque está em jogo o sofrimento e a morte de um ser que se sente como eu e você. A
estética nunca pode justificar uma falta de ética. E, além disso, pode ser considerada
estética aquela carnificina pública que consiste precisamente em destruir a beleza de
um ser vivo em todo o seu esplendor?47 (PULEO, 2019, p. 110).

Por isso, o ecofeminismo deve ser pautado em pensar uma ética que desperte a
consciência antiespecista, desenvolvendo valores que sejam capazes de restabelecer novas
relações entre animais não humanos e humanos, sem que estejam elas baseadas na exploração
e na violência.

Assim, perpetuou-se um dualismo fortemente hierárquico: no lado inferior, as


mulheres, os animais, os assuntos domésticos, as tarefas de cuidado necessárias à
manutenção dos corpos, a afetividade que consola e repara a Natureza; no superior,
Cultura, espírito e homens, que deveriam reprimir em seu interior sentimentos
empáticos e compassivos (desvalorizados como femininos) para desenvolver as
características de comando, dominação e guerra. O ser humano (anthropos) era
definido como Espírito, mas também era visto como masculino (Andros), em oposição
à Natureza, matéria e mulher.48 (PULEO, 2019, p. 71, tradução nossa).

47
“La cuestión de los toros no es de una simple discusión sobre gustos, sino un asunto de valores, de compasión,
de justicia. En una palabra: de ética. Y no es una cuestión de gustos porque está en juego el sufrimiento y la
muerte de un ser que siente como tú y como yo. Nunca la estética puede justificar la falta de ética. Y, además,
puede considerarse estética esa carnecería publica que consiste justamente en destruir a belleza de un ser vivo
em todo su esplendor?” (PULEO, 2019, p. 110).
48
“Se perpetuó, así, un dualismo fuertemente jerarquizado: en el lado inferior, quedaron las mujeres, los
animales, lo doméstico, las tareas del cuidado necesarias para el mantenimiento de los cuerpos, la afectividad
que consuela y repara, la Naturaleza; en el superior, la Cultura, el espíritu y los hombres, a los que se exigió
que reprimiera en su interior los sentimientos empáticos y compasivos(devaluados como femininos) para
desarrollar las características propias del mando, del dominio y de la guerra. Se definió al ser humano
(anthropos) como Espíritu, pero también se lo vio como varón (Andros), en contraposición a la Natureza, la
materia y la mujer.” (PULEO, 2019, p. 71).
58

Assim como Shiva e Mies, Puleo parte do princípio de que há uma importância vital na
reintegração do ser humano ao que lhe foi tirado por esses dualismos, ampliando o cuidado e a
moral para toda a esfera ecológica e para os seres não humanos. Portanto, a autora considera a
importância, inclusive epistemológica, de revisão de toda a autoconsciência humana como
indivíduo e espécie, partindo, principalmente, dessa conscientização acerca de tais opressões,
de modo a reconhecer o caráter histórico de elementos de dominação de gênero, raça, classe,
orientação sexual e espécie (PULEO, 2019). Assim, a pensadora expõe:

Precisamos de uma reconceitualização do ser humano que integre razão e emoção, um


sentido moral mais desenvolvido que se aplique aos animais não humanos,
companheiros de vida na Terra, capazes de sofrer e amar, e uma ética da
responsabilidade de acordo com o novo poder tecnológico da espécie. Essas
transformações da consciência moral devem ser acompanhadas por leis. 49 (PULEO,
2013, p. 56, tradução nossa).

Assim como referencia a luta dos povos indígenas e dos movimentos campesinos contra
os projetos de globalização e desenvolvimento do Norte, Puleo destaca a importância de ampliar
os direitos e a proposta de educação ambiental pautada nessa reintegração. De acordo com
Puleo, a educação ambiental tem desconsiderado as mulheres e não tem promovido uma leitura
crítica sobre os trabalhos de gênero, não desenvolvendo empatia com respeito ao mundo
natural, ainda sendo mediada por uma concepção patriarcal, que evoca dualismos como razão
e emoção. Assim Puleo expõe:

A educação ambiental vigente ainda não facilita uma consciência crítica dos papéis
de gênero e não torna as mulheres visíveis como vítimas da crise ecológica e como
protagonistas da mudança para uma cultura de sustentabilidade.50 (PULEO, 2019, p.
95, tradução nossa).

Para Puleo (2019), a educação ambiental como disciplina curricular surgiu na década de
1970, com o objetivo de conscientizar a respeito da ameaça do modelo progressista sobre os
ecossistemas. A disciplina como conteúdo curricular se propõe a enfrentar os desejos
consumistas supérfluos, que, diga-se de passagem, eram estimulados ao novo plano de vida,

49
“Necesitamos uma recoceptualización del ser humano que integre razón y emoción, um sentido moral más
desarrolhado que se aplique a los animales no humanos, compañeros de vida em la Tierra, capaces de sufrir
y amar, y una ética de la responsabilidade acorde com el nuevo poder tecnológico de la espécie. Estas
transformaciones de la conciencia moral han de ser acompanhadas de leyes.” (PULEO, 2013, p. 56).
50
“La educacion ambiental predominante sigue sin facilitar una conciencia crítica de los roles de género y sin
visibilizar a las mujeres como víctimas de la crisis ecológica y como protagonistas del cambio hacia una
cultura de sostenibilidad.” (PULEO, 2019, p. 95).
59

introduzindo um sistema obsoleto51, que desperta o desejo de consumo desenfreado por coisas
destinadas a morrer previamente, para serem prontamente substituídas. A outra questão que se
apresenta diz respeito ao uso da natureza como fonte inesgotável de recursos.
A importância da educação ambiental é despertar a justiça ecológica, de modo que
também desperte o cuidado à natureza e o florescimento das capacidades humanas. De acordo
com Puleo(2019), a educação ambiental não deve ser uma disciplina afastada do resto; ao
contrário, deve estar integrada às diversas áreas de conhecimento, como forma de compreender
todas as dimensões de um problema de forma ecológica, econômica, social e cultural.
A formação do corpo discente ainda se constrói de forma precária e não pode ser
separada de uma educação que assegure políticas públicas de gênero, como a disponibilidade
de creches e programas sociais. Quando falamos de políticas ambientais, não se colocam em
conta essas medidas. A limitação da educação ambiental à perspectiva científica, objetiva,
mantém a separação entre humano e não humano, a redução da natureza a meio ambiente e a
homogeneização dos demais seres vivos, incluindo-os como fauna, espécie ou recursos.
(PULEO, 2019).
Para Puleo, deve-se partir de um enfoque plural para a educação ambiental, segundo a
qual ver a morte dos seres vivos deve ser associado a problemas ambientais. Por isso, é
importante pensar em uma educação que considere e eduque para uma empatia pelos seres vivos
além dos humanos. No discurso hegemônico da educação ambiental existe uma ideia de gênero
que exige a separação e o domínio com o que se considera natureza. De maneira consciente ou
inconsciente, a emoção, a benevolência, a empatia são consideradas como pouco científicas e
como femininas, sendo, por isso, reprimidas e vistas como natureza inferior. (PULEO, 2019).
Uma educação ambiental integral deve ser realizada de maneira comprometida, e não
somente pensada de forma complementar, se comprometendo a romper o androcentrismo, para
que possa incluir uma formação ecológica emocional construída a partir das experiências
históricas das mulheres e dos homens, de forma equitativa e responsável. No qual, o cuidado e
as tarefas referentes ao mesmo sejam assumidas de forma distributiva por ambos os gêneros.
Dessa forma, Puleo defende a educação ambiental como uma das ferramentas para
combater a crise ecológica na democracia. Portanto, para essa tarefa ser realizada, Puleo
enumera algumas condições que podem contribuir para um projeto ecofeministpensado a partir

51
A obsolência programada se dá de três maneiras: técnica, sistemática, estética. A primeira consiste na
durabilidade de um produto; a segunda, na de um sistema de hardware, por exemplo; e a última pode ser usada
na moda, fazendo acreditar que algo que usamos não condiz mais com o período.
60

de uma abordagem curricular comprometida com a questão ambiental. Segue assim as críticas
e propostas:
1) Romper com os aspectos androcêntricos da educação, que se baseiam mais em passar
dados ou informações técnicas, que integrar uma consciência afetiva e ética com a natureza. De
acordo com a teórica, como já foi inclusive colocado por Marti Kheel (2019), as relações com
a natureza e os seres vivos são construídas com base no amor, na empatia, sendo necessário,
portanto, construir uma autêntica educação emocional ecológica, que formule a base
pedagógica necessária para despertar esses sentimentos e construir essas relações.
2) Destacar o protagonismo das mulheres do Sul global, a partir de suas organizações
coletivas, porém, relacionando também os efeitos diretos e indiretos dos impactos ambientais
em suas vidas, principalmente das ações do Norte global para com o Sul Global.
3) Despertar o interesse do colegiado docente e a sua responsabilidade em provocar
discussões e exemplos acerca da natureza, promovendo mudanças e reflexões em seu corpo
discente. O corpo docente deve estar integrado e deve se propor a construir essas mudanças.
4) Incluir a nova consciência ética para com os animais, pautada nos estudos e na própria
formação social. A prática de cuidado deve ser ampliada para outras espécies não-humanas.
5) Mencionar à falta de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres em diferentes
realidades do mundo e como isso reflete na feminização da pobreza e na pressão acerca da
maternidade para as mulheres;
6) Questionar as formas de incentivos ao consumo, muito estigmatizados a partir dos
gêneros e romper com essas práticas, como exemplos, comprar excessivamente coisas ou trocar
de aparelhos tecnológicos;
7) Construir e propor práticas integrativas de produção e consumo, que estejam
preocupadas desde as práticas de cultivo até as condições de trabalho, isso pode ser considerado
a partir das práticas agroecológicas, da soberania alimentar, do comércio justo, assim como a
cooperativas locais e ecológicas e o veganismo, que levam em consideração uma proposta de
justiça e igualdade.
Dessa forma, a decisão por apresentar ao final de cada abordagem um projeto que possa
contribuir para uma práxis que seja feminista e ecológica é colocada aqui a partir da crítica à
educação ambiental, que continua a seguir os paradigmas da cultura androcêntrica e muitas
vezes não procura desenvolver para uma perspectiva emocional, que não esteja preocupada
apenas em decorar dados ou tabelas, mas que possa assumir o compromisso com a solidariedade
e a empatia. Por essa razão, na última parte desse trabalho, a crítica aqui apresentada será
abarcada e compreendida para além de uma disciplina, ampliada a criticar todo o currículo e as
61

instituições formais que se colocam ainda como mantenedoras desses paradigmas expostos por
essas perspectivas.

1.4 Conclusão

A crítica apresentada nesse capítulo por Vandana Shiva, Maria Mies, Val Plunwood e
Alicia Puleo serão referências para compreender os ismos de dominação, denunciados pelas
feministas e ao mesmo tempo mantidos por uma tradição filosófica baseada em uma
racionalidade fincada na Modernidade. Objetivou-se também pensar sobre um projeto, que
questione a educação, no qual o currículo não somente seja questionado, mas toda a estrutura
ético política que apagou saberes e grupos sociais marginalizados, como é o caso das mulheres.
O projeto apresentado pelas autoras nos auxilia a pensar que somente uma crítica à sociedade,
não é suficiente se não for acompanhada de uma proposta política que seja pensada dentro de
uma perspectiva local e que faça sentido para as sociedades que foram empobrecidas, e que
escapam da lógica hegemônica. Portanto, no próximo capítulo, a proposta é compreender como
a conjugação entre feminismo e ecologia é compreendida no território da América Latina.
62

CAPÍTULO 2
FEMINISMOS E ECOLOGIA: ENTRELAÇOS E SENTIDOS NA AMÉRICA
LATINA
63

2 FEMINISMOS E ECOLOGIA: ENTRELAÇOS E SENTIDOS NA AMÉRICA


LATINA

Para prosseguir com os debates sobre feminismo e ecologia, a proposta é compreender


os aspectos sociais que contribuíram para a construção teórica dessa discussão no território. Por
isso, três abordagens serão aqui analisadas: a teologia feminista, o feminismo comunitário e o
ecofeminismo animalista. A construção da teologia feminista foi realizada a partir da Teologia
da Libertação, que, posteriormente, chegou à crítica ecofeminista formulada por Ivone Gebara,
construída no solo brasileiro. O feminismo comunitário é uma concepção de pensamento e
movimento que nasce no território de Abya Ayla, formulado por mulheres indígenas, do povo
aimara e quechua, e que questiona todas as formas de universalização não só da história, porém
do próprio feminismo. Por essa razão, questiona não somente os feminismos europeus, que se
autodeclaram como principiantes na luta das mulheres, mas também a institucionalização do
movimento, que se assume mais como teoria do que luta, nos últimos anos – visa questionar e
romper os paradigmas e referenciais teóricos ainda presentes nos feminismos hegemônicos e
nos ecofeminismos.
Porém, não trazemos a discussão do movimento somente por sua crítica. Apresentamo-
las porque a questão da ecologia no movimento é pensada sob outra perspectiva, na qual os
seres humanos e a natureza não foram pensados e situados numa relação dicotômica
institucionalizada e hierarquizada pelo Ocidente. Por isso, a luta em defesa da natureza não
estaria dissociada. Ao contrário, as lutas feministas e pela defesa do território estão
atravessadas, inclusive existindo muito antes dos movimentos ambientalistas e ecológicos da
década de 1960.
Além disso, ampliaremos o debate com as construções teóricas da perspectiva
ecofeminista animalista que centraliza a pauta animal como um alicerce fundamental para a
construção da ética ambiental, introduzindo novos conceitos para abordagem que amplia o lugar
do cuidado na vida das pessoas e contribui para o debate sobre a expansão dos receptores morais
e dos direitos animais.
Apesar de divergentes em muitos aspectos, as teorias nos auxiliam a compreender, sob
diferentes territórios, comunidades e vozes, as formas de naturalização de violências na
América Latina e, consequentemente, a contribuir para a construção da luta feminista, a partir
do Sul global, que encampe a natureza na centralidade de suas pautas.
64

2.1 O ecofeminismo em Abya Ayla

Em Abya Ayla52, região que ficou conhecida pós-colonização como América Latina, as
principais representantes da agenda teológica ecofeminista foram Coca Trillini, na Argentina;
Fanny Geymonat-Pantelís e Alcira Agreda, na Bolívia; Ivone Gebara, Agamedilza Sales de
Oliveira, Sandra Duarte e Sandra Raquew, no Brasil; Marcia Moya, no Equador; Rosa Dominga
Trapasso, no Peru; Mary Judith Ress, no Chile; Graciela Pujol, no Uruguai, e Gladys Parentelli
e Rosa Trujillo, na Venezuela. Todas tinham um ponto em comum: a fundamentação ética e
política na Teologia da Libertação53. Entretanto, é possível afirmar que as influências estariam,
para além disso, abarcando conceitos de teorias feministas, teorias ecofeministas dos EUA,
ecologia profunda, cosmovisões indígenas, psicologia analítica, dentre outras experiências
teóricas e práticas que puderam contribuir para a construção dessas práxis ecofeministas em
Abya Ayla (LADANTA LASCANTA, 2017, p. 38.)
O relato histórico do movimento ecofeminista em Abya Ayla foi descrito pelo coletivo
venezuelano LaDanta LasCanta (2017). Esse coletivo apresentou o movimento em duas partes:
primeiro, o ecofeminismo a partir da teologia; e o segundo, o ecofeminismo que nasceu a partir
do cuidado com os territórios. Na descrição dos seus trabalhos, as teólogas ecofeministas, de
acordo com o Coletivo Miradas Críticas al Território desde el Feminismo, retrata o corpo como
o primeiro território de luta, sendo assim um espaço político e sagrado, que guarda as memórias
e as experiências que conecta as mulheres ao seu espaço. Já no segundo momento, muito dos
grupos latino-americanos não se definem como ecofeministas, apesar de assumirem práxis nas
suas agendas de lutas que se encaixam na definição adotada pelo coletivo como imaginários
ecofeministas. Para o coletivo LaDanta LasCanta(2017), os imaginários correspondem a
práticas que estão associadas à luta contra o avanço do mineração, ou pela defesa da terra, da
água, por exemplo. Por essa razão, elas acreditavam que se aproximavam das propostas do que

52
De acordo com o coletivo ecofeminista LaDanta LasCanta, grupo ecofeminista de investigação e ações, o
nome Abya Ayala é formulado pelos povos originários desse território e representa uma postura política e de
resistência contra o eurocentrismo, assim como de marcação do início do período extrativista e suas
consequências para os povos indígenas (LADANTA LASCANTA, 2017). Abya Ayala representa a região que
foi denominada pelos colonizadores de América Latina e se divide, dentro dessas regiões, em tecidos. No
Brasil, por exemplo, é denominada pelos povos originários pelo tecido Pindorama.
53
A Teologia da Libertação foi um movimento católico latino-americano, que surgiu entre as décadas de 1960 e
1970, com religiosos que passaram a adotar nas suas práxis católicas reflexões influenciadas por teorias
marxistas. Seus representantes procuravam não somente assistir à pobreza instalada nesse território, mas
analisar criticamente as causas que mantinham esse empobrecimento. Nesse período, a Igreja Católica, a partir
desse corpo teológico, aproximou-se mais dos grupos sociais que vivem em meios rurais, camponesas,
moradoras de comunidades e subúrbios empobrecidos, ao invés da ordem que sempre esteve historicamente
ligada: as instituições de poder e a elite.
65

foi definido como ecofeminismo, baseadas nas primeiras construções sobre a teoria. Importante
destacar que as práticas desses grupos antecedem ao conceito ecofeminista, formulado na
década de 198054.

A relação que se estabelece entre a Teologia da Libertação e o ecofeminismo se


articula a partir do conceito de sustentabilidade, do reconhecimento da condição
precária dos países empobrecidos e da posição que os povos indígenas adquiriram na
destruição ambiental. Essa abordagem ecofeminista mostra a importância de se
compreender Deus integrado à natureza, onde os seres humanos, os animais e os
demais habitantes da terra fazem parte da criação e devem ser tratados com empatia e
respeito.55 (TRIANA, 2016, p. 126, tradução nossa).

Desse modo, podemos afirmar que o movimento da teologia ecofeminista nasceu no


início dos anos 1990, como resposta aos “eventos históricos” da época, tais como a expansão
das políticas neoliberais ao redor do mundo, em especial contra países empobrecidos. As
religiosas viram com isso a necessidade de construir ações e pensamentos que incluíam as
experiências das mulheres desses territórios, considerando seus corpos como lugares políticos.
As ecofeministas do Sul global, influenciadas pela Teologia da Libertação, articularam
a proposta de práxis sempre pensada de forma coletiva. De acordo com LaDanta LasCanta, a
primeira vez que surgiu a proposta de articulação dos grupos foi a partir do V Encuentro
Feminista Latinoamericano y del Caribe, realizado na Argentina, em 1990. O coletivo Con-
spirando, organizado em 1991, foi uma das grandes referências para a expansão do
ecofeminismo e o fortalecimento do movimento em Abya Ayla. Esse coletivo contava com uma
revista com o mesmo nome, que reúne trabalhos de diversas autoras sobre o âmbito da
espiritualidade, da teologia feminista e do ecofeminismo, publicados entre 1992 e 2009.

No ano seguinte, nasceu Con-spirando, o coletivo ecofeminista mais influente de


Abya Yala e promotor da revista de mesmo nome. [2] É uma organização horizontal,
diversa e multinacional que não depende da academia ou de qualquer organização
religiosa (Gebara, 1999, 14). É formada por feministas, "buscadoras de novas visões
nos campos da espiritualidade, teologia feminista e ecofeminismo". [3] Eles têm
diferentes espaços de formação, uma escola feminina, um curso anual de verão de

54
Alguns grupos ecofeministas ou imaginários ecofeministas enumerados pelo coletivo, dos anos 1980 até o
momento que foi realizada a pesquisa: EcoRed Feminista La Lechuza Buza (México); Corporación de Mujeres
Ecofeministas Comunitar (Colômbia); [7] el mencionado grupo Con-spirando (Chile); Fundación Medio
Ambiente y Alternativas al Desarrollo (Bolívia); Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo
(Equador); Comando María Moñito, impulsado pela artista plástica conceitual ecofeminista e antiespecista
Argelia Bravo Melet, e LaDanta LasCanta, coletivo de investigação e ação (Venezuela).
55
“La relación establecida entre la Teología de la Liberación y el ecofeminismo se articula desde el concepto
de sostenibilidad, el reconocimiento de la precaria condición de los países empobrecidos y la posición que los
pueblos indígenas han adquirido dentro de la destrucción medio ambiental. Esta aproximación ecofeminista
muestra la importancia de comprender a Dios integrado a la naturaleza, donde los seres humanos, los
animales y el resto de habitantes de la tierra hacen parte de la creación y deben ser tratados con empatía y
respeto.” (TRIANA, 2016, p. 126).
66

teologia ecofeminista e uma proposta metodológica de transformação cultural. Eles


celebram rituais e mantêm uma biblioteca virtual. O coletivo-rede Con-spirando é o
epicentro da política ecofeminista em nosso continente, e Ivone Gebara se tornou sua
pensadora mais importante. Uma de suas fundadoras, a teóloga Mary Judith Ress
(2006), explica as contribuições do coletivo: 1) desmascarando alguns aspectos da
violência teológica contra as mulheres, 2) renomeando o sagrado e reconectando-se
com esta área, 3) oferecendo uma teologia corporificada e 4) trazer uma perspectiva
ecofeminista para a teologia56. (LADANTA LASCANTA, 2017, p. 38-39, tradução
nossa).

O grupo LaDanta LasCanta afirma que ainda há apagamento do movimento


ecofeminista no Sul global, na região de Abya Ayla, enumerando alguns motivos para isso:
1) o contexto de violência e precariedade enfrentado pelas próprias pesquisadoras e
ativistas: as dificuldades podem ser pensadas desde a conjuntura de violência machista, como
as condições materiais e de acesso ao ensino em diferentes espaços geográficos brasileiros.
Mesmo havendo, no Brasil, nos últimos anos, grande crescimento da participação feminina nos
cursos de graduação e pós-graduação nas universidades, isso não altera o quadro de
vulnerabilidade delas, que ainda lidam com violência doméstica, salários desiguais, e muitas
vezes são vítimas de assédio moral e sexual no ambiente de trabalho;
2) a influência e o poder epistêmico do Norte global, que influencia inclusive no destino
dos recursos financeiros e repercute no investimento das correntes de pensamento, pautada no
desenvolvimento e que se reflete na desigualdade de investimentos para pesquisas, bolsas, que
acabam sendo destinados por e para países desenvolvidos;
3) a redução de formas de pensamentos diferentes desses padrões para algo essencialista,
fragmentando sua forma de compreensão cultural, antropológica e territorial: apresentamos
como exemplo a questão do cuidado, mais abordada nos próximos subcapítulos, mas que, por
muito tempo, era associada como lugar do privado e de irrelevância diante de espaços públicos
de debate;
4) a falta da história sobre os ecofeminismos construídos pelo Sul global (LADANTA
LASCANTA, 2017, p. 37): como foi apresentado acima, mesmo esses lugares de debates sendo

56
“Al año siguiente, nació Con-spirando, el colectivo ecofeminista más influyente de Abya Yala y promotor de
la revista del mismo nombre. [2] Es una organización horizontal, diversa y multinacional que no depende de
la academia ni de ninguna organización religiosa (Gebara, 1999, 14). Está integrada por feministas,
“buscadoras de nuevas visiones en los ámbitos de la espiritualidad, la teología feminista y el ecofeminismo”.
[3] Cuentan con distintos espacios de formación, una escuela de mujeres, una escuela anual de verano de
teología ecofeminista y una propuesta metodológica de transformación cultural. Celebran ritos y mantienen
una biblioteca virtual. El colectivo-red Con-spirando es el epicentro de la política ecofeminista en nuestro
continente, e Ivone Gebara se ha convertido en su pensadora más importante. Una de sus fundadoras, la
teóloga Mary Judith Ress (2006), explica las contribuciones del colectivo: 1) desenmascarar algunos aspectos
de la violencia teológica contra las mujeres, 2) renombrar lo sagrado y reconectarse con este ámbito, 3)
ofrecer una teología encarnada y 4) llevar una perspectiva ecofeminista a la teología.” (LADANTA
LASCANTA, 2017, p. 38-39).
67

conquistados pelas mulheres, ainda são atravessados por dificuldades, que se reforçam a partir
de marcadores sociais e raciais. Como afirma o grupo: “[...] o problema fundamental ao qual
nos enfrentamos é a violência patriarcal em suas diversas formas: classista, racista,
governamental, corporativa, local, militar, paramilitar, delinquencial e familiar.” (LADANTA
LASCANTA, 2017, p. 43).
Sendo assim, o movimento marcado, principalmente pela questão território-corpo,
destaca, na sua agenda, as seguintes pautas: o compromisso com o direito ao território; a
autonomia; a soberania alimentar; o reconhecimento dos direitos dos diversos grupos de
mulheres (indígenas, rurais, campesinas, urbanas, negras); os direitos sexuais e reprodutivos; o
autocuidado e o autoconhecimento; as novas visões sobre espiritualidade; e a formação política
das mulheres para atuação pública. Com a diversidade e o contato com diferentes grupos, as
pautas também foram ampliadas para abarcar a defesa da água, da terra, e a reinvindicação por
saberes tradicionais, dentre outras pautas refletidas pelo contexto e pelos grupos sociais.

A gravidade dos conflitos que proliferaram na América Latina, nas últimas décadas
em nome do desenvolvimento, têm provocado a mobilização e o encontro de diversas
organizações sociais. Entre os conflitos que marcaram as agendas feministas e que
mobilizaram diversas organizações, encontramos megaprojetos de extração mineira,
exploração de petróleo – ambas com forte incidência em territórios indígenas –, a
privatização da água, a destruição ou anulação dos saberes tradicionais, biopirataria,
contaminação do campo e alimentos – por agrotóxicos comumente usados em
monoculturas.57 (REA, 2019, p. 136, tradução nossa).

Pode-se afirmar que a influência com o feminismo comunitário58 da Bolívia e da


Guatemala contribuiu para que as práticas ecofeministas pensassem o corpo como território,
ampliando os debates para além dos contextos urbanos e acadêmicos, incluindo questões
referentes aos problemas de água, terra, corpo-território e corpo-terra. A proposta do feminismo
comunitário abre a possibilidade de repensar a comunidade, não só em contextos rurais e
indígenas, mas em espaços que tenham convergência com essas lutas constantes acerca da
destruição do corpo e do território de forma conjugada e indissociável. Afinal, para as

57
“La gravedad de los conflictos que han proliferado en América Latina, durante las últimas décadas en nombre
del desarrollo, han provocado la movilización y encuentro de diversas organizaciones sociales. Entre los
conflictos que han marcado las agendas feministas y que han movilizado a diversas organizaciones,
encontramos los megaproyectos de extracción minera, la explotación petrolera –ambos de fuerte incidencia
en territorios indígenas-, la privatización del agua, la destrucción o invalidación de los conocimientos
tradicionales, la biopirateria, la contaminación del campo y los alimentos -por agrotóxicos de utilización
común en monocultivos.” (REA, 2019, p.136).
58
O feminismo comunitário foi construído entre os anos de 2006 e 2010, porém as discussões impulsionadas a
partir do feminismo autônomo foram iniciadas na década de 1990, como será apresentada no próximo
subcapítulo. Mesmo surgindo pós-entrada do Ecofeminismo e da Teologia da Libertação no Brasil, tem
influenciado bastante a construção do feminismo pensado a partir do Sul global e pelas experiências dessas
mulheres.
68

feministas comunitárias, seriam os países autointitulados desenvolvidos que produziriam os


efeitos maléficos para os problemas ambientais no planeta. Mais especialmente, seria o sujeito
e o “estilo de vida” promovido pela ideia reforçada por essa região do planeta contra os
nomeados “subdesenvolvidos” que trariam os desafios ambientais.
Diante disso, Rea (2019) afirma ser essa a razão pela qual o feminismo comunitário
refuta a ideia de responsabilidade social, uma vez que a concepção de empoderamento estaria
presa à lógica de cooperação internacional; lógica esta que faria com que as mulheres fossem
as responsáveis por construir as propostas, mantendo-as sob essa visão opressora, na qual, por
serem mulheres e exercerem o cuidado na esfera privada, elas teriam mais condições e
responsabilidade para conter os problemas ambientais. Para as feministas comunitárias, a
descolonização passa pela superação dos patriarcados, ocidental e ancestral. O respeito às
mulheres e aos seus corpos deve ser considerado como parte da descolonialidade (REA, 2019).
Cabe ressaltar, entretanto, que o conteúdo produzido por esses coletivos e organizações,
nos últimos anos, reafirmam não somente a produção de influência teológica feminista, mas a
construção de debates feministas relatados a partir de diferentes contextos e abordagens,
mostrando a diversidade desses movimentos, que se somam e se esbarram em pontos
geográficos, ressaltando, assim, a possibilidade e a importância da construção do pensamento
produzido por mulheres do Sul global, relatando os desafios, inclusive para produção da
epistemologia ecofeminista.

Tendo em vista essa consideração supõe uma interpelação à governança epistêmica


do Norte global e insere essa discussão no marco da teoria feminista do ponto de vista,
da geopolítica do conhecimento e da colonialidade do conhecimento. A categoria
imaginário ecofeminista pode permitir diálogos e traduções ontologicamente
contextualizados. Esta é apenas uma visão situada e parcial de três décadas de uma
luta que remonta a cinco séculos e que tem um horizonte de significado explícito:
irmandade, alteridade, justiça e libertação. A utopia ecofeminista não pode ser
adiada.59 (LADANTA LASCANTA, 2017, p. 43, tradução nossa).

A seguir, procuramos mostrar mais detalhadamente o feminismo comunitário como um


movimento. Nascido a partir dos coletivos da década de 1990, como foi o caso do Mujeres
Creando, elas refletem a luta das mulheres contra as práticas de exploração neoliberais adotadas
pelo Estado contra o território, e logo depois adotam e se reconhecem como feminismo

59
“Tener presente esta consideración supone una interpelación a la gobernabilidade pistémica del Norte global
y coloca esta discusión en el marco de la teoría feminista del punto de vista, la geopolítica del conocimiento y
la colonialidad del saber. La categoría imaginarios ecofeministas puede permitir los diálogos y las
traducciones contextualizadas ontológicamente. Esta es apenas una mirada situada y parcial de tres décadas
de una lucha que se remonta a cinco siglos y que tiene un horizonte de sentido explícito: sororidad, alteridad,
justicia y liberación. La utopía ecofeminista es impostergable.” (LADANTA LASCANTA, 2017, p.43)
69

comunitário, sem associação com organizações não governamentais, igrejas e governos. A


grande crítica do movimento é endereçada às questões do próprio feminismo eurocentrado, e,
doravante, refletir sobre as violências a partir do contexto histórico e dos aspectos culturais das
comunidades de Abya Ayla.

2.2 O feminismo comunitário

Conforme mencionado anteriormente, o movimento em torno do feminismo


comunitário nasceu a partir da questão território-corpo. O nascimento desse movimento surgiu
a partir do grupo Mujeres Creando, na década de 1990, que logo mais se dividiu em dois grupos
nos anos 2000, e passou a ser chamado de Mujeres Creando Comunidad, tornando-se
posteriormente o feminismo comunitário. Assim é resgatada a memória do movimento, por
Adriana Arroyo60, uma das fundadoras:

A primeira Declaração de Feminismo Autônomo foi feita em 1996 dentro do VII


EFLAC, reafirma a "Permanência voluntária na utopia" e sua opção pela construção
de um movimento que desafia todas as formas de poder patriarcal no público e no
privado, e foi acordado iniciar com reuniões autônomas, assim em 1998 o grupo
anarquista feminista autônomo Mujeres Creando de Bolívia organizou o primeiro
latino-americano e caribenho Encontro Autônomo Feminista realizado em Sorata,
propondo três eixos do movimento: a autonomia, o movimento feminista e as
propostas, neste encontro as diferenças/heterogeneidades entre os autônomos e os
caudilismos tornaram-se cúmplices de uma primeira tentativa fracassada de fazer um
movimento estarem presentes. 2000 oriental de Santa Lúcia.61 (ARROYO, 2019, p.
44, tradução nossa).

60
Adriana Guzmán Arroyo, mulher indígena lésbica Aymara, da Bolívia, é uma das fundadoras do Feminismo
Comunitário Antipatriarcal, que surgiu em 2016, por uma ruptura interna diante da violência. ”Nossa luta
contra a violência tem sido sempre a principal. Então, em 2016, rompemos com uma parte do feminismo
comunitário, devido a uma denúncia de violência provocada por Julieta Paredes, (outra liderança e ativista
indígena do movimento) e nos dizemos antipatriarcais a partir de então. Porque não se trata só de Julieta
Paredes, se trata dessas lógicas de naturalizar a violência dentro do feminismo, dentro da esquerda, dentro das
lutas. Aí estão os agressores e as agressoras falando da revolução como se não fosse uma revolução a ética nas
relações sexuais e afetivas.” Entrevista ao Portal Catarinas. Portal de jornalismo especializado em gênero,
feminismos e direitos humanos. https://catarinas.info/adriana-guzman-o-feminismo-comunitario-
antipatriarcal-e-acao-politica-nao-teoria/ (acesso 02/08/2021). Para se informar mais sobre essa ruptura, sugiro
a leitura da carta da Adriana Arroyo, na sua obra Descolonizar la memoria. Descolonizar feminimos (2019).
61
“La primera Declaración del Feminismo Autónomo se hizo en 1996 dentro del VII EFLAC, reafirma la
‘Permanencia voluntaria en la utopía’ y su opción por la construcción de un movimiento que impugne todas
las formas del poder patriarcal en lo público y en lo privado, y se acordó iniciar con los encuentros autónomos,
así en 1998 el grupo feminista anarquista autónomo Mujeres Creando de Bolivia organizó el primer Encuentro
Feminista Autónomo Latinoamericano y del Caribe realizado en Sorata, proponiendo tres ejes del movimiento:
autonomía, movimiento feminista y las propuestas, en este encuentro se hicieron presentes las
diferencias/heterogeneidades entre autónomas y los caudillismos se hicieron cómplices de un primer intento
fallido por hacer movimiento. 2000 Santa Lucía del Este.”
70

Arroyo (2019) prossegue explicando a importância também do Encuentro Feminista


Autónomo Latinoamericano y del Caribe (EFLACs), iniciado nos anos 1980, para que a
construção do feminismo autônomo fosse sendo realizado a partir do pilar da comunidade como
projeto político e de ruptura ao patriarcado. E prossegue:

Em 2009, um encontro autônomo foi organizado dias antes da XI EFLAC no México


e uma segunda Declaração foi conhecida: “O desafio de criar comunidade na casa das
diferenças” onde tudo se define como uma proposta ética, política e de transformação
para todo o mundo das mulheres, para nós e para toda a humanidade, a Assembleia
Feminista participou e mostrou que a proposta do feminismo comunitário e da
comunidade como utopia podem articular a trama de um movimento feminista. Em
2012, outra reunião autônoma foi realizada em Porto Alegre, Brasil. 62 (ARROYO,
2019, p. 44, tradução nossa).

Apesar de apresentar a diferença entre Mujeres creando e Mujeres Creando comunidad,


em que o último defendendo a construção do feminismo que se inicia no interior da
comunidade, Arroyo não deixa de demonstrar a importância histórica e performática do
primeiro movimento para as mulheres bolivianas:

Mujeres Creando faz parte da história do feminismo autônomo na Bolívia. No ano 90


nasceu a Comunidade Creando no bairro Las Delicias (La Paz, Bolívia). Em março
de 92 foi formado o Mujeres Creando, meses depois publicou o livro E se fôssemos
um espelho do outro? Para um feminismo não racista, propuseram como metodologia
a mulher como um ser autobiográfico que recupera e escreve sua própria história. Em
93 começaram as grafitadas – uma mistura de grafite e pinturas –, que tomaram as
paredes com muita poesia. 63 (ARROYO, 2019, p. 46, tradução nossa).

Uma das questões da luta das feministas comunitárias é a crítica epistemológica à


hegemonia feminista eurocentrada, que se assemelha também com as críticas apresentadas pelo
feminismo decolonial. Importante considerar que o feminismo comunitário não é abordado aqui
como imaginário ecofeminista e nem como proposta decolonial. Para a própria pensadora, as
teorias ecofeministas, assim como as decoloniais ainda seguem a lógica hegemônica do
Ocidente.

62
“El 2009 se organizó un encuentro autónomo días antes de la XI EFLAC en México y se conoció una segunda
Declaración: ‘El desafío de hacer comunidad en la casa de las diferencias’ donde se definen como una
propuesta ética, política y de transformación del mundo todo desde las mujeres, para nosotras mismas y para
toda la humanidad, la Asamblea Feminista participó y mostraba que la propuesta de feminismo comunitario
y la comunidad como utopía podía ser articuladora del tejido de un movimiento feminista. El 2012 se realizó
otro encuentro autónomo en Porto Alegre, Brasil.” (ARROYO, 2019, p.44).
63
“Mujeres Creando es parte de la historia del feminismo autónomo en Bolivia. El año ´90 nació la Comunidad
Creando en el barrio Las Delicias (La Paz, Bolivia). En marzo del ´92 se conformó Mujeres Creando, meses
después publicaban el libro ¿Y si fuéramos una espejo de la otra? Por un feminismo no racista, proponían
como metodología la mujer como ser autobiográfico que recupera y escribe su propia historia. El ´93
comenzaron las grafiteadas – una mezcla de grafiti y pintadas –, tomaron las paredes con mucha poesía.”
(ARROYO, 2019, p.46).
71

A comunidade é pensada como princípio inclusivo que cuida da vida. Sendo assim, não
é somente um projeto político, mas de vida, que não renuncia o feminismo, mas se propõe a
construção da luta antipatriarcal a partir desse território. A construção do feminismo
comunitário é a partir da análise do chacha-warmi (homem-mulher), que impede de analisar a
vida das mulheres no contexto de vida boliviano. A proposta é pensar mulheres e homens a
partir da comunidade, e não seguindo a lógica de análise do feminismo hegemônico, marcada
principalmente pela distinção entre feminismo de igualdade e da diferença. Dentro da análise
da relação do chacha-warmi, detecta-se a opressão ancestral manifestada pela hierarquia, por
meio da qual as mulheres são mantidas no lugar de subjugação, e se torna possível rompê-la. A
proposta é romper com as hierarquias ancentrais, que subjugaram as mulheres nessa relação
erótico-afetivo e de gêneros, reproduzidas a partir de uma dicotomia de violência e manutenção
do patriarcado. De acordo com a feminista comunitária, Adriana Arroyo,

O par comunitário mulher-homem é um par político, não de gênero ou erótico-afetivo.


Par de gêneros significaria uma complementaridade desigual –– uma dicotomia–– em
que 'o feminino' complementa o 'masculino' com todas as atribuições e / ou atribuições
patriarcais que isso significa: mulheres reprodutivas, trabalho doméstico e defensor
afetivo do desequilíbrio entre os homens e mulheres; e homens que são provedores e
possuidores dos privilégios que lhes são dados pela força de trabalho doméstica e
emocional que perpetua a dependência das mulheres. Ele também falaria de ditames
de usos e costumes éticos e esteticamente rígidos que fortalecem o gênero como uma
construção patriarcal do feminino-masculino.64 (ARROYO, 2019, p. 429, tradução
nossa).

Portanto, considerando essas experiências, o corpo, no feminismo comunitário, é o


primeiro lugar de ação contra essas opressões. O território, no qual esse corpo é entendido no
feminismo comunitário, é o lugar de decisões e práticas políticas e parte da construção dos
pilares para essa comunidade. Por isso, é fundamental compreender essa relação do corpo
território como sendo também uma relação com a memória e o tempo, enquanto essa memória
está conectada a memória de um povo, de um coletivo. Além disso, tornar-se importante
incorporar elementos, tais como o tempo, os movimentos e a memória. O tempo questionado é
o tempo da linearidade que tem um paradigma: a modernidade e o progresso, refutado pelo
movimento. O tempo para o movimento comunitário é circular, no qual não haveria nem

64
“El par comunitario mujer-hombre, es un par político, no de género ni erótico-afectivo. Par de género
significaría una complementariedad desigual – una dicotomia – en la cual ‘lo femenino’ complementa a ‘lo
masculino’ con todas las atribuciones y/o asignaciones patriarcales que ello significa: mujeres reproductoras,
fuerza de trabajo doméstica y sostenedora afectiva del desequilibrio entre hombres y mujeres; y hombres
proveedores y poseedores de los privilegios que le entrega la fuerza de trabajo doméstica y afectiva que
perpetua la dependencia de las mujeres. También hablaría de dictámenes de usos y costumbres ética y
estéticamente rígidos y fortalecedoras del género como constructo patriarcal de femenino-masculino.”
(ARROYO, 2019, p. 429).
72

começo, nem fim. As temporalidades são assim pensadas a partir de sua própria construção
histórica. Por essa razão, a descolonização deve ser pensada também em questionar esse tempo,
recuperando a memória de luta, para a partir dessas lutas, construir novas formas de relações e
autonomia, que estejam pautadas pelo viver-bem.
Para concluir, o feminismo comunitário pode ser compreendido como uma proposta de
descolonização a partir do Sul global, que propõe a despatriarcalização como meio de romper
com todas as formas de opressões, sejam aquelas cometidas contra as mulheres, os homens e a
natureza. Trata-se de uma proposta de repensar não somente conceitos, mas de romper com
práticas ancestrais e coloniais que mantêm esse sistema violento aos corpos que ocupam esse
território, e, consequentemente, a Pachamama65. A perspectiva ressalta essa preocupação com
a natureza, não de forma separada dos seres humanos, mas como fundamental para a vida de
todos os que vivem aqui, sem, com isso, pensar separado dos nossos corpos e dos territórios.
Um dos exemplos abordados para a construção da comunidade e do viver bem
apresentado pelas principais representantes do movimento é a autonomia. A autonomia
construída para a não dependência do capital e muito menos do Estado. A autonomia é
construída para resolver conflitos, injustiças e, principalmente, em relação à alimentação. Para
Arroyo (2020), a autonomia alimentar representa rompimento com o sistema, e não deve ser
construída apenas deixando aos povos campesinos, quilombolas e indígenas a responsabilidade
por essa alimentação, como se coubesse somente a esses povos a responsabilidade pela terra e
pela comida66.
Por fim, apresentamos a crítica do feminismo comunitário como outra forma de
possibilidade diante desse modelo econômico, político e social, não somente de viver, mas
como um projeto de organização descolonial, a partir do que foi consolidado em meio às
próprias instituições sindicais, políticas e institucionais na América Latina. Apesar de o Brasil

65
“Entendemos a la Pachamama, a la Mapu, como un todo que va mas allá de la naturaleza visible, que va mas
allá de los planetas, que contiene a la vida, las relaciones establecidas entre los seres con vida, sus energías,
sus necesidades y sus deseos. Denunciamos que la comprensión de Pachamama como sinónimo de Madre
Tierra es reduccionista y machista, que hace referencia solamente a la fertilidad para tener a las mujeres y a
la Pachamama a su arbitrio patriarcal.” (2019, p. 425). Na entrevista concedida ao Catarinas, Arroyo afirma
que Pacha é o todo, o tempo, o território, o ar, as estrelas, tudo. Diferente da palavra Pachamama, Adriana
Guzmán usa o termo “Pacha”, e explica: “mama é mulher adulta, não é mamá, não é mãe. Pachamama é a terra,
a natureza, de cima do ar, daqui da terra, os rios, as montanhas, e de baixo, a água, o gás, os recursos todos.
Não é “madre tierra” (mãe terra), essa é uma tradução machista que se usa há uns 15 anos, sobretudo desde
que o ex-presidente Evo Morales falou dos direitos da “madre tierra”. Mas não é “madre” (mãe). Para nós, é
importante dizer isso para denunciar o machismo, mas também o conceito de mãe que se impõe à natureza
desde a perspectiva patriarcal – mãe, útero que reproduz e alimenta. Todo o mundo fala de “madre tierra” e
não é assim nas cosmovisões dos povos, nem aymara, nem outros em México também. É uma feminização e,
portanto, uma dominação da natureza.
66
Ver mais em Entrevista de Adriana Arroyo, no portal Catarinas. Disponível em: https://catarinas.info/adriana-
guzman-o-feminismo-comunitario-antipatriarcal-e-acao-politica-nao-teoria/Acessado em: 2 ago. 2021.
73

possuir outra realidade política e social, o projeto do feminismo comunitário antipatriarcal pode
nos oferecer caminhos para construir um projeto feminista ecológico ou ecofeminista, a partir
do Sul global. Inclusive, a ideia de corpo-território e comunidade já faz parte da realidade dos
movimentos agroecológicos feministas e dos movimentos de mulheres rurais, como veremos
no terceiro capítulo.
Assim como o feminismo comunitário, a Teologia ecofeminista foi construída em Abya
Ayla e foi reconhecida, posteriormente, como uma das abordagens que recepcionaram a teoria
ecofeminista no território. No próximo subcapítulo, entenderemos como essa construção foi
possível dentro de um contexto histórico hostil e de uma instituição religiosa patriarcal e
marcada por práticas extremamente machistas e violentas contra as mulheres.

2.3 Da Teologia da Libertação à Teologia Ecofeminista

Como mencionado anteriormente, é possível afirmar que ecofeminismo chegou ao


Brasil a partir da Teologia da Libertação. E o que foi exatamente a Teologia da Libertação? E
como isso se deu? Trata-se de um movimento que repercutiu em toda a América Latina, a partir
dos anos 1960, e que tinha como foco a crítica às hierarquias religiosas e monoteístas
predominantes; propunha reflexões a partir de perspectivas sociais e humanas. A principal
responsável pelo fortalecimento desse movimento no Brasil foi a teóloga, freira e filósofa Ivone
Gebara67.
Gebara contribui para não somente a receptividade da Teologia da Libertação no Brasil,
mas para a reflexão crítica sobre ela. Seu questionamento dentro de uma instituição religiosa
que, para a autora, manipula o controle de corpos femininos e da sexualidade, faz reconhecer
os espaços de religiosidade também como lugares de dominação masculina. Para Gebara, essa
dominação se reflete nas divisões injustas do trabalho social e doméstico, e por meio de uma
legislação que mantém os privilégios de classe, raça/etnia e gênero, e que, consequentemente,
vai refletir sobre o controle desse mesmo homem e da sociedade pelo corpo, como na
legalização do aborto. Para a teóloga, as igrejas têm reproduzido essa lógica de dominação,
sem, com isso, construírem trabalho de reflexão sobre os argumentos que produzem: como a

67
“Ivone Gebara, religiosa da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora Cônegas de Santo Agostinho, doutora
em Filosofia e Ciências Religiosas. Ela é uma das expoentes da Teologia Feminista (TF) brasileira. Filha de
pais imigrantes libaneses e sírios, aos 22 anos entrou para o convento, nos anos da efervescência daquela que
foi chamada a “opção pelos pobres” da Igreja Católica. Morando em Recife, participou intensamente, ao lado
de Dom Hélder Câmara, da organização das Comunidades Eclesiais de Base e da elaboração da Teologia da
Libertação”. (ROSADO-NUNES, 2006, p. 295).
74

ideia de um corpo disciplinado, sacrificado para chegar ao sublime dessa ordem cristã
predominante, ao invés do que Gebara apresenta: a ideia de um corpo como fonte e território
de inspiração. Numa entrevista a Rosado-Nunes, Gebara expõe:

E isso porque é a partir desse lugar que se dá a desigualdade econômica, política,


social, cultural e religiosa em relação às mulheres. É a partir da genitalidade feminina
que se constroem as diferentes simbologias e significados sociais em relação ao corpo
feminino. É a partir da genitalidade que se expressam os processos de socialização
desde o mundo familiar até as crenças religiosas. Portanto, é a partir dessa realidade
biológica culturalizada que é nosso ser sexuado que a cultura e as diferentes
instituições sociais não apenas consideram as mulheres como seres de segunda
categoria, mas organizam a política, a economia, as leis sociais, a religião de forma a
sempre priorizar as iniciativas masculinas e os valores considerados masculinos.
(ROSADO-NUNES, 2006, p. 301).

De maneira geral, a contribuição de Gebara para a teologia ecofeminista provocou um


questionamento das imagens e dos significados do Cristianismo, reforçando as críticas aos
padrões dualísticos já abordados pelas vertentes ecofeministas apresentadas no primeiro
capítulo. Para a autora, embora a teologia da libertação inclua a questão de classe, a partir da
marginalização das pessoas, continua presa à reprodução de dogmas cristãos, sobretudo àqueles
relativos ao patriarcado.

O feminismo teológico crítico com o qual trabalho não quer abrir espaços para ajustar-
se ao que já existe, mas possibilitar passos diferentes. Quer mostrar como, muitas
vezes, isso que se chama de universal ou verdade revelada por Deus, ou expressões
inquestionáveis do cristianismo ou de outra religião, foi gradativamente assimilado a
uma espécie de fundamentalismo político e religioso de dominação das consciências
e dos povos. Há, por um lado, um poder que precisa ser desmascarado e, por outro,
um convite para que possamos recuperar as nossas vivências mais profundas, celebrá-
las com mais liberdade, justiça e criatividade. (GEBARA, 2017, p. 4).

Gebara avança em sua crítica e reconhece que a epistemologia científica que temos
atualmente é mantida pela epistemologia patriarcal, que desconsidera os conhecimentos que
partem da experiência cotidiana das mulheres e da relação com a natureza. A proposta de
Gebara não é sacralizar as mulheres, nem a natureza, ao contrário, ela propõe questionar as
posturas essencialistas, de forma a pensar em alternativas que possam preservar a vida,
considerando a conjuntura histórica e social da região (REA, 2019, p.126).
Para Gebara, deve-se pensar o ecofeminismo a partir das experiências humanas,
considerando os significados adquiridos por essas experiências, em uma relação com a mente
e o corpo. Ela apresenta alguns elementos para a construção de nova epistemologia:
75

1) A interdisciplinaridade como ponto central, considerando as interações com


pessoas, mas também com a natureza, com o cosmos, mesmo quando não se tem consciência
disso;
2) O conhecimento como processo, sempre pautado na mudança e no contexto
particular, destacando o grupo social ao qual pertencemos;
3) A união espírito-matéria como parte da própria existência, ressignificando os
mistérios da vida, o efêmero;
4) O gênero e a ecologia como mediações cognoscitivas, permitindo a expansão a
perspectivas plurais, modificando os fundamentos e as expressões históricas, já que a ecologia
se reafirmaria como aspecto cultural e, assim, reconstruir-se-iam os vínculos de solidariedade
comunitária;
5) O contexto como referência básica, considerando o momento histórico e social;
6) A aproximação holística, sem desprezar as diferentes capacidades cognitivas;
7) A afetividade, para transcender a objetividade científica, inclusive refutando o
dualismo razão/emoção;
8) A atividade inclusiva de acessar as diversas experiências, de forma a combater o
padrão patriarcal.
Para Gebara, a epistemologia está enraizada nas experiências concretas, seu objetivo
consiste em introduzir novos conteúdos epistemológicos, de forma a construir outra
perspectiva, comprometida em romper as hierarquias de poder, partindo do conhecimento.
Gebara já aponta a necessidade de construção desse conteúdo a partir da saída do eurocentrismo
e dos conhecimentos imperialistas (GEBARA, 1997). A própria teóloga acredita que pensar em
justiça social e ecojustiça é repensar as posturas da Igreja Católica diante disso e pensar em
mudanças. O discurso do Catolicismo ainda se mantém antropocêntrico, androcêntrico, branco
e ocidental. A imagem ainda é simbolizada por um homem e a “salvação” também, e que todas
as outras pessoas devem se sacrificar para atender suas leis. De acordo com Gebara, o problema
ecológico deve ser pensado com a raça, o sexo e a classe, e não pode estar afastado da
problemática social mundial na qual estamos envolvidas (GEBARA, 1997).
A crítica de Gebara foi construída por sua experiência em bairros empobrecidos do
Nordeste brasileiro. A relação que ela constrói entre ecologia e feminismo é relatada em sua
obra por esse olhar de vivência, na qual ela identifica que ainda são as mulheres que ocupam as
sobrecargas de trabalhos domésticos, o cuidado com os filhos. Gebara destaca que as tarefas
destinadas às mulheres não se limitam somente a esses cuidados, elas continuam sendo
responsabilizadas por cuidar e providenciar, para suas casas e entornos, o acesso à água, e a
76

organização social nos seus bairros. E, por fim, ainda sofrem constantemente o risco de terem
seus corpos violentados.
Os grupos sociais, tais como mulheres, crianças, indígenas, a população negra,
representam as principais vítimas dos efeitos destrutivos contra a natureza, e são os primeiros
a serem excluídos do acesso à segurança alimentar e à saúde. Por isso, o ecofeminismo deve
ser postura política crítica, e deve estar comprometida com a luta antirracista. O que
destacamos, com esse pensamento de Gebara, para além de documentação histórica do
ecofeminismo brasileiro, é a projeção da epistemologia que questiona não só as formas de
conhecimento, mas também o sagrado. Por fim, com a perspectiva da teóloga, podemos pensar,
dentro do feminismo, o quanto a espiritualidade tem grande relevância na vida das pessoas, ao
mesmo tempo em que a reprodução de seus mandamentos dentro de uma instituição religiosa
pode reforçar opressões, mantidas por práticas colonizadoras.
É possível afirmar que, após a abordagem ecofeminista de Ivone Gebara, a teoria
ecofeminista é inserida às discussões teóricas na academia. Dessa forma, ainda que de forma
tímida e marcadamente pelos grupos feministas do sul/sudeste do país, o ecofeminismo é
inserido como uma proposta de ética ambiental comprometida com as vozes e o protagonismo
de atores sociais excluídos, seja pela estrutura androcêntrica, seja também pelo caráter
antropocêntrico.
Sobre o aspecto antropocêntrico, é bem verdade que as teorias ambientais e animalistas
já direcionavam suas críticas a ele. Entretanto, na combinação com a crítica androcêntrica, o
ecofeminismo animalista surge como posição contundente. É dessa forma que a teoria
ecofeminista será recepcionada e discutida aqui, a partir de outras abordagens éticas: a ética do
cuidado e a ética animal, com a intenção de construir não somente projeto de luta antipatriarcal,
mas também antiespecista.

2.4 Da ética do cuidado ao ecofeminismo animalista

Por considerarmos os aspectos históricos e sociais do feminismo, podemos definir


teoricamente que o segundo momento da recepção do ecofeminismo no Brasil tem sido
construído a partir dos trabalhos da professora e filósofa Sônia Felipe, que analisou e
disseminou os trabalhos acerca da teoria ecofeminista na área de Filosofia, em especial, com a
incorporação do debate animalista ao ecofeminismo. Porém, com o intuito de compreender
acerca do desenvolvimento dessa abordagem ecofeminista animalista, abordaremos o trabalho
77

da estadunidense Carol Gilligan, e, mais especialmente, a partir de sua obra In a Different voice
(1982).
O trabalho de Gilligan aborda a discussão da ética a partir do cuidado e é desenvolvido
pela pensadora como crítica às teorias de justiça, que não incluíam a esfera dos cuidados como
fundamento para o juízo e o princípio moral. Para a filósofa, o cuidado deve ser colocado num
lugar universal necessário para a própria condição humana. Porém, Gilligan observa
criticamente que a sociedade centralizou os deveres de cuidado apenas ao âmbito do feminino
e encarregou tais tarefas às mulheres. A pensadora apresenta o problema como sendo
proveniente do sistema patriarcal, que se organiza a partir de estereótipos de gênero, e que
coloca o homem numa hierarquia como superior à mulher. Nesse caso, não somente o cuidado
foi excluído da moralidade, como as mulheres. E o rompimento com essa sociedade não só
significaria a liberdade para mulheres, mas também para homens, sendo capazes de exercerem
a justiça, a autonomia e o cuidado nas relações (KUHNEN, 2014). O cuidado, portanto, deveria
ser visto como fundamento para o agir moral e político e capaz de ser exercido por todos os
sujeitos morais.
O trabalho da filósofa Gilligan, assim como as discussões propostas posteriormente
pela filósofa Sonia Felipe, favoreceu a ruptura com outras abordagens éticas na academia e para
a compreensão e construção dos princípios que, posteriormente, contribuíram no
desenvolvimento da teoria ecofeminista animalista68. Como confirmam as ecofeministas
animalistas Kuhnen e Rosendo (2015):

O discurso da ética do cuidado deparou-se também com as reformulações da ética


tradicional que visam à expansão da comunidade moral para além de seres humanos,
originando, através desse embate, a perspectiva ecofeminista. As teóricas
ecofeministas argumentam, de forma geral, que há uma ligação entre a opressão e a
exploração das mulheres, dos animais e da natureza. Com fundamentos diferentes,
mostram que a linha de argumentação tradicional da ética baseada em princípios, não
é suficiente para o fim da exploração, justamente porque diferentes sistemas de
exploração estão imbricados e somente a partir do reconhecimento dessa relação é
possível combatê-los. Por isso, a filosofia ecofeminista visa desconstruir os dualismos
de valor, de origem cartesiana, que promovem as divisões que perpetuam a
desvalorização das mulheres e da natureza. (KUHNEN; ROSENDO, 2015, p. 17).

68
“O termo especismo foi cunhado na década de 1970 por Richard D. Ryder (1975), a fim de designar a
discriminação contra animais não humanos. Semelhante ao racismo ou sexismo, especismo é o nome dado ao
ato de discriminar outros que não possuem as mesmas características daquele que discrimina, nesse caso os de
outra espécie. Algumas correntes ecofeministas visam justamente mostrar essa relação entre as diferentes
formas de discriminação e defendem que para superá-las é necessário reconhecer que esses sistemas estão
imbricados”. (ROSENDO, 2019, p.101).
78

O fato é que a prática do cuidado, ao menos no Brasil, tem sido majoritariamente


exercida por mulheres, seja na dimensão dos trabalhos em saúde, mas também no cuidado do
lar, das crianças, dos idosos, no cuidado dos animais e da terra. Porém, esse cuidado marcado
pelo gênero se reflete numa prática opressora do sistema, quando esse lugar se coloca como um
trabalho reprodutivo não remunerado. A reprodução social é pautada sobre a lógica do gênero,
por isso é que questões como saúde, educação, meio ambiente, moda e transporte são
relacionadas à reprodução social, porque estão pautadas nessa lógica do androcêntrico.
Para Oliveira e Rosendo (2020), o agir cuidadoso foi entendido historicamente como
sendo dissociado da racionalidade, e, consequentemente, desabrigado do que se compreende
como um projeto político-ético. Como resultado, compreende-se que somente o cuidado não
seria um argumento satisfatório para enfrentar os desafios morais, funcionando como um
aspecto virtuoso, mas não como uma ação justa, que atuasse de forma universal. Em diálogo
com a ética de Carol Gilligan, ambos reafirmam que as práticas de cuidado haveriam de ser o
caminho para superar a dicotomia entre cuidado e princípio da justiça e, também, entre a
moralidade dualista feminina/masculina.
As autoras apontam que as dicotomias entre princípios/universalidade e
cuidado/particularidade mantêm estrutura que não abrange o projeto de justiça social
comprometido com outros movimentos sociais que sempre foram colocados à margem.
Portanto, a proposta apresentada nessa perspectiva é a de superar a dicotomia
universalidade/particularidade, para a ética que esteja comprometida a partir de um lugar, de
um território e recuperar a racionalidade que não opere mais hierarquias marcadas por
violências, sejam elas racistas, geográficas, epistêmicas, ecocidas, cis, hetero e especistas. A
intenção é a construção de um projeto que não leve em conta uma única forma que foi
considerada de fazer justiça.

Nesse sentido, é importante mencionar que o cuidado exercido pelas mulheres na


esfera privada é uma face opressora do sistema capitalista, que depende da
instrumentalização, pelo capital, do trabalho reprodutivo não assalariado. A
reprodução social é esse corpo de atividade vital, isto é, o lugar encoberto e renegado
da reprodução e do trabalho assalariado do cuidado exercido pelas mulheres, do qual
o capitalismo depende para acumular os lucros privados. São justamente por meio da
reprodução social que são estabelecidas condições materiais, sociais e culturais
fundamentais não só para a sociedade em geral, mas para a produção capitalista em
particular. (OLIVEIRA; ROSENDO, 2020, p. 2-3).

Além dessas contribuições críticas entre ética/justiça, as autoras e o autor desse


movimento estendem as argumentações éticas para incluir os animais não humanos na
comunidade moral e política. Portanto, ecofeministas animalistas no Brasil apresentam dois
79

argumentos pensados à luz desse cuidado: a vulnerabilidade e a singularidade. Assim, agir de


forma cuidadosa é parte do projeto pautado na justiça social. Ou seja, quando se considerada a
vulnerabilidade dos seres vivos dessa comunidade e quando se pensa a universalidade atrelada
ao contexto. E argumentam:

Nesse sentido, pensar o cuidado ecofeminista não seria uma forma de reintroduzir
amarras de gênero, ou uma nova forma de vincular a feminilidade ao agir cuidadoso.
Ao contrário, o cuidado seria compreendido dentro de um campo onde o agir
cuidadoso conquistaria um estatuto moral negado até então. Ser cuidadoso passaria a
ser valor para todo agente moral. Da mesma maneira, o descuido ganharia o estatuto
de uma atitude injusta. (OLIVEIRA; ROSENDO, 2020, p. 8).

Apesar de estar na vida de todas as pessoas e se revelar como necessário e central para
a sociedade, o cuidado é associado e delegado às classes empobrecidas e marginalizadas.
Importante destacar que, no Brasil, quem mais assume essas tarefas do cuidado são mulheres
negras e das regiões Norte e Nordeste do país. Para se ter noção sobre a precariedade do trabalho
doméstico na vida da mulher, somente em 2013 foi aprovado a PEC 77/2013, que estabelece a
igualdade do trabalho doméstico com os trabalhos rurais e urbanos em termos de direitos
trabalhistas. Porém, em muitas regiões do país, a informalidade se mantém, com mulheres que
trabalham por muito tempo, exercendo várias funções e sem carteira assinada. Em termos de
números, a mulher negra assume em maior proporção os trabalhos domésticos, principalmente
nas regiões Sudeste e Sul, sendo que, nas regiões Norte e Nordeste esse trabalho é mais precário,
oferecendo poucos direitos trabalhistas.69
Portanto, a proposta é pensar a partir do contexto que foi formulado considerando os
aspectos históricos, sociais, materiais, de gênero, de classe e sexualidade. Um dos pontos a ser
considerado deve ser o protagonismo – as narrativas e as vozes de quem realmente o exerce –,
de forma a mostrar e a valorizar a pluralidade. Por isso, as ecofeministas animalistas evidenciam
a importância de compreender as particularidades para que esses aspectos sejam pensados de
forma a se complementarem com princípios universais e não nessa noção nociva de
binarismos70.
Ou seja, a racionalidade deve ser pensada considerando os aspectos emocionais e
parciais, por isso, a importância da prática dos cuidados como auxílio para o agir justo. A
educação que cultive a habilidade emocional ajuda a combater práticas violentas sem, com isso,

69
Retrato das desigualdades de gênero e raça, 2011.
70
De acordo com Rosendo, uma preocupação pautada e cuidada na argumentação teórica dos ecofeminismos
trazidos aqui, é o perigo da valorização dessas particularidades caírem num relativismo cultural, por isso é
importante considerar as críticas anteriores feministas às culturas que se mantêm ainda numa lógica de
opressão.
80

precisar apelar para a racionalidade ocidentalizada. Nessa defesa, a empatia recebe lugar
especial no desenvolvimento de seus pensamentos:

A empatia passa a ser uma habilidade que permite perceber a singularidade e a


situação de vulnerabilidade da outra e do outro, e a partir da qual se busca a orientação
de qual é a atitude moralmente correta em determinada situação. Nesse sentido, o
universalismo reside na necessidade de cada caso ser analisado em seu próprio
contexto, fazendo com que o tratamento igual, em quaisquer circunstâncias, é o que
possa vir a ser injusto. A empatia terá uma relação estreita com o respeito à igualdade
e às diferenças. (OLIVEIRA; ROSENDO, 2020, p. 12).

O ecofeminismo animalista apresenta uma proposta de educação que cultiva as


habilidades emocionais, reconhecendo o dualismo da tradição ocidental que hierarquiza a razão.
O cultivo dessas habilidades é apontado como um caminho para evitar práticas violentas, e que
seja expandida para animais não humanos. Portanto, a proposta deve ser pensada em como
relacionar as opressões e lutas de forma intersecional, e isso se realiza com a necessidade de
compreender as realidades vividas pelas sujeitas integrantes dessa comunidade.
Compensa conceituar, portanto, a interseccionalidade nesse contexto. A
interssecionalidade é um conceito formulado pela pensadora estadunidense Kimberlé
Crenshaw, em 1989, e, de acordo com a autora Carla Akotirene, o conceito é utilizado para
compreender os sistemas de opressões como estruturas interligadas, indissociáveis de outras
formas de violência, como o racismo e o sexismo. Inclusive, de acordo com Akotirene, a
interseccionalidade torna possível denunciar o fracasso de uma compreensão do feminismo que
universaliza a categoria “mulher”, no singular, e, consequentemente, não reconhece essas outras
estruturas de violência, que atingem mulheres negras, por exemplo.
Nesse caso, é possível afirmar que a interssecionalidade anteriormente descrita, é
pautada pelo ecofeminismo animalista a partir de dois elementos: (1) enquanto crítica ao
feminismo hegemônico, que centralizou seus esforços em apenas um ismo de dominação,
impossibilitando compreender a teia de atravessamentos que vulnerabilizam mulheres e outras
populações marginalizadas historicamente por questões sociais, econômicas, ambientais e por
razões da espécie; e (2) enquanto crítica ao ecofeminismo que desenvolveu uma agenda pautada
no feminismo hegemônico, muitas vezes priorizando o caráter essencialista e biologizante, bem
como as mulheres cisheterossexuais e brancas no Norte global. Dessa forma, a incorporação da
interseccionalidade pelo ecofeminismo animalista faz dele aberto, inclusive, para a recepção do
paradigma queer.
Como diz Rosendo (2019), as mulheres podem ser oprimidas pelo machismo e, ao
mesmo tempo, beneficiarem-se da opressão de animais. Dessa forma, a interseccionalidade é
81

conduzida como um método para a construção do ecofeminismo animalista de ética sensível ao


cuidado. A lógica de dominação aos animais não humanos também perpassa por essa lógica de
dominação que se interconecta no campo da moral e que, consequentemente, reflete-se na
justiça. Por essa razão, a proposta construída por essa vertente estabelece a construção de práxis
fomentada por perspectiva animalista, que deve ocorrer “[...] de forma simultânea e
dialeticamente na leitura da realidade e criação de alternativas libertadoras.” (OLIVEIRA;
ROSENDO, 2020, p. 15).

A tarefa de pensar e agir de acordo com uma práxis ecofeminista comprometida com
o cuidado supõe não apenas uma revisão de todo o conteúdo programático das
diversas disciplinas, a fim de problematizar e enfrentar os componentes sexistas,
racistas, LGBTIfóbicos e especistas, como também a introdução de métodos de
aprendizado diferenciados, capazes de promover empatia e uma sensibilização para o
outro. Neste sentido, o uso de outras linguagens torna-se fundamental para a
ampliação da percepção e relação com os outros, sejam eles humanos, não-humanos
ou a natureza. Entrar em contato com os conteúdos programáticos através de outras
ferramentas, tal qual a música, dança, poesia, literatura, fotografia, pintura, teatro e
cinema, permite um entendimento mais abrangente de nossa relação com o mundo a
nossa volta e de nós mesmos. (OLIVEIRA; ROSENDO, 2020, p. 18).

Aqui, compensa acionar o quilt ecofeminista, conceito-metáfora oferecido pela filósofa


Karen Warren, que é recuperado e apresentado por Daniela Rosendo, no sentido de contribuir
com os argumentos em favor da superação da discriminação e opressão, seja contra humanos
ou não humanos, mostrando que não é possível alcançar uma forma de libertação das opressões
sem considerar as outras. O conceito, que pode ser traduzido como sendo o processo de trabalho
artesanal feito por mulheres, como a costura de uma colcha, por exemplo, faz alusão dessa
costura como uma teoria necessária para pensar sobre o contexto, muitas vezes limitado por um
olhar monolítico das condições de gênero, étnico raciais, sociais, históricas, geográficas etc.,
Dessa maneira, Rosendo define, o quilt ecofeminista como “[...] uma filosofia altamente
contextual na medida em que é formado por diferentes remendos e por pessoas de diferentes
contextos, social, histórico ou material.” (ROSENDO, 2019, p. 27).
O projeto recorre à epistemologia ecofeminista para compreender como o gênero afeta
as formas de conhecimento e os métodos de investigação, inclusive nas conexões propostas
pela teoria ecofeminista, entre natureza e mulheres. Porém, para a costura do seu quilt, Rosendo
propõe outro método para isso, que esteja alinhavado com a interseccionalidade, a teoria queer,
a Educação em Direitos Humanos e a Perspectiva dos Funcionamentos (PdF).

A interseccionalidade, por sua vez, evidencia a indivisibilidade da busca por


libertação da opressão de todos os indivíduos, por meio da emancipação política. Se
a opressão se dá de maneira interseccionada, gerando discriminações múltiplas (de
82

raça, gênero e classe, por exemplo), a superação também precisa ser conjunta e não
hierarquizada. Tanto quanto a opressão é indivisível, a liberdade também o será, e
vice-versa. Por isso, a inclusão dos animais e da natureza deve ser feita pela ampliação
não só da comunidade moral, mas também política, o que revela novamente o diálogo
intrínseco entre ética e política que orienta toda a tese. A EDH, por sua vez, é o meio
pelo qual se vislumbram formas de promover valores de cuidado e empatia com
potencial para criar uma cultura feminista de direitos humanos em substituição a
cultura de opressão e dominação. (ROSENDO, 2019, p. 78-79).

A interseccionalidade é pensada em como trabalhar a justiça de forma inclusiva e não


discriminatória, de forma a detectar posições ou padrões de ações e posturas que possam excluir
grupos de seres vivos. Já com a Educação em Direitos Humanos, Rosendo a apresenta como
ferramenta de mudança pautada na justiça ambiental, social e interespécies, desde que seja
reformulada a partir de leitura feminista e incluindo animais não humanos, baseada também
numa educação cultivada por empatia, cuidado, respeito e diversidade.
A metodologia queer, para Rosendo (2019)71, contribui para além das imposições da
heterossexualidade/homossexualidade, das identidades sexuais e de gênero, podendo incluir
essas reflexões para a cultura, o poder, a educação, o conhecimento, reconhecendo que as
identidades não dão conta das diferenças que pertencem ao sujeito. No fim, os questionamentos
provocados pela teoria queer vão além da sexualidade, desestrutura as concepções e pensa a
partir de corpos no mundo que não se reconhecem dentro desses binarismos. Rosendo explica
que a teoria queer pode contribuir no reconhecimento das estruturas de poder, e,
consequentemente, de opressão. Como foi visto anteriormente, todas as teorias abordadas até o
momento reforçam sempre o corpo biológico, não ampliando os questionamentos para corpos
que distorcem esses padrões.

A metodologia queer permite compreender que alguns indivíduos (que podem formar
grupos) são excluídos na medida em que não são considerados sujeitos, mas abjetos.
Toda aquela que não estiver no lado de cima dos dualismos de valor opostos e
hierarquizados – homem, branco, cisgênero – será marginalizada e excluída pela
lógica da dominação. O que permite ampliar a discussão para além dos indivíduos
humanos, a partir do queer, é compreender que são justamente os corpos que levam
as marcas de poder. É a partir da materialidade do corpo – do gênero e sua identidade,
da raça, da etnia, da espécie – que surge o sujeito ou o abjeto a partir da lógica da
dominação. (ROSENDO, 2019, p. 78).

71
“A crítica ecofeminista queer se refere, portanto, ao fato de que a sexualidade precisa ser entendida como uma
forma de poder que tem definido o que é natural e o que vale como natureza. Ecofeministas queer (Greta Gaard,
Catriona Sandilands) afirmam que muitas correntes ecofeministas estão impregnadas pelo pensamento hetero,
o que se reflete em três eixos: a) naturalização da heterossexualidade; b) projeção de uma heterossexualidade
à natureza; e c) atribuição de um modelo hetero para as relações humanas e a ‘natureza’”. (ROSENDO, 2019,
p. 117).
83

Rosendo confere importante destaque à sua proposta de construção do ecofeminismo


animalista, por meio da ética sensível ao cuidado e à aproximação com a “Perspectiva dos
Funcionamentos”, da filósofa Maria Clara Dias (2015), reafirmando a importância da
singularidade e da contextualização ao mesmo tempo que se vislumbra um horizonte
universalista. Nesse caso, a sujeita da moralidade deixa de ser percebida como uma figura
abstrata, conforme sugere as teorias morais da modernidade (e da contemporaneidade), e passa
a ser uma sujeita concreta, encarnada, atravessada por urgências e necessidades específicas. A
universalidade igualmente deixa de ser um ponto de origem das teorias abstratas e torna-se um
objetivo ao qual devemos persistir em nome da justiça mais inclusiva. Para tal, podemos aferir
que se estabelece a necessidade de se pensar a sujeita afetada, encarnada, situada e
contextualizada. Logo, a construção de uma educação afetiva, sem excluir a razão, tampouco a
priorizando como centralidade de nossas suposições, torna-se elemento caro aos ecofeminismos
ao mesmo tempo que estabelece uma crítica contundente entre a dicotomia razão e emoção.
Ao romper com essa dicotomia, a universalização do cuidado passa a ser um caminho
importante para a ética e para a política, visto que o agir cuidadoso torna-se parte integrante de
nós, sujeitas no mundo. Da mesma maneira que o cuidado passa a não ser limitado a um recorte
de gênero que, tradicionalmente, atribuiu esse lugar às mulheres. O conceito de justiça ganha
novos contornos. Por isso, a vulnerabilidade e a singularidade são reforçadas no quilt
ecofeminista, para a reformulação dessa justiça. Como Rosendo e Zirbel expõem:

Singularidade e vulnerabilidade, portanto, são apresentados como pano de fundo


dessa concepção, viabilizando uma outra maneira de pensar as relações entre seres
humanos e os outros animais. Trata-se de compreender não só os aspectos racionais
do pensamento, mas as variadas formas de compreensão e organização da realidade,
incluindo também capacidade não cognitivas como a empatia. Acreditamos que os
conceitos de vulnerabilidade e singularidade evocam esta outra maneira de pensar.
(ROSENDO; ZIRBEL, 2019, p.112).

Primeiramente, as autoras revelam que a vulnerabilidade é algo que pertence a todas as


pessoas, mesmo que muitas não percebam isso. No entanto, Rosendo e Zirbel (2019) nos
alertam para o fato de que um estado de vulnerabilidade pode nos fazer depender de outras
pessoas, como também nos estimular a doar, a aprender e a nos dedicarmos a quem está nessa
condição. Assim, as autoras definem vulnerabilidade como: “[...] uma característica geral,
abrangente e fundamental dos seres vivos. Diz respeito a todos os indivíduos, de todas as
84

espécies, afetando suas vidas de inúmeras e imprescindíveis maneiras.”72 (ROSENDO;


ZIRBEL, 2019, p. 113). Dessa forma, prosseguem afirmando que

O fechamento do eu em uma postura de invulnerabilidade e de ignorância intencional


é um fechamento ético, assim como epistêmico. Trata-se de uma recusa tácita à
percepção de que partilhamos com a natureza e os animais não humanos essa
característica fundamental e que estamos, por conta dela, interligados de diversas
maneiras. De igual forma, implica uma recusa em perceber a nossa responsabilidade
no processo de destruição da natureza e da produção e manutenção de situações
opressivas que exploram as vulnerabilidades dos mais variados seres vivos e as
intensificam (tornando-as patológicas). (ROSENDO; ZIRBEL, 2019, p. 120).

Por isso, é possível compreender que a vulnerabilidade ocupa um lugar importante nessa
vertente, dado que outra lógica de domínio, que é usada como forma de opressão, divide a
sociedade em dois grupos: dos não vulneráveis e dos vulneráveis (ROSENDO; ZIRBEL, 2019,
p. 211), em que os não vulneráveis ocupam a linha de cima dessa hierarquia e representam o
perfil já reflexo dos outros dualismos: homem branco, hetero, cis, sem necessidades especiais,
e com privilégio de classe. A vulnerabilidade se apresenta como um lugar no qual ninguém quer
estar, e ser invulnerável faz com que o sujeito que deseja esse estado passe a explorar a
vulnerabilidade alheia e a não perceber os aspectos que ocasionaram essa vulnerabilidade.
Como resultado, o ser invulnerável nega a vulnerabilidade animal e humana e,
consequentemente, torna-se incapaz de sentir também empatia.
Se o padrão do Estado é negar a vulnerabilidade, a justiça será comprometida em
atender seres vivos não racionais, influenciada pela lógica universal, imparcial e genérica.
Rosendo e Zirbel (2019) refletem acerca disso, influenciadas pelo pensamento de Sônia
Felipe73, da importância de que a justiça esteja comprometida com os sujeitos vulneráveis.
Como argumenta Rosendo (2019), a definição de igualdade e dos sujeitos que foram entendidos
como agentes morais é atrelada ao estado de autonomia associada à independência. A

72
No artigo Dominação e sofrimento: um olhar ecofeminista animalista a partir da vulnerabilidade (2019), as
autoras Daniela Rosendo e Ilze Zirel apresentam o trabalho taxonômico da vulnerabilidade, influenciadas pelo
trabalho de Mackenzie, Rogers e Dodds (2014). Como resultado desse trabalho, a vulnerabilidade é dividida
em dois tipos: ontológica e social. E respondidas a partir de três fontes: inerente, situacional e patogênica; e
dois estados: disposicionais e correntes. Porém, dentro de uma abordagem, como as autoras afirmam em seu
artigo, de maneira ainda negativa, associada à fraqueza. A partir da argumentação teórica de Gilsons sobre o
conceito, no mesmo texto, as autoras mostram o perigo ético e político da negação da vulnerabilidade, porque
impede de identificarmos práticas violentas entre seres humanos e não humanos. O desejo do ser invulnerável
é um projeto construído dentro dessa lógica reducionista e neoliberal de pensamento, estimulada no século
XXI, por exemplo, pela rejeição da velhice, pela não demonstração das emoções, ou pela exposição das
diferenças físicas e das fragilidades. (ROSENDO; ZIRBEL, 2019, p. 119).
73
Sônia Felipe propõe a construção de novos espaços de poder que não estejam subordinados aos conceitos
tradicionais de direito e igualdade, mas, sim, às noções de singularidade e vulnerabilidade, os únicos conceitos
que permitem considerar interesses naturais animais com a mesma seriedade a qual se consideram os interesses
humanos. (ROSENDO, 2019, p.125).
85

universalidade e a imparcialidade reforçam os valores hegemônicos associados ao racional, que


coloca o sujeito nesse lugar de autossuficiente. Nesse entendimento, a dependência é
compreendida como algo negativo e ocupada pelas minorias sociais.
Dessa forma, a proposta do ecofeminismo alinhado com a luta animalista74, e mais
especificamente comprometido com a luta antiespecista, deveria pretender incluir esses
critérios para que sejam capazes da formulação da justiça pela libertação humana e não humana.
Nessa lógica, a proposta de veganismo, se pautada como postura individual ou estilo de vida,
não é capaz de romper com a violência estrutural, por isso, o cuidado se amplia e o olhar crítico
para projetos políticos introduzem perspectivas de “livre escolha”, mas sem romper com a
exploração. Considerando esses aspectos, que contribuem para um projeto de justiça humana e
não humana, Rosendo (2019) estabelece alguns critérios a serem considerados para um projeto
ecofeminista animalista:
a) Ética sensível ao cuidado: enquanto o cuidado se torna um princípio universalizável,
ou seja, que pode ser adotado por todas as pessoas, independente de gênero. Neste caso, sendo
realizado através de práticas cotidianas do cuidado consigo e com outros seres, repercutindo
em deveres de cuidado;
b) Vulnerabilidade e singularidade: critérios que não só reconheçam nossa
vulnerabilidade, de forma a não anular nossa singularidade, e que seja pensada a partir de
diferentes espécies, expandindo nossa percepção moral e política, mas também reconhecendo
nossa dependência;
c) Autonomia prática relacional: ao reconhecer a vulnerabilidade, essa autonomia é
compreendida em diferentes graus de desenvolvimento singular, no qual cada indivíduo
(sistema funcional) terá liberdade e condições para seu desenvolvimento;

74
Rosendo (2019) apresenta o caso de Israel como um exemplo de um veganismo mercadológico, que se
apresenta turisticamente como a capital do veganismo, vende-se como um lugar amigável para práticas
veganas, porém mascarando as violências ao povo palestino. Sem desconsiderar que as práticas veganas que
alegam o Estado de Israel é marcadamente antropocêntrica, ou seja, gira em torno do consumo e das escolhas
dos humanos e não necessariamente de abolir a violência contra os animais. Ou seja, o vegan washing vendido
por Israel encobre inúmeras violências aos direitos humanos. Como exposto, as opções alimentares e de
vestuário sem produtos de origem animal que são oferecidas pelo IDF são associadas a um estilo de vida plant
based. Essa forma de se referir às escolhas dos indivíduos parece muito mais associada às opções de consumo
ofertadas em um sistema capitalista do que relacionadas a um posicionamento ético e político de libertação da
exploração à qual estão sujeitas diversas formas de vida. Ao preferir plant based ao invés de vegan, por
exemplo, há a despolitização do movimento ético e político que reivindica o tratamento justo dos humanos
com relação aos animais. Ou seja, há o esvaziamento do potencial emancipatório e de reivindicação política
por justiça que compreende a interconexão entre as diversas formas de opressão. Além disso, o exemplo de
Israel mostra que aumentar a oferta de alimentos veganos não implica necessariamente a diminuição do
consumo de animais. Ou seja, as soluções de mercado estão mais voltadas aos humanos – que têm mais opções
nos restaurantes e mercados, por exemplo – do que para os animais não humanos explorados pela indústria.
Portanto, a estratégia de mercado é altamente individual e não se compromete com mudanças estruturais.
86

d) Interseccionalidade: compreender as opressões de forma interligadas, a partir de


outros marcadores sociais, como raça, gênero, classe, sexualidade.
e) Contextualização: as práticas de cuidado devem ser pensadas e praticadas de forma a
não desconsiderar ou anular os aspectos locais e culturais;
f) Educação feminista em direitos humanos: a educação para o ecofeminismo, é parte
fundamental no processo de emancipação dos seres humanos, e a educação feminista deve ser
pensada de forma não somente a detectar práticas de violências, mas a incluir o cuidado como
princípio fundamental nas nossas práticas, para todas as pessoas e expandindo o seu exercício
para seres de todas as espécies;
g) Reconhecimento: perceber as injustiças sociais, as causas dessas injustiças, assim
como os saberes e práticas divergentes do sistema hegemônico;
h) Redistribuição: a justiça e as tarefas de cuidado devem ser distribuídas de forma
equitativas, assim como os direitos e os recursos;
i) Reparação: por meio de práticas e políticas públicas de ações afirmativas, ampliadas
para seres humanos, não-humanos e para a natureza;
j) Diversidade: pensada de forma a garantir as diferentes práticas e saberes, ampliadas
em contraposição a monoculturas de pensamento e monocultivos, por exemplo, ou práticas
globalizantes;
k) Veganismo: de compromisso político, ético e decolonial, no qual, seja crítico a toda
estrutura social, abarcando humanos, não-humanos e a natureza como um todo;
l) Direitos sexuais e reprodutivos: condição materiais e reprodutivas para decidir sobre
práticas reprodutivas e sexuais, e de forma, a eliminar o sistema de exploração tanto as
mulheres, com as fêmeas de espécies não-humanas;
m) Solidariedade política: a solidariedade deve ser pensada de forma a reconhecer essas
estruturas e intersecções de violências, para somente assim pensar na construção de políticas
públicas justas e emancipatórias.
Como um dos grandes desafios dessa proposta ecofeminista é o enfrentamento às
práticas especistas, elemento que não necessariamente é coberto por outros ecofeminismos, o
veganismo é frequentemente apresentado como um caminho a ser considerado como parte da
luta para combater o sistema de opressões. Mais recentemente, Oliveira, Rosendo e Kuhnen
(2020) associaram o ecofeminismo animalista aos aportes descoloniais no sentido de enfrentar
o modelo de colonização alimentar. Com isso, as autoras visam a compreender como as práticas
de consumo animal estão indissociadas das violências cometidas contra as populações
ribeirinhas, indígenas e quilombolas, tal como a desapropriação de suas terras para agropecuária
87

e a contaminação de seus solos com o uso extensivo de pesticidas e agrotóxicos. Dessa forma,
o veganismo pautado pelo ecofeminismo animalista não é simplesmente um estilo de vida
individual a ser adotado para fins particulares, mas como parte integrante de uma luta por justiça
social que visa a inseri-lo no debate da soberania alimentar e de respeito aos povos originários
e tradicionais.

2.4.1 Colonização do paladar

No artigo Locus fraturado: resistências no Sul global e práxis antiespecistas


ecofeministas descoloniais (2020), as/os autoras/es apresentam uma crítica acerca da
colonização do paladar e das espécies, expondo que as práticas de violências coloniais se
ampliam para outras esferas de domínio. Como exemplo, o processo de industrialização fez
com que as pessoas adquirissem mais produtos industrializados, ensacados, porque já não há
mais tempo para saber de onde vem aquele alimento, nem para o seu preparo, além disso, surgiu
a ideia, atrelada ao consumo desses alimentos, como progresso, associando como algo “melhor”
ou “glamourizado”. O paladar se padroniza dessa forma, mesmo com prateleiras repletas de
produtos que atendem a diferentes públicos, e que levam principalmente a ideia de praticidade
e de “ganhar tempo”, há ali um padrão do que se deve consumir.
Isso ocorre inclusive na alimentação vegana, quando não há interesse de construir
práticas alimentares preocupadas com outras formas de opressões, contribuindo para o que
Oliveira, em seu artigo La Dieta sexista: Contribuiciones desde el ecofeminismo critico para
uma decolonialización del paladar (2019), define como regime epistemicida, em que “[...] a
violência é combinada com a dominação de territórios e aniquilamento de povos, nações e suas
culturas” (OLIVEIRA, 2019, p. 14).

Quando o veganismo se alia a esse imaginário de progresso por trás das multinacionais
do setor alimentício, pode até romper algumas barreiras de acesso à comida vegana,
mas não desata os nós do sistema colonial e pode inclusive contribuir para a
intensificação da opressão das mulheres do Sul global, engolidas pelas formas de
trabalho, reprodutivo e produtivo, precarizadas do modelo desenvolvimentista
globalizante. Essa falsa estratégia auxilia a aprofundar o sistema de dominação
colonial: no futuro, corre-se o risco de que essas mesmas ‘mulheres empreendedoras’
de bairros e espaços urbanos abandonados pelas políticas do Estado tenham seus
corpos transformados em vendedoras de novos produtos não animalizados, sob
condições de trabalho alijadas de direitos trabalhistas. (OLIVEIRA; KUHNEN;
ROSENDO, 2020, p. 17).

As autoras denominam de veganismo despolitizado, no qual práticas assim reforçam o


apagamento da luta pela terra e água, pela demarcação de terras indígenas, quilombolas e pela
88

agroecologia. A dieta carnista é a que mais contribui para a destruição do planeta e,


consequentemente, seus efeitos negativos são mais sentidos na vida dos povos integrados à
natureza. Porém, o veganismo sem debate político acerca da apropriação industrial pelo
interesse de comercializar produtos sem animais só enalte a lógica de violência e práticas que
reforçam estereótipos para manter a subalternização de grupos sociais, que recaem
principalmente para as mulheres do Sul global, da alimentação e da terra.
Nota-se igualmente nesse processo a apropriação dos corpos de animais e das
sementes como forma de dominação e controle da produção e do cultivo. O uso de
técnicas genéticas aplicadas à reprodução e crescimento de animais e as patentes das
sementes tornam-se, pouco a pouco, um meio de assalto direto de cultivo das
populações rurais e ribeirinhas que ainda resistem ao modelo de organização social
imposto pelo capitalismo neoliberal de caráter eminentemente urbano, globalizante e
branco. (OLIVEIRA; KUHNEN; ROSENDO, 2020, p. 13).

A partir disso, sem perder a discussão desenvolvida pelo grupo, pensamos que o
paradigma da colonização do paladar e da espécie seja o caminho para não só entendermos as
violências coloniais no país, que estruturam e mantêm o Estado ecocida, como também de
refletirmos sobre estratégias de ruptura com esse sistema. Sobre esse aspecto, retomaremos no
próximo capítulo, na ocasião do debate sobre a insegurança alimentar.

2.5 Conclusão

Como a ideia dessa tese tem sido de pensar um projeto ecofeminista que seja também
um projeto educativo, as críticas apresentadas nesse capítulo, inicialmente pelo feminismo
comunitário, ecoam para uma discussão acerca da comunidade. Portanto, a educação deve ser
pensada a partir de uma perspectiva local, no qual, não só a sujeita educadora seja parte dessa
construção como protagonista, mas também os estudantes. Ao mesmo tempo, identificar formas
de violências perpetuadas a partir de discursos de instituições religiosas, e que são reproduzidas
no sistema patriarcal denunciado por Ivone Gebara. E por último, recolocar o cuidado como
parte desse projeto educativo, enquanto questiona não somente a distribuição desigual das
atividades do cuidado sobre gênero e raça, mas também de forma a ampliar esse olhar para os
seres não humanos.
Tais indagações nos levam ao próximo estágio desse caminho, como uma forma de
compreender como os ismos de dominação foram e continuam sendo mantidos. A decisão desse
caminho foi trilhada diante do próprio contexto histórico da realização desse trabalho, no qual
essas violências desenvolvidas a seguir foram sendo mais expostas à medida que os problemas
89

ecológicos eram intensificados no território, mostrando a relação que o racismo e as opressões


de gênero podem ter com as questões ambientais.
Portanto, no capítulo seguinte, cujo título é “atravessamentos ecofeministas:
insegurança alimentar, racismo ambiental e migração ambiental”, procuraremos identificar
como o racismo, naturalizado e ampliado no nosso território, tem mantido grupos (via
branquitude) em situações de privilégios e outros em situação de extrema marginalidade. Nesse
caso, a necessidade de atravessamentos ecofeministas serão evidenciados a partir de três casos
paradigmáticos: a insegurança alimentar, o racismo ambiental e a migração ambiental. Por
insegurança alimentar, debateremos a fome; no racismo e migração ambiental, a segregação
espacial e social que força a expulsão territorial de povos originários, quilombolas, agricultoras
rurais e de povos tradicionais.
90

CAPÍTULO 3

ATRAVESSAMENTOS ECOFEMINISTAS: INSEGURANÇA ALIMENTAR,


RACISMO AMBIENTAL E MIGRAÇÃO AMBIENTAL
91

3 ATRAVESSAMENTOS ECOFEMINISTAS: INSEGURANÇA ALIMENTAR,


RACISMO AMBIENTAL E MIGRAÇÃO AMBIENTAL

Neste capítulo, apresentamos a proposta do termo atravessamentos ecofeministas.


Entendemos os atravessamos como as múltiplas travessias dos ecofeminismos, dentre as quais
evidenciamos o realizado neste trabalho. Logo, o referido termo torna-se um processo
multilateral de: (1) atravessar um caminho e ser atravessada por ele na mesma proporção e
intensidade; e (2) atravessar lutas e ser atravessada por elas.
Dessa forma, atravessar é entendido também no sentido de denúncia: o ato de denunciar
os saberes, as vozes e os corpos que foram silenciados pela colonização e pela globalização,
ressoando ainda sobre nossas identidades e mentalidades os modos de perceber o mundo e a
nós mesmas. Atravessar como denúncia é também uma maneira de refletir criticamente, se pôr
à prova diante dos padrões de pensamento e comportamento que se estabelecem dentro e fora
das universidades, nas ruas, nos campos, nas águas e nas florestas. Atravessar é também pensar
as práticas curriculares das instituições que foram reconhecidas pela hegemonia do saber, como
detentoras do conhecimento.
O atravessamento que realizamos neste trabalho percorre trilhas epistemológicas desde
o Norte até o Sul, justamente com o propósito de evidenciar como o conhecimento foi
estabelecido como uma marca da colonialidade do saber, que muitas vezes nos força a
encaixarmos nossas próprias realidades descritas por meio das lupas das teorias marcadamente
eurocêntricas e hegemonicamente estabelecidas pelas instituições de ensino.
Quando atravessamos o Atlântico, percebemos que as abordagens ecofeministas se
conjugam umas nas outras. Ao menos é assim que escrevemos os ecofeminismos depois dessa
travessia. Atravessamentos ecofeministas são reflexos de abordagens teóricas que nos
apresentam outros mundos à medida que outros mundos são apresentados a nós. Mundos, cabe
dizer, que sempre estiveram aqui, porém apagados pela poeira colonial da omissão, do desprezo
e da inferioridade. Como enxergá-los? Como escutá-los?
Isso traz lembranças da cidade onde se originou a travessia epistemológica desta autora
acerca do tema sobre meio ambiente: Penedo, na qual a fronteira entre o Estado de Alagoas e
Sergipe é o Rio São Francisco. Enquanto se atravessa o rio, não se atravessa somente a fronteira
entre uma cidade e outra, mas se atravessa culturas, povos, práticas, rostos que se manifestam
ali, e que lhe atravessam, enquanto se está na embarcação que te conduz ao outro lado do rio.
E atravessando o próprio rio, fonte de vida e de construção de identidade da região, coloca-lhe
nesse dever de cuidado e de responsabilidade na travessia.
92

A fronteira mencionada nessa travessia epistemológica acaba denunciando, a partir de


um olhar crítico e decolonial, as fronteiras enfrentadas por imigrantes, povos indígenas,
quilombolas, quando são retirados dos seus territórios e são atravessados pela violência e pelo
apagamento, resultado direto da retórica moderna e dessa lógica universal. Por isso é uma
proposta de pensar a partir das narrativas locais, as fraturas provocadas para romper com a
estrutura dominante. Portanto, a fronteira que retratamos aqui é no sentido de aprendizagem e
também de responsabilidade como educadora, para a construção intercultural do olhar
ecofeminista, do qual temos a certeza de, muitas vezes, estarmos ainda tomadas pela égide
ocidentalizada.
Sendo assim, o exercício aqui posto é o de enfrentar e romper com a colonialidade. Já
que fomos atravessadas nesse processo de colonização, inclusive, reproduzindo discursos da
branquitude do Sul global e perpetuando práticas de violências, devemos ser agora responsáveis
por romper com essa estrutura da colonialidade do saber (MIGNOLO, 2005). Por isso, os
atravessamentos ecofeministas que propomos aqui buscam refletir as perspectivas campesinas,
decoloniais, indígenas e negras, no sentido de reconhecer questões atravessadas por povos nesse
território, um dia conhecido como Pindorama.
Dessa maneira, os atravessamentos ecofeministas que aqui defendemos devem estar
atentos às teorias que denunciam a insegurança alimentar, o racismo ambiental e a migração
ambiental, com o intuito de compreendermos as conexões de dominação colonial existentes
aqui. Os atravessamentos ecofeministas enfrentam a concentração de terras para agropecuária,
o desmatamento, as barragens que se estabelecem como combo da industrialização, ao mesmo
tempo em que produzem a fome como um artefato político e econômico, mantido para induzir
a própria população a acreditar que somente a agroindústria, em larga escala, pode combatê-la.
Se a cadeia do agronegócio se expande junto a outras corporações internacionais, expande-se
também a discriminação racial resultante da estrutura racista do colonialismo, sendo aqui
naturalizada e evidenciada principalmente a partir de conflitos ecológicos, com a expulsão de
comunidades indígenas e quilombolas de suas terras, mas também com a marginalização e a
segregação nas zonas urbanas das principais cidades brasileiras. Essas violências se cruzam
com o fenômeno forçado de deslocamento populacional, que decidimos compreender a partir
do conceito de migração ambiental, como o processo que abarca efeitos diretos e indiretos desse
sistema capitalista e neoliberal, e dos ismos de dominação dos paradigmas ocidentais.
E, por último, a educação é citada como um atravessamento ecofeminista, pensada como
experiência que conjuga as teorias decoloniais em seu lócus de pensamento e ações educativas.
Nesse sentido, haja vista que a educação formal brasileira que experimentamos, durante muitos
93

anos, desde a educação infantil até a universitária, sustenta muitos desses paradigmas e mitos
ecocidas e racistas aqui discorridos, mantendo estereótipos e sustentando o reducionismo desse
sistema colonial e neoliberal, buscamos apontar para a necessidade de outro modelo para se
pensar a educação, nos moldes dos atravessamentos ecofeministas.

3.1 Colonização da alimentação e soberania alimentar

Por qual razão pensar o debate ecofeminista no Brasil dando ênfase na alimentação?
Primeiro, porque a alimentação é necessidade básica de qualquer ser vivo; segundo, porque as
desigualdades socioeconômicas mundiais têm impossibilitado países empobrecidos do acesso
à alimentação; e, por último, porque a crise alimentar é formulada pela globalização,
provocando o empobrecimento de agricultoras/es, o apagamento da diversidade e o aumento da
violência de gênero e racial. Por último, destacamos que o Brasil é hoje um dos países que mais
produz e exporta açúcar (etanol), soja e milho (BOMBARDI, 2017, p. 24), criando a ilusão de
que, se nosso país é um dos principais produtores de alimentos, portanto, não haveria falta de
alimentos aqui. Porém, não é isso que ocorre. E por quê? Primeiramente, porque esses
“produtos” não vão para a mesa da população brasileira; e, depois, porque o Brasil tem
importado esses mesmos “produtos” em grande quantidade. Essa entrada e saída de alimentos,
na verdade, denuncia a produção baseada em monocultura75; contrária à soberania alimentar
local e que segue o modelo globalizado e capitalista. Por essa razão, segue o modelo agrícola
que não alimenta o país, baseado no cultivo de uma única espécie vegetal ou animal (como
ocorre na pecuária) e que utiliza grandes extensões de terra para isso. Já como bem vai dizer
Vandana Shiva (2016), o mundo é alimentado pela biodiversidade e não pelo monocultivo.
Por outro lado, os principais alimentos da base da alimentação brasileira – arroz, trigo,
mandioca e feijão –, têm sido importados e sua produção interna sido reduzida
consideravelmente nos últimos anos, bem como sua expansão76. De acordo com Larissa
Bombardi (2017, p. 28), “[...] a agricultura brasileira na perspectiva de sua mundialização tem

75
De acordo com a pesquisadora Larissa Bombardi, no seu trabalho Geografia do Uso de agrotóxicos no Brasil
e conexões com a União Europeia de 2017, e baseada nos dados da CONAB, nos anos de 2002 a 2015/16, a
soja teve expansão em termos territoriais de mais de 79%, pulando de 18 milhões de hectares para 33 milhões.
Enquanto a cana de açúcar, de 2005 a 2015/16, teve acréscimo de 5,8 milhões de hectares a 8,6 milhões de
hectares, equivalente a 48% a mais de expansão, consequentemente, como aponta a pesquisa, a expansão
contribuiu para o aumento da produção.
76
Na linha contrária, os quatro principais alimentos que constituem a mesa da/o brasileira/o, como o arroz, o
feijão, a mandioca e o trigo diminuíram seus hectares de terra, algo em torno de 37,5%, 31%, 23% e 22%,
respectivamente no período entre 2002 a 2015/16 (BOMBARDI, 2017, p. 30).
94

se consolidado por meio da ampliação de cultivos voltados a transformarem-se em commodities


ou agrocombustíveis que demandam intensa utilização de agrotóxicos”.
O aumento dessas “produções” repercute nas péssimas condições de trabalho das
agricultoras e dos agricultores rurais, aproximadas/os ao trabalho escravizado; na expulsão de
indígenas, quilombolas e camponesas/es de suas terras; contaminação do solo, da água e do ar;
agravamento da saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais por conta dos agrotóxicos e
de quem vive no entorno dessas regiões de cultivos e na diminuição das terras para a agricultura
familiar. Para completar o pacote industrial, o Brasil representa um dos maiores consumidores
de agrotóxicos, consumindo algo em torno de 20% de toda a produção mundial77, e também um
dos maiores consumidores de sementes transgênicas78. Com efeito, nos últimos anos, houve um
aumento significativo da concentração das terras nas mãos de poucos e grandes empresários79.
Como foi já comentado no segundo capítulo, a colonialidade80 se expande para além
dos atravessamentos de raça, gênero e poder, interferindo no paladar e, como resultado,
repercutindo na saúde da população. De acordo com o Guia Alimentar da população brasileira
(2014, p. 8):

A alimentação adequada e saudável é um direito humano básico que envolve a


garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática
alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais do indivíduo e que deve estar
em acordo com as necessidades alimentares especiais; ser referenciada pela cultura
alimentar e pelas dimensões de gênero, raça e etnia; acessível do ponto de vista físico
e financeiro; harmônica em quantidade e qualidade, atendendo aos princípios da
variedade, equilíbrio, moderação e prazer; e baseada em práticas produtivas
adequadas e sustentáveis.

Diante do Guia, a primeira questão que devemos nos interrogar é: “o que comemos”?
Essa indagação vem acompanhada também de outra pergunta: de onde vem esse alimento?
Quem o cultivou, criou e, até mesmo, quem o preparou? Todas essas questões, quando

77
Desde 2019, já foram aprovados mais de 1275 agrotóxicos, inclusive proibidos na União Europeia há mais de
20 anos, como informa: https://contraosagrotoxicos.org/bolsonaro-autoriza-agrotoxicos-banidos-ha-20-anos-
na-uniao-europeia/. Acesso: 23 jul. 2021.
78
Nos últimos anos, temos visto grande expansão dos cultivos transgênicos. Atualmente, no Brasil, 96,5% da
produção de soja é transgênica, correspondendo a área de 32,7 milhões de hectares transgênicos; 88,4% de
produção de milho é transgênica, o que corresponde 15,7 milhões de hectares; 78,4% da produção de algodão
também é feita com sementes transgênicas, correspondendo a 789 mil hectares cultivados (2017, p. 35).
79
De acordo com os dados do último Censo Agropecuário, de 2017, os dados comprovam, até a data de realização
do último censo, o aumento das terras destinadas à atividade agropecuária; aumento dessas propriedades;
redução de 9,5% da agricultura familiar, em contradição ao aumento de 35% do agronegócio, que rendeu 69%
de receita para os 16% da agricultura familiar.
80 O conceito de colonialidade é utilizado a partir da definição do Grupo Modernidade/Colonialidade, formulado no ano de 1998. Esse entendimento parte de referenciais
da colonialidade do saber/poder
/ser/raça/gênero, por meio do qual compreende-se que, mesmo após a colonização
europeia, as relações de domínio são mantidas a partir desses instrumentos na região reconhecida como
América Latina.
95

respondidas, passam a definir um sistema econômico, social e alimentar de um lugar. Inclusive,


a falta de uma resposta para o primeiro revela a crise e a manutenção de todo esse sistema: a
fome. De acordo com a cartilha Pensando a alimentação, a fome e a agroecologia desde o
feminismo, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA, 2021):

A fome é a expressão biológica de males sociais e desigualdades econômicas, ou seja,


quanto maior a concentração de pobreza mais avança a falta de acesso ao alimento, a
insegurança alimentar. O retorno da fome se dá num contexto de agravamento das
perdas de direitos e no momento, também, que vivemos um avanço da corrida por
terras e águas. No Brasil, faz-se o desmonte de todas as políticas e programas que
davam suporte estrutural à produção de alimentos de base camponesa e constatamos
um avanço acelerado das grandes corporações do agro-hidro-minério-negócio (este e
suas corporações e países de origem).

De acordo com o IBGE, a fome atingiu mais de 4,6% dos domicílios durante essa
pandemia e vem aumentando em 43,7% nos últimos cincos anos, atingindo mais de 3,1 milhões
de lares, afetando principalmente as famílias camponeses. De acordo com a cartilha do MPA
(2021), no caso do agravamento da pobreza e da fome, as mulheres são as que mais sentem os
efeitos, considerando, de acordo com os dados do IBGE, que mais de 10 milhões de mulheres
são responsáveis pelo sustento dos lares brasileiros, percentual de 45% apontado no ano de
2018. Isso só reforça o fenômeno da feminização da pobreza, já que as mulheres são as
primeiras a sentir os efeitos da fome, quando precarizadas as condições de manutenção de sua
família (MPA, 2021).
Enquanto a fome se alastra para uma parte da população, outra parte tem cada vez mais
dependido dos supermercados ou grandes redes de produtos alimentícios, como produtos
enlatados, congelados, pré-cozidos, dos quais nem se sabe a origem. Muitas vezes, a
proveniência desses produtos é omitida de forma intencional, ou seja, não informar a origem é
também uma das ferramentas de manutenção desse sistema.
A ideia que se vende é a associada à industrialização, portanto, comer produtos
industrializados foi associado ao poder de aquisição. Essa ideia se mantém, quando o tempo
que era utilizado para a dedicação desse ofício, de preparar alimentos, é retirado, mantendo-se
na lógica de que não se pode parar ou que atividades como essas não possuem valor.
No Brasil, as práticas para o conhecimento e consumo de alimentos saudáveis não
consistem apenas numa escolha pessoal. Ao contrário, essas práticas dizem respeito também
aos contextos social, geográfico, econômico e cultural, nos quais aquelas pessoas vivem,
podendo estar muito longe do acesso a alimentos frescos, como frutas, legumes, verduras. Ou
mesmo com ritmo de vida em que as refeições principais do dia, como almoço e jantar, são
96

realizadas em locais com poucas ofertas de alimentos minimamente processados. Além disso,
muitas vezes, a alimentação realizada fora de casa conta com um custo muito grande à/ao
trabalhador/a. Desse modo, devemos notar que as práticas de trabalho, principalmente em
grandes cidades, não estimulam o tempo de descanso/almoço/lanche, de modo que a pessoa é
pressionada a voltar logo ao trabalho. Sendo assim, não há tempo para comprar seu alimento.
Não há tempo para preparar seu alimento. Não há tempo para comer.
Como a proposta deste trabalho é pensar o ecofeminismo comprometido com o
rompimento de práticas de violências não só patriarcais, mas também racistas e especistas,
pensar a alimentação significa combater violências que começam antes de os alimentos
chegarem ao prato, possibilitando, com isso, a percepção de práticas que vêm se naturalizando
na sociedade. O discurso ocidental vem depreciando todas as formas de alimentações locais,
isso, inclusive, vem ocorrendo numa dieta vegetariana, na qual a indústria vem inserindo
produtos de origem vegetal, porém, sem questionar a própria cadeia de produção. Como
apresentam as ecofeministas animalistas destacadas no capítulo anterior, a alimentação
vegana/vegetariana, vinculada às multinacionais, acaba sendo descompromissada com a luta
pela justiça interespécies, sendo somente apenas mais uma prateleira de produtos no corredor
do supermercado, sem qualquer compromisso e possibilidade de ruptura com o sistema
(OLIVEIRA; KUHNEN, ROSENDO, 2020).
Então, cabe-nos aqui pensar: como esse processo de colonização se inicia e chega aos
nossos pratos? Ou mais: como esse processo de colonização estabelece aqueles que comerão e
aqueles que não irão se alimentar?
Podemos dizer que esse processo se inicia muito antes do plantio, inicia-se com as
navegações, e se consolida com o genocídio e com a desapropriação de territórios indígenas,
com o desmatamento, com o extrativismo e com a concentração de terras, frutos da herança
colonial brasileira81. Já o processo de cultivo, agora totalmente industrial, com pouca mão de
obra humana, inicia-se pela escolha das sementes comerciais até o uso de agroquímicos para
controle de pragas, com o argumento de aumentar a produção. No final, essa agricultura se
apropria de forma irresponsável da ciência das tecnologias, trazendo problemas para o solo,

81
“O processo de homogenização dos membros da sociedade imaginada de uma perspectiva eurocêntrica como
característica e condição dos Estados-nação modernos, foi levado a cabo nos países do Cone Sul latino-
americano não por meio da descolonização das relações sociais e políticas entre os diversos componentes da
população, mas pela eliminação massiva de alguns deles (indígenas, negros e mestiços). Ou seja, não por meio
da democratização fundamental das relações sociais e políticas, mas pela exclusão de uma parte da população.
Dadas essas condições originais, a democracia alcançada e o Estado-nação constituído não podiam ser
afirmados e estáveis. A história política desses países, muito especialmente desde fins da década de 60 até o
presente, não poderia ser explicada à margem dessas determinações.” (QUIJANO, 2005, p.133).
97

para o ar, para os rios, para os animais e para os seres humanos que trabalham e que consomem
esses alimentos. Como o Guia (2014, p. 19-20) apresenta:

Estão perdendo força os sistemas alimentares centrados na agricultura familiar, em


técnicas tradicionais e eficazes de cultivo e manejo do solo, no uso intenso de mão de
obra, no cultivo consorciado de vários alimentos combinado à criação de animais, no
processamento mínimo dos alimentos realizado pelos próprios agricultores ou por
indústrias locais e em uma rede de distribuição de grande capilaridade integrada por
mercados, feiras e pequenos comerciantes. No lugar, surgem sistemas alimentares que
operam baseados em monoculturas que fornecem matérias-primas para a produção de
alimentos ultraprocessados ou para rações usadas na criação intensiva de animais.
Esses sistemas dependem de grandes extensões de terra, do uso intenso de
mecanização, do alto consumo de água e de combustíveis, do emprego de fertilizantes
químicos, sementes transgênicas, agrotóxicos e antibióticos e, ainda, do transporte por
longas distâncias. Completam esses sistemas alimentares grandes redes de
distribuição com forte poder de negociação de preços em relação a fornecedores e a
consumidores finais.

O segundo aspecto apresentado no Guia Alimentar (2014), que vem a ser um obstáculo
a essa alimentação mais natural, consiste nas propagandas, na mídia. Há forte estímulo ao
consumo de produtos ultraprocessados, incentivados a serem comprados pela promessa de
“economizar” tempo de preparo. O uso desses produtos tem repercutido num “novo” estilo de
vida: depreciando práticas alimentares tradicionais, uso excessivo de embalagens, e mantendo
essa lógica da correria, de estar sempre correndo, apressado, como uma prática comum na vida
das pessoas. Essa lógica, no entanto, tende a se popularizar pela necessidade de atender ao
sistema, mas também se manifesta associada ao progresso, à moda.

É crescente a quantidade de matérias na televisão, rádio, revistas e internet com


informações e recomendações sobre alimentação e saúde. Entretanto, a utilidade da
maioria dessas matérias é questionável. Propagados como “superalimentos”, e
ignoram a importância de variar e combinar alimentos. Nessa medida, induzem
modismos e levam à depreciação de alimentos e práticas alimentares tradicionais. Não
raro alimentação saudável é confundida com dietas para emagrecer. Por vezes,
matérias que se dizem informativas são na verdade formas veladas de fazer
publicidade de alimentos ultraprocessados. (GUIA ALIMENTAR, 2014, p. 106).

A recomendação do Guia é de consumos in natura: legumes, frutas, cereais com menor


processo possível. Nesse sentido, os processados são recomendados em pouca quantidade e os
produtos ultraprocessados não são recomendados por afetarem a cultura local, a vida social e o
meio ambiente, na medida que seguem padrão global. Outro aspecto apontado acima é que o
consumo de ultraprocessados cria a falsa ideia de inclusão social, cultural, além de incentivar
determinadas práticas de alimentação em detrimento de outras. Isso fica bem evidente nas
98

propagandas e também no uso excessivo de descartáveis, plásticos82. Outro ponto problemático


é a distância de como aquele produto é feito e por quem é feito. Por fim, além de todos esses
pontos, o consumo final desses alimentos é realizado de forma solitária, individual.
E, no aspecto mais amplo dos efeitos desses consumos, a indústria de ultraprocessados
é danosa ao meio ambiente de diferentes maneiras: no processo inicial, pelo cultivo de
monoculturas para a produção desses alimentos, como a soja; pelo uso de agrotóxicos e pelo
consumo excessivo de água, como nos refrigerantes, que acaba destinando água para produção
desses produtos; e, por último, pelo uso de insumos e descarte de embalagens, que viram logo
lixo, muitos, inclusive, sem condições de serem reciclados.
Por fim, o Guia ainda induz a pensarmos numa alimentação sem animais nos pratos,
argumentando a favor da natureza e dos próprios animais. A agropecuária, por exemplo, gera
grande produção de gás carbônico, contaminação das águas e dos solos, desmatamento e uso
intenso da água para produção de monoculturas de soja (utilizada como ração para alimentação
desses animais) e, por fim, causa sofrimento e morte. Na indústria alimentícia, há toda uma
conexão de práticas violentas conectadas entre si, que se expandem a outras espécies de seres
vivos e, apesar de o Guia apresentar apenas como uma orientação a cultura da carne, esta é
marcada por esse paradigma da colonização do paladar, fundamentada num modelo de
exploração especista e mantido por uma dieta sexista (OLIVEIRA, 2019).
Para Oliveira (2019), um dos aspectos desse paradigma da colonização do paladar
ocorre por meio da exploração dos animais não humanos e, consequentemente, da destruição
da natureza e da desapropriação dos povos originários desse território. “E afirma que pensar no
especismo e nesse lugar que a carne ocupa na alimentação brasileira significa ter um olhar
atento para toda a simbologia que foi construída dentro dessa lógica presente no ato de comer
animais não humanos” (OLIVEIRA, 2019, p. 6). E complementa que a cultura da carne é um
dos rastros coloniais mantidos pela colonialidade do paladar e que vem a ser também uma
colonialidade alimentar.
Sendo assim, para a defesa do território, da soberania alimentar e pela defesa dos direitos
animais, o caminho não é pela industrialização alimentar, nem pelas sementes transgênicas e
muito menos pelo agronegócio. E qual seria o caminho?
A construção de um caminho é realizada primeiro compreendendo as origens da
colonização no território brasileiro. Essa colonialidade tem sido mantida também pelos

82
Destacamos um caso abordado por Oliveira, Kuhnen e Rosendo (2020) acerca da multinacional Nestlé, que
utiliza o discurso de empoderamento feminino para que seus produtos cheguem em diferentes localidades no
Brasil.
99

estereótipos e estigmas no imaginário de outros povos, que construíram sobre o Sul global, em
especial o território da América latina, uma ideia de lugar a ser explorado, devido à sua natureza
e aos seres vivos. Junto a esse imaginário, foram reforçados estigmas de deficiência moral,
política, intelectual e cultural dos habitantes desse território83. Esse tipo de imagem refletiu-se
no olhar de como os próprios habitantes foram manipulados a se enxergarem, como nunca
preparados a fazerem política ou formularem suas próprias teorias ou cosmovisões de mundo.
Essa concepção foi muito bem construída pelo grupo modernidade/colonialidade, a partir da
construção do conceito sobre colonialidade do poder, desenvolvido aqui pelo sociólogo peruano
Aníbal Quijano (2005, p. 237):

Esse resultado da história do poder colonial teve duas implicações decisivas. A


primeira é óbvia: todos aqueles povos foram despojados de suas próprias e singulares
identidades históricas. A segunda é, talvez, menos óbvia, mas não é menos decisiva:
sua nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo de seu lugar na
história da produção cultural da humanidade. Daí em diante não seriam nada mais que
raças inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores. Implicava também
sua relocalização no novo tempo histórico constituído com a América primeiro e com
a Europa depois: desse momento em diante passaram a ser o passado. Em outras
palavras, o padrão de poder baseado na colonialidade implicava também um padrão
cognitivo, uma nova perspectiva de conhecimento dentro da qual o não-europeu era o
passado e desse modo inferior, sempre primitivo.

Para o grupo Modernidade/Colonialidade, o eurocentrismo é uma das lógicas para a


manutenção da colonialidade do poder e do saber, que passa a definir o padrão de
conhecimento, apresentando-se como o princípio regulador da razão universal de todo o mundo.
Nessa lógica, ainda que não estejam sujeitas à administração colonial, se mantêm à situação
colonial, que estrutura o mundo articulando inclusive os lugares periféricos, seja pela política,
ou pela estrutura epistemológica, que se reproduz para a vida individual e coletiva. Para melhor
compreensão sobre o conceito de colonialidade de poder, ser e saber, sugerimos o trabalho de
Aníbal Quijano (2005), Rita Segato (2015) e Luciana Ballestrin (2013).
Portanto, nesse lugar do passado e do primitivo, a natureza vai ocupar, por meio de uma
visão de mundo ocidental, um lugar ou mesmo um produto a ser explorado e subjugado pelas
condições geográficas, étnicas e raciais, do qual foi retirada a nossa capacidade de seguirmos

83
Esse mesmo discurso recai como estigmas e discriminação para as regiões Norte e Nordeste do Brasil. Em
especial ao Nordeste, devido ao discurso de ódio nos últimos anos, que ganharam força com as redes sociais.
Para o povo nordestino, sempre lhe foi atribuído a fome, o analfabetismo, a falta de preparo de ocupar cargos
de trabalho mais qualificados. E o Estado brasileiro é omisso a essa responsabilidade e ainda culpa o nordestino
que acaba muitas vezes tendo que enfrentar o processo migratório, responsabilizando-lhe pelo deslocamento,
além disso, muitas vezes há a política e o retrato midiático que reproduzem expressões xenofóbicas e mantêm
a lógica do nordestino como inferior à população de outras regiões, em especial as do Sul e do Sudeste.
100

como agentes históricos84. Portanto, o que restaria para permearmos esse processo e chegarmos
ao “novo”? A mudança do sistema econômico, adotando um capital que esteja atrelado ao
processo de industrialização e que percorra por todas as áreas: educação, agricultura, comércio.
Posteriormente, modificando os valores culturais, desvinculando-os de práticas tradicionais
para, assim, manter, construir ou formar instituições que estejam adequadas a todas essas
mudanças.
Sob a égide do desenvolvimento, que estava sempre em processo, colocou-se para os
habitantes da América Latina uma cartilha a ser seguida pela hegemonia dominante. Uma das
formas de manutenção da colonização consiste em hierarquizar negativamente os valores
culturais dos povos em relação aos grupos dominantes. Com essa hierarquia, fica fácil
argumentar o quanto suas instituições políticas, públicas ou mesmo seus modos de organização
são insatisfatórios e imaturos, necessitando o estado emergencial de uma “Reforma”. A
Reforma do Estado, reforma da previdência, flexibilização da legislação trabalhista,
privatização de amplos setores da economia, investimentos privados na educação, reforma
tributária, controle orçamentário, abertura das economias nacionais para investimentos e
produtos estrangeiros, contenção da inflação, austeridade fiscal e monetária entre outros, foram
todos apresentados como pontos centrais de uma nova agenda de transformações a ser
imperativamente adotada e implementada pelos “governos latino-americanos”, suspostamente
em benefício de suas respectivas sociedades.
[...] Novamente, sob a égide da “verdade técnicocientífica”, diferenças e peculiaridades locais e
regionais foram reduzidas e solapadas para que se encaixassem em certo conjunto de imagens
que, através do rótulo América Latina, procurou dar coerência e unidade a uma ampla e diversa
gama de fenômenos e eventos. (FERREIRA, 2011, p. 68).

Essa “reforma” foi institucionalizada globalmente, como pontua Quijano (2005), a partir
do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Pentágono e da OTAN, como mais
um artifício colonial. Porém, diante da crise alimentar e ambiental, muitos teóricos assumem a
defesa por mudanças comportamentais pautadas no desenvolvimento sustentável,
desvinculando assim qualquer responsabilidade dos problemas ambientais com a estrutura
econômica capitalista. Muitas abordagens não associam que a melhor mudança para isso não

84
“A partir de meados do século XIX, a porção do continente hoje identificado como sendo a América Latina
começaria, gradativamente, a migrar para a nova zona de influência de uma ex-colônia europeia, os Estados
Unidos da América. Seu passado colonial comum não tão longínquo, no entanto, em nada contribuiu para
modificar o padrão assimétrico de construção de imagens a respeito da América do Sul e de sua população. A
reputação positiva que os EUA ganhavam na Europa (vide a admiração dos revolucionários franceses pelos
eventos de 1776, que marcaram a independência da então jovem nação americana) não foi em hipótese alguma
estendida aos demais países do continente” (FERREIRA, 2011, p. 62-63).
101

estaria num modo de comportamento sustentável ou no uso de tecnologias limpas dentro desse
sistema, mas numa reestrutura social, econômica, cultural e política.
De acordo com Vandana Shiva (2006), o que a modernização afirmava garantir tem
demonstrado, na prática, o contrário, destruindo os recursos comuns, tornando-os inacessíveis,
de modo que eles deixam de ser bens públicos e comunitários e passam a ser privados. Quando
esses recursos passam a ser substituídos por produções abstratas, criadas pelos poderes
dominantes, fica muito mais fácil de manipular a natureza, uma vez que a própria sociedade
passa a se guiar por regras baseadas na busca do bem-estar e em benefícios definidos por esses
poderes, fazendo com que os seres vivos fiquem reféns das grandes empresas. Segundo Shiva
(2006, p. 136, tradução nossa), “O monocultivo da mente é a perspectiva reducionista desde
que o mundo é visto e interpretado em termos de monocultivos/monoculturas”.85
A revolução verde, por exemplo, que surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial,
impulsionou o desenvolvimento e o crescimento do agronegócio, a partir da fertilização dos
solos, da alteração genética das sementes e da utilização de máquinas e de tecnologia para a
produção em alta escala em países considerados, nessa ótica neoliberal, em desenvolvimento.
Utilizavam como principal argumento a erradicação da fome nesses lugares, mas levaram
mesmo à monocultura desse cultivo e à destruição dos solos, das águas, tanto pelo tipo
produção, quanto pelo uso de pesticidas, que levou o Brasil a ser reconhecido como um dos
maiores consumidores de agrotóxicos86. Para Shiva (2006, p.113, tradução nossa):

A Revolução Verde foi um exemplo de destruição deliberada da biodiversidade. As


novas biotecnologias estão repetindo e aprofundando ainda mais essa tendência. Pior
ainda: novas tecnologias, combinadas com monopólios de patentes impulsionados por
regimes de direitos de propriedade intelectual incluídos no GATT, a convenção da
biodiversidade e outros tribunais sobre o comércio, ameaçam transformar a
diversidade de formas de vida em mera matéria. Prêmio para a produção industrial e
negócios. Ao mesmo tempo, também põem em perigo a liberdade regenerativa das
várias espécies e a economia livre e sustentável dos pequenos agricultores e
produtores com base na diversidade da naturalização87.

85
“El monocultivo de la mente es la perspectiva reduccionista desde la que el mundo es visto e interpretado en
términos de monocultivos/monoculturas O monocultivo da mente é a perspectiva reducionista desde que o
mundo é visto e interpretado em termos de monocultivos/monoculturas” (SHIVA, 2006, p.136).
86
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), desde 2008, o Brasil é apontado como um
dos maiores consumidores de agrotóxicos, tendo uso de mais de 500 tipos deles.
87
“La Revolución verde fue un ejemplo de destrucción deliberada de la biodiversidad. Las nuevas biotecnologías
están repitiendo y ahondando actualmente aún más esa tendencia. Peor aún: las nuevas tecnologías,
combinadas con los monopolios de patentes impulsados por los regímenes de derechos de propiedad
intelectual incluidos en el GATT, la convención sobre biodiversidad y otras Tribunas sobre el comercio,
amenazan con transformar la diversidad de formas de vida en simple materia prima para la producción y el
negocio industriales. Al mismo tiempo, también ponen en peligro la libertad regenerativa de las diversas
especies y la economía libre y sostenible de los pequeños agricultores y productores basada en la diversidad
de la naturaliza.” (SHIVA, 2006, p. 113).
102

De acordo com Vandana Shiva (2017), “[...] um debate sobre alimentação e


principalmente, sobre quem alimenta o mundo é um debate sobre paradigma, o paradigma que
melhor representa a sustentabilidade para produção desses alimentos.” Para a pensadora, toda
a mentalidade, hoje em dia, é mantida pelo sistema agropecuário, que resulta no endividamento
da população campesina, na erosão e na destruição da biodiversidade e dos agrossistemas, na
falta de acesso aos recursos como terra, água e sementes e, por consequência, na perda dos
saberes tradicionais.
Para a autora, a crise atual é fruto desse paradigma industrial, que trata o mundo como
uma máquina e a alimentação como um produto, baseando-se na ideia de que os animais não
humanos são seres que precisam ser eliminados, ou que as plantas precisam ser modificadas
geneticamente para se adaptarem aos produtos químicos. Shiva justifica que esse modelo de
paradigma é resultado das políticas da Segunda Guerra Mundial, em que os produtos químicos,
antes utilizados para eliminar pessoas, passam a ser utilizados com o nome de “Revolução
verde”, na agricultura, sob a justificativa de matar a fome no mundo. Porém, o que resulta é
justamente o contrário: o aumento da fome e, inclusive, de distúrbios e transtornos alimentares.
Sanar a fome, para Shiva, segue sendo o maior mito mantido pela revolução verde e pela
agricultura industrial, propagada pela mídia, que oculta a realidade: a de que somente 30%
desses “produtos” alimentam as pessoas, ao passo que causa mais de 75% de danos
ecológicos88. Shiva (2016, p. 44) ainda destaca que:

Depois da Primeira Guerra Mundial os fabricantes de explosivos cujas fábricas


estavam equipadas para a fixação de nitrogênio tinham que encontrar novos mercados
para seus produtos. Os fertilizantes sintéticos supõem uma transição bastante cômoda
para passar ao emprego, em tempos de paz, de produtos destinados a guerra. Mas esses
produtos químicos não eram exatamente de paz, porque supuseram uma batalha contra
o solo e contra a Terra. Após a Segunda Guerra Mundial essa batalha foi perdida pela
bandeira da Revolução verde, com a intenção de exportar todos esses produtos
químicos tóxicos ao Sul Global. (SHIVA, 2017, p. 44).

Para Shiva (2016), antes de compreendermos as ilusões mantidas por esse sistema, é
preciso entender que há uma visão de mundo e alimento que se diferencia do paradigma
ecológico. Para o paradigma da indústria, o mundo é um mercado global, que serve para vender
sementes, produtos químicos e alimentícios, e os alimentos serão esses produtos, extraídos e

88
Shiva apresenta que, em escala global, são utilizados 1400 pesticidas, divididos em: herbicidas, inseticidas e
fungicidas. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), toda população corre risco sob os efeitos
desses produtos, principalmente em relação à saúde. Alguns grupos sociais e os países em desenvolvimento
sofrem mais os efeitos que outros (SHIVA, 2017).
103

comercializados, sempre em vista de obter dinheiro. Não há mais relação com quem planta,
onde se planta e muito menos com quem vende. A diversidade de alimentos está sendo
substituída pelo monocultivo e a mente humana reduzida a esse sistema, que repercute não só
na redução e na divisão de saberes, mas também na colonização do território.

A agricultura industrial é intolerante com a diversidade. A diversidade é nutritiva e


resiliente por natureza, mas para aumentar os lucros, a agricultura industrial torna as
safras dependentes de fatores externos, como fertilizantes químicos, pesticidas,
herbicidas e sementes geneticamente modificadas. Não só aumenta a semelhança
entre a agricultura industrial e uma guerra química contra o planeta: a distribuição de
alimentos também se assemelha a uma guerra, como aqueles tratados de “livre
comércio” que confrontam alguns agricultores com outros, alguns países com outros,
em perpétua competição, em conflito eterno. O livre comércio permite que
corporações e investidores obtenham até a última semente, até a última gota d'água e
a última pulga no solo. Explore a Terra sem limites ou reparos, para os agricultores e
para todos os cidadãos. Este modelo tem como único objetivo o benefício econômico,
não dando atenção ao solo, aos produtores ou à saúde das pessoas. Corporações não
cultivam alimentos - elas geram lucros. (SHIVA, 2017, p.14-15, tradução nossa)89.

Esse sistema tem levantado algumas ilusões enumeradas por Shiva, como: 1) a
corporação atua disfarçada de pessoa física e escreve as regras da produção e do comércio para
aumentar ao máximo os benefícios e explorar a natureza, porém, as empresas não morrem, já
as pessoas e a natureza que elas utilizam, sim; 2) tratar as pessoas e a natureza como meios,
instrumentos, e não associar o trabalho das agriculturas como responsáveis pelos alimentos,
nomeando a indústria, retirando o rosto da pessoa que planta os alimentos e dando o rosto de
uma marca, de uma empresa; 3) essa produção industrial não é responsável por nada, nem por
seus riscos, por seus crimes ecológicos e não se enumera seus custos, ou seja, o lucro é deles,
mas o prejuízo é para todo mundo; 4) a mesma empresa generaliza suas práticas, como ela passa
a ditar as regras, então, passa a entender que essas regras valem para todas/os as/os
agricultoras/es; 5) por último, o alimento é um produto, portanto, não há qualquer relação e
preocupação com o processo, senão oferecer o “melhor” produto para quem o vai consumir,

89
“La agricultura industrial es intolerante com la diversidad. La diversidad es nutritiva y resistente por
naturaleza, pero para aumentar los beneficios la agricultura industrial hace que la cosechas dependan de
factores externos como los fertilizantes químicos, los pesticidas, los herbicidas y las semillas modificadas
genéticamente. No solo está aumentando el parecido entre la agricultura industrial y uma guerra química
contra el planeta: la distribuicción de alimentos también se asemeja a una guerra, com esos tratados que
llaman de “libre comercio” que enfrentan a unos agricultores com otros, a unos países com otros, em perpetua
competencia, em eterno conflicto. El libre comercio permite a las coporaciones y a los inversores hacerse
hasta la ultima semilla, hasta com la ultima gota de agua y la ultima pulga de terreno. Explota la Tierra sin
límite ni reparo, a los agricultores y a todos los ciudadanos. Este modelo tiene el beneficio economico como
único objetvo, y no presta atención alguna al suelo, a los productores ni a la salud de la gente. Las
corporaciones no cultivan alimentos: cultivan beneficios.” (SHIVA, 2017, p. 14-15).
104

atendendo à demanda criada pelo próprio sistema. Desenvolve ainda os argumentos contra essa
ilusão:

Quando levamos todos os dados em consideração, o argumento de que as


monoculturas nos permitem obter mais alimentos a um preço menor é uma mentira
absoluta, por quatro razões: as monoculturas focam em aspectos parciais de
monoculturas, ao invés de um sistema abrangente de diferentes culturas; A produção
industrial foca no rendimento de um ou dois produtos globais, não no cultivo de
diversas plantas, que são o que as pessoas comem: focamos na quantidade por acre,
ao invés da nutrição por acre, quando na nutrição por acre foi realmente reduzido
como resultado da agricultura industrial; Terceiro, a produção industrial - que inclui
a engenharia genética - usa intensamente os recursos naturais, desperdiçando grande
parte deles: se a produtividade for definida com base no uso dos recursos, a agricultura
industrial tem produtividade muito baixa e prejudica a segurança alimentar porque
esgota recursos que de forma sustentável sistema de produção seria usado diretamente
para produzir mais alimentos; A quarta razão é vital: o uso em larga escala de produtos
químicos e engenharia genética em monoculturas produz menos alimentos do que as
alternativas ecológicas baseadas na biodiversidade em grande escala.90 (SHIVA,
2016, p. 87, tradução nossa).

O processo de colonização ocidental na alimentação ressalta os aspectos apresentados


anteriormente pelas ecofeministas, as dicotomias entre público/privado, masculino/feminimo e
o trabalho reprodutivo/produtivo, primitivo/civilizado, humano/não humano. Como essa
dominação ocorre e se naturaliza? Primeiro, separa-se o ser humano das diferentes espécies de
seres vivos, passando a ser concebidas como um recurso, tanto para ser utilizado, dominado e
inclusive, destruído. Ademais, esse domínio vem a ser fonte de poder simbólico e material
dentro de uma estrutura patriarcal e antropocêntrica, já que o ato de preparar a comida ainda é
muito associado aos estereótipos de gênero feminino e, consequentemente, à esfera privada.
Marta Montiel e David Neira (2014)91, no artigo “Alimentación, agroecología y
feminismo: superando los três sesgos de la mirada occidental”, afirmam três tendências que
estruturam esse sistema: antropocentrismo, etnocentrismo e androcentrismo. No

90
Cuando tenemos em cuenta todos los datos, el argumenta de que los monocultivos nos permiten obtener más
cantidad de alimentos a um precio menor es uma mentira absoluta, por cuatro razones: los monocultivos se
centran em aspectos parciales de cosechas únicas, em lugar de em um sistema integral de cosechas distintas; la
produción industrial se centra en el rendimiento de uno o dos produtos globales, no en el cultivo de plantas
diversas, que son las que come la gente: nos centramos em la cantidad por acre, em lugar de en la nutrición por
acre, cuando en la realidad la nutrición por acre se há reducido a consecuencia de la agricultura industrial; En
tercer lugar, la producción industrial -que incluye la ingeniería genética- emplea recursos naturales,
desperdiciando gran parte de ellos: si la productividad se define tomando como base el uso de recursos, la
agricultura industrial tiene una productividad muy baja y perjudica la seguridad alimentaria porque agota
recursos que en um sistema sostenible de producción se emplearían, diretamente, para producir más alimentos;
la cuarta razón es vital: el empleo a gran escala de productos químicos y la ingeniería genética en los
monocultivos producen menos alimentos que las alternativas ecológicas basadas en la biodiversidad a gran
escala. (SHIVA, 2017, p. 86-87).
91
MONTIEL, M.; NEIRA, D. Alimentación, agroecología y feminismo: superando los três sesgos de la mirada
occidental. In: SILIPRANDI; ZULUAGA (Coord.). Genero, agroecología y soberania alimentaria.
Perspectivas ecofeministas. Barcelona: Icaria editorial, 2014.
105

antropocentrismo, o humano é separado da natureza como um todo, projetando-se como um ser


superior a outras formas de vida, como consequência, é eliminada qualquer capacidade de afeto
e empatia com a natureza e com as espécies diferentes de seres. No etnocentrismo, formas de
conhecimentos são desprezadas, tratadas agora como primitivas, selvagens, exaltando a razão
científica como padrão de conhecimento. Como consequência, há o desprezo à vida campesina
e rural, criando o modelo de vida ocidental como o de vida ideal. Isso passa a se refletir não
somente nas práticas e nos saberes desprezados, mas, também, no consumo alimentar, seja no
campo ou na cidade. “O etnocentrismo ocidental bloqueia a construção de alternativas gerando
cegueira para as diferenças.” (MONTIEL; NEIRA, 2014, p. 27, tradução nossa).92
A agricultura industrial no Brasil é ainda bastante androcêntrica, porque as formas de
produção seguem sendo influenciadas por um modelo de economia do mercado, que escapa do
objetivo de alimentar as pessoas, mas visa a obtenção de lucro. O homem é assimilado a esse
projeto de lucro e as atividades de cuidado, em grande parte exercidas pelas mulheres, passam
a ser omitidas e não valorizadas. O socialmente construído como masculino desempenha a
centralidade hierárquica que subordina e deprecia o que foi condicionado como feminino 93. O
feminino acabou sendo associado ao doméstico, de desenvolvimento de atividades
reprodutivas, como o cuidado do lar, da alimentação e da higiene. As atividades reprodutivas
sustentam a vida e são fundamentais para o funcionamento de toda a sociedade, inclusive do
mercado. Porém, na forma que a sociedade foi estruturada, somente o trabalho do mercado foi
considerado produtivo e, consequentemente, valorizado simbolicamente e materialmente,
enquanto o trabalho que agora ficou associado às mulheres passa a ser inviabilizado e
improdutivo.
No Brasil, a revolução verde intensificou a exploração e a acumulação de terras e vem
contribuindo para o empobrecimento das mulheres rurais, a contaminação dos solos e das águas,
a dizimação dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos e a morte de diferentes espécies de
seres vivos94. A professora e pesquisadora ecofeminista Emma Siliprandi expõe como a
revolução verde ocorreu no Brasil:

92
“El etnocentrismo ocidental bloquea la construcción de alternativas generando ceguera hacia las diferencias”.
(MONTIEL; NEIRA, 2014, p. 27).
93
Essa questão pode ser vista no trabalho de Emma Siliprandi, Mulheres e agroecologia (2014), que aborda o
movimento agroecológico brasileiro a partir da luta das mulheres rurais.
94
Segundo o IBGE, houve redução de 1,4 milhão de vagas de trabalho no campo entre os dois censos –
atualmente, o Brasil possui 15,1 milhões de trabalhadores rurais. O maior impacto foi na agricultura familiar,
com perda de 2,2 milhões de postos de trabalho por conta da concentração de terras e da mecanização no
campo. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2019/11/maior-concentracao-de-terras-revelada-pelo-
censo-agropecuario-incentiva-desmatamento-e-conflitos/. Acesso em: 10 ago. 2021.
106

A modernização da agricultura ocorrida no Brasil desde a década de 1960 seguiu, em


linhas gerais, o modelo da Revolução Verde, a chamada “industrialização da
agricultura”. Apoiado em políticas estatais de crédito subsidiado, pesquisa e
assistência técnica, esse modelo promoveu uma mudança no padrão tecnológico de
produção agrícola, levando a uma maior concentração da estrutura agrária e a
profundas transformações nas relações sociais no campo. Entre as suas consequências
mais evidentes estão: (i) a diferenciação ocorrida nos setores de produção familiar
(com a integração de parte deles ao circuito da agroindustrialização); (ii) a
pauperização e a marginalização dos setores voltados para o autoconsumo; (iii) o
êxodo rural; (iv) a degradação ambiental, cujos sinais mais conhecidos são o aumento
do desmatamento e a destruição de ecossistemas, a poluição dos solos e da água por
conta dos agrotóxicos utilizados nas lavouras. (SILIPRANDI, 2015, p.134-135).

A alimentação, consequentemente, como prática vinculada ao feminino, foi


menosprezada, assim como todo o processo de obtenção de alimentos, ou seja, do cultivo até o
processo de preparação, inclusive a atividade campesina. E as mulheres, dentro dessa estrutura,
passaram por outros conflitos para terem seu trabalho reconhecido e para a construção de
agricultura livre de veneno. Por essa razão, a agroecologia não se faz sem a luta pelo fim da
violência de gênero e pela autonomia das mulheres rurais. Por isso, no Brasil, o movimento
agroecológico se organiza a partir de outras problemáticas sociais, como: educação do campo,
valorização do conhecimento popular, preservação da cultura campesina e da biodiversidade,
questões de gênero, bases éticas e solidárias, soberania e segurança alimentar.
Para Izanete (2015), agricultora rural do Rio Grande do Sul, a luta das mulheres
questiona todo esse sistema, desde as hierarquias de gênero, a estrutura familiar e esse sistema
capitalista, que mantém todas essas práticas de violências à natureza, à terra e aos seres vivos.
Por isso, a agricultura industrial apaga vozes, apaga identidades e violenta mulheres. A fala de
Izanete (2015), a seguir, demonstra a construção da luta atrelada à sua própria identidade:

Como eu me defino hoje: sou mãe, esposa, agricultora e militante. Não posso me ver
sem ser assim. Sou uma pessoa, uma cidadã, que luta para mudar o mundo. Essa é a
minha religião. [...] Eu acho que seria terrível minha vida se eu não pudesse acreditar
no movimento, na luta; eu não consigo me ver sem isso. E é principalmente uma luta
das mulheres, apesar de ser uma luta social. Porque eu estou dentro de um movimento
de mulheres, é um espaço privilegiado para poder levar essa luta. A luta mais
importante da minha vida é a luta das mulheres, porque essa luta vê o todo. A gente
luta mulheres e agroecologia por outro modelo, por crédito, pela terra, para mudar a
família. Eu posso estar enganada; tem gente que diz que a gente faz “lutinhas”. Eu
não concordo, porque eu acho que o movimento de mulheres é muito amplo. Ele
enxerga tudo: é contra o capital, é contra essa organização de família que está aí, que
explora as mulheres, explora os filhos. O jeito de se organizar a família também
sustenta o capitalismo, que está explorando os homens e as mulheres. É completo.
Olha a natureza, olha a vida como um todo, tudo o que está aí, sobre a terra. A terra,
que é o suporte da gente. A gente compara as mulheres com a terra: sem a terra, não
tem vida. E sem a luta das mulheres, não tem vitória, não tem vida. E a gente diz
também que sem feminismo não há socialismo. Pode até se começar um socialismo,
mas não vai chegar muito longe, porque daí a exploração vai continuar. (Izanete).
(apud SILIPRANDI, 2015, p. 329).
107

Por isso, a luta por um projeto agroecológico é a luta contra todas as estruturas de poder
e violência, como afirma a agricultora rural. Assim conclui Siliprandi (2015, p. 284-285):

O que Izanete chama de um novo modelo camponês passa, em sua visão e na do


Movimento de Mulheres Camponesas, pela luta política contra o modelo atual de
agricultura: pelo enfrentamento ao “agronegócio”, às grandes empresas que dominam
o processo agrícola atual (especialmente de sementes e agroquímicos, mas não
somente); às monoculturas de eucaliptos e pínus, que destroem áreas que poderiam
ser usadas para o plantio de produtos alimentares; e também pelo enfrentamento aos
governos, que, por meio das políticas públicas, permitem que o encontro com a
agroecologia tal modelo se consolide e se fortaleça, explorando e expropriando o
campesinato. Para ela, essa luta significa combater, ao mesmo tempo, capitalismo e
patriarcado, porque são duas faces de uma mesma moeda, que é a “mentalidade de
explorar tudo, as pessoas e a natureza, e de os homens explorarem as mulheres”.

De acordo com Siliprandi (2015), a agroecologia começou a ser conhecida no Brasil


com a publicação do livro de Miguel Altieri, Bases científicas para a agricultura sustentável,
no final dos anos 1980. Com base nisso, Siliprandi (2014, p. 201, tradução nossa) define o que
é a agroecologia:

A agroecologia é definida por seus principais teóricos como um conjunto de


disciplinas científicas por meio das quais é possível analisar e atuar sobre os
agroecossistemas, de forma a permitir a implementação de estilos de agricultura com
maiores níveis de sustentabilidade. O agroecossistema é um tipo específico de
ecossistema, alterado pela ação humana, por meio de atividades agrícolas. É uma
unidade geográfica delimitada onde ocorrem relações complexas entre as práticas
agrícolas e o ecossistema original. Para compreender essas relações é necessário não
só analisar os fenômenos ecológicos que aí ocorrem (bioquímicos, agronômicos), mas
também as interações entre os seres humanos, sua história, sua economia e sua
cultura.95

O movimento agroecológico ou movimentos sociais de organização das mulheres rurais


é bem recente, remete à metade da década de 1980, obtendo, porém, maior visibilidade nos anos
2000, com maior reconhecimento como sujeitos políticos. A partir da agroecologia, as mulheres
não só têm construído mudanças radicais no seu modo de se relacionar com o tema, com a
natureza, com os alimentos, na forma de obterem mais reconhecimento ao se posicionarem
acerca da sustentabilidade e da gestão ambiental. A agroecologia é uma perspectiva do cuidado
com o outro, consigo mesmo e com a natureza. A luta do movimento agroecológico soma-se

95
“La agroecología es definida por sus principales teóricos como um conjunto de disciplinas científicas por
medio de la cuales es posible analizar y actuar sobre los agroecosistemas, de modo tal que permite la
implantación de estilos de agricultura com mayores niveles de sustentabilidad. El agroecosistema es um tipo
específico de ecosistema, cambiado por la acción humana, por medio de las actividades agrícolas. Es uma
unidad geográfica delimitada em donde ocurren complejas relaciones entre las prácticas agrícolas u el
ecosistema original. Para entenderse esas relaciones es necesario no solo analizarse los fenomenos ecológicos
qe allí ocurren (bioquímicos, agronómicos), sino también las interaciones entre los seres humanos, su historia,
su economía y su cultura.” (SILIPRANDI, 2015, p. 201).
108

também à luta do movimento de mulheres. E os movimentos feministas devem reconhecer a


importância da luta e da defesa em prol da alimentação adequada, que perpassa pela luta e pelos
direitos pela terra, enquanto os movimentos agroecológicos devem reconhecer que, sem a
autonomia das mulheres e a defesa dos seus direitos, não há avanço no movimento. Práticas de
violências ou centralização de discursos a partir do homem é uma das questões a serem
combatidas por essa luta. Por isso, a agroecologia é um modelo não só de prática e consumo,
mas de pensamento, almejando a outro projeto de sociedade, como apresenta Siliprandi:

Os movimentos partem da avaliação de que o desenvolvimento do capitalismo no


campo, baseado na concentração da propriedade da terra favorece a exclusão social,
destrói o ambiente e gera dependência econômica frente aos grandes capitais
transnacionais. Em contraposição, se propõe um desenvolvimento baseado em
pequenas propriedades organizadas em regime familiar, que deveriam produzir
alimentos e outros produtos por meio de tecnologias ambientalmente sustentáveis, o
que permitiria a todas as pessoas que trabalham na agricultura viver com dignidade e
realizar-se pessoalmente. (SILIPRANDI, 2015, p. 212).

A concentração de terras afeta principalmente os países do Sul global, com grande


interesse das empresas transnacionais e dos governos estrangeiros, mas, também, com a
participação de grandes empresários nacionais para expansão da indústria agrícola e da
exploração de minério. A concentração de terra reflete-se na concentração de renda. Porém,
enquanto, em termos de extensão territorial, a posse dessas terras só aumenta nas mãos de
poucos, a agricultura familiar é responsável por mais de 77 % do abastecimento. Se a
concentração de terras, destruindo territórios preservados ambientalmente, terras indígenas,
quilombolas e a agricultura familiar, consolida-se como forma de discurso, essa lógica vai se
refletir na alimentação, já que, para a manutenção desse negócio, é necessária a monocultura
da mente que estimula práticas alimentares. A agricultora Francisca Lourdes, do assentamento
Mulunguzinho, no Rio Grande do Norte, apresenta o caminho pelo qual elas, agricultoras rurais,
têm procurado romper com o sistema:

A gente queria ir além de uma substituição de adubo, queria tudo o que é a


agroecologia. Queria ter um preço mais acessível para quem estava comprando, sair
dessa história de comercialização só para algumas pessoas da classe média. A gente
queria levar os nossos produtos para o público, para a feira livre, para as pessoas
comuns terem condições de comer também. (Francisca Lourdes). (apud
SILIPRANDI, 2015, p. 251).

Siliprandi (2015) defende a agroecologia como um projeto utópico, em que a utopia se


refere a escutar e visibilizar as propostas e o protagonismo das mulheres, garantindo suas
participações de forma igual. A mudança proposta pela agroecologia, para ser ecológica,
109

também precisa ser de gênero. Coletivamente, as mulheres rurais têm construído estratégias
centradas no cuidado da vida e não do mercado. As mulheres lutam e percebem que a questão
alimentar – além de ser política e de direito humano fundamental para nossa sobrevivência,
deve ser pensada a partir das práticas que precisam ser combatidas – está vinculada à
insegurança alimentar, ao modelo produtivo de consumo e degradação ambiental. Por isso,
quando lutam, elas o fazem pela soberania alimentar, pela justiça ecológica e de gênero,
questionando o modelo de desenvolvimento, mas também as relações familiares, institucionais,
mexendo com toda essa estrutura para garantir a revolução.
Assim, desde a perspectiva agroecológica e ecofeminista, pretende-se redefinir o papel
da alimentação na sociedade e na economia para recuperar a centralidade material e simbólica
que o corresponde (MONTIEL; NEIRA, 2014). Dessa maneira, a alimentação não pode se
limitar aos âmbitos convencionais do público, ao mercado e às instituições formais do sistema
agroalimentar. A ligação que as mulheres fazem entre agroecologia e os temas da saúde passam
por três questões principais: pelos vínculos entre a alimentação adequada e a proteção da saúde
das pessoas; pela revitalização do uso de plantas medicinais e de outras práticas de medicina
natural, que tradicionalmente eram realizadas pelas mulheres e foram desprezadas com a
crescente “medicalização” da saúde; e, finalmente, pelo combate ao uso dos agrotóxicos, em
conjunto com outras medidas de saneamento ambiental, em ações que extrapolam a
preocupação com a saúde humana e abrangem o meio natural onde as pessoas vivem e
trabalham (SILIPRANDI, 2015, p. 312). A agricultora ribeirinha paranense e liderança na sua
comunidade, Zinalva, discorre acerca do conceito de agroecologia para sua vida:

A gente luta contra um sistema. A agroecologia é uma luta contra o sistema capitalista,
que só vê o lucro, não está nem aí para a vida, se a gente vai morrer ou vai viver. “O
problema é seu. Eu só quero ter o lucro.” Enquanto nós trabalhamos de outra forma,
criamos outros laços, voltados para a vida. Nós somos lutadores pela vida. E eu estou
falando desde um micro-organismo até os seres humanos, é o ecossistema como um
todo. (Zinalva). (apud SILIPRANDI, 2015, p. 301).

A luta pela terra e pela soberania e segurança alimentar é contra os estigmas de gênero96.
O feminino sempre foi construído atrelado ao doméstico, desenvolvendo atividades
reprodutivas, desvalorizadas e consideradas improdutivas. A sociedade estruturalmente se
construiu assim, porém as atividades do cuidado são fundamentais para a nossa vida, por isso,

96
Neneide vê ainda mais além essa questão: para ela, o que está em jogo na desvalorização do trabalho doméstico
é o fato de ser realizado pelas mulheres. As atividades do cuidado, não remuneradas, estão ligadas à hierarquia
de gênero, e por isso os homens se recusam a fazê-las. No máximo, aceitam ter que pagar por elas. Lourdes
afirma: “O trabalho doméstico é uma doação das mulheres para a sociedade. Só que não é reconhecido como
tal; é como se fosse uma escravidão”. (SILIPRANDI, 2015, p. 309).
110

as relações precisam ser reconstruídas. Romper com os estereótipos convencionais atribuídos


aos papeis da masculinidade e da feminilidade é um caminho também para construir novas
relações com a natureza.97

Quando a gente mexe com esses temas [as questões de gênero], isso sempre mexe
com a gente, porque toca em coisas que todas nós sentimos. Você vive a situação, em
maior ou menor grau. Claro que eu sentia isso muito menos do que elas [as
agricultoras], porque eu tinha como traçar umas estratégias de saída, e elas muitas
vezes não têm. Elas não têm saída. Elas sofrem muito com violência psicológica, todo
dia. Elas ouvem coisas depreciativas sobre o trabalho delas. Isso para mim é violência,
e elas escutam isso todo dia. Não precisa bater. É só não valorizar o trabalho que elas
fazem, não cuidar dos filhos. Se alguém se machuca, a culpa é delas; qualquer coisa,
se o filho vai mal na escola, tudo. É um horror, e elas não têm como sair dali. Mesmo
as que apanham, se forem denunciar, não têm para onde ir. Outra coisa que eu vi é o
medo das mulheres; elas se sentem muito sozinhas, muito incapazes de ir fazer as
coisas. Mas elas têm uma solidariedade entre elas; é a única saída. (Inês).
(SILIPRANDI, 2015, p. 241).

Nesse sentido, agroecologia não é só um projeto ético-político, mas um projeto de vida,


um propósito de cuidado com a terra, com os alimentos, com as águas e com os seres vivos.

Os movimentos agroecológicos brasileiros se colocam hoje num “espectro


ideológico” de transformação social, aproximando-se das propostas dos movimentos
por ecojustiça. Propõem-se a construir outro “modo de vida” em que ganham relevo
valores éticos de justiça e equidade social. Por isso, são destacadas como importantes
as mudanças no relacionamento entre as pessoas, não apenas no relacionamento dos
seres humanos com o meio natural. É aí que se abre espaço para o questionamento,
dentro do ideário agroecológico, das desigualdades de poder existentes entre os
homens e as mulheres no meio rural, assim como entre os jovens, os adultos e os
idosos, ou entre os diferentes grupos étnicos e raciais, por exemplo. (SILIPRANDI,
2015, p. 143).

Por fim, destaco a resistência a esse sistema, com o Movimento da Mulher Trabalhadora
Rural (MMTR), que, juntamente com outras organizações, é responsável pela construção da
Marcha das Margaridas98, firmando-se como um dos maiores movimentos de resistência

97
“Os homens foram acostumados que tudo é comprar. Eles dizem: “Eu trabalho só para comprar”. O trabalho
do cuidado, que é de graça, eles só fazem usufruir, não dão satisfação nenhuma, não se envolvem. E tem
também a questão do poder, o dinheiro traz isso. Como a gente [as mulheres] fica responsável por essa coisa
do cuidado, a gente quer lutar justamente para essas coisas aparecerem, como um trabalho. Hoje não aparece,
é invisível, não vale nada”. (Neneide). (SILIPRANDI, 2015, p. 309).
98
A Marcha das Margaridas é um movimento das mulheres da floresta e do campo, realizado pela Contag e
Sindicatos, que se coloca na agenda de movimentos feministas e das mulheres trabalhadoras do Movimento
sindical de trabalhadores e trabalhadoras rurais (MSTTR). Desde 2000, a marcha tem sido realizada entre 3
(três) a 4 (quatro) anos, sempre no mês de agosto, para recordar o assassinato da luta da líder sindical Margarida
Alves. As propostas políticas se expandiram em 2019 passando a incluir mais 3 além dos 7 eixos, enumerados
a seguir: trabalhando questões sobre democratização dos recursos naturais; terra, água e agroecologia;
soberania e segurança alimentar e nutricional; autonomia econômica, trabalho e renda; educação não sexista,
sexualidade e violência; saúde e direitos reprodutivos; democracia, poder e participação política; por
democracia com igualdade e fortalecimento da participação política das mulheres; pela autodeterminação dos
povos, com soberania alimentar e energética; pela proteção e conservação da sociobiodiversidade e acesso aos
111

política da trabalhadora rural na América Latina. O movimento tem se fortalecido como


instrumento de luta constante contra as corporações neoliberais, mas também como um
movimento feminista, enquanto evidencia as narrativas, as organizações e processos de lutas
contra as violências machistas de suas protagonistas.
Mesmo com a luta pela terra e pela soberania alimentar, outra violência se mascara a
partir desse sistema de produção, apresentando-se aqui como paradigma para as injustiças
coloniais no Brasil: o racismo ambiental e a migração ambiental. Portanto, o subcapítulo
seguinte tem como principal intenção mostrar que a colonização da alimentação e o modelo de
desenvolvimento agrícola industrial é um projeto que se consolida com a violência e a
subalternização das mulheres, mantida pela desigualdade social que mascara as discriminações
raciais estruturadas por processos políticos racistas do Estado e naturalizados nas práticas da
branquitude. O resultado tem sido o deslocamento populacional forçado e a marginalização
desse grupo em lugares desprovidos de saneamento básico, transporte, água e luz. A
urbanização no Brasil foi construída com a industrialização do campo e com o empobrecimento
dos grupos sociais que viviam na área rural. Portanto, a colonialidade se combina no prato e na
terra.

3.2 Racismo ambiental e migração ambiental

O neoliberalismo está sempre atualizando seus mecanismos de controle – o racismo e a


migração se incluem nesses mecanismos. O racismo, pela segregação social e econômica
mantida pelas instâncias de poder e fortalecida no pensamento e no modo de agir da
branquitude. No caso da migração, pelo medo e pela insegurança, colocando as pessoas que são
obrigadas a se deslocarem como ameaça às fronteiras, ameaça à organização do Estado. Parte
desse processo foi constituído na colonização e é reforçado na ideia do que foi construída acerca
de modernização.
O processo de colonização, como bem apontou o sociólogo peruano Aníbal Quijano, é
racista: assim como não há modernidade sem colonialidade, não há colonialidade sem raça. E
a raça foi utilizada para legitimar as relações de dominação necessárias ao projeto de

bens comuns; por autonomia econômica, trabalho e renda; por terra, água e agroeocologia; por uma vida livre
de todas as formas de violência, sem racismo e sem sexismo; pela autonomia e liberdade das mulheres sobre o
seu corpo e sua sexualidade; por saúde pública e em defesa do SUS; por previdência e assistência social
pública, universal e solidária; por uma educação não sexista e antirracista e pelo direito à educação do campo.
(Todas essas informações podem ser acessadas no site da Contag - http://www.contag.org.br/, acesso em
05 de junho de 2021).
112

colonização. Portanto, em relação às práticas de violência à natureza e às injustiças ambientais


no Brasil, mesmo que os efeitos em médio e longo prazos possam repercutir em todas as
pessoas, há grupos sociais que são mais diretamente atingidos.
Para a filósofa, militante e fundadora do Instituto da Mulher Negra – Geledés, Sueli
Carneiro (2015, p. 1), uma das principais precursoras do feminismo negro no Brasil,

[...] a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras
e indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as construções de
nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-
americana, que no Brasil chegou até as últimas conseqüências.99

A colonialidade da raça é mantida pela branquitude e deve ser pauta do movimento


feminista, tanto para assumir a reflexão crítica sobre suas práticas e sobre seu consumo, quanto
para compreender que a violência e os efeitos da degradação ambiental são proporcionalmente
maiores para mulheres negras e indígenas. Apesar de a concepção de racismo ambiental ser
formulada a partir da noção de injustiça ambiental estadunidense, a reflexão proposta aqui será
compreendida considerando os conflitos ambientais e as problemáticas pertencentes à nossa
realidade histórica e social.
Numa sociedade na qual o racismo estrutural é naturalizado pela população e sustentado
pelo Estado, as formas de sua manutenção se expandem e passam a não ser identificadas. Como
resultado, as opressões ficam sem sujeitos, como se o deslizamento de uma casa numa favela
ou o desabamento de um prédio ocupado por mais de 146 famílias no centro da cidade de São
Paulo não tivessem responsáveis, somente vítimas. Ou, muitas vezes, as próprias vítimas são
culpabilizadas e criminalizadas por ocuparem espaços precarizados100.
De acordo com a militante e pesquisadora Tânia Pacheco (2007), o racismo ambiental
é um termo, formulado em 1981, pelo líder afro-americano de Direitos Civis, Benjamin
Franklin Chavis Jr.101. De acordo com a mesma, o conceito foi desenvolvido pelo movimento

99
“Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos.
Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que
desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres
indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas específicas que, essencialmente, não
podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as
especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso. Essas óticas particulares vêm exigindo,
paulatinamente, práticas igualmente diversas que ampliem a concepção e o protagonismo feminista na
sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades. Isso é o que determina o fato de o combate ao racismo
ser uma prioridade política para as mulheres negras, assertiva já enfatizada por Lélia Gonzalez, “a tomada de
consciência da opressão ocorre, antes de tudo, pelo racial” (CARNEIRO, 2003, p. 119).
100
Disponível em: https://mtst.org/noticias/quem-ocupa-nao-tem-culpa-desumanizar-e-culpabilizar-as-vitimas-
e-racismo/. Acesso em: 8 ago. 2021.
101
Disponível no site Racismo Ambiental: https://racismoambiental.net.br/textos-e-artigos/desigualdade-
injustica-ambiental-e-racismo-uma-luta-que-transcende-a-cor/. Acesso em: 8 ago. 2021.
113

negro estadunidense na ocasião dos protestos contra um depósito de resíduos tóxicos no


Condado de Warren, Carolina do Norte, entre 1978 e 1982. Um fato comum que se percebia
acerca desses depósitos, era que sempre estavam localizados em bairros habitados por pessoas
negras, mesmo que toda a população da região fosse ¼ da população geral. Outro fato percebido
por Benjamin Franklin é que não se limitava somente às pessoas negras, mas também aos
trabalhadores latinos, afro-americanos, afro-caribenhos e asiáticos. O racismo se percebe,
portanto, na exclusão de um grupo de pessoas de um ambiente físico, que interfere em toda
estrutura social, definindo padrões de habitação e infraestrutura. A degradação de um lugar é
mantida e alimentada a partir do lucro e excesso de outros, essa estrutura pode ser percebida
nas cidades, mas também dentro de países e mais especificamente, do Norte com relação ao Sul
global, quando alguns países possuem regras ou leis mais flexíveis sobre as terras e acabam
abrindo para leilões desses recursos, sejam humanos, por conta da força trabalho, como
naturais.
Como Pacheco bem apresenta,

Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de


forma implacável sobre essas etnias e populações mais vulneráveis, tenham elas ou
não intenção explicitamente racista. De fato, não podemos chamar a Aracruz
Celulose, o Grupo Ypioca ou os construtores da Nova Atlântida, para ficar nesses
exemplos, de racistas. Simplesmente, como dizia Milton Santos, o território é a base
material sobre a qual a sociedade constrói e produz sua história. E, nos territórios
escolhidos por essas empresas para plantar eucalipto, produzir cachaça ou criar a
“Cancún brasileira”, vivem Tupiniquins e Guaranis, quilombolas, Tremembés e
Jenipapo-Kanindés. Para elas, figuras exóticas que não viram o tempo passar, não
acompanharam a chegada do “progresso”, não se deixaram assimilar ou miscigenar e,
por todas essas razões, constituem um “entrave ao desenvolvimento”, à “geração de
novos empregos”, à “melhoria da arrecadação dos impostos e das contas públicas”
dos estados em questão. Nada mais natural, pois, que de alguma forma “tirá-los do
mapa”.102

O conceito de racismo ambiental tem o intuito de mostrar as variadas formas como essa
violência se manifesta na sociedade e se naturaliza. Portanto, o termo amplia a compreensão e
denuncia as diferentes facetas racistas naturalizadas na sociedade. A desigualdade racial se
mantém na privação de direitos, de cidadania, sustentada pelo dualismo entre ter,
excessivamente, concentração de terras, riquezas e privilégios e não ter nenhuma garantia.
E será apresentado aqui a partir da realidade brasileira, da desapropriação de terras
indígenas e quilombolas, dos dualismos existentes entre urbano e rural e da marginalização dos
bairros em meios urbanos, já que, no Brasil, o racismo ambiental vai além da problemática de

102
Disponível em: https://racismoambiental.net.br/textos-e-artigos/racismo-ambiental-urbano/. Acesso em: 10
jun. 2021.
114

uma região ser destinada a depósito de rejeitos químicos e de incineradores (HERCULANO,


2008). Para a pesquisadora Selene Herculano (2008),

Os mecanismos e processos sociais movidos pelo racismo ambiental naturalizam as


hierarquias sociais que inferiorizam etnias e percebem como vazios os espaços físicos
onde territórios estão constituídos por uma população que se caracteriza por depender
estreitamente do ecossistema no qual se insere. Em suma, trata-se aqui da construção
e permanência de relações de poder que inferiorizam aqueles que estão mais próximos
da natureza, chegando a torná-los invisíveis. [...] Assim, nosso racismo nos faz aceitar
a pobreza e a vulnerabilidade de enorme parcela da população brasileira, com pouca
escolaridade, sem renda, sem políticas sociais de amparo e de resgate, simplesmente
porque naturalizamos tais diferenças, imputando-as a ‘raças’. (HERCULANO, 2008,
p. 17).

Para a pesquisadora Daniela Almeida (2016), o racismo ambiental é abordado aqui no


Brasil a partir de dois elementos. O primeiro atrela a questão ambiental à equidade social; e o
segundo amplia a questão ambiental para além da abordagem ecológica e natural, mas também
com o meio ambiental no sentido artificial. Portanto, não necessariamente se pensa o racismo
ambiental a partir da poluição ou da contaminação, mas da falta de saneamento, saúde pública,
moradia e mobilidade rural e urbana.
É possível traçar um dos indicadores embrionários do racismo ambiental no contexto
urbano à Lei de Terras de 1850, que criaria uma série de restrições de acesso à terra
para a camada de mais baixa renda da população – cujo caráter racial era bem definido.
A emergência do trabalho livre, sem qualquer política de inclusão social, mas ao revés,
acompanhada de esforços de exclusão e genocídio pelo embranquecimento, contribuiria
para o empobrecimento e formação de núcleos de segregação da população não branca.
(ALMEIDA, 2016, p. 72).

De acordo com o mapa de conflitos ambientais (2013), mesmo que 87% da população
brasileira vivendo na zona urbana, é a zona rural, com menor número de habitantes, que abarca
mais de 60,85% dos conflitos. Como a pesquisadora Pacheco expõe:

O cenário que temos diante de nós só concorre para o êxodo rural e para a fuga para
as cidades, até mesmo nas zonas costeiras. No interior, o que temos é a pecuária, a
soja, a cana de açúcar e os grandes empreendimentos eletrointensivos devoradores de
energia (e, em consequência, determinantes de mais e mais hidro e termoelétricas e,
agora, de novas usinas nucleares) desmatando, queimando, inundando, expulsando,
como vemos na maioria dos 60,86% dos conflitos. No litoral Nordeste,
principalmente, assistimos à disputa entre a carcinicultura e os megaempreendimentos
turísticos pela destruição dos manguezais e apicuns e pela privatização das praias e
do próprio mar. Em todos esses casos, o território é tratado como se fosse deserto de
vida. Como se terra, água, mata e praias não fosse habitada por serem humanos que
ali nasceram e cujos ascendentes ali constituíram suas moradias, seus meios de
sobrevivência, suas tradições, seus laços de parentesco e de amizade. (PACHECO,
2010).
115

Esses empreendimentos chegam com a falácia do progresso, da inovação, inclusive, em


grande maioria, financiada por empresários brasileiros. A empresa estadunidense Bunge é mais
um exemplo de corporação que recebeu 15 anos de isenção de impostos para se instalar no
município de Uruçuí, no Sul do Piauí, em 2001, com a monocultura de soja. De acordo com
Pacheco103, são 200 milhões de reais que o Estado deixa de receber, por razão dessa isenção.
(PACHECO, 2007). Além disso, a corporação utiliza um tipo específico de lenha, responsável
pela secagem da soja, como não podia utilizar as árvores ao redor da empresa, começou a
comprar a lenha de outras empresas e, agora, o Piauí que tem 37% da sua área de Cerrado, já é
parte da disputa do agronegócio para a fronteira agrícola reconhecida como MAPITO, que
engloba também os estados do Maranhão e Tocantins, administrada pelo Grupo Suzano. Além
desses conflitos, existem denúncias de trabalho infantil e situações análogas ao trabalho
escravizado na região104.
Na zona rural, a população indígena, agricultoras/es e quilombolas são os povos mais
atingidos e a responsabilidade por esses conflitos no meio rural é das atividades de
monoculturas, seguidas pela mineração e pelo garimpo105. Como Pacheco apresenta,

No dizer dos tupiniquins do Norte do Espírito Santo, “quando destruímos as matas,


estamos também expulsando igualmente as divindades que nelas vivem”. Da mesma
forma, quando expulsamos povos indígenas ou quilombolas praticantes da Cabula de
suas terras, estamos levando-os a romper com suas tradições e, em consequência, a
perder suas identidades. Estamos concorrendo para suas transformações em seres com
baixa autoestima, que perderão suas crenças, sua capacidade de educar seus filhos
como foram educados, de passar adiante seus sonhos e utopias. Estamos
enfraquecendo esses grupos e, sem qualquer violência aparente, subliminarmente
‘anulando-os’, tornando-os ‘invisíveis’ e condenando-os ao desaparecimento, seja
pela morte física, seja pela emocional ou espiritual. Estamos praticando o que
podemos e devemos identificar como um processo de genocídio cultural.
(PACHECO, 2010).

A falácia do progresso destrói a natureza, as entidades, as práticas religiosas, a memória


e as identidades das comunidades locais. Os que conseguem escapar vão buscar em outros
lugares formas de sobreviver, porém, não necessariamente, essa forma se apresenta muito
diferente da anterior, agora ela leva novos disfarces, com falta de saneamento básico, saúde,
segurança. As principais consequências apontadas pelo Mapa da Injustiça ambiental (2010)
dizem respeito ao território, tanto no que se refere à ocupação e à alteração desse lugar, quanto

103
Disponível em: https://racismoambiental.net.br/textos-e-artigos/desigualdade-injustica-ambiental-e-racismo-
uma-luta-que-transcende-a-cor/. Acesso em: 8 ago. 2021.
104
Ver mais em Deserto Verde. O impacto do cultivo de eucalipto e pinus no Brasil. Brasil, 2011.
105
Disponível em: https://acervo.racismoambiental.net.br/textos-e-artigos/o-mapa-da-injustica-ambiental-e-
saude-e-o-direito-a-cidade-ao-campo-a-vida/. Acesso em: 10 jun. 2021.
116

à irregularidade da sua demarcação. E os danos vão além, refletindo-se em poluição hídrica, do


solo, queimadas etc. Em termos de danos à saúde ou ameaça à vida, o principal é a violência,
manifestada de diversas formas: ameaça, física, corporal, e, inclusive, assassinatos. E,
posteriormente, comprometendo diretamente a alimentação, gerando insegurança alimentar e
desnutrição.
Apesar de oferecer maior destaque à zona rural neste trabalho, devido à relação direta
com os danos provocados ao território e à alimentação, é na zona urbana que os resultados dessa
devastação são percebidos, já que o êxodo rural e o deslocamento são reflexos desses danos.
Sem-terra, comida, água, as pessoas migram para as zonas urbanas e vão ocupar espaços
precarizados. Elas/eles são marcadas/os pela cor, etnia, e geografia também, reflexo do processo
democrático social, político e geográfico tão falso quanto o mito da democracia racial,
desmistificado por Lélia Gonzalez (2011).
Para Lélia Gonzalez (2011), o mito da democracia racial é desacreditado inclusive por
pesquisadoras/es, quando assumem a crença de que as desigualdades brasileiras seriam somente
fruto das condições de classe. Com visão e leitura extremamente eurocêntricas, acabam não
conseguindo analisar a condição enfrentada por negras e indígenas pós-colonial, mantida pela
ideologia do embranquecimento. Assim González teoriza:
Desse modo, a afirmação de que somos todos iguais perante a lei assume um caráter
nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latino-americano é
suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos
subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica
mais eficaz: a ideologia do branqueamento, tão bem analisada por cientistas brasileiros.
Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológicos
tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da
cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido,
o mito da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos de desintegração
violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de
embranquecer (de “limpar o sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com a
consequente negação da própria raça e da própria cultura. (2011, p. 15)

O resultado é a falta de percepção e conexão com outras violências, como ocorre com
as questões de classe e gênero, que não conseguem conectar suas pautas com a luta e com a
realidade de pessoas negras e indígenas no Brasil. Como afirma Lélia Gonzalez (2011), numa
estrutura hierárquica, em que todos possuem lugares e posições determinadas, a igualdade é
mantida como uma ilusão, estrutura obtida como fruto dessa colonização.
Na zona urbana, o racismo ambiental é marcado pela invisibilidade, pela omissão, pelo
apagamento, como o lugar que não deve ser visto. As pessoas, em sua grande maioria negras,
são inseridas em lugares sem saneamento básico, luz, água, postos de saúde, transportes e
afastadas do centro da cidade. É um projeto de empobrecimento, reforçado com as disparidades,
117

enquanto se empobrece um lugar e as pessoas que vivem nele, enriquecem outro, marcando
esses lugares simbolicamente, seja por uma fachada de um prédio, por edifícios empresariais,
ou por aspectos que reforçam toda essa “aparência de modernidade”. O preconceito vai ficando
mais escancarado a cada planejamento ou arquitetura que evidencia essas diferenças. Para além
disso, a expansão imobiliária avança e vai modificando a vida das pessoas e dos animais que
vivem ali, retirando seus lares, seus trabalhos e suas comidas.
O empobrecimento e a invisibilidade são mantidos a partir da desvalorização moral, em
que o lugar “destinado” à moradia das pessoas marginalizadas pelo sistema é sustentado pela
discriminação moral, que visa associar as pessoas ao lugar que residem. Ou seja, se foram
segregadas a morar em uma favela, serão associadas a estigmas morais negativos, associadas a
pessoas violentas ou más. Há uma estrutura social mantida no Brasil, construída a partir do mito
da democracia racial que associa essa segregação forçada à desigualdade social e não reconhece
os aspectos étnico-raciais.
A segregação pode ser financiada pelo mercado, mas a base de opressão do racismo é
reproduzida pelo Estado e pela branquitude brasileira. Pacheco denuncia que, se, por um lado,
é mascarado o racismo ambiental, por outro lado foi se definindo um caráter étnico às atividades
agrícolas e pecuárias, acentuando as disparidades raciais e sociais entre quem estava vendendo
a mão de obra e quem era dono das terras. E assim resume Daniela Almeida (2016) acerca dessa
segregação,

Veja-se aqui que resta demonstrada a relação entre o processo histórico de ocupação
territorial e o seu papel determinante não só na naturalização de uma posição social
de inferioridade da população negra como também no processo de institucionalização
da discriminação, na medida em que as condições determinantes de acesso à terra não
visibilizam obstáculos criados com fundamento étnico-racial. A relação é
institucionalizada, naturalizada e perpetuada, vez que a segregação já estabelecida
implica também o acesso diferenciado a recursos escassos e necessários para que seja
possível adquirir oportunidades que permitam a ascensão social. (ALMEIDA, 2016,
p. 69).

No Brasil, os exemplos dessas violências segregantes do racismo ambiental são


percebidas a partir dos impactos e das destruições ecológicas. Destaco os casos da Vale e da
Samarco, nos municípios de Brumadinho e Mariana, provocados pela mineração; as queimadas
no Pantanal e na Amazônia, de autoria do agronegócio/agropecuária. Em sequência, mesmo
não sendo considerada a região com maiores conflitos ambientais no momento, apresento e
detalho dois casos de conflitos ambientais no estado de Alagoas, região o atuo como professora
de Filosofia: uma no centro da zona urbana e outro na zona rural, especificamente ribeirinha e
quilombola. O destaque a esses dois casos visa expor a necessidade de atenção com relação às
118

injustiças ambientais que ocorrem em regiões já empobrecidas do país e que muitas vezes não
são de conhecimento da população em geral.
Acerca das queimadas no Pantanal e na Amazônia, que sofre hoje expansão para o
Cerrado e o Pampa no Sul do país, devemos elencar que as queimadas têm sido provocadas
para a expansão da indústria do agronegócio, estando diretamente relacionada com a
insegurança alimentar, apresentada na primeira parte desse capítulo. Porém, a ideia de
apresentar outros casos para além da indústria do agronegócio, é mostrar com a política
neoliberal se instala de diferentes formas no nosso território. O intuito, portanto, é de apresentar
esses exemplos, não como reflexo das mesmas causas, porém, como provocadores de diferentes
conflitos ambientais que implicam no paradigma do racismo ambiental e na migração.

3.2.1. Samarco – Mariana - Minas Gerais106

No dia 5 de dezembro de 2015, uma barragem, de propriedade da Empresa Samarco


Mineração, rompeu na cidade de Mariana, no estado de Minas Gerais. O rompimento gerou
destruição para toda a região de Bento Rodrigues, destruindo casas, matando 19 pessoas e
causando a poluição do Rio Doce, com rejeitos de mineração, contaminando aos animais que
ali viviam. Para além do território, a lama percorreu todo o trajeto do rio até desaguar no Oceano
Atlântico, no Espírito Santo, prejudicando toda população ribeirinha, e as cidades banhadas
pelo rio e pelo mar que ficaram contaminados. Da população diretamente atingida pela
barragem, 84,5% é composta por pessoas negras. Mas o percurso do rio contaminou também o
povo indígena Krenak, que se utilizava da água do Rio Doce para sua sobrevivência.

3.2.2. Vale – Brumadinho - Minas Gerais107

No dia 25 de janeiro de 2019, a barragem da Vale também se rompeu e causou 259


mortes e 11 desaparecimentos. Assim como Mariana, a população mais atingida foi declarada,
em mais de 50%, como não branca, localizada principalmente no Córrego do Feijão e no Parque
da Cachoeira. Assim como na destruição ambiental da Samarco, a onda de rejeitos saiu

106
Para ver mais: http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/o-desastre acesso em 05 de junho de 2021
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/11/rompimento-de-barragens-em-mariana-perguntas-e-
respostas.html acesso em 05 de junho de 2021
107
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/01/25/interna_gerais,1024468/barragem-de-rejeitos-da-vale-
se-rompe-em-brumadinho.shtml acesso em 05 de junho de 2021
119

engolindo casas até atingir o leito do Rio Paraopeba, levando vidas humanas e irreparável vidas
não-humanas à morte. Em ambos os dois casos, a conclusão que fica é que as consequências
são ilimitadas e incontroláveis, refletindo em luto, mas também em desabrigo e destruição dos
modos de vida locais, enquanto, as responsabilidades são omitidas pelos responsáveis.

3.2.3. Braskem - Maceió - Alagoas108

A Braskem é uma empresa multinacional de resinas de termoplásticos, que explora sal-


gema para a produção de cloro-soda. A exploração de sal-gema abriu buracos no solo, em
perfurações com centenas de metros. Com o tempo, as paredes das “cavernas” começaram a
ceder e a desmoronar, o que causa a instabilidade no solo, com fissuras pelo chão e rachaduras
nas casas e nos edifícios. O caso Braskem é citado como uma tragédia evitada quando
comparada com o caso da Vale, já que a maior parte da população foi retirada do local, gerando
hoje bairros fantasmas na cidade. Porém é considerada o maior desastre em curso, já que ainda
não acabou, atingindo atualmente cinco bairros da capital alagoana: Pinheiro, Mutange,
Bebedouro, Bom Parto e Farol.

3.2.4. Queimadas no Pantanal e Amazônia109

As queimadas no Pantanal e na Amazônia têm se intensificado drasticamente nos


últimos anos, destruindo áreas indígenas e de conservação ambiental110. Essas queimadas
incorporam interesses da agropecuária, e são mantidas pelo discurso dos representantes
políticos, que facilitam as regras ambientais para a realização do desmatamento, regras nas
quais, posteriormente servirão para atender o mercado agrícola e a mineração. Inclusive, os
focos de queimadas estão sendo ampliados para a região do cerrado, para o cultivo de
monoculturas na região reconhecida atualmente como Matopiba: Maranhão, Tocantins, Piauí e
Bahia.

108
Para ver mais sobre o tema: https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2021/09/04/afundamento-do-solo-em-
maceio-pode-durar-ate-10-anos-entenda-a-formacao-dos-bairros-fantasmas.ghtml acesso em 06 de
setembro/2021.
109
Para ver mais: https://www.dw.com/pt-br/amaz%C3%B4nia-e-pantanal-t%C3%AAm-recorde-de-queimadas-
em-outubro/a-55466497, acesso em 05 de junho de 2021.
110
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/09/4875186-incendios-crescem-210--no-pantanal.html
120

3.2.5. Usina hidrelétrica e Agronegócio - Quilombo Pixaim - Piaçabuçu - Alagoas111

Pixaim é um quilombo localizado no Baixo São Francisco, sendo que a própria


formação histórica e social da comunidade é marcada pelo processo de segregação racial da
colonização brasileira, além disso, é uma região sem água encanada e energia elétrica. A
formação da comunidade, em cima das dunas, fez com que seus moradores criassem um modo
de vida sustentável com o Rio São Francisco, dependendo dele para irrigar as plantações de
arroz e para a pesca artesanal. Porém, com as demandas de água, o mar subiu, causando a
salinização da água do rio, inclusive utilizada para o consumo próprio. A dificuldade no acesso
à água doce prejudicou as plantações de arroz e provocou a migração da comunidade para outras
regiões.
Apesar de não apresentar em detalhes do impacto desses episódios, os casos em geral
registram quem foram as pessoas que mais sofreram os efeitos dessas ações. Isso só demonstra
que o racismo ambiental é mais uma forma que denota como o preconceito e a injustiça social
se manifestam socioambientalmente. E nos ajuda a perceber que as violências ecológicas se
conectam, endossadas pelos dualismos denunciados pelas ecofeministas, reproduzidos no
comportamento da branquitude brasileira e na forma de viver da sociedade moderna de herança
colonial. Inclusive, os atos e as práticas dessa sociedade reforçam estereótipos preconceituosos,
revelando a desigualdade social marcadamente racial no país. Mas o impacto das violências não
para por aqui. Quando uma empresa invade e desabriga populações, ou mesmo provoca ações
com consequências ecológicas nefastas para a região, esse processo de saída forçada desse local
é denominado politicamente de migração.

3.2.6. Migração Ambiental

O êxodo no Brasil teve início com a colonização, com os engenhos, e, posteriormente,


com o ciclo do café, da mineração na região Sudeste, depois, na Amazônia, com o ciclo da
borracha. Porém, o êxodo rural, marcadamente campesino, com migração para a zona urbana,
principalmente para as grandes cidades brasileiras, ficou registrado historicamente a partir da
década de 1950 e pode ser reconhecido como um dos primeiros deslocamentos forçados
provocados pelo latifúndio. Agora, o deslocamento é provocado não somente pela apropriação
de terras, mas pelo agro-hidronegócio, pelo desmatamento, a mineração, inclusive, pela

111
Disponível em: https://brasil.mongabay.com/2020/06/quilombolas-na-foz-do-sao-francisco-sofrem-com-
hidreletricas-e-mudancas-climaticas/. Acesso em: 14 ago. 2021.
121

privatização de áreas até então “preservadas” para turismo. Por essa razão, a escolha pelo termo
migração ambiental: para demarcar um fenômeno que se expandiu usando novos artifícios para
sua realização. Destacamos, entretanto, a prevalência das mesmas causas, agora com o nome
de empresas, em geral transnacionais.
O conceito de migração ambiental foi formulado com a intenção de denunciar que todos
esses impactos sociais e ambientais, sofridos pela população vulnerabilizada, acabam
provocando, direta ou indiretamente, o seu deslocamento territorial. As causas para a
migração112 ambiental podem ser provocadas por mudanças climáticas ou desastres naturais ou
agravados pelos seres humanos, como secas, desertificação, elevação do nível do mar,
salinização dos solos, inundações e escassez de água potável, mas também, por eventos de
destruições ambientais, que impossibilita de uma população viver naquela região113.
De acordo com a Convenção Relativa ao Status dos Refugiados, de 1951 (Convenção
de 51), refugiados são pessoas obrigadas a fugirem ou a deixarem seus países, individualmente,
em grupo ou em massa, por questões de ordem política, religiosa, militar ou em razão de outros
problemas (ALVES, 2018, p. 17). Por essa razão, se uma pessoa não é afetada por esses motivos
e foge do seu país, ela não terá amparo jurídico. Só a partir de 1967, com algumas modificações
ao protocolo Relativo ao Status dos refugiados, é que passou a haver maior abrangência de
proteção aos refugiados, porém essa proteção não se expande ao caso de migrantes ambientais,
e, por esse motivo, não recebem as mesmas garantias jurídicas de um refugiado protegido pela
Convenção de 51 e pelo Protocolo de 67 (2018).
Portanto, o migrante ambiental não é assim reconhecido em termos jurídicos. A falta
desse reconhecimento invisibiliza mais a situação dessas pessoas, deixando-as desprotegidas e
sem assistência114. Os refugiados ambientais ainda não têm o direito de migrar reconhecido, ao

112
De acordo com Carolina Claro, o termo para migrante ambiental foi visto pela primeira vez em 1944, como
refugiados ecológicos. Somente em 1970 esse termo foi utilizado por Lester Brown, por conta das questões
ambientais da década. Em 1985, Essam El-Hinnawi, pela Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(PNUMA) definiu o termo para o que se conhece hoje: pessoas que se deslocaram forçadamente do seu habitat
original, seja temporário ou permanente, por conta de perturbações naturais ou humanas, que prejudicaram sua
existência ou afetaram seu modo de vida. De acordo com a Convenção Relativa ao Status dos Refugiados, de
1951 (Convenção de 51), refugiados são pessoas obrigadas a fugirem ou a deixarem seus países,
individualmente, em grupo ou em massa, por questões de ordem política, religiosa, militar ou em razão de
outros problemas (ALVES, 2018, p. 17).
113
“O meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui direito de todos, para as presentes e as futuras
gerações. O reconhecimento do direito a um meio ambiente equilibrado configura, prima facie, extensão do
direito à vida, sob o viés da própria existência humana e da dignidade dessa existência. Os danos e os desastres
ambientais, naturais ou antrópicos desequilibram esse ambiente e, a depender do grau de comprometimento
dessa existência, podem acarretar deslocamentos forçados de pessoas, que não se cingem às fronteiras
territoriais de determinado país”. (2018, p. 31).
114
Inclusive essa é a razão pela qual algumas pesquisas sobre o tema, e, inclusive, a pesquisadora Erika Ramos
utiliza o termo deslocados ambientais, ao invés de migrantes ou refugiados.
122

contrário dos refugiados de guerra, pois essa condição não é abrangida pela Convenção relativa
ao Estatuto dos Refugiados, de 1951. Avanços são necessários nesse sentido, pois a falta de
regulações internacionais coloca as populações de regiões pobres em situação de
vulnerabilidade mediante eventos extremos do clima. A International Organization for
Migration (IOM) vem atuando, desde 2007, para chamar atenção para a urgência do
reconhecimento do direito dos refugiados ambientais. Em 2015, houve inclusão formal desses
migrantes no Acordo de Paris, que criou uma força tarefa para discussão do tema entre os países
signatários. A Organização Internacional de Migração (OIM)115 estima que o mundo terá cerca
de 200 milhões de “migrantes ambientais” até 2050, incluindo aquelas pessoas que se deslocam
entre fronteiras ou internamente em seus países. No entanto, nos piores cenários, as estimativas
chegam a um bilhão de migrantes ambientais para esse mesmo período. De acordo com a
pesquisadora e fundadora do REMASA116, Erika Ramos, falar sobre migração ambiental, além
de garantir que as pessoas possam ter direitos, coloca-se outra questão de responsabilidade
sobre o mundo, e sobre os direitos e a proteção com relação às regiões que estão em estado de
alerta, principalmente acerca dos efeitos antrópicos117.
As ameaças para quem migra vai além do processo de deslocamento. Essas pessoas
ocupam lugares precários ou que ameaçam sua própria sobrevivência, e não há nada que lhes

115
Disponível em: https://www.comciencia.br/o-deslocamento-invisivel-de-milhoes-de-pessoas-pelas-
mudancas-ambientais/. Acesso em: 18 jul. 2021.
116
De acordo com a própria pesquisadora, a Rede Sul-americana para as Migrações Ambientais (REMASA)
surgiu com o objetivo de conectar pesquisadores dos distintos países da região, distribuindo produções,
experiências, conhecimentos e formulação de políticas e estratégias de reconhecimento e proteção dos
imigrantes. “O nosso foco é dar visibilidade às pessoas, grupos e comunidades nesses contextos de risco e
deslocamento por fatores ambientais e buscar o reconhecimento e proteção dos seus direitos em todas as fases
do desastre e do deslocamento. A mobilidade humana relacionada à questão ambiental é ampla, abrange a
migração voluntária, o deslocamento forçado, a relocação planejada. Mas é preciso estar atento também às
populações imóveis ou imobilizadas, que decidem permanecer ou estão impedidas de se mover pelas
circunstâncias do evento ou outros fatores. É fundamental que o tema da migração ambiental esteja presente
em distintas agendas - ambiental, climática, de redução de risco de desastres, direitos humanos,
sustentabilidade. Nessa perspectiva, a RESAMA atua em distintas frentes - pesquisa, capacitação e incidência
nos espaços de participação pública - promovendo a integração entre distintas agendas e abordagens,
demonstrando que a temática deve ser tratada de forma transversal não apenas no âmbito global, mas
especialmente no nível regional, nacional e local.” Disponível em: https://br.boell.org/pt-
br/2020/02/19/migracao-ambiental-realidade-brasileira. Acesso: 10 jul. 2021.
117
“O impacto mais direto incide sobre os povos indígenas – aliados históricos na conservação e no combate aos
efeitos da mudança climática – e as comunidades tradicionais, como os ribeirinhos, caiçaras, quilombolas que
possuem uma relação vital com seus territórios originários e sobre a população mais pobre e com menor
capacidade de resposta. Importante ter em mente que os desastres não são naturais e não possuem uma única
causa, mas são um resultado histórico da interação entre ameaças (naturais e/ou provocadas pelo homem) e
distintos contextos de vulnerabilidade que contam com a interferência da ação ou omissão humana, gerando
perdas significativas: humanas, materiais, ambientais, culturais. Nesse contexto, a flexibilização da legislação
e a falta de políticas capazes de combater os efeitos adversos da mudança climática afeta a todos, mas
principalmente os que possuem menos recursos e que menos contribuem para a crise climática. Por isso o
enfrentamento da degradação ambiental e da crise climática é estratégico, já que seus impactos - inclusive
sobre a mobilidade humana - não se limitam às fronteiras nacionais.”
123

assegure proteção e cuidado. Permanecem numa condição de invisibilidade e exercendo


atividades a valores muito baixos, sem nenhuma legislação e sem direitos. Esses efeitos de
mudanças ambientais são refletidos em zonas rurais e urbanas. Nas urbanas, podem reverberar
em inundações, deslizamentos de encostas. No Brasil, isso já ocorre em diferentes regiões do
país, principalmente nas grandes capitais. Enquanto nas regiões rurais, os efeitos já são sentidos
principalmente no Nordeste, com as secas, a elevação de temperatura, e agora o processo de
desertificação e salinização dos rios, afetando a região ribeirinha e prejudicando principalmente
as/os agriculturas/es.
Uma das questões problematizadas por meio da migração forçada por questões
ecológicas envolve o território. Como bem aponta Tânia Pacheco acerca do racismo ambiental,
pensando agora a partir da migração, é o território que estará em disputa, e, nessa disputa pelo
“progresso”, vão-se as matas, a terra, as águas, o Cerrado, o Pantanal, a Amazônia e vão-se
também as pessoas como parte de toda a natureza, sumariamente deslocadas e, por vezes,
assassinadas. Em termos institucionais, o espaço territorial de uma nação, estado ou município
é artificial. E as consequências ambientais ultrapassam esses limites. Se os limites são
ultrapassados em se tratando dessas consequências, por que não há proteção devida às pessoas
que precisam se deslocar forçadamente de um local atingido?

A noção de espaço mundial, por sua vez, não é jurídica, mas sociológica. Essa noção
representa não apenas uma constatação, mas uma aspiração, que vem sendo
empregada para ilustrar o estágio atual do princípio da territorialidade, relativizado
pela consciência das inter-relações sociais, culturais e políticas entre todos os
continentes, especialmente em matéria de desenvolvimento, segurança e direitos
humanos. A interconexão entre as três áreas define o espaço mundial: o que afeta um
Estado, afeta todos, independentemente de fronteiras nacionais. (ALVES, 2018, p.
28).

A questão começa exatamente em reconhecer a causa dessas migrações, o que, de fato,


em termos legais, não tem sido feito. O meio ambiente, ou melhor, a natureza ultrapassa
fronteiras e seus danos e suas degradações também. Assim como a natureza deve ser pensada
como um espaço comum e de direito a todas as pessoas, os migrantes devem ser um problema
de todos os estados e nações. A falta de previsão legal para o reconhecimento do refúgio aos
“refugiados ambientais” e a construção artificializada de fronteiras territoriais revelam novo
desafio para os direitos humanos e para a proteção efetiva da dignidade humana (ALVES,
2018).

Em razão disso, a ideia de que a soberania objetiva o exercício de poder em dado


espaço territorial, fixando, artificialmente, os limites de atuação, poder e proteção de
124

um Estado resulta insuficiente para o trato da questão dos “refugiados ambientais”, já


que os deslocamentos forçados em razão de causas ambientais não se restringem aos
espaços geográficos de um único Estado. Esse argumento toma relevância
principalmente quando as causas e problemas ambientais possuem efeitos
transfronteiriços, como é o caso do aquecimento global. (ALVES, 2018, p. 31).

No Brasil, nos anos de 2000 a 2017, foram registrados mais de 7,7 milhões de
deslocamentos dentro do país, sendo seis milhões causados por desastres de barragens,
hidrelétricas e construção de estradas118. Outro aspecto acerca dos deslocamentos, é que as
mulheres são as mais atingidas, representando cerca de 80% dos refugiados ambientais. De
acordo com informações do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas, dentre
alguns motivos dessas causas se encontra os fatos de as mulheres ocuparem, em grande parte,
as atividades de cuidado, e serem as maiores vítimas de violências físicas e sexuais.
No ano de 1990 surgiu o que ficou conhecido como proteção complementar, que evitava
que solicitação de refugiados com pedidos indeferidos fossem deportados, porém as obrigações
ficam a critério dos países, ou seja, na prática, ainda se apresenta como ineficaz para a segurança
e o direito dessas pessoas. Um exemplo do uso dessa proteção ocorreu a partir do terremoto, no
Haiti, em 2010119, no qual o Brasil, assim como alguns poucos países da América do Sul
ofereceram refúgio a partir dessa proteção.

Os primeiros dias, após o terremoto, como os brasileiros Omar Ribeiro Thomaz e


Octavio Calegari Jorge enfatizaram em seu artigo Haiti. O que ajuda?: "A missão das
Nações Unidas foi incapaz de ir além de resgatar seus próprios mortos e feridos."
Dada a escala da catástrofe, só vi que os primeiros esforços vieram dos haitianos para
ajudar os haitianos: salvar a vida do embaixador de Taiwan, resgatar dezenas de
pessoas dos escombros em Nérette e Morne Hércules, e dos bairros particularmente
afetados por Pétion Ville; remover corpos e colocá-los em ordem na beira das ruas
para sua rápida evacuação; organização de brigadas de distribuição de água, lençóis,
alimentos (os poucos disponíveis); iniciar espontaneamente, em aldeias e comunas, a
transferência de famílias, especialmente crianças, para as províncias não afetadas.
Tudo isso aconteceu antes dos slogans do governo e sem subsídio à gasolina.120.
(MANIGAT, 2014, p. 421, tradução nossa).

118
Informação obtida pelo Instituto Igarapé. Disponível em: https://www.comciencia.br/o-deslocamento-invisivel-
de-milhoes-de-pessoas-pelas-mudancas-ambientais/. Acesso em: 23 jul. 2021.
119
Com efeito, enquanto não se cria um arcabouço jurídico capaz de oferecer uma proteção específica (universal
e/ou regional) aos deslocados ambientais, mecanismos de proteção complementar, ainda que possuam muitas
vezes um caráter ad hoc e discricionário, ficando a critério de julgamento e decisão de cada país, podem ser
utilizados a fim de se resguardar a dignidade e os direitos de tais indivíduos. (2018, p. 306).
120
“Los primeros días, después del sismo, como bien recalcaron los brasileños Omar Ribeiro Thomaz y Octavio
Calegari Jorge en su artículo Haití. ¿Qué ayuda?: “la misión de las Naciones Unidas fue incapaz de ir más
allá de rescatar sus propios muertos y heridos”. Ante la amplitud de la catástrofe, solo vi que los primeros
esfuerzos partieron de los haitianos para ayudar a los haitianos: salvándole la vida al embajador de Taiwán,
rescatando a decenas de personas de los escombros en Nérette y Morne Hercules, y de los barrios
particularmente afectados de Pétion Ville; sacando cuerpos y colocándolos ordenadamente al borde de las
calles para su rápida evacuación; organizando brigadas de distribución de agua, sábanas, comida (la poco
disponible); iniciando espontáneamente, en aldeas y comunas, el traslado de familias, en especial de niños,
125

De acordo com a professora e escritora chicana Gloria Anzaldúa (2000)121, a


segregação, aqui pensada a partir dos impactos ambientais, vai além do território, ela se expande
simbolicamente para a língua, para a construção da sua própria identidade, reforçada a partir do
apagamento e silenciamento de modos diferentes de viver, de falar, de compreender e se
relacionar. Por essa razão, a pensadora que teve suas famílias separadas pela imposição da
demarcação entre o México e os Estados Unidos, a fronteira é uma perspectiva compreendida
como espaços de contradições. Por isso, a referida escritora a entende também como um espaço
de construção de identidade, seja ela geográfica ou identitária. Portanto, a fronteira não deve
ser somente pensada em termos de segregação, uma barreira entre o eu e o outro, mas como um
espaço de resistência, de ruptura com a colonialidade do saber, sendo um lugar de
acontecimentos cultural, artístico e, também, de produção de conhecimentos. Nessa fronteira,
para a pensadora, a possibilidade de transgredir as definições rígidas de cultura, nacionalidade,
sexo ou gênero é real e concreta (PALMEIRA, 2020).
Sendo assim, o território, para Anzaldúa é também memória, não somente uma memória
individual, mas também coletiva, no qual, se cruzam com diferentes aspectos identitários. Por
isso, a ruptura de fronteiras é também o questionar-se aos limites estabelecidos para as
identidades, enquanto, como aponta Walter Mignolo (2005), as fronteiras foram construídas
sustentando a colonialidade do saber. Portanto, romper com as fronteiras é também romper com
o sistema colonial.
Dessa forma, podemos entender o fenômeno dos migrantes ambientais como mais um
retrato da violência do progresso colonial, que sujeita as pessoas a um círculo de
vulnerabilidade social, política e econômica que nega seus direitos, tornando-se invisível ao
mesmo Estado que lhes condenou, atravessando as fronteiras simbólicas e materiais da
colonização, que se mantêm a partir do racismo. A discussão desse tema com o ecofeminismo
evidencia mais uma crise ecológica crescente e invisível aos paradigmas de estrutura
reducionista, na qual o próprio Estado mostra sua ineficácia de proteção em muitos momentos.
Se todos os aspectos apresentados anteriormente estão conectados, defendemos que a educação
que possibilite romper com esses paradigmas da violência colonial é uma necessidade. Porém,

hacia las provincias no afectadas. Todo esto se llevó a cabo antes de las consignas gubernamentales y sin
subvención de gasolina.” (2014, p. 421).
121
Gloria Anzaldúa foi professora, escritora, ativista queer e uma chicana lésbica, que viveu entre as fronteiras
entre EUA e México. Anzaldúa se apresenta assim, para destacar as camadas de subordinação que não podem
ser mascaradas sob as questões de gênero, contribuindo para pensar acerca das distribuições desiguais de
privilégios sociais.
126

cabe nos perguntarmos sobre qual modelo de educação aspiramos. Conforme foi dito
anteriormente, defenderemos uma perspectiva crítica da educação baseada nos atravessamentos
ecofeministas.

3.3. Semeando horizontes: um caminho

A proposta de um projeto educativo é evidenciada a partir da crítica de Alicia Puleo


(2019), no qual a filósofa afirma ser a educação ambiental um dos principais caminhos para o
enfrentamento de uma crise ecológica. Para a pensadora, a proposta por uma justiça social e
interespécies deve ser pensada de forma a combater o androcentrismo e antropocentrismo de
nossa cultura, levando em conta uma ética do cuidado para a vida cotidiana e educativa. Por
essa razão, a educação ambiental deve ser pensada de forma interdisciplinar, porém a
construção de uma consciência crítica deve ser feita junto a uma análise sobre gênero e raça e
a construção da empatia para além de seres humanos.
Portanto, Puleo (2019) defende que a educação ambiental deve ser pensada junto a uma
proposta que eduque também às emoções, resgatando o amor à natureza e às diferentes espécies
de animais. Um currículo, como já foi apresentado no primeiro capítulo, que incorpore
informações para além de dados e estatísticas sobre os impactos, que incorpore o protagonismo
e a luta de pessoas, em especial, mulheres que estejam à frente dessa defesa. Além disso, deve
também incorporar o debate sobre os direitos animais, o que envolve ampliar o debate sobre
animalismos para além das espécies ameaçadas em extinção. Para Puleo, o currículo em
educação ambiental deve incluir também uma discussão sobre educação sexual, em destaque,
abordando os direitos sexuais e reprodutivos; e por último, romper com os padrões de consumos
e atividades instrumentais opostas a construção de uma crítica consciente e responsável tanto
pelas interespécies, quanto ao modelo socioeconômico e a tecnologia.
Essa proposta de educação ambiental pode ser ampliada para uma proposta escolar, que
além dos pontos apresentados por Puleo (2019) possa incluir aspectos culturais locais. Nesse
projeto local, podemos incluir a defesa do SUS(Sistema Único de Saúde), as ações afirmativas
de combate à desigualdade social e racial, a inclusão da Educação sexual e políticas públicas
que devem ser incluídas nessa discussão, considerando que, a discussão ambiental é uma
127

discussão de gênero e raça. Por essa razão, decidimos pensar a educação ambiental para além
da questão ecológica estrito sensu. O que isso significa? Que a educação deve entender que a
crítica apresentada pela autora pode e precisa ser utilizada para analisar todo o currículo da
educação, que tem sido pensada sob uma égide universal, ancorada na modernidade. Como foi
citado durante todo o trabalho, percebemos que o processo de colonização se efetuou em
colaboração com o apagamento tanto de nossas próprias identidades quanto o de práticas sociais
ligadas ao cuidado. Nesse processo de apagamento da construção identitária, foram assumidos
padrões globais que aniquilam o processo de produção do saber e da diversidade de práticas
situadas, contextuais.
No Brasil, fomos coagidas a pensar a partir desses padrões globais, e a acreditar que a
terra, a água, as florestas e os animais não humanos devem atender à lógica ocidental da
exploração, a despeito das culturas e cosmologias ancestrais dos povos originários de Abya
Yala. Logo, reiteramos a importância de repensarmos a educação e o que temos reproduzido
nos espaços formais de ensino, tais como escolas e universidades do país.
Nossa tese é a de que a reprodução irrefletida de conceitos ocidentais, se não forem
realizados a partir da crítica social, ou mesmo com intenção de ruptura dessa epistemologia que
se constituiu como dominante, não contribui para o debate comunitário e ecofeminista. Ao
contrário, lança-nos nas profundezas da colonialidade. Segundo Luís Carlos Dalla Rosa, “a
colonialidade se traduz em práticas educativas que sustentam ideologicamente essa mesma
dinâmica, a partir da qual a opressão e a violência são concebidas como fatalidades,
inaugurando-se uma situação de internalização ou assimilação desse processo.” (2019, p. 304).
E é a partir dessa percepção que defendemos a necessidade de pensar nossas práticas
educativas122. Dessa forma, entendemos a atividade educativa como um processo antagônico
às finalidades do sistema colonial – na sua versão neoliberal – que invade a educação. Logo,
torna-se fundamental pensarmos os conteúdos, bem como a formação do corpo discente e
atualização docente, em que destacamos a realidade brasileira, em termos materiais e de
reconhecimento identitários. Além disso, ressaltamos que as práticas de cuidado não são
pensadas ou mesmo reconhecidas como parte do processo de ensino-aprendizagem dos espaços
formais de ensino, principalmente por quem está à frente de uma sala de aula. Muitas vezes, na

122
A partir da crítica à educação ambiental, provocada por Alicia Puleo, em seu livro Claves ecofeministas (2019),
a pesquisa tomou uma nova direção, influenciando a pensar não somente a partir da educação ambiental, mas
a educação formal como um todo, enquanto o sistema educativo colabora para a manutenção de práticas
binárias e de violências estruturais. Por isso, a proposta da educação crítica intercultural é apresentada como
um caminho, enquanto a crítica se expande para todo o currículo escolar, e as próprias instituições educativas.
128

contramão do cuidado, o docente pode reforçar os binarismos – já apontados anteriormente –


e, com isso, contribuir para o apagamento da subjetividade e de suas experiências na condição
de estudante e de sujeita na sua integridade, tal qual afirma bell hooks (2013).
Consequentemente, uma profissional que se encontra com sua integridade comprometida por
essas estruturas educacionais será alijada da construção da comunidade educativa, na qual será
necessária a transgressão como práxis.
Na esperança de transgredir a esse sistema, bebendo das fontes teóricas de bell hooks,
recordamos que em uma parte de sua obra Ensinando a transgredir (2013), a autora afirma que
Paulo Freire, assumido como sendo sua grande inspiração e influência teórica, foi a água que
matou sua sede quando não sabia mais compreender suas dores diante do niilismo com a própria
academia e o ensino. Podemos pensar aqui que hooks, assim como as teóricas e feministas
decoloniais, e pensadoras e pensadores do bem-viver, tem sido a água que atravessamos a nado,
não somente matando nossa sede, mas nos desafiando a refletir sobre a possibilidade de uma
educação transformadora e transgressora.
Porém, não basta assumir a educação crítica a partir dessas perspectivas e práticas sem
questionar nossa própria identidade nesse processo. Isso passa por compreender nossos
privilégios, como os raciais, por exemplo, para contrapor e compreender qual nosso papel e
nossa responsabilidade diante da comunidade escolar e da academia. A desconstrução da
branquitude, por exemplo, é um processo fundamental da educação crítica. Vivemos num
contexto de diversidade e pluralismo cultural que nos exige reflexão crítico da realidade e da
ordem vigente que muitas vezes não se revela nos espaços, tal como a universidade, em especial
as pós-graduações.
Nossa sociedade, como um todo, e nossa educação, em especial, foram construídas em
oposição ao diferente: com a subalternização da mulher, a discriminação dos negros e
indígenas, o estigma atribuído aos gays, às lésbicas, aos bissexuais, às travestis, aos transexuais,
às travestis, assim como o apagamento de corpos intersexos, a crueldade com os animais não
humanos, e as intolerâncias religiosas. Todas elas foram formuladas a partir de um conceito de
humanidade que estruturou o poder hegemônico, que implementou esses valores e que, por
vezes, a educação não problematizou. Ao contrário, elogiou.
Buscamos tornar visível e irrefutável que as dicotomias da lógica mercantil do mundo
ocidental não têm sido favoráveis para nenhum ser vivo marcado pela subjugação colonial. Por
isso, pensar um projeto educativo é, antes de tudo, romper com os binarismos que foram,
inclusive, responsáveis por tratarmos questões de gênero, de raça, da natureza e dos animais de
formas desconectadas. A pergunta principal diante de tudo que foi apresentado é: como
129

transcender à lógica de tempo colonial, patriarcal, racista, especista e semear novos caminhos?
Será que ainda há tempo para isso? Como?
A violência patriarcal e as invasões coloniais aniquilaram e continuam a eliminar formas
de vida, de saberes e práticas; tratam a natureza como fonte de dinheiro e como um objeto à
mercê da chamada (sub)humanidade. O rompimento com esse paradigma reducionista e
violento deve ser construído a partir de proposta éticopolítica educativa que esteja disposta a
romper com essas estruturas e com a lógica de conhecimento hegemônicas. Porém, como
construir esse rompimento, quando as instituições, inclusive universidades e escolas, formulam
currículos e ementas pautados nesse modelo de pensamento?
Como Ailton Krenak prevê:

Muito provavelmente esse formato que a gente teve, no século XX, chegou até agora,
o formato escola, ele vai ter que espraiar. Ele vai ter que ter outra configuração,
incluindo essa experiência que estamos tendo de nos falar usando tecnologia. Vai ser
muito provavelmente uma forte ampliação do uso de tecnologias, engajamento das
famílias, e os educadores vão ter que ocupar um outro lugar, diferente do que eles
ocuparam nessa sociedade predatória e de consumo que chegamos até agora. Os
educadores vão ter que reivindicar um outro lugar, que é um lugar de engajamento
com as famílias nas formações de pessoas. Nós não podemos mais continuar
atendendo esse pedido do mercado de formar profissionais, de formar técnicos, de
formar gente para operacionalizar o sistema. (KRENAK, 2020, p. 19).

Como a líder indígena e feminista comunitária Adriana Arroyo (2019) afirma, não há
um manual de como descolonizar a memória, uma vez que a descolonização tem que ser feita
na prática. Arroyo questiona essa postura diante do feminismo, que muitas vezes não apresenta
um projeto político que possa, de fato, romper com esses paradigmas. Para Arroyo, a
universalidade ainda se mantém como uma estratégia de colonização. Logo, questionar a
universalidade e a origem de uma luta, ou de uma epistemologia, é um caminho de ruptura
desses parâmetros. E completa, afirmando que o melhor exemplo é a escola:

[...] onde aprendemos a história universal ano após ano, que é a história da Europa e
dos Estados Unidos, e que nos fez pensar que somos um povo sem história ou menos
importante, é assim que se cria a ideia do desenvolvimento republicano, a ideia de
modernização, que persiste até hoje em alguns setores que querem estar à imagem de
países que se autodenominam de "primeiro mundo", dos acadêmicos que acreditam
que haja validação no Norte, porque o Sul é sempre o Sul.123 (ARROYO, 2019, p. 7).

123
“Que mejor ejemplo que la escuela, donde hemos aprendido año tras año la historia universal, que es la
historia de Europa y Estados Unidos, y que nos ha hecho pensar que somos um pueblo sin historia o com uma
menos importante, así se crea la idea de desarollo republicano, la idea de modernización, que hasta hoy
persiste em algunos sectores que quieren ser a la imagen de países autodenominados “del primer mundo”, de
las y los académicos que creen que hay validarse em el norte, porque el sur siempe el sur.” (ARROYO, 2019,
p. 7).
130

Devemos, portanto, expandir as críticas estabelecidas pelos feminismos comunitários e


ecofeminismos para a educação, que mesmo propondo perspectivas e correntes inclusivas se
mantém dentro de uma estrutura que esvazia os conceitos, e muitas vezes só fortalece o que
Catherine Walsh vai definir como multiculturalidade neoliberal. Para Walsh (2019), a escola
ou academia trabalha os saberes locais, porém, ao invés de romper com os estereótipos e
processos coloniais, acaba por manter a lógica de pseudoconhecimento ou pseudociência
atribuído aos saberes do sul. Como exemplo, Walsh citará a própria filosofia que, nos últimos
anos, vem expandindo a discussão para fora da epistemologia eurocentrada. Porém, destaca
Walsh, a filosofia tem feito a inclusão sem nenhuma mudança na estrutura acadêmica, sendo
mantida por homens e mulheres brancas, contribuindo apenas para manter o multiculturalismo
disciplinar. Segundo a pensadora, “Mais que isso, nutre-se um diálogo sobre a diferencialidade
localizada: pensamento baseado no reconhecimento de que a filosofia, como outras disciplinas,
vem perpetuando a diferença epistêmica.” (WALSH, 2019, p. 24).
Na esteira de Walsh, acionamos os ecofeminismos e compreendemos que o cuidado
deve figurar um lugar epistemológico tanto na pesquisa quanto no ensino, para que possamos
contribuir com um projeto que realmente rompa com o colonialismo neoliberal, o patriarcado,
o racismo e o especismo. Do contrário, poderemos estar construindo mais paradigmas de
dominação, que, ao invés de transformar as estruturas sócio-históricas, manterão os processos
coloniais. Aqui, a defesa da interculturalidade, tal e como é aqui compreendida e aplicada,
promove a inclusão vazia de "lugar político". Em outras palavras, põe-se em marcha um
simulacro de inclusão enquanto, na prática, realiza-se a exclusão de indígenas e afros (mas
também de mulheres, populações rurais e outros grupos historicamente subalternizados) como
sujeitos com um projeto e uma crítica epistêmica, política e cultural (WALSH, 2019, p. 25).
No campo dos hábitos alimentares e da defesa da terra, por exemplo, os ecofeminismos
têm pautado a defesa da agroecologia e da educação agroecológica. No entanto, se por um lado
a agroecologia tem sido apresentada como forma de resistência para a construção da soberania
alimentar, essa proposta deve ser ampliada para além da resistência, a fim de ocupar o lugar de
educação transformadora. Ou seja, uma ação que estabeleça um verdadeiro sistema de
pensamento. Esse sistema deve ser construído a partir do confronto de propostas, mas
principalmente de ruptura de violências que possam desmantelar não somente a universalidade
do conhecimento ocidental, como também o modelo de organização social e econômico. Além
das propostas apresentadas pelas ecofeministas aqui enumeradas, no que diz respeito à prática
131

para pensar inclusive um currículo educacional, a proposta da educação deve estar


comprometida com a reconstrução dessa sujeita histórica.
Por isso, defendemos a educação crítica construída em um projeto ecofeminista que
considere o processo educativo como um caminho de travessias; travessias sobre o modo como
a educação foi formalizada em nossa sociedade; travessias sobre currículos; travessias sobre
produção de conhecimento; travessias sobre reprodução de conhecimento que ausentou as
vozes, os corpos e o protagonismo e, inclusive, o apagamento do próprio Sul global nessa
construção. E essa educação deve ser educação pautada pela interculturalidade, que não se
baseia no reconhecimento ou na inclusão, mas, sim, dirigida pela transformação dessas
estruturas (WALSH, 2019).
Para essa transformação ocorrer, ela precisa ser reconstruída. A reconstrução é também
uma travessia de se reconectar com o mundo, que começa pela nossa realidade e em que possa
caber outros mundos (ROSA, 2019). E a travessia pelos conhecimentos do bem-viver ou viver
bem é uma barca para a construção dessa educação crítica, enquanto atravessa e rompe as
fronteiras da educação que ditou os parâmetros violentos da linguagem, moldou a memória e
confinou as barreiras do que é conhecimento.
De acordo com bell hooks (2013), para romper as fronteiras da educação, as
experiências devem ter um lugar central na vida das estudantes. Porém, deve ser feita sem
colocar ninguém como especialista ou informante. É preciso, portanto, novas maneiras de
conhecer e experienciar as epistemologias. Essas novas formas de conhecer, segundo hooks
(2013), não devem estar desconectadas com a revolução da vida cotidiana. A sala de aula deve
ser pensada como espaço comunitário, e esse espaço deve ser pensado como uma comunidade
de aprendizado, construída de forma a transgredir as fronteiras. Logo, é um espaço de
corresponsabilidade, tanto do corpo discente quanto do docente, em que todas, todes e todos
devem se pensar como sujeitas ativas para essa mudança. Para que as práticas de ensino mudem,
a voz engajada, conforme adverte hooks, deve ser aberta ao constante diálogo, em constante
mutação. Por isso, segundo hooks, “precisamos mudar não só nossos paradigmas, mas também
o modo como pensamos, escrevemos e falamos.” (HOOKS, 2013, p. 22).
É possível afirmar que bell hooks soube entender que a mudança não pode ser somente
de um paradigma por outro, de um conteúdo por outro. A mudança é um ambiente que se
constrói com conflitos, e os conflitos são extremamente necessários para se perceber as
diferenças, mas também as semelhanças. A pensadora detectou que as mudanças de paradigmas
são muitas vezes abordadas sem dar o devido viés à questão racial, de gênero ou de classe
social, com receio dos confrontos e das paixões que tais temas podem gerar. Importante
132

perceber que já é de muito tempo que as paixões e emoções são evitadas no âmbito acadêmico
e escolar, como destacou Plumwood (2005), para quem a racionalidade sempre foi colocada
como poder e destinada a um grupo social de comando e que rege o conhecimento.
No contexto da hegemonia acadêmica, mostrar-se vulnerável ou considerar que seus
processos de ensino-aprendizagem estão situados em outras temporalidades tornam-se
irrelevantes e menosprezados diante da ideia universal que delimitou quem pode estudar.
Assim, a experiência pessoal vai sendo desvalorizada, e muitas vezes excluída do processo do
que se entende por produzir conhecimento. Entendemos que as diferenças precisam ser
encaradas como forma de ampliar nossas experiências, aumentando nossa capacidade de sentir
e potencializando a construção de um mundo mais igualitário. E o enfrentamento é parte
necessária desse processo. Se permitir atravessar e ser atravessada por esses processos é a
educação que defendemos. Tal atravessamento é, para nós, uma atitude eminentemente
ecofeminista.
Compreender a nossa história a partir desse território torna-se parte de um processo de
construção não somente de nova consciência, mas de formas diferentes de se relacionar com as
outras espécies (no sentido animal e vegetal), e novas formas de nutrir afeto com e entre os
seres humanos e não-humanos. Defendemos que a solidariedade e o cuidado, pautados em
ecofeminismos pensados, construídos e tecidos em território brasileiro, por mulheres do campo,
das águas, das florestas e das cidades, precisam ter lugar na nossa compreensão de educação. E
que isso se estabeleça numa travessia pedagógica que se torna possível não somente por meio
de práxis éticopolítica (ROSA, 2019), mas por meio de práxis que nos conduza a um sentido
comunitário que possa nos libertar até mesmo dos domínios estatais de poder que governam
corpos e natureza.

3.4 Conclusões

Neste capítulo, defendemos que a educação crítica intercultural é baseada no que


chamamos de atravessamentos ecofeministas. Entendemos essa proposta como um caminho
para a ruptura de padrões coloniais que segmentaram o conhecimento e alijaram desse universo
sujeitas produtoras de conhecimento, tais como as mulheres do Sul global que almejam contar
e defender suas histórias e memórias desde os seus lugares no mundo. Dessa forma, entendemos
133

que somente o modelo de disciplina como apelo de pensar a ecologia não é suficiente.
Primeiramente, entendemos que esses esforços mantêm a estrutura binária entre seres humanos
e natureza; além disso, a ecologia tem sido reduzida aos efeitos antrópicos irreversíveis da
natureza. Pensar um projeto educativo/pedagógico não se resume a inserir novas disciplinas ao
currículo (embora isso seja importante), mas modificar toda a práxis e o telos educativo atual.
Por isso, a travessia deve ser realizada conjugada a formas diferentes de ver o mundo. Este é o
projeto de uma educação amparada em atravessamentos ecofeministas.
134

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção deste trabalho foi pensada como uma travessia, na medida em que fui
construindo, teórica e historicamente, os aportes desta perspectiva. A escrita foi uma forma
também de perceber como os conflitos ambientais foram sendo instalados no planeta a partir de
discursos e prática homogeneizantes, anulando a diversidade e as protagonistas históricas, que
foram silenciadas, marginalizadas e até eliminadas, vítimas de genocídios étnicos, raciais e de
gênero, mascarados pelo nome de modernização. Por isso, o percurso foi realizado com a
tentativa de compreender as importantes denúncias já proclamadas pelas ecofeministas do
Norte global, mas também como suas questões e reflexões ecoam e em alguns momentos se
diferenciam de um projeto pensado por feministas e ecofeministas do Sul global. Dessa forma,
o trabalho analisou os ecofeminismos, bem como as perspectivas feministas do Sul global que
refletem criticamente sobre o encontro entre gênero e ecologia.
Para isso, o primeiro capítulo foi construído na intenção de apresentar o conceito
ecofeminista e as abordagens teóricas construídas a partir das correntes espiritualistas e
construtivistas. As abordagens escolhidas objetivaram colaborar para a compreensão da via
feminista proposta pelo movimento ecofeminista, comprometidas com o rompimento das
estruturas hegemônicas de poder, mantidas por hierarquias oposicionais, e, assim, ofereceram
subsídios para pensarmos a dicotomia natureza x cultura, e sua íntima relação com o
androcentrismo.
Tanto a teoria quanto a práxis ecofeminista apresentadas conduziram à percepção de
que as raízes das opressões – simbólicas e materiais – se conectam a vários sistemas. Destaquei,
ao longo deste trabalho, o patriarcado, bem como o racismo, o classismo e o especismo.
Compensa dizer que os ecofeminismos possibilitam identificar e tecer outras conexões, tais
como o sistema cisheterossexual. As abordagens referenciadas ao longo do trabalho
possibilitaram a compreensão acerca das principais críticas ou chaves ecofeministas.
Portanto, no primeiro capítulo, objetivei trabalhar com as abordagens do âmbito
espiritualista e crítico/construtivista, a partir das autoras Vandana Shiva e Maria Mies, por meio
das obras Ecofeminismo (2014) e Monoculturas da mente (2003); Val Plumwood, com as obras
Feminism and the Mastery of Nature (2003) e The environmental culture: The ecological crisis
of reason (2005); e Alicia Puleo, por meio dos livros Ecofeminismo para otro mundo es posible
(2011) e Claves ecofeministas (2019).
Na abordagem espiritual, trabalhei com o conceito do paradigma científico reducionista
e os conceitos de monocultura da mente, desenvolvidos por Vandana Shiva, assim como
135

detalhei o projeto ecofeminista de sociedade compreendido por Shiva e Mies. Tais


considerações foram fundamentais para que mais adiante fosse possível compreender como o
paradigma científico reducionista interfere na nossa sociedade a partir da indústria da
alimentação, de forma a manter o processo constante e ativo de empobrecimento dos países do
chamado “terceiro mundo”.
A segunda abordagem, sobre a qual me dediquei, foi o ecofeminismo denominado como
construtivista ou crítico. Para tal, abordei o conceito de crise ecológica da racionalidade de
Plumwood, para denunciar não somente o problema ecológico no planeta, mas também da
tradição filosófica, centrada no conceito de racionalidade. Uma das teses centrais da pensadora
foi apresentada, mostrando que a racionalidade foi construída como uma forma de poder e
fomentou os ismos de dominação, que apontei ao longo de todo o trabalho, tais como: o
sexismo, o racismo, o colonialismo, o especismo, entre outros.
Com Alicia Puleo, detalhei a definição de patriarcado e sua crítica à educação ambiental.
A partir dessa proposta de Puleo, no terceiro capítulo, surgiu a ideia de pensar a educação
crítica, que esteja comprometida não somente com a educação ambiental, mas que rompa com
práticas desse sistema educativo que nos impossibilita de construir outro mundo.
No segundo capítulo, dediquei-me a analisar como se estabelece a relação entre
feminismo e ecologia na América Latina. Nesse caso, optei por apresentar grupos e movimentos
de mulheres que estabelecem a discussão de gênero e ecologia sem necessariamente se
autoproclamarem ecofeministas. Tal escolha visou respeitar a autodeterminação dos coletivos.
Ainda assim, pareceu fundamental incluí-las no debate, compreendendo que as discussões
levantadas pelo feminismo comunitário, por exemplo, oferecem subsídios que o ecofeminismo
do Norte global não necessariamente nos oferecia para compreender as dinâmicas da questão,
desde o Sul global. Logo, além das correntes ecofeministas, optei por apresentar grupos de
mulheres que atuam teórica e praticamente no âmbito da discussão ecológica, desde a
perspectiva comunitária, destacando a pensadora Adriana Arroyo, por meio da obra
Descolonizar la memoria. Descolonizar feminimos (2019). Pareceu importante destacá-la, até
mesmo para que as reflexões ecofeministas pudessem se reinventar diante das e com as vozes
do Sul global, ao invés de tentar compreendê-las dentro do paradigma ecofeminista do Norte.
Além do feminismo comunitário, apresentei a teologia ecofeminista desenvolvida no
Brasil, a partir da pensadora Ivone Gebara, em seu trabalho Teologia ecofeminista (1997).
Destaquei, sobretudo, sua abordagem crítica à própria estrutura do Cristianismo, reforçando
práticas e violências patriarcais, a partir da instituição religiosa. Por último, apresentei a
corrente ecofeminista animalista, idealizada e construída no Brasil, a partir das pensadoras
136

Daniela Rosendo, Fabio Oliveira e Tânia Kuhnen, de forma a denunciar como os sistemas de
dominação atuam principalmente, mas não de modo exclusivo, com relação à questão animal e
reforçando a importância da construção da práxis ecofeminista, cujo cuidado e a
vulnerabilidade sejam recuperados para o pensar de perspectiva ética. Tal proposta me ajudou
a compreender a noção de interdependência.
No terceiro capítulo, apresentei o que chamei de atravessamentos ecofeministas. E por
qual razão atravessamentos? Antes de tudo, procurei reconhecer meu lugar na travessia dos
estudos ecofeministas, meu próprio deslocamento corporal em busca desses conhecimentos, e,
por fim, meu esforço para conjugar as propostas e os projetos ecofeministas com as teorias
filosóficas construídas nesse território do Sul global. A partir dessa travessia, reconheci que há
fenômenos no Brasil que devem ser compreendidos a partir de nossas próprias lentes. Isso não
significou, de modo algum, ignorar as contribuições das teóricas aqui apresentadas.
Entretanto, pareceu-me fundamental destacar situações concretas que assolam o Sul
global em geral, e o Brasil, em especial, que estão conectadas com o processo histórico de
colonização que ainda nos marca; que provocou e ainda provoca o genocídio dos povos
originários; que têm contribuído para a manutenção de práticas racistas contra os povos
indígenas e negros; e que ainda colaboram para a manutenção de modos e práticas
institucionalizadas, a partir dos padrões e das lógicas de dominação que nos aniquilam até os
dias de hoje.
Foi sobretudo ao lado das vozes do Sul global que consegui lançar outras críticas ao
poder hegemônico. Ou seja, críticas que diziam respeito não só ao caráter antropocêntrico do
patriarcado e androcêntrico do antropocentrismo, mas também do racismo estrutural com o qual
ele se aliança. Por isso, meu trabalho me permitiu nomeá-lo de atravessamentos ecofeministas.
Uma experiência marcada por uma travessia, em que teoria e prática estão indissociáveis às
vozes do Sul global, que informam e atravessam os ecofeminismos na mesma intensidade que
os ecofeminismos atravessam essas teorias. Escrever e pensar o ecofeminismo desde o Sul
global é, portanto, uma forma de atravessamento.
No último capítulo ainda abordei o conceito de colonialidade, com o aporte teórico de
pensadoras/es decoloniais como Aníbal Quijano, Walter Wignolo, Catherine Walsh, Lélia
González, Sueli Carneiro; além das teóricas pós-coloniais, como Gloria Anzaldúa e bell hooks,
para compreender como a insegurança alimentar, o racismo ambiental e a migração ambiental
refletem-se na nossa sociedade.
Acerca da insegurança alimentar, objetivei entender como as práticas agroindustriais
reforçaram a pobreza e a violência em contextos empobrecidos do Sul global, como é o caso
137

do Brasil. Para sustentar essa análise, utilizei-me do trabalho da pensadora ecofeminista Emma
Siliprandi, do qual destaco suas reflexões contidas na obra Mulheres e agroecologia (2015).
Em diálogo com Siliprandi, pude fundamentar e desmistificar o discurso da Revolução verde,
que projetou (e ainda faz eco) eliminar a fome no mundo a partir da produção de alimento em
larga escala, via agroindústria. Para contribuir com a discussão, destaquei o trabalho da
pesquisadora Larissa Bombardi, intitulado Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e
Conexões com a União Europeia (2017) e o Guia da alimentação da população brasileira
(2014), em diálogo com as abordagens ecofeministas apresentadas anteriormente e que já nos
permitiam pensar a alimentação.
O racismo e o fenômeno da migração foram pensados em termos ambientais e
desenvolvidos com o intuito de compreender como as denúncias realizadas pelos
ecofeminismos se manifestam especificamente no Brasil. Desse modo, objetivei utilizar as
lentes ecofeministas para compreender as práticas racistas do Estado, que se fazem presentes
no imaginário social e político da branquitude brasileira, que frequentemente se omite do seu
papel e da sua responsabilidade na luta antirracista. Nesse âmbito, a migração ambiental foi
abordada tanto pelo conceito quanto pela crítica à ideia de fronteira, a partir de Glória Anzáldua.
Para a realização desse subcapítulo, aproximei-me das denúncias apresentadas pelas filósofas e
militantes Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, tanto sobre o mito da democracia racial quanto da
ideologia do branqueamento, pautados a partir de artigos e entrevistas de ambas as autoras. Para
complementar as críticas levantadas por todas essas estudiosas, utilizei pesquisadoras que
abordam a problemática do racismo ambiental no país, em destaque os trabalhos de Tânia
Pacheco e Selene Herculano e os trabalhos que abordam o conceito de migração ambiental, por
meio da obra Refugiados ambientais (2018).
Com isso, defendi que a travessia realizada neste trabalho produziu atravessamentos que
me conduziram para a defesa de educação crítica que possua ferramentas e fôlego para
denunciar os sistemas de opressão que ocultam e invisibilizam histórias, corpos e vozes de
nossa memória e de registros oficiais. Dessa forma, defendi que é preciso pensar a educação
intercultural, na qual os currículos, as escolas e as universidades sejam capazes de enfrentar os
paradigmas de violências coloniais que estão intimamente associados com os ismos de
dominação aqui evidenciados. Essa educação deve estar comprometida com a pedagogia que
possa transgredir e que seja libertadora, inclusiva, mas principalmente transgressora, tal qual
propõe bell hooks. Por essa razão, defendi que a educação crítica intercultural deve considerar
as críticas e lentes ecofeministas, ao mesmo tempo em que deve ser atravessada por
perspectivas teóricas pensadas e tecidas aqui, nesse espaço e nesse tempo. Só assim seremos
138

capazes de denunciar e superar o processo histórico-social de violências que se consolidaram


no território denominado como América Latina.
Por isso, meu objetivo foi de mostrar as conexões existentes entre os diferentes
universos teóricos, principalmente dentro do contexto do Sul global empobrecido, com
assimetrias de gênero discrepantes e discursos de ódio endereçados às populações negra,
indígena, LGBTIA+, deficiente, que até hoje podem ser ouvidos e produzidos em diversos
setores da sociedade. Portanto, aponto para a necessidade de ecofeminismos atravessados pelo
bem-viver e pelas teorias decoloniais, e que, conjugados, possibilitem novas criações e práxis
que reconstruam o telos pedagógico e as práticas libertárias. Que essas práticas possam ser
construídas a partir de nossa realidade, numa relação de interculturalidade, pautada nos diálogos
e no compromisso com a descolonização de nossos imaginários e o combate contra as opressões
simbólicas e materiais que nos afetam.
Para finalizar, compensa dizer que o que propus neste trabalho é a necessidade de uma
contínua travessia pelas fronteiras do conhecimento. Ao mesmo tempo, é um convite à travessia
de rupturas, mas também de aprendizagens e de encantamentos pelo mundo e por formas de
saberes e práticas que foram omitidas ao longo de nossas jornadas. Que os atravessamentos
ecofeministas possam significar novos caminhos e ares que permitam construirmos novas
formas de agir e refletir; que os atravessamentos ecofeministas sejam, em um só tempo, o
compromisso com a denúncia e o rompimento com paradigmas da violência, bem como a
chance de um novo mundo possível.
139

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FILMOGRAFIA INSPIRADORAS

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