Você está na página 1de 146

Alexandra Lourenço

CIÊNCIAS POLÍTICAS
As relações que se estabelecem entre sociedade civil e
Estado definem o potencial democrático de cada país.
Lorem Ipsum is simply dummy text of the printing and typesetting industry. Lorem
Todavia, não são relações de fácil compreensão, pois
Ipsum has been the industry’s standard dummy text ever since the 1500s, when
são permeadas por questões importantes e complexas,an unknown printer took a galley of type and scrambled it to make a type specimen
como o acesso desigual às condições de participaçãobook.naIt has survived not only five centuries, but also the leap into electronic
sociedade, economia e política. typesetting, remaining essentially unchanged. It was popularised in the 1960s
withser
Este livro apresenta teorias e conceitos que poderão the release of Letraset sheets containing Lorem Ipsum passages, and more
utilizados para melhor interpretar essa realidade. recently
A obra with desktop publishing software like Aldus PageMaker including.
traz informações para a compreensão dos fenômenos
políticos e destina-se tanto a pesquisadores e estudiosos
do tema quanto a entusiastas da política.

Alexandra Lourenço

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6575-2

59142 9 788538 765752


Ciências Políticas

Alexandra Lourenço

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Nataliya Nazarova/Shutterstock.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L933c

Lourenço, Alexandra
Ciências políticas / Alexandra Lourenço. - 1. ed. - Curitiba : IESDE,
2020.
142 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6575-2

1. Ciência política. I. Título.


CDD: 320
19-60793
CDU: 32

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Alexandra Lourenço Doutora em Ciência Política pela Universidade
Nova de Lisboa (UNL), mestra em Política Social
pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em
Metodologia de Pesquisa em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT) e graduada em
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Pesquisadora e vice-coordenadora do Núcleo
de Pesquisas em História da Violência (NUHVI) e
pesquisadora do Grupo de Estudos em História
Cultural e do Laboratório Discursividades, Mulheres
e Resistência na Universidade Estadual do Centro-
-Oeste (Unicentro), onde atua como professora do
Departamento de História desde 2013, com a linha de
pesquisa Sociologia política e relações de gênero.
Vídeos
em
QR code!
Agora é possível acessar os vídeos do livro por
meio de QR codes (códigos de barras) presentes
no início de cada seção de capítulo.

Acesse os vídeos automaticamente, direcionando


a câmera fotográfica de seu smartphone ou tablet
para o QR code.

Em alguns dispositivos é necessário ter instalado


um leitor de QR code, que pode ser adquirido
gratuitamente em lojas de aplicativos.
SUMÁRIO
1 Conceitos básicos da ciência política  9
1.1 Pensamento político e ciência política  9
1.2 O que estuda a ciência política?  16
1.3 A contribuição de Nicolau Maquiavel  23

2 O Estado e o pensamento político  29


2.1 Sociedades políticas   29
2.2 Formação da sociedade e do Estado  34
2.3 Concepções sobre o nascimento do Estado  40

3 O Estado Moderno  49
3.1 Nascimento e extinção do Estado  49
3.2 Finalidade e funções do Estado  55
3.3 Elementos do Estado: território, povo e poder  61

4 Estado e governo  68
4.1 Regimes de governo   68
4.2 Modelos de Estado  76
4.3 Formas e sistemas de governo  83

5 A separação dos poderes como princípio da moderação  89


5.1 A moderação no poder do Estado   89
5.2 A contribuição de Montesquieu   94
5.3 O Estado de Direito   100

6 Sociedade civil e sociedade política  110


6.1 Sistema eleitoral, sistema partidário e eleições   110
6.2 Legalidade e legitimidade   118
6.3 Sociedade civil x sociedade política x bem comum   126

Gabarito   136
APRESENTAÇÃO
Nossas escolhas afetam cotidianamente nossas vidas. Essa afirmação é
ampliada quando pensamos em nossas ações como profissionais, cidadãos
e eleitores. Por isso, é fundamental que tenhamos alguns instrumentos
teóricos que nos permitam fazer a leitura da realidade política e social na
qual estamos inseridos.
Vivemos em sociedades que se organizam com base na constituição de
Estados e governos. Um grupo seleto de indivíduos é escolhido para ocupar
as posições que dão vida à governança e tomar decisões que influenciam
diretamente a vida da população de cada país.
As ações dos Estados são implementadas por meio das políticas públicas
e direcionadas à educação, saúde, moradia, economia, segurança etc. Elas
são o resultado das escolhas dos indivíduos que ocupam posições de decisão
política, motivados pelos grupos de pressão e de interesse.
Dessa forma, as relações que se estabelecem entre sociedade civil e Estado
definirão o potencial democrático de cada país. Todavia, não são relações de
fácil compreensão, pois são permeadas por questões importantes e complexas,
como o acesso desigual às condições de participação na sociedade, economia
e política.
Este livro apresenta teorias e conceitos que poderão ser utilizados para
melhor compreender essa realidade. Para organizar nossa discussão a
respeito do Estado, o conteúdo está dividido em seis capítulos.
No primeiro capítulo, serão apresentados alguns conceitos básicos da
ciência política, que auxiliarão na compreensão do nascimento do Estado e de
suas formas organizacionais. No segundo capítulo, abordaremos os variados
modelos de sociedades políticas e de Estados ao longo da história.
No terceiro capítulo, compreenderemos como nascem e como são extintos
os Estados, suas funções e seus elementos característicos. Já no quarto
capítulo, trataremos dos regimes, das formas e dos sistemas de governo,
buscando refletir sobre sua aplicação nos modelos de Estados.
No quinto capítulo, será abordada a importância da moderação do poder
para o Estado de Direito e para o funcionamento dos regimes democráticos.
No sexto e último capítulo, analisaremos a pertinência dos sistemas partidários
e eleitorais, bem como a participação da sociedade civil na configuração dos
modelos democráticos.
Em suma, esta obra traz informações para a compreensão dos fenômenos
políticos e destina-se tanto a pesquisadores e estudiosos do tema quanto a
entusiastas da política.
Bons estudos e uma ótima leitura!
1
Conceitos básicos da
ciência política
Neste capítulo, apresentaremos alguns conceitos importantes
para se compreender o que é ciência política e como ela pode
nos auxiliar na compreensão da política. Discutiremos questões
como a participação da sociedade no governo, os formatos que
os governos adquirem, a organização civil para participação na
política, a busca da representatividade, a necessidade da existência
de uma ordem política.
Abordaremos também o contexto do advento dessa ciência e o
lugar que ocupa em uma reflexão mais ampla, que chamamos de
pensamento político. Finalizaremos com a apresentação do autor
Nicolau Maquiavel, considerado por muitos o primeiro cientista
político antes mesmo do surgimento da ciência política.
Essa compreensão da política, além de importante para a
cidadania, pode ser muito empolgante para o pesquisador e
estudioso do tema, por isso, convidamos você para os primeiros
passos dessa trajetória de conhecimento sobre a ciência política e
suas contribuições.

1.1 Pensamento político e ciência política


Vídeo A ciência política não foi a primeira forma de reflexão sobre a ação
política e o espaço político. O pensamento político é muito mais amplo
do que essa ciência. De modo resumido, poderíamos afirmar que são
manifestações do pensamento político a ideologia política, a filoso-
fia política e a ciência política. Nesse sentido, estamos considerando
como pensamento político toda forma de reflexão sobre a ação política
e sobre o “mundo da política”.

Conceitos básicos da ciência política 9


Acredita-se que desde os primórdios das primeiras comunidades
sedentárias existiu a curiosidade humana de compreender o mundo a
sua volta. Todavia, a política ganhou um local de destaque somente na
Antiguidade com os escritos de Aristóteles.

O filósofo grego, que viveu entre 384 a.C. e 322 d.C., discutia diver-
sos temas relativos à vida na cidade, dentre eles a ética e a política.
Na obra Política, Aristóteles (2009) defendeu a ideia de que o homem
é naturalmente um ser social e político. Segundo ele, os homens ne-
cessitam viver em sociedades, precisam estabelecer relações uns com
os outros para realizarem objetivos comuns. Nesse convívio, além das
relações sociais e econômicas, os homens constroem relações políticas
e organizam formas de governo.

Em sua análise, Aristóteles afirmava que existiam três formas de


governo: a república, considerada o governo de muitos, a monarquia,
identificada como o governo de somente um e, por fim, a aristocracia,
descrita como o governo dos melhores.

Podemos perceber, portanto, que a reflexão sobre a política se ori-


ginou na Antiguidade. A seguir, buscaremos definir esse conceito.

1.1.1 O que é política?


A política é uma parte intrínseca à organização da coletividade.
Como poderíamos definir o termo política? Segundo Bobbio, Matteucci
e Pasquino (1998, p. 954), “o conceito de Política, entendida como for-
1
ma de atividade ou de práxis humana, está estreitamente ligado ao de
Weber viveu entre 1864 e
1920, foi um sociólogo e jurista poder”. Então, a política é o agir humano, que está intimamente
alemão considerado um dos relacionado à discussão sobre poder e dominação. Isso pode parecer
fundadores da sociologia.
negativo, todavia, como lembra Maquiavel (1990), a política pode não
Dedicou-se a vários estudos
sobre Sociologia da Religião e representar o céu, mas sua ausência é o pior dos infernos.
entre suas principais obras estão 1
A Ética Protestante e o Espírito do Ainda nessa linha de pensamento, cabe lembrar que Weber (1999)
Capitalismo (1905) e Economia nos indica que o fenômeno do poder e da dominação é natural em
e Sociedade (1922), em que ele qualquer organização humana, pois nele estariam assentadas as bases
fala sobre os três tipos ideais ou
legítimos de autoridade. das relações de autoridade legítima e de ordenamento para se atingir
os fins coletivos.

Com esse conceito podemos compreender que antes mesmo de


a ciência política surgir já existiam outras manifestações dela. Como
parte do pensamento político, a filosofia política contribuiu e contribui
com as reflexões da ciência política ainda que não sejam idênticas.

10 Ciências Políticas
1.1.2 Filosofia política
O que é filosofia política ou filosofia da política? Responder a essa
pergunta não é uma tarefa fácil, pois existe uma grande variedade de
opiniões, mas vamos nos basear em um caminho traçado pela história
do pensamento político que observou quais são os aspectos valoriza-
dos na reflexão filosófica sobre o “mundo da política”.

O primeiro aspecto pode ser definido como a busca pelo Estado


perfeito. A filosofia política faz uma reflexão sobre o possível modelo
de Estado e governo perfeito ou próximo da perfeição. São construções
de pensamento abstrato que não precisam de um modelo concreto
observado na vida real. De acordo com Bobbio, Matteucci e Pasquino
(1998, p. 494, grifo do original),
o exemplo mais antigo, mais notório e clamoroso é e continua
sendo a República platônica, modelo ideal de Estado, construí-
do mediante um procedimento lógico-abstrato e dedutivo, com
tranquila indiferença perante a possibilidade de sua realização
efetiva. Na categoria de filósofos políticos de tipo platônico,
podem ser agrupados todos os utopistas, descritores e teóricos
de modelos de sociedade perfeita: modelos em que o historia-
dor moderno reconhece, com sua visão crítica, reflexos, às vezes
dolorosos, de experiências concretas, mas que expressam todos
igualmente a certeza de encontrar uma solução definitiva do pro-
blema político, solução baseada num valor supremo e absoluto
de justiça.

A obra A República, do filósofo grego Platão (1988), escrita na Anti-


guidade, trouxe uma intensa reflexão sobre o modelo ideal de cidade,
de vida coletiva e de comportamento humano. Sua cidade-Estado foi
descrita de forma idealizada: nela, o governo, os artesões e os políticos
eram bons e tinham um comportamento adequado. Essa obra era o re-
trato da gestão pública que realmente funcionava de modo harmônico.

Outro aspecto presente nas reflexões da filosofia política é a busca


por justificar a legitimidade do poder. É importante compreender que
a filosofia política contribuiu e contribui imensamente com a reflexão
realizada na ciência política, todavia, diferente da ciência política, não
necessita basear suas análises em casos concretos nem se deter na
análise de como as coisas efetivamente são.

Conceitos básicos da ciência política 11


Nesse contexto, encontramos autores que “ao invés de teorizarem
um modelo de Estado ideal, se propuseram a analisar o fundamento
das relações políticas, as razões do vínculo de dependência que elas
comportam” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 493).

Podemos observar que os autores estão questionando a nossa real


necessidade de viver sob a organização de uma comunidade política.
Eles alertam, então, para o fato de que os indivíduos precisam viver sob
determinadas regras jurídicas e políticas, por isso existe uma relação
de dependência.

A preocupação central estava em compreender por que os indiví-


duos obedecem, por que é necessário haver um poder político sobre
esses indivíduos, “em suma, a determinar o porquê do Estado, os mo-
tivos que explicam a obediência que os homens prestam ou negam ao
poder” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 493).

Autores como Hobbes, Locke e Rousseau, que ainda abordaremos


neste livro, podem ser considerados representantes dessa linha de
pensamento. Para eles, a questão principal não é o Estado perfeito,
mas a legitimidade do poder. Eles estão em busca de uma explicação
para a eficácia da autoridade (WEFFORT, 2002).

Para os filósofos dessa linha, importa menos se a legitimidade do


poder se encontra em uma história religiosa, como a ideia de direito
divino reconhecido pela Igreja, em um conto de hereditariedade com
base na descendência sanguínea, como no caso das monarquias, ou se
resulta de um acordo racional da necessidade de um governo. o que
efetivamente importa é que em todas essas versões a legitimidade do
poder é reconhecida quando existe uma história que convence a maio-
ria de que quem manda tem o direito de mandar. Ou seja, a obediência
resulta desse reconhecimento e faz com que obedecer seja um ato vo-
luntário (WEBER, 1999).

A diferença entre os primeiros, preocupados em teorizar o Estado


perfeito, e os segundos, que focaram a questão da legitimidade, não
é muito rígida, pois em última instância a discussão da legitimidade
remete ao modelo que seria considerado ideal e que, justamente por
isso, encontrou esse status.

O terceiro aspecto possível está no grupo que realiza uma com-


preensão geral da política. Esse grupo busca conceituar as relações po-
líticas em distinção às outras relações sociais, culturais e econômicas.

12 Ciências Políticas
O quarto aspecto afirma que a filosofia política nos fornece a refle-
xão sobre a metodologia para os estudos sobre o tema. Ou seja, ela
deve ser compreendida como metodologia ou, ainda, como uma análi-
se crítica sobre os discursos dos atores políticos.

A filosofia política foi também classificada como estudo da lingua-


gem. Para compreender a importância da possível contribuição dessa
linha, basta observarmos as imprecisões das palavras utilizadas nos
discursos políticos. É preciso reconhecer que as palavras surgem carre-
gadas de emoções nos contextos em que ocorrem esses diálogos. Na
compreensão de Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 496),
qualquer discurso político é (pelo menos no estado atual) condi-
cionado pela linguagem de que é obrigado a servir-se; trata-se de
uma linguagem “impura”, ou melhor, de uma linguagem “com vá-
rias dimensões”, que no próprio ato em que é usada desempenha
funções diferentes: designa, avalia, descreve e, ao mesmo tempo
e quase inconscientemente, prescreve; e isto pela simples razão
de que os vocábulos de que se serve têm, já de antemão, uma
coloração emotiva, são palavras “carregadas”, que contêm uma
conotação apreciativa que não é possível eliminar (pelo menos
até o presente momento). Os exemplos são numerosos: basta
lembrar o uso que se faz correntemente, ao discorrer de política,
de palavras tais como “liberdade” ou “igualdade”, que designam,
ao mesmo tempo, um fato e um valor ou a possibilidade de dar,
ao mesmo fato político, um significado diferente e às vezes opos-
to, chamando-o mais com um nome do que com outro (“pena”
– “repressão”, “força” – “violência”); basta refletir na incerteza que
reina atualmente sobre o exato significado de termos tais como
“poder” e “autoridade” e a sua delimitação recíproca.

Esses filósofos consideram “impura” a linguagem utilizada nos dis-


cursos políticos, pois as palavras não possuem um único sentido e po-
dem, ainda, ter seu sentido definido por ideologias e sentimentos. Eles
consideram, ainda, que essas palavras possuem várias dimensões, pois
podem carregar em si aspectos positivos e negativos ao mesmo tempo.
Um exemplo é a palavra igualdade, que pode ser utilizada como algo
bom, pois pode significar que os indivíduos possuem direitos jurídicos
iguais, mas, em outro contexto, pode significar igualdade social asso-
ciada a políticas socialistas, que será algo bom ou mau dependendo do
grupo que está discursando. Isso significa que a palavra igualdade não
tem uma única interpretação ou uso. Ela não é neutra, depende do uso
que se faz dela.

Conceitos básicos da ciência política 13


Percebemos, portanto, que as possibilidades de aplicação dos estu-
dos em filosofia política variam conforme o foco da análise. Entretanto,
devemos compreender que, em seu conjunto, todas essas abordagens
contribuem com os estudos sobre os fenômenos políticos.

1.1.3 Ideologia política


Por último, podemos observar a relação entre filosofia política e
ideologia. Aqui, a preocupação central está em observar os elementos
ideológicos dos discursos, pois se estes se pautam em escolhas de pa-
lavras relativamente imprecisas, podemos nos indagar sobre a ideolo-
gia existente nas escolhas das palavras.
Se a análise do discurso político conduz ou pode conduzir a tão
singulares conclusões, é claro que a reflexão filosófica não pode
parar aqui, porque reconhecer o caráter valorativo ou ideológico
deste tipo de discurso levanta na mente um outro problema, o
do porquê de tal caráter, isto é, da necessidade de entender as
razões pelas quais a qualificação política é uma qualificação valo-
rativa e não apenas descritiva, de encontrar uma explicação das
opções que os homens fazem ao atribuir a alguns fenômenos
uma relevância política que excluem de outros, e, especialmente,
de estabelecer com exatidão o que significa essa atribuição, quais
as consequências que daí decorrem, o que, enfim, está realmente
posto em jogo. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 497)

Nesse sentido, podemos afirmar que não existe discurso neutro e


que todos eles estão carregados de boa dose de ideologia. Somos seres
históricos e ideológicos, atores sociais movidos por valores, crenças,
ideias, desejos e emoções, e isso se manifesta no espaço da política.

Por isso, no pensamento político também encontramos a ideolo-


gia política. Diferente da filosofia, a ideologia se baseia em crenças e
estados mentais e emocionais dos indivíduos e, também, naquilo que
hoje denominamos de senso comum. Naturalmente, essa é uma defini-
ção superficial, pois não existe uma única versão do que consideramos
ideologia.

Mais do que um problema teórico, o espaço e os atores políticos vão


se alterando com o passar do tempo e, portanto, é também um proble-
ma de interpretação segundo o momento histórico.

14 Ciências Políticas
Ao elaborar um dicionário de termos políticos, Bobbio, Matteucci e
Pasquino (1998) salientaram a dificuldade em estipular definições rígidas
para a linguagem política, afinal essa é uma construção histórica e os
termos vão se ressignificando com as transições de gerações e os pro-
cessos históricos vivenciados pelas sociedades humanas. Segundo eles:
A maior parte dos termos usados no discurso político tem signi-
ficados diversos. Esta variedade depende [...] de muitos termos
terem passado por longa série de mutações históricas – alguns
termos fundamentais, tais como “democracia”, “aristocracia”,
“déspota” e “política”, foram-nos legados por escritores gregos.
[...] Na linguagem da luta política quotidiana, palavras que são
técnicas desde a origem ou desde tempos imemoriais, como “oli-
garquia”, “tirania”, “ditadura” e “democracia”, são usadas como
termos da linguagem comum e por isso de modo não unívoco.
Palavras com sentido mais propriamente técnico, como são
todos os “ismos” em que é rica a linguagem política – “socialis-
mo”, “comunismo”, “fascismo”, peronismo”, “marxismo”, “leni-
nismo”, stalinismo” etc. –, indicam fenômenos históricos tão
complexos e elaborações doutrinais tão controvertidas que não
deixam de ser suscetíveis das mais diferentes interpretações.
(BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. V)

Desta forma, tanto os discursos quanto as palavras e conceitos


definidos para pensar a política não são tão precisos nem têm um
único significado. Essas possibilidades de interpretação são comumente
exploradas nos discursos que se baseiam no senso comum e principal-
mente na ideologia. Como poderíamos definir ideologia? Para Bobbio,
Matteucci e Pasquino (1998), podemos defini-la com base em dois sig-
nificados: um considerado fraco, que seria o conjunto de ideias relacio-
nadas à política; e outro, forte, que seria um conjunto de ideias falsas.

Ideologia seria, então, um conjunto de ideias políticas – e, nesse senti-


do, não se emite uma avaliação negativa sobre o conceito – ou uma visão
falsificada da realidade. Esse entendimento de ideologia como crença
falsa foi elaborado pelo pensador do século XIX, Karl Marx, para quem
a ideologia significava um conjunto de ideias distorcidas ou invertidas
sobre a realidade, criadas pela classe dominante para manter os domi-
nados sem a consciência da verdade sobre sua exploração.
Quando se trata do exercício do poder, aqueles que têm a posse
dos grandes meios de produção inevitavelmente tendem a ficar
convencidos (e tratam de convencer os demais) de que a situa-
ção de que se beneficiam é, se não a melhor, a menos ruim das

Conceitos básicos da ciência política 15


situações possíveis. Na medida em que os conhecimentos pro-
porcionam algum poder, aqueles que detêm o “saber” tendem a
acreditar necessariamente que a superioridade da sua cultura só
não é reconhecida por ignorância ou por má-fé. Os ricos, por sua
vez, costumam crer que a existência de diversidade nas fortunas
é “normal”, já que pode ser constatada em todas as sociedades.
E os privilegiados se inclinam a considerar seus privilégios como
direitos. (KONDER, 2001, p. 26, grifo do original)

Nessa segunda concepção do conceito, como uma ideia falsa, en-


contraremos todos os autores que adotam a teoria marxista para
pensar as relações sociais, políticas, culturais e econômicas. Após essa
rápida apresentação de alguns conceitos da ciência política, discutire-
mos a seguir essa ciência.

1.2 O que estuda a ciência política?


Vídeo Para responder a essa pergunta, iniciaremos dizendo que a ciência
política estuda o Estado e todos os elementos que se relacionam com
ele, como mostra a Figura 1 a seguir. Esses elementos não são conside-
rados de forma isolada, a ciência política observa as inter-relações que
se estabelecem entre eles. Ela analisa, ainda, as relações que se estabe-
lecem entre esses elementos, o Estado e a sociedade civil.

Figura 1 Partidos
Inter-relações entre Estado políticos
e elementos
Poder e sua
Teorias sobre
relação com o
a política
Direito

Modelos de
Burocracia
Estado

Instituições Instituições
políticas políticas

Estado

Fonte: Elaborada pela autora.

Não apresentaremos todos esses conceitos nesta seção, pois serão


mais bem trabalhados nos posteriores capítulos deste livro. Todavia,
abordaremos de modo introdutório alguns deles.

16 Ciências Políticas
1.2.1 Partidos políticos
Os partidos podem ser definidos como formas de associação da
sociedade civil nas quais indivíduos que partilham de uma mesma
ideologia se organizam formalmente para disputar o espaço político.
Os partidos se desenvolveram na Europa e nos Estados Unidos no
século XIX. Para falarmos em partidos, no plural, é necessário que exis-
tam diferenças ideológicas entre eles. Com a Revolução Industrial, a
burguesia buscou se organizar politicamente e, posteriormente, com o
aumento da classe operária, surgiram, já ao final do século XIX, os par-
tidos de massa representando os trabalhadores. Anteriormente, havia
somente partidos de quadros ou, mais precisamente, partidos das eli-
tes (aristocratas e burgueses).
Na Inglaterra, o país de mais antigas tradições parlamentares, os
2 2
partidos aparecem com o Reform Act de 1832 , o qual, amplian-
do o sufrágio, permitiu que as camadas industriais e comerciais Lei de Reforma de 1832, que
modificou o sistema eleitoral na
do país participassem, juntamente com a aristocracia, na gestão
Inglaterra.
dos negócios públicos. Antes dessa data, não se pode falar pro-
priamente de Partidos políticos na Inglaterra. Os dois grandes
partidos da aristocracia, surgidos no século XVIII e desde então
presentes no Parlamento, não tinham, fora disso, nenhuma rele-
vância nem algum tipo de organização. Tratava-se de simples eti-
quetas atrás das quais estavam os representantes de um grupo
homogêneo, não dividido por conflitos de interesses ou por di-
ferenças ideológicas substanciais, que aderiam a um ou a outro
grupo, sobretudo por tradições locais ou familiares. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 899, grifo do original)

Na maior parte da Europa e da América, durante o século XIX, pre-


valeceram partidos com esse formato. Somente no final do século XIX o
sistema partidário efetivamente se diversificou com a incorporação da
classe operária. Esse foi um marco para pensarmos o surgimento dos
Estados Democráticos. Antes da incorporação das massas no processo
político, somente poderíamos falar em Estado Liberal.
Nos decênios que precederam e se seguiram aos fins do sécu-
lo XIX a situação começou a mudar após o desenvolvimento do
movimento operário. As transformações econômicas e sociais
produzidas pelo processo de industrialização levaram à ribalta
política as massas populares cujas reivindicações se expressam
inicialmente em movimentos espontâneos de protesto, encon-
trando depois canais organizativos sempre mais complexos até

Conceitos básicos da ciência política 17


a criação dos partidos dos trabalhadores. É precisamente com o
aparecimento dos partidos socialistas – na Alemanha em 1875,
na Itália em 1892, na Inglaterra em 1900 e na França em 1905
– que os partidos assumem conotações completamente novas:
um séquito de massa, uma organização difusa e estável com
um corpo de funcionários pagos especialmente para desenvol-
ver uma atividade política e um programa político-sistemático.
(BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 899)

Os partidos políticos apresentam características diferentes e sur-


gem como resultado das demandas da própria sociedade, segundo o
momento histórico do seu advento. Assim, uma mudança na sociedade
e a criação de uma nova classe serão a base para o surgimento de no-
vos partidos.

1.2.2 Burocracia
Como outros conceitos da ciência política, o termo burocracia tam-
bém não tem uma única definição, pois passou por transformações ao
longo de décadas de teorização. De modo amplo, podemos dizer que o
termo assinala a existência de um corpo de funcionários da administra-
ção pública que têm suas funções e territórios de competência regidos
formalmente, são treinados e selecionados pelo critério de especializa-
ção e se encontram em relações hierárquicas.

1.2.3 Espaço político


Se caracteriza como o local em que ocorrem as disputas e os confli-
tos presentes nas relações entre eleitores e partidos políticos. Confor-
me apontam Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 392):
Todo sistema político é caracterizado por um certo número de con-
flitos: conflitos sobre a distribuição da renda, sobre a intervenção
do Estado na economia, sobre as relações Estado-Igreja, ou então
conflitos de natureza linguística, étnica, e por aí além. Na medida
em que tais conflitos ou linhas de divisão são fatores de mobilização
do eleitorado, eles influem no comportamento político dos eleito-
res e na estratégia dos partidos e, consequentemente, no desenro-
lar da disputa eleitoral. A conformação destes conflitos representa
a área do Espaço político. Em resumo, portanto, o Espaço político
identifica-se com o espaço da competição eleitoral nos regimes de-
mocráticos de massa. Não basta, porém, que existam conflitos –
portanto, problemas a resolver e escolhas a fazer – para se poder
usar significativamente a noção de Espaço político.

18 Ciências Políticas
Sendo assim, o espaço político será o local em que ocorre o mo-
vimento dos partidos políticos na busca por conquistar os votos dos
eleitores nas democracias contemporâneas.

1.2.4 Elites políticas


Podemos definir o conceito de elite com base no adjetivo que o
acompanha e o qualifica, como política econômica, militar etc. Mes-
mo qualificado, esse termo ainda gera razoável debate e até mesmo
imprecisão. Albertoni (1990 apud LOURENÇO, 2011) fornece um bre-
ve resumo dessas possibilidades conceituais. Segundo ele (1990 apud
LOURENÇO, 2011, p. 28), o conceito de elite política se baseia em “uma
minoria politicamente ativa que controla os processos de tomada de
decisão política. Mais precisamente, a elite política foi metodologica-
mente identificada como o conjunto dos atores que ocupam os cargos
políticos na estrutura do Estado”.

Em uma conceituação ampla, o termo elite se refere à minoria que


detém o prestígio e o domínio sobre um grupo social. O termo foi lar-
gamente discutido nas obras clássicas dos italianos Gaetano Mosca e
Vilfredo Pareto e do alemão Robert Michels, entre o final do século XIX
e início do século XX. A busca da definição do conceito de elites e de
não elites conduziu esses autores à elaboração do que ficou conhecido
como a teoria das elites. Essa teoria foi constituída por um conjunto de
ideias que reflete sobre as relações entre elites e massas nas democra-
cias contemporâneas e que afirma que em todo regime sempre existe
uma minoria que governa e uma maioria que é governada.

Esses autores defendiam uma compreensão da sociedade que se


baseava na apreciação da realidade dos fatos, e não na sua idealização.
Isso lhes permitiu analisar o desenvolvimento histórico das so-
ciedades e formular uma lei geral da sua organização política na
qual afirmaram que toda sociedade possui inevitavelmente uma
minoria que domina e uma maioria dominada. Ao buscarem
comprovar esta tese de forma científica, estes autores construí-
ram os pilares da teoria das elites e delimitaram inicialmente um
objeto de pesquisa (as minorias governantes) que seria a partir
de seus estudos consagrado como um dos importantes temas da
ciência política contemporânea. (LOURENÇO, 2011, p. 28)

Assim como Maquiavel (1990, p. 72) dizia que no estudo da política


vale mais “procurar a verdade efetiva das coisas”, eles se empenharam

Conceitos básicos da ciência política 19


no estudo científico da política, buscaram conhecer como ela efetiva-
mente funcionava e não como ela deveria funcionar. Ou seja, defen-
deram a ideia de que um verdadeiro estudo dos fenômenos políticos
deveria ocorrer pela análise da realidade efetiva de maneira científica.

1.2.5 Cultura política


Na cultura residem crenças, valores e normas em que o grupo acre-
dita com base no seu percurso histórico. Por isso, uma mesma expe-
riência política pode apresentar resultados diferentes em países com
cultura política também diferente. Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998,
p. 306) afirmam que se utiliza a expressão cultura política para:
designar o conjunto de atitudes, normas, crenças, mais ou
menos largamente partilhadas pelos membros de uma determi-
nada unidade social e tendo como objeto fenômenos políticos
Assim, poderemos dizer, a modo de ilustração, que compõem a
Cultura política de uma certa sociedade os conhecimentos, ou,
melhor, sua distribuição entre os indivíduos que a integram, rela-
tivos às instituições, à prática política, às forças políticas operan-
tes num determinado contexto; às tendências mais ou menos
difusas, como, por exemplo, a indiferença, o cinismo, a rigidez,
o dogmatismo, ou, ao invés, o sentido de confiança, a adesão, a
tolerância para com as forças políticas diversas da própria etc.;
finalmente, as normas, como, por exemplo, o direito-dever dos
cidadãos a participar da vida política, a obrigação de aceitar as
decisões da maioria, a exclusão ou não do recurso a formas vio-
lentas de ação.

É importante observar que a cultura política diz respeito a um con-


junto de valores e crenças que orienta as ações dos indivíduos em suas
relações políticas. Isso varia em cada sociedade. Um bom exemplo é
a crença na ditadura. Existem sociedades que possuem o autoritaris-
mo como um elemento da sua cultura política e, nesse caso, tenderão
a simpatizar com modelos políticos ditatoriais, ao contrário de outras
sociedades que tenham uma cultura política na qual o pensamento au-
toritário esteja ausente.

1.2.6 Advento e método da ciência política


No decorrer do século XVIII, as ciências da natureza se consolidaram
iniciando um período no qual a verdade deveria ser verificada pelos

20 Ciências Políticas
métodos científicos. Nesse mesmo século, a Revolução Industrial es-
tava em processo e o culminar da Revolução Francesa, que buscava
encerrar o Antigo Regime, criaram em conjunto um novo modelo de
organização política, jurídica, econômica, social e cultural que conhece-
mos como modernidade.

No século XIX a modernidade já era uma realidade, vivíamos um mo-


delo de sociedade que se baseava no trabalhador livre juridicamente,
que podia vender sua força de trabalho e que almejava participar da vida
política. As massas populares operárias começaram a se organizar e sur-
giram os partidos de massa para concorrer com os partidos de quadros
(da elite) pelas vagas eletivas do Estado. Esse fenômeno trouxe inquie-
tações aos pensadores da época. Havia uma busca por compreender as
complexas relações que se estabeleciam entre sociedade e Estado.

Essa inquietação também foi constatada na busca das formulações


iniciais da sociologia. As greves operárias, os altos índices de suicídio,
alcoolismo e revoltas dos trabalhadores, que muitas vezes resultavam
na destruição das maquinarias, geraram a necessidade de uma respos-
ta àquilo que foi considerado um mal-estar social.

Também foi nesse século que a expansão industrial favoreceu o


imperialismo e aproximou de modo sistemático os europeus de ou-
tras culturas, que poderiam ser estudadas e compreendidas. A curio-
sidade por outros povos já datava, pelo menos, das navegações do
século XV e XVI, todavia foi no século XIX que surgiram as sociedades
Glossário
de etnologia na Inglaterra e na França. Eram homens com diversas
etnologia: pode ser com-
formações que se reuniam para compreender as outras culturas com preendida como a ciência que
base nos relatórios e documentos produzidos pelos funcionários pú- estuda as diversas culturas das
blicos que estavam em terras imperiais ou coloniais. sociedades. Seria uma espécie
de ciência das etnias.
Acreditando que a ciência é o modelo adequado e eficaz para se
compreender a realidade no século XIX, os pensadores propuseram o Curiosidade
surgimento das ciências sociais. Simplificadamente, o argumento era
O imperialismo é um conjunto
de que já existiam as ciências da natureza no século XVIII e que os fe- de práticas políticas adotadas
nômenos sociais careciam de ciência que os explicasse também, afinal, por um país para sua expansão
econômica, cultural e territorial
esses fenômenos teriam regras e leis passíveis de estudo científico. sobre outros países. O caso mais
conhecido de imperialismo
Surgiram então, no século XIX, as ciências sociais, a sociologia, a an-
ocorreu no século XIX, com a
tropologia e a ciência política. Talvez, entre as três, a ciência política ação dos europeus sobre os
seja a que mais se inspirou nos métodos das ciências da natureza. países asiáticos e africanos.

Conceitos básicos da ciência política 21


Podemos perceber, com base no que foi explicado, que a ciência
política, diferente da filosofia política, da ideologia política e do senso
comum, busca utilizar como seu método a observação sistemática,
a experimentação e a comprovação. Naturalmente, a comprovação
será provisória e restrita somente ao objeto de estudo, mas, ainda as-
sim, adquire o status de comprovação científica.
A expressão Ciência política pode ser usada em sentido amplo e
não técnico para indicar qualquer estudo dos fenômenos e das
estruturas políticas, conduzido sistematicamente e com rigor,
apoiado num amplo e cuidadoso exame dos fatos expostos com
argumentos racionais. Nesta acepção, o termo “ciência” é utili-
zado dentro do significado tradicional como oposto a “opinião”.
Assim, “ocupar-se cientificamente de política” significa não se
abandonar a opiniões e crenças do vulgo, não formular juízos
com base em dados imprecisos, mas apoiar-se nas provas dos
fatos. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 164)

A definição não é tão simples quanto pode se apresentar à primeira


vista. O sentido pode variar quando levamos em consideração sua utili-
zação mais restrita ou, mais precisamente, sua aplicação em uma área
demarcada de estudos. Para Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 164):
Em sentido mais limitado e mais técnico, abrangendo uma área
muito bem delimitada de estudos especializados e em parte ins-
titucionalizados, com cultores [isto é, cultivadores de uma ciên-
cia] ligados entre si que se identificam como “cientistas políticos”,
a expressão Ciência política indica uma orientação de estudos
que se propõe aplicar à análise do fenômeno político, nos limi-
tes do possível, isto é, na medida em que a matéria o permite,
mas sempre com maior rigor [...]. Em resumo, Ciência política,
em sentido estrito e técnico, corresponde à “ciência empírica da
política” ou à “ciência da política”, tratada com base na metodo-
logia das ciências empíricas mais desenvolvidas, como a física, a
biologia etc.

Partindo dessa caracterização, podemos observar que a ciência po-


lítica consolidada na época contemporânea, que é possuidora de uma
proposta de estudos empíricos sobre os fenômenos políticos, teve
antepassados que colaboraram para sua construção. De acordo com
Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 164):
Embora a constituição da Ciência política em ciência empírica
como empreendimento coletivo e cumulativo seja relativamente
recente, podem ser consideradas obras de Ciência política, ao

22 Ciências Políticas
menos em parte, e na sua inspiração fundamental, também no
sentido limitado e técnico da palavra, algumas obras clássicas,
como as de Aristóteles, Maquiavel, Montesquieu, Tocqueville,
enquanto elas tendem à formulação de tipologias, de gene-
ralizações, de teorias gerais, de leis, relativas aos fenômenos
políticos, fundamentadas, porém, no estudo da história, ou seja,
apoiando-se na análise dos fatos.

Esses pensadores, que viveram em séculos passados, já haviam de-


monstrado o interesse pelo estudo dos fenômenos políticos com base
em documentação histórica e observação dos fatos, antes mesmo da
existência da ciência política. Estudaremos na sequência a contribuição
de Maquiavel.

1.3 A contribuição de Nicolau Maquiavel


Vídeo Nicolau Maquiavel, que viveu no século XVI em Florença, na Itália,
é considerado por muitos teóricos o primeiro cientista político da his-
tória. Pode parecer um equívoco, pois a própria ciência da política ain-
da não havia surgido. Todavia, essa apreciação diz respeito ao método
empregado pelo autor para analisar os fenômenos políticos em sua
época. Com base em fatos observados e documentos históricos, ele
buscou refletir sobre o fenômeno da manutenção e perda do poder.

O autor salientou as características necessárias para um governo


se manter estável e efetivamente governar, sem a tônica religiosa que
era comum em sua época. De modo “amoral”, ou seja, sem julgamen-
to com base em valores cristãos que marcavam sua época, Maquiavel
buscou verificar experiências que deram certo ou falharam na busca
de conquistar e manter territórios e um poder centralizado sobre a po-
pulação conquistada. Nesse sentido, podemos afirmar que ele esboça-
va uma preocupação em compreender como poderiam se formar os
primeiros Estados Modernos. Afinal, sem a unificação e manutenção
do território e do poder sobre a população desse território, não seria
possível falar em Estado.

A principal obra de Maquiavel, O Príncipe, gerou e ainda gera grande


debate sobre as intenções do autor. Alguns afirmam que ele buscava
dar aos poderosos um manual de dominação, enquanto outros veem
na obra dele lições ao povo dominado. Consideramos que as lições do
livro servem para os atores atentos aos ensinamentos.

Conceitos básicos da ciência política 23


Contrariando os que viam em Maquiavel um autor “maldito”,
Rousseau o defendeu afirmando que, “fingindo dar lições aos prínci-
pes, deu grandes lições ao povo” (ROUSSEAU, 2000 apud SADEK, 2002,
p. 14).

Podemos afirmar que Maquiavel nutria, acima de tudo, uma preo-


cupação com a estabilidade do poder político por acreditar que somen-
te com um poder estabelecido que governasse em prol do povo e das
elites poderíamos ter um cenário para o desenvolvimento das popula-
ções mais exploradas.

Para o autor, o excesso de disputa pelo poder, gerando guerras e


mudanças sucessivas dos grupos que ocupavam os locais de poder po-
lítico na Itália, atingia de maneira maléfica principalmente os campone-
ses que estavam constantemente sujeitos a situações de insegurança.
Se ele defendia a República ou a Monarquia, não é a questão central
com a qual nos deparamos, mas sim a importância de se conquistar
e manter o poder como forma de estabilidade e governabilidade. Ou
seja, seu tema principal era o Estado.

Em carta escrita a Francesco Vettori, que à época era embaixa-


dor da República Florentina em Roma, em 13 de março de 1513,
Maquiavel (1513 apud SADEK, 2002, p. 17) desabafou: “o destino de-
terminou que eu não saiba discutir sobre seda, nem sobre lã; tam-
pouco sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar
sobre o Estado. Será preciso submeter-me à promessa de emude-
cer, ou terei que falar sobre ele”.

Percebemos que o autor se preocupava em analisar o Estado se-


guindo seu próprio raciocínio, formulado na expressão a verdade efe-
tiva das coisas. Desta forma, ele propõe a observação do Estado real,
concreto, capaz de manter a ordem e não uma idealização dele.

Diferente da filosofia política predominante, Maquiavel propôs o


método da verificação empírica dos fatos políticos. Devemos, segundo
ele, discutir a realidade que temos e não a que gostaríamos de ter. O
autor levantou questões que são importantes até os dias atuais, como
as possíveis relações entre disputas pelo poder político, estabilidade e
instabilidade, ordem e caos.

24 Ciências Políticas
1.3.1 Conquistar e manter o poder de governar
Por que era importante manter o poder? Qual era o contexto no
qual Maquiavel vivia? Nascido no dia 3 de maio de 1469, em uma Itá-
lia formada por vários pequenos Estados, com regimes políticos, de-
senvolvimento econômico e cultura variados, a disputa pelo poder era
constante. Para Sadek (2002, p. 14), “tratava-se, a rigor, de um verdadei-
ro mosaico, sujeito a conflitos contínuos e alvos de constantes invasões
por parte de estrangeiros”. A partir do final do século XV, a Península
Ibérica passou a vivenciar mais incisivamente as invasões e disputas
pelo poder em curto espaço de tempo.
Até 1494, graças aos esforços de Lourenço, o Magnífico, a penínsu-
la experimentou uma certa tranquilidade. Cinco grandes Estados
dominavam o mapa político: ao sul, o reino de Nápolis, nas mãos
dos Aragão; no centro, os Estados papais controlados pela Igreja e
a república de Florença, presidida pelos Médici; ao norte, o ducado
de Milão e a república de Veneza. (SADEK, 2002, p. 14-15)

Ao final do século XV, essa relativa estabilidade desapareceu da pe-


nínsula e as disputas pelo poder político foram tão intensas que um
governo não se mantinha no poder por mais de dois meses. Maquiavel
passou sua adolescência nessa instabilidade. Ocupou seu primeiro car-
go de destaque na vida pública com 29 anos, em 1498, como segundo
chanceler, posição importante da administração pública. Ele exercia
um papel de diplomacia viajando dentro e fora da Itália no curto perío-
do de retirada da família Médici e instauração da República. Contudo,
esse cenário não se manteria por muito tempo, conforme expõe Sadek
(2002, p. 15):
Suas tarefas diplomáticas sofreram, no entanto, uma brusca in-
terrupção quando os Médicis recuperaram o poder e voltaram
para Florença. O governante Soderini vai para o exílio e é dis-
solvida a república. Era o ano de 1512. Maquiavel foi demitido,
proibido de abandonar o território florentino pelo espaço de um
ano, e ficava-lhe vedado o acesso a qualquer prédio público. Mas
o pior ainda estaria por acontecer: em fevereiro de 1513 foi con-
siderado suspeito, acusado de tomar parte na fracassada cons-
piração contra o governo dos Médicis. Foi por isso torturado,
condenado à prisão e a pagar uma pesada multa.

Conceitos básicos da ciência política 25


Após sair da prisão, Maquiavel não conseguiu retornar à vida pú-
blica e passou a se dedicar a estudar e escrever suas obras de análise
política. Seus anos de serviço público diplomático associados aos es-
tudos dos clássicos resultaram em obras escritas entre 1512 e 1513 (O
Príncipe); 1513 e 1519 (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio);
1519 e 1520 (A arte da guerra); 1520 e 1525 (História de Florença).
Nessas obras políticas, o autor rompeu com a ideia de ordem na-
tural ou eterna e tratou a política como ação humana. Ao analisar os
vários principados existentes na Itália, ele afirmou que para formar um
Estado forte, com poder centralizado, era necessário mais do que o
conquistar por meio das armas ou da fortuna. Para mantê-lo era preci-
so conseguir governá-lo, e isso aconteceria somente quando o conquis-
tador possuísse virtù, que foi um conceito central na análise do poder
desenvolvida por Maquiavel. A virtù implica a capacidade do governan-
te de convencer o povo e as elites de que governa para eles, mesmo
que não o faça. Ele também deve saber usar adequadamente a “espada
pública”, ou seja, o uso da força e da violência, além de gerir adequada-
mente as finanças do Estado.
O autor também desenvolveu o conceito de fortuna, que seriam as
riquezas para poder pagar um exército ou comprar um reino, mas que
não garantiam que a população iria obedecer ao governante. O mesmo
ocorre com as armas, que podem garantir a conquista de um território
pela força, mas não garantem a governabilidade. Assim, a fortuna (ri-
quezas) e as armas (força bélica, soldados) podem conquistar um reino,
mas não irão dar estabilidade para o exercício do governo. Somente a
virtù (sabedoria para governar) irá garantir a continuidade e, por conse-
quência, a estabilidade do governo, ao conquistar a obediência dos go-
vernados. Por isso, Maquiavel demonstrou que muitos conquistadores
em sua época possuíam fortuna e armas, mas não mantinham o poder
porque lhes faltava a virtù.
Se considerarmos que o Estado Moderno se caracteriza principal-
mente pelo território unificado, poder concentrado e pelas regras ju-
rídicas comuns, podemos compreender que a preocupação do autor
eram os problemas que impediam a formação do Estado Moderno ita-
liano. Afinal, somente um governante com virtù conseguiria, além de
conquistar os territórios, mantê-los unificados, concentrar o poder no
governo, não somente pela força mas pelo reconhecimento da autori-
dade, e, ainda, convencer o povo e a elite a viver sob o mesmo orde-
namento jurídico de modo a acreditar que isso era em seu benefício.

26 Ciências Políticas
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, buscamos apresentar a ciência política e alguns con-
ceitos relacionados a ela. Considerando que em toda sociedade existe
uma organização política, é fundamental que possamos compreender o
funcionamento do espaço político.
O estudo da ciência política nos fornecerá as ferramentas para essa
compreensão e nos permitirá uma leitura crítica das relações de poder
que se estabelecem entre sociedade e Estado. Por isso, continuaremos
nossa discussão sobre o surgimento e a consolidação do Estado Moderno
no próximo capítulo.

AMPLIANDO SEUS CONHECIMENTOS


•• CODATO, A.; BRAGA, M. do S. Apresentação: Robert Michels,
Gramsci e a ciência política contemporânea. Revista de Sociologia
e Política, Curitiba, v. 20, n. 44, p. 5-10, nov. 2012. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/34416/21340. Acesso em:
14 out. 2019.
Esse artigo é excelente para conhecer a relação entre partidos
políticos e o potencial de representação das massas.

•• DOBRYCHTOP, L. H.; CHIARO, L.; FERRAZ, C. E. F. A atualidade do


pensamento político de Maquiavel. Jus, ago. 2018. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/68543/a-atualidade-do-pensamento-
-politico-de-maquiavel. Acesso em: 14 out. 2019.
Esse texto apresenta uma contribuição sobre Nicolau Maquiavel
e a atualidade do seu pensamento.

•• PERISSINOTTO, R. M.; CODATO, A. N. Apresentação: por um retor-


no à Sociologia das elites. Revista de Sociologia e Política, Curitiba,
v. 16, n. 30, p. 7-15, jun. 2008. Disponível em: https://revistas.ufpr.
br/rsp/article/view/13850/9324. Acesso em: 14 out. 2019.
A leitura desse artigo ajudará a compreender melhor o que são
os estudos sobre as elites políticas e sua importância para pensar
o contexto brasileiro das relações entre Estado e sociedade.

Conceitos básicos da ciência política 27


ATIVIDADES
1. Como podemos definir a ciência política?

2. Quais foram as contribuições da filosofia política ao desenvolvimento


da ciência política?

3. Por que Maquiavel pode ser considerado o primeiro cientista político?

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Política. Trad. de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Editora
UnB, 1998.
KONDER, L. Ideologia e política. Revista USP, São Paulo, n. 49, p. 24-29, mar./maio 2001.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/32905/35475. Acesso em:
21 out. 2019.
LOURENÇO, A. O recrutamento das elites políticas no Brasil: o caso de Mato Grosso, 1945-
2007. Lisboa, 2011. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Setor de Ciências Sociais,
Universidade Nova de Lisboa.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
PLATÃO. A República. Trad. de Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Belém: Edufpa, 1988.
SADEK, M. T. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. In: WEFFORT,
F. C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2002. v. 1.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999. v. 2.
WEFFORT, F. C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2002. v. 1.

28 Ciências Políticas
2
O Estado e o pensamento
político
Este capítulo tem por objetivo identificar os tipos de
sociedade política e de Estado ao longo da história, bem como os
pensamentos políticos em épocas passadas a fim de compreender
os Estados existentes na atualidade. Vivemos sob a organização
política de um Estado, e as ações colocadas em prática por aqueles
que governam afetam cotidianamente nossas vidas. Por isso, é
fundamental compreender como e por que aceitamos viver sob
esse modelo.

2.1 Sociedades políticas


Vídeo Todas as sociedades humanas conhecidas após se tornarem seden-
tárias tiveram a necessidade de organizar a vida em coletividade, ou
seja, estabelecer regras comuns e dividir as tarefas principais ligadas
à alimentação, segurança e direito. Então, foi necessário estabelecer
uma divisão de tarefas e cuidar para que as regras e os direitos fossem
respeitados. Na busca de atingir os objetivos comuns do grupo ligados
à sua sobrevivência, como proteção, alimentação e desenvolvimento,
cada sociedade retira um pequeno grupo dentre seus integrantes para
cuidar da administração dessas atividades.

Assim, enquanto alguns trabalham com agricultura, comércio e ar-


tesanato, aquele pequeno grupo zela para que essas atividades sejam
corretamente executadas e os objetivos da coletividade sejam atingi-
dos. Em outras palavras, enquanto a sociedade trabalha, uma pequena
parcela dela, chamada de sociedade política, cuida do funcionamento
dos interesses públicos, como obras, segurança e garantia do respeito
às regras estipuladas pela coletividade.

O Estado e o pensamento político 29


Então, é justo afirmar que a sociedade política deriva da própria ne-
cessidade da sociedade de sobreviver e se desenvolver. Muitos autores
têm discutido qual seria a origem da sociedade. O motivo pelo qual
os humanos não vivem isoladamente tem sido alvo de sociólogos, fi-
lósofos e outros estudiosos, inclusive “Alguns pensadores defendem a
posição de que [...] [a sociedade] é fruto da própria natureza humana,
enquanto outros sustentam que nada mais é do que um ato de vonta-
de humana” (BASTOS, 1999, p. 13). A seguir, vamos conhecer algumas
doutrinas e teorias que buscam explicar o que é sociedade e por que
vivemos dessa forma.

Alguns filósofos defenderão a ideia de que a sociedade nasce da vonta-


de humana de viver sob um contrato que cria as condições de sobrevivên-
cia. Por defenderem a existência da sociedade ligada a um contrato, são
1 1
conhecidos como contratualistas , bem como as suas teorias.
Hobbes, Locke e Rousseau, que
estudaremos neste capítulo, Esses autores estavam mais preocupados em compreender o surgi-
são os principais autores dessa mento das sociedades políticas do que a própria sociedade em sentido
doutrina.
ampliado. Em seus escritos, defendem a ideia de que criar a sociedade
foi um ato da razão humana, pois ao buscarem proteger a própria vida
perceberam que essa seria a melhor forma de atingir esse objetivo.

A teoria organicista defende a ideia de que a sociedade não se resu-


me à mera soma de indivíduos, ela é um organismo dotado de funções
próprias. Todavia, o indivíduo tem capacidade de moldar a sociedade
segundo a sua vontade pelo uso de sua inteligência e razão. Assim, a
sociedade pode ser pensada como fruto da natureza do homem, aliada
à participação da vontade e da inteligência humana.

A doutrina da sociedade natural foi elaborada por filósofos como


2 2
Aristóteles, São Tomás de Aquino e outros. Para Aristóteles, o homem
Tomás de Aquino nasceu é um ser eminentemente social, que necessita se relacionar constante-
em 1225, na Itália. Foi um
mente com os outros para poder se desenvolver. São Tomás de Aquino
importante filósofo e padre da
Idade Média. também acreditava que o homem é um ser social e político, que se
realiza nas relações com outros homens em sociedade. Portanto, “o
homem apresenta uma característica fundamental consistente em
depender de outros homens para a realização plena da sua natureza”
(BASTOS, 1999, p. 12).

Os homens não viveriam em sociedade somente para satisfazer


suas necessidades, mas por serem predispostos a isso. Assim como

30 Ciências Políticas
Aristóteles, São Tomás de Aquino alertava para o fato de que a vida
solitária é exceção (MALUF, 2011).

Podemos observar que, para essa doutrina, a vida em sociedade


resulta da necessidade humana, uma necessidade natural de viver em
coletividade. Partilha dessa percepção o sociólogo Émile Durkheim
3
3
(2010). Para esse autor, é impossível conceber a existência do homem Durkheim foi um sociólogo
francês conhecido como um dos
fora de uma sociedade, pois nossa espécie não nos permite viver isola- fundadores da sociologia. Suas
damente, não podemos procriar ou realizar individualmente todas as principais obras são: Da Divisão
tarefas necessárias à sobrevivência da espécie. Necessitamos estabele- do Trabalho Social (1893), As
Regras do Método Sociológico
cer relações sociais com outros da nossa espécie e isso, por si só, já nos (1895) e O Suicídio (1897).
obriga a viver em sociedade. Portanto, é um equívoco pensar que em
algum momento da história os indivíduos decidiram criar a sociedade.
Isso pressupõe a possibilidade de a existência humana se perpetuar
fora da vida em sociedade.

Partilhando dessa perspectiva de que existe uma necessidade fun-


damental da nossa espécie de viver em sociedade, e que também trans-
mitimos historicamente a cultura de uma geração para outra, podemos
compreender que, ao longo dos séculos, as sociedades provavelmente
iriam sofrer mudanças.

Ao longo da história ocidental, as sociedades se desenvolveram pas-


sando de pequenos grupos para nações. Sua evolução passou pela or-
ganização de indivíduos em família, grupos de famílias (clãs), cidades,
Estados, nações e comunidades internacionais.

Então, foi para organizar e administrar as sociedades que as primei-


ras sociedades políticas surgiram. Para Bastos (1999, p. 25), sociedade
política é “aquela que tem em mira a realização dos fins daquelas or-
ganizações mais amplas que o homem teve necessidade de criar para
enfrentar o desafio da natureza e das outras sociedades rivais”.

Essas sociedades são definidas pelo seu território, pois elas pos-
suem direito para agir somente dentro do território que reconhece a
sua autoridade. Segundo a maior parte dos manuais que buscam sim-
plificar a evolução das sociedades políticas, encontramos a seguinte
classificação: primeiro as tribos, depois as cidades-Estados gregas e o
Império Romano, em seguida os principados e reinos medievais e, fi-
nalmente, o Estado.

O Estado e o pensamento político 31


Atualmente, a mais conhecida dessas sociedades políticas é o Esta-
do Moderno. Ele se caracteriza pela existência de um território unifica-
do e com fronteiras demarcadas e reconhecidas internacionalmente,
pela existência de um direito único válido para todo o povo desse ter-
ritório e um poder centralizado e reconhecido nesse território. Então,
consideramos como os principais elementos do Estado o território, o
povo e o poder, que serão trabalhados na próxima seção.

A palavra Estado deriva do latim status e significa estado, posição e


ordem. O Estado também é compreendido como um organismo com
funções próprias; um modo de ser de uma sociedade politicamente
organizada após o século XVI. Considerado somente como uma das for-
mas de manifestação de poder, na Grécia foi identificado como a pólis,
ou seja, a cidade-Estado; em Roma como os civitas; na Idade Média e
na Moderna como principado, reino e república; e na Germânia como
reich e staat (BASTOS, 1999; MALUF, 2011).

Buscar as origens do Estado Moderno no Ocidente não é uma tarefa


fácil, pois os fatos históricos podem ter variadas interpretações. Desse
modo, os historiadores divergem um pouco sobre o tema.
Essa ausência de consenso se manifesta com relação quer ao mo-
mento do aparecimento do Estado moderno, quer ao nome que
a ele se deve dar, quer, ainda, ao porquê do seu aparecimento.
Sobre o momento do surgimento do Estado moderno, a maioria
dos historiadores atuais considera que isso ocorreu em meados
do século XVI, dividindo‑se a minoria restante entre os que re-
tardam para o XVII a sua ocorrência e os que a antecipam para
o século XV, atribuindo aos Estados italianos do quattrocento o
mérito da primazia. (FLORENZANO, 2007, p. 16, grifo do original)

Apesar da ausência de consenso, podemos observar que a maio-


ria dos estudiosos concorda que o Estado Moderno surgiu no
século XVI. Então, é importante compreender que na sociedade ociden-
tal ele emergiu com a consolidação do sistema capitalista também no
século XVI. No capitalismo mercantilista foi necessário um poder cen-
tralizado para que a economia pudesse se desenvolver. O capitalismo
mercantilista é um sistema de relações amplas de comércio e não po-
deria estar sob a vontade dos nobres que controlavam os feudos. Um
poder centralizador poderia unificar as leis, criar exércitos e garantir a
segurança dos comerciantes e artesãos.

32 Ciências Políticas
Na introdução da obra A ética protestante e o espírito do capitalismo,
o sociólogo Max Weber (1976) indicou que tanto o Estado como o ca-
pitalismo não podem ser considerados como uma criação exclusiva da
civilização ocidental. Todavia, o autor alertou para o fato de que:
somente na Civilização Ocidental teve lugar o desenvolvimento
de um capitalismo racional, de fenômenos culturais dotados de
“universal[idade] em seu valor e significado”, e o desenvolvimento
de um Estado como uma “entidade política, com uma ‘Constitui-
ção’ racionalmente redigida, um Direito racionalmente ordena-
do, e uma administração orientada por regras racionais, as leis,
e administrado por funcionários especializados”. (FLORENZANO,
2007, p. 11, grifo do original)

Weber (1999) afirma que foi primeiro no Ocidente que se desen-


volveu plenamente o Estado e, com base na análise da tipologia das
formas de dominação, o autor defende que somente um poder que
atue como autoridade reconhecida pela sociedade pode ser conside-
rado uma forma de dominação legítima. Em sua tipologia das formas
de dominação, o autor afirma que ao longo da história podemos en-
contrar três tipos puros de dominação legítima. A primeira seria a do-
minação carismática, que predominou na Antiguidade. Nessa forma
de dominação, a autoridade do líder resulta das suas qualidades ou
características pessoais reconhecidas pelo grupo. A segunda forma é
a dominação tradicional, na qual a autoridade do líder é reconhecida
com base na tradição, no hábito, na ideia de que as práticas devem ser
de uma determinada forma porque ao longo do tempo têm sido assim.
Esse tipo de dominação marcou principalmente o período medieval.

Por último, o autor identificou a dominação racional burocrática.


Essa é a forma predominante de dominação que surge com a forma-
ção do Estado, com base no Direito (leis centralizadas) e na burocracia.
Então, a principal forma de dominação da nossa época é a dominação
racional burocrática, que tem a base da autoridade sustentada na cren-
ça da legalidade e do funcionamento da administração burocrática. A
dominação é, segundo Weber, a probabilidade de que uma ordem en-
contre obediência com um determinado grupo de pessoas, sendo legí-
tima quando ela ocorre pelo reconhecimento da autoridade do líder ou
do governo e ilegítima quando se baseia na força.

O Estado e o pensamento político 33


Nesta seção, buscamos apresentar o que é uma sociedade política e
o Estado como uma modalidade dela. A seguir, aprenderemos sobre a
formação da sociedade e do Estado Moderno.

2.2 Formação da sociedade e do Estado


Vídeo As sociedades são formadas por elementos materiais, formais e
finalísticos. Compreendemos como elementos materiais os seres
humanos e a sua base física; os formais como as normas jurídicas, a
forma de organização e as relações de poder; e, por fim, os finalísti-
cos como os que possuem uma grande variação, pois dependem dos
objetivos comuns que o grupo estabelece, como o desenvolvimento
econômico, cultural etc.

Dentre esses elementos podemos afirmar que o principal é o mate-


rial, pois sem humanos não existe sociedade. Entretanto, não podemos
pensar que a sociedade signifique apenas a soma de indivíduos. Para
ser uma sociedade, é necessário que esses indivíduos compartilhem
entre si um conjunto de crenças, valores e normas que lhes possibilite
uma vida em sociedade e uma certa identificação uns com os outros.

Por exemplo, uma reunião de 200 pessoas de diversas nacionalidades


em uma palestra sobre meio ambiente não forma uma sociedade. Cada
uma dessas pessoas pode ser de uma sociedade diferente. Podemos
ter uma brasileira, uma francesa, uma tailandesa etc. Nesse caso, essas
200 pessoas formam uma população e não uma sociedade, pois elas não
partilham do mesmo conjunto de regras (sociais) e normas (formais).

As sociedades humanas se formam a partir dos objetivos comuns e,


para sua realização, organizam suas atividades e normas comuns, que
devem ser partilhadas pelo grupo. Essas normas são elaboradas com
base na cultura de cada grupo, pois consideram as crenças e valores
do grupo.

Como explicamos na seção anterior, as sociedades políticas surgem


das sociedades em geral. Elas significam um grupo de indivíduos que
irão administrar a vida em coletividade na busca de realizar os objeti-
vos comuns. Então, as sociedades políticas estão relacionadas às ati-
vidades de legislar, julgar, executar e cuidar da segurança. O Estado
foi o modelo de sociedade política que surgiu na Idade Moderna em
períodos diferentes e em locais distintos.

34 Ciências Políticas
O Estado é a mais completa das organizações criadas pelo
homem. Pode-se até dizer que ele é sinal de um alto estágio de
civilização. Nesse sentido o Estado aparece num momento his-
tórico bem preciso (século XVI). Não se nega que a Antiguidade
Clássica (as cidades gregas e o Império Romano) já apresentasse
sinais precursores dessa realidade. Todavia, preferem os auto-
res localizar o seu aparecimento no início dos tempos moder-
nos, uma vez que só então, em última análise, se reúnem, nas
entidades políticas assim denominadas, todas as características
próprias do Estado. (BASTOS, 1999, p. 29)

Ainda que tenham existido sociedades políticas anteriores ao sécu-


lo XVI, será somente nesse período que encontraremos as condições
concretas para a definição do Estado Moderno. De acordo com Bastos
(1999, p. 34), “Estado é a organização política sob a qual vive o homem
moderno. Ela caracteriza-se por ser a resultante de um povo vivendo
sobre um território delimitado e governado por leis que se fundam
num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e su-
premo internamente”.

O poder é, portanto, um elemento central na formação do Estado.


Muitos autores buscaram defini-lo e a maioria concorda que, ao ser
exercido, significa uma forma de impor a vontade em uma relação in-
dependente de possíveis resistências. Essa relação pode ser tanto de
um indivíduo sobre um grupo ou indivíduo quanto de um grupo sobre
outro grupo ou sobre um indivíduo. Nesse sentido, o poder do Estado
se exerce pela autoridade reconhecida.

Como indica Bastos (1999), o poder do Estado não pode ser supe-
rado por nenhum outro poder dentro do território que ele administra.
Naturalmente, esse poder resulta da própria autorização da sociedade
que atribuiu ao Estado esse papel e deverá, na atualidade, garantir que
ele (o Estado) tenha limites com base nos regulamentos impostos por
uma Constituição. Para Bastos (1999, p. 26), existe uma relação entre
poder político, ordem social e bem comum quando:
o poder político é o ponto para o qual convergem os demais
poderes na medida em que pretendam influir nos destinos da
sociedade. É ainda esse poder, por encerrar em si as funções de
editar as normas gerais a que a sociedade deverá obediência
(leis) e também a de aplicar essas mesmas normas através da
administração e da jurisdição, que se traduz na via por excelên-
cia da conformação, no sentido de dar forma à sociedade.

O Estado e o pensamento político 35


Nesse sentido, as demandas sociais traduzidas nos movimentos so-
ciais e grupos de pressão são fundamentais para conseguir influenciar o
modelo de leis que serão elaboradas e aplicadas, pois interferem no coti-
diano dos indivíduos. O Estado tem o poder que a sociedade não possui.
Se X tem poder, é preciso que em algum lugar haja um ou vários
Y que sejam desprovidos de tal poder. É o que a sociologia nor-
te-americana chama de teoria do “poder de soma zero”: o poder
é uma soma fixa, tal que o poder de A implica o não poder de B.
Esta tese (ou este pressuposto, quando a tese não é expressa-
mente enunciada) encontra‑se em autores tão diferentes ideo-
logicamente como Marx, Nietzsche, Max Weber, Raymond Aron,
Wright Mills. (LEBRUN, 1981, p. 7)

Para compreender o poder do Estado, é preciso considerar que


somente ele tem esse poder. O Estado pode legislar, julgar, executar
e usar violência física de maneira legítima, a sociedade não. Então, a
criação do Estado se justifica na segurança jurídica que ele transmite,
na legislação e na organização dos fins que a sociedade busca alcançar.
Ele existe para aplicar e executar, garantir e proteger os princípios ge-
rais do Direito ou do ordenamento jurídico, seus fins devem ser a rea-
lização do bem comum. Nunca deve ficar acima dos valores da pessoa
humana e está sempre em constante modificação e desenvolvimento.

Para autores como Marx (1977), é uma ilusão acreditar que o Estado
irá buscar o bem comum, pois ele seria uma organização política que
age em favor dos dominantes. Ao analisar a sociedade capitalista, o
autor afirmou que o Estado era o Estado capitalista, pois havia sido
criado pelo próprio sistema e funcionava segundo a lógica do modo de
produção capitalista. Nesse modo de produção, as relações sociais de
dominação se estruturam com base na propriedade privada dos meios
(recursos como máquinas, matérias‑primas etc.) para produzir. O resul-
tado seria a acumulação de riqueza dos que detêm a propriedade e a
exploração do trabalho dos que não a detêm. Então, em uma sociedade
de desiguais não haveria possibilidade de o Estado trabalhar em bene-
fício de todos igualmente, já que seu principal objetivo seria manter a
propriedade privada e o sistema capitalista (de desiguais) funcionando.

As teorias que resultaram das análises das obras de Marx (1977) têm
sido fundamentais para analisar os Estados democráticos concretos,
para compreender por que somente após o surgimento dos partidos
de massa (dos trabalhadores) podemos falar em democracia e, ainda,
para compreender criticamente a importância dos sistemas partidários

36 Ciências Políticas
e processos eleitorais. Também é importante considerar que o Estado
democrático é animado pelos representantes que ocupam os cargos
públicos. Nesse sentido, a disputa política entre desiguais aparece tan-
to na escolha dos partidos quanto na dos eleitores. A complexidade do
funcionamento dos Estados contemporâneos tem gerado um processo
de profissionalização da política. Assim, muitas vezes, o bem comum
tem ficado à mercê de burocratas que pouco conhecem a realidade de
uma sociedade composta de desiguais.

A profissionalização da política também tem sido apontada como


uma necessidade do funcionamento das democracias modernas e não
apenas como o seu efeito. Segundo Sáez e Freidenberg (2002, p. 138), o
avanço da democracia na América Latina nos últimos tempos:
supõe um processo triplo. A necessidade de articular regras de
jogo assumidas pela maioria e que ao mesmo tempo compuses-
sem espaços organizativos mínimos nos quais se realizasse a
competição política. A incorporação da mobilização social atra-
vés de formas de participação e de representação, e, finalmente,
a criação de canais de seleção de pessoal político que liderasse e
gerisse a política cotidiana. Essas três faces se referem a temas
recorrentes da literatura das ciências sociais e aludem, em uma
terminologia mais técnica, à institucionalização do regime políti-
co, à intermediação entre as demandas da sociedade e o poder,
e à profissionalização da política.

Na teoria democrática contemporânea, formulada por Robert Dahl


(2000), um princípio fundamental é a existência de vários grupos de
pressão autônomos que conseguem se organizar em associações e
defender os seus diferentes interesses. Essa democracia só pode se
realizar em uma sociedade pluralista na qual os principais agentes so-
ciais tenham condição de participar da vida política, tanto pela pres-
são quanto pelo exercício dos cargos políticos (LOURENÇO, 2017). Por
isso, alguns autores têm questionado o alcance dessa teoria na com-
preensão da realidade latino-americana, sublinhando que os longos
governos de ditadura, aqui vivenciados, marcaram de forma profunda
as nossas instituições e que, portanto, será necessário percorrer um
longo caminho para que se possa constatar, nessa parte do continente,
aquilo que o teórico americano definiu como poliarquia.

A democracia política, chamada por Dahl (2000) de poliarquia, de-


pende expressamente de algumas condições formais para sua exis-
tência, ou seja, condições básicas para a existência de um regime

O Estado e o pensamento político 37


politicamente democrático, com eleições livres, voto universal, liberda-
de de expressão e de associação, além da possibilidade de vigilância e
responsabilização daqueles que exercem os cargos públicos eletivos.
Entretanto, as sociedades nas quais existe muita desigualdade rara-
mente conseguem desenvolver um sistema com condições de efetiva
competição para todos os setores da sociedade. Assim, mesmo que
haja eleições com voto universal, a democracia poderá encontrar
dificuldade de se realizar se as condições de liberdade e equidade na
organização dos grupos que irão competir nas eleições não existirem.

A participação da sociedade no Estado é fundamental, pois somente


ele tem a legitimidade e legalidade para ordenar a sociedade. Nesse
sentido, os modelos democráticos têm buscado permitir a represen-
tação dos diversos grupos de forma mais equitativa nos espaços pú-
blicos de decisão. Entretanto, desde o século XIX alguns pensadores
da política alertavam sobre a dificuldade da participação das massas.
Segundo eles, a classe política ou classe dirigente é extremamente im-
portante, uma vez que toma as decisões e determina o caminho que a
sociedade deve percorrer. Somente ela terá a capacidade de se orga-
nizar, pois a sua condição de minoria facilita esse processo, enquanto
o mesmo é inviável em relação às massas. A impossibilidade de orga-
nização da maioria é também a razão da manutenção da sua condição
de governados.

Mais do que a condição de minoria organizada, ela possuiria tam-


bém os recursos socialmente valorizados, permitindo-lhe impor a sua
dominação. Somente a condição de minoria não explica a organização
atingida pela classe política, por isso, esses pensadores alertam para
o fato de que essa minoria governante possui interesses semelhan-
tes partilhados, o que a torna coesa e a impulsiona a se organizar.
Perissinotto (2009, p. 30) afirma que:
poderíamos dizer que, de um lado, a condição de minoria é o
requisito formal necessário para um grupo se transformar em
classe dirigente, já que uma maioria não conseguiria se organi-
zar e exercer o domínio político; por outro lado, entretanto, uma
determinada comunidade de interesses (religiosos, econômicos,
militares, funcionais) torna-se o requisito substantivo para expli-
car por que aquela minoria se reúne e age de forma coordena-
da, já que a mera condição de minoria não seria suficiente para
tanto. Enfim, um grupo, para dominar, precisa ser minoria (via-
bilidade técnica da ação conjunta organizada), mas isso não é

38 Ciências Políticas
suficiente; precisa também ter interesses em comum (o que gera
uma motivação para agir coletivamente e impor o seu domínio
sobre outros grupos).

Na continuidade dessa visão pessimista sobre a possibilidade de


participação das massas no Estado, Robert Michels (1982 apud PE-
RISSINOTTO, 2009, p. 79), um importante autor alemão do século XIX,
defendeu a ideia de que “as organizações não são meros instrumen-
tos a serviço de grupos sociais. Pelo contrário, quando uma organiza-
ção se forma e se consolida, ela gera interesses próprios que acabam
por se sobrepor aos interesses daqueles que ela, a princípio, deveria
representar”.

O autor não acredita na realização da democracia, pois, segundo


ele, ela necessita de uma série de organizações para garantir o seu fun-
cionamento, mas, ao realizá-las, estas se colocam em oposição aos in-
teresses democráticos, pois geram uma elite técnica que ocupa e dirige
as massas. O conceito de democracia que Michels adotava era, entre-
tanto, uma definição de democracia socialista do século XIX, de acor-
do com a qual democracia significava autogoverno popular, em que as
massas decidiriam seus destinos em assembleias públicas.

Portanto, a democracia seria um regime inoperante por questões


técnicas, pois multidões decidindo em assembleias públicas era algo
impossível. Decorrente dessa incapacidade, surgiriam sempre os re-
presentantes, ou seja, uma pequena elite de líderes. Michels (1982) afir-
ma que as massas necessitam de líderes ou, mais precisamente, de se
submeter a um chefe e que essa tendência universal gera a formação
de uma minoria oligárquica que comanda. Para o autor, nas democra-
cias contemporâneas, quanto mais complexas se tornam as funções,
maior será a separação entre a massa e os que a comandam, devido
ao próprio conhecimento técnico que as funções nas organizações de-
mocráticas exigem.

Contudo, nos dias atuais buscamos compreender a democracia


como um regime conflituoso entre o que ela é historicamente em cada
país e sua busca por ser um modelo ideal que represente a todos. Po-
demos dizer que é exatamente essa relação entre o real e o ideal que
alimenta o Estado Democrático de Direito.

Para finalizar, é importante salientar que o poder do Estado é um


poder político, jurídico e bélico ao mesmo tempo. Na próxima seção

O Estado e o pensamento político 39


discutiremos as principais teorias ou concepções sobre o surgimento
do Estado e, por consequência, sobre os modelos defendidos pelos au-
tores como sendo os mais adequados para a sociedade.

2.3 Concepções sobre o nascimento do Estado


Vídeo As principais teorias da origem do Estado são a natural (jusnaturalis-
ta), que buscou desvincular os valores humanos da religião; a teológica
(religiosa), que afirma que o Estado foi criado por Deus e que existe um
direito natural que precede o direito positivo; e a contratualista, para a
qual o Estado teve origem em um pacto entre os homens, em que estes
cedem parte de seus direitos em prol de um grupo de pessoas e que
está relacionada à concepção de interesse coletivo.

2.3.1 Concepção natural


A concepção natural, também conhecida como jusnaturalista, bus-
cou explicar a necessidade do Estado de modo desvinculado da religião;
sua formulação se deu no final da Idade Média e início da Moderna.
Para o jusnaturalismo, o Estado deveria existir devido às necessidades
da natureza humana. De acordo com essa concepção, existe um direito
natural do homem que é anterior ao direito positivado. Ou seja, mes-
mo antes das comunidades políticas instituírem as leis dos homens,
haveria uma lei preexistente na natureza, um direito que todo homem
carrega consigo já no nascimento.
Segundo a teoria do direito natural, o Estado teve sua origem na
própria sociedade e na ordem regular das coisas, que, com seu
desenvolvimento natural, legitimou o poder como decorrência
desse desenvolvimento. No direito natural os princípios que im-
peravam eram os de que ninguém deve prejudicar ninguém e
que deve dar a cada um o que é seu. (BASTOS, 1999, p. 38)

A questão central é que logo se percebeu que era parte da neces-


sidade da natureza humana a existência de um poder administrador.
Assim, o Estado é visto como uma entidade de origem natural devido
à necessidade humana na busca de um modelo perfeito de ordem ju-
rídica e de vida social. Essa discussão sobre o surgimento da socieda-
de e do Estado como fruto da necessidade humana foi explorada na
seção 1.1, por isso não iremos nos aprofundar mais.

40 Ciências Políticas
2.3.2 Concepção teológica
Outra concepção sobre a origem e justificativa da existência do Es-
tado é a teológica, segundo a qual as normas surgem para controlar
os ímpetos humanos e para servirem de veículos para a realização do
bem comum e a proteção individual de cada um. Uma parcela dos de-
fensores dessa concepção afirmava que:
o Estado era obra imediata de Deus, e que ele próprio designaria
o homem ou a família que deveria exercer autoridade estatal.
Essa ideia contribuiu de maneira significativa para aumentar a
tendência absolutista existente nas monarquias da Idade Média.
Essa corrente denominava-se “teoria pura do direito divino so-
brenatural”, tendo muitos adeptos na França. Vale dizer que
nessa época os reis participavam de uma cerimônia religiosa
para serem investidos, onde eram ungidos por Deus. (BASTOS,
1999, p. 37)

Era uma forma de legitimar o poder dos soberanos e ao mesmo


tempo estabelecer quem teria o direito de governar. Aqueles que eram
descendentes da monarquia teriam o direito divino ao poder. Era uma
justificativa amparada em fatores sobrenaturais. Também defendendo
o poder absoluto, a concepção contratualista de Thomas Hobbes bus-
cou uma explicação terrena e não sobrenatural para justificar o poder
dos monarcas absolutistas.

2.3.3 Concepção contratualista


Para os contratualistas, somente a vontade humana justifica a exis-
tência da sociedade. Para autores como Hobbes, que viveu entre 1588
e 1679, a sociedade não é um fato natural, mas resulta de um contrato.

Na obra conhecida popularmente como Leviatã, Hobbes (2014) de-


fende a ideia de que, antes do surgimento do Estado, nós vivíamos em
um estado de natureza no qual prevalecia o instinto sobre a razão. Nes-
se estado de natureza, o homem seria lobo do próprio homem, seria a
guerra de todos contra todos devido à igualdade existente entre todos.
Como todos eram iguais, na ausência de um poder estabelecido que
determinasse quem tinha direito a que, todos se sentiam no direito a
todas as coisas. Então, para evitar que alguém viesse a atacar e tomar
as propriedades individuais do homem, principalmente sua vida, como

O Estado e o pensamento político 41


forma de proteção ele acabava por atacar antes. Para o autor, o estado
de propensão a atacar era chamado de estado de guerra de todos contra
todos. Era justamente por nos sentirmos ameaçados que acabávamos
atacando, então vivíamos de imaginação.
ele não afirma que os homens são absolutamente iguais, mas que
são “tão iguais que”: iguais o bastante para que nenhum possa
triunfar de maneira total sobre outro. Todo homem é opaco aos
olhos de seu semelhante – eu não sei o que o outro deseja, e por
isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude
mais prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que
quero, também é forçado a supor o que farei. Dessas suposições
recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável para cada
um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para
evitar um ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os
homens. Por isso, se não há um Estado controlando e reprimin-
do, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais racional que
eu posso adotar (é preciso enfatizar esse ponto, para ninguém
pensar que o “homem lobo do homem”, em guerra contra todos,
é um anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no
estado de natureza). (RIBEIRO, 2002, p. 55, grifo do original)

Como consequência dessa insegurança que Hobbes afirma servir


para garantir a vida e a segurança, utilizamos nossa razão para buscar
a sobrevivência e resolvemos aderir ao contrato para fundar um poder
centralizado que possa determinar os direitos de cada um, acabando
com os conflitos do estado de guerra de todos contra todos. Assim, é
possível garantir a segurança e a vida.

Nossa incapacidade para viver em segurança resulta, também, das


nossas paixões. Hobbes (2014, p. 75) via com desilusão a natureza hu-
mana e afirmava que:
os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros
(e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não exis-
te um poder capaz de manter todos em respeito. Porque cada
um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor
que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais
de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na
medida em que a tal se atreva (o que, entre os que não têm um
poder comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente
longe para levá-los a destruir-se uns aos outros), por arrancar
de seus contendores a atribuição de maior valor, causando‑lhes
dano, e dos outros também, através do exemplo. De modo que
na natureza do homem encontramos três causas principais de

42 Ciências Políticas
discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e
terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros
tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a
reputação.

Foi para obter segurança que os homens, possuidores dessas pai-


xões, abriram mão do seu direito a todas as coisas e aderiram a um
contrato que transferia o direito de decidir sobre o que teriam direito
para o soberano. Para que não retornássemos ao estado de natureza,
Hobbes afirmava que somente o soberano poderia ter poder de man-
dar nos súditos. O poder deveria ser inquestionável, resultante unica-
mente da vontade do homem e consistiria na transferência de direitos.
Então, passa-se do estado de natureza para o estado social, em que a
razão supera a paixão.

Assim, o pacto do qual nasceria esse Estado seria um pacto de sub-


missão e o Estado seria absolutista. A sociedade surgiria com esse con-
trato e seria formada por súditos. Hobbes acreditava que como todos
eram iguais no estado de natureza, onde reinava a insegurança, se
todos fossem iguais no Estado, a insegurança permaneceria. Por isso
seria necessário escolher um indivíduo que se diferenciaria dos demais
e teria poder absoluto para organizar a vida coletiva, fundando, assim,
a sociedade com a garantia da segurança.

Foi para garantir a vida que os indivíduos abriram mão da sua liber-
dade e aderiram ao contrato de subordinação ao Estado Absolutista. 4
Assim, o único dever do Estado seria garantir a vida. A teoria hobbesia- Locke nasceu em 1632 em uma
família burguesa da cidade
na situa o nascimento do Estado no início do século XVI, quando alguns
de Bristol, na Inglaterra. Em
monarcas conseguiram unificar seu território e centralizar o poder, su- 1652 foi estudar em Oxford,
perando o poder dos nobres em seu território, como foi o caso de Por- formando-se em Medicina e
tornando-se posteriormente
tugal. O Estado Absolutista foi a primeira forma de Estado Moderno.
professor daquela universidade.
Outro importante contratualista, que discutiu o nascimento do Esta- Em 1666 foi requisitado como
4 médico e conselheiro do lorde
do Moderno, foi John Locke , que viveu entre 1632 e 1704. Em 1689-90, Shaftesbury, destacado político
ele publicou suas principais obras: Carta sobre a tolerância, Ensaio sobre liberal, que foi o mentor político
o entendimento humano e Dois tratados do governo civil. Para ele, o esta- de Locke, exercendo grande
influência em sua formação
do de natureza é um estado pré-social e pré-político. Diferentemente liberal. Além de defensor da
de Hobbes, ele defende que o período anterior ao contrato não era liberdade e da tolerância
religiosas, Locke é considerado
de guerra de todos contra todos, mas era regido pela liberdade e pela
o fundador do empirismo,
igualdade. Então, os homens não teriam aderido a um contrato de sub- doutrina segundo a qual
missão, mas de consentimento, pois eles já teriam uma forma inicial de todo conhecimento deriva da
experiência (MELLO, 2002).
organização.

O Estado e o pensamento político 43


Para justificar o porquê de os indivíduos terem cedido seu direito
de arbitrar (fazer as leis e aplicá-las) sobre si mesmos, Locke afirma
que mesmo no estágio pré-social, no relacionamento com os outros
homens, poderiam ocorrer desentendimentos e, para resolver esses
conflitos, seria importante haver o Estado. Ele funcionaria como uma
espécie de árbitro imparcial que, ao resolver os conflitos da sociedade,
economizaria o tempo dos seus integrantes para se dedicarem a outras
atividades, como plantio, comércio etc.

Nesse sentido, a sociedade política seria o resultado do consenti-


mento de todos. Por isso, Locke defendia o Estado Liberal contra o Es-
tado Absolutista. O autor afirmava que o verdadeiro sentido da adesão
ao contrato era criar um Estado para garantir os direitos dos homens
da sociedade civil. O Estado deveria garantir os direitos naturais do ho-
mem à propriedade. Essa propriedade seriam os bens, a liberdade e a
vida. Por isso, defendia a tese de que é justo eliminar um Estado que
usurpa os direitos de liberdade. A liberdade é um dos direitos naturais
e não faz sentido criar um Estado que, ao contrário de garantir direitos,
venha a usurpá-los. Então, com o contrato de consentimento, os ho-
mens criariam o Estado Liberal e a sociedade civil – e não de servos do
Estado como afirmava Hobbes.
Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade
e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil
e ele é considerado por isso o pai do individualismo liberal. [...]
Locke forneceu a posteriori a justificação moral, política e ideoló-
gica para a Revolução Gloriosa e para a monarquia parlamentar
inglesa. Locke influenciou a revolução norte-americana, onde a
declaração de independência foi redigida e a guerra de liberta-
ção foi travada em termos de direitos naturais e de direito de
resistência para fundamentar a ruptura com o sistema colonial
britânico. Locke influenciou ainda os filósofos iluministas fran-
ceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a
Grande Revolução de 1789 e a declaração de direitos do homem
e do cidadão. E, finalmente, com a Grande Revolução as ideias
“inglesas”, que haviam atravessado o canal da Mancha e esta-
belecido uma cabeça de ponte no continente, transformaram-
-se nas ideias “francesas” e se difundiram por todo o Ocidente.
(MELLO, 2002, p. 88-89)

Além disso, a obra de Locke foi considerada fundamental para inspi-


rar os movimentos de luta pela liberdade dos séculos XVII e XVIII.

44 Ciências Políticas
5 5
Na continuidade do debate, Jean-Jacques Rousseau , importante
Rousseau tinha origem humilde;
filósofo, teórico político e escritor do Iluminismo, e que viveu entre
por ser filho de relojoeiro, en-
1712 e 1778, afirma na obra Do contrato social que no estado de na- controu dificuldades para entrar
tureza o homem é essencialmente bom. Em sua obra, ele procurou no mundo das letras. Foi um
filósofo à margem dos grandes
discutir os nomes de seu século, mas nem
temas mais candentes da filosofia política clássica, tais como a por isso se afastou das principais
passagem do estado de natureza ao estado civil, o contrato so- polêmicas de sua época.
cial, a liberdade civil, o exercício da soberania, a distinção entre o
governo e o soberano, o problema da escravidão, o surgimento + Saiba mais
da propriedade, serão tratados por Rousseau de maneira exaus-
O Iluminismo foi um movimen-
tiva, de um lado, retomando as reflexões dos autores da tradi-
to cultural que se desenvolveu
cional escola do direito natural [...] e Hobbes e, de outro, não na Inglaterra, Holanda e França,
poupando críticas pontuais a nenhum deles, o que o colocará, nos séculos XVII e XVIII, período
no século XVIII, em lugar de destaque entre os que inovaram a que ficou conhecido como
forma de se pensar a política, principalmente ao propor o exer- século das luzes devido aos
cício da soberania pelo povo, como condição primeira para a sua novos saberes científicos que
surgiram.
libertação. E, certamente, por isso mesmo, os protagonistas da
revolução de 1789 o elegerão como patrono da Revolução ou
como o primeiro revolucionário. (NASCIMENTO, 2002, p. 194)

Foi na crítica à concepção de Hobbes que Rousseau afirmou que


o homem era bom e livre e obedecia à própria vontade no estado de
natureza. Então poderíamos perguntar: se era tudo bom, por que os
homens aderiram ao contrato e fundaram o Estado? Afinal, com a
fundação do Estado os indivíduos não podiam mais fazer as próprias
leis, julgar e executar, nem mesmo utilizar a violência de maneira
legítima. Com a criação do Estado, essas funções passaram a ser
centralizadas nele.

Rousseau responde a essa questão afirmando que os homens


foram enganados e, acreditando estarem aderindo a um modelo efi-
caz, acabaram por se tornar servos do Estado. Contra o Estado Mo-
derno Absolutista, defendia que era necessário realizar um contrato
legítimo composto de partes em condição de igualdade (sociedade
de iguais – sem nobres e plebeus). Segundo o autor, se o contrato
fosse legítimo, o que resultaria seria o Estado Democrático, no qual
o povo é soberano. Nesse contrato o povo é a parte ativa – pois ocu-
paria os cargos públicos (eletivos ou não) – e passiva – por ser a base
do poder do Estado mesmo quando não está diretamente exercen-
do o poder – do Estado.

O Estado e o pensamento político 45


Fundado em um contrato legítimo entre partes iguais, o Estado De-
mocrático deveria representar todos igualmente. Se isso se realizasse,
as leis aprovadas pelo Parlamento (representantes de toda a sociedade
sem distinções) representariam a vontade do povo e, por consequên-
cia, obedecer às leis do Estado seria um ato de liberdade. Para esse
autor, a sociedade surge da vontade humana e o povo, ao participar
ativamente do processo político, seria soberano.

Finalmente, podemos observar que existe mais de uma percepção


sobre a origem do Estado e, segundo a justificativa adotada para com-
preender seu surgimento, irá variar o modelo de Estado pretendido
como ideal. De modo geral, todas essas concepções nos ajudam a com-
preender os modelos de Estado concretos que existiram na história e
que ainda existem na atualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos dias atuais, a defesa de um poder autoritário e excessivamente
centralizado ainda aparece como solução para a segurança. É justamente
a ideia de que os indivíduos são incapazes de se autogovernar ou tomar
decisões importantes e corretas que sustenta o discurso de defesa de um
Estado sem a participação da sociedade civil.
Também podemos ouvir as defesas do Estado Liberal, que, preocu-
pado com as propriedades da sociedade civil, deve somente funcionar
como um árbitro imparcial, sem interferir demasiadamente nas questões
econômicas e sociais.
Por fim, assim como ocorreu nos séculos XVII e XVIII, o Estado Demo-
crático de Direito, que resultou da teoria defendida por Rousseau, tem
sido questionado na atualidade em alguns países nos quais se desenvol-
veu o discurso autoritário. Podemos perceber que a sobrevivência ou não
desse modelo voltou ao debate. Contrária aos que defendem o modelo
autoritário com o objetivo de garantir a segurança, a crença rousseau-
niana no potencial do modelo democrático e na garantia dos direitos
individuais e coletivos se mostra a melhor forma de alcançarmos uma so-
ciedade melhor, mais equitativa, na qual o povo possa ser representado e
as liberdades sejam garantidas.

46 Ciências Políticas
AMPLIANDO SEUS CONHECIMENTOS
•• WEBER, M. Os três tipos puros de dominação legítima. Rio de Janei-
ro: VGuedes Multimídia, 2008.

Essa obra trata das formas de dominação legítima. Com a leitura


dela será possível compreender melhor a relação entre poder, do-
minação e autoridade e, ainda, aprofundar o conhecimento sobre
as principais características do Estado de Direito contemporâneo.

•• PERISSINOTTO, R. M. Hannah Arendt, poder e a crítica da “tra-


dição”. Lua Nova, n. 61, p. 115-138, 2004. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/ln/n61/a07n61.pdf. Acesso em: 24 out. 2019.

Nesse texto o autor irá explorar o conceito de poder no trabalho


da filósofa política Hannah Arendt. Por ter se focado na discussão
sobre o totalitarismo, o conceito de poder da autora realiza um in-
teressante diálogo com a violência. O artigo complementa o que
foi trabalhado neste capítulo, no qual exploramos a perspectiva
tradicional.

ATIVIDADES
1. Com base na discussão deste capítulo, explique o que é poder.

2. Como podemos definir o poder do Estado?

3. Explique comparativamente as diferenças de concepções defendidas


pelos contratualistas.

REFERÊNCIAS
BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
DAHL, R. Democracia. Lisboa: Temas e Debates, 2000.
DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FLORENZANO, M. Sobre as origens e o desenvolvimento do Estado moderno no Ocidente. São
Paulo: Lua Nova, 2007.
HOBBES, T. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. de
Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2014.
LEBRUN, G. O que é poder. São Paulo: Brasiliense, 1981.
LOURENÇO, A. O gênero do candidato na composição da elite política no Poder Legislativo
do estado de Mato Grosso no período de 1945 a 2007. In: CONGRESSO INTERNACIONAL
DE HISTÓRIA, 8., out. 2017, Maringá. Anais [...]. Maringá: UEM, 2017. Disponível em: http://
www.cih.uem.br/anais/2017/trabalhos/3786.pdf. Acesso em: 28 out. 2019.

O Estado e o pensamento político 47


MALUF, S. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2011.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Grijaldo, 1977.
MELLO, L. I. A. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, F. C. Os clássicos da
política. São Paulo: Ática, 2002. v. 1.
MICHELS, R. Sociologia dos partidos políticos. Brasília: Editora da UnB, 1982.
NASCIMENTO, M. M. Rousseau: da servidão à liberdade. In: WEFFORT, F. C. Os clássicos da
política. São Paulo: Ática, 2002. v. 1.
PERISSINOTTO, R. M. As elites políticas: questões de teoria e método. Curitiba: InterSaberes,
2009.
RIBEIRO, R. J. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, F. C. Os clássicos da política. São
Paulo: Ática, 2002. v. 1.
SÁEZ, M. A.; FREIDENBERG, F. Partidos políticos na América Latina. Opinião Pública,
Campinas, v. 8, n. 2, p. 137-157, 2002. Disponível em: https://www.cesop.unicamp.br/
vw/1IMH7R6swNQ_MDA_64411_/OP-v8n2.pdf. Acesso em: 18 out. 2019.
WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Livraria Pioneira
Editora, 1976.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999. v. 2.

48 Ciências Políticas
3
O Estado Moderno
Neste capítulo, buscaremos compreender como nascem e como
são extintos os Estados. Iremos também analisar as discussões
sobre as funções do Estado e a possibilidade de sua eficácia e, por
fim, buscaremos delimitar quais são os elementos que formam o
Estado Moderno e suas configurações na contemporaneidade.

3.1 Nascimento e extinção do Estado


Vídeo O Estado Moderno é considerado por alguns autores como o re-
sultado de um alto nível de desenvolvimento da sociedade humana
(BASTOS, 1999; MALUF, 2007). Para outros, ele representa um estágio
do desenvolvimento político e da racionalização burocrática no qual o
poder foi centralizado e a violência legítima passou a ser monopólio da
administração pública (WEBER, 1999). Ainda, para autores como Elias
(1993), o Estado Moderno é um marco no processo civilizatório da so-
ciedade ocidental.

Assim, para compreender o nascimento do Estado Moderno e suas


posteriores variações, é necessário buscar a história concreta dos paí-
ses em que ele surgiu. Como salientamos no capítulo anterior, a maior
parte da literatura cita o nascimento do Estado Moderno no século XVI,
mas é importante frisar que os Estados não surgiram na mesma época
em todos os países. Eles foram surgindo durante a história do desen-
volvimento capitalista e da mudança na distribuição do poder entre
nobreza e monarquia em cada país.

Para que houvesse a centralização do poder de legislar, julgar, exe-


cutar e formar um exército nacional com poder coercitivo considerado
legítimo e controlado pelo Estado, foi necessário que a nobreza dos
feudos perdesse seu poder de administrar a si própria. Durante o sis-

O Estado Moderno 49
tema feudal predominou a descentralização administrativa e bélica.
Cada feudo deveria se autogerir. A economia era predominantemente
agrícola e os julgamentos e os exércitos eram privados e estavam sob a
tutela dos senhores feudais.

Os monarcas existiam, todavia não possuíam um poder centraliza-


do e muito menos um exército nacional. Em tempos de invasão de ou-
tros países, o monarca precisava contar com os exércitos dos senhores
feudais para defendê-lo. Não havia também uma burocracia desenvol-
vida ou um sistema de finanças e cobranças de impostos nacionais que
poderia gerar a receita para custear a centralização do poder adminis-
trativo. Não havia recursos para manter um exército nacional ou um
corpo de funcionários públicos que pudesse cuidar do funcionamento
da sociedade, dos tribunais etc.

Por isso, autores como Weber (1999) e Elias (1993) afirmam que a
burocratização e centralização do poder de administrar concentrado
no Estado foi a consequência do desenvolvimento do capitalismo, da
racionalização que esse sistema exigia, da centralização da cobrança
de tributos e da perda de poder dos senhores feudais para o monarca.
Não obstante, é evidente que alguma coisa mais acontece nesse
contexto, além da emergência fortuita de uma série de grandes
príncipes e da ocasional vitória de numerosos senhores territo-
riais ou de reis sobre estados, mais ou menos pela mesma época.
Não é sem motivo que falamos em uma era de absolutismo. O
que encontra expressão nessa mudança na forma da dominação
política é uma mudança estrutural, como um todo, na sociedade
ocidental. Não apenas reis isolados expandem seu poder, mas,
claramente, as instituições sociais da monarquia ou do principa-
do adquirem nova importância no curso de uma transformação
gradual de toda a sociedade, uma importância que simultanea-
mente confere novas oportunidades de poder aos maiores prín-
cipes. (ELIAS, 1993, p. 13)

O autor alerta para o fato de que a centralização do poder nas mãos


dos príncipes e reis resulta de uma mudança nas estruturas sociais, ou
seja, foi o nascimento e a consolidação do capitalismo paralelamente
ao declínio da economia de trocas (feudal) que possibilitou o surgimen-
to de uma nova classe social representada por comerciantes e artesões
que viviam nas novas cidades cercadas por muros por volta dos séculos
XIV e XV.

50 Ciências Políticas
As cidades eram conhecidas como burgos e, por isso, os que mora-
vam nelas ficaram conhecidos como burgueses. Foi nesse novo contex-
to que surgiram as oportunidades para fortalecer o poder dos reis com
o apoio da burguesia. Essa nova classe buscava, na figura do monarca,
a proteção contra a nobreza feudal e seus valores ligados à vida rural
e à tradição.

O capitalismo necessitava de uma nova mentalidade organizacional na


qual incluía um poder político e jurídico que lhe assegurasse os negócios.
A burguesia, então, colaborou e financiou o fortalecimento dos monarcas
e, por consequência, a formação dos primeiros Estados Modernos.

Dessa forma, os primeiros Estados se formaram paralelamente à


consolidação do próprio sistema capitalista mercantilista e suas pri-
meiras versões foram predominantemente absolutistas. Ou seja, a
primeira forma de Estado Moderno foi o Estado Absolutista ou Estado
Monárquico. Naturalmente, os Estados variavam em nível de absolutis-
mo conforme a história de cada país que permitiu ou não a ausência
de mecanismos de controle do poder dos monarcas, pois o fato de o
poder estar centralizado no Estado não implicava a obrigatoriedade da
ausência de controle sobre o poder do governante.

No século XVI, Portugal figurava entre os principais países comer-


ciais, o que favoreceu a centralização do poder e a criação do Estado
Moderno. As práticas marítimas portuguesas favoreceram o cresci-
mento das cidades portuárias em oposição à economia rural praticada
nos feudos. A vida citadina acabou gerando também maior diversidade
profissional e a formação de novos valores e ideias que se apresenta-
vam incompatíveis com as ideias tradicionais da cultura medieval.

Essa nova estrutura gerou mudanças nas ideias, na economia e na


política, pois o Estado passou a ser visto como um meio para garantir
a liberdade frente à força dos nobres feudais. Portanto, com essas mu- + Saiba mais
danças e a centralização do poder nas mãos dos monarcas, nasceram Assembleia constituinte trata-se
os primeiros Estados Modernos. de um grupo de pessoas (políti-
cos) escolhidas para se reunirem
Posteriormente, com a Revolução Francesa de 1789, houve a con- e elaborarem ou modificarem a
solidação dessa busca da liberdade na figura do Estado e, com esse Constituição. Dessa assembleia
resulta um poder conhecido
movimento, aos poucos surgiram os chamados Estados de Direito. Nes- como poder constituinte. Esse
se modelo, o poder do Estado deveria ser controlado por leis, que, de processo é comum nos Estados
de Direito que são regidos por
modo geral, eram estabelecidas por um conselho ou uma assembleia
uma Constituição.
constituinte.

O Estado Moderno 51
Formalmente, podemos dividir as modalidades do nascimento dos
Estados em originário, secundário e derivado. O modelo originário foi
o que apresentamos até aqui. Ele resulta do processo histórico viven-
ciado pela própria sociedade. Podemos afirmar que “o Estado nasce
no próprio meio onde se estabelece a sociedade, nasce diretamente
do povo, sem influência de fatores externos” (BASTOS, 1999, p. 52), ou
seja, nasce da evolução e desenvolvimento natural da sociedade.

O modelo secundário surge com base na união ou divisão de Estados


já existentes. Nesse caso, seu nascimento resultaria da união entre Esta-
dos e, por consequência, geraria as seguintes modalidades: confederação,
federação, união real e união pessoal. Segundo Bastos (1999, p. 52),
entende-se por confederação a união permanente entre Estados
independentes e soberanos com vistas à realização de empreen-
dimentos de interesse comum, quais sejam, a defesa exterior e
a manutenção da paz interna. A confederação tem por objetivo,
na maioria das vezes, o fortalecimento da defesa desses Estados
contra um inimigo comum externo. Porém não tem o condão de
extinguir a soberania dos Estados que a compõem.

Então, podemos observar que a confederação seria a união entre


Estados independentes e soberanos para a realização dos interesses
comuns. Dessa forma, na confederação, cada Estado mantém o seu
poder jurídico sobre seu território e sobre o seu povo, ou seja, cada
Estado mantém a sua soberania. Já a federação se trata de uma união
nacional na qual, em um mesmo território, existem pelo menos duas
ordens políticas: a estadual e a federal. Para Bastos (1999, p. 52), “a
federação é uma união nacional mais restrita e indissolúvel, em outras
palavras, os Estados passam a constituir uma única pessoa jurídica de
direito público internacional, ou seja, um só Estado soberano”. O Brasil
é um exemplo de federação, ou seja, nós somos formados por vários
estados conhecidos como unidades federativas (exemplos: São Paulo,
Minas Gerais, Paraná etc.) que formam um Estado Nacional, reconheci-
do internacionalmente como um Estado soberano.

O autor ainda afirma que “uma característica central do Estado fe-


deral reside no fato de que sobre um mesmo território e povo inci-
dem harmonicamente duas ordens políticas: a estadual e a federal”
(BASTOS, 1999, p. 52). Seria o caso da existência do poder federal e do
estadual dentro de um mesmo país, como ocorre no Brasil. Existem,
inclusive, legislações diferentes, como é o caso da Constituição Federal

52 Ciências Políticas
e de constituições estaduais. Naturalmente, as leis federais prevalecem
sobre as estaduais, contudo, elas existem paralelamente dentro do ter-
ritório e regulamentam a vida do povo.

Continuando a analisar os Estados que surgem da união, o autor


salienta que existem mais duas possibilidades de essa acontecer: uma
seria a união real e a outra seria a união pessoal.
Deve-se entender por união real a união de dois países formando
um só Estado para efeitos externos, embora internamente ambos
conservam sua autonomia. O novo Estado é governado por uma
única autoridade e caracterizado por ser uma situação perma-
nente. [...] A união pessoal ocorre quando dois ou mais Estados
são governados por um único monarca. Essa união decorre, na
maioria das vezes, em razão do princípio de sucessão hereditária
dos reis ou de princípios convencionais (por meio de acordo inter-
nacional) de um determinado monarca, todavia, cumpre advertir
que esses dois Estados não perdem sua autonomia interna nem
externa. A união pessoal mostra-se como algo temporário, na me-
dida em que, quando chega ao fim da dinastia, os Estados voltam
a sua condição anterior. Como exemplo de união pessoal encon-
tramos os reinos de Castela e Aragão, governados por Dona Joana,
conhecida como a Louca. (BASTOS, 1999, p. 52)

A união real seria uma união entre países para defender seus inte-
resses frente a outros países no cenário internacional. Existiria, portan-
to, uma única representação na política internacional. Todavia, dentro
de cada território continuaria a vigorar o Direito, as regras e os cos-
tumes de cada país singularmente. Na união pessoal, os Estados se
uniriam quando passassem a ser governados por um único monarca.
Em ambos os casos, os Estados que compusessem o novo Estado que
nasceu da união não perderiam a sua autonomia.

Os Estados também podem surgir da divisão. Essa possibilidade re-


sultaria da divisão nacional ou sucessorial.
A divisão nacional acontece quando uma determinada região
integrante de um Estado consegue a sua independência, desvin-
culando-se por completo de seu Estado-origem. A divisão suces-
sorial ocorre quando o Estado, que era propriedade do monarca
é dividido entre seus parentes formando-se assim Estados autô-
nomos. (BASTOS, 1999, p. 53)

Na história recente, vimos surgirem novos países (Estados) da se-


paração de outros Estados. Como exemplo podemos citar o caso do

O Estado Moderno 53
Kosovo, que declarou independência da Sérvia em 2008, e do Timor-
-Leste, que se separou da Indonésia em 2002. Para que esses novos
Estados se consolidem é necessário o reconhecimento internacional,
ou seja, os outros Estados devem reconhecer sua independência.

Por fim, existem os Estados que surgem de modo derivado, cujos


nascimentos derivam de movimentos exteriores, como:
colonização, concessão dos direitos de soberania e ação de um
governo estrangeiro. A colonização é uma forma utilizada para
povoar e proteger as terras descobertas de possíveis invasores.
Todavia, há dois tipos de colonização: a de povoamento, que tem
como objetivo povoar as terras e a de exploração, que tem como
intuito extrair as riquezas das colônias. Exemplo: Brasil colônia
de Portugal. A concessão dos direitos de soberania consiste na
outorga de direitos do monarca aos seus principados. Ela era
muito comum na Idade Média. Já por ato de governo deve-se en-
tender a criação de um novo Estado em virtude da simples von-
tade de um eventual conquistador ou de um governante. Como
exemplo podemos citar Napoleão e suas conquistas. (BASTOS,
1999, p. 53)

Esses dois modelos têm em comum a relação de dominação com


os Estados e/ou governos conquistadores ou dominadores. Portanto,
surgem de forma autoritária promovida por um movimento exterior.
Sobre a extinção dos Estados, os autores indicam a existência de cau-
sas gerais e específicas. As gerais seriam devido à falta de um dos seus
elementos constitutivos: território, povo e poder. As específicas podem
1
1 ser por conquista, emigração , expulsão ou renúncia. Seriam os casos
Para Bastos (1999, p. 53), a em que ocorreria a conquista da população por outro Estado.
extinção por emigração ocorre
Se um dos elementos constitutivos estiver ausente, não podemos falar
“quando um povo emigra total-
mente do seu território, devido em Estado. Por isso, a saída do povo de seu território gera a extinção do
a uma variedade de fatores, Estado, assim como ocorre quando um Estado renuncia à sua soberania
como clima, falta de alimentos,
religião etc.” e se incorpora a um novo Estado. De acordo com Bastos (1999, p. 54), um
Estado também pode surgir da incorporação por outro:
A extinção por renúncia aos direitos de soberania, maneira de
desaparecimento espontâneo que se dá quando uma socieda-
de renuncia aos seus direitos de autodeterminação em benefício
de um outro Estado mais forte. É dizer, esse Estado renuncia a
sua soberania e incorpora-se a um novo Estado. Como exem-
plo desse tipo de extinção podemos citar o Estado mexicano do

54 Ciências Políticas
Texas, que se uniu aos Estados Unidos da América. Nesse caso
o Estado entende que lhe é oportuno perder sua soberania para
entrar em uma composição estatal.

Nesta seção, buscamos apresentar algumas considerações referen-


tes às formas de nascimento e extinção dos Estados. A seguir, iremos
discutir sua finalidade e suas funções.

3.2 Finalidade e funções do Estado


Vídeo Se considerarmos que as sociedades criaram os Estados para pro-
mover o bem comum, precisamos refletir sobre o que ele significa nas
sociedades ocidentais e, ainda, quais ferramentas são usadas para
promovê-lo.

Sobre a possibilidade de o Estado promover o bem comum como


sua principal finalidade, a literatura não é unânime. Para alguns au-
tores, considerados mais formalistas, o Estado buscará realizar essa
finalidade por meio do Direito, afinal, de acordo com o artigo 5º da
Constituição Federal (BRASIL, 1988), todos são iguais perante as leis.
Para outros, considerados críticos, a principal finalidade do Estado se-
ria a dominação e a manutenção da desigualdade com base nas leis e
no monopólio da violência legítima. Enquanto para uns o Direito e as
leis são fonte de bem-estar (bem comum), para outros seriam a base
da dominação.

Para a primeira corrente teórica, que acredita que o Direito seja o


caminho para a realização do bem comum, o Estado tem a finalidade
de garantir a segurança jurídica, na legislação e na organização dos
fins que a sociedade estipula para si. Então, sua função seria aplicar e
executar, garantir e proteger os princípios gerais do Direito ou do orde-
namento jurídico. Os estudiosos dessa corrente consideram o Direito
como a essência do próprio Estado, mas salientam que, na realização
do bem comum, o Direito não deve ficar acima dos valores da pessoa
humana e que esses fins estão em constante mutação, pois dependem
das necessidades da sociedade.

Sobre as funções do Estado, podemos definir minimamente cinco


importantes áreas de atuação, como mostra o Quadro 1, a seguir.

O Estado Moderno 55
Quadro 1
Funções do Estado

Função Características
Editar normas, pois somente ao Estado compete essa
função com base na ação do Poder Legislativo. No caso
brasileiro, o Legislativo está divido em federal, estadual
Legislar e municipal. No nível federal, ele é representado pela Câ-
mara dos Deputados e pelo Senado e, no caso da junção
dos dois, pelo Parlamento; no nível estadual, pelas Assem-
bleias Legislativas e, no municipal, pela Câmara Municipal.
Fazer com que as normas sejam cumpridas. Para a rea-
lização dessa função, temos o Poder Executivo. No caso
brasileiro, por ser uma federação, há a divisão em níveis
Executar
federal, estadual e municipal, representados pelo pre-
sidente da República, pelos governos estaduais e pelas
prefeituras municipais.
Cabe ao Estado julgar as infrações às leis que ele próprio
aplica. Nesse sentido, para o Estado manter a ordem pú-
Julgar
Glossário blica, ele necessita do Poder Judiciário. Portanto, o Judiciá-
rio exerce um poder coercitivo sobre a sociedade.
coercitivo: poder que força ou
Gerir a comunicação, o transporte, a saúde, a educação, a
obriga a sociedade a fazer algo.
Administrar cultura, a economia, o comércio, a habitação, a previdên-
cia social etc.
Assegurar a Proteger seu território de ataques externos, assegurar a
segurança soberania e a ordem interna.

Fonte: Elaborado pela autora.

É importante observar que o Estado contemporâneo, principalmen-


te nas democracias, adquiriu uma função social, visando proporcio-
nar o bem-estar de seus integrantes. Ao discutir a origem do Estado,
Giddens (2008) fornece indicativos de outra função exercida por ele.
Para o autor, o Estado também tem uma função civilizatória, principal-
mente pela aplicação das leis e da criação e aplicação de um Direito, ou
seja, um ordenamento jurídico igualmente válido para todo o povo do
país e amparado na força para que seja cumprido. De acordo com o
autor, o Estado é formado por um
aparelho político de governo (instituições como um Parlamen-
to ou Congresso, mais funcionários públicos), que governa um
dado território cuja autoridade é apoiada por um sistema legal e
pela capacidade de usar a força militar para implementar as suas
políticas. (GIDDENS, 2008, p. 425)

Podemos afirmar que a principal finalidade do Estado é,


portanto, agir em prol do povo. Todavia, mesmo em sua versão mais

56 Ciências Políticas
desenvolvida, que é o Estado Democrático contemporâneo, esse
modelo ainda encontra dificuldades no seu funcionamento. Nas
democracias representativas nos deparamos com a complexidade de
um sistema que busca representar todos igualmente. Por isso, autores
como Schumpeter (1961) realizam análises críticas nas quais apontam
os limites da teoria política clássica do Estado Democrático do século
XVIII. Segundo esse autor,
sustenta-se, pois, que existe um bem comum, o farol orientador
da política, sempre fácil de definir e de entender por todas as
pessoas normais, mediante uma explicação racional. Não há, por
conseguinte, razão para não entendê-lo e, de fato, nenhuma ex-
plicação para a existência dos que não o compreendem, salvo a
ignorância (que pode ser remediada), a estupidez e o interesse
antissocial. Ademais, esse bem comum implica soluções definiti-
vas de todas as questões, de maneira que todo fenômeno social
e toda medida tomada ou a ser tomada podem inequivocamente
ser tachados de bons ou maus. O povo deve admitir também,
em princípio pelo menos, que há também uma vontade comum
(a vontade de todas as pessoas sensatas) que corresponde exa-
tamente ao interesse, bem-estar ou felicidade comuns. O único
fato, exceto a estupidez ou interesses sinistros, que pode causar
divergência e explicar a existência de uma oposição é a diferen-
ça de opiniões quanto à rapidez com a qual deve ser procurada
a concretização da meta comum a quase todos. Consequente-
mente, todos os membros da comunidade, conscientes da meta,
sabendo o que querem, discernindo o que é bom do que é mau,
tomam parte, ativa e honestamente, no fomento do bom e no
combate ao mau. Todos os membros, em conjunto, controlam os
negócios públicos. (SCHUMPETER, 1961, p. 300)

O bem comum não é algo exato e pode variar conforme a cultura


dos grupos dentro de uma mesma sociedade. A associação do bem
comum com a soberania popular exclui tanto os conflitos entre os de-
siguais quanto as dificuldades de conciliação entre as vontades indivi-
duais e a vontade coletiva.

Além disso, em sociedades numerosas como as da contempora-


neidade, o povo, de fato, nunca governa, somente autoriza quem irá
governar. Ou melhor, o povo escolhe entre um número limitado de
opções que lhe são apresentadas e com base nessa escolha os eleitos
governam. Bobbio (1986, p. 19) conclui que “quando se diz que no sé-
culo passado ocorreu em alguns países um contínuo processo de de-

O Estado Moderno 57
mocratização quer-se dizer que o número dos indivíduos com direito
ao voto sofreu um progressivo alargamento”.

Com o desenvolvimento do modelo democrático com base no Direi-


to, as finalidades do Estado serão ampliadas. Mais do que a seguran-
ça e a busca do bem público, é preciso garantir a liberdade política, a
liberdade individual e possibilitar aos sujeitos se desenvolverem com
dignidade e condições de participar do processo eleitoral da escolha
dos representantes. Para dar conta dessas novas necessidades, o Esta-
do tem estendido sua área de atuação para o bem-estar social (saúde,
educação, moradia). Portanto, como defende Bobbio (1986, p. 20),
mesmo para uma definição mínima de democracia, [...] não bas-
tam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direi-
to de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões
coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da
maioria (ou, no limite, da unanimidade). É indispensável uma ter-
ceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a deci-
dir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de
alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre
uma e outra.

Então, para esse autor, apenas haver uma extensão do voto para a
maior parcela dos cidadãos e definir as regras do jogo que garantam
que a vontade da maioria irá prevalecer não basta, é necessário que
a liberdade dos indivíduos seja garantida pelo Estado. Ou seja, é uma
função do Estado Liberal, ou Estado Democrático, que a liberdade dos
Glossário indivíduos seja garantida com base em leis e tribunais.

sub lege: sob a lei. No sentido Para que se realize esta condição é necessário que aos chama-
da citação, significa um poder dos a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos
exercido não apenas com base de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de
na lei (qualquer lei, por reunião, de associação, etc. – os direitos à base dos quais nas-
exemplo, uma lei autoritária que
ceu o Estado Liberal e foi construída a doutrina do Estado de
proíbe a formação de partidos
políticos ou sindicatos e orga- Direito em sentido forte, isto é, do Estado que não apenas exerce
nizações civis), mas na lei que o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do
respeita os direitos invioláveis reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis” do indi-
do indivíduo. víduo. (BOBBIO, 1986, p. 20, grifo do original)

Outros críticos, pessimistas sobre a eficácia da democracia repre-


sentativa, argumentaram, no século XIX, que a democracia somente
política seria insuficiente. Para eles, seria essencial que houvesse uma
democracia social paralelamente, pois a desigualdade social, econômi-
ca e cultural impediria os indivíduos de participarem da democracia. Ao

58 Ciências Políticas
contrário de indicar a necessidade de o Estado garantir essas condições
igualitárias, Marx indicou que o melhor seria a eliminação do próprio
Estado. De acordo com Weffort (2011, p. 50, grifos do original),
nada é mais enganoso, porém, do que imaginar que Marx, ape-
gado à “questão social”, tenha chegado a considerar a “questão
política” como um simples reflexo [...]. “Não há dúvida”, diz em
A questão judaica, “que a emancipação política representa um
grande progresso. [...] ela se caracteriza como a derradeira etapa
da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual”.
“Dentro do contexto do mundo atual”, isto é, nos limites das atu-
ais condições de desigualdade social e de exploração econômica.
“Os chamados direitos humanos em sua forma autêntica, sob
a forma que lhe deram seus descobridores norte-americanos
e franceses, [são] direitos políticos, direitos que só podem ser
exercidos em comunidade com outros homens. Seu conteúdo é
a participação na comunidade e, concretamente, na comunidade
política, no Estado.” Marx chama também a esta “emancipação
política” de “democracia política”.

Marx adota o conceito de democracia clássica do século XVIII, ou


seja, uma compreensão de democracia como participação direta do
povo, a chamada democracia direta ou democracia radical. Por isso, a
democracia representativa é considerada limitada.

Para Marx (1969), o Estado homogeneíza os indivíduos e mascara


as desigualdades no formalismo jurídico, ou seja, na ideia de que so-
mos todos iguais perante a lei. Ele era um profundo crítico do Estado
Liberal e da igualdade somente formal herdada da Revolução France-
sa de 1789.
O Estado elimina, à sua maneira, as distinções estabelecidas por
nascimento, posição social, educação e profissão, ao decretar
que o nascimento, a posição social, a educação e a profissão são
distinções não políticas; ao proclamar, sem olhar a tais distin-
ções, que todo o membro do povo é igual parceiro na soberania
popular e ao tratar do ponto de vista do Estado todos os ele-
mentos que compõem a vida real da nação. No entanto, o Esta-
do permite que a propriedade privada, a educação e a profissão
atuem à sua maneira, isto é, como propriedade privada, como
educação e profissão, e manifestem a sua natureza particular.
Longe de abolir estas diferenças efetivas, ele só existe na medida
em que as pressupõe; apreende-se como Estado político e re-
vela a sua universalidade apenas em oposição a tais elementos.
(MARX, 1969, p. 12)

O Estado Moderno 59
Sob essa perspectiva, a finalidade do Estado se amplia e ele pode
ser pensado também como reprodutor do sistema. Essa observa-
ção é pertinente, pois, sendo o Estado um filho do sistema, ele não
poderá agir contra o seu funcionamento sob o risco de afetar sua
própria existência. Ao analisar o Estado na obra A questão judaica, o
autor afirma que:
a democracia política é cristã no sentido de que o homem, não
só um homem, mas todo o homem, é nela considerado como ser
soberano e ser supremo; mas é o homem ignorante, insociável,
o homem tal como é na sua existência fortuita, o homem como
foi corrompido, perdido para si mesmo, alienado, sujeito ao do-
mínio das condições e elementos inumanos, por toda a organi-
zação da nossa sociedade – numa palavra, o homem que ainda
não surge como real ser genérico. A criação da fantasia, o sonho,
o postulado do cristianismo, a soberania do homem – mas do
homem como ser alienado distinto do homem real – é, na de-
mocracia, realidade tangível e presente, máxima secular. (MARX,
1969, p. 20)

Observamos que o autor afirma que a democracia é realizada, em


sua maior parte, por homens alienados que não percebem as verdadei-
ras relações de dominação entre política, economia e cultura. Mesmo
com as limitações à participação desse “homem alienado”, a emancipa-
ção política é considerada fundamental pelo autor.
A emancipação política representa, sem dúvida, um grande pro-
gresso. Não constitui, porém, a forma final de emancipação hu-
mana, antes é a forma final de emancipação humana dentro da
ordem mundana até agora existente. Nem vale a pena dizer que
estamos aqui a falar da emancipação real, prática. (MARX, 1969,
p. 14)

Podemos apreender que a emancipação política, para Marx, é um


primeiro passo para conquistar o que ele chamou de emancipação hu-
mana, ou seja, é necessário haver democracia com a participação dos
cidadãos para que possam exigir do Estado que cumpra a sua finalidade
por meio do exercício das suas funções corretamente desempenhadas.

Até aqui, buscamos resgatar de forma breve a finalidade e as fun-


ções do Estado, assim como algumas apreciações teóricas. Na próxima
seção, definiremos os elementos que o compõem.

60 Ciências Políticas
3.3 Elementos do Estado:
Vídeo território, povo e poder
Podemos afirmar que o Estado é formado por três elementos inter-
-relacionados: povo, território e poder/governo. Com a unificação do
território, o Estado Moderno passa a ser nomeado também como Es-
tado Nacional. Mesmo que existam grupos com diferentes culturas no
território, o Estado irá buscar formar uma única nação. Dessa forma,
nação e Estado se apresentarão como algo indissociável.
Assim, Nação é uma entidade de direito natural e histórico. Con-
ceitua-se como um conjunto homogêneo de pessoas ligadas
entre si por vínculos permanentes de sangue, idioma, religião,
cultura e ideais. A Nação é anterior ao Estado. Aliás, pode ser
definida como a substância humana do Estado. [...] Pode-se dizer,
como Miguel Reale, que a nação “é um Estado em potência”. A
Nação pode perfeitamente existir sem Estado. A distinção entre
as duas realidades mais se evidencia quando se tem em vista
que várias nações podem reunir-se em um só Estado, assim
como também uma só Nação pode dividir-se em vários Estados.
(MALUF, 2007, p. 37, grifos do original)

Para melhor compreender o conceito de Estado, precisamos, antes,


esclarecer os sentidos das palavras população e povo. População pode
ser concebida como um conceito quantitativo, demográfico, que de-
signa a massa total dos indivíduos que vivem em um território e sob
as mesmas leis. Nesse caso, não se exclui estrangeiros, pois todos que
estão no país entrarão na contagem da população, conforme afirma
Maluf (2011, p. 38): “quando se diz que a população do Brasil é de cem
milhões, por exemplo, nesse número não figuram apenas os brasilei-
ros (nacionais), mas a massa total dos habitantes”.

O conceito de povo pode ser compreendido em sentido amplo como


equivalente à população. Porém, em sentido preciso será semelhante
ao conceito de nação. O povo é formado por aqueles reconhecidos pelo
Estado como seus nacionais. Ou seja, são aqueles que estão sob a ju-
risdição do Estado. Um exemplo é o povo brasileiro, essa expressão
representa tanto os nacionais e naturalizados que o Estado reconhece
como brasileiros quanto os integrantes da nação brasileira. Para Bas-
tos (1999, p. 72),

O Estado Moderno 61
povo é o conjunto de pessoas que fazem parte de um Estado. Se
território é o elemento material do Estado, o povo é o seu subs-
trato humano. Não pode, obviamente, haver Estado sem povo. O
que determina se alguém faz ou não parte do povo de um Estado
é o direito. Daí por que ser a nacionalidade um vínculo jurídico. É
por ela que o Estado considera alguém como seu membro.

É o Estado, por meio do Direito, que define quem é o povo de um


território. O povo é uma construção jurídica e, na interpretação de
Bastos (1999), é formado pela união de cidadãos titulares de direitos
e deveres.

Para o Estado, os indivíduos serão considerados nacionais ou es-


trangeiros. Existe uma união criada pelo vínculo de nacionalidade entre
povo e Estado. É por meio do vínculo jurídico da nacionalidade que o
povo é reconhecido como membro de uma sociedade politicamente
organizada, ou, mais precisamente, como membro de um país.

Sendo assim, cada Estado deverá, de modo soberano e por meio


do Direito, definir os termos para o reconhecimento daqueles que ele
considera como seus nacionais. Há Estados que adotam o critério do
local de nascimento, conhecido como jus soli, enquanto outros adotam
o critério da nacionalidade dos pais, conhecido como jus sanguinis. Na
prática, os critérios para nacionalidade podem ser mais complexos,
principalmente quando se trata da solicitação da nacionalidade por um
estrangeiro.

Na atualidade, vemos atletas de um país adquirirem nacionalidade


de outro para que possam representá-lo em campeonatos mundiais
sem que os critérios (jus soli e jus sanguinis) tenham prevalecido. To-
davia, se excluirmos os casos de exceção, na prática, os Estados ado-
tam um dos dois critérios. Podemos compreender que “São, portanto,
nacionais de um Estado aqueles que o seu direito define como tais. É
uma situação jurídica e não mera situação de fato. Estrangeiro é todo
aquele que não é tido por nacional, em face de um determinado Esta-
do” (BASTOS, 1999, p. 67-68).

Contudo, na contemporaneidade, estar vinculado a um Estado sig-


nifica ter, além de uma relação de submissão, a garantia de direitos que
são reconhecidos pelo ordenamento jurídico válido para o território.
Outro conceito importante que está relacionado ao de povo, e ao de
nacional, é o de cidadão. A cidadania implica a nacionalidade, pois todo
cidadão é obrigatoriamente um nacional, todavia nem todo nacional

62 Ciências Políticas
será considerado cidadão. Predominantemente, a teoria aponta como
definição para o conceito de cidadão aquele que desfruta dos direitos
políticos.
A cidadania consiste na manifestação das prerrogativas políticas
que um indivíduo tem dentro de um Estado democrático. Em ou-
tras palavras, a cidadania é um estatuto jurídico que contém os
direitos e as obrigações da pessoa em relação ao Estado. Já a pa-
lavra cidadão é voltada a designar o indivíduo na posse dos seus
direitos políticos. (BASTOS, 1999, p. 71, grifo nosso)

Na citação, o autor esclarece que os conceitos de cidadania e, por


consequência, de cidadão são elementos jurídicos garantidos em um
Estado Democrático de Direito. Então, podemos perceber que em um
Estado autoritário será possível identificar com clareza quem serão os
nacionais, mas não será correto falar em cidadania se os direitos polí-
ticos forem suspensos.

Outro importante elemento do Estado que já foi anteriormente


apontado é o território. Ele é a base geográfica do Estado. Para alguns
autores, esse é o primeiro elemento, pois é o quadro geográfico no
qual o poder público pode ser exercido de maneira exclusiva. Isso sig-
nifica que dentro de um território somente um Estado pode arbitrar, ou
seja, nenhum outro pode querer impor seu poder em um território que
não esteja sob sua jurisdição.

Os Estados precisam respeitar os territórios mutuamente para evi-


tar um confronto direto, uma guerra. Essa regra de que somente um
direito é válido no território nacional (o do Estado/país) é conhecida
como impenetrabilidade da ordem jurídica, que se sustenta pelo prin-
cípio da territorialidade. Contudo, a área de abrangência do território
não está restrita somente à extensão terrestre dentro das suas frontei-
ras, mas compõe também as águas próximas à sua orla, o ar (espaço
aéreo) e o subsolo.

De acordo com o princípio da territorialidade, somente uma ordem


jurídica é válida no território, afinal, “o ente estatal submete todos que
se encontrem no seu território ao seu próprio direito. Isso não quer
dizer que ele não assujeite mais acentuadamente uns do que outros”
(BASTOS, 1999, p. 59).

Isso significa que dentro do território brasileiro todos estão sub-


metidos ao Direito brasileiro, mesmo que os nacionais estejam mais

O Estado Moderno 63
fortemente inseridos nesse Direito. Os estrangeiros quando estão no
Brasil também precisam respeitar as leis brasileiras, todavia o Estado
brasileiro, na medida do possível, deve buscar respeitar a cultura des-
ses estrangeiros, que estão amparados em outro Direito nacional. O
mesmo se aplica a brasileiros que estão em outros países e, portanto,
sob as regras de outros Estados.

Podemos pensar, então, que o território, mais do que uma base


geográfica, significa o lugar ou extensão da validade da ordem jurídica.
Por isso, uma Embaixada do Brasil, mesmo estando geograficamente
dentro de outro país, resguarda o reconhecimento de ser um territó-
rio brasileiro. É como se o território brasileiro tivesse se estendido até
aqueles muros da Embaixada em qualquer país que ela esteja e dentro
dela tenham validade as leis brasileiras.

O terceiro elemento a compor o Estado é o poder, que também apa-


rece identificado como soberania ou governo, dependendo do autor. Se-
gundo Bobbio (1987, p. 76-77),
não há teoria política que não parta de alguma maneira, direta
ou indiretamente, de uma definição de “poder” e de uma análise
do fenômeno do poder. Por longa tradição o Estado é definido
como o portador do poder supremo; e a análise do Estado se
resolve quase totalmente no estudo dos diversos poderes que
competem ao soberano. A teoria do Estado apoia-se sobre a te-
oria dos três poderes (o Legislativo, o Executivo, o Judiciário) e
das relações entre eles. [...] Se a teoria do Estado pode ser consi-
derada como uma parte da teoria política, a teoria política pode
ser por sua vez considerada como uma parte da teoria do poder.

O autor afirma que a análise do poder tem sido o ponto de partida


da teoria política. Como o Estado é definido pela posse do poder, pode-
mos deduzir que a teoria do Estado é parte da teoria política. “Uma vez
reduzido o conceito de Estado ao de política e o conceito de política ao
de poder, o problema a ser resolvido torna-se o de diferenciar o poder
político de todas as outras formas que pode assumir a relação de po-
der” (BOBBIO, 1987, p. 78).

Dentre as modalidades de poder, podemos indicar que existem po-


der político e poder jurídico e encontramos ambos no Estado. Ainda
que não sejam exatamente o mesmo, é difícil dizer onde um começa

64 Ciências Políticas
e onde outro termina. Por isso, alguns autores afirmam que o poder
jurídico nunca deixa de ser político.

Conforme uma definição já apresentada, o poder político é o po-


der do Estado, é um poder de autoridade legítima que se impõe mes-
mo que existam resistências. Nesse processo de legitimação, o Direito
cumpre um papel fundamental, pois “o poder consegue exercer-se
dentro do Estado enquanto pura e exclusivamente força bruta, ele há
de dizer sempre por que veio, tornando-se neste discurso, necessaria-
mente, um poder jurídico” (BASTOS, 1999, p. 78).

Então, ainda que o monopólio da força bélica seja fundamental, o


poder necessita do Direito e das leis para lhe atribuir legalidade e legiti-
midade. Assim, podemos afirmar que o poder do Estado não se exerce
somente pela força, mas também pelo Direito. Entretanto, “assim como
o poder não existe sem o Direito, o Direito não se positiva sem o poder,
um implicando o outro, segundo o princípio da complementariedade”
(BASTOS, 1999, p. 79).

Para o Direito poder ser aplicado, ele precisa que as leis sejam po-
sitivadas, ou seja, votadas, aprovadas e implementadas pelo Estado.
Além disso, necessita de todo o aparato jurídico – tribunais e sistema
prisional – para que elas sejam aplicadas. Em retorno, o poder jurídico
legitima o poder político dentro da noção racional de legalidade.

Ao elaborar uma Constituição, o Estado delimita seu próprio poder.


Entretanto, uma Constituição também pode ser a base para o controle
do poder do Estado em relação à sociedade. Ao delimitar o poder do
Estado, a Constituição poderá proteger o indivíduo de abusos aos quais
ele poderia ser submetido na ausência desse controle. Por isso, costu-
mamos falar no Brasil que o ordenamento constitucional está acima de
outros ordenamentos jurídicos.

Por vezes, o conceito de poder vem junto com o de soberania, o que


implica a existência de um poder que não encontra limites e isso não
é compatível com a existência de um Estado constitucional. De acordo
com Bastos (1999, p. 81), na atualidade “surgem nos Estados, limitações
constitucionais ao exercício do poder. O Estado constitucional é aquele
que só pode atuar nos limites das competências que lhe são referidas
pela Lei Maior”.

O Estado Moderno 65
Outra questão que precisamos considerar, quando pensamos em
soberania, é o avanço das forças das comunidades internacionais que
pressionam os limites do poder dos Estados. Por exemplo, na União Eu-
ropeia, os Estados-membros precisam cumprir regulamentos que são
internacionais. Eles não podem quebrar os acordos com a União sob o
risco de serem penalizados.

Mesmo que existam limites para a soberania, o poder é um ele-


mento constitutivo do Estado. Um poder institucionalizado atua no seu
território e sobre toda a população, cujos integrantes podem ser nacio-
nais, naturalizados ou estrangeiros.
O Estado desfruta, portanto, não o mero monopólio da força fí-
sica, mas sim a faculdade de expedir comandos genéricos volta-
dos a muitos destinatários, ordens estas denominadas leis. É por
este recurso, portanto, pela utilização do direito, enfim, que o
Estado se viabiliza. Noutro dizer, ainda, o Estado é manifestação
de um poder institucionalizado. (BASTOS, 1999, p. 83)

Compreendemos, então, que o poder do Estado não pode ser resu-


mido ao monopólio da força física de forma legítima. O poder resulta
de um processo de institucionalização e racionalização burocrática e da
aceitação que ele consegue estimular na sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nisto reside o desafio do Estado Democrático de Direito: somente ele
edita as leis que dão legitimidade ao próprio poder e nós, na condição de
cidadãos, necessitamos que essas leis realmente representem o nosso
desejo de administração pública. A sociedade e os indivíduos organizados
em grupos de pressão necessitam vigiar e pressionar o Estado para que
sua gestão inclua a diversidade e promova a igualdade, respeitando as
liberdades individuais.
A sociedade não pode fazer leis, julgar ou executá-las, mas cabe a ela
participar, acompanhando os processos decisórios e propondo suas de-
mandas por meio dos mecanismos de consulta, como abaixo-assinados,
plebiscitos, entre outros.

66 Ciências Políticas
AMPLIANDO SEUS CONHECIMENTOS
•• LEBRUN, G. O que é poder. São Paulo: Brasiliense, 1981.
Essa obra, apesar de publicada como coleção de bolso, tem uma
qualidade impressionante. A leitura ajudará a compreender me-
lhor o fenômeno do poder.

•• LIMONGI, F. P. “O Federalista”: remédios republicanos para males


republicanos. In: WEFFORT, F. (org.). Os clássicos da política. São
Paulo: Ática, 2002.
Esse texto é bastante interessante para entender o que é uma fe-
deração, suas complexidades e a importância das leis regulando
o Estado.

ATIVIDADES
1. Para alguns autores, o bem comum é considerado a finalidade do
Estado, enquanto para outros é irrealizável. Explique essa divergência
resgatando os argumentos abordados neste capítulo.

2. Explique por que o poder jurídico e o poder político estão


profundamente relacionados.

3. Por que, segundo alguns autores, o conceito de soberania não é o mais


adequado para descrever o poder dos Estados contemporâneos?

REFERÊNCIAS
BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do Jogo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5
out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.
htm. Acesso em: 29 nov. 2019.
ELIAS, N. O processo civilizador 2: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
GIDDENS, A. Sociologia. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste, 2008.
MALUF, S. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2007.
MARX, K. A questão judaica. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969.
SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,
1961.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1999. v. 2.
WEFFORT, F. C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2011. v. 2.

O Estado Moderno 67
4
Estado e governo
No mundo contemporâneo temos discutido a importância dos
conceitos de democracia e Estado Democrático como proposta de
organização da vida pública e da sociedade. Todavia, alguns autores
têm questionado o sucesso desse modelo e, por vezes, sugerido
alternativas que nem sempre compreendemos perfeitamente.
A leitura deste capítulo é importante, pois nele procuramos
apresentar sinteticamente os modelos de regime político, formas
e sistemas de governo e, por fim, indicar como esses modelos
moldaram os Estados atuais.

4.1 Regimes de governo


Vídeo Foi com o nascimento das primeiras sociedades políticas que surgiu
a necessidade de se definir quem teria direito a governar? Ou seria
mais complexo que isso, pois foi com a definição de que alguém teria
o direito de governar que a sociedade política foi fundada e definida?
Questões filosóficas como essas foram colocadas em discussão desde
a Antiguidade ocidental e buscaram observar e determinar quais possi-
bilidades de regimes de governo poderiam existir.

Aristóteles (2009) observou que poderíamos classificar os regimes


de governo conforme o número de pessoas que participam deles. Se-
gundo ele, existiam três regimes: aquele em que uma única pessoa go-
verna, que seria o caso da monarquia; o governo de um grupo (classe)
dirigente, que seria a aristocracia; e o governo do próprio povo exer-
cido diretamente, que seria a democracia. Portanto, para o filósofo, o
regime de governo diz respeito a quantos exercem o poder.

Os regimes de governo são criados historicamente e, por isso, po-


dem passar por mudanças ao longo do tempo. A democracia é um bom

68 Ciências Políticas
exemplo. Para Aristóteles, a democracia era exercida de modo direto.
O povo tomava decisões sobre o governo em discussões públicas. Na-
turalmente, a democracia aristotélica, na Grécia Antiga, era formada
por uma população menor e nem todos faziam parte da vida pública.

O povo, no pensamento do autor, deve ser compreendido como os


Glossário
homens da cidade, ou seja, mulheres e escravos não faziam parte dele.
referendo: forma de consulta
Mas, com o passar do tempo e as revoluções que marcaram os séculos
em que os eleitores aprovam
XVIII e XIX, como a Revolução Americana, a Revolução Francesa e a Re- ou rejeitam projetos de lei
volução Industrial, surgiram outras modalidades de democracia. após a elaboração pelo órgão
legislativo.
Então, podemos dizer que existe a democracia direta, na qual o povo plebiscito: forma de consulta
exerce sua vontade integralmente e sem qualquer tipo de interferên- em que os cidadãos opinam
sobre questões de relevância
cia; a democracia indireta, na qual se exerce a vontade dos represen-
política ou social antes da
tantes do povo; e a democracia semidireta, na qual o povo pode intervir criação de uma lei.
em alguns casos. Como exemplos dessa possibilidade de manifestar a recall: forma de consulta em
vontade popular diretamente, interferindo no governo, podemos citar que o povo tem o poder de
cassar ou não o mandato de
o referendo, o plebiscito e o recall. qualquer representante político.
Entretanto, segundo Aristóteles, esses regimes podem se tornar dis-
torcidos, gerando regimes tirânicos. Por exemplo, a monarquia pode
se transformar em tirania, ou seja, um governo que não respeita os
princípios constitucionais e/ou os direitos individuais.

Os regimes de governo podem ser também definidos pela sua or-


ganização interna, ou seja, pelo funcionamento das suas instituições.
Por Regime político se entende o conjunto das instituições que
regulam a luta pelo poder e o seu exercício, bem como a prática
dos valores que animam tais instituições. As instituições consti-
tuem, por um lado, a estrutura orgânica do poder político, que
escolhe a classe dirigente e atribui a cada um dos indivíduos
empenhados na luta política um papel peculiar. Por outro, são
normas e procedimentos que garantem a repetição constante de
determinados comportamentos e tornam assim possível o de-
senvolvimento regular e ordenado da luta pelo poder, do exer-
cício deste e das atividades sociais a ele vinculadas. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 1081)

O funcionamento das instituições é, portanto, fundamental para se


compreender os modelos de regime de governo, pois instituições in-
clusivas que se apoiam em princípios democráticos são a base para
a construção de um regime de governo democrático e o mesmo ra-

Estado e governo 69
ciocínio se aplicaria para um regime monárquico ou aristocrático, que
necessitaria de instituições compatíveis com sua proposta de regime.

Mas, na definição das formas de regime de governo, a incorporação


do estudo das instituições não elimina a contribuição do número de
pessoas autorizadas a governar. De fato, até recentemente era comum
o uso da tipologia dos regimes de governo construída com base no mo-
delo proposto por Aristóteles, no qual ele distinguia três tipos perfeitos
acompanhados de três possíveis derivações degeneradas.

Na forma pura, o governo é realizado em benefício de toda a socie-


dade e, na forma corrompida, é somente em benefício de quem exerce
o poder. Atualmente sabemos que os regimes de governo concretos
são mais complexos do que os modelos ideais. Ainda que existam limi-
tações na tipologia dos três regimes de governo de Aristóteles, ela tem
fornecido grande contribuição para iniciar a compreensão do tema.

Na teoria aristotélica, vimos que foram classificados os regimes:


monarquia (governo de um só), aristocracia (governo de poucos) e
democracia (governo de todos). Então, para cada uma dessas formas
puras de governo haveria uma possível derivação corrompida. Para a
monarquia existiria a tirania; para a aristocracia, a oligarquia; e para
a democracia, a demagogia. Nessas formas corrompidas os regimes
funcionam em proveito do indivíduo, grupo ou classe governante so-
mente, mas buscam passar a falsa mensagem de que governam em
prol da sociedade.

A crítica a essa teoria está fundamentada justamente em sua li-


mitação ou ingenuidade de propor a existência concreta de modelos
perfeitos em que, por exemplo, a democracia é pensada como o efe-
tivo governo do povo e não dos seus representantes. Para autores
contemporâneos que adotam a teoria das elites políticas, Aristóteles
não considerou o fato de que o poder está sempre nas mãos de pou-
cos. Além disso, a própria monarquia ou tirania nunca é realmente o
governo de uma única pessoa, e sim de um grupo que possui interes-
ses em comum.

Montesquieu também buscou classificar os regimes de gover-


no e, para isso, se baseou no que ele chamava de natureza e princí-
pio do governo. A natureza dizia respeito a quem possuía o poder, a
quem o exercia. “Na monarquia, um só governa, através de leis fixas

70 Ciências Políticas
e instituições; na república, governa o povo no todo ou em parte (re-
públicas aristocráticas); no despotismo, governa a vontade de um só”
(ALBUQUERQUE, 2002, p. 116).

Mais do que um sistema descritivo embasado no número de pes-


soas que detêm o poder, Montesquieu se preocupa com as relações
estabelecidas entre governo, instituições e sociedade. Existe uma preo-
cupação com a compreensão da forma como o poder é distribuído em
diferentes grupos e classes que formam a sociedade.
No que concerne à república, por exemplo, Montesquieu lembra
que, por tratar-se de um governo em que o poder é do povo,
é fundamental distinguir a fonte do exercício do poder, e esta-
belecer criteriosamente a divisão da sociedade em classes com
relação à origem e ao exercício do poder. O povo, diz ele, sabe
escolher muito bem, mas é incapaz de governar porque é movi-
do pela paixão e não pode decidir. Portanto, na natureza dos go-
vernos republicanos está compreendida a relação entre classes
e o poder. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 117)

Observe que o autor problematiza o governo republicano. O gover-


no do povo tem, então, suas limitações devido às lutas pelo poder entre
as classes presentes na sociedade. Nesse sentido, a compreensão de
Montesquieu avança em relação ao modelo proposto por Aristóteles
quando considera seus limites como dados estruturais da sua orga-
nização e não apenas como formas de degeneração. Mas, mesmo em
Montesquieu, podemos perceber a preocupação em afirmar que existe
uma diferença entre o que os regimes devem ser e aquilo que eles efe-
tivamente podem se tornar.

O autor afirma que todo governo é regido por um princípio que o


anima, que o estimula. “São três os princípios, cada um corresponden-
do em tese a um governo. Em tese, porque, segundo Montesquieu, ele
não afirma que toda república é virtuosa, mas que deveria ser para
poder ser estável” (ALBUQUERQUE, 2002, p. 117).

No caso da república, esse princípio deveria ser a virtude, pois con-


ta com a capacidade de os homens governarem a “coisa pública”, ou
seja, o Estado, em benefício de toda a sociedade e não somente em
benefício próprio. O princípio que moveria a monarquia seria a honra,
pois ela estaria embasada nas tradições da nobreza, e o que moveria
o despotismo seria o medo, pois a base do governo seria mantida pelo
terror que a sociedade teria dos seus governantes.

Estado e governo 71
Não iremos nos aprofundar na discussão sobre a proposta de Mon-
tesquieu, pois trabalharemos de maneira detalhada a contribuição do
autor no próximo capítulo. Por ora, é importante somente frisar sua
contribuição para a classificação dos regimes de governo em repúbli-
ca, monarquia e despotismo.

Todavia, ele nos alertou para o fato de que precisamos compreen-


der os regimes de governo com base na própria história de cada socie-
dade e de suas lutas pelo poder, afinal, as variações resultarão dessas
lutas concretas. As repúblicas irão variar imensamente de um país para
outro segundo a história percorrida por eles, o que delineou sua cultu-
ra política, suas instituições etc.

Por exemplo, “a democracia representativa nasceu quando a bur-


guesia, em primeiro lugar, e depois o povo inteiro se tornaram cons-
cientes de ser os protagonistas do desenvolvimento social e quiseram
nele influir participando do controle do poder” (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 1998, p. 1082).

Nesse sentido, os regimes de governo são delineados nas lutas polí-


ticas concretas. A seguir apresentaremos algumas definições úteis para
as classificações dos dias atuais.

A monocracia, como a nomenclatura indica, trata do governo de


uma pessoa somente. Segundo Bastos (1999, p. 111), esse regime se
desenvolve concretamente como monarquia absolutista ou como uma
ditadura: “ambas apresentam como traço unificador o fato de o gover-
nante não dispensar muita atenção aos outros órgãos estatais, cujas
vontades deverão sempre ceder se conflitarem com a sua”.

Um regime monárquico pode ser desenvolvido com base em uma


Constituição, nesse caso teremos uma monarquia constitucional, na
qual o Executivo pode ser desempenhado pelo monarca de modo mo-
derado e governando em conjunto com o Parlamento (Legislativo) e as
Cortes (Judiciário). Esse regime não será uma monocracia, pois o go-
verno é exercido por mais de uma pessoa. Então, não é somente por
ser uma monarquia que o regime será uma monocracia, assim como
podemos ter uma monocracia em regimes não monárquicos, como no
caso de ditaduras.

Todavia, durante a história ocidental da formação dos Estados Mo-


dernos, como vimos no capítulo anterior, predominou o modelo de mo-

72 Ciências Políticas
narquias absolutistas que foram constituídas e mantidas para superar
os poderes dos nobres feudais e, assim, gerar um poder centralizado
sobre um território unificado e sobre o povo desse território. Mas, com
o passar das décadas e de alguns movimentos políticos, econômicos e
culturais, o modelo absolutista foi desafiado e passou-se a defender a
ideia de que um regime de governo deveria garantir direitos e não os
retirar, por isso as monarquias foram paulatinamente se adaptando
aos novos contextos. Segundo Bastos (1999, p. 112),
o último estágio da evolução monárquica reside na monarquia
constitucional ou parlamentar, em que existe uma autolimitação
dos poderes consagrados numa Carta Constitucional ou Consti-
tuição. Já aqui o monarca compartilha o exercício do poder com
órgãos representativos da vontade popular (os Parlamentos, aos
quais os seus ministros estão sujeitos). Em assim sendo, essa es-
pécie de monarquia deixa de enquadrar-se nas formas monocrá-
ticas de governo.

Outro caso contemporâneo de monocracia são as ditaduras mono-


cráticas. A principal diferença entre esta e a monarquia absolutista está
na forma de acesso ao poder. Enquanto na monarquia a sucessão do
poder ocorre pela hereditariedade, a ditadura surge quando o poder
político é tomado sem a devida legalidade e, muitas vezes, por conse-
quência, também sem legitimidade. Ou seja, são pessoas que ascen-
dem ou se mantêm no poder político por um golpe que normalmente é
viabilizado por uma crise das instituições democráticas. Pode ser uma
crise verdadeira ou artificialmente criada que gere a crença de que o
regime não está funcionando.
Por vezes o poder é açambarcado por uma autoridade a quem
se havia conferido, tão somente, poderes excepcionais a fim de
debelar a crise. É o que se deu com Hitler, na Alemanha. O im-
portante é que não é necessário que exista uma situação real
de crise. Ela pode ser artificialmente gerada por meio de uma
propaganda mentirosa voltada à criação de uma psicose de crise
e pela transmissão da ideia de que o governo em exercício não
está em condições de dominá-la. (BASTOS, 1999, p. 112)

Podemos concluir que as ditaduras monocráticas são formas


impositivas de governo que não possuem legalidade e que, para
existirem, necessitam de uma situação real ou fabricada de crise do
regime democrático vigente. Com base nessa crise se justificaria um

Estado e governo 73
poder ditatorial que concentra em si todas as decisões e não aceita
posturas contrárias.

O regime oligárquico, ou oligarquia, costuma aparecer nos livros di-


dáticos de história do Brasil no período após a Proclamação da Repú-
blica, em 1898, e no início da Era Vargas, em 1930. Esse período ficou
conhecido pelo coronelismo ou política do café com leite. Após a Pro-
clamação da República, as principais oligarquias de São Paulo e Minas
Gerais se alternavam no poder e mantinham suas bases eleitorais anco-
radas no poder dos coronéis locais, ou seja, dos grandes latifundiários,
produtores rurais poderosos na época. Por isso, ainda que os homens
pobres pudessem votar, o fato de o voto ser aberto (falado) gerava con-
trole e manipulação, fazendo com que o regime político se mantivesse
nas mãos de somente uma classe social, por isso foi chamado de repúbli-
ca dos coronéis, uma oligarquia com base na posse da terra.

Então, podemos definir oligarquia como o regime de governo no


qual participa uma classe dirigente. Para Bastos (1999), o fato de
uma elite ocupar predominantemente o poder não caracteriza ne-
cessariamente uma oligarquia, mas sim o fato de ela excluir outros
grupos do governo.
O poder oligárquico ficava muito evidente na época em que vigia
a aristocracia, dentro da qual, normalmente, se escolhiam os
governantes. Hoje ocorre a oligarquia mesmo quando não tem
regime aristocrático. Basta, tão-somente, que haja uma casta ou
uma classe que tenha avocado para si o exercício do poder com
exclusão dos demais. (BASTOS, 1999, p. 113)

Outro regime que precisamos definir é a democracia, pois ela pode


ser direta, indireta ou semidireta. De modo geral, a democracia é nor-
malmente conceituada como o governo do próprio povo. Mas o que
isso significa concretamente? Pode o povo em sua totalidade tomar as
decisões políticas cotidianas? De acordo com Bobbio (1987, p. 135, grifo
nosso), “da idade clássica a hoje o termo democracia foi sempre empre-
gado para designar uma das formas de governo, ou melhor, [...] desig-
na a forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo”.

O povo pode governar diretamente quando possui uma dimensão


numérica restrita. As cidades-Estados gregas são exemplos de demo-
cracias diretas, pois, como poucos eram efetivamente considerados

74 Ciências Políticas
cidadãos (povo), eles se reuniam em assembleias públicas para decidi-
rem as questões relativas à vida coletiva ou, mais precisamente, à vida
na cidade.

Com o aumento das cidades e a expansão do conceito de povo


para um maior número de cidadãos com direitos políticos, tornou‑se
cada vez mais difícil realizar a democracia direta. Então, como solu-
ção ao problema estrutural das grandes multidões, surgiu o modelo
da democracia representativa ou indireta. Nela, os cidadãos votam
em representantes. Posteriormente esses representantes irão votar
nas decisões cotidianas, como o aumento da passagem de ônibus,
a mudança no valor dos impostos etc. Esses eleitos deveriam, por-
tanto, falar e tomar decisões de acordo com a vontade daqueles que
eles representam.

Outra alternativa são as democracias semidiretas. Nelas adota‑se


o modelo da representação, entretanto, a sociedade é consultada de
maneira direta em muitas ocasiões sobre decisões consideradas im-
portantes. Bastos (1999, p. 22) conceitua esse modelo como “o sistema
de governo em que há representação política, mas no qual o povo pode
intervir em alguns casos no campo legislativo. [...] O povo exerce essa
intervenção pelo veto popular, referendum, iniciativa popular, plebiscito
e recall”.

Então, podemos compreender que o que diferencia as formas de


democracia é a proporção em que o povo pode participar das decisões
de modo direto. Quando ele vota nas questões cotidianas da vida pú-
Curiosidade
blica temos uma democracia direta; quando ele vota somente para es-
colher seus representantes, temos uma democracia indireta; e quando “A distinção que melhor resistiu
ao tempo, chegando — embo-
ele vota nas duas situações, ou seja, ele escolhe seus representantes, ra cada vez mais extenuada —
mas também participa diretamente de algumas decisões, temos uma aos nossos dias, é a distinção
maquiaveliana entre monarquia
democracia semidireta.
e república. Cada vez mais
Concluindo, os regimes de governo podem ser monarquias – extenuada porque, com a queda
da maior parte dos governos
quando o governo é hereditário e vitalício – ou repúblicas – quando monárquicos após a Primeira
o governo é escolhido entre os integrantes da sociedade sem o cri- e a Segunda Guerra Mundial,
tério hereditário, ou seja, por eleição e com mandatos por períodos corresponde cada vez menos
à realidade histórica” (BOBBIO,
limitados. As repúblicas podem ser oligárquicas ou democráticas e, 1987, p. 107).
por fim, como formas distorcidas dos regimes de governo, podemos
ter uma tirania ou ditadura. A seguir buscaremos compreender os
modelos de Estado.

Estado e governo 75
4.2 Modelos de Estado
Vídeo Assim como os Estados foram se modificando ao longo da histó-
ria, as teorias e o sistema de classificação destes sofreram alterações,
gerando uma razoável variedade de interpretações sobre esses mode-
los. Além do desenvolvimento histórico, é preciso compreender que os
critérios adotados pelos autores podem ser diferentes e isso resulta
em uma tipologia de Estados também diferente. Mas, apesar dessas
variações, podemos traçar alguns padrões principais e buscaremos
apresentar aqui alguns desses modelos.
Sendo muitos os elementos que se deve levar em conta para dis-
tinguir as formas de Estado, especialmente com referência ou às
relações entre a organização política e a sociedade ou às diver-
sas finalidades que o poder político organizado persegue nas di-
versas épocas históricas e nas diversas sociedades, as tipologias
das formas de Estado são tão variadas e mutáveis que podem
tornar incômoda, e talvez inútil, uma completa exposição delas.
Para pôr um pouco de ordem numa matéria tão rica e controver-
sa, podem-se distinguir as diversas formas de Estado à base de
dois critérios principais, o histórico e o relativo à maior ou menor
expansão do Estado em detrimento da sociedade (um critério
que inclui também aquele fundado sobre as diversas ideologias).
(BOBBIO, 1987, p. 123)

Sendo assim, para o autor, ainda que existam variações, podemos


utilizar dois critérios para realizar essa classificação, ou seja, podemos
considerar o histórico do desenvolvimento dos Estados e o grau de ex-
pansão ou penetração destes na vida das sociedades e dos indivíduos.
Segundo Bobbio (1987, p. 114) “a base do critério histórico, a tipologia
mais corrente e mais acreditada junto aos historiadores das institui-
ções é a que propõe a [...] sequência: Estado feudal, Estado estamental,
Estado absoluto, Estado representativo”.

O Estado Feudal, ou comunidade política feudal, como alguns au-


tores preferem, foi um modelo embasado na relação entre os monar-
cas e os senhores feudais, que se desenvolveu predominantemente na
Idade Média. Nesse modelo, predominava a descentralização adminis-
trativa e bélica, na qual os nobres possuíam seus próprios exércitos e
poder de aplicar as leis. Como discutido no capítulo anterior, existiam
os monarcas, todavia, eles não possuíam um poder centralizado, uma
organização burocrática e muito menos um exército nacional.

76 Ciências Políticas
O Estado Absolutista, também já abordado nos capítulos anterio-
res, modificou o modelo descentralizado de poder característico do
Estado Feudal e, em alguns países europeus, concentrou na figura do
monarca todo o poder do Estado. Dessa forma, o monarca passou a
governar, em muitos locais, sem limitações ao seu poder. Naturalmen-
te, sempre existiram limitações derivadas da própria cultura e história
dos países, como a obrigatoriedade da hereditariedade do poder. Ou
seja, o monarca não poderia passar o poder para quem desejasse, mas
para o seu sucessor de direito, seu herdeiro. Mas o que caracteriza o
absolutismo é o fato de não existir uma lei maior, como uma Constitui-
ção, que pudesse limitar o poder do monarca ou obrigá-lo a partilhar o
poder com um conselho de ministros.

O Estado Estamental foi um modelo surgido do desenvolvimento


dos órgãos colegiados, algo semelhante a conselhos ou Cortes, com a
participação de indivíduos de uma mesma posição social. Esses cole-
giados eram chamados de estamentos e possuíam direitos e privilégios
em relação ao poder do soberano. O exemplo mais comum de Esta-
do Estamental encontramos na França anterior à Revolução Francesa.
Havia três corpos distintos formando o Estado Estamental francês: o
clero, a nobreza e a burguesia, cada um com direitos e privilégios que
os diferenciavam.
Como forma intermediária entre o Estado feudal e o Estado ab-
soluto, o Estado estamental distingue-se do primeiro por uma
gradual institucionalização dos contrapoderes e também pela
transformação das relações de pessoa a pessoa, próprias do
sistema feudal, em relações entre instituições: de um lado as
assembleias de estamento, de outro o rei com o seu aparato
de funcionários que, onde conseguem se afirmar, dão origem
ao Estado burocrático característico da monarquia absoluta.
Distingue-se do segundo pela presença de uma contraposição
de poderes em contínuo conflito entre si, que o advento da mo-
narquia absoluta tende a suprimir. (BOBBIO, 1987, p. 114)

Acredita-se que esse modelo foi uma forma de transição do Esta-


do Feudal para o Estado Absolutista e que, na formação desses con-
selhos, está a origem da formação dos Parlamentos e dos sistemas
parlamentares, assim como de um maior desenvolvimento da buro-
cratização do Estado.

Estado e governo 77
Seguindo essa abordagem histórica, Bobbio (1987) afirma que a
próxima fase do desenvolvimento do Estado é a representativa, que
dura até os dias atuais. O Estado Representativo surgiu como monar-
quia constitucional e, posteriormente, se desenvolveu para monarquia
parlamentar na Inglaterra (após a Revolução Gloriosa de 1688) e em
outros países na Europa, após a Revolução Francesa. Também houve o
desenvolvimento do modelo representativo na forma de república pre-
sidencial no Estados Unidos após o seu movimento de Independência
liderado pelas Treze Colônias Americanas.
Enquanto na Inglaterra o Estado representativo nasce quase sem
solução de continuidade do Estado feudal e do Estado estamen-
tal através da guerra civil e da “gloriosa revolução” de 1688, na
Europa continental nasce sobre as ruínas do absolutismo mo-
nárquico. Tal como o Estado de estamentos, também o Estado
representativo se afirma, ao menos num primeiro tempo, como
o resultado de um compromisso entre o poder do príncipe (cujo
princípio de legitimidade é a tradição) e o poder dos represen-
tantes do povo (por “povo” entendendo-se, ao menos num pri-
meiro tempo, a classe burguesa), cujo princípio de legitimidade é
o consenso. (BOBBIO, 1987, p. 115)

O Estado teria passado, portanto, por quatro fases de desenvolvi-


mento, sendo a forma representativa o seu último estágio até a atua-
lidade. Ao observarmos a formação dos Estados contemporâneos
podemos constatar variações no formato que a representação assumiu
em cada contexto histórico, tanto na intensidade ou supressão dessa
representação quanto na forma de organização. Então, segundo Bob-
bio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 401):
a mudança fundamental consistiu, a partir da segunda metade
do século XIX, na gradual integração do Estado político com a
sociedade civil, que acabou por alterar a forma jurídica do Esta-
do, os processos de legitimação e a estrutura da administração.
A estrutura do Estado de direito pode ser, assim, sistematizada
como: 1) Estrutura formal do sistema jurídico, garantia das liber-
dades fundamentais com a aplicação da lei geral-abstrata por
parte de juízes independentes. 2) Estrutura material do sistema
jurídico: liberdade de concorrência no mercado, reconhecida no
comércio aos sujeitos da propriedade. 3) Estrutura social do sis-
tema jurídico: a questão social e as políticas reformistas de inte-
gração da classe trabalhadora. 4) Estrutura política do sistema
jurídico: separação e distribuição do poder.

78 Ciências Políticas
Como forma de assegurar essa participação surgiu também, en-
quanto parte do Estado Representativo, o Estado de Direito. Nesse
modelo, o Estado se submete às leis e é controlado por elas, e tem suas
tarefas limitadas à manutenção da ordem, à proteção da liberdade e
da propriedade individual, evitando a possibilidade do absolutismo
desenfreado.

No desenvolvimento do Estado contemporâneo, após o século XIX,


três modelos concretos podem ser identificados segundo o grau de pe-
netração na vida cotidiana dos indivíduos. Esses modelos resultam das
próprias forças sociais que se desenvolveram ao longo dos séculos XIX
e XX. Estamos nos referindo aos Estados Liberal, Social e Totalitário.

Inicialmente, é importante perceber que Estado Liberal não é o


mesmo que democracia, pois nesta última a participação nas decisões
deve vir da maioria (povo), e devem existir condições adequadas para
que essa maioria possa participar das decisões e instituições que ga-
rantam que esse processo ocorra de maneira descentralizada. No Es-
tado Liberal essas condições podem existir, mas não são elas que o
caracterizam. Assim, podemos ter uma república oligárquica em um
Estado Liberal, por exemplo. Foi o que tivemos nas primeiras décadas
do século XX no Brasil.

Outra diferença salientada pelos autores liberais está no fato de


que a democracia, por ser em princípio um regime com base na vonta-
de da maioria, pode vir a suprimir a vontade individual. Nesse sentido
o modelo liberal seria o mais adequado para garantir as liberdades in-
dividuais. Conforme afirma Bastos (1999, p. 138), “o Estado liberal, tam-
bém chamado por alguns de Estado constitucional, é o que vai procurar
com maior eficiência até hoje conhecida o atingimento da liberdade no
sentido do não constrangimento pessoal. É o coroamento de toda a
luta do indivíduo contra a tirania do Estado”.

O Estado Liberal é uma modalidade do desenvolvimento do Estado


representativo que surgiu a partir do liberalismo político defendido na
Inglaterra durante a Revolução Gloriosa de 1688. Essa revolução advo-
gava a liberdade dos direitos naturais do homem contra a força esma-
gadora do Estado e do Iluminismo francês do século XVIII, que alertava
para a necessidade de um Estado que trabalhasse em benefício da
sociedade e dos indivíduos, e não o contrário como acontecia no Esta-
do Absolutista, em que o monarca possuía todos os privilégios acima
da sociedade.

Estado e governo 79
Seu pressuposto fundamental é que o máximo de bem‑estar
comum é atingido em todos os campos com a menor presen-
ça possível do Estado. Trata-se de uma concepção basicamen-
te otimista. Não repudia a natureza humana no que ela tem de
egoísta e ambiciosa. Pelo contrário, parte dessa constatação
para afirmar que o livre jogo dos diversos egoísmos produzirá
o bem-estar coletivo. Sua máxima principal está insculpida na
expressão francesa Laissez faire, laissez passer, le monde va de lui
même (Deixai fazer, deixai passar, o mundo caminha por si só).
Sua maior aplicação se deu no campo econômico, em que se pro-
curou suprimir toda a interferência do Estado na regulação da
economia. (BASTOS, 1999, p. 139, grifos nossos)

Efetivamente, podemos apreender que a delimitação desse Estado


de liberdade ultrapassou a proposta política e jurídica do Estado e teve
sua principal aplicação nas relações econômicas ou, mais precisamen-
te, na ausência do Estado regulando o mercado e muitas vezes trans-
formando os bens essenciais à sobrevivência, como saúde, segurança,
moradia e educação, em produtos do livre mercado. Esse modelo, em
muitos países, acabou por sofrer críticas e foi substituído por outras
variáveis do que chamamos de Estado Social.

O Estado Social tem suas competências ampliadas, suas relações


com a sociedade e com os indivíduos são estimuladas pela lógica do
compromisso que o Estado possui em gerir os conflitos existentes em
uma sociedade de desiguais. Ele tem funções que estão diretamente
ligadas aos interesses sociais. Além disso, seu nascimento deve ser
compreendido dentro do crescimento das discussões socialistas nos
séculos XIX e XX, que alertaram para o caráter desigual e explorador do
sistema capitalista.
Foi certamente por este caminho que se começou a abrir, dificul-
tosamente, uma alternativa ao liberalismo: nasceu, de fato, em
fins do século XIX, o Estado interventivo, cada vez mais envolvido
no financiamento e administração de programas de seguro so-
cial. As primeiras formas de Welfare visavam, na realidade, a con-
trastar o avanço do socialismo, procurando criar a dependência
do trabalhador ao Estado, mas, ao mesmo tempo, deram origem
a algumas formas de política econômica, destinadas a modificar
irreversivelmente a face do Estado contemporâneo. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 403, grifo do original)

80 Ciências Políticas
Nesse sentido, o Estado Social surgiu para apaziguar ou salvaguar-
dar o funcionamento do sistema capitalista, na medida em que ameni-
za os conflitos provocados pelas relações de exploração e mantém o
sistema funcionando. Por isso esse Estado também é conhecido como
Estado do bem-estar social (Welfare State) ou Estado Assistencial, não por
fazer caridade, mas por buscar garantir o mínimo de renda, alimenta-
ção, saúde, habitação e educação como direito político.

Naturalmente essa não foi a primeira vez na história ocidental que


o Estado buscou promover políticas sociais de bem-estar; todavia, o
que distingue o Estado Assistencial de outros tipos de Estado mais do
que a intervenção para a melhoria do nível de vida da população é
justamente o fato de que ele busca reivindicar essa política como um
direito dos cidadãos.

No entanto, a ampliação do Estado em suas relações com a socieda-


de e o indivíduo também pode conduzir a outro extremo na relação das
garantias dos direitos, ou seja, o Estado, ao se apoderar do controle so-
bre todas as esferas da vida dos indivíduos, pode acabar por suprimir
os direitos e as liberdades individuais e instaurar um modelo totalitário
de controle.
Curiosidade
Isso aconteceu no desenvolvimento do Estado Totalitário, que O Estado Nazista desenvolvido
aspirava impor total controle das leis e das mentes humanas e, por na Alemanha e o Estado Fascista
consequência, suprimir os direitos individuais. Os exemplos mais co- desenvolvido na Itália possuíam
sistemas autoritários com base
nhecidos desse modelo são o Estado Nazista e o Estado Fascista. É im- em partidos únicos e no culto ao
portante observar que Estado Totalitário não é o mesmo que Estado chefe do Estado. Fomentavam o
desprezo aos valores do indivi-
Autoritário, pois no segundo a principal característica é a imposição
dualismo liberal e pregavam a
da vontade de uma minoria a uma maioria. Já o primeiro: favor da coletividade nacional.
caracteriza-se por absorver no seu seio todas as manifestações
da vida social e, até mesmo, individual. Nada lhe é estranho.
Em tudo se imiscui. Desde o poder político até o econômico e
o social, passando pelo exercício das profissões, pela adoção da
religião, pelo desenvolvimento cultural e artístico, pela vida fami-
liar, pela organização do lazer do indivíduo e dos seus gostos e
preferências em matéria de moda, nada foge a sua competência.
(BASTOS, 1999, p. 146)

Portanto, o Estado Totalitário se caracteriza por desempenhar o


mais alto nível de intervenção na vida e nas mentes dos indivíduos.

Estado e governo 81
Mais do que controlar as leis, a economia e a cultura, ele almeja o
controle das mentes de modo a gerar uma massa de seguidores que
buscará oprimir qualquer pensamento ou ação destoante, logo, ele é a
própria antítese dos direitos e liberdades individuais.

Como seu oposto, temos o Estado Democrático de Direito, que


busca atrelar o poder à lei e aos valores contidos na própria Constitui-
ção com a introdução do povo no processo político como agente dire-
to e não somente pela via representativa. Todavia, esse modelo pode
variar na contemporaneidade. Segundo Bobbio, Matteucci e Pasquino
(1998, p. 401, grifos do original):
uma definição de Estado contemporâneo envolve numerosos
problemas, derivados principalmente da dificuldade de anali-
sar exaustivamente as múltiplas relações que se criaram entre
o Estado e o complexo social e de captar, depois, os seus efeitos
sobre a racionalidade interna do sistema político. Uma aborda-
gem que se revela particularmente útil na investigação referente
aos problemas subjacentes ao desenvolvimento do Estado con-
temporâneo é a da análise da difícil coexistência das formas do
Estado de direito com os conteúdos do Estado social. Os direitos
fundamentais representam a tradicional tutela das liberdades
burguesas: liberdade pessoal, política e econômica. Constituem
um dique contra a intervenção do Estado. Pelo contrário, os
direitos sociais representam direitos de participação no poder
político e na distribuição da riqueza social produzida. A forma
do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a participação (E.
Forsthoff, 1973). Além disso, enquanto os direitos fundamentais
representam a garantia do status quo, os direitos sociais, pelo
contrário, são a priori imprevisíveis.

Concluindo, observamos que a dificuldade em tornar preciso o mo-


delo de Estado contemporâneo se deve justamente às mais variadas
possibilidades que surgem da tentativa de junção entre Estado de Di-
reito e Estado Social, pois na contemporaneidade considera-se funda-
mental que o Estado seja regido por leis que moderem e delimitem o
seu poder garantindo os direitos individuais e, na medida do possível,
amplie suas ações para minimizar as desigualdades sociais. Ou seja, a
busca de junção entre Estado de Direito e Estado Social tem sido um
desafio contemporâneo juntamente com a manutenção e o aprimora-
mento dos regimes e instituições democráticas.

82 Ciências Políticas
4.3 Formas e sistemas de governo
Vídeo As formas e sistemas de governo resultam da variedade de relações
que se estabelecem entre os poderes. Compreendemos como formas
de governo precisamente duas possibilidades, que já abordamos no
início deste capítulo, ou seja, a monarquia – que pode ser absolutista
ou constitucional/parlamentarista – e a república – que pode ser par-
lamentarista, presidencialista ou mista. Observe que essas formas de
governo irão variar segundo as relações que se estabelecem entre o
Poder Executivo e o Legislativo.

Por exemplo, uma monarquia constitucional é também conhecida


como monarquia parlamentarista por desenvolver um sistema de go-
verno parlamentar no qual o rei pode desempenhar o papel de chefe
do Estado e o Parlamento, que é a base do Poder Legislativo, é contro-
lado pelo primeiro-ministro, que desempenhará a função de chefe do
governo. Esse modelo busca garantir relativo equilíbrio entre os pode-
res e limitar o poder dos monarcas. Todavia, mesmo esse modelo pode
sofrer grandes variações de um país para outro.

No caso de uma monarquia absolutista, em que não há um controle


constitucional, os poderes Executivo e Legislativo – em alguns casos até
mesmo o Judiciário – poderão estar concentrados na figura do monarca.
O sistema de governo parlamentar, que surgiu como alternativa a essa
concentração de poder, foi fruto do desenvolvimento dos conselhos de
nobres ingleses que buscaram participar da gestão pública.
Os seus traços fundamentais podem ser evidenciados a partir
do estudo das vicissitudes históricas por que passou a Inglater-
ra. Com efeito, foi nela que surgiu pela primeira vez o governo
parlamentar. Isso não se deu de um golpe só. Pelo contrário, foi
o resultado de lentas e graduais conquistas, ocorridas a partir
dos séculos XII e XIII, levadas a efeito, inicialmente, por represen-
tantes dos estamentos ou das classes nobres e, depois, do povo
inteiro contra os privilégios monárquicos. (BASTOS, 1999, p. 164)

Então, observamos que o parlamentarismo foi o mais antigo siste-


ma de governo elaborado com base em um processo histórico que se
desenvolveu principalmente na Europa, diferente do presidencialismo,
que surgiu no Novo Mundo, ou seja, na América. Podemos definir como
sistemas de governo o parlamentarismo, o presidencialismo e as for-
mas mistas que resultarão da relação entre estes.

Estado e governo 83
O parlamentarismo tem como principal característica o controle
ou a subordinação do governo pelo Legislativo. Quando comparamos
os sistemas presidencialistas e parlamentaristas,
se estivermos falando sobre características que são necessárias
e suficientes, ambos os sistemas têm apenas duas características
primárias. O sistema parlamentarista é um sistema de dependên-
cia mútua. Quer dizer: nele, o Poder Legislativo tem a capacidade
de dar um voto de não confiança ao governo e, ainda, o Poder
Executivo tem a capacidade de dissolver o Congresso e convocar
eleições. O sistema presidencialista é um sistema de independên-
cia mútua. Quer dizer: nele, o Poder Legislativo tem um mandato
fixo e próprio, e o Poder Executivo tem seu mandato fixo e pró-
prio. Isso implica que ambos os poderes têm sua própria fonte de
legitimidade e independência. (STEFAN, 1990, p. 96)

Podemos, então, observar o maior grau de independência presente


entre os poderes no sistema presidencialista. Todavia, para muitos au-
tores o parlamentarismo é considerado um sistema mais democrático
do que o presidencialismo, pois um governo somente pode ocupar o
posto e se manter no poder se possuir a maioria das cadeiras do Par-
lamento. Após uma eleição, se o partido do líder do governo – nesse
caso, o primeiro-ministro – perder a maior parte das cadeiras, ele deve-
rá deixar o posto. Dessa forma, o Poder Executivo, que está nas mãos
do chefe do governo, deve representar a vontade do povo.

Esse sistema diminui os problemas com eleições personalistas, que


são características de sistemas presidencialistas, nos quais, ao escolher
a pessoa do presidente para ocupar o Poder Executivo, não existe a
obrigatoriedade de a sua base de apoio partidária representar a maio-
ria das cadeiras no Legislativo. Isso leva muitas vezes a entraves na
aprovação de medidas e a ações pouco democráticas do Executivo ao
se sobrepor ao Parlamento buscando ele próprio legislar.

Voltando à caracterização, podemos dizer que em uma república


parlamentarista o chefe de governo é o primeiro-ministro e o che-
fe de Estado pode ser o presidente ou o chanceler. Quem administra
o país internamente é o chefe do governo, que possui a maioria do
apoio do Parlamento. O chefe de Estado deve representar o país nas
relações internacionais, ou seja, representar o país frente a outros Esta-
dos Nacionais. Dessa forma, não existe uma separação tão rígida entre
Executivo e Legislativo, pois ambos possuem como base do poder o
Parlamento. O Legislativo se torna a verdadeira alma do governo em

84 Ciências Políticas
regimes parlamentares puros. Mas é importante frisar que esse siste- Curiosidade
ma se apresenta mais diversificado atualmente. A França pode ser citada como
exemplo dessa complexidade
Já o presidencialismo parte, teoricamente, de uma rígida sepa-
atual. Nesse país o sistema
ração entre Legislativo e Executivo e da não relação de dependência adotado está entre o presiden-
entre os poderes para governar. Em uma república presidencialista cialismo e o parlamentarismo.
Nesse sistema é eleito um
o presidente pode ter seu mandato independente da maioria no Con- presidente, como nos sistemas
gresso. Mesmo que seu partido tenha poucas cadeiras no Congresso, presidencialistas, mas existe
ele poderá exercer seu mandato, pois não existe regra que o obrigue também um primeiro-ministro
como nos sistemas parlamen-
a abdicar, por isso alguns autores afirmam que no sistema presiden- taristas. Devido à forma como
cialista o Poder Executivo adquiriu mais poder. Todavia, a ausência da o poder está organizado, esse
maioria do Parlamento, ainda que não impeça o governo, pode difi- sistema recebe o nome de
semipresidencialismo.
cultar imensamente e gerar um sistema de barganhas que poderá se
tornar antidemocrático.

Além disso, no sistema presidencialista, o presidente é o chefe de


Estado e o chefe de governo ao mesmo tempo, e isso gera uma maior
concentração de poder no Executivo. Ou seja, para que o presidente
possa implementar suas medidas de governo, o Congresso precisará
aprová-las e, no caso de o partido político ou a coligação do governo
não possuir a maioria das cadeiras, ele precisará buscar apoio nos re-
presentantes eleitos dos outros partidos políticos. Por consequência,
ao ceder às negociações, representantes de partidos que deveriam
atuar em nome dos seus eleitores poderão ceder à pressão do gover-
no, mesmo que em desacordo com os interesses dos que os elegeram.

Situando historicamente, o presidencialismo surgiu da necessidade


histórica vivenciada pelos colonizadores da América do Norte de criar
um poder central que os tornasse capazes de se libertar do controle
do Parlamento britânico. Essa necessidade levou-os a criar um modelo
inovador de governo.
Os fatos históricos são relativamente simples. As Treze Colônias
Americanas tornadas independentes em 1776 viviam sob os
frouxos laços de colaboração implantados pela Confederação,
quando em 1787, em Filadélfia, reuniram-se 55 delegados des-
ses Estados para introduzirem as medidas que se fizessem ne-
cessárias para pôr cobro à absoluta falta de unidade e coesão
daqueles países, relativamente a muitos problemas que não po-
diam ser enfrentados senão de uma forma unitária. A manuten-
ção de um exército comum, a cunhagem de uma única moeda, a
regulação do comércio exterior, tudo isso estava a exigir que se

Estado e governo 85
criasse um poder central com forças e autoridade para tanto. De
outra parte, havia o risco de se incorrer em demasias e criar-se
um poder tão forte que pudesse resvalar para o despotismo e
para a tirania. (BASTOS, 1999, p. 170)

Portanto, foi como forma de se fortalecer e criar poder centraliza-


do diferente do modelo britânico que o presidencialismo foi proposto.
Durante a elaboração da Constituição, na Convenção da Filadélfia, os
legisladores determinaram a criação de um Executivo separado do Le-
gislativo. Eles buscaram separar-se do sistema de governo parlamentar
por este estar associado, até aquele momento, ao modelo monárquico.

Finalizando, podemos perceber que as formas de governo monar-


quia e república se mesclam aos sistemas de governo parlamentarista,
presidencialista ou misto e moldam os Estados. No parlamentarismo,
chefe de Estado e chefe de governo são cargos separados ocupados
por duas pessoas diferentes; já no presidencialismo, os mesmos car-
gos são ocupados por uma única pessoa. O chefe de Estado poderá
ser um rei, quando for uma monarquia, ou um presidente/chanceler,
quando for uma república; já o chefe de governo sempre será o líder
do Parlamento, ou seja, o primeiro-ministro, que será o líder do partido
que possui o maior número de cadeiras eleitas. Segundo Bastos (1999,
p. 172),
o presidencialismo não significa, apenas, que o Estado tem um
presidente, como também o parlamentarismo não designa, me-
ramente, um Estado que tem Parlamento. O que realmente dis-
tingue um do outro é basicamente o papel representado pelo
órgão legislativo. Num caso, o Parlamento não se limita a fazer
leis, mas é também responsável pelo controle do governo.

As funções desempenhadas pelo Poder Legislativo variam imensa-


mente de um sistema para o outro. Se no parlamentarismo o controle
do governo fica a cargo do Legislativo, nos sistemas presidencialistas
a oposição deve fazer o controle e a fiscalização sobre as ações do
governo.

Alguns autores, ainda, apontam o anarquismo como uma teoria po-


lítica sobre o governo. Seus princípios fundamentais são a liberdade
do homem e o fim do poder superior e das normas. Nesse sentido, o

86 Ciências Políticas
anarquismo propõe um não poder estatal e acredita que as sociedades
viveriam melhor na ausência deste.

É importante lembrar que os Estados concretos são formados so-


bre uma base geográfica. A forma como essa base está dividida e o
conjunto de obrigações que se estabelece sobre ela determinam se um
Estado é unitário, como no caso de Portugal, ou federativo, como no
caso do Brasil. Nos Estados unitários, os órgãos que exercem a sobe-
rania nacional (órgãos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário)
são unos para todo o território. Na federação temos as unidades fede-
rativas, ou Estados-membros, por exemplo: São Paulo, Minas Gerais,
Paraná e outros que também possuem poder. Quando as unidades
federativas também possuem um Poder Executivo (o governador), um
Legislativo (deputados estaduais) e um Judiciário, podemos observar
que existe maior descentralização da administração pública. Por isso,
a maioria dos autores considera o sistema federativo descentralizado
mais democrático.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após revisarmos as formas de Estado, os regimes de governo e os sis-
temas de governo, podemos tecer algumas considerações.
Primeiro, todo esse esforço teórico para definir os modelos políticos
criados na história ocidental encontra imensas limitações, pois a realidade
é sempre mais complexa do que a teoria é capaz de captar.
Segundo, o desenvolvimento histórico desses modelos, por ser contí-
nuo e dinâmico, está sempre em mutação. Então, buscamos apresentar
as características gerais, que servem para realizar uma leitura da realida-
de atual e observar suas transformações.
Por fim, dentre todos os modelos de Estado, regimes e sistemas de
governo existentes ao longo da história, nenhum atingiu a perfeição. Nem
mesmo o Estado de Direito, que adotou a democracia, conseguiu repre-
sentar a todos igualmente. Isso não significa que esse é um modelo me-
lhor, mas, ainda que imperfeito, ele representa a antítese da ditadura.
Essa última implica a ausência de liberdade, inclusive, para questionar o
regime que se considere falho.

Estado e governo 87
AMPLIANDO SEUS CONHECIMENTOS
•• SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada: as questões clássi-
cas. São Paulo: Editora Ática, 1994. v. 2.

A leitura dessa obra, do italiano Giovanni Sartori, ajuda a com-


preender melhor o debate presente na ciência política sobre o
regime democrático.

•• O PATRIOTA. Direção: Roland Emmerich. EUA: Colombia Pictures,


2000. 165 min.

Esse filme é interessante para entender as lutas de indepen-


dência das Treze Colônias Americanas contra a Inglaterra e, por
consequência, o contexto no qual o sistema presidencialista de
governo surgiu.

ATIVIDADES
1. Em que medida podemos considerar o sistema parlamentarista mais
democrático do que o sistema presidencialista?

2. Partindo da tipologia clássica das formas de governo, o que seria


necessário para que a democracia funcionasse na América Latina?

3. Quais são as principais características do Estado Totalitário e como


ele se aproxima ou se distancia das ditaduras vivenciadas na América
Latina?

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, J. A. G. Montesquieu: sociedade e poder. In: WEFFORT, F. C. Os clássicos da
política. São Paulo: Ática, 2002. v. 1.
ARISTÓTELES. Política. Trad. de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.
BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987.
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Editora
UnB, 1998.
STEFAN, A. Parlamentarismo x presidencialismo no mundo moderno: revisão de um
debate atual. Estudos Avançados, São Paulo, v. 4, n. 8, jan./abr. 1990.

88 Ciências Políticas
5
A separação dos poderes
como princípio da moderação
Neste capítulo, discutiremos a importância da moderação do
poder do Estado com base nas teorias sobre a separação dos
poderes. Observaremos também como o princípio da moderação
do poder é a base para a formação dos Estados de Direito e das
democracias contemporâneas, que buscam garantir, ainda que
existam limitações, os direitos fundamentais e sociais.

5.1 A moderação no poder do Estado


Vídeo No decorrer da história ocidental, a perspectiva de que o poder dos
líderes políticos era uma dádiva divina foi lentamente sendo superada
por uma nova visão: a que acreditava que o poder desses líderes pro-
vinha das próprias necessidades sociais e, portanto, tratava-se de um
poder de origem humana e terrena.

Eram as próprias sociedades que desejavam, e provavelmente ne-


cessitavam, de uma sociedade política e um líder (ou grupo de líde-
res) para administrar as questões de interesse coletivo. Assim, desde
a Antiguidade, houve a preocupação em compreender como deveria
ser organizado esse poder da sociedade política, para que ela desem-
penhasse corretamente suas funções. Assim, a organização do poder e
as funções que ele deveria desempenhar sempre estiveram juntas na
reflexão dos pensadores e filósofos.

Utilizamos a palavra função com sentido diferente de fim ou finali-


dade, pois os fins ou finalidades dos Estados podem ser bem variados
segundo o modelo de Estado adotado. “Os fins do Estado podem ser de
natureza militar, policial, econômica, previdenciária, cultural etc., en-
quanto as funções têm-se mantido mais ou menos idênticas no tempo
e no número” (BASTOS, 1999, p. 151).

A separação dos poderes como princípio da moderação 89


Desde a Antiguidade Clássica, podemos identificar a discussão so-
bre a separação do poder do Estado (sociedade política) e suas atribui-
ções. Utilizando uma linguagem um pouco diferente da atual, o filósofo
clássico Aristóteles já indicava a necessidade da separação em três
funções do poder político. Segundo Bastos (1999, p. 131), “falava ele
numa função consultiva que se pronunciava acerca da guerra e da paz
e acerca das leis; uma função judiciária e de um magistrado incumbido
dos restantes assuntos da administração”.

Ao se referir à organização política, Aristóteles utilizava o termo


politeia, que é traduzido, geralmente, como constituição. Para esse au-
tor, a constituição era a estrutura que dava ordem à cidade, determi-
nando o funcionamento de todos os cargos públicos e, principalmente,
da autoridade soberana.
Era a insistência em acentuar a realidade constitucional, a politeia,
como estrutura essencial do regime político, que inscrevia a pes-
quisa aristotélica no seio da nova cultura, que florescia em Atenas,
no século precedente, no quadro da democracia de Péricles, sem
se reduzir a ela, em oposição à cultura antiga. O aristotelismo apa-
recia, então, como o momento culminante de uma reflexão inicia-
da por outros autores, desenvolvida nos textos de certos sofistas
que foram perdidos, dos quais só restam alguns curtos fragmen-
tos. A atitude de Platão, que foi de uma originalidade exagerada,
era equivocada no primeiro sentido do termo. Por um lado, recu-
sava os regimes de educação baseados na tradição e reclamava
a colocação de uma ordem cívica definida segundo as normas da
razão e da elaboração dialética. Por outro lado, esse próprio rigor
o conduzia a propor modelos nos quais a exigência racional tecia,
para os indivíduos e os grupos, uma rede de opressões ainda mais
duras que aquelas que encerravam as sociedades tradicionais.
(COSTA, 2006, p. 51-52, grifo do original)

Podemos compreender que desde a Antiguidade Clássica havia a


preocupação com a organização e a moderação do poder do Estado,
que poderia ser exercido por um indivíduo, por um grupo ou pela maio-
ria, conforme a tipologia de Aristóteles sobre monarquia, aristocracia
e democracia. Esses autores sofistas alertaram para a necessidade de
as leis delimitarem o poder do Estado na execução das suas diversas
funções. Se o Estado detém todo o poder de ação (executar, legislar e
julgar), então é necessário que essas funções sejam claramente estipu-
ladas, para que aqueles que ocupam as posições no Estado e exercem

90 Ciências Políticas
os cargos no governo não abusem ou acabem por impor uma ditadura
ou tirania insensível às necessidades da sociedade.
Para evitar essas ditaduras antiliberais vindas de cima ou de
baixo, Aristóteles propunha uma constituição mista ou timocra-
cia, combinação de aristocracia e democracia, na qual o sufrágio
se restringiria aos proprietários de terras e uma poderosa classe
média seria reguladora do equilíbrio e o eixo do poder. A terra
deveria ser dividida em duas partes, uma pertencendo à comu-
nidade em geral e a outra entregue aos indivíduos. Os cidadãos
possuiriam terras, comeriam em mesas públicas e só eles deve-
riam votar ou empunhar armas. Constituiriam uma pequena mi-
noria, dez mil no máximo, em relação à população. Nenhum teria
licença para exercer qualquer trabalho mecânico ou fazer do co-
mércio meio de vida, pois eram essas ocupações que destruíam
a superioridade. Os agricultores deveriam formar uma ordem
separada, talvez escravos. (COSTA, 2006, p. 52, grifo do original)

Além da preocupação em separar os grupos e estabelecer quais


teriam direito ao voto, Aristóteles (COSTA, 2006) expressa sua preo-
cupação em determinar um grupo de cidadãos que viveriam para a
política, para pensar e tomar decisões sobre as questões públicas.
Naturalmente, esse modelo excluía parte da população, mas buscava
garantir, na Antiguidade grega, um modelo de governo com participa-
ção de uma razoável parcela da população. Essa parcela seria com-
posta de personagens públicos que deveriam cuidar para que o poder
tivesse formas de moderação por meio do debate público.

Aristóteles (COSTA, 2006) também discutia a importância de os car-


gos públicos eletivos prestarem contas à população, evitando que os
exageros pudessem ser cometidos por falta de fiscalização. Para ele,
“Os cidadãos elegiam os funcionários públicos e os fariam prestar con-
tas no fim de cada termo” (COSTA, 2006, p. 52).

As leis deveriam ser reconhecidas como a parte mais importante de


um governo. “As leis promulgadas deveriam prever, tanto quanto possível,
a solução de todos os casos, deixando um mínimo de arbítrio aos juízes”
(COSTA, 2006, p. 52). Elas deveriam estar acima dos humores humanos.
Era nas leis que o poder deveria ser moderado, “de preferência a qualquer
indivíduo, seria melhor que a lei governasse. Quem confiava o poder su-
premo a um homem, fosse ele quem fosse, confiava-o a um animal selva-
gem, pois transformavam os seus apetites” (COSTA, 2006, p. 52).

A separação dos poderes como princípio da moderação 91


Aristóteles alertava para o caráter corruptível da natureza humana
quando se relaciona com o poder e os riscos de confiar o poder aos
homens, pois “os homens que se encontravam no poder, mesmo os su-
periores, deixavam-se influenciar pelas paixões, já a lei, não obstante,
era a razão sem desejo” (COSTA, 2006, p. 53).

Um Estado organizado com base nas leis seria um empreendimento


racional que dificultaria o abuso do poder. Então, todas as funções do
Estado deveriam estar previstas em legislações, para que o governante
não pudesse orientar suas ações com base em suas paixões pelo poder
e seus interesses pessoais.
O Estado, assim constituído, regularia a propriedade, a indústria,
o casamento, a família, a educação, a moral, a música, a litera-
tura e a arte. [...] Nenhum ser imperfeito ou disforme seria cria-
do, desde que a mais alta virtude fosse a inteligência. O principal
dever do Estado consistia não em treinar os cidadãos, com o fito
de lhes proporcionar superioridade militar, mas em educá-los
para o correto uso da paz. (COSTA, 2006, p. 53)

O Estado deveria promover o bem-estar da sociedade e executar


suas funções de modo a estimular a criação de indivíduos cidadãos que
soubessem participar da vida pública. Então, o poder deveria ser mode-
rado pelas leis e usado em benefício da sociedade. Essa preocupação
com a moderação do poder será retomada posteriormente nas discus-
sões de diversos autores, entre eles John Locke.

Considerado um dos principais autores apoiadores do liberalismo,


Locke deixou sua marca defendendo a responsabilidade do soberano
diante dos súditos. “Nem o direito divino dos reis, dado por Deus, nem
a visão hobbesiana de um Soberano todo-poderoso feito por contrato,
mas sim um Soberano que é mais um gerente do Estado do que qual-
quer outra coisa” (RAMOS; MELO; FRATESCHI, 2012, p. 125).

Para a teoria lockeana, o Estado era imprescindível para o desenvol-


vimento da sociedade civil. Todavia, ele cumpriria o seu papel somente
se existisse um poder moderado e delimitado pelas leis.
Um Soberano é importante, na verdade imprescindível, mas
deve e pode ser controlado. A solução [...] para esse controle
é a separação dos poderes do Estado em dois: um, a cargo do
Soberano, executará as leis e realizará os julgamentos sobre as
infrações destas. Executivo e Judiciário unidos, portanto. Outro
poder, e só ele, fará as leis, o Legislativo, este representado pelo

92 Ciências Políticas
povo, se comporá de homens com propriedade, que escolherão
representantes. (RAMOS; MELO; FRATESCHI, 2012, p. 125)

É importante observar que, como um autor do século XVII, Locke


não defendia o sufrágio universal, mas um modelo com a participação
da sociedade civil possuidora da propriedade. Sem dúvida, a contribui-
ção do autor está na sua visão sobre a soberania, que agora não de-
veria ficar concentrada no monarca absolutista, e sim se organizar em
poderes separados, ou seja, o Executivo e Judiciário como um grupo de
pessoas, incluindo o monarca, e o Legislativo separado.
1
Bobbio, ao refletir sobre os regi-
Posteriormente a Locke, os autores iluministas desenvolveram me-
mes políticos contemporâneos,
lhor a teoria da separação dos poderes. No século XVIII, o constitucio- afirma que “a legitimidade é
nalismo foi apresentado como receita para a moderação do poder do a medida em que um sistema
político democrático é conside-
Estado. O constitucionalismo se caracterizava pela afirmação de que rado merecedor de apoio por
o Estado e seus governantes deveriam seguir certos tipos de normas parte dos seus membros. Não
específicas. Assim, a legitimidade
1
do poder resultaria da vontade do se trata de uma definição que
leve a entender a legitimidade
próprio povo e da obediência dos governantes à lei maior. como simples aceitação
passiva do sistema, ou então
Também conhecida como teoria de freios e contrapesos, a teoria da
como obediência voluntária às
separação dos poderes foi elaborada, de maneira mais detalhada do que instituições vigentes com base
haviam feito Aristóteles e Locke, pelo pensador francês Charles-Louis de em cálculos de conveniência,
ou por causa de arraigada
Secondat, Barão de Montesquieu, na sua obra O Espírito das Leis. Toda- disposição a obedecer. Trata-se,
via, é importante lembrar que Montesquieu tomou como base as obras pelo contrário, de um conceito
dos seus antecessores, Aristóteles (Política) e Locke (Segundo Tratado do que leva em conta o total dos
sentimentos positivos dos
Governo Civil). cidadãos quanto às instituições
democráticas, tidas como as
Efetivamente, o pensamento de Locke, que havia estimulado a
mais aptas a disciplinar os con-
Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra, serviu de base para as de- flitos e a proteger os direitos dos
mocracias liberais, a ponto de, no século XVIII, ter sido utilizado por membros do sistema” (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998,
autores franceses e norte-americanos como inspiração para a defesa
p. 399).
da Revolução Francesa e da Independência dos EUA.

Para Locke, era fundamental que a sociedade civil pudesse con-


trolar o poder do soberano. Assim, com base no contrato que haviam
realizado para delegar o poder ao soberano, os mesmos homens
que confiaram o poder eram capazes de dizer quando havia abuso
desse poder. Locke defendia a tese de que os homens renunciaram
ao poder para ter uma vida melhor e, por isso, o governo deveria
existir para atingir esse fim.

Os tribunais deveriam existir para resolver os conflitos que surgissem


na sociedade, e para isso seriam necessários juízes neutros e honestos,

A separação dos poderes como princípio da moderação 93


que agissem de acordo com as leis. O Estado deveria executar suas fun-
ções para garantir a paz, a segurança e o bem-estar da sociedade. Assim,
a separação dos poderes em grupos diferentes e com funções diferentes
seria uma forma de evitar que uma única pessoa ou um único grupo con-
trolasse todo o poder do Estado e, por consequência, pudesse retirar as
liberdades dos indivíduos ou agir somente em benefício próprio.

Montesquieu pensou a separação de poderes como um mecanis-


mo para evitar essa concentração. Esse sistema também geraria o
controle mútuo, na medida em que cada poder deve realizar o con-
trole sobre os outros dois. Para evitar formas de Estados e governos
absolutistas e tirânicos, era necessário estabelecer a autonomia e os
limites de cada poder.

A partir da formação do Estado Moderno, no início do século XVI, o


poder ficou concentrado no Estado, por isso essa teoria é fundamental,
pois ela se baseia na ideia de que somente o poder controla o próprio
poder. Ou seja, é fundamental que um poder controle os outros, pois
somente eles são capazes de realizar essa função. A sociedade pode
fiscalizar e pressionar, mas somente um poder age contra os demais.

Dessa forma, o sistema de freios e contrapesos determina que cada


poder deve ser autônomo em relação aos outros e que eles devem pos-
suir poder na mesma proporção. Isso significa dizer que o Legislativo,
o Executivo e o Judiciário devem ser autônomos e, para que possam
exercer o controle uns sobre os outros, possuir a mesma importância
na estrutura do Estado, pois se um dos poderes for superior aos ou-
tros, ele acabará por ficar sem controle e a moderação desaparecerá.

5.2 A contribuição de Montesquieu


Vídeo O Barão de Montesquieu (1689-1755) possui origem em uma família
nobre e frequentou os salões de literatura típicos da formação ilumi-
nista. Como alguém que viveu antes da Revolução Francesa de 1789,
observou um cenário no qual a monarquia francesa havia se tornado
absolutista e era alvo de insatisfação. Nas obras de Montesquieu, po-
demos perceber uma forte crítica à monarquia absolutista e ao clero.
Na obra O Espírito das Leis, introduziu uma nova interpretação ao con-
ceito de lei. Em seu tempo, a lei era pensada como algo natural que
derivava da vontade divina.

94 Ciências Políticas
Ao definir lei como relações necessárias que derivam da natureza
das coisas, “Montesquieu estabelece uma ponte com as ciências empí-
ricas, e particularmente com a física newtoniana, que ele parafraseia.
Com isso ele rompe com a tradicional submissão da política à teologia”
(ALBUQUERQUE, 2002, p. 115).

Assim, Montesquieu alertou para o caráter histórico da elaboração


das leis pela própria sociedade em cada época e localidade geográfica,
ou seja, ele defendeu a ideia de que as leis são criadas pela sociedade
e não advêm de uma vontade exterior ou sobrenatural. Para além das
regras e normas sociais, ele estava preocupado em analisar as leis po-
sitivadas, aquelas que foram aprovadas pelo Estado e implementadas
+ Saiba mais
por meio de uma burocracia para regular as relações entre os homens.
“Estabilidade é a capacidade
Montesquieu observa que, ao contrário dos outros seres, os ho- previsível que um sistema tem
mens têm a capacidade de se furtar às leis da razão (que de- de se prolongar no tempo. Deste
veriam reger suas relações), além disso adotam leis escritas e modo, um sistema deve ser
costumes destinados a reger os comportamentos humanos. E considerado estável quando,
num momento dado, tido em
têm também a capacidade de furtar-se igualmente às leis e às
conta um conjunto de sinais, é
instituições. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 115) razoavelmente previsível que
ele continuará no tempo. Existe
Ele acreditava, assim como Aristóteles, que o homem poderia se uma notável diferença entre a
corromper em posse do poder e que era necessário pensar nas me- estabilidade assim definida e a
didas que o fariam agir corretamente. Outra questão que orientava o estabilidade entendida como
simples duração no tempo. Esta
seu pensamento foi incorporada de Maquiavel. Montesquieu compar- segunda definição, ao contrário
tilhava com o pensador florentino a preocupação com a estabilidade da primeira, não traduz o sen-
do governo. Para isso, era necessário desenvolver um mecanismo de tido típico deste conceito, que
pretenderia também englobar
controle sobre o poder, pois somente assim ele seria estável. a função de prever, mais do
Montesquieu está fundamentalmente preocupado com a esta- que de referir-se a sistemas
históricos. E poderia levar a
bilidade dos governos (expressão que corresponderia ao que
sustentar erroneamente que
chamamos de regime, ou modo de funcionamento das instituições uma monarquia tradicional, por
políticas). Com isso, ele retoma a problemática de Maquiavel, que exemplo, que permanece de há
discute essencialmente as condições de manutenção do poder. muito, é estável, embora possa
Os pensadores políticos que precedem Montesquieu (e Rousseau, estar a ponto de ser destruída
por uma revolução. É por outro
que o sucede) são teóricos do Contrato Social (ou do Pacto), estão
lado evidente que, num juízo a
fundamentalmente preocupados com a natureza do poder políti- posteriori, poder-se-á dizer que
co, e tendem a reduzir a questão da estabilidade do poder à sua um sistema político que durou
natureza. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 116, grifos nossos) por muito tempo foi provavel-
mente estável durante boa parte
Podemos observar que, diferentemente dos contratualistas, da sua existência” (BOBBIO;
Montesquieu não irá reduzir a questão da estabilidade à natureza do po- MATTEUCCI; PASQUINO, 1998,
p. 394, grifos do original).
der. Para ele, é fundamental observar o funcionamento das instituições
políticas ao longo da história e observar o que funcionou por mais tempo.

A separação dos poderes como princípio da moderação 95


Montesquieu constata que o estado de sociedade comporta uma
variedade imensa de formas de realização, e que elas se acomo-
dam mal ou bem a uma diversidade de povos, com costumes
diferentes, formas de organizar a sociedade, o comércio e o go-
verno. Essa imensa diversidade não se explica pela natureza do
poder e deve, portanto, ser explicada. O que deve ser investigado
não é, portanto, a existência de instituições propriamente políti-
cas, mas sim a maneira como elas funcionam. (ALBUQUERQUE,
2002, p. 116)

Ou seja, ele estava preocupado em compreender o movimento das


instituições e das leis na história humana, de modo científico. “O objeto
de Montesquieu é o espírito das leis, isto é, as relações entre as leis
(positivas) e as ‘diversas coisas’, tais como o clima, as dimensões do
Estado, a organização do comércio, as relações entre as classes etc.”
(ALBUQUERQUE, 2002, p. 115-116).

Em sua obra, Montesquieu abominava toda forma de despotismo e


almejava a igualdade e liberdade para seus semelhantes, por isso ele se
dedicou ao estudo das organizações e do poder e propôs o sistema de
tripartição do poder em Legislativo, Executivo e Judiciário.

Ele defendia, basicamente, cinco aspectos: a distribuição do contro-


le dos Estados em três poderes; a necessidade de escolha de apenas
um regime de governo (republicano, despótico ou monárquico); a ma-
nutenção das regras e leis; a preservação da liberdade; e a abolição da
escravatura.

Como já vimos, para Montesquieu, os homens são bons, fracos e


iguais no estado de natureza, por isso formam a sociedade; por conse-
quência, a diferenciação ocorre gerando o estado de guerra (dentro de
uma nação e uma contra outra). Então, para regular o estado de guerra,
nasce o poder político, que institui as leis com base nos direitos das
gentes, no direito político e nos direitos civis.

Assim, como a base do poder político está nas leis, Montesquieu


analisa a relação existente entre as leis e o princípio de cada governo,
observa o funcionamento das instituições políticas e afirma que estas
são regidas por leis que derivam das relações políticas. Em seus es-
tudos, ele indicou a existência de três regimes de governo: a monar-
quia (governo das instituições), a república (governo da vontade dos
homens) e o despotismo (governo do medo).

96 Ciências Políticas
Ele vai considerar duas dimensões do funcionamento político
das instituições: a natureza e o princípio de governo. A natureza
do governo diz respeito a quem detém o poder: na monarquia,
um só governa, através de leis fixas e instituições; na república,
governa o povo no todo ou em parte (repúblicas aristocráticas);
no despotismo, governa a vontade de um só. (ALBUQUERQUE,
2002, p. 116)

Em sua tipologia, ele analisa o princípio e a natureza de cada gover-


no. A natureza diz respeito a quem governa e o princípio diz respeito
à paixão que move o governo. Assim, a monarquia é considerada um
regime movido pela honra; a república, pela virtude; e o despotismo,
pelo medo. “Em tese, porque, segundo Montesquieu, ele não afirma
que toda república é virtuosa, mas sim que deveria sê-lo para poder ser
estável” (ALBUQUERQUE, 2002, p. 117).

Ele estudou esses três modelos para observar o que funcionou me-
lhor para a manutenção do poder. Ainda, sobre os regimes políticos, o
autor afirma que o despotismo “é um regime que se situa no limiar da
política: o despotismo seria menos do que um regime político, quase
uma extensão do estado de natureza, onde os homens atuam movi-
dos pelos instintos e orientados para a sobrevivência” (ALBUQUERQUE,
2002, p. 116). Então, podemos observar que o autor buscava não só a
mera classificação dos regimes, mas também observar como o poder
era exercido pelas instituições nas relações entre grupos e classes.
Não se trata de uma noção puramente descritiva, como poderia
parecer à primeira vista. As análises minuciosas de Montesquieu
sobre as “leis relativas à natureza do governo” deixam claro que
se trata de relações entre as instâncias de poder e a forma como
o poder se distribui na sociedade, entre os diferentes grupos e
classes da população. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 116)

Afinal, ele estava preocupado em encontrar a raiz da estabilidade.


Em seus estudos, observou que a monarquia medieval foi o regime
mais estável, pois o monarca repartia o poder com os nobres e o clero.
Montesquieu acreditava que o mais efetivo tipo de governo é a mo-
narquia. Por meio dela, o monarca exerce seu poder com toda a sua
nobreza. O clero e o Parlamento, por sua vez, controlam suas ações.

Para o pensador, o fraco deveria se proteger do forte pelas leis e


pela separação dos poderes. Ele defendia a tese de que a nobreza e o
monarca deveriam estar presentes, pois não teriam sucesso um sem o

A separação dos poderes como princípio da moderação 97


outro. Ao redigir sua obra, ressaltou que, para se obter sucesso no po-
der, deve-se compreender que os membros das classes não são iguais,
mas têm algumas necessidades semelhantes.
A honra é uma paixão social. Ela corresponde a um sentimen-
to de classe, a paixão da desigualdade, o amor aos privilégios e
prerrogativas que caracterizam a nobreza. O governo de um só
baseado em leis fixas e instituições permanentes, com poderes
intermediários e subordinados – tal como Montesquieu caracte-
riza a monarquia –, só pode funcionar se esses poderes interme-
diários orientarem sua ação pelo princípio da honra. É através da
honra que a arrogância e os apetites desenfreados da nobreza
bem como o particularismo dos seus interesses se traduzem em
bem público. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 117)

O autor observou que o sucesso da monarquia medieval advinha


do fato de o poder estar separado nas mãos de grupos diferentes e
concorrentes entre si. Dessa forma, um controlava o outro e garantia a
moderação do poder e, por consequência, sua longa duração.
No que concerne à república, por exemplo, Montesquieu lembra
que, por tratar-se de um governo em que o poder é do povo,
é fundamental distinguir a fonte do exercício do poder, e esta-
belecer criteriosamente a divisão da sociedade em classes com
relação à origem e ao exercício do poder. O povo, diz ele, sabe es-
colher muito bem, mas é incapaz de governar porque é movido
pela paixão e não pode decidir. Portanto, na natureza dos gover-
nos republicanos está compreendida a relação entre as classes e
o poder. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 117)

Dito de outra forma, o autor observou que os poderes Legislativo,


Executivo e Judiciário devem estar nas mãos de grupos diferentes, com
poderes equitativos, de maneira a se controlarem mutuamente. Esse
controle é especialmente necessário no regime republicano.
Só a virtude é uma paixão propriamente política: ela nada mais
é do que o espírito cívico, a supremacia do bem público sobre
os interesses particulares. É por isso que a virtude é o princípio
da república. Onde não há leis fixas nem poderes intermediá-
rios, onde não há poder que contrarie o poder como a nobreza
contraria o rei e este à nobreza, somente a prevalência do inte-
resse público poderia moderar o poder e impedir a anarquia ou
o despotismo, eternamente à espreita dos regimes populares.
(ALBUQUERQUE, 2002, p. 117)

98 Ciências Políticas
Diferentemente da monarquia, que se baseia na honra, na repúbli-
ca o princípio é a virtude. Mas como os homens não são tão virtuosos
quando estão em posse do poder, é necessário haver mecanismos de
controle para que o próprio poder possa se autofiscalizar. Então, é ne-
cessário separar o poder em três grupos diferentes e garantir que o
controle mútuo gere a moderação e a estabilidade.

Portanto, a separação dos poderes proposta por Montesquieu pode


ser compreendida da seguinte forma: o Poder Legislativo tem a fun-
ção principal de legislar – por isso recebe esse nome – e desempenha
também a função de fiscal sobre os atos dos outros poderes; o Execu-
tivo tem a função de administrar tudo que diz respeito à coisa pública,
ou seja, educação, saúde, segurança, obras etc., além de fiscalizar os
outros poderes; já o Judiciário tem como principal função a de julgar,
aplicando a lei a casos concretos que lhe são postos como resultado
dos conflitos de interesse que surjam internamente na sociedade e na
relação dela com o Estado, e, ainda, de fiscalizar as ações dos outros
poderes.

Então, no sistema de freios e contrapesos, proposto pela teoria,


cada poder é responsável por deter os possíveis abusos dos demais po-
deres. Quando o Judiciário declara a inconstitucionalidade de uma lei,
é um freio a um ato Legislativo que, por questões de interesse político
do proponente, muitas vezes propõe um projeto de lei mesmo que esta
seja inconstitucional e, portanto, arbitrária. Essa atuação do Judiciário é
um bom exemplo da medida de freio que busca garantir a moderação.

O contrapeso significa que cada poder deve estar em condições de


fiscalizar os demais, pois eles possuem funções distintas e, dessa for-
ma, são independentes, ou seja, não existe uma hierarquia entre eles.
Portanto, essa forma de organização seria a base da moderação que
garantiria a liberdade dos indivíduos frente ao poder do Estado.

Contudo, segundo Bastos (1999), não podemos considerar que em


todos os Estados o modelo teorizado por Montesquieu tenha sido im-
plementado com sucesso, mas, com certeza, ele influenciou a organiza-
ção do poder em todos os Estados de Direito na contemporaneidade.
Em sua aplicação concreta, o autor argumenta que as três funções
não são tão rigidamente separadas como prevê a teoria, mas, mesmo
assim, a tripartição dos poderes é um dispositivo de moderação apli-
cado ainda na atualidade, estando presente no artigo 16 da Declara-

A separação dos poderes como princípio da moderação 99


ção Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão e no artigo 2º da
Constituição Federal brasileira, que determina a divisão e as especifici-
dades das funções de cada poder.

5.3 O Estado de Direito


Vídeo O Estado de Direito se consolidou após os movimentos revolucio-
nários políticos dos séculos XVII e XVIII, com destaque para a Revolu-
ção Gloriosa, na Inglaterra (1688), a Revolução Americana, também
conhecida como Independência dos EUA (1776), a Revolução Francesa
(1789) e o contexto de mudanças sociais e econômicas geradas pela
Revolução Industrial.

O seu desenvolvimento está intimamente ligado às demandas para


controlar o poder dos monarcas absolutistas e à busca racional por
eliminar qualquer forma de despotismo. Assim, o poder do Estado ad-
quiriu, ao longo da história, uma característica burocrática que neces-
sita de um ordenamento jurídico para que seja legitimado e legalizado.
Por isso, um governo deve se orientar por uma legislação precisa, que
lhe atribua legalidade e legitimidade. Um governo que assume o poder
sem ter direito legal realiza um golpe de Estado, e esse golpe é com-
preendido como um ataque à Constituição.

Segundo o jurista Jorge Miranda, “qualquer Estado, seja qual for o


tipo histórico a que se reconduza, requer ou envolve institucionaliza-
ção jurídica do poder, em qualquer Estado podem recortar-se normas
fundamentais em que se assenta todo seu ordenamento” (MIRANDA,
2002, p. 319).

O autor considera que, em menor ou maior grau, todas as atribui-


ções do Estado devem estar previstas na Carta Magna ou em códigos
e regulamentos semelhantes. Todavia, somente a partir do século XVIII
“se encara a Constituição como um conjunto de regras jurídicas defini-
doras das relações (ou da totalidade das relações) do poder político, do
estatuto de governantes e de governados; e é esse o alcance inovador
do constitucionalismo moderno” (MIRANDA, 2002, p. 319).

Podemos observar que existe uma estreita relação entre o nasci-


mento do Estado de Direito e as ideias defendidas pelo constitucio-
nalismo, que acredita na importância da Constituição para delimitar o
poder do Estado e garantir as liberdades individuais frente ao poder

100 Ciências Políticas


exclusivo do Estado, ou seja, o poder de legislar, julgar, executar e utili-
zar a violência legítima. A Constituição é considerada a base da susten-
tabilidade para a relação entre Estado e sociedade de modo jurídico e
racional.

Se, no passado, os governos absolutistas podiam ser reconhecidos


como legítimos devido à aceitação social do direito hereditário, com a
implementação do sistema constitucional, o governo passa a necessitar
de reconhecimento social e legal para ser legítimo. Isso ocorre quando
seu exercício está em conformidade com as regras constitucionais que
estipulam o caminho do acesso ao poder. Ou seja, no Estado de Direito
Constitucional, o governo deve ser legítimo (reconhecimento social) e
legal (de acordo com a lei).
A passagem da esfera da legitimidade para a esfera da legalidade
assinalou, dessa forma, uma fase ulterior do Estado moderno,
a do Estado de direito, fundado sobre a liberdade política (não
apenas privada) e sobre a igualdade de participação (e não ape-
nas pré-estatal) dos cidadãos (não mais súditos) frente ao poder,
mas gerenciado pela burguesia como classes dominantes, com os
instrumentos científicos fornecidos pelo direito e pela economia
na idade triunfal da Revolução Industrial. (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 1998, p. 430)

Todavia, para os autores marxistas, o Estado de Direito buscou ad-


ministrar os conflitos de classes presentes na economia capitalista e ga-
rantir os privilégios da burguesia. Para esses autores, a liberdade dos
indivíduos somente pode ser garantida pela eliminação do Estado, pois
o Estado Capitalista, sendo gerado pelo sistema capitalista, irá proteger a
propriedade privada e manter as desigualdades entre as classes sociais.
É em relação a este Estado, fundado sobre o direito, a ponto
de ter sido levado a coincidir com o ordenamento jurídico que
respeita o indivíduo, e seus direitos naturais e também a socie-
dade e suas leis naturais, sobretudo no campo da economia,
que foi proposta a definição de “instrumento de domínio da
classe dominante” e que foi desenvolvida a coerente diagno-
se da sua necessária eliminação, uma vez que aquele domínio
podia ter sido concentrado, graças à instauração de uma socie-
dade sem classes. Mas é em relação a este mesmo Estado que
se exerceu a capacidade de sobrevivência da sociedade civil,
burguesa, com o emprego de meios cada vez mais refinados de
auto-organização e de controle da ordem constituída. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 430)

A separação dos poderes como princípio da moderação 101


O Estado é considerado um instrumento de domínio da classe do-
minante, pois é ele que regula as relações entre burgueses e proleta-
riado (operários das fábricas), que caracterizaram a organização social
e econômica do século XIX. Todavia, apesar da complexidade que o
desenvolvimento histórico gerou na configuração das classes sociais
e das lutas de classes, os autores marxistas defendem a ideia de que
o Estado de Direito, mesmo em sua versão democrática, permanece
defendendo os direitos dos dominantes e gerando a ilusão de que as
massas realmente são representadas. Na construção dessa ilusão, o
desenvolvimento de políticas sociais foi fundamental para que os tra-
balhadores se sentissem amparados pelo Estado.
Assim, se sobre o plano teórico, como no plano da atuação prá-
tica, a elaboração de modelos de representação e de associação
mais adequados à expansão da sociedade (por causa da entra-
da nela de novos titulares de novos direitos) e relacionados com
o papel qualitativamente diverso que nela desenvolveu a bur-
guesia como força hegemônica levou à recepção dos temas de
fundo da doutrina democrática, formalizados no fenômeno do
parlamentarismo e do partido de massa, o verdadeiro passo em
frente foi porém representado pela constituição do Estado como
Estado social, em resposta direta às necessidades substanciais
das classes subalternas emergentes. Assistiu-se, por outras pa-
lavras, a uma retomada, por parte do Estado e do seu apare-
lho, de uma função de gestão direta da ordem social. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 430)

Podemos observar que o Estado de Direito desenvolvido após o sé-


culo XVIII buscou ampliar as suas funções como resposta às demandas
dos novos atores surgidos na sociedade industrial. Assim, era necessá-
rio intermediar os conflitos existentes entre as classes sociais e regula-
mentar as relações entre Estado e sociedade de maneira a garantir as
liberdades individuais e o direito de participação política dos grupos so-
ciais. Essa busca pela harmonização entre direitos individuais e direitos
sociais configura a complexidade dos Estados Democráticos de Direito:
Os direitos fundamentais representam a tradicional tutela das
liberdades burguesas: liberdade pessoal, política e econômica.
Constituem um dique contra a intervenção do Estado. Pelo con-
trário, os direitos sociais representam direitos de participação
no poder político e na distribuição da riqueza social produzida. A

102 Ciências Políticas


forma do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a participação
[...]. Além disso, enquanto os direitos fundamentais representam
a garantia do status quo, os direitos sociais, pelo contrário, são a
priori imprevisíveis, mas hão de ser sempre atendidos onde emer-
jam do contexto social. Daí que a integração entre Estado de direi-
to e Estado social não possa dar-se a nível constitucional, mas só a
nível legislativo e administrativo. Se os direitos fundamentais são
a garantia de uma sociedade burguesa separada do Estado, os di-
reitos sociais, pelo contrário, representam a via por onde a socie-
dade entra no Estado, modificando a estrutura formal. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 401, grifos do original)

O maior desafio do Estado de Direito seria gerir a relação entre as


liberdades individuais, que é um direito fundamental, e os direitos so-
ciais, que envolvem o reconhecimento de que a sociedade é formada
por grupos desiguais economicamente e a necessidade da tutela do
Estado sobre essas relações. Nesse sentido, podemos perceber que o
maior problema se apresenta para o Estado de Direito Liberal, pois este
busca evitar interferências nas relações econômicas. Já o Estado De-
mocrático de Direito poderá realizar, com menor dificuldade, a junção
entre direitos fundamentais e sociais. Afinal, é um pressuposto da de-
mocracia surgida das lutas sociais do século XIX que os grupos possam
participar do processo político e que o Estado garanta as condições
adequadas para isso.
A mudança fundamental consistiu, a partir da segunda metade
do século XIX, na gradual integração do Estado político com a so-
ciedade civil, que acabou por alterar a forma jurídica do Estado,
os processos de legitimação e a estrutura da administração. A es-
trutura do Estado de direito pode ser, assim, sistematizada como:
1) Estrutura formal do sistema jurídico, garantia das liberdades
fundamentais com a aplicação da lei geral-abstrata por parte de
juízes independentes. 2) Estrutura material do sistema jurídico:
liberdade de concorrência no mercado, reconhecida no comér-
cio aos sujeitos da propriedade. 3) Estrutura social do sistema
jurídico: a questão social e as políticas reformistas de integração
da classe trabalhadora. 4) Estrutura política do sistema jurídico:
separação e distribuição do poder. As mudanças ocorridas na es-
trutura material e na estrutura social do sistema jurídico foram
origem das transformações a nível formal e político. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 402)

A separação dos poderes como princípio da moderação 103


Portanto, podemos observar que o Estado de Direito resultou de
uma série de transformações na estrutura normativa e organizacional
do Estado, mas as estruturas e as normas precisam ser internalizadas
pelos atores sociais, que precisam acreditar nelas para que sejam está-
veis e eficazes. Nesse sentido, podemos perceber que mudaram tam-
bém as ideias e crenças que as sociedades possuíam sobre como deve
ser o Estado e o poder por ele exercido, ou seja, passa a ser predomi-
nante a crença racional legal-burocrática.
O poder do Estado de direito é racional quando, escreve Weber,
“se apoia na crença da legalidade dos ordenamentos estatuídos
e do direito daqueles que foram chamados a exercer o poder”.
Assim, a fé na legitimidade se resolve em fé na legalidade, e a
legitimação da administração que transmite o comando políti-
co é uma legitimação legal. A lógica desta racionalidade admi-
nistrativa é própria do Estado de direito. (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 1998, p. 402-403, grifo do original)

Podemos observar que, para o pensador alemão Max Weber, a


crença na legalidade passou a ser a principal característica das socie-
dades complexas pós-industriais até os dias atuais. Assim, a legalidade
atribui caráter de legitimidade ao poder exercido no Estado de Direito.
Essa legalidade está presente na organização cotidiana da vida em so-
ciedade e no próprio cotidiano das atividades do Estado. Até mesmo
em momentos de crise, a instituição de medidas restritivas de liberda-
de por parte do Estado deve estar amparada na lei, para que ele não
perca sua legitimidade. Afinal, na contemporaneidade, parece existir
uma confusa fusão entre o que é legítimo e o que é legal, sendo con-
siderado legítimo o que está previsto em lei, e não aquilo que possui
efetiva aceitação social.

Um exemplo dessa situação é a instituição do Estado de Sítio. Quan-


do previsto na Constituição, os poderes desempenhados pelo Estado
podem ter sua ação temporariamente concentrada em um indivíduo
ou grupo, para agilizar as ações em tempos de crise, como guerras etc.
No entanto, é necessário que esteja previsto em lei e que o exercício do
poder siga o texto legal, para não se caracterizar como ditadura.
A aplicação integral dos princípios do “Estado de direito” ao Es-
tado de sítio só será possível se a estrutura do Estado for sólida.
No decorrer deste século, foram-se delineando diversos fatores
de perigo para a existência do Estado que era impossível prever
segundo critérios apriorísticos. Tendo isso em conta, tratou-se

104 Ciências Políticas


de assegurar amplos poderes às autoridades supremas do Esta-
do, para as deixar em condições de pôr em prática as diligências
necessárias, quando em perigo a estabilidade do Estado. Foram
dois os modos principais de o fazer. Em algumas constituições,
conferiu-se ao chefe do Estado, de forma permanente, o poder
de adotar, em qualquer momento, as medidas consideradas
necessárias. Outras vezes previu-se a possibilidade de conferir
ao órgão do Governo, por ato do Parlamento, poderes excep-
cionais para um longo período: atribuísse assim estavelmente
a um órgão a incumbência de vigiar pela segurança pública,
com o poder da intervenção imediata. (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 1998, p. 415)

Estando prevista na Constituição, essa modalidade pode evitar a


perpetuação no poder de um grupo ou indivíduo além do tempo es-
tipulado no texto legal. Além disso, ela busca resguardar a instituição
de possíveis golpes, em momentos de crise, por indivíduos ou grupos
externos à estrutura do próprio Estado. Assim, somente por um curto
período o Estado de Direito abriria uma lacuna para a suspensão tem-
porária da separação dos três poderes.
Por via disso, a “Convenção Europeia para a Defesa dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais”, depois de haver in-
dicado os direitos e as liberdades que os membros da Conven-
ção hão de conceder aos que se encontrem sob a sua jurisdição,
reconhece aos Estados participantes da Convenção o poder de
os derrogar, não só em caso de guerra, mas também em caso
de grave perigo para a própria vida da nação, mas só na justa
medida das necessidades (art. 15, § 1°). (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 1998, p. 415)

O reconhecimento do perigo de as ditaduras utilizarem esse dispo-


sitivo e da necessidade de garantir os direitos fundamentais levou as
convenções internacionais a prever também a possibilidade de julga-
mentos para pessoas ou grupos que, no exercício do poder, buscarem
atentar infundadamente contra o Estado de Direito.
As partes contraentes que exerçam tal poder têm o dever de in-
formar o Secretário-Geral do Conselho da Europa da ação empre-
endida e dos motivos que a inspiraram (art. 15, § 3.°). Contra uma
das partes que haja declarado o Estado de sítio, invocando o art.
15, § 1.º da Convenção, qualquer dos outros contraentes pode
recorrer à Comissão Europeia dos Direitos do Homem. Quando a
Comissão julgar que o Estado contra o qual se recorreu agiu sem
que na realidade existissem as condições previstas pelo art. 15, §

A separação dos poderes como princípio da moderação 105


1.°, ou adotou medidas não rigorosamente necessárias, entrará
em ação um mecanismo que poderá levar à adoção de medidas
contra o Estado tido por inadimplente, medidas que podem ir
da recomendação a pôr termo ao Estado de sítio ou da publi-
cação de um relatório da Comissão à expulsão desse Estado do
Conselho da Europa. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998,
p. 415-416)

Naturalmente, mesmo todas as legislações que buscam controlar os


abusos de poder não impedem que ditaduras sejam implementadas em
vários países. Afinal, para muitos Estados os direitos fundamentais são
considerados secundários frente a outros direitos que são privilegiados
pelos seus dirigentes. Um Estado Teocrático que utiliza como base a
doutrina religiosa irá considerar direitos relacionados aos comporta-
mentos e papéis sociais como sendo mais importantes do que a liber-
dade, a integridade ou a vida.

Como já indicamos anteriormente, no mundo ocidental, as ameaças


ao Estado de Direito e à democracia que ocorrem quando a Constitui-
ção não é respeitada pelas elites políticas têm sido observadas e pu-
nidas pelas organizações e pelos conselhos internacionais. As formas
de punições podem variar desde embargos econômicos, expulsão de
conselhos ou blocos econômicos até processos em tribunais interna-
cionais. Infelizmente, a história tem comprovado que essas elites políti-
cas que abusam do poder raramente são punidas em curto prazo, mas
acabam, mesmo que a longo prazo, perdendo o poder, enfrentando
processos para responder por seus crimes contra os direitos humanos
e as liberdades individuais e sendo registradas na memória histórica
como ditadoras. Um exemplo dessas punições pode ser observado no
caso do golpe de Estado na Grécia, em 1967.
O procedimento e controle antes referidos tiveram ocasião de ser
aplicados concretamente e com uma certa eficácia a seguir à pro-
clamação do Estado de sítio na Grécia, um dia depois do golpe de
Estado de 21 de março de 1967. Nessa altura, os órgãos do Con-
selho da Europa entenderam não existir os extremos de que fala
o art. 15 da Convenção europeia, que permitiriam a suspensão
das garantias constitucionais decretadas pelo Governo dos “Coro-
néis”, e que, por conseguinte, tal comportamento constituía uma

106 Ciências Políticas


violação da mesma Convenção. Em consequência disso, a Grécia,
ameaçada de expulsão, foi obrigada a retirar-se do Conselho da
Europa, a que só pôde voltar após o restabelecimento da demo-
cracia no país. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 419)

Atualmente, encontramos uma sobreposição do modelo democrá-


tico ao Estado de Direito, e as combinações podem ser complexas e
variadas. Um exemplo dessa complexidade é o Reino Unido, que se
apresenta formalmente como uma monarquia constitucional. Nesse
regime de governo, o monarca tem poderes figurativos e quem exerce,
efetivamente, as atividades de governo é o primeiro-ministro, sendo
que as leis são votadas pelos parlamentares, que são eleitos pelo voto
popular a partir da disputa entre diversos partidos políticos.

Isso indica que, mesmo que a nomenclatura do regime se apresen-


te como uma monarquia, em seu funcionamento encontramos as ca-
racterísticas das democracias parlamentares. Então, poderíamos dizer
que o Reino Unido é uma monarquia constitucional com sistema de
governo parlamentarista e eleições democráticas para o Legislativo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado de Direito é uma modalidade que busca garantir as liberda-
des individuais e os direitos fundamentais. Sua existência é uma forma de
resistência contra o absolutismo, as ditaduras e medidas de elites políticas
que agem de modo arbitrário. Sua forma organizacional se pauta na exis-
tência de uma separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário,
de modo que possam fiscalizar uns aos outros e agir com medidas de
sanção nos casos de irregularidades. Seu funcionamento tem como base
a racionalidade legal; por isso funde-se com o modelo constitucional, no
qual é necessário existir uma Constituição para prescrever como o poder
deve se organizar e qual é o limite de sua ação.
Por fim, cabe ressaltar que as democracias contemporâneas são for-
mas de Estados de Direito, pois a democracia necessita desse controle
que a racionalidade jurídica impõe ao poder do Estado para evitar a sua
forma distorcida, a ditadura. Quando um governo não respeita a Consti-
tuição, não podemos falar que existe democracia, muito menos um Esta-
do de Direito.

A separação dos poderes como princípio da moderação 107


AMPLIANDO SEUS CONHECIMENTOS
•• CODATO, A. N. Parâmetros para uma análise empírica da rela-
ção entre ideias, elites e instituições. Política & Sociedade, n. 12, p.
23-48, abr. 2008. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.
php/politica/article/view/7637. Acesso em: 20 dez. 2019.

Esse artigo, do professor Adriano Nervo Codato, apresenta uma


discussão interessante sobre a relação que as elites possuem com
as instituições políticas no Brasil. Ao abordar o período do gover-
no de Getúlio Vargas, o texto nos proporciona uma visão histórica
sobre as dificuldades que enfrentam os Estados de Direito nas
democracias em países com pouca experiência democrática.

•• MONTESQUIEU, C. O Espírito das Leis: as formas de governo, a fe-


deração, a divisão dos poderes. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

Por se tratar de uma obra clássica, possui grande densidade e


extensão. Sugerimos se concentrar na leitura de duas partes da
obra, o segundo e terceiro livros.

•• SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Com-


panhia das Letras, 2019.

Uma leitura importante para compreender os processos políticos


no Brasil é o livro de Lilia Moritz Schwarcz, que tem estudado o
cenário brasileiro há mais de uma década. Utilizando dados esta-
tísticos, a autora discute as raízes do autoritarismo brasileiro e os
motivos da sua negação em uma elaborada mitologia nacional.

ATIVIDADES
1. Explique o que significa o sistema de freios e contrapesos.

2. Bobbio, ao refletir sobre os regimes políticos contemporâneos, afirma


que:
A legitimidade é a medida em que um sistema político demo-
crático é considerado merecedor de apoio por parte dos seus
membros. Não se trata de uma definição que leve a entender
a legitimidade como simples aceitação passiva do sistema, ou
então como obediência voluntária às instituições vigentes com

108 Ciências Políticas


base em cálculos de conveniência, ou por causa de arraigada dis-
posição a obedecer. Trata-se, pelo contrário, de um conceito que
leva em conta o total dos sentimentos positivos dos cidadãos
quanto às instituições democráticas, tidas como as mais aptas a
disciplinar os conflitos e a proteger os direitos dos membros do
sistema. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 399)

Com base nesse texto, discorra sobre a complexa relação entre


legitimidade e legalidade nas relações entre Estado e sociedades
contemporâneas.

3. A moderação do poder político tem sido teorizada desde a Antiguidade


Clássica, então podemos pressupor que é um tema relevante para
a ciência política. Disserte sobre a importância da moderação nos
governos.

4. Montesquieu compartilhava com Maquiavel a preocupação com a


estabilidade do governo e afirmava ser necessário desenvolver um
mecanismo de controle sobre o poder, pois somente assim ele seria
estável. Explique o que significa essa estabilidade.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, J. A. G. Montesquieu: sociedade e poder. In: WEFFORT, F. C. Os clássicos da
política. São Paulo: Ática, 2002. v. 1.
BASTOS, C. R. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. 11. ed. Brasília: Editora
UnB, 1998.
COSTA, N. N. Ciência Política. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006.
MIRANDA, J. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
RAMOS, F. C.; MELO, R.; FRATESCHI, Y. Manual de Filosofia Política Para os cursos de Teoria do
Estado & Ciência Política, Filosofia e Ciências Sociais. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

A separação dos poderes como princípio da moderação 109


6
Sociedade civil e
sociedade política
Neste capítulo, analisaremos a importância dos sistemas
partidários e eleitorais para a configuração dos modelos
democráticos. Compreenderemos também a importância das
relações que se estabelecem entre a sociedade civil e a sociedade
política para a construção de um modelo de gestão mais ou menos
democrática.

6.1 Sistema eleitoral, sistema


Vídeo partidário e eleições
Buscando garantir a participação da sociedade civil nas ações da
sociedade política, ou seja, no Estado, o regime democrático tem sido
adotado na maioria dos países ocidentais, principalmente a partir
do século XX. Todavia, essa participação tem vivenciado períodos de
restrição com a imposição das ditaduras, como foi o caso dos países
nos quais se instalou o nazismo e o fascismo na primeira metade do
século XX e das ditaduras militares na segunda metade.

O Estado que adota como regime político a democracia deve orga-


nizar suas instituições e legislações para garantir o seu funcionamento.
Para isso, é necessário instituir um sistema eleitoral e um sistema parti-
dário que busquem garantir, da melhor forma possível, as eleições que
legitimam esse regime. Afinal, na contemporaneidade, a democracia
representativa (indireta) é a forma predominante.

Teoricamente, poderíamos escolher todos os integrantes do Es-


tado, todavia isso não acontece. O mais comum é que por meio de
eleições sejam eleitos somente os cargos da cúpula dos poderes do
Estado Democrático ou, mais precisamente, dos Poderes Legislativo e
Executivo. Dessa forma, em um regime democrático, os cidadãos são

110 Ciências Políticas


convocados a participar das eleições, principalmente para a escolha do
Legislativo e do Executivo, sendo o Poder Legislativo considerado o lo-
cal onde a vontade do povo estaria representada, pois os candidatos
que representam setores e grupos diferentes da sociedade poderiam
nele ocupar uma cadeira e falar em seu nome.

Então, o processo eleitoral, de modo mais preciso a eleição, deve


ser organizado para garantir que os vários segmentos da sociedade
consigam participar do processo. Dessa forma, na contemporaneida-
de, as eleições democráticas estão baseadas em três princípios fun-
damentais: a generalidade, a paridade e a liberdade. Todavia, isso
não significa que sua execução esteja isenta de conflitos e que funcio-
ne perfeitamente, mas que, formalmente, essas condições devem ser
garantidas. “Por generalidade se entende que todo cidadão adulto é
sujeito ativo e passivo de direitos eleitorais, não sendo toleradas discri-
minações. [...] Por paridade se entende que é forçoso atribuir o mesmo
peso aos votos de qualquer eleitor” (BASTOS, 1999, p. 205).

Esses princípios representam conquistas do século XX, pois as mu-


lheres tiveram o reconhecimento do direito ao voto somente nesse sé-
culo. Durante o século XIX era comum utilizar o critério de renda como
forma de estabelecer quem teria ou não direito de votar e ser eleito e
para qual escala do poder, ou seja, quem possuísse maior renda pode-
ria votar e ser eleito para cargos principais e os outros somente para
níveis regionais.

Um bom exemplo dessa exclusão antidemocrática pode ser en-


contrado na Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, que 1
1
estabelecia o chamado sufrágio censitário, no qual apenas poderiam
“Sufrágio é processo de escolha.
votar os que possuíam renda anual acima de um valor estipulado, Voto é ato de escolha. O direito
excluindo os demais. O sufrágio cultural também pode ser compreen- de votar chama-se sufrágio. O
voto é o instrumento do sufrá-
dido como uma forma de exclusão, pois, nele, somente podem votar gio. O voto é o meio de exercer o
aqueles que possuem um grau mínimo de erudição que a legislação direito de sufrágio” (ACQUAVIVA,
de cada país estipula e, ainda, no caso do sufrágio masculino, ex- 1982, p. 132).

cluem-se as mulheres do direito ao voto sob variadas alegações de


inabilidade para a vida pública.

Atualmente, “a generalidade do direito ao voto se impõe, só sendo


admissíveis aquelas ressalvas que a própria ordem natural das coisas
sugere. Assim, não votam os menores de idade e os destituídos de ca-

Sociedade civil e sociedade política 111


pacidade jurídica nos termos das leis civis” (BASTOS, 1999, p. 205). A
paridade também foi adotada como forma de garantir que todos os
votos tenham o mesmo peso, não sendo permitido que o voto de um
eleitor, seja ele quem for, tenha valor superior aos demais. Esse critério
também se aplica às candidaturas, que devem possuir, igualmente, os
mesmos direitos e condições de participar da disputa, pelo menos na
formalidade da lei.

Por fim, a liberdade foi considerada fundamental para que o pro-


cesso eleitoral democrático formalmente se realizasse, pois, assim, os
trabalhadores e as mulheres não seriam diretamente coagidos a votar
em quem seus mandatários desejassem, fossem eles patrões, maridos
ou pais. Segundo Bastos (1999, p. 205),
liberdade significa que nem aos particulares nem ao Estado é lí-
cito exercer pressões sobre o eleitor no sentido de determinar o
conteúdo do seu voto ou mesmo impedir que exerça esse direi-
to. É compatível, todavia, com a liberdade do voto a imposição do
dever de comparecer às urnas. Há alguns Estados que preferem
estender a liberdade, inclusive a esse ponto. Outros, contudo,
temerosos de uma grande abstinência eleitoral, preferem o voto
como um misto de direito e de dever.

Para garantir a liberdade de escolha, foi necessário introduzir, tam-


bém, o voto secreto. Assim, somente o eleitor ou a eleitora teria direito
a saber qual foi sua escolha, para evitar pressões ou represálias. No
+ Saiba mais processo de escolha dos representantes, compreendeu-se que o voto
“No que diz respeito ao direto, que caracteriza as eleições diretas, seria mais democrático, pois
mandato, este nada mais é do nesse modelo o eleitor sufraga, ou seja, escolhe diretamente quem ele
que a investidura que o povo faz
em alguém por ele escolhido, deseja eleger para ocupar as cadeiras do Legislativo e Executivo. Já na
segundo o procedimento eleição indireta, o eleitor escolhe os representantes que formarão um
eleitoral, para desempenhar
colégio eleitoral para votar nos candidatos aos mandatos, portanto,
parte das funções mais altas
do Estado. Confere, portanto, existe entre os eleitores e os candidatos um colegiado.
poderes ao seu titular para
representar o povo. Trata-se Todavia, apesar da existência formal dos princípios que devem
de um instituto intimamente orientar as eleições democráticas, vários autores têm chamado a aten-
ligado à representação e à ção para o limite da crença no formalismo. Segundo eles, essa defi-
teoria que sobre ela prevaleça. O
mandato é, pois, o instrumento nição de democracia, que considera as eleições e a participação do
nuclear para a configuração eleitor como as principais características, pode encontrar dificuldade
da democracia representativa”
quando confrontada com a realidade em diversos países. Para Miguel
(BASTOS, 1999, p. 206).
(2014, p. 145),

112 Ciências Políticas


há, nas democracias liberais contemporâneas, uma convivência
difícil entre o preceito da igualdade política formal e o fato de
que a maior parte das cidadãs e dos cidadãos está excluída dos
processos decisórios. A universalização do acesso à esfera públi-
ca política, com a concessão de direitos formais iguais a todos,
coabita com a permanência da dominação social. Tal fenômeno
é naturalizado pelas correntes centrais do pensamento político
liberal, que estabeleceram o terreno em que se travam as dispu-
tas sobre justiça e ordenamento democrático.

Naturalmente, as garantias formais na legislação, que buscam am-


pliar a participação dos cidadãos na escolha dos seus representantes,
não garantem que essa escolha seja isenta de influências perversas,
como a compra de votos ou mesmo o convencimento por meio de pro-
pagandas enganosas. Além disso, o dia a dia de trabalho não permite
que a maioria dos integrantes de uma sociedade possa separar horas
do seu dia para buscar informações em canais oficiais e refletir sobre a
política do Estado.

Assim, apesar de todas as garantias constitucionais e institucionais,


não se pode afirmar que a democracia seja um regime sem falhas, mas
quando comparada aos anteriores ao seu surgimento, demonstrou ser
o mais apropriado para incluir a sociedade civil no processo decisório. É
importante lembrar que as democracias variam de um país para outro,
segundo o funcionamento das instituições democráticas e do sistema
eleitoral e partidário adotado, pois são estes que estimulam o funcio-
namento da democracia.

No sistema eleitoral, podemos observar que as eleições majoritárias


e proporcionais são predominantes, mas temos também os modelos
distrital e misto, que mesclam os anteriores. As eleições majoritárias
são as mais antigas e por muito tempo foram o único modelo prati-
cado. Nela, ocorre o voto majoritário, no qual vence o candidato que
receber o maior número de votos. Todavia, essa maioria pode ser re-
lativa ou absoluta. Maioria relativa significa que o candidato vence-
dor recebeu o maior número de votos que todos os outros candidatos
individualmente, isto é, ele foi o mais votado independentemente do
percentual que represente os votos recebidos.

Alguns países consideraram esse sistema ineficaz, pois, em um


grande território e com a participação de muitos candidatos, os votos
podem ficar tão distribuídos que o candidato mais votado pode repre-

Sociedade civil e sociedade política 113


sentar apenas uma região populosa que tenha mais eleitores e, portan-
to, não corresponder à vontade da maioria dos eleitores do país. Por
isso, passou-se a considerar a maioria absoluta como a mais adequa-
da. Assim, sempre que um candidato não obtiver mais da metade dos
votos válidos, será necessário realizar um segundo escrutínio (turno).
Nessa segunda votação só concorrem os dois candidatos mais
votados na primeira. O sistema de dois turnos é mais democráti-
co, porque elide a possibilidade de eleições resolvidas com base
numa inexpressiva maioria, que, dependendo do número de
candidatos, pode não corresponder a mais de 10% ou 15% da
proporção dos votos totais. O segundo turno restringe, é certo,
a possibilidade de escolha do eleitorado, mas facilita o jogo das
coligações, que acaba por forçar manifestação inequívoca da
maioria do eleitorado em favor de uma candidatura. (BASTOS,
1999, p. 207)

Então, podemos perceber que os sistemas, ao buscarem diagnos-


ticar a vontade da maioria, demonstraram, primeiramente, as limita-
ções da maioria relativa e, posteriormente, observou-se que, mesmo
na maioria absoluta, com a possibilidade de um segundo escrutínio, as
distorções permaneciam. Por exemplo, os grandes partidos costumam
obter mais vantagem nesse modelo eleitoral.

Dessa maneira, surgiram as eleições proporcionais para ampliar as


chances de participação dos pequenos partidos, pois o modelo majori-
tário poderia ser excelente para formar um governo coeso, mas falharia
na capacidade de representação de todo o povo, inclusive as minorias.
Isso foi causa de grande preocupação, porque gerava não poucas
injustiças. Idealmente, pode-se imaginar até a seguinte hipótese:
o partido A obtém 51% dos votos, enquanto o partido B obtém
apenas 49%; no entanto, é possível que com essa votação o pri-
meiro açambarque todas as cadeiras do Parlamento. Era preciso
evitar esses inconvenientes, fazendo com que o órgão legislativo
fosse, o mais possível, um espelho das diversas variantes de opi-
nião pública. Para tanto, era forçoso que as minorias também
se representassem, o que só foi possível pela instituição do voto
proporcional. (BASTOS, 1999, p. 208)

A busca por ampliar a capacidade de eleição dos representantes de


toda a sociedade levou à criação do modelo de eleições proporcionais,
nas quais os partidos possuem o número de cadeiras equivalentes à
porcentagem de votos recebida. Por exemplo, se existem 30 cadeiras

114 Ciências Políticas


em um Parlamento, e o partido A conquistou 20% dos votos, significa
que ele terá direito a seis cadeiras, que deverão ser preenchidas se-
gundo a ordem dos nomes dos candidatos previamente organizada em
uma lista que o partido votou, ou indicou, internamente. Essa lista pode
ser fechada ou aberta. Será fechada quando for definida previamente
e aberta quando for realizada após a apuração dos votos. Além da lista,
pode-se também adotar o critério dos candidatos mais votados do par-
tido para ocupar as cadeiras conquistadas. Alguns autores consideram
esse último critério mais democrático.
O sistema pressupõe, para o seu bom funcionamento, que os
partidos se diversifiquem em função de programas diferentes.
A principal consequência sua é que ele pode provocar uma pro-
liferação exagerada de partidos. Ainda sabedor e consciente de
sua fraqueza eleitoral, o partido tende a manter-se na disputa
porque sabe que de qualquer maneira obterá uma força no Par-
lamento proporcional à sua votação. O mais grave inconveniente
desse sistema é que ele abre campo para os extremismos, tanto
da direita quanto da esquerda. (BASTOS, 1999, p. 209)

Dessa forma, um partido pequeno, que represente uma minoria,


poderia ter acesso a uma cadeira e influenciar a votação de projetos de
lei buscando impor suas ideias e valores para o restante da sociedade.
Para evitar essa situação, que também seria antidemocrática, alguns
países adotaram uma porcentagem mínima de votos que os partidos
devem obter nas eleições para ter direito a pelo menos uma cadeira no
Parlamento. Os sistemas eleitorais, ao longo da história, buscam criar
mecanismos que possam mensurar da melhor forma a vontade dos
vários grupos presentes na sociedade.

Por isso, alguns países com muitas diferenças regionais passaram


a adotar a eleição distrital. Alguns acreditam que desse modo o repre-
sentante estaria mais próximo e comprometido com a região ou distri-
to no qual ele foi eleito e que, portanto, deve representar. De acordo
com Bastos (1999, p. 210), a eleição distrital
consiste na divisão do Estado em circunscrições ou distritos para
fins eleitorais. Os eleitores só podem votar nestes, e não em ou-
tros candidatos de outros distritos. Isso ocorre no denominado
voto distrital puro. Já o voto distrital misto consiste em que uma
parte dos candidatos só pode ser votada no distrito, havendo
outros que podem ser votados por todos os eleitores, pelo voto
proporcional.

Sociedade civil e sociedade política 115


Atualmente, no afã de buscar uma proposta mais democrática, os
sistemas eleitorais costumam misturar as modalidades. Por essa razão,
no caso brasileiro temos um sistema misto que mescla as eleições ma-
joritárias e proporcionais – assim, parte dos candidatos são eleitos por
uma modalidade e parte pela outra. A ideia é buscar captar, da melhor
forma possível, a vontade popular ou, melhor definindo, a vontade dos
grupos presentes na sociedade.

Encontramos, na sociedade, grupos de interesse e grupos de pres-


são. Os grupos de interesse surgem naturalmente como resultado de
objetivos comuns partilhados por indivíduos que se unem por ques-
tões profissionais, culturais, étnico-raciais, entre outras. Já os grupos
de pressão são sazonais, mais organizados e criados para buscar pres-
sionar e obter sucesso em alguma reivindicação. Ambos os grupos
buscam fiscalizar e influenciar o cotidiano da vida pública, todavia, o
segundo realiza essa ação de maneira mais organizada e direcionada a
objetivos precisos.

Outro elemento importante das democracias é o sistema partidá-


rio. A ciência política tem dedicado especial atenção à compreensão
dos partidos políticos, considerando-os atores importantes no proces-
so eleitoral, pois são eles os responsáveis por organizar o processo de
escolha ou recrutamento dos candidatos que serão apresentados à
sociedade. Atualmente, alguns países adotam a possibilidade de can-
didaturas independentes, mas a maioria das candidaturas estão con-
centradas nos partidos políticos. No caso brasileiro, é necessário que
o candidato esteja vinculado a um partido político para poder se can-
didatar. Assim,
se as condições do jogo eleitoral são importantes na configura-
ção de uma dada estrutura de oportunidades e afetam direta-
mente o processo de recrutamento, devemos então considerar
o papel dos partidos políticos. Afinal, seriam justamente estes
que realizariam o primeiro processo seletivo dos que estariam
capacitados a competir nas eleições. A literatura sobre recruta-
mento das elites políticas nas democracias modernas tem apon-
tado para esta questão. Autores [...] têm sugerido que a análise
deve começar pelo estudo do processo seletivo dentro dos par-
tidos políticos, já que essas seriam as principais instituições por
meio das quais teria início o processo de recrutamento. Nos par-
tidos, ocorreria a filtragem por meio da qual o amplo universo
de possíveis selecionáveis seria reduzido, pelos selecionadores

116 Ciências Políticas


partidários, a um universo bem menor de aspirantes e candida-
tos. Essas instituições seriam, assim, os principais caminhos de
acesso às posições de elite. Não apenas no Brasil, mas em toda a
América Latina, existe uma razoável produção teórica que defen-
de a tese de que os partidos continuam sendo atores centrais no
processo político também na América Latina, na medida em que,
até o momento, não se propuseram outras formas de democra-
cia que possam funcionar sem o concurso dos partidos [...]. Estes
são os articuladores da competição eleitoral e, por isso, mere-
cem atenção especial. (LOURENÇO, 2019, p. 253)

Os sistemas de partidos podem ser classificados levando em con-


sideração o número de partidos existentes. Segundo o sociólogo e
cientista político francês Duverger (1970), que elaborou essa proposta
de análise, a principal diferença pode ser encontrada entre sistemas
bipartidários (com dois partidos) e sistemas multipartidários (com mais
de dois partidos).

Em sua análise, o autor defendeu a tese de que todo sistema acaba


por adquirir características bipartidárias, sendo considerado um dado
praticamente natural que toda a sociedade acabe por aglomerar seus
interesses em torno de dois partidos ou coligações com as quais se
identifique. Para ele, “o movimento natural das sociedades orienta-se
para o bipartidarismo, podendo, evidentemente, ser contrariado por
tendências inversas” (DUVERGER, 1970, p. 252). Podemos constatar
essa tendência nos sistemas multipartidários com eleições majoritá-
rias de maioria absoluta, que acabam por se aglomerar em torno dos
dois partidos mais votados que disputarão o mandato em um segundo
escrutínio.

Outra importante contribuição para a compreensão dos sistemas


de partidos foi elaborada pelo cientista político italiano Sartori (1982).
Esse autor aperfeiçoa o modelo de Duverger fazendo uma dis-
tinção entre polaridade e polarização, isto é, entre o número de
partidos e a distância ideológica entre os partidos. Esses dois
critérios não seriam independentes e sistemas multipartidários
tenderiam à maior polarização. Essa distinção permitiu a Sartori
classificar os sistemas partidários em sistemas de dois partidos,
2
sistemas com até cinco partidos moderados (pluralismo mo- São partidos que possuem a
capacidade de agregar os outros
derado), sistemas com seis ou mais partidos polarizados (plu-
2 partidos menores para realizar
ralismo polarizado) e sistemas de partidos predominantes . coligações.
[...] Dada a importância do número de partidos em um sistema,
inúmeros autores se dedicaram a entender que fatores levam

Sociedade civil e sociedade política 117


ao bipartidarismo ou às várias formas de multipartidarismo. Os
principais fatores que influiriam no número de partidos seriam
de natureza socioeconômica, ideológica e técnica. (GUARNIERI,
2015, p. 78-79)

Podemos observar que os partidos nascem dos interesses dos


grupos presentes na sociedade; assim, quanto maior a polarização
presente na sociedade, maior será a tendência à polarização ideo-
lógica nos partidos políticos. Portanto, segundo Guarnieri (2015,
p. 78-79):
É de grande interesse verificar quais as funções desenvolvidas
pelos vários sistemas de partido nos respectivos sistemas políti-
cos, bem como indagar quais as relações entre sistema de par-
tido e sociedade, considerando [...] os sistemas de partido como
variável que intermedeia entre uma sociedade e um sistema po-
lítico. Evidentemente, não se pode expressar um juízo absoluto
sobre a funcionalidade dos vários sistemas de partido: o juízo
deve primeiramente ligar-se aos problemas que um particular
sistema político é chamado a resolver e, portanto, há de estar es-
pecialmente ligado ao grau de desenvolvimento socioeconômico
da sociedade.

Então, existem vários fatores, como o desenvolvimento econômi-


co, a ideologia polarizada, a diversidade religiosa etc., que podem in-
fluenciar o modelo de sistema partidário que será desenvolvido em
cada país, pois serão os partidos que irão fazer a ponte que liga a
sociedade ao processo eleitoral e à competição por mandatos nos po-
deres do Estado.

6.2 Legalidade e legitimidade


Vídeo A discussão sobre legalidade e legitimidade já foi abordada ante-
riormente, todavia, nesta sessão iremos refletir sobre essa relação so-
mente nos regimes democráticos. Podemos compreender legalidade
como o que está previsto na lei e legitimidade como o que atende à
vontade do povo. Nesse sentido, um governo e uma eleição podem ser
legais quando atendem aos critérios da lei e legítimos quando atendem
à vontade do povo.

Mas, nos regimes democráticos, nem sempre o povo participa efe-


tivamente da eleição e o que resulta é apenas a maioria dos votos da
parcela dos eleitores que compareceu às urnas. Além disso, somos

118 Ciências Políticas


chamados a votar em candidatos que foram previamente seleciona-
dos pelos partidos políticos. Contudo, é possível que esses candidatos,
mesmo atendendo ao critério legal, não correspondam à vontade do
povo. A escolha (ou recrutamento) dos candidatos envolve uma com-
plexa relação entre sociedade e partidos políticos para a realização das
eleições democráticas.

Segundo a cientista britânica Norris (2013, p. 12), o recrutamento


ou a escolha dos candidatos pelos partidos e a posterior candidatura
sugerem que
três estágios sucessivos operam nesse processo: a certificação,
envolvendo o Direito Eleitoral, as regras partidárias e normas so-
ciais informais que definem os critérios para a candidatura ele-
gível; a indicação, envolvendo a oferta de elegíveis que buscam
postos políticos e a demanda dos selecionadores ao decidirem
quem é nomeado; a eleição, o passo final que determina quais
indicados obterão assentos no poder Legislativo. Cada um des-
ses estágios pode ser visto como um jogo progressivo de “dança
das cadeiras”: muitos são elegíveis, poucos são indicados e ainda
menos são eleitos. O processo de certificação, definindo quem
é passível de indicação para candidatar-se a cargos eletivos, é
moldado por vários fatores. [...] Algumas restrições legais para
a elegibilidade provaram-se razoavelmente universais e incon-
troversas, como idade e cidadania, enquanto outras são mais
excepcionais, como qualificação educacional ou alfabetização.
As principais exigências legais incluem aquelas relacionadas a
idade, cidadania, residência, incompatibilidades, depósitos mo-
netários e a necessidade de obter assinaturas de apoio.

Logo, as determinações legais auxiliam a restringir o número daque-


les que estão em condição de se candidatar, mas essas restrições legais
não são as únicas que podem filtrar quais cidadãos podem competir
nas eleições. Existem outros filtros que separam o número de possíveis
candidatos dos efetivamente candidatos. Segundo Norris (2013, p. 13),
Juntamente com os requerimentos legais, outras exigências de
certificação são impostas pelos partidos políticos por meio de
seus estatutos, normas internas e programas. É muito comum
que esses documentos estipulem a filiação aos partidos por um
dado período de tempo prévio à candidatura, a fim de assegurar
lealdade e familiaridade com as propostas do partido.

O recrutamento ou a seleção daqueles que estarão autorizados a


candidatar-se passa pela seleção das regras do partido e, também,

Sociedade civil e sociedade política 119


por uma relação entre oferta e procura. Ou seja, os partidos buscarão,
dentre as possíveis ofertas da sociedade, aqueles atores que tenham
o perfil que eles desejam: um perfil adequado ideologicamente com a
proposta do partido (partidos que se identificam como direita buscam
candidatos com a mesma ideologia e o mesmo costuma ocorrer com
partidos de centro ou esquerda), e que também possua os atribu-
tos que o partido considera necessários para que eles sejam eleitos,
como gênero, etnia, profissão e trajetória. Por exemplo, candidatos
homens, brancos, protestantes ou católicos, advogados, radialistas e
agropecuaristas, com trajetória política anterior, possuem vantagem
nas eleições brasileiras para cargos do Legislativo em diversos esta-
dos (LOURENÇO, 2011).
O processo de certificação também é influenciado de modo mais
geral pelos valores culturais e normas sociais informais de cada
país, moldando a percepção dos candidatos apropriados, bem
como quais tipos de experiência e conhecimentos são mais ade-
quados para as carreiras legislativas. Por exemplo, é mais pro-
vável que as pessoas considerem concorrer ao parlamento se
possuírem algum treinamento profissional jurídico, experiência
em institutos dedicados a políticas públicas ou carreiras no jor-
nalismo e no governo local – todos sendo canais ocupacionais
que fornecem habilidades e experiências valiosas para altas po-
sições públicas, refletindo a típica composição atual das elites
legislativas. Embora as percepções informais de elegibilidade
sejam muito difíceis de estabelecer com qualquer evidência sis-
temática, elas provavelmente selecionam quem segue adiante e
quem é preterido na busca de uma carreira legislativa. (NORRIS,
2013, p. 13)

Esta é a relevância das eleições: elas se configuram como processo


de escolha dos representantes que deverão falar em nome do povo
ou, mais precisamente, dos seus eleitores. Dessa forma, as regras que
definem o funcionamento do processo de escolha dos representantes
dependem tanto da cultura política de cada país quanto do contexto
político institucional no qual são elaboradas e aplicadas as legislações
eleitorais.

Segundo a cientista política Kinzo (2003, p. 11), “a primeira per-


gunta que se faz ao se discutir a democracia representativa tem a ver
com as bases em que se realiza a escolha dos representantes eleitos,
e a esse respeito é importante saber as características do contexto
político-institucional em que as eleições se realizam”.

120 Ciências Políticas


Para a autora, é fundamental conhecer o contexto político-
-institucional para compreender como os representantes são escolhi-
dos nas democracias, ou seja, é necessário analisar o sistema político
e partidário vigente no país. Ao estudar o caso brasileiro, Kinzo (2003,
p. 13) define quais seriam as principais características que marcam as
eleições no Brasil e afirma:
A meu ver, elas podem ser resumidas na seguinte afirmação: as
eleições no Brasil realizam-se num contexto bastante comple-
xo, porque se trata de um contexto eleitoral em que tem lugar
a) uma disputa por cargos para diferentes níveis de governo –
dado que se trata de uma federação; b) cuja eleição rege-se por
diferentes sistemas eleitorais; c) cujos participantes são uma mi-
ríade de partidos, coligações e candidatos.

Então, o sistema brasileiro pode ser considerado um sistema mis-


to no qual se realizam eleições majoritárias e proporcionais em níveis
municipal, estadual e federal. Junte-se a essas características variadas o
extenso número de partidos e coligações e o resultado será uma com-
plexa formulação eleitoral. Para Kinzo (2003, p. 14),
Dois aspectos, bastante contrastantes, resultam dessa dinâmi-
ca política complexa e multifacetada. Primeiro, a conformação
de um sistema partidário bastante pluralista, garantindo assim
representação a uma ampla gama de grupos políticos organiza-
dos em partidos dos mais variados tamanhos e perfis. Como já
foi salientado, muito desse pluralismo (para não dizer acentuada
fragmentação) se deve à combinação dos vários elementos ca-
racterísticos do sistema eleitoral brasileiro: eleições pelo sistema
majoritário com eleições pelo sistema eleitoral proporcional com
legislação eleitoral, sistema partidário e reforma política, lista
aberta e com a prática das coligações, amplamente utilizada por
todos os partidos. Ao mesmo tempo que ajuda os grandes par-
tidos em sua disputa pelos cargos majoritários, tal combinação
facilita aos pequenos partidos a obtenção de cadeiras na Câma-
ra, mesmo porque as cadeiras conquistadas por uma coligação
partidária não são distribuídas proporcionalmente à votação de
cada partido, mas de acordo com o número de votos obtido por
cada candidato individual, independentemente do partido.

Nessa citação, a autora salienta que a proliferação dos pequenos


partidos – ainda que seja algo democrático, pois cria a possibilidade
de conquista de uma cadeira na Câmara, devido ao sistema de elei-
ções proporcionais – pode ter um efeito negativo ao dificultar ao eleitor

Sociedade civil e sociedade política 121


compreender o processo eleitoral e visualizar as diferenças ideológicas
entre candidatos e partidos. Além disso, o excesso de coligação que
resulta dessa ampla variedade de partidos pode contribuir para a reali-
zação de um governo caótico e com imensas dificuldades de aprovação
das principais medidas que deseja implementar.
Segundo, se o caráter pluralista do sistema democrático repre-
sentativo brasileiro é certamente um dado positivo, a fragmenta-
ção acentuada do sistema tem também suas desvantagens. Em
primeiro lugar, tende a dificultar a formação de maioria para go-
vernar, levando à criação de coalizões muito heterogêneas, com
um grande número de partidos para negociar apoio na formula-
ção e aprovação de políticas. A construção deste conjunto com-
plexo de instituições eleitorais e partidárias brasileiras parece
ter sido inspirada na máxima “divide e impera”. Pois, ao mesmo
tempo em que contém mecanismos que fragmentam o poder –
como o sistema de representação proporcional, o federalismo,
ampla liberdade de organização partidária – possibilitando assim
a acomodação das mais variadas divergências entre as elites,
possui mecanismos que vão na direção oposta, ou seja, da cen-
tralização: a competição presidencial com colégio único, eleição
majoritária para os executivos, exigência de base nacional para
os partidos, além de concentração do poder decisório no Execu-
tivo e na mesa diretora do Legislativo. (KINZO, 2003, p. 14)

Se, por um lado, é positiva a existência de um amplo número de


partidos para representar uma sociedade com interesses e grupos
diversificados, gerando a sensação de que estamos em um regime
verdadeiramente democrático, por outro, a centralização do modelo ma-
joritário pode implicar o seu oposto. De acordo com Kinzo (2003, p. 17),
possibilitando-se a alta fragmentação do sistema partidário tem-
-se por resultado, de um lado, a necessidade de formar amplas
alianças eleitorais (ou seja, de reaglutinação) para competir pelos
cargos majoritários, tornando, por conseguinte, a competição
entre partidos distintos pouco nítida; de outro, a necessidade de
formar governos de coalizão com vários partidos e portanto base
parlamentar bastante heterogênea, o que acaba reafirmando a
necessidade de contrabalançar a fragmentação com mecanis-
mos de centralização do poder para garantir a governabilidade.

Além dessa contradição, o excesso de partidos pode, segundo a au-


tora, tornar pouco inteligível o sistema eleitoral para os eleitores.
Em segundo lugar, a alta fragmentação do sistema partidário
aliada à prática de coligações eleitorais torna o processo eleitoral

122 Ciências Políticas


pouco inteligível para o eleitor, dada a pouca nitidez dos conten-
dores partidários do jogo eleitoral: partidos em alianças varia-
das (já no primeiro turno) e disputas personalizadas dificultam
a fixação junto ao eleitorado dos principais atores partidários.
Não é mero acaso o fato de os níveis de volatilidade eleitoral
serem extremamente elevados, não apenas entre eleições su-
cessivas, mas também entre diferentes momentos do período
pré-eleitoral da mesma eleição. As significativas variações em in-
tenção de voto apontadas nas pesquisas eleitorais ao longo da
campanha são indicativas da baixa fixação dos partidos junto
ao eleitorado, de seu papel secundário enquanto orientador da
decisão do eleitor. (KINZO, 2003, p. 18)

O Brasil, ao longo de sua história, vivenciou várias reformas políticas


que buscaram redefinir as “regras do jogo eleitoral”. Mas, sem dúvida,
a transição da ditadura militar para a redemocratização, na década de
1980, pode ser considerada um marco para compreendermos o funcio-
namento do modelo brasileiro contemporâneo.
Ao longo destes anos, discutir ou propor uma reforma política
significou, no entanto, referir-se a um conjunto bastante variado
de mudanças no sistema político brasileiro. Significou, acima de
tudo, desfazer-se das amarras sob as quais as eleições e a ativida-
de político-parlamentar tinham lugar durante o regime militar – o
que resultou efetivamente no estabelecimento da liberdade de
organização partidária, na ampliação do direito de voto, no res-
tabelecimento de eleições diretas para todos os cargos eletivos
e no restabelecimento das prerrogativas do Congresso Nacional.
Significou também a repactuação do arcabouço institucional em
que se assentaria o sistema político brasileiro legitimado pela
Assembleia Nacional Constituinte, traduzindo-se no conjunto de
regras da ordem política estabelecido pela Constituição de 1988
que, entre outros preceitos, reafirmou o sistema presidencialista
de governo, a estrutura federativa, o modelo de sistema eleitoral
a reger as eleições e a obrigatoriedade do voto e da organização
dos partidos em bases nacionais. (KINZO, 2003, p. 11)

Portanto, a legitimação do regime democrático no Brasil passou


pela reconfiguração do sistema eleitoral e partidário e das liberdades e
formas de organização e participação da sociedade civil. Afinal, mais do
que a legalidade, os regimes democráticos contemporâneos necessi-
tam da participação da sociedade civil para serem reconhecidos como
legítimos, pois não é possível governar para o povo sem a participação
dele no processo decisório.

Sociedade civil e sociedade política 123


Ao analisar o processo de democratização dos partidos políticos ao
longo do século XX na Europa, Norris (2013) também demonstrou que foi
necessária uma mudança na legislação e na organização do sistema par-
tidário para que este pudesse ser democratizado com a incorporação de
uma maior representação da sociedade civil. Foi necessário se tornar in-
clusivo em relação à questão de classe, raça-etnia e gênero. Segundo ela,
as evidências sugerem que uma tímida democratização do pro-
cesso de seleção de candidatos ocorreu nos partidos europeus,
com o círculo da tomada de decisão ampliando-se discretamente
dos ativistas e líderes locais em direção aos filiados dos partidos
usando os votos. Entretanto, ainda que o número potencial de
participantes tenha crescido timidamente, ao mesmo tempo a
escolha dos nomeados tem sido mais amplamente limitada pela
adoção de regras elaboradas para gerar legislaturas mais inclu-
sivas. O mais importante disso refere-se às estratégias de ação
positiva para mulheres, que foram implementadas por meio da
reserva de assentos, quotas de gênero obrigatórias e voluntá-
rias. (NORRIS, 2013, p. 16)

Ao inserir políticas de discriminação positiva para inclusão da par-


cela da sociedade civil que estava excluída em seus regulamentos, po-
demos pensar que os partidos políticos promoveram uma forma de
democracia que pode ser caracterizada como legal, pois segue os re-
gulamentos, e legítima, pois atende à vontade do povo ou da parcela
excluída que reivindicava participação na esfera da política eletiva em
condições de igualdade.

As mulheres são praticamente metade da população mundial, to-


davia, na maioria das democracias ocidentais ainda não se encontram
em condições paritárias nos cargos eletivos. O problema é que, mais
do que estar resguardado o direito à participação na lei, é necessário
que políticas de estímulo e preparação para essa participação também
sejam estimuladas pelos partidos, assim como é necessário que a cul-
tura política do país também perceba as mulheres como portadoras
das habilidades para os cargos dos poderes públicos eletivos.
Desta forma, a estrutura de oportunidade está condicionada,
tanto às regras formais do jogo eleitoral como à cultura políti-
ca do país, em cada regime político e sistema partidário preci-
so. Também os atributos naturais ou adquiridos durante a vida
contribuem para que determinados atores sociais tenham prefe-
rência nesta seleção. Os estudos internacionais (PUTNAM, 1976)
e nacionais (LOVE, 1982; CARVALHO, 2003; FLEISCHER, 1981),

124 Ciências Políticas


apontam para a importância da formação educacional de nível
superior como uma característica fundamental no perfil da elite
política, de tal forma que um diploma acadêmico se constituiu
em quase exigência para o acesso ao “clube” da elite política.
Além disso, os partidos desempenham outras funções além da
seleção dos candidatos. (LOURENÇO, 2019, p. 253)

As regras do jogo ultrapassam as regras formais positivadas e são


atravessadas pelas questões de status social, de valorização social que
cada sociedade constrói entorno de seus integrantes e das represen-
tações que incidem sobre as mulheres e os homens, as formações
educacionais, as profissões, as raças-etnias, o local de procedência dos
candidatos etc. Ou seja, homens podem ser representados como mais
aptos para os cargos públicos eletivos em algumas sociedades, assim
como pode ser uma vantagem ter um curso superior, ser branco, ser
advogado e natural do estado ou cidade na qual disputa um mandato
(LOURENÇO, 2011).

A força das representações sociais no processo de escolha dos


candidatos tem sido apontada em vários estudos como responsável
pela menor participação das mulheres em cargos eletivos (LOURENÇO,
2019). Então, para minimizar a sub-representação das mulheres, as
estratégias de discriminação positiva implementadas em vários países
têm apresentado bons resultados. Segundo Norris (2013, p. 17),
As estratégias de discriminação positiva são explicitamente ela-
boradas para beneficiar mulheres como um estágio temporário
até que a paridade de gênero seja atingida nos órgãos legisla-
tivos e eletivos. A discriminação positiva inclui três estratégias
principais: o uso de vagas reservadas para mulheres estabele-
cidas pela lei eleitoral; cotas de gênero partidárias controlando
a composição das listas de candidatos em todos os partidos em
cada país; cotas voluntárias de gênero, usadas nos regulamen-
tos e nas regras que regem os procedimentos de nomeação de
candidatos em partidos específicos. As ações positivas tornaram-
-se crescentemente populares nas décadas recentes como uma
das opções políticas mais eficientes para promover mudanças
em pouco tempo; entretanto, o uso dessas políticas permanece
tema de controvérsia dentro e fora do movimento de mulheres.

Portanto, seria a própria legislação eleitoral que estaria determinan-


do a inclusão e o incentivo à participação das mulheres em cargos eleti-
vos, reservando para elas uma porcentagem de cadeiras não apenas nos
partidos como candidatas, mas como eleitas, ou seja, uma porcentagem
de assentos que somente elas poderão ocupar no Poder Legislativo.

Sociedade civil e sociedade política 125


Todavia, os partidos também cumprem outras funções além da
formação dos quadros de candidatos. Para Norris (2013, p. 11),
Uma das funções clássicas dos partidos políticos refere-se ao seu
papel de indicar candidatos para os postos políticos em todos
os níveis de governo. O recrutamento político não é somente
uma questão de indicar representantes eleitos nos níveis local,
regional, nacional e subnacional [...], mas também de preencher
uma ampla gama de posições políticas nomeadas por meio de
indicação. Isso é exemplificado pelas indicações partidárias para
a proliferação de organizações não governamentais no Reino
Unido, pelas centenas de posições em vários órgãos do governo
e agências federais conquistadas pela patronagem do Presidente
estadunidense em início de mandato e pelas profundas relações
entre patronos e clientes no Brasil. O processo de recrutamento
para os cargos eletivos e de confiança é amplamente percebido
como uma das mais importantes funções residuais dos partidos
políticos, com consequências potenciais para o grau de conflito
intrapartidário, para a composição dos parlamentos e governos
e para a fiscalização dos eleitos.

Concluindo, os partidos políticos são atores importantes no proces-


so eleitoral democrático, pois eles devem estabelecer a ponte entre o
Estado, a competição e a participação da sociedade civil no jogo eleito-
ral. Mesmo que eles realizem a primeira seleção, é fundamental que
ela respeite os interesses dos grupos representados na ideologia com
a qual o partido se identifique, torne legais e legítimas a disputa pelo
poder público e a possibilidade de representação dos vários grupos
de interesse presentes na sociedade civil. Além disso, ao possibilitar a
renovação da elite política, os partidos têm a condição de manter sua
legitimidade com a incorporação de novos atores sociais – que surjam
no cenário das lutas sociais e políticas em seus quadros –, não perden-
do, assim, o elo com suas bases eleitorais.

6.3 Sociedade civil x sociedade


Vídeo política x bem comum
As relações entre a sociedade civil e o Estado devem ser orientadas
em busca do bem comum. Todavia, essa afirmação nos coloca duas
grandes questões para reflexão. A primeira é compreender que a rela-
ção entre a sociedade civil e o Estado foi alterada substancialmente a

126 Ciências Políticas


partir da consolidação dos regimes democráticos, e a segunda implica
definir o que entendemos por bem comum.

Explorando a primeira questão sobre a relação de participação da


sociedade na esfera do Estado, ou mais precisamente sobre o funcio-
namento das democracias, podemos considerar as contribuições dos
autores Schumpeter e Dahl, que partilham uma concepção metodo-
lógica de democracia realista, caracterizada pelo caráter descritivo da
vida política da sociedade.

Essa visão realista considera o cidadão como um sujeito concreto


que passa a maior parte do seu tempo nas relações de trabalho e for-
ma sua opinião com base em uma comunicação que lhe é direcionada.
Desse modo, sua reflexão sobre o processo democrático é dificultada
pela sua materialidade vivida, ou seja, pelo seu dia a dia. Então, para
ambos os autores. a análise da participação do cidadão nos regimes
democráticos precisa considerar essas limitações.

Segundo Schumpeter (1984, p. 328), “o método democrático é um


sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o in-
divíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos
votos do eleitor”. O autor observa a participação do cidadão a partir do
processo eleitoral, mas alerta para a forma que ele é cooptado pelos Glossário
discursos e estratégias políticas. cooptado: a forma como o ci-
dadão é atraído pelos discursos
Diferindo um pouco de Schumpeter, Dahl amplia a compreensão e estratégias políticas.
sobre essa participação do cidadão. Para ele, mais do que eleger seus
representantes,
o cidadão, para participar da democracia, necessita se organizar
em grupos de pressão e são eles que possuem a função de rea-
lizar os inputs que são as demandas advindas da sociedade. Eles
devem agregar e articular os diferentes interesses dos atores
sociais que estão envolvidos na produção de políticas públicas.
(LOURENÇO, 2011, p. 19)

Podemos observar que, para Dahl, a sociedade civil participa da de-


mocracia em diversos momentos, pois, além do voto exercido pelos
cidadãos, estes devem se organizar em grupos de pressão que pos-
sam trazer para os seus representantes as suas demandas. Nesse sen-
tido, poderíamos imaginar que a sociedade civil é composta de vários
grupos com demandas diferentes e nesses grupos os cidadãos devem
atuar antes, durante e após as eleições.

Sociedade civil e sociedade política 127


Tanto em Schumpeter como em Dahl o elemento competitivo é
fundamental, contudo, para o primeiro poderíamos dizer que a
vida política é a luta entre os líderes rivais organizados em par-
tidos políticos, correndo atrás dos votos dos cidadãos eleitores,
ou seja, o povo é um produtor de elites políticas sendo este seu
papel na democracia contemporânea. (LOURENÇO, 2011, p. 19)

A competição eleitoral permeia a relação que se estabelece entre


a sociedade civil e a sociedade política. Mesmo que a participação do
cidadão não se resuma à eleição dos representantes, não se pode des-
considerar o peso da disputa pelo seu voto. Afinal, “apenas o povo tem
a oportunidade de aceitar ou recusar as pessoas designadas para go-
verná-lo” (SCHUMPETER, 1984, p. 355).

Para Dahl, as democracias contemporâneas são plurais, pois fun-


cionam pelo enfrentamento dos vários grupos representados na arena
pública do Estado. O autor chama esse modelo de poliarquia e, segun-
do ele, nessa forma de democracia, além das instituições clássicas do
Executivo, do Legislativo e do Judiciário, há outras, na esfera pública ou
na sociedade civil, responsáveis pela fiscalização da prestação de con-
tas e do controle social. Essas instituições, “no seu conjunto, compõem
uma extensa rede comprometida com a cobrança sobre as ações do
Estado e de sua burocracia que se constitui em importante referencial
para o eleitor” (LOURENÇO, 2011, p. 19).

Podemos observar que, de acordo com Dahl, a democracia deve ser


pensada a partir da atuação plural de grupos e instituições e deve ser
avaliada segundo a capacidade de o regime responder às exigências
que deles emanam. Ou seja, o regime será mais democrático se con-
seguir atender às diversas demandas, pois sua avaliação depende da
“contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos,
considerados como politicamente iguais” (DAHL, 1997, p. 25).

Dahl adota uma concepção formalista de igualdade, todavia essa


limitação sobre o sentido de igualdade não elimina sua contribuição
para a análise da relação entre sociedade civil e sociedade política. En-
tão, segundo o autor,
Deve recusar-se uma visão sobre o ideal democrático no qual
o povo governa, e entender a democracia como um regime em
que ocorre uma competição entre uma pluralidade de minorias
dirigentes (não a democracia ideal, mas sim a democracia real):
o poder político não estaria concentrado em uma única elite do

128 Ciências Políticas


poder, mas disperso em vários grupos sociais dominantes, ou
seja, várias elites autônomas e organizadas. Por isso, Robert Dahl
irá afirmar que a melhor forma para perceber se um regime po-
lítico é democrático é testar se as principais decisões favorecem
grupos diferenciados. Isso indicaria algum padrão de competi-
ção democrática, ao contrário daquele modelo de regime em
que somente os interesses de um grupo se sobrepõem sempre
a todos os outros. Neste caso, teríamos uma oligarquização da
arena de competição política. Todavia, admite o autor que os re-
cursos disponíveis na sociedade não são distribuídos igualmente
e que isso pode influenciar o funcionamento do regime demo-
crático tal como é por ele definido em seu conceito de poliarquia.
(LOURENÇO, 2011, p. 48)

Se a igualdade jurídica é um pressuposto para a democracia for-


mal, a igualdade política deve ser analisada com mais cuidado, pois
encontra obstáculos nas democracias concretas. De acordo com Dahl
(2000, p. 201),
Devido às desigualdades de recursos, alguns cidadãos conse-
guem uma influência mais significativa do que outros sobre as
políticas, as decisões e os atos do governo. Estas violações, in-
felizmente, não são triviais. Em consequência, os cidadãos não
são iguais politicamente – longe disso – e, assim, o fundamento
moral da democracia, a igualdade política entre os cidadãos, é
gravemente violado.

Portanto, mesmo na teoria desse autor, é importante considerar


que as elites políticas não representam igualmente os interesses da so-
ciedade civil. Por isso, seria crucial conhecer quem são os sujeitos que
compõem essa elite e em que medida eles possuem afinidade com os
grupos que afirmam representar. Afinal, são esses integrantes da elite
política que irão tomar decisões que influenciarão a vida cotidiana dos
diversos grupos presentes na sociedade civil.

Torna-se essencial refletir sobre quem são os representantes do


povo, quais são os valores que defendem os candidatos eleitos, qual a
sua procedência, pois isso influenciará a capacidade de representarem
os variados grupos em busca de um interesse da sociedade mais ampla
ou talvez apenas de um pequeno grupo. Então, para conhecer quem
são esses escolhidos, ou seja, a elite política, os autores afirmam que
é necessário analisar qual é a sua base socioeconômica, sua trajetória
pública, sua formação acadêmica, “sua profissão, seu potencial de or-
ganização e de sedução perante os eleitores, quais são as condições do

Sociedade civil e sociedade política 129


processo eleitoral no qual estes atores são escolhidos, qual o potencial
dos partidos políticos para representar os interesses da sociedade de
forma autônoma” (LOURENÇO, 2011, p. 5-6).

E, além desse perfil, seria importante estudar o processo histórico


no qual as elites são construídas. Isto é, devemos observar
a relação entre elites políticas e estrutura social em uma dada
sociedade ao longo do seu desenvolvimento histórico. Ou seja,
as mudanças no perfil da elite política podem ser um indicador
das mudanças na estrutura social. O perfil da elite política nos
permitiria tentar responder a várias questões, como: quais re-
cursos sociais eram importantes na sociedade e que possam
ter perdido seu valor? Como isso pode ser explicado por mu-
danças na estrutura socioeconômica do país estudado? Quais
os caminhos percorridos para se chegar às posições de elite em
cada período histórico analisado? Existe um trajeto padrão per-
corrido pela elite no momento atual que se diferencie de mo-
mentos anteriores? Ou seja, por quais caminhos passa o acesso
aos postos de elite? E, ainda, quais instituições são importantes
no processo de recrutamento, tanto no passado como no pre-
sente? Por último, mas, certamente não encerrando as possi-
bilidades de interrogação, poderíamos perguntar: como essas
mudanças afetam o perfil social e ideológico da elite recrutada?
(LOURENÇO, 2011, p. 78-79)

No caso da América Latina, esses estudos sobre a formação das


elites assumiram grande importância se considerarmos que a maioria
dos países vivenciou ditaduras no século XX. Podemos afirmar que a
transição da didatura para a democracia touxe muitas dúvidas sobre a
força das instituições democráticas. Afinal, mesmo com a redemocrati-
zação, muitos países mantiveram instituições frágeis e grupos autoritá-
rios que podem dificultar a participação da sociedade civil.
Podemos citar a contribuição para o debate latino-americano
realizada por De Luca (2007) sobre a debilidade ou fragilidade
das instituições argentinas e que naturalmente serve de paralelo
de comparação com a realidade brasileira. Segundo o autor, o
recente processo de democratização vivenciado nessa parte do
globo carece de tempo para amadurecer e pode aprender rapi-
damente com seus próprios fracassos. Em pequeno retrocesso
histórico o autor nos recorda que até o início dos anos 1980 so-
mente Colômbia, Costa Rica e Venezuela possuíam presidentes
eleitos democraticamente, o restante dos países detinha realida-
des políticas muito menos democráticas. (LOURENÇO, 2011, p. 6)

130 Ciências Políticas


Portanto, segundo a citação, podemos observar que o fenômeno
da redemocratização no Brasil não ficou restrito a esse país, mas, as-
sim como os demais países latino-americanos que saíram de ditaduras,
possui instituições frágeis e precisa amadurecer. De Luca (2007) afirma
que esse movimento de redemocratização ocorrido no século XX na
América Latina acompanhou o fluxo dos acontecimentos mundiais.
Por exemplo, o domínio por um partido hegemônico (como no
México), ditaduras militares (como na Argentina, Brasil e Uru-
guai) e tiranias (como no Haiti). No entanto, nessa mesma época,
a região empreendeu um processo auspicioso de transição do
autoritarismo para a democracia, bem como o que, quase uma
década atrás, havia ocorrido nos países menos desenvolvidos da
Europa Mediterrânea (Espanha, Grécia e Portugal). De fato, um
após o outro, os países latino-americanos aderiram a uma “onda
democratizante”, que não apenas parecia imparável, mas, graças
à queda do Muro de Berlim, ao fracasso da experiência comunis-
ta e ao consequente fim dos chamados “Guerra Fria”, fortaleceu
e transformou a tendência em um fenômeno inexorável e uni-
versal. (DE LUCA, 2007, p. 9)

Acompanhando os acontecimentos da segunda metade do


século XX, os países latino-americanos precisaram se reinventar.
A América Latina democrática necessitou traçar um novo caminho com
a participação da sociedade civil e sem o predomínio dos governos mi-
litares, o que demandou criar novas instituições.

Entretanto, essas instituições, na concepção de De Luca (2007), não


têm conseguido funcionar satisfatoriamente. Dentre os principais pro-
blemas, estariam tanto a falta de consenso presente na sociedade ci-
vil, que possui muitas e diversificadas demandas, quanto os próprios
mecanismos que o Estado dispõe para realizar essas demandas. Além
disso, o autor salienta a importância dos fatores econômicos nessa
análise, na qual a maioria das novas democracias latino-americanas es-
taria mergulhada em uma crise fiscal, e mesmo de ingovernabilidade.

Por fim, o autor ressalta a necessidade do fortalecimento das ins-


tituições democráticas e dos processos eleitorais efetivamente de-
mocráticos como fundamentais ao desenvolvimento dessas novas
democracias latinas (LOURENÇO, 2011).

Então, se considerarmos a democracia como o resultado da ação da


sociedade civil organizada em grupos de pressão e grupos de interesse,

Sociedade civil e sociedade política 131


podemos compreender o grande desafio a ser enfrentado em países
com intensa desigualdade econômica, social e cultural.
Na visão do poder político presente na poliarquia, ocorre a defe-
sa de um conceito plural de sociedade no qual a democracia não
é concebida como o governo do povo tal como fora proclamado
pela teoria clássica da democracia, mas sim como o governo de
muitos. De fato, mais precisamente, seria o governo da maio-
ria que se organiza em grupos que conseguem exercer pressão
sobre o poder político e extrair a satisfação dos seus interesses.
Portanto, uma das questões que indagamos foi justamente saber
em que medida as transformações pelas quais passou a socie-
dade brasileira após o final do regime autoritário configuraram
ou não esse modelo de sociedade pluralista, e em que medida
essa pluralidade de interesses presente na sociedade democráti-
ca atual tem conseguido seu espaço de representação na esfera
pública do Estado. (LOURENÇO, 2011, p. 6)

Para Santos (1993, p. 77),


devido ao padrão histórico de incorporação dos atores políticos
na arena de competição, a morfologia poliárquica brasileira, ex-
cessivamente legisladora e reguladora, foi construída sobre uma
sociedade que, sendo plural quanto à multiplicidade de grupos
de interesses, não o é em relação às estruturas de participação
do poder nas estruturas do Estado.

Portanto, segundo o que podemos abstrair da citação, o Brasil é um


país formado por uma grande diversidade de grupos de interesses, to-
davia, o acesso desses grupos às estruturas de representação e partici-
pação do poder do Estado não é igual para todos. As próprias legislações
brasileiras criaram mecanismos de exclusão ao longo de nossa história
e, justamente por esse cenário de desigualdade de acesso ao poder, tor-
na-se importante refletir sobre o que é o bem comum.

Formalmente, podemos pensar o bem comum como algo que per-


tence a todos. Ou seja, aquilo que é comum a todos os integrantes de
uma sociedade. Ele pode ser pensado como um bem, um recurso na-
tural, um valor, uma ideia etc. Sociologicamente, podemos definir bem
comum como aquilo que uma sociedade valoriza para todos os seus
integrantes, aquilo que a coletividade considera importante e, por isso,
compartilha com os demais.

É importante, então, a clareza de que, enquanto conceito, catego-


ria de análise, princípio e valor, o bem comum não possui significado
abstrato e universal. O sentido é construído por meio das relações so-

132 Ciências Políticas


cioculturais que se desenvolvem em um determinado tempo e espaço
por uma determinada sociedade.
Nesse sentido, ao relacionar a sociedade política atual com a atua-
ção da sociedade civil contemporânea na defesa do bem comum,
observa-se que é necessário compreender o bem comum com base
nos interesses dos grupos que compõem a sociedade civil e se reflete
na composição da sociedade política.
Assim, na materialidade vivenciada pelas sociedades atuais, con-
siderando que os grupos possuem interesses diferentes e acesso de-
sigual ao poder político, econômico e social, até que ponto podemos
afirmar que existe uma sociedade homogênea que compartilha uma
representação uniforme do conteúdo do bem comum?
Quando somente poucos grupos com acesso ao poder podem dizer
o que é o bem comum para uma sociedade, o resultado pode significar
que uma razoável parcela desta não concorde com as ideias defendi-
das. O que se considera o bem comum para um grupo pode não ser
exatamente o mesmo para outro.
Por exemplo, para os proprietários das indústrias, o bem comum
pode ser a produção pacífica que ocorre com os trabalhadores atuan-
do de maneira disciplinada para produzir o necessário, a realização da
atividade-fim da empresa. Em contrapartida, para os trabalhadores, o
bem comum pode ser a liberdade de fazer greve em caso de sentirem
desrespeitados os direitos da categoria ou mesmo quando sentem que
não estão sendo tratados com dignidade.
Nos dois casos o bem comum poderia ser pensado como a pro- 3
dução do necessário à sobrevivência, afinal, esse tem sido um objeti- A atuação do Estado para a
vo comum de toda a sociedade humana ao longo da história. Todavia, prestação de serviço público
(saúde, educação, moradia e
para o empresário pode se tratar da sobrevivência da empresa e da
outros) é guiada pelo interesse
lucratividade, e para o trabalhador pode se tratar de um salário digino público, ou seja, a ideia de
com respeito aos direitos da categoria. bem comum compartilhada
pela maioria. Assim, quando
Portanto, na caracterização do bem comum, é possível compreendê-lo na atuação do Estado é dire-
como: ideia do que é necessário e importante, compartilhada por um cionada verba para ampliação
de leitos em hospitais ao invés
determinado grupo de interesse que compõe uma sociedade; ação, por
da construção de uma rodovia,
meio da atuação do Estado na escolha das políticas públicas a serem por exemplo, tal escolha é feita
3
priorizadas na prestação do serviço público ; e disputa, no sentido da a partir da concepção do que é
mais relevante, do que naquele
composição da sociedade política pelo constante conflito de ideias entre
momento é um bem comum
os grupos de interesse para a composição do sentido do bem comum maior.
(enquanto interesse público do Estado e imaginário compartilhado).

Sociedade civil e sociedade política 133


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluindo, podemos perceber pelo que foi apresentado que existe
uma íntima relação entre os sistemas eleitorais e os sistemas partidários
nos Estados Democráticos. O objetivo desses sistemas é criar as possi-
bilidades para que uma parcela da sociedade civil possa se organizar e
competir para os cargos eletivos no processo eleitoral. Além disso, devem
realizar a ponte com os variados grupos de pressão e de interesse que
existam na sociedade de modo a buscar representar os variados interes-
ses desses grupos.
Mesmo que os sistemas eleitorais tenham buscado se aprimorar ao
longo da história, podemos afirmar que não existe um modelo perfeito
que garanta a ampla participação de todos, pois as barreiras à participa-
ção igualitária podem ser encontradas fora das leis, presentes nas repre-
sentações que marcam a cultura política de cada país.
Também a desigualdade social e econômica desfavorece o funciona-
mento da democracia representativa, na medida em que alguns grupos
de pressão são privilegiados em relação aos demais. Por fim, um proces-
so eleitoral transparente com instituições sólidas e um sistema partidário
consolidado são importantes para garantir que no funcionamento da de-
mocracia os representantes busquem realizar o bem comum no sentido
formal do termo, ou seja, tomem as decisões e governem em benefício do
público, da sociedade, e não em benefício próprio ou de apenas um gru-
po privilegiado. Todavia isso é uma abstração, pois em sociedades muito
desiguais pode ser difícil estabelecer o que é o bem comum.

AMPLIANDO SEUS CONHECIMENTOS


•• BOURDIEU, P. A representação política. Elementos para uma teo-
ria do campo político. In: BOURDIEU, P. O poder simbólico. 2. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

A obra de Bourdieu é importante para compreendermos as rela-


ções de poder que se constroem nos campos econômicos, políti-
cos, sociais e culturais a partir do século XX. O autor trabalha com
o conceito de dominação simbólica, considerando-o um aspecto
central das relações sociais.

•• CODATO, A.; PERISSINOTTO, R. M. Marxismo e elitismo: dois mo-


delos de análise social? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24,
n. 71, out. p. 143-153, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092009000300010.
Acesso em: 20 dez. 2019.

134 Ciências Políticas


Esse artigo irá contribuir para compreender a discussão sobre a
introdução do conceito de elites em estudos de orientação teórica
marxista.

ATIVIDADES
1. Mesmo com as imperfeições dos sistemas eleitorais e partidários, por
que poderíamos considerar o regime democrático mais adequado aos
Estados contemporâneos?

2. Disserte sobre a possível relação existente entre o número e o


posicionamento ideológico dos partidos e a composição da sociedade.

3. Explique o significado das políticas de discriminação positiva.

REFERÊNCIAS
ACQUAVIVA, M. C. Instituições políticas. São Paulo: Atlas, 1982.
BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
DAHL, R. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 1997.
DAHL, R. Democracia. Lisboa: Temas e Debates, 2000.
DE LUCA, M. Argentina: instituciones débiles, economía a los tumbos. Revista Relações
Internacionais, Lisboa, n. 13, mar. 2007.
DUVERGER, M. Os partidos políticos. São Paulo: Zahar, 1970.
GUARNIERI, F. Voto estratégico e coordenação eleitoral. Testando a Lei de Duverger no
Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 30, n. 89, out. 2015.
KINZO, M. D. Legislação eleitoral, sistema partidário e reforma política. Política & Sociedade,
n. 2, p. 11-21, abr. 2003.
LOURENÇO, A. O recrutamento das elites políticas no Brasil: o caso de Mato Grosso, 1945-
2007. Lisboa, 2011.Tese (Doutorado em Ciência Política) – Setor de Ciências Sociais,
Universidade Nova de Lisboa.
LOURENÇO, A. As eleições para a Câmara de vereadores de Irati em 2004, 2008 e 2012:
uma análise sociológica das relações de gênero. In: BEGA, M. T. C.; PESSOA, K. (org.)
Desenvolvimento e Justiça Social: perspectivas sociológicas no século XXI. Jundiaí: Paco
Editorial, 2019.
MIGUEL, L. F. Mecanismos de exclusão política e os limites da democracia liberal: uma
conversa com Poulantzas, Offe e Bourdieu. Novos Estudos 98, p.145-161, mar. 2014.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/n98/08.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
NORRIS, P. Recrutamento Político. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, n.
46, p. 11-32, jun. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-44782013000200002#top2. Acesso em: 20 dez. 2019.
SANTOS, W. G. As razões da desordem. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
SARTORI, G. Partidos e sistemas partidários. Trad. de Waltensir Dutra. ed. rev. ampl. Rio de
Janeiro; Brasília: Zahar; UnB, 1982.
SCHUMPETER, J. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

Sociedade civil e sociedade política 135


GABARITO
1 Conceitos básicos da ciência política
1. A ciência política realiza seus estudos pelo método científico, que
implica observação sistemática, experimentação e comprovação.
Então, podemos dizer que ela é uma ciência que estuda a política,
o Estado, o poder e as relações que se estabelecem entre eles e a
sociedade civil.

2. A filosofia política contribui com o desenvolvimento da ciência política


teórica e metodologicamente ao elaborar um conjunto de reflexões
sobre o modelo ideal de Estado, a legitimidade do poder, a construção
dos métodos e a análise do discurso político.

3. Maquiavel pode ser considerado o primeiro cientista político porque


analisou os fenômenos políticos de sua época com base em fatos e
documentação histórica e propôs uma compreensão do poder político
desprovido de julgamento moral ou religioso.

2 O Estado e o pensamento político


1. O poder pode ser definido como o direito de deliberar, agir e mandar,
ter a capacidade de exercer autoridade. Também pode ser definido,
segundo uma perspectiva sociológica, como a capacidade de um
indivíduo ou grupo impor sua vontade sobre outro indivíduo ou grupo,
independentemente de qualquer forma de resistência.

2. Para definir o poder do Estado, é preciso considerar que somente


ele pode legislar, julgar, executar e usar violência física de maneira
legítima. A sociedade não possui essa competência. Portanto, o poder
do Estado é um poder político, jurídico e bélico de modo exclusivo e
legítimo.

3. Hobbes parte da ideia de que os homens são naturalmente maus e


movidos por paixões, diferentemente de Locke e de Rousseau, que
acreditam na nacionalidade e bondade humana. Hobbes defende que
o estado de natureza (período anterior ao contrato e ao nascimento do
Estado) seria de guerra de todos contra todos, enquanto para Locke
seria um estágio pré-social e pré-político, pois os homens são racionais

136 Ciências Políticas


e conseguem se organizar. Já para Rousseau, esse seria o período de
total liberdade e igualdade humana, uma espécie de estado ideal. Para
sair do estado de natureza, Hobbes defende o pacto de submissão
com a criação de um Estado Absolutista; Locke defende um pacto
de consentimento no qual o Estado deve garantir as liberdades dos
indivíduos e funcionar somente como um árbitro, que seria o modelo
do Estado Liberal; Rousseau defende que o pacto deve ser realizado
entre iguais para ser legítimo e defende a criação de um Estado
Democrático, no qual o povo seja verdadeiramente representado e,
por consequência, soberano.

3 O Estado Moderno
1. Para autores mais formalistas, o bem comum é apontado como a
principal finalidade do Estado à medida que busca gerir a vida em
sociedade na busca da realização dos objetos dessa e com base
na aplicação do Direito. Para os críticos da ideia de bem comum, o
Estado não poderá o realizar, pois não existe somente uma vontade
geral. Eles afirmam que o que um grupo considera bem comum
pode não ser o mesmo para outros grupos, assim como indivíduos
poderão discordar do que o seu grupo considera bem comum.
Então, considerando a desigualdade e diversidade que existem nas
sociedades, resumir a finalidade do Estado à realização do bem
comum pode ser uma abstração que pouco explica a realidade.

2. O poder político (do Estado) não pode se manter somente com base
na força das armas, ele precisa se legitimar por meio do poder jurídico,
assim como o poder jurídico não pode ser positivado (na forma de
leis) e aplicado sem o aparato institucional do Estado, ou seja, sem
tribunais e sistema prisional.

3. Para esses autores a soberania significaria a ausência de limites


ao poder do Estado. Considerando que, principalmente a partir do
século XIX, os Estados começaram a ser controlados internamente
por uma Constituição, significaria que o próprio poder político e
jurídico no qual se assenta a força do Estado coloca limites para a
sua atuação. Então, a maioria dos Estados contemporâneos que
assumem a forma de Estado de Direito com base nas leis acaba por
eliminar o absolutismo e a tirania, que seriam o resultado da falta de
limites ao poder do Estado. Por isso, esses autores não concordam
com o uso do termo soberania.

Gabarito 137
4 Estado e governo
1. O sistema parlamentarista pode ser considerado mais democrático
porque nele um governo somente pode ocupar o posto e se manter
no poder se possuir a maioria das cadeiras do Parlamento. Como a
eleição do Legislativo representa os escolhidos pelo povo, o partido
do líder do governo não conquistar a maioria das cadeiras significa
que esse governo não tem o apoio da maioria dos representantes
do povo e, por isso, não deve permanecer no cargo. Nesse sistema,
o líder do partido que tiver o maior número de cadeiras deverá
assumir como primeiro-ministro. Assim, o Poder Executivo, que
está nas mãos do chefe do governo, deve representar a vontade
do povo.

2. Tanto a tipologia clássica de Aristóteles como a de Montesquieu


salientam que é necessário que o governo seja realizado em
benefício do interesse público e não do interesse privado do próprio
governante. Se partirmos dessa lógica, podemos considerar que um
dos entraves ao funcionamento da democracia na América Latina
se encontra na cultura política das elites políticas latino-americanas,
que utilizam seus postos para benefício próprio em detrimento da
atividade pública. Então, como diria Aristóteles, esse regime tende a
se corromper e se tornar, segundo Bastos (1999), autoritário.

3. O Estado Totalitário se caracteriza por desempenhar o mais alto


nível de intervenção na vida e nas mentes dos indivíduos. Mais do
que controlar as leis, a economia e a cultura, ele almeja controlar
as mentes de maneira a gerar uma massa de seguidores e oprimir
qualquer pensamento ou ação destoante. Outra característica
importante é o culto ao chefe do governo. Assim, em diversos
momentos históricos em diferentes países da América Latina,
algumas dessas características podem ser evidenciadas de modo
a aproximar o autoritarismo político latino-americano dos modelos
totalitários europeus. Todavia, é importante lembrar que na
América Latina, até o momento, temos exemplos de ditaduras e
não de regimes totalitários, pois retiram os direitos individuais e
políticos dos cidadãos para garantir que a vontade de uma minoria
seja imposta sobre a maioria.

138 Ciências Políticas


5 A separação dos poderes como princípio da
moderação
1. Esse sistema se baseia na ideia de que somente o poder pode controlar
o próprio poder. Ou seja, é fundamental que um poder controle o
outro, pois somente eles podem realizar essa função. A sociedade
pode fiscalizar e pressionar, mas somente os poderes são capazes de
agir contra os demais. Dessa forma, o sistema de freios e contrapesos
determina que cada poder deve ser autônomo em relação aos outros
e que eles devem possuir poder na mesma proporção. Isso significa
dizer que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem ser autônomos
e, para que possam exercer o controle uns sobre os outros, devem
possuir a mesma importância na estrutura do Estado, pois se um dos
poderes for superior aos demais, ele acabará por ficar sem controle e
a moderação desaparecerá.

2. A legitimidade resulta da aceitação da sociedade ou daquilo que


também nominamos como vontade do povo. Já a legalidade implica
seguir o que está previsto nas leis positivadas pelo Estado, sendo
elaborado e aplicado por um sistema jurídico racional. Então,
podemos concluir que atos considerados ilegais por infringirem as leis
podem ser legítimos se tiverem a aceitação popular. Um bom exemplo
seria uma greve de trabalhadores, que em regimes ditatoriais pode
ser considerada ilegal: todavia, se os trabalhadores consideram ela
importante e tiverem o apoio da sociedade, ela será legítima. Por outro
lado, uma ação legal pode ser considerada ilegítima quando a lei não
representa a vontade da maioria da sociedade e é aplicada mesmo
contra todas as formas de manifestações, pois o povo não concorda
com a ação. Por último, é importante perceber que nas sociedades
contemporâneas, em que a racionalidade jurídica se tornou a base da
sustentação do poder do Estado, muitas vezes confundimos legalidade
e legitimidade, pois construímos a crença de que o conteúdo das leis é
que promove a legitimidade dos atos, e não a vontade do povo, e nos
esquecemos de que as leis podem ser também autoritárias quando o
Poder Legislativo não representa todos igualmente.

3. Com base no contrato social que gerou o Estado Moderno separado


da sociedade, com todos os poderes concentrados no Estado,
tornou-se ainda mais importante encontrar mecanismos de controle

Gabarito 139
do Estado sobre o próprio Estado, pois, caso contrário, a sociedade
não poderia mais legislar, julgar ou executar e deveria permitir que
homens (comuns ou nobres) governassem e exercessem todas essas
funções no lugar da própria sociedade. Então, se somente o Estado
pode legislar, julgar, executar e exercer violência legítima, é preciso
encontrar mecanismos de proteção para a sociedade contra a ação
do Estado. A medida encontrada foi a moderação desse poder, para
cada uma das funções (poderes) do Estado estar nas mãos de grupos
diferentes, de maneira que um fiscalize o outro e possa, também, agir
punitivamente sobre o outro em caso de abusos e/ou ilegalidades.

4. A estabilidade pode ser pensada como a capacidade previsível que um


sistema tem de se prolongar no tempo. Desse modo, um sistema deve
ser considerado estável quando, em um dado momento, considerando
um conjunto de sinais, é razoavelmente previsível que ele continuará
no tempo. Diferentemente dos outros contratualistas, Montesquieu
não reduziu a questão da estabilidade à natureza do poder: para ele,
é fundamental observar o funcionamento das instituições políticas ao
longo da história e analisar o que funcionou por mais tempo, pois são
os regimes duradouros, sem guerra, que podem gerar maior bem-
-estar à sociedade.

6 Sociedade civil e sociedade política


1. Na contemporaneidade, um dos valores centrais da organização
dos Estados Nacionais e mesmo da ordem internacional é a
defesa da liberdade dos indivíduos e a participação da sociedade
civil no poder público. Assim, as eleições são importantes, pois se
configuram como processo de escolha desses representantes, que
deverão falar em nome do povo ou, mais precisamente, dos seus
eleitores. Dessa forma, as regras que definem o funcionamento
do processo de escolha dos representantes dependem tanto
da cultura política de cada país quanto do contexto político
institucional no qual são elaboradas e aplicadas as legislações
eleitorais. Mesmo que os sistemas eleitorais tenham buscado se
aprimorar ao longo da história, podemos afirmar que não existe um
modelo perfeito que garanta a ampla participação de todos, pois as
barreiras à participação igualitária podem ser encontradas fora das
leis, presentes nas representações que marcam a cultura política
de cada país. Todavia, ainda assim, o regime democrático é o mais
adequado para os modelos de Estado que busquem garantir as
liberdades e o direito de participação na vida pública.

140 Ciências Políticas


2. Existem vários fatores, como o desenvolvimento econômico, a ideologia
polarizada, a diversidade religiosa etc., que podem influenciar o modelo
de sistema partidário que será desenvolvido em cada país, pois serão
os partidos que irão fazer a ponte que liga a sociedade ao processo
eleitoral e à competição por mandatos nos poderes do Estado. Então,
podemos afirmar que os partidos nascem dos interesses dos grupos
presentes na sociedade – assim, quanto maior a polarização presente
na sociedade, maior será a tendência à polarização ideológica nos
partidos políticos. Além disso, uma sociedade plural e diversificada
com muitos grupos de interesse poderá demandar um número maior
de partidos políticos para representar a sua diversidade.

3. O significado dessas políticas é minimizar a sub-representação das


mulheres. As estratégias de discriminação positiva implementadas
em vários países têm apresentado bons resultados. As políticas de
discriminação positivas implicam em um conjunto de práticas adotadas
para incentivar o acesso das mulheres aos cargos eletivos. Segundo o
pensamento de Pippa Norris (2013), as estratégias de discriminação
positiva são elaboradas para beneficiar mulheres como um estágio
temporário até que a paridade de gênero seja alcançada nos órgãos
legislativos e eletivos.

Gabarito 141
Alexandra Lourenço

CIÊNCIAS POLÍTICAS
As relações que se estabelecem entre sociedade civil e
Estado definem o potencial democrático de cada país.
Lorem Ipsum is simply dummy text of the printing and typesetting industry. Lorem
Todavia, não são relações de fácil compreensão, pois
Ipsum has been the industry’s standard dummy text ever since the 1500s, when
são permeadas por questões importantes e complexas,an unknown printer took a galley of type and scrambled it to make a type specimen
como o acesso desigual às condições de participaçãobook.naIt has survived not only five centuries, but also the leap into electronic
sociedade, economia e política. typesetting, remaining essentially unchanged. It was popularised in the 1960s
withser
Este livro apresenta teorias e conceitos que poderão the release of Letraset sheets containing Lorem Ipsum passages, and more
utilizados para melhor interpretar essa realidade. recently
A obra with desktop publishing software like Aldus PageMaker including.
traz informações para a compreensão dos fenômenos
políticos e destina-se tanto a pesquisadores e estudiosos
do tema quanto a entusiastas da política.

Alexandra Lourenço

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6575-2

59142 9 788538 765752

Você também pode gostar