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Arranjos espaciais e sistemas de som: um estudo sobre a feira e a sua paisagem sonora
Arranjos espaciais e sistemas de som: um estudo sobre a feira e a sua paisagem sonora
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Contei com ajuda de muitas pessoas nesses anos de Doutorado e seria injusto mencionar
apenas algumas. Então, aos meus amigos, alunos e professores: obrigado pela parceria e
suporte!
Agradeço imensamente aos membros da banca pela generosidade com que aceitaram este
convite. Rebeca Steiman, Marcos Góis, Alessandro Dozena e Leny Sato: muito obrigado!
Aos meus orientadores, Paulo César da Costa Gomes e Leticia Parente Ribeiro: muito
obrigado pelo carinho e cuidado de sempre. Obrigado também por serem exemplos de
honestidade intelectual e compromisso acadêmico. Estar com vocês, seja para discutir
algum aspecto da tese ou rir de um assunto qualquer foi uma das melhores partes desta
pesquisa.
Luisa e Tomás: que bom contar com o amor de vocês nessa jornada. Muito obrigado pela
companhia, carinho e parceria. Amo vocês!
A presente pesquisa tem a feira como objeto central de investigação. Essa forma particular
do comércio vem sendo estudada em diferentes campos do conhecimento, a partir de
diferentes eixos temáticos: as origens e a permanência da periodicidade como marca
fundamental; as práticas de compra e venda características da feira; as formas de
organização do trabalho; o papel da feira como lugar de encontro social e sociabilidade;
entre outros. Nos estudos dedicados à feira, identificamos de forma recorrente a menção
às sensações e estímulos sensoriais que ela provoca. Autores dedicados a diferentes tipos
de feiras falam sobre a sua morfologia confinada e labiríntica, sobre as formas e cores das
bancas e mercadorias, além de mencionarem a presença de diversos tipos de odores nos
corredores desses mercados periódicos. O som, frente a todos esses estímulos, é um dos
que é mencionado com maior recorrência, usualmente a partir da discussão sobre os
pregões, anúncios e outras estratégias orais de venda dos feirantes. Mesmo sendo
identificada por tantos autores, a paisagem sonora da feira permanece sendo um tema
periférico na literatura dedicada a esse espaço peculiar do comércio. Neste sentido, esta
pesquisa dedicou-se a analisar a importância do som enquanto dispositivo organizador e
qualificador das feiras. Para isso, adotamos e adaptamos métodos de pesquisa dedicados
ao estudo do som ambiente, como as soundwalks, para a aplicação em treze feiras
diferentes, em vinte e quatro trabalhos de campo realizados entre Rio de Janeiro e São
Paulo. Como resultado, podemos afirmar que a feira produz paisagem sonora própria que
a identifica e a singulariza frente ao seu entorno. Tal paisagem é parte indissociável das
atividades que compõem a feira livre. Isso, pois, em primeiro lugar, relaciona-se às
atividades ali desenvolvidas, desde a montagem das bancas até as conversas entre os
fregueses, todas elas produtoras de sons. Segundamente, parte dessa paisagem é composta
pelas vozes que anunciam os produtos e orientam o trabalho na feira, evidenciando que o
som, na feira, mais que um subproduto das suas atividades, é parte estruturante da
organização do seu trabalho e do seu espaço.
Palavras-chave:
Feira; paisagem sonora; ambiência; trabalho de campo; métodos fonográficos.
ABSTRACT
The street markets are the central object of investigation of this research. This particular
form of commerce has been studied in different fields of knowledge, based on different
thematic axes: the origins and permanence of periodicity as a fundamental mark; the
particular buying and selling practices of these markets; the specific forms of work
organization; the role of the street market as a place for social meeting and sociability;
between others. In studies dedicated to the street markets, we have recurrently identified
mention of the sensations and sensory stimuli it provokes. Authors dedicated to different
types of street markets talk about their confined and labyrinthine morphology, about the
forms and nuclei of stalls and products, in addition to mentioning the presence of different
types of odors in the corridors of these periodic markets. The sound, in view of all these
stimuli, is one of the most frequently mentioned, usually from the discussion about the
auctions, advertisements and other sales strategies of stallholders. Even being identified
by so many authors, the street market's soundscape remains a peripheral theme in the
literature dedicated to this peculiar space of commerce. In this sense, this research was
dedicated to analyzing the importance of sound as an organizing and qualifying device
for fairs. For this, we adopted and adapted research methods dedicated to the study of
ambient sound, such as soundwalks, for application in thirteen different fairs, in twenty-
four fieldwork carried out between Rio de Janeiro and São Paulo. As a result, we can say
that the fair produces its own soundscape that identifies and makes it unique in relation
to its surroundings. Such a soundscape is an inseparable part of the activities that make
up the open market. This, because, in the first place, is related to the activities developed
there, from the assembly of the stalls to the conversations between the customers, all of
them producing sounds. Second, part of this soundscape is composed of the voices that
announce the products and guide the work at the fair, showing that sound at the fair, more
than a by-product of their activities, is a structuring part of the organization of their work
and their space.
Key words:
Figura 2 – Alimentos apresentados em montes, organizados por tipo e cor. Feira da Rua
Sebastião Pereira, Santa Cecília, São Paulo. Pág. 37.
Figura 3 - Batatas dispostas em sacos na feira da Rua Conceição Veloso, Vila Mariana,
São Paulo. Pág. 37.
Figura 8 - Detalhe da feira vista da parte interna da Praça Serzedelo Correia. Pág. 85.
Figura 11 - Parte interna da Praça Edmundo Bittencourt, rodeada pela feira. Pág. 87.
Figura 12 - Pequena banca improvisada na Feira da Rua Vicente Silva. Pág. 96.
Figura 13 - Banca composta com vários "puxadinhos" na feira da Rua Vicente Silva. Pág.
96.
Figura 14 - Ambulante circulando pela feira da Praça São Perpétuo. Pág. 97.
Figura 15 - A estrutura básica encontrada em boa parte das unidades de venda da feira.
Pág. 98.
Figura 16 - Banca de tempero com tabuleiro ampliado na feira da Praça São Perpétuo.
Pág. 99.
Figura 17 - Exemplo de improviso na composição arquitetônica da feira. Pág. 100.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 01
3.3 – Conceitos básicos para observação e análise das paisagens sonoras .............. 64
3.3.1 – Sinais sonoros, sons fundamentais e marcas sonoras ........................................ 64
3.3.2 – Pontos de escuta e composições sonoras ........................................................... 67
CAPÍTULO 4 – Discussão metodológica e procedimentos operacionais ................. 70
INTRODUÇÃO
No entanto, a nossa experiência em uma cidade não é formada apenas pelo que ela nos
oferece em termos de espetáculos visuais. Entre os cantos apaixonados e em alto volume
das torcidas de futebol e os assobios dos pássaros em um parque tranquilo e silencioso no
subúrbio da cidade, existe uma variedade infinita de composições formadas pelos sons
presentes nos ambientes urbanos. Freadas de carro, roncos de motores, conversas,
gargalhadas, anúncios, apitos, latidos e batuques formam uma espécie de orquestração
involuntária, composta pelos sons existentes em um determinado lugar. Formam uma
composição que também marca a nossa experiência em uma cidade.
Por último, vale lembrar que determinadas características da morfologia urbana, como a
largura das ruas e a altura dos prédios, condicionam o modo como o som se propaga no
espaço e, portanto, influem também naquilo que ouvimos. A cidade possui uma acústica
diretamente ligada à sua morfologia.
Assim, a nossa experiência em uma cidade não é formada apenas pelo que observamos
em suas ruas, praças, estádios e paisagens icônicas. Os ambientes urbanos são formados
também por uma grande variedade de sons que, combinados, soam como composições,
que não só vão variar de acordo com o lugar onde se constituem, como também vão
qualificar estes mesmos lugares.
Indo além, podemos dizer que a consideração dessas paisagens sonoras pode revelar
novos aspectos da dinâmica espacial dos diferentes espaços de uma cidade. Em se
tratando da Geografia, campo do conhecimento historicamente ligado a modos visuais de
compreender e explicar o mundo, temos um amplo campo de investigação ainda pouco
desenvolvido.
E foi na feira que encontramos o lugar ideal para desenvolver as nossas questões. Como
ficou evidente na bibliografia consultada, a feira não é somente um espaço marcado por
uma composição sonora própria, ela é, também, organizada e gerida através do som e,
especificamente, da voz. Na feira, encontramos um caminho para desbravarmos as
possibilidades de pesquisa que os sons oferecem e, a partir deles, procuramos descobrir
novos aspectos sobre esse espaço tão antigo quanto a própria cidade.
A feira, espaço banal na cidade, presente na maioria dos bairros do Rio de Janeiro, já era
uma antiga conhecida quando iniciamos a pesquisa. No decorrer da investigação, quando
fomos, aos poucos, definindo o nosso referencial teórico, conhecendo os trabalhos
produzidos sobre o assunto e construindo o nosso método de pesquisa, suas características
fundamentais, ocultas aos olhos e ouvidos de quem a frequenta de modo puramente lúdico
ou funcional, foram sendo reveladas.
No terceiro capítulo, debatemos o papel do som como objeto de estudo da Geografia. Para
isso, defendemos uma ampliação do escopo teórico, metodológico e temático desta área
do conhecimento, de modo a incorporar questões relacionadas aos aspectos não-visuais
do espaço geográfico.
CAPÍTULO 1 – A feira
Muitos dos que vão ler esta tese visitaram pelo menos uma feira ao longo da vida.
Provavelmente guardam lembranças das feiras visitadas na infância. Pode ser, também,
que ainda frequentem semanalmente a feira do bairro ou da cidade onde residem hoje. E
talvez já tenham incluído uma feira regional em um roteiro de viagem. Ou seja,
considerando que essa é uma das formas de organização do comércio mais antigas e mais
difundidas no mundo, podemos dizer que, para boa parte das pessoas, não é muito difícil
definir exatamente o que é uma feira. Na academia, diferentes autores ofereceram o seu
ponto de vista.
Já Corrêa (2010), tratando das feiras que circulam por diferentes cidades do nordeste
brasileiro, falou de “núcleos de povoamento, pequenos, via de regra, que periodicamente
se transformam em localidades centrais: uma ou duas vezes por semana, de cinco em
cinco dias, durante o período da safra, ou de acordo com outra periodicidade” (p. 50).
Mott (1975), falando pelos antropólogos, definiu a feira como sendo um “lugar ou sítio
geográfico (...) onde um certo número concreto de compradores e vendedores se reúnem
com a finalidade de trocar ou vender e comprar bens e mercadorias” (p. 10).
Mascarenhas (2008), referindo-se à “feira livre” típica do Rio de Janeiro, a definiu como
sendo uma “modalidade de mercado varejista ao ar livre, de periodicidade semanal,
organizada como serviço de utilidade pública pela municipalidade e voltada para a
distribuição local de gêneros alimentícios e produtos básicos” (p. 75).
6
E Leny Sato, autora da obra brasileira mais importante sobre o tema (SATO, 2012),
preferiu a definição do dicionário: “reunião de vendedores e compradores em
determinado local e hora, com a finalidade de comércio” (Houaiss, Villar e Franco apud
Sato, 2012, p. 92).
Entre grupos rurais, ela aparece como uma forma de organizar as trocas do excesso de
produção. No mundo urbano, são, há muitos anos, importantes nós nas redes de
distribuição de alimentos do campo para a cidade. Assim sendo, a feira configura-se como
uma forma recorrente na paisagem de muitos lugares, há muitos séculos. Falar delas é
reconstruir a evolução das relações de troca em praticamente todas as partes do mundo,
diria Dantas (2008, p. 87).
No que se refere à Europa, sua origem situa-se na passagem da Idade Média para a Idade
Moderna. Há registros de feiras europeias já no século XI (RAU, 1983) e, como
demonstra Braudel (1998), uma expressiva difusão e diversificação desses mercados
periódicos ao longo dos séculos da Europa pré-industrial.
Em outras regiões do mundo, a feira também emergiu e foi notada por trabalhos hoje
considerados clássicos. A obra “Markets in Africa” de Bohannan e Dalton (1962 apud
Mott, 1975), por exemplo, reúne 28 artigos que registram a existência de feiras em
7
Como dissemos, a feira é uma solução simples e intuitiva, encontrada por diferentes
grupos para resolver a necessidade de se realizar trocas comerciais. Como lembra
Mascarenhas (1992, p. 113), a periodicidade viabiliza a sua presença mesmo em locais
onde é muito fraco o volume de consumo, concentrando, em um único dia, toda a
demanda local. Além disso, o fato deste não ser um comércio de caráter permanente,
permite que os feirantes se dividam entre os trabalhos de produção, colheita e comércio,
como ainda acontece em muitas feiras que conhecemos.
Obviamente, ainda que exista uma regularidade nessas diferentes formas que nos
permitem chamá-las todas de feiras, estas distinguem-se muito entre si. Suas diferentes
periodicidades, os produtos que são ofertados, as suas escalas e graus de centralidade, os
tipos de interação social que engendram, o perfil socioeconômico dos produtores,
comerciantes e consumidores, são alguns dos fatores que, combinados, conferem
características próprias a cada uma das feiras. Atentos a esse jogo de semelhança e
diferença entre elas, alguns autores buscaram classificá-las a partir da criação de
tipologias.
Rau (1983, p. 56-59), por exemplo, em diálogo com outros autores também interessados
no estudo das feiras medievais, diferencia o que seriam as “feiras”, que emergem na
Europa com o renascimento comercial, aparecendo as mais antigas já no século XI, dos
“mercados locais”, também periódicos, mas existentes desde o século IX.
A autora aponta que os mercados locais seriam destinados a prover a alimentação corrente
da população existente no local onde eles têm lugar e o comércio seria realizado por
pequenos camponeses dos arredores, o que justificaria a sua periodicidade semanal, a sua
esfera de influência muito limitada e a restrição da compra e venda a varejo. As feiras, ao
contrário, seriam conduzidas por mercadores profissionais, configurando-se como
grandes centros de trocas onde “todo o indivíduo, qualquer que seja a sua nacionalidade,
8
todo o objeto negociável, qualquer que seja a sua natureza, têm a certeza de serem bem
acolhidos”. Dada a sua magnitude, as feiras eram realizadas apenas uma ou duas vezes
ao ano e estavam abertas “a todo o comércio, como cada porto de mar a toda a
navegação”. Haveria, aí, portanto, uma diferença não só de grandeza, mas também de
natureza entre essas duas formas do comércio medieval (PIRENNE apud RAU, 1983, p.
57).
Para Huvelin, a distinção essencial entre feiras e mercados se efetua durante a Idade
Média, a partir de uma diferença de escala e importância:
Rau (1983), que cita ainda Ephraim Lipson, Luís de Valdeavellano e outros autores
envolvidos nessa discussão, conclui que, para estabelecer uma divisão entre feira e
mercado, a maioria dos historiadores e economistas têm seguido um critério que se baseia
justamente na amplitude das transições efetuadas nessas reuniões mercantis e a sua maior
ou menor frequência como indicação da sua menor ou maior importância (p. 58).
Bromley (1980) também fala de mercados (markets) e feiras (fairs), mas para referir-se
aos mercados periódicos dos países em desenvolvimento, seu objeto de estudo durante
décadas. O autor, no entanto, utiliza primordialmente o critério da periodicidade para
classificá-los em mercados diários, periódicos e especiais:
Frente às reflexões dos autores citados, cabe aqui uma ressalva. Muito embora a
expressão “feira livre” ou simplesmente o termo “feira” sejam empregados no Brasil, em
outros idiomas, o espaço comercial que tratamos aqui recebe a denominação “mercado”:
feira franca ou mercado franco em Portugal; marché de rue ou marché découvert na
França; market-place, open street market ou street public market nos Estados Unidos e
na Inglaterra (SATO, 2012, p. 91).
Por esse motivo, tanto Mascarenhas (1991) quanto Sato (2012, p. 35) fazem um paralelo
entre as “feiras” e os “mercados” da Europa medieval com o que convencionou-se chamar
no Brasil de “feiras regionais” e “feiras livres”, respectivamente. Trata-se de uma
distinção orientada pelas escalas que tais feiras atingem, mas que guarda, também,
diferenças relacionadas às origens e à distribuição espacial desses dois tipos.
1
Além dos casos estudados nesta tese, poderíamos citar o “Feirão da Casa Própria”, organizado pela Caixa
Econômica Federal, como exemplo de uso do termo “feira” para referir-se a uma atividade comercial
periódica. No entanto, cabe citar que o termo muitas vezes é utilizado para referir-se a atividades comerciais
de ocorrência diária e permanente, como é o caso das Feiras de Livros e Feiras de Artesanato. Nesse caso,
o termo feira faz referência à morfologia desses lugares, geralmente compostos por barracas organizadas
em pares de fileiras e um corredor central por onde circulam os fregueses.
2
Ver Weber (1979), trabalho no qual o autor menciona a relação entre o estabelecimento de feiras e o
surgimento de cidades.
10
Espalhadas pelos bairros das grandes cidades, pelos centros regionais ou ainda nas
pequenas cidades, as feiras na região Nordeste podem ser classificadas como local ou
regional dependendo da sua importância e da área de atuação. Dentre as de caráter
regional destacam-se as de Caruaru, Campina Grande e Feira de Santana, que, por serem
grandes, “para elas convergem toda a produção de grandes áreas, sendo daí escoadas para
as áreas de maior concentração e para os principais portos” (ANDRADE apud DANTAS,
2008, p. 96).
As “feiras locais”, citadas por Manuel Correia de Andrade, são popularmente conhecidas
no Brasil como “feiras livres”. Diferentemente das feiras regionais, essas não estão tão
associadas à região Nordeste e podem ser encontradas em cidades de todo o país. As
“feiras livres” caracterizam-se pela sua periodicidade semanal e escala reduzida, de
caráter intra-urbano, geralmente atendendo apenas à demanda dos moradores de um
bairro – características semelhantes às dos mercados medievais citados por Rau (1980).
Por esse motivo, sua origem está associada a uma demanda por abastecimento de produtos
básicos, de uso cotidiano e, principalmente, alimentícios, que emerge conforme uma
cidade cresce e seu sistema de abastecimento torna-se mais complexo. Nesse sentido,
como bem ilustram os exemplos de Rio de Janeiro e São Paulo, a municipalidade teve
papel fundamental na formalização desse tipo de comércio.
A formação das primeiras feiras do Rio é descrita por Mascarenhas (2008), inserida no
contexto de modernização da cidade empreendida por Pereira Passos. Para o autor, a feira
livre carioca foi concebida, nesse contexto, como um “ornamento dedicado à pedagogia
da civilização nos trópicos” com um “formato carregado do sentido de organização,
beleza e asseio” adequada a nova cidade remodelada pelo prefeito (MASCARENHAS,
2008, p. 34). É nesse contexto, inclusive, que vai se institucionalizar o termo “feira livre”,
ainda que de forma bastante imprecisa:
Essa distinção entre feira livre/local e feira regional, no entanto, não deve ser encarada de
forma tão rígida, já que muitas das feiras conhecidas mobilizam atividades em múltiplas
escalas. Uma feira urbana que atende apenas aos consumidores do bairro, pode ser
formada por feirantes residentes na região metropolitana da sua cidade e estes, por sua
vez, oferecerem produtos oriundos de diferentes estados, participando de um circuito de
distribuição em escala nacional.
Ainda assim, o termo “feira livre” ajuda a recortar o tipo de feira que nos interessa aqui
nesta pesquisa. Pretendemos investigar as feiras de caráter urbano, que atendem a uma
demanda em grande parte circunscrita aos limites do bairro onde a mesma se instala, de
frequência semanal e cuja oferta é formada, principalmente, por produtos perecíveis e de
consumo cotidiano, como peixes, frangos, ovos, carnes, frutas, verduras e legumes. São
feiras que possuem algum grau de institucionalização, garantindo a elas uma regularidade
no seu ordenamento espacial, na sua periodicidade e no elenco de feirantes que as
12
Para que possamos apresentar as nossas reflexões sobre o tema, precisamos, antes,
realizar uma revisão bibliográfica mais abrangente, com o objetivo de compreender qual
é o lugar da feira livre na produção acadêmica interessada no estudo das feiras e mercados
periódicos em geral.
Segundo Mott (1975, p.10-11), três grandes áreas das ciências sociais dominavam, à
época da sua pesquisa, a produção acadêmica sobre feiras e mercados.
Foram os historiadores, afirma o autor, os primeiros a se preocuparem com tal tema. Mott
cita trabalhos da História sobre as feiras da Europa medieval e da antiguidade, das
economias do antigo reino do Daomé e dos impérios da Mesopotâmia, e também sobre a
atividade comercial no México e na América Central antes da conquista (1975, p. 11).
Além dos historiadores, os geógrafos também foram protagonistas no estudo das feiras e
mercados, com a publicação de importantes trabalhos escritos dentro da perspectiva da
geografia da circulação e a respeito do papel desempenhado pela feiras e mercados
periódicos na dinâmica do funcionamento do comércio (MOTT, 1975, p. 11).
Por último, embora mais tardia que a dos demais cientistas sociais, a produção dos
antropólogos ultrapassava em muito a dos anteriores, já na década de 1970. Segundo Mott
(1975, p. 11), o material referente aos mercados africanos, tanto ao norte, como ao sul do
13
A segunda linha identificada por Mott privilegiava a escala regional e eram os geógrafos
os preocupados com tal perspectiva, abordando temas como a distribuição espacial dos
mercados, ciclo e circuito de mercados, o comércio inter-regional, rotas de comércio, etc.
O autor aponta a grande atenção dada ao “problema da inter-relação espacial e temporal
das diferentes feiras numa mesma região”, em trabalhos que propunham tipologias que
englobavam “os diferentes tipos de mercados existentes numa mesma região, sempre
relacionando-se o problema da sincronização-periodização com a distribuição espacial”
(MOTT, 1975, p. 13-14).
Partindo dessa revisão, Mott (1975) também concluiu que, até meados da década de 1970,
poucos trabalhos haviam sido publicados a respeito das feiras brasileiras. O autor
contabilizou apenas vinte e duas publicações com esse recorte, número que contrasta
grandemente com a vasta bibliografia a respeito de feiras localizadas em outros países.
Os trabalhos brasileiros, em sua maior parte, eram textos assinados por geógrafos, cujo
enfoque é a descrição dos aspectos organizacionais das mais célebres feiras nordestinas,
como a de Caruaru (PE), a de Campina Grande (PB) e a Feira de Santana (BA).
14
Hoje, temos um outro cenário. No período de quatro décadas que separa a revisão
realizada por Luiz Roberto Mott e o desenvolvimento desta pesquisa, pesquisadores de
áreas muito distintas se interessaram em estudar a feira, ampliando e enriquecendo o
trabalho realizado antes por historiadores, antropólogos e geógrafos. Nosso levantamento
bibliográfico encontrou trabalhos da Arquitetura (CARDOSO, 2011), Economia
(COÊLHO, 2008), Pedagogia (MORAIS, 2016), Nutrição (LOPES, 2014), Planejamento
Urbano (LACERDA, 2010), Psicologia Social (PONTES, 2012), entre outros.
Além dos trabalhos mencionados, é importante destacar os nomes de Mott (1975; 1979;
2000), Pazera Jr (2003), Maia (2000; 2006) e Dantas (2008) que constituem-se como
importantes referências no estudo das chamadas feiras regionais, com trabalhos que
aliaram pesquisa empírica e levantamento documental. Um outro trabalho
recorrentemente lembrado é o de Corrêa (2010), que possui o mérito de apresentar uma
3
Não buscamos, aqui, reproduzir um levantamento tão extenso como o realizado por Luiz Roberto Mott.
Nosso interesse principal estava voltado para a Geografia brasileira. O levantamento consistiu na busca de
publicações no Banco de Teses e Dissertações, no Scielo, no Google Acadêmico e no Portal Periódicos
Capes. Utilizou-se também o sistema de alertas do Google Acadêmico durante os anos de 2017 e 2018. Os
periódicos acadêmicos da área de Geografia foram listados e realizou-se uma busca diretamente em cada
um dos portais dessas 61 revistas. As palavras-chave utilizadas em todos esses sistemas de busca foram:
feira, feiras, feira livre, feiras livres, street market, street markets. O levantamento reuniu 61 artigos e
capítulos de livros nacionais e 27 internacionais de diferentes áreas, incluindo a Antropologia, Economia,
Saúde Pública, Comunicação Social, entre outros. Nosso foco estava mais direcionado para a publicação
dos geógrafos brasileiros e levantamos 35 artigos e capítulos de livro sobre as feiras produzidos nessa área.
47 dissertações, teses e livros, sendo, destas, 12 da Geografia. Trabalhos publicados em anais de eventos e
monografias de graduação foram desconsideradas.
15
Como é possível notar, mesmo entre os geógrafos, o maior interesse dos pesquisadores
estava voltado para as feiras regionais nordestinas. Mascarenhas (1991, p. 50) frisou,
inclusive, que tais feiras constituíam um fenômeno relativamente bem estudado dentro e
fora da Geografia, enquanto as feiras livres, de caráter mais local e intra-urbano, ainda
careciam de maior atenção dos pesquisadores.
Quando nos voltamos aos trabalhos dedicados às feiras de caráter mais local e urbano,
podemos citar o trabalho de Olmária Guimarães (1969) pelo pioneirismo. Trata-se do
primeiro grande trabalho sobre as feiras livres, em São Paulo, no qual a autora analisa o
papel das feiras no sistema de abastecimento da cidade – abordagem que, segundo Mott
(1975), era a preferencial dos geógrafos que tratavam do tema.
Dentre esses pesquisadores, Leny Sato talvez seja aquela que mais se dedicou ao estudo
das feiras livres. Publicando artigos sobre o tema há mais de uma década, a autora
conduziu uma longa pesquisa em uma feira da Vila Mariana, bairro da cidade de São
Paulo, realizando uma série de trabalhos de campo fundados na observação direta e em
entrevista, mas valendo-se também da coleta de dados secundários e documentais sobre
a história e os aspectos institucionais da feira livre paulista. O seu livro “Feira Livre:
organização, trabalho e sociedade” (SATO, 2012) é a obra mais completa e aprofundada
que temos sobre o tema no Brasil e é uma das principais referências teóricas desta
pesquisa que conduzimos.
Diferentemente da obra supracitada, que tem o mérito de analisar a feira livre em suas
múltiplas facetas, a maioria dos trabalhos encontrados tematiza a feira de forma mais
16
O tempo é uma variável fundamental na compreensão da feira e está no cerne das questões
que diferentes autores levantaram sobre esse espaço comercial. Como atesta Corrêa
(2010), a periodicidade das feiras é uma das principais questões relativas à sua dimensão
temporal, tendo sido discutida por autores dedicados à investigação de feiras originadas
em diferentes contextos histórico-geográficos.
Stine (1962) é outro autor que também buscou refletir sobre a periodicidade dos
mercados, tendo como base a teoria das localidades centrais de Christaller e dois dos seus
conceitos fundantes: alcance espacial máximo (range ou maximum range) alcance
17
espacial mínimo (threshold ou minimum range). Como nos lembra Corrêa (2010, p. 57-
58):
As razões econômicas, no entanto, não são suficientes para explicar o fato de alguns
mercados ocorrerem apenas periodicamente e não de forma permanente. Para Bromley,
Symanski e Good (1975) é necessário considerar também o contexto social, o
desenvolvimento histórico e os processos culturais para que se compreenda a origem e a
permanência da periodicidade em certos mercados.
Para ilustrar a crítica apresentada pelos autores, podemos lembrar que na Europa
medieval “as romarias, peregrinações e todas as festividades religiosas atraíam peregrinos
vindos de longe, e como o peregrino era também muitas vezes um mercador, essas
reuniões estavam destinadas a transformar-se em centros de troca” (RAU, 1983, p. 33), o
que ilustra a importância da fator religioso-cultural para a o surgimento e manutenção de
determinadas feiras.
Uma outra explicação, esta mais restrita a apenas a alguns casos específicos, para o fato
de um mercado apresentar-se apenas periodicamente e não de forma permanente, residiria
em aspectos externos que impõem a ele uma certa sazonalidade. Tais aspectos podem
estar relacionados ao clima, como ilustra Braudel:
Outra questão fundamental é a ordem natural dos períodos de safra e entressafra. Como
menciona Corrêa (2010, p. 64),
Uma outra faceta da dimensão temporal das feiras está relacionada ao fato de, mesmo
após séculos de existência e do estabelecimento de tantas outras formas de mercados fixos
em diversas cidades do mundo, ainda existirem mercados periódicos e feiras de diferentes
tipos.
Strauch (1952) já se colocava essa questão, pensando sobre as feiras de gado no Nordeste
brasileiro. Para o autor, a permanência das feiras ainda no seu tempo era resultado da
combinação de dois fatores principais. O primeiro, para o qual o autor oferece poucos
argumentos, seria um certo apego do “homem nordestino” às suas tradições, o que
justificaria a manutenção da feira em seus moldes originais ao longo dos anos. O outro,
19
este mais bem defendido, residiria em uma condição geográfica, na medida que as
maiores feiras encontrar-se-iam no contato do sertão com a zona da mata e do litoral.
Braudel (1998, p. 15) também discutiu o assunto e defendeu que a permanência das feiras
ainda no século XX estaria relacionado à sua “simplicidade robusta” e ao “frescor dos
gêneros perecíveis que fornece, trazidos diretamente das hortas e dos campos das
cercanias”, oferecidos a preços baixos, sem intermediários, sendo ela “a forma mais
direta, mais transparente da troca, a mais bem vigiada, protegida contra embuste”.
As discussões empreendidas tanto por Strauch (1952) quanto por Braudel (1998) são
relevantes, mas baseadas em contextos marcados pela produção rural, distante da
realidade urbana com que nos deparamos nesta pesquisa. Da mesma forma, as explicações
oferecidas por Skinner e Stine para a existência da periodicidade dos mercados não pode
ser transposta para a nossa investigação de maneira acrítica. Neste caso, cabe perguntar:
o que justifica a permanência dos mercados periódicos em cidades como Rio de Janeiro
e São Paulo, cidades onde a oferta de bens de uso cotidiano é encontrada em diversos
estabelecimentos fixos de comércio, como os supermercados?
Mascarenhas (1992) nos ajuda a responder esta pergunta, oferecendo uma série de
“elementos de persistência” da feira livre. Curiosamente, alguns dos elementos elencados
pelo geógrafo convergem com aqueles apresentados pelos autores supracitados.
113), argumento semelhante àqueles apresentados por Skinner e Stine para explicar a
origem do caráter periódico das feiras na China e na Coreia do Sul por eles estudadas.
Soma-se a este fator a qualidade do serviço prestado, aspecto mencionado por Braudel,
mas, neste caso, apresentado em comparação aos modernos supermercados.
Há, ainda, um último fator ligado à dimensão temporal da feira livre que gostaríamos de
tratar aqui: o modo como cada feirante organiza o seu trabalho em diferentes escalas
temporais.
Dentre os autores que buscaram discutir as relações existentes entre tempo, comércio e
trabalho ao longo de um dia de feira destaca-se, mais uma vez, o trabalho produzido por
Leny Sato (2012). Nas palavras da pesquisadora, o planejamento das atividades de
trabalho dos feirantes tem que considerar a matriz temporal composta por uma dimensão
longitudinal (a sucessão dos acontecimentos numa semana) e por uma transversal (a
sucessão de acontecimentos num dia) (SATO, 2012, p. 184).
Explica a autora que, ao se observar um dia típico de feira, identifica-se uma série de
etapas que compõem o processo de trabalho: compra e transporte de mercadoria,
preparação de mercadorias, montagem de banca, exposição das mercadorias, montagem
da banca, exposição das mercadorias, comercialização de mercadorias, desmontagem da
21
banca. Essas diversas etapas são assim categorizadas pelos próprios feirantes e são
exemplificados no quadro abaixo, elaborado por (SATO, 2012, p. 180-181).
Compras para feira 1 (Ceasa) Deslocamento para feira 1 Deslocamento para feira 1
- Preparação da mercadoria -
Do mesmo modo, cada um dos dias de trabalho e cada uma das feiras são pensadas em
sua posição relativa nos acontecimentos da ida de cada feirante em um ciclo semanal.
Cada dia da semana comporta sua singularidade que exige atenção dedicada, em função
da especificidade daquele dia ou daquela feira. (SATO, 2012, p. 185). O quadro abaixo
exemplifica a agenda semanal de atividades de trabalho de um feirante.
22
- Montagem da banca Montagem da banca Montagem da banca - Montagem da banca Deslocamento para a feira 5
Desmontagem da
- Desmontagem da banca Desmontagem da banca Desmontagem da banca - Comercialização
banca
Deslocamento –
- Deslocamento Deslocamento - Deslocamento Desmontagem da banca
atacadista
Compras de Compras de
Compras Compras de mercadoria Compras de mercadoria - Deslocamento – residência
mercadoria mercadoria
Preparação da
- - - - -
mercadoria
Elaborado por Sato (2012)
23
Os exemplos apresentados por Sato são baseados nas entrevistas que a pesquisadora
realizou na Feira da Caixa d’água, em São Paulo, mas as conclusões que ela apresenta
podem ser universalizadas e vão nos servir também para pensar as feiras que por nós
investigadas.
Nas reflexões de Sato (2012, p.192) fica claro que o trabalho do feirante é norteado por
diversos sensos de tempo: o tempo do relógio, objetivamente mensurado; o tempo social,
que inclui tanto o horário de funcionamento da feira, quanto aquele relativo à rotina do
trabalho que vai se constituindo e consolidando a partir das relações com outros feirantes
e com a freguesia; e o tempo da natureza, que remete tanto à perecibilidade das
mercadorias in natura, quanto ao ritmo cicardiano que marca os períodos de sono e vigília
etc.).
A leitura de artigos, livros, teses e relatos de outras naturezas sobre feiras de diferentes
lugares do mundo torna evidente a existência de um conjunto de particularidades que as
diferenciam dos outros espaços comerciais. Ainda que os produtos ofertados e os
fregueses que as frequentem circulem também por supermercados, mercados públicos e
hortifrútis, há um modo de fazer a feira, ou seja, um conjunto de práticas endêmicas que
distinguem o trabalho e o comércio na feira de qualquer outro conhecido.
Para Sato (2007, p. 97), a instalação da feira “autoriza a criação de um espaço no qual a
brincadeira, o chiste e as regras de civilidade podem conviver publicamente com as
24
Sobre a questão das relações familiares e de trabalho, Ortigoza observou, nas feiras que
conheceu na Coreia do Sul, que os vendedores geralmente são os próprios produtores
rurais e os membros da sua família, fazendo da feira um comércio “baseado em relações
familiares, com grande peso das práticas rurais, sem nenhuma especialização”
(ORTIGOZA, 2010, p. 170).
Silva (2018, p. 29) nos apresenta um relato ilustrativo sobre o tema, oferecido por um dos
feirantes que o autor entrevistou. Na ocasião, o pesquisador perguntou ao vendedor por
que as mulheres ficavam ao fundo da banca, preparando os alimentos, enquanto os
homens se postavam à frente, cuidando das vendas.
“Ah, isso é uma coisa de geração para geração, meu pai me ensinou assim e é
assim que as coisas continuam indo. Eu sou o dono da barraca, então sou eu que
tenho que fazer a venda e arrumar todo o trabalho. Meu filho me ajuda nisso para
aprender como são as coisas e continuar tocando o negócio quando eu parar.
Minha mulher e minha cunhada têm mais jeito com a limpeza das frutas, mas
mulher não tem o jeito para vender as coisas na feira, então elas ficam atrás só
cuidando da arrumação mesmo”.
Para além das divisões de gênero observadas e discutidas por Silva (2018) em seu artigo,
o relato destacado aponta também para uma outra particularidade da feira livre: as
relações familiares e de trabalho combinam-se a um processo pedagógico, no qual os
feirantes mais jovens, pouco a pouco, vão compreendendo o ritmo, as práticos e as regras
tácitas da feira. Montar a banca, preparar as mercadorias, distribuí-las pelo tabuleiro,
25
Por este motivo, para Leite (1956), uma das características fundamentais da feira é o
autodidatismo dos seus empreendedores. E, para Lucena e Germano:
Quando indagamos sobre como são feitos os cálculos das receitas, dos gastos e
lucros com a Feira, a fim de verificar a existência e utilização de estratégias
matemáticas em problemas cotidianos, os feirantes responderam que não
calculam com precisão seus gastos e lucros, mas que o que ganham é suficiente
para as despesas domésticas e para investimentos na compra de sementes,
mudas, conserto de cercas. Dona Silça, uma feirante que vem de Monte Azul
para comercializar seus produtos corrobora nossa pesquisa ao afirmar: “Não
calculo. Sei que não ganho muito mas dá pra viver”. (ALMEIDA, 2009, p. 97-
98).
Estudando por mais de dez anos uma zona comercial, formada por um mercado fixo e
uma feira periódica, localizada na cidade de Sefrou, no Marrocos, durante as décadas de
1960 e 1970, Clifford Geertz também identificou um conjunto de características que são
observáveis nas feiras brasileiras e em tantas outras ao redor do mundo. Gostaríamos de
destacar duas aqui: as práticas de fidelização e a barganha.
Há, portanto, uma relação evidente entre o estabelecimento de uma localização fixa e a
fidelização dos clientes. Saber onde está o seu feirante de preferência facilita a busca
pelos produtos e orienta o seu roteiro em uma feira. Os clientes fidelizados, fregueses no
sentido literal, são reconhecidos em qualquer feira e:
27
“A pechincha é uma prática que, mais do que a proximidade pessoal entre feirantes e
fregueses, revela o lado participativo do ato de comprar na feira” afirma Mascarenhas
(1992, p. 114). Durante a negociação, o preço é ajustado segundo fatores como aparência
dos produtos, a época do mês, a oferta de outras bancas, a quantidade desejada, a compra
de outros produtos, a fidelidade do freguês, a generosidade do vendedor e o que mais
puder servir como argumento no momento da barganha. Do mesmo modo, a quantidade
e/ou qualidade podem ser manipuladas, diferentes arranjos de compras podem ser
propostos, enquanto o preço em dinheiro é mantido constante (GEERTZ, 1978, p.31).
Uma particularidade da feira livre é o seu potencial como mobilizador do encontro e das
interações sociais. Como descreve Cardoso (1967), “a feira se constitui ainda em
acontecimento social, pois muitos só se encontram por ocasião de sua realização, e não
raro se reúnem em pequenos grupos de conversa prolongada, colocando em dia assuntos
interrompidos em feiras anteriores” (113).
“Frequentada em dias fixos, a feira é um centro natural da vida social” sugere Braudel
(1996, p.16). Ela participa da vida comunitária de populações locais de forma mais
complexa do que unicamente através das relações de produção, compra e venda nelas
encontradas. Dessa forma, sua função social e comunitária vai além de suas funções
econômicas, o que significa dizer que ali as transações econômicas estão correlacionadas
a diversos outros fatores e arranjos socioculturais. Historicamente, mercados e feiras
adquiriram uma importância muito grande que ultrapassa seu papel comercial,
29
Virgíni Rau (1983) observa o mesmo nas feiras europeias, em especial as portuguesas, da
Idade Média, período anterior ao estudado por Braudel. “Numa época em que quase toda
a população da Europa vivia curvada sobre a terra, o instinto de sociabilidade, inerente a
todo homem, deve ter encontrado nessas reuniões a única oportunidade de se expandir”,
especula a autora (RAU, 1983, p, 53).
Centros da economia urbana e nós de uma rede de comércio regional, as feiras eram
também locais privilegiados para a circulação de informação. Era nas feiras que se
obtinham notícias do que se passava pelo “mundo”, do resultado das colheitas das regiões
circunvizinhas e, ainda nas palavras da autora, “de tantos outros assuntos que, então como
hoje, são a base do cavaquear do povo” (RAU, 1983, p. 53).
Pazera Jr. (2003), tratando de uma feira no município de Itabaiana (PB), observa o
mesmo. Diz ele que a feira livre “é o lócus escolhido para os mais variados atos da vida
social mantendo assim um sentido de permanência”. Segundo o autor, “é nela que se
sabem as últimas notícias e boatos, são feitos os anúncios de utilidade pública, onde são
realizadas as manifestações populares em épocas de campanha eleitoral, como os
comícios” (p. 18). Este relato está alinhado ao relato de Santos (1963) a respeito das feiras
nordestinas:
Também para Corrêa (2010, p. 50) os dias de feira são aqueles em que as pessoas se
encontram, sabem das novidades e realizam eventos sociais, culturais e políticos.
Compreende-se, nesta ótica, que sua função social e comunitária vai além de suas funções
econômicas de escoamento da produção agrícola, artesanal e industrial, o que significa
dizer que ali as transações econômicas estão correlacionadas a diversos outros fatores e
arranjos socioculturais (SERVILHA E DOULA, 2009, p. 124). Já Gurgel et al (2012, p.
169), aponta que na Feira do Alecrim (Natal, RN) ocorre a conformação de
microterritórios, estabelecidos não só por relações de poder, mas também, por
sentimentos de identidade, intensificados pelas múltiplas sociabilidades dinamizadoras
do espaço da feira.
Geertz também reconhece, em suas pesquisas, essa relação de sociabilidade entre todos
os seus frequentadores dos mercados que estudou, apontando a existência de grandes
grupos internos de solidariedade entre eles, onde relações mais próximas e íntimas são
produzidas entre os que se identificam e se ajudam mutuamente (GEERTZ, 1979, p. 154).
Comentando a obra do autor, Servilha e Doula (2009) apontam que:
31
Para Ortigoza, ao mesmo tempo que a capital coreana produz um espaço moderno, com
um conjunto de formas globais de desenvolvimento, representadas pelos grandes
shopping centers e hipermercados que “aguçam o consumo baseado no autosserviço e nas
grandes marcas”, também mantém e permite que se proliferem as “antigas formas
comerciais representadas pelas feiras e pelo comércio de rua, os quais preservam um
consumo baseado na sociabilidade e no atendimento pessoal” (ORTIGOZA, 2010, p.
169).
Voltando ao Brasil, mas olhando para cidades de pequeno porte, Servilha e Doula
afirmam que mercados municipais e feiras são um espaço de enorme importância para a
32
Por fim, gostaríamos destacar o trabalho de Viviane Vedana, que adiciona à questão da
sociabilidade nesses mercados periódicos um elemento fundamental para a construção da
questão que guia esta tese. Na sua dissertação de mestrado, a autora defende que a:
Ou seja, para a autora, a feira funda um espaço de comércio, de sociabilidade, mas incorre
na produção de uma “ambiência de fruição estética (MAFFESOLI apud Vedana, 2008,
p. 118) no interior das práticas da feira-livre”. Tal “ambiência” é decomposta em vários
aspectos como:
Como veremos, assim como Viviane Vedana, a maioria dos autores que se dedicaram ao
estudo da feira reconheceram a existência de um ambiente próprio nesse espaço
comercial, descrito por eles a partir das sensações experimentadas durante os trabalhos
de campo, ou relatado nas fontes consultadas por aqueles que estudaram feiras do
passado. Acreditamos, aqui, que a discussão desse outro aspecto ainda pouco discutido
da feira livre pode abrir novas questões sobre a mesma.
33
CAPÍTULO 2 – Na feira
Independente do tema central de cada um dos seus trabalhos, é muito comum que os
autores busquem apresentar uma descrição geral das feiras que tomaram como objeto
empírico. Descrevem o perfil socioeconômico de feirantes e fregueses, a morfologia da
feira e os produtos ofertados, a sua situação espacial, sua história e tantos outros aspectos
considerados importantes. O que deve ser descrito na apresentação de cada feira, varia de
autor a autor.
Tais descrições parecem respostas para uma questão oculta: qual é a sensação de se estar
em uma feira? Ou ainda: que aspectos sensíveis da feira fazem dela um espaço distinto
do restante do seu entorno?
Tão difundida quanto é a feira, é também a percepção de que ela possui um ambiente
próprio, uma estética que a identifica e a diferencia dos outros espaços da cidade. Tão
antiga quanto a feira enquanto forma do comércio, parece ser a feira como ambiente
urbano destacado dos demais. E a permanência da feira como importante espaço
comercial parece ter significado também a sua permanência como um ambiente típico,
próprio, marcado por fortes estímulos sensoriais. Como sugere Braudel (1998):
Sob sua forma elementar, as feiras ainda hoje existem. Pelo menos vão
sobrevivendo e, em dias fixos, ante nossos olhos, reconstituem-se nos locais
habituais de nossas cidades, com suas desordens, sua afluência, seus pregões,
seus odores violentos e o frescor de seus gêneros (BRAUDEL,1998, p. 14-15).
34
Uma das formas mais comuns de se apresentar esse ambiente sensorial típico da feira
livre é ressaltando um suposto efeito sinestésico produzido pelos seus múltiplos estímulos
visuais, olfativos e sonoros. É o caso de Pedrosa (2015, p.15) que se refere à feira como
sendo “um universo particular, (...) um mundo de sentidos, onde as cores, os odores, os
sons e os sabores se mesclam” e o de Mascarenhas que a descreve como possuidora de
“um misto de formas, cores e cheiros que seus olhos não são capazes de discernir ou
classificar rapidamente” (2008, p. 84).
O relato de Andressa Pontes, na verdade, é exceção frente aos diversos relatos sobre a
sensação provocada pela feira. A proximidade dos corpos, os cheiros e sons que
desagradaram a autora, foram encarados muito mais vezes de maneira positiva pelos que
a visitaram para fins acadêmicos. Pedrosa (2015), por exemplo, seleciona praticamente
os mesmos elementos que Pontes para descrever a feira onde realiza os seus trabalhos de
campo, mas demonstra ter se agradado mais com o que lá viu e sentiu:
O barulho dos carros, comum nos demais dias da semana, é substituído pelos
gritos peculiares vindos das vozes dos feirantes, do moedor de café, da moenda
de cana-de-açúcar, do fritar dos pastéis. O cheiro do café, dos churrasquinhos e
das frutas começam, aos poucos, dominar a rua, substituindo o forte “odor do
asfalto”. O colorido das frutas, verduras, legumes o verde da lona das barracas,
os caixotes deixados no chão, transformam a rua em uma grande aquarela.
Caminhar por ali, no domingo de manhã, é andar no meio da rua e não mais na
calçada. É grudar o pé no melado proveniente do suco da fruta que se perdeu no
chão, é esbarrar em vários carrinhos e sacolas onde as compras são transportadas,
é sentir as sutilezas que compõem a feira, é perceber o espaço que se transforma
e se cria ao mesmo tempo (PEDROSA, 2015, p. 15).
É o caso também de Miranda (2009), que refere-se à feira como “um quadro cotidiano de
alegria, agitação, calor, cheiros, cores, gostos, sinestesia pura”, sendo “difícil não sair
35
admirado por algo quando se vai a uma feira, onde tudo é passível de encantamento (p.
21)”. Sato (2012) parece concordar e deixa escapar a sua admiração e encantamento com
os estímulos da feira:
Enquanto Miranda e Sato desenham a feira sob o tom do fascínio, ela ganha um ar mais
épico com Leite (1956), que descreve a típica feira nordestina, na qual as “barracas se
sucedem na instabilidade de suas instalações provisórias”, as mercadorias oferecem
“ricos matizes nas cores e nos formatos” e onde se presencia “um espetáculo
surpreendente e feérico, de sons intensos e gestos vigorosos”, marcado por “feixes de
músculos se agitando numa atividade incessante de almas primitivas travando um grande
embate” (p. 155).
É bonito de se ver o verde vivo das alfaces e dos pimentões se misturando com
o verde mais escuro das couves e fosco dos quiabos, o desvanecido verde dos
pepinos e dos maxixes, dos molhos de coentro, das rúculas... do vermelho dos
tomates, do alaranjado das cenouras, do amarelo das abóboras de leite, dentre
tantas outras verduras. (...) E o cheiro irresistível e prazeroso exalado pelas frutas
maduras, inconfundível como o da jaca, o da manga, dos sapotis, das goiabas,
dos jenipapos (BARBOSA, 2013, p. 70).
Comum também a muitos desses relatos é a falta de sistematização com os quais são
apresentados. Muitos deles se assemelham mais a extratos de um caderno de viagens do
que de um caderno de campo. Marcadas demasiadamente pelas impressões pessoais de
quem escreve e pouco comprometidas com uma abordagem mais analítica, muitas das
descrições disso que poderíamos chamar de “ambiência” da feira (THIBAUD, 2012),
cumpre o objetivo de apresentar o lugar ao leitor, reconstruindo textualmente parte do
que se sentiu em campo. Cumpre a função de “ambientar” o leitor, para utilizarmos o
termo em um duplo-sentido conveniente, mas que raras vezes é tomado como objeto de
análise mais aprofundada.
Vedana (2008) e Sato (2012) são exceções, pois apresentam importantes reflexões a partir
dos padrões visuais observados nas bancas das feiras. Como lembra Sato (2012), “a feira
livre não pode prescindir da recepção estética que visa alcançar efeitos pragmáticos
claros: a definição de compra da freguesia” (SATO, 2012, p.101). Desse modo, “a
dimensão estética comparece como algo previamente arquitetado e como um improviso
que a singularidade do lugar oferta (SATO, 2012, p.101)”. Em outras palavras, quem
monta uma banca, monta também a vitrine das suas mercadorias.
Para Vedana (2008), “a disposição dos alimentos nas bancas é, antes de mais nada, um
traço específico de cada feirante, que procura uma composição das formas dos alimentos
e de suas cores que insira o freguês numa experiência estética particular e primeiramente
visual” (VEDANA, 2008, p.130). Sendo a aparência um critério central para os fregueses
na hora de escolher um produto, organizar com esmero a apresentação do que se vende é
atividade fundamental no cotidiano do feirante. Por isso, afirma Vedana (2008), “a banca
sempre bem organizada e com uma ótima apresentação dos produtos, valorizando suas
cores e formas, faz parte do ritmo de trabalho dos feirantes e principalmente de sua forma
de relação com os fregueses ” (VEDANA, 2008, p. 131)”.
37
Figura 2 – Alimentos apresentados em montes, organizados por tipo e cor. Feira da Rua Sebastião Pereira, Santa
Cecília, São Paulo. Foto do autor.
Figura 3 - Batatas dispostas em sacos na feira da Rua Conceição Veloso, Vila Mariana, São Paulo. Foto do autor.
Figura 4 – Vegetais apresentados em diferentes níveis, montados com caixotes e enfeitados com folhas soltas. Feira
da Praça Serzedelo Correia, Copacabana, Rio de Janeiro. Foto do autor.
O uso de caixotes para construir diferentes níveis na banca e o uso de folhas e flores para
ornar as mercadorias à venda são também exemplo do detalhismo empregado nas
composições de cores, formas e texturas formadas nas suas “bancas-vitrines”. Como
resultado, temos “uma infinidade de construções artísticas”, que se apresentam em melhor
forma nas primeiras horas da manhã e vão sendo renovadas conforme as vendas
acontecem, mas sempre mantendo-se dentro de um “espectro que mantém a identidade
estética da feira livre” (SATO, 2012, p. 101). Como ilustra a autora:
As reflexões de Lenny Sato e Viviane Vedana tratam dos atributos visuais da feira livre,
mas acabam nos remetendo também a alguns dos seus aspectos fundamentais,
mencionados no capítulo anterior, como o improviso, a reutilização e adaptação de
materiais e as estratégias singulares de venda. É curioso notar, portanto, que a observação
39
Como vimos, os estímulos visuais não são os únicos recorrentemente lembrados por
aqueles que visitaram e investigaram as feiras. Os odores, considerados agradáveis ou
não, e a densidade de corpos e objetos em um espaço por vezes confinado e labiríntico
são registros típicos nas descrições da ambiência encontrada nas feiras. No entanto, um
elemento dentre todos os outros destaca-se nos relatos sobre as feiras, sejam elas
medievais, contemporâneas, rurais, urbanas, regionais ou locais.
De todos os sons associados à feira livre, as vozes que anunciam as mercadorias são
sempre as mais lembradas. No entanto, o anúncio oral, gritado ou cantado, o chamamento,
40
o pregão e tantos outras estratégias sonoras de publicidade não são exclusividade da feira
e podem ser observados em outras modalidades do comércio de rua, como o ambulante e
os camelôs.
Parga (1996, p. 16-7), por exemplo, em seu estudo sobre o pequeno comércio no Rio de
Janeiro do século XIX, afirma que os vendedores ambulantes "estendiam-se por todas as
ruas e caminhos da cidade, (...) desde os aguadeiros até os mascates que vagavam pelos
logradouros com suas malas repletas de quinquilharias e gritos escandalosos
característicos" (PARGA, 1996 apud. MASCARENHAS, 1997).
Esse uso do som como estratégia publicitária no comércio de rua é destacado também por
Backheuser (1944), ao tratar do comércio ambulante no Rio de Janeiro, onde, durante
todo o ano, “seus pregões enchem o ar, altos, estridentes, característicos, em contínuos
chamamentos à freguesia” (BACKHEUSER, 1944, p. 03).
Neste trabalho, o autor nos apresenta um perfil do comércio ambulante do Rio de Janeiro
à época, descrevendo e classificando os vendedores segundo critérios como o tipo de
produto comercializado, horário de trabalho, tipo de transporte adotado, cor, idade,
nacionalidade e os diferentes modos como os ambulantes apregoavam os seus produtos.
A coexistência de diferentes modalidades de comércio ambulante e as suas respectivas
estratégias publicitárias leva Backheuser a afirmar que “as nossas ruas estão cheias de
sons musicais, entrechocando-se no ar em uma combinação algo desordenada, mas
também algo harmônica que deveria tentar os compositores impressionistas”
(BACKHEUSER, 1944, p. 25).
Dos chamamentos às caixas de som, passando pelos instrumentos musicais, são muitos
os recursos sonoros utilizados no comércio popular na disputa pela clientela. Essa
estratégia, como se sabe, aparece na feira também, já há muitos anos.
omnidirecional do som, que não obedece aos limites estabelecidos socialmente entre a
rua e a casa, e alcança mesmo quem não está frequentando a feira.
O ruído das feiras chega distintamente aos nossos ouvidos. Não é exagero dizer
que posso avistar os negociantes, mercadores e vendedores, na praça do Rialto,
em Veneza, por volta de 1530, da própria janela da casa de Aretino, que com
prazer contempla esse espetáculo cotidiano (BRAUDEL, 1998, p. 11).
No Brasil, pensando já em tempos mais recentes, são muitos os exemplos de feiras onde
os anúncios orais são ouvidos pelos seus corredores. Barbosa (2011), observou os
vendedores da feira livre da cidade de Poções (BA) e encontrou um vendedor ambulante
de churrasco, que vagueva pela feira liberando fortes gritos de “boi na braaaaasa!” que,
segundo o autor, “carregam uma rouquidão peculiar, uma extrema variação de timbre
que leva a voz a sons quase inumanos, próximos da sonoridade de um berro de boi”
(BARBOSA, 2011, p. 10). Ainda segundo Barbosa (2011), na feira de Poções (BA) “os
gritos e anúncios em alta voz enxameiam a feira com ritmos singulares” (p. 11), dando
conta da sensação sonora que tal feira provoca.
Já autores como Gurgel et al (2012), estudando a feira do Alecrim em Natal (RN) nos
relembram a chamada “hora do grito”, “momento em que os feirantes diminuem os preços
dos produtos e os divulgam através do grito, que objetiva atrair os clientes e evitar com
que os vendedores permaneçam com as ‘bóias’ (produtos que sobram) (GURGEL et al,
2012, p. 163). Conhecida também como a “hora da xepa”, esse momento icônico da feira
é conhecido também, como sugere o nome citado pelos autores, pela sobreposição de
vozes anunciando as mercadorias nas últimas horas de comércio. Sobre a “hora do grito”,
Sato (2012) comenta que:
Para Vedana (2008), que realizou trabalhos de campo em feiras de Porto Alegre, São
Paulo e Paris, “os constantes pregões dos feirantes, em sotaques diferenciados e que
42
No entanto, nem todo anúncio na feira é gritado. O uso de bordões e breves melodias,
malabarismos prosódicos, modulações no timbre, emulação da voz de artistas famosos e
até mesmo paródias de músicas fazem parte do repertório dos feirantes mais habilidosos,
chamados por Walkyria Silva (1980) de “artistas verbais”. A sua dissertação de mestrado
em linguística é um dos primeiros trabalhos no Brasil a estudar especificamente os
anúncios e pregões da feira livre, realizando o que ela chamou de “etnografia da fala” nas
feiras de São Paulo. Analisando mais de 144 pregões registrados à época, Silva (1980)
concluiu que:
Para ilustrar a variedade e riqueza que podemos encontrar nos anúncios orais dos
feirantes, podemos citar Garcia (2006), que analisa "A preta do acarajé", de Dorival
Caymmi, e "Carioca", de Chico Buarque, para discutir “a transição de formas populares
de tradição oral, dentre as quais se destaca o pregão de rua, para o disco e o rádio” e,
posteriormente, o momento quando o “jingle parece assumir o lugar do pregão”. Nessa
discussão, o autor aborda o papel da canção como crônica e narrativa do cotidiano,
analisando aspectos como letra, melodia, harmonia, acompanhamento rítmico e dimensão
comercial. Assim fazendo, o autor acaba destacando os traços poéticos e musicais
encontrados nos anúncios do comércio de rua.
O som da feira, no entanto, não é feito só do pregão. Como já dissemos, a feira é ponto
de encontro em bairros e cidades pequenas, nós das redes de socialização que se formam
pela vizinhança. Mesmo que em algumas horas do dia elas sejam menos audíveis, pois
escondidas sob o volume dos anúncios orais, as conversas também contribuem para a
composição sonora encontrada nas feiras. Castro e Castro (2016) contam que, em uma
feira de Belém (PA):
Podemos buscar outro exemplo mais distante. Em “Uma Vida Chinesa”, Li Kunwu
(2015) nos apresenta um relato autobiográfico em que a história da sua família se
confunde com a da China desde a tomada de poder por Mao Tsé-tung até os dias atuais.
Dentre os espaços retratados na narrativa em quadrinhos, temos uma feira de Yunnan, no
ano de 1978, apresentada em uma página inteira, na qual podemos conferir como os sons
que a compunham ficaram marcados até hoje na memória do autor. Na imagem, podemos
conferir menções às conversas entre os seus frequentadores e aos anúncios realizados
pelos vendedores, além dos reclames oficiais oriundos das caixas de som presentes no
local, sendo estes a única exceção em um cenário muito semelhante àquele encontrado
nas feiras brasileiras.
44
Junto dos anúncios e das conversas, há na feira uma multiplicidade de atividades que
também produzem som e contribuem para a sua sonoridade marcante. Montagem de
bancas, arrumação de mercadorias, corte de carne, descame dos peixes, transporte do
gelo, o próprio translado das pessoas e tantas outras ações fundamentais no cotidiano dos
feirantes são movimentos produtores de som.
Orlando Figes, em sua obra sobre a história cultural da Rússia (2018), nos indica que o
“som da feira”, composição resultante das suas vozes e movimentos, é tão difundido e
facilmente identificável quanto ela própria. Tratando da segunda metade do século XIX,
o autor nos apresenta o compositor russo Modest Mussorgski, segundo ele, alguém
“obcecado com o ofício de representar a fala humana com sons musicais” (p. 299). Figes
explica que muitas das composições importantes de Mussorgski constituem uma tentativa
de transpor em sons as qualidades únicas da fala camponesa russa. Como exemplo,
menciona a ópera inacabada baseada na “Feira de Sorochintsi” de Nikolai Gogol, da qual
Figes menciona o seguinte trecho:
Espero que tenha ouvido alguma vez o ruído de uma cachoeira distante, quando
o entorno agitado se enche no tumulto e um torvelinho caótico de sons estranhos
indistintos gira à sua frente. Não concorda que o mesmíssimo efeito é produzido
no instante em que se entra no redemoinho de uma feira de uma aldeia? Todo o
populacho reunido se funde numa única criatura monstruosa cujo corpo maciço
se remexe pela feira e serpenteia pelos becos estreitos, guinchando, mugindo,
balindo. O clamor, as imprecações, mugidos, balidos, rugidos – tudo isso se
funde num único ruído cacofônico. Bois, sacos, feno, ciganos, panelas, esposas,
pães de gengibre, gorros – tudo fica em chamas com cores contrastantes e dança
diante dos olhos. As vozes se afogam umas nas outras e é impossível distinguir
uma única palavra, resgatar qualquer significado nessa tagarelice; nem uma
única exclamação pode ser entendida com clareza. Os ouvidos são atacados por
todos os lados pelas palmas barulhentas dos comerciantes da feira inteira. Uma
carroça vira, o clangor de rodas de metal no ar, tábuas caem com estrondo no
chão e o observador fica tonto ao virar a cabeça de lá pra cá (FIGES, 2018, p.
299).
46
Podemos retornar ao Brasil como último exemplo a crônica “A Feira”, na qual Rubem
Braga destaca a aparência audível dessa forma do comércio, mencionando também os
seus aspectos visuais e odoríferos. Divagando sobre uma nova feira instalada nas
proximidades da sua casa, o autor brinca sobre como o movimento gerado na montagem
e as horas de pregão podem perturbar outro famoso escritor brasileiro, Carlos Drummond
de Andrade:
Passa gente vindo da feira. Agora temos uma feira aqui perto de casa. Para mim
apenas movimenta a esquina, com tantas empregadas e donas-de-casa carregadas
de sacos e cestas de frutas, verduras e legumes. Ao poeta Drummond, que mora
mais além, a feira deve incomodar, porque os grandes caminhões roncam sob a
sua janela, e o vozerio dos mercadores e fregueses perturba o seu sono matinal.
O que não tem a menor importância: na atual situação do mundo é bom que os
poetas estejam vigilantes. Quanto aos cronistas, que eles durmam em paz; é
melhor que se recolham e se esqueçam de fazer a crônica destes dias, em que
não há nenhum exemplo nem lição. O poeta é mais adequado para ouvir as
exclamações patéticas (“os tomates estão pela hora da morte”) e tomar o pulso
dos fatos concretos da mercancia local. Além disso deve subir até a sua janela a
fragrância das verduras e de todas essas coisas nascidas na terra, ainda frescas e
vivas, coloridas. É bom que ele veja as quinquilharias ingênuas, as ervas
misteriosas, as pequenas inúteis e preciosas coisas do mar e do sertão, os
cavalos-marinhos e as sementes escuras. Só ele poderá entender as coisas de
barro e de palha, a glória dos tomates, o espanto de pedra no olho dos peixes
eviscerados, e o constrangimento amarelo desses abacaxis sem sabor que
amadurecem no meio do inverno (BRAGA, 2013, p. 296).
O incômodo gerado pelos sons da feira, tratado com humor por Rubem Braga, é algo
compartilhado por alguns daqueles que dividem com a feira uma rua ou uma praça, o que
mobiliza a ação dos agentes públicos responsáveis por regular esses espaços, ensejando
um conjunto de leis e normas específicas sobre o tema, em diferentes municípios do país.
Podemos citar como exemplo o caso das feiras livres de São Paulo, onde o decreto no
48.172, de 6 de março de 2007, estabelece que “durante as operações de carga e descarga
dos equipamentos e mercadorias, bem como a montagem e desmontagem das bancas,
ficam proibidos o uso de aparelhos sonoros e a emissão de ruídos que perturbem o sossego
público”. Além disso, proíbe os feirantes de “utilizar aparelhos sonoros durante o período
de comercialização, bem como apregoar as mercadorias em volume de voz que cause
incômodo aos usuários da feira e aos moradores do local”4.
4
Disponível em: https://goo.gl/sJwQBZ (acessado em 18/12/2017).
47
Lacerda (2010) cita a prática de pregões nas feiras de São José dos Campos, em São
Paulo, e menciona a lei municipal no 3970/91 de 25 de Junho de 1999, que dispõe sobre
a organização e funcionamento das feiras livres, em seu artigo 16o, item 22: “Não
apregoar, por si ou por seus empregados ou auxiliares, as mercadorias ou seus respectivos
preços”.
No Rio, não há nada explícito na lei, mas segundo alguns feirantes há fiscalização e multa
prevista. A Lei Estadual no 126, de 10 de maio de 1977 “dispõe sobre a proteção contra
a poluição sonora” e considera infração “a produção de ruído, como tal entendido o som
puro ou mistura de sons, com dois ou mais tons, capaz de prejudicar a saúde, a segurança
ou o sossego públicos” (artigo 1º). É a ela que os agentes do poder público recorrem
quando necessitam impor certa ordem sobre o som da feira. O extinto decreto 166 do
município carioca estabelecia medidas disciplinares a serem tomadas, com a ameaça de
multa ou cassação de matrícula do infrator em caso de descumprimento. Entre as
infrações constavam a venda de mercadorias deterioradas, fraudes nos preços e nas
pesagens, atentados contra a moral e os bons costumes e, o que mais nos interessa aqui,
"apregoar ou produzir qualquer ruído evitável" (MASCARENHAS, 1992, p. 103).
A menção aos anúncios orais e aos gritos do pregão, presente em relatos que variam da
Europa medieval à metrópole brasileira, passando por pequenos povoados da China
maoísta; a comum correlação estabelecida entre as conversas, encontros e demais
interações sociais que a feira enseja com uma espécie de burburinho, uma composição de
sons indistintos de muitas pessoas falando ao mesmo tempo; a inevitável identificação
dos sons que resultam involuntariamente de todos movimentos necessários para que a
feira aconteça. A recorrência de todos esses elementos nas descrições que encontramos
sobre diferentes feiras demonstram a importância que o som possui na formação da sua
“ambiência” singular, identificada por tantos autores. Menções a esses mesmos sons em
diferentes campos da arte e a criação de normas municipais dedicadas ao controle do
“som da feira” também corroboram essa importância.
b) O que os padrões identificados nos sons dos objetos, das atividades, das
conversas e dos anúncios nos revelam sobre a organização e produção da feira?
Estas são as questões que orientam essa pesquisa. Desse modo, temos como objetivos
principais nesta tese:
Para isso, é preciso entender o papel periférico que o som e outros aspectos não-visuais
do mundo vem assumindo na pauta de interesse dos geógrafos. Passemos, então, a discutir
o som como objeto de estudo da Geografia.
49
Em outras palavras, podemos dizer que nós não reagimos passivamente a essas
informações. Elas estão emaranhadas a uma teia de significados, para utilizar uma
expressão de Clifford Geertz (2013 [1973]), que é tecida cotidianamente e a muitas mãos.
Atribuímos diferentes significados a esses estímulos e nos apropriamos deles para
organizar o nosso cotidiano. A má iluminação de uma rua pode indicar perigo para
alguém que anda desacompanhado à noite. Um burburinho ouvido à distância pode
indicar a direção do bar para o qual um grupo se desloca. E o aroma típico da maresia
pode ser sinal que estamos próximos da praia.
Esses significados, no entanto, não são estáticos e nem universais. As leituras que
fazemos de uma paisagem ou do som e do aroma ambiente dos lugares que frequentamos
varia enormemente segundo fatores que não caberiam ser listados aqui. Meinig (2010)
expõe muito bem essa possibilidade de múltiplas leituras através de um exercício
apresentado no artigo “Olho que observa: dez visões sobre a mesma cena”, analisando as
diversas formas de se interpretar uma mesma paisagem.
Em primeiro lugar, é importante lembrar, junto com Yi-Fu Tuan, que o que percebemos
do mundo sensível é sempre limitado por nossos sistemas sensoriais, capazes de
identificar apenas um espectro específico de cores e uma limitada faixa de frequências
sonoras, por exemplo. Isso significa dizer que, por mais diferenças que existam, “(...)
como membros de uma mesma espécie, estamos limitados a ver as coisas de uma certa
maneira. Todos os seres humanos compartilham percepções comuns, um mundo comum,
em virtude de possuírem órgãos similares” (TUAN, 2012, p. 21). Ou, como colocaram
Maturana e Varela (2001, p. 28), “nossa experiência esta indissoluvelmente atrelada à
nossa estrutura. Não vemos o ‘espaço’ do mundo, vivemos nosso campo visual; não
vemos as ‘cores’ do mundo, vivemos nosso espaço cromático”.
Além disso, essas informações e as combinações que delas resultam não se apresentam
passivamente às nossas interpretações. Os modos como essas informações se combinam,
muitas vezes, resultam de escolhas e querem transmitir uma ideia. A paisagem do centro
de uma grande cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, é resultado de um somatório
de ações que variam em perenidade, origem e escala, combinando de grandes programas
de revitalização urbana a ações de pequenos coletivos de grafiteiros e pichadores. Em
ambos os casos temos um mundo sensível sendo modelado na intenção de nos dizer algo.
Em outras palavras,
51
(...) a significação que ‘lemos’ nos aspectos de uma paisagem pode ser, algumas
vezes, por assim dizer, voluntária, ou seja, esses aspectos querem
deliberadamente dizer uma coisa precisa. A paisagem, assim, objetiva nossos
sentidos, ela não age como um simples objeto que se oferece ao nosso olhar e à
nossa compreensão; pela forma das combinações que processa, pelos ângulos
que privilegia, pela sensibilidade que organiza, ela funciona como uma espécie
de ‘vitrine’ de uma localidade e, portanto, de sua população. Nesse sentido as
paisagens são como sujeitos, pretendem ser as consciências ‘oficiais’ de um
lugar, são o mise-em-scène de uma vivência espacial e é isso que elas podem nos
comunicar através da sensibilidade estética (GOMES, 2004, p. 08).
Existem inúmeros projetos paisagísticos que serviriam como ilustração da ideia acima. A
escala das construções, suas formas, a iluminação, seu revestimento e tantos outros
aspectos de empreendimentos arquitetônicos são escolhidos de modo a transmitir
visualmente uma ideia, um conceito. O mesmo pode ser feito através do estímulo de
outros sentidos. Tomemos como exemplo projeto de criação de uma identidade sonora
desenvolvido pela empresa Zanna Sound para o MetrôRio, concessionária responsável
pelo transporte metroviário da cidade do Rio de Janeiro. Tal projeto, entre outras ações,
consistiu na composição um tema musical para ser tocado nos comerciais do metrô, no
aperfeiçoamento do texto e da voz que comunicam por quais estações o passageiro está
passando e na criação de um conjunto de sinais sonoros unificado que são ouvidos em
muitas das interfaces de contato do cliente com o MetrôRio, como as cabines de recarga
de créditos. Em todos os espaços do Metrô o usuário está cercado por sons com uma
mesma timbragem e tonalidade, dando uma certa unidade ao ambiente sonoro nesses
lugares e conferindo uma identidade sonora à empresa.
Ações semelhantes foram realizadas nas estações de metrô de Paris, mas com uma
diferença importante, já que a intenção, neste caso, era “disciplinar os fluxos embalando
o ouvido”5. Em Châtelet-Les Halles, por exemplo, o ambiente sonoro é modelado sob
medida para reduzir o tempo de percurso nos corredores das estações. Ou seja, enquanto
no metrô carioca o som aparece como componente da identidade de um lugar, em Paris o
recurso sonoro é utilizado para sugerir ritmos. Em um caso, o som está ali para qualificar
aquele espaço, dando a ele uma identidade. No outro, ele é utilizado para organizá-lo,
conferindo a ele um ritmo. Em ambos, a ação é efetivada pela prévia e correta
identificação e utilização de um sentido comumente associado a um tipo específico de
som.
Indo além, podemos afirmar que, ainda que cores, formas, sons, odores, texturas e
superfícies não sejam produzidos no intuito de transmitir um sentido específico,
determinadas intepretações dessas informações se estabilizam e são compartilhadas
socialmente. Tomemos duas situações como exemplo. A organização do trânsito das
grandes cidades depende dos motoristas e pedestres atribuírem o mesmo significado às
luzes verde, amarela e vermelha nos semáforos. E não é incomum observar pessoas
levantarem-se ao mesmo tempo dos bancos de uma estação ao ouvir o som do trem que
se aproxima. No caso do semáforo, um jogo de cores foi escolhido, e estabilizou-se como
um código amplamente difundido, para organizar o fluxo de veículos e pedestres nas
cidades. É pelo fato de compartilharmos a mesma leitura desse jogo de cores que é
possível organizar esses fluxos. Já o som do trem se aproximando é puro resultado de um
conjunto de atividades mecânicas, como a fricção do trem sobre os trilhos, o acionamento
dos freios, entre outros. Essa combinação de sons não é produzida intencionalmente. Não
possui, a princípio, função ou significado fundamental e não visa comunicar nada. No
entanto, acaba assumindo um significado compartilhado pelas pessoas que,
cotidianamente, fazem uso do transporte ferroviário e, intuitivamente, associam aquela
combinação de sons à chegada do trem.
5
Disponível em: http://diplomatique.org.br/marketing-sonoro-invade-as-cidades/ . Visitado em
01/02/2019.
53
No entanto, como apontam Gallagher & Prior (2014), esse interesse pelos aspectos
sensíveis da vida urbana ainda é tímido na Geografia, especialmente quando pensamos
nas dimensões não-visuais (sonora, tátil, olfativa) das cidades. Apesar de encontrarmos
trabalhos isolados, como o artigo sobre as “paisagens olfativas” de Porteous (1985) e o
livro lançado há poucos anos por Wissman (2014) sobre a geografia do som urbano, ainda
são raros os geógrafos dedicados a estudos desse tipo.
Junto com Gomes e Ribeiro (2013), gostaríamos de apontar que o raciocínio geográfico
sempre esteve associado a um imprescindível aparelhamento visual, atendendo, desde
seus primórdios, a um verdadeiro imperativo gráfico. Essa necessária associação surge
mesmo na denominação da disciplina: Geo + grafia, contendo, assim, em seu próprio
corpo, a concepção de informações que estão gravadas, inscritas.
Não por acaso, autores de linhas de pensamento distintas, como Gregory (1994), Smith
(2000), Rose (2003) e Cosgrove (2012) reconheceram o conhecimento geográfico como
sendo “uma forma especial de visualização”, como afirmou o geógrafo britânico Halford
Mackinder muitos anos antes, em 1904 (apud RYAN, 1994). No Brasil, autores como
Gomes (2013) e Novaes (2011), produziram relevantes trabalhos sobre o tema.
Boa parte dos sons que ouvimos no nosso dia-a-dia, como os roncos de motores, o estalo
de um galho ou os ruídos ferroviários, são apenas resíduos de determinadas atividades
mecânicas. A outra parte é composta por emissões sonoras destinadas à comunicação,
como as buzinas dos carros e anúncios de ambulantes. Juntas, formam uma composição
sonora, cacofônica e involuntária, presente na maioria das grandes cidades, que é
percebida, em maior ou menor grau, por qualquer um dos seus citadinos.
O peso que sons indesejáveis possuem na nossa qualidade de vida tanto demandou ações
por parte do Estado quanto despertou o interesse de empresas privadas. A americana
Howloud6, por exemplo, desenvolveu um método que permite avaliar “o quão
barulhenta” é uma determinada localidade a partir de dados sobre tráfego de carros e
tráfego aéreo. Com esses dados, a empresa mapeia uma estimativa do nível de ruído em
uma cidade. Em sua apresentação, a Howloud argumenta que, assim como informações
6
Disponível em: http://howloud.com/. Acessado em 20/01/2020.
56
Na medida que classificamos praças, ruas, estações de metrô e outros locais a partir de
associações como barulhentos/estressantes ou silenciosos/tranquilos, estamos tomando o
som como elemento qualificador desses espaços, atribuindo a eles um significado a partir
da sua dimensão sonora. Por consequência, o som acaba configurando-se, também, como
uma importante referência para a organização do espaço urbano, demandando uma
regulamentação estatal e, como vimos, servindo de subsídio para a especulação
imobiliária.
Enquanto a visão tende a implementar uma distância entre quem percebe e o que é
percebido, e enquanto o olfato tende a produzir fenômenos excessivamente difusos e
voláteis, a audição pode agregar o afetivo com o cognitivo, o universal com o singular de
uma maneira muito equilibrada. Através da visão nós observamos um mundo diante de
nós, presumimos um distanciamento entre quem vê e o que é visto (WYLIE, 2007). Já o
som não está “aqui” ou “ali”, ele é omnidirecional. Diferentemente da cor, que
permanece “colada” ao objeto, o som tem a capacidade de se separar de sua fonte e
difundir-se em muitas direções. Estamos rodeados de sons que se propagam ao redor e
57
vêm de todos os lugares ao mesmo tempo. Através da audição, o mundo não se apresenta
à nossa frente, mas ao nosso redor.
Alguém poderia argumentar que cheiros e aromas também permitem essa experiência
imersiva que o som nos fornece. No entanto, a nossa audição, diferentemente do que
acontece com o nosso olfato, é suficientemente acurada para qualificar propriamente e
distinguir precisamente um ambiente de outro. Comparando-se a gravação realizada em
uma área de comércio popular do Rio de Janeiro/Brasil (neste link) e outra em uma
estação de metrô em Santiago/Chile (neste link), podemos notar como as ações e a
morfologia local afetam o que se ouve e distinguem bem esses dois lugares. O mesmo
não seria possível caso privilegiássemos cheiros e aromas.
A paisagem sonora tem sido a principal chave conceitual dos poucos geógrafos que se
dedicaram ao estudo do som. Uma consulta ao Banco de Teses e Dissertações indica a
existência de apenas três teses e três dissertações, de cinco autores diferentes, publicadas
no Brasil entre 2006 e 2016. Os temas abordados e as metodologias empregadas são
variados. Interessado na relação existente entre poluição sonora e qualidade ambiental,
Castorino (2012) empregou métodos quantitativos e realizou a medição dos Níveis de
Pressão Sonora (NPS) em um conjunto de Shopping Centers na Região Metropolitana de
7
O objetivo inicial de Schafer ao iniciar seus estudos acústicos, era a fundação de uma nova interdisciplina
com o objetivo de “descobrir princípios pelos quais a qualidade estética do ambiente acústico, ou paisagem
sonora, pode ser melhorado”. Para isso, ressaltava o autor, seria “necessário conceber a paisagem sonora
como uma vasta composição musical que ressoa incessantemente à nossa volta e perguntar de que modo
sua orquestração e sua forma podem ser aperfeiçoadas para produzir riqueza e diversidade de efeitos que
não sejam, todavia, destrutivos para a saúde ou o bem-estar humano (SCHAFER, 2011, p. 366)”. Ou seja,
sua motivação inicial era o desenvolvimento de um campo de estudos que teria uma finalidade prática, a
saber, a melhoria da qualidade do ambiente sonoro que moldamos cotidianamente.
59
Goiânia, buscando mapear o ruído presente nesses espaços. Já Furnaletto (2014) utilizou
uma abordagem de viés fenomenológico para estudar o folguedo do boi e as suas
paisagens sonoras, destacando o papel da sonoridade produzida por essa manifestação
popular na construção de identidades e na consolidação de laços de pertencimento ao
lugar. Silva (2016) investigou os conflitos referentes à reivindicação de reconhecimento
público das práticas rituais evangélicas pelo estado laico, registrando os caminhos para a
formação de um patrimônio imaterial evangélico na Região Metropolitana de Fortaleza a
partir da paisagem sonora produzida por este movimento religioso. Por último8, Marcos
Alberto Torres, professor do departamento de Geografia da UFPR, é o que possui
produção mais relevante sobre o tema, publicando artigos (TORRES, 2010) e dedicando
o seu mestrado e o seu doutorado ao estudo das paisagens sonoras (TORRES, 2009;
TORRES, 2014), sempre empregando métodos qualitativos, como entrevistas e mapas
mentais.
Quando buscamos artigos produzidos por geógrafos sobre o tema, também encontramos
poucos exemplares. Em uma varredura que incluiu todas as revistas de Geografia
nacionais disponíveis online, encontramos 37 trabalhos que tomaram o som como objeto
de estudos, nos quais destacavam-se os nomes de Malanski (2016; 2017) e Torres (2010;
2012).
8
Gostaríamos de mencionar também a dissertação de mestrado defendida por Rodrigo Passos Felicissimo
(2006), que trata da paisagem sonora dos migrantes, mas que não está disponível para consulta online e não
pode ser analisada.
60
A primeira crítica apresentada por Ingold (2015) parte da premissa que a paisagem não é
algo essencialmente visual. Ela seria sim, visível, mas só se tornaria visual quando é
apresentada por uma técnica, como a pintura ou a fotografia, ou seja, através de uma
imagem despojada de qualquer outra dimensão sensorial. Da mesma forma, uma
paisagem pode ser audível, mas, para ser auditiva, teria que ter sido primeiro apresentada
por uma técnica de arte sonora ou gravação.
Dessa maneira, o autor acaba por contrariar pensadores como o geógrafo John Wylie
(2007) e a filósofa Anne Cauquelin (2007), para os quais a paisagem é, essencialmente,
um conceito ligado à dimensão visual do mundo. Para Ingold, a paisagem não estaria
vinculada a qualquer registro sensorial específico – seja de visão, audição, tato, paladar
ou olfato – não fazendo sentido, portanto, a sua adjetivação. Ela diria respeito a uma
feição, à superfície do mundo, percebida por nós através do som, da luz, dos odores e
outros estímulos sensoriais. Nesse sentido, uma distinção entre uma paisagem e uma
paisagem sonora seria desnecessária.
Outra objeção ao conceito de paisagem sonora é apresentada por Tim Ingold a partir de
uma antiga provocação filosófica: “será que a árvore que cai em uma tempestade produz
algum som se não houver nenhuma criatura presente com ouvidos para ouvi-la?” Tal
61
A paisagem das coisas – isto é, sua conformação de superfície – nos é revelada graças à
sua iluminação. Quando olhamos em volta em um belo dia, vemos uma paisagem banhada
pelo sol, não uma paisagem luminosa (lightscape). Da mesma forma, ao ouvir os nossos
arredores, não ouvimos uma paisagem sonora (soundscape). Pois o som, eu diria, não é o
objeto, mas o meio de nossa percepção. É aquilo em que ouvimos. Da mesma forma, não
vemos a luz, mas vemos na luz (Ingold, 2015, p. 208).
Kelman (2010) é outro autor que questionou o uso pouco problematizado das reflexões
de Schafer a respeito da paisagem sonora. Como nos aponta o autor, as reflexões que
Murray Schafer desenvolveu durante a década de setenta aparecem, desde então, como
importante referência não só para os geógrafos, mas para quase todos os pesquisadores
interessados no fenômeno do som. O termo aparece em títulos de livros, capítulos e
artigos, em nomes de álbuns musicais, em performances artísticas, em descrições de
gravações de campo, no vocabulário da engenharia acústica de teatros e salas de show.
No entanto, afirma Kelman (2010, p. 214),
Na perspectiva de Kelman (2010, p. 2014), o que Schafer nos apesenta nesse livro não é
um campo neutro de pesquisa acústica, tratando-se de um livro mais prescritivo do que
descritivo. Se apropriando fortemente de uma linguagem do movimento ambientalista,
62
Um trecho emblemático sobre o enfoque dos estudos acústicos de Schafer aparece quando
o autor classifica a paisagem sonora das grandes cidades como sendo de baixa-fidelidade,
ou seja, marcada pelo excesso de ruído que nos impede de ouvir os sons de forma definida
e independente um dos outros. Essa baixa-fidelidade estaria ligada à grande densidade de
atividades produtoras de som nas cidades, enquanto a “paisagem sonora original era
silenciosa”. Apesar do fato do autor não explicar o que é, onde e quando essa “paisagem
sonora original” existiu, esse tipo de oposição revela como, na perspectiva de Schafer,
em uma grande cidade, haveria pouco espaço para a produção de novos significados para
os sons urbanos. Para ele, grande parte do que se ouve é apenas barulho e ruído. São sons
indistinguíveis e desagradáveis, que deveriam ser isolados pelos moradores da cidade a
partir de uma “educação da escuta”. Essa paisagem sonora urbana, supostamente
cacofônica e incompreensível, é entendida, portanto, mais como algo a ser superado do
que ouvido e analisado.
Como vimos, Ingold defende que “na prática perceptual ordinária estes registros
cooperam tão proximamente, e com tal sobreposição de função, que suas respectivas
contribuições são impossíveis de serem separadas” (INGOLD, 2015, p. 206). No entanto,
ainda que as informações sensíveis nos atinjam de forma contínua e sincrônica, e que
combinadas conformem uma espécie de ambiência (THIBAUD, 2012), qualquer um de
nós é capaz de focalizar os seus sentidos individualmente e perceber, separadamente, o
que ouve, o que vê e o que cheira. Além disso, são justamente conceitos como os de
landscape, soundscape e smellscape que nos permitem analisar a nossa interação com o
mundo destacando aspectos específicos de cada um dos nossos sentidos.
Desse modo, o conceito de paisagem sonora assume importância central nesta tese, sendo
fundamental nas análises que realizaremos dos dados coletados nas feiras visitadas. Tais
análises serão ancoradas, também, por um conjunto de conceitos associados à parcela
audível do mundo que nos cerca. Os primeiros, sinais sonoros, sons fundamentais e
marcas sonoras, foram cunhados pelo próprio Schafer (2011) e receberão aqui a
problematização necessária para que possam nos servir como instrumentos de análise. Já
os conceitos de ponto de vista (ou escuta, como vamos propor), composição e exposição
são debatidos por Gomes para tratar das relações entre espacialidade e visibilidade, mas
passarão pelas adaptações necessárias para também atender aos fins desta tese.
64
Estamos alinhados a Schafer (2011, p.25-26), quando o autor afirma que o que “o analista
da paisagem sonora precisa fazer, em primeiro lugar, é descobrir os seus aspectos
significativos, aqueles sons que são importantes por causa da sua individualidade,
quantidade ou preponderância”. Ou seja, nosso debate sobre como empreender esta
investigação deve levar em conta duas questões iniciais: o que queremos ouvir em campo
e como descrever e classificar aquilo que é ouvido? O próprio Murray Schafer, ainda que
comprometido com outros objetivos (KELMAN, 2010), propõe três conceitos para a
análise da paisagem sonora que nos serão úteis neste estudo: sinais sonoros, sons
fundamentais e marcas sonoras.
Não há nada a fazer com a dimensão física do som, pois já mostrei de que modo
mesmo os sons muito fortes, como os da Revolução Industrial, permaneceram
completamente indiscerníveis até que sua importância social começou a ser
questionada. Por outro lado, mesmo os sons mais delicados serão notados como
figuras quando são novidade, ou quando percebidos por forasteiros. Assim, Lara
nota o ruído das luzes elétricas em Moscou tão logo Pasternak a faz mudar-se do
interior para lá (Doutor Jivago), ou eu noto o rangido das pesadas cadeiras de
metal no chão de ladrilhos dos cafés de Paris cada vez que visito essa cidade
como turista (SCHAFER, 2011, p. 215).
Nesse sentido, a identificação dos sinais sonoros de um lugar não pode ser realizada
levando-se em consideração apenas os aspectos como o volume e a altura do som. Como
o trecho acima ilustra, um som pode se destacar frente a outros que nós ouvimos por conta
de uma experiência subjetiva. O tema de uma música ou um determinado tom de voz
65
pode nos remeter a uma memória pessoal, por exemplo. Eles se destacam do “fundo” pelo
significado que atribuímos a eles, sendo percebidos por nós como “figuras”. Aqui, não
trataremos desse aspecto. Nos interessam os sinais sonoros cujos significados são
compartilhados socialmente. Mais especificamente, nesta pesquisa, aqueles que
organizam e orientam a espacialidade de um determinado lugar, a feira. Como, então,
identificá-los?
Em segundo lugar, é preciso considerar que apesar dos sinais sonoros poderem ser
“organizados dentro de códigos bastante elaborados, que permitem mensagens de
considerável complexidade a serem transmitidas àqueles que podem interpretá-las”
(SCHAFER, 2011, p. 27) e apesar de muitas das nossas atividades cotidianas dependerem
da correta leitura dos códigos atrelados a esses sinais, nem sempre temos consciência dos
significados que atribuímos aos sons que percebemos no dia-a-dia. Desse modo,
consideramos que a identificação dos sinais sonoros na nossa área de estudo envolve não
só uma escuta atenta da paisagem sonora, mas também a análise dos comportamentos a
ela associados. Nossa proposta envolve a observação dos frequentadores das feiras ea
identificação de quais são os sinais sonoros que, de alguma forma, organizam e orientam
a espacialidade do local estudado.
constância suficiente para formar um fundo contra o qual os outros sons são percebidos”
(SCHAFER, 2011, p. 368).
Para Schafer (2011, p. 26), “os sons fundamentais não precisam ser ouvidos
conscientemente; eles são entreouvidos, mas não podem ser examinados, já que se tornam
hábitos auditivos, a despeito deles mesmos”. No entanto, sua preponderância e
perenidade podem acabar gerando uma espécie de sentido de lugar (TUAN, 2013):
Os sons fundamentais de uma paisagem são os sons criados por sua geografia e
clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais. Muitos desses sons
podem encerrar um significado arquetípico, isto é, podem ter-se imprimido tão
profundamente nas pessoas que os ouvem que a vida sem eles seria sentida como
um claro empobrecimento (SCHAFER, 2011, p. 26).
Falamos, então, de sons e composições sonoras que, ao mesmo tempo que não capturam
nosso foco de atenção, são preponderantes e perenes em um determinador lugar, ao ponto
de se tornarem uma marca identitária dos mesmos. A consideração dessa categoria pode
nos permitir levantar questões como: quais sons ou conjuntos de sons encerram um
“significado arquetípico” na área de comércio analisada? Quais sons estão “imprimidos
tão profundamente” nos frequentadores da feira de modo de conformarem um sentido de
lugar?
O último conceito proposto por Schafer (2011, p. 27) é o de marca sonora. O termo em
inglês, soundmark, é uma variação de landmark, e refere-se a “um som da comunidade
que seja único ou que possua determinadas qualidades que o tornem especialmente
significativo ou notado pelo povo daquele lugar”. No nosso caso, não estamos tratando
exatamente de um “povo” ou de uma “comunidade” em específico, mas acreditamos que
é possível identificar marcas sonoras mesmo no interior de grandes cidades e que tais
marcas podem, não pela sua perenidade, mas pela sua individualidade, compor a
identidade de determinados lugares. O badalar do sino de uma igreja em um bairro
residencial e o canto de torcidas organizadas em áreas próximas a estádios de futebol são
exemplos.
gravação dos sons que, pelo seu caráter endêmico e simbólico, configurem-se como
verdadeiras marcas sonoras das feiras estudadas.
Os outros três conceitos utilizados para balizar os nossos procedimentos analíticos são
resultado de um diálogo com Gomes (2013) que, para abordar as relações existentes entre
espacialidade e visibilidade, fez uso de três expressões frequentemente utilizadas nos
discursos sobre as artes: ponto de vista, composição e exposição. Tal uso se justifica pelo
fato desses termos, afirma o autor, possuírem um fundamento posicional e, portanto,
espacial, geográfico. Apesar de apresentar preocupações distintas das nossas e, seguindo
a tradição geográfica, estar concentrado principalmente naquilo que é visível, a discussão
levantada por Gomes aponta o caminho para dois conceitos que pretendemos utilizar na
nossa pesquisa.
Na concepção do autor, ponto de vista, para além do sentido metafórico, refere-se aos
lugares que oferecem uma visão panorâmica, de onde se pode observar uma paisagem,
por exemplo. “Ponto” nesse caso indica um lugar determinado, uma posição da qual
podemos ver algo que não veríamos se estivéssemos situados em outra posição qualquer.
A expressão estabelece, portanto, uma relação direta entre o observador e aquilo que está
sendo observado. O ponto de vista é, portanto, um dispositivo espacial (posicional) que
nos permite ver certas coisas (GOMES, 2013, p. 19).
Queremos propor aqui uma noção análoga a de ponto de vista: o ponto de escuta. O
argumento fundamental é que aquilo que ouvimos é, assim como aquilo que vemos,
resultado também de um jogo de posições, composto por quem ouve e o que é ouvido.
Buscamos, diariamente, de forma intuitiva ou deliberada, nos posicionar de forma a ouvir
ou não ouvir determinados tipos de fontes sonoras. Ao assumirmos uma posição, não
estamos construindo apenas um campo de observação, mas também um campo de
audição. Dessa forma, tornamos outras parcelas desse campo periféricas e emudecemos
outra imensa parcela. Caminhando da entrada para o interior de uma praça, por exemplo,
podemos passar, em poucos metros, de um ambiente marcado pelo som cacofônico de
ambulantes, transeuntes e automóveis para um outro onde predominam os cantos dos
passarinhos e o farfalhar das folhas das árvores.
68
A noção de ponto de escuta é importante na nossa pesquisa por dois motivos principais.
Primeiramente, pois, em nossos trabalhos de campo, será necessária a escolha de pontos
estratégicos para a análise da paisagem sonora local. Ou seja, enfrentaremos a tarefa de
selecionar pontos que nos permitam a escuta e o registro dos sons importantes para a
nossa análise. Os critérios para a escolha desses pontos é um dos aspectos metodológicos
debatidos no Capítulo 03 desta tese. Como veremos, a nossa opção em campo foi operar
em movimento, deslocando o nosso ponto de escuta ao longo de uma caminhada pelas
feiras visitadas. Em segundo lugar, a ideia de ponto de escuta destaca a relação existente
entre “quem ouve”, “o que se ouve” e “de onde se ouve”, algo fundamental para
compreendermos tanto os fatores que modulam a paisagem sonora nos diferentes espaços
que compõem uma feira, quanto o papel que os sons assumem na organização espacial e
na orientação das trajetórias das pessoas em uma feira.
A composição, por sua vez, é definida por Gomes (2013) como sendo um conjunto
estruturado de formas, cores e coisas que, combinadas, produzem algo novo. Sob essa
perspectiva, a paisagem pode ser entendida, também, como uma composição. Formas de
relevo, diferentes tipos de cobertura vegetal, ocupação das terras, entre muitos outros
elementos, se associam de maneira original e configuram uma paisagem. E, argumenta
Gomes, um aspecto fundamental da paisagem, entendida como uma composição, é o jogo
de posições. A forma de dispersão desses dados que, integrados, dão origem a um novo
elemento corresponde à sua espacialidade. Essa espacialidade, ou esse “padrão de
dispersão”, é a marca de uma composição. Há uma ordem espacial que é a chave da
composição (GOMES, 2013, p. 21-22).
composição, ou seja, como o resultado de um jogo de posições entre quem ouve e quem
é ouvido, é fundamental para a análise da relação entre som e espacialidade na nossa
pesquisa. Cabe agora, portanto, discutir os procedimentos metodológicos que permitirão
a operacionalização desses conceitos.
70
Para dar início à nossa discussão a respeito dos métodos empregados na condução desta
pesquisa, gostaríamos, primeiramente, de apresentar algumas reflexões sobre o trabalho
de campo na Geografia.
Basta lembrar que a arquitetura, a história e a economia também podem tomar o espaço
como objeto de estudo e o que determina a especificidade de cada uma dessas áreas do
71
pensamento são as questões por elas levantadas. Todas elas, juntas com a Geografia,
podem dividir o mesmo objeto de pesquisa. No entanto, como afirma Gomes (2009, p.
27), uma análise geográfica se delineia quando a nossa questão central está preocupada a
ordem espacial dos fenômenos estudados. Ou seja, haverá sempre uma Geografia quando
a dispersão espacial construir a questão central do nosso problema. Ou ainda, a Geografia
existe em qualquer fenômeno em que haja uma ordem de dispersão espacial.
Essa perspectiva sobre a área de estudos da Geografia nos interessa aqui pois permite que
discutamos a importância do trabalho de campo na disciplina sem que precisemos nos
ater às especificidades epistemológicas e metodológicas dos subcampos da Geografia
Física e da Geografia Humana. O que nos interessa é o que elas possuem em comum: o
interesse pela dimensão espacial dos fenômenos que estudam. Estejam os geógrafos
dedicados ao estudo dos processos erosivos em uma bacia hidrográfica ou à difusão de
um tipo de comércio em uma cidade média, as duas perguntas fundamentais para esses
pesquisadores vão ser sempre duas: “onde?” e “por que aqui?”.
Sob essa perspectiva, para retornarmos agora ao debate sobre o trabalho de campo
propriamente dito, Pires do Rio (2011) destaca o fato de que o trabalho de campo
geralmente é tomado como ponto pacífico na Geografia, sendo pouco debatido, como se
este possuísse uma importância por si só:
No entanto, nos primeiros parágrafos deste texto expusemos como tais dicotomias,
especialmente aquela ligada à divisão entre Geografia Física e Geografia Humana, é
decorrente da concepção teórica que se tem da disciplina e não seria um procedimento
metodológico como o trabalho de campo que nos permitiria superar essa divisão. Por
outro lado, a indicação que o trabalho de campo permitira a superação dessa dicotomia,
denota que há, nesta prática, algo que é comum aos dois subcampos e, portanto,
fundamental ao pensamento geográfico.
demonstrou isso de maneira brilhante, expondo todas as mediações necessárias para que
a coleta de dados empíricos em campo se transformasse em gráficos, textos, diagramas,
mapas e outras formas de se representar a realidade em estudo. Destacamos aqui um
trecho onde ele descreve a coleta de amostras vegetais por uma botânica em um campo
na Amazônia, ilustrando a relação entre a atividade prática e a construção de
representações:
Cada planta que ela remove representa milhares da mesma espécie, presentes na
floresta, na savana e na zona limítrofe entre ambas. Edileusa [a botânica] não
está colhendo um ramalhete, está reunindo as provas que quer preservar como
referência (aqui, em outra acepção da palavra). Deve ser capaz de encontrar o
que escreve em seus cadernos e recorrer a eles no futuro. A fim de poder dizer
que a Afulamata Diasporis, uma planta comum da floresta, é encontrada na
savana, mas apenas à sombra de outras que conseguem sobreviver ali, ela tem
de preservar, não a população inteira, mas uma amostra que se comportará como
uma testemunha silenciosa de sua assertiva. Na braçada que ela acaba de colher,
podemos identificar dais traços de referência: de um lado, uma economia, urna
indução, um atalho, um funil onde Edileusa toma uma única folha de grama
como representante de milhares de folhas de grama; de outro, a preservação de
um espécime que mais tarde atuará como fiador quando ela própria ficar em
dúvida ou, por diversos motivos, seus colegas duvidarem de suas afirmações
(LATOUR, 1999 [2001], p. 48).
Nesse sentido, podemos afirmar que, independente do tipo de pesquisa que se realiza na
geografia, seja ela de caráter natural ou social, o trabalho de campo assume a função de
etapa metodológica em que um conjunto de atividades práticas vai permitir a construção
de uma representação do fenômeno estudado no qual esteja destacada a sua dimensão
74
espacial. De forma simples e direta, este nos parece ser o aspecto fundamental que
diferencia o trabalho de campo na Geografia frente aos outros.
Há, ainda, um quarto aspecto, ignorado por Driver (2000), que gostaríamos de tratar aqui:
o peso dado pelos geógrafos nas suas abordagens e, consequentemente, nos trabalhos de
campo, aos aspectos visuais do mundo.
Como foi apontado no capítulo anterior, o raciocínio geográfico sempre esteve associado
a um imprescindível aparelhamento visual e na Geografia, tradicionalmente, métodos e
instrumentos de trabalho são escolhidos com o propósito de potencializar a nossa
capacidade de “ver o mundo”, de observá-lo e descrevê-lo a partir dos seus atributos
visuais, sejam eles as feições de um relevo ou a morfologia de uma cidade.
Quando decide-se realizar uma pesquisa em um campo de estudo ainda pouco explorado,
é muito comum que tenhamos que buscar novas ferramentas que viabilizem essa
investigação. Em um trabalho de campo dedicado às relações entre sons e espacialidade,
nos deparamos com o desafio de levantar dados que permitam uma análise geográfica a
partir da dimensão sonora do espaço. Para tal feito, muitos autores vêm utilizando os
chamados métodos fonográficos de pesquisa, ou seja, instrumentos de pesquisa que
permitam a escuta in loco, a gravação de áudio e sua posterior edição, reprodução e
audição (GALLAGHER e PRIOR, 2014).
Como aponta Lorimer (2007), gravações de áudio em trabalhos de campo têm sido
utilizadas para registrar os sons de animais selvagens, como o canto dos pássaros e
determinadas dinâmicas de caça, migração e reprodução que não poderiam ser registradas
com a presença humana (KRAUSE, 2013).
Uma característica comum a todos esses trabalhos citados é o grande peso dado à voz
humana frente aos outros elementos sonoros que, caso fossem considerados,
possibilitariam outras abordagens do material coletado.
Em um primeiro momento, tais gravações podem ser entendidas como a simples captura
e reprodução dos sons de um ambiente. Nesse sentido, o objetivo principal do pesquisador
seria garantir o máximo de fidelidade dos sons captados e a reprodução deve apresentá-
los de modo fiel e preciso. Makagon e Neumann (2009), escrevendo sobre a utilização de
documentação em áudio na etnografia, argumentam que:
Tal afirmação sugere um ouvinte que é capaz, através da reprodução de áudio, de ouvir
os “sons do mundo”, embora esses sons não estejam de fato presentes. Ou seja, segundo
essa ideia, os métodos fonográficos possibilitariam a reconstrução de uma determinada
paisagem sonora com precisão, tornando-a disponível para outras pessoas ouvirem.
Dessa forma, podemos chegar a uma outra maneira de compreender o papel das gravações
de áudio em uma pesquisa. Levack Drever (2002) afirma que os métodos fonográficos
quando utilizados na investigação de paisagens sonoras, podem se aproximar muito de
uma prática etnográfica. Ou seja, as gravações em áudio podem nos fornecer o material
necessário para uma “descrição densa”, nos termos apresentados por Geertz (2013). Isso,
segundo o autor, permite-nos aceitar que os dados produzidos são sempre frutos de
interpretação, ainda que haja uma tentativa de negar isso através da busca de um suposto
realismo ou transparência. Em outras palavras, o processo de gravação e posterior audição
9
A conclusão é tributária das reflexões feitas por Gomes e Ribeiro (2013) a respeito da utilização de
imagens na pesquisa Geográfica mas traduz bem a nossa argumentação aqui.
77
Em suma, podemos dizer que quando nos dedicamos à investigação das relações entre
som e espacialidade utilizando métodos fonográficos, devemos ter em mente que o nosso
objetivo não é uma descrição absolutamente fidedigna daquilo que escutamos em campo,
tampouco realizar gravações que capturem o som ambiente em sua totalidade.
Dialogando com Geertz (2013), podemos dizer que nosso objeto é sempre uma hierarquia
estratificada de estruturas significantes em termos das quais ruídos, conversas, batuques,
palmas, risadas, assobios são produzidos, percebidos e interpretados e sem as quais eles
de fato não existiriam. Dedicados a essa interpretação, poderemos tanto destacar quais
são os aspectos espaciais intrínsecos ao som e compreender como o som condiciona a
organização e a qualificação de um espaço.
10
Disponível em http://favouritesounds.org/. Acessado em 02/02/2020.
78
Hidelgard Westerkamp (2001) definiu a caminhada sonora como sendo uma excursão
cujo propósito principal seja escutar o ambiente. Na proposta original apresentada pela
autora, perguntas como “quais sons eu ouço?” e “quantas fontes sonoras diferentes eu
identifico?” orientariam a nossa escuta durante a caminhada. Ou seja, a atividade surgiu
associada a uma função didática, com o propósito de educar a nossa escuta e permitir uma
percepção mais consciente do ambiente sonoro ao nosso redor ou, nas palavras de
Westerkamp (2001), de “redescobrir e reativar a nossa capacidade de escuta”.
Apesar de aparecer, inicialmente, como prática pedagógica, esse método vem sendo
adaptado e utilizado por pesquisadores com diferentes enfoques investigativos. Uma
caminhada sonora pode se dar, por exemplo, com o passeio de uma pessoa ou um grupo
por uma rota pré-definida, enquanto escuta-se atentamente o ambiente sonoro como ele é
encontrado. O termo pode significar também uma caminhada onde os participantes estão
equipados com microfones e outros aparelhos de gravação com o intuito de registrar os
sons encontrados ou, ainda, pode referir-se a um passeio onde as pessoas utilizam
aparelhos de MP3 para ouvir determinadas faixas de áudio pré-gravadas enquanto
caminham.
Na Geografia, Butler (2006, 2007) elaborou passeios sonoros com gravações contendo a
história oral de duas rotas ao longo do rio Tâmisa, em Londres, o que demonstra o
potencial que esta prática possui na discussão sobre história urbana e memória local.
11
Disponível em http://soundsurvey.org.uk/. Acessado em 02/02/2020.
12
Disponível em http://sounds.bl.uk/sound-maps/uk-soundmap. Acessado em 02/02/2020.
79
A gravação de áudio binaural é uma técnica que permite registrar os sons na forma como
os percebemos em um ambiente, preservando aspectos que nos permitem perceber a
distância e o posicionamento preciso das fontes sonoras, por exemplo. Isso é possível
quando gravamos o som ambiente com um par de microfones instalados na posição dos
nossos ouvidos. Assim, quando utilizamos fones-de-ouvido13 para escutar a faixa de
áudio gerada na gravação, temos uma experiência auditiva muito semelhante àquela do
ambiente original.
13
O áudio gravado com o processo binaural é compatível com a reprodução através de caixas-de-som
comuns, mas o efeito imersivo e o jogo de posições das fontes sonoras só são percebidos com a utilização
de fones de ouvido.
80
Uma forma ainda pouco utilizada das caminhadas sonoras que nós aplicamos em nossos
trabalhos de campo é a realização de perfis sonoros ou, como preferimos chamar, trilhas
sonoras: o registro da variação de fontes sonoras, frequências, volume, ruídos ao longo
de um determinado trajeto. Realizando esse tipo de procedimento, foi possível registrar
as variações na paisagem sonora durante esse percurso, permitindo que, tanto em campo,
quanto posteriormente, avaliássemos como os sons locais afetam os fluxos internos de
uma área comercial estudada (FRIAS, 2018).
Inspirados nos exemplos citados acima e tendo em foco o a discussão central deste
trabalho, pretendemos demonstrar como esse exercício de caminhar, ouvir, registrar e
analisar a paisagem sonora, que chamaremos aqui de caminhadas de escuta e
observação14, pode ser uma interessante chave de investigação da feira.
O método empregado nesta pesquisa foi construído ao longo dos últimos cinco anos, em
um processo baseado, principalmente, na experimentação. O que vamos apresentar aqui
como sendo o nosso método é resultado de diversas tentativas de descobrir como
investigar a feira a partir da sua paisagem sonora. Desse modo, cabe realizarmos um breve
retrospecto do processo através do qual ele foi construído.
Primeiramente, é preciso dizer que antes mesmo de definirmos as feiras como objetos de
estudos centrais desta pesquisa, já nutríamos um interesse pelo estudo das paisagens
sonoras das cidades. Em 2015, ainda no início desta pesquisa, com um recorte temático,
espacial e metodológico indefinido, começamos a testar uma série de práticas de escuta e
registro dos ambientes sonoros de diferentes espaços públicos, no intuito de avaliar as
potencialidades e limitações de cada uma dessas práticas.
14
O termo soundwalks vem sendo para o portugês como caminhadas sonoras (Malanski, 2017; Holanda e
Bartholo 2017) e cobre uma gama muito diversificada de práticas pedagógicas, científicas e artísticas
(Nakahodo, 2014). Desse modo, acreditamos que a expressão caminhadas de escuta e observação clarifica
melhor o conjunto de práticas que envolvem o método utilizado neste trabalho.
81
Houve momentos em que passávamos algumas horas sentados em bancos de uma praça,
anotando e classificando os sons escutados. Em outros, caminhamos por mercados
públicos observando e registrando as estratégias orais de venda dos comerciantes locais.
Em algumas estações de metrôs, selecionávamos diferentes pontos da plataforma, da
entrada e da bilheteria para compreender as nuances da sua paisagem sonora. Também
houve casos em que, em uma caminhada por ruas comerciais, utilizávamos um
smartphone para ir narrando o que se observava e o que se escutava no percurso.
Nas ruas do Rio de Janeiro em que encontrávamos camelôs ocupando as calçadas, foi
possível ouvir a comunicação entre eles a respeito da chegada da Guarda Municipal e da
necessidade de recolher os produtos para que estes não fossem apreendidos. “Olha o rapa”
é um grito popularmente conhecido entre os cariocas, utilizado pelos vendedores de rua
justamente para avisar a chegada da fiscalização, mas outros códigos mais discretos,
também foram notados. Nos mercados públicos municipais, como o de São Paulo e o de
Belo Horizonte, o tempo todo éramos abordados com ofertas de amostras dos produtos e
simpáticos cumprimentos que introduziam um discurso pré-pronto sobre a qualidade dos
produtos oferecidos. De volta ao Rio, na área comercial localizada no Centro da cidade,
conhecida como S.A.A.R.A, não fomos abordados dessa maneira, mas em boa parte das
suas ruas é possível ouvir os anúncios que saem das caixas de som instaladas pela
associação de comerciantes local, indicando os melhores preços e o endereço das
promoções do dia.
Nessas áreas comerciais, o som parecia ser parte importante da estrutura organizacional
dos comerciantes, fosse orientando ações de autoproteção, como nos casos dos camelôs,
ou como parte das estratégias de propaganda e venda, como nos mercados públicos e no
S.A.A.R.A. Frente a tantos espaços comerciais visitados, a feira destacava-se pela sua
sonoridade. E a consulta à bibliografia especializada, debatida no Capítulo 01,
demonstrou como tal sonoridade era percebida de forma generalizada por pesquisadores,
visitantes, escritores e tantos outros que sobre a feira pensaram. Ficou evidente também
como, apesar de ser um tema recorrentemente lembrado, o som da feira ainda não havia
merecido uma atenção focada.
Desse modo, surgiu a hipótese de que uma pesquisa dedicada à paisagem sonora da feira
livre, apoiada no desenvolvimento de um método específico para o estudo desse espaço
particular, talvez pudesse revelar novos aspectos sobre ele. Assim, passamos a concentrar
nossos esforços a investigar a feira livre, teórica e empiricamente, fazendo dela o nosso
laboratório metodológico e o tema central da pesquisa.
84
A primeira a ser visitada foi a da Rua Ronald de Carvalho. Balizada por duas das
principais avenidas do bairro, a Barata Ribeiro e a Nossa Senhora de Copacabana, esta
feira ocorre às quintas-feiras e é a única das quatro que acontece ao longo de uma rua.
Composta por duas fileiras posicionadas às margens das calçadas, ela possui um corredor
largo, geralmente denso de fregueses, turistas e demais transeuntes. No seu entorno
encontram-se, na parte térrea, principalmente restaurantes e outros estabelecimentos
comerciais, sob altos prédios residenciais ou de escritórios.
A segunda foi a fera da Praça Serzedelo Correia, que acontece aos domingos e é a mais
movimentada das quatro. Formada por quatro fileiras de bancas que circundam toda a
praça, com exceção do trecho da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, ela possui dois
corredores de fregueses, comunicados pelas brechas deixadas entre as bancas ou por
85
aquelas que não foram montadas. Assim como a anterior, possui grande afluxo de
fregueses.
Figura 8 - Detalhe da feira vista da parte interna da Praça Serzedelo Correia. Foto do autor.
Em seguida visitamos a feira da Praça Almirante Júlio de Noronha. Das quase 160 feiras
existentes no Rio de Janeiro hoje, apenas 8 acontecem às segundas-feiras e esta,
localizada no Leme, em uma praça colada ao calçadão e à ciclovia, de frente para a praia,
é uma delas. Assim como as outras feiras de segunda, trata-se de uma feira de menor
86
porte, com um fluxo de fregueses bem menor quando comparada às demais feiras
visitadas. Posicionadas em um dos vértices da praça, as fileiras de bancas aqui assumem
a forma de um “L”, assim como o corredor entre elas.
A última das quatro feiras que compuseram o nosso recorte espacial inicial foi a feira da
Praça Edmundo Bittencourt. Ocorrendo às quartas-feiras, as duas fileiras de bancas desta
feira localizam-se nas margens da praça, circundando uma área interna composta por
bancos e mesas, quadras esportivas, aparelhos públicos de ginástica e de recreação
infantil. O entorno da praça é todo formado por prédios residenciais. Desde 1989, com a
Lei Municipal 1.390, que estabeleceu a APA do Bairro Peixoto, definiu-se o tombamento
de dezenas de imóveis nessa área e há a determinação das novas construções não
ultrapassarem a altura máxima de 15 metros. Em meio aos prédios de gabarito bem mais
elevado de Copacabana, o Peixoto configura-se como uma área residencial destacada do
restante do bairro.
Figura 11 - Parte interna da Praça Edmundo Bittencourt, rodeada pela feira. Foto do autor.
Entre setembro e novembro de 2017, realizamos doze trabalhos de campo nessas quatro
feiras. Sempre que visitávamos uma feira pela primeira vez, realizávamos uma série de
caminhadas exploratórias, circulando de maneira intuitiva pelo espaço da feira,
conhecendo-a com calma, muitas vezes realizando compras e fazendo o primeiro contato
com os feirantes. Os objetivos dessas caminhadas iniciais eram: identificar a distribuição
espacial de atividades e morfologias; observar os principais fluxos e arranjos espaciais,
além das formas de interação entre os frequentadores da feira livre; e avaliar quais tipos
de registros fonográficos deveriam ser realizados naquela feira. Para estes fins,
realizamos também registros fotográficos e trajetos comentados, no quais caminhávamos
88
Como são poucas as pausas em um dia de trabalho na feira, nossas entrevistas ocorriam
principalmente nas primeiras horas da manhã, quando era possível dispor de um tempo
mais alongado com os feirantes enquanto eles arrumavam as mercadorias. Nesses casos,
as entrevistas ocorriam sem marcação prévia, de forma menos estruturada e com o
gravador desligado. Isso garantia uma espontaneidade na entrevista, que por vezes mais
se assemelhava a uma conversa. O conteúdo das perguntas, que se alterava conforme as
questões, foram aparecendo ao longo dos dias de trabalho de campo.
Alguns dos feirantes entregavam cartões com nome e telefone, outros pediam para que
voltássemos para continuar a entrevista. Nesses e em outros casos em que havia abertura
por parte dos informantes, marcávamos entrevistas mais estruturadas, geralmente ao final
dos dias de feira. Estas foram registradas com gravador, em seis ocasiões diferentes,
quando entrevistamos oito feirantes, titulares das quatro feiras de Copacabana e Leme,
mas que também trabalhavam em feiras da Zona Norte e Zona Oeste da cidade. Estas
entrevistas tratavam de dois temas centrais: a rotina de trabalho; as relações estabelecidas
entre feirantes, fregueses e demais frequentadores das feiras; os sons produzidos na feira,
uso da voz e outras estratégias sonoras na venda e nas atividades rotineiras de cada
feirante.
Entre 2017 e 2019 foram realizados vinte e quatro trabalhos de campo, em trezes feiras
diferentes. Partindo das indicações de Wallace e outros feirantes com que tivemos
contato, selecionamos novas feiras para aplicarmos esse método que agora chamamos de
caminhadas de escuta e observação. Ao total, foram nove feiras no Rio de Janeiro e
quatro feiras em São Paulo.
Mapa 1 - Localização das feiras existentes no município do Rio de Janeiro e das feiras visitadas em trabalho-de-campo. Elaboração: Rafael Gomes.
92
Caminhadas de escuta e
Feira da Praça São
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
17 28/01/2018 Perpétuo, Barra da Tijuca
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(Rio de Janeiro)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e Observar a distribuição espacial de atividades e
Feira da Rua Madre de observação, registro fonográfico da morfologias; observar principais fluxos e
18 07/03/2018
Deus, Mooca (São Paulo) feira. Registro com fotos. principais permanências; observar a dinâmica dos
Anotações na caderneta-de-campo. anúncios e a paisagem sonora da feira.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Conceição
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
19 09/03/2018 Veloso, Vila Mariana
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(São Paulo)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Mourato
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
20 10/03/2018 Coelho, Vila Madalena
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(São Paulo)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Rua Sebastião
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
21 11/03/2018 Pereira, Santa Cecíia
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(São Paulo)
Anotações na caderneta-de-campo.
Caminhadas de escuta e
Feira da Praça Edmundo Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
observação, registro fonográfico da
22 30/05/2018 Bittencourt, Copacabana ao longo do dia, levando em consideração os
feira. Registro com fotos.
(Rio de Janeiro) impactos causados pela greve dos caminhoneiros.
Anotações na caderneta-de-campo.
Feira da Praça Edmundo
Conversas informais e registro em Coletar informações através de conversas
23 09/01/2019 Bittencourt, Copacabana
fotos. informais.
(Rio de Janeiro)
Caminhadas de escuta e
Feira da Praça Edmundo
observação, registro fonográfico da Registrar a mudança na paisagem sonora da feira
24 16/01/2019 Bittencourt, Copacabana
feira. Registro com fotos. ao longo do dia.
(Rio de Janeiro)
Anotações na caderneta-de-campo.
95
Nos primeiros trabalhos de campo, foi difícil identificar qualquer tipo de padronização
na forma dos diferentes pontos de venda encontrados nas feiras. Cada unidade parecia
possuir uma configuração própria, amoldada ao tipo de produto ofertado15, e cada feirante
parecia adotar um modo de arranjar seus produtos, mobilizando diferentes peças na
montagem da estrutura utilizada para a venda.
É o caso dos caminhões adaptados para a venda de pescado, cuja caçamba é aberta de
forma a expor as mercadorias sobre uma bandeja coberta de gelo, estrutura muito mais
arrojada que as lonas estendidas ao chão, peça única utilizada por alguns vendedores de
ervas, e que os caixotes empilhados, utilizados como tabuleiro na venda de mercadorias
de porte pequeno. Somam-se ainda as kombis, também adaptadas, seja para a venda de
ovos, frangos e miúdos, seja para a venda de pastel e caldo-de-cana. Pequenas bandejas
e carrinhos de mão são a preferência dos ambulantes que circulam entre os fregueses
15
Mercadorias à venda observadas em campo: Caldo-de-cana, Tempero, Frutas/legumes/folhas,
Sardinha, Peixaria, Moídos e frango, Roupas, Quejo/tapioca, Legumes fatiados, Pequenas Frutas
(limão e alho), Côco, Produtos Congelados, Biscoitos e doce.
96
vendendo alho, limão e maracujá, ou algum produto voltado para os próprios feirantes,
como água, café, sucos, refrigerantes e pequenos lanches.
Figura 12 - Pequena banca improvisada na Feira da Rua Vicente Silva. Foto do autor.
Figura 13 - Banca composta com vários "puxadinhos" na feira da Rua Vicente Silva. Foto do autor.
97
Figura 14 - Ambulante circulando pela feira da Praça São Perpétuo. Foto do autor.
Figura 15 - A estrutura básica encontrada em boa parte das unidades de venda da feira. Foto do autor.
Henrique, feirante de frutas variadas há mais de duas décadas, em uma entrevista na feira
da Praça Edmundo Bittencourt, apresentou outras informações que explicam a aparente
falta de padronização percebida nas primeiras visitas às feiras.
Em primeiro lugar, é preciso saber que existem diferentes tipos de associação entre as
bancas. Feirantes aglutinam seus postos de venda, seja para se ajudarem, seja para se
revezarem no serviço. Por isso, percebemos feirantes ocupando áreas mais largas que as
outros.
Outro tipo de prática que altera o tamanho das unidades de venda foi o que Henrique
chamou de “puxadinhos”, ou seja, extensões promovidas pelos feirantes às suas barracas,
utilizando caixotes, mesas dobráveis, tampos estendidos e outros tipos de improvisos para
aumentar a área do ponto de venda. A prática é ilegal, mas acontece, assim como o aluguel
do espaço entre os feirantes.
99
Figura 16 - Banca de tempero com tabuleiro ampliado na feira da Praça São Perpétuo. Foto do autor.
Nosso entrevistado avisa que essas práticas, entre outros tipos de negociação que
modelam a forma e a organização da feira, acontecem de forma habitual, mas que não são
coibidas, pois “quase não há fiscalização pra isso”. Segundo o feirante, só o lixo deixado
após a feira e o barulho gerado durante ela costumam ser alvo de fiscalização e multa.
Tais adaptações são regra na feira livre. Operando sempre com poucos recursos e com a
necessidade de otimizar a quantidade de objetos transportados a cada feira, muitos
feirantes criam maneiras de utilizar a mesma peça em diferentes funções. É o caso dos
caixotes utilizados para o transporte de frutas, que são reutilizados na montagem da banca
para organizar os produtos. Ou dos sacos plásticos que, esvaziados no começo do dia, são
furados e convertidos em regadores para as folhas que antes carregavam. Árvores, postes
e grades podem servir para amarrar cordas e lonas, que se abrem mais ou menos
dependendo do clima e do espaço disponível. Algumas unidades, inclusive, são montadas
101
apenas com objetos adaptados às novas funções. É o caso de vendedores que montam
pequenas unidades improvisadas, geralmente não autorizadas, entre as barracas maiores
ou em espaços deixados por feirantes ausentes.
Figura 19 - Mosaico de fotos com exemplos do improviso e refuncionalização na feira. Fotos do autor.
Nas feiras visitadas, a arquitetura das unidades de venda varia, portanto, segundo
diferentes fatores. O tipo de produto, a formalidade do ponto, a associação entre feirantes,
102
Estamos falando de um sistema de objetos operado de maneira regular ao longo dos anos
e em diferentes feiras, mobilizado por um conjunto de práticas típicas desses lugares.
Sacos, tábuas, caixotes, lonas, gelo, isopores, moedores e fritadeiras são componentes de
um sistema de objetos que, associado a um sistema de ações, ganha movimento, anima a
feira e, o que mais nos interessa aqui, produz sons.
O martelar necessário para a montagem das barracas, a reposição do gelo para manter os
peixes frescos, o cutelo que parte o frango e bate sobre a tábua, os sacos balançados ao ar
para guardar folhas e legumes, o motor do moedor da cana e o borbulhar do óleo quente
que frita os pastéis são exemplos do que se ouve em uma caminhada pelas feiras visitadas.
Martelar, repor, partir, ensacar, moer e fritar são exemplos das atividades cotidianas da
feira que produzem sons típicos, reconhecíveis em campo e registrados nas gravações
realizadas. Tais exemplos evidenciam que a produção da feira implica, necessariamente,
em produção de som.
103
Desse modo, parte importante do que se ouve em uma feira livre são os sons residuais,
resultantes das atividades necessárias para o seu funcionamento. Como tais atividades
acontecem periodicamente e em diferentes feiras, os sons produzidos por elas também
serão notados a cada nova feira realizada.
Forma-se, então, uma camada importante da paisagem sonora da feira livre. O “som das
coisas” tem caráter cacofônico e involuntário, mas recorrente e típico daquele conjunto
de atividades que identifica a feira. Por consequência, estes sons acabam tornando-se sons
fundamentais desse espaço, associado diretamente ao sistema de objetos e ações que
forma a feira livre.
A inevitável produção sonora decorrente das atividades da feira é percebida também pelos
feirantes, especialmente nas horas que precedem a feira. Ainda na madrugada, entre 04:00
e 06:00 da manhã, os feirantes chegam ao local e iniciam a montagem das suas unidades
de venda. Os caminhões e kombis estacionam em seus pontos, os feirantes chegam com
seus produtos e, em muitos casos, um caminhão contratado pelo coletivo descarrega as
barracas utilizadas pelos vendedores. Como as feiras acontecem, em grande parte, em
áreas residenciais e todo o processo de montagem se dá em um horário quando os vizinhos
ainda dormem, é importante compreender como os feirantes lidam com a questão do
barulho na madrugada.
O primeiro feirante a se interessar pelo tema desta tese foi o Wallace, vendedor de
legumes na feira de domingo da Praça Sezerdêlo Correa, em Copacabana. Antes mesmo
das perguntas terminarem, o feirante já emendava suas respostas, empolgado em
compartilhar tudo o que sabe sobre o cotidiano da feira livre. Foi ele que apresentou
algumas das reflexões importantes sobre o que significa “montar uma loja todo dia” e
sobre como isso soa aos nossos ouvidos.
Wallace explica que a montagem das barracas pode ser barulhenta se os feirantes “não
tiverem talento”. Indagado sobre o que seria esse talento, o feirante deu início a uma
descrição de um conjunto de técnicas e estratégias utilizadas por ele e pelos seus colegas
para garantir o mínimo de barulho possível nas primeiras horas da manhã.
104
Falou, por exemplo, sobre a necessidade de se martelar as peças que compõem a estrutura
da barraca de maneira cuidadosa, de modo a não causar incômodo à vizinhança. Disse,
inclusive, que em muitas feiras já se utiliza um tipo de barraca que pode ser montada só
com encaixes, dispensando o uso de martelo – a não ser no caso dos “puxadinhos”.
Do que foi descrito por Wallace, um aspecto da paisagem sonora desse alvorecer da feira
merece destaque. O ambiente silencioso, observado nessas horas de montagem e
preparação da feira, é resultado de um controle coletivo realizado pelos feirantes sobre o
nível de ruído ali produzido. “Se vacilar, leva esporro” disse Wallace, revelando que os
feirantes mantêm uma espécie de vigilância mútua, garantindo que ninguém faça muito
barulho durante a montagem e evitando que os residentes do entorno da feira efetuem
algum tipo de denúncia ou reclamação com a prefeitura.
A observação feita por Wallace é uma chave fundamental para compreendermos como se
compõe a paisagem sonora da feira livre. Há um controle coletivo e descentralizado sobre
“o som das coisas”, uma percepção compartilhada por todos que é necessário manter o
ambiente silencioso nas horas que antecedem a feira. Como veremos, não só os sons
mecânicos são modulados pelos feirantes de acordo com a hora do dia de feira, mas
também os sons dos pregões, dos chamamentos e da conversa. Antes, falemos ainda de
um outro aspecto da feira que consideramos importante para discutir a sua paisagem
sonora: o seu arranjo espacial.
105
A distribuição das unidades nessas duas fileiras também segue um padrão relativamente
estável. Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, os caminhões (de peixes) e kombis
(de pastel e cana ou de frangos e miúdos) costumam estar localizados nas extremidades
das feiras, nos locais por onde entram e saem os clientes. Flores, biscoitos, queijos,
tapiocas e côcos, também são usualmente localizados nas extremidades das fileiras, cujo
miolo é preenchido por barracas de temperos, frutas, legumes e folhas. Entre as fileiras,
no corredor por onde circulam os fregueses, é possível encontrar tanto pequenas unidades
improvisadas, como os vendedores de alho, limão e maracujá, quanto os já mencionados
ambulantes.
Os feirantes possuem localização fixa em cada uma das feiras onde trabalham e a
distribuição das unidades de venda atende a uma setorização da feira por tipo de produto
ofertado. Tal tipo de ordenamento espacial possui alguns desdobramentos.
106
Além disso, como já foi dito, as unidades têm rotinas, morfologias e dinâmicas de venda
diferentes entre si. Empreendem atividades específicas de acordo com o produto ofertado
e mobilizam, cada uma delas, um ferramental próprio, também adequado ao que se vende.
Levando em consideração o que falamos sobre “o som das coisas”, podemos dizer que
cada unidade de venda abarca um sistema de objetos e ações particular, produzindo, por
consequência, uma sonoridade também particular.
A disposição das barracas de acordo com os tipos de produtos vai condicionar uma
espacialização dos objetos sonoros na feira livre. Desse modo, a paisagem sonora não é
homogênea em toda extensão da feira. Ou seja, conforme caminhamos pelo corredor da
feira, notamos que a composição escutada vai se alterando, modulada pelo deslocamento
do nosso ponto de escuta. O roteiro de uma pessoa pela feira vai definir também quais
sons serão ouvidos e quais serão emudecidos. Define, portanto, as composições que serão
ouvidas por quem caminha, estabelecendo algo que em outra oportunidade chamamos de
“trilha sonora” (FRIAS, 2018), ou seja, a composição ouvida pela pessoa em um
deslocamento.
Esses sons também são marcadores temporais das feiras. O que se ouve ali depende não
só de onde você está, mas também do momento em que você visita a feira livre. Os estalos
do choque de dois objetos de madeira são ouvidos com maior intensidade e frequência
durante a montagem e a desmontagem das barracas, por exemplo. São sons que indicam
o início e o encerramento dos trabalhos. Da mesma forma, o ranger contínuo e agudo dos
rolamentos dos carrinhos de compra ganha volume conforme a feira se preenche de
fregueses.
Para esclarecer este aspecto, precisamos avançar no dia da feira e discutir o papel do
pregão, dos anúncios, das conversas, dos chamamentos e de todas as interações verbais
na produção da feira livre. Como veremos a seguir, a comunicação oral, como os
107
Segundo Wallace, feirante antes mencionado, “na feira tudo é no grito”, evocando parte
do nosso imaginário sonoro sobre esse lugar. Lembramos imediatamente dos anúncios
cantados e gritados pelos feirantes ao longo do dia, algo mencionado por diferentes
autores que trataram da feira (ver Capítulo 2).
No entanto, o que ficou claro ao longo dos dias de trabalho de campo é que o falatório
típico da feira livre não é composto apenas pela criatividade publicitária dos feirantes.
Ouve-se as vozes destes e dos fregueses em conversas, cumprimentos, piadas, pedidos,
perguntas e avisos. Ouve-se comentários sobre a novela, o modo de se preparar os
legumes, o pedido para se trocar uma nota, o chamado por um ambulante. Há espaço para
a barganha, para a conversa reservada, para as receitas ensinadas, para o “bom dia”. As
vozes ouvidas nas feiras tratam de diferentes assuntos, falam com diferentes pessoas e
em diferentes volumes.
Se, ao tratarmos dos “sons das coisas”, nos referíamos a uma camada da paisagem sonora
da feira formada pelos sons involuntários das atividades mecânicas, agora, estamos diante
de uma outra camada, cacofônica como a primeira, mas composta pela comunicação
verbal que também anima a feira.
Partindo das anotações realizadas durante as práticas de escuta e observação nas feiras
visitadas e da posterior análise das gravações realizadas, descreveremos, agora, os sons
associados à comunicação verbal, classificados em três grupos: os comandos de voz
associados à organização da feira; as conversas e interações formais da sociabilidade; e
os anúncios, chamamentos e pregões do comércio na feira livre.
A produção diária da feira livre é sustentada por uma rede de trabalhadores. A reposição
de mercadorias e outros objetos necessários para o comércio de cada banca é feita por
ajudantes que podem tanto trabalhar em um só ponto, como em vários. Tantos outros
tipos de trabalhadores, distribuídos pela feira, circulam de acordo com as tarefas que
108
precisam cumprir. Descascar, picar e embalar legumes, descamar peixes, juntar o lixo e
limpar as bancas, improvisos na montagem da lona e da banca são alguns exemplos dessas
atividades, muitas vezes realizadas pelos mesmos trabalhadores.
Uns, quando distantes dos feirantes que necessitam dos seus serviços, são chamados por
gritos, assobios, convocados pelo nome ou por apelidos, e ouvem as orientações sobre o
que é necessário. Outros, cumprem um percurso pela feira, conferindo quem precisa de
algo e do que. Ou seja, as atividades necessárias para a manutenção da feira livre são
organizadas verbalmente.
Estes sons não são mero resíduos de uma feira em movimento, não são emissões
involuntárias decorrentes de outras atividades. Eles são sinais sonoros que possuem papel
central na estrutura organizacional da feira, que orientam a circulação dos trabalhadores
naquele espaço e que nos informam sobre a rotina daquelas pessoas. São fundamentais
para que a feira aconteça e, por isso, são recorrentes na maioria das feiras e em todas as
feiras visitadas.
Boa parte das pessoas que frequenta uma feira está em fluxo. Ajudantes, ambulantes e
outros trabalhadores circulam pela feira em diferentes trajetórias, traçando diagonais
entre os fregueses, passando por entre as bancas e por trás delas, realizando um périplo
permanente e imprevisível.
Balizados pelas fileiras de bancas, os fregueses possuem uma área de circulação mais
restrita, onde traçam rotas também tortuosas, conferindo ofertas, visitando suas bancas
conhecidas, indo e voltando para comparar preços ou para comprar algum item.
109
Entre os fluxos das compras e vendas, há tempo e espaço para a pausa. Além do comércio,
a feira também é um lugar de encontro social. A sua periodicidade promove regularmente
uma reunião de pessoas em um espaço público. A recorrência desses encontros faz dela
um local de referência na sociabilidade pública de um bairro ou de uma cidade (ver
Capítulo 01). Ali, vizinhos e amigos do mesmo bairro se encontram, laços de confiança
e fidelidade são estabelecidos entre fregueses e feirantes, pessoas se conhecem e se
reencontram. Há também quem vá à feira apenas pelo passeio, atraído pela satisfação
estar na presença de outras pessoas.
Esses encontros possuem uma geografia própria. Pelo corredor das feiras visitadas, é
comum observar pessoas cruzando com conhecidos e interrompendo o seu itinerário para
uma conversa. Em feiras de corredor mais largo, ou naquelas em que a sua largura varia
ao longo do comprimento, formam-se espécies de pátios imprevistos, onde há espaço para
que as pessoas permaneçam sem que se interrompa o caminho. Em feiras de corredor
estreito, a conversa no corredor é incômoda, gera protestos e é notada à distância pelo
afunilamento que gera no trânsito de pessoas. A etiqueta tácita da feira orienta aos pares,
nesse caso, a encontrar um canto entre as barracas para não bloquear o fluxo do corredor.
Nesses pontos, impera um acordo tácito: todas as conversas ali são públicas (SATO,
2012). Conversas a dois, como a de um feirante passando uma receita a um freguês,
podem ser interpeladas, continuadas e combinadas com a de outras pessoas postadas
frente à banca. Estas, aproveitando o mesmo exemplo, podem sugerir diferentes etapas
110
ou ingredientes para a tal receita. Um freguês que chega em tom bem-humorado, fazendo
alguma piada com um feirante conhecido, pode pautar toda a conversa entre as pessoas
reunidas naquela banca, reunindo-as em torno de um tema.
Já a parte interna da banca abriga as atividades que acontecem em paralelo à venda, como
o corte, a limpeza e o embalo de produtos. Por isso, ela é frequentada, em boa parte do
tempo, apenas pelos feirantes e seus ajudantes. No entanto, fregueses e feirantes amigos
encontram ali um espaço para uma conversa mais reservada e formam núcleos de
sociabilidade nos bastidores da feira livre. Nos trabalhos de campo, recorrentemente
observamos duplas ou pequenos grupos de pessoas posicionadas ao fundo das bancas,
conversando, destacados das atividades orientadas ao comércio. Nota-se que se trata de
um hábito quando observamos que algumas pessoas trazem pequenos isopores e cadeiras
dobráveis para passar parte do dia ali, na companhia dos feirantes e amigos ali reunidos.
O gosto pela conversa e pela companhia das pessoas que a feira oferece muitas vezes
reorienta os usos dos objetos da feira. Nas primeiras horas de feira montada e nos dias de
pouco movimento, é possível observar rodas de conversa ou mesmo carteado, na parte
interna ou no exterior das bancas desses núcleos fraternais formados pela vizinhança.
111
A feira da Praça Almirante Julio de Noronha, no Leme, por exemplo, possui um fluxo
bem menor do que o das outras feiras visitadas. Trata-se de uma feira com um número
reduzido de bancas, que ocorre em praça localizada próxima à orla marítima e destacada
da malha residencial do bairro.
Nos campos, muito do que se escutava eram conversas entre os próprios feirantes,
claramente trabalhando em um ritmo menos acelerado e menos presos aos seus postos de
trabalho. Há menos ruídos para a comunicação mesmo entre feirantes de barracas não
contíguas, já que a menor densidade e circulação de pessoas gera menos barreiras visuais
e acústicas para a comunicação. Quase não se ouvia gritos ou anúncios e o tom das vozes
registradas nessa feira é sempre baixo.
No entanto, uma feirante, tornada alvo preferencial das brincadeiras, respondeu em tom
mais sério e gerou silêncio entre os colegas: “vão ficar me zoando, então vou quebrar
geral” disse a feirante, ao mesmo tempo que alterava os valores das suas mercadorias
para preços mais baixos. Enquanto reescrevia os valores nas placas expostas na sua banca,
os outros feirantes mantinham as provocações, mas agora em protesto ao rompante da
colega: “ih, ela tá doida mesmo”, “vai sacanear geral hein?” e “tá na hora de baixar ainda
não, querida”.
A reação de desconforto parecia haver uma razão óbvia: ao baixar o preço das
mercadorias para um valor abaixo da média, a feirante estaria garantindo uma vantagem
competitiva entre aqueles que, ali, se tratavam como amigos, e foi encarado com um ato
hostil, desagregador, individualista. O que nos deixou curiosos, foi a insinuação por parte
dos feirantes de que o problema não seria baixar o preço das mercadorias, mas baixá-los
cedo demais, antes da hora esperada, antecipando-se aos demais vendedores.
Como temos visto, as múltiplas formas de comunicação verbal ocupam papel importante
na composição da paisagem sonora da feira livre. Na literatura consultada para esta tese,
há evidente destaque para a parcela dessa comunicação relacionada ao comércio, mas são
raros os autores que se dedicaram a descrever e analisar em profundidade a dinâmica, as
características e o papel desse tipo de interação na feira livre.
Em São Paulo, a vizinhança entre vendedores de uma mesma mercadoria gera uma
situação curiosa, notada em campo e nas gravações realizadas. Bancas de caldo-de-cana
e pastel, localizadas nas extremidades das filas de bancas, disputam frontalmente os
fregueses que entram na feira. Em cada banca, encontram-se postados dois ou três
vendedores que recebem cada um dos clientes que chega à feira com um “Bom dia!”
animado que, quando correspondido, é seguido de um “Caldo, senhor?” ou “Pastel,
senhora?”, dependendo da situação. Em feiras onde há muitas dessas bancas e a
concorrência é acirrada, forma-se, especialmente entre 11:00 e 13:00, um coral de
chamamentos sobrepostos, volumoso, ruidoso e identificado em mais de uma das feiras
visitadas, com a de Vila Madalena e a de Santa Cecília.
Essa costuma ser, inclusive, a imagem que muitas pessoas guardam da composição sonora
ouvida em uma feira livre. “Isso aqui parece uma feira!”, por exemplo, é expressão
comum no Rio de Janeiro para referir-se a situações onde as pessoas estão falando
desordenadamente, de modo que as suas falas, sobrepostas, tornam-se indistinguíveis.
Essa composição de sons indistintos, produzida por um grupo de pessoas falando ao
mesmo tempo, costuma receber o nome de “burburinho” e, de fato, identifica bem parte
do que se ouve nos registros que realizamos em campo.
Esse anúncio público e em voz alta, sem direção específica, é mais comum entre
vendedores de frutas, verduras e legumes. Nos trabalhos de campo, foram raras as vezes
que escutamos peixes ou frangos, por exemplo, sendo anunciados, algo que se traduziu
também nas gravações que obtivemos.
Durante os trabalhos de campo, ter visitado as feiras repetidas vezes permitiu que
percebêssemos muitos dos feirantes apregoadores cantarolando as suas mercadorias
sempre com as mesmas melodias e ritmos, destacando-se na paisagem e tornando-se
identificáveis inclusive à distância. Mesmo quando os anúncios não soavam como uma
melodia, em muitos casos, notou-se uma prosódia muito característica, repetida a cada
nova feira e também marcando a identidade de quem anuncia.
Já outros feirantes utilizam bordões, mesclam piadas aos anúncios e mencionam a própria
banca, garantindo que a compra lá é mais vantajosa. Os anúncios têm natureza funcional,
mas o mais comum é que se perceba um tom lúdico e bem-humorado na maioria deles.
O anúncio estilizado, característico por um certo jogo de palavras, bordão, pela melodia
ou prosódia marcante de um feirante é tão importante na fidelização dos fregueses quanto
a localização fixa dos feirantes a cada nova feira. O anúncio, ouvido à distância, informa
qual é a mercadoria, mas também quem a vende. Ou seja, divulga o preço e também a
presença do feirante naquele dia de feira. Ao mesmo tempo, quando simpático e bem-
humorado, o anúncio torna-se cativante e facilita a conquista de novos fregueses.
Enquanto o estilo dos anúncios varia de acordo com o feirante, os conteúdos por eles
publicitados costumam ser os mesmos. Obviamente, anuncia-se o que se vende, mas é
importante também qualificar a mercadoria, com adjetivos que provoquem nos fregueses
a sensação de oportunidade. Assim, anuncia-se a raridade daquela mercadoria, seja pela
sua procedência exótica ou oferta sazonal; a qualidade superior, garantida pelo frescor e
demonstrada na aparência do produto; e o preço, especialmente quando é hora de baixá-
lo.
Os anúncios do pregão da feira livre podem ser pensados apenas como um conjunto de
anúncios individuais, mas também como componentes de uma composição que possui
características próprias.
Como explicamos no capítulo anterior, parte das nossas atividades em campo consistia
em realizar caminhadas de escuta e observação, quando percorríamos todo o trajeto da
feira, realizando anotações e gravando o conjunto de sons ouvidos no percurso. Com a
primeira caminhada sendo realizada às 08:00 e a última às 12:00, com intervalos de 30
minutos entre elas, foi possível analisar as transformações ocorridas na paisagem sonora
ao longo de um dia e relacioná-las com a dinâmica da própria feira.
116
Utilizando esse método, ficou claro que a quantidade de feirantes anunciando os seus
produtos e a forma de se anunciar varia ao longo do dia. Os horários exatos quando essas
variações acontecem é condicionado por fatores diversos, como discutiremos, e nem
sempre são os mesmos entre as feiras. Foi possível, no entanto, identificar três grandes
etapas na dinâmica do pregão.
Na primeira etapa, antes das 09:00, a paisagem sonora ainda está pouco saturada, há
intervalo entre os sons ouvidos, que podem ser distinguidos facilmente entre si. As
gravações realizadas nesses horários possuem poucos elementos que nos indiquem
estarmos em uma feira livre, com exceção, apenas, dos primeiros chamamentos e
cumprimentos do dia. Nesse ambiente mais silencioso, os feirantes podem abordar cada
cliente direta e individualmente, em baixo volume, geralmente dizendo simplesmente
“bom dia” ou já destacando, ainda que timidamente, a qualidade das suas mercadorias.
Os registros realizados de feirantes anunciando em voz alta, nesse horário, são raríssimos.
Esse pico acontece, finalmente, na terceira etapa, geralmente entre as 11:00 e 12:00 da
manhã. É na fase final da feira em que os anúncios são ouvidos com maior destaque, em
maior quantidade e com maior frequência. A paisagem sonora está mais povoada e quase
não há intervalos entre as vozes ouvidas. Os produtos que restam, como são perecíveis,
não estarão com as mesma aparência e qualidade no dia seguinte e transportá-los de volta
significa um custo. É preciso vendê-los logo e anunciar torna-se um imperativo. Por isso,
além do alto volume, este horário guarda outra particularidade, também marcante na
lembrança que temos da feira livre: é nesse momento que os feirantes começam a anunciar
a redução dos preços dos produtos. Preços antes conquistados apenas na base da barganha
agora são ofertados a qualquer um que passe pela banca. Por isso, os registros realizados
nesse horário, são, talvez, a melhor ilustração do que se imagina da paisagem sonora da
117
feira livre. Um ambiente saturado pelos sons do pregão, compostos por gritos e cantos
que anunciam os produtos e seus preços baixos.
O padrão descrito, no entanto, é uma realidade na maioria das feiras visitadas e muito
bem delineado em algumas em específico, como a da Rua Ronald de Carvalho e a da
Praça Edmundo Bittencourt, ambas em Copacabana. Nestes casos, observa-se uma
variação regular e previsível no tipo de abordagem, no volume e no conteúdo dos
anúncios realizados.
O que chama a atenção é a sincronia com que esses feirantes realizam essas mudanças no
volume, na forma e no conteúdo dos anúncios. Eles parecem compartilhar uma noção da
hora certa para começar a baixar o preço dos produtos e serem mais enfáticos nos seus
anúncios.
16
Foi importante realizar, nas entrevistas, uma série de perguntas que pudessem explicar esse padrão: qual
é a hora certa para começar a anunciar os produtos em voz alta? Há acordo entre os feirantes sobre esse
momento? Como é definido o preço dos produtos? Quais são os critérios para a escolha da redução do valor
de um produto? Como você decide reduzir o valor de um produto? Há preços combinados ou a competição
é livre?
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A condição e aparência dos produtos ofertados foi outro fator mencionado nas entrevistas.
Produtos envelhecidos ou “machucados” estão em desvantagem aos outros, mais
desejados por quem vai à feira procurando mercadorias frescas. Assim, muitas vezes é
necessário iniciar a feira cobrando um preço mais baixo naqueles itens ou então encontrar
formas de oferecê-los de maneira mais atraente – vendendo os legumes já descascados e
picados dentro de pequenos sacos, por exemplo. Além disso, a urgência em vendê-los é
maior, já que, ao final do dia, eles podem não estar mais em condições de serem
oferecidos novamente em outra feira.
Em suma, fica claro que a decisão de se iniciar o pregão e a de baixar o preço das
mercadorias é fruto da avaliação de cada feirante e resulta da consideração de fatores que
vão pesar mais ou menos em cada caso individual. Ainda que, nas entrevistas, os feirantes
façam um esforço de descrever os critérios utilizados para organizarem as suas vendas e
que seja possível identificar fatores que são importantes para todos eles, a multiplicidade
119
de variáveis envolvidas torna difícil explicar por que observamos um padrão tão bem
delineado e previsível nas diferentes feiras visitadas.
Tais decisões parece, à distância, quase que intuitivas, pois resultam de uma complexa
leitura do ambiente, habilidade adquirida pela rotina e pela observação, fortalecida pela
experiência de quem conhece bem aquele espaço e precisa entender a dinâmica para nele
prosperar.
No entanto, um critério foi apontado diversas vezes nas entrevistas e merece a nossa
atenção em particular. Perguntados quando era a hora de iniciar o pregão e como eles
decidiam se deveriam anunciar a redução de preços, muitos feirantes respondiam: a hora
de anunciar mais alto e baixar o preço chega quando outros feirantes estão fazendo isso
também.
Ainda que estabeleçam laços de parceria e cooperação entre si, os feirantes estão, ali, em
competição. Um feirante compete especificamente com as bancas que oferecem o mesmo
produto que o seu, é evidente, mas também com todas as outras, já que fregueses podem
estar abertos a ampliar a sua lista de compras e incluir mais uma oferta no seu orçamento.
Em uma dessas feiras, a que acontece aos domingos na Praça do São Perpétuo, Barra da
Tijuca, tivemos o prazer de cruzar com a professora Lia Osório Machado, do
Departamento de Geografia da UFRJ. Interessada no tema da pesquisa, a professora
perguntou sobre os métodos aplicados, as referências teóricas utilizadas e abriu um
sorriso quando ouviu a descrição dessa dinâmica dos pregões que observávamos em
campo e que naquela altura já nos intrigava bastante. “Entendi, é como uma salva de
palmas” disse Lia, em uma simplicidade que não lhe é habitual, revelando um aspecto
fundamental do fenômeno estudado e, até então, ignorado por nós: as relações de co-
influência no pregão da feira livre. Analisemos, então, essa metáfora.
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Trata-se de um padrão, uma peça sonora reconhecível que possui uma dinâmica
conhecida onde quer que exista o hábito de se bater palmas. Um movimento organizado,
previsível e, o que nos interessa aqui, emergente. Não há alguém que coordene essa
dinâmica, que dite suas variações. Ela acontece espontaneamente, como resultado da
combinação de decisões que as pessoas ali reunidas tomam. O mesmo acontece no pregão
da feira livre.
Assim como quem participa de um aplauso, cuja decisão de iniciar ou findar as palmas
advém de diferentes critérios e acordos tácitos, os feirantes decidem que horas abordar as
pessoas individualmente, quando iniciar o pregão e em que momento deve-se baixar os
preços de acordo com um conjunto de fatores que nem sempre é claro, óbvio ou unânime.
O conjunto de vozes que forma o pregão da feira livre assume esse movimento muito bem
marcado em diferentes feiras. Inicia-se a feira com as mercadorias em um certo valor e
oferecendo-as em baixo volume. No momento seguinte, os anúncios começam a povoar
o ambiente sonoro da feira e tornam ele saturado nas últimas horas de comércio. Cada
feirante pode funcionar como referência a um outro, vizinho, sobre a hora de iniciar o
pregão.
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Ao mesmo tempo, cada anúncio de redução de preço pode ser um alerta sobre a
necessidade de baixar o seu também e manter-se competitivo. Este é um aspecto próprio
da feira, que metáfora da salva de palmas não traduz: tais anúncios formam, também, um
a espécie de sistema de som, no qual circulam os preços dos produtos ofertados.
O que se ouve no pregão da feira não se trata de anúncios isolados, combinados em uma
paisagem sonora cacofônica. Eles se afetam mutuamente. Possibilitam que os feirantes
se informem sobre o ritmo de vendas do dia e exerçam um controle dos preços, através
desse sistema de comunicação oral que eles mesmos formam. Os pregões, portanto, são
uma importante estratégia de venda dos feirantes, mas também uma condicionante
fundamental do valor das mercadorias ofertadas.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando os autores debatidos nesta tese falam sobre a permanência das feiras no campo e
nas cidades, referem-se, também, à manutenção, ao longo de séculos e em partes
diferentes do mundo, de muitos dos seus principais aspectos: a periodicidade como marca
fundamental; uma morfologia marcada na escassez de recursos, baseada no improviso na
refuncionalização de objetos e materiais; o seu papel no abastecimento local e regional;
o pregão, a fidelização e a barganha como marcas da dinâmica de compra-e-venda; a
oferta primordial de alimentos frescos, além de itens básicos e de uso cotidiano; e seu
papel como lugar de encontro social e comunitário.
As razões da permanência da feira, como vimos, é uma questão que suscita diferentes
hipóteses e para qual já foram oferecidas respostas consistentes. Aqui, conseguimos
reunir elementos que nos ajudam a explicar também por que tantos identificam em
diferentes feiras essa paisagem sonora típica.
Na feira, estamos o tempo todo cercado pelas suas atividades, condição imposta pelo
arranjo em corredor que ela usualmente assume. Essa sensação de confinamento é
resultado de uma composição espacial, de um arranjo espacial específico, onde formas e
atividades particulares estão organizadas de uma maneira reconhecível não só por um
padrão morfológico, mas por um conjunto de estímulos sensoriais também reconhecíveis.
Entre eles, os estímulos sonoros provenientes das atividades que compõem a feira: as
conversas entre aqueles que se encontram, a negociação entre feirantes e fregueses, os
anúncios e pregões, as ações de montagem, manutenção e desmontagem das mercadorias,
entre outros. Assim, o conjunto de objetos e práticas que compõem a feira produz um
123
ambiente sonoro típico que identifica esse lugar como distinto dos outros. A necessidade
de organização e padronização das formas, ritmos, materiais e práticas da feira estabiliza
uma rotina e estabilizou uma paisagem sonora também.
A paisagem sonora das feiras é, portanto, parte do sistema de objetos e ações que
conforma esses lugares. Se, ao longo dos anos, e em diferentes lugares, houve uma
manutenção mínima da forma de organização do trabalho, do comércio e da morfologia
básica da feira livre, por consequência, temos também a manutenção da sua paisagem
sonora.
A feira impõe um outro ritmo à rua ou à praça onde ela se estabelece. Ir à feira, nesse
sentido, significa transitar por um espaço da cidade que está em outro ritmo, que possui
outra ambiência. Uma ilha sonora no espaço urbano. E a conformação espacial da feira é
condição pretérita para a composição da sua paisagem sonora.
Neste caso, não estamos falando a partir de uma perspectiva acústica ou focados só na
forma como os objetos que compõem a estrutura da feira ressoam, mas também sobre
como esse arranjo espacial condiciona um modo específico de se empreender o comércio,
condicionando relações de competição e cooperação entre os feirantes.
A voz dos feirantes não é ouvida só através dos seus anúncios. Ela assume importância
na competição pelos fregueses, mas também na cooperação entre trabalhadores, dado que
é parte fundamental das suas estratégias de auto-organização. É através da voz que a rede
de feirantes, ambulantes, montadores, repositores e demais ajudantes se organiza, solicita
ajuda, cobra tarefas, orienta pedidos, seja lado-a-lado, seja vencendo o burburinho para
alcançar o ouvido de quem está longe. Para além dos pregões, a voz dos feirantes é parte
estrutural da organização do trabalho e do comércio na feira livre. Assim, podemos dizer
que as vozes ouvidas na feira são componentes de um sistema de comunicação entre os
feirantes, por onde circulam os comandos necessários para a produção da feira.
Como vimos, há um outro tipo de informação que circula pela feira e, indiretamente,
modela a sua paisagem sonora também. É através dos anúncios orais que sabemos a
variação dos preços dos produtos ofertados. Além disso, como demonstramos no capítulo
anterior, o anúncio de um feirante condiciona as decisões dos outros, na medida que estão
todos em competição. Como consequência, observa-se uma dinâmica padrão,
encontradas em diferentes feiras e registrada em todas as feiras visitadas, semelhante
aquela que estrutura uma salva de palmas: a partir do primeiro anúncio em voz alta, tantos
outros aparecem, até que se chega a um pico de volume que gradativamente passa a
esvanecer. Nesse pregão, os preços são baixados conforme a necessidade de atrair a
demanda e garantir competitividade. Há, aí, um sistema sonoro por onde circula a
variação de preços da feira.
E assim acontece, toda semana, a cada nova feira, sempre no mesmo dia, estão lá as
mesmas barracas, na mesma posição, com as mesmas mercadorias e os mesmos feirantes.
O mesmo cenário é remontado, redirecionando o tráfego dos carros e remodelada a
paisagem do local onde a feira se instala. Funda-se uma área comercial temporária
visitada semana após semana pelos fregueses, muitos deles vizinhos a ela. Funda-se,
também, um espaço de convívio social, marcado pelos encontros e pela sociabilidade. Ao
mesmo tempo que competem pelos fregueses, a regularidade dos encontros entre os
vendedores de uma mesma feira favorece a criação de laços de parceria e cooperação,
além da amizade. O mesmo acontece entre feirantes e fregueses, em relações em que a
fidelidade e o afeto pessoal se misturam. Isso tudo também é ouvido na feira livre. Risos,
deboches, gritos saudosos, conversas entre pares ou grupos, pessoas se apresentando ou
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se reencontrando. Tudo aparece nas gravações e tudo foi ouvido durante a nossa
caminhada.
E para além da voz, podemos pensar no som de uma maneira mais abrangente, lembrando
também que as habilidades necessárias para se produzir a feira prevêem estratégias de
lidar com o barulho e o incômodo que ele gera na vizinhança. Prevê modos de montagem,
desmontagem, reposição e outras pequenas etapas de trabalho que sejam as mais
silenciosas possíveis. Dessa maneira, podemos dizer que o som é uma das variáveis
consideradas na hora dos feirantes realizarem as suas tarefas diárias.
Diante dessas últimas reflexões que a pesquisa apresentada enseja, podemos fazer
também algumas considerações pensando no que deixamos de contribuição em termos
teóricos e metodológicos.
A tese aqui apresentada corrobora a ideia de que o som pode assumir um papel
fundamental na organização e na qualificação dos espaços urbanos. Compreender qual é
esse papel e como esse papel é modelado, apropriado e ressignificado pelas pessoas pode
nos revelar novos aspectos a respeito da dinâmica sócio-espacial desses lugares.
Assim, abrimos aqui uma discussão a respeito da relação existente entre a conformação
de uma ambiência e a especialização funcional de determinados espaços urbanos.
Partindo do exemplo da feira, surge uma hipótese que merece investigação em trabalhos
futuros: o processo de coesão espacial, em especial quando pensamos em ruas, praças,
galerias e áreas comerciais, é marcado não só por uma especialização funcional, mas
também pela conformação de um ambiente sonoro típico dessas áreas. No caso das feiras,
procuramos demonstrar como a análise dos sons que compõem tais ambientes podem nos
ajudar a revelar algo sobre a sua dinâmica organizacional, algo que pode ser extrapolado
também para outras áreas comerciais e, talvez, outros espaços das cidades.
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