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CIÊNCIA POLÍTICA E TEORIA DO ESTADO

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6408-3

57274 9 788538 764083


Débora Ferrazzo
Ciência Política
e Teoria do Estado

Débora Ferrazzo

IESDE BRASIL S/A


2018
© 2018 – IESDE BRASIL S/A.
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F431c Ferrazzo, Débora
Ciência política e teoria do estado / Débora Ferrazzo. - 1. ed.
- Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018.
150 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6408-3

1. Ciência política. I. Título.


CDD: 320
17-46749
CDU: 32

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Débora Ferrazzo
Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Teoria,
Filosofia e História do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e gra-
duada em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb). Integrante do
Núcleo de Estudos Filosóficos (Nefil/UFPR) e do Núcleo de Pesquisas em Desenvolvimento
Regional (Furb). Pesquisadora no Grupo de Pesquisas em Pensamento Jurídico Crítico Latino-
americano (Unesc). Professora de graduação e especialização em cursos da área de Direito.
Sumário

Apresentação 7

1 Ciência política e Teoria geral do Estado 9


1.1 A natureza política do ser humano: o que é política? 9
1.2 Diferença entre ciência política e Teoria geral do Estado 12
1.3 A relação entre ciência política e outras ciências sociais 15

2 Sociedade e política 21
2.1 Sociedade e classes sociais 21
2.2 Evolução das sociedades e estruturas de poder 25
2.3 Sociedade civil e movimentos sociais 27
2.4 Sociedade, instituições políticas e controle social 30

3 O Estado no pensamento político ocidental 35


3.1 Definições e classificações do Estado 35
3.2 Teorias sobre a origem do Estado 40
3.3 Formas de Estados, formação e extinção 42

4 Formação do Estado moderno 49


4.1 Contexto histórico da formação do Estado moderno 49
4.2 Teorias contratualistas e a separação dos poderes do Estado 54
4.3 Elementos constitutivos do Estado 58

5 Relações do Estado e estruturas de poder 63


5.1 Caracterização do poder do Estado 63
5.2 Soberania e autonomia 71
5.3 Limitações da soberania e da autonomia 74

6 Formas de governo e sistemas de governo 77


6.1 Classificações de tipos de governo 77
6.2 Sistemas de governo: presidencialismo e parlamentarismo 82
6.3 O instituto do impeachment e as experiências brasileiras 86
7 Democracia: experiência e perspectivas teóricas 93
7.1 Conceito, origem e evolução histórica da democracia 93
7.2 Experiências de democracia no Ocidente 96
7.3 Cidadania e participação política 99

8 Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos 105


8.1 Partidos políticos 105
8.2 Sistemas eleitorais 110
8.3 Mandatos políticos e formas de limitação 113

9 Ideologia, pensamento político e fronteiras teóricas entre os Estados


modernos 117
9.1 Conceitos de ideologia e sua relação com a política 117
9.2 Principais ideologias políticas: socialismo, liberalismo e social-democracia 121
9.3 Pensamento político e Estados 125

10 Crises das instituições políticas modernas 131


10.1 Regimes totalitários e a negação da democracia 132
10.2 Grupos sociais de pressão política e o Estado 136
10.3 Crises no Brasil e no mundo: corrupção e outras ameaças à democracia 138

Gabarito 143
Apresentação

As páginas seguintes foram cuidadosamente planejadas para que possamos construir co-
nhecimentos no campo das teorias políticas e do Estado. Ao longo de dez capítulos, buscamos
articular conteúdos clássicos dessas áreas com debates atuais e urgentes, como a questão das crises
políticas, que é, ora de diferentes, ora de semelhantes maneiras, compartilhada por todo o mundo
contemporâneo. Também incluímos as especificidades da crise brasileira, com a manifestação de
fenômenos como os impeachments, a instabilidade do poder judiciário, entre outros.

Ao revisitarmos as mais antigas preocupações que afligem o pensamento político, podemos


perceber que há elementos comuns entre todas as épocas históricas, como a corrupção no exercício
do poder ou a legitimação democrática dos governos, temas que são discutidos desde a filosofia
grega antiga. Isso mostra que a sucessão das épocas na história da humanidade não ocorre de
maneira uniforme e linear, mas sim cíclica, tendendo a reviver experiências e crises do passado.
Entretanto, será que somos capazes de aprender com essas crises?

É por isso que organizamos esta obra, tomando o elemento político como fio condutor, com
a intenção de contribuir para a compreensão e o aprofundamento de temas e teorias que envolvem
a ciência política e a formação e caracterização dos Estados, desde a Antiguidade até o momento
presente, aproveitando suas continuidades e descontinuidades em favor de nosso aprendizado.

Eventualmente, os capítulos trazem a indicação de leituras e fontes selecionadas com cautela


e rigor científico, que permitem saciar a curiosidade por novos saberes de maneira abrangente
e objetiva. Cada um deles também traz distintas perspectivas, de modo a oportunizar o diálogo
com diferentes orientações teóricas, sejam elas críticas ou conservadoras. Esse é justamente um
dos pressupostos mais importantes da construção do estudo de ciência política e Teoria geral do
Estado, em especial por se tratar de uma disciplina tão urgente e necessária em nossos tempos.

Bons estudos!
1
Ciência política e Teoria geral do Estado

Por volta do século IV antes de Cristo, o filósofo Aristóteles afirmou em A política,


uma obra muito famosa, que “o homem é um animal político” (2002, p. 14). Desde então a
humanidade busca compreender o sentido dessa afirmação e, com base nessa inquietação,
desenvolveu-se a ciência política.
A ideia de ciência assume um sentido muito próprio em nosso tempo, sob a influência das
tecnologias e das profundas mudanças culturais. Ela tem um lugar privilegiado na explicação do
mundo e construção do saber, mas também se torna mais complexa e se divide em vários campos,
como em ciências exatas, naturais, humanas, ou ainda suas variações e subdivisões. Todas elas são
influenciadas pela política e se relacionam de alguma forma. Dito isso, nosso primeiro desafio será
buscar compreender qual o sentido de animal político atribuído ao ser humano, como isso se rela-
ciona com o desenvolvimento de uma “ciência política” e como essa ciência se inter-relaciona com
as demais, em especial com a Teoria geral do Estado.

1.1 A natureza política do ser humano: o que é política?


Não conhecemos a data precisa em que o filósofo Aristóteles afirmou que “o homem é um
animal político, por natureza, que deve viver em sociedade” (ARISTÓTELES, 2002, p. 14), mas
sabemos que esse filósofo nasceu em 384 a.C., em Estagira – sendo por isso conhecido como
O Estagirita1. Para ele, a distinção entre o homem e os outros animais se dá pelo dom da palavra,
uma vez que estes possuem somente a voz. A palavra permite entender o que é justo e o que é in-
justo, possibilitando ao ser humano – naquela época Aristóteles falava somente no homem, mas
hoje precisamos reconhecer homens e mulheres – diferenciar o bem e o mal. Com a fala, o ser hu-
mano pode se comunicar e, devido a essa comunicação, formaram-se as sociedades. Desse modo,
Aristóteles concluiu que é da natureza do homem viver em sociedade.
Com base nessa simples ideia, O Estagirita escreveu, no século IV a.C., uma das obras mais
influentes na história da humanidade: A política. Norberto Bobbio (2004) explica que o termo
política tem origem na palavra grega pólis2, atribuída a tudo o que se relacionava à cidade. E foi
esse livro, escrito há mais de 2 mil anos, que permitiu a expansão do termo. Inclusive, essa obra é
considerada o primeiro tratado sobre o assunto: nela são discutidas as formas de governar, as fun-
ções do Estado e outros temas, todos ocupados da reflexão de como o ser humano se relaciona em
sociedade e como exerce o poder no espaço público, ou seja, por meio do Estado. Assim, tudo o que
é feito no âmbito da convivência em sociedade é política, que vai além da ideia de um congresso,
uma câmara de deputados ou uma prefeitura, por exemplo.

1 Cidade que na Antiguidade pertencia à Macedônia. Hoje é situada na Grécia, na região da Calcídica, no golfo do
Rio Estrimão.
2 Modelo de organização das antigas cidades gregas do período arcaico até o clássico.
10 Ciência Política e Teoria do Estado

Ao reconhecermos a natureza política do ser humano, precisamos refletir sobre o que signi-
fica política. Não é algo fácil, afinal, no decorrer da história, essa ideia assumiu diversos sentidos.
No entanto, com as contribuições de Nicola Abbagnano (2007) – filósofo e historiador que escre-
veu um dos mais importantes dicionários de Filosofia de nosso tempo –, podemos nos arriscar a
citar os principais sentidos da política e compreender que sua concepção no mundo antigo é bas-
tante diferente daquela do mundo moderno.
Encontramos na sistematização de Abbagnano (2007) o primeiro sentido de política, origi-
nado ainda em Aristóteles, num livro que conhecemos pelo título de Ética. Nele há reflexões sobre
o que deve ser o bem e o que deve ser o bem supremo. Esses seriam os objetos de estudo da ciência
mais importante, justamente a política, uma vez que ela determina quais são as outras ciências ne-
cessárias em uma cidade. É também por meio da política que se decide o que deve ser delegado a
cada cidadão, pois ele deve aprender o que e na medida em que a política lhe determina para servir
à cidade. Se a entendermos do mesmo modo que Aristóteles, a reconheceremos como “doutrina do
direito e da moral”. Foi o que o filósofo inglês Thomas Hobbes fez: seguiu a tradição iniciada por
Aristóteles e relacionou a política com a ética, a “ciência do justo e do injusto”.
O segundo sentido de política a trata como Teoria do Estado e tem suas bases na nossa obra
já conhecida: A política – sim, ainda estamos trilhando pelas ideias de Aristóteles. A essa altura
ficamos tentados a perguntar: mas, afinal, ninguém mais falou sobre política? Como temos refle-
tido desde o início, esse é um conceito bastante complexo e muita coisa já foi dita a respeito dele,
Aristóteles foi só o começo – um começo fundamental, mas só o começo. Então, para a política
como Teoria do Estado, fica reservada a tarefa de discutir qual a melhor constituição.
Consciente de que não era possível haver um modelo ideal para todas as sociedades,
Aristóteles se preocupou em descrever a melhor constituição e levou em consideração diferen-
tes situações que cada cidade poderia vivenciar. Com base nessas condições, ele descreveu como
seriam as constituições mais aptas a satisfazer os ideais das pessoas. Como Teoria do Estado, a
política tem duas funções: descrever a constituição ideal – a melhor em um sentido absoluto – e
descrever a melhor constituição em determinadas condições.
Abbagnano (2007, p. 901-902) explica que o terceiro sentido de política a identifica como
a “arte ou ciência do governo”, ideia desenvolvida por Platão na obra Político. Nela, o filósofo
(nascido por volta de 428 a.C. e mestre de Aristóteles) denominou a política como ciência régia.
O próprio Aristóteles também reconheceu esse sentido e afirmou que haveria uma terceira tarefa
da política: investigar como surge um governo e como ele pode manter-se no poder pelo maior
tempo possível.
O quarto sentido de política é relacionado ao estudo dos “comportamentos intersubjetivos”
(p. 900-902). Para compreendê-lo, precisamos dar um salto na história e chegar ao século XVII,
quando o filósofo francês Auguste Comte (1798-1857) começou a desenvolver suas ideias. Comte
acreditava que os fenômenos da política se sujeitavam a leis invariáveis. Inspirado nos métodos
das ciências naturais para estudar a sociedade, ele descobriu fenômenos regulares por meio da
observação, ou seja, baseado em um método empírico. Para Comte, o conhecimento assim cons-
truído era o “conhecimento científico” ou “positivo” (BOTTOMORE, 2001, p. 290), de modo que o
Ciência política e Teoria geral do Estado 11

consideramos o fundador do positivismo3. A proposta de Comte identificou os sentidos de política


e de sociologia, os quais foram difundidos sobretudo na obra Sistema de política positiva. Pouco
tempo depois de Comte, e sob a influência de seu pensamento, o jurista italiano Gaetano Mosca
(1858-1941) conceituou política como a “ciência da sociedade humana” (ABBAGNANO, 2007,
p. 902), pelo fato de o termo sociologia proposto por Comte ainda não ter convencido totalmente a
comunidade científica. Hoje, compreendemos que a política não pode ser definida dessa maneira
e percebemos que a Sociologia se consolidou no campo das ciências.

Sintetizando nossas ideias...


Podemos concluir que o objeto de estudo da política em Aristóteles é um
em sua obra Ética (que se ocupa do bem e do bem supremo, do justo e
do injusto) e outro em A política (que trata das constituições, sua abran-
gência e tudo relacionado a elas, é o princípio de uma ideia de Teoria
geral do Estado).
Para Platão, em Político, e para Aristóteles, ainda em A política, esse
objeto de análise é o governo, sua origem e subsistência. Finalmente,
para Comte, em sua obra Sistema de política positiva (ca. 1851-1854), a
política refere-se à investigação sobre relacionamentos intersubjetivos.
Ele inaugura a abordagem positivista da ciência e da própria política
enquanto ciência moderna.

Ainda sobre política, não podemos nos esquecer de uma figura muito importante: o filó-
sofo ateniense Sócrates (470/499-399 a.C.), que, mesmo sem deixar escritos (ele preferia ensinar
nas praças), passou muitas lições sobre política e a respeito da moral do homem. Algumas des-
sas lições chegaram até nós na forma de diálogos, registrados por Platão em diversas obras. Em
A República, Político ou As leis, Platão também apresentou reflexões a respeito do Estado e sua
forma ideal. Aristóteles, por sua vez, ao apresentar uma sistematização das cidades-Estados de seu
tempo, também mostrou modos de melhorá-las, por isso pode ser considerado o fundador das
ciências do Estado (GAMA, 2005, p. 14-15).
Com relação a Sócrates, para alguns talvez a maior lição política que o filósofo deixou como
legado para seus contemporâneos – e também para nós – seja aquela ilustrada em sua morte.
Condenado pela pólis, mesmo sabendo que era inocente, o filósofo recusou-se a fugir e aceitou sua
sentença. Ainda há indagações a respeito de por que ele aceitou passivamente o destino que lhe
foi designado: seria para mostrar à sociedade ateniense a importância de cumprir a lei do Estado,
mesmo sendo injusta? Seria para provar sua inocência? Ou seria simplesmente por não suportar

3 O positivismo se expressava como uma corrente filosófica. Posteriormente, esse termo assumiu inúmeras formas
de manifestação, como é o caso do positivismo jurídico. A orientação positivista via na ciência o único guia para a vida
individual ou em sociedade. Para essa corrente, a ciência era o único conhecimento possível e método válido, tudo o que
era construído fora dela e dos seus métodos não podia ser considerado conhecimento (ABBAGNANO, 2007, p. 909).
12 Ciência Política e Teoria do Estado

viver em uma sociedade com leis tão injustas? Independentemente da resposta, uma coisa é certa:
na Antiguidade grega, a lei, a política e o justo andavam (ou deveriam andar) juntos.
Após esse passeio pela história do pensamento político, podemos perceber que, desde
Aristóteles, um dos pontos mais importantes no que se refere à política é a sua relação com a ética.
Compreendemos que tanto a política quanto a ética se referem à vida prática do ser humano, mas
a concepção de política na Antiguidade é muito diferente daquela de política no mundo moderno.
Sob a influência de Platão e Aristóteles, a política dizia respeito à atividade humana em busca de
um fim específico, como o bem comum, a justiça ou a liberdade, e, por isso, a ética se estabele-
cia como desenvolvimento natural da intencionalidade política e ambas (política e ética) tinham
o mesmo sentido. Por outro lado, no mundo moderno, e sob a influência do pensador italiano
Nicolau Maquiavel (1469-1527), surge a concepção de política como gestão do poder, tendo em
vista não mais o bem comum como horizonte, agora o poder em si, ou seja, a conservação do poder
a qualquer custo – e disso decorre o inevitável conflito entre ética e política.
Maquiavel, que viveu entre os séculos XV e XVI, escreveu a célebre obra O príncipe, é tido
como o pensador que reduziu a política a um simples instrumento de domínio (ABBAGNANO,
2007, p. 903-904).

1.2 Diferença entre ciência política e Teoria geral do Estado


Como vimos, não há um sentido ou definição universal sobre política. Não apenas o con-
ceito da palavra pode ser estabelecido de maneiras diferentes, mas também a forma como o co-
nhecimento produzido em torno da política pode se submeter a diversas abordagens e métodos
científicos. Simultaneamente, a política pode influenciar a ciência, mas, antes de refletirmos sobre
isso, vamos buscar compreender a origem do desenvolvimento científico da política e sua relação
com o Estado, ou melhor dizendo, sua relação com o que hoje chamamos de Teoria geral do Estado.
Foi no final do século XIX que a ciência política apareceu como disciplina autônoma. No
ano de 1872, o sociólogo francês Emile Boutmy (1835-1906) fundou a Escola Livre de ciências
políticas4, que provocou o surgimento de inúmeras instituições relacionadas ao estudo da ciência
política. As obras (consideradas clássicas), produzidas sob essa influência, mostraram profunda
preocupação com temas como o direito e o pensamento constitucional. Após a fundação da es-
cola francesa, começou um longo e lento processo de delimitação do campo de estudo da Ciência
Política e diversos cientistas pesquisadores da disciplina se destacaram. Chama atenção o fato de
que as outras ciências foram fundadas com grandes obras ou por uma personalidade destacada – a
exemplo de Auguste Comte, fundador da Sociologia e do positivismo, como falamos anteriormen-
te –, no entanto, a ciência política, por sua vez, não se absteve disso (CAMINAL BADIA, 2006,
p. 27). Contudo, é importante darmos destaque à obra Elementos de ciência política5, do italiano
Gaetano Mosca, que teve sua primeira parte publicada no ano de 1896. Foi a partir desse momento
que a expressão ciência política foi empregada originalmente.

4 Em francês, École Libre des Sciences Politiques.


5 Em italiano, Elementi de scienza política.
Ciência política e Teoria geral do Estado 13

Então, se a ciência política como é compreendida contemporaneamente não tem um funda-


dor, a política, por sua vez, deve seu desenvolvimento inicial às contribuições de Aristóteles, como
pudemos observar até aqui. O uso do termo ciência pelos filósofos antigos não caracteriza o estágio
atual de desenvolvimento do conhecimento humano. Como explicado anteriormente, a ciência
tem assumido um sentido específico nos últimos séculos, uma vez que a humanidade começa a
abandonar os antigos mitos que explicavam o mundo para buscar na observação, nos testes, enfim,
nos diversos métodos, uma forma de compreendê-lo.
Assim como na ciência, a política também começou a assumir métodos rigorosos para sis-
tematizar seus objetos de estudo e apresentar seus pressupostos, construindo, dessa forma, seus
procedimentos científicos. Atualmente, podemos situá-la no grande grupo das ciências sociais e
há uma variedade expressiva de abordagens sobre a política. Sua delimitação enquanto ciência é
muito ampla, apesar de alguns autores, como Bonifácio de Andrada (1930-), considerarem que o
surgimento e a consolidação de outras ciências, como a Sociologia, a Economia e a própria Teoria
do Estado, tenham esvaziado os conteúdos da ciência política (ANDRADA, 1998, p. 16).
Dessa forma, ao considerarmos que há essa ampla variedade de estudos no âmbito da ciência
política, podemos defini-la como o “conjunto das atividades necessárias ao governo de um país [e seus]
elementos essenciais, sem os quais não pode haver governo” (ABBAGNANO, 2007, p. 901). É o caso da
autoridade política, que envolve um poder institucionalizado (nós o reconhecemos no Estado), e a obe-
diência dos cidadãos. Esse poder precisa ser legítimo, ou seja, contar com o consentimento democrático,
e implica no dever de respeitar as leis e submeter-se às punições quando não as cumprir.
No ano de 1948, na cidade de Paris, a Organização das Nações Unidas para a Educação e
Cultura (UNESCO, 1948) promoveu uma conferência internacional sobre métodos em ciência
política e um dos objetivos era delimitar a abrangência dos estudos dessa ciência. Ao fim dos tra-
balhos, foi apresentada uma proposta de divisão temática, sintetizada no Quadro 1 a seguir:
Quadro 1 – Campos de estudo da ciência política
Campo de estudo Temas abrangidos
Teoria política (conceitos básicos)
Teoria política
História das ideias políticas

A constituição
Governo nacional
Governo regional e local
Instituições políticas
Administração pública
Economia e funções sociais do governo
Comparativo de instituições políticas

Partidos políticos
Grupos e associações
Grupos, partidos e opinião pública
Participação cidadã no governo e administração
Opinião pública

Política internacional
Relações internacionais Organismos internacionais e administração
Direito internacional
Fonte: Elaborado pela autora com base em UNESCO, 1948.
14 Ciência Política e Teoria do Estado

Podemos perceber que o campo de estudo da ciência política, mesmo com o “esvaziamento”
promovido pela emancipação de outras ciências, ainda é bastante amplo. Um dos seus principais
campos é a Teoria geral do Estado. Levando em consideração que por vezes os objetos de estudo
das duas disciplinas são confundidos, é importante distingui-las.
Na ciência política, estudamos o poder e aspectos relacionados a ele. Nas sociedades con-
temporâneas, quem exerce o poder é o Estado, então podemos dizer que o poder é instituciona-
lizado – no entanto, ambos não devem ser confundidos: o Estado incorpora o poder, mas não se
funde a ele. No campo da Teoria geral do Estado, estudamos justamente essa delimitação do poder
político, o poder exercido pelo ente estatal. Com essas considerações preliminares, podemos iden-
tificar alguns traços que distinguem ambas as disciplinas (GAMA, 2005, p. 7-10):
• A ciência política é mais abrangente que a Teoria geral do Estado, que se ocupa das abs-
trações, ou seja, de identificar aspectos gerais nos Estados, e por isso não oferece soluções
para situações concretas – em razão disso, há doutrinadores que não concordam em con-
siderar a Teoria geral do Estado um ramo dentro da ciência política.
• A ciência política estuda o poder, ciente de que algumas relações de poder se desenvolvem
dentro da esfera estatal. É mais dinâmica que a Teoria geral do Estado.
• A ciência política tem abordagem mais concreta, pois analisa, reflete e conclui seus
temas, diferente da Teoria geral do Estado, que tem abordagem mais abrangente e
menos profunda.
• As investigações e conclusões da ciência política dão subsídios, ou seja, informações mais
detalhadas, que são fundamentais para que a Teoria geral do Estado possa elaborar suas
próprias formulações.
• A ciência política admite uma construção interdisciplinar de seus conhecimentos, pois
busca seus subsídios em diversas outras ciências, como na economia, antropologia, en-
tre outras.
• No âmbito do Direito, a Teoria geral do Estado busca dados especialmente nos chamados
ramos do Direito Público (como é o caso do Direito Constitucional), enquanto a ciência
política pode ir além, retirando informações também do âmbito privado do Direito e da
sociedade (como já mencionamos, é o caso das relações intersubjetivas).
• Por fim, a ciência política trabalha também com problemas concretos, enquanto a Teoria
geral do Estado, quando muito, reúne as problemáticas encontradas.

Com base nessas distinções, epistemologicamente (veja a explicação sobre o termo na pró-
xima página) podemos concluir que a essência de uma teoria é justamente procurar formulações
gerais que possam oferecer uma explicação universalista para os fenômenos estudados. A ciência,
por outro lado, é mais ampla e pode comportar em cada campo diversas teorias. No campo da
ciência jurídica, por exemplo, temos a Teoria geral do Direito, a Teoria geral do Processo, a própria
Teoria geral do Estado, entre outras. Além de poder reunir várias teorias, a ciência não fica presa
à busca pelas abstrações e universalizações, ela pode – e frequentemente o faz – analisar situações
específicas, casos concretos e buscar uma explicação científica para cada fenômeno estudado, seja
ele único, comum ou recorrente.
Ciência política e Teoria geral do Estado 15

O professor Ricardo Gama, em seu livro Ciência política (2005, p. 17), defende que o estudo
dessa disciplina é mais importante que o da Teoria geral do Estado. Ele entende que a primeira
oportuniza mais condições de desenvolvimento de nosso senso crítico e de nossa criatividade,
enquanto a segunda investiga e descreve os fenômenos, mas não possibilita a reflexão crítica. E a
você? O que parece?

Já que falamos em epistemologia... o que é isso?


O termo epistemologia é de origem grega e atualmente o empregamos com
dois sentidos distintos: para nos referirmos a uma teoria do conhecimento
ou à filosofia da ciência. Abbagnano (2007, p. 392) explica que no nosso
tempo a questão do conhecimento e da ciência se entrelaça e às vezes até se
confunde. Por que o filósofo afirma isso?
Como vimos, na modernidade – e sob a influência de teóricos como
Auguste Comte – reconhecemos a possibilidade de produzir conheci-
mento somente por meio da ciência. Os saberes elaborados sem respeitar
um método científico não são mais considerados válidos. É nesse ponto
que reduzimos o conhecimento à ciência. E, com o hiperdesenvolvimen-
to das ciências, hoje falamos em teorias do conhecimento ou filosofia
das ciências em diversos campos, sendo que, para tratar desses assuntos,
empregamos conceitos como epistemologia política, epistemologia jurí-
dica, entre outros.

1.3 A relação entre ciência política e outras ciências sociais


Das relações entre a ciência política e outras áreas do saber, talvez a mais complexa se dê
justamente com a Teoria geral do Estado, já que ambas se desenvolvem em campos de investiga-
ções que se inter-relacionam e se influenciam reciprocamente. Agora que já formulamos algumas
distinções entre essas disciplinas, podemos refletir sobre essa relação e outros campos do conheci-
mento científico. Mais que isso: é possível pensar sobre a importância de ver o mundo interdisci-
plinarmente e como a política influencia as outras ciências.
Com relação à interdisciplinaridade6, a primeira evidência que encontramos acerca de sua
importância é o fato de que a política é estudada por diversas ciências e cada uma delas lança so-
bre a política diferentes perspectivas. Assim, temos a Antropologia Política, a História Política, a

6 A palavra interdisciplinaridade significa a junção de diversas disciplinas para compreender um tema comum.
É empregada, por exemplo, quando, para compreendermos o sentido de uma constituição, buscamos na história o con-
texto em que tal constituição foi criada; na Sociologia compreende as relações sociais que a definiram; na Economia os
interesses de mercado que exerceram influência e assim por diante. Nessa perspectiva, todas as informações confluem
para explicar o mesmo objeto de estudo e assim conseguimos chegar a uma compreensão mais profunda e ampla da
realidade (WOLKMER, 2005, p. 15-16).
16 Ciência Política e Teoria do Estado

Filosofia Política, a Economia Política, a Sociologia Política e muitas outras. Em cada uma dessas
ciências, a política é analisada com base nos métodos científicos específicos adotados e, por isso,
as conclusões podem ser diferentes. Isso porque o mesmo objeto visto por vários ângulos – e sob
métodos diferentes – será compreendido e descrito de maneiras distintas. Em suma: o tema da
política não é específico de sua ciência porque sua complexidade não só permite como exige uma
abordagem interdisciplinar, em especial pelas ciências sociais e humanas. Por isso, praticamente
todos os cursos de graduação compreendem em suas grades curriculares a disciplina de Ciência
Política, acrescentam a disciplina de Teoria geral do Estado ou ainda variações de ambas.
Sobre a maneira como essas disciplinas se relacionam, podemos começar citando o Direito
Constitucional. Bonavides (2010) explica que, no campo das ciências jurídicas, a ciência política –
antes de se consolidar como disciplina autônoma na França – pertencia quase totalmente ao Direito
Constitucional. Mesmo emancipadas, a relação entre as disciplinas nunca se desfez, pois, no âmbito do
Direito, é o ramo constitucional que se ocupa da coisa política, das instituições do Estado e do espaço
público no qual os fenômenos políticos se desenvolvem. Na modernidade, as constituições são o princi-
pal instrumento de limitação do poder estatal e de prevenção contra abusos e autoritarismos no exercí-
cio do poder político. A eficácia desse documento está relacionada a fatores sociais, visto que sociedades
instáveis e atrasadas economicamente, conforme exemplifica o autor, tendem a ter instituições políticas
oscilantes – e, nesse caso, menos eficaz será o Direito Constitucional.
Com relação à Economia, e ainda de acordo o raciocínio de Bonavides (2010), essa é a dis-
ciplina que analisa os aspectos econômicos incidentes sobre a sociedade e como eles se determi-
nam reciprocamente. Além disso, examina a formação das instituições e de fenômenos políticos.
O autor ainda destaca que não é necessário ser marxista para reconhecer a influência da economia
como elemento fundamental para determinar a politização da sociedade.
Vamos articular essa ideia com as do parágrafo anterior: fatores econômicos, como o atraso
(objeto de estudo da Economia), podem comprometer a eficácia constitucional (objeto de estudo
do Direito Constitucional) e ocasionar a instabilidade política.

Marxismo, comunismo e a política


Precisamos tomar cuidado para não cair em certas “armadilhas” próprias
de nosso tempo, que se dão pelo estágio avançado de desenvolvimento
do capitalismo, por tendências políticas conservadoras mundialmente
verificadas, entre outros. Uma dessas armadilhas é rejeitar a ­priori
o aporte teórico e científico do marxismo (às vezes sem conhecê-
-lo) e outra é identificar marxismo e comunismo como sinônimos.
O comunismo detalharemos posteriormente, mas, por hora, vale destacar
que os modos de produção – muito mais antigos que a existência de Marx
Ciência política e Teoria geral do Estado 17

– compreendidos como “comunistas” ressaltam o fato de que o comunismo


é muito anterior ao pensamento desse autor. Além disso, o marxismo,
enquanto aporte científico e teórico, abrange um amplo rol de contribuições
a diversas ciências, como uma nova metodologia para entender a história
das sociedades (o materialismo histórico ou materialismo dialético), a teoria
da mais-valia (fundamental para a Economia), entre outras, cujos méritos
são reconhecidos até mesmo por intelectuais alinhados ao liberalismo
econômico. As obras de Marx desocultaram o elemento político inerente
às ciências.
Ainda que, historicamente, as sociedades inclinem-se a rejeitar certas
ideias e teorias, não podemos nos esquecer de que um cientista, inclusive
um cientista político, não pode adotar tal postura. Isso porque o cientista
dialoga e reflete sobre todos os argumentos, mesmo aqueles dos quais, a
princípio, discorda.
E é isso o que permite à ciência evoluir!

Ainda em Bonavides (2010), o autor destaca a relação entre ciência política e história. É a
história que sistematiza a aglutinação de fatos e experiências e é pelo aporte do historiador que
recebemos subsídios para refletir os objetos da ciência política; da mesma forma, o historiador
crítico se apoia nos instrumentos da ciência política para compreender e descrever processos e fe-
nômenos históricos. E essa tendência de apropriação da ciência política por outras áreas se amplia.
Nas últimas décadas, foi a vez da psicologia, que se relacionou com a psicologia social e o
behaviorismo, orientação teórica que estuda o comportamento humano (e dos demais animais) e
fenômenos como a comunicação (já vimos que a comunicação é atribuída à natureza política do
homem). Na abordagem da política pela psicologia, defende-se que os fundamentos do poder são
de ordem psicológica e que a ciência política toma como objeto o material humano. Consta ainda
a relação entre ciência política e sociologia política, em que ambas compartilham muitos objetos
de estudo, como o comportamento político de grupos e indivíduos, os modos como a autoridade
política é exercida, as lutas entre classes sociais e seus reflexos políticos, entre outros.
Para compreendermos a relação e a própria abordagem interdisciplinar da ciência política,
vamos tomar como exemplo o estudo e a compreensão de uma determinada constituição. Com
base na história, em especial, na do Direito, podemos compreender o contexto em que as forças
sociais se mobilizaram e se reuniram em assembleia constituinte. Podemos também entender a
formação de uma sociedade e suas reivindicações específicas, que em eventuais disputas de poder
podem ser negociadas ou prevalecer. Além disso, podemos buscar a compreensão dos fatores eco-
nômicos e também do contexto político.
18 Ciência Política e Teoria do Estado

Todas essas informações podem ser articuladas para compreender uma constituição em es-
pecífico ou para buscar aspectos comuns entre as experiências que formam o movimento constitu-
cionalista, tal como a motivação comum em assegurar os direitos dos indivíduos e limitar o poder
do Estado. Ao considerarmos que uma constituição congrega diversas dimensões, notadamente a
política (por exemplo, na organização dos poderes institucionais ou estatais) e a jurídica (ao citar o
rol de direitos e garantias fundamentais, como no artigo 5º de nossa Constituição7), podemos dizer
ela é o cânone jurídico-político de uma sociedade.
Nós já comentamos sobre a influência que as ciências produzem umas sobre as outras. No
entanto, ainda é importante empreendermos uma última reflexão acerca da influência que a polí-
tica exerce sobre as ciências.
Há muitas maneiras de abordar esse assunto. Destacamos duas posições importantes e dia-
metralmente opostas. A primeira, que acompanha a ciência moderna desde sua origem, sustenta a
posição de que a ciência é neutra e imparcial, não se deixa influenciar pelos fenômenos políticos da
sociedade em que está inserida. A segunda perspectiva, ao contrário da primeira, defende que todas
as ciências são politicamente determinadas, inclusive em razão de fatores econômicos. Nessa última
concepção, todas as escolhas do pesquisador (o que, como e por que pesquisar) são definidas politica-
mente. As pesquisas que permitem a descoberta de novas tecnologias – novas máquinas, por exemplo,
que facilitam e aumentam a produtividade das fábricas – são produto de uma ciência determinada
pelos interesses de mercado. Do mesmo modo, as pesquisas que culminam na descoberta de remédios
ou doenças quando um cientista segue um método ou adota teorias de um pesquisador europeu, em
vez de um africano ou latino-americano, por exemplo, partem de uma escolha que é politicamente de-
terminada. Naturalmente, entre ambos os extremos, encontramos inúmeras posições intermediárias e
incontáveis interpretações diferentes a respeito da relação entre a política e as demais ciências.
Então, sob essas distintas perspectivas, podemos entender que a ciência é neutra e, por isso,
não tem compromisso com questões sociais – ao ser neutra, ela é independente da sociedade –, ou
podemos ainda defender que ela tem um compromisso político com a sociedade. Esse é um tema
que tem relação com a questão da ideologia, como veremos adiante.

Considerações finais
Como pudemos observar, a política é um dos objetos de reflexão e também uma das preocu-
pações mais antigas da humanidade. Apesar das profundas transformações que experimentamos
– como o avanço tecnológico, o surgimento do capitalismo, o fim dos poderes absolutos dos reis
e a diminuição do poder político da Igreja –, a política persiste como uma das questões mais fun-
damentais até nossos dias. Atualmente, o sentido de política e a predisposição social em discuti-la
estão “em cheque”, mas isso decorre da crise das instituições, e não da política em si. Agora, já sabe-
mos que a política tem muitos sentidos, abrange diversos objetos e mais que isso: ela define nossa
vida como indivíduos e sociedade.

7 O artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988). Para ler o artigo na íntegra, acesse: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 5 jun. 2018.
Ciência política e Teoria geral do Estado 19

Com essas bases, podemos avançar e começar a refletir sobre a relação entre a política e a
sociedade, espaço esse em que produzimos e reproduzimos nossas vidas, ou seja, em que nos des-
cobrimos e nos afirmamos cotidianamente como seres humanos e animais políticos. No próximo
capítulo, vamos assumir a abordagem política como referencial para sistematizar os aportes de
outras ciências e compreender o processo de formação das sociedades e sua evolução.

Ampliando seus conhecimentos


Neste capítulo, comentamos alguns sentidos possíveis do termo política. O filósofo Enrique
Dussel sintetizou parte de sua obra para reunir as principais reflexões a respeito da política e a dire-
cionou aos jovens, sob o nome 20 teses de política. A seguir há uma passagem da obra em que o autor
reflete sobre a essência da política, uma lição urgente para tempos de crise como os que vivemos.

20 teses de política
(DUSSEL, 2007, p. 13; 37-38)

Para entender o político (como conceito) e a política (como atividade), é necessário deter-se
na análise de seus momentos essenciais. Em geral, o cidadão e o político por profissão ou por
vocação não tiveram possibilidade de meditar pacientemente sobre o significado de sua função e
responsabilidade política. [...] O ofício político pode ser vivido existencial e biograficamente pelo
sujeito como uma “profissão” burocrática, em certos casos muito lucrativa, ou como uma “voca-
ção” motivada por ideais, valores, conteúdos normativos que mobilizam a subjetividade do polí-
tico a uma responsabilidade em favor do outro, do povo [...] “Vocação” significa “ser chamado”
(do verbo vocare) a cumprir uma missão. O que “chama” é a comunidade, o povo. O chamado é
o que se sente “convocado” a assumir a responsabilidade do serviço. Feliz o que cumpre fielmente
sua vocação! Maldito aquele que a trai porque será julgado em seu tempo ou pela história!

Dicas de estudo
• Muitas das informações discutidas neste capítulo foram buscadas no Dicionário de
Filosofia, de Nicola Abbagnano (2007), no verbete “política” (p. 784-785).
O ato de consultar regularmente dicionários é importante para aprimorar nosso vocabulá-
rio e evitar o uso impreciso de algumas palavras. Nos dicionários de política e de Filosofia,
em geral, temos obras sistematizadas por autores considerados referência em suas respec-
tivas áreas. É o caso de Nicola Abbagnano, cuja leitura, além de enriquecer nosso vocabu-
lário, aperfeiçoa nossos saberes e nos qualifica intelectual e profissionalmente, pelo rigor
científico com que desenvolve e sistematiza os conceitos que nos apresenta.
• Diante do vasto campo de abrangência e de milhares de obras que já foram escritas sobre a
política, destacamos a importância de Aristóteles no cenário da Filosofia. Além das obras
que citamos neste capítulo, o filósofo escreveu outras importantes, como A política e Ética
a Nicômaco.
20 Ciência Política e Teoria do Estado

Ética a Nicômaco foi um livro que Aristóteles escreveu para seu filho (Nicômaco). Nele, o
filósofo apresentou as bases para se pensar a ética e a justiça que, conforme mencionamos
neste capítulo, eram as temáticas e motivações da política em toda a Antiguidade. A ideia
de justiça que Aristóteles defende nesse livro é influente até hoje e consta em inúmeras
constituições pelo mundo.
Em A política, por sua vez, Aristóteles apresentou um retrato detalhado de como era a
sociedade ateniense de seu tempo e relatou desafios e problemas que os governos enfren-
tavam – alguns ainda atuais –, como violações de direitos políticos, o favorecimento de
poucos e exclusão de muitos no acesso aos serviços e poderes do Estado. Ambas, enfim,
são obras clássicas e imprescindíveis para nos ajudar a pensar nosso próprio tempo.

Atividades
1. Podemos afirmar que o sentido da palavra política existente na Antiguidade é o mesmo ado-
tado hoje? Justifique sua resposta.

2. Existem diferenças entre ciência política e Teoria geral do Estado? Podemos dizer que uma
é mais importante que a outra? Justifique sua resposta.

3. Cite exemplos de temáticas que podem ser estudadas tanto no campo da ciência política
quanto no da Teoria geral do Estado.

4. Antes de estudar este capítulo, ao pensar no termo ciência, você percebia alguma relação
com a política? E depois de nossos estudos, você continuou tendo as mesmas percepções?
Cite exemplos que demonstrem sua visão antes e depois dos nossos estudos.

Referências
ANDRADA, B. Ciência Política: ciência do poder. São Paulo: LTr, 1998.
ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martin Claret, 2002.
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BOBBIO, N. Política. In: BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 5. ed. Brasília:
Editora UnB, 2004. 2v.
BONAVIDES, P. Ciência Política. 17. ed. São Paulo: Objetiva, 2010.
BOTTOMORE, T. B. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CAMINAL BADIA, M. La política y la ciencia política. In: CAMINAL BADIA, M. (Ed.). Manual de Ciencia
Política. 3. ed. Madri: Tecnos, 2006.
DUSSEL, E. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
GAMA, R. R. Ciência Política. Campinas: LZN, 2005.
UN – United Nations Educational Scientific and Cultural Organization. International conference on: methods in
political science. Paris, 27 sept. 1948. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001575/157593eb.
pdf>. Acesso em: 6 jun. 2018.
WOLKMER, A. C. Fundamentos de história do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
2
Sociedade e política

No capítulo anterior, refletimos sobre o que é política. Essa reflexão nos remeteu ao ambien-
te em que a política se concretiza, que é, por excelência, a sociedade humana. Então, com base nas
definições anteriormente discutidas – orientação para o bem comum, instrumento de manutenção
do poder etc. –, pudemos perceber que qualquer delas requer o espaço fecundo das interações es-
tabelecidas entre as pessoas, ou seja, as relações intersubjetivas para se desenvolver.
Neste capítulo, nossa tarefa consiste em discutir sobre a sociedade. Vamos compreender as
distintas maneiras de descrevê-las e de explicar suas origens e seu desenvolvimento. Depois, che-
gamos ao momento contemporâneo e analisamos como as sociedades atuais se organizam e apre-
sentam suas reivindicações políticas, por meio do que temos denominado de movimentos sociais.
Por fim, estudamos os sentidos possíveis para o conceito de instituições no âmbito da política, bem
como a ideia de controle social.

2.1 Sociedade e classes sociais


No primeiro capítulo, conforme nossas reflexões, pudemos perceber a importância da socie-
dade para a política. Por isso, nosso segundo passo consiste em compreender minuciosamente as
sociedades e uma importante ideia que a acompanha desde os primórdios, crucial para a definição
da política: as classes sociais. Com base nessa compreensão, podemos também analisar a política
por uma perspectiva mais complexa e perceber como ela se desenvolve não somente no âmbito das
relações intersubjetivas, mas também na relação e interação entre diferentes grupos sociais. Isso
facilitará a compreensão de temas como o modo de organização das instituições de poder, a disputa
pelo poder e outros temas que tentaremos contemplar ao longo desta obra.
Para Bastos (2002, p. 23-25), uma das evidências de que o homem é um animal social é o
fato de ele ter vivido desde os primórdios de sua existência em sociedade. Por isso, o autor acredita
que a sociedade e a evolução do ser humano se confundem, a ponto de a sociedade ter sua origem
juntamente da origem da espécie humana. A sociedade não consiste no mero agrupamento de
seres, pois outros seres (como abelhas, formigas etc.) também se reúnem em grupos e até mesmo
dividem tarefas. No entanto, o autor não reconhece neles a existência de uma sociedade propria-
mente dita. Entre seres humanos reunidos em grupo, há um elemento que somente se verifica nas
sociedades humanas: a normatividade.
Nós lidamos diariamente com essa normatividade, pois ela consiste em nossas leis. As leis
determinam como os carros devem transitar, o que é considerado crime (e, portanto, não deve ser
praticado), quais são nossos direitos, nossos deveres e assim por diante. Esse conjunto de normas
tem o propósito de manter a ordem e, para isso, adota-se um sistema normativo para mantê-la
22 Ciência Política e Teoria do Estado

(seja ela boa ou ruim)1. Consideramos essa normatividade necessária para impor limites e conferir
segurança ao convívio social, no entanto, ela também abrange limites morais e éticos (sem necessa-
riamente constarem em uma lei jurídica) e influencia nossa conduta por agir em nossa consciência
e orientar nossas relações com outras pessoas. Podemos citar como exemplos desses limites as
normas jurídicas, a moral e a ética.

Diferença entre moral e ética


Qualquer explicação que seja muito reducionista será perigosa, pois esse
tema é complexo e tem sido pesquisado desde os tempos mais remotos.
Entretanto, podemos nos arriscar ao apontar uma das diferenças entre
os dois conceitos. A moral é desenvolvida no âmbito individual (nossa
consciência e crenças pessoais). Já a ética é desenvolvida no âmbito da
sociedade (valores e crenças coletivamente compartilhados). A ética é
mais objetiva. Em certo sentido, é considerada a ciência que estuda a
moral. Uma revisão mais aprofundada e outras acepções dos termos po-
dem ser encontradas em: Figueiredo (2008).

Conforme comentamos, neste capítulo nosso objetivo é discutir teorias sobre as origens da
sociedade. Todavia, para melhor compreendermos esse tema, antes devemos analisar como se dão
as formações sociais humanas, ou seja, como as sociedades se dividem e se organizam internamen-
te. Nesse sentido, a ideia mais importante é a de classes sociais e seus elementos, que Dallari (2011,
p. 31-54) classifica como:
• Finalidade ou valor social: objetivo, aspiração, meta compartilhada pelas pessoas que
convivem em sociedade, como por exemplo, o bem comum.
• Manifestações de conjunto ordenadas: relaciona-se à ordem social e à ordem jurídica
que abrange três requisitos: reiteração, ordem e adequação. A reiteração diz que perma-
nentemente a sociedade se manifesta em prol de suas finalidades. A ordem diz que há
normas regendo as manifestações em sociedade. Por fim, a adequação pressupõe que as
ações devem se desenvolver em prol do bem comum e, para ser assegurada, a livre mani-
festação de ideias é indispensável.
• O poder social: que se manifesta de infinitas maneiras. É difícil chegar a classificações
do poder, mas há características gerais como a sociabilidade (o poder é um fenômeno da
sociedade) e a bilateralidade (o poder está na interação de duas ou mais vontades em que
uma prevalece).

1 No item 10.1 “Regimes totalitários e a negação da democracia” do último capítulo de nosso livro, falaremos a respeito
dos regimes totalitários e das ditaduras. Por enquanto, para saciar curiosidades, antecipamos que quanto menos legítima
for a ordem, ou seja, quanto pior ela for, mais duras serão as regras e mais violenta será a repressão imposta por quem
está no exercício do poder político (DUSSEL, 2007).
Sociedade e política 23

Os aspectos iniciais a respeito do poder serão abordados no item seguinte, mas como já
apontamos, compreender essas estruturas requer também o entendimento do papel das classes
sociais. As classes sociais agrupam pessoas e dividem a sociedade sob vários recortes diferentes,
como classe econômica, grupo étnico ou racial, comunidade religiosa, entre outros. Esses grupos
representam vontades que interagem no espaço público, com predomínio de algumas sobre outras.
Essa predominância pode ser definida pela posição e o poder que cada classe ocupa na sociedade.
Vejamos mais detalhadamente essa questão.
É muito comum ser atribuído ao pensamento marxista a origem do conceito classe social. De
fato, as obras de Karl Marx (1818-1883) apresentaram importantes contribuições para chegarmos
à forma que atualmente empregamos esse conceito. Entretanto, há autores como Santos (1983,
p. 7-9) que recordam que a origem desse conceito é muito mais antiga e consta, inclusive, em do-
cumentos egípcios, em relatos a respeito da Grécia Antiga, entre outros. Aristóteles, por exemplo,
quando refletiu sobre a política, descreveu uma sociedade dividida em classes (classes de escravos,
homens livres e até mesmo classes de ricos e pobres). Nem mesmo os textos bíblicos escaparam de
referências às classes sociais. E assim, por razões econômicas ou outras circunstâncias, esse concei-
to foi citado por inúmeros teóricos no curso da história. As contribuições de Marx ultrapassaram
a dimensão científica estabelecida na época e atribuíram a esse conceito um papel fundamental na
explicação da sociedade humana e de sua própria história.
Para compreendermos o conceito de classe social em Marx, precisamos antes compreender
o modo como ele entendia a sociedade. Segundo Bottomore (2001, p. 432-344), assim como a
maioria dos sociólogos, ele também destacou que a sociedade pode ter três sentidos distintos.
O primeiro é o de sociedade humana, isto é, a humanidade interagindo entre si. O segundo refere-
-se aos diferentes tipos de organização verificados no curso da história, como as sociedades feudal,
capitalista, entre outras. Por fim, o terceiro sentido refere-se a sociedades específicas, como a França
da Revolução Iluminista, em 1789. A partir desse momento, Marx apresentou uma concepção bem
característica, que o diferenciou dos demais sociólogos, cientistas políticos e teóricos em geral.
Vejamos a seguir.
Em primeiro lugar, Marx alcançou a compreensão de que o indivíduo não é oposto ou an-
tagônico à sociedade. Não é necessário um contrato social para remediar tensões entre ele e a
sociedade. Para Marx, a própria existência, assim como tudo mais que fazemos, é atividade social.
Em segundo lugar, ele não interpretava a sociedade humana como separada da sociedade natural.
Enquanto começava a se fortalecer e difundir uma percepção do ser humano (civilizado) como
separado da natureza, uma concepção que viria a se tornar hegemônica, ele o entendia como parte
do mundo natural e o modo como o ser humano produz e reproduz a vida (pelo trabalho e pela
procriação) constitui relação natural e social. Finalmente, temos no pensamento de Marx a con-
cepção de tipos de sociedade, embasada na ideia de que o trabalho humano cria e transforma as
relações sociais.
Diante desse ponto de vista, as forças produtivas se desenvolvem (desenvolvimento tecno-
lógico) e a divisão social do trabalho está em permanente transformação, o que constitui as rela-
ções sociais de produção, isto é, relações de classe. Vejamos como isso é importante: o modo de
24 Ciência Política e Teoria do Estado

produção2 – que se refere justamente à forma como o trabalho se desenvolve e como ele é dividi-
do – assume um papel de destaque na definição da sociedade. Para Marx, as sociedades mudam
quando as forças produtivas entram em conflito com as relações de produção. A isso ele chama luta
de classes (BOTTOMORE, 2001, p. 342-344).
Finalmente, chegamos ao conceito de classe propriamente dito, embora tudo que comen-
tamos anteriormente é relacionado a essa ideia. Em certo momento de sua obra, Karl Marx e
Friedrich Engels (1820-1895) afirmaram que “a história de todas as sociedades que até hoje existi-
ram é a história da luta de classes” (1999, p. 7). Além disso, a relação de classe existente no modo de
produção capitalista (sociedade capitalista) diferencia-se das relações verificadas em outros modos
de produção (outros tipos de sociedades). De acordo com os autores, em outras épocas verificava-
-se a existência de mais classes sociais, enquanto a sociedade capitalista delimita-se cada vez mais
em dois campos opostos: o da burguesia e o do proletariado. Bottomore (2001, p. 61-64) destaca
que apesar dessa importante diferenciação, Marx não deixou de perceber que há um sentido co-
mum em todas as sociedades. No que diz respeito à divisão fundamental das classes, há a relação
entre proprietários das condições de produção e produtores diretos.
Ao aplicarmos as categorias marxistas para analisar nossa sociedade, dizemos que seu modo
de produção é capitalista e que as relações de produção que a definem se dão entre os proprietários
dos meios de produção (burgueses) e os produtores diretos (proletariado/trabalhadores/operá-
rios). As primeiras revoluções (inglesa, americana e francesa), que permitiram a substituição do
antigo modo pelo modo presente, são atribuídas à classe burguesa, que também foi, outrora, uma
classe oprimida. Então, “a burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucio-
nário” (MARX; ENGELS, 1999, p. 10).
É importante destacar que há várias perspectivas sobre como analisar a sociedade, as quais
Dallari (2011, p. 21-30) divide em duas grandes posições:
• a dos que defendem a ideia de uma sociedade natural, em que o homem a organiza se-
guindo sua própria vontade e natureza; e
• a dos que acreditam que o ser humano é obrigado a viver em sociedade contra a sua von-
tade, e uma vez nela inserido, precisa se submeter a limitações as quais podem ser tantas
e frequentes a ponto de suprimir sua liberdade individual.
Entre os que defenderam a primeira concepção estão Karl Marx e Aristóteles, Dallari ainda
acrescenta Cícero (que viveu em Roma no século I a.C.) e Tomás de Aquino (que viveu no período
medieval entre 1225 e 1274). Na modernidade, o autor menciona que houve um grande número de
teóricos e cientistas que defenderam essa orientação.
Do lado oposto encontravam-se os teóricos do contratualismo, cujas teorias acerca do
Estado estudaremos no Capítulo 43. Esses autores eram assim denominados porque defendiam que

2 Baseada na concepção de Marx, firmou-se um novo modo de estudar a história por sua explicação sistemática e o
entendimento dela como a sucessão de diferentes modos de produção. Nesse sentido, entende-se que os modos de pro-
dução definem e de certa forma delimitam períodos da história. O caminho para transformar esses modos de produção
– e consequentemente a história – são as revoluções (BOTTOMORE, 2001, p. 267-268).
3 Discutiremos detalhadamente essa questão no item 4.2: “Teorias contratualistas e a separação dos poderes do Estado”.
Sociedade e política 25

a sociedade decorre de um acordo de vontades, uma espécie de contrato hipotético, e negavam o


impulso natural do ser humano em viver em sociedade. Embora haja a vontade de viver em so-
ciedade, os contratualistas defendiam que esse desejo era motivado por diversos fatores, nenhum
deles inerente à natureza do ser humano.
O autor ainda menciona aquele que acredita ser o mais remoto precedente do contratualis-
mo: Platão. Em A República, o filósofo grego defendeu a construção racional – e não natural – de
uma associação humana. Além de Platão, o autor menciona Thomas Hobbes (1588-1679), John
Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), entre outros.
Naturalmente, essas distintas posições terão impacto sobre nossa compreensão acerca desse longo
processo de evolução social e também das estruturas de poder que se sucederam. No item seguin-
te, observamos essa distinção e analisamos a evolução das sociedades por duas perspectivas: a
perspectiva crítica de Marx e a perspectiva positivista de Fustel de Coulanges (1830-1889).

2.2 Evolução das sociedades e estruturas de poder


A respeito da origem das sociedades, podemos dizer que a família é uma das suas mais
antigas formas. Essa tese foi defendida por Fustel de Coulanges, historiador que viveu no século
XIX e em 1864 publicou A cidade antiga, sua obra mais conhecida. É notória a influência do posi-
tivismo4 em sua obra e, por isso, o consideravam um autor conservador. Ele acreditava que atuava
como um pesquisador neutro, imparcial e que a história era uma ciência pura, e que o historiador
tinha compromisso de identificar fatos, descobrir a verdade e expô-la independentemente das cir-
cunstâncias5 (ROIZ, 2011). Agora que conhecemos um pouco mais sobre o pensamento do autor,
podemos verificar como ele descreveu a origem das sociedades.
Se para Marx o trabalho é o elemento crucial para definir as sociedades, para Coulanges a
origem delas e seu desenvolvimento foram determinadas pela religião. Na crença antiga, acredita-
va-se que nem mesmo a morte separava o corpo da alma. A morte tornava os antepassados “deuses
pessoais” da família, que não podiam ser compartilhados com estranhos. Além disso, os túmulos –
moradas eternas desses deuses –, assim como o próprio lar, não poderiam ser removidos, por isso,
a propriedade era imprescindível. Apoiado nesses fatores, foram encontradas as bases das socieda-
des antigas: religião, família e propriedade. Além disso, o poder era centralizado no homem e era
transmitido de pai para filho. Esse direito abrangia três categorias: pai de família, chefe religioso e
proprietário ou juiz. Em suma, o poder era absoluto ao âmbito familiar.
A primeira instituição da cidade antiga, o casamento, se deu em função da religião. E com
base nessa afirmação, verificamos uma rápida síntese acerca do desenvolvimento das sociedades
antigas: a religião se desenvolveu junto à sociedade. Lentamente, as famílias se agruparam em
frátrias6, que posteriormente originaram tribos, das quais finalmente surgiram as primeiras

4 Podemos recordar o sentido de positivismo no item 1.1 “A natureza política do ser humano: o que é política?”.
5 Essa orientação é própria do positivismo científico. Vemos essa manifestação no âmbito da ciência jurídica cerca
de 70 anos depois, com o jusfilósofo austríaco Hans Kelsen (1881-1973). Sua obra mais importante, Teoria pura do Direi-
to (1934), afirma os mesmos ideais no âmbito da pesquisa jurídica.
6 Divisão das tribos atenienses.
26 Ciência Política e Teoria do Estado

cidades. Por isso, o surgimento das primeiras cidades ficou marcado por um governo comum, sob
o qual coexistia uma infinidade de pequenos governos.
Desse modo, percebemos que Coulanges desloca seu referencial de análise e não reconhece
a luta de classes, como fazia seu contemporâneo Marx. Ainda que o historiador tenha relatado al-
gumas revoluções antigas, ele não confere a elas um papel central para compreender a evolução das
sociedades. Um detalhe importante: ao descrever as revoluções, Coulanges não percebeu a tensão
entre as forças produtivas e as relações de produção como motivação de conflitos.
Uma crítica a seu trabalho se dá pelo fato de que ele naturalizou relações de opressão entre
as classes sociais nas distintas épocas que analisou. Essa mesma naturalização pode ser observada
também nas obras de Aristóteles, inclusive na própria Política. Para Aristóteles, a relação entre o
senhor e o escravo era natural e até benéfica, pois quando aquele que nasceu para obedecer se en-
contra com aquele que nasceu para mandar, a natureza de ambos se completa. Da mesma maneira,
Aristóteles considerava a mulher incapaz e o menino incompleto. O menino um dia se tornará
homem e será completo e capaz, mas a mulher sempre será incapaz. O pensamento aristotélico,
presente naquele tempo, não era um consenso: sofistas e filósofos, inclusive Platão e Sócrates, di-
vergiam em diversos pontos.
Em Marx verificamos as bases de uma concepção diferente, que evidenciava a importân-
cia do trabalho e da propriedade sobre os meios de produção na transformação das sociedades.
O autor considerava natural a formação das sociedades, mas isso não significa que ele via do mes-
mo modo a relação de dominação entre classes sociais. O fato é que, com base em sua perspectiva,
surgiu um modo totalmente novo de dividir os períodos da história7, no entanto, o próprio Marx
se deu conta de que não era tão simples caracterizar essa evolução social. Assim, ele descreveu
os possíveis modos de produção, mas não estabeleceu uma ordem entre eles, pois acreditava que
não era possível estabelecê-los e aplicá-los de maneira homogênea. É importante destacar que por
meio dessas reflexões surgiram importantes abordagens que foram além da contribuição da histó-
ria científica de matriz positivista.
Um dos conceitos importantes que decorrerão dessa percepção é o conceito de elite.
As primeiras teorias sobre as elites são motivadas por uma oposição à obra de Marx e são desen-
volvidas por Vilfredo Pareto (1848-1923) e Gaetano Mosca. Mosca defendeu a ideia de que todas as
sociedades tinham duas classes de pessoas: a governante e a governada. Assim, nos deparamos com
uma argumentação que apontava para o estabelecimento das elites nas relações de poder. Mosca
também apresentou a ideia de uma classe dirigente, que na obra de outros autores assumiu sentidos
diferentes, mas que para ele se definia como minoria organizada ou classe política, que conseguia
exercer domínio sobre a maioria desorganizada (BOTTOMORE, 2001, p. 122-123).
Desse modo, percebemos que a questão do poder está presente em todas as sociedades e sua
compreensão se dá de acordo com a abordagem proposta pelos teóricos. Ao poder, são atribuídos

7 Em um primeiro momento, sob influência da ideia de modos de subsistência, própria do século XVIII (caça, pasto-
reio, agricultura e comércio), Marx e Engels periodizaram a história em quatro épocas: a primeira seria comunal ou tribal
primitiva, chamada de sociedade asiática (ou modo de produção asiático); a segunda, clássica ou antiga, baseada na
escravidão; a terceira, consistia no feudalismo, e a quarta, ao capitalismo.
Sociedade e política 27

diferentes sentidos e graus de importância, mas nenhum teórico ousou ou ousa dizer que essa
questão é irrelevante.
Atualmente, temos um espaço institucional em que o poder político se manifesta, que con-
siste no Estado e suas instituições. Mas também é muito presente a manifestação do poder político
por meio dos grupos sociais, os quais designamos por movimentos sociais. Esses grupos podem – e
de fato o fazem recorrentemente – aglutinar segmentos ou classes sociais. No próximo capítulo nos
concentraremos no estudo acerca do poder político nas instituições (Estado e governo), mas antes
vamos nos ocupar de um breve estudo sobre movimentos sociais e a sociedade civil.

2.3 Sociedade civil e movimentos sociais


O conceito de sociedade civil tem diversos sentidos, mas o principal na linguagem política
atual designa um contraste entre sociedade civil e Estado. Em razão desse contraste, os cientistas
políticos e teóricos em geral, a exemplo de Bobbio (2007, p. 33-37), afirmam que para compreen-
dermos do que se trata esse conceito, devemos delimitar o que é Estado. É que a sociedade civil se
manifesta na esfera das relações não reguladas pelo Estado. Aliás, essa é uma de suas mais comuns
definições: conjunto das relações que não são reguladas pelo Estado.
Um elemento que caracteriza o Estado e o diferencia da sociedade é o poder coativo. Esse
poder permite ao Estado aplicar de modo legítimo a força da lei para regular as relações interindi-
viduais que não conseguem se autorregular sozinhas (as relações econômicas, por exemplo, conse-
guem). Mesmo com essa definição vaga (que a considera como “o que não é estatal”), decorrem di-
versas interpretações. Alguns a identificam com um sentido “pré-estatal” (presente na ideia de que
antes do Estado há diversas formas de organização dos indivíduos que são reguladas por ele, mas
nunca são suprimidas e têm seu desenvolvimento impedido), há também o sentido de antiestatal
(que aglutina espaços onde se manifestam possibilidades de transformação das relações sociais de
dominação e de lutas por emancipação – os contrapoderes) ou ainda o sentido de pós-estatal (que
pode representar o ideal de uma sociedade sem Estado).
Na sociedade civil, podem ser organizados movimentos de reivindicação de direitos, de rei-
vindicação e pressão política, entre outros, os quais temos denominado como movimentos sociais.
Atualmente, no Brasil e fora dele, uma das mais importantes referências teóricas para compreen-
dermos no que esses movimentos consistem é a obra da socióloga e cientista política Maria da
Glória Gohn (2004). A autora publicou a Teoria dos movimentos sociais: paradigmas8 clássicos e
contemporâneos, em que, ciente da escassez de pesquisas no Brasil a respeito do tema, assume a
responsabilidade de apresentar uma exposição sobre as principais teorias contemporâneas. Dessa

8 Gohn (2004, p. 13) propõe um sentido para o conceito paradigma. Para a autora, um paradigma é um conjunto ex-
plicativo que reúne teorias, conceitos e ideias que permitem compreender objetos de estudos. Então, um determinado
paradigma permite interpretar determinados fenômenos que percebemos na realidade social. No estudo dos movimentos
sociais, especificamente não existe um só conceito, mas vários que são distintos justamente porque são interpretados
com base em “paradigmas” diferentes. Por isso, a autora divide seu estudo em três paradigmas. Ainda é importante des-
tacar que o sentido de paradigma sugerido não é o mesmo apresentado na teoria de Thomas Kuhn (1922-1996), cientista
responsável pela difusão desse conceito no âmbito das ciências ocidentais. Na verdade, a definição de Kuhn é a mais
influente. Em síntese, o autor afirma: “Considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que,
durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”
(KUHN, 1998, p. 13).
28 Ciência Política e Teoria do Estado

forma, o estudo apresentado por ela se divide em três partes: o paradigma norte-americano; os pa-
radigmas europeus; e o paradigma latino-americano. Esses paradigmas são divididos desse modo
porque reúnem teorias com realidades específicas e diferentes entre si. Vejamos resumidamente
como a autora descreve cada um.
O paradigma norte-americano começou a se desenvolver nos anos 1980, embasado no diá-
logo com o paradigma dos novos movimentos sociais (um dos paradigmas europeus que veremos
em seguida). Esse diálogo impactou ambos, tanto que, inclusive, modificou a abordagem europeia.
Como resultado desse diálogo, essa corrente teórica modificou-se e se tornou predominante
na América. Antes – nos anos 1970 e 1980 –, buscava-se compreender o processo político emba-
sado em aspectos econômicos, posteriormente, o paradigma norte-americano concentrou-se no
processo político para compreender as bases culturais que o sustentam.
As principais teorias desenvolvidas nesse âmbito são sobre ações coletivas (primeira etapa
desse paradigma, predominante até os anos 1960, que investigava a ação social e o comportamento
coletivo, tendo na psicologia um importante aporte científico); ações coletivas e movimentos so-
ciais (influenciados por transformações políticas ocorridas nos Estados Unidos na década de 1960,
como as lutas feministas e a guerra do Vietnã; nessa vertente, destacamos a Teoria de Mobilização
de Recursos9), e por fim, movimentos sociais na era da globalização e a mobilização política (ini-
ciados nos anos 1970, com análise cultural do processo político e críticas à Teoria da Mobilização
dos Recursos, devido ao seu enfoque exclusivamente econômico).
Na tradição europeia existem dois paradigmas diferentes para entender os movimentos so-
ciais, os paradigmas europeus. Um deles é a abordagem marxista e o outro é a abordagem dos
novos movimentos sociais.
A abordagem marxista concentra-se no processo histórico e na luta de classes. Desse modo,
as contradições entre os interesses das classes, assim como a questão do trabalho, são fundamentais
para dimensionar e compreender os movimentos sociais. As lutas dos movimentos sociais buscam,
principalmente, transformar a realidade e eliminar formas de opressão política, econômica e cul-
tural. Quando as classes sociais oprimidas conseguem romper com a ordem dominante, ocorre o
que chamamos de revolução. No entanto, Gohn (2004) faz um alerta: é errado interpretá-lo apenas
como a análise do movimento operário, uma vez que essa abordagem permitiu também a análise
de movimentos de origem não operária.
Os novos movimentos sociais explicam a realidade por meio de um recorte mais específico,
pelo próprio cotidiano. Esse paradigma não atribui tanta importância ao processo histórico, mas
dá ênfase a temas como cultura, identidade, subjetividade e interação política. Umas das principais
divergências entre os novos movimentos sociais e o paradigma marxista é relacionada às con-
tradições do capitalismo na definição dos sujeitos históricos. Essa questão – fundamental para o
marxismo – é desconsiderada pela segunda abordagem, que se ocupa de um sujeito coletivo difuso,
que luta contra a discriminação no acesso aos bens da modernidade. A política também ganha

9 A Teoria de Mobilização de Recursos deixou de enfocar nos comportamentos coletivos – inclusive rejeitando a psi-
cologia – para compreender os movimentos sociais como organizações e essas, como tais, passaram a ser vistas pela
ótica da “burocracia de uma instituição”.
Sociedade e política 29

destaque nesse segundo paradigma (mais do que no paradigma marxista). Nessa abordagem, ela é
redefinida e considerada uma dimensão na vida social que abrange todas as práticas percebidas em
sociedade. Aqui, o processo de luta política cria uma identidade coletiva, isto é, os grupos a cons-
tituem, mas não criam as estruturas sociais (ou as relações de produção que, por exemplo, criam
as identidades coletivas do proletariado e da burguesia, como a abordagem marxista poderia nos
levar a identificar).
Já no paradigma latino-americano existe um elemento próprio do continente, que expe-
rimentou ao longo de sua história diversas formas de dominação e exploração10. Esse elemento
encontra-se nas lutas por emancipação ou libertação. Nesse sentido, destacamos as lutas dos indí-
genas, dos negros e das mulheres, além das lutas por moradia, por terras, entre outras.
Essas mobilizações foram interpretadas com base nos paradigmas europeus e, por isso, com-
preendidas de maneiras diferentes. Por exemplo, quando interpretadas pelo paradigma marxista,
as contradições e as lutas sociais são conceitos-chaves para descrevê-las. Por outro lado, quando
embasadas na abordagem dos novos movimentos sociais, a autonomia e identidade recebem maior
destaque. Naturalmente, nos estudos desenvolvidos no continente, essas abordagens também fo-
ram adaptadas e novos instrumentos de análise surgiram, pelo que Gohn (2004) nos apresenta
como o paradigma latino-americano dos movimentos sociais. De acordo com a autora, o que di-
ferencia esse paradigma dos demais não é o modelo teórico propriamente dito, mas sim as lutas
concretas desses povos.
Nos anos 1990, dizia-se que na América aconteciam muitas mobilizações populares, po-
rém havia pouca teorização sobre elas. Os estudos que surgiram inicialmente nesse período –
em especial no Brasil, México, Argentina e Chile – eram concentrados em pós-graduações,
porém sem muita apropriação em outros países do continente, embora tenham se intensifica-
do na década de 1960.
Se por um lado esse foi um momento histórico para o crescimento econômico dos países,
por outro foi também um período de defasagem salarial dos trabalhadores e dura repressão polí-
tica dos governos militares11. Esses elementos, associados a outros de repressão das lutas sociais,
impulsionaram movimentos de resistência e de reivindicação pela democracia.

Um detalhe importante: na Europa e nos Estados Unidos ainda


repercutiam as mobilizações dos movimentos sociais. Já no Brasil,
as organizações coletivas de lutas políticas se concretizaram pelos
movimentos populares.

10 O sociólogo peruano Aníbal Quijano (2010, p. 125) explica a diferença entre dominação e exploração: ambas estão
relacionadas, mas nem toda dominação implica também em exploração. A exploração, por outro lado, não é possível sem
a dominação (2010, p. 125).
11 Veremos essa questão detalhadamente no item 10.1 “Regimes totalitários e a negação da democracia” do último
capítulo deste livro.
30 Ciência Política e Teoria do Estado

Agora que mencionamos os movimentos populares, é oportuno verificarmos como eles


se diferenciam dos movimentos sociais. Uma distinção importante é a identificação dos movi-
mentos sociais enquanto grupos que compartilham interesses específicos no âmbito da socie-
dade civil. Em função desses interesses, questionam-se as estruturas de dominação e busca-se
sua transformação. Os movimentos sociais podem representar tanto os interesses do povo
quanto de setores dominantes.
Os movimentos populares são assim denominados por representarem especificamente as
lutas do povo. Sua principal diferença se dá pelo fato de os movimentos sociais poderem repre-
sentar tanto interesses do povo quanto representar interesses de elites dominantes. Desse modo,
quando os movimentos sociais representam lutas do povo, eles são denominados movimentos po-
pulares (CAMACHO, 1987, p. 216-219). Pazello (2010, p. 390) explica que os movimentos popu-
lares defendem uma “proposta totalizadora de transformação social”. Já os movimentos sociais
concentram pautas específicas contra opressões específicas, sem aspirar a transformação completa
da sociedade.
Podemos citar como exemplos de movimentos sociais – em um contexto em que nenhum
deles percebe ou discute a relação entre a injustiças sociais com as suas condições e dificulda-
des específicas – movimentos estudantis, movimentos de greves, associações de moradores etc.
Retomaremos algumas dessas ideias adiante12.

2.4 Sociedade, instituições políticas e controle social


No curso da história, as sociedades ocidentais consolidaram uma grande instituição em que
se concentra o poder político com força coativa: o Estado. No próximo capítulo observaremos mais
detidamente essa grande instituição. Antes disso, entretanto, devemos desenvolver uma síntese do
que são instituições e um breve panorama acerca de como a sociedade civil exerce forças de contro-
le sobre o poder estatal. Claro, o Estado controla a sociedade com o uso legítimo de leis regulatórias
que são obedecidas, mas a sociedade também tem meios de exercer certo controle sobre as institui-
ções públicas, fato que designamos como controle social.
A respeito das instituições públicas, nos apoiaremos na teoria do filósofo argentino Enrique
Dussel (2007). Ele parte da explicação elementar de que nós desenvolvemos inúmeras atividades
em inúmeras esferas de nossa existência, como atividades familiares, esportivas, artísticas, políticas
etc. Essas esferas podem ser denominadas campos e em todos os campos exercemos nossa inter-
subjetividade. A política, por excelência, é uma atividade própria do campo público. Relacionado à
política está o poder, que precisa ter seu exercício confiado a instituições para se concretizar. Para
o autor, o conceito de instituições remete a figuras, autoridades e espaços em que o poder político é
exercido, ou seja, as representações do poder.

12 A retomada de alguns aspectos sobre os movimentos sociais será feita no item 7.3 “Cidadania e participação políti-
ca” do Capítulo 7 e no tópico 10.2 “Grupos sociais de pressão política e o Estado” de nosso último capítulo.
Sociedade e política 31

Desse modo, podemos dizer que o Estado é uma instituição política. Tribunais, juízes, fun-
cionários públicos, repartições públicas etc. são representações e criações da política por meio
das quais o poder é exercido. Eventualmente, essas instituições entram em crise e se corrompem,
fato que demanda modificações. Retomaremos algumas dessas ideias em outros momentos, por
enquanto, sintetizamos que as instituições políticas abrangem suas representações tanto no âmbito
da micropolítica quanto na macropolítica.
Na micropolítica reúnem-se as lideranças políticas, os partidos políticos e os grupos de pres-
são . O que une todos esses elementos é o escopo ou propósito da micropolítica, que consiste em
13

estudar a questão da liderança e associações para atuação política. Na macropolítica, reunimos as


organizações políticas dominantes e o Estado. No curso da história, os estudos da macropolítica
analisaram poderes de âmbito individual, como o caso de senhores feudais, príncipes, imperadores
etc. A macropolítica seguiu os trabalhos de investigação das lideranças iniciados pela micropolítica
(ANDRADA, 1998, p. 33, 47).
Atualmente, entendemos que o poder de um único indivíduo não pode ter legitimidade
política ou jurídica. Além disso, o campo público não pode ser tratado como privado. Por isso,
é possível exercer formas de controle social sobre as instituições públicas, como a fiscalização ou
até mesmo a discussão e participação nas deliberações estatais por meio de conselhos de políticas
públicas. Esses últimos são órgãos colegiados que contam com a participação de representantes
de distintos setores da sociedade civil, representantes do governo, profissionais e segmentos do
empresariado. Esses podem ser espaços produtivos de debate e participação democrática, mas
também podem ser espaços dominados por elites. Retomaremos esse assunto no Capítulo 7, ao
discutirmos sobre as formas de participação política.

Considerações finais
Com essas reflexões, concluímos o primeiro grande bloco de conteúdos de nosso cur-
so. No primeiro e segundo capítulos, discutimos conceitos, ideias e métodos nos quais nos
apoiaremos para aprofundar nossos conhecimentos no âmbito da ciência da teoria política e
da Teoria do Estado.
A percepção de que a sociedade pode ser interpretada e descrita de diversas maneiras é mui-
to útil para compreendermos como foram concebidas as ideias predominantes acerca do que é o
Estado, o poder político, qual seu propósito ou finalidade. Reconhecemos que possa haver relativa
dificuldade acerca dos conteúdos que trabalhamos até aqui, mas garantimos que eles serão neces-
sários para o amadurecimento de nossas reflexões. Por outro lado, os temas seguintes podem ser
tratados de maneira mais objetiva e simples, uma vez que os conceitos básicos foram elucidados e
poderão ser consultados sempre que surgirem dúvidas.

13 Essas categorias serão estudadas no Capítulo 8 “Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos” e no Capítulo 10
“Crises das instituições políticas modernas”.
32 Ciência Política e Teoria do Estado

Ampliando seus conhecimentos


Maria da Glória Gohn, em sua obra Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e
contemporâneos, apresenta uma importante reflexão que não resume apenas o que são esses movi-
mentos, bem como evidencia sua importância e nosso próprio compromisso político diante deles.

Teoria dos movimentos sociais


(GOHN, 2004, p. 19-20)

[...]
Os movimentos sociais são fenômenos históricos decorrentes de lutas sociais. Colocam atores
específicos sobre as luzes da ribalta em períodos determinados. Com as mudanças estruturais
e conjunturais da sociedade civil e política, eles se transformam. Como numa galáxia espacial,
são estrelas que se transformam e acendem enquanto outras estão se apagando, depois de
brilhar por muito tempo. São objetos de estudo permanente. Enquanto a humanidade não
resolver seus problemas básicos de desigualdades sociais, opressão e exclusão, haverá lutas,
haverá movimentos. E deverá haver teorias para explicá-los: esta é a nossa principal tarefa e
responsabilidade, como intelectuais e cidadãos engajados na luta e por transformações sociais
em direção a uma sociedade mais justa e livre.
[...]

Dicas de estudo
• Para maior detalhamento acerca das importantes temáticas que aqui tratamos e os impac-
tos de determinadas teorias sobre elas, indicamos o Dicionário do pensamento marxista,
de Tom Bottomore (2001). Em especial, faça a leitura dos verbetes sociedade, política,
modo de produção, classe e sociedade civil.
• A cidade antiga (1864), obra-prima do historiador francês Fustel de Coulanges, é um
livro extenso, que dependendo da edição pode ultrapassar 600 páginas. Entretanto, essa é
também uma obra de leitura fácil, fluída e interessante. Ao mesmo tempo em que há um
inestimável valor científico, A cidade antiga também é considerada uma obra literária,
devido às ricas e engenhosas narrativas que nos fazem sentir dentro da própria história.

Atividades
1. De que modo podemos diferenciar as sociedades humanas das outras sociedades?

2. Quais são as diferenças entre movimentos sociais e movimentos populares?

3. Descreva o poder político com base nas perspectivas descritiva/conservadora e crítica e


elenque suas principais características.
Sociedade e política 33

Referências
ANDRADA, B. Ciência política: ciência do poder. São Paulo: LTr Editora, 1998.

BASTOS, C. R. Curso de teoria do estado e ciência política. 5. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002.

BOBBIO, N. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2007.

BOTTOMORE, T. B. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CAMACHO, D. Movimentos sociais: algumas discussões conceituais. In: SCHERER-WARREN, I.;


KRISCHKE, P. J. Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo:
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COULANGES, F. A Cidade Antiga. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

DUSSEL, E. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

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GOHN, M. G. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 4. ed. São Paulo:
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KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. (Coleção Debates).

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PAZELLO, R. P. Movimentos populares. Captura Críptica: direito política, atualidade. Florianópolis, v. 1,


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Humanas, Florianópolis, v. 45, n. 1, abr. 2011. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/revista-
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SANTOS, T. Conceito de classes sociais. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.


3
O Estado no pensamento político ocidental

Até esse momento, já avançamos bastante em nossos conhecimentos políticos: refletimos


sobre a natureza política do ser humano, que nos exige o convívio social, a participação de espaços
onde nos comunicamos uns com os outros e desenvolvemos nossas relações intersubjetivas.
No segundo capítulo, avançamos na compreensão a respeito do espaço em que nós, seres
humanos, satisfazemos nossa natureza política: a sociedade. Mas também percebemos que a socie-
dade não é homogênea, ela é composta por distintos grupos que podem ser denominados classes
sociais e podem estabelecer relações de conflito e disputas motivadas por interesses que se opõem.
Esses conflitos tornam a sociedade mais complexa e impõem a necessidade de uma instituição
que os regule, mantenha a ordem social e também a união da coletividade das pessoas que a com-
põem. Nós chamamos essa instituição de Estado, com “E” maiúsculo1. Mas descrevê-lo não é tarefa
simples, pois isso pode ser feito de muitas maneiras, há autores que sustentam visões positivas e
também negativas a respeito do Estado.
Desse modo, neste capítulo vamos compreender algumas das principais teorias a respeito do
Estado de um modo mais amplo, pois no próximo capítulo analisaremos a história do nosso Estado
(ocidental-moderno).

3.1 Definições e classificações do Estado


Um importante jurista e filósofo político de nosso tempo, o italiano Norberto Bobbio (2007,
p. 65-66), explica que a palavra Estado se tornou popular devido a uma obra publicada no início do
século XVI, de autoria também de um italiano, Nicolau Maquiavel. O livro, chamado O Príncipe,
publicado em 1532, já nas suas linhas iniciais mencionou essa palavra, que como o livro se tornou
célebre. No entanto, Bobbio alerta que não foi essa a primeira vez que o termo foi empregado. Por
muitos séculos, a humanidade refletiu a respeito de uma organização máxima para os indivíduos
no âmbito da sociedade em um determinado território e que fosse dotada de poder de comando.
Do mesmo modo que Bobbio, Dallari (2011, p. 59) reputa a Maquiavel a utilização emble-
mática do termo Estado e afirma que o sentido específico do termo – que atribuímos até hoje – foi
empregado pela primeira vez na obra O Príncipe. Para Dallari, há duas questões fundamentais que
devem ser respondidas para que possamos compreender a origem da instituição Estado: em que
época ele teria surgido e por quais motivos. Mas, como já vimos, há diversas maneiras de respon-
der a essas questões, por isso, precisamos ao menos conhecer as principais teorias que definem e
discutem sua origem.

1 Por isso é importante lembrarmos que apesar de não haver consenso, em geral, estado, com “e” minúsculo designa
condição, situação ou “estado” das coisas, como “estado líquido”, “estado gasoso” etc. Nesse sentido, adotamos Estado
(com “E” maiúsculo), para evitarmos ambiguidades quanto a interpretações.
36 Ciência Política e Teoria do Estado

Começamos por analisar as distintas definições de Estado. Bonavides (2010) conta em seu
curso Ciência Política que explicar o que é Estado é tão difícil que, no século XIX, um teórico
chamado Frédéric Bastiat (1801-1850) oferecia 50 mil francos – o que devia ser uma boa quantia –
para quem conseguisse responder de modo satisfatório a essa questão. Georg Hegel (1170-1831),
um dos filósofos mais importantes da história do Ocidente, afirmou que seria mais fácil conhecer
a própria natureza e seus mistérios do que decifrar a natureza humana e seus problemas. E deve-
mos levar em conta que quando Hegel viveu entre os séculos XVIII e XIX a ciência não tinha uma
ínfima parcela dos recursos que temos hoje, por isso, compreender a natureza, naquele tempo, era
realmente muito difícil. Ainda podemos citar Hans Kelsen (1881-1973), um dos juristas mais in-
fluentes na trajetória do Direito ocidental. Para ele, todas as descrições a respeito do que é o Estado
não passavam de juízos de valor.
Bonavides prossegue explicando que ao longo da história o Estado sempre fez parte das
experiências sociais, ainda que com denominações diferentes. Ele foi a polis dos gregos; a civitas e
res publica dos romanos e ainda em Roma foi o Imperium e o Regnum para definir o domínio e o
poder, atributos que passaram a caracterizar o Estado, mas que abrangiam também o sentimento
de vínculo comunitário. Tempos depois, já na Idade Média, surgiu o termo Laender (países), que
traduziu a ideia de Estado, mas o especificou à ideia de território até chegar ao sentido moderno,
que conforme já vimos, ficou consagrado por Maquiavel. Ele afirmava que “todos os Estados, todos
os domínios que tiveram e têm império sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principa-
dos” (MAQUIAVEL, 1998, p. 37). Diante dessa pluralidade, vejamos algumas concepções discuti-
das por Bonavides (2010).

3.1.1 Acepção filosófica


Hegel entendia que havia uma contradição entre família e sociedade. Essa contradição só
poderia ser harmonizada por algo absoluto, algo como o Estado, que entendia como dotado de
valor absoluto. Por isso, ele chegou a descrevê-lo como “manifestação visível da divindade”, ou
“realidade em ato da ideia moral”. Em Hegel, ainda encontramos a afirmação de que o indivíduo
conquistava sua liberdade quando se ligava ao Estado. Ser membro de um Estado era o mais ele-
vado dever de qualquer pessoa, e nesse sentido, o Estado era o fim absoluto. Todavia, podemos
confundir Estado com sociedade civil ao entendermos que sua finalidade é a segurança, a proteção
das liberdades e das propriedades. Nesse equívoco, podemos compreender que o fim supremo não
é mais o Estado, mas sim os interesses dos indivíduos. Se fosse assim, seria facultativo participar de
um Estado (HEGEL, 2000, p. 216-217).

3.1.2 Acepção jurídica


Dentro dessa acepção, encontramos algumas variações, em especial no nosso tempo pre-
sente. Bonavides elenca as principais e inicia por Immanuel Kant (1724-1804). Bonavides (2010,
p. 66) explica que Kant entendia o Estado como “a reunião de uma multidão de homens vivendo
sob as leis do Direito”. Em sua definição, o filósofo privilegiou apenas o aspecto jurídico e reduziu
a complexidade desse tema. Por isso, sua definição foi bastante criticada, inclusive por Giorgio Del
Vecchio (1878-1970), cuja obra foi marcada pela influência do próprio Kant.
O Estado no pensamento político ocidental 37

Del Vecchio criticou a definição kantiana por considerá-la inexata, uma vez que poderíamos
nos referir tanto a um município quanto a uma penitenciária. Em ambas situações, há uma multi-
dão de pessoas e tanto em uma cidade quanto em uma penitenciária existem leis. Não é verdade,
afinal, que em incontáveis espaços sociais podemos encontrar multidões reunidas sob diferentes
motivações? E que em todos os espaços sociais nós vivemos obrigados pelas leis do Direito? Esses
dois elementos (a multidão e as leis) seriam suficientes então para constituir um Estado? Ocorre
que o próprio Del Vecchio, que formulou uma crítica tão mordaz, ao tentar formular a sua defi-
nição enfrentou dificuldades. Bonavides (2010, p. 67) recorda que Del Vecchio dizia que o Estado
é “o sujeito da ordem jurídica na qual se realiza a comunidade de vida de um povo” ou “a expres-
são potestativa2 da sociedade”. Se por um lado o filósofo avançou por diferenciar a sociedade do
Estado, por outro ele também formulou um conceito incompleto, uma vez que não englobou ou-
tros elementos que integram a realidade estatal.
Ainda assim, não podemos desprezar o conceito de Del Vecchio por ser incompleto, aliás,
essa é uma questão importante a aprendermos no que se refere ao conhecimento científico.
Nenhuma ideia ou teoria pode ser desprezada, porque mesmo quando fracassam elas nos levam
a refletir e descobrir novas possibilidades. Desse modo, a contribuição de Del Vecchio foi impor-
tante porque percebeu que o Estado é um vínculo jurídico/político enquanto a sociedade tem uma
pluralidade de vínculos, isto é, “o Estado é somente um dos laços dentre os infinitos laços que a
sociedade congrega” (BONAVIDES, 2010, p. 67). E, de fato, há sociedades que abrangem mais
pessoas do que o Estado, como religiões ou nacionalidades. No entanto, nenhuma sociedade tem
laços tão sólidos e tão significativos como o Estado. Em suma: com base na concepção do filósofo,
podemos compreender a sociedade como gênero e o Estado como uma das espécies desse gênero.
Avançando para as últimas acepções jurídicas apresentadas por Bonavides, o cientista po-
lítico francês Georges Burdeau (1905-1988) sustentou que “o Estado se forma quando o poder se
assenta numa instituição e não num homem. Chega-se a esse resultado mediante uma operação
jurídica que eu chamo de institucionalização do poder”. Por fim, Jean-Yves Calvez (1927-2010)
apresentou importantes contribuições teóricas, inclusive para a filosofia e para a economia. Para o
autor, “o Estado é a generalização da sujeição do poder ao Direito: por uma certa despersonaliza-
ção” (2010, p. 68).
Bonavides destaca o que há em comum entre as duas últimas definições: para Burdeau e
Calvez, o Estado precisa ser reconhecido como independente do governante. Isto é, o poder que
reveste o Estado não deve derivar da vontade ou da consciência daquele que exerce o poder, seja
um presidente, um governador, um juiz ou senador. O Estado é independente dessas vontades, por
isso, podemos dizer que o seu poder está na instituição de modo impessoal.

3.1.3 Acepção sociológica


Também no campo das definições sociológicas, Bonavides construiu um grande repertório,
com importantes concepções teóricas formuladas sobre o Estado. O autor menciona o historiador

2 Essa expressão está relacionada ao poder, à prevalência de uma vontade sobre as demais. No caso do Estado, ele
exerce um poder sobre a sociedade, ao qual devemos obediência independentemente de nossa vontade.
38 Ciência Política e Teoria do Estado

e filósofo alemão Oswald Spengler (1880-1936), que relacionou história e Estado. Spengler disse
que no Estado, a história encontra-se em repouso, enquanto na história, o Estado está em marcha3.
Temos também a definição do sociólogo Franz Oppenheimer (1864-1943) – notadamen-
te influenciada pelo pensamento marxista – que descreveu o Estado como a “instituição social,
que um grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com o único fim de organizar o domínio
do primeiro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões intestinas e agressões estrangeiras”
(BONAVIDES, 2010, p. 68). Para ele, a definição de Estado como instrumento de dominação social
ou a imposição de um grupo sobre o outro (organização da violência) vale até mesmo para des-
crever o moderno Estado constitucional4. Léon Duguit (1859-1928) apresentou uma clara e longa
definição de Estado que consistiu na distinção entre fortes e fracos. Os fortes exercem um mono-
pólio da força, um monopólio concentrado e organizado. Desse modo, para o autor, o Estado pode
ser considerado toda sociedade em que há distinção entre governantes e governados. Em sentido
mais restrito, ele deve ser considerado como um grupo humano estabelecido em um determinado
território em que a vontade dos mais fortes se impõe sobre os demais.
Rudolf von Iehring (1818-1892) chamou atenção para o aspecto coercitivo do Estado e o
definiu como a organização social em que há poder de coerção. Por conseguinte, ele definiu o
Direito como a disciplina da coação. Com isso, relembramos Marx e Engels, nossos conhecidos do
capítulo anterior. Para eles, o Estado é um fenômeno histórico e passageiro, que surgiu devido à
luta de classes, que se iniciou quando a sociedade passou da propriedade coletiva para a apropria-
ção individual dos meios de produção. Com a propriedade privada começou a exploração de uma
classe sobre a outra e consequentemente a luta entre elas. Com base na percepção desses conflitos,
Bonavides (2010, p. 69) explica que Marx definiu o poder político como “o poder organizado de
uma classe para a opressão da outra”. Além disso, a teoria marxista acredita também que como o
Estado nem sempre existiu, em algum momento deixará de existir. Marx definiu o poder político
que sustenta esse Estado como o “poder organizado de uma classe para opressão da outra”.
Por fim, o último teórico citado por Bonavides, Max Weber (1864-1920), defendia que há so-
mente um instrumento – a força – capaz de definir sociologicamente o Estado e as suas formações
políticas. Além disso, ele explica que se caso a sociedade se agrupasse e não empregasse nenhum
tipo de poder coercitivo (nenhum tipo de força), o conceito de Estado não teria sentido e nem lugar
nessa sociedade. Ele bem destacou que a força não é o único instrumento que o Estado emprega
para exercer suas funções, é um instrumento que lhe é específico. Mais que isso, na modernidade o
Estado racionalizou a violência como algo normal e os grupos sociais a tornaram legítima.
Com base nesses elementos, Weber formulou um conceito próprio, que é um dos mais im-
portantes no âmbito da sociologia política: “[o Estado é] aquela comunidade humana que, dentro

3 De fato, a instituição do Estado busca manter uma ordem, fato que pressupõe certa resistência às mudanças, ou
seja, ele tenta manter-se em um estado de repouso. Já no que se refere à segunda afirmação, podemos observar o Es-
tado em constantes transformações, ou seja, ele segue marchando no curso da História.
4 Esse tipo é considerado uma das formas mais evoluídas de Estado, no sentido de que ele nasce da tentativa de
superar contradições anteriores, como a ineficácia dos direitos constitucionalmente reconhecidos, a negação dos in-
teresses e direitos populares (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2013). Ou seja: claramente, uma das motivações
do Estado constitucional era superar a contradição de um Estado que efetivamente atendia aos interesses de grupos
sociais e não da sociedade como um todo.
O Estado no pensamento político ocidental 39

de um determinado território, reivindica para si, de maneira bem-sucedida, o monopólio da vio-


lência física legítima” (BONAVIDES, 2010, p. 70).

3.1.4 Acepção histórica


O Estado é tratado, nessa concepção, como conceito e forma de organização política que
evolui constantemente no curso da história. De acordo com essa visão, com o passar do tempo o
Estado se transforma. Essas transformações ocorreram, por exemplo, quando a sociedade deixou
o modelo de império e se estruturou em feudos da Idade Média, quando a estrutura feudal foi
“abandonada” e assumiu, já na modernidade, a forma de Estado como conhecemos. Alguns teóri-
cos defendiam que o Estado deveria ser compreendido como produto da história (GAMA, 2005,
p. 57). Nesse sentido, vamos nos debruçar sobre essa acepção nos próximos itens.
Vejamos agora um resumo dos assuntos percorridos até aqui:
Quadro 1 – Quadro sinóptico das principais definições de Estado

Acepção Autor Definição


“Manifestação visível da divindade” ou “realidade em ato da ideia moral”. Ente abso-
Filosófica Hegel
luto capaz de harmonizar a contradição entre a família e a sociedade.

Kant “Reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito”.

“Sujeito da ordem jurídica na qual se realiza a comunidade de vida de um povo” ou


Del Vecchio
“a expressão potestativa da sociedade”.

Jurídica “O Estado se forma quando o poder se assenta numa instituição e não num homem.
Burdeau Chega-se a esse resultado mediante uma operação jurídica que eu chamo de insti-
tucionalização do Poder”.

Jean-Yves “O Estado é a generalização da sujeição do poder ao direito: por uma certa desper-
Calvez sonalização”.

Spengler “Surpreende no Estado a História em repouso e na História o Estado em marcha”.

“Instituição social, que um grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com o único
Franz
fim de organizar o domínio do primeiro sobre o segundo e resguardar-se contra
Oppenheimer
rebeliões intestinas e agressões estrangeiras”.

Em sentido geral: qualquer sociedade humana com distinção entre governantes e


Léon Duguit governados. Em sentido estrito: “grupo humano fixado em determinado território,
onde os mais fortes impõem aos mais fracos sua vontade”.
Sociológica
Rudolf von “A organização social do poder de coerção” ou “a organização da coação social”
Jehring ou ainda “a sociedade como titular de um poder coercitivo regulado e disciplinado”.

Marx “O poder organizado de uma classe para opressão de outra”.

“Uma organização da respectiva classe exploradora para manutenção de suas con-


Engels
dições externas de produção, a saber, para a opressão das classes exploradas”.

“Comunidade humana que, dentro de um determinado território, reivindica para si,


Max Weber
de maneira bem-sucedida, o monopólio da violência física legítima”.

Reconhece no Estado, de acordo com o momento e o local, inúmeras formas distin-


Histórica
tas porque entende o Estado como produto da evolução histórica.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Bonavides (2010) e Gama (2005).

Agora que nos apropriamos do conhecimento acerca das principais definições já construí-
das a respeito do Estado, podemos estudar algumas teorias sobre sua origem.
40 Ciência Política e Teoria do Estado

3.2 Teorias sobre a origem do Estado


No que se refere à época em que teria surgido o Estado, Dallari (2011, p. 60-61) reduz as
diversas teorias a três posições fundamentais. A primeira reúne aqueles que acreditam que a exis-
tência do Estado é tão remota quanto a existência da própria sociedade. Para esses, desde que o ho-
mem habita a terra, ele se organiza socialmente e emprega o poder e a autoridade para determinar
o comportamento dos grupos humanos. A segunda reúne teóricos que acreditam em um período
de existência da sociedade humana sem o Estado. Depois desse período, por motivos diferentes,
de modos diferentes e em momentos diferentes o Estado surgiu em distintos lugares onde havia
sociedades humanas. Os teóricos defendem que o surgimento do Estado não foi uniforme porque
se deu em função das particularidades de cada lugar e sociedade.
A terceira posição é aquela que os teóricos reconhecem o Estado somente em sociedades
com características bem claras. Sendo assim, o Estado não pode ser tratado como algo que abrange
todo tipo de formação política na história da humanidade, mas sim como um conceito histórico e
concreto, que se molda com o conceito de soberania (desenvolvido no século XVII). Dentre esses,
encontramos o jurista Giorgio Balladore Pallieri (1905-190), que indicou até o ano oficial do sur-
gimento do Estado: 1648, ano em que foi assinada a Paz de Westfália5.
Encontramos ainda outras formas de sistematização das teorias a respeito da origem do
Estado. Gama (2005, p. 57-59), por exemplo, identifica cinco perspectivas:
• Teoria da criação divina: partia do pressuposto de que a família é uma obra divina que
evoluiu até formar o Estado. Desse modo, o Estado também seria uma criação divina,
desenvolvida sem a intervenção do homem.
• Teoria do jusnaturalismo: embasava-se na ideia de que o Estado decorria da natureza do
ser humano, inclinado a viver em grupo.
• Teoria do contratualismo: defendia que o Estado se formava com base em pactos firma-
dos entre os homens.
• Teoria da força: identificava a luta e violência no âmbito da sociedade, em razão das quais
o Estado surgia como uma imposição.
• Teoria da evolução: considerava que o Estado decorria da evolução histórica e social da
humanidade.
Gama ainda explica que podemos observar algumas formas distintas de Estado, que se
estabeleceram de acordo com a civilização na qual o poder político se institucionalizou. Como
exemplos, ele cita no continente americano as civilizações inca, maia e asteca; os povos chineses,
hebreus, hindus, persas e assírios na Ásia, organizados sob forte influência da religião e marcados

5 Entre os anos de 1618 e 1648 ocorreu na Europa uma série de conflitos motivados por divergências religiosas, dis-
putas comerciais, entre outros fatores. O conjunto desses conflitos foi denominado Guerra dos Trinta Anos e seu fim foi
determinado pelo Tratado de Paz de Westfália. Dentre os princípios reconhecidos nesse tratado, constavam a soberania
e a igualdade entre os Estados, que são bases do Direito internacional e uma das mais importantes prerrogativas dos
Estados modernos até os dias atuais, conforme veremos adiante. Por isso, esse tratado é considerado um momento
histórico fundamental para a compreensão da passagem da sociedade medieval para a sociedade do Estado nacional
moderno (COGO, 2018).
O Estado no pensamento político ocidental 41

por governos despóticos. Também temos a experiência da Grécia Antiga, com as cidades-Estados e
as civitas romanas. Outro exemplo importante é o Estado na África, em que encontramos o Antigo
Império egípcio, comandado pelos faraós. Esse Estado também sofreu forte influência da religião.
Se buscarmos mais explicações sobre o assunto, encontraremos ainda outros exemplos. Clive
Gamble (1992, p. 36-64), arqueólogo e antropólogo britânico, acredita que o Estado surgiu junto
com o homo sapiens, uma perspectiva que nos faz voltar consideravelmente no tempo.
O pesquisador sabe que sua posição, sobre o Estado ter surgido nesse tempo tão longínquo,
não é acompanhada pela maioria dos arqueólogos, que consideram o surgimento do Estado há
aproximadamente 5-10 mil anos. Gamble, entretanto, assume como ponto de partida os povos
caçadores-coletores6 para explicar a origem do Estado. Sua abordagem é muito interessante porque
normalmente esses povos não são considerados em estudos sobre a origem do Estado, embora
tenham em suas bases o chamado comportamento social complexo7, considerado por muitos o mo-
mento de “gestação” relevante para a formação do Estado. Nesse sentido, esses autores consideram
que foi muito importante para as sociedades humanas mais antigas aprender a domesticar animais
e plantar, a cultivar seu alimento, pois isso permitiu a esses povos fixarem-se em um lugar e desen-
volver de maneira mais rápida suas formas de organização.
Gordon Childe (1892-1957) – outro arqueólogo bastante conhecido e citado por Gamble –
explicou o desenvolvimento das sociedades pelo que chamou de revolução neolítica. Para ele, essa
revolução foi tão importante que poderia ser comparada à Revolução Industrial. A partir do mo-
mento em que os povos se fixaram em regiões, foi possível acelerar o processo de evolução em
direção às formas mais complexas de sociedade. Essa ideia de complexidade – não as fórmulas
e classificações tradicionais da arqueologia e da antropologia – permitiu a Gamble modificar a
perspectiva sobre a origem do Estado.
Gamble explica que esses povos precisavam enfrentar problemas, como crescentes disputas,
limitações a respeito do tamanho do grupo social, adoção de soluções culturais para problemas
de sobrevivência, diminuição de riscos, entre outros. Todos esses fatores permitiram que alguns
assumissem produções centrais e monopolizassem o poder. E em sua análise, o autor encontra até
mesmo um modelo em que existem negociadores e clientes, que traria as bases para a dimensão
negativa do poder.
Desse modo, percebemos que a questão do poder é tão importante quanto a questão da evo-
lução das sociedades para compreendermos as teorias a respeito do surgimento do Estado. E, quem
sabe, formulamos novas explicações à medida que a ciência também evolui.

6 Podemos citar como exemplo os povos indígenas que habitavam o Brasil até o momento em que os portugueses
começaram a colonização. Eram povos nômades, que viviam da caça e pesca e partiam para outros locais quando suas
fontes de alimentação ficavam escassas. Com essa classificação, podemos diferenciar nossos povos ancestrais de
outros, como os maias ou os incas, que já tinham compreendido a agricultura e produziam seus alimentos pelo cultivo
da terra sem precisar migrar de um lugar para outro. Entretanto, todos os povos foram em suas origens povos caçado-
res-coletores (MEGGERS, 1985).
7 A expressão comportamento social – adotada tanto na sociologia quanto na biologia – refere-se à interação entre
seres da mesma espécie. Naturalmente, para a sociologia, importará a interação entre seres humanos. Especificamente
para nós, interessa o início da organização das sociedades humanas.
42 Ciência Política e Teoria do Estado

3.3 Formas de Estados, formação e extinção


Como já vimos, a complexidade do conceito de Estado nos permite adotar diferentes for-
mas de classificação. Para Gama (2005), podemos classificar o Estado em função de seu povo, por
exemplo, povo católico, protestante etc.; ou classificar em função do território, denominando-o
continental, quando um território possui grandes extensões de terra (como Brasil, Estados Unidos
e México), ou insular, caso suas terras se limitem a uma ilha ou conjunto de ilhas (como Japão,
Cuba ou Bahamas). Contemporaneamente, uma forma importante de classificação se dá em fun-
ção da estrutura do poder nas quais temos os Estados simples que contam com um único poder
legislativo, judiciário e executivo; e os Estados compostos, em que os poderes se organizam e distri-
buem competências entre duas ou mais esferas, como unidades federativas e municípios.
Se nosso critério for sua origem, podemos caracterizá-lo como um Estado unionista,
que se formou pela união de dois ou mais territórios (tal como ocorre nas confederações); ou
divisionista, originado pela divisão do território original quantas vezes forem necessárias para
cumprir a vontade do povo. Temos como exemplos de Estados divisionistas o Paquistão, que
em 1947 desmembrou-se da Índia e Bangladesh, que se desmembrou do próprio Paquistão em
1971 (GAMA, 2005, p. 63).
Vejamos com mais detalhes as principais formas de Estado na modernidade.

3.3.1 Estado unitário


É considerada a forma mais simples e homogênea de Estado. Nele não se distribui o poder,
ele é estabelecido em um único centro que toma as decisões políticas e cria as leis. Essa forma de
Estado era a adotada até o final do século XVIII, como Estado da realeza absoluta8, em que somen-
te algumas competências em termos de administração eram desconcentradas desse centro único
para efetivar a aplicação da lei. Nessa forma, os órgãos que exercem a soberania são unos para todo
o território; na verdade, há uma única fonte de comando para legislar, governar e administrar a
justiça. Podemos ver essa tendência unificadora também nos Estados modernos por meio da ideia
de soberania. Pela imposição da vontade soberana do Estado, operou-se a unificação de diferentes
sociedades e ordenamentos que inferiorizaram e converteram em secundários seus poderes9.
Segundo Bonavides (2010, p. 161-164) – que faz uma ampla revisão na história e teoria
política para perceber isto, as razões que motivaram o surgimento de Estados unitários são vá-
rias. Por exemplo, um Estado pode preponderar sobre outros ao ponto de incorporá-los em si.
Diferentes Estados-membros podem fundir e se transformar em Estado unitário, ou ainda um
Estado composto pode se dissolver em Estados unitários. Nesse modelo, não encontramos coletivi-
dades inferiores com órgãos próprios de poder, mas sim verificamos alguns tipos de centralização
classificados como:

8 Primeiros séculos da era moderna. Conforme veremos no próximo capítulo, esse modelo entrou em crise e foi pro-
fundamente modificado pelas reivindicações das revoluções burguesas que eclodiram na França, na Inglaterra e nos
Estados Unidos.
9 Podemos encontrar descrições mais detalhadas sobre esse modelo em Bonavides (2010); Bastos (2004) e
Berloffa (2004).
O Estado no pensamento político ocidental 43

• Centralização política e administrativa, em que existe apenas um sistema de Direito, de


modo que nenhum Estado-membro pode ter sistemas específicos10. Esse sistema conta
ainda com a centralização do poder de aplicação da lei.
• Centralização territorial e material, em que o poder do Estado se amplia por territórios
cada vez maiores e as competências abrangem cada vez mais assuntos (matérias), mesmo
que essas não estivessem anteriormente previstas na lei.
• Centralização concentrada e desconcentrada. Na centralização concentrada, os agentes
do Estado são meros cumpridores de decisões de outros. Na centralização desconcentra-
da, os agentes públicos têm uma pequena parcela de competência, mas nunca deixam de
ser subordinados ao poder central e não possuem poderes iniciais, visto que as competên-
cias que exercem são confiadas pelo Estado e podem ser retomadas a qualquer momento.
Bonavides ainda avalia que os modelos de Estado unitário conhecidos nunca conseguiram
chegar a uma concentração completa de toda a realidade social que abrangiam, isto é, sempre sub-
sistiu um pluralismo no âmbito das suas sociedades.

3.3.2 Confederação
É um tipo de Estado que decorre da união permanente e pactuada entre Estados indepen-
dentes que, ao se unificarem, não abrem mão de suas soberanias. Tal união é celebrada para uni-
ficar esforços no desenvolvimento de políticas comuns de defesa externa e segurança interna, que
adota órgãos interestatais imbuídos de poderes distintos, conforme o pacto de união lhes delegar.
Foi o caso da Confederação dos Estados Unidos (1778-1787), vigente desde a independência até a
proclamação da Constituição, a Confederação Suíça (1815-1848), entre outras. Dessas, algumas se
dissolveram e se tornaram Estados federados. Houve até mesmo o caso da Holanda, que se conver-
teu em Estado unitário.
Dentre os elementos que distinguem a confederação, podemos citar a união de Estados que
se mantêm independentes e soberanos; um vínculo formado por meio de um tratado (e não por
uma Constituição); uma união que não cria poder de imperium sobre os Estados participantes,
apenas uma relação jurídica internacional. Por isso, o poder da confederação se relaciona com os
Estados, mas não com seus cidadãos. Da confederação não decorre cidadania, nem território e
mantém-se o direito de secessão de seus membros, ou seja, a qualquer momento os Estados fede-
rados podem denunciar11 o Tratado e se retirar do Estado confederado. Também existe um corpo
deliberante que serve de instrumento comum, a dieta, que é composta de chefes de Estado ou em-
baixadores. Na dieta, as decisões são tomadas por maioria de votos e podem ser feitas dentro das
competências que lhes são confiadas pelos Estados. Essas somente podem ser ampliadas se todos
os Estados que a integram, por unanimidade, assim decidirem.

10 Não existem nesse modelo, por exemplo, leis municipais ou estaduais, porque, ainda que essa divisão geográfica
existisse, não teria competência para criar leis próprias.
11 O conceito denunciar no Direito Internacional refere-se à prerrogativa que os Estados têm de desistir de um tratado
(internacional) ao qual tenham aderido. Em razão do princípio da soberania, nenhum Estado é obrigado a aderir a esses
tratados, por mais importantes que sejam (sobre direitos humanos, por exemplo). Se o Estado opta por assinar um trata-
do, fica estabelecido que depois de cumpridas as formalidades, assumirá força de lei. Para liberar-se de suas obrigações,
dizemos que o Estado “denuncia” o documento.
44 Ciência Política e Teoria do Estado

Desse modo, é importante perceber que a ação unitária da Confederação se projeta para
fora do Estado – no âmbito internacional – e não internamente sobre seus membros. É o caso das
guerras, que exigem a união de países. Além disso, a Confederação, uma vez que estabelece rela-
ções no âmbito do Direito internacional, conta com personalidade jurídica12 (BONAVIDES, 2010,
p. 179-181).

3.3.3 Federação
Trata-se de um Estado soberano, que contém em si uma pluralidade de Estados com deter-
minados poderes, todos ligados pela unidade estatal. Ele se diferencia da confederação, pois não é
fundado por um tratado, mas sim por uma Constituição, uma união de Direito constitucional. Essa
forma não foi conhecida no mundo antigo ou medieval, pois foi sistematizada aproximadamente
nos últimos três séculos. Nesse tipo de formação, não são admitidas soberanias internas. O Brasil
é uma Federação, por isso, por exemplo, o Estado do Paraná não pode firmar tratados internacio-
nais. E embora possa aprovar leis próprias, as leis estaduais têm como limite a Constituição Federal
e as leis federais aprovadas no Congresso Nacional.
A Federação conta também com dois princípios básicos, denominados lei da participação
e lei da autonomia. Pela lei da participação, os Estados-membros podem fazer parte do processo
de elaboração da vontade política13, ao passo que pela lei da autonomia as unidades federativas
podem elaborar suas próprias constituições (no caso dos Estados como Paraná, São Paulo e todos
os demais) ou leis orgânicas (no caso dos municípios, pois o Brasil adota essa subdivisão federativa
adicional). Essa prerrogativa, entretanto, não pode ultrapassar os limites da Constituição Federal.
Na verdade, é obrigatória a reprodução de diversos modelos que constam nessa norma maior, e
a essa obrigação denominamos princípio da simetria constitucional. Apesar dessa autonomia, a
presença do Estado federal – com seus três poderes: Executivo, Federativo e Judiciário, que anali-
saremos no próximo capítulo – se estende por todos os Estados e municípios. A União de todos os
entes, representada no Estado Federal, é a única com prerrogativas para estabelecer relações pú-
blicas internacionais, ou seja, o Estado federal é o único com personalidade jurídica internacional.
No Capítulo 5 analisaremos também as formas pelas quais a soberania e a autonomia podem ser
limitadas (BONAVIDES, 2010, p. 193-201).
Para finalizarmos, falamos em união real e união incorporada. A primeira só é admitida
entre monarquias, que passam por cima do Direito sucessório – do “herdeiro do trono”, o prínci-
pe – para adotar um tratado internacional, fato que provoca a fusão de dois Estados, origina uma
nova personalidade jurídica e extingue as antigas. Esse tipo de União requer Estados contíguos
(territórios geograficamente ligados), um acordo internacional e perenidade que não pode ter data
para terminar, mas sim aspirar ser definitiva. O Reino Unido é um exemplo que divide a opinião
de cientistas políticos entre ser união real ou incorporada. A união incorporada também se forma

12 Somente os sujeitos de direitos podem também assumir deveres. No Direito ocidental, a maioria dos modelos re-
conhece dois tipos de sujeitos de direito: as pessoas físicas (nós, seres humanos) e as pessoas jurídicas (empresas,
fundações, órgãos estatais etc.).
13 Por exemplo, no Congresso Nacional, temos os representantes do povo designados em cada Estado, são os deputa-
dos federais, e temos os representantes dos Estados, também eleitos em cada Estado para exercer essa representação;
são os senadores.
O Estado no pensamento político ocidental 45

pela união de Estados independentes. Frequentemente, ela tem sua terminologia questionada por
autores que consideram que a incorporação extingue antigos Estados, por isso não pode ser deno-
minada união.

Federalismo e acumulação de poder


Existe um debate importante a respeito da acumulação de poder no fe-
deralismo. Há autores que entendem que existe uma tendência de que o
poder se acumule até chegar ao ponto de anular, inclusive, a autonomia
dos Estados-membros que integram o Estado federal. Se isso ocorrer,
não haverá como diferenciá-lo da confederação. Entretanto, Bonavides
(2010, p. 202-206) diverge dessa posição. Ele acredita que o problema
do modelo federal não é ele em si, mas as doutrinas que o orientam.
Essas são doutrinas antigas (datadas do século XIX) que estão em crise,
pois, segundo seus pressupostos, é determinada uma “moldura jurídica
intocável” ao federalismo que não é mais compatível com as mudanças
globais do nosso tempo.
Na verdade, não é o federalismo que está em crise, mas sim uma de suas
formas, aquela que marca o Estado liberal, com sua decadente ideologia.
Para ilustrar sua posição, Bonavides identifica três épocas na evolução
do federalismo.
Na primeira fase, as duas leis (da autonomia e da participação) se apre-
sentavam com mais força. A autonomia dos Estados federados era repre-
sentada tanto nos fatos, quanto nas doutrinas. Nessa fase se cogitava o
risco de que desaparecesse a federação devido ao excesso de poderes dos
Estados-membros.
A segunda época foi marcada por um perfeito equilíbrio entre União e
Estados federados, visível inclusive na doutrina federalista. Nessa fase já
não vigorava o controverso debate sobre ser a Constituição Federal lei
ou mero contrato.
Finalmente, a terceira fase é contemporânea, em que se observa uma
ruptura com o equilíbrio da fase anterior, fato que culmina na acu-
mulação de poderes e competências sob o Estado Federal. Nesse mo-
mento, aumenta-se a participação, mas diminui-se a autonomia dos
Estados federados e há o excesso de poderes federais. Há um debate
sobre a crise do federalismo, com posições sustentando sua “morte”.
Esse, todavia, é um debate intenso que divide teóricos da ciência po-
lítica e do Estado.
46 Ciência Política e Teoria do Estado

Considerações finais
Neste capítulo, começamos a compreender sobre esse fenômeno complexo que é o Estado.
Foi um momento importante para aprendermos alguns conceitos que serão empregados em mo-
mentos seguintes. Se analisarmos esse capítulo em conjunto com os anteriores, perceberemos que
o sentido do Estado é determinado pelo sentido que damos à sociedade. Por exemplo, se entender-
mos a sociedade como Marx e Engels, vamos definir o Estado como instrumento de dominação
entre classes; se entendermos a sociedade como fim natural do ser humano, poderemos entender
o Estado como instituição naturalmente formada, e assim sucessivamente.
Nosso próximo passo será compreender como o modelo moderno se formou. Especifi-
camente, buscaremos compreender como se originou o modelo de Estado democrático de Direito,
adotado no Ocidente e em países como Brasil, Estados Unidos, entre outros.

Ampliando seus conhecimentos


Leia a seguir um trecho da obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, escrita no início do
século XVI. Esta é considerada uma das obras mais importantes já escritas sobre política na
história da humanidade.

Capítulo I – De quantas espécies são os principados e de que


modos se adquirem (Quot sint genera principatuum et quibus
modis acquirantur)
(MAQUIAVEL, 1998, p. 37)

[...]
Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens,
foram e são ou repúblicas ou principados. Os principados são: ou hereditários, quando
seu sangue senhorial é nobre há já longo tempo, ou novos. Os novos podem ser total-
mente novos, como foi Milão com Francisco Sforza, ou o são como membros acrescidos
ao Estado hereditário do príncipe que os adquire, como é o reino de Nápoles em relação
ao rei da Espanha. Estes domínios assim obtidos estão acostumados, ou a viver subme-
tidos a um príncipe, ou a ser livres, sendo adquiridos com tropas de outrem ou com as
próprias, bem como pela fortuna ou por virtude.
[...]

Dicas de estudo
• O jurista e professor Antonio Carlos Wolkmer publicou um livro breve, mas bastante rico,
em que aborda algumas das questões comentadas neste capítulo e também nos seguintes.
Essa obra, Elementos para uma crítica do Estado, publicada em 1990, trata de temas como
acepções, origem, tipologia dos Estados e propõe uma perspectiva crítica para refletir
sobre eles.
O Estado no pensamento político ocidental 47

• Para este capítulo, recomendamos a leitura do curso de Ciência Política (2010), de Paulo
Bonavides. Essa é uma das principais obras que elencam conteúdos fundamentais aborda-
dos neste capítulo. Por isso, e também pela amplitude dos demais conteúdos que abrange,
é uma obra de leitura fundamental.

Atividades
1. No item 3.1 “Definições e classificações do Estado”, nós definimos diversos sentidos para a
palavra Estado. Ao relembrarmos o que aprendemos no item 1.2 “Diferença entre ciência
política e Teoria geral do Estado” do primeiro capítulo do nosso curso, essas teorias estão
mais próximas do campo de investigação da Teoria geral do Estado ou da ciência política?
Fundamente sua posição.

2. Existe alguma relação conceitual entre o Estado e a sociedade? Justifique sua resposta.

3. Cite três diferenças entre Estado Federal e confederação.

Referências
BASTOS, C. R. Curso de teoria do estado e ciência política. 6. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2004.

BERLOFFA, R. R. C. Introdução ao curso de teoria geral do Estado e ciências políticas. Campinas: Bookseller,
2004.

BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2007.

BONAVIDES, P. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Objetiva, 2010.

COGO, R. Estudos sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos: de Westfália às nações
unidas. Boletim Jurídico, Uberaba, a. 12, n. 752. Disponível em: <https://www.boletimjuridico.com.br/dou-
trina/texto.asp?id=2320>. Acesso em: 5 jun. 2018.

DALLARI, D. A. Elementos de Teoria geral do Estado. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

GAMA, R. R. Ciência política. Campinas: LZN, 2005.

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Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 36-73.

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WOLKMER, A. C. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1990.
4
Formação do Estado moderno

Até aqui observamos que a natureza política do ser humano o impulsiona ao convívio em
sociedade e que, uma vez organizado coletivamente na sociedade, ele procura modos ou institui-
ções, por meio das quais organiza também as relações de poder que se estabelecem entre os grupos
sociais. A necessidade de organização dessas relações de poder foi atendida de diversas formas,
para as quais a ciência propôs diversas interpretações, como vimos no capítulo anterior. Então,
agora que compreendemos os diversos sentidos atribuídos ao termo Estado, vamos analisar uma
experiência em específico: o chamado Estado moderno, modelo de organização das relações de
poder que o mundo ocidental adotou nos últimos séculos.

4.1 Contexto histórico da formação do Estado moderno


O Estado a que nos referimos – o Estado moderno ocidental – é resultado de um processo
histórico cujas formas políticas foram sucedendo umas às outras dentro de um contexto cultural
geograficamente delimitado: o mundo ocidental, fortemente marcado pelas influências grega, ro-
mana e europeia. Entretanto, no esforço por buscar caracterizar as diversas épocas que o Estado
atravessou, pode-se incluir também as mais longínquas experiências orientais, que podem ser de-
signadas por Estado antigo, oriental ou teocrático. E dessa forma, podemos identificar grandes
períodos designados como Estado antigo, Estado grego, Estado romano, Estado medieval e Estado
moderno. Mas uma importante ressalva precisa ser colocada: essa sucessão não pode ser descrita
como uma trajetória dividida cronologicamente, de modo preciso e uniforme. Ainda assim, tal
divisão é um recurso importante para tentarmos diferenciar as épocas por meio das principais
características que o Estado assumiu, pois assim, facilitamos a compreensão desse fenômeno. Dito
isso, vejamos as características que marcaram cada tipo de Estado dentre os analisados por Dallari
(2011, p. 68-77).
• Estado antigo: como já vimos, essa designação abrange as antigas civilizações do Oriente
ou do Mediterrâneo, com uma formação social que, conforme alguns autores, implicava
em um conjunto confuso entre família, religião e Estado. Essa estrutura de poder tem
duas notas que a distinguem: a religiosidade e o caráter unitário. Por caráter unitário
entendemos um Estado que não admitia nenhum tipo de divisão, fosse territorial, fosse
de suas funções. Já a religião impregnava de tal modo a estrutura estatal que é comum
ver esse tipo também ser denominado de Estado teocrático. O poder no Estado teocrático
podia ser definido de duas maneiras: de modo unipessoal, quando o governante era con-
siderado um representante do poder divino, ou de modo limitado, quando os sacerdotes
representavam esse poder e, portanto, conviviam o poder humano com o poder divino.
• Estado grego: a civilização helênica, onde floresceu essa experiência política, era bas-
tante variada, de modo que não podemos reputar a ela um único Estado. O que permite
adotar essa classificação unificadora, conforme autores que a analisam, é a característica
50 Ciência Política e Teoria do Estado

fundamental partilhada entre seus Estados, em especial o espartano e o ateniense, dois


dos mais importantes: a cidade-Estado, ou pólis, cujo ideal era a autossuficiência. A classe
política no Estado grego era composta de uma pequena elite, os cidadãos, que exerciam a
função de controle. Analisaremos mais detalhadamente esse contexto quando refletirmos
sobre as origens da democracia.
• Estado romano: esse modelo, assim como o anterior, também abrangeu uma experiência
mais variada e complexa, que vai desde um pequeno agrupamento de pessoas, passan-
do por inúmeras formas de governo, até culminar em um grande império que aspira-
va alcançar o controle mundial. O período compreendido por esse modelo é amplo, de
754 a.C. até 565 d.C. Esse Estado, que expandiu o seu território por grandes porções de
terras, dominou inclusive o Estado grego e assinalou o seu fim. Apesar da assombrosa
extensão no tempo e no espaço, o Estado romano manteve em todas as suas experiências a
caracterização de cidade-Estado, com estrutura familiar de organização. Tanto no Estado
grego, quanto no Estado romano, o povo tinha possibilidade de participação política,
entretanto, o conceito de povo não era tão amplo como hoje, de modo a abranger todas
as pessoas; tratava-se de uma noção restrita da qual poucos grupos sociais participavam.
• Estado medieval: Dallari visualiza na Idade Média um dos períodos mais difíceis no que se
refere ao Estado, devido a sua instabilidade e heterogeneidade. Ainda assim, há algumas ca-
racterísticas que permitem diferenciar o Estado medieval dos demais citados. Nesse período,
temos os seguintes elementos: o cristianismo, as invasões bárbaras e o feudalismo.
Podemos constatar o cristianismo como fundamento da aspiração à universalidade e à
igualdade, que permitia superar a ideia de que os homens eram diferentes conforme sua origem,
pois sendo cristãos, todos eram iguais (entretanto, como consequência os não cristãos eram des-
garrados). A humanidade deveria ser cristã, por isso, emergiu a ideia de um Estado universal, que
possibilitasse congregá-la apenas em uma sociedade política (aspiração à unidade, que sempre
acompanhou o Estado medieval). Essa sociedade seria o Império da Cristandade, que motivou a
nomeação de Carlos Magno no ano de 800 d.C. como imperador. Essa ideia enfrentou dois grandes
problemas: o primeiro foi a existência de infinitos centros de poder aglutinados sob o império e,
por conta disso, a unidade política só pôde ser formal e nunca se concretizou na prática. O segundo
problema foi a disputa de poder entre imperador e Igreja, com um tentando influenciar ou coman-
dar o outro, uma luta que só terminou com o surgimento do Estado moderno.
Já as invasões bárbaras ocorreram por volta do terceiro até o sexto século depois de Cristo.
Vindos principalmente da região norte da Europa, os chamados povos bárbaros invadiam regiões,
levando-as a se organizar como unidades políticas independentes, por isso, podemos falar em di-
versos Estados. Essas invasões estimularam os povos do norte da África e também do Oriente a
fazerem o mesmo1. Finalmente, para compreendermos o feudalismo, precisamos dimensionar o
impacto das invasões bárbaras, que dificultou o desenvolvimento do comércio e provocou uma

1 Enrique Dussel (1993) apresentou um importante estudo crítico sobre a história da “descoberta” da América. Nesse
estudo, o autor descreve a Europa cristã do século XV como um espaço enclausurado entre o mundo que os europeus
chamavam de bárbaro e o mundo muçulmano. Essa clausura em que se encontrava a Europa incluía a impossibilidade
de navegar e trocar produtos, pois os mares que a ligavam às índias estavam dominados pelos povos muçulmanos (dos
quais muitas vezes ouvimos histórias dos chamados piratas).
Formação do Estado moderno 51

grande valorização da posse da terra, pois era dela que vinham os produtos necessários para sub-
sistência. No feudalismo surgiram três institutos jurídicos importantes:
• Vassalagem: proprietários menores – vassalos – protegidos pelo senhor feu-
dal, mas que precisavam servi-lo, o que era feito com pagamentos pecuniários e
apoio nas guerras.
• Benefício: relação entre o senhor feudal e chefes de família sem propriedades, que
se convertiam em servos. O senhor feudal fornecia uma parcela de terra para cultivo
e em troca recebia direito de vida e morte sobre o servo e sua família, além de parte
de tudo que era cultivado.
• Imunidade: o senhor feudal liberava o pagamento de tributos às terras sujeitas
ao benefício.
Esses três institutos reforçavam a ideia do poder político do senhor feudal, que no seu espa-
ço de domínio tinha mais influência que o próprio Estado ao qual pertencia.
Acrescentamos uma nota esclarecedora: é verdade que coexistiam diversos poderes e
ordens jurídicas sob o poder soberano dos reis da Idade Média, no entanto é mais preciso
dizer que esse poder real pairava sobre todos os sistemas e poderia submeter a tudo e a todos,
já que era um poder derivado da própria vontade divina. Podemos denominar essa estrutura
de poder como Estado absoluto.
Esse cenário que acabamos de percorrer nos dá a ideia de um mosaico, abrangido por um
Estado absolutista e que, de fato, traduz de modo mais abrangente o tipo de sociedade que vigorou
até o início da modernidade. No campo político e jurídico, podemos dizer que a realidade prática
da sociedade fundou um pluralismo jurídico, em que o direito não emanava da mesma fonte do
poder político – o Estado –, mas sim dos costumes sociais que compunham o cotidiano das so-
ciedades (GROSSI, 2014, p. 47-49). E nesse sentido, embora os modelos anteriormente descritos
tenham trazido em si a aspiração à unidade, de certa forma, foi o Estado moderno o modelo mais
eficaz no sentido de unificação das formas políticas.
Esse modelo não alcançou a unificação política da humanidade, que no mundo ocidental se
organizou politicamente como Estados-nação. Assim, podemos notar inúmeros países enquanto
unidades políticas independentes e soberanas. Entretanto, no interior de cada uma dessas unida-
des, pela primeira vez o direito e o poder político se identificaram na mesma fonte, a instituição
estatal permitiu a maior concentração de poder já alcançada, afinal, o direito também é um instru-
mento de poder. Vejamos então como se formou o Estado moderno.
Na Inglaterra do século XIII, precisamente no ano de 1215, encontramos um dos mais an-
tigos precedentes políticos do Estado contemporâneo: a Magna Carta. Esse documento buscava
assegurar direitos dos barões. Tratava-se de uma carta feudal, mas de suma importância jurídica e
política, porque sua luta por direitos abrangia o anseio em limitar os poderes do Estado absolutista.
A resistência contra o poder estatal absoluto na Inglaterra durou vários séculos e, no ano de 1628,
encontramos a Petition of Rights2, negociada entre o parlamento, que detinha o poder econômico,

2 Em Português “Petição de Direitos”.


52 Ciência Política e Teoria do Estado

e o rei, que detinha o poder político, mas dependia do poder econômico. Essa carta de direitos
exigia o reconhecimento das liberdades dos súditos, liberdades que já estavam consagradas desde a
Magna Carta (fato que evidenciou que o monarca não respeitava o documento de 1215).
Outros documentos de notória importância jurídica foram firmados, mas o mais destacado
foi o Bill of Rights3, de 1688, alcançado na Revolução Inglesa de 1688, quando surgiu a monar-
quia constitucional, que se submetia à soberania popular e não mais à realeza de direito divino.
A soberania popular na Inglaterra passou a ser representada no Parlamento, uma das maiores con-
quistas na luta contra o absolutismo e um dos mais importantes precedentes do Estado moderno.
Acrescenta-se à Revolução Inglesa as Revoluções Americana de 1776 e Francesa de 1789 (SILVA,
2012, p. 151-154). As três revoluções foram protagonizadas pelas classes burguesas e suas lutas em
prol das liberdades individuais, de cunho sobretudo econômico.
Desse modo, podemos dizer que uma das primeiras manifestações do Estado moderno
se concretizou no parlamento inglês. A Revolução Americana pode ser considerada o segundo
marco histórico desse Estado, assim como do sistema de Direito contemporâneo. Dessa revo-
lução decorreu a Constituição Americana – a mais antiga no marco da modernidade, mais que
isso, a primeira constituição concebida no âmbito da teoria constitucional contemporânea –
e o modelo federativo. A motivação da Revolução Americana era a luta contra o poder da
metrópole inglesa, da qual o que chamamos hoje de Estados Unidos da América era colônia,
portanto, submetida ao poder político externo.
O marco inicial da Federação é reputado aos representantes das Treze Colônias, reunidos
em 1787 na Filadélfia, preocupados com a realidade de seus Estados e dispostos a elaborar um
texto constitucional que consagrasse uma forma inteiramente nova de organizar o poder político.
Todos os Estados presentes concordaram com a delegação de certas competências e soberania e
assim ficou criado um Estado com os seguintes elementos: seu território seria a soma dos 13 terri-
tórios estaduais; sua população seria a soma da população dos 13 territórios estaduais e sua orga-
nização política seria a definida pela Constituição com um Poder Legislativo, um Executivo e um
Judiciário. No caso das Treze Colônias, o que ocorreu não foi uma mera fusão de Estados, uma vez
que cada um manteve sua individualidade e organização de competências próprias não transferi-
das à Federação. Assim, dentre as diversas definições possíveis da nova forma de Estado que surgia,
podemos dizer que se tratou de uma organização com pelo menos dois níveis distintos de governo
(central e regionais), cada um com competências próprias, determinadas pela Constituição. No
seu desenvolvimento posterior, essa divisão chegou a alcançar um terceiro nível, que é o caso do
Brasil com seus municípios. A maioria das federações, entretanto, contam com apenas dois níveis
(BASTOS, 2004, p. 224-225).
Até aqui vimos a emergência do Parlamento e do modelo federativo, como formas adota-
das pelo Estado na época moderna. Ainda nos resta analisar aspectos da Revolução Francesa ou
Revolução Iluminista, que pode ser considerada a mais influente e, possivelmente, a mais impor-
tante dentre as três, pois da influência teórica do Iluminismo podemos extrair elementos comuns

3 Em português “Declaração direitos”.


Formação do Estado moderno 53

para a caracterização do que temos chamado de Estado moderno. Veremos em síntese alguns as-
pectos históricos dessa revolução quando tratarmos das teorias contratualistas.
Bastos (2002, p. 164-166) menciona que a Revolução Francesa tem início com a queda da
Bastilha4, no ano de 1789, e fim com um golpe de Estado, conhecido como 18 de Brumário5. Esse
golpe ficou conhecido como “a revolução da liberdade e da igualdade, representando uma mudan-
ça significativa na história da humanidade, pois foi nela que foram declarados os direitos do ho-
mem em 1789”. O autor explica ainda que foi a partir dessa revolução que as “massas” da sociedade
começaram a participar dos assuntos do Estado e inauguraram práticas democráticas.
Verificamos nessa revolução um ataque deflagrado pela classe burguesa contra o poder pes-
soal do rei e a classe dominante na época, a nobreza, e uma revolta contra o antigo regime, a
monarquia absolutista. Nela também encontramos bases importantes do Estado contemporâneo,
como a despersonalização do poder, já que ele passou a repousar na nação que se concretizou juri-
dicamente no poder estatal. E a ideia de nação emergiu como recurso eficaz para integrar o povo.
Aliás, mais do que integrar: unificar. Por isso, o autor conclui que as maiores conquistas dessa revo-
lução abrangeram as liberdades individuais, a igualdade jurídica entre os homens e a proclamação
da soberania do povo, fato que impôs a necessidade em estabelecer um sistema de representação
em que o povo soberano escolhesse os governantes.
Em síntese, podemos identificar alguns elementos comuns nas três revoluções citadas, como
a existência de classes motivadas por um desejo de liberdades individuais, que somente seriam
alcançadas pela limitação do poder absoluto que lhes subjugava, isto é, o desejo de substituir o
governo de homens por um governo de leis.
Posteriormente, quando eclodiram revoluções também na América Latina, as classes revo-
lucionárias do nosso continente não criaram governos genuínos e com elementos novos, tal como
ocorreu nos casos anteriormente citados. Pelo contrário, aqui na América os modelos europeus e
norte-americano foram “copiados”. Mas em comum com as três revoluções burguesas que citamos,
muitas das revoluções ocorridas na chamada América espanhola foram protagonizadas por uma
elite econômica que não conseguiu se desenvolver por conta das limitações impostas pela Coroa.
Por isso, podemos dizer que a independência desses países significou a passagem do poder político
às mãos de pessoas que já detinham o poder econômico. E os ideais iluministas chegaram também
ao nosso continente e permearam nossas constituições. Entretanto, no continente latino-america-
no, a luta por independência não modificou as relações de opressão vigentes na sociedade, fato que
evidenciou que a injustiça não decorria somente do domínio real, mas também da servidão, do
latifúndio e de outras relações sociais (POMER, 1981, p. 9-13).

4 Existiu uma fortaleza chamada Bastilha, onde eram encarceradas as pessoas, conforme o juízo arbitrário do poder
despótico. Os horrores e crueldades praticados nessa fortaleza eram tamanhos que provocaram no imaginário social da
época a crença de que se tratava de um castelo mal-assombrado. A Bastilha era um símbolo do poder absoluto. No dia 14
de julho de 1789, um grupo de pessoas manifestou-se exigindo a entrega da fortaleza, o que foi negado. Diante da negati-
va, começou um conflito armado em que muitas pessoas morreram, mas os sobreviventes lutaram até que os militares se
entregaram aos insurgentes. Uma vez vencido o conflito, os insurgentes baixaram a ponte e libertaram os prisioneiros da
Bastilha. Esse episódio ficou conhecido como A queda da Bastilha ou Tomada da Bastilha (CHAUSSINAN-NOGARET, 1989,
p. 65; 82-86).
5 Esse episódio refere-se ao golpe dado por Napoleão Bonaparte (1769-1873), no ano de 1799, quando iniciou seu
regime ditatorial na França.
54 Ciência Política e Teoria do Estado

4.2 Teorias contratualistas e a separação dos poderes do Estado


Até aqui procuramos percorrer alguns fatos históricos importantes que contribuem na ex-
plicação de como surgiu o Estado moderno. Precisamos retomar essa trajetória agora, mas não
mais à luz dos fatos, e sim, à luz das ideias que se sucederam e delinearam o novo modelo de estru-
tura de poder que ia se firmar e que, de fato, acabou se difundindo por todo o mundo ocidental.
Podemos reunir as diversas orientações teóricas que possibilitaram chegarmos ao modelo
atual sob a denominação de teorias contratualistas e encontrarmos diferentes pensamentos con-
forme o estudo que seguimos. Aqui, temos três importantes sínteses das ideias políticas: o estudo
do teórico italiano Luciano Gruppi (1920-2003), chamado Tudo começou com Maquiavel, a Teoria
das formas de governo de Norberto Bobbio e Os clássicos da política de Francisco Weffort. Esses
três estudos juntos reúnem, sob abordagens distintas, os principais pensadores que no curso dos
primeiros séculos da modernidade construíram as bases do Estado moderno.
Nós já vimos que foi Maquiavel o primeiro a empregar a palavra Estado com o sentido que
empregamos até hoje. Isso porque o Estado moderno se diferenciou dos demais devido alguns ele-
mentos como a autonomia e a plena soberania do Estado e a divisão entre sociedade civil e Estado,
evidenciada na Inglaterra do século XVII com a ascensão da burguesia. Vejamos como essa ideia
foi amadurecida no pensamento europeu (GRUPPI, 1996, p. 8-24):
• Nicolau Maquiavel: é considerado responsável não exatamente pela teoria do Estado mo-
derno, mas sim pela teoria de como se formam os Estados. Seu pensamento também é
considerado como precursor da ciência política, que com base em suas ideias se impôs
como uma disciplina autônoma, distinta da moral e da religião. Uma mudança impor-
tante foi a desvinculação do Estado de sua função de assegurar a felicidade e a virtude –
fundamentadas no pensamento de Aristóteles – para se ocupar do que é permitido e do
que é necessário fazer, ainda que não seja necessariamente considerado “certo”. Maquiavel
fundou uma nova moral que não é mais da alma, mas sim mundana, construída no rela-
cionamento entre homens.
• Jean Bodin (1530-1596): os estudiosos reputam a esse autor francês a primeira reflexão
sobre o que é o Estado moderno. Bodin escreveu uma obra chamada Sobre a República,
em que polemizou o pensamento de Maquiavel. Em sua obra, o autor desenvolveu teorias
a respeito de um Estado unitário já existente – o francês, do próprio país onde nasceu – e
refletiu sobre questões como o consenso e a hegemonia. Um dos aspectos mais importan-
tes é que Bodin também foi o primeiro a teorizar a autonomia e a soberania (ele susten-
tava que o monarca era aquele que interpreta as leis divinas, obedecendo a elas, mas de
modo autônomo, sem precisar da investidura do papa). E finalmente, para Bodin, não é
o território e nem o povo que constitui o Estado, mas sim o poder. Por isso, ele defendeu
a soberania como o grande alicerce do Estado, que por sua vez é o poder absoluto, que
representa a coesão de todos os elementos da sociedade.
• Thomas Hobbes: esse pensador inglês acreditava que os homens primitivos viviam em
uma espécie de estado natural, como (os outros) animais e se destruíam em disputas
por poder, riquezas e propriedades. Para Hobbes, ao perceberem sua mútua destruição,
Formação do Estado moderno 55

os homens perceberam também a necessidade de assumir um acordo, uma espécie de


contrato, pelo qual refreariam seus ímpetos destrutivos e deixariam de viver como lobos
fadados à autodestruição. Por meio desse contrato, os homens constituíram o Estado.
Sua noção revelou o caráter mercantil ou comercial, próprio das relações burguesas pre-
sentes no Estado. Hobbes acreditava que se seguisse sua natureza, o homem não viveria
em um Estado em que suas liberdades fossem limitadas. As restrições impostas só são
admitidas porque o homem deseja uma vida mais confortável e com sua própria conser-
vação, coisas que seriam viabilizadas pelo Estado. Sem o Estado, o homem viveria uma
miserável condição de guerra permanente. No pensamento de Hobbes, o tipo de Estado
de que o homem precisa deveria ser duríssimo, um Estado absoluto.
• Giambattista Vico (1668-1744): esse pensador italiano empregou uma perspectiva prin-
cipalmente histórica para a compreensão do Estado. Sua obra mais difundida é A ciência
nova, que Bobbio (2004) considera a mais importante até Hegel.
O pensamento de Vico é concebido dentro de um horizonte cultural – a história de
Roma – e é nos limites dessa história que o pensador teorizou sobre as leis de sucessão dos
Estados. Ele também acreditava, assim como Hobbes, que o homem primitivo é bestial,
mas diferentemente dele, que atribuía a bestialidade à natureza humana, Vico considerou
que se tratava de uma etapa histórica que seria superada na sua evolução ou sucessão: a
origem da história humana. Entre a condição bestial e a formação da República, o italia-
no vislumbrou um momento intermediário, a fase das famílias, quando se formaram as
primeiras formas de associação humana. Mas para Vico isso ainda não era o Estado, ele
surgiria posteriormente, na forma de república aristocrática, seria sucedido pela república
popular e culminado na monarquia. As fases bestial e das famílias, para o autor, integra-
ram a etapa pré-estatal, a barbárie. Para ele, a civilização só teve início com a fase dos
Estados, inaugurada com a república aristocrática.
• John Locke: representou uma concepção tipicamente burguesa, que, aliás, era coerente
com a emergência do império mercantil, como podemos verificar na Inglaterra a partir
da segunda metade do século XVI. Foi o principal teórico da revolução liberal inglesa (a
qual já nos referimos) que, com base no acordo firmado entre a nova classe burguesa, a
monarquia e a aristocracia, culminou no surgimento das normas parlamentares e fundou
a atuação do Estado em declarações de direitos dos parlamentos.
Dez anos antes, surgiu o habeas corpus e suas garantias decorrentes que transformavam
o súdito em cidadão. Para Locke, o homem em estado natural era totalmente livre, mas,
para garantir sua propriedade, era necessário estabelecer limites em sua própria liber-
dade, já que com a liberdade plena não há garantia à propriedade, e consequentemente,
também não há liberdade durável. O Estado natural seria a falta de um Estado. E esse
deveria justamente garantir o exercício da propriedade. O pensamento de Locke situou-se
em um tempo em que já havia nascido o mercado e as relações se davam entre indivíduos
que negociam suas propriedades. Também para esse pensador inglês, o Estado surgiu
de um contrato, mas um contrato diferente daquele defendido por Hobbes – do Estado
56 Ciência Política e Teoria do Estado

absoluto – já que agora o Estado pode ser feito e desfeito como qualquer outro contrato.
O Estado precisaria respeitar o contrato que o originou (respeito às liberdades, como a
de propriedade, a política, a segurança pessoal). O Estado deveria respeitar a liberdade de
assembleia, de palavra, mas acima de tudo, a liberdade de iniciativa econômica. Esse autor
estabeleceu uma estreita relação entre liberdade e propriedade e também apresentou uma
distinção entre o público e o privado (entre o Estado e aquilo que no século XVIII será
chamado de sociedade civil). Ele afirmava que a propriedade se transmitia por herança, de
pai para filho, enquanto o poder político deveria ser o contrário, ter origem democrática,
parlamentar. Locke rompeu a ideia dominante na Idade Média de transmissão por heran-
ça tanto da propriedade, quanto do poder político (realeza).
• Charles de Secondat, o Barão de Montesquieu: uma das mais notórias influências do
Estado moderno, uma vez que foi o idealizador de um Estado cujos poderes deveriam se
dividir internamente, por meio do limite e controle aos outros, com o objetivo de impedir
abusos de um poder arbitrário e limitado: os três poderes do Estado.
Montesquieu estudou em Paris, onde aspirava completar sua formação, e formou-se em
Direito. No ano de 1748, publicou a sua célebre obra, O espírito das leis. A essa obra, a teo-
ria política moderna atribui a divisão política adotada pelos Estados ocidentais modernos
que acabamos de citar.
No livro décimo primeiro, intitulado “Das leis que formam a sociedade política em sua
relação com a constituição”, o autor declarou que “existem em cada Estado três tipos de
poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das
gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil” (MONTESQUIEU,
2000, p. 167). Ele também descreveu as atribuições de cada um desses estados. Por meio
do poder legislativo, o príncipe ou monarca criava as leis temporárias ou permanentes,
bem como alterava outras em vigor. Com o segundo poder (executivo, que dependia do
direito das gentes), o soberano fazia guerra ou paz, prevenia invasões, entre outras me-
didas. Por fim, com o terceiro poder (também executivo, mas que dependia do direito
civil), julgava-se e castigava-se os crimes e/ou conflitos entre particulares. Em defesa de
sua proposta, declarou: “tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos
principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de
executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares”
(MONTESQUIEU, 2000, p. 168).
• Immanuel Kant: filósofo alemão, nascido na antiga Prússia. Para Kant, diferentemente
de Locke – que não apresentou afirmação clara sobre tal tema –, a soberania pertencia
ao povo, mas a cidadania dividia as pessoas entre cidadãos independentes (aqueles que
podiam exprimir opinião política, decidir questões do Estado, sendo esses basicamente
os proprietários, possuidores de riquezas) e cidadãos não independentes (dos quais não
se podia esperar uma opinião autônoma e, portanto, não deviam ter direito ao voto, como
servos das fazendas, por exemplo).
Formação do Estado moderno 57

Essa concepção influenciou toda a Europa. Na Itália, até o século XIX, só podia votar e
ser votado aquele que pagasse determinado nível de impostos. Assim, ao mesmo tempo
em que Kant afirmou que a soberania pertencia ao povo, a ele era negado em sua totali-
dade, pois a soberania era restrita somente a uma parte dele. Isso consolidou a essência
do liberalismo, a relação indissociável entre propriedade e liberdade. Kant defendia ainda
o caráter sagrado e inviolável da lei, que era superior à soberania. A soberania deveria ser
limitada por algumas leis que estão acima dela, mas que nunca poderiam ser colocadas
em discussão, como o direito de propriedade, a liberdade de expressão, a reunião e asso-
ciação. Mas essas eram liberdades que, na prática, eram aproveitadas apenas pelos que
possuíam recursos econômicos.
• Jean Jacques Rousseau: nascido na Suíça e falecido na França, foi um importante filósofo
e teórico da política. Realizou duras críticas à obra de Hobbes e afirmou que ao descrever
o homem em estado natural como um lobo, Hobbes não descreveu a natureza humana,
mas sim o homem de seu tempo. Rousseau não afirmou que Hobbes definiu o “homem
burguês”, mas foi justamente o que Hobbes descreveu: o surgimento da burguesia, do
mercado e das lutas e crueldades que os caracterizavam.
Rousseau fundou a concepção democrático-burguesa e acreditava que a condição na-
tural do homem era a felicidade, a virtude e a liberdade, condição apagada pela civili-
zação. Enquanto para Hobbes e Vico a condição natural era negativa, ruim e maléfica
ao homem, para ele essa era uma condição boa, positiva. O filósofo sustentava que os
homens nasciam livres e iguais – princípio da revolução burguesa na França – mas eram
“acorrentados” em todo lugar. Para Rousseau, os homens não podiam renunciar aos bens
essenciais de sua condição natural: a liberdade e a igualdade. Ele também defendia que
a sociedade nasceu de um contrato, apenas ela (enquanto para Hobbes era inversa a re-
lação, do contrato nasceu a sociedade e o governo). Por fim, Rousseau proclamou que o
povo não poderia perder sua soberania e o único órgão soberano era a assembleia. Isso é
importante, porque tal defesa o fez o primeiro teórico da assembleia. Ainda em Rousseau
encontramos a ideia de que o homem só podia ser livre se fosse igual e, embora estivesse
se referindo à igualdade jurídica, acabou chegando também à compreensão a respeito
da igualdade econômica e social e a negação à propriedade privada. Junto à propriedade
privada, teriam se iniciado os crimes, as guerras e outros males. Apesar das duras críticas,
o filósofo não propôs meios para abolir a propriedade privada.
• O Federalista: Weffort (1997) explica que os debates europeus a respeito do Estado – go-
verno e democracias – chegaram aos Estados Unidos no século XVIII em um momento
importante, em que a confederação, formada a partir da independência das treze colônias
inglesas, refletia sobre seu próprio futuro. Nós vimos anteriormente que a solução en-
contrada pelos norte-americanos inaugurou o sistema federativo, delineado na primeira
Constituição da modernidade, aprovada no ano de 1787 pela Assembleia de Filadélfia.
Como foi um momento importante e de debate acalorado nos Estados Unidos, Alexander
58 Ciência Política e Teoria do Estado

Hamilton (1757-1804), James Madison (1751-1836) e John Jay (1745-1829) construíram,


apesar de suas divergências, uma série de ensaios que explicava o teor da Constituição
e defendia o novo modelo de Estado que estava sendo adotado. Posteriormente, esses
ensaios, que haviam sido publicados na imprensa nova-iorquina, foram reunidos e publi-
cados sob o nome de O Federalista. Nessa obra constatamos a preocupação com o futuro
da Confederação e a defesa da Constituição, a qual trazia um modelo político muito su-
perior, o federalismo. Os oponentes a essa ideia evocavam uma tradição teórica iniciada
em Maquiavel, que culminou em Rousseau e passou por Montesquieu. Uma das grandes
contribuições de O Federalista foi a problematização dessas ideias tradicionais e a de-
monstração de que a nova ordem comercial que se desenvolvia e as preocupações com o
bem-estar material não eram incompatíveis com governos populares. Essa obra trouxe as
primeiras teorizações modernas a respeito de governos populares, pois foi a primeira vez
que tais reflexões não foram desenvolvidas com base em exemplos da Antiguidade.
Após esse sumário, discutiremos no próximo tópico os elementos reconhecidos como indis-
pensáveis para a composição de um Estado no seu sentido atual.

4.3 Elementos constitutivos do Estado


Foi o jurista francês Léon Duguit (1859-1928) que construiu a definição mais difundida a
respeito da constituição do Estado. Ele apontou para um elemento formal, o poder político – do
qual decorre o domínio dos mais fortes sobre os mais fracos – e dois elementos materiais, o territó-
rio e o elemento humano, que, conforme a abordagem poderá ser denominado de distintas manei-
ras, algumas indicadas por Bonavides (2010, p. 70-71): povo (denominação jurídica); população
(denominação demográfica) e nação (denominação cultural). Ao sintetizar a teorização de Duguit,
Bonavides apresenta uma objeção ao que entende como juízo de valor contido na afirmação do
francês, que sugeriu que o poder sempre implicava na dominação dos mais fortes sobre os mais
fracos, perspectiva que reconheceu a dominação como inerente a todo Estado.
Por não concordar com tal premissa, Bonavides (2010, p. 71) sugere outra definição que
lhe parece mais adequada, a do jusfilósofo alemão Georg Jellinek (1851-1911), que teria definido
o Estado como a “corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um
poder originário de mando”. Essa definição comportaria um eventual Estado neutro, acima das
classes sociais e que o consagraria como juiz ou disciplinador, isento de interesses específicos.
Com base nessas teorizações, identificamos as caraterísticas do Estado contemporâneo.
• há um poder estatal, exercido nos limites territoriais e em determinadas situações para
além destes (nas relações internacionais), a autonomia e a soberania, respectivamente;
• há também um dever de subordinação, pelo qual particulares não podem questionar as
ordens do Estado;
• constam as funções estatais, fundadas no monopólio estatal sobre atividades especifica-
mente suas;
Formação do Estado moderno 59

• os privilégios, que asseguram ao Estado tratamento privilegiado em todas as suas relações


jurídicas, sejam elas legais, contratuais ou judiciais; e
• o bem comum, presente e expresso nos compromissos assumidos pelos Estados, os quais
podem ser modificados se isso for mais conveniente à coletividade.
Observamos isso quando um país assume projetos contra fome, analfabetismo, entre outros
compromissos (GAMA, 2005, p. 61).

Considerações finais
Percorremos neste capítulo – primeiramente no curso da história, depois no curso das
ideias – o caminho que forjou o modelo de organização política predominante nas sociedades
ocidentais. Com isso, pudemos verificar que as ideias e experiências que influenciaram o Estado
moderno foram deflagradas no espaço geográfico e cultural da Europa e de uma das principais
colônias inglesas, os Estados Unidos da América. Agora sabemos, por exemplo, que a estrutura de
poder adotada em nosso país ou em muitos de nossos países vizinhos não é um modelo genuina-
mente nosso, idealizado e construído para atender às necessidades locais, mas sim, um modelo que
tentamos reproduzir observando aquelas sociedades.
Nos próximos capítulos vamos buscar compreender como a instituição do Estado organiza
e manifesta seu poder, como se relacionam os atores do espaço público (instituições estatais) e os
atores do espaço privado (cidadãos, sociedade civil, entre outros). Vamos perceber nos nossos es-
tudos seguintes à influência das ideias que discutimos neste capítulo, assim como vamos continuar
percebendo a forte influência do pensamento contemporâneo dessa mesma tradição que acabamos
de estudar.

Ampliando seus conhecimentos


Os excertos a seguir pertencem a um dos documentos políticos mais influentes da humani-
dade, que tem as bases da igualdade jurídica (Art. 1º); da soberania da nação (Art. 3º); do gover-
no das leis e não mais da vontade dos homens (Art. 4º); da representação política (Art. 6º); e da
Constituição e separação dos poderes (Art. 16º).

Trechos da Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789


(USP, 2017)

Art. 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem
fundamentar-se na utilidade comum.
[...]
Art. 3º. O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação,
nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.
Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exer-
cício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram
60 Ciência Política e Teoria do Estado

aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser
determinados pela lei.
[...]
Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pes-
soalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos,
seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente
admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e
sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
[...]
Art. 16º. A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a
separação dos poderes não tem Constituição.
[...]

Dicas de estudo
• A obra organizada pelo professor da Universidade de São Paulo (USP), Francisco Weffort,
denominada Os clássicos da política, é um dos mais difundidos trabalhos de caráter in-
trodutório a respeito do pensamento político ocidental, com inserção desde escolas até
cursos de pós-graduação no Brasil. Por isso, ela pode ser uma leitura muito profícua para
estudantes que desejarem compreender mais detalhadamente os pensamentos que mais
influenciaram a definição do nosso espaço público, representado no Estado moderno.
Da mesma forma, a outra obra citada, Tudo começou com Maquiavel, de Luciano Gruppi,
pode complementar o estudo com uma perspectiva mais crítica, própria da formação do
jurista italiano.
• Há um romance francês – considerado o primeiro romance realista –, escrito por Henri-
-Marie Beyle “Stendhal” (1783-1842), chamado O vermelho e o negro. A obra conta a saga
de um personagem que vivia na Europa do século XVIII. Ele não possuía sangue nobre,
riquezas ou qualquer outro fator que lhe conferisse prestígio social, contava apenas com
sua inteligência e uma notável memória, que lhe permitia misturar-se aos nobres e obter
ascensão em setores sociais bastante rígidos, como a nobreza e a Igreja. Os episódios
narrados constituem um retrato vívido da cultura e das transformações sociais e políticas
que ocorreram na Europa. Sua leitura, além de prazerosa, pode ensinar muito sobre o
universo que percorremos neste capítulo.

Atividades
1. Quais são as características comuns entre as três revoluções – Inglesa (1688), Americana
(1776) e Francesa (1789) – citadas no capítulo?

2. Relacione algumas características conhecidas do Estado brasileiro com as teorias analisadas


no item 4.2. deste capítulo: “Teorias contratualistas e a separação dos poderes do Estado”.
Formação do Estado moderno 61

3. Como se relaciona a posição de Bonavides (2010) a respeito dos elementos constitutivos do


Estado e a visão marxista do Estado e da sociedade?

Referências
BASTOS, C. R. Curso de teoria do estado e ciência política. 6. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2004.

BOBBIO, N. A teoria das formas de governo. 10. ed. Brasília: Editora UnB, 1998.

BOBBIO, N. Política. In: _______.; MATTEUCI, N; PASQUINO, G. Dicionário de política. 5. ed. Brasília:
UnB, 2004. 2v.

BONAVIDES, P. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Objetiva, 2010.

CHAUSSINAND-NOGARET, G. A queda da Bastilha: começo da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1989.

DALLARI, D. A. Elementos de teoria geral do Estado. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

DUSSEL, E. 1492: o encobrimento do outro. A origem do “mito da modernidade”. Petrópolis: Vozes, 1993

GAMA, R. R. Ciência política. Campinas: LZN, 2005.

GROSSI, P. A ordem jurídica medieval. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.

GRUPPI, L. Tudo começou com Maquiavel: as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci.
14. ed. Porto Alegre: L&PM Editores.

MONTESQUIEU, C. S. O espírito das leis. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

POMER, L. As independências na América Latina. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.

SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

USP – Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. Declaração de direitos do homem e do cidadão (1789).
Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-à-criação-da-
Sociedade-das-Nações-até-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acesso em:
6 jun. 2018.

WEFFORT, F. C. Os clássicos da política. 8. ed. São Paulo: Ática, 1997.


5
Relações do Estado e estruturas de poder

Continuamos nossa compreensão a respeito do Estado moderno, consolidado na cultura


jurídica e política do Ocidente. Já compreendemos que sua origem está relacionada à necessidade
de mediar conflitos sociais, de limitar o uso da força diretamente pelos grupos sociais e que o poder
que ele detém pode ser interpretado de distintas maneiras. Assim, o Estado pode ser considerado
um meio de estabelecer a opressão de uma classe sobre a outra, ou como um contrato ao qual todos
se submetem e abrem mão de parte de sua liberdade para obter segurança e proteção contra vio-
lência no convívio social. Podemos agora nos debruçar sobre o estudo das prerrogativas e poderes
propriamente ditos, pelos quais são impostos os limites dos quais falamos. Para isso, precisamos
compreender melhor tais poderes, suas fontes de legitimidade e como eles se projetam dentro e
fora do Estado.

5.1 Caracterização do poder do Estado


Como vimos, há muitas formas de compreender o Estado e tantas outras de explicá-lo.
Dentre as divergências, todavia, identificamos um ponto comum: a percepção de que o Estado tem
como propósito manter a ordem social (seja essa ordem entendida como dominação entre classes,
ou como pressuposto da paz e tranquilidade). Assim, para que o Estado seja um instrumento capaz
de se impor sobre conflitos, disputas e todo tipo de violência que possa se instaurar no âmbito da
sociedade, é preciso contar com um determinado tipo de poder. Mais que isso, esse poder deve pre-
valecer sobre qualquer outra manifestação de força, para que possa subjugá-la e restaurar a ordem.
Esse poder deve ter autoridade.
Por isso, podemos dizer que a autoridade política precisa do consentimento das pessoas ou
da maioria delas, pois é esse consentimento que legitima o poder do Estado. É pela autoridade po-
lítica do Estado que as pessoas se veem obrigadas a observar as leis ou suportar as punições quando
não as cumprem. Por isso, o poder do Estado se distingue dos demais, trata-se de um poder coa-
tivo. Além disso, esse poder conta também com o princípio da soberania, ou seja, a capacidade de
governar sem se submeter a nenhum poder superior (ABBAGNANO, 2007, p. 901).
Dallari (2011) também aponta a soberania como característica do poder do Estado. Mais que
isso, a soberania é a sua principal característica. Alguns teóricos, ao analisarem a projeção interna
do poder do Estado – dentro de seu próprio território e sobre os seus cidadãos –, entendem que
a soberania é a mesma coisa que o poder de império. Outros a definem como um poder exercido
sobre as pessoas. Em qualquer caso, é comum a definição do poder estatal como poder dominante.
Dallari explica que Jellinek, teórico que mencionamos no capítulo anterior, identificou dois
tipos de poder na sociedade: o poder não dominante – que se institui em sociedades que ingressa-
mos voluntariamente, como igrejas, clubes etc. –, e um poder dominante, que é o do Estado e so-
mente dele. Embora Jellinek não tenha deixado explícito, por certo ele estava se referindo à coação
64 Ciência Política e Teoria do Estado

legal. Assim, chegamos a uma encruzilhada em que observamos caminhos diferentes: há teóricos
que consideram o poder do Estado como um poder político, e há aqueles que o definem como um
poder jurídico.
Kelsen – que também já mencionamos anteriormente – é considerado o principal teórico do
poder jurídico do Estado. Teórico com uma visão normativa, o autor dizia que o poder de império
submete as pessoas, uma vez que ele transforma determinadas condutas em deveres jurídicos. Por
isso, na relação com o Estado, não existem homens submetidos a outros homens, mas sim, homens
submetidos a normas jurídicas. Kelsen também concluiu que as demais ordens existentes na so-
ciedade coexistem com a estatal (ordem jurídica) e são limitadas no tempo e no espaço pelo poder
estatal, que é uma ordem superior, aliás, é uma ordem suprema que não sofre limitações1.
Diante dessa polêmica – se a essência do poder do Estado seria jurídica ou política – Dallari
conclui que não é possível defini-lo exclusivamente com base em um desses dois elementos (políti-
co e estatal). Ele atribui a Miguel Reale (1910-2006) a mais promissora explicação: na organização
das sociedades houve ordem jurídica e também houve poder, de modo que podemos considerar
ambos elementos essenciais em sua organização. Dallari propõe que devemos considerar diferen-
tes graus de juridicidade, porque assim podemos compreender mais facilmente. Mesmo quando
um poder aparenta ser meramente político (o qual impõe-se ao visar um fim ou meta social, por
exemplo), ele guarda em si um grau jurídico. Isso também ocorre com um poder que aparenta ser
meramente jurídico (que se impõe para garantir o respeito às normas), esse mesmo poder não
deixa de ter dimensão política (DALLARI, 2011, p. 113-117).
Dessas considerações extraímos dois aspectos fundamentais para compreendermos o poder
do Estado: a primeira refere-se à extensão, os pressupostos, enfim, à definição da força em si, pela
qual o Estado submete as pessoas à ordem que dita. A segunda diz respeito à legitimidade que em
nosso tempo exigimos para reconhecer seu poder. A legitimidade está ligada também à legalidade.
Vamos nos ocupar desses conceitos nos itens seguintes.

5.1.1 Poder de polícia


De modo sintético, o conceito polícia pode ser juridicamente compreendido como a “força
organizada que protege a sociedade”. Cretella Júnior (1985), para chegar a uma definição sobre o
termo, apresentou três elementos que considerava indispensáveis:
• elemento subjetivo, orgânico ou instrumental: é o Estado, e é dele que provém o poder – o
Estado não pode delegar o poder em hipótese alguma ou se descaracterizaria enquanto Estado;
• elemento teleológico: é a finalidade ou escopo da polícia que consiste em assegurar a paz,
a tranquilidade e a ordem (e que não pode ser outro); e

1 É em sua obra Teoria pura do Direito (1984) que Kelsen explicou o sistema de direito positivo. Ao explicar tal siste-
ma, o autor situa na norma jurídica a condição de validade para todas as “ordens” e para toda “coação” que o Estado
pode empregar para ordenar a sociedade. O fundamento da autoridade e seu poder derivam de normas jurídicas. Dallari
explica o sentido dessa afirmação: o Estado não sofre limitações em seu poder porque as normas que ele aplica e que
dimensionam seu poder são criadas pelo próprio Estado, que ao definir o conteúdo das normas jurídicas não tem qual-
quer limitação.
Relações do Estado e estruturas de poder 65

• elemento objetivo ou material: refere-se às limitações à liberdade, especificamente a ati-


vidades que possam perturbar a vida comum.
Da conjugação desses três elementos, define-se juridicamente polícia como o conjunto de
poderes pelos quais o Estado consegue restringir a conduta das pessoas. Esses poderes decorrem
da lei e agem dentro dos limites por ela indicados. Tratam-se de poderes de coerção. Em síntese,
esse conceito pode ser definido como:

“[...] conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as ativi-


dades do cidadão mediante restrições legais impostas a essas atividades,
quando abusivas, a fim de assegurar-se a ordem pública” (CRETELLA
JUNIOR, 1985, p. 12).

No curso da história, verificamos bases longínquas da ideia de polícia, todavia, com sentidos
diferentes do que lhe atribuímos hoje. A origem da palavra está relacionada com as palavras politia
(latim) e politeo (grego). Na Antiguidade, essa palavra era empregada com o sentido de ordena-
mento político, de Constituição. Na Idade Média, por volta do século XI, assumiu-se um novo
sentido, mais restrito, porque se deixou de incluir ao conceito de polícia às relações internacionais
do Estado. É nesse momento que se começou a definir o sentido que hoje empregamos: o poder de
polícia passou a ser relacionado aos administradores das comunas europeias, cuja atuação voltava-
-se à manutenção da ordem pública e tranquilidade das pessoas. Posteriormente, e em um processo
lento, deixam de ser atribuídas a esse conceito matérias relacionadas à justiça e finanças, fato que
culminou no século XVIII sua compreensão como “atividade pública interna sem a justiça e as
finanças”. Isso permitiu ao Estado regular absolutamente tudo que se encontrava em seu âmbito.
Nesse período, surgiram importantes obras que discutiram o assunto, mas não verificamos nelas
um consenso a respeito do conceito de polícia (MEDAUAR, 1995, p. 90-91).
Foi nos fins do século XVIII que o debate alcançou o apogeu. O Código Geral prussiano
de 1794 dedicou parte de seus dispositivos à polícia. Para Medauar (1995), equivocadamente al-
guns teóricos costumam atribuir a esse código os antecedentes do conceito de polícia. De qualquer
modo, é nesse período que surgiu o chamado Estado de polícia, com o fim do Estado absoluto.
A caracterização do poder estatal exercido no período compreendeu “intromissão opressiva na
vida dos particulares”. Com isso, se definiu um novo sentido de polícia, mais restrito, que deu
lugar à ideia de Administração Pública. Encontramos nesse processo influências da Revolução
Iluminista, na valorização dos direitos individuais. E assim, polícia não foi mais empregada isola-
damente, em seu lugar foram empregadas expressões como polícia administrativa (na França, em
1795) ou poder de polícia (nos Estados Unidos, 1827), sendo este último o conceito utilizado no
Brasil (MEDAUAR, 1995, p. 91-92).
Para Cretella Júnior (1985), a ideia de polícia como administração organizada é mais recen-
te, associada ao início da unidade nacional e da separação de poderes. No entanto, ele identifica
no mesmo precedente histórico a origem da expressão poder de polícia. Podemos encontrar essa
66 Ciência Política e Teoria do Estado

expressão em decisões proferidas na Corte Suprema dos Estados Unidos, já na primeira metade do
século XIX, momento em que começou a ser universalmente aceita. Nas primeiras decisões em que
foi citada, a ideia não se apresentava com expressão uniforme e o poder de polícia só se firmou de
modo pleno em uma decisão proferida por um magistrado nos Estados Unidos em 1853:
O poder a que aludimos é mais o poder de polícia, poder investido na legis-
latura pela Constituição para fazer, ordenar e estabelecer todas as modalida-
des de leis íntegras e razoáveis, estatutos e ordenanças, com ou sem sanções,
não repugnando à Constituição, conforme julguem ser para o bem-estar da
Commonwealth e para súditos. (SHAW apud CRETELLA JÚNIOR, 1985, p. 23)
Assim, no âmbito do Estado moderno, podemos identificar atualmente uma classificação
mais tradicional, a qual reconhece uma polícia preventiva ou administrativa – incumbida da or-
dem, segurança e salubridade pública –, e uma polícia repressiva ou judiciária. A polícia adminis-
trativa é preventiva porque age antes dos acontecimentos e seu escopo é evitar perturbações. Por
essa razão, aceitamos que ela não tenha restrições ou limitações em suas formas de intervenção,
pois a própria natureza humana é imprevisível, de modo que as condutas que as pessoas adotam
são variáveis.
Embora essas formas de intervenções sejam aceitas, existem limites que consideramos com-
patíveis com a natureza do poder de polícia e, acima de tudo, necessárias para manter a integridade
do Estado de direito. Sua atuação não pode violar as liberdades públicas, os direitos do cidadão e
as prerrogativas individuais. Por isso, podemos dizer que o poder de polícia é discricionário, mas
não é arbitrário2. Esses limites também se aplicam à polícia repressiva ou judiciária, mas esta se
diferencia da anterior porque age depois dos delitos e investiga aqueles que a polícia preventiva não
conseguiu impedir. Com isso, a polícia repressiva ajuda o poder judiciário a punir as condutas não
aceitas, ou seja, ajuda a impor a sanção (CRETELLA JÚNIOR, 1985).
Nós temos contato cotidiano com esses instrumentos de poder, mas temos que tomar cui-
dado para não reduzir nossa compreensão somente às polícias propriamente ditas. Quando vemos
um oficial3, em sua viatura, com sua farda, estamos diante de um dos instrumentos do poder de
polícia do Estado. Existem muitos outros. Por exemplo, o poder de um fiscal de trânsito em aplicar
uma multa, o poder de uma autoridade administrativa em negar uma licença em caso de danos ao
meio ambiente ou desrespeito às normas de saúde pública, o poder do juiz ao proferir sentenças, o
poder que nos obriga a pagar impostos, entre tantos outros.
Logo, está claro que nós sentimos o poder de polícia do Estado nas ordens que dele emanam
e às quais não podemos negar obediência, sob o risco de sofrermos a sanção, que pode vir das mais
diversas formas, inclusive, a prisão. O Estado pode usar esses recursos com respaldo nas leis e é

2 Com base nessas reflexões, podemos resumir a diferença entre discricionariedade e arbitrariedade como uma dife-
rença entre impor o poder com escolhas dentro dos limites da lei (poder discricionário) e impor o poder sem respeitar os
limites colocados pela lei (atuação arbitrária). Na modernidade, não admitimos mais o poder arbitrário, ele é superado
junto do Estado absoluto e quando ressurge – em regimes totalitários, ditaduras etc. –, significa a negação do direito e
da própria democracia.
3 Nos Estados brasileiros encontramos nas polícias essa divisão também. A Polícia Militar tem o dever institucional
de cumprir a função preventiva e evitar crimes. A Polícia Civil, também denominada, como vimos aqui, Polícia judiciária, é
aquela que investiga as condutas e elabora, por exemplo, o inquérito policial. Este deve contribuir para o esclarecimento
dos fatos que o judiciário julga e aplicar a sanção (pena) devida em cada caso.
Relações do Estado e estruturas de poder 67

nele que encontramos a sua força irresistível, que caracteriza o poder de polícia como um poder
de coação, também designado poder coercitivo, quando exercido com base na lei fundamentada no
sistema jurídico e no Estado.

Diferença entre poder de polícia e poder da polícia


Não podemos confundir o poder de polícia com o poder da polícia. Este
último é a forma como o poder se manifesta concretamente em ordens
e atos – como nos exemplos que citamos anteriormente –, enquanto o
primeiro é fundamentado na legitimidade. O poder da polícia, sem o
poder de polícia, seria um poder arbitrário, incompatível com o Estado
de direito (CRETELLA JUNIOR, 1985, p. 26).

Vimos a importância do poder de polícia e agora podemos compreender por que somente
o Estado e suas autoridades podem exercer tal força e o motivo pelo qual não se pode delegar a
particulares sua execução. Devemos agora nos deter a um aspecto essencial do poder de polícia no
Estado contemporâneo, o qual tangenciamos ao mencionar o limite da legalidade nas atuações e
demonstrações de força do Estado. Como mencionamos, com o triunfo das revoluções burguesas
dos últimos séculos, deixamos de admitir governos de homens, arbitrários e por vezes abusivos,
para em seu lugar nos submetermos ao governo de leis, acreditando encontrar, sob o jugo da lei,
limites seguros para a vida em sociedade. Por isso, falamos que, na atual estrutura de poder que
adotamos, são indispensáveis a legalidade e a legitimidade do poder do Estado. Mas, o que é, afinal,
legalidade e legitimidade do poder político?

5.1.2 Legalidade e legitimidade do poder político


A doutrina não chega a um consenso quando se discute a respeito da legitimidade e da lega-
lidade do poder. Para alguns teóricos, esses elementos constituem traços essenciais para descrever
o poder do Estado, enquanto para outros, tais elementos nem mesmo caracterizam o poder estatal.
No princípio da legalidade, temos um limite e também um fundamento do poder político, segun-
do o qual o Estado no exercício do seu poder também deve observar a lei4. Ou seja, todo o poder
que o Estado manifesta deve contar com uma norma jurídica que prevê seu exercício. Por isso, as
autoridades jurídicas agem de acordo com regulamentos ou preceitos jurídicos expressos em leis,
decretos, dentre os quais destacamos o mais importante no âmbito de um Estado: sua Constituição.
A legitimidade, por sua vez, abrange dimensões mais complexas do poder porque comporta
juízos de valor, ou seja, a justificação de valores do poder legal e estatal. Por isso, encontramos au-
tores que sustentam a ideia de que a legitimidade é a legalidade acrescida de valores, a qual passará

4 A lei não se impõe somente às pessoas que devem respeitá-la, mas ao próprio Estado, que não pode violar a lei
no cumprimento de suas funções e exercício de suas prerrogativas. Entretanto, como é o próprio Estado quem dita as
leis que deverá também respeitar, podemos reconhecer nisso a “capacidade de auto-organização” do Estado, como cita
Bonavides (2010, p. 116).
68 Ciência Política e Teoria do Estado

a abranger também as crenças de cada época. É dessas crenças que decorrerá o consentimento das
pessoas em obedecer ao poder do Estado. Eis aqui a importância do texto constitucional enquanto
abrigo da legalidade, mas para além dele, também devemos procurar valores, crenças e princípios
derivados da ideologia dominante, que fundamentam o poder estatal e configuram a legitimidade
(BONAVIDES, 2010, p. 120-121).
Desse modo, podemos simplificar os dois conceitos e dizer que a legalidade se refere à forma
pela qual o poder do Estado se fundamenta: uma base normativa, o texto da lei; já a legitimidade
se refere ao conteúdo de valor que deve ser respeitado no exercício do poder estatal. Assim, não
é qualquer norma jurídica que será fundamentada, mas somente aquelas normas que respeitarem
também as crenças e aspirações sociais.
Para compreendermos melhor essa relação, podemos contar com as contribuições do cons-
titucionalista brasileiro Luís Roberto Barroso. Suas considerações a respeito desses conceitos são
muito importantes para a compreensão do Estado e para o Direito, especialmente em relação a
como aprendemos a dar-lhes sentido com base em nossas trágicas experiências nas últimas déca-
das, como foi o caso do regime nazista. É uma lição pertinente, uma vez que vinculamos o poder
político a seu fundamento jurídico e a Constituição é a forma pela qual estabelecemos esse vínculo
e a definimos como documentos jurídicos e políticos.
Se tomarmos como base o Estado constitucional de Direito, que é a principal opção das
sociedades ocidentais contemporâneas para institucionalizar de modo legítimo o poder, podemos
distinguir três fases na sua formação. A primeira, o Estado pré-moderno, a respeito do qual já
comentamos e vimos que compreendeu diversas formas até culminar no Estado absoluto. Do fim
desse Estado, chegamos à segunda fase, o Estado Legislativo de Direito, baseado no império das leis
sobre os homens e que também entrou em crise.
Na primeira metade do século passado, a humanidade presenciou os perigos de uma cren-
ça inabalável na segurança da lei, que se apresentou nos regimes totalitários da Segunda Guerra
Mundial. O Estado nazista aplicou seu poder e cometeu as maiores atrocidades do nosso tempo.
Tudo que foi praticado nesse Estado se deu com base na estrita legalidade, ou seja, o fundamento
da legalidade estava presente. O problema era o fundamento da legalidade: qualquer lei que fosse
devidamente aprovada pelos poderes instituídos seria válida.
Essa tragédia, que Barroso descreve como “barbáries sob a égide da legalidade”, mostra-
ram à humanidade que a legalidade vazia de conteúdos era tão perigosa quanto à ausência total
da legalidade. Assim, da crise do Estado Legislativo de Direito emergiu o Estado Constitucional
de Direito, terceira fase, que perdura até nossos dias. Nesse Estado não basta que se respeitem os
procedimentos determinados na lei, mas é fundamental que toda a ordem jurídica respeite valo-
res, crenças e o que é tido como legítimo pela sociedade, que passamos a incluir dentro dos textos
de nossas constituições. Um detalhe importante: se no âmbito mundial foi a Segunda Guerra e o
regime nazista que impuseram o princípio da legitimidade aos Estados, no Brasil essa consciência
somente é despertada na luta contra o regime militar, no processo de redemocratização do nosso
país (BARROSO, 2010, p. 76-79; 243-250).
Relações do Estado e estruturas de poder 69

Essa complementação é necessária pois, como vimos, há autores como Bonavides (2010)
que visualizam nas constituições o fundamento de legalidade do Estado, enquanto a legitimidade
deveria ser buscada mais além, no âmbito da sociedade. Entretanto, outros autores, como Barroso,
identificam nas constituições do nosso tempo presente ambos os fundamentos: a legalidade (fun-
damento formal) e a legitimidade (fundamento material) do direito e do Estado.
Em Bonavides, há uma explicação a respeito do amadurecimento político do Estado moder-
no. Para o autor, tratou-se de um processo que buscou fixar regras permanentes pelo princípio da
legalidade, resultado da razão e aptas a proteger os indivíduos do poder arbitrário dos governantes,
uma limitação ao poder absoluto. Com esse mesmo ânimo, Montesquieu entendeu a legalidade
como sinônimo de liberdade, uma ideia que ressoou entre os franceses até chegar ao texto cons-
titucional de 1791, presente no artigo 32: “não há em França autoridade superior à lei; o rei não
reina senão em virtude dela e é unicamente em nome da lei que poderá ele exigir obediência”
(BONAVIDES, 2011, p. 121).
Bonavides (2010, p. 122-129) explica que há quatro dimensões que se relacionam e determi-
nam a imposição dos dois princípios – legalidade e legitimidade – como pressupostos indispensá-
veis ao poder estatal.
• Dimensão histórica: a tradição antiga e o Direito canônico não distinguiam ambos os
princípios. Entretanto, a partir do ano de 1815, a França presenciou um antagonismo
vivo entre a legitimidade do poder restaurado da sua dinastia e a legalidade decorrente do
Código Napoleônico5, que dividiu liberais e conservadores, progressistas e moderados,
dentre outras posições. Uns penderam para a legitimidade histórica da dinastia, outros
tenderam para a legalidade de uma monarquia constitucional. Prevaleceu a legalidade.
Disso decorreu uma cisão entre ambos os conceitos, que só foi superada, como vimos há
pouco, no pós-guerra, quando a legalidade foi levada aos extremos. O princípio da legali-
dade também ficou abalado com as duras críticas apontadas pela teoria marxista, que de-
nunciou a lei como instrumento de dominação e de uma superestrutura social da opres-
são burguesa que evidenciava o abismo estabelecido entre a legalidade e a legitimidade.
• Dimensão filosófica: está relacionada a uma reflexão mais profunda e complexa acerca
das implicações do poder e que abrangem ideologias, crenças pessoais, problematizações
a respeito da autoridade das pessoas etc. Essa dimensão está além dos fatos e dados rela-
tivos ao poder e à vida política, pois ocupa-se de fundamentos e preceitos essenciais. No
campo da filosofia, são formuladas doutrinas que discutem os fundamentos do poder e
da obediência, seus erros, acertos e critérios para verificar quão legítima é uma ordem
política. Essas percepções variam porque seus critérios são estabelecidos subjetivamente,
fato que leva Bonavides a dizer que a consideração filosófica a respeito do problema da
legitimidade busca “menos o poder que é do que propriamente o poder que deveria ser”
(grifos no original).

5 O Código Civil Francês, ou Código Napoleônico, encomendado pelo imperador Napoleão Bonaparte e publicado em
1804, é considerado um marco fundamental para compreender o princípio da legalidade. É com base nesse diploma que
não apenas as condutas humanas, mas também o fundamento de toda autoridade passaram a ser vinculados à norma.
70 Ciência Política e Teoria do Estado

• Dimensão sociológica: dentre as abordagens sociológicas, encontramos a de Max Weber,


que identifica três formas básicas de legitimação social da autoridade. A legitimação ca-
rismática que se verifica, por exemplo, quando heróis ou demagogos conquistam o poder,
pois nesse caso a autoridade baseia-se na lealdade pessoal dos seguidores, transformando
sua fé e reconhecimento em deveres invioláveis. As formas mais puras de legitimação
carismática conservam o caráter autoritário e imperativo do poder. A legitimação tradi-
cional, que se apoia em uma crença de “virtude da santidade” e é a legitimação típica da
autoridade patriarcal, que identifica o governante como senhor e o governado como súdi-
to, ou o funcionário como servidor. A obediência se perpetua como tradição em respeito
a uma dignidade pessoal reconhecida como sagrada. E por fim a legitimação racional,
cujo tipo mais puro de poder é a autoridade burocrática. A obediência não é vinculada
à pessoa, mas sim à regra que determina a quem e quando se deve obedecer. Há outras
definições sociológicas que se ocupam da questão da legitimidade, como a do cientista
político francês Maurice Duverger6 (1917-1914).
• Dimensão jurídica: o jurista alemão Carl Schmitt (1888-1985) defendia que demonstrar
a legitimidade do poder legal dependia de uma presunção de juridicidade, cláusulas ge-
rais e obediência condicional. Esses fatores não podem ser ignorados, uma vez que são
importantes tanto para determinar critérios de controle de constitucionalidade das leis,
quanto para fundamentar uma doutrina do direito de resistência. Entretanto, a defesa
desse jurista – que foi um dos principais teóricos do nacional-socialismo, ideologia do
partido de Hitler – não alcançou a consciência do povo alemão e nem de seus magistrados
e funcionários do governo, o que provou o que Bonavides chama de “emboscada histórica
da legalidade hitlerista”. Nesse sentido, a Alemanha teve sua ordem jurídica entregue a
uma ditadura inescrupulosa e seu povo estava desarmado de um sentimento de resis-
tência que lhe pudesse acudir diante de tantos crimes7. Depois desse episódio, o próprio
Schmitt acrescentou a necessidade de limites (democráticos e constitucionais) aos pode-
res invocados pelas autoridades.
Na doutrina francesa, encontraremos juristas divididos em três grandes posições a respeito
da questão legalidade-legitimidade do poder político:
• teóricos que consideram a legalidade apenas questão de forma e a legitimidade como
questão de fundo ou substância, esta última verificada na conformidade entre o poder e
a opinião pública;
• autores que consideram legitimidade como questão ideológica e legalidade como questão
jurídica, entretanto, também consideram que as noções coincidem ou convertem-se na
mesma coisa, quando abordadas do ponto de vista constitucional8; e

6 Duverger considerava que cada época e lugar contavam com uma teoria dominante, capaz de angariar o apoio das
massas de governados sobre o apoio, das quais o governo alcançaria sua legitimidade em uma perspectiva sociológica.
7 Como já comentamos, o regime nazista alegava cumprir fiel e incondicionalmente as leis, sem jamais questioná-
-las. Foi o princípio da legalidade levado ao seu extremo.
8 Um governo legal e legítimo se, para ambos os casos, for observada a Constituição.
Relações do Estado e estruturas de poder 71

• estudiosos que consideram legalidade conceito formal e legitimidade conceito mate-


rial, para estes, legalidade significa que o governo se adequa a um texto normativo – da
Constituição – que o precede; já a legitimidade se configura na fiel observância e respeito
aos princípios vigentes nessa ordem normativa, contida na Constituição.
Diante do exposto, percebemos que o poder político se aproxima do sistema jurídico até a
quase identificação. Nossos Estados contemporâneos estão profundamente submetidos ao princí-
pio da legalidade, uma vez que a legitimidade do poder deverá estar contida e contemplada na lei.
Isto é, os valores, necessidades e crenças sociais (em que repousa a legitimidade) precisam constar
na lei (em que repousa a legalidade). Por isso, falar em poder político atualmente transcende a fi-
losofia política e perpassa a teoria do Direito, a antropologia, a teoria constitucional, entre outros.
Em suma, é um tema a ser tratado com uma perspectiva transdisciplinar.

5.2 Soberania e autonomia


Vimos até aqui que o poder do Estado se impõe sobre todas as pessoas, independentemente
de suas vontades. Esse poder é irresistível, porque dele não podemos escapar e a ele não podemos
negar obediência. A principal forma como o poder estatal se impõe em nossas sociedades é pelas
ordens contidas nas leis. Diferentemente de outras sociedades às quais nós podemos ingressar e
sair voluntariamente, nosso ingresso no Estado é automático e se não desejarmos viver sob o poder
de um, o máximo que podemos fazer é sair de seu território. Mesmo assim, ingressaríamos em
outro território, em que viveríamos sob o poder de outro Estado, com as mesmas prerrogativas e
com a mesma força irresistível. É desse modo que a força do Estado se relaciona com o seu povo,
ou seja, com as pessoas que vivem sob seu poder.
Entretanto, o Estado também estabelece relações com outros Estados (outros países), por
meio de suas relações internacionais e estabelece relações internas, de acordo com a forma de or-
ganização que adotar. Nós já vimos que um Estado pode se organizar com esferas internas (Estados
compostos), como é o caso do Brasil, em que encontramos as esferas estadual e municipal, abran-
gidas pela esfera federal. Vimos também o modelo federativo, e alguns pressupostos políticos desse
modelo, como a lei da autonomia (que veremos adiante). Agora, vamos buscar uma maior com-
preensão sobre os pressupostos políticos pelos quais um Estado estabelece relação não com pes-
soas, mas com outros entes políticos, como outros Estados ou seus próprios entes federativos (suas
divisões em Estados e municípios). Esses pressupostos são a soberania e a autonomia, e é funda-
mental compreendermos a distinção entre ambos.
Com relação à soberania, Bonavides (2010, p. 119) explica que se trata de uma prerrogativa
que se expressa em duas dimensões: a dimensão interna – denominada também poder de impe-
rium, projetado sobre o território e a população –, e a dimensão externa, que implica na indepen-
dência de um Estado perante os demais. Graças ao princípio da soberania, no plano das relações
internacionais, um país que detenha um enorme poder econômico tem (ao menos em tese) o mes-
mo poder e importância que um país de pouca riqueza econômica. Isto é, não é possível a nenhum
país exercer poder de império, determinar ordens a qualquer outro. Todos são soberanos.
72 Ciência Política e Teoria do Estado

Bastos (2004, p. 94-97) explica que a soberania não é um poder do Estado, mas sim uma
qualidade, um atributo desse poder. Em razão da soberania, o Estado não reconhece internamente
nenhum poder igual ao seu e externamente nenhum poder superior. E na trajetória histórica, a so-
berania é um conceito que só se impõe nos tempos modernos, já que nas épocas mais remotas, era
uma ideia desconhecida. Como já observamos, o primeiro teórico a se ocupar do assunto foi Jean
Bodin, que a descreveu como “poder absoluto e perpétuo de um Estado” (sua ideia era fortalecer o
poder do rei). Posteriormente, com Rousseau, a soberania ganhou novos contornos, pois esse autor
defendia que ela residia no povo. Finalmente, Jellinek defendeu a ideia de que a soberania reside
no Estado.
Com isso chegamos ao conceito atual, que inclusive está inscrito no primeiro parágrafo da
Constituição brasileira9. Finalmente, Bastos indica as características do poder soberano:
• unidade: só pode existir uma autoridade soberana em um Estado;
• indivisibilidade: já que só pode haver um poder soberano, esse poder é indivisível, ainda
que se estruture com competências divididas – como os poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário – de modo que essa distribuição de competências não significa divisão da
soberania;
• inalienabilidade: o Estado não pode delegar ou transferir sua soberania a outro órgão ou
pessoa; e
• imprescritibilidade: trata-se de um poder eterno, não limitado no tempo.
Com relação à autonomia, já observamos algumas de suas características ao tratarmos do
modelo federativo. Retomamos agora o conceito para aprofundá-lo. Nós já vimos que em função
da lei da autonomia, as divisões internas do Estado assumem determinadas competências. Trata-se
de um rol de poderes que o ente federativo maior, detentor da soberania, delega aos entes federa-
tivos que lhe subdividem. Segundo as nossas práticas jurídico-políticas atuais, as regras de distri-
buição desses poderes são determinadas por meio de um texto constitucional. Visualizamos essa
relação com base no modelo federativo brasileiro.
Contamos com a União, uma pessoa jurídica10 de direito público, que é o nível mais abran-
gente do conjunto de entes da federação. É ela que reúne todos os demais entes federativos e exerce
o poder central. Como seu poder é juridicamente ilimitado, dizemos que é soberano. Entretanto,
compreendidas dentro dessa esfera maior e definidas pelas regras de direito (normas), temos diver-
sas competências. Cada ente federativo, Estados e municípios, recebem um conjunto dessas com-
petências, que denominamos autonomia, resultado da descentralização pela União. Dessa forma,
a União exerce o poder central, mas não exerce todos, já que situou alguns poderes no âmbito da

9 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 1º, Parágrafo único: “todo o poder emana do povo, que
o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988).
10 Esse conceito jurídico é importante para compreendermos o Estado; para o sistema de leis vigente em nossas
sociedades, não são somente as pessoas físicas que podem assumir obrigações e reivindicar direitos. As chamadas
pessoas jurídicas (empresas, órgãos estatais, associações, fundações entre outras) também o podem. O Estado, seja a
União, seja um Estado-membro, como o Paraná, São Paulo ou Rio de Janeiro, ou um município, são pessoas jurídicas,
mas diferentemente das empresas em geral, que são órgãos particulares, privados, os entes e órgãos estatais são pes-
soas jurídicas de direito público, conforme dispõe o Código Civil (BRASIL, 2002), em seu artigo 41.
Relações do Estado e estruturas de poder 73

autonomia de seus Estados-membros e de seus municípios, divisão adotada no Brasil (BASTOS,


2004, p. 237-239).
Há autores que dizem que a autonomia existe apenas em Estados que adotam mais de um
centro com poder decisório e competências. Os Estados unitários contam somente com a sobera-
nia e não possuem autonomias. A autonomia, por sua vez, pode ser política, que implica na compe-
tência dos entes federativos em elaborar suas leis regionais ou locais; e administrativa, que consiste
na liberdade em executar as leis (MOTTA FILHO; BARCHET, 2009, p. 256-257).
A organização política brasileira definida em nossa Constituição reconhece ambas autono-
mias. Nossa federação compõe-se de três níveis: a União (primeiro nível), subdividida nos Estados-
-membros e no Distrito Federal (segundo nível); e os municípios (terceiro nível), que consistem
em subdivisões políticas e territoriais dos Estados-membros. A cada ente federativo, a Constituição
delegou tanto competências para criar determinadas leis quanto para executá-las e receber ordens
emanadas do âmbito federal. Portanto, quando um município age para arrecadar impostos, conce-
der/negar licenças e aprovar leis locais, ele atua com base no exercício de sua autonomia. Por outro
lado, quando o Estado Federal, em nome de toda a nação, assina um tratado internacional ou firma
um acordo com outro Estado (país), ele atua apoiado em sua soberania, pois tais atos só podem ser
praticados por quem as detém.

Diferenças entre soberania e autonomia


Dentre as diferenças entre soberania e autonomia, podermos citar que:

• a soberania projeta-se precipuamente para fora do Estado, enquanto


a autonomia manifesta-se no âmbito interno deste;
• a soberania é prerrogativa – no nosso caso – da República Federativa
do Brasil, sendo exercida somente pela União, que nunca poderá de-
legá-la; por outro lado, a autonomia é partilhada entre todos os entes
e, em determinadas situações, esses entes podem criar órgãos gover-
namentais, como agências reguladoras, para executar certas funções;
• a soberania é ilimitada interna e externamente, enquanto a autono-
mia é limitada, não podendo, por exemplo, manter relações no plano
internacional;
• a soberania é indivisível, já a autonomia pode se dividir conforme
os níveis federativos adotados no país (MOTTA FILHO; BARCHET,
2009, p. 256-257).

Em suma, se temos na soberania um poder ilimitado, que deve observar o respeito aos di-
reitos e liberdades das pessoas, a autonomia é um poder limitado pela própria soberania e também
pelas diversas leis vigentes no país, além dos direitos e liberdades das pessoas.
74 Ciência Política e Teoria do Estado

5.3 Limitações da soberania e da autonomia


Bobbio (2004, p. 1187-1188) reflete a respeito de uma profunda crise da soberania, defla-
grada em nosso tempo. Ele a chama de eclipse da soberania e aponta dentre suas causas o enfra-
quecimento do monismo estatal e os monopólios jurídico e político – que têm perdido lugar em
sociedades cada vez mais plurais –, além das novas relações internacionais com interdependências
econômica, política, ideológica etc. estabelecidas entre os países.
O autor considera que o maior golpe à soberania veio das comunidades supranacionais,
como a União Europeia, que cria cortes judiciais, autoridades, extingue barreiras alfandegárias
que descaracterizam as fronteiras do Estado soberano. Além desses fatores, o mercado mundial
e o surgimento de empresas multinacionais, que embora não tenham soberania no sentido estri-
tamente jurídico, são detentoras de um poder soberano, uma vez que acima de seu poder não se
coloca nenhum outro, há ainda a opinião pública que com os avanços tecnológicos pode se formar,
influenciar mundialmente e exercer uma pressão sobre o Estado a ponto de lhe impor agendas
que antes eram consideradas indiscutíveis. Por fim, existem as novas configurações globais, que
impedem pequenas potências de declarar guerra, por exemplo. Enfim, esses são alguns fatores que
levam o jurista a opinar pelo fim dessa forma de organização do poder fundada na soberania.
Acrescentamos a essa ordem de limitações à soberania um fator visível nas relações interna-
cionais, a pressão política e econômica exercida pelas grandes potências sobre as menores. Sabemos
que juridicamente um país não pode impor sua vontade sobre outro, todavia, isso não os impede de
exercerem outros tipos de pressão. É o caso do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos
à Cuba após a revolução de 1959. As privações decorrentes de bloqueios como esse podem ser um
forte estímulo para que Estados soberanos se curvem diante da pressão de outros Estados e até
mesmo grandes conglomerados econômicos.
No âmbito da autonomia, já observamos outras ordens de limitações, impostas pela sobe-
rania do Estado e as decorrentes de lei, como casos de intervenção federal. No caso brasileiro, a
Constituição Federal (1988) indica situações em que os Estados-membros e municípios podem
perder sua autonomia e ser submetidos à intervenção de outro ente federativo (a União sobre o
Estado-membro ou o Estado-membro sobre seu município). As circunstâncias em que a inter-
venção pode se dar estão previstas no sexto capítulo de nossa Constituição11 e incluem situações
graves, como a violação aos direitos humanos, a coação de um poder sobre o outro (lembrando
que todos os poderes do Estado devem se relacionar com harmonia, independência e equilíbrio),
invasão estrangeira ou de um ente sobre o outro.

Considerações finais
Vimos que a reflexão sobre o poder – um dos principais temas da ciência política – está pre-
sente na humanidade desde suas formas mais rudimentares de organização social. Vimos também

11 Essas informações constam no Artigo 34 de nossa Constituição. Para mais informações, acesse o site do Planalto:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 8 jun. 2018.
Relações do Estado e estruturas de poder 75

como evoluiu essa questão até se consagrar nas complexas teorias a respeito de como deveria ser
institucionalizado o poder, fato que culminou na idealização de um Estado soberano. Daqui em
diante, podemos aprofundar nossa compreensão em campos específicos em que o poder se organi-
za, para analisarmos e entendermos melhor os dilemas políticos do nosso tempo.

Ampliando seus conhecimentos


Veja a seguir um trecho de Jean-Jacques Rousseau, em seu O contrato social. Como já vimos,
Rousseau foi o primeiro a refletir sobre a importância da assembleia; por meio deste trecho, pode-
mos refletir também acerca da questão da legitimidade do poder do Estado.

O contrato social
(ROUSSEAU, 2010, p. 39)

[...] somente a vontade geral pode, por si só, dirigir as forças do Estado, de acordo com o
objetivo da sua instituição, que é o bem comum; porque, se a oposição dos interesses parti-
culares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, sem a concordância desses mes-
mos interesses, ela não teria sido possível. É o que há de comum nos diferentes interesses
que constituem o vínculo social, pois, se não houvesse um ponto em que todos estivessem de
acordo, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é unicamente sobre este interesse comum
que a sociedade deve ser governada.
Assim, afirmo que a soberania, sendo o exercício da vontade geral, nunca pode alienar-se, e
que o soberano, que é um ser coletivo, só por si próprio pode ser representado: o poder pode
transmitir-se, mas não a vontade.
[...]

Dicas de estudo
• Neste capítulo, nós tratamos de um tema de extrema importância para a teoria política
e também para o direito: o fundamento da legalidade e legitimidade exigido do poder
político. Assim, propomos uma atividade diferente para refletirmos a respeito dessa ques-
tão. No ano de 1961 foi lançado o filme Julgamento em Nuremberg, baseado em um dos
episódios mais importantes da história de nosso tempo: o julgamento de oficiais nazistas
pelos crimes cometidos no governo de Hitler. Durante os julgamentos, podemos observar
o grande dilema da humanidade entre a ideia de legalidade e legitimidade.
Título original: Judgement at Nuremberg
Direção: Stanley Kramer
Ano de lançamento: 1961
76 Ciência Política e Teoria do Estado

Atividades
1. Indique algumas formas de distinção entre poder de polícia, soberania e autonomia.

2. Os Estados-membros ou municípios de uma federação podem firmar tratados internacio-


nais? Justifique sua reposta.

3. É possível, por meio da soberania, superar as diversas formas de desigualdade percebidas


entre diferentes países na atualidade?

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do


novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BASTOS, C. R. Curso de teoria do estado e ciência política. 6. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2004.

BOBBIO, N. Política. In: BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 5. ed. Brasília:
Ed. UnB, 2004. 2 v.

BONAVIDES, P. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Objetiva, 2010.

BOTTOMORE, T. B. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 8 jun. 2018.

______. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Poder
Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/
L10406.htm>. Acesso em: 8 jun. 2018.

CRETELLA JÚNIOR, J. Polícia e Poder de Polícia. Revista Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.
162, p. 10-34, out./dez. 1985. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/
view/44771/43467>. Acesso em: 8 jun. 2018.

DALLARI, D. A. Elementos de Teoria geral do Estado. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

KELSEN, H. Teoria pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984.

MEDAUAR, O. Poder de Polícia. Revista Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 199, p. 89-96, jan./mar.
1995. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46490/46697>. Acesso
em: 8 jun. 2018.

MOTTA FILHO, S. C.; BARCHET, G. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

ROUSSEAU, J. O contrato social. Oeiras, PT: Editorial Presença, 2010.


6
Formas de governo e sistemas de governo

Neste capítulo, vamos delimitar nossas reflexões a respeito do poder do Estado em uma de
suas funções específicas: o governo. A ideia de governo foi definida por diferentes orientações e
pensamentos políticos e algumas teorias permanecem até hoje.
Nós já vimos que o Estado e o seu poder são imprescritíveis, ou seja, perduram de modo
ilimitado no tempo. Contemporaneamente, entendemos o governo como algo distinto do Estado:
se ele é permanente, o governo pode ser a manifestação de poder do Estado por um período de-
limitado. O Estado brasileiro, por exemplo, muda a cada quatro anos o seu governo e elege novos
representantes. Nesse sentido, o governo pode ser descrito como uma das instituições do Estado,
pelo qual ele se faz presente na sociedade.

6.1 Classificações de tipos de governo


Podemos encontrar uma das mais antigas – e mais importantes – formas de classificar o go-
verno na obra de Aristóteles. Em A política (que já mencionamos algumas vezes), o filósofo classifi-
cou o governo de acordo com o número de pessoas que exerciam o poder – um, poucos, muitos – e
também de acordo com a qualidade do governo, que podia ser bom, mau ou corrompido. Antes de
fazermos uma breve análise do resultado apresentado por Aristóteles, vamos nos deter um pouco
a Heródoto, que viveu no século V a.C.
Esse autor apresentou um importante diálogo imaginário entre três persas: Otanes, Megabises
e Dario, em que cada um defendia a forma ideal de governo. Esse diálogo teria acontecido um sé-
culo antes da obra de Heródoto, mas é na obra dele que surgiu pela primeira vez a classificação que
Aristóteles desenvolveu em sua Política. Por isso, Bobbio (1998, p. 39-42) diz que a classificação
em governo de muitos, governo de poucos e governo de um é clássica, mas também moderna, uma
tradição viva até os dias atuais.
A diferença entre as abordagens é que em Heródoto ela era prescritiva, isto é, cada um dos
debatedores defendia sua forma como a melhor e as demais como ruins. Aristóteles, por outro lado,
descreveu as três formas exercidas como bom governo e suas correspondentes como mau governo.
Aristóteles considerava errôneo pensar que a única coisa que diferencia os governos é o
número de homens a exercer o poder. Desse modo, o filósofo analisou e descreveu cada um dos
menores elementos que em conjunto formavam as cidades, o que o levava ao estudo dos seres. Para
ele, a descrição dos seres e sua natureza – no caso do homem e sua natureza de animal político –
mostrava-se na sociedade, nas cidades e suas formas de governo.
O filósofo também analisou formas concretas e também ideais e apresentou uma descrição
de constituições/governos reais e formas idealizadas, como as de Platão. Ele concluiu que existem
três formas puras ou boas de governo: a realeza, exercida por um só; a aristocracia formada por um
pequeno número ou muitos; e a república, composta pela multidão.
78

Quadro 1 – Comparativo das formas de governo apresentadas em A política

Governo de um só Governo de alguns Governo da multidão

Forma pura Forma viciada Forma pura Forma viciada Forma pura Forma viciada

Constituição
Realeza Tirania Aristocracia Oligarquia República Democracia/Demagogia
Aspecto

Era impossível um mer-


cenário ser cidadão,
Artesãos e mercená-
Aristóteles identificou.

Quem exerce porém era possível


rios (nunca seriam
a cidadania um artesão se tornar
cidadãos).
cidadão, desde que
fosse rico.
Ciência Política e Teoria do Estado

Pequeno número de Governo da


Soberania Um apenas Soberania do povo
homens. multidão

Interesses
que Coletivo Do tirano Coletivo Dos ricos Coletivo Dos pobres
prevalecem

1. Acesso à magis- 1. Igualdade como base.


tratura que só ricos 2. Magistraturas distribuí-
podiam pagar. das de acordo com um
Especula-se que a
2. O acesso à magistra- censo dado.
Tirania: forma de de- explicação dessa forma
1. Generalato vitalí- mocracia correspon- tura exigia rendi- 3. Admite na magistratura
de governo integra o
cio (hereditário ou dente ao quarto tipo de mento apreciável. cidadãos que não se
terceiro livro, no entan-
eletivo). Exemplo: oligarquia. Se aberto a qualquer corrompem.
to, seus capítulos finais
Formas Lacedemônia. um, seria uma aris- 4. Qualquer habitante pode
1. real: findada na lei se perderam.
exercício 2. Realeza tirânica tocracia, se limitado chegar à magistratura e
e na vontade dos 1. Constituição objeti-
de poder (semelhante à tirania, a certas famílias, era a soberania é firmada na
súditos. va: riqueza, virtude e
porém legitima e he- oligarquia. lei.
2. tirânica: poder abso- interesse popular.
reditária). Exemplo: 3. Sucessão hereditária 5. A soberania é transferida
luto e arbitrário. 2. Constituição obje-
povos bárbaros. nos cargos civis. da lei para o povo.
3. monarquia absoluta. tiva: somente duas
4. Sucessão hereditária 6. “Dinastia” forma de
dessas coisas.
dos juízes (a autori- democracia correspon-
dade cabia aos juízes dente ao quarto tipo de
teresses (ARISTÓTELES, 2002). O Quadro 1 permite comparar as seis formas de governo que
são consideradas corrompidas porque os governantes agem exclusivamente em favor de seus in-
As formas viciadas ou más são respectivamente: a tirania; a oligarquia e a demagogia. Essas

e não à lei). oligarquia.


(Continua)
Governo de um só Governo de alguns Governo da multidão

Forma pura Forma viciada Forma pura Forma viciada Forma pura Forma viciada

Constituição
Realeza Tirania Aristocracia Oligarquia República Democracia/Demagogia
Aspecto

Poder Homens mais dotados Nas mãos dos homens Nas mãos dos homens li-
supremo de virtudes. ricos. vres e pobres.

Indivíduos
Aduladores Demagogos.
influentes
“Não existe repú-
blica onde as leis
Papel da lei não governem”
(ARISTÓTELES,
2002, p. 182)

Pressão do chefe sobre


Violação de direitos Cargos divididos
o povo; o próprio oli-
Algumas das Violação de direitos políticos; falta de união entre poucos cidadãos; Violação de direi-
garca provoca a revo- Intrigas dos demagogos.
causas das políticos. entre os que tomam o violação do direito tos políticos.
lução; uma oligarquia
poder. político.
revoluções substitui outra.

Todos os governos podem cair por um motivo externo: tomado por outro Estado mais forte.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Aristóteles, 2002.


Formas de governo e sistemas de governo
79
80 Ciência Política e Teoria do Estado

Se a localização histórica de Aristóteles permitiu identificar essas seis formas de governo, a


evolução da história ampliou consideravelmente nossas experiências. Por exemplo, em Miranda
(2007) encontramos nove formas modernas de governo. Vejamos quais:
• Monarquia absoluta: dominante até a Revolução Francesa de 1789, as últimas experiên-
cias europeias ocorreram na Rússia e Turquia. Esse governo era caracterizado por concen-
trar ao máximo o poder no rei, fundado na legitimidade monárquica.
• Governo representativo clássico ou liberal: teve início com a Revolução Francesa e pre-
dominou até o século XIX. Orientava-se pela legitimidade democrática, liberdade políti-
ca, separação de poderes e um sistema de representação que reconhecia o direito de voto
somente a uma parte da população e atribuía autonomia aos representantes.
• Democracia jacobina: forma contraposta à anterior, fundada na democracia radical.
Almejava elevar ao nível máximo o princípio democrático. Recusava a representação e a
separação de poderes.
• Governo cesarista: do período de Napoleão Bonaparte, com inspiração em Júlio Cesar
e no principado de Augusto. Almejava legitimação democrática e o equilíbrio entre re-
presentação e plebiscito. Comprometia a liberdade política sem rejeitar formalmente a
separação dos poderes e defender sua concentração no César.
• Monarquia limitada: relacionada à primeira época da restauração e da monarquia, pró-
pria da Alemanha e Áustria no século XIX. Nesse sistema – que ainda suscita a legitimi-
dade monárquica – o poder é limitado pelas constituições, por isso também encontramos
a denominação monarquia constitucional. Adiante analisaremos melhor essa questão.
• Democracia representativa: predominante no Ocidente desde a Primeira Guerra
Mundial. Fundamentada na separação de poderes e na legitimidade democrática e no
sufrágio universal, isto é, o direito de todos os cidadãos ao voto. Nesse sistema se de-
senvolveu fortemente o fenômeno dos partidos, a ponto de ensejar a expressão Estado
de partidos.
• Governo leninista: inaugurado com a Revolução Russa, em 1917, e difundido em outros
países. Inspirado nas teorias de Marx e Lenin (1870-1924), em que o povo – a classe traba-
lhadora ou a sua evolução – é o titular do poder. Aqui notamos a desconfiança do Estado
(a qual podemos entender com base no que já discutimos sobre a definição de Estado
marxista) quando Lênin defendeu a instituição do governo pelo Partido Comunista,
maior expressão de consciência da classe operária.
• Governo fascista e fascizante: manifesta-se com diversas variações. Com marco inicial
no Partido Fascista italiano (1922-1943), também era identificado no regime nazista ale-
mão e – sob expressões mais brandas – no Estado Novo (de Getúlio Vargas) e no salaza-
rismo português1. Nesse governo não chega a ser rejeitada a democracia, mas o povo tem
seu sentido alterado. Na Alemanha, por exemplo, o povo passou a ser identificado com

1 O também chamado Estado Novo português, no qual o país esteve por décadas sob o governo de Antônio de
Oliveira Salazar.
Formas de governo e sistemas de governo 81

uma raça. É uma concepção que culmina, tal como no leninismo, no domínio do poder
por um partido.
• Governo islâmico e fundamentalista: adotado em alguns países muçulmanos. Para
Miranda, essa forma não está situada no conjunto abarcado pelo Estado moderno. Não há
a rejeição ao princípio democrático, mas sim o seu condicionamento ao princípio teocrá-
tico, que reconhecerá a legitimidade dos líderes religiosos, fato que naturalmente mitiga
o pluralismo político. Sua principal expressão é a República Islâmica do Irã, desde 1979
(MIRANDA, 2007, p. 65-67).
Nós iniciamos este capítulo com uma breve reflexão a respeito da relação entre Estado e
governo. Isso porque é importante notarmos, como alerta Bonavides (2010, p. 207-213), que não
existe consenso quanto ao uso dos termos formas de governo e formas de Estado. Por isso, o autor
defende um emprego mais preciso desses termos e distingue ambos. As formas de Estado referem-
-se à questão da unidade ou pluralidade dos ordenamentos estatais (Estado Federal, Confederação
etc.), bem como Estado simples ou unitário. Já as formas de governo é o modo como o poder se
organiza. Essa organização é determinada com base em três critérios, que veremos a seguir.
O primeiro critério, número de titulares, como já vimos, é a classificação proposta por
Aristóteles, que identificou a monarquia, a aristocracia e a democracia. Essa classificação sofreu
críticas por ser quantitativa, no entanto, não se considerou o fato de que o filósofo definiu as for-
mas de governo como puras e impuras. Cícero (106-43 a.C.) acrescentou a essa classificação uma
quarta forma: o governo misto, em que o poder é limitado em qualquer das suas três formas por
instituições políticas, como o senado aristocrático ou a câmara democrática. Alguns autores equi-
param o parlamentarismo inglês a essa forma de governo. O segundo preceito, separação dos po-
deres, é apoiado na teoria de Montesquieu. Esse tem uso mais recente e predominante no Estado
liberal. Por fim, os princípios determinantes das práticas de governo é o critério no qual podemos
definir o poder estatal como de exercício limitado ou absoluto. Dentre os três, esse é o mais recente
e é relacionado ao pressuposto de separação dos poderes, que se referia mais à forma do que ao
fundo das instituições.
Bonavides explica – com base nos critérios acima apresentados – que em Maquiavel apare-
cem duas formas de governo: monarquia e república; a república poderá abranger a aristocracia
e a democracia. Já em Montesquieu, a forma de governo é distinguida por sua natureza – critério
pelo qual se define o que é o governo – e por seus princípios, critério que permite conhecer o que
faz atuar o governo, por exemplo, as paixões humanas. Em Montesquieu aparecem como formas
de governo a república, a monarquia e o despotismo.
A república compreende a democracia, cuja natureza é reconhecer o poder nas mãos do
povo e seu princípio é o amor à pátria, igualdade, deveres cívicos etc. Na aristocracia a soberania
pertence a alguns e seu princípio é a moderação dos governantes. A monarquia é o governo de um
só, no qual o princípio é a honra às prerrogativas, o desejo de ser distinguido numa corte brilhante
e satisfação do amor próprio; a honra do monarca desperta nos soberanos a fidelidade e dedicação.
Por fim, o despotismo, cuja natureza é a ignorância ou transgressão da lei e o princípio reside no
82 Ciência Política e Teoria do Estado

medo. Dada a arbitrariedade, Montesquieu, na verdade, não chega a considerar o despotismo uma
forma de governo.
Segundo a separação dos poderes, o governo pode ser parlamentar, assentado na igualdade
e colaboração entre os poderes executivo e legislativo. Essa caracterização é típica do pensamento
liberal e é resultado do compromisso entre a monarquia, ainda vinculada aos ideais absolutistas, e
a aristocracia burguesa emergente da Revolução Industrial, com vinculação mais teórica que prá-
tica aos ideais democráticos. Esse poder também pode ser presidencial, que segue regras técnicas
do rito constitucional, com rígida separação entre os três poderes; ou ainda convencional, ou de
assembleia. Essa é a classificação mais frequente desde o século XIX.
Essa classificação é tão recorrente e predominante que com base nela identificamos distin-
tos sistemas de governos. Essa é outra forma importante de classificação, de modo que vamos nos
ocupar no próximo item de uma análise mais detalhada desse tema.

6.2 Sistemas de governo: presidencialismo e parlamentarismo


A seguir, analisaremos os três grandes sistemas de governo que conhecemos em nosso tem-
po: o parlamentarismo, o presidencialismo e o governo convencional ou de assembleia, com base
em Bonavides (2010, p. 317-357).

6.2.1 Sistema presidencialista


Reconhecemos a origem desse sistema, como fruto da experiência norte-americana nos tra-
balhos da assembleia constituinte da Filadélfia2 em 1787. Bonavides alerta que embora seja comum
contrapor o presidencialismo ao parlamentarismo, não podemos nos esquecer que foi também a
experiência britânica que o inspirou. Isso fica nítido em algumas características, como a própria
figura do presidente – detentor de poderes (e nominando o sistema) –, assim como o próprio rei
da Inglaterra, com suas prerrogativas.
Naturalmente, há diferenças entre ambos, como a limitação no tempo de mandato, mas já
foi cogitada a possibilidade de um presidente vitalício. Desse modo, para Bonavides, não é a figura
do presidente, tampouco a do parlamento que de fato distinguem os sistemas, afinal, todo presi-
dencialismo tem um parlamento, que denominamos como congresso. Isso ocorre da mesma forma
em um sistema parlamentarista, que pode ter a figura de um presidente. Há três aspectos principais
que podem ser considerados os verdadeiros traços distintivos do presidencialismo:
• É um sistema que historicamente adotou o princípio da separação dos poderes e o assu-
miu como condição máxima de garantia constitucional das liberdades. Na constituição
norte-americana, essa é a base de todo o sistema político3.

2 Na Constituição dos Estados Unidos da América, promulgada em 1787, artigo II, seção 1, consta que: “O Poder
Executivo será investido de um Presidente dos Estados Unidos da América. Seu mandato será de quatro anos” (tra-
dução da autora).
3 Isso ocorre de tal modo que encontramos entre os primeiros artigos a definição de competências e normas gerais
dos três poderes. O primeiro artigo especifica as prerrogativas, competências, normas de funcionamento entre outros
aspectos relativos ao Poder Legislativo, representado no congresso. O segundo artigo refere-se ao Poder Executivo,
representado pelo presidente. Por fim, o terceiro artigo discorre acerca do Poder Judiciário.
Formas de governo e sistemas de governo 83

• Baseia-se em uma forma de governo em que o poder executivo se concentra na pessoa do


presidente. Esse poder pode ser estendido aos ministérios, entretanto, é possível ministros
serem nomeados e demitidos pelo presidente de maneira independente do congresso.
• Tal sistema reconhece que os poderes do presidente derivam da nação, por meio do su-
frágio universal direto, embora, em caráter excepcional, possam derivar do congresso e
configurar uma derivação indireta (do povo ao presidente).
Em geral, o presidencialismo é um sistema que tende à expansão dos poderes de seu chefe
executivo. Tais poderes abrangem a chefia da administração e dos serviços públicos; o comando
supremo das forças armadas; a representação do país nas relações internacionais; entre outros.
Especificamente no Brasil, a Constituição Federal indica no artigo 84 as competências privativas
do presidente, que além das citadas, compreende também poderes de declarar guerra ou celebrar
paz, nomear ministros do poder judiciário e magistrados, decretar e executar a intervenção fede-
ral, entre outros. No caso dos Estados Unidos, observa-se uma concentração enorme de poderes
principalmente nas relações exteriores.
A respeito do modo como interagem os poderes, precisamos destacar alguns pontos, pois,
embora o presidente seja uma figura de poderes destacados nesse sistema, subsiste em sua essência
a preocupação com a separação, equilíbrio e harmonia entre os três poderes que integram o Estado.
Especificamente nas relações entre Executivo e Legislativo, o presidente não exerce relação
de poder ou comando sobre congresso e não tem competência para dissolvê-lo. Ele tem pequena
participação no processo de edição das leis, no entanto, cabe a ambos os poderes discutirem maté-
ria orçamentária com estreita relação. O poder de veto é confiado ao presidente como instrumento
para contrabalancear a competência legislativa, ele tem potencial de impedir (mas não de estatuir),
já que o veto tem caráter relativo e pode ser derrubado pelo congresso. O presidente também no-
meia os ministros da mais alta corte de justiça, que, no entanto, dependem da aprovação do con-
gresso. Além disso, o presidente exerce a política nas relações internacionais, mas o congresso tem
importante participação nos processos de ratificação dos tratados.
O vice-presidente é considerado por certas abordagens teóricas uma figura menos estimada
desse sistema. Ele é visto desse modo desde sua origem, na Constituinte da Filadélfia. Há uma ane-
dota interessante para ilustrar a posição do vice-presidente no sistema presidencialista:
Expressando bom humor a esse respeito, o primeiro vice da história ameri-
cana, Adams, sugeria que se desse ao titular desse cargo o tratamento de “Sua
Excelência, o Supérfluo”, depois de asseverar que nunca a imaginação do ho-
mem “concebera função mais insignificante”.
Outro vice, de igual porte e envergadura, que foi Theodore Roosevelt, afirmava,
ainda no começo do século XX, ser na realidade o vice-presidente apenas “a
quinta roda da carruagem”. (BONAVIDES, 2010, p. 328)

Apesar dessas especulações teóricas, por mais de uma vez a história nos mostrou a im-
portância dessa figura. Podemos exemplificar isso nas duas mortes de presidentes nos Estados
Unidos (Roosevelt e Kennedy) e na repentina renúncia de Jânio Quadros (1917-1992) em nos-
so país. No Brasil, o vice-presidente é substituto do presidente – enquanto este estiver impe-
dido – ou seu sucessor, em caso de vaga. Em razão disso, aplicam-se os mesmos requisitos de
84 Ciência Política e Teoria do Estado

elegibilidade do presidente, especificamente a exigência constitucional de que seja brasileiro


nato. Os presidentes das casas legislativas – Câmara dos Deputados e Senado Federal – tam-
bém devem ser brasileiros natos, pois, caso seja impossível o vice-presidente assumir a chefia
do Estado, esses seguirão a linha sucessória.
No quarto capítulo, nós vimos que as colônias espanhola e portuguesa – a América Latina –
em seu processo de independência buscaram inspiração nos modelos das metrópoles e nas Treze
Colônias independentes para sua nova organização política. Em decorrência disso, adotamos tam-
bém a forma republicana e diversos de seus institutos. Vejamos, por exemplo, o congresso: no siste-
ma presidencial, temos duas casas: a câmara baixa (dos deputados), ou câmara dos representantes,
que representa o povo; e a câmara alta (dos senadores), que representa os estados.
O estado de São Paulo, por exemplo, que tem um enorme contingente populacional, conta
com três representantes no Senado Federal, o mesmo número que os estados do Acre ou Roraima.
No caso dos deputados, que não representam o estado, mas sim o povo, o número de representan-
tes é proporcional ao número de habitantes do estado de origem, conforme regras do artigo 27 da
nossa Constituição (BRASIL, 1988).

6.2.2 Sistema parlamentarista


Diferente do presidencialismo, que surgiu há alguns séculos, mas já no curso da modernida-
de, o parlamentarismo é resultado de um processo político que se desenvolveu por vários séculos,
com origens bem mais longínquas. Ele está situado na tradição inglesa, com raízes nos primeiros
séculos da monarquia e culminou com o triunfo da Revolução Gloriosa de 1688. Por isso, o parla-
mentarismo, como resultado da história, do desdobramento das instituições e da cultura política se
manifesta tão claramente de modo que não ocorre em nenhum outro sistema.
Há duas fases no sistema parlamentar: a primeira (nos séculos XIII ao XVII) caracterizada
pela luta para formação de um governo representativo em oposição à monarquia absolutista; já a
segunda ocorreu por meio de transformações pacíficas, mas importantes, no século XVIII (após
a revolução de 1688). De um tímido sistema representativo surgiu o parlamentarismo, nele havia
duas casas representativas: Câmara dos Comuns e Câmara dos Lordes.
Marco fundamental, a Revolução Gloriosa é o momento histórico em que o parlamento as-
sume consciência de sua força. O parlamentarismo surgiu como expressão de duas forças políticas
antagônicas: a Coroa dos reis e o Parlamento do povo. Essa dualidade é visível: de um lado a Coroa,
que declinou de absoluta para limitada e representativa; de outro, o poder parlamentar que estava em
franca ascensão. Resultado de um processo histórico, Bonavides considera impossível “fabricá-lo”
(BONAVIDES, 2010, p. 342-347).
O autor identifica também duas formas históricas de parlamentarismo: a primeira é o par-
lamentarismo clássico, também chamado dualista4, formado no momento em que o monopólio
da Coroa e da nobreza foi enfraquecido pelo poder do povo. Essa forma de parlamentarismo tem
como características próprias e essenciais:

4 Porque nele percebemos uma dualidade de poderes essenciais: da monarquia e aristocracia decadentes e dos po-
deres democráticos em ascensão.
Formas de governo e sistemas de governo 85

• Igualdade entre poderes Executivo e Legislativo: que impôs a necessidade de uma che-
fia própria para o Executivo, com poderes que poderiam ser mais ou menos amplos. Essa
chefia pode ser um presidente, caso o sistema adotado fosse parlamentar republicano.
Podemos dizer que a amplitude dos poderes desse chefe é determinada pela forma como é
designado para o cargo. No caso de eleição direta, por exemplo, ele terá mais força e pres-
tígio, entretanto, o sistema de nomeação também pode ser indireto. Assim, temos uma
monarquia representativa, na qual o chefe de Estado decide por meio de referendos dos
ministros; ou uma monarquia parlamentar, em que as decisões são tomadas pelo minis-
tério e o chefe de Estado apenas as assina. Vemos ainda a dualidade do poder Executivo
expressa pela presença do chefe de Estado – que representa o país e atua com independên-
cia – e seu gabinete, que atua em conexão como legislativo. E finalmente, o bicameralismo,
instrumento de equilíbrio do Parlamento, adotado para, dividindo-o, mitigar sua força.
• Colaboração dos dois poderes entre si: cabe ao gabinete desempenhar papel de me-
diação entre o Executivo e o Legislativo. A origem moderna do gabinete está no século
XVII, quando surgiu como ministério do rei. Antes esse órgão era de poder pessoal do
rei, depois da ascensão do parlamento, o gabinete passou a ser órgão de confiança deste.
À frente do gabinete está a figura do primeiro ministro, que no século XIX se consolidou
como função claramente definida no sistema parlamentar.
• Existência de meios de ação recíproca entre seus funcionamentos: o parlamento
conta com dois mecanismos importantes: o princípio da responsabilidade ministe-
rial – resultado de um processo político em que o impeachment passa da responsabi-
lidade penal à responsabilidade política perante à opinião pública; e a faculdade ou
direito de dissolução, uma contrapartida da responsabilidade ministerial, meio inver-
so pelo qual o governo atua sobre o parlamento e impede as assembleias de se tor-
narem instrumentos onipotentes das maiorias parlamentares. É importante lembrar
que caso o Executivo dissolva o parlamento, ele é obrigado a convocar novas eleições
dentro do prazo determinado constitucionalmente.
A segunda forma é o parlamentarismo contemporâneo, também conhecido como parla-
mentarismo monista ou democrático, comum às atuais formas monárquico-republicanas. Essa mo-
dalidade é determinada pelas fontes democráticas do consentimento e conta com dois traços es-
senciais: a primeira, quando o chefe tradicional do Poder Executivo é afastado de suas funções de
governo, ficando apenas com o papel de chefe de Estado. A segunda ocorre quando a autoridade
soberana é entregue a um órgão soberano: o gabinete, que opera sobre a fusão dos dois poderes.

6.2.3 Sistema convencional ou governo de assembleia


Encontramos em Joseph Barthélemy (1874-1945) a proposta de classificação dos governos
em função da relação estabelecida entre os poderes Executivo e Legislativo. Para o autor, se a cons-
tituição atribuir predominância ao Executivo, teremos um governo presidencial. Caso haja pre-
domínio do Legislativo, teremos o governo ou sistema convencional, governo diretorial ou ainda
um governo de assembleia, variações de como esse sistema é designado. O governo de assembleia
originou-se na Revolução Francesa (AZAMBUJA, 1988, p. 323-324).
86 Ciência Política e Teoria do Estado

Esse sistema surgiu como uma variação do parlamentarismo monista e não como aplicação
fiel da experiência inglesa. Podemos caracterizá-lo pela preponderância da assembleia e considerá-
vel redução das prerrogativas e poderes do presidente, que acabava por privar o chefe de Estado de
suas competências executivas e incumbir-lhe, nos dizeres de Bonavides, uma espécie de “magistra-
tura moral” (BONAVIDES, 2010, p. 357). Isso ocorreu na França nas Terceira e Quarta repúblicas
(1870-1940).
Barroso (2011) avalia que o sistema convencional tem graves inconvenientes, especialmente
a ausência de um controle ou equilíbrio no poder. Nesse sistema, o único contrapeso seria a divisão
entre os membros do poder, imposta por força de suas divergências políticas. Para o autor, a forma
como esse sistema funcionava na França que o levou à autodestruição. Além dessa experiência,
Portugal contou com dois períodos de sistema convencional: o primeiro de 1821 a 1822 e o segun-
do de 1837 a 1838.

6.3 O instituto do impeachment e as experiências brasileiras


Dois episódios na história recente do Brasil provocaram comoção e polarizaram opiniões,
ambos ocorridas após o regime militar. O episódio mais recente, iniciado no ano de 2015 contra
a então presidente Dilma Rousseff (1947-), dividiu juristas, cientistas políticos e a sociedade bra-
sileira e acalorou discussões que por vezes conduziram a um diálogo irracional que culminou em
episódios de violência social e repressão com uso de força policial.
Em razão disso, consideramos oportuno tratar desse tema não como mero instituto do
presidencialismo, mas antes, com um enfoque um pouco mais aprofundado, que nos permita
uma perspectiva teórico-legal. Assim, vamos iniciar uma revisão acerca das origens históricas do
impeachment, analisar como tal instituto encontra regulamentação jurídica no sistema brasileiro
e, finalmente, fazer um breve sumário dos dois processos desenvolvidos ocorridos em nosso país
nos anos de 1992 e 2016.
Faver (2016, p. 322-323) explica que as origens mais remotas do instituto são localizadas
na Inglaterra, ainda que não haja um consenso entre os estudiosos acerca da época em que ele
surgiu. Especula-se que o processo de amadurecimento do impeachment tenha iniciado por volta
do século XIII e consistia em uma prática em que a Câmara dos Comuns (ou Câmara Baixa) for-
mulava acusações contra os ministros do rei e a Câmara dos Lordes (ou Câmara Alta5) procedia
os julgamentos.
No início, era estritamente necessário que tanto a conduta quanto a pena estivessem previs-
tas em lei para que a Câmara dos Lordes pudesse condenar os acusados. Entretanto, não tardou
para que se firmasse o entendimento de que tal Câmara aplicasse a pena que considerasse adequa-
da nos casos de crimes capitais. O passo seguinte foi a ampliação das condutas abrangidas pelo
instituto, que passou a incluir o julgamento de atos que, embora não fossem crimes, eram consi-
derados nocivos ao país. Com isso, o instituto não perdeu seu caráter de jurisdição criminal, mas
ampliou de modo notável suas dimensões políticas.

5 No Brasil, o Senado é equivalente à Câmara Alta, já a Câmara dos Deputados corresponde à Câmara Baixa.
Formas de governo e sistemas de governo 87

Os Estados Unidos, em sua Constituição, recepcionaram o impeachment, entretanto, com


algumas transformações e algumas similaridades, como a preservação das competências historica-
mente definidas. No primeiro artigo, ao final da seção 2, é atribuído como competência exclusiva
da Câmara dos representantes o poder de indiciar o presidente por crime de responsabilidade e
no final da seção seguinte, confia, também com exclusividade, ao senado a competência para o
julgamento por crime de responsabilidade. Esse é o sistema que inspirou o impeachment no Brasil,
como veremos logo adiante. Por crime de responsabilidade entendemos aqueles estritamente liga-
dos à função política do agente e não qualquer tipo penal previsto em lei.
Dentre as diferenças, notamos que o instituto na tradição inglesa funcionava como forma de
punição às pessoas, enquanto nos Estados Unidos feria apenas a autoridade. Nos Estados Unidos,
o impeachment se impõe como instrumento puramente político. Na tradição inglesa – em que o
processo de impeachment é considerado misto – as penas possíveis não são apenas político-admi-
nistrativas, mas também civis e criminais.
Outro ponto interessante é que antes de constar na Constituição do país, o impeachment já
constava nas constituições de dois Estados-membros: Virgínia, desde 1776, e Massachusetts, desde
1780. Quando chegou ao continente latino-americano – primeiramente na Argentina –, seu obje-
tivo era tirar o cargo da autoridade processada, pois seu escopo não era castigar a autoridade, mas
sim, preservar o interesse público (FAVER, 2016, p. 323-325).
No Brasil, desde a Constituição de 1824, temos a previsão desse instituto. Vamos analisar
uma breve síntese a respeito de como cada Constituição abordou o tema.
Quadro 2 – O impeachment nas constituições brasileiras

Constituição Como foi previsto

1824
Constituição Política do • O artigo 47, inciso II, determinava ser atribuição exclusiva do Senado conhecer
Império do Brasil, elaborada da responsabilidade dos secretários e conselheiros do Estado.
por um Conselho de Estado
• Já o artigo 133 mencionava quais eram os crimes de responsabilidade dos
e outorgada pelo Imperador
ministros, como suborno, abuso de poder e traição.
D. Pedro I, em 25 de março
de 1824.

• O artigo 29 declarava ser competência da Câmara dos Deputados declarar a pro-


cedência ou improcedência de acusações feitas contra o presidente, ou contra
ministros de Estado por crimes conexos aos do presidente.
• No artigo 33 constava a competência do Senado para julgar o presidente, mas a
1891 pena que poderia determinar somente poderia ser a perda de mandato e incapa-
Constituição da República cidade para exercer qualquer outro.
dos Estados Unidos do Brasil, • O artigo 53 (atual artigo 86) figurou a previsão que seguimos na atual Constitui-
de 24 de fevereiro de 1891. ção, de que o presidente seja julgado pelo Supremo Tribunal Federal por crimes
comuns e pelo Senado nos crimes de responsabilidade.
• Dentre os crimes de responsabilidade previstos no artigo 54, constavam atentar
contra o livre exercício dos poderes, contra a segurança interna do país, probida-
de da administração e leis orçamentarias votadas pelo Congresso.

(Continua)
88 Ciência Política e Teoria do Estado

Constituição Como foi previsto

• O artigo 57 indicou quais seriam os crimes de responsabilidade do presidente da


1934 república. Manteve-se basicamente a previsão da Constituição anterior.
Constituição da República • Entretanto, no que diz respeito ao julgamento, o artigo 58 de crimes de respon-
dos Estados Unidos do Brasil, sabilidade determinou um Tribunal Especial, presidido pelo presidente da Corte
de 16 de julho de 1934. Suprema (que só votaria em caso de empate), composto por nove juízes: três
ministros da mesma corte, três senadores e três deputados.

• Novamente o rol de crimes de responsabilidade previsto foi semelhante aos an-


1937
teriores, embora bem menor e presente no artigo 85 da Constituição. Aqui, o Se-
Constituição da República
nado foi substituído pelo Conselho Federal, ao qual competia julgar o presidente
dos Estados Unidos do Brasil,
se a Câmara declarasse precedente acusação contra ele formulada, conforme
de 10 de novembro de 1937.
determinava o artigo 86.

• No artigo 62 constou a competência do Senado para julgar o presidente nos cri-


1946
mes de responsabilidade definidos pelo artigo 89, fato que voltou a ampliar o rol.
Constituição da República
• O parágrafo único desse artigo – do mesmo modo que as constituições anterio-
dos Estados Unidos do Brasil,
res já haviam feito – determinou a edição de uma lei especial a regulamentar as
de 18 de setembro de 1946.
normas de processamento do impeachment (Lei n. 1.079 de 10 de abril de 1950).

• O artigo 44 manteve a competência do Senado para julgamento do presidente


1967 nos crimes de responsabilidade, e no artigo 84 indicou quais seriam.
Constituição da República • Em 17 de outubro de 1969, nossa Constituição sofreu uma Emenda levada a
Federativa do Brasil, de 24 de cabo pelo Regime Militar. Ela foi considerada por muitos constitucionalistas
janeiro de 1967. como uma nova constituição, dada a amplitude e profundidade de suas altera-
ções. Com relação ao instituto, entretanto, as disposições mantiveram-se.

• Em nossa Constituição atual, adotamos um procedimento que consiste na apre-


ciação pela Câmara dos Deputados de denúncia contra o presidente.
• Conforme o artigo 51, a Câmara deve autorizar a instauração do processo, mas
não vai julgá-lo, já que o artigo seguinte determina que cabe ao Senado tal julga-
mento em caso de crime de responsabilidade.
• Esses crimes estão atualmente previstos no artigo 85, são os atos que atentam contra:
I – a existência da União;
1988 II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério
Constituição da República Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
Federativa do Brasil, de 5 de III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
outubro de 1988. IV – a segurança interna do país;
V – a probidade na administração;
VI – a lei orçamentária;
VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
• Note que a Câmara vai aceitar ou recusar a denúncia independente de qual seja o
crime relatado. Caso o crime aceito for comum, o Supremo Tribunal Federal julgará.
• Finalmente, a Constituição ainda determina o afastamento do presidente após a
instauração do processo pelo Senado.
Fonte: Elaborado pela autora com base nas constituições brasileiras, 2018.

Como vimos, o Brasil recepcionou o instituto do impeachment no sistema jurídico-político


de modo semelhante ao norte-americano. Limitou-se ao processo de dimensão política, reiterou-se
a forma tradicional de competências e atribuiu-se a uma casa legislativa a apreciação da denúncia
e a outra o julgamento.
Formas de governo e sistemas de governo 89

Nós já vimos que os pressupostos da legalidade e da legitimidade não podem violar pres-
supostos e garantias do Estado Constitucional, em especial o processo legal, a ampla defesa, o
contraditório, pelo que dizemos que o processo de impeachment é um processo jurídico e político.
A respeito da Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950, podemos dizer sumariamente que se trata
de uma norma que especifica o rol de crimes de responsabilidade indicados na Constituição. Ela
detalha todos os incisos constitucionais com a indicação de quais condutas cada definição abrange.
Qualquer cidadão pode denunciar o presidente ou seus ministros, entretanto, a denúncia
somente pode ser recebida se o denunciado não tiver deixado definitivamente de ocupar seu cargo
político, o que reafirma o escopo desse processo – defesa de interesse público – como havíamos
refletido há pouco.
Representantes de todos os partidos políticos devem opinar a respeito da denúncia e emitir
parecer por meio de comissão especialmente eleita para isso. Após os trâmites e se a denúncia for
considerada procedente, ela deve ser encaminhada ao Senado, onde o denunciado (acusado) pode-
rá se manifestar em sua defesa. Se ao fim do processo a decisão for pela condenação, os artigos 33
e 34 da lei determinam a perda da função política. Cabe ao Senado determinar por quanto tempo
o condenado não poderá exercer função pública. Se houver crime comum relacionado ao de res-
ponsabilidade, também consta a previsão de que seja encaminhada a matéria à justiça ordinária
para o respectivo processo.
Com esses esclarecimentos, vamos acompanhar agora um breve resumo a respeito dos dois
impeachments que ocorreram no Brasil: de Fernando Collor de Mello (1949-), em 1992, e de Dilma
Rousseff, em 2016. Por ocasião do aniversário desse último, a Agência de Notícias do Senado
Federal publicou alguns infográficos relacionados ao tema (OLIVEIRA, 2017).
Quadro 3 – Comparativo ente os dois impeachments de presidentes brasileiros

Impeachment de 1992 Impeachment de 2016

Presidente
Fernando Collor de Mello Dilma Rousseff
acusado

Partido Partido da Reconstrução Nacional (PRN) Partido dos Trabalhadores (PT)

“Editar, sem autorização do Congresso,


“Omitir-se quanto ao tráfico de influência
quatro decretos de créditos suplementa-
praticado por pessoas próximas, que ex-
res que resultaram no descumprimento da
ploravam o prestígio presidencial. Receber
Acusação meta fiscal. Estabelecer operação de crédi-
vantagens financeiras indevidas, oriundas
to entre o Tesouro e o Banco do Brasil ao
dessas atividades, através de contas ban-
atrasar repasses de financiamento de polí-
cárias de terceiros”.
tica pública”.

Duração do
processo na 28 dias 138 dias
Câmara

Duração do
processo no 92 dias 136 dias
Senado
(Continua)
90 Ciência Política e Teoria do Estado

Impeachment de 1992 Impeachment de 2016

Duração total 120 dias 274 dias

Resultado da 73 votos a favor 61 votos a favor


votação 3 votos contra 20 votos contra

Fonte: Elaborado pela autora com base em Oliveira, 2017.

Collor perdeu seus direitos políticos por oito anos, Dilma não. Outro detalhe interessan-
te é que 14 dos senadores que votaram no julgamento de Dilma, votaram também no de Collor
(OLIVEIRA, 2017).
Poucos fatos podem evidenciar de modo tão claro quanto o impeachment, os limites e riscos
inerentes à separação dos poderes num sistema democrático. Tanto é que vimos os três poderes do
Estado brasileiro em uma situação embaraçosa ao se defrontarem com as complexas questões le-
vantadas no processo de Dilma. Compreender tais questões é uma dessas tarefas que nos demanda
aporte interdisciplinar, pois não podemos tratar desse tema somente por uma perspectiva política
ou jurídica.
No episódio recente, percebemos o engajamento do vice-presidente se articular politicamen-
te com parlamentares de seu partido na Câmara e no Senado. Vimos o próprio Poder Legislativo
perplexo ao lidar com intensas polêmicas a respeito dos limites normativos a serem respeitados no
processo – afinal, quais limites? – e assistimos ao Poder Judiciário ser provocado a se manifestar
justamente a respeito das questões jurídicas controversas. Um dos partidos com representação no
Congresso – o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – propôs ação perante o Supremo Tribunal
Federal para que este decidisse uma série de controvérsias com o objetivo de assegurar que o pro-
cesso de impeachment não violaria a Constituição.
Em resumo, esse foi um episódio que envolveu todos os poderes do Estado, que perpassou
múltiplas dimensões, deflagrou uma intensa crise política no país e em meio dela nenhum dos
poderes ficou imune às críticas.
É importante termos em consideração que fatores como as controvérsias jurídicas, a polêmi-
ca acirrada que se estabeleceu no processo – como podemos notar pela duração muito mais longa
do segundo impeachment e a mobilização de um grande número de juristas, cientistas políticos,
artistas e da sociedade em geral assumindo posições –, indicam as grandes proporções que esse
processo assumiu.
Para muitos juristas, o processo foi na verdade um golpe contra as instituições democráticas
no país, por não ter respeitado os limites jurídicos que deveriam ter sido observados, bem como
não ter respeitado o resultado soberano das urnas. Para outros, tratou-se de um procedimento
legítimo em todas suas fases. Em respeito à autonomia discente, não devemos aqui oferecer uma
resposta, mas apenas apontar algumas leituras complementares que apresentem argumentos para
que possamos amadurecer nossa compreensão a respeito do assunto.
Formas de governo e sistemas de governo 91

Considerações finais
O estágio atual do desenvolvimento das sociedades e o amadurecimento político que al-
cançamos por meio de nossas diversas experiências históricas nos mostram o quão complexa é a
política. Neste capítulo nós pudemos analisar um desses fatores, o princípio da legitimidade, que
impõe uma fundamentação democrática para os conteúdos do Estado e do Direito.
No próximo capítulo, vamos analisar a democracia, que é um dos valores mais altos do
Estado contemporâneo em qualquer forma e em qualquer sistema de governo adotado. Desse
modo, se levarmos conosco as lições acumuladas até aqui, os capítulos seguintes vão nos ajudar a
compreender melhor muitas das questões complexas que nos deparamos.

Ampliando seus conhecimentos


Bobbio, em sua obra Dicionário de Política (2004), traz uma importante definição de “Golpe
de Estado”. Essa noção é fundamental, principalmente nos dias de hoje, em que essa palavra está
muito presente nos meios de comunicação e nas redes sociais.

Golpe de Estado
(BOBBIO, 2004, p. 545)

[...]
O significado da expressão Golpe de Estado mudou no tempo. O fenômeno em nossos dias
manifesta notáveis diferenças em relação ao que, com a mesma palavra, se fazia referência três
séculos atrás. As diferenças vão, desde a mudança substancial dos atores (quem o faz), até a
própria forma do ato (como se faz). Apenas um elemento se manteve invariável, apresentando-
-se como o traço de união (trait d’union) entre estas diversas configurações: o Golpe de Estado
é um ato realizado por órgãos do próprio Estado.
[...]

Dicas de estudo
Listamos a seguir alguns textos importantes que englobam aspectos do impeachment de
Dilma Rousseff.
Perspectivas sobre o impeachment:
• Processo no Supremo Tribunal Federal na íntegra. Disponível em: <http://www.stf.
jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=378&classe=ADPF-
ED&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 13
jun. 2018.
• Parecer do jurista e professor Dalmo Dallari, contrário ao impeachment. Disponível em:
<http://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2015/10/PARECER-DALMO-DALLARI.
pdf>. Acesso em: 13 jun. 2018.
92 Ciência Política e Teoria do Estado

• Parecer do jurista e professor Ives Gandra, em defesa do impeachment. Disponível em:


<https://www.conjur.com.br/dl/parecer-ives-gandra-impeachment.pdf>. Acesso em:
13 jun. 2018.

Atividades
1. Qual a importância das constituições no Estado contemporâneo?

2. Cite semelhanças e diferenças entre os sistemas de governo que estudamos neste capítulo.

3. O impeachment no modo como foi incorporado ao sistema brasileiro é mais semelhante a


qual experiência histórica? Justifique sua resposta.

Referências
ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martin Claret, 2002.

AZAMBUJA, D. Teoria geral do Estado. 27. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1988.

BARROSO, I. V. O sistema de governo convencional: conceito e alicerces filosóficos, génese histórica e expe-
riências constitucionais. O Direito. Lisboa, v. 143, n. 3, p. 615-656, 2011. Disponível em: <https://www.icjp.
pt/sites/default/files/papers/0._art._sist_convenc_24.pdf>. Acesso em: 7 dez. 2017

BOBBIO, N. Política. In: BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 5. ed. Brasília:
Editora UnB, 2004. 2 v.

______. A teoria das formas de governo. 10. ed. Brasília: Editora UnB, 1998.

BONAVIDES, P. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Objetiva, 2010.

BRASIL. Lei n. 1.079 de 10 de abril de 1950. Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo pro-
cesso de julgamento. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Rio de Janeiro, 12 abr. 1950. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L1079.htm>. Acesso em: : 13 jun. 2018.

______. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em : 13 jun. 2018.

______. Constituições anteriores. Portal da Legislação. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/


legislacao/portal-legis/legislacao-historica/constituicoes-anteriores-1>. Acesso em: 13 jun. 2018.

FAVER, M. Impeachment: evolução histórica, natureza jurídica e sugestões para aplicação. RDA: Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 271, p. 319-343, 2016. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.
br/ojs/index.php/rda/article/view/60769/60063>. Acesso em: : 13 jun. 2018.

MIRANDA, J. Formas e sistemas de governo. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

OLIVEIRA, G. Um país, dois impeachments: impeachment de Collor foi o grande teste da Nova República.
Agência do Senado. Brasília, 31 ago. 2017. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/
infograficos/2017/08/um-pais-dois-impeachments>. Acesso em: : 13 jun. 2018.

UNITED States of America. The Constitution of the United States. 1787. National Archives. Disponível em:
<https://www.archives.gov/founding-docs/constitution>. Acesso em: : 13 jun. 2018.
7
Democracia: experiência e perspectivas teóricas

Há milhares de anos, um ideal acompanhou as diferentes sociedades que precederam a nos-


sa atual: a democracia. Por um longo período esse anseio – negado por governos autoritários e
absolutistas – ficou adormecido, porém, nunca foi esquecido.
Nossa delimitação para estudar um tema tão amplo se dá no âmbito da cultura ocidental,
em que vamos discutir a experiência grega, passar pelas revoluções modernas (as quais já conhe-
cemos) e chegar ao momento presente. Além disso, vamos verificar que a democracia é a essência
das mais diversas formas de organização política, e, quando ela nos é tomada, cedo ou tarde nos
insurgimos e lutamos para reconquistá-la.

7.1 Conceito, origem e evolução histórica da democracia


Nós atribuímos à sociedade ateniense antiga a origem da democracia. Se essa não for sua
origem real, com certeza ela está no âmbito da cultura ocidental. Como fenômeno histórico e com
relação a fatos e experiências abrangidas, nosso conhecimento se construiu pelo acesso que tive-
mos às obras dos filósofos antigos, como Platão e Aristóteles. Nós já vimos que Aristóteles propôs
um método analítico que foi de suma importância para que nós pudéssemos conhecer origens
remotas de nossa própria tradição.
No século IV antes de Cristo, Atenas teve um importante estadista: Sólon (640-558 a.C.),
considerado por muitos estudiosos o pai da democracia. Pouco se sabe a respeito da história polí-
tica que o antecedeu, uma vez que encontramos poucos documentos a respeito, somente achados
arqueológicos que nos permitem formular teorias.
Sólon inseriu na vida dos atenienses um conjunto importante de reformas e leis, que orienta-
ram seu sucessor, Clístenes (570-508 a.C.). Essas reformas integraram a Constituição dos Atenienses
(MOSSÉ, 2008, p. 29-33). Esse também é o título de uma das obras que Aristóteles escreveu. Nela,
o filósofo mostrou porque as reformas de Sólon foram tão importantes: naquele tempo existia uma
atmosfera de conflitos entre pobres e ricos. A terra, que era propriedade exclusiva dos ricos, era
cultivada somente pelos pobres, que pagavam pesados tributos para utilizá-la (ARISTÓTELES,
2003, p. 22).
Nesse período, o endividamento também era uma das causas da escravidão e uma ameaça
aos mais pobres. Sólon estava consciente de que caso a rebelião ocorresse, precisaria contê-la pela
força. Porém, se o fizesse se tornaria um tirano, coisa odiosa para qualquer estadista ateniense.
A solução encontrada foi o fim da escravidão por dívidas.
Com base no trabalho iniciado por Sólon, Clístenes dividiu os atenienses em tribos, e, para
evitar a transmissão hereditária de privilégios, substituiu o nome do pai pela designação de cada
tribo ou demos (MOSSÉ, 2008, p. 36-39).
94 Ciência Política e Teoria do Estado

Finalmente, Péricles (494-429 a.C.), posterior aos dois, apresentou uma proposta de regime
político baseada em três princípios: a soberania do demos, a igualdade dos cidadãos e o pertenci-
mento à comunidade cívica. Mossé (2008, p. 69) destaca que a palavra democracia derivou de ou-
tras duas: demos = povo e kratein = exercício da soberania. Vejamos a seguir qual sistema político
Péricles concretizou.
Segundo Auguste (1977, p. 169-170), a Atenas do século V era distribuída em três grandes
grupos ou classes: os cidadãos, os estrangeiros (ou metecos) e os escravos. Somente os cidadãos
tinham direitos políticos, que eram transmitidos aos filhos homens. Os estrangeiros que viviam
na cidade eram bem acolhidos, mas precisavam viver sob a responsabilidade de um cidadão e não
contavam com qualquer direito social ou político.
Os escravos constituíam o grupo mais numeroso de todos os grupos. Eles podiam ser liber-
tos, e, nesse caso, passavam a integrar o grupo de estrangeiros. Finley (1989, p. 92) alerta também
para a figura da mulher, que era excluída dos espaços políticos e privada de qualquer direito. Todas
essas exclusões eram naturalizadas no pensamento dominante na época, que Aristóteles (2002,
p. 33) traduz nessa passagem: “O homem livre manda no escravo de modo diverso daquele do
marido na mulher, do pai no filho. Os elementos da alma estão em cada um desses seres, porém
em graus diversos. O escravo é inteiramente destituído da faculdade de querer; a mulher possui-a,
porém fraca; a do filho não é completa”.
O Quadro 1 mostra uma estimativa a respeito da população que integrava a sociedade ate-
niense antiga:
Quadro 1 – Estimativa da população ateniense no Período Clássico

480 a.C. 430 a.C.


Homens adultos livres (cidadãos) 30 mil 40 mil

Mulheres e crianças 90 mil 120 mil

80 mil
Estrangeiros residentes e escravos 30 mil
(dos quais 60 mil eram escravos)
Fonte: Elaborado pela autora com base em Lopes, 2012, p. 19.

Como vimos, somente a classe dos cidadãos – a menor delas – poderia participar das as-
sembleias, ou seja, da democracia ateniense. Especificamente a respeito da cidadania, essa era uma
prerrogativa conquistada pelos homens ao atingir 18 anos de idade até sua morte. Uma vez con-
quistada a cidadania, o homem poderia participar das assembleias, nas quais assuntos da vida
pública eram decididos, inclusive grandes decisões, como assuntos de guerra e paz. No tempo em
que Aristóteles viveu, estima-se que a assembleia se reunia cerca de quatro vezes por mês (FINLEY,
1988, p. 67-74).
Além do limitado número de participantes, alguns estudiosos apontam que o quorum era
baixo, muitos cidadãos não compareciam, mesmo com a oferta de compensação pela participação
(indenização) (AUGUSTE, 1977, p. 171). Tal fato sugere uma possível crise de representatividade,
Democracia: experiência e perspectivas teóricas 95

além disso, decisões contraditórias tomadas pela assembleia com um dia de diferença entre uma e
outra. Essas decisões não eram corporativistas ou classistas, já que os membros da assembleia não
poderiam ser punidos por seus votos. O que definia as decisões eram as experiências, emoções e
simpatias dos cidadãos (FINLEY, 1988, p. 67-72).
Agora que compreendemos melhor o contexto histórico que inaugurou a democracia oci-
dental, podemos também compreender suas contradições. Apesar dos princípios propostos por
Péricles, em especial a igualdade, a sociedade ateniense distinguia seus membros em livres e escra-
vos, em cidadãos e não cidadãos.
A distinção em função da propriedade (ricos e pobres) subsistia também: os cidadãos pobres
estavam mais para não cidadãos, sem falar na marginalização das mulheres. Apesar de todas essas
contradições, a época de Péricles é considerada o ápice da democracia ateniense (MOSSÉ, 2008,
p. 129-143; 1985, p. 38). Isso porque, embora poucas pessoas – homens – tivessem direito a participar
da vida política, aqueles que o faziam participavam diretamente, afinal, era uma democracia direta. Os
sujeitos de direitos não escolhiam quem os representasse, mas sim compareciam às assembleias.
Em razão desses traços gerais, Finley (1988, p. 65-66) define a democracia ateniense como
direta, mas com espaço restrito às pessoas. Seu momento máximo era a reunião da assembleia, na
qual existiam poucas limitações ao poder político lá exercido e, por fim, um sistema em que lidava
com comportamento de massa. Esse último traço pode ser visto na importância da retórica, da elo-
quência, dos discursos persuasivos, fundamentais para conquistar os votos dos cidadãos. O fim da
democracia grega se deu com a derrota militar para a Macedônia, no ano de 338 a.C., episódio fri-
sado por Barroso (2010, p. 6) como o modo mais comum de supressão da democracia: a via militar.
Após essa experiência, sucedeu-se um longo período em que, como anunciamos no início
desse capítulo, a democracia adormeceu. Em síntese, podemos dizer que durante a era medieval
pouco ou nada se pode falar em democracia, o debate foi retomado apenas na modernidade, com
Montesquieu e Rousseau (SALDANHA, 1987, p. 59). De acordo com Bonavides, a democracia nos
tempos presentes é proclamada por praticamente todos os governos, ainda que esses tenham entre
si grandes diferenças.
No conjunto de suas expressões ao longo da história podemos sistematizar a democracia
em três modalidades básicas: direta, indireta e semidireta. Ou ainda: não representativa/direta e
indireta/semidireta, mais comumente adotada após o século XVII. Na experiência grega, era de-
mocracia a forma de governo que garantisse a isonomia (igualdade perante a lei), a isotimia (aboli-
ção dos títulos e funções hereditárias) e a isagoria (direito de palavra; liberdade de opinião). A esse
princípio (isagoria) é correlacionado o que hoje chamamos de liberdade de imprensa.
Em suma, a democracia deve ser o governo do povo para o povo, embora teóricos como
Rousseau não acreditassem que esse governo, tomado no rigor ao termo fosse possível, exceto entre
“deuses”. Winston Churchill (1874-1965), estadista britânico, também ironizou: “a democracia é a
pior de todas as formas imagináveis de governo, com exceção de todas as demais que já se experi-
mentaram” (BONAVIDES, 2010, p. 286).
96 Ciência Política e Teoria do Estado

Conceito(s) de democracia
Em 1863, ao proferir um discurso histórico, o então presidente dos
Estados Unidos Abraham Lincoln (1809-1965) descreveu a democra-
cia como “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Essa é uma pa-
lavra complexa e de sentido que não pode ser definitivamente delimi-
tado. Nas várias formas em que a democracia se manifesta e dentre as
várias maneiras que podemos descrevê-la, em todas elas, forçosamente
encontramos o protagonismo do povo. O protagonismo não é de elites
econômicas, intelectuais, ditadores, instituições autoritárias e interesses
egoísticos, mas sim do povo.

7.2 Experiências de democracia no Ocidente


Após seu período de hibernação, a democracia retornou na modernidade, mas de modo dis-
tinto, como democracia representativa. A discussão e teorização dessa forma de exercício do poder
político ganhou força no Ocidente, principalmente com o contraste entre as ideias de Rousseau e
Benjamin Constant (1836-1891). O primeiro defendia com paixão a democracia direta, já o segun-
do criticava a experiência dos antigos.
Todavia, no final do século XVIII os teóricos perceberam que era inviável um modelo de
democracia participativa na sociedade burguesa moderna. Assim, se ampliou o debate em prol do
sistema representativo, no qual se defendia a necessidade de que os eleitores fiscalizassem constan-
temente representantes, para evitar os abusos e fortalecer uma nova lógica política, que deslocasse
a liberdade da participação direta para um modelo de representação política (WOLKMER, 2003,
p. 89-91).
O modelo de democracia representativa – predominante no mundo contemporâneo,
especialmente em sociedades ocidentais – nasceu com o Estado moderno. Esse era um Estado
liberal, que se construiu pelas lutas contra o Estado absoluto. Nós já vimos que as revoluções
burguesas assinalaram o nascimento de um novo Estado e também um novo sistema político,
inspirado pelo liberalismo.
O liberalismo aceitava que o povo não governasse, desde que o poder fosse subdividido
e com isso o poder do Estado fosse limitado. Aqui encontramos mais uma contradição, agora,
de nosso tempo. De acordo com Saldanha, “enquanto a democracia aceita o Estado e até o
valoriza ou pode valorizá-lo como instrumento de realização de um governo popular, o libe-
ralismo desconfia do Estado e postula sua redução ao mínimo possível” (SALDANHA, 1987,
p. 37, grifo do original).
Nas práticas modernas, a democracia representativa deu seus primeiros passos no
processo histórico que culminou no parlamento inglês. Seus primeiros traços se deram com
Democracia: experiência e perspectivas teóricas 97

resistência dos barões com a Carta Magna, em 1215. As conquistas do povo foram aglutinadas
ao redor do parlamento, que representou a limitação do poder absoluto. Tal processo irradiou-
-se para a França, que também deflagrou a luta revolucionária, expandiu por toda a Europa e,
finalmente, por todo Ocidente.
Bonavides explica que é por meio de Montesquieu que a democracia moderna assumiu seus
contornos teóricos mais característicos. Entretanto, o filósofo considerava que o povo era “exce-
lente para escolher, mas péssimo para governar” (BONAVIDES, 2010, p. 293), por isso, o povo
precisa de representantes. Ainda assim, não foi a opinião do filósofo, mas sim razões práticas que
fundamentaram o novo modelo democrático. Uma das mais importantes diferenças entre o antigo
Estado-cidade e os atuais Estados-nação (que unificaram toda a sociedade pela soberania estatal)
é que os Estados-nação são modelos profundamente sujeitados a um rol de garantias jurídicas,
enquanto o sistema antigo era integralmente político.
Dahl (2001, p. 118) problematiza ainda mais o sistema e menciona que os defensores da
democracia de assembleia bem sabem que a origem da democracia representativa está rela-
cionada a objetivos duvidosos e não democráticos. Para o autor, tratava-se de uma artimanha
dos governantes não democráticos, especialmente os reis, para se apoderarem de valores e
rendimentos populares.
Seja como for, a forma moderna da democracia, a democracia representativa, fundou-se
em outras bases, como a soberania popular (expressa sob a ideia de vontade geral); o sufrágio
universal; a separação constitucional dos poderes; a igualdade perante a lei e a fraternidade social.
Ela também teve como princípio a limitação de poder dos governantes, a proteção das liberdades
públicas; as instituições políticas com a representação como base; os mandatos temporários e ele-
tivos; a garantia dos direitos e acesso à representação pelas minorias políticas e nacionais. Além
disso, na democracia representativa há a proteção de toda forma de manifestação do pensamento
livre (BONAVIDES, 2010, p. 295).
No Brasil, o fundamento jurídico-político da democracia está no primeiro artigo da
Constituição de 1988, que enuncia: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de repre-
sentantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O artigo 14 determina que a so-
berania do povo se exerce pelo sufrágio universal e o voto direto e secreto; e acrescenta o plebiscito,
o referendo e a iniciativa popular como formas de participação. Sobre o sufrágio universal, todas
as pessoas com mais de 18 anos e menos de 70 anos de idade são obrigadas a votar. As pessoas com
mais de 16 anos e menos de 18 anos, assim como aquelas com idade superior a 70 anos, votam
apenas se desejar. Pessoas analfabetas também não são obrigadas a votar, embora possam.
Apesar da forte tendência em dividir a democracia em direta e indireta ou em participativa
e representativa, há autores que acrescentam uma terceira modalidade, a democracia semidire-
ta. É o caso de Bonavides (2010, p. 295), que considera mecanismos de participação direta pre-
sentes em nossa Constituição, como, na verdade, instrumentos dessa terceira modalidade. Para o
autor, a democracia semidireta surgiu com a crise das instituições democráticas, evidenciada na
Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Nesse grupo, estão incluídas instituições como referendum,
98 Ciência Política e Teoria do Estado

iniciativa, veto e direito de revogação. Nessa forma de organização, a participação do povo não se
limita às eleições dos representantes e pode oferecer outras contribuições, inclusive jurídicas, por
meio da iniciativa.
A origem histórica é identificada na Suíça, onde os institutos da democracia semidireta são
amplamente utilizados: referendum e iniciativa são empregados tanto na esfera federal quanto no
âmbito das autonomias. Já nos EUA, não consta previsão constitucional, somente os Estados em-
pregam a modalidade em suas constituições.
Para o autor, os institutos da democracia semidireta significam atualmente – ao considerar-
mos a impossibilidade de implementar nas grandes nações a democracia direta – uma tentativa
do constitucionalismo contemporâneo, inspirado na soberania popular e em garantir ao povo a
palavra final sobre os atos de governo. Tais institutos podem ser divididos em duas categorias bási-
cas: referendum, que permite aprovar ou rejeitar o ato do governo, e iniciativa, com a qual o corpo
eleitoral provoca a decisão dos governantes (BONAVIDES, 2010, p. 295-303). Veremos cada um
desses institutos a seguir.
Antes de avançar, é importante darmos voz a um movimento político que nasce em nosso
continente e que, dentre seus resultados, inaugura uma nova forma de democracia no marco das
experiências ocidentais. Trata-se da democracia comunitária ou comunal. Ela é relacionada à ideia
de nação, conceito que permite culturalmente definir o elemento humano que integra o Estado.
Esse elemento – nação –, como instrumento de unificação da população dos Estados mo-
dernos, é próprio da modernidade. Muito anterior a essa ideia é a existência de inúmeros povos
que habitam o continente latino-americano e não se sentem representados na moderna nação. Por
isso, diversos setores se organizaram e reivindicaram o respeito aos direitos políticos e existenciais,
dentre eles, o direito de autodeterminação.
No caso do nosso país vizinho, a Bolívia, a organização especialmente indígena culminou em
uma revolução popular que conquistou uma nova constituição e transformou o seu Estado em um
Estado plurinacional. Assim, cada povo indígena que habita o território boliviano – que estão no
território há séculos – conquistou o direito de se autodeclarar como se reconhecem coletivamente,
seja nação, povo, comunidade, entre outros. Além disso, as prerrogativas de autodeterminação
compreendem outros direitos de desenvolvimento de sistemas próprios, como jurídico e o político.
A democracia comunitária surgiu como uma nova forma de organizar, distribuir, mas acima
de tudo, exercer o poder. Essa forma é uma novidade para a cultura ocidental, que reconhecia as
formas participativa e representativa. Sua existência é muito anterior às formas que discutimos
aqui – inclusive a grega – e tem suas bases nas civilizações inca, maia e asteca. Suas práticas foram
transmitidas geração a geração, mesmo com o violento processo de colonização. Além disso, ela
não pode ser identificada com nenhuma das duas formas anteriores. Por outro lado, não é fácil
apresentar as semelhanças e diferenças, pois na democracia comunitária se abrigam várias práticas,
igualmente diversificadas entre si (FERRAZZO, 2015, p. 26-33; 324-333).
Podemos conceituar essa forma de democracia como a decisão ou poder político que
não se centraliza no indivíduo ou grupo, mas sim, na coletividade, isto é, na comunidade. Em
Democracia: experiência e perspectivas teóricas 99

geral, nesse sistema, o representante somente expressa a decisão coletiva deliberada em assem-
bleia ou junta comunal. No entanto, o mais importante é que a soberania não é delegada, mas
sim, exercida de modo direto por meio de consensos construídos por sujeitos concretos, com
atividades e destinos comuns.
Mesmo a representação – quando indicada pelos processos políticos da democracia comu-
nitária – não admite o monopólio do direito de decidir pelo representante, pois a soberania nunca
é delegada, ela conserva sempre suas raízes na vontade da comunidade, fora da qual não tem legi-
timidade. A soberania só tem sentido na energia coletiva e na vinculação entre a representação e o
projeto comum da comunidade (PATZI, 2013, p. 80-81).
Desse modo, a democracia comunitária, garantida na nova constituição boliviana, assegura
aos povos indígenas o respeito aos seus processos políticos sem lhes impor que adotem as ins-
tituições político-democráticas concebidas na cultura ocidental moderna. Naturalmente, dado o
estágio atual de desenvolvimento e interação das comunidades, reconhecer direitos de autode-
terminação política não autoriza a exclusão ou marginalização do Estado, por isso, a democracia
comunitária também abrange o direito à escolha de representantes para as instâncias do Estado
(como legisladores, juízes, entre outros) de acordo com a sua tradição ancestral, contanto que não
se exclua o direito ao voto livre e à ampla participação dos processos (FERRAZZO, 2015, p. 327).

7.3 Cidadania e participação política

O referendum pode ser:

• com relação à matéria ou objeto


constituinte: quando a matéria submetida à aprovação popular é
constitucional;
legislativo: quando são as leis ordinárias o objeto de consulta.
• quanto aos efeitos
constitutivo: quando é realizado no momento de criação da lei, aqui
o referendum inicia a existência da norma;
ab-rogativo: quando é realizado para consultar a respeito da revoga-
ção, de modo que finda a existência da norma.
• quanto à natureza jurídica
obrigatório: em casos que a constituição impõe ao parlamento a sub-
missão da norma à vontade popular;
facultativo: quando o sistema jurídico-político não impõe a obrigato-
riedade, mas atribui poderes para que determinado órgão do Estado
ou até mesmo cidadãos façam requerimento da consulta popular.
100 Ciência Política e Teoria do Estado

• quanto ao tempo ou momento de realização


ante legem: se for realizado antes da criação da lei, já que o propósito
é conhecer a vontade popular a respeito da norma que se pretende
criar – também é denominado referendum anterior, consultivo, pre-
ventivo ou programático.
post legem: modalidade em que o povo se manifesta depois de a nor-
ma ter sido votada no legislativo e, por meio dela, se confere ou se re-
tira a eficácia da norma. Também é denominado referendum sucessivo
ou pós-legislativo.

Comentávamos há pouco a respeito de mecanismos e instrumentos de participação dos ci-


dadãos nos espaços políticos. A democracia brasileira conta com alguns desses mecanismos e os
considera meios de participação direta. Esses instrumentos e outros verificados em outras demo-
cracias são considerados por Bonavides (2010, p. 303-308) como meios da democracia semidireta.
Vejamos como o autor os descreve.

7.3.1 Referendum
O referendo é uma forma de garantir a participação popular dentro do sistema de represen-
tação. O poder legislativo elabora a lei, mas é o povo quem a aprova. Conforme os contornos que
assumir em cada sistema, o referendo pode ser classificado de distintas maneiras. Vejamos.
Na relação entre o poder político e o direito, a norma jurídica só adquire eficácia, isto é,
começa a existir depois de verificada a colaboração entre o poder legislativo e o povo. A primeira
fase compete ao legislador – elaboração da norma – e a segunda compete ao poder popular, que se
manifesta ao ser consultado.
As formas que vimos são as principais no processo de identificação e classificação dos refe-
rendos, ou seja, com base em sua relação com as leis. Entretanto, ainda há outros critérios, que po-
dem abranger não somente leis elaboradas pelo parlamento, mas também qualquer ato importante
para a sociedade, de modo que poderemos ter ainda duas modalidades:
• Referendum consultivo: não incide somente sobre as leis, mas também sobre todo ato
público. Ele pode ser vinculante, de opção e meramente consultivo. No primeiro caso, o
resultado da consulta vincula a conduta do Estado, que não pode agir de modo contrário
ao escolhido pelos cidadãos. O segundo caso coloca três ou mais alternativas ante à opi-
nião pública. Por fim, o último caso tem natureza meramente opinativa.
• Referendum arbitral: modalidade contemplada na Alemanha, com a Constituição de
Weimar. Seu objetivo era dirimir conflitos de natureza legislativa – entre Legislativo e
Executivo ou entre as casas legislativas. Considerava que desentendimentos instaurados
no âmbito dos órgãos ou poderes do Estado em matéria normativa deveriam ser dirimi-
dos pelo povo soberano, que é a instância política mais alta.
Democracia: experiência e perspectivas teóricas 101

7.3.2 Plebiscito
Em algumas doutrinas, os termos referendum e plebiscito são utilizados como sinônimos,
todavia, tratam-se de institutos diferentes. Dentre as diferenças, o referendum se circunscreve às
leis, já o plebiscito abrange matéria política, constitucional e qualquer assunto pertinente ao Estado
e ao governo, inclusive para a modificação de formas políticas ou territoriais.
Para alguns estudiosos da política e do direito público, o plebiscito é caracterizado por ser
válido em si e não necessita – como ocorre com o referendo – da cooperação entre o parlamento
e o povo. Por isso, dizemos que ele permite ao povo exercer a atividade legislativa de modo pleno,
colaboração estranha e sem exigir o consentimento dos dois poderes (parlamento e povo).
No Brasil, esses dois institutos são previstos na Constituição e já foram realizados, embora
poucas vezes. A diferença primordial entre os dois, na forma como foram inseridos no nosso siste-
ma, diz respeito ao momento da realização: o plebiscito é convocado antes da norma e nele o povo
a aprova ou denega; o referendo é convocado depois e nele o povo ratifica ou rejeita a norma. Essa
definição é dada pela lei federal que regulamentou os institutos no nosso país.
Na técnica nacional, eles são designados da seguinte maneira:

Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que deli-


bere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional,
legislativa ou administrativa*.
*Art. 2º da Lei n. 9.709 de 18 de novembro de 1998, que regulamenta o
exercício dos direitos ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular
(BRASIL, 1998).

Na homepage do Tribunal Superior Eleitoral, temos um histórico com mais informações a


respeito do tema. Vejamos quais consultas já foram realizadas no Brasil:
Quadro 2 – Consultas públicas realizadas no Brasil

Ano Tipo da consulta Quesito formulado Resultado


O povo foi consultado a respeito de continuar ou
76,98% não
1963 Referendo não com o parlamentarismo no país: “aprova o ato
16,88% sim
adicional que institui o parlamentarismo?”

66,26% República
Forma de governo: monarquia ou república
10,25% Monarquia
1993 Plebiscito
Sistema de governo: parlamentarismo ou 55,67% Presidencialismo
presidencialismo 24,91% Parlamentarismo

O povo foi consultado sobre a alteração da lei,


conhecida como Estatuto do Desarmamento: 63,94% não
2005 Referendo
“o comércio de armas de fogo e munição deve ser 36,06% sim
proibido no Brasil?”
Fonte: Elaborado pela autora com base em Brasil, 2018a.
102 Ciência Política e Teoria do Estado

7.3.3 Iniciativa popular


Essa é uma terceira modalidade de participação popular. Se o veto e o referendum somente
protegem o povo de uma legislação indesejada, a iniciativa por outro lado permite a participa-
ção efetiva do povo no processo legislativo. Também é comum a combinação da iniciativa com o
referendum, em casos que as vontades do povo e do legislativo entram em conflito em matéria de
iniciativa popular. Caso, por exemplo, o povo propor um projeto de lei e o poder legislativo discor-
dar da proposição e recusar aprovação, a iniciativa pode se dar de duas maneiras:
• iniciativa formulada: em que o texto da lei a ser apreciado pelo legislativo vem pronto;
• iniciativa não formulada ou articulada: em que somente a matéria a ser regulamentada
é apresentada, mas sem o texto da lei.
Como vimos, nos termos da Constituição brasileira, o direito do povo de apresentar projetos
de lei para apreciação pelo poder legislativo consta explicitamente no artigo 14, inciso III. Mais
adiante, no artigo 61, parágrafo segundo, a Constituição determina os requisitos para apresentá-
-los. É necessário que:
• a proposta seja apresentada na Câmara dos Deputados, que iniciará sua tramitação;
• o projeto seja subscrito por pelo menos 1% dos eleitores do país;
• esses eleitores estejam distribuídos por pelo menos cinco estados brasileiros; e
• em cada estado os eleitores subscreverem a proposta (pelo menos 0,3% do total do eleito-
rado do estado o faça).
A lei que regulamenta a matéria – Lei n. 9.709/1998, a qual já mencionamos – impõe ao po-
der legislativo o dever de realizar eventuais correções no que se refere à técnica legislativa, de modo
que problemas formais não autorizam o legislativo a rejeitar a proposta.
Finalmente, indicamos um canal oficial do Estado para a manifestação popular a respeito
da atividade legislativa, o e-Cidadania, portal do Senado Federal (BRASIL, 2018b). Nele há diver-
sas ferramentas de participação, como espaços para propor ideias de leis a serem debatidas pelo
Congresso e opinar a respeito de projetos em tramitação.

Considerações finais
Percorremos um longo caminho na história do Ocidente para compreender a origem de
um dos maiores valores da vida em sociedade: a democracia. Para tanto, observamos sua origem e
transformação, e também a emergência de um novo modelo, o de representação.
Apesar da longa trajetória que o definiu e seu amadurecimento, atualmente o sistema está
em crise não apenas no Brasil, mas também em diversos países. A democracia foi e vem sendo ata-
cada, o que demonstra seus pontos vulneráveis. É fundamental que nós próprios sejamos capazes
de amadurecer nossa percepção a respeito do poder político e das instituições democráticas.
No último capítulo, vamos aprofundar nosso debate a respeito das crises da democracia,
mas não podemos chegar lá sem antes compreender dois pontos cruciais: o sistema de partidos e
de mandatos e as ideologias. Essas serão nossas próximas tarefas.
Democracia: experiência e perspectivas teóricas 103

Ampliando seus conhecimentos


Um dos pontos que discutimos nesse capítulo diz respeito à democracia comunitária.
Vejamos como um dos principais teóricos no assunto, o cientista político, professor e membro da
etnia aymará Felix Patzi define esse modelo.

O que é democracia comunitária?


(PATZI, 2013, p. 80-81)

[...]
Por gestão política comunal ou por administração do poder comunal, entendemos o poder
ou a decisão que não é concentrada no indivíduo ou num grupo de pessoas, ou seja, que o
indivíduo ou o grupo não têm poder em si mesmos, como acontece no sistema da democracia
representativa e no sistema totalitário de socialismo, mas sim, está na coletividade, constituída
em deliberação coletiva, que pode se dar em congressos, conselhos, assembleias ou outro meca-
nismo direto que tenha estabelecido seu procedimento e regulamentação em cada população,
urbana ou rural. Isso significa que a capacidade de decisão sobre os assuntos que atingem à
população ou coletividade reside diretamente na coletividade e, mesmo que tal capacidade
soberana seja exercida por meio de representantes, o limite da atividade de tais representantes
é a própria vontade coletiva que controla materialmente os meios da soberania, de modo que a
função do representante se limita a buscar formas de assegurar a vontade comum.
[...]

Dica de estudo
• Dussel, autor que temos mencionado ao longo desta obra, elaborou uma síntese de seu
pensamento político dirigida especialmente aos jovens. Em 20 teses de Política (2007),
podemos encontrar ricas reflexões acerca do poder e da democracia, comprometidas com
a legitimidade do poder e da ação política e com as lutas do povo. Uma leitura urgente
para nossos tempos.

Atividades
1. Quais foram os três modelos de democracia que discutimos neste capítulo e como podemos
diferenciá-los?

2. Quais são os mecanismos de participação popular admitidos no sistema jurídico-político


brasileiro?

3. Qual é o contexto histórico e motivação da democracia representativa?


104 Ciência Política e Teoria do Estado

Referências
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vada. São Paulo: Edusp, 1977.

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planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 2 fev. 2018.

______. Lei n. 9.709, de 18 de novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III
do art. 14 da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Poder Executivo, 19 nov. 1998. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 2 fev. 2018.

______. Tribunal Superior Eleitoral. Plebiscitos e referendos. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleitor-e-


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______. Senado Federal. Portal e-Cidadania. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ecidadania>.


Acesso em: 2 fev. 2018b.

BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do


novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

DAHL, R. A. Sobre a democracia. Brasília: Ed. UnB, 2001.

FERRAZZO, D. Pluralismo jurídico e descolonização constitucional na América Latina. 462 p. Dissertação


(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2015. Disponível em: <http://tede.ufsc.br/teses/PDPC1180-D.pdf>. Acesso em: 9 dez. 2017.

FINLEY, M. I. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

_______. Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

LOPES, J. R. L. O direito na história: lições introdutórias. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

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PATZI, F. Tercer Sistema: modelo comunal: propuesta alternativa para salir del capitalismo y del socialismo.
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WOLKMER, A. C. Ideologia, estado e direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
8
Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos

No âmbito das práticas de democracia representativa, os partidos políticos assumiram


notória importância como a principal forma de institucionalização de grupos engajados na
disputa pelo poder político. Desse modo, sob diferentes sistemas eleitorais, formas de organi-
zação e limitação das prerrogativas da representação, os partidos políticos fazem parte dos re-
gimes democráticos. Daí a importância de compreendermos como eles participam e cumprem
funções essenciais à vida pública.
Neste capítulo, buscamos compreender a origem histórica dos partidos políticos. Além dis-
so, analisamos algumas formas pelas quais se organizam mandatos, bem como institutos que são
adotados em diferentes regimes, com o intuito de limitar o poder político exercido pelos represen-
tantes eleitos.

8.1 Partidos políticos


A ideia de partidos políticos foi concebida na Inglaterra. Naquele país, antes da Revolução
de 1688, esses agrupamentos se manifestavam como facções políticas, sem contar com uma orga-
nização formal. Essas facções frequentemente se enfrentavam fora dos limites permitidos na lei, o
que provocava conflitos sociais. Após a revolução, a ideia de organização partidária foi incorporada
pela lei e ditou regras democráticas para a disputa pelo poder político, o que retirou os debates da
zona brutal onde geralmente ocorriam (ANDRADA, 1998, p. 38).
Ao admitir um sentido mais amplo para esse conceito, Dallari (2011, p. 162-163) explica que
na antiga democracia ateniense a assembleia se dividia em partidos devido a interesses e pontos
de vista a respeito de questões políticas. Em Roma, também existiam agrupamentos, geralmente
em torno de uma liderança, com divergências em relação aos direitos dos plebeus ou da política
externa. O autor também identifica uma polarização entre partidos na Idade Média: os defensores
do papa (partido Guelfo) e os defensores do imperador (gibelinos).
Apesar de essa denominação ter aparecido em diversos momentos ao longo da história, seu
sentido moderno, como entendemos hoje, é bem mais recente. A depender da abordagem teóri-
ca, para alguns, o termo partido é datado de 1850. Para outros, como Andrada (1998, p. 38), ele é
próprio da Revolução Inglesa. No entanto, os partidos sempre desempenharam o mesmo papel:
conquistar e exercer o poder político.
No ano de 1741, David Hume (1711-1776) publicou a obra Ensaios morais, políticos e lite-
rários, precursora das classificações modernas de partidos. Ele classificou as facções em pessoais
ou reais. As facções pessoais seriam aquelas baseadas na amizade ou inimizade estabelecida entre
partidos em disputa. As facções reais se dividiriam em razão de sentimentos ou interesses, diferen-
ças reais.
106 Ciência Política e Teoria do Estado

As facções reais, para Hume, se subdividiam em de interesse (as mais razoáveis e desculpá-
veis, pois é natural homens diferentes, como nobres e populares, terem interesses distintos); de
princípios (abstrata, especulativa e difícil de justificar, um fenômeno próprio da modernidade); ou
de afeição (baseadas em ligações familiares, particulares ou com pessoas que desejavam que gover-
nassem). Apesar das objeções do filósofo, Dallari (2011, p. 164) avalia que os partidos de princípios
foram os que mais se desenvolveram. Esses também absorveram os partidos de interesses, que
sempre enfrentaram dificuldades em se organizar.
Esses órgãos – que estão na base dos sistemas representativos – indicam por meio de sua or-
ganização a convergência de candidatos que mantêm entre si afinidade de ideias, fato que permite
ao eleitor distinguir opções dentro do cenário político. No entanto, justamente esse aspecto ensejou
e ainda enseja críticas e objeções.
Essencialmente, tais críticas se referem à predominância do caráter partidário sobre o cará-
ter político, e, às vezes, sobre a incompatibilidade entre ser partido e ser político. Uma das razões
para isso é que o partido – comumente composto por segmentos específicos da sociedade – tem
uma perspectiva construída em seus próprios interesses. No entanto, eles também têm o elemento
político, que impõe uma visão mais abrangente a respeito das questões do Estado, com o objetivo –
caso seja eleito – de apresentar um programa de governo.
No curso da história, o desafio trazido pelos partidos populares – como os partidos operá-
rios, que apresentaram propostas para toda a sociedade – impuseram aos setores da burguesia a
necessidade de também formular propostas mais amplas (BASTOS, 2002, p. 265-266). De acordo
com Bottomore:
A defesa da constituição de um partido proletário independente ocupou uma
posição fundamental no pensamento de Marx e Engels. “Contra o poder cole-
tivo das classes proprietárias” argumentavam eles, “a classe operária não pode
agir como classe, exceto constituindo-se em um partido político que seja distin-
to dos velhos partidos formados pelas classes proprietárias e a eles se oponha”.
(BOTTOMORE, 2001, p. 282)
O sentido, o contexto histórico, a origem e as motivações dos partidos são variadas, con-
tudo, podemos nos esforçar em buscar um elemento ou definição comum, que permita aglutinar
distintas dimensões. Para tanto, podemos adotar a definição de Moreira (1997, p. 171, grifos do
original) que diz:

No seu conceito essencial, os partidos políticos são organizações que lu-


tam pela aquisição, manutenção e exercício do poder.

É certo que – apesar do escopo do partido voltar-se à conquista e exercício do poder po-
lítico – surgiram diferentes pautas e compromissos que contribuíram para a evolução da forma
partidária e permitiram dividir os partidos segundo critérios distintos. No Quadro 1, verificamos
algumas formas de classificações.
Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos 107

Quadro 1 – Formas de classificação de partidos políticos

Partidos de massa
Quanto à organização
Partidos de quadros

Democráticos
Quanto ao processo funcional
Autocráticos

Liberais
Socialistas
Quanto ao programa Conservadores
Trabalhistas
Entre outros

Arregimentação integral
Quanto aos seus militantes Arregimentação parcial
Arregimentação episódica

Disciplina descentralizada
Quanto à estruturação interna
Disciplina centralizada
Fonte: Elaborado pela autora com base em Andrada, 1998, p. 38-41.

Segundo Andrada (1998, p. 38-41), os partidos de massa tendem a se manter articulados e


atuar em campanhas/movimentos de modo mais permanente. Os partidos de quadro se organizam
somente por ocasião das eleições. Já os partidos democráticos defendem liberdades, direitos indi-
viduais e o pluralismo de partidos. Por fim, os partidos autocráticos apoiam regimes totalitários.
No que se refere aos programas, no próximo capítulo poderemos apreciar essas questões ao anali-
sarmos as principais ideologias políticas.
Com relação à arregimentação – isto é, militância ou engajamento – o tempo de dedicação
exigido dos militantes partidários pode absorver integralmente ou parcialmente o indivíduo, o
que permite conciliar uma agenda partidária com outras atividades. Há também a arregimentação
episódica, que demanda menos dedicação, embora nos períodos de eleições a tendência é a grande
atuação de seus quadros.
Os partidos podem também adotar estruturação com disciplina centralizada ou descen-
tralizada, essa opção vai impactar no próprio nível de democratização da organização. Na es-
truturação descentralizada, privilegiam-se os órgãos de base, como assembleias, em que todos
participam e opinam sobre questões do partido. As estruturas centralizadas, por outro lado,
priorizam uma relação de comando, na qual um núcleo toma as decisões e os órgãos de base
homologam as determinações.
Bastos (2002, p. 268-269) explica o surgimento histórico dos partidos de massas. De acordo
com o autor, essa estrutura foi criada no século XX pelos socialistas e depois adotada pelos comu-
nistas. Como esses partidos reuniam setores populares com menos recursos econômicos, não se
podia contar com doações generosas. Por isso, era necessária uma grande mobilização para filiar
pessoas. As pequenas doações individuais, porém, em grande número, viabilizavam o financia-
mento das campanhas eleitorais.
108 Ciência Política e Teoria do Estado

A necessidade de formação política é um dos traços distintivos entre concepções de demo-


cracia, fundadas com base nos partidos de massas e partidos de quadros. Os partidos de quadro
desenvolveram uma concepção aristocrática ou burguesa de partidos com poucas pessoas e dura-
ção efêmera, enquanto os partidos de massa defendiam o oposto. A formação militar também era
comumente adotada nos partidos de massas.
De acordo com o ambiente no qual se originou um partido, esse assumirá determinadas fun-
ções. Por exemplo, Moreira (1997, p. 175) cita a Constituição francesa de 1958 que definia a função
do partido como a de “concorrer para a expressão do sufrágio”, ao passo que a alemã a definia como
“concorrer para a formação e expressão da vontade política”. Com base nessa tradicional inspiração
parlamentar-liberal, a função do partido se desdobrava em três dimensões: a formação da opinião
pública, a proposição de candidatos às eleições e o disciplinamento dos eleitos.
Dessas três dimensões, o partido – ao defender suas teses perante a opinião pública – desper-
sonaliza a eleição. Naturalmente, os candidatos propostos em geral são pessoas notáveis, escolhidas
por uma estratégia eleitoral e indicadas pelo partido, que é o mandatário. A essa função tradicional,
devemos acrescentar outras, relacionadas ao aumento da complexidade social e política, que con-
siste em “ser a voz” de setores não representados nas instâncias do poder estatal. Há também fun-
ções de articulação de interesses, de comunicação e responsabilidade política, expressas na possível
participação, em tomada de decisões etc. (MOREIRA, 1997, p. 175-179).
Em uma perspectiva mais ampla e para sintetizar as diversas atribuições acumuladas na
evolução dos partidos, Dalmases (2006, p. 346-348) agrupa essas funções em:
• Socialização política e criação de opinião: uma vez que os partidos apresentam pro-
gramas para a sociedade. Esses têm maior ou menor carga ideológica, o que possibilita
diferentes perspectivas a respeito de problemas sociais.
• Harmonização de interesses: os programas de governo propostos pelos partidos pretendem
consolidar um modelo global, que pode servir como um meio de harmonização de interesses.
• Formação de elites políticas: funções que se distribuem em dois eixos: o primeiro a res-
peito das elites do sistema político (que exercerão cargos para os quais foram eleitos) e
o segundo acerca das elites administrativas, pessoas indicadas para funções que não são
eleitas pelo povo, mas sim compostas por designação dos partidos.
• Canalização das reivindicações populares até os poderes: relacionada à função de co-
municação, em que os votos indicam as opções que os eleitores apoiam. Pelas eleições, os
partidos não eleitos ou de oposição refletem as demandas populares por meio de críticas
e proposições de alternativas.
• Reforço e estabilização do sistema político: contribui para que o sistema político tenha
estabilidade e que seja possível sua manutenção. Trata-se de uma tarefa de todos os parti-
dos: situação e oposição. Os ditos partidos antissistema são uma exceção apontada, visto
que questionam a própria legitimidade do sistema político vigente.
Nas estruturas dos partidos, encontramos dois agrupamentos importantes: o grupo dos
membros, que abrange os dirigentes (lideranças dos partidos), os permanentes (quadros que
Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos 109

trabalham para os partidos, recebendo salário ou pagamento por isso), os militantes e os afilia-
dos. O segundo grupo é o dos não membros, que engloba os simpatizantes e os votantes fiéis
(DALMASES, 2006, p. 355).

8.1.1 Partidos políticos no Brasil


Antes de prosseguirmos nossa análise sobre os sistemas eleitorais, lançamos um breve
olhar sobre os partidos políticos no Brasil. Para Schmitt (2000, p. 7) foi somente com o fim do
Estado Novo (após 1945) que os primeiros partidos disputaram eleições com sufrágio univer-
sal. Foi também a partir desse momento que foram eleitos membros do Congresso de tempos
em tempos e sem interrupções. Entretanto, os partidos políticos passaram por três fases dis-
tintas. Vamos conhecê-las:
• Terceira República (1945-1964): sistema pluri ou multipartidário, que assinalou o iní-
cio da democracia representativa e contou no âmbito nacional com seis eleições para o
Congresso e quatro para a presidência. Nesse período, o Tribunal Superior Eleitoral con-
cedeu registro para 32 partidos, dos quais 16 foram cancelados posteriormente, a maioria
por não cumprir requisitos para obtenção do registro definitivo.
Em seguida ocorreu a fusão de quatro partidos, de modo que existiam 13 partidos re-
gulares e um partido que atuava na clandestinidade desde 1947, o Partido Comunista
Brasileiro (PCB). O maior partido desse período foi o Partido Social Democrático (PSD),
seguido pela União Democrática Nacional (UDN) e pelo Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), aliado constante do PSD. No início do regime militar esses e outros partidos ain-
da funcionavam, porém, com o Ato Institucional n. 1 de 1964, os poderes do Executivo
foram drasticamente aumentados em detrimento do Legislativo, fato que culminou na
perda de mandatos legítimos por dezenas de parlamentares.
• Quarta República (1964-1985): sistema bipartidário, que teve início com um golpe de
Estado baseado no autoritarismo. Embora o calendário eleitoral para o Congresso tenha
sido cumprido com cinco eleições, esse período teve eleições indiretas controladas pelo
governo militar.
Nessa época, somente dois partidos eram admitidos, cuja caracterização geral apresen-
tamos adiante. Por hora, é importante destacar que o bipartidarismo no Brasil foi um
sistema construído de maneira não democrática, mas sim de modo artificial, “de cima
para baixo”.
O critério da polarização era apoio ou oposição ao governo em que a situação da oposi-
ção era arriscada, uma vez que não se conhecia os limites de sua atuação em um regime
autoritário e consistia em uma estratégia do governo para testar a viabilidade da es-
trutura dos partidos, ou seja, ao vencer as eleições, a estrutura seria mantida enquanto
fosse conveniente.
A determinação era formar provisoriamente organizações com atribuições partidárias,
mas não partidos propriamente ditos. Por isso, as duas agremiações resultantes dessa es-
tratégia do governo foram a Aliança Renovadora Nacional (Arena), na qual se alinhavam
110 Ciência Política e Teoria do Estado

os políticos que apoiavam o regime, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) com-


posto pelos que sobreviveram aos primeiros tempos do regime.
Nesse período também tivemos as figuras biônicas como os senadores, que não eram
eleitos pelo povo, mas sim indicados pelo governo. Sua regulamentação veio no chamado
pacote de abril, uma emenda constitucional aprovada no ano de 1977, com o intuito de
fortalecer e tranquilizar o regime, que estava irremediavelmente ameaçado pelas reivin-
dicações democráticas. A concentração da crescente oposição em uma única legenda fez
mudar a estratégia dos militares, que preferiram tolerar o multipartidarismo para dividir
a oposição.
Na reformulação do sistema bipartidário concluída em 1980, seis partidos se organizaram
com base no Congresso, dos quais cinco ainda existem. O Partido Democrático Social
(PDS) foi o sucessor da Arena e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)
sucedeu do MDB. O Partido Popular (PP) e o Partido dos Trabalhadores (PT) também
surgiram nesse período. O PT foi o único que não se formou em torno de lideranças tra-
dicionais da política e foi, assim como o PCB, um caso raro de constituição partidária “de
baixo para cima”, de fora do parlamento. Outro fato curioso foi a disputa entre Ivete Vargas
(1927-1984) preferida pelos militares e Leonel Brizola (1922-2004) pela sigla do antigo PTB.
Vargas ganhou a disputa e Brizola fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT).
• Quinta República (1985-1988): também foi caracterizada por um sistema multipartidá-
rio. No tópico seguinte, faremos uma melhor análise a respeito de como esse sistema se
articula com nosso atual sistema eleitoral. Schimitt (200) identificou nesse período o defe-
rimento do registro de mais de 70 partidos, a maioria provisório e com curtas existências.

8.1.1.1 Curiosidade: liberais x conservadores; esquerda x direita


A dicotomia política entre liberais e conservadores tem origem na experiência inglesa, ini-
ciada após a Revolução de 1688. Dois partidos marcaram a história inglesa e se revezaram no po-
der, os wighis (liberais) e os tories (conservadores).
Já a dicotomia esquerda e direita é atribuída à Revolução Francesa, em que houve uma opo-
sição entre setores políticos daquela sociedade. Os termos esquerda e direita surgiram devido à
forma que a assembleia nacional se organizava: à esquerda do presidente da Assembleia, setores
liberais que defendiam direitos do povo, e à direita setores mais conservadores, representantes da
realeza. Ainda existia um enfileiramento ao centro, composto por aqueles que defendiam uma
posição moderada, com uma monarquia constitucional.

8.2 Sistemas eleitorais


Os diferentes sistemas eleitorais cumprem funções indispensáveis nas sociedades democrá-
ticas. Dentre essas, destacamos a função de gerar participação pois, por meio do voto, o eleitorado
expressa suas preferências e escolhe programas políticos, produz representação, viabiliza os gover-
nos e oferece legitimação necessária para o exercício do poder político (TORRENS, 2006, p. 370).
Os sistemas eleitorais têm estreita relação com os sistemas de partidos.
Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos 111

Por isso, “o sistema de partidos é tão importante que alguns o consideram como elemento
essencial das instituições políticas. Tem, para estes, a mesma importância dos órgãos oficiais do
Estado” (BASTOS, 2002, p. 269). É crucial o emprego da palavra sistema, porque assim podemos
dimensionar a importância não apenas de cada partido isoladamente, mas de seu conjunto e suas
interações como um todo.
Vejamos a classificação externa dos partidos de acordo com Dallari (2011, p. 166-167), que
considera o número de partidos existentes em um Estado e os classifica em três sistemas:
• Sistemas de partido único: como se admite apenas um partido no Estado, a pretensão
é de que os debates políticos se deem internamente nesse partido. Em tese, o fato de um
sistema adotar um único partido não significa que ele é inevitavelmente antidemocrático.
Na prática, todavia, os debates admitidos são secundários e não alcançam princípios
partidários, que tendem a ser imutáveis. Um ponto importante de regimes em que a
liberdade de expressão é respeitada é o fato de ser pouco provável que exista somente
um partido. Outra questão diz respeito a sistemas formalmente pluripartidários, mas
nos quais, na prática, somente um partido tem condições de conquistar o poder político.
Para Dallari, isso nada mais é do que “um sistema unipartidário disfarçado”.
• Sistemas bipartidários: nesses sistemas existem dois grandes partidos que se alternam
no poder político. Podem existir outros partidos menores, desde que não interfiram no
Estado e não alterem o caráter bipartidário do sistema. Exemplos clássicos desse sistema
ocorrem nos Estados Unidos e também na Inglaterra. Dallari sublinha duas notas distinti-
vas desse sistema: a não exclusão de outros partidos, que coexistem com as duas agremia-
ções partidárias predominantes, e o caráter autêntico do sistema, que surgiu de processos
históricos nos quais o povo se divide entre as duas principais correntes de opinião1.
• Sistemas pluripartidários: são predominantes atualmente. Caracterizam-se pela existên-
cia de vários partidos e pela possibilidade de qualquer um deles predominar. Dentre as
diversas causas da origem desse sistema, podemos identificar o fracionamento interno.
Ao considerarmos que divergências podem se estabelecer de muitas formas, e que, de
fato, algumas ocorrem dentro dos próprios partidos, a divisão interna com a saída dessa
corrente pode originar um novo partido.
Se esse tipo de divisão ocorrer de maneira exagerada, o eleitorado também ficará tão
dividido e poderá ser impossível para qualquer partido alcançar sozinho o governo;
quando ocorre esse tipo de situação, são estabelecidos acordos. Dallari lamenta que,
em geral, tais acordos prejudicam o povo. A solução intermediária para não suprimir
a liberdade de expressão dos partidos e ao mesmo tempo evitar o excessivo fraciona-
mento é a exigência de uma porcentagem mínima de eleitores para eleger os represen-
tantes. Se com fracionamento é difícil o partido conquistar o poder político sozinho,
no bipartidarismo é diferente. Segundo Bastos (2002, p. 270-271), um dos traços do

1 Como já mencionamos, no Brasil tivemos a experiência de bipartidarismo durante o regime militar. Nosso modelo,
entretanto, foi distinto, pois o governo não admitia a organização de outros partidos; as únicas agremiações permitidas
se davam entre apoio e oposição ao governo. Por isso, nosso bipartidarismo era arbitrário e não democrático, diferente,
por exemplo do bipartidarismo britânico e norte-americano (SCHMITT, 2000, p. 9).
112 Ciência Política e Teoria do Estado

bipartidarismo é a possibilidade de um partido alcançar a maioria absoluta dos votos


e exercer o poder sem necessitar de coligações.
Com base nesse sistema de partidos, podemos falar nos sistemas eleitorais. Identificados por
Maurice Duveger (1917-2014), os sistemas eleitorais podem ser de um turno (mais próximos dos
sistemas bipartidários), proporcional (mais próximo do multipartidarismo), assim como majoritá-
rio de dois turnos. No sistema eleitoral majoritário, vence as eleições quem alcança a maioria rela-
tiva, por isso partidos menores têm pouca expressão, o que favorece a tendência ao bipartidarismo.
O sistema eleitoral proporcional, ao mesmo tempo em que favorece o multipartidarismo,
viabiliza o acesso de vários partidos ao poder legislativo sem impor a necessidade de coligações
para alcançar o poder. Por fim, no sistema eleitoral de dois turnos, em que é exigida a maioria
absoluta dos votos, somente o primeiro turno conduz ao multipartidarismo. No segundo turno
participam somente os dois candidatos mais votados no primeiro. Por isso, no primeiro turno to-
dos os partidos podem participar e testar as próprias forças, mas no segundo a tendência é firmar
coligações (BASTOS, 2002, p. 272-273).
Em Bastos (2002, p. 244-248), encontramos quatro sistemas eleitorais:
• Voto majoritário: foi o único tipo de voto conhecido por um longo período. Nesse siste-
ma, é eleito o candidato que alcança a maioria dos votos. Entretanto, essa maioria pode
ser relativa (o candidato alcançou sozinho mais votos que qualquer um dos outros) ou
absoluta (não basta o candidato obter mais votos que os demais, ele precisa alcançar mais
da metade dos votos totais, isto é, conquistar mais votos do que todos juntos). Se o sistema
eleitoral optar pela maioria absoluta, pode ser necessário realizar dois turnos de eleições.
• Voto proporcional: surgiu como resposta às “deformações” do voto majoritário. Naquele
sistema, os votos das minorias eram irrelevantes e às vezes pequenas diferenças nas urnas
entregavam o parlamento por completo a um só partido (por exemplo, em uma diferença
de 51% para 49%). No sistema de voto proporcional, cada partido elege seus parlamen-
tares de acordo com o número de votos obtidos. Essa proporção é denominada quociente
eleitoral e é calculada com a divisão do número total de eleitores pelo número total de
assentos disputados na casa legislativa. É comum a imposição de um número mínimo de
votos para efetivar a representação e evitar o fracionamento, um dos riscos desse sistema.
• Voto distrital: modelo predominante no Brasil até o ano de 1930. Nele, o Estado é dividi-
do em distritos eleitorais com o objetivo de aumentar a representatividade. O voto distri-
tal é considerado um sistema puro – uma vez que é possível votar apenas em candidatos
dos respectivos distritos –, no entanto, há ainda o voto distrital misto, que tem parte dos
candidatos circunscritos no distrito e parte aberta a todos pelo sistema proporcional.
• Sistema eleitoral misto: adotado na Alemanha, essa forma busca reunir as vantagens dos
sistemas proporcional e majoritário. Assim, metade dos candidatos são eleitos por um
sistema e a outra metade pelo outro, uma vez que a legislação daquele país compatibiliza
ambas as formas.
Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos 113

Acerca dessas questões, um caso curioso é o dos Estados Unidos, que adotam o sistema elei-
toral majoritário. Sua câmara dos representantes é integrada por 435 parlamentares eleitos a cada
dois anos, de acordo o sistema de maioria relativa, mas cada estado decide a delimitação das suas
circunscrições. O senado, por sua vez, é integrado por 50 parlamentares, 2 senadores por estado.
Já as eleições presidenciais ocorrem a cada 4 anos.
Cada estado é uma circunscrição e tem uma lista plurinominal, na qual os eleitores elegem
seus delegados eleitorais. Conforme a fórmula adotada, o candidato que ficar em primeiro lugar
obtém, inclusive, os votos que não foram seus2. No total, o país conta com 538 delegados, os quais
devem validar a eleição. É considerado eleito o candidato que alcançar pelo menos 270 delegados
(TORRENS, 2006, p. 396-397).
O sistema eleitoral brasileiro está estruturado nos termos gerais delineados na Constituição
e complementados por diversas leis, como a Lei n. 4.737 de 1965 e a Lei n. 7.773 de 1989. Nossa
base é o voto direto, universal, obrigatório e secreto. Além disso, de acordo com a função pública,
seguimos o sistema proporcional ou o sistema misto.
Nas eleições para o senado federal e para as prefeituras, seguimos o sistema majoritário. Esse
sistema também é adotado para as eleições para presidente e vice-presidente da república, mas
com a exigência de que o candidato alcance a maioria absoluta dos votos, o que pode ensejar uma
eleição em dois turnos (o segundo turno ocorre quando o candidato mais votado não alcançou
a maioria absoluta). O mesmo se aplica aos governadores dos Estados-membros, desde o ano de
1997. Por meio de uma emenda à Constituição, passou a se exigir que nas cidades com mais de 200
mil eleitores, os prefeitos alcancem a maioria absoluta dos votos, fato que também pode ocasionar
dois turnos de votação.
Nas eleições para deputados estaduais ou federais, assim como vereadores, é adotado
o sistema proporcional. Os partidos têm a opção de se coligarem para concorrer às eleições,
e, com isso, aumentam seus votos de legenda e a proporção de vagas que podem conquistar.
No Brasil, as eleições são realizadas a cada dois anos e intercalam a escolha de cargos. Em um
período são escolhidos o presidente da república, governadores, senadores e deputados esta-
duais e federais. No outro, são eleitos prefeitos e vereadores. Os suplentes são escolhidos nos
mesmos períodos que os titulares.

8.3 Mandatos políticos e formas de limitação


Essencialmente ligado ao sistema representativo, o mandato é a investidura do candidato
escolhido pelo povo na função que lhe foi confiada para representá-lo. Conforme o sistema e a
organização do poder, por meio das eleições poderíamos escolher todos os ocupantes das fun-
ções públicas, entretanto, as eleições só permitem eleger as funções de cúpula – do Legislativo e
Executivo –, e, raramente, do Judiciário.

2 Não são todos os Estados que adotam essa fórmula, mas de fato, na maioria deles assim funciona. Por conta desse
sistema indireto de eleição, pode ocorrer – e de fato já ocorreu – a situação de que o candidato eleito à presidência não é
o candidato com maior número de votos diretos.
114 Ciência Política e Teoria do Estado

Em qualquer caso, as funções eleitas também contam com meios de fiscalização. Há diversas
maneiras de fiscalizar um mandato; a realização periódica de eleições é a principal e, por meio dela,
o povo pode reeleger ou negar seu voto ao representante. Além disso, essa ação pode ser feita dire-
tamente pelos cidadãos a qualquer momento, com o objetivo de denunciar atos ilegais ou imorais.
O Legislativo pode fiscalizar, com o auxílio dos tribunais de contas, os atos do Executivo (BASTOS,
2002, p. 242-244).
Há outros institutos que permitem ao povo exercer controle durante o exercício do mandato.
De acordo com Bonavides (2010, p. 311-316), os modos mais conhecidos são:
• Veto: é um instrumento que permite ao povo participar do exercício frente a uma lei ela-
borada em vias de ser posta em execução. Pode incidir mesmo sobre uma lei já publicada,
submetida à vontade popular. Diferente do referendum, que incide sobre um projeto de
lei, o veto incide sobre uma lei pronta. Há autores que consideram os dois institutos iguais.
• Direito de revogação: consiste na possibilidade de destituir um representante eleito an-
tes do fim de seu mandato legal. Presente nos Estados Unidos e na Suíça, suas principais
modalidades são:
• Recall: próprio do sistema norte-americano, consiste na revogação individual do
mandato. Nos EUA é mais comum na esfera municipal do que na estadual. Em cer-
tos casos, como nos estados do Oregon e da Califórnia, o recall pode incidir sobre
magistrados e sobre decisões judiciais.
• Abberufungsrecht: forma de revogação coletiva, que permite cassar toda uma as-
sembleia. É um instrumento suíço de controle.
Além desses exemplos, alguns dos nossos países vizinhos também têm adotado a revogação
de mandatos como meio de controle político a ser exercido pelo povo e como formas de participa-
ção democrática.
Essa medida é adotada pelos cidadãos de países como Bolívia, Colômbia, Venezuela e
Equador. Naturalmente, essa possibilidade é revestida de requisitos jurídicos, no entanto, é impor-
tante destacar que, em geral, a ausência de legitimidade na atuação do mandatário é um dos fatores
que pode levar à perda da representação.

Considerações finais
Analisamos – talvez em uma perspectiva mais descritiva – a questão dos partidos políticos,
sua relação com o poder político e com o sistema democrático representativo. Há, todavia, uma
dimensão muito importante a respeito da qual precisamos refletir também: as ideologias e sua re-
lação com os modos de organização política, inclusive dos partidos.
Agora nos familiarizamos com nossa história política e compreendemos algumas das
funções dos partidos, bem como as possibilidades de controle sobre o poder. Ademais, pode-
mos também abordar uma dimensão mais complexa, que diz respeito a orientações teóricas,
aos interesses representados nos segmentos partidários, suas ideologias e como esses fatores
repercutem nos Estados.
Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos 115

Ampliando seus conhecimentos


Bastos (2002), em sua obra Curso de Teoria do Estado e Ciência Política, discute sobre os sis-
temas multipartidários, pluripartidários e coligações. O autor também evidencia os prós e contras
desses sistemas. Leia um trecho a seguir:

Sistemas multipartidários, pluripartidários e coligações


(BASTOS, 2002, p. 271)

[...]
Nos sistemas multipartidários, não necessariamente, mas quase sempre, o partido vitorioso
nas eleições não detém a maioria do Parlamento. Abre-se, então, um complexo jogo de nego-
ciações tendentes a aglutinar dois ou mais partidos que venham a possibilitar o exercício do
governo. Não há dúvidas de que o pluripartidarismo reflete com maiores matizes as diversas
correntes da opinião pública. Daí porque ser esse sistema muitas vezes considerado o mais
democrático. Acontece, entretanto, que estas vantagens têm o seu custo.
[...]
Estas coligações vêm muitas vezes acompanhadas de uma indesejável instabilidade, já que,
formadas pelos próprios partidos, podem também por eles ser desfeitas a qualquer momento.
Esta circunstância é grave tanto no presidencialismo como no parlamentarismo. Neste último,
rompidas as coligações, caem os governos. No presidencialismo, o esfacelamento partidário
leva à inevitável fraqueza do órgão legislativo, que pode mais facilmente se ver atingido nas
suas imunidades, privilégios e competências. Isto quando não se dá o inverso, igualmente a
ser evitado, pelo desequilíbrio que traz no bom relacionamento entre os Poderes do Estado.
Está-se a referir à hipótese em que por falta de maioria no Legislativo, o Executivo se vê a bra-
ços com a impossibilidade de exercer plenamente a função governativa em razão da obstrução
aos seus projetos de lei.
[...]

Dicas de estudo
• Mezzaroba (1990) publicou na Revista de Informação Legislativa o ensaio “O partido po-
lítico: concepção tradicional e orgânica”, no qual analisa o partido político sob distintas
perspectivas teóricas e explica como os referenciais de análise podem influenciar nossa
percepção sobre a função dos partidos e nos levar a compreendê-los como mero instru-
mento jurídico para conquista do poder, ou (o que seria mais desejável) como espaço de
luta e conscientização. O texto está disponível na homepage da Biblioteca do Senado por
meio do link: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/176215/000487569.
pdf?sequence=1>. Acesso em: 14 fev. 2018.
116 Ciência Política e Teoria do Estado

Atividades
1. O critério numérico é o bastante para diferenciarmos sistemas bipartidários de sistemas
multipartidários? Justifique sua resposta.

2. Qual a diferença entre o modelo bipartidarista adotado no Brasil e o modelo desenvolvido


nos demais países?

3. Dentre as formas de limitação de mandatos políticos que estudamos, quais são adotadas
no Brasil?

Referências
ANDRADA, B. Ciência Política: ciência do poder. São Paulo: LTr, 1998.

BASTOS, C. R. Curso de teoria do estado e ciência política. 5. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002.

BONAVIDES, P. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Objetiva, 2010.

BOTTOMORE, T. B. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BRASIL. Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial da União, Poder
Legislativo, Brasília, DF, 30 jul. 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4737.
htm>. Acesso em: 6 fev. 2018.

______. Lei n. 7773, de 8 de junho de 1989. Dispõe sobre a eleição para Presidente e Vice-Presidente da
República. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF 9 jun. 1989. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7773.htm>. Acesso em: 6 fev. 2018.

DALLARI, D. A. Elementos de teoria geral do Estado. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

DALMASES, J. M. Los partidos políticos y los sistemas de partidos. In: CAMINAL BADIA, Miquel (Ed.).
Manual de Ciência Política. 3. ed. Madri: Tecnos, 2006.

MOREIRA, A. Ciência política. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.

SCHMITT, R. Partidos políticos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

TORRENS, X. Los sistemas electorales. In: CAMINAL BADIA, M. (Ed.). Manual de Ciência Política. 3. ed.
Madri: Tecnos, 2006.
9
Ideologia, pensamento político e fronteiras
teóricas entre os Estados modernos

A ideologia é um conceito que – assim como os demais que já analisamos (Estado, política,
sociedade etc.) – assume sentidos diferentes de acordo com o teórico que o desenvolveu. Por isso,
na medida em que entendermos o sentido dessa concepção, ela nos prestará um aporte diferente
para compreendermos o Estado e analisarmos as relações sociais e de poder.
Neste capítulo, vamos analisar as principais definições de ideologia e aprender a empregá-las
em nosso cotidiano. Com base nessa compreensão, vamos estudar como as principais ideologias se
expressam no pensamento político, bem como nos diferentes Estados.

9.1 Conceitos de ideologia e sua relação com a política


Segundo Abbagnano (2007, p. 615), o conceito ideologia surgiu pela primeira vez no século
XVIII, nas reflexões de francês Destutt de Tracy (1754-1836). Ele criou esse termo para se referir
à “análise das sensações e das ideias”. Nesse período também surgiu a escola dos ideólogos e den-
tre esses, alguns hostilizaram Napoleão Bonaparte. A reação do imperador foi usar o conceito de
ideologia como uma forma de crítica ou depreciação, pois a empregou com sentido de sectarismo,
dogmatismo e caracterizou os ideólogos como pessoas sem noção da realidade ou da política.
Essa mudança de compreensão está relacionada ao sentido que atribuímos predominan-
temente ao termo. A ideologia é vista como doutrina determinada pelos interesses de quem a
utiliza, sejam esses interesses escancarados ou dissimulados. Foi dessa maneira que o conceito
evoluiu e se tornou essencial para o marxismo em sua oposição à cultura burguesa. Em meados
do século XIX, Marx demonstrou que – no curso da história econômica – as crenças morais, po-
líticas, filosóficas etc. são determinadas pelas relações de produção e de trabalho próprias de cada
época. Sua tese, importante para compreender esses fatores, foi denominada materialismo histórico
(ABBAGNANO, 2007, p. 615).
Antes de nos determos à contribuição de Marx, vamos passar por um breve sumário com
algumas teorizações a respeito da ideologia (ABBAGNANO, 2007, p. 615-616):
• Vilfredo Pareto (1848-1923): sociólogo e economista italiano, publicou a obra Tratado
de sociologia geral (1916). Pareto reconheceu a ideologia como noção de teoria não cien-
tífica, isto é, uma teoria que não tira deduções com base em experimentações, como faz a
ciência propriamente dita. Em resumo, ele entendia que a ciência e a ideologia pertenciam
a campos opostos: a ciência remetia-se à experimentação e ao raciocínio, já a ideologia
pertencia ao campo do sentimento e da fé. Em sua obra, Pareto estudou a ideologia já com
o sentido atribuído por Marx.
118 Ciência Política e Teoria do Estado

• Karl Mannheim (1893-1947): sociólogo húngaro, não levou em conta a proposição es-
sencial de Pareto, no qual considerava que a função primordial da ideologia é persuadir.
O autor distinguiu um sentido universal e um particular para a ideologia. O sentido uni-
versal a define como visão de mundo, partilhada por um grupo de pessoas, por exemplo,
uma classe social (burguesia ou proletariado). A ideologia – em sentido particular – é o
conjunto de simulações e falsificações de uma situação real que prejudica os interesses de
quem sustenta a ideologia. Para o autor, essa é uma distorção da realidade, que pode ser
feita propositalmente ou não. Com essa distinção, Mannheim situou a ideologia em dois
campos de estudo diferentes: o sentido particular deve ser analisado pela psicologia, já o
sentido geral deve ser analisado pela sociologia.
• Nicola Abbagnano (1901-1990) e Norberto Bobbio (1909-2004): o primeiro, filósofo
e historiador da filosofia, o segundo, também italiano, já conhecido de outros capítulos.
Ambos propuseram um sentido neutro ou fraco para ideologia e a caracterizaram como
o conjunto de crenças ou valores empregados para conduzir a luta política das massas e
fundamentar a legitimidade do poder. Esse sentido se contrapõe ao chamado sentido forte
ou negativo da ideologia, construído no âmbito da obra e do pensamento marxista. Nas
palavras de Abbagnano, a ideologia é “capaz de se inserir na situação, dominá-la e adequá-
-la a si mesma” (ABBAGNANO, 2007, p. 615).
• Karl Marx e Friedrich Engels: sua concepção de ideologia foi influenciada por distin-
tos debates filosóficos de seu tempo, da mesma maneira que influenciou inúmeras con-
cepções a respeito do sentido e da função da ideologia. Bottomore (2001, p. 183-186)
apresenta em seu Dicionário do pensamento marxista uma rica incursão por essas ideias.
O autor explica que Marx e Engels chegaram à uma percepção negativa da ideologia por-
que notaram uma inversão tanto na consciência quanto na sua existência material das
pessoas, ambas unidas por uma relação. Essa união nasce das contradições sociais e ao
mesmo tempo as ocultam.
Para entender a proposta de Bottomore, é importante situar as distintas fases do pensamento
marxista. A primeira vai até o ano de 1844; nesse período, os autores não chegaram a usar a palavra
ideologia. Ainda assim, eles apresentaram elementos cruciais para definir seu sentido, ao mencio-
nar as inversões que distorcem ou obscurecem o sentido das coisas.
A segunda fase compreende o período entre 1845 e 1857. O materialismo histórico, a res-
peito do qual comentamos, se constrói nesse período, assim como as premissas fundamentais por
meio das quais o pensamento marxista vai interpretar e explicar a sociedade e a história. Foi tam-
bém nesse período que pela primeira vez a obra de Marx e Engels empregou a palavra ideologia.
Como vimos na primeira fase, as bases desse conceito foram associadas à inversão. Aqui o sentido
se mantém, mas é ampliado para abranger a crítica à religião e ao papel que ela desempenhava na
sociedade. Nessa fase, Marx formulou a sustentação de que os problemas da humanidade são con-
tradições sociais existentes na realidade e não ideias errôneas que formamos a respeito dela.
Essas ideias são, antes de tudo, consequência das contradições reais, pois quando os ho-
mens não contam com os recursos necessários para lutar contra as contradições reais, seguem a
Ideologia, pensamento político e fronteiras teóricas entre os Estados modernos 119

tendência de projetá-las – na forma ideológica – dentro de sua consciência. Os homens buscariam


soluções espirituais ou discursivas. O problema, segundo os autores, é que essas soluções ocultam
ou disfarçam as contradições. Em consequência disso, a distorção da realidade ajuda a perpetuar as
situações que, em regra, atendem somente aos interesses das classes dominantes. Em razão dessa
dinâmica, as distorções ideológicas apenas desaparecerão quando conseguirmos eliminar as con-
tradições reais que originaram as inversões ideológicas.
A terceira fase começa com a redação do Grundrisse1, em 1858, em que Marx analisou uma
realidade concreta e específica, na qual se desenvolvem as relações capitalistas. Nessa fase, a pala-
vra ideologia quase desaparece, mas o conceito de inversão permanece, ainda que reelaborado. Ele
percebeu que a esfera da circulação capitalista produziu um mundo de aparência, de modo que
identificou as formas econômicas de ideologia.
Nesse mundo, o mercado se impõe como fonte da ideologia burguesa, no qual superficial-
mente parecemos ter liberdade e igualdade, mas quando espiamos para além da superfície, não en-
contramos o menor vestígio nem de uma e nem de outra. Percebemos nessa trajetória sucintamen-
te apresentada que a crítica de Marx começou pela religião e culminou nas aparências econômicas.
Depois da morte de Marx, houve um intenso debate, inclusive sobre o sentido de ideologia.
Inicialmente, essa concepção não perdeu sua implicação crítica, entretanto, assumiu um novo sen-
tido, que colocou a conotação negativa em segundo plano. Disso surgiram duas concepções: uma
que a considera como totalidade das formas de consciência social e outra que a define como ideias
políticas especificamente relacionadas aos interesses de uma classe. Também vimos que foi atribuí-
do à ideologia um sentido neutro.
De fato, nos textos de Marx e Engels existem elementos para essa concepção. Antonio
Gramsci (1891-1937) as citou para apoiar seu próprio ponto de vista. Ele comenta uma passagem
da obra Prefácio à contribuição à crítica da economia política, escrita em 1859, sobre questões jurí-
dicas, filosóficas e políticas que Marx e Engels identificaram como formas ideológicas nas quais os
homens assumem consciência do conflito e da solução pela luta. Além da própria complexidade
dos textos dos autores – que não eliminavam ambiguidades de sentidos –, há o fato de um dos
textos mais importantes para esse debate, A ideologia alemã, ter sido publicado apenas em 1920. As
primeiras gerações marxistas não tiveram acesso à obra completa, o que influenciou o debate e o
desenvolvimento do conceito de ideologia.
O primeiro pensador que colocou o problema de o marxismo ser ou não uma ideologia foi
Eduard Bernstein (1850-1932). Para ele, embora as ideias proletárias tivessem uma direção realista,
elas ainda eram reflexos do pensamento, logo, ideológicas. Ao identificar a ideologia com ideias
e ideais, o autor chegou a uma conclusão que os outros não haviam chegado: o marxismo é uma
ideologia (BOTTOMORE, 2001, p. 185).
Se nos concentrarmos no sentido positivo do conceito de ideologia, adentramos no
universo das lutas políticas deflagradas na Europa ocidental no final do século XIX. Nesse

1 Trata-se de um importante manuscrito de Karl Marx, conhecido décadas depois de ser escrito. Essa é uma obra
póstuma que costuma ser considerada o esboço de textos da principal obra de Marx, O Capital.
120 Ciência Política e Teoria do Estado

contexto, o marxismo estreitou sua relação com as lutas de classe e as organizações partidárias
com o objetivo de aportar teoricamente aqueles movimentos e criar uma teoria da prática
política. A solução foi proposta por Lenin, militante comunista que atuou intensamente na
Revolução Russa de 1917. Ele ampliou o sentido de ideologia e sustentou que a crítica à ideo-
logia da classe dominante é feita com base em outra posição de classe, ou seja, outra perspec-
tiva também ideológica. Em suma, ele deu à ideologia contornos de uma consciência política
vinculada aos interesses de uma determinada classe, que ocasionou a oposição entre ideologia
burguesa e ideologia socialista. Lenin ainda defendeu que a ideologia burguesa era falsa de-
vido à situação estruturalmente limitada dessa classe. No entanto, ele não ignorou o fato de a
ideologia burguesa dominar e contaminar a consciência do proletariado.
Sob a influência de Lenin, Gramsci rejeitou a concepção negativa de ideologia de Marx.
Embora ele tenha discutido, ela é não convergente com o pensamento marxista. Esse novo sentido
definiu a ideologia como ideias arbitrariamente formuladas por indivíduos particulares, o que fez
surgir a dicotomia entre ideologia arbitrária e ideologia orgânica. A ideologia orgânica era mais re-
levante, uma vez que representava uma concepção de mundo implícita em todas as manifestações
da vida individual e coletiva. Assim, a ideologia orgânica estava além de um sistema de ideias, ela
assumia a capacidade de inspirar as atitudes das pessoas e de orientar suas ações. O teórico ainda
identificou quatro níveis de ideologia com diferentes graduações de rigor e articulação intelectual:
o primeiro era a filosofia (mais forte), em seguida estavam a religião, o senso comum e o folclore.
As ideias apresentadas por Gramsci permitiram uma nova perspectiva acerca dos apare-
lhos ideológicos – como a educação – e do papel dos intelectuais na produção da ideologia: a
própria classe cria seus intelectuais orgânicos, portanto, não depende exclusivamente de uma
ideologia desenvolvida externamente à classe operária (a ideologia socialista) e que essa classe
precisa incorporar em sua consciência. O autor defendia a tarefa de tornar crítica a atividade
(já existente) dos intelectuais produzidos dentro da classe orientados por uma vontade coleti-
va e seu contexto histórico.
Vimos então duas concepções importantes de ideologia (sentido negativo e sentido positi-
vo), ambas extraídas da tradição teórica marxista. A existência delas ensejou intensos debates e di-
vidiu estudiosos: para alguns não é possível existirem duas concepções distintas, somente uma se-
ria realmente marxista. Outros, entretanto, não conseguem admitir que Lenin discordou de Marx,
o que traz o dilema de tentar conciliar essas duas concepções.
Para Bottomore, o filósofo francês Louis Althusser (1918-1990) foi um dos teóricos que
enfrentou esse desafio. Suas reflexões resultaram na concepção mais influente das últimas déca-
das, embora carregada de contradições. Althusser distinguiu a teoria da ideologia geral, que tem a
função de garantir a coesão à sociedade, da teoria de ideologias específicas, que tem o objetivo de
assegurar a dominação de uma classe.

Ideologia crítica
Esse conceito tem suas raízes na Escola de Frankfurt que defendia
um filosofar crítico para a libertação da humanidade da dominação
Ideologia, pensamento político e fronteiras teóricas entre os Estados modernos 121

econômica e política mantida por meio de mistificações ideológicas.


Conforme sustentava Jürgen Habermas (1929-), um de seus principais
integrantes, “quando a filosofia descobre [a] violência que deforma o
diálogo [...] determina o progresso do gênero humano para a emancipa-
ção” (ABBAGNANO, 2007, p. 616).

Vejamos a seguir, para exemplificar nossas reflexões, como a categoria ideologia explicaria o
Estado e a política.
Nós já vimos que a política está na essência do ser humano, assim como a necessidade de
viver em sociedade. Desse convívio surgiram conflitos e a busca por meios de equacioná-los, equi-
librá-los ou refrear a violência direta. A humanidade desenvolveu mecanismos para organizar o
poder, o que acabou por institucionalizá-lo na forma do Estado. Além disso, a forma como com-
preendemos e explicamos as relações sociais interferem diretamente no modo que compreende-
mos o Estado e como desenvolvemos a ação política. A ideologia é não somente o conjunto de
ideias que dá o aporte para diferentes compreensões, ela também é um instrumento de manuten-
ção do Estado. O Estado, por sua vez, é um instrumento de difusão de ideologias.
Se compreendermos o Estado como o poder institucionalizado para garantir a dominação
da classe proprietária/burguesa sobre a classe proletária, ele terá uma função ideológica: difundir
uma visão distorcida das injustiças sociais, propagar um conjunto de crenças que ajudarão a man-
tê-lo enquanto instituição e contribuirão para manter as relações sociais de dominação. Por outro
lado, com a ampliação dos sentidos de ideologia, os debates políticos modernos (e é assim até hoje)
foram polarizados em grandes grupos, o que culminou em grandes ideologias políticas.
No próximo item, analisamos a ideologia em três grandes grupos: socialismo, liberalismo
e social-democracia. No entanto, é importante estar ciente de que dentro desses grupos há mui-
tas variações. Ademais, devemos nos recordar que os sistemas democráticos, de partidos, elei-
torais e o próprio Estado são resultado de ideologias que triunfaram em determinadas épocas.
Independentemente do sentido que atribuirmos à ideologia, o que muda é o nosso juízo de valor
ou opções teóricas para analisar o fenômeno estatal e político.

9.2 Principais ideologias políticas: socialismo,


liberalismo e social-democracia
Wolkmer (2000) identifica na Revolução Francesa a origem das ideologias modernas.
Notadamente, os chamados grupos de esquerda e direita, em suas diversas variações, dissemi-
naram-se de tal modo no campo da filosofia política moderna a ponto de o autor afirmar ser
impossível vivermos num mundo de ideologias. Há diversos grupos de ideologias políticas
distribuídos desde as doutrinas conservadoras ou reacionárias, até as liberais ou progressistas.
Desse modo, Wolkmer propõe uma tipologia de ideologias políticas e a inicia com a distinção
entre esquerda e direita.
122 Ciência Política e Teoria do Estado

Dentre as posições políticas da direita, identificamos a defesa da continuidade, da hierar-


quia, da autoridade dos valores e de situações, isto é, a manutenção do status quo2. Já a esquerda
se mostra mais sensível à justiça e mais aberta ao progresso, adota rupturas quando necessário e,
defende os oprimidos, a liberdade, a democracia, os indivíduos e pautas afins. A direita, com a
ânsia de manter a ordem, apresenta-se com caráter conservador, diferentemente da esquerda, que
tende a se vincular às pautas de mudanças, reformas e revoluções, recebendo muitas vezes a fama
de partidos radicais. Encontramos essa adjetivação (conservadores e radicais) com frequência até
os dias atuais.
Com base nessa tipologia, o autor distribui o pensamento político em quatro grandes grupos
ideológicos: liberalismo, socialismo, nacionalismo e totalitarismo (este último será abordado no
próximo capítulo). Com relação aos primeiros, vamos tratar ainda da social-democracia.

9.2.1 Ideologia do liberalismo


Trata-se de uma nova visão global do mundo, que foi orientada pelos interesses da nova
classe social, a burguesia, classe protagonista na luta revolucionária contra o feudalismo aristocrá-
tico. Embora tenha contado com o apoio dos camponeses e outras classes exploradas pelo regime
absolutista, as reivindicações no liberalismo defendiam o individualismo e o desejo de liberdade
em todos os âmbitos da ação humana (filosófico, econômico, político etc.).
Foi desses anseios que surgiu o conhecido lema da Revolução Francesa: “liberdade, igualda-
de e fraternidade”. Se esse lema inicialmente representava tanto a burguesia enriquecida quanto os
aliados explorados, o início da fase industrial do capitalismo os colocou em campos opostos: a bur-
guesia assumiu o poder político e controle pleno da economia não somente com a negação da dis-
tribuição das riquezas, mas também com a exclusão do acesso do povo ao governo. Acrescentamos
a isso certas contradições da ideologia liberalista, como a defesa da liberdade como bem supremo,
que coexistia com a limitação de ação dos pobres.
O liberalismo foi revolucionário em relação ao regime absolutista, mas foi conservador
diante das reivindicações do povo. Podemos caracterizá-lo por meio de três núcleos:
• moral: que tinha Rousseau como um de seus representantes na afirmação de valores
como a liberdade pessoal, o individualismo, a tolerância e a dignidade;
• econômico: com defesa a direitos como propriedade, economia de mercado, livre concor-
rência e ausência de controle pelo Estado; e
• político: no qual encontramos os direitos políticos, sobretudo, no direito ao voto e na
participação da escolha dos governantes – o sistema representativo é um dos princípios
básicos do liberalismo político.
No Capítulo 4 nós vimos de maneira mais detalhada os valores do liberalismo político: são
aqueles que definem e distinguem o Estado moderno. Como já mencionamos, os sistemas políticos
são resultado das ideologias que triunfam em cada época.

2 Expressão em latim que pode ser traduzida por “estado das coisas”. Muito utilizada na linguagem jurídica, essa
expressão indica a manutenção da ordem e das coisas como estão.
Ideologia, pensamento político e fronteiras teóricas entre os Estados modernos 123

Wolkmer também diferencia dois conceitos importantes que não podem ser confundidos:
democracia e liberalismo. Para distingui-los, é importante destacar que o liberalismo se ocupa da
extensão do poder do governo, enquanto a democracia se ocupa de quem detém esse poder. Além
disso, o liberalismo exige renda para votar e ser votado, enquanto na democracia ele é universal.
Outra diferença também é o fato de o liberalismo ter sua atenção voltada aos indivíduos, já a de-
mocracia atenta-se à sociedade como um todo. No liberalismo, o Estado deve estar a serviço dos
indivíduos; na democracia ele deve assegurar a soberania popular. A ampliação dos direitos demo-
cráticos e de participação popular conduziu a democratização à ideologia do liberalismo.
O Brasil também desenvolveu uma ideologia liberalista, entretanto, diferente de países euro-
peus e dos Estados Unidos, já que aqui não tínhamos uma classe burguesa revolucionaria. Nesses
países, o liberalismo representou uma doutrina política libertadora e assumiu traços conservadores
à medida que a classe burguesa se instalou no poder e se sentia ameaçada pela classe trabalhadora.
No Brasil, o escopo do liberalismo consistiu em reordenar o poder e o domínio das elites agrá-
rias, o que formou um liberalismo específico, que misturou conteúdos liberais com oligárquicos
e conteúdos conservadores com aparência de democráticos. Wolkmer define nossa versão como
conservadora, antipopular e de elite.

9.2.2 Ideologia do socialismo


A expressão socialismo foi empregada na Inglaterra do século XIX, onde surgiram teo-
rias as quais idealizaram novas formas de sociedade que priorizassem a sociedade e não o
indivíduo, com o objetivo de buscar soluções para os problemas sociais. Esses problemas não
eram decorrentes apenas da Revolução Industrial, visto que a doutrina é bem anterior e já
mostrava problemas agrários.
Em um sentido mais amplo, a ideologia socialista é motivada a transformar a sociedade e
eliminar as diferenças de classe para transformar a propriedade individual dos meios de produção
coletiva e melhorar a vida dos trabalhadores urbanos. Como o socialismo se manifestou de diver-
sas maneiras, podemos identificar traços comuns como a crítica ao capitalismo e a substituição
da propriedade privada pela coletiva. Nesse sentido, surgiram várias concepções de socialismo,
como o socialismo científico de Marx e Engels, o socialismo utópico de Saint-Simon (1760-1825)
e Pierre-Joseph Proudhon (11809-1865) e o socialismo estatal de Ferdinand Lassalle (1825-1864).
A ideologia socialista decorreu de desigualdades sociais/econômicas e de exploração mate-
rial dos trabalhadores, por isso, dizemos que seu desenvolvimento foi simultâneo ao desenvolvi-
mento do movimento operário. Esse movimento inspirou a resistência às condições precárias de
trabalho e utilizou o socialismo como referência para suas reivindicações, com base principalmen-
te no marxismo e no anarcossindicalismo. O marxismo foi a corrente que mais se difundiu, de
modo que seu desenvolvimento também ensejou subdivisões e o surgimento de novas correntes,
como o marxismo ortodoxo, o marxismo revisionista, o comunismo de guerrilha, o marxismo
nacionalista, entre outros.
Finalmente, no Brasil essa ideologia se manifestou como anarquismo. Essa concepção foi
trazida pelas correntes migratórias entre os anos de 1906 e 1920 e foi importante combustível
124 Ciência Política e Teoria do Estado

para as lutas operárias. O socialismo democrático (expressão do socialismo reformista brasi-


leiro) foi duramente atacado pelo anarcossindicalismo e pelo marxismo-leninismo, expressões
da esquerda revolucionária.
No estado do Rio Grande do Sul também houve uma expressão do socialismo reformista, o
socialismo trabalhista, no qual suas ideias foram incorporadas pelo PTB. O comunismo (ou mar-
xismo-leninismo), assim como em outros países, articulou-se no Brasil sob a forma de um partido
político, o PCB.

9.2.3 Ideologia do nacionalismo


O nacionalismo nasceu ligado à ideia de nação, conceito concebido pelos teóricos da
Revolução Francesa. Apesar de alguns estudiosos identificarem suas raízes em civilizações
antigas, o nacionalismo é um fenômeno da modernidade, originado em meados do século
XVIII. Ele nasceu nos países europeus e ficou a eles limitado, apenas posteriormente ele foi in-
corporado como combustível revolucionário de diversos países na luta contra o imperialismo
e o domínio dos países colonizadores.
Um dos pioneiros do pensamento nacionalista foi Giuseppe Mazzini (1805-1872), político
italiano que defendeu a autodeterminação nacional como solução universal dos problemas po-
líticos. Por isso, a unidade nacional era a principal meta, na qual não eram toleradas ideias que
pudessem ameaçá-la. A educação também era definida por essa meta, uma vez que seu escopo não
era formar livres pensadores, mas sim produzir uma uniformidade doutrinária na nação, isto é, os
interesses de uma nação são mais importantes do que os interesses individuais.
O nacionalismo se situou em um processo histórico que buscou estabelecer as unidades
políticas nas nacionalidades e favoreceu surgimento do Estado nacional. Suas características fun-
damentais são a independência do Estado-nação, a exigência de um progresso nacional, a realiza-
ção de uma missão nacional e a lealdade suprema à nação-Estado. Em suas principais variações, o
nacionalismo se apresentou como conservador, revolucionário, liberal e integral/totalizador.
No Brasil, essa concepção surgiu na década de 1930, incialmente com caráter conservador,
posteriormente – nas décadas de 1940 e 1950 – o nacionalismo brasileiro assumiu orientações
socializantes e desenvolvimentistas. Essa foi uma ideologia que fundamentou a modernização da
nossa sociedade e também dos países latino-americanos. Ela também é essencialmente burguesa,
pois serviu, em nome da nação, para a defesa dos interesses da burguesia industrial nacional, amea-
çada pelo imperialismo.
Um dos desdobramentos do nacionalismo no Brasil foi o populismo. Ele pode se constituir
tanto em ideologia quanto em movimento sociopolítico, como ocorreram em diversos continentes.
Nessa ideologia ou movimento, o Estado estabelece uma relação carismática com o povo, fundada
em uma concepção de massas e de tutela do Estado sobre o povo. Concretamente, o populismo
se manifestou de diversas maneiras: nacional-populismo, presente no peronismo da Argentina;
populismo revolucionário, de Josef Stalin (1878-1953) e de Fidel Castro (1926-2016); populismo
democrático ou pluralista, expresso no gandhismo; ou ainda o populismo intermediário, como no
governo de Getúlio Vargas.
Ideologia, pensamento político e fronteiras teóricas entre os Estados modernos 125

9.2.4 Ideologia da social-democracia


Na Europa do século XIX houve um contexto político em que trabalhadores e campone-
ses que deixavam o campo se uniam na luta pelo poder político em nome da democracia e do
socialismo radicais. A classe média era indefinida e dividida entre conservadores – nobreza,
clero e proprietários rurais – e democratas radicais. Os conservadores não aceitavam o libera-
lismo e os democratas aceitavam o núcleo moral, com direitos civis, liberdades, entre outros.
Os liberais, por sua vez, aceitavam a lógica da democracia. Foi reconhecida a necessidade de o
Estado apoiar as atividades econômicas, inclusive na assistência aos desempregados e auxílio
na obtenção de empregos.
Nesse contexto, surgiu a social-democracia, um desenvolvimento do socialismo. Seu ali-
nhamento às organizações socialistas internacionais foi controverso. No ano de 1945, por meio
do Partido Trabalhista Inglês, ocorreu a primeira convocação dos socialistas europeus já com di-
ficuldades e, em 1946, o Partido Social-Democrata da Alemanha não foi aceito como membro da
Internacional Socialista, o que só veio a ocorrer no ano seguinte.
Da União Soviética, Stalin apresentou forte oposição aos partidos social-democratas. Por volta
de 1948, os socialistas europeus preocupavam-se com aspectos que os diferenciassem dos comunis-
tas, e assim, na conferência da Internacional Socialista, surgiu o conceito de democracia política e seu
manifesto declarava a recusa aos modelos democráticos de um único partido e seus sistemas de go-
verno, bem como priorizava a defesa das liberdades de pensamento, expressão e opinião; a segurança
e a igualdade jurídicas; a garantia dos direitos eleitorais (inclusive de oposição política); e a igualdade
política sem discriminação de classe, raça ou sexo (BRAGA, 1997, p. 188-190).
Nesse tópico, procuramos indicar alguns grandes agrupamentos de orientações ideológicas,
verificadas no pensamento político moderno. A seguir, vemos como essas orientações gerais se
concretizam por meio da institucionalização do poder, isto é, como essas ideologias se expressam
em diferentes Estados.

9.3 Pensamento político e Estados


A influência das ideias é uma força poderosa. A repercussão dos debates que analisamos
anteriormente alcançou todo o Ocidente e influenciou as ciências sociais, o Direito, a política
e tantos outros campos de manifestação da essência humana. No âmbito da política e da teoria
do Estado, como resultado dessa influência, vimos florescerem alguns tipos de Estado, dos
quais selecionamos para análise: o Estado liberal de direito, os Estados não liberais, o Estado
social de direito e o Estado neoliberal.

9.3.1 Estado liberal de Direito


Como vimos, a ideologia do liberalismo é bastante ampla e comporta vários sentidos. Por
isso, em cada parte que se alcançou o pensamento liberal, seu desenvolvimento foi específico. Para
entender seu impacto no âmbito político, por meio do chamado Estado liberal (aquele que emergiu
na Revolução Francesa), devemos considerar especialmente o liberalismo econômico e o liberalis-
mo jurídico. O liberalismo econômico reivindica a liberdade de mercado, de concorrência e troca
126 Ciência Política e Teoria do Estado

de mercadorias sem a intervenção do Estado, todavia, precisa da segurança jurídica para celebrar
suas negociações. Aí entra o papel do liberalismo jurídico, que assegura as liberdades individuais
contra os abusos dos governantes.
Ambos são o ponto que nos permite identificar as diversas formas como os Estados liberais
se estruturaram na modernidade. A relação entre economia e Direito nesse modelo de Estado con-
siste em estar a serviço do liberalismo econômico, tarefa que cumpre por meio da regulamentação
das relações mercantis com contratos, defesa da propriedade etc. (MORAES, 2014, p. 271-272).
Esse modelo sucedeu os Estados liberais após sua crise.

9.3.2 Estados não liberais


Dada a importância e prevalência do liberalismo no pensamento moderno, esse concei-
to serviu como paradigma para qualificar diferentes formas estatais em liberais e não liberais.
Os Estados não liberais são aqueles que não cumprem os pressupostos básicos do liberalismo e sua
evolução, tais como o respeito às liberdades políticas, jurídicas, individuais, pressupostos demo-
cráticos, entre outros. Comporta-se nele uma série de manifestações concretas, como os Estados
autoritários e as ditaduras. Analisaremos essas manifestações no próximo capítulo.

9.3.3 Estado social de Direito


O liberalismo dominou o pensamento europeu até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
As principais críticas a essa ideologia se concentravam na denúncia de que tal pensamento servia
para o domínio da burguesia sobre os trabalhadores. Simultaneamente surgiram evidências da
crise do modelo de Estado liberal. A percepção da necessidade de que o Estado interviesse nos
espaços de liberdade originou a ideia de intervencionismo, associada à passagem do Estado Liberal
ao Estado Social. Esse Estado social teve também suas variações, como o Estado de bem-estar so-
cial. Em cada país que se deu a transição dos modelos, igualmente ocorreram arranjos próprios das
realidades locais.
Por isso, podemos dizer que Estado social é um conceito bastante aberto, que abrange vários
sentidos e experiências políticas específicas, tanto que há teóricos que reivindicam o seu rótulo
para Estados mais diversos, inclusive o Estado nazista de Adolf Hitler (1889-1945), esse, natural-
mente, não poderia estar mais distante de um modelo de Estado social.
Em comum nas suas diferentes formas, o Estado social pode ser caracterizado pelo reconhe-
cimento de direitos às massas populares e ao reconhecimento da importância do papel de interven-
ção estatal (MORAES, 2014, p. 273-277).

9.3.4 Estado neoliberal


A ideologia neoliberal surgiu como crítica à ideologia social-democracia e ao seu Estado de
bem-estar em seu ápice. Nos anos 1970, estava instaurada uma crise no sistema capitalista, na qual
as taxas de lucro caíam sem resposta do sistema para o problema. Desse modo, as economias mais
avançadas, ditas centrais, como a europeia e a norte-americana, gestaram uma nova concepção que
somente mais tarde alcançou as economias periféricas, como o Brasil.
Ideologia, pensamento político e fronteiras teóricas entre os Estados modernos 127

O filósofo e economista Friedrich Hayek (1899-1992) é considerado um dos principais no-


mes dessa concepção. O impacto do neoliberalismo, no pensamento político e em outras esferas,
redefiniu a percepção entre público e privado, exaltou o espaço do mercado e os méritos da iniciati-
va privada e rejeitou o papel do Estado e suas intervenções na economia. Nele, tudo o que é relacio-
nado ao Estado (o público) é visto como ineficiente, como um órgão que gasta desordenadamente
por ser incapaz de uma gestão racional de seus recursos. O privado passa a ser reconhecido como
o oposto: produtivo e eficiente. Com isso, ressurge a ideia do Estado mínimo. Dentre as consequên-
cias dessa ideologia, temos a onda de privatizações das coisas públicas, a abertura e flexibilização
da economia, que inclusive alcança esferas de proteção individual e coletiva, como os direitos dos
trabalhadores (MAZETTO, 2015, p. 11-12).
É ainda importante nos atentarmos para a relação entre constitucionalismo e evolução do
Estado. Como já refletimos, desde o triunfo das revoluções burguesas e a influência de sua reivin-
dicação por segurança jurídica, as constituições têm sido o local de conciliação e organização do
poder político e dos direitos. Com base na evolução histórica e de maneira semelhante ao caminho
que perfizemos até aqui, porém em uma perspectiva constitucional, Pastor e Dalmau (2013, p. 43-
-57) desenvolvem uma reflexão a respeito das distintas fases que a cultura constitucional perpassou
e como a função desse importante documento jurídico foi modificada. Em sua análise, vemos a
incidência das principais ideologias que estudamos neste capítulo. Os pesquisadores explicam que
as primeiras três fases são definidas com base na prática política europeia.
A primeira fase se deu com surgimento do Direito constitucional no século XVIII, que co-
meçou forte, preocupou a classe burguesa em virtude de sua eficácia social. O ataque veio sob
a forma de enfraquecimento das instituições políticas e seu caráter democrático, o que levou a
constituição a perder sua força e a tornou uma mera declaração de direitos sem eficácia. Isso gerou
a segunda fase, em que houve a substituição de um constitucionalismo que se fortaleceu por um
constitucionalismo débil, fraco, no século XIX. A terceira fase se deu com a emergência do cons-
titucionalismo de bem-estar, no fim do século XX. Essa forma surgiu como resposta à perda dos
direitos, nas quais ocorreram diversas conquistas jurídicas e políticas, no entanto, esse constitu-
cionalismo foi atacado também pelos avanços neoliberais, a respeito dos quais tratamos há pouco.
Os autores avaliam que quando o neoliberalismo e a globalização avançaram, justamente o mo-
mento em que mais necessitávamos de um constitucionalismo forte, só podíamos contar nova-
mente com um constitucionalismo fraco, incapaz de proteger as massas populares.
Após essas três fases, os autores mencionam a quarta e sua notória importância: o momento
de um constitucionalismo necessário. Esse constitucionalismo foi gestado com base em experiên-
cias e lutas dos povos latino-americanos. As constituições colombiana, venezuelana, equatoriana
e boliviana são exemplos dessas questões. Os autores denominam esse constitucionalismo como
necessário, porque resulta das lutas do povo para suprir suas necessidades.
Dentre as transformações inseridas na cultura jurídico-política por meio dessas experiên-
cias, destacamos o Estado plurinacional e a democracia comunitária, mas poderíamos citar inú-
meros outros, como o pluralismo jurídico e os novos sujeitos de direito. O Estado plurinacional
128 Ciência Política e Teoria do Estado

consistiu em uma nova forma que os povos ancestrais do nosso continente idealizaram (e concre-
tizaram) para assegurar o respeito a sua existência e autodeterminação. Eles não se sentiam repre-
sentados no ideal do Estado nacional, cujo modelo de unificação era o colonizador e, portanto, não
respeitava a diversidade humana.
A democracia comunitária trata do respeito às formas próprias de desenvolver os processos
políticos e a organização do poder, baseadas na comunidade e não no indivíduo. Ela também se
apoia no exercício direto do poder e não em sua representação e, quando exercida por meio de
representação, impõe ao representante o dever de atuar de modo legítimo, em conformidade com
aquilo que os verdadeiros titulares do poder aspiram.
De maneira geral, o pluralismo jurídico significa uma quebra no monopólio do Estado em
declarar o que é legal e legítimo, declarar o direito e estender às comunidades o poder de enunciar
e aplicar suas próprias normas. O reconhecimento de direitos da natureza frisa que não apenas
seres humanos e suas ficções jurídicas – pessoas jurídicas, como empresas, associações etc. – têm
direitos, mas também outros seres vivos, que assim como nós, integram a natureza. Reconhecer
esses direitos deveria ser um freio à exploração capitalista, que tem conduzido o meio ambiente a
um colapso. No entanto, ainda há um longo caminho pela frente, que requer resistência diante da
poderosa agenda neoliberal para o desenvolvimento capitalista, que ameaça gravemente a natureza
e a própria vida na terra (FERRAZZO, 2015, p. 256).

Considerações finais
Agora chegamos nos últimos pontos de nosso livro e o presente capítulo teve a função im-
portante de nos mostrar como, na modernidade, a dimensão econômica da realidade, estruturada
com base no modo capitalista de produção, determina outras dimensões, como política, jurídica,
entre outras. Desde a Revolução Iluminista, com a ascensão da classe burguesa e consolidação da
economia de mercado, a busca pelo equilíbrio das relações mercantis influenciou o Estado, assim
como as lutas sociais por direitos.
De acordo com a concepção teórica – ou ideologia – podemos chegar a diferentes con-
clusões e percepções dessa dinâmica, seja ao verificar que as necessidades do mercado são mais
determinantes, seja ao percebemos que as reivindicações políticas do povo têm mais importância.
Em qualquer caso, a ideologia tem um importante papel e conhecê-las é determinante para com-
preender suas contribuições para o pensamento político.

Ampliando seus conhecimentos


A questão de ideologia – em especial no seu sentido negativo – é discutida na obra Discurso
sobre a servidão voluntária, de Étienne de La Boétie (1530-1563). Essa obra foi escrita há quase cin-
co séculos, mas tem um teor sempre atual, como é peculiar aos clássicos. Leia um trecho a seguir:
Ideologia, pensamento político e fronteiras teóricas entre os Estados modernos 129

Discurso sobre a servidão voluntária


(LA BOETIE, 1986, p. 50-51)

[...]
Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e
outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, preço da liberdade, ins-
trumentos da tirania.
Deste meio, desta prática, destes engodos se serviam os tiranos para manterem os antigos súdi-
tos sob o jugo. Os povos, assim ludibriados, achavam bonitos estes passatempos, divertiam-se
com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavam-se a servir com simplicidade
igual, se bem que mais nociva, à das crianças que aprendem a ler atraídas pelas figuras colori-
das dos livros iluminados.
Os tiranos romanos decretaram também na celebração frequente das decenálias públicas, para
as quais atraiam a canalha que põe acima de tudo os prazeres da boca.
Nem o mais esclarecido de todos eles trocaria a malga da sopa pela liberdade da república
de Platão.
Os tiranos ofereciam o quarto de trigo, o sesteiro de vinho e o sestércio. E os vivas ao rei eram
então coisa triste de ouvir.
Não davam conta, os néscios, de que recuperavam dessa forma parte do que era seu e que não
podia o tirano dar-lhes coisa que não lhes tivesse furtado antes.
[...]

Dica de estudo
Neste capítulo, exploramos alguns conceitos elaborados por Wolkmer em sua obra Ideologia,
Estado e Direito, editada pela primeira vez na década de 1980. A obra apresenta uma descrição
detalhada de diversas ideologias e também explica e indica exemplos de como as ideologias reper-
cutem no âmbito da institucionalidade estatal e do próprio direito.

Atividades
1. Existe alguma relação entre a compreensão da sociedade e do Estado de acordo com dife-
rentes ideologias?

2. Quais as principais ideologias que repercutiram no pensamento político brasileiro?

3. Podemos dizer que a ideologia neoliberal teve alcance no Estado brasileiro? Justifique
sua resposta.
130 Ciência Política e Teoria do Estado

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BRAGA, F. Conservadorismo, liberalismo e social-democracia: um estudo de direito político. Revista de


Informação Legislativa, Brasília, DF, v. 34, n. 133, jan./mar. 1997. Disponível em: <https://www2.senado.leg.
br/bdsf/bitstream/handle/id/205/r133-18.PDF?sequence=4>. Acesso em: 06 fev. 2018.

BOTTOMORE, T. B. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

FERRAZZO, D. Pluralismo jurídico e descolonização constitucional na América Latina. 462 f. Dissertação


(Mestrado em Direito) – Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2015. Disponível em: <http://tede.ufsc.br/teses/PDPC1180-D.pdf>. Acesso em: 9 dez. 2017.

LA BOETIE, E. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa: Antígona, 1986.

MAZETTO, F. E. Estado, Políticas Públicas e Neoliberalismo: um Estudo Teórico sobre as Parcerias-Público-


Privadas. Caderno de Estudos Interdisciplinares, Varginha, p. 1-21, 2015, Edição especial (2015): gestão pú-
blica e sociedade. Disponível em: <https://publicacoes.unifal-mg.edu.br/revistas/index.php/cei/article/
view/406/pdf_1>. Acesso em: 13 dez. 2017.

MORAES, R. Q. de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação
com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, v. 51, n. 204, out./dez.
2014. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/204/ril_v51_n204_p269.pdf>. Acesso
em: 13 dez. 2017.

VICIANO PASTOR, R.; MARTÍNEZ DALMAU, R. O processo constituinte venezuelano no marco do novo
constitucionalismo latino-americano. In.: WOLKMER, A. C.; MELO, M. P. Constitucionalismo latino-ameri-
cano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013.

WOLKMER, A. C. Ideologia, Estado e direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
10
Crises das instituições políticas modernas

[...]
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
[...]
(COSTA1, 2006, p. 432)

Ao longo desta obra, estudamos nossa trajetória política. Para tanto, conhecemos nossa
condição de animais políticos; compreendemos a necessidade de conviver em sociedade e a con-
sequente ânsia de organizar esse convívio e limitar liberdades e poderes para torná-lo possível.
Vimos também o impacto da ciência nessa trajetória e nos familiarizamos com diferentes visões
teóricas a respeito de temas de interesse, como Estado, poder, partidos, sociedade, economia etc.
Essa incursão pela história nos mostrou momentos de crise e superação, como a crise do
Estado absoluto e a superação com o moderno Estado liberal; e a própria crise do Estado liberal,
com a superação pelo Estado de bem-estar social. Neste último capítulo, vamos refletir sobre al-
gumas das diferentes crises que se instauram na democracia e nas suas instituições políticas, como
golpes de Estado, ditaturas, corrupção, entre outros.

1 Alguns podem estranhar os créditos desse poema. Conhecido desde a década de 1960, ele foi um símbolo da luta
contra a ditadura e, depois, no triunfo da luta pela redemocratização do país. É muito comum a autoria do texto ser
atribuída ao poeta russo Vladimir Maiakóviski (1893-1930), ou ainda ao dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956).
No entanto, o poema, cujo título é “No caminho, com Maiakóvski” é de autoria do poeta brasileiro Eduardo Alves Costa
(1936-). Citelli (2006), discutiu sobre esse equívoco na revista Comunicação & Educação. Disponível no link: <http://www.
revistas.usp.br/comueduc/article/viewFile/37606/40320>. Acesso em: 6 fev. 2018.
132 Ciência Política e Teoria do Estado

10.1 Regimes totalitários e a negação da democracia


Os regimes totalitários constituem uma das formas de Estado não liberal. Wolkmer (2000,
p. 143), em Ideologia, Estado e Direito, analisa essa ideologia política e explica que a origem da
expressão totalitarismo é atribuída a um discurso proferido por Benito Mussolini (1883-1945),
no ano de 1925. O estadista italiano teria designado essa palavra devido a um “Estado totalitário”,
baseado na unidade nacional, sem partidos de oposição e sem a dominação de interesses particu-
lares, limitados a certos setores sociais. Wolkmer descreve então o autoritarismo como uma versão
mais branda do totalitarismo e explica que foi uma forma de Estado muito comum nos sistemas
políticos dos países de terceiro mundo.
A diferença entre os dois sistemas é que o autoritarismo se caracteriza pela ausência de uma
ideologia elaborada e de mobilização política intensiva e pelo exercício de poder por um líder no
qual os limites legais não estão claros. O totalitarismo tem mais alcance, inclusive, ele forma uma
ideologia mais abrangente, que será a ideologia oficial. O regime totalitário valoriza a presença
do cidadão, pois deseja mantê-lo em um estado de obediência passiva, apático e sem oposição ao
governo. Por isso, a ideologia que sustenta esses regimes é total, que abrange a vida social, política,
religiosa etc.
No sistema totalitário, há ainda um partido único, que serve como instrumento de controle.
Já no sistema autoritário, quando apoiado em partidos únicos, não é atribuído a esse tanto poder e
importância, uma vez que o partido se submete ao próprio governo e aos grupos econômicos que
detêm o poder. Finalmente, além da força e alcance, ambos os regimes se diferenciam por seus
objetivos: amplos, nos sistemas totalitários, e específicos, nos regimes autoritários.
Desse modo, podemos exemplificar um regime totalitário com experiências amplamente
conhecidas, como o nazismo e o fascismo, ocorridas na Europa central. O chamado totalitaris-
mo de direita se difere do totalitarismo de esquerda, ilustrado na União Soviética de Josef Stalin.
A confusão entre as duas formas deve ser evitada, uma vez que para um olhar atento são nítidas
as diferenças, inclusive do totalitarismo de Stalin, que tinha adeptos entre os pobres; já os totali-
tarismos nazista e fascista contavam com o apoio da classe média. Se prestarmos atenção a esses
dois exemplos, encontraremos outra diferença: o fascismo se fundamentava na ideia de nação; o
nazismo se baseava na concepção da superioridade racial.
Nós sabemos a que ponto esse discurso chegou, ele nos conduziu a uma das maiores tragé-
dias na história da humanidade. As consequências nefastas do regime nazista se inscreveram no
século XX como um acontecimento horrível, em que milhões de pessoas foram torturadas, assas-
sinadas e exterminadas, com base em uma ideologia – agora em seu sentido negativo, forte – de
supremacia racial. Esse episódio foi também uma das crises nos Estados modernos.
Wolkmer descreve também as expressões do autoritarismo no Brasil. O autor busca as
bases da organização social no país e cita entre nossos precedentes a escravidão e o latifúndio.
Ele também nos recorda que desde a chegada dos portugueses – com a conquista e coloniza-
ção – até a formação da república, fomos submetidos a uma administração conduzida pelas
elites do país e de postura centralizadora. Esses fatores confluíram para a formação de uma
Crises das instituições políticas modernas 133

cultura e racionalidade burocrática, autoritária, patrimonialista, da qual identificamos um


autoritarismo modernizante e um modelo conservador de autoritarismo burocrático.
O autoritarismo modernizante surgiu com a crise entre o fim da década de 1920 e co-
meço da década de 1930, na qual as formas tradicionais de dominação do país (oligárquica/
agroexportadora) ficaram enfraquecidas e foram substituídas pelo tenentismo e integralismo
do Estado Novo2. O segundo modelo foi impulsionado pela crise já no início da década de
1960, período em que verificamos um crescimento ameaçador dos setores populares, diante
dos quais o Estado não se mostrava capaz de solucionar a desestabilização. Tal fato motivou
uma aliança entre multinacionais, o alto empresariado vinculado ao capitalismo financeiro
dos Estados Unidos e setores reacionários do militarismo.
Desse modo, descrevemos em uma apertada síntese o contexto do golpe (ou revolução?) mi-
litar no Brasil. No entanto, antes de nos atermos a esse ponto fundamental, vamos conhecer outra
manifestação do autoritarismo citada por Wolkmer, o integralismo. Esse movimento chegou ao
Brasil na década de 1930, como eco dos movimentos autoritários europeus, que aqui encontraram
uma classe burguesa em ascensão, apreensiva com a influência do socialismo bolchevista desen-
volvido na União Soviética.
No ano de 1932, Plínio Salgado (1895-1975), fundador da Ação Integralista Brasileira (AIB),
publicou o Manifesto à nação brasileira, no qual estava contido um programa de extrema direita,
com ideologia autoritária influenciado pelo fascismo italiano e pela ditadura salazarista portu-
guesa. O programa consistia em um partido disciplinado com um único chefe – carismático –,
que exercesse um autoritarismo administrativo, e uma forte oposição ao marxismo-leninismo. Seu
lema era Deus, Pátria e Família, inspirado pelo catolicismo, nacionalismo, sindicalismo e interven-
cionismo. Em virtude de suas características, Wolkmer considera o integralismo uma das primei-
ras e mais autênticas expressões ideológicas nacionalistas.
Em relação às ditaduras latino-americanas, Mendes (2013, p. 8) explica o contexto que en-
sejou uma série de golpes militares no nosso continente, a começar pelo Brasil3, em 1964, seguido
da Argentina em 1966 e 1976, o Chile em 1973, e o Uruguai em 1976. Posteriormente, quase todos
os países do continente foram submetidos a regimes políticos autoritários – sob a doutrina da
segurança nacional –, com exceção de Venezuela e México. Às vésperas das tomadas militares de
poder, houve uma intensa mobilização popular para reivindicação de uma série de direitos, que
iam desde aqueles ligados ao voto até os trabalhistas e de reforma agrária. Simultaneamente, em
1959, ocorreu a Revolução Cubana, que colocou fim a mais de 30 anos de domínio político-econô-
mico estadunidense por meio do governo de Fulgencio Batista (1901-1973). Essa revolução abriu
perspectivas de transformação política, econômica e social também no nosso continente.

2 Chamamos de Estado Novo o governo instituído por Getúlio Vargas – conhecido por alguns como Era Vargas – na
década de 1930. Trata-se de um período controverso na história política brasileira, passível de muitas interpretações.
De fato, nessa época houve um forte apelo ao nacionalismo e ao anticomunismo, bem como uma grande concentração
dos poderes políticos.
3 Neves e Liebel (2015, p. 57) acrescentam também o Paraguai nessa lista, uma vez que o país foi submetido a um
golpe de Estado em 1954.
134 Ciência Política e Teoria do Estado

Mendes (2013, p. 11) explica que a doutrina de segurança nacional – que repercutiu de tal
maneira na América Latina – foi concebida nos Estados Unidos e elaborada por civis americanos
após a Segunda Guerra Mundial. Sua motivação era tanto a definição do papel dos EUA no cená-
rio mundial, quanto o temor de uma expansão soviética similar à alemã, pouco antes da Segunda
Guerra. Essa doutrina fortaleceu o Poder Executivo em detrimento do congresso; fato justifica-
do pela ameaça nuclear. Acrescente-se a isso a difusão de uma ameaça comunista, que favoreceu
o governo norte-americano na busca pela supremacia internacional, supremacia que os Estados
Unidos haviam começado a obter na Segunda Guerra. Essa doutrina se transmitiu aos militares por
meio de uma escola nacional de guerra, implicada em uma política que se espalhou pela Europa,
Ásia e América Latina.
Em nosso continente, essa concepção e estratégia se ocuparam da preparação dos oficiais
para combaterem o comunismo, tarefa que contou com o apoio dos Estados Unidos, que disse-
minou suas escolas por aqui. Essas escolas ofereciam armas, treinamento e sua própria noção de
segurança nacional e segurança coletiva. Essa doutrina encontrou na América Latina um ambiente
fértil em razão de conceitos pré-existentes das elites, notadamente o anticomunismo (MENDES,
2013, p. 12).
Especificamente no Brasil, vivíamos o governo de Jânio Quadros, no qual o vice-presidente
era João Goulart (1918-1976), popularmente conhecido como Jango. Jânio adotou algumas pos-
turas que foram entendidas pelos Estados Unidos e por setores conservadores das forças arma-
das brasileiras como uma afronta. Um exemplo foi a concessão da honraria Grã-cruz da Ordem
Nacional do Cruzeiro do Sul ao revolucionário Ernesto Che Guevara (1928-1967). A postura de
Quadros era contraditória, pois ele combatia ao mesmo tempo os movimentos de esquerda no país,
muitos ligados a seu vice-presidente, Jango. Jânio também adotou medidas impopulares e enfren-
tava forte oposição sustentada por meios de comunicação, além da acusação de tentar aproximar
o Brasil do bloco comunista.
Diante de um clima tenso, Jânio Quadros renunciou em 1961, no exato momento em que
Jango estava na China4. A renúncia do presidente aumentou ainda mais a instabilidade nacional.
Setores militares tentavam impedir a posse de Jango, com acusações de que o vice-presidente se
relacionava com países comunistas, tanto que o novo presidente precisou aguardar no Uruguai a
crise política e militar se abrandar antes de reingressar no Brasil. Dessa tensão, surgiu a campanha da
legalidade, liderada por Leonel Brizola, em defesa da posse legítima de Jango, que estava obstruída.
As negociações e articulações legais para que a posse pudesse ser concretizada impuseram uma
série de obstáculos para o exercício da presidência por Jango, como a transferência do poder a
um primeiro ministro que, durante mais de um ano, foi chefe de Estado, mas não de governo
(GESTEIRA, 2014, p. 6-7).

4 Há interpretações de que essa medida seria uma estratégia de Jânio Quadros, que teria induzido ou favorecido a
aproximação de Jango de setores comunistas antes de renunciar. Sua renúncia seria uma tática para que os setores
conservadores – temerosos diante da posse de um vice-presidente comunista – lhe pedissem para não sair da presi-
dência. Se a estratégia funcionasse, Jânio conseguiria reestabelecer ou conquistar o apoio necessário para governar
tranquilamente.
Crises das instituições políticas modernas 135

Em 1963 realizou-se um plebiscito para consultar o povo a respeito da manutenção do mo-


delo parlamentarista. A população rejeitou o parlamentarismo, o que permitiu finalmente que
Jango assumisse o governo. Entretanto, as medidas que o presidente adotou não agradaram nem as
elites econômicas, nem as forças militares nacionais, como a defesa do direito de voto dos analfa-
betos e dos militares de baixa patente, proposta vista pelos dois segmentos como afronta.
Em março de 1964, Jango realizou o comício da central e anunciou as reformas que pre-
tendia realizar, inclusive a agrária. Tais medidas deixaram as elites e os militares ainda mais insa-
tisfeitos, o que só piorou com uma revolta ocorrida em 28 de março do mesmo ano, por parte de
oficiais da Marinha contra seus superiores. Jango se recusou e punir esses oficiais e a resposta veio
no dia 31 de março de 1964, com a primeira medida em direção à concretização do golpe militar:
sob o comando do general Olímpio Mourão Filho (1900-1972), tropas iniciaram uma marcha de
Juiz de Fora, Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro, o que impôs a saída de Jango, que pediu
abrigo ao Uruguai. Há estudos que indicam como motivações para a saída de Jango o temor de que
ocorresse uma intensa guerra civil, além do conhecimento do presidente a respeito da Operação
Brother Sam, uma investida patrocinada pelos Estados Unidos para desestabilizar o seu governo e
tornar iminente o conflito militar, o qual só poderia ser evitado com sua desistência (GESTEIRA,
2014, p. 7-8).
Os 50 anos do golpe reavivaram alguns debates, como a data precisa em que teria ocorrido,
se foi dia 31 de março ou 1º de abril. Isso se dá pelo fato de a marcha militar ocorrer no dia 31,
todavia, foi em 1º de abril que efetivamente Jango saiu do poder. Outra polêmica diz respeito à
denominação do fato: afinal, foi golpe ou foi revolução? Vejamos a diferença.

Diferença entre revolução e golpe


Na perspectiva das ciências humanas – incluídas aqui a ciência política,
as ciências sociais – a revolução é um movimento que parte das bases
e almeja uma transformação profunda, possivelmente completa da or-
dem na qual se deflagrou. Na perspectiva do Direito, especificamente do
Direito positivo representado na teoria de Kelsen, revolução significa o
início de uma nova ordem jurídica, independentemente de seu conteúdo
material ou valorativo.
Podemos analisar o regime militar sob as duas perspectivas: em síntese,
foi um movimento que tomou o poder sem base na lei para impedir que
o presidente da época levasse adiante uma série de medidas que transfor-
mariam a ordem social, política e econômica do Brasil. O regime militar
foi motivado pela manutenção da ordem, do status quo, e não por sua
transformação. Além disso, em que pesem as controvérsias e polêmicas,
não foi um movimento apoiado pelas massas populares, mas sim por
elites econômicas e interesses financeiros internacionais.
136 Ciência Política e Teoria do Estado

Na perspectiva política e sociológica, o regime militar foi um golpe.


Do ponto de vista do positivismo, o regime militar foi uma revolução,
pois não era fundamentado no direito vigente, o que inaugurou uma
nova ordem jurídica.

Os 20 anos que seguiram à tomada militar do poder político dividem o imaginário social
no nosso país. Há quem acredite que os fins justificam os meios, para os quais todas as medidas
adotadas são justificáveis. Há quem, mesmo temendo a “ameaça comunista”, não concorda com a
brutalidade do regime, assim como há os que acreditavam em um outro projeto de mundo, alter-
nativo ao modelo capitalista, para os quais nem os fins e nem os meios podem ser admitidos. Nos
últimos anos, vimos essa polêmica reascender com parte da sociedade que reivindica uma nova
intervenção militar.
Em qualquer caso, não é possível negar que o período militar foi um período de negação do
direito, de negação da democracia; e negação da liberdade5. No ano de 2011, criou-se legalmente
no âmbito institucional do Estado a Comissão Nacional da Verdade (CNV), concretizada no ano
seguinte com a missão de investigar as violações dos direitos humanos perpetuadas durante o re-
gime. Ela também teve a premissa de oferecer resposta àqueles que sofreram os efeitos do regime e
perderam familiares, sofreram tortura e foram exilados.
Todos nós – não somente aqueles que sofreram com o regime – temos direito à memória.
Nesse sentido, a Comissão Nacional da Verdade abriu a “caixa-preta” da ditadura militar e publicou
laudos referentes ao desaparecimento e morte de diversas pessoas e figuras públicas; fotografias e
vídeos que identificaram as instalações militares do regime; relatórios, correspondências interna-
cionais e outros documentos.
A CNV encerrou suas atividades 10 de dezembro de 2014, com a entrega de seu relatório
final. Ações como essas são necessárias para conhecermos a história de nosso país, mensurarmos
reivindicações e assumirmos posicionamentos com conhecimento de causa e consciência.

10.2 Grupos sociais de pressão política e o Estado


Em capítulos anteriores, vimos algumas formas como a democracia é subjugada pelas ex-
pressões institucionais, isto é, no âmbito explícito do Estado. Em suma, as ideologias podem assu-
mir o controle do poder político e alterar a dinâmica de funcionamento e participação no exercício
desse poder. Chegamos com isso à influência dos grupos de pressão.
A pressão sobre o Estado pode se dar de modo democraticamente legítimo, por meio da
livre expressão e tomada de posições políticas pela sociedade de maneira coletiva, na forma de

5 No canal do Ministério da Justiça no YouTube, temos acesso ao documentário Os advogados contra a ditadura: por
uma questão de justiça (2010), que relata a atuação dos advogados nesse período. Dirigido por Silvio Tendler, o filme con-
ta com depoimentos que evidenciam a inexistência do direito, exceto aquele declarado e modificado de acordo com as
vontades e conveniências do poder militar. Para assistir ao vídeo, acesse: <https://www.youtube.com/watch?v=fhRJxeF-
fbYM>. Acesso em: 6 fev. 2018.
Crises das instituições políticas modernas 137

movimentos sociais, ou individual. Entretanto, a pressão sobre o Estado também pode ocorrer de
outras maneiras, mas nem todas são política e juridicamente irrepreensíveis. No segundo capítulo,
discutimos temas relacionados à sociedade e percebemos que as formações sociais ao longo da
história tiveram elites e grupos dirigentes em distintos campos – ciência, religião, artes etc. – e
discutimos principalmente sobre o campo político. Essas ideias discutidas anteriormente vão nos
ajudar agora a compreender a dinâmica dos grupos de pressão e o modo que esses submetem os
regimes democráticos a crises.
Andrada (1998, p. 43-44) refere-se às elites políticas para designar o grupo de pessoas que
direta ou indiretamente influenciam os governos e suas decisões. O autor explica que esse termo
tem um sentido semelhante ao de classe dirigente empregado por Gaetano Mosca. No entanto,
Andrada alerta que esse fenômeno das elites sociais não é exclusivamente político, já que tais elites
podem ser científicas, artísticas, empresariais, entre outras. Elas também podem ser mais ou me-
nos fechadas, as muito fechadas tendem a provocar revoluções sociais. Um exemplo de elite muito
fechada é a nobreza que se reunia em torno da Coroa francesa no século XVIII. A revolução que
ocorreu na França nesse período foi uma das maiores da história, possivelmente a mais influente –,
nós a chamamos de Revolução Iluminista, ou Revolução Francesa. Andrada ainda cita as elites
britânicas, consideradas mais abertas, de modo que na Inglaterra se consolidou uma cultura muito
favorável ao constitucionalismo.
Ainda podemos falar a respeito das elites revolucionárias (ou elites marginalizadas), com-
postas por pessoas com o mesmo nível cultural dos governantes, mas impedidas ou afastadas da
participação na tomada de decisões políticas. Em razão desse afastamento, essas elites se conver-
tem em elementos de contestação no campo da política. Um exemplo são as elites alemãs que –
não integradas na República de Weimar (Alemanha) – favoreceram a chegada de Hitler ao poder
(ANDRADA, 1998, p. 44).
Acrescentamos a esse exemplo o fato que nem todas as elites revolucionárias conduzirão as
sociedades à mesma tragédia que aconteceu na Alemanha sob o mando de Hitler. Os grupos sociais
de contestação exercem uma função importante na sociedade, pois, quando bem-intencionados
e responsáveis, promovem o debate político em condições saudáveis de reflexão e diálogo. Isso é
fundamental para o amadurecimento das instituições políticas de determinada sociedade.
Adiante, chegamos ao ponto específico dos grupos de pressão, cujo papel também é indicado
pela ideia de lobby. Os lobistas são aqueles que transitam entre as elites políticas ou governos e arti-
culam determinadas soluções para problemas econômicos e sociais. Esses são considerados grupos
de pressão por suas habilidades de convencimento para conseguir as decisões favoráveis às classes
que representam. Como já vimos, é comum interesses de determinadas classes se confrontarem
com interesses de outras (ANDRADA, 1998, p. 44-45).
A atuação dos grupos de pressão tanto pode ser de cooperação quanto de oposição em rela-
ção ao poder estatal. Dentre os meios empregados para exercer a influência, notamos a utilização
do poder financeiro, que pode ocorrer dentro da lei, ou ilegalmente; as greves; a mobilização da
opinião pública; recusa no pagamento de impostos; mobilizações sociais; entre outros (MOREIRA,
1997, p. 170).
138 Ciência Política e Teoria do Estado

Dentre os aspectos aqui expostos, percebemos que a prática ilegal do lobby culmina nas
dinâmicas de corrupção que contaminam o exercício do poder político. Ele é capaz de mitigar a
essência democrática de nossas instituições – que, uma vez corrompidas, não poderão atender aos
interesses do povo –, pois o uso ilegal do poder financeiro deixa as instituições políticas curvadas
diante do poder econômico das elites que dominam o espaço público para transformá-lo em gabi-
nete de seus próprios interesses.

10.3 Crises no Brasil e no mundo: corrupção


e outras ameaças à democracia
Segundo Dussel (2007), a corrupção do poder começa quando aqueles que representam o
povo se “esquecem” que ele é o início e o fim de todo poder político. Eles também se esquecem que
o poder pertence ao povo, e, em virtude de ser impossível exercê-lo diretamente, precisa confiar
seu exercício aos representantes. Quando ocorre esse esquecimento, inicia-se a corrupção. A cor-
rupção é originária do poder; com base nele, o corrupto trata a coisa pública como se fosse sua, o
que promove a confusão do público e do privado. Esses atos são escondidos do alcance da visão
pública. Assim, o que é feito pelo político fora do alcance público é corrupção, pois, em geral, é um
ato que não pode ser justificado à luz pública.
Na mesma linha de Dussel, Moreira (1991) destaca que “na sua forma autêntica, o político
quer o poder porque julga ter uma solução para o interesse público, e na sua forma degenerada
o político quer o poder porque julga poder satisfazer assim interesses setoriais e até privados”
(MOREIRA, 1991, p. 172). Isso ocorre no Brasil desde a implantação da burocracia colonial,
em que os direitos públicos eram deturpados em favores públicos e o Estado era um meio de
acumular poder, riqueza e influência. Esses males derivados da corrupção permearam e macu-
laram a história do Brasil e chegaram ao um ponto – o momento atual – que até o seu combate
tem causado novas ordens de crises. Temos acompanhado o crescimento do debate acerca da
judicialização da política e da politização do Direito, que se refere à mútua interferência entre os
poderes e abalam o pressuposto do equilíbrio (conforme a idealização de Montesquieu), base da
moderna democracia representativa.
A intensa crise que enfrentamos precisa motivar uma reflexão mais profunda a respeito
do modelo de democracia que temos desenvolvido. Há anos, Boron (2009, p. 19) tem provocado
esse debate. Com uma perspectiva interessante sobre a crise nas instituições democráticas, o autor
afirma que a democracia consiste no governo da maioria em favor dos pobres, que, devido a razões
estruturais, sempre compõem a maior parcela da sociedade. Essa concentração econômica, que já
era problemática na Grécia Antiga, se manifesta de modo muito mais acentuado nos tempos atuais.
O atual sistema de produção capitalista favorece a concentração de riquezas nas mãos de poucos.
Com base nessa percepção, o autor continua sua análise e salienta que a democracia se con-
figura no âmbito da essência e no âmbito da aparência. A essência da democracia é o governo da
maioria em favor dos mais pobres. Já a aparência da democracia são as eleições diretas, o sufrágio
universal, o império do direito. A aparência pode, ou não, corresponder à essência. Em geral, na
América Latina, não corresponde. Para Boron, as sociedades capitalistas elevam a desumanização
Crises das instituições políticas modernas 139

a níveis inimagináveis e convertem tudo em mercadoria, inclusive, o que se chama hoje de demo-
cracia (BORON, 2009, p. 20-23).
O teórico também discute sobre os regimes apressadamente denominados democracias la-
tino-americanas. Para ele, tais regimes são na verdade oligarquias ou plutocracias, em outras pala-
vras, governos de minorias em favor de seus próprios interesses. Boron sugere a adoção dos termos
regimes pós-ditatoriais ou eleitorais, mas de modo algum, democracias. Nas práticas políticas lati-
no-americanas, os oligarcas pronunciam-se em vibrantes discursos de campanha, fazem diversas
promessas, desviam a atenção do povo para aspectos superficiais da vida social e, quando eleitos,
promovem o aumento da concentração de riqueza, da indigência e da miséria. Tudo isso ocorre
também com as constituições cujas garantias são diariamente violadas impunemente. Para Boron,
as constituições estão repletas de contradições, uma vez que a liberdade plena que asseguram só
está disponível para aqueles que têm os recursos financeiros necessários para usufruí-la (BORON,
2009, p. 27-29).
Com essas reflexões, chegamos ao ponto crucial da crítica do autor. Ele conclui que o caráter
democrático é conferido com base tão somente no processo eleitoral e no multipartidarismo. Esses
critérios podem ser meramente aparentes e ofuscar a essência da democracia. Como exemplo, ele
compara a exclusão de Cuba do rol de países democráticos, apesar de ter uma democracia radical
de base; e o fato de os Estados Unidos serem considerados uma democracia exemplar, mesmo
com profundas contradições observáveis, como Guantánamo6; o descumprimento das regras do
Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU); eleições duvidosas7; tratamen-
to dado aos imigrantes etc.
Boron também relembra a proposição de John Stuart Mill (1806-1873), considerado um dos
baluartes do liberalismo. O filósofo dizia que uma das características da democracia é a semelhan-
ça entre o modo de vida de governantes e governados8. Em outras palavras, a igualdade socioe-
conômica é um critério de configuração da democracia. Com base nesse critério, Cuba é um dos
países mais democráticos do mundo, visto que governantes e o povo vivem em condições idênticas
(BORON, 2009, p. 32-33).
Ademais, temos alguns caminhos para refletir a respeito da crise política desde outras pers-
pectivas. Os pesos e medidas que empregamos para avaliar nossas instituições são iguais para to-
das? Devemos, principalmente, pensar em relação aos limites de nossa própria democracia. Seria
democracia somente porque votamos? Será que nós fazemos uso de todos os espaços de participa-
ção disponíveis? Esses espaços são suficientes? Não poderíamos exigir mais e melhores espaços?

6 Prisão estadunidense que causa horror na comunidade internacional em função das terríveis condições a que seus
presos ficam submetidos.
7 Boron se refere à contradição de o sistema eleitoral norte-americano permitir que o presidente eleito não seja o
mais votado, isto é, democraticamente preferido.
8 Temos como exemplo a postura de alguns estadistas latino-americanos, como Evo Morales (1959-), presidente da
Bolívia; e José Mujica (1935-), ex-presidente do Uruguai, ambos vivem na mesma casa de antes de serem eleitos presi-
dentes. Mujica chegou a ser cogitado como “presidente mais pobre do mundo”, título que rejeitou ao dizer que não mede
suas riquezas pelos padrões capitalistas de propriedade, e, por isso, não se considera pobre.
140 Ciência Política e Teoria do Estado

Dussel entende que sim. Ele afirma que no momento em que o povo assume consciência da
sua condição, das negações e opressões que sofre e se rebela contra elas, nada pode contê-lo. Afinal
o poder não se toma, ele sempre pertence ao povo (DUSSEL, 2007, p. 157-158).

Considerações finais
Concluímos esta obra com um capítulo denso, mas que traz uma mensagem de otimismo.
Nós vimos que diversas crises se instauraram ao longo da trajetória das sociedades – em geral pro-
vocadas pelo desgaste nas visões de mundo e estruturas dominante de cada época – foram na maio-
ria das vezes combatidas dentro da mesma lógica, com o objetivo de manter visões dominantes/
dominadoras ou inaugurar novas formas de dominação. Isso ocorreu na transição do absolutismo
ao Iluminismo, em que foram abandonados privilégios hereditários para inaugurar o império dos
domínios econômicos.
Trazemos, neste capítulo, a reflexão de que o povo não só pode, como deve ser o maior
agente de mudança da realidade. As transformações por meio das bases – do povo – são possíveis,
pois foi por meio dele que foram redefinidos os Estados latino-americanos. As crises democráticas
podem ser combatidas com essa potência transformadora, desde que alcancemos a real consciên-
cia de qual a nossa posição e de qual é o nosso papel.

Ampliando seus conhecimentos


Continuamos nossas reflexões com La Boétie em sua obra Discurso sobre a servidão voluntá-
ria (1549). No excerto a seguir, o filósofo discute sobre a tirania e os principais tipos de governantes
tiranos, reflexão pertinente até os dias de hoje.

Discurso sobre a servidão voluntária: sobre a tirania


(LA BOÉTIE, 1986, p. 34)

[...]
Há três espécies de tiranos. Refiro-me aos maus príncipes. Chegam uns ao poder por eleição
do povo, outros por força das armas, outros sucedendo aos da sua raça.
Os que chegam ao poder pelo direito da guerra portam-se como quem pisa terra conquistada.
Os que nascem reis, as mais das vezes, não são melhores; nascidos e criados no sangue da tira-
nia, tratam os povos em quem mandam como se fossem seus servos hereditários; e, consoante
a compleição a que são mais atreitos, avaros ou pródigos, assim fazem do reino o que fazem
com outra herança qualquer.
Aquele a quem o povo deu o Estado deveria ser mais suportável; e sê-lo-ia a meu ver, se, desde
o momento em que se vê colocado em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza,
não decidisse ocupá-los para todo o sempre. O que geralmente acontece é tudo fazerem para
transmitirem aos filhos o poder que o povo lhes concedeu. E, tão depressa tomam essa deci-
são, por estranho que pareça, ultrapassam em vício e até em crueldade os outros tiranos; para
conservarem a nova tirania, não acham melhor meio do que aumentar a servidão e afastar
Crises das instituições políticas modernas 141

tanto dos súditos a ideia de liberdade que eles, tendo embora a memória fresca, começam a
esquecer-se dela.
[...]
Os eleitos procedem como quem doma touros; os conquistadores como quem se assenhoreia
de uma presa a que têm direito; os sucessores como quem lida com escravos naturais.
[...]

Dica de estudo
• Encerramos esta obra não com a indicação de uma leitura, mas sim de um filme. Um
dentre inúmeros que foram produzidos no Brasil e que mostram perspectivas a respeito
do regime militar. Batismo de sangue (2006), dirigido por Helvécio Ratton e baseado em
fatos reais, narra a história de alguns freis da Igreja católica que, motivados por seus ideais
cristãos, divergiram do regime militar e lutaram pela democracia. O filme, baseado na
obra de Frei Betto, leva o mesmo nome da obra do autor.
Batismo de sangue
Direção: Helécio Ratton
Produção: Downtown
Lançamento: 20 de abril de 2007
Duração: 110 minutos

Atividades
1. O regime militar brasileiro decorreu de golpe ou de revolução? Justifique sua resposta.

2. Temos motivos para crer que existam grupos de pressão, com utilização ilegal de recursos
financeiros, tais como descreve Moreira sobre o Estado brasileiro?

3. A crise democrática é um fenômeno exclusivo do Brasil devido à corrupção? Justifique


sua resposta.

Referências
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Espartaco Córdoba, 2009.

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mas considerações sobre a Historiografia. Tempo & Argumento (Revista de História do Tempo Presente),
Florianópolis, v. 5, n. 10, p. 6-38, 2013. Disponível em: <http://www.revistas.udesc.br/index.php/tempo/
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MOREIRA, A. Ciência política. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.

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WOLKMER, A. C. Ideologia, Estado e direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
Gabarito

1 Ciência política e Teoria do Estado


1. Na verdade, essa resposta depende do entendimento de algumas circunstâncias. Na Antiguida-
de, era reconhecido à política o sentido de atividade do bem comum ou a ciência do justo e do
injusto, o que, em última análise, leva-nos novamente ao bem comum. Nos últimos séculos, a
humanidade passou a se preocupar mais com o poder e sua manutenção. Desde Maquiavel, a
política assumiu também este sentido, de instrumento para manutenção do poder. Então, nos
dias de hoje, podemos dizer que a política tem esses dois sentidos, mas ainda há outros que estão
sendo desenvolvidos por novas ciências. O que há de comum entre a perspectiva de política nas
sociedades antigas e sua concepção nas sociedades contemporâneas é o reconhecimento de sua
importância na vida em sociedade.

2. Sim. E, para compreender essas diferenças, é preciso pensar na política no marco do desenvolvi-
mento científico moderno, em que verificamos influências como a de Comte e, no campo especí-
fico da política, de Maquiavel. O sentido que se empregava para designar ciência na Antiguidade
era mais abrangente e menos severo. Na modernidade, só é considerada ciência a atividade de
produção do conhecimento desenvolvida dentro dos rigorosos limites dos métodos aceitos pela
comunidade científica e os objetos também delimitados por essa comunidade. Sob essa orienta-
ção, a ciência política e a Teoria geral do Estado se consolidaram como ramos do conhecimento
científico, cada um com objetos claros de estudo e métodos próprios que os diferenciam. Desse
modo, podemos dizer que os objetos de estudo da ciência política abrangem as relações de poder
estabelecidas entre as pessoas, o poder do Estado, as organizações e Estados no âmbito interna-
cional, entre outros. Sua metodologia permite analisar aspectos gerais – abstrata e universalmen-
te seus conteúdos –, mas também casos e fatos específicos.

A Teoria geral do Estado, por outro lado, estuda os aspectos relacionados à formação dos Esta-
dos, suas relações e formas de organização e exercício do seu poder. Sua metodologia, entretanto,
diferentemente daquela adotada na ciência política, só lhe permite buscar as regras legais e as
abstrações possíveis no seu campo de pesquisa. A importância de ambas as disciplinas é definida
em função das ­necessidades específicas de cada estudo, em especial das respostas que se procu-
ram, pois ambas – teorias gerais e análises específicas – têm papéis fundamentais na produção do
conhecimento e na compreensão da realidade.

3. Pela Teoria geral do Estado podem ser analisados os pressupostos elementos das constituições, pois
são os documentos normativos que organizam o poder do Estado. Por meio das constituições, podem
ser analisados e descritos os principais modelos de Estado, suas estruturas e formas de governo entre
outros aspectos. A ciência política, por sua vez, pode se ocupar de todos esses objetos e ainda anali-
sar outros, como um governo em específico, um determinado golpe de Estado ou uma ditadura. Ela
também pode analisar uma política pública específica, como o salário mínimo, os benefícios previ-
denciários que um determinado governo adota, políticas de cotas, entre outros. Além disso, a ciência
política também estuda a opinião pública e reivindicações de movimentos sociais, como sindicatos,
organizações não governamentais, movimentos de trabalhadores etc.
144 Ciência Política e Teoria do Estado

4. A ciência pode ser percebida como algo totalmente neutro, talvez uma bula de remédio seja um bom
exemplo disso. Nesse sentido, pode parecer difícil identificar uma relação entre ciência e política.
Porém, se pensarmos de modo mais crítico, podemos nos perguntar: por que as bulas de remédio
são escritas com uma linguagem tão complicada a ponto de muitos pacientes não conseguirem com-
preendê-la? Por que não pode ser adotada uma linguagem mais democrática?

Essa questão chegou até as autoridades públicas brasileiras, de modo que a Agência Nacional de Vigi-
lância Sanitária (Anvisa) aprovou a Resolução n. 47, de 8 de setembro de 2009 , que determina que os
medicamentos devem ter bula elaborada especificamente para o paciente, com linguagem e sistema
de apresentação das informações simples, de modo que lhes permitam compreender o conteúdo.
Assim, percebemos que a mesma informação científica pode ser apresentada de maneiras muito di-
ferentes, o que permite às pessoas compreendê-las ou serem excluídas do acesso a essa informação.
Assim, tanto a escolha entre distintas alternativas quanto seus efeitos têm uma importante dimensão
política contida em si.

2 Sociedade e política
1. O sentido de sociedade mais difundido no âmbito da ciência política não abrange agrupamentos de
outros seres, como abelhas e formigas. Esses grupos, mesmo que possam contar com um nível no-
tável de organização, não apresentam outros elementos característicos de uma sociedade, tal como a
associação humana faz. Especialmente, podemos citar o elemento da normatividade, presente nas leis
jurídicas, na ética e na moral. Além da normatividade, podemos citar o valor social, ou seja, objetivos
e metas partilhados pelo grupo, as manifestações ordenadas, que se relacionam à ordem nas manifes-
tações sociais, adoção de normas e coerência entre as manifestações sociais e finalidades desejadas.
E, por fim, o poder social, que se desenvolve no âmbito de uma sociedade e envolve a interação de
duas ou mais vontades humanas.

2. Os movimentos sociais podem ser movimentos populares ou não. Quando representam lutas do
povo, ou seja, de setores dominados ou explorados que desejam transformar totalmente a reali-
dade social para eliminar essas formas de dominação, serão considerados movimentos populares.
Os movimentos sociais podem ser assim descritos, mas são mais amplos, pois podem representar
interesses de setores sociais que não desejam transformar a realidade, mas sim mantê-la. Além disso,
os movimentos sociais, ainda que representem interesses de setores oprimidos, se diferenciam por
não reivindicar uma transformação total, mas sim pontual no que diz respeito à opressão que sofrem.

3. O poder político pode ser descrito em uma perspectiva conservadora como o meio de regulação das
relações sociais, fato que implica no uso legítimo de uma força coativa, que age sobre os indivíduos
que integram a sociedade, forçando-os a cumprir as normas vigentes. Ele pode, por outro lado, ser
descrito sob perspectivas crítico-problematizadoras, como resultado de estruturas de poder que se
definem pela prevalência de uma classe sobre a outra e produzem relações de dominação que podem
culminar em crises em que os setores oprimidos possam deflagrar processos revolucionários. Esses
apenas são dois exemplos, cada perspectiva comporta infinitas variações.
Gabarito 145

3 O Estado no pensamento político ocidental


1. Essa resposta depende da forma como analisamos o Estado. Por exemplo, se sistematizarmos os di-
versos conceitos de Estado construídos desde as ciências sociais, pela História ou pela Antropologia,
ultrapassamos as fronteiras da Teoria geral do Estado, pois empregam-se métodos interdisciplinares
para definir essa instituição. Da mesma forma, se tentarmos entendê-lo com base nas diversas rela-
ções de poder que se desenvolvem dentro da sociedade, seguiremos para o campo da ciência política.
Por outro lado, se procurarmos uma descrição mais abstrata e geral a respeito das características
específicas do poder estatal, estaremos mais próximos da metodologia e objeto de estudo da Teoria
geral do Estado.

2. Existe. De acordo com o conceito atribuído à sociedade, diferentes conceitos serão atribuídos ao Es-
tado. Por exemplo, se entendermos a sociedade como uma tendência natural do ser humano, enten-
deremos também o Estado como resultado natural da existência humana. Por outro lado, se enten-
dermos que a sociedade divide-se em grupos que coexistem e se relacionam por meio de disputas de
poder, compreenderemos o Estado como um instrumento de dominação da classe dominante sobre a
dominada (como explica Marx) ou como racionalização da violência para empregar a forma de modo
legítimo (como explica Weber).

3. Uma diferença diz respeito ao instrumento jurídico que firma a existência de cada tipo de Estado:
em geral há uma constituição para federações e um tratado para as confederações. Outra diferença
é a questão da soberania e autonomia: na federação, todos os entes federativos se curvam ante a
soberania do Estado Federal porque somente este tem soberania; enquanto na confederação, cada
Estado-membro mantém suas prerrogativas e poderes políticos e jurídicos, isto é, cada um mantém
sua soberania. A terceira diferença é que na federação somente o Estado Federal tem personalidade
jurídica internacional, já a confederação também tem tal personalidade, assim como os seus Esta-
dos-membros.

4 Formação do Estado moderno


1. Algumas características comuns entre as três revoluções – Inglesa (1688), Americana (1776) e Fran-
cesa (1789) – se dão pelo fato de as três terem sido protagonizadas pela classe burguesa (classes pro-
prietárias) de suas sociedades. Além disso, essas três revoluções mostraram a resistência a um tipo
absoluto, ilimitado de poder e buscaram o desenvolvimento das liberdades individuais, especialmente
de cunho econômico, das classes revolucionárias, que aspiravam à segurança da lei para acumular e
negociar suas propriedades sem pesados tributos e outros meios de opressão.

2. O Estado brasileiro é um Estado soberano (a primeira teorização a respeito da soberania foi de-
senvolvida no século XVI pelo francês Jean Bodin) e também é um Estado democrático, em que
seus representantes são eleitos pelo povo (o primeiro autor a defender esse tipo de legitimação
democrática do poder foi o inglês John Locke). Finalmente, o Estado brasileiro adota uma divisão
dos poderes em três pilares: Executivo, Legislativo e Judiciário (conforme defendeu Montesquieu
na França do século XVII).
146 Ciência Política e Teoria do Estado

3. É uma relação de contradição, pois Bonavides (2010) defende que o Estado – embora possa significar
a dominação dos mais fortes sobre os mais fracos – pode, eventual ou hipoteticamente, ser um Estado
“neutro” apto a julgar conflitos entre classes ou interesses opostos. Já em Karl Marx tal possibilidade
não existe, uma vez que o Estado é uma consequência da luta de classes. O elemento formal “poder
político”, para a perspectiva marxista, significa um poder organizado para garantir a opressão de uma
classe (de proprietários) sobre a outra (de trabalhadores). Podemos nos recordar de sua teoria relendo
o item 3.1 “Definições e classificações do Estado”.

5 Relações do Estado e estruturas de poder


1. O poder de polícia é um poder de coação o qual nenhuma pessoa pode recusar obediência, visto
que a coação garante ao Estado meios de impor sua força em casos de desobediência. Esse poder é
suportado pelos cidadãos que vivem em um determinado Estado. A soberania e a autonomia dizem
respeito ao Estado e suas relações com outros Estados soberanos ou seus próprios entes federativos.
Em síntese, podemos dizer que a soberania é uma projeção externa do poder estatal, pela qual é pos-
sível, por exemplo, assumir compromissos com outros países. Já a autonomia é uma projeção interna
que permite o exercício de determinados poderes de maneira descentralizada.

2. Os Estados-membros não podem firmar tratados porque esse ato é reservado somente aos detentores
de soberania, no caso do Brasil, a União, isto é, o Estado Federal. Em suma, a autonomia não é o bas-
tante para autorizar um ente federativo a assumir compromissos de tamanha envergadura.

3. Essa é uma questão que pode ser respondida de diversas maneiras. Juridicamente, a soberania coloca
todos os Estados em condição de igualdade, independentemente de seu poderio econômico ou polí-
tico. Entretanto, para a ciência política, pode-se dizer que outros fatores, além do jurídico, devem ser
considerados, como a potência bélica, a vulnerabilidade econômica, ideologias etc., que impedem os
países mais pobres de se relacionarem em condições realmente igualitárias com países economica-
mente mais ricos.

6 Formas de governo e sistemas de governo


1. O amadurecimento político que as sociedades contemporâneas alcançaram lhes impõe que o Estado
respeite os limites da lei (legalidade) e os valores sociais considerados indispensáveis (legitimidade).
As constituições são os documentos que explicitam e resguardam esses limites e fazem convergir o
direito e a política.

2. Os três sistemas estudados – parlamentarismo, presidencialismo e convencional – são desdobramen-


tos do modelo representativo na política, ou seja, sistemas nos quais os titulares do poder não o exer-
cem diretamente, mas sim, por meio de instituições de representação. Eles diferem-se com relação
às origens históricas, mais antigas no parlamentarismo e próprias da tradição inglesa; seguidas pelo
presidencialismo, próprio da tradição norte-americana dos últimos séculos; e pelo sistema conven-
cional, atribuído ao período da Revolução Francesa. Outra diferença é o desequilíbrio entre os po-
deres, como idealizou Montesquieu e verificado no sistema convencional, uma vez que nos sistemas
parlamentarista e presidencialista existe uma preocupação maior em mantê-lo.
Gabarito 147

3. No Brasil o instituto do impeachment se inspira na modelo desenvolvido nos Estados Unidos da


América, com caráter precipuamente político, visto que na experiência inglesa tinha também uma
dimensão processual criminal. Isso fica claro no modo como ele foi regulamentado nas constituições
e também na Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950. Nas constituições, se admite esse instituto somente
em casos de crimes de responsabilidade e não nos demais delitos penais. Na legislação, a denúncia
só pode ser recebida se o ocupante do cargo público não estiver definitivamente afastado dele, já que
a sanção possível nesse processo se limita a consequências políticas, como perda de mandato e de
direitos políticos.

7 Democracia: experiência e perspectivas teóricas


1. Os modelos discutidos neste capítulo foram a democracia direta ateniense, a democracia representa-
tiva moderna e a democracia comunitária latino-americana.

Há diversos pontos de diferenciação entre as três. A democracia direta pode ser considerada a pio-
neira desse sistema e de seu desenvolvimento surgiu a democracia representativa. Já a democracia
comunitária, apesar de sua existência milenar, foi descoberta somente nos últimos anos pelas ciências
e instituições ocidentais modernas.
Com relação ao funcionamento, a democracia ateniense, apesar de direta, contava com poucas pes-
soas habilitadas a participar da vida política, enquanto a democracia moderna privilegiou mecanis-
mos de representação, com pouco espaço para a participação direta. A democracia comunitária orga-
niza o poder desde o âmbito menor da comunidade, o que permite que o poder político seja exercido
diretamente, e por um número maior de membros da comunidade.

2. O referendo, convocado depois da aprovação da norma para ratificar ou rejeitar a proposição; o ple-
biscito, que deve ser convocado antes da edição da norma para aprová-la ou denegá-la; e a iniciativa
popular, que consiste na possibilidade do próprio povo elaborar projetos de lei e apresentar ao poder
legislativo para deliberação.

3. A democracia representativa surgiu em um contexto de lutas sociais, com o Estado moderno, pois
o sistema medieval estava mergulhado em uma crise. O poder absoluto e hereditário dos reis já não
condizia com a realidade europeia dos fins da Idade Média, tanto que uma nova classe social – a bur-
guesia – aspirava um sistema que pudesse participar e desenvolver suas liberdades. Assim, teóricos
de orientação liberal, inspirados nas experiências do passado, mas cientes de seus limites, idealizaram
um novo tipo de Estado, pautado na soberania popular. Essa conjugação permitiu o surgimento de
uma democracia em que a soberania popular – pela impossibilidade de exercício direto – fosse repre-
sentada nos poderes estatais.

8 Partidos políticos, sistemas eleitorais e mandatos


1. Em geral, o critério numérico não é hábil para diferenciar os sistemas políticos bipartidários daqueles
que admitem diversos partidos. Os sistemas bipartidários não são assim definidos porque existem
apenas dois partidos, mas sim em razão de serem os partidos com mais expressividade, que partici-
pam da disputa eleitoral e se intercalam no exercício do poder político. Na verdade, os sistemas bi-
148 Ciência Política e Teoria do Estado

partidários admitem a existência de outros partidos, todavia, esses têm menor poder de mobilização/
apoio e inexpressivos resultados nas urnas. Em sentido contrário, temos o bipartidarismo brasileiro,
que efetivamente só admitia a existência de dois partidos.

2. A diferença crucial é que os sistemas bipartidários se constituíram espontaneamente, como resultado de


processos históricos em torno de ideais comuns que originaram dois grandes grupos. No Brasil, o biparti-
darismo não foi concebido historicamente, mas sim determinado como estratégia do regime militar para
dar um aspecto de democracia eleitoral a um governo que não tinha nada de democrático.

3. No Brasil, a forma de limitação democrática é basicamente o voto. Nós contamos com o referendo –
se entendermos o veto popular de modo similar a esse instituto – mas com pouquíssimas utilizações.
Não temos a previsão da revogação democrática do mandato, tampouco de algum dos outros insti-
tutos como os norte-americano ou suíço. Existe, por outro lado, a possibilidade de controle judicial,
baseada na legalidade dos atos.

9 Ideologia, pensamento político e fronteiras


teóricas entre os Estados modernos
1. A forma como interpretamos a sociedade é determinada por nossas ideologias. Se nossa interpre-
tação for crítica, como fez Marx ao considerá-la uma luta de classes, nossa ideologia a verá como
instrumento de dominação e terá o anseio da eliminação das classes sociais. Se, por outro lado, nossa
concepção nos levar a crer que a igualdade e a liberdade podem ser alcançadas pela livre concorrência
no mercado – ideologia liberal –, vamos entender o Estado como uma ferramenta de regulação, que
deve atuar o mínimo possível. Assim, nosso anseio será defender uma sociedade que mantenha a sua
divisão em classes.

2. O pensamento político brasileiro é bastante diversificado, tanto que observamos que desde a origem
dos partidos políticos no Brasil as principais ideologias europeias também aqui se proliferaram, como
o liberalismo, o socialismo, o nacionalismo, entre outros. Entretanto, na maior parte da história polí-
tica brasileira, predominaram as ideologias liberais e suas variantes.

3. O Estado neoliberal teve forte influência no Estado brasileiro, mas coexistiu com traços do Estado de
bem-estar social. Por isso, nós percebemos de um lado uma forte onda de privatizações das empresas
estatais, levadas a cabo principalmente na década de 1990, bem como a ampliação da terceirização
de trabalhos e funções públicas. Por outro lado, também vemos uma série de políticas assistenciais,
como o sistema de saúde pública brasileiro, de abrangência universal, ou a Previdência Social e as leis
trabalhistas. Atualmente, esses direitos sociais estão novamente recuando diante de um novo avanço
da ideologia neoliberal no Estado brasileiro.

10 Crises das instituições políticas modernas


1. Essa questão pode ser respondida de diferentes maneiras, conforme a perspectiva abordada. O posi-
tivismo jurídico considera revolução, porque instituiu um poder não baseado na legalidade vigente,
mas sim, na ordem jurídica que o próprio poder inaugurou para fundamentar a si mesmo. Do ponto
de vista da sociologia e, principalmente da ciência política, ele é compreendido como golpe, pois seu
Gabarito 149

objetivo não era transformar, mas sim manter as estruturas e relações sociais vigentes. Além de não
ter emergido das massas populares, mas sim, ter partido das elites socioeconômicas e militares nacio-
nais e estrangeiras.

2. Nos últimos anos, presenciamos várias confissões, delações e processos que envolveram problemas de
corrupção no país. Essas situações ilustram na prática o que os autores Moreira e Andrada descrevem
geral ou abstratamente, ou seja, no âmbito de uma teoria. Nossas instituições foram corrompidas
por setores com poder econômico que trocaram recursos financeiros por influência e benefícios in-
devidos dentro do âmbito público (o Estado). Então, sim, temos motivos para crer que os grupos de
pressão, agindo ilegalmente, agravam a crise democrática no nosso país.

3. A crise não pode ser atribuída exclusivamente à corrupção. Há outros fatores que indicam uma
ordem mais profunda de crise, como o desgaste das instituições representativas, o desequilíbrio
entre os poderes e a reivindicação popular por mais direitos, inclusive, de maior participação
política e representatividade nas instituições estatais. Esse tipo de crise ficou muito evidente em
países vizinhos, como Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela, em que o resultado foi a transfor-
mação do Estado e do direito.
CIÊNCIA POLÍTICA E TEORIA DO ESTADO
Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-6408-3

57274 9 788538 764083


Débora Ferrazzo

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