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Universidade Federal Do Rio De Janeiro

Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza


Departamento de Geografia
Programa de Pós-Graduação em Geografia

Arranjos espaciais e sistemas de som: um estudo sobre a feira e a


sua paisagem sonora

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Geografia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Paulo César da Costa Gomes

Renato Coimbra Frias

Rio de Janeiro, 2020


RENATO COIMBRA FRIAS

Arranjos espaciais e sistemas de som: um estudo sobre a feira e a sua paisagem sonora

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Geografia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Paulo César da Costa Gomes (PPGG - UFRJ)


RENATO COIMBRA FRIAS

Arranjos espaciais e sistemas de som: um estudo sobre a feira e a sua paisagem sonora

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Geografia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Geografia.

________________________________________________

Prof. Dr. Paulo César da Costa Gomes (Orientador - UFRJ)

________________________________________________

Profª. Drª. Leny Sato (USP)

________________________________________________

Prof. Dr. Alessandro Dozena (UFRN)

________________________________________________

Prof. Dr. Marcos Góis (UFRJ)

________________________________________________

Profª. Drª. Rebeca Steiman (UFRJ)


AGRADECIMENTOS

Contei com ajuda de muitas pessoas nesses anos de Doutorado e seria injusto mencionar
apenas algumas. Então, aos meus amigos, alunos e professores: obrigado pela parceria e
suporte!

Aos colegas de trabalho do Grupo de Pesquisa Território e Cidadania: obrigado pelas


críticas e pelos ouvidos atentos às novidades deste processo de investigação. Foi muito
importante contar com vocês!

Agradeço imensamente aos membros da banca pela generosidade com que aceitaram este
convite. Rebeca Steiman, Marcos Góis, Alessandro Dozena e Leny Sato: muito obrigado!

Aos meus orientadores, Paulo César da Costa Gomes e Leticia Parente Ribeiro: muito
obrigado pelo carinho e cuidado de sempre. Obrigado também por serem exemplos de
honestidade intelectual e compromisso acadêmico. Estar com vocês, seja para discutir
algum aspecto da tese ou rir de um assunto qualquer foi uma das melhores partes desta
pesquisa.

Luisa e Tomás: que bom contar com o amor de vocês nessa jornada. Muito obrigado pela
companhia, carinho e parceria. Amo vocês!

Faço também um agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq), que financiou esta pesquisa.
RESUMO

A presente pesquisa tem a feira como objeto central de investigação. Essa forma particular
do comércio vem sendo estudada em diferentes campos do conhecimento, a partir de
diferentes eixos temáticos: as origens e a permanência da periodicidade como marca
fundamental; as práticas de compra e venda características da feira; as formas de
organização do trabalho; o papel da feira como lugar de encontro social e sociabilidade;
entre outros. Nos estudos dedicados à feira, identificamos de forma recorrente a menção
às sensações e estímulos sensoriais que ela provoca. Autores dedicados a diferentes tipos
de feiras falam sobre a sua morfologia confinada e labiríntica, sobre as formas e cores das
bancas e mercadorias, além de mencionarem a presença de diversos tipos de odores nos
corredores desses mercados periódicos. O som, frente a todos esses estímulos, é um dos
que é mencionado com maior recorrência, usualmente a partir da discussão sobre os
pregões, anúncios e outras estratégias orais de venda dos feirantes. Mesmo sendo
identificada por tantos autores, a paisagem sonora da feira permanece sendo um tema
periférico na literatura dedicada a esse espaço peculiar do comércio. Neste sentido, esta
pesquisa dedicou-se a analisar a importância do som enquanto dispositivo organizador e
qualificador das feiras. Para isso, adotamos e adaptamos métodos de pesquisa dedicados
ao estudo do som ambiente, como as soundwalks, para a aplicação em treze feiras
diferentes, em vinte e quatro trabalhos de campo realizados entre Rio de Janeiro e São
Paulo. Como resultado, podemos afirmar que a feira produz paisagem sonora própria que
a identifica e a singulariza frente ao seu entorno. Tal paisagem é parte indissociável das
atividades que compõem a feira livre. Isso, pois, em primeiro lugar, relaciona-se às
atividades ali desenvolvidas, desde a montagem das bancas até as conversas entre os
fregueses, todas elas produtoras de sons. Segundamente, parte dessa paisagem é composta
pelas vozes que anunciam os produtos e orientam o trabalho na feira, evidenciando que o
som, na feira, mais que um subproduto das suas atividades, é parte estruturante da
organização do seu trabalho e do seu espaço.

Palavras-chave:
Feira; paisagem sonora; ambiência; trabalho de campo; métodos fonográficos.
ABSTRACT

The street markets are the central object of investigation of this research. This particular
form of commerce has been studied in different fields of knowledge, based on different
thematic axes: the origins and permanence of periodicity as a fundamental mark; the
particular buying and selling practices of these markets; the specific forms of work
organization; the role of the street market as a place for social meeting and sociability;
between others. In studies dedicated to the street markets, we have recurrently identified
mention of the sensations and sensory stimuli it provokes. Authors dedicated to different
types of street markets talk about their confined and labyrinthine morphology, about the
forms and nuclei of stalls and products, in addition to mentioning the presence of different
types of odors in the corridors of these periodic markets. The sound, in view of all these
stimuli, is one of the most frequently mentioned, usually from the discussion about the
auctions, advertisements and other sales strategies of stallholders. Even being identified
by so many authors, the street market's soundscape remains a peripheral theme in the
literature dedicated to this peculiar space of commerce. In this sense, this research was
dedicated to analyzing the importance of sound as an organizing and qualifying device
for fairs. For this, we adopted and adapted research methods dedicated to the study of
ambient sound, such as soundwalks, for application in thirteen different fairs, in twenty-
four fieldwork carried out between Rio de Janeiro and São Paulo. As a result, we can say
that the fair produces its own soundscape that identifies and makes it unique in relation
to its surroundings. Such a soundscape is an inseparable part of the activities that make
up the open market. This, because, in the first place, is related to the activities developed
there, from the assembly of the stalls to the conversations between the customers, all of
them producing sounds. Second, part of this soundscape is composed of the voices that
announce the products and guide the work at the fair, showing that sound at the fair, more
than a by-product of their activities, is a structuring part of the organization of their work
and their space.

Key words:

Street Market; soundscape; ambience; fieldwork; phonographic methods.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – A “feira do Nordeste” e o encontro social (SANTOS, 1963). Pág. 30.

Figura 2 – Alimentos apresentados em montes, organizados por tipo e cor. Feira da Rua
Sebastião Pereira, Santa Cecília, São Paulo. Pág. 37.

Figura 3 - Batatas dispostas em sacos na feira da Rua Conceição Veloso, Vila Mariana,
São Paulo. Pág. 37.

Figura 4 – Vegetais apresentados em diferentes níveis, montados com caixotes e


enfeitados com folhas soltas. Feira da Praça Serzedelo Correia, Copacabana, Rio de
Janeiro. Pág. 38.

Figura 5 - Feira de Yunnan (KUNWU, 2015). Pág. 44.

Figura 6 - Feira da Rua Ronald de Carvalho. Pág. 84.

Figura 7 - Parte interna da Praça Serzedelo Correia. Pág. 85.

Figura 8 - Detalhe da feira vista da parte interna da Praça Serzedelo Correia. Pág. 85.

Figura 9 - Detalhe da Feira da Praça Almirante Júlio de Noronha. Pág. 86.

Figura 10 - Detalhe da Feira da Praça Almirante Júlio de Noronha. Pág. 86.

Figura 11 - Parte interna da Praça Edmundo Bittencourt, rodeada pela feira. Pág. 87.

Figura 12 - Pequena banca improvisada na Feira da Rua Vicente Silva. Pág. 96.

Figura 13 - Banca composta com vários "puxadinhos" na feira da Rua Vicente Silva. Pág.
96.

Figura 14 - Ambulante circulando pela feira da Praça São Perpétuo. Pág. 97.

Figura 15 - A estrutura básica encontrada em boa parte das unidades de venda da feira.
Pág. 98.

Figura 16 - Banca de tempero com tabuleiro ampliado na feira da Praça São Perpétuo.
Pág. 99.
Figura 17 - Exemplo de improviso na composição arquitetônica da feira. Pág. 100.

Figura 18 - Exemplo de improviso na composição arquitetônica da feira. Pág. 100.

Figura 19 - Mosaico de fotos com exemplos do improviso e refuncionalização na feira.


Fotos do autor. 101.

Figura 20 - Corredor de fregueses na Feira da Praça São Perpétuo. Pág. 105.

Figura 21 - Feirantes conversando na feira da Praça Edmundo Bittencourt. Pág. 111.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 01

CAPÍTULO 1 – A feira .................................................................................................

1.1 – Quadro geral da pesquisa sobre feiras .............................................................. 05


1.1.1 – Feiras e mercados: definições e diferenças ........................................................ 05
1.1.2 – A feira como objeto de estudo ............................................................................. 12

1.2 – Aspectos fundamentais da feira .......................................................................... 16


1.2.1 – A questão do tempo: periodicidade, permanência e organização do trabalho .... 16
1.2.2 – As particularidades do trabalho e do comércio na feira ...................................... 23
1.2.3 – A feira como espaço do encontro social ............................................................. 28

CAPÍTULO 2 – Na feira .............................................................................................. 33


2.1 – A experiência sensorial da feira ............................................................................ 33
2.2 – O som da feira ....................................................................................................... 39
2.3 – Uma nova questão sobre a feira ............................................................................ 47

CAPÍTULO 3 – O som como objeto de estudo da Geografia .................................. 49

3.1 – O mundo sensível e seus significados ................................................................. 49

3.2 – Da Geografia visual à Geografia dos sons .......................................................... 53


3.2.1 – Por que o som? ................................................................................................... 55
3.2.2 – A paisagem sonora dos Geógrafos ..................................................................... 57
3.2.3 – A crítica da paisagem sonora ............................................................................. 60

3.3 – Conceitos básicos para observação e análise das paisagens sonoras .............. 64
3.3.1 – Sinais sonoros, sons fundamentais e marcas sonoras ........................................ 64
3.3.2 – Pontos de escuta e composições sonoras ........................................................... 67
CAPÍTULO 4 – Discussão metodológica e procedimentos operacionais ................. 70

4.1 – Som e espacialidade: questões metodológicas .................................................... 70


4.1.1 – O trabalho de campo na Geografia ..................................................................... 70
4.1.2 – As caminhadas de escuta e observação ............................................................... 77

4.2 – A construção de um método próprio ................................................................ 80


4.2.1 – Antes das feiras .................................................................................................. 80
4.2.2 – Indo à feira .......................................................................................................... 84

CAPÍTULO 5 – A paisagem sonora da feira livre ..................................................... 95

5.1 – O som das coisas .................................................................................................. 95


5.1.1 – Objetos e formas da feira livre ........................................................................... 95
5.1.2 – Objetos de trabalho, instrumentos de som ......................................................... 102
5.1.3 – Montando a orquestra ........................................................................................ 103
5.1.4 – Arranjos espaciais e trilhas sonoras ................................................................... 105

5.2 – As vozes da feira ................................................................................................. 107


5.2.1 – As vozes que organizam o trabalho .................................................................. 107
5.2.2 – As vozes do encontro social ............................................................................. 108
5.2.3 – As vozes que vendem ....................................................................................... 112
5.2.4 – Sistemas de som ............................................................................................... 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 122


1

INTRODUÇÃO

Contemplar as paisagens de uma cidade é um prazer dividido por muitas pessoas. A


existência de mirantes e a popularidade de locais que oferecem pontos-de-vista
privilegiados de determinados ângulos da cidade ilustra essa certeza. Perceber como tais
pontos muitas vezes orientam roteiros de viajantes e entram no circuito oficial de atrações
turísticas de uma cidade, também. Conhecer uma cidade, muitas vezes, confunde-se com
ver e registrar suas diferentes aparências: as fileiras paralelas de arranha-céus no centro
de uma grande metrópole, o arranjo praça e igreja nas pequenas cidades do interior, a
fachada de determinadas instituições e edificações em cidades históricas são apenas
alguns poucos exemplos.

No entanto, a nossa experiência em uma cidade não é formada apenas pelo que ela nos
oferece em termos de espetáculos visuais. Entre os cantos apaixonados e em alto volume
das torcidas de futebol e os assobios dos pássaros em um parque tranquilo e silencioso no
subúrbio da cidade, existe uma variedade infinita de composições formadas pelos sons
presentes nos ambientes urbanos. Freadas de carro, roncos de motores, conversas,
gargalhadas, anúncios, apitos, latidos e batuques formam uma espécie de orquestração
involuntária, composta pelos sons existentes em um determinado lugar. Formam uma
composição que também marca a nossa experiência em uma cidade.

Essas composições possuem uma evidente espacialidade. Em primeiro lugar, diferem


muito dependendo dos “lugares” em que se constituem. Diferentes atividades – e
consequentemente os locais nos quais elas acontecem – estão associadas a determinadas
paisagens sonoras. Dos pátios das escolas aos já mencionados estádios de futebol,
passando pelas zonas boêmias, feiras e estações metroviárias, há, em qualquer cidade, um
mosaico mapeável de atividades cujos sons são reconhecíveis e indissociáveis da sua
ocorrência.

Em segundo lugar, essas composições são resultado de um jogo de posições existente


entre o ouvinte e as fontes sonoras. Ou seja, “onde” estamos interfere diretamente em “o
que” ouvimos. Na orquestração involuntária da cidade, os instrumentos de som estão em
todas as partes e estamos o tempo todo caminhando por entre os músicos. Deslocar-se
pela cidade é acessar certos sons e emudecer outros.
2

Um terceiro ponto: os sons, em diversas ocasiões, são utilizados como dispositivos


organizadores dos espaços públicos. Isso é evidente em estações metroviárias e
aeroportos, onde os sinais sonoros são fundamentais na orientação de fluxos e circulação
de informações, mas se observa também em áreas comerciais e no trânsito, por exemplo.
Nesses casos, o som não é mero resultado de uma atividade específica, mas parte
estruturante da sua organização espacial.

Por último, vale lembrar que determinadas características da morfologia urbana, como a
largura das ruas e a altura dos prédios, condicionam o modo como o som se propaga no
espaço e, portanto, influem também naquilo que ouvimos. A cidade possui uma acústica
diretamente ligada à sua morfologia.

Assim, a nossa experiência em uma cidade não é formada apenas pelo que observamos
em suas ruas, praças, estádios e paisagens icônicas. Os ambientes urbanos são formados
também por uma grande variedade de sons que, combinados, soam como composições,
que não só vão variar de acordo com o lugar onde se constituem, como também vão
qualificar estes mesmos lugares.

Nesse sentido, as paisagens sonoras configuram-se como parte fundamental da nossa


experiência urbana. Formam, também, como qualquer paisagem, a imagem que
construímos de um lugar. Uma imagem, vale ressaltar, não estática, e que vai ser
percebida e interpretada de modos muito diferentes, variando de acordo com quem as
ouve. Uma mesma combinação de sons, portanto, pode tanto atrair, quanto repelir o
interesse das pessoas, promovendo ou dissipando concentrações nos espaços públicos.

Indo além, podemos dizer que a consideração dessas paisagens sonoras pode revelar
novos aspectos da dinâmica espacial dos diferentes espaços de uma cidade. Em se
tratando da Geografia, campo do conhecimento historicamente ligado a modos visuais de
compreender e explicar o mundo, temos um amplo campo de investigação ainda pouco
desenvolvido.

Foi percebendo o potencial do som e as suas composições como chaves investigativas da


cidade que chegamos até esta pesquisa. Como será relatado nos próximos capítulos, antes
mesmo de chegar ao nosso tema central, a feira, caminhamos por tantos outros espaços
da cidade procurando compreender como o som poderia servir de nova testemunha para
as nossas indagações sobre o urbano. Praças, ruas, estações e parques foram explorados
3

em busca de uma forma de descrever, registrar, analisar e pensar os diferentes sons da


cidade.

E foi na feira que encontramos o lugar ideal para desenvolver as nossas questões. Como
ficou evidente na bibliografia consultada, a feira não é somente um espaço marcado por
uma composição sonora própria, ela é, também, organizada e gerida através do som e,
especificamente, da voz. Na feira, encontramos um caminho para desbravarmos as
possibilidades de pesquisa que os sons oferecem e, a partir deles, procuramos descobrir
novos aspectos sobre esse espaço tão antigo quanto a própria cidade.

A feira, espaço banal na cidade, presente na maioria dos bairros do Rio de Janeiro, já era
uma antiga conhecida quando iniciamos a pesquisa. No decorrer da investigação, quando
fomos, aos poucos, definindo o nosso referencial teórico, conhecendo os trabalhos
produzidos sobre o assunto e construindo o nosso método de pesquisa, suas características
fundamentais, ocultas aos olhos e ouvidos de quem a frequenta de modo puramente lúdico
ou funcional, foram sendo reveladas.

Esta pesquisa foi desenvolvida em parceria com os colegas do Grupo de Pesquisa


Território e Cidadania, do Departamento de Geografia da UFRJ. No grupo, entre 2014 e
2019, tivemos a oportunidade aprofundar a discussão teórica sobre sociabilidade e
espaços públicos, participando da elaboração de instrumentos de observação e
desenvolvendo práticas de pesquisa adequadas a trabalhos de campo dedicados a esse
tema. A cada novo avanço da pesquisa, fosse na discussão teórica ou no desenvolvimento
dos métodos a serem aplicados, os resultados eram apresentados e debatidos
coletivamente pelo grupo, composto por alunos de iniciação científica, pós-graduandos e
orientadores. Parte do que é apresentado aqui, portanto, deve muito ao trabalho coletivo
realizado pelo grupo.

No primeiro capítulo, apresentamos um quadro geral da pesquisa sobre feiras livres,


buscando delimitar o nosso recorte temático entre a variedade de trabalhos consultados.
Além disso, nessa primeira parte, discutimos quais seriam, segundo tais trabalhos, os
aspectos fundamentais da feira.

No capítulo seguinte, reunimos uma série de relatos de diferentes autores a respeito do


que seria a experiência sensorial da feira e demonstramos a importância do som nesse
4

contexto. Ao final, apresentamos as questões centrais e os principais objetivos desta


pesquisa.

No terceiro capítulo, debatemos o papel do som como objeto de estudo da Geografia. Para
isso, defendemos uma ampliação do escopo teórico, metodológico e temático desta área
do conhecimento, de modo a incorporar questões relacionadas aos aspectos não-visuais
do espaço geográfico.

No quarto capítulo está exposta a discussão metodológica, o processo de construção do


método que orientou as nossas investigações. Primeiramente, realizamos uma revisão a
respeito dos chamados métodos fonográficos e também das formas com que estudos sobre
o som podem ser incorporados no trabalho de campo do geógrafo. Ao final, descrevemos
em detalhes as etapas até chegarmos às caminhadas de escuta e observação como nosso
principal método de pesquisa.

No quinto capítulo, enfim, analisamos os dados obtidos em campo. Para isso,


apresentamos uma descrição da feira, destacando sempre a relação dos componentes
principais com a produção da sua paisagem sonora. Assim, descrevemos sua morfologia,
suas atividades principais e as suas práticas de compra e venda, buscando sempre
compreender como tais aspectos relacionam-se com a sua paisagem sonora.

Ao final, apresentamos algumas breves considerações, reunindo o que acreditamos ter


sido as principais contribuições desta tese e algumas indicações de temas que se abrem a
partir das nossas reflexões.
5

CAPÍTULO 1 – A feira

1.1 – Quadro geral da pesquisa sobre feiras

1.1.1 – Feiras e mercados: definições e diferenças

Muitos dos que vão ler esta tese visitaram pelo menos uma feira ao longo da vida.
Provavelmente guardam lembranças das feiras visitadas na infância. Pode ser, também,
que ainda frequentem semanalmente a feira do bairro ou da cidade onde residem hoje. E
talvez já tenham incluído uma feira regional em um roteiro de viagem. Ou seja,
considerando que essa é uma das formas de organização do comércio mais antigas e mais
difundidas no mundo, podemos dizer que, para boa parte das pessoas, não é muito difícil
definir exatamente o que é uma feira. Na academia, diferentes autores ofereceram o seu
ponto de vista.

Bromley (1980, p. 647), analisando os mercados periódicos dos países em


desenvolvimento, definiu a feira como sendo "uma reunião pública e autorizada de
compradores e vendedores de mercadorias que se encontram em intervalos regulares num
lugar estabelecido”.

Já Corrêa (2010), tratando das feiras que circulam por diferentes cidades do nordeste
brasileiro, falou de “núcleos de povoamento, pequenos, via de regra, que periodicamente
se transformam em localidades centrais: uma ou duas vezes por semana, de cinco em
cinco dias, durante o período da safra, ou de acordo com outra periodicidade” (p. 50).

Mott (1975), falando pelos antropólogos, definiu a feira como sendo um “lugar ou sítio
geográfico (...) onde um certo número concreto de compradores e vendedores se reúnem
com a finalidade de trocar ou vender e comprar bens e mercadorias” (p. 10).

Mascarenhas (2008), referindo-se à “feira livre” típica do Rio de Janeiro, a definiu como
sendo uma “modalidade de mercado varejista ao ar livre, de periodicidade semanal,
organizada como serviço de utilidade pública pela municipalidade e voltada para a
distribuição local de gêneros alimentícios e produtos básicos” (p. 75).
6

E Leny Sato, autora da obra brasileira mais importante sobre o tema (SATO, 2012),
preferiu a definição do dicionário: “reunião de vendedores e compradores em
determinado local e hora, com a finalidade de comércio” (Houaiss, Villar e Franco apud
Sato, 2012, p. 92).

Guardadas as particularidades de cada uma dessas definições, podemos afirmar que a


feira é, sempre, uma reunião mercantil que se efetua periodicamente em uma determinada
localidade. Apesar das muitas diferenças que podem guardar entre si, há essa premissa
em qualquer lugar que chamemos de feira. A partir da necessidade de se organizar as
trocas materiais, estabelece-se uma periodicidade regular e um lugar fixo para o encontro
comercial. Trata-se de um modelo simples e facilmente reprodutível, que emergiu em
diferentes lugares onde foi necessário organizar o comércio. A ampla difusão e a
longevidade das feiras não devem, portanto, causar surpresa.

Como ressalta Mascarenhas (1992, p. 96), “largamente difundida no Brasil e em todos os


continentes, perpassando diversos níveis de desenvolvimento socioeconômico, a feira nos
remete à sua origem certamente remota”, difícil de ser precisada e que "desaparece no
ignoto de um passado distante" (COSTA, 1950, p.32).

Entre grupos rurais, ela aparece como uma forma de organizar as trocas do excesso de
produção. No mundo urbano, são, há muitos anos, importantes nós nas redes de
distribuição de alimentos do campo para a cidade. Assim sendo, a feira configura-se como
uma forma recorrente na paisagem de muitos lugares, há muitos séculos. Falar delas é
reconstruir a evolução das relações de troca em praticamente todas as partes do mundo,
diria Dantas (2008, p. 87).

No que se refere à Europa, sua origem situa-se na passagem da Idade Média para a Idade
Moderna. Há registros de feiras europeias já no século XI (RAU, 1983) e, como
demonstra Braudel (1998), uma expressiva difusão e diversificação desses mercados
periódicos ao longo dos séculos da Europa pré-industrial.

Em outras regiões do mundo, a feira também emergiu e foi notada por trabalhos hoje
considerados clássicos. A obra “Markets in Africa” de Bohannan e Dalton (1962 apud
Mott, 1975), por exemplo, reúne 28 artigos que registram a existência de feiras em
7

diferentes regiões do continente africano. Bromley (1980) levantou, também, um número


considerável de trabalhos que se dedicaram a estudar esse tipo de mercado na América
Latina. Já Dewey (1962) e Geertz (1978; 1979) realizaram importantes reflexões sobre
as feiras da Indonésia e do Marrocos, enquanto Skinner (1964) e Stine (1962) fizeram o
mesmo para os casos da China e da Coreia, respectivamente (apud CORRÊA, 2010).

Como dissemos, a feira é uma solução simples e intuitiva, encontrada por diferentes
grupos para resolver a necessidade de se realizar trocas comerciais. Como lembra
Mascarenhas (1992, p. 113), a periodicidade viabiliza a sua presença mesmo em locais
onde é muito fraco o volume de consumo, concentrando, em um único dia, toda a
demanda local. Além disso, o fato deste não ser um comércio de caráter permanente,
permite que os feirantes se dividam entre os trabalhos de produção, colheita e comércio,
como ainda acontece em muitas feiras que conhecemos.

Obviamente, ainda que exista uma regularidade nessas diferentes formas que nos
permitem chamá-las todas de feiras, estas distinguem-se muito entre si. Suas diferentes
periodicidades, os produtos que são ofertados, as suas escalas e graus de centralidade, os
tipos de interação social que engendram, o perfil socioeconômico dos produtores,
comerciantes e consumidores, são alguns dos fatores que, combinados, conferem
características próprias a cada uma das feiras. Atentos a esse jogo de semelhança e
diferença entre elas, alguns autores buscaram classificá-las a partir da criação de
tipologias.

Rau (1983, p. 56-59), por exemplo, em diálogo com outros autores também interessados
no estudo das feiras medievais, diferencia o que seriam as “feiras”, que emergem na
Europa com o renascimento comercial, aparecendo as mais antigas já no século XI, dos
“mercados locais”, também periódicos, mas existentes desde o século IX.

A autora aponta que os mercados locais seriam destinados a prover a alimentação corrente
da população existente no local onde eles têm lugar e o comércio seria realizado por
pequenos camponeses dos arredores, o que justificaria a sua periodicidade semanal, a sua
esfera de influência muito limitada e a restrição da compra e venda a varejo. As feiras, ao
contrário, seriam conduzidas por mercadores profissionais, configurando-se como
grandes centros de trocas onde “todo o indivíduo, qualquer que seja a sua nacionalidade,
8

todo o objeto negociável, qualquer que seja a sua natureza, têm a certeza de serem bem
acolhidos”. Dada a sua magnitude, as feiras eram realizadas apenas uma ou duas vezes
ao ano e estavam abertas “a todo o comércio, como cada porto de mar a toda a
navegação”. Haveria, aí, portanto, uma diferença não só de grandeza, mas também de
natureza entre essas duas formas do comércio medieval (PIRENNE apud RAU, 1983, p.
57).

Para Huvelin, a distinção essencial entre feiras e mercados se efetua durante a Idade
Média, a partir de uma diferença de escala e importância:

Primitivamente confundidos, assim como os termos que os designavam, foi só


na Idade Média que se efetuou uma distinção entre eles, distinção baseada na
sua maior ou menor importância. Então as noções de feira e mercado tornam-se
distintas. A feira é o centro do grande comércio que atrai os mercadores de países
longínquos, corresponde a uma fase econômica mais evoluída e a sua
importância depende da prosperidade de um país inteiro. O mercado tem apenas
uma influência local ou regional (apud RAU, 1983, p. 57).

Rau (1983), que cita ainda Ephraim Lipson, Luís de Valdeavellano e outros autores
envolvidos nessa discussão, conclui que, para estabelecer uma divisão entre feira e
mercado, a maioria dos historiadores e economistas têm seguido um critério que se baseia
justamente na amplitude das transições efetuadas nessas reuniões mercantis e a sua maior
ou menor frequência como indicação da sua menor ou maior importância (p. 58).

Bromley (1980) também fala de mercados (markets) e feiras (fairs), mas para referir-se
aos mercados periódicos dos países em desenvolvimento, seu objeto de estudo durante
décadas. O autor, no entanto, utiliza primordialmente o critério da periodicidade para
classificá-los em mercados diários, periódicos e especiais:

Os mercados diários são característicos dos centros maiores de mercado. Os mercados


periódicos ocorrem regularmente em um ou mais dias fixos a cada semana ou mês e são
característicos de menores centros de mercado. Muitas vezes os mercados diários são
particularmente grandes e importantes uma ou duas vezes por semana, e por esta razão
têm algumas das características dos mercados periódicos. Os mercados especiais ocorrem
frequentemente em feiras anuais. Estas feiras consistem em grandes agrupamentos de
pessoas, geralmente para uma festa religiosa, ou para alguma função comercial específica
como, por exemplo, as vendas anuais de ovelhas. Mas de vez em quando são realizadas
só para entretenimento. As feiras podem durar em torno de um dia a três meses e
frequentemente suas localizações não têm relação com os locais dos mercados existentes,
sejam periódicos ou diários (BROMLEY, 1980, p. 649-650).
9

Frente às reflexões dos autores citados, cabe aqui uma ressalva. Muito embora a
expressão “feira livre” ou simplesmente o termo “feira” sejam empregados no Brasil, em
outros idiomas, o espaço comercial que tratamos aqui recebe a denominação “mercado”:
feira franca ou mercado franco em Portugal; marché de rue ou marché découvert na
França; market-place, open street market ou street public market nos Estados Unidos e
na Inglaterra (SATO, 2012, p. 91).

No Brasil, o termo “mercado” costuma ser associado a um estabelecimento fixo e de


funcionamento diário, como no caso do Mercado Municipal de São Paulo e do Mercado
Central de Belo Horizonte. “Supermercado” e “mercadinho” são termos correlatos, de
uso comum e seguem o mesmo sentido. Já o termo “feira” refere-se tradicionalmente a
mercados periódicos, abrangendo casos com periodicidades e escalas espaciais diferentes
entre si1.

Por esse motivo, tanto Mascarenhas (1991) quanto Sato (2012, p. 35) fazem um paralelo
entre as “feiras” e os “mercados” da Europa medieval com o que convencionou-se chamar
no Brasil de “feiras regionais” e “feiras livres”, respectivamente. Trata-se de uma
distinção orientada pelas escalas que tais feiras atingem, mas que guarda, também,
diferenças relacionadas às origens e à distribuição espacial desses dois tipos.

As “feiras regionais” seriam aquelas marcadas pela presença de feirantes e fregueses de


áreas que extrapolam o povoamento rural ou núcleo urbano no qual elas se realizam,
sendo exemplos as feiras de Campina Grande (PB), de Caruaru (PE) e a de Feira de
Santana (BA). Como tais exemplos denotam, a feira regional é típica do Nordeste
brasileiro e sua origem está ligada, principalmente, à expansão da criação de gado nos
séculos XVIII e XIX, precedendo a formação de núcleos urbanos complexos, estando na
origem de muitas cidades2. Conforme aponta Ab’Sáber (2003, p. 93), cidades do interior
nordestino como Campina Grande (PB), Mossoró (RN), Crato (CE,) Sobral (CE), Feira

1
Além dos casos estudados nesta tese, poderíamos citar o “Feirão da Casa Própria”, organizado pela Caixa
Econômica Federal, como exemplo de uso do termo “feira” para referir-se a uma atividade comercial
periódica. No entanto, cabe citar que o termo muitas vezes é utilizado para referir-se a atividades comerciais
de ocorrência diária e permanente, como é o caso das Feiras de Livros e Feiras de Artesanato. Nesse caso,
o termo feira faz referência à morfologia desses lugares, geralmente compostos por barracas organizadas
em pares de fileiras e um corredor central por onde circulam os fregueses.
2
Ver Weber (1979), trabalho no qual o autor menciona a relação entre o estabelecimento de feiras e o
surgimento de cidades.
10

de Santana (BA), Caruaru (PE) e Garanhuns (PE) cresceram pela importância do


comércio e movimentação de suas feiras, abastecidas pelas áreas de brejo. A cidade de
Feira de Santana, na Bahia, também surgiu como ponto de encontro e aglomeração de
tropas de viajantes que traziam o gado do sertão para ser comercializado ali. Sobral, no
Ceará, é outro exemplo de cidade nordestina que teve origem na feira de gado.
(GONÇALVES e HOLANDA, 2017, p. 72-73).

A associação entre a feira e o Nordeste é notória e traduz-se na forma como parte da


literatura interessada nessas feiras referiu-se a elas, tratando “feiras nordestinas” como
sinônimo de “feiras regionais” (DANTAS, 2008; GONÇALVES e HOLANDA, 2017).
No entanto, Andrade (1974), observa que, a despeito das “feiras regionais” comumente
serem associadas ao Nordeste, a região abriga, também, feiras de diferentes magnitudes.

Espalhadas pelos bairros das grandes cidades, pelos centros regionais ou ainda nas
pequenas cidades, as feiras na região Nordeste podem ser classificadas como local ou
regional dependendo da sua importância e da área de atuação. Dentre as de caráter
regional destacam-se as de Caruaru, Campina Grande e Feira de Santana, que, por serem
grandes, “para elas convergem toda a produção de grandes áreas, sendo daí escoadas para
as áreas de maior concentração e para os principais portos” (ANDRADE apud DANTAS,
2008, p. 96).

As “feiras locais”, citadas por Manuel Correia de Andrade, são popularmente conhecidas
no Brasil como “feiras livres”. Diferentemente das feiras regionais, essas não estão tão
associadas à região Nordeste e podem ser encontradas em cidades de todo o país. As
“feiras livres” caracterizam-se pela sua periodicidade semanal e escala reduzida, de
caráter intra-urbano, geralmente atendendo apenas à demanda dos moradores de um
bairro – características semelhantes às dos mercados medievais citados por Rau (1980).

Por esse motivo, sua origem está associada a uma demanda por abastecimento de produtos
básicos, de uso cotidiano e, principalmente, alimentícios, que emerge conforme uma
cidade cresce e seu sistema de abastecimento torna-se mais complexo. Nesse sentido,
como bem ilustram os exemplos de Rio de Janeiro e São Paulo, a municipalidade teve
papel fundamental na formalização desse tipo de comércio.

No caso de São Paulo, aponta Sato (2012, p. 41),


11

a oficialização da feira livre dá-se em 1914, quando o prefeito Washington Luiz


P. de Souza sanciona ato de sua criação, à época, denominada “mercados
francos”. Essa regulamentação permitiu que as feiras livres se instalassem em
qualquer ponto da cidade e visava proteger esse tipo de comércio da atividade
dos inúmeros vendedores ambulantes e de outros comerciantes.

A formação das primeiras feiras do Rio é descrita por Mascarenhas (2008), inserida no
contexto de modernização da cidade empreendida por Pereira Passos. Para o autor, a feira
livre carioca foi concebida, nesse contexto, como um “ornamento dedicado à pedagogia
da civilização nos trópicos” com um “formato carregado do sentido de organização,
beleza e asseio” adequada a nova cidade remodelada pelo prefeito (MASCARENHAS,
2008, p. 34). É nesse contexto, inclusive, que vai se institucionalizar o termo “feira livre”,
ainda que de forma bastante imprecisa:

Uma outra forma de comércio estimulada, aliás, concebida, pela moderna


administração da cidade foi a feira-livre, criada em 13/10/1904. O texto do
decreto 997 se refere a "feiras ou mercados livres", sem, no entanto, explicar a
adoção do adjetivo livre, que posteriormente se incorporou em definitivo ao
nome (feira-livre) gerando uma denominação intraduzível para outros idiomas.
Assim esta denominação é adotada em todo o Brasil para designar as feiras
semanais de caráter intra-urbano (de âmbito praticamente restrito ao bairro),
diferentes daquelas tradicionais que reúnem compradores e vendedores oriundos
de áreas distantes, muito comum no Nordeste, e que preferimos denominar feiras
regionais.

Essa distinção entre feira livre/local e feira regional, no entanto, não deve ser encarada de
forma tão rígida, já que muitas das feiras conhecidas mobilizam atividades em múltiplas
escalas. Uma feira urbana que atende apenas aos consumidores do bairro, pode ser
formada por feirantes residentes na região metropolitana da sua cidade e estes, por sua
vez, oferecerem produtos oriundos de diferentes estados, participando de um circuito de
distribuição em escala nacional.

Ainda assim, o termo “feira livre” ajuda a recortar o tipo de feira que nos interessa aqui
nesta pesquisa. Pretendemos investigar as feiras de caráter urbano, que atendem a uma
demanda em grande parte circunscrita aos limites do bairro onde a mesma se instala, de
frequência semanal e cuja oferta é formada, principalmente, por produtos perecíveis e de
consumo cotidiano, como peixes, frangos, ovos, carnes, frutas, verduras e legumes. São
feiras que possuem algum grau de institucionalização, garantindo a elas uma regularidade
no seu ordenamento espacial, na sua periodicidade e no elenco de feirantes que as
12

compõem. As feiras adequadas a este recorte configuram-se como o principal objeto de


interesse desta pesquisa.

Para que possamos apresentar as nossas reflexões sobre o tema, precisamos, antes,
realizar uma revisão bibliográfica mais abrangente, com o objetivo de compreender qual
é o lugar da feira livre na produção acadêmica interessada no estudo das feiras e mercados
periódicos em geral.

1.1.2 – A feira como objeto de estudo

Já em meados da década de 1970, Luiz Roberto Mott afirmava que “a bibliografia


internacional relativa às feiras e mercados, é muito mais vasta e complexa do que se
poderia imaginar à primeira vista” e que, “praticamente, já foram estudados os mercados
rurais de todas as regiões onde eles existem” (MOTT, 1975, p 10-11). A revisão
empreendida pelo autor chegou à estimativa de 600 títulos cujo tema específico eram
feiras e mercados e permitiu que o autor descrevesse algumas das características desse
campo de estudos.

Segundo Mott (1975, p.10-11), três grandes áreas das ciências sociais dominavam, à
época da sua pesquisa, a produção acadêmica sobre feiras e mercados.

Foram os historiadores, afirma o autor, os primeiros a se preocuparem com tal tema. Mott
cita trabalhos da História sobre as feiras da Europa medieval e da antiguidade, das
economias do antigo reino do Daomé e dos impérios da Mesopotâmia, e também sobre a
atividade comercial no México e na América Central antes da conquista (1975, p. 11).

Além dos historiadores, os geógrafos também foram protagonistas no estudo das feiras e
mercados, com a publicação de importantes trabalhos escritos dentro da perspectiva da
geografia da circulação e a respeito do papel desempenhado pela feiras e mercados
periódicos na dinâmica do funcionamento do comércio (MOTT, 1975, p. 11).

Por último, embora mais tardia que a dos demais cientistas sociais, a produção dos
antropólogos ultrapassava em muito a dos anteriores, já na década de 1970. Segundo Mott
(1975, p. 11), o material referente aos mercados africanos, tanto ao norte, como ao sul do
13

Saara, representava uma parcela significativa desses trabalhos. Os mercados da Ásia e da


América Latina também receberam particular atenção e já se dispunha, à época, tanto de
coletâneas de artigos sobre os mercados, feiras e bazares de inúmeros países.

Além de identificar o predomínio de historiadores, geógrafos e antropólogos no estudo


das feiras e mercados, Mott (1975) apontou quais eram as principais tendências temáticas
nesses estudos.

A primeira delas, preferida dos antropólogos, privilegiava a escala da feira e abordava os


aspectos particulares da organização, função e dinâmica da atividade feiral: as práticas
comerciais no mercado, tais como a barganha e troca, a competição, as diversas formas
de crédito, os padrões de troca e as práticas de usura; a organização e divisão do trabalho
na feira, com a presença de intermediários, produtores primários, ajudantes e os próprios
feirantes; e as relações sociais que marcam a vida no mercado periódico (MOTT, 1975,
p. 13).

A segunda linha identificada por Mott privilegiava a escala regional e eram os geógrafos
os preocupados com tal perspectiva, abordando temas como a distribuição espacial dos
mercados, ciclo e circuito de mercados, o comércio inter-regional, rotas de comércio, etc.
O autor aponta a grande atenção dada ao “problema da inter-relação espacial e temporal
das diferentes feiras numa mesma região”, em trabalhos que propunham tipologias que
englobavam “os diferentes tipos de mercados existentes numa mesma região, sempre
relacionando-se o problema da sincronização-periodização com a distribuição espacial”
(MOTT, 1975, p. 13-14).

Partindo dessa revisão, Mott (1975) também concluiu que, até meados da década de 1970,
poucos trabalhos haviam sido publicados a respeito das feiras brasileiras. O autor
contabilizou apenas vinte e duas publicações com esse recorte, número que contrasta
grandemente com a vasta bibliografia a respeito de feiras localizadas em outros países.
Os trabalhos brasileiros, em sua maior parte, eram textos assinados por geógrafos, cujo
enfoque é a descrição dos aspectos organizacionais das mais célebres feiras nordestinas,
como a de Caruaru (PE), a de Campina Grande (PB) e a Feira de Santana (BA).
14

Hoje, temos um outro cenário. No período de quatro décadas que separa a revisão
realizada por Luiz Roberto Mott e o desenvolvimento desta pesquisa, pesquisadores de
áreas muito distintas se interessaram em estudar a feira, ampliando e enriquecendo o
trabalho realizado antes por historiadores, antropólogos e geógrafos. Nosso levantamento
bibliográfico encontrou trabalhos da Arquitetura (CARDOSO, 2011), Economia
(COÊLHO, 2008), Pedagogia (MORAIS, 2016), Nutrição (LOPES, 2014), Planejamento
Urbano (LACERDA, 2010), Psicologia Social (PONTES, 2012), entre outros.

Quando analisamos especificamente a produção dos geógrafos brasileiros3, identificamos


que as feiras e outros tipos de mercados periódicos são estudados por geógrafos há pelo
menos setenta anos, resultando em um total de cinquenta trabalhos, incluindo artigos,
capítulos de livro, dissertações e teses publicadas, principalmente, nas últimas décadas.

A Revista Brasileira de Geografia (RBG) e o Boletim Paulista de Geografia publicaram


os primeiros desses trabalhos já na década de 1940. Strauch (1952), Carvalho (1958) e
uma série de textos publicados nestes periódicos apresentaram colaborações que se
tornaram referências recorrentemente lembradas por trabalhos posteriores. A sessão
“Tipos e Aspectos do Brasil”, da RBG, por exemplo, reservou alguma das suas edições
para pequenos textos sobre diferentes feiras brasileiras (SOUSA, 1946; LEITE 1956;
SANTOS, 1963; LEITE, 1964; CARDOSO, 1967).

Além dos trabalhos mencionados, é importante destacar os nomes de Mott (1975; 1979;
2000), Pazera Jr (2003), Maia (2000; 2006) e Dantas (2008) que constituem-se como
importantes referências no estudo das chamadas feiras regionais, com trabalhos que
aliaram pesquisa empírica e levantamento documental. Um outro trabalho
recorrentemente lembrado é o de Corrêa (2010), que possui o mérito de apresentar uma

3
Não buscamos, aqui, reproduzir um levantamento tão extenso como o realizado por Luiz Roberto Mott.
Nosso interesse principal estava voltado para a Geografia brasileira. O levantamento consistiu na busca de
publicações no Banco de Teses e Dissertações, no Scielo, no Google Acadêmico e no Portal Periódicos
Capes. Utilizou-se também o sistema de alertas do Google Acadêmico durante os anos de 2017 e 2018. Os
periódicos acadêmicos da área de Geografia foram listados e realizou-se uma busca diretamente em cada
um dos portais dessas 61 revistas. As palavras-chave utilizadas em todos esses sistemas de busca foram:
feira, feiras, feira livre, feiras livres, street market, street markets. O levantamento reuniu 61 artigos e
capítulos de livros nacionais e 27 internacionais de diferentes áreas, incluindo a Antropologia, Economia,
Saúde Pública, Comunicação Social, entre outros. Nosso foco estava mais direcionado para a publicação
dos geógrafos brasileiros e levantamos 35 artigos e capítulos de livro sobre as feiras produzidos nessa área.
47 dissertações, teses e livros, sendo, destas, 12 da Geografia. Trabalhos publicados em anais de eventos e
monografias de graduação foram desconsideradas.
15

visão panorâmica sobre os mercados periódicos, resgatando trabalhos clássicos sobre o


tema.

Como é possível notar, mesmo entre os geógrafos, o maior interesse dos pesquisadores
estava voltado para as feiras regionais nordestinas. Mascarenhas (1991, p. 50) frisou,
inclusive, que tais feiras constituíam um fenômeno relativamente bem estudado dentro e
fora da Geografia, enquanto as feiras livres, de caráter mais local e intra-urbano, ainda
careciam de maior atenção dos pesquisadores.

Quando nos voltamos aos trabalhos dedicados às feiras de caráter mais local e urbano,
podemos citar o trabalho de Olmária Guimarães (1969) pelo pioneirismo. Trata-se do
primeiro grande trabalho sobre as feiras livres, em São Paulo, no qual a autora analisa o
papel das feiras no sistema de abastecimento da cidade – abordagem que, segundo Mott
(1975), era a preferencial dos geógrafos que tratavam do tema.

Merece destaque também a dissertação de mestrado do geógrafo Gilmar Mascarenhas


(1991), defendida há quase trinta anos, que tratou do processo de formação,
institucionalização e difusão das feiras cariocas, assunto que o autor retomaria em uma
série de artigos publicados posteriormente (1992; 1997; 2005; 2008). Sua produção sobre
o tema é acompanhada por um crescimento no interesse de geógrafos e outros
pesquisadores sobre as feiras livres.

Dentre esses pesquisadores, Leny Sato talvez seja aquela que mais se dedicou ao estudo
das feiras livres. Publicando artigos sobre o tema há mais de uma década, a autora
conduziu uma longa pesquisa em uma feira da Vila Mariana, bairro da cidade de São
Paulo, realizando uma série de trabalhos de campo fundados na observação direta e em
entrevista, mas valendo-se também da coleta de dados secundários e documentais sobre
a história e os aspectos institucionais da feira livre paulista. O seu livro “Feira Livre:
organização, trabalho e sociedade” (SATO, 2012) é a obra mais completa e aprofundada
que temos sobre o tema no Brasil e é uma das principais referências teóricas desta
pesquisa que conduzimos.

Diferentemente da obra supracitada, que tem o mérito de analisar a feira livre em suas
múltiplas facetas, a maioria dos trabalhos encontrados tematiza a feira de forma mais
16

recortada, enfocando em algum aspecto específico. No entanto, alguns desses aspectos


são recorrentemente lembrados e parecem ser parte fundamental do que caracteriza uma
feira. As múltiplas temporalidades que atravessam a feira, o seu papel como lugar do
encontro social e as especificidades do comércio e do trabalho nesse espaço peculiar das
cidades são três desses aspectos que gostaríamos de desenvolver em maior detalhe aqui.

1.2 – Aspectos fundamentais da feira

1.2.1 – A questão do tempo: periodicidade, permanência e organização do trabalho

O tempo é uma variável fundamental na compreensão da feira e está no cerne das questões
que diferentes autores levantaram sobre esse espaço comercial. Como atesta Corrêa
(2010), a periodicidade das feiras é uma das principais questões relativas à sua dimensão
temporal, tendo sido discutida por autores dedicados à investigação de feiras originadas
em diferentes contextos histórico-geográficos.

O estudo de George William Skinner é um bom exemplo. Tendo como referência os


mercados chineses da região de Szechwan, estudados por ele no período de 1949 a 1950,
o autor busca explicar as razões para a existência de mercados periódicos tanto do ponto
de vista do comerciante itinerante, quanto da demanda. Sobre o comerciante, diz que:

(...) a periodicidade na venda tem a virtude de concentrar a demanda de seu


produto em determinadas localidades e dias específicos. Quando um grupo de
mercados opera com uma programação periódica (e não diariamente), o
itinerante pode estar em cada cidade do circuito em seu dia de mercado (1964,
p.10 apud CORRÊA, 2010, p. 52-53).

Do lado da demanda, o caráter de subsistência da economia camponesa implicaria em não


haver necessidade de relações diárias com o mercado e ser muito grande o número
necessário de famílias para justificar um dado mercado. Além disso, para o consumidor
“(...) a periodicidade do mercado aparece como um artifício para reduzir a distância que
ele deve viajar para obter os bens e serviços requeridos” (1964, p.10 apud CORRÊA,
2010, p. 53).

Stine (1962) é outro autor que também buscou refletir sobre a periodicidade dos
mercados, tendo como base a teoria das localidades centrais de Christaller e dois dos seus
conceitos fundantes: alcance espacial máximo (range ou maximum range) alcance
17

espacial mínimo (threshold ou minimum range). Como nos lembra Corrêa (2010, p. 57-
58):

O alcance espacial máximo é a área determinada por um raio a partir de uma


dada localidade central. Dentro dessa área os consumidores efetivamente
deslocam-se para a localidade central, visando à obtenção de bens e serviços.
Para além dela, deslocam-se para outros centros que lhes estão mais próximos,
implicando, assim, em melhores custos de transporte ou em menor tempo gasto.
O alcance espacial mínimo, por outro lado, define a área em torno de uma
localidade central, que engloba o mínimo de consumidores suficientes, para que
um dado comerciante nela se instale. O alcance espacial máximo e o mínimo
variam de acordo com os diferentes bens e serviços.

Levando esses termos em consideração, podemos inferir que parte do número de


consumidores necessários para a instalação de comerciantes, em uma localidade central,
encontra-se em uma área além daquela de onde é possível deslocar-se para a localidade
central. Nesta situação, a única possibilidade que resta aos comerciantes é a de se
tornarem móveis, deslocando-se em grupos, de centro para centro. Deste modo justificam
a própria existência ao atender a uma clientela dispersa, mas próxima dos pequenos
centros. Assim, em determinados dias cada pequeno centro transforma-se em mercado,
reunindo comerciantes e consumidores (CORRÊA, 2010, p. 59).

As razões econômicas, no entanto, não são suficientes para explicar o fato de alguns
mercados ocorrerem apenas periodicamente e não de forma permanente. Para Bromley,
Symanski e Good (1975) é necessário considerar também o contexto social, o
desenvolvimento histórico e os processos culturais para que se compreenda a origem e a
permanência da periodicidade em certos mercados.

Para ilustrar a crítica apresentada pelos autores, podemos lembrar que na Europa
medieval “as romarias, peregrinações e todas as festividades religiosas atraíam peregrinos
vindos de longe, e como o peregrino era também muitas vezes um mercador, essas
reuniões estavam destinadas a transformar-se em centros de troca” (RAU, 1983, p. 33), o
que ilustra a importância da fator religioso-cultural para a o surgimento e manutenção de
determinadas feiras.

E mesmo que dispensemos o fator religioso para explicar a periodicidade de certos


mercados, cabe lembrar, também, que:
18

(...) os agrupamentos de mercado periódico estão relacionados aos conceitos


sócio-culturais de tempo, à duração da semana ou mês estabelecidos, e à
existência de dias separados para descanso, cerimônias religiosas ou reuniões
públicas e festividades. Nas Américas a semana aceita é de 7 dias. Na África a
semana de mercado indígena varia de 2 a 8 dias, e na China pode ser de 10 ou
12 dias (BROMLEY et al, 1980, p. 185).

Uma outra explicação, esta mais restrita a apenas a alguns casos específicos, para o fato
de um mercado apresentar-se apenas periodicamente e não de forma permanente, residiria
em aspectos externos que impõem a ele uma certa sazonalidade. Tais aspectos podem
estar relacionados ao clima, como ilustra Braudel:

Todos os invernos, em Moscou, quando o Moskova gela, instalam-se sobre o


gelo lojas, barracas, bancas. É a época do ano em que, com a facilidade dos
transportes em trenó pela neve e o congelamento ao a livre das carnes e dos
animais abatidos, há nos mercados, na véspera do Natal e no dia seguinte, um
aumento regular das trocas (BRAUDEL, 1998, p.18).

Outra questão fundamental é a ordem natural dos períodos de safra e entressafra. Como
menciona Corrêa (2010, p. 64),

Esta dimensão sazonal da periodicidade aparece nas proposições de Funnel sobre


o sistema de localidades centrais, em áreas rurais de baixo nível de renda: os
produtores dispõem de dinheiro em espécie apenas na época da safra e os
comerciantes não têm condições de possuírem amplos estoques de produtos. A
sazonalidade marca muito a demanda e a oferta de produtos consumidos pela
população. Durante o período de safra verifica-se o aumento efetivo da demanda,
implicando isto na redução do alcance espacial mínimo e no aparecimento de
lojas sazonais. (...) de fato, durante a safra, um número menor de pessoas é
suficiente apara se justificar o aparecimento de lojas sazonais. Localizam-se elas
nos espaços intersticiais, entre as lojas permanentes, e pertencem a comerciantes
de tempo parcial, que se dedicam, também, às atividades primárias.

Uma outra faceta da dimensão temporal das feiras está relacionada ao fato de, mesmo
após séculos de existência e do estabelecimento de tantas outras formas de mercados fixos
em diversas cidades do mundo, ainda existirem mercados periódicos e feiras de diferentes
tipos.

Strauch (1952) já se colocava essa questão, pensando sobre as feiras de gado no Nordeste
brasileiro. Para o autor, a permanência das feiras ainda no seu tempo era resultado da
combinação de dois fatores principais. O primeiro, para o qual o autor oferece poucos
argumentos, seria um certo apego do “homem nordestino” às suas tradições, o que
justificaria a manutenção da feira em seus moldes originais ao longo dos anos. O outro,
19

este mais bem defendido, residiria em uma condição geográfica, na medida que as
maiores feiras encontrar-se-iam no contato do sertão com a zona da mata e do litoral.

Feira de Santana, a 146 quilômetros de Salvador, no limite do Recôncavo com


os tabuleiros semiáridos; Arcoverde a 270 quilômetros de Recife, "Porta de Vai
e Vem dos Sertões", também no início da área sertaneja. Lembramos ainda
Campina Grande na Paraíba, limite do brejo com o sertão. As feiras de gado no
Nordeste brasileiro, forma de comércio tradicional, são ainda uma exigência das
condições da pecuária naquela região, sobretudo no sertão. Sendo a criação de
gado predominantemente extensiva, feita na caatinga, há necessidade de um
ponto de convergência. Torna-se então muito importante a situação geográfica
destes pontos de convergência que devem interessar tanto ao sertão, área
produtora, como também ao litoral e à mata, zonas de consumo (STRAUCH,
1952, p. 101).

Braudel (1998, p. 15) também discutiu o assunto e defendeu que a permanência das feiras
ainda no século XX estaria relacionado à sua “simplicidade robusta” e ao “frescor dos
gêneros perecíveis que fornece, trazidos diretamente das hortas e dos campos das
cercanias”, oferecidos a preços baixos, sem intermediários, sendo ela “a forma mais
direta, mais transparente da troca, a mais bem vigiada, protegida contra embuste”.

As discussões empreendidas tanto por Strauch (1952) quanto por Braudel (1998) são
relevantes, mas baseadas em contextos marcados pela produção rural, distante da
realidade urbana com que nos deparamos nesta pesquisa. Da mesma forma, as explicações
oferecidas por Skinner e Stine para a existência da periodicidade dos mercados não pode
ser transposta para a nossa investigação de maneira acrítica. Neste caso, cabe perguntar:
o que justifica a permanência dos mercados periódicos em cidades como Rio de Janeiro
e São Paulo, cidades onde a oferta de bens de uso cotidiano é encontrada em diversos
estabelecimentos fixos de comércio, como os supermercados?

Mascarenhas (1992) nos ajuda a responder esta pergunta, oferecendo uma série de
“elementos de persistência” da feira livre. Curiosamente, alguns dos elementos elencados
pelo geógrafo convergem com aqueles apresentados pelos autores supracitados.

Dentre esses elementos encontra-se, primeiramente, as vantagens oferecidas pela própria


periodicidade desses mercados, na medida que ela viabiliza a presença de feiras mesmo
em locais onde é muito fraca a demanda de consumo, concentrando em um único dia da
semana toda a demanda local, torna-se viável a aglomeração periódica de mercadores (p.
20

113), argumento semelhante àqueles apresentados por Skinner e Stine para explicar a
origem do caráter periódico das feiras na China e na Coreia do Sul por eles estudadas.

Soma-se a este fator a qualidade do serviço prestado, aspecto mencionado por Braudel,
mas, neste caso, apresentado em comparação aos modernos supermercados.

Em função de sua natureza de atuação em grande escala, aos supermercados


muitas vezes é inviável padronizar determinados produtos, oferecer o sortimento
desejado ou aquele produto fresco (principalmente em pescado e olericultura), o
que é quase uma exclusividade da feira livre. (...) Não existe o cuidado em
manusear adequadamente o produto perecível, daí a preferência por enlatados e
empacotados, produtos resistentes à manipulação constante e agressiva.
Também não existe no supermercado o tratamento cordial e personalizado da
feira livre, por que nesta o freguês fala diretamente com o dono, o maior
interessado em executar bem o serviço (MASCARENHAS, 1992, p. 113).

Outros fatores importantes, como as particularidades socioculturais do comércio na feira


livre e a sua articulação com os circuitos inferior e superior da economia urbana, são
mencionados por Mascarenhas (1992) para explicar a “resistência” das feiras livres frente
à concorrência com os supermercados. Ambos fatores serão melhor analisados nos
próximos subtópicos referentes aos aspectos fundamentais da feira livre.

Há, ainda, um último fator ligado à dimensão temporal da feira livre que gostaríamos de
tratar aqui: o modo como cada feirante organiza o seu trabalho em diferentes escalas
temporais.

Dentre os autores que buscaram discutir as relações existentes entre tempo, comércio e
trabalho ao longo de um dia de feira destaca-se, mais uma vez, o trabalho produzido por
Leny Sato (2012). Nas palavras da pesquisadora, o planejamento das atividades de
trabalho dos feirantes tem que considerar a matriz temporal composta por uma dimensão
longitudinal (a sucessão dos acontecimentos numa semana) e por uma transversal (a
sucessão de acontecimentos num dia) (SATO, 2012, p. 184).

Explica a autora que, ao se observar um dia típico de feira, identifica-se uma série de
etapas que compõem o processo de trabalho: compra e transporte de mercadoria,
preparação de mercadorias, montagem de banca, exposição das mercadorias, montagem
da banca, exposição das mercadorias, comercialização de mercadorias, desmontagem da
21

banca. Essas diversas etapas são assim categorizadas pelos próprios feirantes e são
exemplificados no quadro abaixo, elaborado por (SATO, 2012, p. 180-181).

Tabela 01 – Agenda de atividades de trabalho de um dia típico de três feirantes que


tenham uma banca

Feirante 1 (Peixeiro) Feirante 2 (Verdureiro) Feirante 3 (Oveiro)

Compras para feira 1 (Ceasa) Deslocamento para feira 1 Deslocamento para feira 1

Deslocamento para feira 1 Montagem da banca Montagem da banca

Montagem da banca Exposição da mercadoria Exposição da mercadoria

Exposição da mercadoria Comercialização Comercialização

Comercialização Desmontagem da banca Desmontagem da banca

Deslocamento para comércio


Desmontagem da banca Deslocamento para residência
atacadista

Entrega em domicílio Compras para feira 2 (chácaras) Recebimento de mercadorias

Deslocamento para residência Deslocamento para residência

- Preparação da mercadoria -

Elaborado por Sato (2012)

Do mesmo modo, cada um dos dias de trabalho e cada uma das feiras são pensadas em
sua posição relativa nos acontecimentos da ida de cada feirante em um ciclo semanal.
Cada dia da semana comporta sua singularidade que exige atenção dedicada, em função
da especificidade daquele dia ou daquela feira. (SATO, 2012, p. 185). O quadro abaixo
exemplifica a agenda semanal de atividades de trabalho de um feirante.
22

Tabela 02 - Agenda semanal de atividades de trabalho de um feirante

Segunda Terça Quarta Quinta Sexta Sábado Domingo

Deslocamento para a Deslocamento para a Deslocamento para a Deslocamento para a


- -
feira 1 feira 2 feira 3 feira 4

- Montagem da banca Montagem da banca Montagem da banca - Montagem da banca Deslocamento para a feira 5

Exposição da Exposição da Exposição da Exposição da


- - Montagem da banca
mercadoria mercadoria mercadoria mercadoria

- Comercialização Comercialização Comercialização Não há feira Comercialização Exposição da mercadoria

Desmontagem da
- Desmontagem da banca Desmontagem da banca Desmontagem da banca - Comercialização
banca

Deslocamento –
- Deslocamento Deslocamento - Deslocamento Desmontagem da banca
atacadista

Compras de Compras de
Compras Compras de mercadoria Compras de mercadoria - Deslocamento – residência
mercadoria mercadoria

Deslocamento – Preparação da Preparação da


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residência mercadoria mercadoria

Preparação da
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mercadoria
Elaborado por Sato (2012)
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Os exemplos apresentados por Sato são baseados nas entrevistas que a pesquisadora
realizou na Feira da Caixa d’água, em São Paulo, mas as conclusões que ela apresenta
podem ser universalizadas e vão nos servir também para pensar as feiras que por nós
investigadas.

Nas reflexões de Sato (2012, p.192) fica claro que o trabalho do feirante é norteado por
diversos sensos de tempo: o tempo do relógio, objetivamente mensurado; o tempo social,
que inclui tanto o horário de funcionamento da feira, quanto aquele relativo à rotina do
trabalho que vai se constituindo e consolidando a partir das relações com outros feirantes
e com a freguesia; e o tempo da natureza, que remete tanto à perecibilidade das
mercadorias in natura, quanto ao ritmo cicardiano que marca os períodos de sono e vigília
etc.).

“Organizar o trabalho é criar combinações desses diversos sensos de tempo, construindo


ligações entre as diversas atividades que compõem o processo de trabalho que desrespeita
especialismos” afirma Sato (2012, p. 193). Dentre tantas dimensões temporais com as
quais o feirante precisa lidar, merece destaque o tempo orientado pelas atividades que
compõem o processo de trabalho: montar a banca, preparar a mercadoria, abordar os
clientes, fazer os anúncios, barganhar. Como veremos, esta é uma dimensão fundamental
na compreensão da dinâmica da feira livre. Para tanto, precisamos, também, entender as
especificidades do trabalho neste espaço comercial.

1.2.2 – As particularidades do trabalho e do comércio na feira

A leitura de artigos, livros, teses e relatos de outras naturezas sobre feiras de diferentes
lugares do mundo torna evidente a existência de um conjunto de particularidades que as
diferenciam dos outros espaços comerciais. Ainda que os produtos ofertados e os
fregueses que as frequentem circulem também por supermercados, mercados públicos e
hortifrútis, há um modo de fazer a feira, ou seja, um conjunto de práticas endêmicas que
distinguem o trabalho e o comércio na feira de qualquer outro conhecido.

Para Sato (2007, p. 97), a instalação da feira “autoriza a criação de um espaço no qual a
brincadeira, o chiste e as regras de civilidade podem conviver publicamente com as
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intenções da metrópole”. Para a autora, as suas relações sociais guardariam duas


principais feições: “mesclar relações de trabalho com as familiares, de vizinhança e de
amizade; acionar suas rotinas valendo-se de regras tácitas e operar por meio de relações
de cooperação e de competição” (SATO, 2007, p. 95).

Sobre a questão das relações familiares e de trabalho, Ortigoza observou, nas feiras que
conheceu na Coreia do Sul, que os vendedores geralmente são os próprios produtores
rurais e os membros da sua família, fazendo da feira um comércio “baseado em relações
familiares, com grande peso das práticas rurais, sem nenhuma especialização”
(ORTIGOZA, 2010, p. 170).

No Brasil, também encontramos diversos relatos sobre a permeabilidade das relações de


trabalho e de família na feira. Tal fato pode ser identificado tanto em feiras de pequenos
municípios, onde é mais comum a presença de feirantes que, junto da família, sincronizam
as funções de venda com as do próprio cultivo dos produtos ofertados, quanto em feiras
de grandes metrópoles, nas quais o feirante realiza o ciclo semanal por diferentes feiras,
dedicando-se quase que exclusivamente ao comércio, mas também conta com a ajuda de
familiares no seu trabalho.

Silva (2018, p. 29) nos apresenta um relato ilustrativo sobre o tema, oferecido por um dos
feirantes que o autor entrevistou. Na ocasião, o pesquisador perguntou ao vendedor por
que as mulheres ficavam ao fundo da banca, preparando os alimentos, enquanto os
homens se postavam à frente, cuidando das vendas.

“Ah, isso é uma coisa de geração para geração, meu pai me ensinou assim e é
assim que as coisas continuam indo. Eu sou o dono da barraca, então sou eu que
tenho que fazer a venda e arrumar todo o trabalho. Meu filho me ajuda nisso para
aprender como são as coisas e continuar tocando o negócio quando eu parar.
Minha mulher e minha cunhada têm mais jeito com a limpeza das frutas, mas
mulher não tem o jeito para vender as coisas na feira, então elas ficam atrás só
cuidando da arrumação mesmo”.

Para além das divisões de gênero observadas e discutidas por Silva (2018) em seu artigo,
o relato destacado aponta também para uma outra particularidade da feira livre: as
relações familiares e de trabalho combinam-se a um processo pedagógico, no qual os
feirantes mais jovens, pouco a pouco, vão compreendendo o ritmo, as práticos e as regras
tácitas da feira. Montar a banca, preparar as mercadorias, distribuí-las pelo tabuleiro,
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abordar os fregueses, realizar os anúncios, negociar o preço e todas atividades necessárias


para a produção da feira são práticas que se aprende na observação e sob a orientação dos
mais velhos, sejam eles seus parentes, sejam eles seus empregadores informais.

Saber como e em que momento anunciar as suas mercadorias também é um aprendizado.


Juca, um dos feirantes entrevistados por Sato, nos conta que:

quando começou a trabalhar na feira livre, ao ensaiar seus primeiros gritos,


achava que todos os observavam; para ele, apenas o seu grito era ouvido, em
meio a tantos. Sentia-se, por isso, intimidado. Há os que gritam baixo, ora
desanimados, tímidos ou de modo desajeitado. Para gritar tem que ter um
ambiente social que acolha e que estimule (SATO, 2012, p. 118).

Dessa maneira, um modo típico de conduzir as feiras é construído a partir de técnicas


adquiridas hereditária e tacitamente, combinadas e difundidas através de diferentes
gerações de feirantes. Com o tempo, adaptações e soluções materiais encontradas no
improviso, tornam-se a forma usual de se realizar uma tarefa – o saco furado e cheio
d’água, utilizado para molhar as folhas, é um bom exemplo. Da mesma forma, a
manutenção dos pregões e anúncios em feiras de diferentes tempos e lugares ilustra como
as estratégias mais eficientes de compra e venda também são aprendidas e ensinadas em
cada uma delas.

Por este motivo, para Leite (1956), uma das características fundamentais da feira é o
autodidatismo dos seus empreendedores. E, para Lucena e Germano:

Os feirantes são exímios comerciantes errantes – usam o grito e os peculiares


gestuais para fazer-se vitrine, recepção, colaboração, mas também, por meio de
um “espírito de independência criativa” – aquela “capaz de remodelar a visão do
mundo ao qual pertence” – faz-se educador, aquele que improvisa soluções
pontuais; que trata informações preliminares e as transforma em conhecimento
pertinente, aquele dotado de sentido em relação ao meio (LUCENA;
GERMANO, 2017, p. 208).

Um dos exemplos mais explícitos dessas relações de trabalho e aprendizagem na feira é


oferecido por Shirley Almeida (2009) que, na sua investigação de mestrado, realizada em
uma feira na cidade de Montes Claros (MG), constatou que crianças e adolescentes
feirantes, desenvolveram estratégias pessoais para a resolução de situações-problema,
através de mecanismos não-formais – como o cálculo mental, os arredondamentos, as
estimativas – tudo isso sem o auxílio de máquinas de calcular ou sem recorrer a cálculos
escritos (p. 50).
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Quando indagamos sobre como são feitos os cálculos das receitas, dos gastos e
lucros com a Feira, a fim de verificar a existência e utilização de estratégias
matemáticas em problemas cotidianos, os feirantes responderam que não
calculam com precisão seus gastos e lucros, mas que o que ganham é suficiente
para as despesas domésticas e para investimentos na compra de sementes,
mudas, conserto de cercas. Dona Silça, uma feirante que vem de Monte Azul
para comercializar seus produtos corrobora nossa pesquisa ao afirmar: “Não
calculo. Sei que não ganho muito mas dá pra viver”. (ALMEIDA, 2009, p. 97-
98).

Para a autora, as respostas emitidas pelos feirantes evidenciam a utilização não


convencional dos conhecimentos matemáticos e a existência de estratégias pessoais de
cálculo (ALMEIDA, 2009, p. 99). Tal quadro configuraria, portanto, uma prática
etnomatemática, ou seja, uma “[...] arte ou técnica de explicar, de entender, de se
desempenhar na realidade (matema), dentro de um contexto cultural próprio (etno)”
(D’AMBROSIO, 2005, p. 9).

Estudando por mais de dez anos uma zona comercial, formada por um mercado fixo e
uma feira periódica, localizada na cidade de Sefrou, no Marrocos, durante as décadas de
1960 e 1970, Clifford Geertz também identificou um conjunto de características que são
observáveis nas feiras brasileiras e em tantas outras ao redor do mundo. Gostaríamos de
destacar duas aqui: as práticas de fidelização e a barganha.

Explica o autor que a fidelização é uma tendência marcante em Sefrou, na qual


compradores frequentes de determinados bens e serviços estabelecem relacionamentos
contínuos com determinados fornecedores, em vez de procurar amplamente pelo mercado
em cada ocasião de necessidade. No caso estudado pelo autor, existiria:

(...) um alto grau de localização espacial e especialização "étnica" do comércio


no bazar, o que simplifica o processo de encontrar clientes consideravelmente e
estabiliza suas realizações. Se alguém quer um kaftan ou um pacote de mulas,
sabe onde, como e para que tipo de pessoa procurar. E, como os indivíduos não
se movem facilmente de uma linha de trabalho ou de um lugar para outro, depois
de encontrar um bazar em particular em quem você tem fé e que tem fé em você,
ele ficará lá por um tempo (GEERTZ, 1978, p. 31).

Há, portanto, uma relação evidente entre o estabelecimento de uma localização fixa e a
fidelização dos clientes. Saber onde está o seu feirante de preferência facilita a busca
pelos produtos e orienta o seu roteiro em uma feira. Os clientes fidelizados, fregueses no
sentido literal, são reconhecidos em qualquer feira e:
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participam da vida comum de maneira peculiar, contribuindo para a


intensificação das trocas, da circulação e, igualmente, da instituição do crédito.
Eles tendem a permanecer mais tempo no espaço e a trocar informações, dialogar
com mais vagar e, eventualmente, trocar conteúdos afetivos, como carinhos e
palavras de conforto, incentivo e, também de jocosidade (CASTRO e CASTRO,
2016, p. 103).

A relação de freguesia é, portanto, também atravessada pela “pessoalidade nas relações


entre feirante e consumidor, que adentra pelo lado afetivo e chega a estabelecer laços de
prolongada amizade e fidelidade mútua” (MASCARENHAS, 1992, p. 114). E é no bojo
dessas relações que outra prática econômica universalmente conhecida por feirantes e
fregueses se estabelece: a barganha. Ou, como se diz no Brasil, a pechincha.

“A pechincha é uma prática que, mais do que a proximidade pessoal entre feirantes e
fregueses, revela o lado participativo do ato de comprar na feira” afirma Mascarenhas
(1992, p. 114). Durante a negociação, o preço é ajustado segundo fatores como aparência
dos produtos, a época do mês, a oferta de outras bancas, a quantidade desejada, a compra
de outros produtos, a fidelidade do freguês, a generosidade do vendedor e o que mais
puder servir como argumento no momento da barganha. Do mesmo modo, a quantidade
e/ou qualidade podem ser manipuladas, diferentes arranjos de compras podem ser
propostos, enquanto o preço em dinheiro é mantido constante (GEERTZ, 1978, p.31).

À fidelização e à barganha, identificadas por Geertz no bazar marroquino e por diferentes


autores (citar) nas feiras brasileiras, gostaríamos de mencionar um último aspecto que
consideramos marcante no comércio estabelecido nestes espaços: o anúncio oral e o
pregão. Como veremos no próximo capítulo, desde as feiras medievais europeias,
passando pelas feiras chinesas e pelas do nordeste brasileiro, até as feiras urbanas
contemporâneas, a prática de utilizar cânticos, bordões, chamamentos e tantos outros
tipos de abordagem publicitária parece ser amplamente difundida nos mercados
periódicos conhecidos. E, em tantos desses lugares, é através desses gritos que se realiza
o pregão, tornando pública a gradativa redução dos preços, à medida que se aproxima o
final da feira, medida necessária para quem vende produtos perecíveis e precisa fazer o
estoque rodar.
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Em suma, a informalidade nas relações de trabalho, o trato direto e personalizado com a


clientela, a intensa reutilização e refuncionalização de bens e materiais, os preços
negociáveis, a mobilidade, flexibilidade e fácil adaptação a novas situações são algumas
das particularidades que, combinadas, fazem da feira uma forma singular do comércio,
distinguindo-se de tantas outras por aspectos que vão muito além da sua periodicidade.
Junto a essas características, típica de uma atividade econômica associada ao que Santos
(2004 [1979]) chamou de “circuito inferior da economia”, há ainda uma outra, que
também singulariza a feira e merece a nossa atenção especial: o fato da feira configurar-
se também como um lugar privilegiado para o encontro social e a sociabilidade.

1.2.3 – A feira como espaço do encontro social

Uma particularidade da feira livre é o seu potencial como mobilizador do encontro e das
interações sociais. Como descreve Cardoso (1967), “a feira se constitui ainda em
acontecimento social, pois muitos só se encontram por ocasião de sua realização, e não
raro se reúnem em pequenos grupos de conversa prolongada, colocando em dia assuntos
interrompidos em feiras anteriores” (113).

A centralidade que as feiras assumem em uma cidade ou em uma região e o fato de


acontecerem de forma periódica, faz com que os seus frequentadores se encontrem,
também, com certa estabilidade. Além de importante centro da economia urbana, as feiras
assumem, assim, papel importante também na vida política e cultural da cidade.

É nela que as pessoas se encontram, conversam, se insultam, passam das


ameaças às vias de fato, é nela que nascem alguns incidentes, depois processos
reveladores de cumplicidades, é nela que ocorrem as pouco frequentes
intervenções da ronda, espetaculares, é certo, mas também prudentes, é nela que
circulam as novidades políticas e as outras (BRAUDEL, 1998, p.16).

“Frequentada em dias fixos, a feira é um centro natural da vida social” sugere Braudel
(1996, p.16). Ela participa da vida comunitária de populações locais de forma mais
complexa do que unicamente através das relações de produção, compra e venda nelas
encontradas. Dessa forma, sua função social e comunitária vai além de suas funções
econômicas, o que significa dizer que ali as transações econômicas estão correlacionadas
a diversos outros fatores e arranjos socioculturais. Historicamente, mercados e feiras
adquiriram uma importância muito grande que ultrapassa seu papel comercial,
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transformando-se, em muitas sociedades, num entreposto de trocas culturais e de


aprendizado, onde pessoas de várias localidades congregavam-se estabelecendo laços de
sociabilidade (ARAÚJO e BARBOSA, 2004 apud SERVILHA e DOULA, 2009, p.124).

Virgíni Rau (1983) observa o mesmo nas feiras europeias, em especial as portuguesas, da
Idade Média, período anterior ao estudado por Braudel. “Numa época em que quase toda
a população da Europa vivia curvada sobre a terra, o instinto de sociabilidade, inerente a
todo homem, deve ter encontrado nessas reuniões a única oportunidade de se expandir”,
especula a autora (RAU, 1983, p, 53).

Centros da economia urbana e nós de uma rede de comércio regional, as feiras eram
também locais privilegiados para a circulação de informação. Era nas feiras que se
obtinham notícias do que se passava pelo “mundo”, do resultado das colheitas das regiões
circunvizinhas e, ainda nas palavras da autora, “de tantos outros assuntos que, então como
hoje, são a base do cavaquear do povo” (RAU, 1983, p. 53).

Era nelas que o comerciante vindo de longe contava as histórias maravilhosas


ou terrificantes das suas aventuras em países longínquos, o que vira e ouvira
pelas sete partidas do mundo. (...) Com os seus fardos de mercadorias, ele
transportava também os cantares da sua terra, o inesgotável manancial da poesia
popular, as suas preocupações, as suas misérias e as suas astúcias. Quantas
narrações, quantos nomes aprendidos em países exóticos, quantos temas
heroicos e quantas heresias não foram arrastados pelos mercadores ao longo das
regiões que atravessavam e disseminados pelas feiras que frequentavam (RAU,
1983, p. 53-54).

Pazera Jr. (2003), tratando de uma feira no município de Itabaiana (PB), observa o
mesmo. Diz ele que a feira livre “é o lócus escolhido para os mais variados atos da vida
social mantendo assim um sentido de permanência”. Segundo o autor, “é nela que se
sabem as últimas notícias e boatos, são feitos os anúncios de utilidade pública, onde são
realizadas as manifestações populares em épocas de campanha eleitoral, como os
comícios” (p. 18). Este relato está alinhado ao relato de Santos (1963) a respeito das feiras
nordestinas:

Durante a realização da feira muitas atividades se desenvolvem, aumentando a


frequência nos bares, formando-se os aglomerados de curiosos a ouvir o
cancioneiro regional, entoado pela voz monótona do cantador, ou a ouvir a
declamação enfadonha das estórias que narram episódios verídicos ou
fantásticos, numa linguagem singela e rude, que fazem o encanto da imaginativa
sertaneja. Terminado o canto ao som da viola, ou a recitação, passam à venda
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dos folhetos. Também aparecem as pitorescas barracas dos barbeiros de praça


pública. E no vaivém da multidão, que se move através da feira, sucedem-se os
encontros e as conversas entre conhecidos, alguns de primeira (p. 276).

Figura 1 – A “feira do Nordeste” e o encontro social (SANTOS, 1963).

Também para Corrêa (2010, p. 50) os dias de feira são aqueles em que as pessoas se
encontram, sabem das novidades e realizam eventos sociais, culturais e políticos.
Compreende-se, nesta ótica, que sua função social e comunitária vai além de suas funções
econômicas de escoamento da produção agrícola, artesanal e industrial, o que significa
dizer que ali as transações econômicas estão correlacionadas a diversos outros fatores e
arranjos socioculturais (SERVILHA E DOULA, 2009, p. 124). Já Gurgel et al (2012, p.
169), aponta que na Feira do Alecrim (Natal, RN) ocorre a conformação de
microterritórios, estabelecidos não só por relações de poder, mas também, por
sentimentos de identidade, intensificados pelas múltiplas sociabilidades dinamizadoras
do espaço da feira.

Geertz também reconhece, em suas pesquisas, essa relação de sociabilidade entre todos
os seus frequentadores dos mercados que estudou, apontando a existência de grandes
grupos internos de solidariedade entre eles, onde relações mais próximas e íntimas são
produzidas entre os que se identificam e se ajudam mutuamente (GEERTZ, 1979, p. 154).
Comentando a obra do autor, Servilha e Doula (2009) apontam que:
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Existem pactos sociais diversos sustentados pelos sentimentos de pertencimento


comum e reciprocidade, através de regras e comportamentos estabelecidos por
meio de tradições produzidas social e historicamente no bazar, constantemente
restabelecidas e ou reinventadas por seus frequentadores buscando a
normatização de ações e práticas (p. 136).

Trazendo a discussão para as feiras urbanas contemporâneas, Mascarenhas afirma que “a


feira livre representa uma experiência peculiar de sociabilidade e de uso da rua, que há
décadas sofre acusações de obsolescência, pela difusão ilimitada da automobilidade e das
modernas formas de varejo (MASCARENHAS, 2008, p. 74). Para o autor:

A feira livre vem persistindo, resistindo ao processo acentuado de negação da


rua, do espaço público de franco acesso, que vem marcando a urbanização
brasileira nas últimas décadas. Trata-se não apenas de garantir aos pobres uma
forma de geração de emprego e renda, ou de oferecer ao consumidor urbano uma
alternativa a mais para aquisição de uma gama de produtos. Trata-se de preservar
a rua como lugar de encontro. De preservar uma tradição popular urbana. Uma
questão de cidadania (p. 79).

Observando também a dinâmica de feiras urbanas contemporâneas, Ortigoza (2010) é


mais uma autora que destaca a importância da feira como local de encontro social. As
feiras por ela estudadas, no entanto, não eram as cariocas, como as que fundamentaram
as reflexões de Mascarenhas, mas coreanas, sitiadas na cidade de Seul.

Para Ortigoza, ao mesmo tempo que a capital coreana produz um espaço moderno, com
um conjunto de formas globais de desenvolvimento, representadas pelos grandes
shopping centers e hipermercados que “aguçam o consumo baseado no autosserviço e nas
grandes marcas”, também mantém e permite que se proliferem as “antigas formas
comerciais representadas pelas feiras e pelo comércio de rua, os quais preservam um
consumo baseado na sociabilidade e no atendimento pessoal” (ORTIGOZA, 2010, p.
169).

Desse modo, dentro dessa metrópole tão moderna é possível observar o


encontro, a sociabilidade e o comércio típicos das cidades interioranas, pacatas,
onde até mesmo as antigas relações do homem do campo estão presentes. Seul
contém uma rica multiplicidade de relações e, por meio das mais diferentes
práticas sociais vividas, vislumbramos a possibilidade da manutenção do local
resistindo a uma enorme força do global: essa é a essência desse lugar ou de
alguns lugares dessa metrópole (ORTIGOZA, 2010, p. 177).

Voltando ao Brasil, mas olhando para cidades de pequeno porte, Servilha e Doula
afirmam que mercados municipais e feiras são um espaço de enorme importância para a
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vida social e cultural como um lugar de reprodução de relações e práticas sociais;


construção de valores comunitários; formação, ao mesmo tempo encontro, de diferentes
grupos sociais; manifestações de artistas populares (como escritores de cordel,
sanfoneiros e violeiros); encontro de famílias de diferentes comunidades rurais (que
muitas vezes podem se ver apenas nos dias de feira); confraternização entre
trabalhadores(as) rurais aposentados(as); trocas de produtos sem atravessadores; vida
comercial estruturada no sentimento de ajuda mútua (mais do que no de concorrência).
(SERVILHA e DOULA, 2009, p. 141).

Por fim, gostaríamos destacar o trabalho de Viviane Vedana, que adiciona à questão da
sociabilidade nesses mercados periódicos um elemento fundamental para a construção da
questão que guia esta tese. Na sua dissertação de mestrado, a autora defende que a:

A instalação de uma feira-livre no ambiente de uma rua ou largo representa uma


quebra de continuidade na atmosfera cotidiana do bairro, criando um novo
evento, estabelecendo novos percursos e novas possibilidades de sociabilidade.
A instauração deste tempo do mercado mobiliza os habitantes da cidade e dos
bairros a aderirem a um espaço particular e circularem por ele (VEDANA, 2008,
p. 124).

Ou seja, para a autora, a feira funda um espaço de comércio, de sociabilidade, mas incorre
na produção de uma “ambiência de fruição estética (MAFFESOLI apud Vedana, 2008,
p. 118) no interior das práticas da feira-livre”. Tal “ambiência” é decomposta em vários
aspectos como:

o amplo espaço do mercado e o constante movimento de fregueses que


percorrem seus corredores buscando suas bancas preferidas, cuidando preços,
negociando com feirantes, a estética desordenada das bancas sempre
reabastecidas de frutas, verduras, legumes, queijos, carnes, flores e os mais
diversos produtos com suas cores e odores, as camadas de sonoridades que
preenchem também o espaço com as conversas e diálogos, jocosidades e
brincadeiras, com os anúncios dos produtos (VEDANA, 2008, p. 118).

Como veremos, assim como Viviane Vedana, a maioria dos autores que se dedicaram ao
estudo da feira reconheceram a existência de um ambiente próprio nesse espaço
comercial, descrito por eles a partir das sensações experimentadas durante os trabalhos
de campo, ou relatado nas fontes consultadas por aqueles que estudaram feiras do
passado. Acreditamos, aqui, que a discussão desse outro aspecto ainda pouco discutido
da feira livre pode abrir novas questões sobre a mesma.
33

CAPÍTULO 2 – Na feira

Independente do tema central de cada um dos seus trabalhos, é muito comum que os
autores busquem apresentar uma descrição geral das feiras que tomaram como objeto
empírico. Descrevem o perfil socioeconômico de feirantes e fregueses, a morfologia da
feira e os produtos ofertados, a sua situação espacial, sua história e tantos outros aspectos
considerados importantes. O que deve ser descrito na apresentação de cada feira, varia de
autor a autor.

Um conjunto específico de características, no entanto, aparece de forma recorrente. É


comum encontrar menções ao colorido das frutas, legumes e verduras empilhados sobre
lonas de plástico e caixotes de madeira. Ou à morfologia densa e labiríntica formada pelas
fileiras de barracas, comerciantes ambulantes, fregueses e demais transeuntes. São
repetidamente mencionados, também, os aromas típicos dos produtos in natura e os maus
odores residuais que ficam com o lixo deixado pela feira. E também são recorrentemente
mencionados os anúncios de feirantes, as conversas entre fregueses e tantas outras fontes
sonoras ouvidas em uma caminhada pela feira.

Tais descrições parecem respostas para uma questão oculta: qual é a sensação de se estar
em uma feira? Ou ainda: que aspectos sensíveis da feira fazem dela um espaço distinto
do restante do seu entorno?

2.1 – A experiência sensorial da feira

Tão difundida quanto é a feira, é também a percepção de que ela possui um ambiente
próprio, uma estética que a identifica e a diferencia dos outros espaços da cidade. Tão
antiga quanto a feira enquanto forma do comércio, parece ser a feira como ambiente
urbano destacado dos demais. E a permanência da feira como importante espaço
comercial parece ter significado também a sua permanência como um ambiente típico,
próprio, marcado por fortes estímulos sensoriais. Como sugere Braudel (1998):

Sob sua forma elementar, as feiras ainda hoje existem. Pelo menos vão
sobrevivendo e, em dias fixos, ante nossos olhos, reconstituem-se nos locais
habituais de nossas cidades, com suas desordens, sua afluência, seus pregões,
seus odores violentos e o frescor de seus gêneros (BRAUDEL,1998, p. 14-15).
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Uma das formas mais comuns de se apresentar esse ambiente sensorial típico da feira
livre é ressaltando um suposto efeito sinestésico produzido pelos seus múltiplos estímulos
visuais, olfativos e sonoros. É o caso de Pedrosa (2015, p.15) que se refere à feira como
sendo “um universo particular, (...) um mundo de sentidos, onde as cores, os odores, os
sons e os sabores se mesclam” e o de Mascarenhas que a descreve como possuidora de
“um misto de formas, cores e cheiros que seus olhos não são capazes de discernir ou
classificar rapidamente” (2008, p. 84).

Pontes (2012) compartilha dessa percepção da feira como um lugar de estímulos e


sensações por vezes indistinguíveis, mas dá destaque negativo à sua experiência nos
trabalhos de campo. Segundo a autora:

(...) foram muitos os incômodos enfrentados na primeira visita à feira, desde o


caminho percorrido de minha residência até o início da feira sob um sol
escaldante, além de tudo que fui encontrando chegando lá. Um emaranhado de
gente que não conseguia distinguir por onde começar a trilhar algum caminho
que me levasse até às bancas das fateiras, muito barulho que me confundia os
sentidos, cheiros mais diversos e na maioria não muito agradáveis como de carne
crua, pessoas que me chamavam e ofereciam coisas de que eu não tinha interesse,
mesmo assim muitas dessas pessoas passavam oferecendo seus produtos, até
mesmo mais de uma vez (PONTES, 2012, p.16).

O relato de Andressa Pontes, na verdade, é exceção frente aos diversos relatos sobre a
sensação provocada pela feira. A proximidade dos corpos, os cheiros e sons que
desagradaram a autora, foram encarados muito mais vezes de maneira positiva pelos que
a visitaram para fins acadêmicos. Pedrosa (2015), por exemplo, seleciona praticamente
os mesmos elementos que Pontes para descrever a feira onde realiza os seus trabalhos de
campo, mas demonstra ter se agradado mais com o que lá viu e sentiu:

O barulho dos carros, comum nos demais dias da semana, é substituído pelos
gritos peculiares vindos das vozes dos feirantes, do moedor de café, da moenda
de cana-de-açúcar, do fritar dos pastéis. O cheiro do café, dos churrasquinhos e
das frutas começam, aos poucos, dominar a rua, substituindo o forte “odor do
asfalto”. O colorido das frutas, verduras, legumes o verde da lona das barracas,
os caixotes deixados no chão, transformam a rua em uma grande aquarela.
Caminhar por ali, no domingo de manhã, é andar no meio da rua e não mais na
calçada. É grudar o pé no melado proveniente do suco da fruta que se perdeu no
chão, é esbarrar em vários carrinhos e sacolas onde as compras são transportadas,
é sentir as sutilezas que compõem a feira, é perceber o espaço que se transforma
e se cria ao mesmo tempo (PEDROSA, 2015, p. 15).

É o caso também de Miranda (2009), que refere-se à feira como “um quadro cotidiano de
alegria, agitação, calor, cheiros, cores, gostos, sinestesia pura”, sendo “difícil não sair
35

admirado por algo quando se vai a uma feira, onde tudo é passível de encantamento (p.
21)”. Sato (2012) parece concordar e deixa escapar a sua admiração e encantamento com
os estímulos da feira:

A feira livre emana muitos cheiros, cores e sons. Os diversos temperos, os


pescados, as frutas, as flores estimulam nossos sentidos quando para ela estamos
a caminho. Os sons, a depender do horário, já anunciam as boas oportunidades
de compra. Visualmente, somos fisgados pela diversidade de cores, formas e
texturas e somos chamados a interagir continuamente com os feirantes (SATO,
2012, p. 25).

Enquanto Miranda e Sato desenham a feira sob o tom do fascínio, ela ganha um ar mais
épico com Leite (1956), que descreve a típica feira nordestina, na qual as “barracas se
sucedem na instabilidade de suas instalações provisórias”, as mercadorias oferecem
“ricos matizes nas cores e nos formatos” e onde se presencia “um espetáculo
surpreendente e feérico, de sons intensos e gestos vigorosos”, marcado por “feixes de
músculos se agitando numa atividade incessante de almas primitivas travando um grande
embate” (p. 155).

Já Barbosa (2013) destaca o prazer envolvido em observar as formas e cores das


mercadorias expostas, ao mesmo tempo que identifica cada um dos diferentes odores que
elas exalam:

É bonito de se ver o verde vivo das alfaces e dos pimentões se misturando com
o verde mais escuro das couves e fosco dos quiabos, o desvanecido verde dos
pepinos e dos maxixes, dos molhos de coentro, das rúculas... do vermelho dos
tomates, do alaranjado das cenouras, do amarelo das abóboras de leite, dentre
tantas outras verduras. (...) E o cheiro irresistível e prazeroso exalado pelas frutas
maduras, inconfundível como o da jaca, o da manga, dos sapotis, das goiabas,
dos jenipapos (BARBOSA, 2013, p. 70).

Como podemos observar, apesar de tratarem de contextos bastante distintos, os autores


elencam um conjunto mais ou menos estável de variáveis para descrever o ambiente da
feira: a sua morfologia, incluindo aí as bancas e as ferramentas de trabalho, mas também
as pessoas e a proximidade dos corpos presentes; o apelo visual das bancas e o modo
estratégico como elas são arrumadas, ressaltando a variedade de cores e formas das
mercadorias; os diferentes odores percebidos no andar pela feira, geralmente
mencionados de forma menos destacada, mas geralmente associados a uma sensação
positiva ou negativa; e os sons que ali são ouvidos: o motor das máquinas, as conversas
36

informais e os anúncios dos feirantes são unanimemente lembrados, como veremos de


forma pormenorizada no tópico seguinte.

Comum também a muitos desses relatos é a falta de sistematização com os quais são
apresentados. Muitos deles se assemelham mais a extratos de um caderno de viagens do
que de um caderno de campo. Marcadas demasiadamente pelas impressões pessoais de
quem escreve e pouco comprometidas com uma abordagem mais analítica, muitas das
descrições disso que poderíamos chamar de “ambiência” da feira (THIBAUD, 2012),
cumpre o objetivo de apresentar o lugar ao leitor, reconstruindo textualmente parte do
que se sentiu em campo. Cumpre a função de “ambientar” o leitor, para utilizarmos o
termo em um duplo-sentido conveniente, mas que raras vezes é tomado como objeto de
análise mais aprofundada.

Vedana (2008) e Sato (2012) são exceções, pois apresentam importantes reflexões a partir
dos padrões visuais observados nas bancas das feiras. Como lembra Sato (2012), “a feira
livre não pode prescindir da recepção estética que visa alcançar efeitos pragmáticos
claros: a definição de compra da freguesia” (SATO, 2012, p.101). Desse modo, “a
dimensão estética comparece como algo previamente arquitetado e como um improviso
que a singularidade do lugar oferta (SATO, 2012, p.101)”. Em outras palavras, quem
monta uma banca, monta também a vitrine das suas mercadorias.

Para Vedana (2008), “a disposição dos alimentos nas bancas é, antes de mais nada, um
traço específico de cada feirante, que procura uma composição das formas dos alimentos
e de suas cores que insira o freguês numa experiência estética particular e primeiramente
visual” (VEDANA, 2008, p.130). Sendo a aparência um critério central para os fregueses
na hora de escolher um produto, organizar com esmero a apresentação do que se vende é
atividade fundamental no cotidiano do feirante. Por isso, afirma Vedana (2008), “a banca
sempre bem organizada e com uma ótima apresentação dos produtos, valorizando suas
cores e formas, faz parte do ritmo de trabalho dos feirantes e principalmente de sua forma
de relação com os fregueses ” (VEDANA, 2008, p. 131)”.
37

Figura 2 – Alimentos apresentados em montes, organizados por tipo e cor. Feira da Rua Sebastião Pereira, Santa
Cecília, São Paulo. Foto do autor.

Figura 3 - Batatas dispostas em sacos na feira da Rua Conceição Veloso, Vila Mariana, São Paulo. Foto do autor.

“Construir a beleza dá trabalho, mas é motivo de admiração e de orgulho dos feirantes”


(SATO, 2012, p. 101). Como é típico da feira, a apresentação das mercadorias nas bancas
também é feita de “pequenos detalhes alcançados com o trabalho estritamente manual e
com recursos caseiros” (SATO, 2012, p. 100). Assim, aspectos minimalistas como o tipo
de corte, a embalagem e as formas de apresentação do produto são levados em
consideração para que se possa “potencializar os atributos estéticos naturais das
mercadorias” (SATO, 2012, p. 99). Assim, folhas em maços, frutas em montes, grãos em
38

pacotes, bacias de legumes e saquinhos de temperos preenchem os tabuleiros de acordo


com o gosto e as escolhas de cada feirante.

Figura 4 – Vegetais apresentados em diferentes níveis, montados com caixotes e enfeitados com folhas soltas. Feira
da Praça Serzedelo Correia, Copacabana, Rio de Janeiro. Foto do autor.

O uso de caixotes para construir diferentes níveis na banca e o uso de folhas e flores para
ornar as mercadorias à venda são também exemplo do detalhismo empregado nas
composições de cores, formas e texturas formadas nas suas “bancas-vitrines”. Como
resultado, temos “uma infinidade de construções artísticas”, que se apresentam em melhor
forma nas primeiras horas da manhã e vão sendo renovadas conforme as vendas
acontecem, mas sempre mantendo-se dentro de um “espectro que mantém a identidade
estética da feira livre” (SATO, 2012, p. 101). Como ilustra a autora:

No decorrer do dia, os arranjos das mercadorias nas bancas vão sendo


continuamente alterados com as vendas. Constroem-se outras formas que
possibilitem combinar estética, estratégia e tática de venda. No início da manhã,
as maçãs eram vendidas por unidade expostas em pirâmides, no final da feira
podem ser pequenos montes ou baciadas que formam pequenos aglomerados
sobre o tabuleiro já esvaziado. Mesmo aqui, a beleza não deve ser descuidada
(SATO, 2012, p. 105).

As reflexões de Lenny Sato e Viviane Vedana tratam dos atributos visuais da feira livre,
mas acabam nos remetendo também a alguns dos seus aspectos fundamentais,
mencionados no capítulo anterior, como o improviso, a reutilização e adaptação de
materiais e as estratégias singulares de venda. É curioso notar, portanto, que a observação
39

orientada e analítica desses diferentes modos de apresentação das mercadorias, seus


padrões e a dinâmica com que são rearranjados ao longo dia não revela algo apenas sobre
a estética da feira, mas também sobre como ela é pensada, organizada e produzida. Ao
superarmos o olhar guiado pela mera fruição intuitiva e adotando uma postura
questionadora e investigativa sobre esses estímulos sensoriais da feira, o que nos é
revelado não são apenas as minúcias da sua estética, mas também as estratégias de venda
dos feirantes, a forma como ela é pensada e produzida, elementos da sua estrutura e
organização.

Esse conjunto de características estéticas e sensoriais presentes acima mencionados, além


de revelarem aspectos do funcionamento da feira, conferem a ela uma ambiência própria.
“De ‘dentro’ da feira, os sons, os cheiros, as cores e as intenções da cidade grande ficam
esfumaçadas e percebe-se quão distintos são dos sentidos na feira livre”, afirmou Sato
(2012, p. 99). Na medida que tais características estão diretamente associadas a atividades
próprias da feira, elas garantem à ela um aspecto que a diferencia dos outros espaços
urbanos. Nesse sentido, cumprem papel fundamental na construção da identidade desses
lugares e no imaginário que temos sobre essa antiga forma do comércio.

Como vimos, os estímulos visuais não são os únicos recorrentemente lembrados por
aqueles que visitaram e investigaram as feiras. Os odores, considerados agradáveis ou
não, e a densidade de corpos e objetos em um espaço por vezes confinado e labiríntico
são registros típicos nas descrições da ambiência encontrada nas feiras. No entanto, um
elemento dentre todos os outros destaca-se nos relatos sobre as feiras, sejam elas
medievais, contemporâneas, rurais, urbanas, regionais ou locais.

2.2 – O som da feira

Na observação das conversas que o encontro social promove, na descrição do processo


de montagem e manutenção das bancas ou na identificação do pregão como parte
estrutural desse tipo de comércio, os sons são sempre lembrados no momento em que
alguém quer definir, apresentar ou descrever uma feira.

De todos os sons associados à feira livre, as vozes que anunciam as mercadorias são
sempre as mais lembradas. No entanto, o anúncio oral, gritado ou cantado, o chamamento,
40

o pregão e tantos outras estratégias sonoras de publicidade não são exclusividade da feira
e podem ser observados em outras modalidades do comércio de rua, como o ambulante e
os camelôs.

Parga (1996, p. 16-7), por exemplo, em seu estudo sobre o pequeno comércio no Rio de
Janeiro do século XIX, afirma que os vendedores ambulantes "estendiam-se por todas as
ruas e caminhos da cidade, (...) desde os aguadeiros até os mascates que vagavam pelos
logradouros com suas malas repletas de quinquilharias e gritos escandalosos
característicos" (PARGA, 1996 apud. MASCARENHAS, 1997).

Esse uso do som como estratégia publicitária no comércio de rua é destacado também por
Backheuser (1944), ao tratar do comércio ambulante no Rio de Janeiro, onde, durante
todo o ano, “seus pregões enchem o ar, altos, estridentes, característicos, em contínuos
chamamentos à freguesia” (BACKHEUSER, 1944, p. 03).

Neste trabalho, o autor nos apresenta um perfil do comércio ambulante do Rio de Janeiro
à época, descrevendo e classificando os vendedores segundo critérios como o tipo de
produto comercializado, horário de trabalho, tipo de transporte adotado, cor, idade,
nacionalidade e os diferentes modos como os ambulantes apregoavam os seus produtos.
A coexistência de diferentes modalidades de comércio ambulante e as suas respectivas
estratégias publicitárias leva Backheuser a afirmar que “as nossas ruas estão cheias de
sons musicais, entrechocando-se no ar em uma combinação algo desordenada, mas
também algo harmônica que deveria tentar os compositores impressionistas”
(BACKHEUSER, 1944, p. 25).

Dos chamamentos às caixas de som, passando pelos instrumentos musicais, são muitos
os recursos sonoros utilizados no comércio popular na disputa pela clientela. Essa
estratégia, como se sabe, aparece na feira também, já há muitos anos.

Braudel (1998), mencionando os sons ouvidos na praça pública da feira de Fakenham do


século XVI, perguntou-se “em qual mercado inglês não poderíamos ouvir, ao longo dos
anos, palavras veementes dos pregadores?” (Braudel, 1998, p.16). Passando para a Itália
do mesmo século, o autor faz um breve exercício imaginativo para ilustrar a propagação
41

omnidirecional do som, que não obedece aos limites estabelecidos socialmente entre a
rua e a casa, e alcança mesmo quem não está frequentando a feira.

O ruído das feiras chega distintamente aos nossos ouvidos. Não é exagero dizer
que posso avistar os negociantes, mercadores e vendedores, na praça do Rialto,
em Veneza, por volta de 1530, da própria janela da casa de Aretino, que com
prazer contempla esse espetáculo cotidiano (BRAUDEL, 1998, p. 11).

No Brasil, pensando já em tempos mais recentes, são muitos os exemplos de feiras onde
os anúncios orais são ouvidos pelos seus corredores. Barbosa (2011), observou os
vendedores da feira livre da cidade de Poções (BA) e encontrou um vendedor ambulante
de churrasco, que vagueva pela feira liberando fortes gritos de “boi na braaaaasa!” que,
segundo o autor, “carregam uma rouquidão peculiar, uma extrema variação de timbre
que leva a voz a sons quase inumanos, próximos da sonoridade de um berro de boi”
(BARBOSA, 2011, p. 10). Ainda segundo Barbosa (2011), na feira de Poções (BA) “os
gritos e anúncios em alta voz enxameiam a feira com ritmos singulares” (p. 11), dando
conta da sensação sonora que tal feira provoca.

Já autores como Gurgel et al (2012), estudando a feira do Alecrim em Natal (RN) nos
relembram a chamada “hora do grito”, “momento em que os feirantes diminuem os preços
dos produtos e os divulgam através do grito, que objetiva atrair os clientes e evitar com
que os vendedores permaneçam com as ‘bóias’ (produtos que sobram) (GURGEL et al,
2012, p. 163). Conhecida também como a “hora da xepa”, esse momento icônico da feira
é conhecido também, como sugere o nome citado pelos autores, pela sobreposição de
vozes anunciando as mercadorias nas últimas horas de comércio. Sobre a “hora do grito”,
Sato (2012) comenta que:

A loquacidade ouvida ao final da feira tem, logicamente, uma finalidade


instrumental, que é a de convencer a freguesia a comprar a mercadoria, ganhando
a concorrência com o feirante do lado. Nesse sentido, a fala é trabalho. E essa
forma de vincular-se à freguesia é frequentemente observada entre os feirantes
que comercializam os tipos de mercadoria que são perecíveis: frutas, verduras,
legumes e pescados. (...) A singularidade dessa “relação vocal que se poderia
dizer hiper-alocutiva, muitas vezes próxima do grito” (MAYOL, 1998, p. 63)
reside no conteúdo, no timbre de voz e na entonação que cada feirante imprime
às suas criações (SATO, 2012, p. 118).

Para Vedana (2008), que realizou trabalhos de campo em feiras de Porto Alegre, São
Paulo e Paris, “os constantes pregões dos feirantes, em sotaques diferenciados e que
42

ultrapassam as barreiras das bancas” enfatizariam a sensação de labirinto produzido pela


morfologia da feira livre, pois “ao andar pelo corredor podemos ouvir os anúncios e nem
sempre identificar de onde vem” (VEDANA, 2008, p. 126-127).

No entanto, nem todo anúncio na feira é gritado. O uso de bordões e breves melodias,
malabarismos prosódicos, modulações no timbre, emulação da voz de artistas famosos e
até mesmo paródias de músicas fazem parte do repertório dos feirantes mais habilidosos,
chamados por Walkyria Silva (1980) de “artistas verbais”. A sua dissertação de mestrado
em linguística é um dos primeiros trabalhos no Brasil a estudar especificamente os
anúncios e pregões da feira livre, realizando o que ela chamou de “etnografia da fala” nas
feiras de São Paulo. Analisando mais de 144 pregões registrados à época, Silva (1980)
concluiu que:

Características pessoais tais como voz, senso de humor, capacidade de


improvisação e criatividade fazem um bom pregoeiro. É possível hipotetizar que
os bons apregoadores constituem-se um grupo diferenciado entre os vendedores,
e para eles a feira passa a ter um outro sentido que aquele puramente comercial,
pois ganham bons companheiros para passar o tempo. Apregoar criativamente
demanda um estágio de aprendizagem quando a observação dos apregoadores
mais antigos encoraja os novatos vendedores a arriscarem seus próprios pregões
(SILVA, 1980, p. 56).

Para ilustrar a variedade e riqueza que podemos encontrar nos anúncios orais dos
feirantes, podemos citar Garcia (2006), que analisa "A preta do acarajé", de Dorival
Caymmi, e "Carioca", de Chico Buarque, para discutir “a transição de formas populares
de tradição oral, dentre as quais se destaca o pregão de rua, para o disco e o rádio” e,
posteriormente, o momento quando o “jingle parece assumir o lugar do pregão”. Nessa
discussão, o autor aborda o papel da canção como crônica e narrativa do cotidiano,
analisando aspectos como letra, melodia, harmonia, acompanhamento rítmico e dimensão
comercial. Assim fazendo, o autor acaba destacando os traços poéticos e musicais
encontrados nos anúncios do comércio de rua.

Da mesma maneira, Bauman (2008) examina a forma e função dos chamados de


vendedores de rua e de mercado, discutindo a função poética na produção e uso de
chamados em mercados no México e o chamado pregón em Cuba, no qual “a função
poética alcança maior proeminência, sobrepondo-se, em certos momentos, à agenda
43

prática de anunciar os bens à venda e aproximando- se de uma performance completa –


isto é, uma exibição virtuosa” (BAUMAN, 2008, p. 02)

O som da feira, no entanto, não é feito só do pregão. Como já dissemos, a feira é ponto
de encontro em bairros e cidades pequenas, nós das redes de socialização que se formam
pela vizinhança. Mesmo que em algumas horas do dia elas sejam menos audíveis, pois
escondidas sob o volume dos anúncios orais, as conversas também contribuem para a
composição sonora encontrada nas feiras. Castro e Castro (2016) contam que, em uma
feira de Belém (PA):

em meio ao caos de ruídos, um caos comunicativo, se assim se pode dizê-lo, era


também possível prestar atenção em interações mais amenas que se estabeleciam
entre todos, mas particularmente na interação da feira, na sua autoprodução
simbólica: o diálogo entre feirantes e clientes (CASTRO e CASTRO, 2016, p.
107).

Podemos buscar outro exemplo mais distante. Em “Uma Vida Chinesa”, Li Kunwu
(2015) nos apresenta um relato autobiográfico em que a história da sua família se
confunde com a da China desde a tomada de poder por Mao Tsé-tung até os dias atuais.
Dentre os espaços retratados na narrativa em quadrinhos, temos uma feira de Yunnan, no
ano de 1978, apresentada em uma página inteira, na qual podemos conferir como os sons
que a compunham ficaram marcados até hoje na memória do autor. Na imagem, podemos
conferir menções às conversas entre os seus frequentadores e aos anúncios realizados
pelos vendedores, além dos reclames oficiais oriundos das caixas de som presentes no
local, sendo estes a única exceção em um cenário muito semelhante àquele encontrado
nas feiras brasileiras.
44

Figura 5 - Feira de Yunnan (KUNWU, 2015).

A feira é primeiramente um espaço comercial. Mas, na medida que reúne periodicamente


pessoas em um espaço público, abre a oportunidade para que diferentes formas de
socialização se combinem por suas praças e corredores. Basta lembrarmos das palavras
de Santos (1963), mencionadas no capítulo anterior, quando, ao retratar as feiras
45

nordestinas, falou de “aglomerados de curiosos a ouvir o cancioneiro regional, entoado


pela voz monótona do cantador, ou a ouvir a declamação enfadonha das estórias que
narram episódios verídicos ou fantásticos” (SANTOS, 1963, p. 276). Leite (1956) ouviu
também nas feiras do sertão “o vozerio de criaturas em locomoção desordenada” e,
séculos antes, já se ouvia nas feiras medievais “o comerciante vindo de longe [que]
contava as histórias maravilhosas ou terrificantes das suas aventuras em países
longínquos” (RAU, 1983, p. 53).

Junto dos anúncios e das conversas, há na feira uma multiplicidade de atividades que
também produzem som e contribuem para a sua sonoridade marcante. Montagem de
bancas, arrumação de mercadorias, corte de carne, descame dos peixes, transporte do
gelo, o próprio translado das pessoas e tantas outras ações fundamentais no cotidiano dos
feirantes são movimentos produtores de som.

Orlando Figes, em sua obra sobre a história cultural da Rússia (2018), nos indica que o
“som da feira”, composição resultante das suas vozes e movimentos, é tão difundido e
facilmente identificável quanto ela própria. Tratando da segunda metade do século XIX,
o autor nos apresenta o compositor russo Modest Mussorgski, segundo ele, alguém
“obcecado com o ofício de representar a fala humana com sons musicais” (p. 299). Figes
explica que muitas das composições importantes de Mussorgski constituem uma tentativa
de transpor em sons as qualidades únicas da fala camponesa russa. Como exemplo,
menciona a ópera inacabada baseada na “Feira de Sorochintsi” de Nikolai Gogol, da qual
Figes menciona o seguinte trecho:

Espero que tenha ouvido alguma vez o ruído de uma cachoeira distante, quando
o entorno agitado se enche no tumulto e um torvelinho caótico de sons estranhos
indistintos gira à sua frente. Não concorda que o mesmíssimo efeito é produzido
no instante em que se entra no redemoinho de uma feira de uma aldeia? Todo o
populacho reunido se funde numa única criatura monstruosa cujo corpo maciço
se remexe pela feira e serpenteia pelos becos estreitos, guinchando, mugindo,
balindo. O clamor, as imprecações, mugidos, balidos, rugidos – tudo isso se
funde num único ruído cacofônico. Bois, sacos, feno, ciganos, panelas, esposas,
pães de gengibre, gorros – tudo fica em chamas com cores contrastantes e dança
diante dos olhos. As vozes se afogam umas nas outras e é impossível distinguir
uma única palavra, resgatar qualquer significado nessa tagarelice; nem uma
única exclamação pode ser entendida com clareza. Os ouvidos são atacados por
todos os lados pelas palmas barulhentas dos comerciantes da feira inteira. Uma
carroça vira, o clangor de rodas de metal no ar, tábuas caem com estrondo no
chão e o observador fica tonto ao virar a cabeça de lá pra cá (FIGES, 2018, p.
299).
46

Podemos retornar ao Brasil como último exemplo a crônica “A Feira”, na qual Rubem
Braga destaca a aparência audível dessa forma do comércio, mencionando também os
seus aspectos visuais e odoríferos. Divagando sobre uma nova feira instalada nas
proximidades da sua casa, o autor brinca sobre como o movimento gerado na montagem
e as horas de pregão podem perturbar outro famoso escritor brasileiro, Carlos Drummond
de Andrade:

Passa gente vindo da feira. Agora temos uma feira aqui perto de casa. Para mim
apenas movimenta a esquina, com tantas empregadas e donas-de-casa carregadas
de sacos e cestas de frutas, verduras e legumes. Ao poeta Drummond, que mora
mais além, a feira deve incomodar, porque os grandes caminhões roncam sob a
sua janela, e o vozerio dos mercadores e fregueses perturba o seu sono matinal.
O que não tem a menor importância: na atual situação do mundo é bom que os
poetas estejam vigilantes. Quanto aos cronistas, que eles durmam em paz; é
melhor que se recolham e se esqueçam de fazer a crônica destes dias, em que
não há nenhum exemplo nem lição. O poeta é mais adequado para ouvir as
exclamações patéticas (“os tomates estão pela hora da morte”) e tomar o pulso
dos fatos concretos da mercancia local. Além disso deve subir até a sua janela a
fragrância das verduras e de todas essas coisas nascidas na terra, ainda frescas e
vivas, coloridas. É bom que ele veja as quinquilharias ingênuas, as ervas
misteriosas, as pequenas inúteis e preciosas coisas do mar e do sertão, os
cavalos-marinhos e as sementes escuras. Só ele poderá entender as coisas de
barro e de palha, a glória dos tomates, o espanto de pedra no olho dos peixes
eviscerados, e o constrangimento amarelo desses abacaxis sem sabor que
amadurecem no meio do inverno (BRAGA, 2013, p. 296).

O incômodo gerado pelos sons da feira, tratado com humor por Rubem Braga, é algo
compartilhado por alguns daqueles que dividem com a feira uma rua ou uma praça, o que
mobiliza a ação dos agentes públicos responsáveis por regular esses espaços, ensejando
um conjunto de leis e normas específicas sobre o tema, em diferentes municípios do país.

Podemos citar como exemplo o caso das feiras livres de São Paulo, onde o decreto no
48.172, de 6 de março de 2007, estabelece que “durante as operações de carga e descarga
dos equipamentos e mercadorias, bem como a montagem e desmontagem das bancas,
ficam proibidos o uso de aparelhos sonoros e a emissão de ruídos que perturbem o sossego
público”. Além disso, proíbe os feirantes de “utilizar aparelhos sonoros durante o período
de comercialização, bem como apregoar as mercadorias em volume de voz que cause
incômodo aos usuários da feira e aos moradores do local”4.

4
Disponível em: https://goo.gl/sJwQBZ (acessado em 18/12/2017).
47

Lacerda (2010) cita a prática de pregões nas feiras de São José dos Campos, em São
Paulo, e menciona a lei municipal no 3970/91 de 25 de Junho de 1999, que dispõe sobre
a organização e funcionamento das feiras livres, em seu artigo 16o, item 22: “Não
apregoar, por si ou por seus empregados ou auxiliares, as mercadorias ou seus respectivos
preços”.

No Rio, não há nada explícito na lei, mas segundo alguns feirantes há fiscalização e multa
prevista. A Lei Estadual no 126, de 10 de maio de 1977 “dispõe sobre a proteção contra
a poluição sonora” e considera infração “a produção de ruído, como tal entendido o som
puro ou mistura de sons, com dois ou mais tons, capaz de prejudicar a saúde, a segurança
ou o sossego públicos” (artigo 1º). É a ela que os agentes do poder público recorrem
quando necessitam impor certa ordem sobre o som da feira. O extinto decreto 166 do
município carioca estabelecia medidas disciplinares a serem tomadas, com a ameaça de
multa ou cassação de matrícula do infrator em caso de descumprimento. Entre as
infrações constavam a venda de mercadorias deterioradas, fraudes nos preços e nas
pesagens, atentados contra a moral e os bons costumes e, o que mais nos interessa aqui,
"apregoar ou produzir qualquer ruído evitável" (MASCARENHAS, 1992, p. 103).

A menção aos anúncios orais e aos gritos do pregão, presente em relatos que variam da
Europa medieval à metrópole brasileira, passando por pequenos povoados da China
maoísta; a comum correlação estabelecida entre as conversas, encontros e demais
interações sociais que a feira enseja com uma espécie de burburinho, uma composição de
sons indistintos de muitas pessoas falando ao mesmo tempo; a inevitável identificação
dos sons que resultam involuntariamente de todos movimentos necessários para que a
feira aconteça. A recorrência de todos esses elementos nas descrições que encontramos
sobre diferentes feiras demonstram a importância que o som possui na formação da sua
“ambiência” singular, identificada por tantos autores. Menções a esses mesmos sons em
diferentes campos da arte e a criação de normas municipais dedicadas ao controle do
“som da feira” também corroboram essa importância.

2.3 – Uma nova questão sobre a feira

Como afirmamos anteriormente, apesar de ser recorrentemente identificada e descrita


pelos autores como uma característica marcante das feiras, raras vezes os elementos que
compõem a experiência sensorial desses espaços foram investigados de modo mais
48

aprofundado nos trabalhos consultados. Quando observamos especificamente o som e a


importância que ele tem não só na composição desse ambiente sensorial, mas também
nas interações sociais e na organização do trabalho e do comércio na feira, encontramos
a possibilidade de levantar novas questões sobre a feira. Assim, esta pesquisa parte de
três questões centrais:

a) O que podemos descobrir de novo quando analisamos as composições sonoras


ouvidas em uma feira livre?

b) O que os padrões identificados nos sons dos objetos, das atividades, das
conversas e dos anúncios nos revelam sobre a organização e produção da feira?

c) Por que observamos composições muito semelhantes em feiras de tempos e


lugares tão distintos?

Estas são as questões que orientam essa pesquisa. Desse modo, temos como objetivos
principais nesta tese:

a) Analisar a importância do som enquanto dispositivo organizador e qualificador


das feiras.

b) Identificar e mapear as diferentes paisagens sonoras formadas nas feiras e


compreender os processos pelas quais elas são moldadas.

c) Contribuir para uma abordagem teórica e conceitual que permita a melhor


compreensão da organização do espaço urbano a partir da consideração dos seus aspectos
não-visuais.

d) Ampliar e desenvolver a utilização de métodos de pesquisa que abordem a


dimensão sonora dos lugares a partir de uma perspectiva geográfica.

Para isso, é preciso entender o papel periférico que o som e outros aspectos não-visuais
do mundo vem assumindo na pauta de interesse dos geógrafos. Passemos, então, a discutir
o som como objeto de estudo da Geografia.
49

CAPÍTULO 3 – O som como objeto de estudo da Geografia

3.1 – O mundo sensível e seus significados

Em um espaço urbano, estamos sempre imersos em um conjunto formas, cores, sons,


odores, texturas e superfícies que estimulam os nossos sentidos. Algumas delas se
destacam, intencionalmente ou não, e capturam o nosso foco. Um sinal vermelho, uma
buzina, o cheiro de algo queimando. Independente de onde nós estejamos, seja uma praça,
uma feira ou uma estação de metrô, tais informações são importantes. É através delas que
identificamos e qualificamos esses espaços. É através delas também que nos orientamos
e nos organizamos nesses espaços. Cores, formas, sons, odores, texturas e superfícies nos
informam onde nós estamos e, em alguns casos, como devemos nos portar ali.

Em outras palavras, podemos dizer que nós não reagimos passivamente a essas
informações. Elas estão emaranhadas a uma teia de significados, para utilizar uma
expressão de Clifford Geertz (2013 [1973]), que é tecida cotidianamente e a muitas mãos.
Atribuímos diferentes significados a esses estímulos e nos apropriamos deles para
organizar o nosso cotidiano. A má iluminação de uma rua pode indicar perigo para
alguém que anda desacompanhado à noite. Um burburinho ouvido à distância pode
indicar a direção do bar para o qual um grupo se desloca. E o aroma típico da maresia
pode ser sinal que estamos próximos da praia.

Esses significados, no entanto, não são estáticos e nem universais. As leituras que
fazemos de uma paisagem ou do som e do aroma ambiente dos lugares que frequentamos
varia enormemente segundo fatores que não caberiam ser listados aqui. Meinig (2010)
expõe muito bem essa possibilidade de múltiplas leituras através de um exercício
apresentado no artigo “Olho que observa: dez visões sobre a mesma cena”, analisando as
diversas formas de se interpretar uma mesma paisagem.

Tomemos um pequeno, mas variado, grupo de pessoas, com o intuito de


olharmos uma porção determinada da cidade ou do campo. Cada qual, a seu
turno, descreverá a ‘paisagem’ (aquela ‘parte do espaço que é vista de um único
ponto’, como define o dicionário), detalhando sua composição e falando algo
sobre o ‘significado’ do que pode ser visto. Ficará logo evidente que mesmo que
nos juntemos e que olhemos para a mesma direção, no mesmo instante, não
veremos – não poderemos ver – a mesma paisagem. Podemos concordar,
certamente, que vemos muitos elementos de igual natureza – casas, estradas,
50

árvores, colinas – em termos de aspectos, tais como número, forma, dimensão e


cor. Mas tais fatos adquirem significado somente a partir de associações; eles
precisam ser ajustados uns aos outros de acordo com um corpo coerente de
ideias. Deste modo, nos confrontamos com o problema principal: qualquer
paisagem é composta não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos,
mas também por aquilo que se esconde em nossas mentes (MEINIG, 2010, p.
35).

Levando em consideração essa capacidade de criarmos e modificarmos os significados


associados a essas informações sensíveis, pode parecer impossível identificar as leituras
que as pessoas realizam das inúmeras combinações possíveis de formas, texturas, sons e
odores com que se deparam nos espaços urbanos. Tais leituras variariam tão quanto
variam nossas subjetividades. No entanto, gostaríamos de fazer um contraponto aqui,
indicando que há um conjunto de fatores que afunilam a multiplicidade de leituras
possíveis que realizamos do mundo sensível.

Em primeiro lugar, é importante lembrar, junto com Yi-Fu Tuan, que o que percebemos
do mundo sensível é sempre limitado por nossos sistemas sensoriais, capazes de
identificar apenas um espectro específico de cores e uma limitada faixa de frequências
sonoras, por exemplo. Isso significa dizer que, por mais diferenças que existam, “(...)
como membros de uma mesma espécie, estamos limitados a ver as coisas de uma certa
maneira. Todos os seres humanos compartilham percepções comuns, um mundo comum,
em virtude de possuírem órgãos similares” (TUAN, 2012, p. 21). Ou, como colocaram
Maturana e Varela (2001, p. 28), “nossa experiência esta indissoluvelmente atrelada à
nossa estrutura. Não vemos o ‘espaço’ do mundo, vivemos nosso campo visual; não
vemos as ‘cores’ do mundo, vivemos nosso espaço cromático”.

Além disso, essas informações e as combinações que delas resultam não se apresentam
passivamente às nossas interpretações. Os modos como essas informações se combinam,
muitas vezes, resultam de escolhas e querem transmitir uma ideia. A paisagem do centro
de uma grande cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, é resultado de um somatório
de ações que variam em perenidade, origem e escala, combinando de grandes programas
de revitalização urbana a ações de pequenos coletivos de grafiteiros e pichadores. Em
ambos os casos temos um mundo sensível sendo modelado na intenção de nos dizer algo.
Em outras palavras,
51

(...) a significação que ‘lemos’ nos aspectos de uma paisagem pode ser, algumas
vezes, por assim dizer, voluntária, ou seja, esses aspectos querem
deliberadamente dizer uma coisa precisa. A paisagem, assim, objetiva nossos
sentidos, ela não age como um simples objeto que se oferece ao nosso olhar e à
nossa compreensão; pela forma das combinações que processa, pelos ângulos
que privilegia, pela sensibilidade que organiza, ela funciona como uma espécie
de ‘vitrine’ de uma localidade e, portanto, de sua população. Nesse sentido as
paisagens são como sujeitos, pretendem ser as consciências ‘oficiais’ de um
lugar, são o mise-em-scène de uma vivência espacial e é isso que elas podem nos
comunicar através da sensibilidade estética (GOMES, 2004, p. 08).

Existem inúmeros projetos paisagísticos que serviriam como ilustração da ideia acima. A
escala das construções, suas formas, a iluminação, seu revestimento e tantos outros
aspectos de empreendimentos arquitetônicos são escolhidos de modo a transmitir
visualmente uma ideia, um conceito. O mesmo pode ser feito através do estímulo de
outros sentidos. Tomemos como exemplo projeto de criação de uma identidade sonora
desenvolvido pela empresa Zanna Sound para o MetrôRio, concessionária responsável
pelo transporte metroviário da cidade do Rio de Janeiro. Tal projeto, entre outras ações,
consistiu na composição um tema musical para ser tocado nos comerciais do metrô, no
aperfeiçoamento do texto e da voz que comunicam por quais estações o passageiro está
passando e na criação de um conjunto de sinais sonoros unificado que são ouvidos em
muitas das interfaces de contato do cliente com o MetrôRio, como as cabines de recarga
de créditos. Em todos os espaços do Metrô o usuário está cercado por sons com uma
mesma timbragem e tonalidade, dando uma certa unidade ao ambiente sonoro nesses
lugares e conferindo uma identidade sonora à empresa.

Associada a essas ações, a Zanna Sound também realizou a distribuição de caixas


acústicas nas plataformas de embarque do metrô com sons de passarinhos cantando,
escolhidos após uma série de entrevistas com os usuários. Antes deles, o que se ouvia no
metrô era uma seleção de músicas clássicas que, de acordo com o levantamento feito pela
Zanna, soava desagradável para a maioria dos passageiros (ZANNA, 2015). A boa
aceitação dos sons de passarinhos nas estações de metrô do Rio de Janeiro ilustra como
determinados significados atribuídos a essas informações sensíveis são compartilhados
socialmente. É a identificação da atribuição de significados positivos a esses sons que
permitiu à Zanna modelar o ambiente sonoro das estações de modo a torná-lo agradável
para a maioria dos seus usuários.
52

Ações semelhantes foram realizadas nas estações de metrô de Paris, mas com uma
diferença importante, já que a intenção, neste caso, era “disciplinar os fluxos embalando
o ouvido”5. Em Châtelet-Les Halles, por exemplo, o ambiente sonoro é modelado sob
medida para reduzir o tempo de percurso nos corredores das estações. Ou seja, enquanto
no metrô carioca o som aparece como componente da identidade de um lugar, em Paris o
recurso sonoro é utilizado para sugerir ritmos. Em um caso, o som está ali para qualificar
aquele espaço, dando a ele uma identidade. No outro, ele é utilizado para organizá-lo,
conferindo a ele um ritmo. Em ambos, a ação é efetivada pela prévia e correta
identificação e utilização de um sentido comumente associado a um tipo específico de
som.

Indo além, podemos afirmar que, ainda que cores, formas, sons, odores, texturas e
superfícies não sejam produzidos no intuito de transmitir um sentido específico,
determinadas intepretações dessas informações se estabilizam e são compartilhadas
socialmente. Tomemos duas situações como exemplo. A organização do trânsito das
grandes cidades depende dos motoristas e pedestres atribuírem o mesmo significado às
luzes verde, amarela e vermelha nos semáforos. E não é incomum observar pessoas
levantarem-se ao mesmo tempo dos bancos de uma estação ao ouvir o som do trem que
se aproxima. No caso do semáforo, um jogo de cores foi escolhido, e estabilizou-se como
um código amplamente difundido, para organizar o fluxo de veículos e pedestres nas
cidades. É pelo fato de compartilharmos a mesma leitura desse jogo de cores que é
possível organizar esses fluxos. Já o som do trem se aproximando é puro resultado de um
conjunto de atividades mecânicas, como a fricção do trem sobre os trilhos, o acionamento
dos freios, entre outros. Essa combinação de sons não é produzida intencionalmente. Não
possui, a princípio, função ou significado fundamental e não visa comunicar nada. No
entanto, acaba assumindo um significado compartilhado pelas pessoas que,
cotidianamente, fazem uso do transporte ferroviário e, intuitivamente, associam aquela
combinação de sons à chegada do trem.

Essas associações entre informação sensível e significado na organização e qualificação


de diferentes lugares fazem parte do conjunto de interesses que moveu esta pesquisa. Tal
interesse acompanha um crescente número de estudos do ambiente sensorial dos espaços

5
Disponível em: http://diplomatique.org.br/marketing-sonoro-invade-as-cidades/ . Visitado em
01/02/2019.
53

habitados, em diferentes áreas do conhecimento (THIBAUD, 2012, p. 03). Percepção,


paisagem, sensações, corpo, ambiências e outros termos diretamente relacionados às
experiências comuns dos habitantes da cidade tornaram-se palavras-chave cada vez mais
comuns em publicações recentes sobre o espaço urbano, partindo sempre de questões
como: como o espaço urbano contemporâneo mobiliza a sensibilidade dos moradores da
cidade? Como a experiência sensível funciona tanto como analisadora e operadora das
mudanças urbanas atuais? O que o pensamento sobre a cidade sensível nos ensina sobre
as formas de vida atuais e as maneiras de conviver? Que ferramentas conceituais e
metodológicas podemos usar para iniciar o trabalho de campo nesta área? (THIBAUD,
2012, p. 04).

No entanto, como apontam Gallagher & Prior (2014), esse interesse pelos aspectos
sensíveis da vida urbana ainda é tímido na Geografia, especialmente quando pensamos
nas dimensões não-visuais (sonora, tátil, olfativa) das cidades. Apesar de encontrarmos
trabalhos isolados, como o artigo sobre as “paisagens olfativas” de Porteous (1985) e o
livro lançado há poucos anos por Wissman (2014) sobre a geografia do som urbano, ainda
são raros os geógrafos dedicados a estudos desse tipo.

3.2 – Da Geografia visual à Geografia dos sons

Junto com Gomes e Ribeiro (2013), gostaríamos de apontar que o raciocínio geográfico
sempre esteve associado a um imprescindível aparelhamento visual, atendendo, desde
seus primórdios, a um verdadeiro imperativo gráfico. Essa necessária associação surge
mesmo na denominação da disciplina: Geo + grafia, contendo, assim, em seu próprio
corpo, a concepção de informações que estão gravadas, inscritas.

Para ilustrar essa afirmação, podemos lembrar que a descrição, classificação e


interpretação da paisagem configura um dos campos de estudo mais tradicionais na
Geografia que, desde os seus primórdios, está ancorado nos aspectos visíveis do mundo.
De Sauer (1998 [1925]) a Cosgrove (2012), pouca atenção foi dada aos aspectos não-
visuais da paisagem e dos lugares. O que é descrito e compreendido nessas pesquisas é,
em grande parte, aquilo que é visto.
54

Esse imperativo visual da Geografia é revelado também na forma como comunicamos o


conteúdo produzido pela disciplina: mapas, desenhos, gravuras, pinturas, fotografias,
diagramas, fluxogramas e esquemas corroboram a ideia de que a informação geográfica
foi, desde os seus primórdios, informação gráfica.

Não por acaso, autores de linhas de pensamento distintas, como Gregory (1994), Smith
(2000), Rose (2003) e Cosgrove (2012) reconheceram o conhecimento geográfico como
sendo “uma forma especial de visualização”, como afirmou o geógrafo britânico Halford
Mackinder muitos anos antes, em 1904 (apud RYAN, 1994). No Brasil, autores como
Gomes (2013) e Novaes (2011), produziram relevantes trabalhos sobre o tema.

Esse “ocularcentrismo”, ou seja, esse enfoque centrado unicamente no que é visível,


reflete-se também na forma como conduzimos os nossos trabalhos de campo.

Como nos relata Schwartz (1996), Humboldt levava sempre um "time de


ilustradores" (p.19) para seus trabalhos de campo e fazia uso frequente das
imagens em seus relatos. Como membro da Academia de Ciências, Humboldt
inclusive visitou, em 1838, o estúdio de um dos grandes inventores da fotografia,
Louis Jacques Mandé Daguerre, pois estava intensamente interessado no
processo de fixação de imagens através da "câmara obscura". Alguns anos mais
tarde, a câmera fotográfica se tornaria uma ferramenta "indispensável“ para a
realização de trabalhos de campo pelo geógrafo (SCHWARTZ, 1996 apud
NOVAES, 2011).

Ou seja, na Geografia, tradicionalmente, métodos e instrumentos de trabalho são


escolhidos com o propósito de potencializar a nossa capacidade de “ver o mundo”, de
observá-lo e descrevê-lo a partir dos seus atributos visuais, sejam eles as feições de um
relevo ou a morfologia de uma cidade.

Neste contexto, gostaríamos de argumentar a favor de uma Geografia interessada nos


aspectos não-visuais dos espaços estudados, mais especificamente, atenta às
possibilidades que se abrem ao adotarmos um referencial teórico, uma abordagem e um
conjunto de métodos voltados para o que se ouve e não apenas para o que se vê. Cabe,
então, explicar quais são os fatores que justificariam o interesse dos geógrafos pelos sons
do mundo.
55

3.2.1 – Por que o som?

Boa parte dos sons que ouvimos no nosso dia-a-dia, como os roncos de motores, o estalo
de um galho ou os ruídos ferroviários, são apenas resíduos de determinadas atividades
mecânicas. A outra parte é composta por emissões sonoras destinadas à comunicação,
como as buzinas dos carros e anúncios de ambulantes. Juntas, formam uma composição
sonora, cacofônica e involuntária, presente na maioria das grandes cidades, que é
percebida, em maior ou menor grau, por qualquer um dos seus citadinos.

À medida que a cidade cresce, multiplicam-se as fontes sonoras. Novos aparelhos


eletrônicos circulando, a intensificação do tráfego e a diversificação de tipos de uso do
solo são exemplos de transformações que trazem junto novas texturas para o som urbano.
Junto dessas transformações, crescem também as queixas públicas relacionadas ao ruído,
demandando respostas do Estado.

No Brasil, instituições públicas e setores do governo, em vários níveis, adotam normas


para gerenciar os conflitos derivados do excesso de barulho, muitas delas conhecidas
como “leis do silêncio”. Na cidade de São Paulo, o Programa de Silêncio Urbano (PSIU
- Lei 15.133) fiscaliza locais confinados, como bares, boates e restaurantes, mas não
vistoria festas domésticas, apartamentos e condomínios. Em Belo Horizonte, existe o
Programa Disque Sossego, serviço destinado ao o registro de reclamações de
estabelecimentos comerciais barulhentos. No Rio de Janeiro, a Lei Estadual n. 126, de 10
de maio de 1977, “dispõe sobre a proteção contra a poluição sonora” e considera infração
“a produção de ruído, como tal entendido o som puro ou mistura de sons, com dois ou
mais tons, capaz de prejudicar a saúde, a segurança ou o sossego públicos” (artigo 1º).

O peso que sons indesejáveis possuem na nossa qualidade de vida tanto demandou ações
por parte do Estado quanto despertou o interesse de empresas privadas. A americana
Howloud6, por exemplo, desenvolveu um método que permite avaliar “o quão
barulhenta” é uma determinada localidade a partir de dados sobre tráfego de carros e
tráfego aéreo. Com esses dados, a empresa mapeia uma estimativa do nível de ruído em
uma cidade. Em sua apresentação, a Howloud argumenta que, assim como informações

6
Disponível em: http://howloud.com/. Acessado em 20/01/2020.
56

sobre acessibilidade, segurança e oferta de serviços, essa estimativa auxilia as pessoas a


entender o que é viver em uma determinada vizinhança. Assim, o principal interessado
no serviço prestado pela empresa é o setor imobiliário, que oferece aos seus clientes os
mapeamentos sonoros realizados pela Howloud como uma importante referência na hora
de escolher um imóvel.

Na medida que classificamos praças, ruas, estações de metrô e outros locais a partir de
associações como barulhentos/estressantes ou silenciosos/tranquilos, estamos tomando o
som como elemento qualificador desses espaços, atribuindo a eles um significado a partir
da sua dimensão sonora. Por consequência, o som acaba configurando-se, também, como
uma importante referência para a organização do espaço urbano, demandando uma
regulamentação estatal e, como vimos, servindo de subsídio para a especulação
imobiliária.

Na perspectiva de Thibaud (2011), a composição formada pelos sons de um ambiente são


a expressão pública de uma forma específica de vida, de uma maneira particular de
convivência. Pessoas caminhando pelas ruas e conversando umas com as outras, carros
circulando, a construção de um novo edifício, enfim, há uma série de atividades e práticas
sociais que são audíveis e nos dão acesso ao que acontece em um determinado lugar.
Além disso, a largura das ruas, a altura dos prédios, o tipo de revestimento das
construções, a presença ou ausência de arborização e outros aspectos ligados à morfologia
local também afetam a sonoridade resultante das ações típicas de um espaço urbano,
gerando reverberações e influindo sobre o alcance espacial de um determinado som, por
exemplo. Dessa forma, também podem ser analisados por uma metodologia que privilegie
o som no estudo desses lugares.

Enquanto a visão tende a implementar uma distância entre quem percebe e o que é
percebido, e enquanto o olfato tende a produzir fenômenos excessivamente difusos e
voláteis, a audição pode agregar o afetivo com o cognitivo, o universal com o singular de
uma maneira muito equilibrada. Através da visão nós observamos um mundo diante de
nós, presumimos um distanciamento entre quem vê e o que é visto (WYLIE, 2007). Já o
som não está “aqui” ou “ali”, ele é omnidirecional. Diferentemente da cor, que
permanece “colada” ao objeto, o som tem a capacidade de se separar de sua fonte e
difundir-se em muitas direções. Estamos rodeados de sons que se propagam ao redor e
57

vêm de todos os lugares ao mesmo tempo. Através da audição, o mundo não se apresenta
à nossa frente, mas ao nosso redor.

Alguém poderia argumentar que cheiros e aromas também permitem essa experiência
imersiva que o som nos fornece. No entanto, a nossa audição, diferentemente do que
acontece com o nosso olfato, é suficientemente acurada para qualificar propriamente e
distinguir precisamente um ambiente de outro. Comparando-se a gravação realizada em
uma área de comércio popular do Rio de Janeiro/Brasil (neste link) e outra em uma
estação de metrô em Santiago/Chile (neste link), podemos notar como as ações e a
morfologia local afetam o que se ouve e distinguem bem esses dois lugares. O mesmo
não seria possível caso privilegiássemos cheiros e aromas.

Soma-se a esses argumentos o fato de possuirmos, hoje, técnicas disponíveis e acessíveis


para o registro e posterior análise do som. Podemos gravar, documentar e descrever a
dinâmica de um determinado ambiente através de registros sonoros, que podem ser
utilizados para projetar e desenvolver uma etnografia sensorial do mundo urbano. O
mesmo não acontece com os estímulos olfativos, o que impõe uma série de impedimentos
metodológicos à pesquisa.

Em suma, quando “ouvimos um lugar”, ouvimos uma organização social específica do


som e também a forma como as pessoas interagem e se relacionam umas com as outras.
O som é tanto a expressão quanto o meio de diferentes modos de interação e organização
da vida social. Em termos de ruído urbano, faz diferença perceber com que frequência os
motoristas acionam as suas buzinas, qual marca e tipo de carros eles dirigem, qual estação
de rádio podem ser ouvidas pelas suas janelas abertas, quais mercadorias são anunciadas
pelos comerciantes, que tipo de músicas. Através dos seus estilos-de-vida, os moradores
de uma cidade também produzem uma espécie de atmosfera (BOHME apud THIBAUD,
2011) ou, como colocou Schafer (2011), uma paisagem sonora.

3.2.2 – A paisagem sonora dos geógrafos

Na Geografia, os estudos que se dedicaram às relações entre som e espacialidade são, em


sua maioria, tributários das reflexões apresentadas pelo compositor, escritor e educador
canadense Raymond Murray Schafer. Em seu livro “A afinação do mundo” (SCHAFER,
58

2011[1977]), o autor nos apresentou o conceito de paisagem sonora (soundscape) e uma


série de conceitos (como objeto sonoro, evento sonoro, sons fundamentais, marcos
sonoros e sinais sonoros) que compunham o instrumental teórico-metodológico do seu
projeto acústico7.

Na perspectiva de Schafer, a paisagem sonora corresponderia a uma parcela dos sons de


um ambiente tomada como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes
reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em
particular quando consideradas como um ambiente (SCHAFER, 2011, p. 366).

Uma outra forma de compreender esse conceito é partindo da definição de eventos


sonoros que, para Schafer (2011), constituem a menor partícula independente de uma
paisagem sonora. “Evento” no sentido de alguma coisa que ocorre em certo lugar durante
um determinado intervalo de tempo. Isso sugere que o evento não pode ser abstraído do
continuum espaço-temporal, pensado de forma abstrata (SANTOS, 1996). O som do sino
de uma igreja, o batucar de um tambor, os ruídos dos automóveis, o canto dos pássaros
são todos exemplos de eventos sonoros. Sendo assim, o evento sonoro diz respeito a um
som situado no tempo, localizado no espaço e com uma fonte específica. Em outras
palavras, implica um contexto. E é justamente a associação de eventos sonoros que
formaria aquilo que chamamos de paisagem sonora.

A paisagem sonora tem sido a principal chave conceitual dos poucos geógrafos que se
dedicaram ao estudo do som. Uma consulta ao Banco de Teses e Dissertações indica a
existência de apenas três teses e três dissertações, de cinco autores diferentes, publicadas
no Brasil entre 2006 e 2016. Os temas abordados e as metodologias empregadas são
variados. Interessado na relação existente entre poluição sonora e qualidade ambiental,
Castorino (2012) empregou métodos quantitativos e realizou a medição dos Níveis de
Pressão Sonora (NPS) em um conjunto de Shopping Centers na Região Metropolitana de

7
O objetivo inicial de Schafer ao iniciar seus estudos acústicos, era a fundação de uma nova interdisciplina
com o objetivo de “descobrir princípios pelos quais a qualidade estética do ambiente acústico, ou paisagem
sonora, pode ser melhorado”. Para isso, ressaltava o autor, seria “necessário conceber a paisagem sonora
como uma vasta composição musical que ressoa incessantemente à nossa volta e perguntar de que modo
sua orquestração e sua forma podem ser aperfeiçoadas para produzir riqueza e diversidade de efeitos que
não sejam, todavia, destrutivos para a saúde ou o bem-estar humano (SCHAFER, 2011, p. 366)”. Ou seja,
sua motivação inicial era o desenvolvimento de um campo de estudos que teria uma finalidade prática, a
saber, a melhoria da qualidade do ambiente sonoro que moldamos cotidianamente.
59

Goiânia, buscando mapear o ruído presente nesses espaços. Já Furnaletto (2014) utilizou
uma abordagem de viés fenomenológico para estudar o folguedo do boi e as suas
paisagens sonoras, destacando o papel da sonoridade produzida por essa manifestação
popular na construção de identidades e na consolidação de laços de pertencimento ao
lugar. Silva (2016) investigou os conflitos referentes à reivindicação de reconhecimento
público das práticas rituais evangélicas pelo estado laico, registrando os caminhos para a
formação de um patrimônio imaterial evangélico na Região Metropolitana de Fortaleza a
partir da paisagem sonora produzida por este movimento religioso. Por último8, Marcos
Alberto Torres, professor do departamento de Geografia da UFPR, é o que possui
produção mais relevante sobre o tema, publicando artigos (TORRES, 2010) e dedicando
o seu mestrado e o seu doutorado ao estudo das paisagens sonoras (TORRES, 2009;
TORRES, 2014), sempre empregando métodos qualitativos, como entrevistas e mapas
mentais.

Quando buscamos artigos produzidos por geógrafos sobre o tema, também encontramos
poucos exemplares. Em uma varredura que incluiu todas as revistas de Geografia
nacionais disponíveis online, encontramos 37 trabalhos que tomaram o som como objeto
de estudos, nos quais destacavam-se os nomes de Malanski (2016; 2017) e Torres (2010;
2012).

Ainda que as pesquisas citadas possuam enfoques e metodologias distintas, é possível


identificar um problema recorrente em boa parte dos trabalhos citados. Os seus autores
costumam realizar uma transposição direta do conceito de paisagem sonora e de outras
noções utilizadas nos estudos de Schafer (2011) para a Geografia, sem considerar o longo
debate que se construiu na disciplina a respeito do estudo da paisagem. Sendo este um
dos conceitos fundamentais da Geografia, esperava-se que a definição e as reflexões
apresentada por Schafer (2011) a respeito das paisagens sonoras fossem confrontadas
com aquelas desenvolvidas por autores como Sauer (1998), Cosgrove (2012), Wilie
(2007), algo que não acontece nos trabalhos elencados acima.

8
Gostaríamos de mencionar também a dissertação de mestrado defendida por Rodrigo Passos Felicissimo
(2006), que trata da paisagem sonora dos migrantes, mas que não está disponível para consulta online e não
pode ser analisada.
60

Essa lacuna torna-se especialmente problemática se lembrarmos que, na Geografia e


também em outras áreas do conhecimento, o conceito de paisagem é utilizado
principalmente para descrever e analisar o mundo a partir da sua dimensão visual e, sem
uma necessária problematização, acabamos ignorando as especificidades existentes entre
os modos como percebemos o mundo através da visão e da audição. Essa transposição
do conceito de paisagem para os estudos sobre o som recebeu críticas de pensadores como
Tim Ingold e Ari Kelman, que, acreditamos, merecem ser aqui consideradas.

3.2.3 – A crítica da paisagem sonora

A primeira crítica apresentada por Ingold (2015) parte da premissa que a paisagem não é
algo essencialmente visual. Ela seria sim, visível, mas só se tornaria visual quando é
apresentada por uma técnica, como a pintura ou a fotografia, ou seja, através de uma
imagem despojada de qualquer outra dimensão sensorial. Da mesma forma, uma
paisagem pode ser audível, mas, para ser auditiva, teria que ter sido primeiro apresentada
por uma técnica de arte sonora ou gravação.

(...) o ambiente que experimentamos, conhecemos e no qual nos movimentamos


não está fatiado ao longo das linhas das vias sensoriais através das quais
entramos nele. O mundo que percebemos é o mesmo mundo, seja qual for o
caminho que tomemos e, ao percebê-lo, cada um de nós age como um centro
indiviso de movimento e consciência. Por esta razão, deploro a moda de se
multiplicarem as paisagens de todo tipo possível (INGOLD, 2015, p. 206).

Dessa maneira, o autor acaba por contrariar pensadores como o geógrafo John Wylie
(2007) e a filósofa Anne Cauquelin (2007), para os quais a paisagem é, essencialmente,
um conceito ligado à dimensão visual do mundo. Para Ingold, a paisagem não estaria
vinculada a qualquer registro sensorial específico – seja de visão, audição, tato, paladar
ou olfato – não fazendo sentido, portanto, a sua adjetivação. Ela diria respeito a uma
feição, à superfície do mundo, percebida por nós através do som, da luz, dos odores e
outros estímulos sensoriais. Nesse sentido, uma distinção entre uma paisagem e uma
paisagem sonora seria desnecessária.

Outra objeção ao conceito de paisagem sonora é apresentada por Tim Ingold a partir de
uma antiga provocação filosófica: “será que a árvore que cai em uma tempestade produz
algum som se não houver nenhuma criatura presente com ouvidos para ouvi-la?” Tal
61

questionamento se desdobra em outros: será que o som consiste em vibrações mecânicas


no meio? Ou será algo que registramos apenas dentro de nossas cabeças? Trata-se de um
fenômeno do mundo material ou da mente? Estaria “lá fora” ou “aqui dentro”? Para o
autor, tais questionamentos partem de uma ideia equivocada de dois mundos, o da
materialidade e o da mente, divididos rigidamente, enquanto o som, em verdade, não
seria um fenômeno nem mental nem material, mas um fenômeno da experiência. É um
fenômeno que resulta da nossa imersão no e na mistura com o mundo em que nos
encontramos.

A paisagem das coisas – isto é, sua conformação de superfície – nos é revelada graças à
sua iluminação. Quando olhamos em volta em um belo dia, vemos uma paisagem banhada
pelo sol, não uma paisagem luminosa (lightscape). Da mesma forma, ao ouvir os nossos
arredores, não ouvimos uma paisagem sonora (soundscape). Pois o som, eu diria, não é o
objeto, mas o meio de nossa percepção. É aquilo em que ouvimos. Da mesma forma, não
vemos a luz, mas vemos na luz (Ingold, 2015, p. 208).

Kelman (2010) é outro autor que questionou o uso pouco problematizado das reflexões
de Schafer a respeito da paisagem sonora. Como nos aponta o autor, as reflexões que
Murray Schafer desenvolveu durante a década de setenta aparecem, desde então, como
importante referência não só para os geógrafos, mas para quase todos os pesquisadores
interessados no fenômeno do som. O termo aparece em títulos de livros, capítulos e
artigos, em nomes de álbuns musicais, em performances artísticas, em descrições de
gravações de campo, no vocabulário da engenharia acústica de teatros e salas de show.
No entanto, afirma Kelman (2010, p. 214),

apesar da popularidade que o termo alcançou, a definição original de Schafer


para as paisagens sonoras tratava de algo muito mais específico. Longe de ser
algo tão amplo e tão descritivo, a forma como Schafer empregou a noção de
paisagem sonora estava alinhada com mensagens ecológicas e ideológicas sobre
os sons que “importam” e os sons que não. Suas reflexões são permeadas por
instruções sobre como as pessoas “devem ouvir” e boa parte do seu livro “A
afinação do mundo”, citado anteriormente, traça uma longa e distópica história
que parte dos sons harmoniosos da natureza para chegar à cacofonia da vida
urbana moderna.

Na perspectiva de Kelman (2010, p. 2014), o que Schafer nos apesenta nesse livro não é
um campo neutro de pesquisa acústica, tratando-se de um livro mais prescritivo do que
descritivo. Se apropriando fortemente de uma linguagem do movimento ambientalista,
62

Schafer tem como alvo a "poluição sonora" e "superpopulação de sons" e “a invasão da


vida moderna e mecanizada nos sons mais pastorais do campo, do mar e da floresta”.
Como resposta a essa situação, o livro de Schafer defende uma nova maneira de organizar,
conter, mapear e preservar os sons que trarão de volta um equilíbrio para o nosso ambiente
sonoro.

Um trecho emblemático sobre o enfoque dos estudos acústicos de Schafer aparece quando
o autor classifica a paisagem sonora das grandes cidades como sendo de baixa-fidelidade,
ou seja, marcada pelo excesso de ruído que nos impede de ouvir os sons de forma definida
e independente um dos outros. Essa baixa-fidelidade estaria ligada à grande densidade de
atividades produtoras de som nas cidades, enquanto a “paisagem sonora original era
silenciosa”. Apesar do fato do autor não explicar o que é, onde e quando essa “paisagem
sonora original” existiu, esse tipo de oposição revela como, na perspectiva de Schafer,
em uma grande cidade, haveria pouco espaço para a produção de novos significados para
os sons urbanos. Para ele, grande parte do que se ouve é apenas barulho e ruído. São sons
indistinguíveis e desagradáveis, que deveriam ser isolados pelos moradores da cidade a
partir de uma “educação da escuta”. Essa paisagem sonora urbana, supostamente
cacofônica e incompreensível, é entendida, portanto, mais como algo a ser superado do
que ouvido e analisado.

As críticas apresentadas por Tim Ingold e Ari Kelman à definição e ao uso,


respectivamente, do conceito de paisagem sonora implica em uma série de questões. A
partir dos apontamentos de Ingold, podemos questionar: faz sentido abordar as relações
existentes entre som e espacialidade a partir do conceito de paisagem? A simples retirada
da adjetivação “sonora” supera as tensões inerentes ao uso desse conceito em um estudo
dedicado à dimensão sonora do mundo? As críticas apresentadas pelo autor de fato
inviabilizam o uso do conceito em uma pesquisa geográfica do som? E frente ao que
Kelman expôs, cabe também a pergunta: a pressuposição de Schafer sobre o que seriam
“sons que importam” e “sons que não importam” e a sua preferência em educar as pessoas
a isolar o som, ao invés de analisá-los, não faria das suas reflexões pouco úteis, frente à
sua forte carga ideológica?

Ainda que pesem as críticas de Ingold às contradições inerentes ao conceito de paisagem


sonora e as de Kelman à abordagem apresentada por Schafer, podemos dizer, que o
63

conceito possui um importante papel operacional, na medida que destaca um registro


sensorial que é usualmente negligenciado em relação à visão. O próprio Schafer considera
a possibilidade de utilizarmos o termo ambiente sonoro (2011, p. 366), deixando claro
que sua preocupação maior era encontrar um termo que identificasse as composições
sonoras dos diferentes espaços habitados, ou seja, que nos ajudasse a recortar qual parcela
do mundo percebido nos interessa estudar.

Como vimos, Ingold defende que “na prática perceptual ordinária estes registros
cooperam tão proximamente, e com tal sobreposição de função, que suas respectivas
contribuições são impossíveis de serem separadas” (INGOLD, 2015, p. 206). No entanto,
ainda que as informações sensíveis nos atinjam de forma contínua e sincrônica, e que
combinadas conformem uma espécie de ambiência (THIBAUD, 2012), qualquer um de
nós é capaz de focalizar os seus sentidos individualmente e perceber, separadamente, o
que ouve, o que vê e o que cheira. Além disso, são justamente conceitos como os de
landscape, soundscape e smellscape que nos permitem analisar a nossa interação com o
mundo destacando aspectos específicos de cada um dos nossos sentidos.

Da mesma forma, ainda que a abordagem de Schafer esteja comprometida com o


pensamento ecológico do seu tempo e o emprego que o mesmo fez da paisagem sonora
visava uma educação sobre a escuta e uma “limpeza” da poluição sonora, isso não
compromete o potencial explicativo que o conceito oferece, de tal modo que o mesmo
vem sendo utilizado em pesquisas de propósitos muito distintos. Ao adaptar o termo
landscape para soundscape, Schafer nos ofereceu uma importante ferramenta analítica
para compreender o mundo indo além dos seus aspectos visuais.

Desse modo, o conceito de paisagem sonora assume importância central nesta tese, sendo
fundamental nas análises que realizaremos dos dados coletados nas feiras visitadas. Tais
análises serão ancoradas, também, por um conjunto de conceitos associados à parcela
audível do mundo que nos cerca. Os primeiros, sinais sonoros, sons fundamentais e
marcas sonoras, foram cunhados pelo próprio Schafer (2011) e receberão aqui a
problematização necessária para que possam nos servir como instrumentos de análise. Já
os conceitos de ponto de vista (ou escuta, como vamos propor), composição e exposição
são debatidos por Gomes para tratar das relações entre espacialidade e visibilidade, mas
passarão pelas adaptações necessárias para também atender aos fins desta tese.
64

3.3 – Conceitos básicos para observação e análise das paisagens sonoras

3.3.1 – Sinais sonoros, sons fundamentais e marcas sonoras

Estamos alinhados a Schafer (2011, p.25-26), quando o autor afirma que o que “o analista
da paisagem sonora precisa fazer, em primeiro lugar, é descobrir os seus aspectos
significativos, aqueles sons que são importantes por causa da sua individualidade,
quantidade ou preponderância”. Ou seja, nosso debate sobre como empreender esta
investigação deve levar em conta duas questões iniciais: o que queremos ouvir em campo
e como descrever e classificar aquilo que é ouvido? O próprio Murray Schafer, ainda que
comprometido com outros objetivos (KELMAN, 2010), propõe três conceitos para a
análise da paisagem sonora que nos serão úteis neste estudo: sinais sonoros, sons
fundamentais e marcas sonoras.

Os sinais sonoros são sons destacados, ouvidos conscientemente. Trata-se de “qualquer


som para qual atenção é particularmente direcionada” (SCHAFER, 2011, p. 368). Uma
forma de compreender essa noção é através da comparação com a nossa percepção visual.
Quando olhamos para uma pintura, conseguimos, geralmente e sem muito esforço,
distinguir a “figura”, que é o foco da nossa atenção, do “fundo”, aquilo que é considerado
contexto, cenário. Ou seja, conseguimos distinguir uma determinada forma que se destaca
do restante da composição em tela. O mesmo acontece com a nossa percepção auditiva.
Alguns sons se destacam e atraem a nossa atenção. Esse destaque, no entanto, não está
necessariamente relacionado aos aspectos físicos do som:

Não há nada a fazer com a dimensão física do som, pois já mostrei de que modo
mesmo os sons muito fortes, como os da Revolução Industrial, permaneceram
completamente indiscerníveis até que sua importância social começou a ser
questionada. Por outro lado, mesmo os sons mais delicados serão notados como
figuras quando são novidade, ou quando percebidos por forasteiros. Assim, Lara
nota o ruído das luzes elétricas em Moscou tão logo Pasternak a faz mudar-se do
interior para lá (Doutor Jivago), ou eu noto o rangido das pesadas cadeiras de
metal no chão de ladrilhos dos cafés de Paris cada vez que visito essa cidade
como turista (SCHAFER, 2011, p. 215).

Nesse sentido, a identificação dos sinais sonoros de um lugar não pode ser realizada
levando-se em consideração apenas os aspectos como o volume e a altura do som. Como
o trecho acima ilustra, um som pode se destacar frente a outros que nós ouvimos por conta
de uma experiência subjetiva. O tema de uma música ou um determinado tom de voz
65

pode nos remeter a uma memória pessoal, por exemplo. Eles se destacam do “fundo” pelo
significado que atribuímos a eles, sendo percebidos por nós como “figuras”. Aqui, não
trataremos desse aspecto. Nos interessam os sinais sonoros cujos significados são
compartilhados socialmente. Mais especificamente, nesta pesquisa, aqueles que
organizam e orientam a espacialidade de um determinado lugar, a feira. Como, então,
identificá-los?

Primeiramente, a identificação dos sinais sonoros de um determinado lugar envolve uma


análise que encare o som como um evento, ou seja, como algo que acontece em um
espaço-tempo específico, em uma determinada situação, o que vai influir sobre os
significados a ele atribuídos. O conjunto de sons mecânicos de um trem que se aproxima
poderia ser mais um indistinguível entre tantos outros sons urbanos, mas, como
exemplificamos anteriormente, ele acaba se configurando como sinal sonoro para quem
está habituado ao ambiente da estação e o identifica como anúncio da chegada da
composição. É neste contexto específico que esses sons assumem um determinado
significado. A compreensão do papel que o som exerce naquela ordem espacial passa,
portanto, pela consideração de um contexto.

Em segundo lugar, é preciso considerar que apesar dos sinais sonoros poderem ser
“organizados dentro de códigos bastante elaborados, que permitem mensagens de
considerável complexidade a serem transmitidas àqueles que podem interpretá-las”
(SCHAFER, 2011, p. 27) e apesar de muitas das nossas atividades cotidianas dependerem
da correta leitura dos códigos atrelados a esses sinais, nem sempre temos consciência dos
significados que atribuímos aos sons que percebemos no dia-a-dia. Desse modo,
consideramos que a identificação dos sinais sonoros na nossa área de estudo envolve não
só uma escuta atenta da paisagem sonora, mas também a análise dos comportamentos a
ela associados. Nossa proposta envolve a observação dos frequentadores das feiras ea
identificação de quais são os sinais sonoros que, de alguma forma, organizam e orientam
a espacialidade do local estudado.

Se, na metáfora visual que utilizamos anteriormente, os sinais sonoros correspondem à


“figura”, os sons fundamentais corresponderiam ao que a chamamos de “fundo”. Falamos
aqui dos “sons ouvidos continuamente por uma determinada sociedade ou com uma
66

constância suficiente para formar um fundo contra o qual os outros sons são percebidos”
(SCHAFER, 2011, p. 368).

Para Schafer (2011, p. 26), “os sons fundamentais não precisam ser ouvidos
conscientemente; eles são entreouvidos, mas não podem ser examinados, já que se tornam
hábitos auditivos, a despeito deles mesmos”. No entanto, sua preponderância e
perenidade podem acabar gerando uma espécie de sentido de lugar (TUAN, 2013):

Os sons fundamentais de uma paisagem são os sons criados por sua geografia e
clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais. Muitos desses sons
podem encerrar um significado arquetípico, isto é, podem ter-se imprimido tão
profundamente nas pessoas que os ouvem que a vida sem eles seria sentida como
um claro empobrecimento (SCHAFER, 2011, p. 26).

Falamos, então, de sons e composições sonoras que, ao mesmo tempo que não capturam
nosso foco de atenção, são preponderantes e perenes em um determinador lugar, ao ponto
de se tornarem uma marca identitária dos mesmos. A consideração dessa categoria pode
nos permitir levantar questões como: quais sons ou conjuntos de sons encerram um
“significado arquetípico” na área de comércio analisada? Quais sons estão “imprimidos
tão profundamente” nos frequentadores da feira de modo de conformarem um sentido de
lugar?

O último conceito proposto por Schafer (2011, p. 27) é o de marca sonora. O termo em
inglês, soundmark, é uma variação de landmark, e refere-se a “um som da comunidade
que seja único ou que possua determinadas qualidades que o tornem especialmente
significativo ou notado pelo povo daquele lugar”. No nosso caso, não estamos tratando
exatamente de um “povo” ou de uma “comunidade” em específico, mas acreditamos que
é possível identificar marcas sonoras mesmo no interior de grandes cidades e que tais
marcas podem, não pela sua perenidade, mas pela sua individualidade, compor a
identidade de determinados lugares. O badalar do sino de uma igreja em um bairro
residencial e o canto de torcidas organizadas em áreas próximas a estádios de futebol são
exemplos.

Para a identificação das marcas sonoras, seguiremos o mesmo expediente que


utilizaremos para os sons fundamentais, realizando os procedimentos de escuta e
67

gravação dos sons que, pelo seu caráter endêmico e simbólico, configurem-se como
verdadeiras marcas sonoras das feiras estudadas.

3.3.2 – Pontos de escuta e composições sonoras

Os outros três conceitos utilizados para balizar os nossos procedimentos analíticos são
resultado de um diálogo com Gomes (2013) que, para abordar as relações existentes entre
espacialidade e visibilidade, fez uso de três expressões frequentemente utilizadas nos
discursos sobre as artes: ponto de vista, composição e exposição. Tal uso se justifica pelo
fato desses termos, afirma o autor, possuírem um fundamento posicional e, portanto,
espacial, geográfico. Apesar de apresentar preocupações distintas das nossas e, seguindo
a tradição geográfica, estar concentrado principalmente naquilo que é visível, a discussão
levantada por Gomes aponta o caminho para dois conceitos que pretendemos utilizar na
nossa pesquisa.

Na concepção do autor, ponto de vista, para além do sentido metafórico, refere-se aos
lugares que oferecem uma visão panorâmica, de onde se pode observar uma paisagem,
por exemplo. “Ponto” nesse caso indica um lugar determinado, uma posição da qual
podemos ver algo que não veríamos se estivéssemos situados em outra posição qualquer.
A expressão estabelece, portanto, uma relação direta entre o observador e aquilo que está
sendo observado. O ponto de vista é, portanto, um dispositivo espacial (posicional) que
nos permite ver certas coisas (GOMES, 2013, p. 19).

Queremos propor aqui uma noção análoga a de ponto de vista: o ponto de escuta. O
argumento fundamental é que aquilo que ouvimos é, assim como aquilo que vemos,
resultado também de um jogo de posições, composto por quem ouve e o que é ouvido.
Buscamos, diariamente, de forma intuitiva ou deliberada, nos posicionar de forma a ouvir
ou não ouvir determinados tipos de fontes sonoras. Ao assumirmos uma posição, não
estamos construindo apenas um campo de observação, mas também um campo de
audição. Dessa forma, tornamos outras parcelas desse campo periféricas e emudecemos
outra imensa parcela. Caminhando da entrada para o interior de uma praça, por exemplo,
podemos passar, em poucos metros, de um ambiente marcado pelo som cacofônico de
ambulantes, transeuntes e automóveis para um outro onde predominam os cantos dos
passarinhos e o farfalhar das folhas das árvores.
68

A noção de ponto de escuta é importante na nossa pesquisa por dois motivos principais.
Primeiramente, pois, em nossos trabalhos de campo, será necessária a escolha de pontos
estratégicos para a análise da paisagem sonora local. Ou seja, enfrentaremos a tarefa de
selecionar pontos que nos permitam a escuta e o registro dos sons importantes para a
nossa análise. Os critérios para a escolha desses pontos é um dos aspectos metodológicos
debatidos no Capítulo 03 desta tese. Como veremos, a nossa opção em campo foi operar
em movimento, deslocando o nosso ponto de escuta ao longo de uma caminhada pelas
feiras visitadas. Em segundo lugar, a ideia de ponto de escuta destaca a relação existente
entre “quem ouve”, “o que se ouve” e “de onde se ouve”, algo fundamental para
compreendermos tanto os fatores que modulam a paisagem sonora nos diferentes espaços
que compõem uma feira, quanto o papel que os sons assumem na organização espacial e
na orientação das trajetórias das pessoas em uma feira.

A composição, por sua vez, é definida por Gomes (2013) como sendo um conjunto
estruturado de formas, cores e coisas que, combinadas, produzem algo novo. Sob essa
perspectiva, a paisagem pode ser entendida, também, como uma composição. Formas de
relevo, diferentes tipos de cobertura vegetal, ocupação das terras, entre muitos outros
elementos, se associam de maneira original e configuram uma paisagem. E, argumenta
Gomes, um aspecto fundamental da paisagem, entendida como uma composição, é o jogo
de posições. A forma de dispersão desses dados que, integrados, dão origem a um novo
elemento corresponde à sua espacialidade. Essa espacialidade, ou esse “padrão de
dispersão”, é a marca de uma composição. Há uma ordem espacial que é a chave da
composição (GOMES, 2013, p. 21-22).

O mesmo termo, composição, pode se referir também a um conjunto estruturado de sons


e silêncios que, combinados, produzem algo novo. Isso parece óbvio quando pensamos
em uma música, resultado do trabalho de um compositor. Mas podemos falar, também,
do som ambiente, da paisagem sonora, como uma composição, como o resultado da
combinação de “elementos que se associam de maneira original”. E a forma como
percebemos essa composição também é, por sua vez, modulada por um jogo de posições
entre o ouvinte e as fontes sonoras. A partir de parâmetros como timbre, volume e altura,
somos capazes não só identificar as fontes sonoras que ouvimos, mas também as suas
posições em relação à nossa. A consideração de uma paisagem sonora como uma
69

composição, ou seja, como o resultado de um jogo de posições entre quem ouve e quem
é ouvido, é fundamental para a análise da relação entre som e espacialidade na nossa
pesquisa. Cabe agora, portanto, discutir os procedimentos metodológicos que permitirão
a operacionalização desses conceitos.
70

CAPÍTULO 4 – Discussão metodológica e procedimentos operacionais

4.1 – Som e espacialidade: questões metodológicas

4.1.1 – O trabalho de campo na Geografia

Para dar início à nossa discussão a respeito dos métodos empregados na condução desta
pesquisa, gostaríamos, primeiramente, de apresentar algumas reflexões sobre o trabalho
de campo na Geografia.

Primeiramente, é preciso lembrar que o trabalho de campo não é um procedimento


metodológico exclusivo da Geografia. Dessa forma, afirmamos juntos com Serpa (2006,
p. 09), que “uma reflexão sobre a importância do trabalho de campo nesta disciplina
requer a compreensão de sua especificidade frente às outras disciplinas”. Nesse sentido,
para que possamos discutir o trabalho de campo na Geografia, cabe aqui apontar o que há
de específico no conhecimento geográfico frente às outras formas de conhecimento. Para
o mesmo autor:

Poucos estariam dispostos a contestar o papel central do ‘espaço’ enquanto


conceito na produção do conhecimento geográfico. Isso é, com certeza, a
especificidade maior da Geografia, sua razão de ser perante as outras ciências.
Os estudos da dimensão espacial da sociedade e da dimensão social do espaço
colocam a Geografia diante da árdua tarefa de operacionalização do conceito de
“espaço” em sua dimensão empírica (SERPA, 2006, p. 10).

Gomes (2009, p. 26-27), em complemento, afirma que o terreno da ciência geográfica


não se define pela posse de um objeto específico, nesse caso, “o espaço”. O que delimita
as áreas de interesses da Geografia, para o autor, é muito mais um modo de pensar e
indagar o mundo do que a tomada de uma parcela específica desse mundo como objeto
de estudo. É, nas suas palavras, muito mais o tipo de questão que é dirigida a um
fenômeno do que o fenômeno em si que vai definir o teor geográfico ou não de uma
pesquisa. E o tipo de questão construído pela ciência geográfica é aquele que se interroga
sobre a ordem espacial dos fenômenos estudados.

Basta lembrar que a arquitetura, a história e a economia também podem tomar o espaço
como objeto de estudo e o que determina a especificidade de cada uma dessas áreas do
71

pensamento são as questões por elas levantadas. Todas elas, juntas com a Geografia,
podem dividir o mesmo objeto de pesquisa. No entanto, como afirma Gomes (2009, p.
27), uma análise geográfica se delineia quando a nossa questão central está preocupada a
ordem espacial dos fenômenos estudados. Ou seja, haverá sempre uma Geografia quando
a dispersão espacial construir a questão central do nosso problema. Ou ainda, a Geografia
existe em qualquer fenômeno em que haja uma ordem de dispersão espacial.

Essa perspectiva sobre a área de estudos da Geografia nos interessa aqui pois permite que
discutamos a importância do trabalho de campo na disciplina sem que precisemos nos
ater às especificidades epistemológicas e metodológicas dos subcampos da Geografia
Física e da Geografia Humana. O que nos interessa é o que elas possuem em comum: o
interesse pela dimensão espacial dos fenômenos que estudam. Estejam os geógrafos
dedicados ao estudo dos processos erosivos em uma bacia hidrográfica ou à difusão de
um tipo de comércio em uma cidade média, as duas perguntas fundamentais para esses
pesquisadores vão ser sempre duas: “onde?” e “por que aqui?”.

Sob essa perspectiva, para retornarmos agora ao debate sobre o trabalho de campo
propriamente dito, Pires do Rio (2011) destaca o fato de que o trabalho de campo
geralmente é tomado como ponto pacífico na Geografia, sendo pouco debatido, como se
este possuísse uma importância por si só:

Nas defesas de teses e dissertações, em muitas das apresentações, o trabalho de


campo é praticamente ignorado, quando muito mencionado de modo rápido ou,
no máximo, como referência que localiza e situa a origem do material coletado,
os procedimentos de laboratório ou o lugar da realização de entrevistas ou
aplicação de questionários. Como, por que e quando de sua realização não
integram os elementos mobilizados para a construção do objeto, ou ainda, o
campo em nada contribui para a objetividade da análise. Esta, por sua vez, será
assegurada pelos procedimentos operacionais do laboratório. Em decorrência, o
campo não se explica, nem se transmite, o campo se faz. “Hiper, super,
megaimportante” para a geografia (mas não só), o trabalho de campo, assim
considerado, preexiste à construção do objeto. Nessa perspectiva, toma-se o
campo como realidade física e evidente que foge à elaboração intelectual (PIRES
DO RIO, 2011, p. 49-50).

Complementando a crítica da autora, gostaríamos de concordar com Lacoste


(2006[1977], p. 91) quando este diz que “o trabalho de campo, para não ser somente um
empirismo, deve articular-se à formação teórica que é, ela também, indispensável. Saber
pensar o espaço não é colocar somente os problemas no quadro local; é também articulá-
los eficazmente aos fenômenos que se desenvolvem sobre extensões muito mais amplas”.
72

Já Alentejano e Rocha Leão (2006), e também Serpa (2006), enxergam o trabalho de


campo na Geografia como uma ferramenta importante na superação da “dicotomia
sociedade-natureza” e das “dicotomias e ambiguidades características da geografia”,
respectivamente.

No entanto, nos primeiros parágrafos deste texto expusemos como tais dicotomias,
especialmente aquela ligada à divisão entre Geografia Física e Geografia Humana, é
decorrente da concepção teórica que se tem da disciplina e não seria um procedimento
metodológico como o trabalho de campo que nos permitiria superar essa divisão. Por
outro lado, a indicação que o trabalho de campo permitira a superação dessa dicotomia,
denota que há, nesta prática, algo que é comum aos dois subcampos e, portanto,
fundamental ao pensamento geográfico.

Driver (2000) reconhece que em meio à heterogeneidade de significados ligados à ideia


de “campo” na Geografia, é possível identificar sempre a referência a três elementos que
costumam aparecer intimamente entrelaçados: a prática, a representação e a
espacialidade. Apesar de tal constatação não ser longamente desenvolvida pelo autor,
acreditamos que ela aponte um caminho interessante para identificarmos o lugar do
trabalho de campo na Geografia hoje.

Primeiramente, quando pensamos em trabalho de campo em Geografia, pensamos,


usualmente, em “atividades práticas”. Isso não significa um empirismo puro, já que a
concepção e a escolha das atividades a serem realizadas em campo pressupõem uma
reflexão teórico-metodológica por parte do pesquisador. Também não significa dizer que
é possível separar completamente, no curso da pesquisa, teoria e prática. No entanto, seja
com o objetivo de realizar uma exploração inicial, coletar dados primários ou para a
realização de experimentos, a ida a campo é tomada por todos nós como uma etapa da
pesquisa que extrapola a simples construção teórica do objeto de pesquisa. O trabalho de
campo é o momento no qual vamos realizar as atividades práticas, empíricas, necessárias
para testarmos nossas hipóteses iniciais a partir da coleta de dados e da observação com
as realidades geográficas que nos interessam.

Segundamente, a ida a campo sempre envolve a construção de representações. Latour


73

demonstrou isso de maneira brilhante, expondo todas as mediações necessárias para que
a coleta de dados empíricos em campo se transformasse em gráficos, textos, diagramas,
mapas e outras formas de se representar a realidade em estudo. Destacamos aqui um
trecho onde ele descreve a coleta de amostras vegetais por uma botânica em um campo
na Amazônia, ilustrando a relação entre a atividade prática e a construção de
representações:

Cada planta que ela remove representa milhares da mesma espécie, presentes na
floresta, na savana e na zona limítrofe entre ambas. Edileusa [a botânica] não
está colhendo um ramalhete, está reunindo as provas que quer preservar como
referência (aqui, em outra acepção da palavra). Deve ser capaz de encontrar o
que escreve em seus cadernos e recorrer a eles no futuro. A fim de poder dizer
que a Afulamata Diasporis, uma planta comum da floresta, é encontrada na
savana, mas apenas à sombra de outras que conseguem sobreviver ali, ela tem
de preservar, não a população inteira, mas uma amostra que se comportará como
uma testemunha silenciosa de sua assertiva. Na braçada que ela acaba de colher,
podemos identificar dais traços de referência: de um lado, uma economia, urna
indução, um atalho, um funil onde Edileusa toma uma única folha de grama
como representante de milhares de folhas de grama; de outro, a preservação de
um espécime que mais tarde atuará como fiador quando ela própria ficar em
dúvida ou, por diversos motivos, seus colegas duvidarem de suas afirmações
(LATOUR, 1999 [2001], p. 48).

Por último, retomemos a questão da espacialidade, destacada nos nossos parágrafos


iniciais. Como dissemos, o trabalho de campo não é um procedimento metodológico
exclusivo dos geógrafos. Etnógrafos, ecólogos, pedólogos, geólogos e tantos outros
pesquisadores realizam essa atividade como etapa importante do desenvolvimento dos
seus estudos. A espacialidade é, no entanto, o elemento fundamental que vai diferenciar
o trabalho de campo do geógrafo frente aos outros. Isso não significa que o mapeamento
e outras formas de organizar o mundo espacialmente não sejam importantes para as outras
áreas do pensamento. Obviamente são. Mas é a espacialidade dos fenômenos e a
pressuposição que a análise dessa espacialidade pode revelar aspectos importantes sobre
eles que motiva o geógrafo a ir a campo. A coleta de dados na geografia é orientada pela
busca por uma compreensão da organização espacial dos seus objetos de estudos.

Nesse sentido, podemos afirmar que, independente do tipo de pesquisa que se realiza na
geografia, seja ela de caráter natural ou social, o trabalho de campo assume a função de
etapa metodológica em que um conjunto de atividades práticas vai permitir a construção
de uma representação do fenômeno estudado no qual esteja destacada a sua dimensão
74

espacial. De forma simples e direta, este nos parece ser o aspecto fundamental que
diferencia o trabalho de campo na Geografia frente aos outros.

Há, ainda, um quarto aspecto, ignorado por Driver (2000), que gostaríamos de tratar aqui:
o peso dado pelos geógrafos nas suas abordagens e, consequentemente, nos trabalhos de
campo, aos aspectos visuais do mundo.

Como foi apontado no capítulo anterior, o raciocínio geográfico sempre esteve associado
a um imprescindível aparelhamento visual e na Geografia, tradicionalmente, métodos e
instrumentos de trabalho são escolhidos com o propósito de potencializar a nossa
capacidade de “ver o mundo”, de observá-lo e descrevê-lo a partir dos seus atributos
visuais, sejam eles as feições de um relevo ou a morfologia de uma cidade.

Quando decide-se realizar uma pesquisa em um campo de estudo ainda pouco explorado,
é muito comum que tenhamos que buscar novas ferramentas que viabilizem essa
investigação. Em um trabalho de campo dedicado às relações entre sons e espacialidade,
nos deparamos com o desafio de levantar dados que permitam uma análise geográfica a
partir da dimensão sonora do espaço. Para tal feito, muitos autores vêm utilizando os
chamados métodos fonográficos de pesquisa, ou seja, instrumentos de pesquisa que
permitam a escuta in loco, a gravação de áudio e sua posterior edição, reprodução e
audição (GALLAGHER e PRIOR, 2014).

Como aponta Lorimer (2007), gravações de áudio em trabalhos de campo têm sido
utilizadas para registrar os sons de animais selvagens, como o canto dos pássaros e
determinadas dinâmicas de caça, migração e reprodução que não poderiam ser registradas
com a presença humana (KRAUSE, 2013).

Métodos fonográficos também já foram utilizados em trabalhos de antropologia e


etnomusicologia: no registro de práticas e performances musicais e sonoras
(ANDERSON et al, 2005); análise da relação entre letras de música e construção de
identidade em diferentes escalas geográficas (LEHR, 1983); coleta de depoimentos sobre
o papel do som e da música na formação de identidades locais (BOLAND, 2010); em
pesquisas sobre como música e som se relacionam com poder e política (GALLAGHER,
2011); em pesquisas documentais e entrevistas sobre o papel do som e da música no
75

espaço de trabalho, na cidade, no campo e na vida cotidiana (BULL, 2000; CORBIN,


1998; DENORA, 2000; GARRIOCH, 2003; JONES, 2005; MATLESS, 2005); na
arqueologia acústica (SMITH, 2004); e, por fim, em etnografias focadas no papel da
música como mediadora da memória (ANDERSON, 2004).

Uma característica comum a todos esses trabalhos citados é o grande peso dado à voz
humana frente aos outros elementos sonoros que, caso fossem considerados,
possibilitariam outras abordagens do material coletado.

Como explicam Gallagher e Prior (2014), tradicionalmente, métodos fonográficos têm


exercido um papel importante na coleta de dados qualitativos na Geografia, através da
gravação de relatos orais para subsequente transcrição em texto. Tais métodos são,
geralmente, tomados como formas de “escutar”, permitindo que a “voz” dos respondentes
seja “ouvida”. No entanto, esse processo de transcrever em texto dados fonográficos é
geralmente visto de forma naturalizada, pouco problematizado, e tem sido assunto de
pouca reflexão.

O pressuposto de que se deve privilegiar o conteúdo verbalizado em relação aos


demais aspectos sonoros contidos na gravação de uma entrevista é
particularmente problemático para geógrafos, uma vez que isso tende a silenciar
algumas especificidades geográficas contidas no som: sotaques regionais, a
acústica, ambiência e ressonâncias dos espaços em que as entrevistas são
realizadas, entre outros (GALLAGHER e PRIOR, 2014, p. 04).

Buscando ampliar as possibilidades de utilização dos métodos fonográficos e a


investigação das paisagens sonoras, gostaríamos de refletir, aqui, junto com Gallagher e
Prior (2014), sobre as funções que gravações em áudio podem assumir em uma pesquisa.

Em um primeiro momento, tais gravações podem ser entendidas como a simples captura
e reprodução dos sons de um ambiente. Nesse sentido, o objetivo principal do pesquisador
seria garantir o máximo de fidelidade dos sons captados e a reprodução deve apresentá-
los de modo fiel e preciso. Makagon e Neumann (2009), escrevendo sobre a utilização de
documentação em áudio na etnografia, argumentam que:

ouvir o mundo como uma captura feita através de um microfone e


posteriormente escutada através de fones de ouvido ou caixas de som estéreo
76

é entender uma experiência sensorial de um momento. Ou seja, sons


gravados - independente da sua temporalidade – preservam uma sensação de
presença e imediatismo que posiciona o ouvinte em uma cena (MAKAGON
e NEUMANN, 2009, p. 12).

Tal afirmação sugere um ouvinte que é capaz, através da reprodução de áudio, de ouvir
os “sons do mundo”, embora esses sons não estejam de fato presentes. Ou seja, segundo
essa ideia, os métodos fonográficos possibilitariam a reconstrução de uma determinada
paisagem sonora com precisão, tornando-a disponível para outras pessoas ouvirem.

No entanto, essa noção de fidelidade é bastante questionável. As escolhas relacionadas às


técnicas de gravação, posicionamento de microfones e escolhas de pontos de escuta, por
exemplo, são sempre afetadas pelos interesses e objetivos de quem realiza a gravação. Ou
seja, as próprias práticas de captura de som interferem no resultado final da gravação,
impossibilitando uma fidelidade plena. Além disso, a própria ideia de captura também é
problemática. Quando acionamos um gravador para capturar um determinado som, nós
não estamos de fato trazendo-o conosco. Quando o processo de gravação termina, esses
sons se dissipam pelo mundo, deixando para trás apenas alguns traços nos meios de
gravações utilizadas. Devemos ter em mente, portanto, que, ainda que nossos
equipamentos de gravação sejam os mais transparentes e neutros possíveis, o resultado
das nossas gravações será sempre fragmentado, parcial e orientado. Precisamos
compreender que aquilo que se ouve em uma gravação é apenas parte do que estaria
audível em um determinado momento e que a nossa orientação, posição ou interesse não
pode tudo contemplar9.

Dessa forma, podemos chegar a uma outra maneira de compreender o papel das gravações
de áudio em uma pesquisa. Levack Drever (2002) afirma que os métodos fonográficos
quando utilizados na investigação de paisagens sonoras, podem se aproximar muito de
uma prática etnográfica. Ou seja, as gravações em áudio podem nos fornecer o material
necessário para uma “descrição densa”, nos termos apresentados por Geertz (2013). Isso,
segundo o autor, permite-nos aceitar que os dados produzidos são sempre frutos de
interpretação, ainda que haja uma tentativa de negar isso através da busca de um suposto
realismo ou transparência. Em outras palavras, o processo de gravação e posterior audição

9
A conclusão é tributária das reflexões feitas por Gomes e Ribeiro (2013) a respeito da utilização de
imagens na pesquisa Geográfica mas traduz bem a nossa argumentação aqui.
77

carrega em si a interpretação de uma ação, na medida que as técnicas e tecnologias usadas


para realizá-la são sempre informadas por diversas convenções e opções que determinam,
por exemplo, quais sons possuem algum significado na pesquisa e quais são aqueles que
são considerados ruído e devem ser eliminados. Além disso, em uma pesquisa como esta
que propomos aqui, nosso interesse principal é compreender as “teias de significados”
atreladas ao som ambiente, realizando uma interpretação do sentido que os sons possuem
no contexto onde foram produzidos.

Em suma, podemos dizer que quando nos dedicamos à investigação das relações entre
som e espacialidade utilizando métodos fonográficos, devemos ter em mente que o nosso
objetivo não é uma descrição absolutamente fidedigna daquilo que escutamos em campo,
tampouco realizar gravações que capturem o som ambiente em sua totalidade.
Dialogando com Geertz (2013), podemos dizer que nosso objeto é sempre uma hierarquia
estratificada de estruturas significantes em termos das quais ruídos, conversas, batuques,
palmas, risadas, assobios são produzidos, percebidos e interpretados e sem as quais eles
de fato não existiriam. Dedicados a essa interpretação, poderemos tanto destacar quais
são os aspectos espaciais intrínsecos ao som e compreender como o som condiciona a
organização e a qualificação de um espaço.

4.1.2 – As caminhadas de escuta e observação

Gallagher e Prior (2014) nos oferecem um bom panorama da utilização de métodos


fonográficos na Geografia e nas áreas correlatas. Segundo os autores, existem duas
principais vertentes na utilização desses métodos na análise das paisagens sonoras: sound
mappings (“mapeamentos do som”) e soundwalks (“caminhadas sonoras”).

A primeira vertente é autoexplicativa: consiste na construção de um mapa onde estejam


localizados diferentes tipos de som. Um bom exemplo é o projeto Favourite Sounds
realizado Peter Cusak, no qual perguntava-se às pessoas quais eram os seus sons favoritos
e onde elas costumavam ouvi-los. Com as respostas em mãos, Cusak registrou e mapeou
esses sons, criando um mapa sonoro-afetivo da cidade de Birmingham10. Outro exemplo
é o UK Sound Map realizado pela British Library, um experimento que contou com a

10
Disponível em http://favouritesounds.org/. Acessado em 02/02/2020.
78

participação pública e a base de dados disponível no London Sound Survey11, consistindo


no mapeamento sonoro dos bairros de Londres, cobrindo uma matriz de sons humanos e
não humanos (tais como cursos d’água, discursos políticos, sons de animais, trânsito,
entre outros)12.

Já as caminhadas sonoras (do inglês soundwalks) são uma prática desenvolvida no


âmbito do World Soudscape Project (WSP), grupo de pesquisa formado por Murray
Schafer e colegas da Simon Fraser Universisty, no final da década de 1960, com enfoque
na ecologia acústica.

Hidelgard Westerkamp (2001) definiu a caminhada sonora como sendo uma excursão
cujo propósito principal seja escutar o ambiente. Na proposta original apresentada pela
autora, perguntas como “quais sons eu ouço?” e “quantas fontes sonoras diferentes eu
identifico?” orientariam a nossa escuta durante a caminhada. Ou seja, a atividade surgiu
associada a uma função didática, com o propósito de educar a nossa escuta e permitir uma
percepção mais consciente do ambiente sonoro ao nosso redor ou, nas palavras de
Westerkamp (2001), de “redescobrir e reativar a nossa capacidade de escuta”.

Apesar de aparecer, inicialmente, como prática pedagógica, esse método vem sendo
adaptado e utilizado por pesquisadores com diferentes enfoques investigativos. Uma
caminhada sonora pode se dar, por exemplo, com o passeio de uma pessoa ou um grupo
por uma rota pré-definida, enquanto escuta-se atentamente o ambiente sonoro como ele é
encontrado. O termo pode significar também uma caminhada onde os participantes estão
equipados com microfones e outros aparelhos de gravação com o intuito de registrar os
sons encontrados ou, ainda, pode referir-se a um passeio onde as pessoas utilizam
aparelhos de MP3 para ouvir determinadas faixas de áudio pré-gravadas enquanto
caminham.

Na Geografia, Butler (2006, 2007) elaborou passeios sonoros com gravações contendo a
história oral de duas rotas ao longo do rio Tâmisa, em Londres, o que demonstra o
potencial que esta prática possui na discussão sobre história urbana e memória local.

11
Disponível em http://soundsurvey.org.uk/. Acessado em 02/02/2020.
12
Disponível em http://sounds.bl.uk/sound-maps/uk-soundmap. Acessado em 02/02/2020.
79

Já Adams et al. (2006) conduziram caminhadas sonoras com 34 pessoas na cidade de


Londres, durante o verão e o inverno. Na atividade, os participantes escolheram uma rota
e, após uma caminhada de dez minutos, eram entrevistados a respeito das suas
experiências. O resultado da pesquisa mostrou como elementos não-acústicos, tais como
a memória de experiências passadas, podem influenciar a avaliação que as pessoas fazem
dos sons que ouviram, destacando a importância das avaliações subjetivas para orientar
políticas de planejamento urbano e redução de ruído.

Outro exemplo é o trabalho de Catherine Sémidor (2006). A autora utiliza o método de


uma forma diferente dos estudos apresentados acima e bem próxima da experiência que
apresentaremos aqui: ao invés de conduzir participantes ao longo de uma rota escolhida
em uma área urbana, ela mesmo, utilizando um par de microfones binaurais, registrou os
sons encontrados ao longo do percurso.

A gravação de áudio binaural é uma técnica que permite registrar os sons na forma como
os percebemos em um ambiente, preservando aspectos que nos permitem perceber a
distância e o posicionamento preciso das fontes sonoras, por exemplo. Isso é possível
quando gravamos o som ambiente com um par de microfones instalados na posição dos
nossos ouvidos. Assim, quando utilizamos fones-de-ouvido13 para escutar a faixa de
áudio gerada na gravação, temos uma experiência auditiva muito semelhante àquela do
ambiente original.

No estudo de Semidor (2006), as faixas de áudio resultantes das gravações foram


transformadas em duas imagens bidimensionais, uma para o ouvido esquerdo e outra para
o direito, que indicavam as variações de parâmetros como frequência e intensidade do
som registrado ao longo do percurso que a autora realizou na cidade de Barcelona.
Associando a análise das imagens, as anotações e as fotografias que ela também realizou
durante as suas caminhadas, a autora pode avaliar como aspectos da morfologia urbana,
como a altura das edificações e a larguras das ruas, afetam a acústica e,
consequentemente, a forma como percebemos a paisagem sonora local.

13
O áudio gravado com o processo binaural é compatível com a reprodução através de caixas-de-som
comuns, mas o efeito imersivo e o jogo de posições das fontes sonoras só são percebidos com a utilização
de fones de ouvido.
80

Uma forma ainda pouco utilizada das caminhadas sonoras que nós aplicamos em nossos
trabalhos de campo é a realização de perfis sonoros ou, como preferimos chamar, trilhas
sonoras: o registro da variação de fontes sonoras, frequências, volume, ruídos ao longo
de um determinado trajeto. Realizando esse tipo de procedimento, foi possível registrar
as variações na paisagem sonora durante esse percurso, permitindo que, tanto em campo,
quanto posteriormente, avaliássemos como os sons locais afetam os fluxos internos de
uma área comercial estudada (FRIAS, 2018).

Inspirados nos exemplos citados acima e tendo em foco o a discussão central deste
trabalho, pretendemos demonstrar como esse exercício de caminhar, ouvir, registrar e
analisar a paisagem sonora, que chamaremos aqui de caminhadas de escuta e
observação14, pode ser uma interessante chave de investigação da feira.

4.2 – A construção de um método próprio

4.2.1 – Antes das feiras

O método empregado nesta pesquisa foi construído ao longo dos últimos cinco anos, em
um processo baseado, principalmente, na experimentação. O que vamos apresentar aqui
como sendo o nosso método é resultado de diversas tentativas de descobrir como
investigar a feira a partir da sua paisagem sonora. Desse modo, cabe realizarmos um breve
retrospecto do processo através do qual ele foi construído.

Primeiramente, é preciso dizer que antes mesmo de definirmos as feiras como objetos de
estudos centrais desta pesquisa, já nutríamos um interesse pelo estudo das paisagens
sonoras das cidades. Em 2015, ainda no início desta pesquisa, com um recorte temático,
espacial e metodológico indefinido, começamos a testar uma série de práticas de escuta e
registro dos ambientes sonoros de diferentes espaços públicos, no intuito de avaliar as
potencialidades e limitações de cada uma dessas práticas.

14
O termo soundwalks vem sendo para o portugês como caminhadas sonoras (Malanski, 2017; Holanda e
Bartholo 2017) e cobre uma gama muito diversificada de práticas pedagógicas, científicas e artísticas
(Nakahodo, 2014). Desse modo, acreditamos que a expressão caminhadas de escuta e observação clarifica
melhor o conjunto de práticas que envolvem o método utilizado neste trabalho.
81

Houve momentos em que passávamos algumas horas sentados em bancos de uma praça,
anotando e classificando os sons escutados. Em outros, caminhamos por mercados
públicos observando e registrando as estratégias orais de venda dos comerciantes locais.
Em algumas estações de metrôs, selecionávamos diferentes pontos da plataforma, da
entrada e da bilheteria para compreender as nuances da sua paisagem sonora. Também
houve casos em que, em uma caminhada por ruas comerciais, utilizávamos um
smartphone para ir narrando o que se observava e o que se escutava no percurso.

Nesse processo, surgiu a necessidade de encontrarmos um equipamento adequado à


pesquisa, que permitisse um registro de qualidade das paisagens que encontrávamos
nesses primeiros campos, ainda informais. Acabamos chegando ao gravador digital
portátil Zoom H1 utilizado de forma associada ao par de microfones binaurais Roland CS-
10em. Esse foi o equipamento utilizado em toda a pesquisa.

O gravador, além da ótima qualidade e do baixo custo, é um dispositivo portátil, o que


permitiu a realização das gravações em espaços públicos com bastante discrição. Os
microfones binaurais, como foi explicado anteriormente, foram escolhidos por
produzirem uma gravação em que a espacialidade dos sons ouvidos in loco é mantida,
algo fundamental na pesquisa que estamos realizando. Além disso, tais microfones
também apresentavam a vantagem do seu formato se assemelhar ao de fones-de-ouvido,
passando desapercebidos em público.

Com o equipamento em mãos, e já em contato com as práticas de soundwalks de


Hildegard Westerkamp, passamos a nos concentrar em testar as possibilidades que a
gravação binaural oferecia. Assim, realizamos gravações em caminhadas por espaços
públicos como o Mercado Popular da Uruguaiana e a Feira do Lavradio (Rio de Janeiro),
Praça da Sé e Parque Ibirapuera (São Paulo), Mercado Central e Centro de Belo
Horizonte, Brique da Redenção (Porto Alegre), Plaza de Armas e Metrô Baquedano
(Santiago, Chile). Aos poucos, fomos entendendo como operar os aparelhos, como
garantir os melhores ajustes e compreendendo como eles poderiam auxiliar na pesquisa.
Na tabela abaixo, estão listados os locais onde essas gravações iniciais, de caráter
experimental, foram realizadas. Tais gravações podem ser acessadas pelo link
https://soundcloud.com/ouvindolugares/sets/soundwalks.
82

Tabela 03 – Listagem dos pré-campos realizados


Número Data da realização Local
Feira de Antiguidades da Rua do Lavradio, Centro
01 05/03/2016
(Rio de Janeiro)
02 24/03/2016 Praça da Sé, Centro (São Paulo)
03 25/03/2016 Parque Ibirapuera, Vila Mariana (São Paulo)
04 10/08/2016 Estação de Metrô Baquedano (Santiago, Chile)
05 13/08/2016 Calle Lastarria, Lastarria (Santiago, Chile)
Calle Puentes e Plaza de Armas, Centro (Santiago,
06 14/08/2016
Chile)
07 14/08/2016 Mercado Central de Santiago (Chile)
Avenida Senhor dos Passos e Mercado Popular da
08 24/08/2016
Uruguaiana, Centro (Rio de Janeiro)
09 07/12/2016 Centro de Belo Horizonte
10 12/12/2016 Mercado Central de Belo Horizonte
11 08/01/2017 Rua Galvão Bueno, Liberdade (São Paulo)
12 09/01/2017 Rua 25 de Março, Centro (São Paulo)
13 15/10/2017 Brique da Redenção (Porto Alegre)

Paralelamente à experimentação, alguns trabalhos foram produzidos e publicados. Em


2015, orientamos o trabalho “Entre consonâncias e dissonâncias: as paisagens sonoras de
Copacabana”, apresentado por Lívia Simões de Castro e Thomaz Menezes Leite na VI
Semana de Integração Acadêmica da UFRJ (CASTRO e LEITE, 2015), no qual os autores
apresentavam algumas das primeiras reflexões que realizamos ao testar os métodos de
pesquisa que viriam a ser utilizados nesta investigação. Dois anos depois, publicamos o
trabalho “Uma trilha sonora no Largo da Carioca: caminhadas de escuta e observação
como método de investigação dos espaços públicos” (FRIAS, 2018), no qual buscávamos
demonstrar como a organização espacial de camelôs e ambulantes no Centro da cidade
era orientado, entre outros aspectos, pelos sons que eles emitiam e escutavam nas suas
práticas de venda. O artigo intitulado “O trabalho de campo na Geografia: características
fundamentais e um convite à escuta” é o mais recente e já apresenta reflexões mais
consolidadas sobre métodos fonográficos e práticas de escuta e observação aplicados no
trabalho de campo geográfico (FRIAS, 2019).

O processo de tentativa e erro, a busca contínua pelos procedimentos mais adequados e o


refinamento do uso dos equipamentos e técnicas de gravação, indiretamente, nos
auxiliaram a construir o recorte temático e espacial desta pesquisa. Nessas
83

experimentações, nas quais explorávamos a sonoridade de diversos tipos de espaços


públicos, foi ficando clara a importância que o som assume em diferentes áreas
comerciais.

Nas ruas do Rio de Janeiro em que encontrávamos camelôs ocupando as calçadas, foi
possível ouvir a comunicação entre eles a respeito da chegada da Guarda Municipal e da
necessidade de recolher os produtos para que estes não fossem apreendidos. “Olha o rapa”
é um grito popularmente conhecido entre os cariocas, utilizado pelos vendedores de rua
justamente para avisar a chegada da fiscalização, mas outros códigos mais discretos,
também foram notados. Nos mercados públicos municipais, como o de São Paulo e o de
Belo Horizonte, o tempo todo éramos abordados com ofertas de amostras dos produtos e
simpáticos cumprimentos que introduziam um discurso pré-pronto sobre a qualidade dos
produtos oferecidos. De volta ao Rio, na área comercial localizada no Centro da cidade,
conhecida como S.A.A.R.A, não fomos abordados dessa maneira, mas em boa parte das
suas ruas é possível ouvir os anúncios que saem das caixas de som instaladas pela
associação de comerciantes local, indicando os melhores preços e o endereço das
promoções do dia.

Nessas áreas comerciais, o som parecia ser parte importante da estrutura organizacional
dos comerciantes, fosse orientando ações de autoproteção, como nos casos dos camelôs,
ou como parte das estratégias de propaganda e venda, como nos mercados públicos e no
S.A.A.R.A. Frente a tantos espaços comerciais visitados, a feira destacava-se pela sua
sonoridade. E a consulta à bibliografia especializada, debatida no Capítulo 01,
demonstrou como tal sonoridade era percebida de forma generalizada por pesquisadores,
visitantes, escritores e tantos outros que sobre a feira pensaram. Ficou evidente também
como, apesar de ser um tema recorrentemente lembrado, o som da feira ainda não havia
merecido uma atenção focada.

Desse modo, surgiu a hipótese de que uma pesquisa dedicada à paisagem sonora da feira
livre, apoiada no desenvolvimento de um método específico para o estudo desse espaço
particular, talvez pudesse revelar novos aspectos sobre ele. Assim, passamos a concentrar
nossos esforços a investigar a feira livre, teórica e empiricamente, fazendo dela o nosso
laboratório metodológico e o tema central da pesquisa.
84

4.2.2 – Indo à feira

Partindo da listagem oficial fornecida pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro,


realizamos o mapeamento das feiras livres registradas, e selecionamos as quatro feiras
localizadas na Região Administrativa de Copacabana como ponto de partida para a nossa
pesquisa. Tais feiras acontecem em diferentes dias da semana e em situações espaciais
também distintas, permitindo que testássemos e aperfeiçoássemos as nossas práticas de
pesquisa em variados cenários.

A primeira a ser visitada foi a da Rua Ronald de Carvalho. Balizada por duas das
principais avenidas do bairro, a Barata Ribeiro e a Nossa Senhora de Copacabana, esta
feira ocorre às quintas-feiras e é a única das quatro que acontece ao longo de uma rua.
Composta por duas fileiras posicionadas às margens das calçadas, ela possui um corredor
largo, geralmente denso de fregueses, turistas e demais transeuntes. No seu entorno
encontram-se, na parte térrea, principalmente restaurantes e outros estabelecimentos
comerciais, sob altos prédios residenciais ou de escritórios.

Figura 6 - Feira da Rua Ronald de Carvalho. Foto do autor.

A segunda foi a fera da Praça Serzedelo Correia, que acontece aos domingos e é a mais
movimentada das quatro. Formada por quatro fileiras de bancas que circundam toda a
praça, com exceção do trecho da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, ela possui dois
corredores de fregueses, comunicados pelas brechas deixadas entre as bancas ou por
85

aquelas que não foram montadas. Assim como a anterior, possui grande afluxo de
fregueses.

Figura 7 - Parte interna da Praça Serzedelo Correia. Foto do autor.

Figura 8 - Detalhe da feira vista da parte interna da Praça Serzedelo Correia. Foto do autor.

Em seguida visitamos a feira da Praça Almirante Júlio de Noronha. Das quase 160 feiras
existentes no Rio de Janeiro hoje, apenas 8 acontecem às segundas-feiras e esta,
localizada no Leme, em uma praça colada ao calçadão e à ciclovia, de frente para a praia,
é uma delas. Assim como as outras feiras de segunda, trata-se de uma feira de menor
86

porte, com um fluxo de fregueses bem menor quando comparada às demais feiras
visitadas. Posicionadas em um dos vértices da praça, as fileiras de bancas aqui assumem
a forma de um “L”, assim como o corredor entre elas.

Figura 9 - Detalhe da Feira da Praça Almirante Júlio de Noronha. Foto do autor.

Figura 10 - Detalhe da Feira da Praça Almirante Júlio de Noronha. Foto do autor.


87

A última das quatro feiras que compuseram o nosso recorte espacial inicial foi a feira da
Praça Edmundo Bittencourt. Ocorrendo às quartas-feiras, as duas fileiras de bancas desta
feira localizam-se nas margens da praça, circundando uma área interna composta por
bancos e mesas, quadras esportivas, aparelhos públicos de ginástica e de recreação
infantil. O entorno da praça é todo formado por prédios residenciais. Desde 1989, com a
Lei Municipal 1.390, que estabeleceu a APA do Bairro Peixoto, definiu-se o tombamento
de dezenas de imóveis nessa área e há a determinação das novas construções não
ultrapassarem a altura máxima de 15 metros. Em meio aos prédios de gabarito bem mais
elevado de Copacabana, o Peixoto configura-se como uma área residencial destacada do
restante do bairro.

Figura 11 - Parte interna da Praça Edmundo Bittencourt, rodeada pela feira. Foto do autor.

Entre setembro e novembro de 2017, realizamos doze trabalhos de campo nessas quatro
feiras. Sempre que visitávamos uma feira pela primeira vez, realizávamos uma série de
caminhadas exploratórias, circulando de maneira intuitiva pelo espaço da feira,
conhecendo-a com calma, muitas vezes realizando compras e fazendo o primeiro contato
com os feirantes. Os objetivos dessas caminhadas iniciais eram: identificar a distribuição
espacial de atividades e morfologias; observar os principais fluxos e arranjos espaciais,
além das formas de interação entre os frequentadores da feira livre; e avaliar quais tipos
de registros fonográficos deveriam ser realizados naquela feira. Para estes fins,
realizamos também registros fotográficos e trajetos comentados, no quais caminhávamos
88

pelo corredor central da feira, registrando em áudio as observações realizadas no


percurso.

Conhecidas as feiras, passávamos a realizar gravações de duas formas: selecionando


pontos de escuta específicos, observando as variações na composição ouvida em
diferentes posições, como atrás ou entre as bancas, nas calçadas, no centro das praças,
nos corredores; e ao longo de caminhadas, soundwalks, pelos corredores centrais das
feiras, mas também por trás das bancas, pelas calçadas, quando era possível.
Executávamos essas atividades diversas vezes, registrando as mudanças na paisagem
sonora da feira ao longo do dia. Nesse processo, acabávamos também nos apresentando
a potenciais entrevistados.

Como são poucas as pausas em um dia de trabalho na feira, nossas entrevistas ocorriam
principalmente nas primeiras horas da manhã, quando era possível dispor de um tempo
mais alongado com os feirantes enquanto eles arrumavam as mercadorias. Nesses casos,
as entrevistas ocorriam sem marcação prévia, de forma menos estruturada e com o
gravador desligado. Isso garantia uma espontaneidade na entrevista, que por vezes mais
se assemelhava a uma conversa. O conteúdo das perguntas, que se alterava conforme as
questões, foram aparecendo ao longo dos dias de trabalho de campo.

Alguns dos feirantes entregavam cartões com nome e telefone, outros pediam para que
voltássemos para continuar a entrevista. Nesses e em outros casos em que havia abertura
por parte dos informantes, marcávamos entrevistas mais estruturadas, geralmente ao final
dos dias de feira. Estas foram registradas com gravador, em seis ocasiões diferentes,
quando entrevistamos oito feirantes, titulares das quatro feiras de Copacabana e Leme,
mas que também trabalhavam em feiras da Zona Norte e Zona Oeste da cidade. Estas
entrevistas tratavam de dois temas centrais: a rotina de trabalho; as relações estabelecidas
entre feirantes, fregueses e demais frequentadores das feiras; os sons produzidos na feira,
uso da voz e outras estratégias sonoras na venda e nas atividades rotineiras de cada
feirante.

Wallace, vendedor de legumes que encontrávamos na feira da Praça Serzedelo Correia e


na da Rua Ronald de Carvalho, foi um dos principais colaboradores desta investigação,
tendo, diversas vezes, reservado um tempo para responder as perguntas que trazíamos,
mesmo que fosse necessário realizar uma pausa para isso. Foi ele quem nos indicou a
89

necessidade de conhecer mais feiras pela cidade, relatando as particularidades de outras


feiras em que ele trabalhava. Foi ele também que apontou a existência de uma lei
municipal em São Paulo, mencionada no Capítulo 02, que proibiria os feirantes locais de
anunciarem as suas mercadorias – fato que motivou a nossa ida à capital paulista para a
realização de trabalhos de campo.

A partir do trabalho de campo realizado na feira da Rua Ronald de Carvalho, em


16/11/2017, passamos a adotar uma rotina padronizada nas demais feiras visitadas. Os
trabalhos de campo passaram a ser baseados em uma sequência de caminhadas, realizadas
a cada meia hora entre 08:00 e 12:00 da manhã, na qual registrávamos os sons ouvidos
ao longo do percurso, utilizando o gravador e os microfones mencionados anteriormente.
Além das gravações, durante as caminhadas, observávamos a rotina da feira e as suas
transformações ao longo do dia. Entre uma caminhada e outra, buscávamos registrar
textualmente e em esquemas gráficos na caderneta de campo, algumas das nossas
impressões sobre o que observávamos e escutávamos em campo, além de realizar
registros fotográficos.

Entre 2017 e 2019 foram realizados vinte e quatro trabalhos de campo, em trezes feiras
diferentes. Partindo das indicações de Wallace e outros feirantes com que tivemos
contato, selecionamos novas feiras para aplicarmos esse método que agora chamamos de
caminhadas de escuta e observação. Ao total, foram nove feiras no Rio de Janeiro e
quatro feiras em São Paulo.

Em todas elas, a aplicação do método se mostrou eficiente. A escolha de caminhar


enquanto gravava os sons locais também pareceu acertada frente a dificuldade de
encontrar pontos-de-escuta fixos que não atrapalhassem a circulação e o trabalho na feira.
Realizando repetidas gravações enquanto caminhávamos pelo corredor das feiras, nos
misturávamos aos fregueses, ambulantes e demais presentes, escutando com calma e
observando as formas, as atividades, as pessoas e todos os sons da feira livre. Assim, foi
possível registrar as variações da paisagem sonora ao longo da sua extensão e durante o
passar do dia. A escuta posterior ao campo, associada à decisão de realizar novos campos
em outras feiras, aos poucos foram revelando os padrões que serão descritos e analisados
no próximo capítulo. Abaixo, apresentamos um mapa com a lista de todas as feiras
registradas na listagem oferecida pela Prefeitura, assim como as nove feiras visitadas na
90

cidade. Em seguida, organizamos as principais informações de cada campo realizado em


uma tabela.
91

Mapa 1 - Localização das feiras existentes no município do Rio de Janeiro e das feiras visitadas em trabalho-de-campo. Elaboração: Rafael Gomes.
92

Número Data da realização Local Procedimentos Realizados Objetivos


Caminhadas exploratórias, trajetos
Feira da Rua Ronald de comentados pela rua, caminhadas Reconhecer os principais aspectos morfológicos e
01 21/09/20117 Carvalho, Copacabana de escuta e observação. Registro organizacionais da feira. Registrar os sons
(Rio de Janeiro) fonográfico da feira. Anotações na ouvidos em campo e classificá-los.
caderneta-de-campo.
Caminhadas exploratórias, trajetos
Feira da Praça Serzedelo comentados pela rua, caminhadas Reconhecer os principais aspectos morfológicos e
02 24/09/2017 Correia, Copacabana de escuta e observação. Registro organizacionais da feira. Registrar os sons
(Rio de Janeiro) fonográfico da feira. Anotações na ouvidos em campo e classificá-los.
caderneta-de-campo.
Caminhadas exploratórias, trajetos
Feira da Praça Almirante comentados pela rua, caminhadas Reconhecer os principais aspectos morfológicos e
03 25/09/2017 Júlio de Noronha, Leme de escuta e observação. Registro organizacionais da feira. Registrar os sons
(Rio de Janeiro) fonográfico da feira. Anotações na ouvidos em campo e classificá-los.
caderneta-de-campo.
Caminhadas exploratórias, trajetos Observar as variações na composição ouvida em
Feira da Praça Serzedelo comentados pela rua, caminhadas pontos diferentes da feira, identificar técnicas e
04 01/10/2017 Correia, Copacabana de escuta e observação. Registro ferramentas típicas das feiras, pensando-as como
(Rio de Janeiro) fonográfico da feira. Anotações na fontes sonoras também típicas desses lugares e me
caderneta-de-campo. apresentar a potenciais entrevistados.
Caminhadas exploratórias, trajetos Observar as variações na composição ouvida em
Feira da Praça Almirante comentados pela rua, caminhadas pontos diferentes da feira, identificar técnicas e
05 02/10/2017 Júlio de Noronha, Leme de escuta e observação. Registro ferramentas típicas das feiras, pensando-as como
(Rio de Janeiro) fonográfico da feira. Anotações na fontes sonoras também típicas desses lugares e me
caderneta-de-campo. apresentar a potenciais entrevistados.
Caminhadas exploratórias, trajetos
Feira da Praça Edmundo comentados pela rua, caminhadas Reconhecer os principais aspectos morfológicos e
06 19/10/2017 Bittencourt, Copacabana de escuta e observação. Registro organizacionais da feira. Registrar os sons
(Rio de Janeiro) fonográfico da feira. Anotações na ouvidos em campo e classificá-los.
caderneta-de-campo.
Caminhadas exploratórias, trajetos
Feira da Rua Ronald de comentados pela rua, caminhadas
Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
07 19/10/2017 Carvalho, Copacabana de escuta e observação. Registro
ao longo do dia.
(Rio de Janeiro) fonográfico da feira. Anotações na
caderneta-de-campo.
93

Feira da Praça Serzedelo Abordagem a feirantes para


Estabelecer contato para coleta futura de
08 22/10/2017 Correia, Copacabana marcação de entrevistas.
informações.
(Rio de Janeiro) Anotações na caderneta-de-campo.
Feira da Praça Serzedelo
Realização de entrevistas.
09 29/10/2017 Correia, Copacabana Coleta de informações através das entrevistas.
Anotações na caderneta-de-campo.
(Rio de Janeiro)
Feira da Praça Serzedelo Conversas informais, entrevistas e
Coleta de informações através das entrevistas e
10 12/11/2017 Correia, Copacabana observação orientada. Anotações
observação da montagem da feira.
(Rio de Janeiro) na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Praça Edmundo
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
11 15/11/2017 Bittencourt, Copacabana
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(Rio de Janeiro)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Ronald de observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
12 16/11/2017 Carvalho, Copacabana feira. Registro com fotos e ao longo do dia. Coletar informações através de
(Rio de Janeiro) entrevista. Anotações na caderneta- entrevistas.
de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Silva Teles, observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
13 11/01/2018
Tijuca (Rio de Janeiro) feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Galdino
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
14 16/01/2018 Pimentel, Méier (Rio de
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
Janeiro)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Avenida Julio
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
15 19/01/2018 Furtado, Grajaú (Rio de
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
Janeiro)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Vicente e
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
16 22/01/2018 Silva, Botafogo (Rio de
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
Janeiro)
Anotações na caderneta-de-campo.
94

Caminhadas de escuta e
Feira da Praça São
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
17 28/01/2018 Perpétuo, Barra da Tijuca
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(Rio de Janeiro)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e Observar a distribuição espacial de atividades e
Feira da Rua Madre de observação, registro fonográfico da morfologias; observar principais fluxos e
18 07/03/2018
Deus, Mooca (São Paulo) feira. Registro com fotos. principais permanências; observar a dinâmica dos
Anotações na caderneta-de-campo. anúncios e a paisagem sonora da feira.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Conceição
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
19 09/03/2018 Veloso, Vila Mariana
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(São Paulo)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Mourato
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
20 10/03/2018 Coelho, Vila Madalena
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(São Paulo)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Sebastião
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
21 11/03/2018 Pereira, Santa Cecíia
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(São Paulo)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Praça Edmundo Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
observação, registro fonográfico da
22 30/05/2018 Bittencourt, Copacabana ao longo do dia, levando em consideração os
feira. Registro com fotos.
(Rio de Janeiro) impactos causados pela greve dos caminhoneiros.
Anotações na caderneta-de-campo.
Feira da Praça Edmundo
Conversas informais e registro em Coletar informações através de conversas
23 09/01/2019 Bittencourt, Copacabana
fotos. informais.
(Rio de Janeiro)
Caminhadas de escuta e
Feira da Praça Edmundo
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
24 16/01/2019 Bittencourt, Copacabana
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(Rio de Janeiro)
Anotações na caderneta-de-campo.
95

CAPÍTULO 5 – A paisagem sonora da feira livre

Neste último capítulo, apresentaremos a análise dos resultados obtidos durante os


trabalhos de campo. O texto se divide em duas partes principais. A primeira, intitulada
“O som das coisas”, tem como objetivo descrever a morfologia e o ordenamento espacial
da feira livre, além de discutir a relação existente entre as formas e objetos empregados
na feira livre, as suas atividades e a composição da sua paisagem sonora. Na segunda
parte, intitulada “As vozes da feira”, apresentamos uma análise das composições sonoras
formadas pelos diferentes tipos de comunicação verbal presentes na feira. Todas as
gravações realizadas durante os trabalhos de campo que serviram de referência para as
reflexões aqui apresentadas podem ser acessadas através do link
https://soundcloud.com/ouvindolugares/sets. Recomenda-se a audição com a utilização
de fones de ouvido.

5.1 – O som das coisas

5.1.1 – Objetos e formas da feira livre

Nos primeiros trabalhos de campo, foi difícil identificar qualquer tipo de padronização
na forma dos diferentes pontos de venda encontrados nas feiras. Cada unidade parecia
possuir uma configuração própria, amoldada ao tipo de produto ofertado15, e cada feirante
parecia adotar um modo de arranjar seus produtos, mobilizando diferentes peças na
montagem da estrutura utilizada para a venda.

É o caso dos caminhões adaptados para a venda de pescado, cuja caçamba é aberta de
forma a expor as mercadorias sobre uma bandeja coberta de gelo, estrutura muito mais
arrojada que as lonas estendidas ao chão, peça única utilizada por alguns vendedores de
ervas, e que os caixotes empilhados, utilizados como tabuleiro na venda de mercadorias
de porte pequeno. Somam-se ainda as kombis, também adaptadas, seja para a venda de
ovos, frangos e miúdos, seja para a venda de pastel e caldo-de-cana. Pequenas bandejas
e carrinhos de mão são a preferência dos ambulantes que circulam entre os fregueses

15
Mercadorias à venda observadas em campo: Caldo-de-cana, Tempero, Frutas/legumes/folhas,
Sardinha, Peixaria, Moídos e frango, Roupas, Quejo/tapioca, Legumes fatiados, Pequenas Frutas
(limão e alho), Côco, Produtos Congelados, Biscoitos e doce.
96

vendendo alho, limão e maracujá, ou algum produto voltado para os próprios feirantes,
como água, café, sucos, refrigerantes e pequenos lanches.

Figura 12 - Pequena banca improvisada na Feira da Rua Vicente Silva. Foto do autor.

Figura 13 - Banca composta com vários "puxadinhos" na feira da Rua Vicente Silva. Foto do autor.
97

Figura 14 - Ambulante circulando pela feira da Praça São Perpétuo. Foto do autor.

Um conjunto variado de instrumentos de trabalho, que inclui de pequenas ferramentas a


grandes máquinas, compõe também esse sistema de objetos da feira livre e é essencial ao
seu funcionamento. Moedores, balanças, facas, jarras, fritadeiras, panelas, pequenos
fogões e outras peças são necessárias para que se realizem as atividades cotidianas dos
feirantes. Por parte dos fregueses, sacolas e carrinhos de mão são os itens mais
recorrentes.

De fato, o conjunto de ferramentas e unidades de venda que compõe as feiras abrange


uma morfologia muito variada. Há, no entanto, uma estrutura recorrente, utilizada pela
maioria dos feirantes. A banca, composta por um tabuleiro, suporte dobrável e armação
de madeira, coberta por um toldo de lona, pode ser tomada como unidade básica da feira
livre. No Rio de Janeiro, as bancas possuem 1,80m de largura por 0,90m de profundidade.
98

Figura 15 - A estrutura básica encontrada em boa parte das unidades de venda da feira. Foto do autor.

Henrique, feirante de frutas variadas há mais de duas décadas, em uma entrevista na feira
da Praça Edmundo Bittencourt, apresentou outras informações que explicam a aparente
falta de padronização percebida nas primeiras visitas às feiras.

Em primeiro lugar, é preciso saber que existem diferentes tipos de associação entre as
bancas. Feirantes aglutinam seus postos de venda, seja para se ajudarem, seja para se
revezarem no serviço. Por isso, percebemos feirantes ocupando áreas mais largas que as
outros.

Outro tipo de prática que altera o tamanho das unidades de venda foi o que Henrique
chamou de “puxadinhos”, ou seja, extensões promovidas pelos feirantes às suas barracas,
utilizando caixotes, mesas dobráveis, tampos estendidos e outros tipos de improvisos para
aumentar a área do ponto de venda. A prática é ilegal, mas acontece, assim como o aluguel
do espaço entre os feirantes.
99

Figura 16 - Banca de tempero com tabuleiro ampliado na feira da Praça São Perpétuo. Foto do autor.

Nosso entrevistado avisa que essas práticas, entre outros tipos de negociação que
modelam a forma e a organização da feira, acontecem de forma habitual, mas que não são
coibidas, pois “quase não há fiscalização pra isso”. Segundo o feirante, só o lixo deixado
após a feira e o barulho gerado durante ela costumam ser alvo de fiscalização e multa.

Além dessas associações empreendidas entre os feirantes, outra prática importante na


produção da rica morfologia da feira livre são as adaptações realizadas na banca padrão
acima mencionada, de acordo com as necessidades de cada feirante. Um barbante
amarrado entre as traves da banca pode ser utilizado como varal para expor as frutas, as
placas com os preços ou pequenos sacos com peixes de aquário. Caixotes de tamanhos
variados formam degraus que organizam os produtos segundo os seus tipos. Muitas
dessas adaptações parecem ter se estabilizado e são utilizadas por diferentes feirantes.
100

Figura 17 - Exemplo de improviso na composição arquitetônica da feira. Foto do autor.

Figura 18 - Exemplo de improviso na composição arquitetônica da feira. Foto do autor.

Tais adaptações são regra na feira livre. Operando sempre com poucos recursos e com a
necessidade de otimizar a quantidade de objetos transportados a cada feira, muitos
feirantes criam maneiras de utilizar a mesma peça em diferentes funções. É o caso dos
caixotes utilizados para o transporte de frutas, que são reutilizados na montagem da banca
para organizar os produtos. Ou dos sacos plásticos que, esvaziados no começo do dia, são
furados e convertidos em regadores para as folhas que antes carregavam. Árvores, postes
e grades podem servir para amarrar cordas e lonas, que se abrem mais ou menos
dependendo do clima e do espaço disponível. Algumas unidades, inclusive, são montadas
101

apenas com objetos adaptados às novas funções. É o caso de vendedores que montam
pequenas unidades improvisadas, geralmente não autorizadas, entre as barracas maiores
ou em espaços deixados por feirantes ausentes.

Figura 19 - Mosaico de fotos com exemplos do improviso e refuncionalização na feira. Fotos do autor.

Nas feiras visitadas, a arquitetura das unidades de venda varia, portanto, segundo
diferentes fatores. O tipo de produto, a formalidade do ponto, a associação entre feirantes,
102

a adaptação dos objetos utilizados e as necessidades imprevistas vão condicionar uma


morfologia diversa. Cada unidade de venda é uma forma que resulta das soluções
encontradas por cada feirante para as necessidades que o seu trabalho demanda.

As caminhadas de escuta e observação realizadas nos trabalhos de campo, no entanto,


permitiram que os padrões existentes na morfologia da feira livre fossem revelados.
Descrito esse caráter improvisado e heterogêneo das formas na feira livre, gostaríamos
de passar agora ao que há de regular e previsível na sua morfologia, destacando três
aspectos que, por afetarem diretamente a paisagem sonora da feira, nos interessam aqui.

5.1.2 – Objetos de trabalho, instrumentos de som

Pensemos no conjunto de peças, estruturas, instrumentos e máquinas utilizadas pelos


feirantes para que a feira aconteça. Esses objetos e o modo de operá-los circula pelas
feiras, junto com os feirantes. Estes relatam nas entrevistas que as técnicas utilizadas nas
atividades cotidianas são aprendidas na própria feira, ou com colegas de trabalhos ou com
os próprios pais e parentes, nos muitos casos em que o ofício é hereditário. Seus usos
difundem-se entre os feirantes e se estabilizam como os modos mais comuns de se realizar
uma tarefa.

Estamos falando de um sistema de objetos operado de maneira regular ao longo dos anos
e em diferentes feiras, mobilizado por um conjunto de práticas típicas desses lugares.
Sacos, tábuas, caixotes, lonas, gelo, isopores, moedores e fritadeiras são componentes de
um sistema de objetos que, associado a um sistema de ações, ganha movimento, anima a
feira e, o que mais nos interessa aqui, produz sons.

O martelar necessário para a montagem das barracas, a reposição do gelo para manter os
peixes frescos, o cutelo que parte o frango e bate sobre a tábua, os sacos balançados ao ar
para guardar folhas e legumes, o motor do moedor da cana e o borbulhar do óleo quente
que frita os pastéis são exemplos do que se ouve em uma caminhada pelas feiras visitadas.

Martelar, repor, partir, ensacar, moer e fritar são exemplos das atividades cotidianas da
feira que produzem sons típicos, reconhecíveis em campo e registrados nas gravações
realizadas. Tais exemplos evidenciam que a produção da feira implica, necessariamente,
em produção de som.
103

Desse modo, parte importante do que se ouve em uma feira livre são os sons residuais,
resultantes das atividades necessárias para o seu funcionamento. Como tais atividades
acontecem periodicamente e em diferentes feiras, os sons produzidos por elas também
serão notados a cada nova feira realizada.

Forma-se, então, uma camada importante da paisagem sonora da feira livre. O “som das
coisas” tem caráter cacofônico e involuntário, mas recorrente e típico daquele conjunto
de atividades que identifica a feira. Por consequência, estes sons acabam tornando-se sons
fundamentais desse espaço, associado diretamente ao sistema de objetos e ações que
forma a feira livre.

5.1.3 – Montando a orquestra

A inevitável produção sonora decorrente das atividades da feira é percebida também pelos
feirantes, especialmente nas horas que precedem a feira. Ainda na madrugada, entre 04:00
e 06:00 da manhã, os feirantes chegam ao local e iniciam a montagem das suas unidades
de venda. Os caminhões e kombis estacionam em seus pontos, os feirantes chegam com
seus produtos e, em muitos casos, um caminhão contratado pelo coletivo descarrega as
barracas utilizadas pelos vendedores. Como as feiras acontecem, em grande parte, em
áreas residenciais e todo o processo de montagem se dá em um horário quando os vizinhos
ainda dormem, é importante compreender como os feirantes lidam com a questão do
barulho na madrugada.

O primeiro feirante a se interessar pelo tema desta tese foi o Wallace, vendedor de
legumes na feira de domingo da Praça Sezerdêlo Correa, em Copacabana. Antes mesmo
das perguntas terminarem, o feirante já emendava suas respostas, empolgado em
compartilhar tudo o que sabe sobre o cotidiano da feira livre. Foi ele que apresentou
algumas das reflexões importantes sobre o que significa “montar uma loja todo dia” e
sobre como isso soa aos nossos ouvidos.

Wallace explica que a montagem das barracas pode ser barulhenta se os feirantes “não
tiverem talento”. Indagado sobre o que seria esse talento, o feirante deu início a uma
descrição de um conjunto de técnicas e estratégias utilizadas por ele e pelos seus colegas
para garantir o mínimo de barulho possível nas primeiras horas da manhã.
104

Falou, por exemplo, sobre a necessidade de se martelar as peças que compõem a estrutura
da barraca de maneira cuidadosa, de modo a não causar incômodo à vizinhança. Disse,
inclusive, que em muitas feiras já se utiliza um tipo de barraca que pode ser montada só
com encaixes, dispensando o uso de martelo – a não ser no caso dos “puxadinhos”.

Wallace pontuou também que o uso de máquinas é evitado durante a montagem e o


transporte, empilhamento e arrumação das mercadorias é feito com esmero. Segundo ele,
“o barulho começa a ficar liberado mesmo por volta das 10h ou 11h”, ou seja, apenas
muitas horas depois do início da montagem. De fato, como discutiremos a seguir, as
primeiras horas de feira são marcadas por um ambiente mais silencioso, pontuado por
cumprimentos em voz baixa por parte dos feirantes, direcionados diretamente para a
minoria de fregueses que frequenta a feira no início da manhã.

Do que foi descrito por Wallace, um aspecto da paisagem sonora desse alvorecer da feira
merece destaque. O ambiente silencioso, observado nessas horas de montagem e
preparação da feira, é resultado de um controle coletivo realizado pelos feirantes sobre o
nível de ruído ali produzido. “Se vacilar, leva esporro” disse Wallace, revelando que os
feirantes mantêm uma espécie de vigilância mútua, garantindo que ninguém faça muito
barulho durante a montagem e evitando que os residentes do entorno da feira efetuem
algum tipo de denúncia ou reclamação com a prefeitura.

A observação feita por Wallace é uma chave fundamental para compreendermos como se
compõe a paisagem sonora da feira livre. Há um controle coletivo e descentralizado sobre
“o som das coisas”, uma percepção compartilhada por todos que é necessário manter o
ambiente silencioso nas horas que antecedem a feira. Como veremos, não só os sons
mecânicos são modulados pelos feirantes de acordo com a hora do dia de feira, mas
também os sons dos pregões, dos chamamentos e da conversa. Antes, falemos ainda de
um outro aspecto da feira que consideramos importante para discutir a sua paisagem
sonora: o seu arranjo espacial.
105

5.1.4 - Arranjos espaciais e trilhas sonoras

O arranjo espacial das unidades de venda é facilmente reconhecível, estável, difundido


em boa parte das feiras conhecidas e em todas as feiras visitadas. As unidades são
organizadas de forma linear, em duas fileiras paralelas que balizam um corredor, por onde
circulam os fregueses. Esse é um arranjo previsível para feiras que se estabelecem em
ruas, mas é reproduzido também naquelas que tem sítio em praças públicas.

Figura 20 - Corredor de fregueses na Feira da Praça São Perpétuo. Foto do autor.

A distribuição das unidades nessas duas fileiras também segue um padrão relativamente
estável. Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, os caminhões (de peixes) e kombis
(de pastel e cana ou de frangos e miúdos) costumam estar localizados nas extremidades
das feiras, nos locais por onde entram e saem os clientes. Flores, biscoitos, queijos,
tapiocas e côcos, também são usualmente localizados nas extremidades das fileiras, cujo
miolo é preenchido por barracas de temperos, frutas, legumes e folhas. Entre as fileiras,
no corredor por onde circulam os fregueses, é possível encontrar tanto pequenas unidades
improvisadas, como os vendedores de alho, limão e maracujá, quanto os já mencionados
ambulantes.

Os feirantes possuem localização fixa em cada uma das feiras onde trabalham e a
distribuição das unidades de venda atende a uma setorização da feira por tipo de produto
ofertado. Tal tipo de ordenamento espacial possui alguns desdobramentos.
106

Em primeiro lugar, a previsibilidade da localização dos feirantes facilita a fidelização dos


clientes, que conhecem a localização das suas barracas favoritas. Munidos das listas de
compras, os fregueses definem, assim, um roteiro na feira. O papel da localização fixa
dos feirantes e da setorização da feira na fidelização dos fregueses é mencionado por
Geertz nos seus estudos sobre a feira marroquina, o que demonstra a eficiência desse tipo
de ordenamento espacial para o comércio periódico.

Além disso, como já foi dito, as unidades têm rotinas, morfologias e dinâmicas de venda
diferentes entre si. Empreendem atividades específicas de acordo com o produto ofertado
e mobilizam, cada uma delas, um ferramental próprio, também adequado ao que se vende.
Levando em consideração o que falamos sobre “o som das coisas”, podemos dizer que
cada unidade de venda abarca um sistema de objetos e ações particular, produzindo, por
consequência, uma sonoridade também particular.

A disposição das barracas de acordo com os tipos de produtos vai condicionar uma
espacialização dos objetos sonoros na feira livre. Desse modo, a paisagem sonora não é
homogênea em toda extensão da feira. Ou seja, conforme caminhamos pelo corredor da
feira, notamos que a composição escutada vai se alterando, modulada pelo deslocamento
do nosso ponto de escuta. O roteiro de uma pessoa pela feira vai definir também quais
sons serão ouvidos e quais serão emudecidos. Define, portanto, as composições que serão
ouvidas por quem caminha, estabelecendo algo que em outra oportunidade chamamos de
“trilha sonora” (FRIAS, 2018), ou seja, a composição ouvida pela pessoa em um
deslocamento.

Esses sons também são marcadores temporais das feiras. O que se ouve ali depende não
só de onde você está, mas também do momento em que você visita a feira livre. Os estalos
do choque de dois objetos de madeira são ouvidos com maior intensidade e frequência
durante a montagem e a desmontagem das barracas, por exemplo. São sons que indicam
o início e o encerramento dos trabalhos. Da mesma forma, o ranger contínuo e agudo dos
rolamentos dos carrinhos de compra ganha volume conforme a feira se preenche de
fregueses.

Para esclarecer este aspecto, precisamos avançar no dia da feira e discutir o papel do
pregão, dos anúncios, das conversas, dos chamamentos e de todas as interações verbais
na produção da feira livre. Como veremos a seguir, a comunicação oral, como os
107

anúncios, os pregões, os chamamentos, as conversas e todo tipo de comando necessário


para que se faça a feira são também sons fundamentais desse espaço público peculiar.

5.2 – As vozes da feira

Segundo Wallace, feirante antes mencionado, “na feira tudo é no grito”, evocando parte
do nosso imaginário sonoro sobre esse lugar. Lembramos imediatamente dos anúncios
cantados e gritados pelos feirantes ao longo do dia, algo mencionado por diferentes
autores que trataram da feira (ver Capítulo 2).

No entanto, o que ficou claro ao longo dos dias de trabalho de campo é que o falatório
típico da feira livre não é composto apenas pela criatividade publicitária dos feirantes.
Ouve-se as vozes destes e dos fregueses em conversas, cumprimentos, piadas, pedidos,
perguntas e avisos. Ouve-se comentários sobre a novela, o modo de se preparar os
legumes, o pedido para se trocar uma nota, o chamado por um ambulante. Há espaço para
a barganha, para a conversa reservada, para as receitas ensinadas, para o “bom dia”. As
vozes ouvidas nas feiras tratam de diferentes assuntos, falam com diferentes pessoas e
em diferentes volumes.

Se, ao tratarmos dos “sons das coisas”, nos referíamos a uma camada da paisagem sonora
da feira formada pelos sons involuntários das atividades mecânicas, agora, estamos diante
de uma outra camada, cacofônica como a primeira, mas composta pela comunicação
verbal que também anima a feira.

Partindo das anotações realizadas durante as práticas de escuta e observação nas feiras
visitadas e da posterior análise das gravações realizadas, descreveremos, agora, os sons
associados à comunicação verbal, classificados em três grupos: os comandos de voz
associados à organização da feira; as conversas e interações formais da sociabilidade; e
os anúncios, chamamentos e pregões do comércio na feira livre.

5.2.1 – As vozes que organizam o trabalho

A produção diária da feira livre é sustentada por uma rede de trabalhadores. A reposição
de mercadorias e outros objetos necessários para o comércio de cada banca é feita por
ajudantes que podem tanto trabalhar em um só ponto, como em vários. Tantos outros
tipos de trabalhadores, distribuídos pela feira, circulam de acordo com as tarefas que
108

precisam cumprir. Descascar, picar e embalar legumes, descamar peixes, juntar o lixo e
limpar as bancas, improvisos na montagem da lona e da banca são alguns exemplos dessas
atividades, muitas vezes realizadas pelos mesmos trabalhadores.

Uns, quando distantes dos feirantes que necessitam dos seus serviços, são chamados por
gritos, assobios, convocados pelo nome ou por apelidos, e ouvem as orientações sobre o
que é necessário. Outros, cumprem um percurso pela feira, conferindo quem precisa de
algo e do que. Ou seja, as atividades necessárias para a manutenção da feira livre são
organizadas verbalmente.

A necessidade dos feirantes e ajudantes organizarem as suas atividades e sincronizarem


os seus ritmos de trabalho demanda uma comunicação permanente, mesmo à distância e
em um ambiente saturado de sons. Dessa forma, o que se ouve no falatório da feira inclui
um conjunto de comandos verbais que funcionam como uma espécie de sistema de som,
ordenando o espaço da feira. A circulação de pessoas e objetos na feira, assim como a
ordem das atividades nela empenhadas, é gerida pela voz.

Estes sons não são mero resíduos de uma feira em movimento, não são emissões
involuntárias decorrentes de outras atividades. Eles são sinais sonoros que possuem papel
central na estrutura organizacional da feira, que orientam a circulação dos trabalhadores
naquele espaço e que nos informam sobre a rotina daquelas pessoas. São fundamentais
para que a feira aconteça e, por isso, são recorrentes na maioria das feiras e em todas as
feiras visitadas.

5.2.2 – As vozes do encontro social

Boa parte das pessoas que frequenta uma feira está em fluxo. Ajudantes, ambulantes e
outros trabalhadores circulam pela feira em diferentes trajetórias, traçando diagonais
entre os fregueses, passando por entre as bancas e por trás delas, realizando um périplo
permanente e imprevisível.

Balizados pelas fileiras de bancas, os fregueses possuem uma área de circulação mais
restrita, onde traçam rotas também tortuosas, conferindo ofertas, visitando suas bancas
conhecidas, indo e voltando para comparar preços ou para comprar algum item.
109

Já os feirantes circulam muito pouco, mantendo-se praticamente fixos em suas bancas.


Dali, realizam apenas poucos deslocamentos pendulares, indo cumprir alguma atividade
e retornando em pouco tempo para o seu posto.

Entre os fluxos das compras e vendas, há tempo e espaço para a pausa. Além do comércio,
a feira também é um lugar de encontro social. A sua periodicidade promove regularmente
uma reunião de pessoas em um espaço público. A recorrência desses encontros faz dela
um local de referência na sociabilidade pública de um bairro ou de uma cidade (ver
Capítulo 01). Ali, vizinhos e amigos do mesmo bairro se encontram, laços de confiança
e fidelidade são estabelecidos entre fregueses e feirantes, pessoas se conhecem e se
reencontram. Há também quem vá à feira apenas pelo passeio, atraído pela satisfação
estar na presença de outras pessoas.

Esses encontros possuem uma geografia própria. Pelo corredor das feiras visitadas, é
comum observar pessoas cruzando com conhecidos e interrompendo o seu itinerário para
uma conversa. Em feiras de corredor mais largo, ou naquelas em que a sua largura varia
ao longo do comprimento, formam-se espécies de pátios imprevistos, onde há espaço para
que as pessoas permaneçam sem que se interrompa o caminho. Em feiras de corredor
estreito, a conversa no corredor é incômoda, gera protestos e é notada à distância pelo
afunilamento que gera no trânsito de pessoas. A etiqueta tácita da feira orienta aos pares,
nesse caso, a encontrar um canto entre as barracas para não bloquear o fluxo do corredor.

Observamos, também, um curioso jogo de posições nos encontros e conversas que


acontecem entre feirantes e fregueses, marcado por uma divisão entre o exterior e o
interior das bancas.

A frente de toda banca, na margem do tabuleiro onde ficam os fregueses escolhendo as


mercadorias, é onde a maioria dos frequentadores realiza um breve momento de parada,
de permanência, em meio ao fluxo da feira livre. Consequentemente, temos nesses locais
um ponto privilegiado para o encontro e a sociabilidade na feira.

Nesses pontos, impera um acordo tácito: todas as conversas ali são públicas (SATO,
2012). Conversas a dois, como a de um feirante passando uma receita a um freguês,
podem ser interpeladas, continuadas e combinadas com a de outras pessoas postadas
frente à banca. Estas, aproveitando o mesmo exemplo, podem sugerir diferentes etapas
110

ou ingredientes para a tal receita. Um freguês que chega em tom bem-humorado, fazendo
alguma piada com um feirante conhecido, pode pautar toda a conversa entre as pessoas
reunidas naquela banca, reunindo-as em torno de um tema.

Já a parte interna da banca abriga as atividades que acontecem em paralelo à venda, como
o corte, a limpeza e o embalo de produtos. Por isso, ela é frequentada, em boa parte do
tempo, apenas pelos feirantes e seus ajudantes. No entanto, fregueses e feirantes amigos
encontram ali um espaço para uma conversa mais reservada e formam núcleos de
sociabilidade nos bastidores da feira livre. Nos trabalhos de campo, recorrentemente
observamos duplas ou pequenos grupos de pessoas posicionadas ao fundo das bancas,
conversando, destacados das atividades orientadas ao comércio. Nota-se que se trata de
um hábito quando observamos que algumas pessoas trazem pequenos isopores e cadeiras
dobráveis para passar parte do dia ali, na companhia dos feirantes e amigos ali reunidos.

A formação desses subnúcleos é reforçada por um aspecto do arranjo espacial da feira já


mencionado. A localização fixa das unidades de venda garante uma vizinhança regular
entre os mesmos feirantes e condiciona relações de cooperação e sociabilidade entre eles.
Observamos que em alguns setores da feira a interação entre feirantes vizinhos era mais
recorrente, em tom lúdico, informal, denotando os laços de intimidade e amizade nesses
grupos.

O gosto pela conversa e pela companhia das pessoas que a feira oferece muitas vezes
reorienta os usos dos objetos da feira. Nas primeiras horas de feira montada e nos dias de
pouco movimento, é possível observar rodas de conversa ou mesmo carteado, na parte
interna ou no exterior das bancas desses núcleos fraternais formados pela vizinhança.
111

Figura 21 - Feirantes conversando na feira da Praça Edmundo Bittencourt. Foto do autor.

A feira da Praça Almirante Julio de Noronha, no Leme, por exemplo, possui um fluxo
bem menor do que o das outras feiras visitadas. Trata-se de uma feira com um número
reduzido de bancas, que ocorre em praça localizada próxima à orla marítima e destacada
da malha residencial do bairro.

Nos campos, muito do que se escutava eram conversas entre os próprios feirantes,
claramente trabalhando em um ritmo menos acelerado e menos presos aos seus postos de
trabalho. Há menos ruídos para a comunicação mesmo entre feirantes de barracas não
contíguas, já que a menor densidade e circulação de pessoas gera menos barreiras visuais
e acústicas para a comunicação. Quase não se ouvia gritos ou anúncios e o tom das vozes
registradas nessa feira é sempre baixo.

Nesse contexto, um registro realizado em um trabalho de campo nessa feira merece


menção específica aqui. Ainda nas primeiras horas de feira, antes das 09:00, um grupo de
quatro ou cinco feirantes, todos vendedores de legumes e verduras, conversava em tom
animado, espalhados por entre as suas bancas e o corredor da feira, aproveitando a
escassez de fregueses para ter um momento mais relaxado. Escutava-se basicamente uma
alternância de provocações debochadas entre eles, menções a situações embaraçosas e
outros tipos de zombarias aparentemente aceitos e divertidos para todos.
112

No entanto, uma feirante, tornada alvo preferencial das brincadeiras, respondeu em tom
mais sério e gerou silêncio entre os colegas: “vão ficar me zoando, então vou quebrar
geral” disse a feirante, ao mesmo tempo que alterava os valores das suas mercadorias
para preços mais baixos. Enquanto reescrevia os valores nas placas expostas na sua banca,
os outros feirantes mantinham as provocações, mas agora em protesto ao rompante da
colega: “ih, ela tá doida mesmo”, “vai sacanear geral hein?” e “tá na hora de baixar ainda
não, querida”.

A reação de desconforto parecia haver uma razão óbvia: ao baixar o preço das
mercadorias para um valor abaixo da média, a feirante estaria garantindo uma vantagem
competitiva entre aqueles que, ali, se tratavam como amigos, e foi encarado com um ato
hostil, desagregador, individualista. O que nos deixou curiosos, foi a insinuação por parte
dos feirantes de que o problema não seria baixar o preço das mercadorias, mas baixá-los
cedo demais, antes da hora esperada, antecipando-se aos demais vendedores.

Essa anedota evidencia a existência de uma percepção compartilhada pelos feirantes de


que existe uma dinâmica mais ou menos estável na feira e que é possível identificar,
coletivamente, qual é a hora certa de baixar os preços dos produtos, mesmo em uma feira
em que o fluxo de fregueses é considerado baixo. Curiosamente, na Feira do Leme,
justamente aquela em que menos ouvimos feirantes anunciando as suas mercadorias, foi
onde identificamos uma das facetas mais curiosas da feira livre. Naquele dia onde as
vozes da conversa e do chiste eram as que mais povoavam a paisagem sonora da feira,
revelou-se uma chave importante para entender a dinâmica dos anúncios e dos pregões.
Falaremos, agora, sobre essas vozes do comércio.

5.2.3 – As vozes que vendem

Como temos visto, as múltiplas formas de comunicação verbal ocupam papel importante
na composição da paisagem sonora da feira livre. Na literatura consultada para esta tese,
há evidente destaque para a parcela dessa comunicação relacionada ao comércio, mas são
raros os autores que se dedicaram a descrever e analisar em profundidade a dinâmica, as
características e o papel desse tipo de interação na feira livre.

Buscando contribuir com o tema, podemos, primeiramente, distinguir dois tipos de


abordagens empreendidas pelos feirantes observados em campo.
113

O primeiro tipo identificado de abordagem é realizado de forma direcionada, específica


para um freguês. São cumprimentos corriqueiros, como “bom dia”, “bem-vindo” ou outro
tipo de chamado focado, geralmente em tom de voz mais baixo, ouvido só a uma curta
distância. São acompanhados, geralmente, de alguma oferta ou convite, como o de provar
uma fruta ou cheirar um tempero, prática antiga e bastante difundida nesse tipo de
comércio. Tal tipo de abordagem, focada em um cliente, que é convidado a se aproximar
da banca e provar das suas mercadorias, são nomeadas de chamamentos por parte da
literatura (Sato, 2012).

Em São Paulo, a vizinhança entre vendedores de uma mesma mercadoria gera uma
situação curiosa, notada em campo e nas gravações realizadas. Bancas de caldo-de-cana
e pastel, localizadas nas extremidades das filas de bancas, disputam frontalmente os
fregueses que entram na feira. Em cada banca, encontram-se postados dois ou três
vendedores que recebem cada um dos clientes que chega à feira com um “Bom dia!”
animado que, quando correspondido, é seguido de um “Caldo, senhor?” ou “Pastel,
senhora?”, dependendo da situação. Em feiras onde há muitas dessas bancas e a
concorrência é acirrada, forma-se, especialmente entre 11:00 e 13:00, um coral de
chamamentos sobrepostos, volumoso, ruidoso e identificado em mais de uma das feiras
visitadas, com a de Vila Madalena e a de Santa Cecília.

Essa costuma ser, inclusive, a imagem que muitas pessoas guardam da composição sonora
ouvida em uma feira livre. “Isso aqui parece uma feira!”, por exemplo, é expressão
comum no Rio de Janeiro para referir-se a situações onde as pessoas estão falando
desordenadamente, de modo que as suas falas, sobrepostas, tornam-se indistinguíveis.
Essa composição de sons indistintos, produzida por um grupo de pessoas falando ao
mesmo tempo, costuma receber o nome de “burburinho” e, de fato, identifica bem parte
do que se ouve nos registros que realizamos em campo.

Os chamamentos, ouvidos de longe, são parte indistinguível desse burburinho, indistintos


na cacofonia da feira livre. Sua função, por outro lado, é garantir que o feirante conquiste
a atenção dos fregueses que passam pela sua banca e, para isso, precisa estar destacado
frente a tudo que se ouve na feira livre. Trata-se de uma abordagem feita um a um, focada,
como dissemos e, muitas vezes, é parte de um convite performático que envolve sorrisos,
galanteios, ofertas de frutas e outras provas das mercadorias à venda.
114

O outro tipo de abordagem identificado em campo é, também, parte importante do


imaginário sonoro da feira livre. Os pregões, ou seja, os anúncios de produtos, gritados
ou cantados livremente pelos feirantes são popularmente conhecidos e mencionados pela
literatura especializada, em estudos sobre feiras de tempos e lugares muito distintos (Ver
Capítulo 02).

O anúncio é um importante instrumento de venda pois amplia a área de publicidade da


banca, aumentando o alcance e o potencial de vendas. Chegam onde os olhos não
alcançam. No entanto, nem todo feirante apregoa as suas mercadorias.

Esse anúncio público e em voz alta, sem direção específica, é mais comum entre
vendedores de frutas, verduras e legumes. Nos trabalhos de campo, foram raras as vezes
que escutamos peixes ou frangos, por exemplo, sendo anunciados, algo que se traduziu
também nas gravações que obtivemos.

Durante os trabalhos de campo, ter visitado as feiras repetidas vezes permitiu que
percebêssemos muitos dos feirantes apregoadores cantarolando as suas mercadorias
sempre com as mesmas melodias e ritmos, destacando-se na paisagem e tornando-se
identificáveis inclusive à distância. Mesmo quando os anúncios não soavam como uma
melodia, em muitos casos, notou-se uma prosódia muito característica, repetida a cada
nova feira e também marcando a identidade de quem anuncia.

Já outros feirantes utilizam bordões, mesclam piadas aos anúncios e mencionam a própria
banca, garantindo que a compra lá é mais vantajosa. Os anúncios têm natureza funcional,
mas o mais comum é que se perceba um tom lúdico e bem-humorado na maioria deles.

O anúncio estilizado, característico por um certo jogo de palavras, bordão, pela melodia
ou prosódia marcante de um feirante é tão importante na fidelização dos fregueses quanto
a localização fixa dos feirantes a cada nova feira. O anúncio, ouvido à distância, informa
qual é a mercadoria, mas também quem a vende. Ou seja, divulga o preço e também a
presença do feirante naquele dia de feira. Ao mesmo tempo, quando simpático e bem-
humorado, o anúncio torna-se cativante e facilita a conquista de novos fregueses.

Ter a voz reconhecida pelos fregueses também é importante para os vendedores


ambulantes. Em desvantagem por não usufruírem de uma localização fixa, estes
trabalhadores precisam permanentemente publicitar a sua presença nos dias de feira.
115

Enquanto alguns preferem abordar cliente a cliente no corredor, oferecendo as suas


mercadorias, há ambulantes que adotam abordagens mais originais. Na feira da rua
Vicente de Sousa, em Botafogo, nos deparamos com um vendedor de picolé de afinação
invejável, que anunciava os seus produtos fazendo paródias de clássicos da música
popular italiana, sempre trocando algumas palavras da letra original por termos como
gelato e cioccolato. Já na feira da Avenida Júlio Furtado, no Grajaú, um ambulante cego
vende balas e as anuncia com pequenas rimas, como “Mentos, tenha bons momentos”.
Curiosamente, são outros os sons que costumam anunciar a sua presença: ele conta com
a orientação dos feirantes, que vão direcionando o seu caminho conforme ele passa por
suas bancas. Dessa forma, o seu trajeto pela feira costuma deslocar consigo um
burburinho animado, já tradicional entre os feirantes que dele participam e incomum o
suficiente para quem não o conhece, atraindo atenções e fregueses para o ambulante.

Enquanto o estilo dos anúncios varia de acordo com o feirante, os conteúdos por eles
publicitados costumam ser os mesmos. Obviamente, anuncia-se o que se vende, mas é
importante também qualificar a mercadoria, com adjetivos que provoquem nos fregueses
a sensação de oportunidade. Assim, anuncia-se a raridade daquela mercadoria, seja pela
sua procedência exótica ou oferta sazonal; a qualidade superior, garantida pelo frescor e
demonstrada na aparência do produto; e o preço, especialmente quando é hora de baixá-
lo.

5.2.4 - Sistemas de som

Os anúncios do pregão da feira livre podem ser pensados apenas como um conjunto de
anúncios individuais, mas também como componentes de uma composição que possui
características próprias.

Como explicamos no capítulo anterior, parte das nossas atividades em campo consistia
em realizar caminhadas de escuta e observação, quando percorríamos todo o trajeto da
feira, realizando anotações e gravando o conjunto de sons ouvidos no percurso. Com a
primeira caminhada sendo realizada às 08:00 e a última às 12:00, com intervalos de 30
minutos entre elas, foi possível analisar as transformações ocorridas na paisagem sonora
ao longo de um dia e relacioná-las com a dinâmica da própria feira.
116

Utilizando esse método, ficou claro que a quantidade de feirantes anunciando os seus
produtos e a forma de se anunciar varia ao longo do dia. Os horários exatos quando essas
variações acontecem é condicionado por fatores diversos, como discutiremos, e nem
sempre são os mesmos entre as feiras. Foi possível, no entanto, identificar três grandes
etapas na dinâmica do pregão.

Na primeira etapa, antes das 09:00, a paisagem sonora ainda está pouco saturada, há
intervalo entre os sons ouvidos, que podem ser distinguidos facilmente entre si. As
gravações realizadas nesses horários possuem poucos elementos que nos indiquem
estarmos em uma feira livre, com exceção, apenas, dos primeiros chamamentos e
cumprimentos do dia. Nesse ambiente mais silencioso, os feirantes podem abordar cada
cliente direta e individualmente, em baixo volume, geralmente dizendo simplesmente
“bom dia” ou já destacando, ainda que timidamente, a qualidade das suas mercadorias.
Os registros realizados de feirantes anunciando em voz alta, nesse horário, são raríssimos.

Em seguida, entre as 09:00 e as 11:00 o número de feirantes anunciando os seus produtos


vai crescendo. Em certas ocasiões, isso ocorre de maneira gradual. Em outras,
repentinamente todos os feirantes apregoadores fazem jus ao adjetivo. Com um número
maior de fregueses presentes e já findadas as atividades realizadas nas primeiras horas da
manhã, os feirantes podem investir mais na abordagem aos clientes e começam a fazer os
seus anúncios. O pregão começa a tomar forma, mas ainda não atingiu o seu pico de
volume.

Esse pico acontece, finalmente, na terceira etapa, geralmente entre as 11:00 e 12:00 da
manhã. É na fase final da feira em que os anúncios são ouvidos com maior destaque, em
maior quantidade e com maior frequência. A paisagem sonora está mais povoada e quase
não há intervalos entre as vozes ouvidas. Os produtos que restam, como são perecíveis,
não estarão com as mesma aparência e qualidade no dia seguinte e transportá-los de volta
significa um custo. É preciso vendê-los logo e anunciar torna-se um imperativo. Por isso,
além do alto volume, este horário guarda outra particularidade, também marcante na
lembrança que temos da feira livre: é nesse momento que os feirantes começam a anunciar
a redução dos preços dos produtos. Preços antes conquistados apenas na base da barganha
agora são ofertados a qualquer um que passe pela banca. Por isso, os registros realizados
nesse horário, são, talvez, a melhor ilustração do que se imagina da paisagem sonora da
117

feira livre. Um ambiente saturado pelos sons do pregão, compostos por gritos e cantos
que anunciam os produtos e seus preços baixos.

Obviamente, diferentes condições podem afetar a regularidade dessas etapas. Em dias de


chuva e pouca clientela, os produtos podem ter seus preços baixados mais cedo. Em dias
de grande fluxo de clientes, os anúncios podem começar mais cedo. Nas feiras que
tradicionalmente abrigam poucas bancas e recebem poucos visitantes, a diferença entre
essas três etapas vai ser mínima e o que vai se ouvir em boa parte do tempo é um ambiente
calmo, pontuado por interações sociais esparsas.

O padrão descrito, no entanto, é uma realidade na maioria das feiras visitadas e muito
bem delineado em algumas em específico, como a da Rua Ronald de Carvalho e a da
Praça Edmundo Bittencourt, ambas em Copacabana. Nestes casos, observa-se uma
variação regular e previsível no tipo de abordagem, no volume e no conteúdo dos
anúncios realizados.

Em resumo, durante os trabalhos de campo, utilizando o método das caminhadas de


escuta e observação, identificamos que os chamamentos e o pregão possuem uma
dinâmica própria frente aos outros sons registrados. Esta é uma dinâmica padrão,
observável em diferentes feiras, com pequenas variações, tanto no Rio de Janeiro, quanto
em São Paulo.

O que chama a atenção é a sincronia com que esses feirantes realizam essas mudanças no
volume, na forma e no conteúdo dos anúncios. Eles parecem compartilhar uma noção da
hora certa para começar a baixar o preço dos produtos e serem mais enfáticos nos seus
anúncios.

No entanto, quando indagados16, os feirantes afirmavam que essas modulações no tipo de


abordagem aos clientes e no preço dos produtos não são combinadas entre eles. Além
disso, quando perguntados sobre os critérios para tomar essas decisões, as respostas eram
sempre pouco claras, embora determinados fatores tenham sido mencionados por mais de
um feirante.

16
Foi importante realizar, nas entrevistas, uma série de perguntas que pudessem explicar esse padrão: qual
é a hora certa para começar a anunciar os produtos em voz alta? Há acordo entre os feirantes sobre esse
momento? Como é definido o preço dos produtos? Quais são os critérios para a escolha da redução do valor
de um produto? Como você decide reduzir o valor de um produto? Há preços combinados ou a competição
é livre?
118

A presença de muitas pessoas circulando pelo corredor significa uma clientela em


potencial, mas não necessariamente real, já que parte dos seus frequentadores está lá pelo
passeio e pela conversa. Assim, o fluxo do caixa, mais que o de clientes, é uma referência
importante para controlar o volume e o ritmo de anúncios, assim como a própria variação
no valor dos produtos.

Os feirantes relatam também que o comportamento de negociação e consumo dos clientes


varia de acordo com a localização de cada feira. Sabe-se, pela experiência, que em alguns
bairros é necessário enfrentar muita barganha e promover a redução dos preços já cedo.
Em outros, onde concentra-se uma clientela de maior poder aquisitivo, é possível ser mais
intransigente na negociação e menos apressado na redução dos preços. Em feiras onde se
encontra clientela já consolidada, pode-se garantir uma demanda regular e previsível a
cada semana, permitindo aos feirantes manterem os preços mais altos por mais tempo.
Onde a feira acontece, portanto, é um fator importante.

A condição e aparência dos produtos ofertados foi outro fator mencionado nas entrevistas.
Produtos envelhecidos ou “machucados” estão em desvantagem aos outros, mais
desejados por quem vai à feira procurando mercadorias frescas. Assim, muitas vezes é
necessário iniciar a feira cobrando um preço mais baixo naqueles itens ou então encontrar
formas de oferecê-los de maneira mais atraente – vendendo os legumes já descascados e
picados dentro de pequenos sacos, por exemplo. Além disso, a urgência em vendê-los é
maior, já que, ao final do dia, eles podem não estar mais em condições de serem
oferecidos novamente em outra feira.

O clima, já que em dias de chuva há menor presença de clientes e faz-se necessário


renegociar os preços desde cedo, e o dia do mês, um indicador indireto do quanto de
orçamento as pessoas têm disponível para compra, também são variáveis consideradas na
equação que comanda o preço das mercadorias.

Em suma, fica claro que a decisão de se iniciar o pregão e a de baixar o preço das
mercadorias é fruto da avaliação de cada feirante e resulta da consideração de fatores que
vão pesar mais ou menos em cada caso individual. Ainda que, nas entrevistas, os feirantes
façam um esforço de descrever os critérios utilizados para organizarem as suas vendas e
que seja possível identificar fatores que são importantes para todos eles, a multiplicidade
119

de variáveis envolvidas torna difícil explicar por que observamos um padrão tão bem
delineado e previsível nas diferentes feiras visitadas.

Tais decisões parece, à distância, quase que intuitivas, pois resultam de uma complexa
leitura do ambiente, habilidade adquirida pela rotina e pela observação, fortalecida pela
experiência de quem conhece bem aquele espaço e precisa entender a dinâmica para nele
prosperar.

No entanto, um critério foi apontado diversas vezes nas entrevistas e merece a nossa
atenção em particular. Perguntados quando era a hora de iniciar o pregão e como eles
decidiam se deveriam anunciar a redução de preços, muitos feirantes respondiam: a hora
de anunciar mais alto e baixar o preço chega quando outros feirantes estão fazendo isso
também.

Ainda que estabeleçam laços de parceria e cooperação entre si, os feirantes estão, ali, em
competição. Um feirante compete especificamente com as bancas que oferecem o mesmo
produto que o seu, é evidente, mas também com todas as outras, já que fregueses podem
estar abertos a ampliar a sua lista de compras e incluir mais uma oferta no seu orçamento.

A inescapável competição entre os feirantes e a habilidade que os mesmos possuem de


ler o entorno, mobilizando diferentes variáveis para tomar as suas decisões, são as chaves
para compreendermos por que os pregões na feira livre apresentam um movimento tão
recorrente, mesmo em feiras de diferentes cidades, como as que visitamos no Rio de
Janeiro e em São Paulo.

Em uma dessas feiras, a que acontece aos domingos na Praça do São Perpétuo, Barra da
Tijuca, tivemos o prazer de cruzar com a professora Lia Osório Machado, do
Departamento de Geografia da UFRJ. Interessada no tema da pesquisa, a professora
perguntou sobre os métodos aplicados, as referências teóricas utilizadas e abriu um
sorriso quando ouviu a descrição dessa dinâmica dos pregões que observávamos em
campo e que naquela altura já nos intrigava bastante. “Entendi, é como uma salva de
palmas” disse Lia, em uma simplicidade que não lhe é habitual, revelando um aspecto
fundamental do fenômeno estudado e, até então, ignorado por nós: as relações de co-
influência no pregão da feira livre. Analisemos, então, essa metáfora.
120

A salva de palmas é um movimento previsível. Alguém dá início com a primeira batida


de mãos e, aos poucos ou imediatamente, vamos todos aderindo, dando volume ao
aplauso. Em determinado momento, que também pode vir rapidamente ou demorar,
dependendo do entusiasmo das pessoas, o número de participantes atinge o seu número
máximo e a salva de palmas atinge o seu pico de volume. Esse momento pode ser breve
ou perdurar por segundos ou minutos, dependendo da situação. Até que alguém decide
parar de bater palmas e, uma a uma, as pessoas também vão parando, o silêncio entre as
palmas volta a existir, até que, após as últimas palmas, ouvidas clara individualmente,
encerra-se o aplauso.

Trata-se de um padrão, uma peça sonora reconhecível que possui uma dinâmica
conhecida onde quer que exista o hábito de se bater palmas. Um movimento organizado,
previsível e, o que nos interessa aqui, emergente. Não há alguém que coordene essa
dinâmica, que dite suas variações. Ela acontece espontaneamente, como resultado da
combinação de decisões que as pessoas ali reunidas tomam. O mesmo acontece no pregão
da feira livre.

Todos conhecem mais ou menos o movimento e, observando o entorno e o


comportamento dos outros, sabe-se também como se comportar. Começar as palmas – ou
o anúncio e redução do preço das mercadorias – cedo demais pode soar constrangedor,
incômodo ou inconveniente. É sinal de qua a pessoa não leu bem o ambiente, perdeu o
timing e está em pouca sintonia com os que o cercam.

Assim como quem participa de um aplauso, cuja decisão de iniciar ou findar as palmas
advém de diferentes critérios e acordos tácitos, os feirantes decidem que horas abordar as
pessoas individualmente, quando iniciar o pregão e em que momento deve-se baixar os
preços de acordo com um conjunto de fatores que nem sempre é claro, óbvio ou unânime.

O conjunto de vozes que forma o pregão da feira livre assume esse movimento muito bem
marcado em diferentes feiras. Inicia-se a feira com as mercadorias em um certo valor e
oferecendo-as em baixo volume. No momento seguinte, os anúncios começam a povoar
o ambiente sonoro da feira e tornam ele saturado nas últimas horas de comércio. Cada
feirante pode funcionar como referência a um outro, vizinho, sobre a hora de iniciar o
pregão.
121

Ao mesmo tempo, cada anúncio de redução de preço pode ser um alerta sobre a
necessidade de baixar o seu também e manter-se competitivo. Este é um aspecto próprio
da feira, que metáfora da salva de palmas não traduz: tais anúncios formam, também, um
a espécie de sistema de som, no qual circulam os preços dos produtos ofertados.

O que se ouve no pregão da feira não se trata de anúncios isolados, combinados em uma
paisagem sonora cacofônica. Eles se afetam mutuamente. Possibilitam que os feirantes
se informem sobre o ritmo de vendas do dia e exerçam um controle dos preços, através
desse sistema de comunicação oral que eles mesmos formam. Os pregões, portanto, são
uma importante estratégia de venda dos feirantes, mas também uma condicionante
fundamental do valor das mercadorias ofertadas.
122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando os autores debatidos nesta tese falam sobre a permanência das feiras no campo e
nas cidades, referem-se, também, à manutenção, ao longo de séculos e em partes
diferentes do mundo, de muitos dos seus principais aspectos: a periodicidade como marca
fundamental; uma morfologia marcada na escassez de recursos, baseada no improviso na
refuncionalização de objetos e materiais; o seu papel no abastecimento local e regional;
o pregão, a fidelização e a barganha como marcas da dinâmica de compra-e-venda; a
oferta primordial de alimentos frescos, além de itens básicos e de uso cotidiano; e seu
papel como lugar de encontro social e comunitário.

Reunindo os relatos de autores que se dedicaram a estudar os aspectos acima


mencionados, estes apresentados de forma explícita e analisados de forma pormenorizada
em muitos desses trabalhos, identificamos uma regularidade com que tais pensadores se
referiam à sensação de se estar na feira livre. Vários exemplos da bibliografia consultada
mencionam o que seria um ambiente típico das feiras livres, identificado em casos
ocidentais e orientais, medievais e contemporâneos. Havia ali, nas descrições
apresentadas, a indicação de um tema ainda pouco explorado sobre a feira: a existência
de um ambiente singular nesse espaço comercial, marcado, entre outros fatores, por uma
paisagem sonora própria.

As razões da permanência da feira, como vimos, é uma questão que suscita diferentes
hipóteses e para qual já foram oferecidas respostas consistentes. Aqui, conseguimos
reunir elementos que nos ajudam a explicar também por que tantos identificam em
diferentes feiras essa paisagem sonora típica.

Na feira, estamos o tempo todo cercado pelas suas atividades, condição imposta pelo
arranjo em corredor que ela usualmente assume. Essa sensação de confinamento é
resultado de uma composição espacial, de um arranjo espacial específico, onde formas e
atividades particulares estão organizadas de uma maneira reconhecível não só por um
padrão morfológico, mas por um conjunto de estímulos sensoriais também reconhecíveis.
Entre eles, os estímulos sonoros provenientes das atividades que compõem a feira: as
conversas entre aqueles que se encontram, a negociação entre feirantes e fregueses, os
anúncios e pregões, as ações de montagem, manutenção e desmontagem das mercadorias,
entre outros. Assim, o conjunto de objetos e práticas que compõem a feira produz um
123

ambiente sonoro típico que identifica esse lugar como distinto dos outros. A necessidade
de organização e padronização das formas, ritmos, materiais e práticas da feira estabiliza
uma rotina e estabilizou uma paisagem sonora também.

A paisagem sonora das feiras é, portanto, parte do sistema de objetos e ações que
conforma esses lugares. Se, ao longo dos anos, e em diferentes lugares, houve uma
manutenção mínima da forma de organização do trabalho, do comércio e da morfologia
básica da feira livre, por consequência, temos também a manutenção da sua paisagem
sonora.

A feira impõe um outro ritmo à rua ou à praça onde ela se estabelece. Ir à feira, nesse
sentido, significa transitar por um espaço da cidade que está em outro ritmo, que possui
outra ambiência. Uma ilha sonora no espaço urbano. E a conformação espacial da feira é
condição pretérita para a composição da sua paisagem sonora.

Neste caso, não estamos falando a partir de uma perspectiva acústica ou focados só na
forma como os objetos que compõem a estrutura da feira ressoam, mas também sobre
como esse arranjo espacial condiciona um modo específico de se empreender o comércio,
condicionando relações de competição e cooperação entre os feirantes.

O anúncio oral, gritado ou cantado, o chamamento, o pregão e tantos outras estratégias


sonoras de publicidade do comércio de rua, como o ambulante e os camelôs, aparecem
em muitos relatos e textos acadêmicos sobre o tema, inclusive os que tratam de épocas
passadas. Essa estratégia aparece na feira também, mas é a conformação espacial da feira,
o fato dela concentrar comerciantes de uma mesma especialidade, colocando-os em
disputa direta e cotidiana, formando um corredor de fregueses que precisam ser
conquistados pelos mesmos, que obriga a aplicação desse tipo de estratégia de maneira
mais inteligente. É preciso saber quando, o que e como anunciar os seus produtos,
destacando a qualidade deles, os seus preços e a redução dos seus preços. Essa
inteligência, construída coletivamente, é um conhecimento tácito, empírico, baseado na
observação do ambiente, passado também hereditariamente, é compartilhado entre os
feirantes, que compartilham também uma noção do que e quando devem fazer em um dia
de feira.
124

A voz dos feirantes não é ouvida só através dos seus anúncios. Ela assume importância
na competição pelos fregueses, mas também na cooperação entre trabalhadores, dado que
é parte fundamental das suas estratégias de auto-organização. É através da voz que a rede
de feirantes, ambulantes, montadores, repositores e demais ajudantes se organiza, solicita
ajuda, cobra tarefas, orienta pedidos, seja lado-a-lado, seja vencendo o burburinho para
alcançar o ouvido de quem está longe. Para além dos pregões, a voz dos feirantes é parte
estrutural da organização do trabalho e do comércio na feira livre. Assim, podemos dizer
que as vozes ouvidas na feira são componentes de um sistema de comunicação entre os
feirantes, por onde circulam os comandos necessários para a produção da feira.

Como vimos, há um outro tipo de informação que circula pela feira e, indiretamente,
modela a sua paisagem sonora também. É através dos anúncios orais que sabemos a
variação dos preços dos produtos ofertados. Além disso, como demonstramos no capítulo
anterior, o anúncio de um feirante condiciona as decisões dos outros, na medida que estão
todos em competição. Como consequência, observa-se uma dinâmica padrão,
encontradas em diferentes feiras e registrada em todas as feiras visitadas, semelhante
aquela que estrutura uma salva de palmas: a partir do primeiro anúncio em voz alta, tantos
outros aparecem, até que se chega a um pico de volume que gradativamente passa a
esvanecer. Nesse pregão, os preços são baixados conforme a necessidade de atrair a
demanda e garantir competitividade. Há, aí, um sistema sonoro por onde circula a
variação de preços da feira.

E assim acontece, toda semana, a cada nova feira, sempre no mesmo dia, estão lá as
mesmas barracas, na mesma posição, com as mesmas mercadorias e os mesmos feirantes.
O mesmo cenário é remontado, redirecionando o tráfego dos carros e remodelada a
paisagem do local onde a feira se instala. Funda-se uma área comercial temporária
visitada semana após semana pelos fregueses, muitos deles vizinhos a ela. Funda-se,
também, um espaço de convívio social, marcado pelos encontros e pela sociabilidade. Ao
mesmo tempo que competem pelos fregueses, a regularidade dos encontros entre os
vendedores de uma mesma feira favorece a criação de laços de parceria e cooperação,
além da amizade. O mesmo acontece entre feirantes e fregueses, em relações em que a
fidelidade e o afeto pessoal se misturam. Isso tudo também é ouvido na feira livre. Risos,
deboches, gritos saudosos, conversas entre pares ou grupos, pessoas se apresentando ou
125

se reencontrando. Tudo aparece nas gravações e tudo foi ouvido durante a nossa
caminhada.

E para além da voz, podemos pensar no som de uma maneira mais abrangente, lembrando
também que as habilidades necessárias para se produzir a feira prevêem estratégias de
lidar com o barulho e o incômodo que ele gera na vizinhança. Prevê modos de montagem,
desmontagem, reposição e outras pequenas etapas de trabalho que sejam as mais
silenciosas possíveis. Dessa maneira, podemos dizer que o som é uma das variáveis
consideradas na hora dos feirantes realizarem as suas tarefas diárias.

Diante dessas últimas reflexões que a pesquisa apresentada enseja, podemos fazer
também algumas considerações pensando no que deixamos de contribuição em termos
teóricos e metodológicos.

A tese aqui apresentada corrobora a ideia de que o som pode assumir um papel
fundamental na organização e na qualificação dos espaços urbanos. Compreender qual é
esse papel e como esse papel é modelado, apropriado e ressignificado pelas pessoas pode
nos revelar novos aspectos a respeito da dinâmica sócio-espacial desses lugares.

Assim, abrimos aqui uma discussão a respeito da relação existente entre a conformação
de uma ambiência e a especialização funcional de determinados espaços urbanos.
Partindo do exemplo da feira, surge uma hipótese que merece investigação em trabalhos
futuros: o processo de coesão espacial, em especial quando pensamos em ruas, praças,
galerias e áreas comerciais, é marcado não só por uma especialização funcional, mas
também pela conformação de um ambiente sonoro típico dessas áreas. No caso das feiras,
procuramos demonstrar como a análise dos sons que compõem tais ambientes podem nos
ajudar a revelar algo sobre a sua dinâmica organizacional, algo que pode ser extrapolado
também para outras áreas comerciais e, talvez, outros espaços das cidades.

Este é um desafio em especial para a Geografia, campo do conhecimento cujos métodos


de pesquisa e meios de comunicação usualmente estão concentrados nos aspectos visuais
do mundo. Acreditamos que a discussão metodológica aqui apresentada e o processo de
construção do método aplicado nesta pesquisa pode inspirar outras iniciativas
semelhantes, contribuindo para o alargamento temático desse campo do conhecimento e
oferecendo novas ferramentas de pesquisa a Geografia.
126

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