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VOZES
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SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO: DEZ ANOS DE PESQUISA
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Jean Claude Forquin (org.)
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NEOUBERAUSMO, QUALIDADE TOTAL E EDUCAÇÃO
Tomaz Tadeu da Silva (org.)
TEORIA CRÍTICA & EDUCAÇÃO
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Bruno Pucci (org . )
CURRÍCULO: TEORIA E HISTÓRIA
/uor Goodson
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ETNOMETODOLOGIA E EDUCAÇÃO
Í. Alain Coulon
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* Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
í (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil )
y O sujeito da educação : estudos foucaultianos / Tomaz Tadeu da Silva (org.).
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- Petrópolis , FU : Vozes , 1994. (Ciências sociais da educação)
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Vários autores.
ISBN 85-326- 1317-9
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94-3532 CDD-370.1
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Estudos Foucaultianos
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Petrópolis
1995
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FICHA TÉCNICA
: COORDENAÇÃO EDITORIAL:
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EDITOR:
Antonio De Paulo
COORDENAÇÃO INDUSTRIAL:
José Luiz Castro
EDITOR DE ARTE:
Ornar Santos
EDITORAÇÃO:
Supervisão grá fica: Valderes Rodrigues
ISBN 85.326.1317-9
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' Este livro foi impresso nas oficinas gráficas da Editora Vozes Ltda. -
Rua Frei Luís, 100. Petrópolis, RJ - Brasil - CEP 25689-900 - Tel.: (0242)43-5112 -
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Inscrição Estadual 80.647.050 - CGC 31.127.301/0001-04.
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1
Sumário
1
Jennifer M . Gore
Foucault e Educação: Fascinantes Desafios 9
2
James Marshall
Governamentalidade e Educação Liberal 21
3
Jorge Lanosa
Tecnologias do Eu e Educação 35
4
Julia Varela
O Estatuto do Saber Pedagógico 87
5
Roger Deacon & Ben Parker
Educação como Sujeição e como Recusa 97
6
David Martin Jones
Foucault e a Possibilidade de uma
Pedagogia sem Redenção 111
7
Frank Pignatelli
Que Posso Fazer? Foucault e a Questão da
Liberdade e da Agência Docente 127
8
David Blacker
Foucault e a Responsabilidade Intelectual 155
9
Thomas S . Popkewitz
História do Currículo, Regulação Social e Poder 173
10
Michael Peters
Governamentalidade Neoliberal e Educação 211
11
Alfredo J . Veiga -Neto
Foucault e Educação: Outros Estudos Foucaultianos 225
12
Tomaz Tadeu da Silva
O Adeus às Metanarrativas Educacionais 247
F
1 i
Jennifer M. Gore
Foucault e Educação: Fascinantes Desafios
Pdaara. Neste
muitos, essa frase parecerá estranha ou simplesmente equivoca-
capítulo, meu objetivo é demonstrar como essa posição í
Antes de começar, faz-se necessá ria uma breve nota sobre o uso do
termo “ discurso” . A noção de discurso usada aqui não é a da linguistica,
na qual a preocupação principal é com a estrutura da linguagem. Em
j
vez disso, o termo “ discurso” é usado aqui tal como o é por Foucault e 1!
pelo pós-estruturalismo: o foco está muito mais no conteúdo e no
contexto da linguagem. Os discursos, no contexto de relações de poder
específicas, historicamente constitu ídas, e invocando noções partícula-
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res de verdade, definem as ações e os eventos que são plausíveis,
racionalizados ou justificados num dado campo. Portanto, ao fazer
jrjpfef êpci disçurços* minha intenção é assinalar uma preocupação não
p$l$vras* conjuntos
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Santo 'còni ò què ãs jf ãiàvras significam quanto com a forma como as
de sentenças e - prá ticas , relacionadas funcionam
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( Bové, 1990).
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10
versões daquilo que conta, de quem está autorizado a falar. Isto é, eles
também podem ser vistos como regimes de verdade.
A fim de compreender mais pienamente a noção de “ regime de j
verdade” , quero chamar atenção para o uso que Foucault faz dos
conceitos de poder e saber ( pouvour e savoir ). E ú til começar por tentar
esclarecer aquilo que poder e saber, nessa utilização, não é. Em primeiro
lugar, a despeito de seus argumentos sobre a conexão poder-saber,
Foucault (1983a) é bastante enf ático ao afirmar que poder e saber não
são id ê nticos:
11
ou menos provável (Foucault, 1983b). Alé m disso, o poder é exercido
jy praticado em vez de possuído e, assim, circula, passando através de
ou
toda força a ele relacionada. Na educação, por exemplo, é claro que o
poder não está apenas nas mãos das professoras. As estudantes (e as
mães e os pais e as administradoras e o governo) també m exercem poder
nas escolas. A fim de compreender o funcionamento do poder em
qualquer contexto, precisamos compreender os pontos particulares
através dos quais ele passa (Foucault, 1980 ). Nesse sentido, Foucault
chama aten ção para a necessidade de reconsiderar alguns de nossos
pressupostos sobre a escolarização e de olhar de forma renovada e mais
atenta para as “ micropráticas” do poder nas instituições educacionais.
Nas suas aná lises do poder, Foucault está especialmente preocupa-
do com formas de “ governo” , baseando-se no significado que essa
palavra tinha no século XVI, no qual “ se referia não apenas às estruturas
pol íticas ou à administração dos estados; designava, em vez disso, a
forma pela qual a conduta dos indivíduos ou grupos podia ser dirigida;
o governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos
j doentes... Governar, nesse sentido, é estruturar o campo possível de
ação de outros” (Foucault, 1983b, p. 221). Foucault argumenta que as
formas modernas de governo revelam uma mudança, do poder sobera-
no, que é aberto, visível e localizado na monarquia, para o poder
“ disciplinar ” , que é exercido por meio de sua “ invisibilidade ” através
das tecnologias normalizadoras do eu. Tradicionalmente, o poder é o
que é visto, o que é mostrado e o que é manifestado:
O poder disciplinar, ao contr á rio, se exerce tornando-se invisível:
em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilida-
de obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos.
Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles.
E o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que
manté m sujeitado o indivíduo disciplinar (Foucault, 1977b, p. 167).
12
r
espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder
na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o i
A educação
Embora Foucault não faça uma análise detalhada das escolas, é claro
que ele via as escolas e a educação formal como exercendo um papel
no crescimento do poder disciplinar. Em Vigiar e Punir, num capítulo
intitulado “ Corpos dóceis” , Foucault descreve inovações pedagógicas
iniciais e o modelo que elas forneceram para a economia, a medicina e
a teoria militar do século XVIII. Mais adiante no livro, ele pergunta:
“ Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as f ábricas,
com as escolas, com os quarté is, com os hospitais, e todos se pareçam
com as prisões ? ” (Foucault, 1977b, p. 199). Essas semelhanças articu-
ladas por Foucault emergiram do foco que seus estudos colocam sobre
os mecanismos que constroem instituições e experiências institucionais,
e não sobre as pessoas no interior dessas instituições:
13
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referir a outras relações pedagógicas, tais como as que se dão entre pais
e filhos, escritores e leitores e assim por diante) com respeito a questões
de saber: qual saber é válido, qual saber é produzido, o saber de quem.
A pedagogia se baseia em técnicas particulares de governo, cujo desen-
volvimento pode ser traçado historicamente/arqueologicamente (veja,
por exemplo, Hamilton, 1989; Hunter, 1988; Jones & Williamson,
1979; Meredyt &c Tyler, 1993; Luke, 1989), e produz e reproduz, em
diferentes momentos, regras e pr áticas particulares. De forma crescente,
a pedagogia tem enfatizado o autodisciplinamento, pelo qual os estu-
dantes devem conservar a si e aos outros sob controle. Seguindo
Foucault, as técnicas/ práticas que induzem esse comportamento podem
ser chamadas de tecnologias do eu. Essas tecnologias agem sobre o
corpo: olhos, mãos, boca, movimento. Por exemplo, em muitas salas
de aula, os estudantes depressa aprendem a levantar suas mãos antes de
falar em classe, a conservar seus olhos sobre seu trabalho durante um
teste, a conservar seus olhos no professor, a dar a aparê ncia de estar
escutando quando o professor está dando instruções, a permanecer em
suas carteiras. Podemos dizer que as pedagogias produzem regimes
corporais políticos particulares. Essas tecnologias do eu corporal po-
dem também ser entendidas como manifestações do eu (mental ) inter-
no, como a forma como as pessoas identificam a si mesmas. As
pedagogias, nessa análise, funcionam como regimes de verdade. As
relações disciplinares de poder-saber são fundamentais aos processos
da pedagogia. Sejam elas auto-impostas, impostas pelos professores, ou
impostas sobre os professores, como coloca Foucault (1977b): “ Uma
relação de fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da
prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como
um mecanismo que lhe é inerente e que multiplica sua eficiê ncia” ( p.
158 ).
Mecanismos de podè r-saber funcionam não apenas em relação a
pedagogias defendidas em discursos educacionais, isto é, em relação a
visões sociais e práticas instrucionais particulares, promulgadas em
nome da pedagogia, mas também em relação à pedagogia dos argumen-
tos que caracterizam discursos educacionais específicos, isto é, aos
pr óprios argumentos (Gore, 1993). Foucault (1985a) argumentou que
“ é justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber ” (p. 95).
Portanto:
não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o
discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso domi-
nante e o dominado; mas, ao contrá rio, como uma multiplicidade
de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferen-
tes... Os discursos, como os silê ncios, nem são submetidos de uma
vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo
complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo,
instrumento e efeito de poder, e també m obstáculo, escora, ponto
14
r
de resistê ncia e ponto de partida deruma estratégia oposta. O
discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também , o mina,
expõe, debilita e permite barrá-lo;.. Não existe um discurso do poder
de um lado e, em face dele, um outro, contraposto (pp. 95-96).
Os discursos radicais e emancipatórios não estão isentos dessa análise.
Assim, quando os teóricos educacionais radicais se apoiam em FouCault
para argumentar que podemos considerar os discursos educacionais
dominantes (aqueles produzidos pela cultura dominante ) como “ regi-
mes de verdade” ,1 eles deixam de enfatizar o argumento de Foucault
(1983c) de que “ tudo é perigoso” (p. 231).
Keenan (1987) argumenta que “ pelo fato de a articulação entre
poder e saber ser discursiva , o vínculo nunca pode ser garantido... é
impredizível... O discurso que torna o vínculo possível també m o mina,
precisamente porque poder e saber são diferentes” (pp. 17-18 ). Sawicki
(1988 b) també m apresenta esse argumento em sua análise —
orientada
—
por Foucault da identidade entre pol ítica e liberdade sexual. Quando
ela se refere à “ sexualidade” , eu coloquei no seu lugar “ pedagogia” , a
fim de demonstrar a relevância do argumento para a minha pr ópria
preocupação prá tica e intelectual com os discursos da pedagogia radical
(veja Gore, 1990a, 1990b, 1990c, 1991, 1993): •
15
ítattitat&tt
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Conclusão
16
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permite começar a identificar as características de discursos e práticas
particulares que têm efeitos perigosos, dominadores ou negativos.
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examinar aquilo que faz com que sejamos o que somos, tudo isso abre
possibilidades de mudança. De fato, um pouco antes de sua morte,
Foucault disse: “ Todas as minhas análises são contra a idéia de neces-
sidades universais na existência humana. Elas mostram a arbitrariedade
das instituições e mostram quais espaços de liberdade podemos ainda
desfrutar e como muitas mudanças podem ainda ser feitas” (Foucault,
. > 1988, p. 153).
Regimes de verdade não são necessariamente negativos mas, antes,
necessários. O saber e o poder estão freq üentemente ligados de forma 1
1
produtiva. Exatamente como o poder pode ser produtivo, assim tam- :1
bém o pode o nexo poder-saber no qual e através do qual efetuamos
nosso trabalho. A razão central para utilizar regimes de verdade com a
finalidade de analisar discursos educacionais radicais, como fiz em
outro local, não é a de envolver -se numa “ política de acusação” (Morris,
1988, p. 23). A falta de reflexividade dos discursos radicais não é
nenhuma surpresa à luz de sua luta para se legitimarem no contexto dos
discursos educacionais tradicionais. Em vez disso, utilizo o conceito de
regime de verdade como uma tecnologia do eu, estimulando-nos a
sermos mais humildes e reflexivos em nossas justificativas pedagógicas, 1
reconhecendo que existe um trabalho desconstrutivo a ser feito tanto %
i no interior de nosso domínio quanto fora dele. Foucault contesta 1
asserções de verdade e asserções de inocê ncia em todos os discursos
educacionais.
As análises de Foucault do nexo poder-saber levantam d ú vidas i
em nossas categorias e em nossa pol ítica, assim como para evitar que se
—
silencie a diferença que pode ser um resultado desse dogmatismo
é uma alternativa bem-vinda a um debate polarizado” (Sawicki, 1988 b,
—
í p. 187). 1
j
Mas aonde nos leva esse tipo de análise ? Tem havido muitas cr íticas i
17
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19
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WALKERDINE, V. Progressive pedagogy and political struggle. Screen, 27(5), 1986: 54-60.
:•
20
2
James Marshall
Governamentalidade e Educação Liberal
— —
pode ser possuída por algum Soberano seja ele individual ou o Estado
de forma que aqueles sobre os quais o poder é imposto ou exercido
são, de alguma forma, inferiores. O poder, essencialmente, proíbe
através da opressão e as formas que suas proibições assumem são com
freqíiê ncia não-racionais. Como diz Peters, elas podem envolver coer-
ção f ísica ou psicológica e essa é exercida a partir de cima, de uma forma
vertical. Em geral, essa proibição atua contrariamente aos interesses
daqueles sobre os quais ela se impõe.
Michel Foucault disse, em 1976, que em termos de análise política
nós ainda não cortamos a cabeça do Rei. Com isso ele quis dizer que a
21
linguagem, a análise e a prática política estão imersas numa narrativa
que inclui coisas tais como opressão, legitimação, direitos, Estado,
governo e autoridade. Ele certamente não estava dizendo que é um
objetivo f ú til tentar restringir o papel do governo em suas sempre
crescentes demandas para legitimar seu exercício de autoridade, mas,
antes, que o governo é mais que isso, que ele é uma arte e uma atividade
que atinge tudo, que ele não saiu simplesmente do nada, como uma
coisa dada, mas teve que ser inventado ou gradualmente construído
(Burchell et al., 1991, p. x ).
Liberais e neoliberais tais como Nozick (1976 ) tê m argumentado
que o papel do Estado deve ser m ínimo porque ele se opõe à liberdade
e ao direito das pessoas de escolher seu pr ó prio projeto. Subjacentes a
esse direito estão certos pressupostos sobre a capacidade da pessoa de
fazer escolhas racionais, devido ao fato de que ela é um ser autónomo,
não está sob o controle de outros, e é capaz de determinar seus pr ó prios
desejos e as formas legítimas pelas quais eles podem ser satisfeitos.
Foucault acreditava que no século XX isso é uma fachada, um mito,
que obscurece as formas pelas quais a compreensão que temos de nós
mesmos como pessoas capazes de efetuar escolhas livres e autónomas
é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados, tanto
individual quanto coletivamente. De acordo com Foucault, a arte do
governo (ou a governamentalidade [1979 b], ou a razão de Estado ) nos
atinge a todos, de forma que não somos os formuladores e realizadores
autónomos de projetos individuais que o quadro conceituai liberal e a
educação liberal ( p. ex., Strike, 1982) pretende que sejamos.
Em Vigiar e Punir, Foucault (1979a) formulou uma tese sobre a
micropol ítica do poder tal como exemplificada pela aplicação das
técnicas disciplinares em vá rias instituições, mas particularmente nas
prisões. Elas dizem respeito essencialmente à forma como o eu (ou a
identidade pessoal ) é constru ído por outras pessoas, por “ discursos
oficiais” e pelo que Foucault chama de “ poder/saber ” . Esta tese é mais
tarde corrigida e desenvolvida (Foucault, 1983). Na História da Sexua-
lidade, v. 1 (Foucault, 1980), e em escritos posteriores, ele olha para a
forma como começamos a aplicar isso a nós mesmos. Essas técnicas
podem ser chamadas, respectivamente, de tecnologias de dominação e
tecnologias do eu.
I.Tecnologias de Dominação
22
relações de poder, já existentes... (isto é) uma série inteira de redes de
poder que envolvem o corpo, a sexualidade, a família, o parentesco, o
conhecimento, a tecnologia e assim por diante” (1976, p. 122). Mas
isso coloca problemas consideráveis para Foucault (Poulantzas, 1978;
Waltzer, 1983), pois, como Waltzer observa, é o Estado que estabelece
os quadros conceituais que permitem a existê ncia de muitas das relações
de poder com £s quais Fouçault está preocupado.
De acordo com a estrita posição nominalista de Foucault, o poder
existe apenas quando relações de poder entram em jogo. O poder não
é algo que eu posso possuir ou reivindicar: apenas quando uma relação
de poder existe, quando ela é “ exercida” , é que o poder existe. O poder
neste sentido deve ser distinguido do poder/saber que envolve apenas
certas relações de poder e um certo tipo de saber. (
_
L
23
ricos que são chamados de é pistémès. Se em As Palavras e as Coisas
(Foucault, 1973; versão francesa original, 1966 ) seu espaço para a
identificação dessas condições está restrito à linguagem, no livro pos-
terior, A Arqueologia do Saber (Foucault, 1972), seu “ espaço” foi
ampliado para cobrir condições técnicas e institucionais
chama de discurso/prática.
— o que ele
24
V
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25
q üe sejam moralmente autónomos mas, de acorda corti Foucault, '
II.Tecnologias dò eu
27
3
III. Governamentalidade
28
de maneira que elas se tornem pessoas de um certo tipo; a formar as
próprias identidades das pessoas de maneira que elas possam ou devam
ser sujeitos. Essa atividade diz respeito às relações privadas entre o eu
e o eu, ou a relações privadas interpessoais com mentores profissionais,
ou a relações com instituições e comunidade, ou com o exercício da
soberania pol ítica. A arte do governo consistiria em fornecer uma forma
de governo para cada um e para todos, mas uma forma que deve
individualizar e normalizar. Em Vigiar e Punir, como vimos, ele argu-
mentava que a microf ísica do poder, aplicada através das tecnologias
de dominação, ao mesmo tempo individualiza e normaliza as pessoas
como sujeitos. Na História da Sexualidade (Vol. 1 ) ele mostra como nós,
em parte, ajudamos e encorajamos esses processos, ao construir a nós
mesmos através das tecnologias do eu.
Nesse último livro, ele introduziu o termo “ biopoder” para mostrar
como a construção do eu através do conceito de sexualidade permite
ao corpo agir como um ponto ou locus de aplicação ao mesmo tempo
do controle do indivíduo e do controle da população. Se, nos seus
primeiros trabalhos, ele soa fatalista e determinista, não havendo
nenhum espaço para uma ação humana significativa, dirigida à obten-
ção da liberdade, em seus ú ltimos trabalhos ele “ corrige” essa posição
quase niilista, para afirmar as possibilidades da liberdade através da
resistê ncia, rejeitando o quadro possivelmente determinista no qual
suas primeiras descrições do poder/saber tinham sido traçadas. Em vez
disso, o poder pode apenas existir onde existe a possibilidade de
resistê ncia e, portanto, a obten çã o de liberdade (Foucault, 1983 ). O
poder não é mais uma presença onipresente e globalizante mas, em vez
disso, um jogo aberto e estratégico. Mas essa liberdade não será obtida
pelo fato de sermos seres racionalmente autonômos. Pelo contrário, é
a pró pria afirmação de que somos livres porque somos racionalmente
autonômos que faz com que nos tornemos sujeitos através dos efeitos
do poder/saber. De fato, de acordo com Foucault, é em parte a noção
pós-kantiana de autonomia racional que faz com que nos tornemos
sujeitos. Na medida em que a noção de pessoa racionalmente autónoma
“ orienta” boa parte da educação liberal ocidental, també m ela é parte
daquilo que é referido como entorpecimento pós-kantiano. (Para uma
crítica da autonomia pessoal como o objetivo da educação, ver Stefaan
Cuypers, 1992).
A governamentalidade está dirigida a assegurar a correta distribui-
ção das “ coisas” , arranjadas de forma a levar a um fim conveniente para
cada uma das coisas que devem ser governadas. Para o Pr íncipe de
Maquiavel, as “ coisas” são o território e seus habitantes, com a ênfase
no primeiro. Na nova forma de Estado, o governo não se aplica ao
território per se, mas, em vez disso, à complexa unidade dos homens
em todas as suas relações e em seus vínculos com a propriedade e a
cultura em seus mais amplos sentidos, incluindo acidentes e desastres
29
tais como a fome e a guerra (Foucault, 1979b, p. 11). Para isso, urna
nova forma de racionalidade do Estado é exigida.
Em primeiro lugar, se o Estado deve ser fortalecido, sua capacidade
e os meios para ampliá-lo devem ser estabelecidos. Para isso uma forma
de conhecimento político, diferente das teorias pol íticas sobre a natu-
reza do Estado e sua legitimação, é exigida. A governaiíientalidade
exige, pois, mais do que implementar princípios gerais de justiça,
sabedoria e prudência. Um certo conhecimento concreto, preciso e
específico torna-se necessário.
Desde o in ício do século XVII os Estados começam a entrar em
competição de forma que pontos fortes e fracos tornam-se importantes
historicamente, na medida em que cada estado enfrentava um futuro
indefinido, preso à luta e à competição com outros estados. O conhe-
cimento pol ítico e a utilização dos indivíduos torna-se criticamente
importante para preservar, senão para reforçar, o Estado. Deverá estar
5 incluído nesse conhecimento político, se é que os indivíduos devam ser
utilizados para reforçar o Estado, o conhecimento dos indivíduos, de
suas inclinações, habilidades e capacidades para serem utilizados.
Os indivíduos, nessa visão, tornam-se instrumentais aos fins do
Estado. A justiça, o bem-estar e a saúde são importantes para os
indivíduos, não porque eles são bons em si para os indivíduos, mas
porque eles aumentam a força do Estado. Os investimentos na sa úde e
na educação são agora investimentos instrumentais no indivíduo, a
serem sacados mais tarde pela crescente força do Estado.
Foucault também identifica uma tecnologia particular como a da
polícia . Com esse termo, ele quer significar técnicas específicas pelas
quais um governo, desde o início do século XVII, “ no quadro do Estado,
era capaz de governar as pessoas como indivíduos significantemente
ú teis para o mundo” ( Foucault, 1982c; p. 154). Ele identifica três
formas gerais assumidas por essa tecnologia de policiamento: primeira-
mente, como ideal, sonho ou utopia; depois, como uma prá tica real ou
um conjunto de prá ticas ou regras de alguma instituição real; finalmen -
te, como uma disciplina acad ê mica, talvez desenvolvida a partir das
práticas e do conhecimento derivado dessas práticas, em instituições.
Foucault vê essa sistematização aberta das práticas administrativas
como importante, por vá rias razões. Em primeiro lugar, existe uma
tentativa para classificar as necessidades não como nas tradições filosó-
ficas mais antigas, mas em termos de escalas de utilidade para *%s
indivíduos e o Estado. Lidar com as necessidades das pessoas e, portan-
to, com sua felicidade, não é mais visto como um efeito ou como um
resultado da polícia do Estado, mas como uma condição ou exigência
de sua sobrevivência e de seu desenvolvimento.
Finalmente, policiar torna-se uma disciplina no significado acadê-
mico da palavra, ensinada em vá rias universidades, notavelmente em
Goettingan. Foucault sugere que, por volta do final do século XVIII,
30
nós temos uma racionalidade política vinculada a uma tecnologia
política. ! Essa última envolve intervenções na vida dos indivíduos,
através de observação, vigilância, exames, classificação e normalização.
Esses processos estão profundamente imersos e implicados na emergên-
cia e desenvolvimento das Ciê ncias Humanas. A
Em uma de suas últimas entrevistas, Foucault disse (Foucault, Ì
1982a, p. lOss):
Por um período bastante longo, as pessoas me pediam para lhes dizer
o que aconteceria e para lhes dar um programa para o futuro,., os Ì
programas tornam-se uma ferramenta, um instrumento de opressão.
Meu papel é mostrar às pessoas que elas são mais livres do que
sentem... Todas as minhas análisçs sã o contra a idéia de necessidades
universais na existê ncia humana. .
Foucault, como uni “ homme de gauche” , estava preocupado com o fato
de que o socialismo nunca teve nem nunca compreendeu uma arte do
governo. Ele rejeitava a noção dé intelectual, seja em sua forma totali-
zante, o intelectual produzindo uma teoria universal da vida política
( contra Sartre), seja o intelectual cotno apoiando ideologicamente uma
forma ou grupo preferido de oprimido (talvez Gramsci ). Foucault
acreditava, juntamente com Gilles Deleuze, que os intelectuais n ão
-
podiam e não deviam falar em nome do oprimido e dizer lhe como
resistir. Em vez disso, eles deviam ficar ao lado, minai o « poder dos
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31
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1
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32
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opinião de Foucault, não temos que ter uma visão de mundo total para
resistirmos e nos opormos a formas de dominação e sujeição política;
podemos fazê-lo em qualquer ponto do tempo, como os vá rios grupos
de resistê ncia no mundo ocidental nos estão mostrando.
Mas o problema consiste em reconhecer quando o poder moderno
está sendo exercido e se a resistê ncia é uma resposta apropriada.
Foucault nega que ele sustente qualquer posição normativa explícita,
mas sem uma tal posição é mais dif ícil ver como proceder. Sobre essas
questões alguns de seus cr íticos vêem-no como incoerente (ver Hoy ).
Entretanto, essas objeções supõem que os princípios políticos
liberais e a noção de educação liberal, que nós todos mais ou menos
subscrevemos no mundo ocidental (em suas vertentes liberais e conser-
vadoras), não sejam em si mesmas fundamentalmente equivocadas. Mas
Foucault acredita que elas o são. Ou, no mínimo, uma vez que ele diz
pouco, explicitamente, sobre educação, mas muito sobre o Iluminismo,
estruturas de poder, disciplinas e sobre a constituição de sujeitos, seu
pensamento permite que formulemos uma crítica da educação de
inspiração humanista e liberal.
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34
3
Jorge Larrosa
Tecnologias do Eu e Educação
35
possibilidades de um campo de estudo, a educação, neste caso. Este é
um trabalho de “ teoria da educação” , se com isso designamos um
exercício menor que consiste em colocar alguns livros de Foucault ao
lado das formas convencionais de pensar algumas prá ticas educativas e
em ensaiar a possível fecundidade de tal associação. Embora para isso
tenhamos que fazer alguma violência tanto a Foucault quanto ao objeto
“ empírico” que, em suas descrições usuais, se toma como material de
trabalho. Mas esse é o duplo risco que sempre implica esse tipo de jogo.
Vou jogar o segundo baralho, o da 'educação, de um modo ao
mesmo tempo muito geral e muito específico. Muito geral, porque não
estabelecerei nenhum corte temporal nem geográfico, nem farei nenhu-
ma delimitação com respeito ao “ setor” educativo tomado como objeto
de análise. A ú nica coisa que farei será estabelecer um viés em relação
ao tipo de práticas pedagógicas que irei considerar. Em geral, conside-
rarei aquelas nas quais se produz ou se transforma a experiê ncia que as
pessoas tê m de si mesmas. Meu trabalho tenta oferecer ferramentas
teóricas para “ pensar de outro modo” relações pedagógicas aparente-
mente tão d íspares quanto as que se dão em uma aula de educação
moral, em uma aula de educação de adultos, em uma aula universitá ria
de Filosofia da Educação, na elaboração de um trabalho de “ pesquisa
sobre a prá tica ” em um curso universitá rio de Mestrado e, por que não ?,
em um grupo de terapia, nas reuniões de um grupo pol ítico ou religioso,
em uma conversa entre um pai e um filho, um educador de rua e um
de seus “ meninos” , etc. A ú nica condição é que sejam práticas pedagó-
gicas, nas quais o importante não é que se aprenda algo “ exterior ” , um
corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma
de relação reflexiva do “ educando” consigo mesmo. Minha tese a esse
respeito é de que a forma básica dessas prá ticas, o que é comum a todas
elas, é algo muito simples. Se deixamos de lado o conte údo concreto
de cada uma delas, os objetivos particulares em cada caso (em termos
de Bernstein, o “ quê” da transmissão), e nos fixamos apenas na forma
do dispositivo ( no “ como” da pedagogia), a similaridade é surpreen -
dente. Mas, por outro lado, minha aproximação tentará também ser
muito específica. Tentarei oferecer o arcabouço para algumas descri-
ções relativamente minuciosas das distintas modalidades nas quais esse
dispositivo geral pode se realizar. Porque, embora a similitude estrutu-
ral seja notável, a diversidade das realizações possíveis é quase infinita.
Trata-se, pois, de mostrar a lógica geral dos dispositivos pedagógicos
que constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo, como
se fosse uma gramá tica suscetível de m últiplas realizações.
No que diz respeito ao primeiro baralho, o da estratégia analítica
foucaultiana, meu jogo será também, ao mesmo tempo, muito geral e
muito específico. Tentarei, em primeiro lugar, elaborar a partir dessa
obra um enfoque teórico que permita reconsiderar o que me parecem
duas inércias fortemente encasteladas no campo pedagógico. A primeira
é sua forte dependência de um modo de pensamento antropológico ou,
36
1
1
o que é a mesma coisa, da crença arraigada de que é uma “ idéia de
homem” e um projeto de “ realização humana” o que fundamenta a
compreensão da idéia de educação e o planejamento das práticas
educativas. A segunda é a ocultação da pró pria pedagogia como uma
operação constitutiva, isto é, como produtora de pessoas, e a crença i
arraigada de que as práticas educativas são meras “ mediadoras” , onde
se dispõem os “ recursos” para o “ desenvolvimento” dos indivíduos.
Estamos lidando com inércias, nas quais o papel produtivo da pedagogia
—
na fabricação ativa dos indivíduos neste caso, dos indivíduos enquan-
to dotados de uma certa experi ê ncia de si — fica sistematicamente
elidido. A leitura que farei de Foucault, portanto, é uma leitura bastante
simplificada do Foucault antropólogo ou, melhor dito, do Foucault que
pode ser colocado em relação com a antropologia. O Foucault que
tentarei colocar em relação com as prá ticas pedagógicas nas quais se
constr ói e modifica a experiê ncia que os indivíduos tê m de si mesmos
é o que trabalhou numa “ ontologia histórica de nós mesmos” , justa-
mente através do estudo dos mecanismos que “ transformam os seres
humanos em sujeitos” . E nesse sentido que se pode utilizar a obra de
Foucault para questionar as inércias teóricas das quais falava antes: não
porque implique uma teoria diferente do que é a pessoa humana como
sujeito, como capaz de certas relações reflexivas sobre si mesma, mas
porque mostra como a pessoa humana se fabrica no interior de certos
aparatos ( pedagógicos, terapê uticos,...) de subjetivação. A dimensão
mais geral da educação que este trabalho pretende reconsiderar tem a
ver com a antropologia da educação, isto é, com as teorias e práticas
pedagógicas enquanto produtoras de pessoas. O jogo mais geral com a
obra de Foucault será, portanto, um jogo antropológico.
Em segundo lugar, e naquilo que se refere à utilização específica da
obra de Foucault, o jogo consiste em elaborar as bases de um método,
se por isso se entende uma certa forma de interrogação e um conjunto
de estratégias analíticas de descrição. Nessa “ dimensão metodológica ”
de meu trabalho, apresentarei exemplos pedagógicos concretos, tentan-
do fazer com que o leitor imagine em detalhe sua realização prática. E
tentarei explicitar o que significa focalizá-los com um olhar construído
na clave foucaultiana, como poderiam ser descritos com as ferramentas
conceituais de Foucault, e quais seriam as perguntas que essa estratégia
analítica permitiria. Meu trabalho pretende ensaiar os limites e as
possibilidades metodológicas de uma certa problematização foucaultia-
na da construção e da mediação pedagógica da experiê ncia de si.
Avançando já o esquema do capítulo, o que me proponho é sugerir
uma perspectiva teórica, numa clave foucaultiana, para a análise das
práticas pedagógicas que constroem e medeiam a relação do sujeito
consigo mesmo: essa relação na qual se estabelece, se regula e se
modifica a experiê ncia que a pessoa tem de si mesma, a experiê ncia de
si. Para isso, e depois de uma introdução sobre o modo como a obra de
Foucault pode contribuir para elaborar uma posição teórica e um
37
conjunto de regras metodológicas muito gerais, apresentarei brevemen-
te certos exemplos extraídos de algumas de minhas pesquisas anteriores,
com o objetivo de especificar tanto o objeto de análise quanto os
princípios de descrição implícitos no enfoque teórico. Em continuação,
explicitarei o conceito foucaultiano de “ tecnologias do eu” e o contex-
tualizarei, ainda que superficialmente, em relação à totalidade da obra
de Foucault. Em terceiro lugar, e naquilo que seria já uma elaboração
dos dispositivos pedagógicos nos quais se constrói e se medeia a
experiência de si, introduzirei um modelo teórico no qual a experiência
de si pode ser analisada como resultado do entrecruzamento, em um
dispositivo pedagógico, de tecnologias óticas de auto-reflexão, formas
discursivas (basicamente narrativas) de auto-expressão, mecanismos
jurídicos de auto-avaliação, e ações pr áticas de autocontrole e auto-
transformação. Minha aproximação tentará ser extremamente geral,
sem ancoragens espaciais e temporais concretas, embora, obviamente,
as modalidades concretas dos mecanismos óticos, discursivos, jurídicos
e prá ticos que constituem os dispositivos pedagógicos particulares só
possam ser entendidas no interior de uma configuração historicamente
dada de saber, poder e subjetivação. Trata-se aqui de assentar as bases
para uma metodologia, se por isso entendemos a elaboração de deter-
minada forma de problematização das práticas pedagógicas orientadas
para a construção e a transformação da subjetividade. Por último, e para
concluir, farei uma sumária consideração sobre o modo como essa
forma de problematização pode ter virtualidades críticas, se por isso
entendemos uma orientação reflexiva do pensamento com propósitos
práticos e no trabalho da liberdade.
A Contingência da Experiência de Si
—
No vocabulá rio pedagógico esse conjunto de palavras amplo, inde-
terminado, heterogéneo e composto pela recontextualização e o entre-
cruzamento de regimes discursivos diversos
— utilizam-se muitos
termos que implicam algum tipo de relação do sujeito consigo mesmo.
Alguns exemplos poderiam ser “ autoconhecimento” , “ auto-estima” ,
“ autocontrole ” , “ autoconfiança ” , “ autonomia” , “ auto-regulação” e
“ autodisciplina” . Essas formas de relação do sujeito consigo mesmo
podem ser expressadas quase sempre em termos de ação, com um verbo
reflexivo: conhecer-se, estimar-se, controlar-se, impor-se normas, re-
gular-se, disciplinar-se, etc. Por outro lado, e deixando de lado os
diferentes tipos de fenômenos que designam, todos esses termos se
consideram como antropologicamente relevantes na medida em que
designam componentes que estão mais ou menos impl ícitos naquilo que
para nós significa ser humano: ser uma “ pessoa” , um “ sujeito” ou um
“ eu” . Como se a possibilidade de algum tipo de relação reflexiva da
pessoa consigo mesma, o poder ter uma certa consciência de si e o poder
38
"h
fazer certas coisas consigo mesma, definisse nada mais e nada menos
que o ser mesmo do humano. í
Todos esses termos, sobretudo quando são usados em um contexto
pedagógico e/ou terapêutico, costumam articular-se normativamente.
No discurso pedagógico atual , por exemplo, muito influenciado pela
Psicologia Social do Desenvolvimento, é quase obrigatório falar de
como se “ desenvolve” a auto-identidade , o autoconceito ou, em geral,
a consciência de si, em um sentido cada vez mais “ diferenciado” , mais
“ maduro” ou mais “ realista” , sempre que se dêem as condições adequa-
das. Em um contexto terapêutico, e com matizes distintos, segundo a
orientação teórica e prática da terapia em questão, é freqiiente falar de
formas não desejáveis ou inclusive patológicas da relação da pessoa \
consigo mesma como, por exemplo, a culpabilidade e a vergonha de si
em alguma de suas modalidades extremas, a irresponsabilidade, a
debilidade da vontade ou do caráter, a ausê ncia de autoconfiança, a
perda ou o debilitamento da identidade, distintas formas de neurose ou
de psicose tomadas como patologias do princípio de identidade, etc.
Portanto, todos os termos dos quais falava antes podem ser elaborados
também como sç fossem características normativas do sujeito formado
ou maduro, ou do sujeito são ou equilibrado, que as práticas educativas
39
j.
e/ou as práticas terapê uticas deveriam contribuir para constituir, para
melhorar, para desenvolver e, eventualmente, para modificar.2
Mas esse sujeito construído como o objeto teórico e prático tanto
das pedagogias quanto das terapias, esse “ sujeito individual ” caracteri-
zado por certas formas normativamente definidas de relação consigo
mesmo, não é, em absoluto, uma evidência intemporal e acontextual.
O “ sujeito individual ” descrito pelas diferentes psicologias da educação
ou da cl ínica, esse sujeito que “ desenvolve de forma natural sua auto-
consciê ncia ” nas prá ticas pedagógicas, ou que “ recupera sua verdadeira
consciê ncia de si ” com a ajuda das práticas terapê uticas, não pode ser
tomado como um “ dado” não- problemático. Mais ainda, não é algo
que possa analisar-se independentemente desses discursos e dessas
práticas, posto que é aí, na articulação complexa de discursos e práticas
( pedagógicos e/ou terapê uticos, entre outros ), que ele se constitui no
que é. Antes, entretanto, de mostrar com certo detalhe como se define
e se fabrica esse sujeito são e maduro, definido normativamente em
termos de autoconsciê ncia e autodeterminação, e no qual temos certa
tendê ncia a nos reconhecer, ao menos idealmente, talvez seja bom um
certo exercício de desfamiliarização. E uma vez que se trata de nos
desfamiliarizarmos de nós mesmos, nada melhor que aplicar, a isso que
somos, o olhar assombrado do antropólogo, esse olhar etnológico,
educado para ver, inclusive na idéia que ele tem de si mesmo, as curiosas
e surpreendentes convenções de uma tribo particular. E podemos
começar com essas expressivas palavras de Clifford Geertz:
40
" i .
1«
41
Geertz falava da contingência da idéia que temos de nós mesmos.
Gehlen, dando um passo adiante, fala de como a contingência de nossa
auto-interpretação implica a contingência dos comportamentos que
temos tanto frente aos demais como frente a nós mesmos. Mas Foucault
dá, entretanto, um passo a mais. O que estuda não são nem as idéias
nem os comportamentos, mas algo que pode ser separado analiticamen-
te de ambos e que, ao mesmo tempo, os torna possíveis: a experiê ncia
de si. E isso, a experiência de si, também é algo histórica e culturalmente
contingente, na medida em que sua produção adota formas “ singula-
res” .
Na introdução ao Uso dos Prazeres, o segundo volume da História
da Sexualidade, publicado em 1984, Foucault estabelece assim o domí-
nio de seu trabalho:
... nem uma história dos comportamentos nem uma história das
representações. Mas uma história da “ sexualidade” (...). Meu pro-
pósito não era o de reconstruir uma história das condutas e das
práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas. Também não
era minha intenção analisar as idéias (científicas, religiosas ou filo-
sóficas) através das quais foram representados esses comportamentos
(...). Tratava-se de ver de que maneira, nas sociedades ocidentais
modernas, constituiu-se uma “ experiência” tal, que os indivíduos são
levados a reconhecer-se como sujeitos de uma “ sexualidade” (...). O
projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto
experiê ncia — se entendemos por experiência a correlação, numa
cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de
subjetividade.4
Ao estudar historicamente a sexualidade do ponto de vista da experiê n-
cia, Foucault aponta diretamente contra qualquer realismo ou essencia-
lismo do eu, da pessoa humana ou do sujeito. Foucault estabelece um
domínio e uma forma de análise com os quais se distancia de qualquer
idéia do sujeito como uma substâ ncia real ou uma essência intemporal
(o homem de desejo, nesse caso ) que se manteria estática ou imutável
por cima ou por debaixo da variabilidade e da contingência tanto das
idéias acerca da sexualidade quanto dos comportamentos sexuais. Por
outro lado, se distancia també m de qualquer ilusão retrospectiva na qual
a história das idéias ou das representações apareceria como uma história
do progressivo êxito da verdade e na qual a história dos comportamen -
tos apareceria como uma história do progresso da liberdade.
Não é que na natureza humana estejam implicadas certas formas
de experiê ncia de si que se expressam historicamente mediante idéias
distintas (cada vez mais verdadeiras ou, em todo caso, pensáveis desde
os êxitos e dificuldades da verdade ) e se manifestam historicamente em
4 Foucault, 1984a, pp. 9-10. Citação conforme a edição brasileira: Graal, 1985, p.9).
42
distintas condutas (cada vez mais livres ou possíveis desde o dif ícil
caminho até a liberdade ), mas que a pr ópria experiência de si não é
senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no
qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do sujeito, as
práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade
á
nas quais se constitui sua própria interioridade. E a própria experiê ncia
de si que se constitui historicamente como aquilo que pode e deve ser
pensado. A experiência de si, historicamente constitu ída, é aquilo a
respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa,
se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina,
quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc. E esse ser próprio
sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior
de certas práticas. Ao analisar a experiência de si, o objetivo é
... analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não as socieda-
des, nem suas “ ideologias” , mas as problematizações através das
quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas
a partir das quais essas problematizações se formam.5
5 Foucault, 1984a, p. 17. Citação conforme a ed. bras., Graal, 1985, p. 15.
43
mente encontra os recursos para o pleno desenvolvimento de sua
autoconsciê ncia e sua autodeterminação, ou para a restauração de uma
relação distorcida consigo mesma. As práticas pedagógicas e/ou tera-
pêuticas seriam espaços institucionalizados onde a verdadeira natureza
da pessoa humana — autoconsciente e dona de si mesma
desenvolver-se e/ou recuperar-se.
— pode
44
do sujeito, sua ontologia enquanto que histórica e culturalmente con-
tingente, enquanto que singularmente constituída. Avancemos agora
um pouco mais.
Se a experiência de si é histó rica e culturalmente contingente, é
també m algo que deve ser transmitido e ser aprendido. Toda cultura
deve transmitir um certo repertório de modos de experiência de si, e
todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em
alguma das modalidades incluídas nesse repertó rio. Uma cultura inclui
os dispositivos para formação de seus membros como sujeitos ou, no
sentido que vimos dando até aqui à palavra “ sujeito” , como seres
dotados de certas modalidades de experiência de si.6 Em qualquer caso,
é como se a educação, além de construir e transmitir uma experiê ncia
“ objetiva” do mundo exterior, constru ísse e transmitisse também a
experiê ncia que as pessoas tê m de si mesmas e dos outros como
“ sujeitos” . Ou, em outras palavras, tanto o que é ser pessoa em geral
como o que para cada uma é ser ela mesma em particular.
6 Esses recursos sã o muito mais amplos que os contidos nas instituições de ensino.
Qualquer prática social implica que os participantes tratem os outros participantes
e a si mesmos de um modo particular. Quem são os participantes para si mesmos e
quem é cada um para os outros é essencial à natureza mesma de qualquer prática
social. Portanto, aprender a participar em uma prática social qualquer (um jogo de
futebol, uma assembléia, um ritual religioso, etc.) é, ao mesmo tempo, aprender o
que significa ser um participante. Aprendendo as regras e o significado ao jogo, a
pessoa aprende ao mesmo tempo a ser um jogador e o que ser um jogador significa.
7 Uma boa introdução às atividades pedagógicas de educação moral, com numerosos
exemplos, pode-se encontrar em Martinez e Puig, 1991.
45
“ fazer falar ” , provocar e mediar a fala, consistem basicamente na
produção e na regulação dos próprios textos das crianças. Por outro
lado, é essencial à realização dessas práticas a colocação em marcha de
uma bateria interrogativa e de um conjunto de mecanismos para o
controle do discurso.
Apresentarei e comentarei brevemente um exemplo dessas pr áticas
de “ educação moral ” na qual se trabalha explicitamente a experiê ncia
de si. Trata-se de uma atividade pedagógica do tipo de “ clarificação de
valores” . Ela é proposta para crianças de nove anos, tem uma duração
prevista de setenta e cinco minutos, e tem como objetivo que as crianças
reflitam sobre seu pr óprio modo de ser, que sejam capazes de comuni-
cá-lo, e que possam descobrir aspectos desconhecidos das outras crian -
ças. A sequê ncia metodológica que se propõe para sua realização é a
seguinte:
1) O professor apresenta a atividade e entrega a cada criança uma
folha de papel com perguntas como: Que coisas crês que fazes bem ?
Que coisas cr ês que fazes mal ? Que mudarias de ti mesmo se
pudesses ? Que coisas te dão medo ? De que coisas gostas ? Se pudesses
ser outra pessoa, quem gostarias de ser ? Por quê ? Qual é a pessoa
que menos gostarias de ser ? Por quê ? As crianças devem responder
individualmente às perguntas durante quinze minutos.
2) Formam-se pares ao acaso. Durante vinte minutos cada criança
explica a seu par suas respostas e responde as perguntas do outro
sobre o que não compreendeu bem e vice-versa.
3) Cada par faz um mural tentando expressar mediante desenhos,
frases, etc., em que se parecem e em que se diferenciam entre si.
4 ) Os murais são expostos e toda a classe olha e comenta todos ou
alguns deles.
Nessa atividade não há um texto anterior. O discurso pedagógico
é basicamente interrogativo e regulativo. Há apenas um conjunto de
perguntas dirigidas a fazer com que as crianças produzam seus pró prios
textos de identidade. Mas não se pode dizer qualquer coisa, nem dizê-la
de qualquer maneira. Esses textos não apenas têm que se construir de
acordo com o que estabelece a bateria interrogativa, mas, além disso, e
durante a realização da atividade, os textos são situados em uma espécie
de dramatização global que lhes dá seu significado legítimo. O que as
crianças aprendem aí é uma gramá tica para a auto-interpretação e para
a expressão do eu e uma gramá tica para a interrogação pessoal do outro.
Em geral, uma gramá tica para a interrogação e a expressão do eu.
Aprendendo os princípios subjacentes e as regras dessa gramática,
constr ói-se uma experiê ncia de si. A criança produz textos. Mas, ao
mesmo tempo, os textos produzem a criança. O dispositivo pedagógico
46
;
1.
produz e regula, ao mesmo tempo, os textos de identidade e a identi-
dade de seus autores. E aprendem também uma certa imagem das
pessoas e das relações entre as pessoas: que cada um tem determinadas
qualidades pessoais, que é possível conhecê-las e avaliá-las segundo
certos crité rios, que é possível mudar coisas em si mesmo para ser
melhor e conseguir o que a pessoa se propõe, que as outras pessoas têm
qualidades diferentes, que é possível comunicar o próprio modo de ser, *
que é possível viver juntos, apesar das diferenças, dadas certas atitudes
de compreensão, respeito e tolerâ ncia, etc. O que se aprende, em suma,
é um significado específico da singularidade do eu e da compreensão
m útua. Também um significado específico para coisas como “ autoco-
nhecimento ” e “ auto-avaliação” , “ sinceridade” , “ comunicação” e
“ compreensão” . As crianças aprendem a realizar certo tipo de jogo de 1
acordo com certas regras. Aprendem o que significa o jogo e como jogar
legitimamente. E aprendem quem são elas mesmas e os demais nesse
jogo social enormemente complexo e submetido a formas muito estritas
de regulação, no qual a pessoa se descreve a si mesma em contraste com
as demais, no qual a pessoa define e elabora sua própria identidade.
1
As Histórias de Vida na Educação de Adultos
8 A exploração foi feita num trabalho de pesquisa coordenado por mim e realizado
por vá rios alunos do Mestrado em Educação de Pessoas Adultas, durante o período
91/92 e intitulado La production de textos autobiográ ficos en la education de
adultos. Universidad de Barcelona, inédito. Veja-se també m Larrosa, 1994d.
9 Trata-se de um texto intitulado “ Don Tom ás” e incluído em um livro de histórias
pessoais elaborado a partir de narrações produzidas por alunos de escolas de adultos.
O livro se intitula Memórias y recuerdos. Barcelona, El Roure, 1991.
47
das coisas que se faziam em suas aulas, o que o professor explicava, etc.
Em sua caracterização como professor, insiste-se em sua amizade com
as crianças, sua sensibilidade ecol ógica, suas lições sobre as injustiças
sociais e sobre a cultura popular. E se as compara implicitamente com
o que se fazia nas escolas pú blicas oficiais. O texto termina com uma
avaliação do porqu ê não interessava aos ricos e aos padres aquilo que
D. Tomás tentava transmitir às crianças. O que organiza o texto é um
universo axiológico ou um sistema de avaliações organizado de forma
polar : de um lado D. Tomás e os pobres, de outro, os ricos e os padres.
Por outro lado, e da perspectiva do narrador, D. Tomás é apresentado
como um personagem fundamental em sua tomada de consciência, no
fato de haver-se dado conta das injustiças daquela situação social e no
“ verdadeiro” papel da educação e da cultura. Trata-se, portanto, de
uma “ história exemplar ” , sem nenhuma ambigüidade avaliativa, que
exibe de forma transparente a forma moral de construção e seu universo
de referê ncia. Por outro lado, e enquantcf histó ria pessoal, busca a
*
48
lidade que manté m com outros textos como de seu funcionamento
pragmático em um contexto.
O tipo de prá tica pedagógica dominante em cada escola, as instru-
ções do professor e a forma como este regulava a realização da atividade
estabeleciam em cada momento que tipos de histó rias podiam ser
contadas, como deveriam ser interpretadas as histórias produzidas, e de
que modo algumas das histó rias particulares podiam ser tomadas como
experiê ncias mais ou menos generalizáveis. Os professores pergunta-
vam, comentavam o que os alunos diziam, generalizavam as histórias
singulares, etc. Quer dizer, estabeleciam, regulavam e modificavam o
significado das histó rias pessoais que se produziam. Ou, dito de outro
modo, realizavam certas operações sobre a experiê ncia de si dos alunos
na medida em que essa experi ê ncia estava constitu ída tanto no vocabu-
lá rio e na trama dos relatos que contavam quanto na maneira de
contá-los.
49
i
fundamentalmente, sua pr ó pria maneira de ser em relação a seu traba-
lho. Por isso, a questão prática está duplicada por uma questão quase-
existencial e a transforma çã o da pr á tica está duplicada pela
transformação pessoal do professor.
Uma aula de Filosofia da Educação pode ser, sob certas condições,
um desses espaços institucionalizados de reflexão. Ou, no sentido que
aqui lhe estamos dando, um desses espaços de produção e mediação da
experiê ncia de si. Obviamente, isso ocorre apenas se a aula não está
constitu ída como um espaço para produzir especialistas na disciplina,
pessoas que “ sabem ” Filosofia da Educação, mas como um espaço no
qual se aprende a “ pensar ” e a “ argumentar ” sobre questões educativas
de determinada maneira. Basicamente, de uma maneira moral. Quer
dizer, construindo a idé ia da educação em relação com uma idéia do
social, do pol ítico, do cultural ou do pessoal, que inclua componentes
axiológicos e que se possa relacionar a ideais p ú blicos ou pessoais como,
por exemplo, a igualdade, a democracia, o enriquecimento da vida
cultural, o pleno desenvolvimento das capacidades humanas, o di á logo,
a comunidade, a autonomia pessoal, etc. Mas “ pensar ” como ter certas
cren ças, opiniões ou id é ias sobre a educação tomada em um sentido
moral se relaciona aqui explicitamente com submeter à consideração
um conjunto de pressuposições que podem estar impl ícitas em uma
grande variedade de comportamentos em situações prá ticas. Por outro
lado, “ pensar ” tampouco é aqui algo exclusivamente lógico ou argu-
mentativo, algo que tem a ver unicamente com a coerê ncia do discurso,
mas que inclui e integra atitudes pessoais básicas e componentes de
decisão. Por isso, as pr á ticas discursivas que se produzem em uma aula
de Filosofia da Educaçã o n ão tê m tanto a ver com o que educador sabe,
com sua competê ncia profissional, mas com o que ele é, com sua
identidade moral como educador, com o valor e o sentido que confere
à sua prática, com sua autoconsciê ncia profissional. Dessa maneira,
“ pensar ” sobre a educação implica construir uma determinada auto-
consciê ncia pessoal e profissional que sirva de princí pio para a pr á tica,
de crité rio para a cr ítica e a transformação da prática, e de base para a
auto-identificação do professor.
Outro exemplo de produção e mediaçã o da auto-reflexão dos
professores é uma atividade de reflexão sobre a pr á tica na qual um grupo
de professores de educação de adultos introduziu a pedagogia do
“ Projeto Filosofia para Crianças” em uma aula de neoleitores. Seu
trabalho consistia em adaptar o material pedagógico dispon ível e cons-
truir um material novo em função das características de seus alunos,
controlar a realização das atividades através de um conjunto de meca-
nismos de observação e registro e, sobretudo, explicitar , revisar e
transformar seu pró prio comportamento na prática em função de certos
parâ metros de dialogismo, aprendizagem signficativa, nã o-diretividade
e atenção à lógica de pensamento e à experiê ncia dos alunos. O que os
professores faziam com a introduçã o de uma pedagogia nova era,
50
fundamentalmente, modificar as idéias implícitas dos alunos a propó- I
sito do que é aprender (na medida em que essas idéias implicam certas
atitudes em relação ao conhecimento, em relação a si mesmos e aos
demais que se refletem em suas próprias condutas na sala de aula) e
modificar suas pr ó prias idéias sobre o ensino na medida em que essas 1
id é ias implicam també m atitudes, formas de atenção, aspectos emocio-
nais, valorativos, etc.
O trabalho propriamente reflexivo dos professores consistia, em
primeiro lugar, em explicitar seu pró prio comportamento através de i
mecanismos previamente planejados de observação mútua e auto-ob-
servação, e através de aparatos també m previamente planejados para o
registro de suas pr ó prias auto-observações. Por outro lado, nessas
mesmas operações de auto-observação, em suas reuniões de trabalho,
em suas leituras e em suas reuniões com os tutores de seu trabalho, i
aprendiam toda uma linguagem para falar de suas prá ticas e de si 1
mesmos em suas práticas. Por último, os professores aprendiam também
a julgar-se e transformar -se em funçã o dos parâ metros normativos
impl ícitos na pedagogia que estavam introduzindo e na qual, ao mesmo 5
51
entre saber e poder em um conjunto de práticas nas quais se realiza, em
uma só operação, tanto a produção de determinados conhecimentos
sobre o homem como sua cultura técnica no interior de um determinado
conjunto de instituições (Foucault, 1972b, 1975, 1976). O exemplar
na análise foucaultiana é essa articulação entre saber e poder em cujo
interior se produz o sujeito. E no momento em que se objetivam certos
aspectos do humano que se torna possível a manipulação técnica
institucionalizada dos indivíduos. E, inversamente, é no momento em
que se desdobra sobre o social um conjunto de práticas institucionali-
zadas de manipulação dos indivíduos que se torna possível sua objeti-
vação “ científica ” .
Nesse contexto, a educação é analisada como uma pr á tica discipli -
nar de normaliza çã o e de controle social. As prá ticas educativas são
consideradas como um conjunto de dispositivos orientados à produção
dos sujeitos mediante certas tecnologias de classificação e divisão tanto
entre indivíduos quanto no interior dos indivíduos. A produção peda-
gógica do sujeito está relacionada a procedimentos de objetivação,
metaforizados no panoptismo, e entre os quais o “ exame” tem uma
posição privilegiada. O sujeito pedagógico aparece então como o
resultado da articulação entre, por um lado, os discursos que o no-
meiam, no corte histórico analisado por Foucault, discursos pedagógi-
cos que pretendem ser científicos e, por outro lado, as pr á ticas
institucionalizadas que o capturam, nesse mesmo período histórico, isto
é, aquelas representadas pela escola de massas.
Entretanto, a partir de 1976 começa a introduzir-se na obra de
Foucault um certo deslocamento que poderíamos caracterizar, não sem
precau ções, como um deslocamento em direçã o à interioridade do
sujeito. O primeiro elemento desse deslocamento é, talvez, a aná lise da
“ confissão ” iniciada no primeiro volume da História da Sexualidade
Na análise que ali se fazia sobre o “ dispositivo da sexualidade” havia
.
uma engrenagem sistemática de “ exame” e “ confissão” ou, se quiser-
mos, das tecnologias orientadas à objetivação mé dica, psicológica ou
52
social da sexualidade, à produção da sexualidade como “ objeto” de um
conjunto de disciplinas mais ou menos “ científicas” , e das tecnologias
orientadas ao pr óprio trabalho do sujeito sobre si mesmo em relação a
tentar estabelecer, em sua pró pria sexualidade, tanto a verdade de si
mesmo quanto a chave de sua pr ó pria libertaçã o (Foucault, 1976 ).
Por outro lado, e a partir de 1978, o bin ó mio saber/ poder, já
elaborado previamente em termos de “ disciplina” e em termos de
“ biopoder ” , começa a ser abordado em termos de “ governo” . E, na
perspectiva de Foucault, a questão do “ governo” está já desde o
princípio fortemente relacionada com a questão do “ autogoverno” . E
esta ú ltima questão, por sua vez, está claramente relacionada com o
tema da “ subjetividade” .
12
A problemática do governo aparece já nas primeiras aná lises como
historicamente desdobrada tanto no campo político (em relação à “ arte
de governar ” e à “ pol ícia” ) quanto no campo moral (em relação ao
“ governo de si mesmo” ), no campo pedagógico (em relação ao “ gover-
no das crianças” ), no campo “ pastoral” (em relação ao governo da alma,
da consciê ncia e da vida ) e inclusive no campo econó mico ( “ governo
da casa ” e da “ riqueza do Estado ” ).
No Curso 79/80 no Coll ège de France, a relação entre “ governo” ,
“ autogoverno ” e “ subjetivaçã o ” se estabelece do seguinte modo:
Como ocorreu que, na cultura ocidental cristã, o governo dos
homens exige daqueles que são dirigidos, ademais de atos de obe-
diê ncia e submissão, “ atos de verdade” que tê m como particularida-
de o fato de que o sujeito é exigido não somente a dizer a verdade,
mas a dizer a verdade a propósito de si mesmo, de suas faltas, de seus
desejos, do estado de sua alma, etc. ? Como se formou um tipo de
governo dos homens onde n ão se é exigido simplesmente a obedecer,
mas a manifestar, enunciando-o, o que se é ? (Foucault, 1989a, pp.
123-4 ).
53
Por outro lado, a relação implícita entre as questões do “ governo” , do
“ autogoverno” e da “ subjetivação” , utilizando já o conceito de “ tecno-
logias do eu ” , aparece .no curso 1980/81, quando se afirma que, para
uma história das “ tecnologias do eu ” , seria ú til analisar
Este governo de si, com as técnicas que lhe são próprias, tem lugar
“ entre” as instituições pedagógicas e as religiões de salvação ( reli-
gions de salut ) (Foucault, 1989 b, p. 137).
Em qualquer caso, as questões pol íticas aparecem cada vez mais rela-
cionadas com questões éticas. Se nos textos sobre o “ governo” e o
“ poder pastoral ” , a questão ética está claramente subordinada a uma
problemá tica política, à medida que Foucault vai tomando como objeto
de aná lise espaços histó ricos cada vez mais distanciados, a questão do
“ governo de si” se faz cada vez mais autónoma. No segundo e terceiro
volumes da História da Sexualidade, embora a questão pol ítica continue
impl ícita, a problemá tica é tica é claramente dominante. Nesses livros,
Foucault tenta uma análise meticulosa das práticas orientadas à mani-
pulação da existê ncia pessoal, ou, mais especificamente, uma colocação
em cena das “ artes da existência ” que se podem encontrar em alguns
grupos sociais na Gr écia clássica e na Roma Greco-Latina. E, nesse
contexto, o foco privilegiado é a consideração das diferentes modali-
dades da construção da relação da pessoa consigo mesma. As questões
básicas são temas como a hermenê utica do eu, a relação entre verdade
e proibição, as formas da experiê ncia de si, etc.
O sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do
sujeito, já não é analisada apenas do ponto de vista da “ objetivação ” ,
mas também e fundamentalmente do ponto de vista da “ subjetivação” .
Isto é, do ponto de vista de como as práticas pedagógicas constituem e
medeiam certas relações determinadas da pessoa consigo mesma. Aqui
os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas como
sujeitos falantes; nã o como objetos examinados, mas como sujeitos
confessantes; não em relação a uma verdade sobre si mesmos que lhes
54
f é imposta de fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que
eles mesmos devem contribuir ativamente para produzir.
55
determinado domínio material é focalizado como objeto de atenção.
Ou, dito de outro modo, quando determinados estados ou atos do
sujeito são tomados como o objeto de alguma consideração prática ou
cognoscitiva. Foucault chama isso de “ problematização” . Entretanto,
um dom ínio material pode ser objeto de diferentes formas de proble-
matização. E, historicamente considerado, um domínio material é
tomado como objeto de atenção apenas no interior de alguma modali-
dade de problematização específica. Desse ponto de vista, as formas de
problematização são as que estabelecem como um domínio material está
cognoscitivamente e praticamente considerado e, portanto, as que
estabelecem a especificidade da experiê ncia de si. Em uma perspectiva
histórica, a história da experiê ncia de si com respeito a um domínio
material (a sexualidade, por exemplo) é a história das problematizações
que constituem as condições de possibilidade, a história dos discursos
orientados a articulá-la teoricamente e a história das práticas orientadas
para fazer coisas com ela. E como essas problematizações são históricas,
particulares e contingentes, a “ experiê ncia de si” é também histórica,
particular e contingente.
O sujeito, sua história e sua constituição como objeto para si
mesmo, seriam, então, insepar áveis das tecnologias do eu. Foucault
define as tecnologias do eu como aquelas nas quais um indivíduo
estabelece uma relação consigo mesmo. Em suas pró prias palavras,
como aquelas práticas
56
seria, então, a correlação, em um corte espaço-temporal concreto, entre
dom ínios de saber, tipos de normatividade e formas de subjetivação. E
é uma correlação desse tipo que se pode encontrar, també m, em um
corte espaço-temporal particular, na estrutura e no funcionamento de
um dispositivo pedagógico.
«>
58
r seja porque o mesmo olho da mente é capaz de “ voltar-se sobre si
mesmo” , de “ virar-se para trás” ou “ para dentro” . Dado o papel básico
da reflexão e do olhar para dentro no modo como tendemos a com-
preender a relação do sujeito consigo mesmo, talvez valha a pena
desenvolver alguns dos pressupostos implícitos nessa metaforização
ótica do autoconhecimento.
Se consideramos a etimologia de “ reflexão” no uso do verbo latino
“ re/Zecíere” , obteremos uma parte significativa das imagens básicas
associadas a todos esses conceitos em relação aos que estou tratando
aqui e que listei no princípio do trabalho. “ Reflectere ” significa “ virar”
ou “ dar a volta” , “ voltar para trás” e, també m, “ jogar ou lançar para
trás” . Por outro lado, o termo tem expl ícitas conotações óticas na
medida em que designa a ação mediante a qual as superf ícies polidas
fazem voltar a luz. Nesse último sentido, e por extensão, “ reflexão”
significa també m a reprodução dos objetos nas imagens oferecidas por
um espelho e o processo que tem lugar entre um objeto e sua imagem
tal como esta aparece em uma lâ mina polida. Como conseqiiê ncia dessa
conotação ótica, quando o termo reflexão é utilizado para designar o
modo como a pessoa humana tem um certo conhecimento de si mesma,
esse autoconhecimento aparece como possibilitado por algo análogo ao
processo pelo qual a luz f ísica é lançada para trás por uma superf ície
refletiva. O autoconhecimento, pois, aparece como algo análogo à
percepção que a pessoa tem de sua pr ó pria imagem na medida em que
pode receber a luz que foi lançada para trás por um espelho.
Teríamos, assim, um desdobramento entre a própria pessoa e uma
imagem exterior de si própria, a que aparece no espelho, a qual, pelo
efeito feliz de uma mudança na direção da luz, faz-se visível para a
própria pessoa como qualquer outra imagem. O autoconhecimento
aparece assim como uma modalidade particular da relação sujeito-ob-
jeto. Só que o objeto percebido, neste caso, é a pró pria imagem
exteriorizada que, por uma certa propriedade da luz ao bater nas
superf ícies polidas, está diante do sujeito que vê. Para que o autoconhe-
cimento seja possível, então, se requer uma certa exteriorização e
objetivação da própria imagem, um algo exterior, convertido em objeto,
no qual a pessoa possa se ver a si mesma.
Mas dizia antes que a metaforização ótica do autoconhecimento
tem també m outro sentido que não utiliza explicitamente o movimento
reflexivo da luz. Neste segundo caso, o autoconhecimento é algo assim
como um voltar o olho da mente para dentro. Haveria assim uma
espécie de percepção interna que se produziria ao voltar o olhar, este
olhar que normalmente está dirigido às coisas exteriores, para si mesmo.
Em si próprio haveria “ coisas” que se fazem visíveis ao se lhes prestar
atenção, ao dirigir a elas o pró prio olhar. Teríamos agora uma estrutura
similar sujeito-objeto, um processo similar de objetivação, embora sem
a exteriorização impl ícita na metáfora do espelho. Essas coisas que
59
existem dentro de mim são de alguma forma privadas, só eu posso
vê-las, só eu tenho acesso a elas embora, isso sim, possa comunicá-las e
“ torná-las visíveis para os outros” , através de algum procedimento,
linguistico ou não, de exteriorização. De todo modo, e este seria um
ponto crucial, o modelo solipsista da observação interna reproduziria
o esquema ótico sujeito-objeto. Só que o objeto, neste caso, seria o
conjunto de “ coisas” que há dentro de mim e que eu só posso ver quando
volto o olho da mente para dentro.
O preceito dèlfico “ conhece-te a ti mesmo” , enquanto imperativo
reflexivo, transporta toda essa duplicação entre a própria pessoa e sua
imagem e/ou toda essa divisão ao interior da pró pria pessoa entre algo
de mim que conhece e algo de mim que é conhecido. E transporta
també m, de um modo impl ícito, toda essa imagem ótica, toda essa
metaf ísica da luz, do olho, da imagem e da visão, que venho tentando
decompor até aqui.
Isso supõe que, ao pensar normativamente o modo como a pr ó pria
pessoa se vê e/ou se conhece a si mesma, é quase inevitá vel pensar em
termos de espelhos mais ou menos deformados ou imperfeitos (que não
dariam a imagem fiel, mas uma sé rie de imagens falsas), ou em termos
de olhos pouco precisos (que tampouco veriam o que há, mas algo
muito mais borrado, menos n ítido), ou em termos de uma luz que não
é suficientemente potente (o que faria que algumas coisas permaneces-
sem ocultas na sombra ou, no melhor dos casos, só pudessem ser vistas
como vultos indefinidos), ou em termos de alguns obstáculos opacos
que impediriam que a luz chegasse a seu objetivo (o que faria que
algumas coisas fossem invisíveis), ou em termos de “ filtros” intermediá-
rios que distorceriam a luz ( o que faria que o que vemos de nós mesmos
estivesse deformado ). E uma formulação desse tipo pressuporia que, no
limite, idealmente ao menos, poderia haver espelhos puros, olhares
precisos, iluminações adequadas, ou espaços intermediá rios transparen -
tes, livres de obstáculos e de filtros; o ú nico problema é que ainda não
fomos capazes de fabricar esses espelhos, de formar esses olhares, de
construir esses instrumentos de iluminação, ou de remover esses obstá-
culos e esses filtros. Todo um ideal de autotranspar ê ncia que se poderia
converter, quase sem esforço, em um ideal pedagógico e/ou terapêutico.
Máquinas Óticas
60
na Verdade e as Formas Jurídicas está articulado a partir da emergê ncia
de um certo modo de “ ver ” e de “ haver visto” (o modo do pastor que
serve de testemunha, que se opõe à visão soberana do rei e à visão
prof ética dos adivinhos) como um mecanismo de prova e de estabele-
cimento da verdade (Foucault, 1980 ). Ou a análise das Meninas em a
Palavra e as Coisas em que elabora toda uma teoria ótica e pictórica da
representação clássica (Foucault, 1968 ). Por outro lado, já na História
da Loucura, o binómio manicômio/psiquiatria aparece como um dispo-
sitivo para tornar visível a loucura ( Foucault, 1972a).O nascimento da
clínica, cujo subtítulo é justamente “ uma arqueologia do olhar médico” ,
explora os diferentes modos de visibilidade da enfermidade implicados
respectivamente na cl ínica e na anatomia patológica (Foucault, 1972b).
A imagem do panóptico preside as análises foucaultianas de Vigiar e
Punir a propósito dos aparatos disciplinares (Foucault, 1975). Nessa
ú ltima obra, a prisão, a f á brica, o hospital e a escola são, entre outras
coisas, máquinas de ver. Dispositivos para “ tornar visíveis” as pessoas
que capturam (presos, trabalhadores, enfermos ou crianças ), e para
“ tornar eficazes” os processos que realizam ( reformar, produzir, curar
ou ensinar ). As mudanças na penalidade desde o suplício até o encerra-
mento são, entre outras coisas, mudanças no que se vê e se faz ver e no
que se oculta. Para Foucault, o exame é um dispositivo de visibilidade,
de vigilâ ncia, um dispositivo que inverte as relações de visibilidade
habituais no espaço pedagógico. A confissão, em A Vontade de Saber, e
em especial o sutil mecanismo do exame de consciê ncia, é também um
dispositivo pelo qual o sujeito se torna visível a si mesmo em sua
interioridade ( Foucault, 1976 ). Na ú ltima etapa de sua obra, aquela em
que analisa a gé nese, o desdobramento e as transformações dos proce-
dimentos de subjetivação, esses ser ão analisados, em diversas ocasiões,
como exercícios de atenção em relação a si mesmo e de visão de si
mesmo. Em todo caso, e no que aqui nos interessa, Foucault analisa a
constituição e o desdobramento histórico de dispositivos de visibilida-
de, de máquinas de ver.15
Poderíamos formular o problema de Foucault como o de determi-
nar, em um mesmo movimento, o que é visível e o olho que v ê, o sujeito
e o objeto do olhar. Um mecanismo de visibilidade, uma máquina ótica,
determina e constitui ambos os pólos. A visibilidade não está do lado
do objeto (dos elementos sensíveis ou das qualidades visíveis das coisas,
das formas que se revelariam à luz ) nem do lado do sujeito (de seus
aparatos de sensibilidade ou percepção, de seus sentidos, de sua vontade
de olhar). Nos trabalhos de Foucault, tanto o objeto quanto o sujeito
são variáveis dos regimes de visibilidade e dependem de suas condições.
Um regime de visibilidade composto por um conjunto específico de
máquinas óticas abre o objeto ao olhar e abre, ao mesmo tempo, o olho
que observa. Determina aquilo que se vê ou se faz ver, e o alguém que
61
w. *
vê ou que faz ver. Por isso o sujeito é uma função da visibilidade, dos
dispositivos que o fazem ver e orientam seu olhar. E esses são históricos
e contingentes.
O exemplo da ficha de observação analisado por Valerie Walker -
dine (1984) mostra claramente tudo o que há de implícito nessa
operação aparentemente trivial e quase natural na qual uma professora
-r de jardim de inf ância observa o jogo das crianças de sua classe e,
simplesmente, registra o que viu. Esse dispositivo tão inócuo estabelece
ao mesmo tempo o que é a criança enquanto objeto visível, quais são
as coisas que são vistas e classificadas e o que é a professora enquanto
observadora, como ela vê as crianças, o que ela deve olhar. Por outro
lado, e como mostra també m claramente Walker dine, esse dispositivo
é inseparável de toda uma distribuição espacial das pessoas e das coisas
na classe. E é inseparável també m de toda uma teoria do “ desenvolvi-
mento” da criança, da seqiiência temporal, normativamente construída,
do que a criança, com seu comportamento, torna visível. A ficha de
observaçã o, portanto, condensa e constitui ao mesmo tempo o espaço
e o tempo da pedagogia, o que, para Kant, eram as formas a priori da
sensibilidade, universais, e uniformes ao sujeito e ao objeto. Para
Foucault, entretanto, o espaço e o tempo são a prioris históricos.
Contingentes, heterogé neos e exteriores tanto ao sujeito quanto ao
objeto. A ficha de observação e registro, com todo o conjunto de
discursos e prá ticas que a tornam possível, com toda a organização
espaço-temporal que implica, estabelece, em um só movimento, o
sujeito e o objeto da visão.16
Podemos estender essa análise foucaultiana da visibilidade à meta-
forizaçã o ótica da reflexão, ao ato de “ ver-se a si pró prio” . O autoco-
nhecimento como “ ver-se a si mesmo” depende, em primeiro lugar, da
aplicação em direção a si pró prio dos dispositivos gerais da visibilidade.
Em segundo lugar, da colocação em ação de dispositivos específicos
para a auto-observação. Mas a í a visibilidade não constitui o sujeito
como quem vê algo externo a si mesmo, um objeto exterior; ela envolve
todo o conjunto de mecanismos nos quais a pessoa se observa, se
constitui em sujeito da auto-observação, e se objetiva a si mesmo como
visto por si mesmo. Através dos dispositivos de auto-observação, como
o analisado na atividade pedagógica de educação moral, produz-se esse
desdobramento do eu que tomamos como a condição de ver-se, e se
constituem de uma determinada maneira os dois polos da relação: o eu
que se observa e o eu que se vê. O que havia na prática pedagógica de
educação moral que considerei antes era todo um operador ótico
dirigido para a pró pria pessoa, no qual as crian ças tinham que fazer um
determinado balanço de seus gostos, de suas qualidades, de suas limi-
tações, de seus medos. Como se, aprendendo a administrar -se da forma
62
mais eficaz e racional possível, tivessem que começar por saber com que
contam. Por outro lado, poderíamos incluir també m nessa dimensão
ótica dos dispositivos de constituição e transformação da experiência
de si todos os mecanismos de “ autovigilâ ncia” que se põem em jogo nas
práticas pedagógicas e/ou terapê uticas (e que não são outra coisa senão
a interiorização por parte do educando e/ou paciente do olho do
educador e/ou terapeuta) e todos os mecanismos “ projetivos” nos quais
o indivíduo é levado a reconhecer-se e a identificar-se em imagens
dispostas para isso. As práticas orientadas a fomentar a auto-reflexão
crítica dos educadores incluem, geralmente, instruções para que o
professor se observe a si mesmo em seu trabalho, assim como questio-
ná rios para o registro dessas auto-observações. A atividade de educação
de adultos que comentamos pode ser tomada também como um opera-
dor projetivo no qual as pessoas têm que ver a si mesmas na figura do
narrador. Em todos os casos, é o dispositivo que inclui um mecanismo
ótico que a pessoa tem que fazer funcionar consigo mesma, aprendendo
suas regras de uso legítimo, isto é, as formas corretas de ver-se.
63
equivaler ou, em geral, significar. O expressado-exteriorizado na lin-
guagem expressa- representa-equivale a-significa o que foi previamente
visto no interior da consciê ncia.
Às vezes, entretanto, a imagem da expressão como exteriorização
não está ligada a uma id éia da linguagem como referencial, repre-
sentativa, mas a uma linguagem imaginativa. A id éia de expressão como
“ tirar-apertando- para-fora” també m se aplica à arte entendida como
linguagem. De fato, as atividades lingíiísticas e artísticas na escola
contempor ânea costumam ser vistas como expressivas mas não como
representativas. Na Espanha, a educação primária, as atividades artísti-
cas e, em geral, lingíiísticas, estão agrupadas em uma á rea chamada de
“ expressão” que inclui, além da linguagem natural, a expressão plástica,
a expressão musical e a expressão f ísica ou corporal. A idéia de
expressão estaria aqui possibilitada porque as produções lingíiísticas,
artísticas ou os comportamentos corporais seriam tomados como sig-
nos, e nos signos dessa linguagem haveria alguma pista, algum rastro
do indivíduo que os produz. Quando fala ou escreve de uma forma
espontânea, quando pinta, quando canta, quando faz teatro, quando se
fantasia, quando se move, a criança estaria se mostrando a si mesma,
estaria levando à linguagem, ao signo, embora de uma forma indireta,
alusiva e não referencial, aquilo que ela mesma é.
V
64
subjetivas. O discurso expressivo seria, portanto, aquele que oferece a
subjetividade do sujeito. E essa subjetividade não seria senão o signifi-
cado do discurso, aquele prévio ao discurso e expressado e exterioriza-
do por esse.
Se o preceito “ conhece-te a ti mesmo” é um imperativo para a
atenção e para o olhar reflexivo e carrega toda uma duplicação do
sujeito, o preceito pedagógico e social moderno “ expressa-te a ti
mesmo” conté m toda uma distinção entre o interior e o exterior e toda
uma imagem da linguagem como exteriorização. Portanto, ao pensar
normativamente o modo como a pessoa produz signos, é inevitável
pensar em termos de maior ou menor competê ncia expressiva (o que
explicaria a existência de restos inexpressados), ou de maior ou menor
sinceridade expressiva (o que permitiria falar em termos de simulação
ou mentira), ou de maior ou menor espontaneidade expressiva (o que
explicaria a deformação imposta pela rigidez das convenções ou dos
padrões lingüisticos). E isso supõe duas coisas: em primeiro lugar, que
a subjetividade é o significado do discurso, algo prévio e independente
do discurso do qual seria ao mesmo tempo a origem e a referência; em
segundo lugar, que poderia haver, idealmente, uma competência plena,
uma sinceridade absoluta e uma espontaneidade livre. Quer dizer, todo
um ideal, facilmente pedagogizável, da transparê ncia comunicativa.
Procedimentos Discursivos
65
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66
verdade” , do surgimento e da consolidação de determinados “ jogos de
verdade” , isto é, de determinados regimes discursivos com cujas regras
se pode determinar o que é um discurso verdadeiro, um discurso fictício
ou um discurso ideologicamente enviesado. Não se trata, então, de
diferenciar o que há de verdadeiro, de fictício ou de ideológico no
discurso, mas de determinar as regras discursivas nas quais se estabelece
o que é verdadeiro, o que é fictício ou o que é ideológico.
O funcionamento do discurso, por último, é inseparável dos dispo-
sitivos materiais nos quais se produz, da estrutura e do funcionamento
das práticas sociais nas quais se fala e se faz falar, e nas quais se fazem
coisas com o que se diz e se faz dizer. Nesse sentido, as prá ticas sociais
analisadas por Foucault (um confessionário, um manicomio, uma pri-
são, um hospital, etc.) são máquinas óticas que produzem, ao mesmo
tempo, o sujeito que vê e as “ coisas” visíveis. E máquinas enunciativas
que produzem, ao mesmo tempo, significantes e significados. Incluem
máquinas de ver e práticas discursivas. Práticas de ver e práticas de dizer.
Mas tanto as máquinas óticas quanto as discursivas estão imbricadas em
formações não óticas e não discursivas. Um dispositivo implica visibili-
dades e enunciados. E, inversamente, as formas de ver e de dizer
remetem aos dispositivos nos quais emergem e se realizam.
Foucault, em seus trabalhos, reconstrói regimes de enunciabilidade.
Ou, melhor ainda, a estrutura e o funcionamento da dimensão discur-
siva dos dispositivos (pedagógicos, carcerá rios, médicos, psquiá tricos,
etc.). E, do mesmo modo que ocorria em relação aos procedimentos
óticos da visibilidade, que criavam ao mesmo tempo o sujeito e o objeto
da visão, também os procedimentos discursivos da enunciabilidade
criam ao mesmo tempo o sujeito e o objeto da enunciação. No discurso,
e segundo a perspectiva foucaultiana, tanto o sujeito quanto o objeto
são funções do enunciado. O discurso da pedagogia tal como é tratado
em Vigiar e Punir, sobretudo em relação a esse aparato ao mesmo tempo
ótico e enunciativo que é o exame, constitui simultaneamente a subje-
tividade do professor e a do aluno (Foucault, 1975). Walkerdine (1984)
e Donald (1992) analisam como o entrecruzamento de regimes diseur- ,
67
pelo meio da linguagem, mas, antes, de que o discurso mesmo é um
operador que constitui ou modifica tanto o sujeito quanto o objeto da
enunciação, neste caso, o que conta como experiência de si. E inserin-
do-se no discurso, aprendendo as regras de sua gramática, de seu
vocabulá rio e de sua sintaxe, participando dessas práticas de descrição
e redescrição de si mesma, que a pessoa se constitui e transforma sua
subjetividade.
18 Uma lista das metáforas espaciais utilizadas em relação com a memória pode
encontrar-se em Roediger, 1980.
68
r viu. E é essa ordenação a que constitui o tempo da história. Mas essa
ordenação se concebe basicamente como cálculo, como prestar contas,
como “ conferir as contas” daquilo que ocorreu.
Se consideramos agora a narração em um sentido reflexivo, como
narrar-se, poderíamos decompor as imagens associadas nos seguintes
elementos. Em primeiro lugar, uma cisão entre o eu entendido como
aquilo que é conservado do passado, como um rastro do que viu de si
mesmo, e o eu que recolhe esse rastro e o diz. Ao narrar-se, a pessoa
diz o que conserva do que viu de si mesma. Por outro lado, o dizer-se
narrativo não implica uma descrição topologica, mas uma ordenação
temporal. Assim, o narrador pode oferecer sua pr ópria continuidade
temporal, sua própria identidade e permanência no tempo (embora sob
a forma de descontinuidades parciais que podem ser referidas a um
princípio de reunificação e totalização ) na mesma operação na qual
constr ói a temporalidade de sua história. Por ú ltimo, a autonarração
não pode ser feita sem que o sujeito se tenha tornado antes calculável,
pronto para essa operação na qual a pessoa presta contas de si mesma,
abre-se a si mesma à contabilidade, à valoração contável de si.
Assim, se a subjetividade humana está temporalmente constituída,
a consciê ncia de si estar á estruturada no tempo da vida. O sujeito se
constitui para si mesmo em seu pr óprio transcorrer temporal. Mas o
tempo da vida, o tempo que articula a subjetividade não é apenas um
tempo linear e abstrato, uma sucessão na qual as coisas se sucedem umas
depois das outras. O tempo da consciê ncia de si é a articulação em uma
dimensão temporal daquilo que o indivíduo é para si mesmo. E essa
articulação temporal é de natureza essencialmente narrativa. O tempo
se converte em tempo humano ao organizar-se narrativamente. O eu se
constitui temporalmente para si mesmo na unidade de uma história.
Por isso, o tempo no qual se constitui a subjetividade é tempo narrado.
E contando histórias, nossas pr óprias histórias, o que nos acontece e o
sentido que damos ao que nos acontece, que nos damos a nós próprios
uma identidade no tempo.19
O problema de como o indivíduo constrói o sentido de quem ele
é para si mesmo é análogo ao que acontece com a construção de uma
personagem em uma trama narrativa. O eu, então, não é uma unidade
psíquica, de caráter substantivo, suscetível de temporalização ao contar
com o rastro do passado no armazé m da memória. O que ocorre, antes,
é que o eu da autoconsciê ncia temporal é algo que está significativa-
mente constituído na narração. A compreensão da própria vida como
uma história que se desdobra, assim como a compreensão da própria
pessoa como o personagem central dessa história, é algo que se produz
nesses constantes exercícios de narração e autonarração no qual estamos
69
implicados cotidianamente. Mas o eu da auto-interpretação narrativa
não se constitui em uma reflexão não mediada sobre si mesmo Não é .
uma entidade pré-simbólica ou pré-cultural que, simplesmente, se volta
sobre si mesma, dirige a si mesma seu olhar, em particular ao depósito
onde conserva os rastros de sua memória, e se verte na linguagem
narrativa como o meio neutro no qual expressa a articulação temporal
do que viu. O sujeito da autoconsciê ncia não é imediatez, nem pura
privacidade, nem acesso privilegiado, interioridade não mediada que se
expressa no discurso. Pelo contr ário, a narrativa, como modo de
discurso, está já estruturada e pré-existe ao eu que se conta a si mesmo.
Cada pessoa se encontra já imersa em estruturas narrativas que lhe
pré-existem e em função das quais constrói e organiza de um modo
particular sua experiê ncia, impõe-lhe um significado. Por isso, a narra-
tiva não é o lugar de irrupção da subjetividade, da experiência de si,
mas a modalidade discursiva que estabelece tanto a posição do sujeito
que fala (o narrador ) quanto as regras de sua pró pria inserção no
interior de uma trama (o personagem ). A subjetividade, portanto, está
constituída na correlação implícita e nunca saturada entre tr ês ordens
radicalmente diferentes entre si, na medida em que cada uma delas
ocupa uma dimensão distinta no espaço discursivo e tem suas pró prias
regras: o autor, o narrador e o personagem. As narrativas pessoais, as
histórias de vida, os textos autobiográficos (orais ou escritos) baseiam-se
na pressuposição de que o autor, o narrador e o personagem são a
mesma pessoa.
A construção e a transformação da consciência de si dependerá,
então, da participação em redes de comunicação onde se produzem, se
interpretam e se medeiam histórias. Dependerá desse processo intermi-
ná vel de ouvir e 1er histórias, de contar histórias, de mesclar histórias,
de contrapor algumas histórias a outras, de participar, em suma, desse
gigantesco e agitado conjunto de histórias que é a cultura. A constituição
narrativa da experiê ncia de si não é algo que se produza em um
solilóquio, em um diálogo íntimo do eu consigo mesmo, mas em um
diálogo entre narrativas, entre textos. Na aprendizagem do discurso
narrativo através da participação em práticas discursivas de cará ter
narrativo se constitui e se modifica tanto o vocabulário que se usa para
a autodescrição quanto os modos de discurso nos quais se articula a
história de nossas vidas. E no trato com os textos que estão já aí que se
adquire o conjunto dos procedimentos discursivos com os quais os
indivíduos se narram a si mesmos. O processo pelo qual se ganha e se
modifica a autoconsciê ncia não se parece, então, com um processo de
progressivo descobrimento de si, com um processo em que o verdadeiro
eu iria alcançando pouco a pouco transparê ncia para si mesmo e iria
encontrando os meios lingü isticos para expressar-se. A consciê ncia de
si pró pria não é algo que a pessoa progressivamente descobre e aprende
a descrever melhor. É, antes, algo que se vai fabricando e inventando,
70
1i
Políticas da Autonarração
71
w
gem de uma narração atual ou possível, a contar-se a si mesmo de acordo
com certos registros narrativos.
Por outro lado, Foucault se distanciou també m de todas as formas
de continuidade temporal que implicam a soberania da consciê ncia ou
do sujeito. Para Foucault, uma determinada maneira de articular o
tempo, aquela que enfatiza a continuidade, constitui tanto um ref úgio
privilegiado para o sujeito quanto o fundamento de sua soberania. Na
Arqueologia do Saber, denuncia essa continuidade na maneira de cons-
truir narrativamente o tempo com o qual se fabrica uma temporalidade
que garante a função fundadora e sintética do sujeito. Uma temporali-
dade que funciona por totalidades recompostas, por reapropriações do
passado, por tomadas de consciê ncia. Uma temporalidade, em suma,
que não é senão o progressivo desdobrar-se, apesar dos retrocessos e
dos obstáculos, de uma consciê ncia unificadora e soberana. Essa tem-
poralidade contínua não se faz senão através de um conjunto de
operações de seleção e distorsão que tê m como objetivo conjurar todo
o aleatório dos acontecimentos, todo o irregular, tudo o que escapa à
unidade de uma trama na qual o sujeito reconhece e expressa sua
soberania no devir. Qualquer narração que condense todos os aconte-
cimentos em torno de um centro ú nico ou de uma forma de conjunto
é, para Foucault, um artif ício ordenado para a construção e a recons-
trução da consciência de si em uma de suas modalidades, justamente
aquela na qual se fabrica a ficção do eu soberano.
Em Nietzsche, a Genealogia, a História , Foucault persegue esse
exercício de den ú ncia da articulação contínua, evolutiva e totalizadora
do tempo (Foucault, 1971). De análise das operações de exclusão de
tudo o que é incoerência, acontecimento aleatório, dispersão, azar,
irrupção, do que não se deixa reduzir ao princípio soberano da cons-
ciência. De desvelamento dos mecanismos que constroem uma subjeti-
vidade que se desdobra no tempo sob a forma de um recolhimento
totalizador do passado e da reconciliação unificadora consigo mesma.
Mas aqui, de uma forma já claramente política, Foucault vê no apelo à
origem ou ao destino (os elementos metaf ísicos que constituem um
ponto de vista supra-histórico para reduzir a aleatoriedade e a infinita
dispersão dos acontecimentos), na construção de uma trama narrativa
evolutiva, e na ficção de uma subjetividade soberana, o resultado do
jogo de um conjunto de sistemas de submetimento e de dominação. E
são esses sistemas de submetimento os quais, a rigor, constituem o lugar
dos sujeitos. Desse ponto de vista, a autonarração não é o lugar onde a
subjetividade está depositada, o lugar onde o sujeito guarda e expressa
o sentido mais ou menos transparente ou oculto de si mesmo, mas o
mecanismo onde o sujeito se constitui nas próprias regras desse discurso
72
que lhe dá uma identidade e lhe impõe uma direção, na própria
operação em que o submete a um princípio de totalização e unificação.
Nas práticas pedagógicas nas quais se produzem e se medeiam
narrativas pessoais, das quais ofereci antes alguns exemplos, podem-se
ver em funcionamento alguns desses mecanismos de produção de
identidade. As crianças que participam da atividade de educação moral
que apresentei são induzidas a escrever, em relação ao que “ vêem” em
si mesmas de qualidades e defeitos, de gostos e desgostos, uma projeção
de si mesmas em direção ao futuro, o que gostariam ou não gostariam
de ser, o que mudariam em si mesmas, construindo uma direção
temporal na qual elas mesmas são posicionadas como o princípio de
soberania. No uso das “ histórias de vida” em educação de adultos se
impunha uma narrativa de “ tomada de consciê ncia ” na qual uma certa
construção do passado ficava reapropriada no significado que se tratava
de impor à sua pr ópria experiê ncia atual de alunos. Nas atividades de
“ auto-reflexão crítica ” com os professores, o que se produz é toda uma
identidade prática em relação com a atividade profissional, presente ou
futura, em função de uma história pessoal constru ída sob princípios de
evolu ção e totalização. E a subjetividade mesma das crianças, dos alunos
adultos ou dos professores em formação que se está construindo através
da imposição de certos padrões de autonarração.
73
- •
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*
74
r bilidade do jus e da dictio. E não há dizer sem um código no sentido ao
~r. f
Aparatos Jurídicos
75
concepção negativa do juízo, formulado em relação à lei, fundado sobre
o modelo do permitido e do proibido, realizado no interior de proce-
dimentos sociais de exclusão, a uma concepção positiva do juízo,
baseado na norma, segundo o modelo da regulação, e no interior de
procedimentos de inclusão pedagógica e/ou terapêutica. Da lógica da
proibição e da transgressão à lógica da normalização e da disciplina. A
norma, diferentemente da lei, pretende ser um conceito descritivo:
média estatística, regularidade, há bito. Pretende objetividade: justifica-
ção racional. Mas o normal é um descritivo que se torna normativo. O
normal se converte em um crité rio que julga e que valoriza negativa ou
positivamente. E no princípio de um conjunto de práticas de normali-
zàção cujo objetivo é a produção do normal. Daí o caráter produtivo
da norma, do qual as noções foucaultianas de disciplina e biopolítica
dão exemplos principais. Assim, da divisão simples e binária da inclu-
são-exclusão, do lícito e do ilícito, se passa às complexas formas de
categorização do normal e do patológico, do anormal e do desviado,
do normal ou do que excede ou não chega à norma. O normal se
converte, assim, em um crité rio complexo de discernimento: sobre o
louco, o enfermo, o criminoso, o pervertido, a criança escolarizada. E
um crité rio sustentado por um conjunto de saberes e encarnado nas
regras de funcionamento de um conjunto de instituições. Por isso a
norma está ancorada no saber, na medida em que fixa crité rios racionais
que aparecem como objetivos e, ao mesmo tempo, está ancorada no
poder, na medida em que constitui os princípios de regulação da
conduta segundo os quais funcionam as práticas sociais de disciplina.
Por ú ltimo, e em seus últimos trabalhos sobre as “ artes da existê n-
cia ” na antiga Grécia e em Roma ( Foucault, 1984a, 1984 b), Foucault
mostra uma modalidade de regulaçã o que é diferente tanto daquela
baseada na lei quanto da que se baseia na norma. As “ artes da existê n-
cia ” , em primeiro lugar, não estão ligadas ao obrigatório. São “ práticas
do eu ” que não foram capturadas, nem por um código explícito de leis
sobre o permitido e o proibido, nem por um conjunto de normas sociais.
Não pertencem nem a um dispositivo jur ídico, nem a um dispositivo
de normalização. E por isso não incluem uma determinação nem do
que é transgressão, nem do que é perversão. Integram, portanto, uma
ética positiva, isto é, uma é tica referida, não ao dever, mas à elaboração
da conduta. Em segundo lugar, as “ artes da existê ncia” não pretendem
universalização. Nem se fundam em uma teoria universal da natureza
humana, nem estão dirigidas a regular a conduta de todos os indivíduos.
Nesse sentido, embora possam implicar formas muito intensas de
problematização e formas muito rigorosas de ascese e de trabalho sobre
si próprio, não constituem uma obrigação geral. Constituem, portanto,
uma ética pessoal. Em terceiro lugar, as “ artes da existê ncia ” não estão
ligadas à identidade do sujeito, a qualquer concepção normativa do que
é a natureza humana. A formação do sujeito não está dirigida a
interrogar, assumir, liberar ou reconhecer o que os indivíduos “ real-
76
!
mente ” são, mas à livre elaboração de si mesmo com crité rios de estilo, 1
à estilização pessoal e social de si mesmo. Trata-se, pois, de uma é tica i
configurada esteticamente.
No campo moral, a construção e a mediação da experiê ncia de si
tê m a ver, então, com uma dimensão de ju ízo que pode ser estritamente
jurídica (baseada na lei ), normativa ( baseada na norma), ou estética
( baseada em crité rios de estilo ). Mas, em todos os casos, teríamos a
constituição simultâ nea de um sujeito que julga, um conjunto de
crité rios (um código de leis, um conjunto de normas ou uma sé rie de
crité rios de estilo ), e um campo de aplicaçã o.
A perspectiva foucaultiana implica o privil égio do crité rio. O
crité rio, seja ele uma lei, uma norma, ou um estilo, não é exterior a seu
campo de aplicação; antes, constitui seu próprio objeto, o campo
mesmo de experiê ncias ao qual se aplica. O crité rio produz o campo
mesmo do julgado, constitui seu objeto. Simetricamente, o crité rio
tampouco é exterior ao sujeito que o aplica em um ju ízo. O crité rio
produz també m o sujeito que julga, o juiz. Ser sujeito de ju ízo, inclusive,
paradoxo máximo, sujeito autolegislador e autó nomo, não é possível
sem haver sido constitu ído antes no interior do campo de ação de um
crité rio. E no crité rio e sob o crité rio que as ações podem ser determi-
nadas e julgadas, integradas em um sistema de avaliação. E isso tanto
no interior do sistema de proibições que constitui um sistema de
dominação, como no interior da rede homogé nea e contínua de normas
estatísticas que constitui um sistema de normalização, ou como no
interior dos critérios de estilo que constituem um sistema de elaboração
de si mesmo. Tanto o sujeito do ju ízo quanto o que constitui o â mbito
do julgado são produtos dos sistemas de crité rios que se põem em jogo.
A experiê ncia de si implicada na constituição da subjetividade na
dimensão do julgar-se seria, então, o resultado da aplicação a si mesmo
dos crité rios de ju ízo dominantes em uma cultura. O sujeito só pode
pô r-se a si mesmo como sujeito reflexivo na medida em que está
constitu ído por sua sujei çã o à lei, à norma ou ao estilo. Desse ponto de
vista, a experiê ncia de si, aquilo que a pessoa “ vê ” de si mesma quando
se julga e aquilo que a pessoa “ expressa” de si mesma no ato de
enunciação de seu ju ízo, é algo que se constitui e se determina na
operação mesma do ju ízo, naquilo que os sistemas criteriais que possi-
bilitam o juízo produzem como seu campo de aplicação.
Nos dispositivos pedagógicos de construção e mediação da expe-
riê ncia de si que estamos analisando, a dimensão jurídica é a dominante,
embora se possa separar analiticamente das outras dimensões que
mostramos até aqui (a dimensão ótica e a dimensão discursiva ) e
embora, às vezes, existam fraturas, contradições e tensões entre elas.
Do mesmo modo que o discurso tinha uma espécie de primazia sobre
a visão, do mesmo modo que o dizer -se faz ver-se, o ju ízo é a dimensão
privilegiada nos dispositivos pedagógicos de reflexão: o julgar-se é o
77
que faz dizer-se e o que faz ver-se. Nas atividades de “ reflexão sobre a
prática” que destaquei acima e nas quais os professores são levados a
problematizar e transformar sua própria prática profissional, os crité-
rios de juízo são, sem dúvida, os predominantes. A pedagogia na qual
os professores estão se introduzindo implica um modelo ideal de
professor. Compartilhar a pedagogia é, portanto, compartilhar, mesmo
que implicitamente, esse modelo. Esse modelo, por outro lado, funcio-
na ao mesmo tempo como aspiração e como crité rio de juízo com
respeito ao pró prio comportamento na prá tica. A necessidade de
julgar-se a si próprio em função da pró pria transformação é, então,
desencadeante e reguladora de todas as atividades de auto-observação
e de todos os mecanismos discursivos de auto-observaçã o e de todos os
mecanismos discursivos de auto-análise que estão incluídos na “ reflexão
sobre a prá tica” . O que fizeram ali os professores foi aprender a ver-se
e a dizer-se em função dos crité rios normativos pró prios da pedagogia
em cuja l ógica estavam se introduzindo.
78
f
por isso que a história dos indivíduos ou das sociedades é, indiscerni-
velmente, a história das relações de poder que os produzem como tais:
indivíduos ou sociedades.
O poder, para afetar, traz à luz, fala e obriga a falar, julga. O ver,
o dizer, e o julgar são, desse ponto de vista, parte das operações de
constituição do que é afetado. As máquinas óticas, os regimes discursi-
vos e os padr ões jur ídicos são inseparáveis dos procedimentos de
fabricação de sujeitos obedientes à lei, normais e normalizados, atentos
a si mesmos. Por isso, o caráter constitutivo com respeito à experiência
de todas essas operações de visibilidade, de enunciação e de ju ízo deve
ser analisado do ponto de vista das relações de poder. E o mesmo
poderíamos dizer com respeito à experiência de si. A experiência de si,
desde a dimensão do dominar-se, não é senão o produto das ações que
o indivíduo efetua sobre si mesmo com vistas à sua transformação. E
essas ações, por sua vez, dependem de todo um campo de visibilidade,
de enunciabilidade e de juízo.
Talvez seja a análise foucaultiana da confissão no primeiro volume
da História da Sexualidade a que melhor mostra como a colocação em
ação de procedimentos óticos, discursivos e jur ídicos de subjetivação é
insepará vel de operações de poder e submetimento (Foucault, 1976 ).
A tese mais surpreendente dessa obra é a id éia de que o controle da
sexualidade não passa tanto por procedimentos de restrição (segundo
as quais o sexo não deveria ser olhado e não deveria ser dito, deveria
ser excluído tanto do olhar quanto da fala), mas por procedimentos de
incitação crescente. A sexualidade é produzida, do ponto de vista de
seu controle e canalizaçã o legítima, através de procedimentos que
incitam a observá-la e a enunciá-la com uma ferocidade particular. E é
a partir daí, dessa análise da produtividade dos dispositivos que fabri-
cam a sexualidade na mesma operação em que a capturam, de onde
advé m a análise da confissão cristã como um lugar no qual a colocação
em discurso do proibido mostra a convergê ncia da vontade de saber e
da vontade de poder. O poder sobre si mesmo, do qual o confessor é o
primeiro depositá rio, passa pela obrigação de vigiar-se continuamente
e de dizer tudo acerca de si mesmo. Passa també m por uma relação com
o juízo, com o julgar-se, posto que estabelece uma relação entre a
subjetividade e a lei. A confissão, tal como o exame em Vigiar e Punir,
é um dispositivo que integra a produção do saber e a cerimonia do
poder, o lugar onde a verdade e o poder confluem. O sujeito confessante
é atado à lei e se reconhece a si mesmo em relaçã o à lei. A confissão é
um dispositivo que transforma os indivíduos em sujeitos nos dois
sentidos do termo: sujeitos à lei e sujeitados à sua própria identidade.
Promove formas de identidade que dependem de como o sujeito se
observa, se diz e se julga a si mesmo sob a direção e o controle de seu
confessor. A secularização da confissão na Medicina, na Psicologia, na
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F
?
a fluidez do olhar mesmo: uma arte da focalização ordenada. O que a 1
pessoa vê de si mesma, com um olhar educado, é um duplo de si mesmo.
3
!
3
nomes e as relações entre os nomes, assim como estabilizar a expressão
do nomeado. Mas o poder da linguagem consiste, no limite, em que as
coisas desaparecem sob seus nomes. Mas esse regular a indeterminação :
do discurso é, ao mesmo tempo, regular a indeterminação das coisas. 1
81
positiva ou negativamente, sua história pode converter-se em uma
“ conferê ncia de contas” de si ou de seu exterior. O duplo fabricado
pelo juízo tinha já se convertido em um caso para a própria pessoa, ao
ter -se determinado, em seu submetimento a um critério. Entretanto,
não é que a espacialização ou a temporalização do duplo seja prévia ao
juízo. Aqui tudo se produz simultaneamente. Há em Foucault toda uma
teoria das formas de espacialização e temporalização implícitas no juízo
mesmo. Haveria um olhar -se que é já propriamente uma operação
jurídica, uma forma de dizer-se que é já axiol ógica e normativa, e um
narrar-se que já está constitu ído na forma de “ conferir as contas” de si
mesmo. Da mesma manefra que uma espacialização e uma temporali-
zação adequadas, convenientemente estabilizadas e racionalizadas,
abrem o duplo para o juízo ao possibilitar sua conversão em um caso,
o julgar -se implica já uma determinada forma ( jurídica ) de espacializa-
ção e uma temporalização. O duplo do ju ízo implica tanto um duplo
visual quanto um duplo discursivo e narrativo.
Aprender a dominar, a governar e a conduzir é estabilizar as ações,
dar-lhes uma forma, uma direção, uma composição m ú tua, uma ordem
e um sentido. E formar e dirigir as forças, capturar e orientar as
condutas, reduzir sua indeterminação, sua fluidez, sua desordem. O
duplo da auto-afeição é um duplo construído nas operações mesmas de
sua formação e captura. A pessoa pode “ fazer ” algo consigo mesma na
medida em que se determinou já espacial, temporal e juridicamente. E,
ao mesmo tempo, essa espacialização e temporalização jurídica do
duplo depende da construção de uma determinada maneira de domi-
nar-se, de governar -se ou de conduzir-se. Há em Foucault toda uma
teoria da espacialização, da temporalização e da jurisdição impl ícitas no
poder. O autoconhecimento e o julgar-se implicam que podemos
“ fazer ” coisas com nós mesmos. O duplo que a pessoa constrói quando
se olha, se diz, se narra ou se julga está implicado naquilo que pessoa
pode e deve fazer consigo mesma. Esse duplo, portanto, só pode ser
adequadamente compreendido no interior de uma determinada confi-
guração de autogoverno. Outra figura da auto-espacialização e da
autotemporalização é, então, indiscernivelmente outra forma do atuar
sobre si mesmo.
Por outro lado, a fabricação do duplo é inseparável de um conjunto
de operações de exteriorização. O duplo converte os indivíduos em uma
coisa exterior e aberta para os outros. A pessoa não se vê sem ser ao
mesmo tempo vista, não se diz sem ser ao mesmo tempo dita, não se
julga sem ser ao mesmo tempo julgada, e não se domina sem ser ao
mesmo tempo dominada. Ter íamos então uma teoria exterior da
interioridade. A experiê ncia de si se constitui no interior de aparatos
de produção da verdade, de mecanismos de submissão à lei, de formas
de auto-afeição na qual a própria pessoa aprende a participar ex- pon -
82
-9
dose nos olhares, nos enunciados, nas narrações, nos juízos e nas
afeições dos outros.
Além disso, a pessoa não é senão o modo como se relaciona com
seu duplo. Não se deveria pensar em termos de um eu autê ntico, ou
real, ou selvagem, que estaria falsificado, ficcionado ou submetido em
seu duplo. Não se é senão um conjunto de relações consigo mesmo. Da í
a importância da noção de “ experiência” de si. A experiência não
depende do objeto nem do sujeito. Do primeiro eu (transcendental,
original ) ou do segundo (que seria empírico, e sua cópia). A experiê ncia
é o que ocorre “ entre ” e o que constitui e transforma ambos. E isso, o
que ocorre “ entre ” , a relação e a mediação que tem o poder de fabricar
o que relaciona e o que medeia, é o que os dispositivos pedagógicos
produzem e capturam.
As e-vid ê ncias são o que todo mundo vê, o que é indubitável para o
olhar, o que tem que se aceitar apenas pela autoridade de seu próprio
aparecer. Uma coisa é evidente quando im-põe sua presença ao olhar
com tal claridade que toda d ú vida é impossível. És o que não vês ?! Sim,
aí está, olha, é assim, aí o tens,... é evidente! Só um louco ou um cego
não o veria! Grande é, sem d ú vida, o poder das evid ê ncias. Mas
Foucault empenhou-se em mostrar a contingê ncia das evidê ncias e a
complexidade das operações de sua fabricação. O que todo mundo vê
nem sempre se viu assim. O que é evidente, al ém disso, não é senão o
resultado de uma certa dis-posição do espaço, de uma particular
ex- posição das coisas e de uma determinada constituição do lugar do
olhar. Por isso, nosso olhar, inclusive naquilo que é evidente, é muito
menos livre do que pensamos. E isso porque não vemos tudo o que o
constrange no pró prio movimento que o torna possível. Nosso olhar
está constitu ído por todos esses aparatos que nos fazem ver e ver de
uma determinada maneira. Que se propõe um autor que pretende
romper as evidê ncias, mostrando a trama de sua fabricação, suas
condições de possibilidade, suas servidões, aquilo que está oculto pela
potê ncia mesma de sua luminosidade ? Talvez nos ensinar que nosso
olhar é també m mais livre do que pensamos. E isso porque o que o
determina não é tão necessá rio nem tão universal quanto acreditamos.
O que determina o olhar tem uma origem, depende de certas condições
históricas e práticas de possibilidade e, portanto, como todo o contin-
gente, está submetido à mudança e à possibilidade da transformação.
Talvez o poder das evidê ncias não seja tão absoluto, talvez seja possível
ver de outro modo.
Os estereótipos são os lugares comuns do discurso, o que todo
mundo diz, o que todo mundo sabe. Algo é um estereótipo quando
convoca mecanicamente o assentimento, quando é imediatamente com-
83
I preendido, quando quase não há nem o que dizer. E grande é o poder
dos estereótipos, tão evidentes e tão convincentes ao mesmo tempo. Os
preconceitos são os tópicos da moral, o que todo mundo valoriza
igualmente, as formas do dever que se impõem como óbvias e indubi-
tá veis. E grande é també m o poder dos preconceitos. Os hábitos são os
automatismos da conduta. O que se impõe em relação à forma de
conduzir-se. Os procedimentos que fabricam os estereótipos de nosso
discurso, os preconceitos de nossa moral e os hábitos de nossa maneira
de conduzir-nos nos mostram que somos menos livres do que pensamos
quando falamos, julgamos ou fazemos coisas. Mas nos mostram também
sua contingê ncia. E a possibilidade de falar de outro modo, de julgar
de outro modo, de conduzir-nos de outra maneira.
Todas as operações de fabricação e captura do duplo, de constitui-
ção e mediação da experiência de si, nos indicam o poder das evidências,
os estereótipos, os preconceitos e os há bitos em nós mesmos. Mas
assinalam também sua finitude e contingência. Sua análise não nos
promete um duplo mais autê ntico ou mais real ou mais próximo ao que
de verdade somos. Não nos promete uma identidade “ verdadeira” à
r qual, sim, poderíamos nos sujeitar. De fato, não somos senão aquilo
que se constitui na fabricação e na captura do duplo. Mas, sim, nos
permite dissolver o duplo, perceber seus perigos, resistirmos a suas
inércias, ensaiar novas formas de subjetivação. Nas palavras de Fou-
cault: “ o objetivo principal não é descobrir, mas refutar o que somos
(...) Não é libertar o indivíduo do Estado e de suas instituições, mas
libertar-nos, nós, do Estado e do tipo de individualização que vai ligada
a ele. E preciso promover novas formas de subjetividade” (Foucault,
1993). Ou, nessas dolorosas palavras quase testamentais da introdução
ao Uso dos Prazeres, “ despreender-se de si próprio” .
Ver-se de outro modo, dizer-se de outra maneira, julgar-se diferen-
temente, atuar sobre si mesmo de outra forma, não é outra forma de
dizer “ viver ” ou “ viver-se ” de outro modo, “ ser outro” ? E não é uma
luta indefinida e constante para sermos diferentes do que somos o que
constitui o infinito trabalho da finitude humana e, nela, da crítica e da
liberdade ?
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86
1
4
Julia Varela
O Estatuto do Saber Pedagògico
A Pedagogização do Conhecimento
1 Sobre os jesu ítas e o impacto de seu sistema de ensino, vejam -se Durkheim, 1982;
Foucault, 1975 e Varela, 1984.
2 E. Durkheim foi o primeiro a salientar a mudan ça que o ensino dos colégios jesu ítas
representou em reíação a outras formas de ensino (Durkheim, 1982).
88
os a pôr em prática toda urna sé rie de procedimentos e técnicas que
foram gradualmente aperfeiçoando, com a finalidade de conferir, tanto
aos colegiais, como aos saberes, uma natureza moralizada e moralizante.
Essas técnicas e procedimentos converteram-se, nas suas mãos, em
instrumentos privilegiados de extraçã o de saberes dos pr ó prios escola-
res, assim como em fonte de exercício de poderes que tornaram possível
o surgimento da “ ciê ncia pedagógica” , do saber pedagógico.
Quais foram os efeitos mais visíveis desta pedagogização dos co-
nhecimentos que surgiram e se aperfeiçoaram nos colégios jesuítas e
que, através de transformações e reinterpretações, estenderam-se a
outras instituições educacionais de sua é poca e de é pocas posteriores ?
1. Em primeiro lugar, a aquisição desses saberes moralizados não
— —
exigia uma cooperação como acontecia, por exemplo, com a apren-
dizagem de of ícios entre mestres e aprendizes, destinada a materia-
lizar-se numa obra bem feita. Os mestres passaram a ser os ú nicos
detentores do saber e os estudantes viram-se relegados a uma posição
de subordinação, converteram-se em sujeitos destinados a adquirir os
ensinamentos dosificados transmitidos por seus professores para con-
vertê-los, també m a eles pró prios, em seres virtuosos.
2. Os saberes que possuíam os professores jesuítas eram saberes
verdadeiros, que não remetiam a processos sociais, mas a outros saberes,
aos textos dos autores clássicos, descontextualizados e censurados,
sempre em consonâ ncia com a reta doutrina da Igreja e a tradição
católica. Eram saberes desvinculados das urgê ncias materiais, dos pro-
blemas sociais, saberes que se pretendiam neutros e imparciais. Desse
modo, os saberes ligados ao mundo do trabalho, às lutas sociais, às
culturas de determinados grupos ou classes sociais, começaram a ficar
marcados pelo estigma do erro e da ignorâ ncia e viram-se desterrados
do recinto sagrado da cultura culta, uma cultura que, com o passar do
tempo, converteu-se na cultura dominante e reclamou para si o mono-
pólio da verdade e da neutralidade.
3. Por último, este processo de pedagogização dos saberes implicou
a instauração, progressivamente aperfeiçoada, de um aparato discipli-
nar de penalização e de moralização dos colegiais, que ligou a aquisição
da verdade e da virtude à ascese e ren ú ncia de si mesmo. Foi desse modo
que a disciplina e a manutenção da ordem nas salas de aulas passaram
a ocupar um papel central no interior do sistema de ensino até chegar
praticamente a eclipsar a pró pria transmissão de conhecimentos.
90
ì
91
r~
92
]
93
p?r" 1
Algumas Propostas
94
situações, já que a reversibilidade dos discursos é historicamente com-
provável, na medida em que esses podem ser instrumentalizados em
função de poderes e interesses específicos passíveis de análise. Em
conseqiiê ncia, todos aqueles que pensamos que as instituições educa-
cionais têm que mudar, que devem funcionar de um modo mais
democrático, que devem deixar de penalizar e expulsar os meninos e
meninas provenientes das classes com menor capital cultural e econó-
mico, que têm que estar abertas a novas formas de indagação e de
exploração, quer dizer, a novos saberes e pr áticas, temos que realizar
uma opção que nos permita nos situar no ponto de vista adequado. Será
mais f ácil compreender a lógica interna de funcionamento destas
instituições e, mais concretamente, algumas das funções implícitas que
cumprem, se formos capazes de adotar, pelo menos em parte, o ponto
de vista dos que fracassam, daqueles que são rejeitados por elas. Sem
d úvida, não é fácil adotar esta perspectiva, dada nossa pr ópria sociali-
zação e identidade profissional, já que nós não fracassamos na escola.
Mas é necessá rio adotar essa distância, esse estranhamento, entre outras
coisas, porque nosso relativo êxito escolar nos incita a reproduzir o
adquirido, a transmitir saberes descontextualizados, saberes formais e
ocos, como se fossem o ú nico e verdadeiro saber legítimo.
Voltemos às proposições que gostaria de colocar:
1. Que fazer para articular a teoria e a prática ? Talvez pudéssemos
começar por tentar uma dif ícil via de aproximação entre saberes gerais,
teorias científicas e saberes locais, os saberes dos práticos, com o fim de
interrelacionar uns saberes com os outros.
2. Tratar de não confundir a cultura culta com a cultura dominante.
Vimos que, ao lado dos saberes normalizados, existem saberes não
totalmente disciplinados. Isto quer dizer que, embora as instituições
escolares desempenhem de fato funções de submetimento, elas podem
desempenhar també m funções libertadoras. Nelas é possível, como se
demonstra cotidianamente, transmitir a paixão pelo conhecimento,
ainda que seja em menor medida do que o desejável. Também é possível
a formação de sujeitos críticos que resistam às formas de imposição.
Fica aberta, portanto, nas instituções educacionais uma margem de
manobra, fica aberto um espaço de oposição à desresponsabilização de
professores e estudantes.
3. Buscar meios e procedimentos para, desde o início, pôr em
questão a logica crescente da pedagogização, dos esquemas classificató-
rios em uso. Não aceitar, sem revisão, os diferentes estádios, níveis,
programas nos quais se tentam fechar os sujeitos e os saberes. Não partir
a priori, por exemplo, de que os estudantes de um determinado nível
devem ter uma idade determinada e aprender exclusivamente certos
conteúdos, habilidades e destrezas. Ensaiar novas formas de pensamen-
to, novas formas de organização e de transmissão mais horizontais,
transversais e polimorfas, que abram caminho a outras formas de
95
L
relação na escola, que possibilitem a entrada de novos conhecimentos
e criem maiores possibilidades. Favorecer a insurreição dos saberes e a
formação de novas formas de subjetividade
como vimos, andam juntos — —
ambos os processos,
que levem a nos liberar da tirâ nica
imposição do “ conhece-te a ti mesmo” enquanto fundamento do acesso
ao conhecimento e da estruturação da subjetividade.5
4. Evitar a ilusão de que o etnocentrismo das “ pedagogias tradicio-
nais” (colocado em relevo por numerosos sociólogos da educação), seu
desprezo pelas culturas não acadê micas, sua rejeição à diversidade,
possa se corrigir facilmente mediante a aplicação das “ pedagogias
renovadoras” . As pedagogias renovadoras são, em geral, excessivamen-
te psicológicas. Ao se opor simplesmente às tradicionais, correm o
perigo de reivindicar uma cultura, també m construída, das classes
populares, excessivamente vinculada ao criativo, ao concreto, ao local
e ao prático. Podem deste modo encerrar os filhos das classes mais
desfavorecidas numa espécie de realismo concreto, negando-lhes o
acesso à cultura culta, a determinados saberes, e provocar assim os
efeitos menos desejados: impedir -lhes de escapar a sua condição de
sujeitos submetidos. E preciso, portanto, ir além desta dicotomia esta-
belecida entre tradição e renovação, para traçar novas formas de
pensamento e atuação, para evitar os espontaneísmos, para avançar em
direção a uma “ renovação pedagógica ” mais radical.
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5 Foucault aponta em seus últimos escritos para a necessidade de fundar uma nova
ética individual e secularizada, não individualista. E neste contexto que analisa
como o neoplatonismo, ao fazer passar para o primeiro plano o “ connece-te a ti
mesmo” socrático, possibilitou que, lentamente, a preocupação por si mesmo,
ligada, na Grécia clássica, à preocupação pelos outros e pelo bom governo, se
convertesse numa espécie de autofinalidade, perdendo assim suas dimensões
políticas e sociais. Assim, e reforçada esta tendência pelo cristianismo e o
racionalismo moderno, a questão de “ que fazer para que o ser se converta no que
deve ser” deu lugar a todo um desenvolvimento da cultura de si mesmo em cujo
-
interior inscreve se a história da subjetividade e a história da relação entre o sujeito
e a verdade que faz com que o connecimento, assim como a ética, se estabeleçam
cada vez mais em nosso interior e não nas relações com os demais, nas relações
sociais.
96
5
Roger Deacon & Ben Parker
Educação como Sujeição e como Recusa
Em ú ltima instâ ncia, existe apenas um crité rio pelo qual as crenças
podem ser julgadas vá lidas: que elas sejam baseadas no acordo obtido
por argumentação (Habermas, 1990, p. 14 ).
98
conceptualizado como mutuamente construído. O encorajamento da
reflexão do estudante sobre seu próprio processo de aprendizagem,
assim como um crescente controle sobre ele, é visto como um elemento
de diminuição das desigualdades entre professor e aprendiz e como
fortalecendo o poder ( empowering ) dos estudantes para que falem e
ajam por si próprios. O problema da pedagogia crítica é que ela supõe,
tal como o faz a teoria de Habermas, “ como já dado aquilo que, segundo
seu próprio relato, ainda não existe, mas se supõe que deve vir a existir
como resultado da teoria: a saber, um mundo no qual o poder e o
controle são equalizados” (Lakomski, 1988, p. 58; McCarthy, 1976, p.
486). Dada essa separação entre poder e conhecimento, a f é eurocèn-
trica da pedagogia crítica na “ força não-forçada” de uma razão universal
tende a ocultar desigualdades reais entre aprendizes e professores
(Spivak, 1991, p. 14). Essa f é tende também a envolvê-la em flagrantes
contradições e paradoxos. Uma dessas contradições é aquela que coloca,
de um lado, sua aversão à manipulação tecnocràtica e, de outro, seu
impulso a intervir em favor dos oprimidos (Touraine, 1988, p. 157).
Há també m o evidente paradoxo envolvido na ação de dirigir as pessoas
para que se tornem autónomas (Ellsworth, 1989, p. 308 ).
Ao longo da última década, a pedagogia crítica, como representante
de um apelo agora secular para “ iluminar ” os sujeitos da educação de
forma a “ fortalecê-los” em seu poder ( empower ), para “ emancipá-los”
de uma variedade de forças e melhorar seu mundo, tem estado sob
ataque em várias frentes. Críticos da direita exigem a semi-privatização
da educação para voltá-la para as “ coisas básicas” ; os neomarxistas
deploram a falta de rigor téorico e análise política; as feministas e outros
grupos criticam sua inadequada conceptualização do gênero e da raça.
De forma mais importante, um corpo florescente de teoria pós-estru-
turalista tem questionado as próprias fundações iluministas dos discur-
sos educacionais, nos quais: o conhecimento é conceptualizado como
razão dirigida a descobrir a verdade inerente na realidade, repre-
sentando-a à consciência através do meio referencial da linguagem; o
sujeito é concebido como unitário, coerente, autopresente, racional,
autónomo, ativo e intencional e o poder é tratado como negativo,
homogéneo e centralizado, algo externo ao conhecimento e à ação e
—
inclinado a distorcê-los o produto intencional de um sujeito soberano
que o possui e o exerce de uma forma repressiva sobre outros (relati-
vamente ) menos poderosos.
Conhecimento
; 99
f 1
O Sujeito
100
r
de ser tratada como natural, tornada às vezes invisível (Derrida, 1983,
pp. 9-14). Nesses termos, “ o poder da razão humana moderna” que
satura os discursos educacionais pode ser caracterizado como uma sé rie
de grades interconectadas de relações de saber e poder, nos interstícios
das quais são constituídos sujeitos que são simultaneamente ambas as
coisas: tanto os alvos de discursos (seus objetos e invenções) quanto os
veículos de discursos (seus sujeitos e agentes). O sujeito moderno, sobre
o qual a própria razão se baseia, e cujo status derivado é ocultado pelo
processo de objetificar outros, é assim denunciado como um paradoxo:
um efeito instável, fragmentado e potencialmente contraditório ( mas
igualmente substancial ) do saber e do poder (Deacon, 1994, p. 9).
Insistir sobre o status constituído do sujeito é começar a “ descons-
truir ” algumas das velhas antinomias que permeiam o pensamento
ocidental (sujeito e objeto, estrutura e agê ncia,1 liberdade e determinis-
mo, teoria e prática), não para negar ou “ destruir ” a possibilidade do
conhecimento ou a liberdade ou a ação intencional. Como diz Butler,
afirmar que o sujeito é constituído não significa afirmar que ele é
determinado; pelo contrá rio, o caráter constituído do sujeito é a
pr ó pria pré-condição de sua agê ncia (1991: 157).
Ao mesmo tempo criadores e efeitos de relações de poder e saber;
veículos e alvos (agentes autónomos e autómatos determinados) de
discursos poderosos; reprimidos e produzidos por relações de poder
os seres humanos são também intersubjetivamente sujeitados pelo fato
—
de que eles são governados externamente por outros e internamente
por suas próprias consciê ncias. Os sujeitos são artefatos, corporificados
e inscritos, da engenhosidade de uma razão entrelaçada com o biopo- -
1 A palavra agency (traduzida aqui por agê ncia ) é usada na literatura sociológica
anglo-saxô nica para salientar o elemento ativo da ação humana.(Nota do Tradutor).
101
nosso próprio eu como um agente autopresente, coerente e autónomo
depende, paradoxalmente, de sermos reconhecidos como tal por um
outro (Mahoney & Yngvesson, 1992, p. 60). O sujeito se constitui,
assim, a si próprio em relação a outros, no duplo sentido de ser “ sujeito
a um outro através do controle e da dependê ncia, e ligado à sua própria
identidade por uma consciência ou autoconhecimento” (Foucault,
1982, p. 212; Foucault, 1977, pp. 221-2; Althusser, 1971, p. 169;
Deacon, 1994, pp. 9-10).
Poder
102
com “ repressão” ou “ dominação” , no sentido jurídico-legal: ao falar de
dominação, Foucault tem em mente “ não a dominação do Rei em sua
posição central... mas a dos seus súditos em suas relações m útuas, não
o edif ício uniforme da soberania, mas as m últiplas formas de subjugação
que têm um lugar e uma função no organismo social” (Foucault, 1986,
p. 232). A sujeição m ú tua produz resistê ncia no momento mesmo que
a reprime; provoca insubordinação no momento mesmo que exige
obediência.
103
de uma ciê ncia da educação tornou-se possível por essa extensão das
relações de poder para envolver uma população mais ampla, processo
que por sua vez foi facilitado pelo conhecimento extraído através da
escrutinização dos alunos e da profissionalização dos professores.
Dois mecanismos disciplinares são essenciais aos processos pelos
quais as relações de poder constituem os professores e os alunos como
sujeitos e como objetos: a confissão e o exame. A confissão “ a —
formidável injunção para dizer o que se é” (Foucault, 1981, p. 60)
é um ritual que, tendo adquirido status científico como uma operação
—
terapê utica, tem efeitos discern íveis de poder: a verdade é corroborada
pela tribulação de relatá-la e isso “ produz modificações intrínsecas na
pessoa que a enuncia” (Foucault, 1981, p. 62). Enquanto a confissão
está presente em todos os discursos que buscam obrigar outros a falar,
seja com suas pr óprias vozes seja concedendo-lhes a voz, o exame está
mais estreitamente (embora não exclusivamente ) alinhado com os
discursos educacionais institucionalizados. O exame, sustentado pela
observa ção hierá rquica e pelo julgamento normalizador, sujéita aqueles
que são percebidos como objetos e objetifica aqueles que são sujeitados
( Foucault, 1977, p. 185 ). Ele permite que caracter ísticas particulares
dos sujeitos sob observação ou análise sejam relatadas, classificadas,
julgadas e utilizadas e funciona tanto para produzir quanto para disci-
plinar, uma vez que não apenas autentica uma aquisição de conheci-
mento, mas extrai do outro um conhecimento extremamente tá tico,
reservado para o intelectual (Foucault, 1979, p. 187; Deacon & Parker,
1993). Tanto a confissão quanto o exame se baseiam na injunção
filosófica mais antiga originalmente inscrita sobre o oráculo de Delfos:
“ conhece-te a ti mesmo ” , mais prosaicamente conhecida como auto-re-
flexão crítica. Ironicamente, essa técnica de tratar o pró prio eu como
um objeto de si mesmo tem sido proclamada por uma infinidade de
discursos modernos como indispensável a qualquer prática de liberta-
ção (Deacon, 1994, p. 15 ).
Barthes levou essa idéia ao exagero quando argumentou que a
relação de ensino é o “ reverso” da relação entre psicanalista e paciente:
embora seja verdade que o “ professor é a pessoa analisada... e que...
nessa ‘exposição’ é mais certamente nomeado do que tendemos a
pensar, n ão é o conhecimento que é exposto, é o sujeito” (Barthes,
1977, p. 194 ), não se pode ignorar que, especialmente na pedagogia
crítica, o professor permanece silencioso à medida que os aprendizes
são encorajados a confessar a verdade e, portanto, tanto professores
quanto aprendizes, embora desiguais, são ambos analistas e analisandos.
Essa sujeição recíproca ou intersubjetiva daqueles que participam do
processo educacional també m ilustra como a dicotomia estrutura-agê n-
cia que caracteriza o dilema insol úvel da liberdade e da autoridade, da
educação e da doutrinação, da reprodução e da resistê ncia em educação,
pode ser deslocada. De uma forma similar à descrição que Foucault faz
da agê ncia do sujeito mentalmente doente frente a um sistema de
104
]
Da Resistência à Recusa
106
entendido não como “ uma vontade divina deterministica, mas como
um tagarela perpé tuo, preparando o chão para as insurreições contra
107
própria vontade de poder e saber da modernidade, seu anseio por
complemento e plenitude, que demonstram sua carê ncia e a existê ncia
de particulares negativos que negam sua universalidade e tornam a
recusa e a mudan ça possíveis (Jameson, 1971, p. 56; 1990, p. 32).
Praticar a recusa é confrontar, sem substituir, o universal, o necessário
e o pú blico com o particular, o contingente e o pessoal ( Mouffe, 1992,
p. 382):
— —
É necessá rio passar para o outro lado o outro lado do “ lado bom ”
a fim de tentar livrar -se daqueles mecanismos que fizeram com
que aparecessem dois lados, a fim de dissolver a falsa unidade desse
outro lado cuja parte nós assumimos (Foucault, citado em Dews,
1984, p. 91).
Centralmente, recusar o que somos e libertarmo-nos dos mecanismos
hegemónicos da sujeição exige aten ção cuidadosa a nossas atuais posi-
ções-de-sujeito e às formas pelas quais cuidamos ou governamos nossos
eus. Isso implicaria envolver-se em práticas de liberdade, jogos de
verdade ou jogos-de-poder que estejam dirigidos discursivamente a nos
re-constituir a nós mesmos, se não a outros, em padrões particulares
histórica e culturalmente propostos ou impostos (Foucault, 1987, p.
122). Cuidar do eu é controlar o abuso de poder, limitar ou minimizar
a dominação de nosso eu : “ é o poder sobre o que regulará o poder sobre
outros” (Foucault, 1987, p. 119 ). Mesmo sob condições agudamente
assim é tricas, o poder é exercido sobre outros apenas através de nosso
poder sobre o eu, e a dominação é, ao menos em parte, relativa ao grau
no qual os dominados não exercem poder suficiente sobre si próprios.
Paradoxalmente, quanto mais (auto) disciplinados somos, quanto mais
cuidamos de nosso eu, mais livres seremos e melhor governaremos
outros; quanto menos disciplinados somos, menos livres seremos e pior
governaremos outros.
Na escola, o governo dos sujeitos é, ao mesmo tempo, essencial ao
empreendimento educacional e potencialmente desestabilizante, uma
vez que as possibilidades de recusar posições-de-sujeito particulares
estão presentes em todos os momentos, mesmo ocultas sob o compor -
tamento em obediê ncia às regras (Wittgenstein, 1972, par. 201). O
projeto da educação moderna é tão estreitamente aparentado ao de
instilar princípios que “ quando vossos desejos, vossos apetites ou vossos
receios se levantarem como cães que ladram, o logos falar á com a voz
de um dono que silencia os cachorros com um simples comando”
( Plutarco, citado em Foucault, 1987, p. 117). Não obstante, esse projeto
pode ser voltado contra si pró prio: exatamente da mesma forma que a
voz da autoridade se baseia no ladrar dos cães, a disciplinação dos
sujeitos depende de sua vontade e sua participação ativa. Alé m disso,
dado que os sujeitos são artífices, deve ser possível, em princípio,
mesmo que seja muito dif ícil, constituir sujeitos que literalmente exibam
108
sua artificialidade (Butler, 1990, pp. 30-31), e dessa forma questionar
velhas certezas, através da invenção de sujeitos que certamente serão
tão ou mais “ reais” que os originais “ naturais” que eles parodiam.
Conclusão
Referências Bibliográficas
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109
'“ TK
1
110
6
David Martin Jones
Foucault e a Possibilidade de
Urna Pedagogia sem Redenção
Não gostaria que o que eu possa ter dito ou escrito fosse visto
como reivindicando qualquer direito à totalidade. Não tento
universalizar o que digo; inversamente, o que não digo não deve,
por isso, ser desqualificado como sendo de nenhuma importân-
cia. Minha obra está situada entre pilares inconclusos e cadeias
provisórias de escoras... Em muitos casos, estou pensando espe-
cialmente nas relações entre dialética, genealogia e estratégia;
ainda estou trabalhando e não sei se estou chegando a algum
lugar. O que digo deve ser tomado como “ proposições” , “ aber-
turas de jogo” , ao qual, aqueles que podem estar interessados, são
convidados a se juntar... (Foucault in Gordon et al., 1991, pp.
90-1).
111
1
112
F
cia desinteressada do Estado, constituiu a maquinaria que levaria a
população a uma condição racional.
Uma geração posterior de pensadores coletivistas liberais e socia-
listas levou essa benevolência desinteressada um estágio adiante. A
educação, para socialistas fabianos como Sidney Webb, tornou-se uma
questão de “ eficiê ncia nacional ” e uma “ preocupação nacional assumida
no interesse de uma comunidade como um todo” (Webb, 1904, pp.
9-10).
Essa visão da educação como uma questão de central importâ ncia
para o desenvolvimento nacional e para a produtividade moldaria
fortemente as percepções governamentais da educação, tanto nas eco-
nomias em desenvolvimento quanto nas desenvolvidas, no curso do 4
século XX. Assim, um “ Panorama da Educação” , na revista The Econo-
mist, anunciava em novembro de 1991 que o investimento governa-
mental em educação “ compensa. Se a virtude obtém sua recompensa
no céu, a educação a obté m na terra ” ( 21/11/1992, p. 11). Nesse
entendimento, a atual crise econó mica nas economias européias e
anglo-americanas é diretamente atribu ível ao fracasso da educação
popular em produzir a eficiência nacional. Em contraste, o milagre
económico das economias dos “ tigres” asiáticos é diretamente atribu í- 3
113
pressagiado no É mile de Rousseau, adquiriu forma material nos expe-
rimentos pedagógicos de visionários educacionais como Pestalozzi e
tornou-se crescentemente regularizado e cientificizado no pensamento
pedagógico de Herbart, Spencer, Froebel, Dewey, Montessori e Mac-
millan. Era central a essa pedagogia do desenvolvimento o papel do
professor tanto como um modelo a ser imitado quanto como um
facilitador da aprendizagem através do fazer.
Por volta do in ício do século XX, os colégios da Europa e da
Amé rica do Norte estavam treinando os professores numa pedagogia
do desenvolvimento apropriada a cada estágio do desenvolvimento
racional da criança. Essa ciência do desenvolvimento permitia que o
professor eficiente “ traçasse uma ordem de desenvolvimento” no pro-
cesso de aprendizagem (Findlay, p. 137). Esse conhecimento deu ao
professor a liberdade para prever as ocorrê ncias da sala de aula e
antecipar a conexão entre estímulo e reação. Exatamente da mesma
forma que o médico tratava um paciente, a ciê ncia educacional equipava
o professor apropriadamente treinado com um “ poder de diagnóstico
e interpretação” (Sadler, 1901, p. 137).
Munido de uma ciê ncia do desenvolvimento e da capacidade para
dividir cada lição em cinco passos herbartianos, o professor profissional
estava equipado, como sustentava o fil ósofo estadunidense William
James, “ para educar as emoções” (James, 1949, p. 253). Nessa visão, o
professor treinado levava a crian ça, “ naturalmente” , em direção a novos
conceitos. Na pedagogia transformativa de Margaret Mcmillan, uma
nova raça de trabalhadores do ensino e da sa ú de educaria a imaginação
através de seu domínio do jogo. Esses professores-enfermeiros criariam
“ jardins de crian ças” , na favela urbana, os quais inculcariam há bitos de
higiene. A saú de, assim como o crescimento económico, era agora um
“ sub-produto do ensino” ( Macmillan, 1903, p. 200).
Essa visão do ensino eficiente e científico oferecia a perspectiva, no
per íodo após 1920, não apenas de um desenvolvimento racional, mas
també m de uma ordem social. A escola tornou-se “ o centro de interesse
para todos os envolvidos no trabalho de melhoria social que afetava a
vida infantil. O trabalhador social na clínica para recé m-nascidos e no
jardim de inf ância gratuito deve seguir o jovem a seu cargo até a escola
infantil onde o médico e a enfermeira já estão em alegre fun ção...
Comissões de Cuidado procurarão manter a criança em forma e em
freqiiê ncia regular... enquanto, ao final, o serviço de trabalho juvenil
entra na escola para registrar o trabalhador potencial ” (Allen, 1916, p.
217).
A partir de outros desenvolvimentos na Psicologia Aplicada e na
Sociologia, no curso dos anos 1960 e 1970, foi possível cientificizar e
objetificar ainda mais a sala de aula, o professor e o aluno. Estudos
sociométricos e pesquisas de atitudes ofereciam dados objetificáveis
para provar as observações impressionistas de gerações anteriores de
114
educadores progressistas. Por volta do início dos anos 1970, educadores
como McIntyre e Morrison (1971) podiam se basear numa quantidade
imensa de dados científicos que podiam facilitar melhorias na eficiê ncia
docente e, por sua vez, melhorar a eficiência das escolas em dar uma
educação útil para sua clientela.
A imagem de uma população cientificamente educada é isomórfica,
portanto, à de uma modernidade pienamente desenvolvida. A realiza-
ção dessa imagem exigia, por sua vez, uma personalidade cientificamen -
te transformada , uma personalidade que revelasse a plena
potencialidade de uma natureza humana latente ou obscura. A fim de
alcançar essa transformação, uma ciência educacional armada com
dados sociométricos e um conhecimento progressivo do crescimento
emocional e intelectual dos seres humanos tornou possível uma meto-
dologia de ensino cientificamente objetificável. Além disso, mesmo
quando críticos marxistas ou neoconservadores questionaram a objeti-
vidade da ciência e a validade de suas prescrições, eles nunca duvidaram
da possibilidade de uma tal transformação progressista. Para que a
—
modernidade progressista todos os discursos pareciam anunciar
fosse realizável era necessário apenas que o desenvolvimento humano, —
a organização económica e o desenvolvimento político fossem apro-
priada e objetivamente racionalizados.
115
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117
1
118
explica, “ enquadrando processos naturais em mecanismos de seguran-
ça” ( p. 138). A liberdade aqui não é uma virtude, mas uma técnica
necessária de “ governar os processos naturais da vida social e, particu-
larmente, aqueles das trocas auto-interessadas” (p. 138 ). No tempo, a
segurança das leis e a liberdade individual se pressupõem mutuamente.
Além disso, como um correlato necessário de uma “ nova forma de
governar, a sociedade civil pode ser vista como fornecendo uma base
para racionalizar a regulação legal de um governo autolimitador,
económico ou frugal, vinculado referencialmente a processos económi-
cos” ( p. 138 ). A sociedade civil situa o problema do exercício do poder
político em relação a um domínio aparentemente natural no qual o
poder, na forma de relações espontaneamente desenvolvidas de auto-
ridade e subordinação, já existe numa relação dinâ mica interna com o
exercício de interesses. O papel do Estado define-se por referência a
uma sociedade “ natural” já existente e é essa natureza aparentemente
autoproduzida da sociedade civil que o Estado tem que assegurar que
funcione de forma otimizada. Isso exige a regulação de seus processos
naturais por mecanismos de segurança que coloquem a sociedade numa
posição complexa e variável tanto dentro quanto fora do Estado. A
sociedade civil e o homem económico natural são, na verdade, os
correlatos necessá rios de uma tecnologia política de governo.
A Ciência Política, portanto, torna possível uma realidade transa-
cionai. Esse domínio na fronteira do poder político e daquilo que
naturalmente evita sua apreensão oferece um terreno f értil para a
inovação experimental. Ela permite a formação de tecnologias tatica-
mente polimorfas, como o panóptico benthamiano e a estratégia cres-
tomática para governar as vidas individuais. Essas novas tecnologias
moldam a conduta e os desempenhos apropriados à sua produtiva
inserção nos circuitos da vida social.
Esse novo poder sobre a vida desenvolveu-se em duas formas
básicas ou, mais especificamente, constituiu “ dois polos de desenvolvi-
mento” (Foucault, 1978, p. 135 ). Um polo centrou-se no corpo, como
uma máquina caracterizada pelo desenvolvimento das disciplinas, “ uma
anátomo-pol ítica do corpo humano” (p. 139). O segundo polo focali-
zou-se no corpo da espécie, a população em geral, cuja supervisão “ foi
efetuada através de uma série inteira de intervenções e controles
regulatórios” (p. 140). Houve “ uma explosão de técnicas numerosas e
diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle das populações,
marcando o começo de uma era de biopoder ” (p. 140). Assim, como
Gilles Deleuze observou, “ as duas funções puras nas sociedades moder-
nas ser ão a anátomo-política e a biopolítica e as duas questões puras,
as de um corpo particular e de uma população particular ” .
De forma crucial, o biopoder exigia o desdobramento da sexuali-
dade. Situado na junção “ do corpo e da população, o sexo tornou-se
um alvo crucial de um poder organizado em torno da administração da
119
vida e não da ameaça da morte” (Foucault, 1977, p. 147). Uma
combinação de mecanismos disciplinares como a escola, o hospital e o
hospício articulou e ordenou o biopoder. Essa biotecnologia empregou
táticas cuja
operação não é assegurada pelo direito, mas pela técnica, não pela
lei, mas pela normalização, não pela punição, mas pelo controle,
mé todos que são controlados em todos os n íveis e por formas que
vão alé m do Estado e seus aparatos ( p. 89 ).
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1
Conclusão
124
possibilidades imaginativas que a contingê ncia oferece. Uma educação
apropriadamente pós-moderna torna-se uma proped ê utica a uma lin-
guagem que constitui a unidade comunicativa da polis moderna.
Em outras palavras, a pós- modernidade convida a uma resposta
pluralista à condição contingente que anuncia. Como tal, ela oferece
espaço para uma interrogação inteligente de práticas passadas e uma
resposta imaginativa a novas contingê ncias. Uma educação comunica-
tiva não-redentora é central à pol ítica comunicativa da pós-modernida-
de.
Como seu pluralismo e relativismo sugerem, uma nova pedagogia
será aberta, em uma era de globalização, a contribuições e pr áticas
culturais de tradições alternativas ou diferentes (confucionismo, isla-
mismo, etc.).
Ela deve resistir, entretanto, a um recuo à tirania de uma verdade
ú nica, científica, religiosa ou essencialista. Reconhecendo que o eu é
essencialmente contingente e um construto das linguagens que habita e
modifica, a pedagogia pós-moderna é irónica e aberta. Ela nega uma
natureza ou um essencialismo absolutista.
A desvantagem preocupante de uma nova ordem mundial sem
ideologia é o recuo ao fundamentalismo, seja de cará ter étnico, seja de
car áter religioso. O pós- modernista necessariamente se oporia a uma
tal degenerescê ncia. O reconhecimento do cont ínuo problema do poder
numa pós-modernidade cética, ironica e distó pica tem tornado possível
uma renegociação das já limitadas possibilidades da educação numa
pós-modernidade cosmopolita ou um gerenciamento pedagógico alter-
nativo de soi-disant comunidades fundamentalistas.
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7
Frank Pignatelli
Que Posso Fazer? Foucault e a Questão da
Liberdade e da Agência Docente
1 Uma exceção se destaca. Veja Rajchman, 1985, 1986. Veja també m Miller, 1993,
uma irresistível biografia de Foucault, uma biografia que trata da centralidade da
liberdade tanto em sua vida quanto em sua obra.
2 A palavra agency (traduzida aqui por agência) é usada na literatura sociológica
anglo-saxônica para salientar o elemento ativo da ação humana.(Nota do Tradutor).
3 Veja, por exemplo, Beyer e Liston, 1992; Giroux, 1991, pp. 79, 82; e McLaren,
1986, p. 391.
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O Sujeito Obediente
129
r 1
Ciê ncias Humanas ( Foucault, 1973c). Entretanto, ele agora pergunta:
“ Isso [a emergê ncia das assim chamadas pequenas técnicas] representa
o nascimento das Ciê ncias do Homem ? ” , pergunta à qual ele responde:
“ Ela deve ser provalmente encontrada nesses ignóbeis arquivos, onde
o exercício moderno da coerção sobre os corpos,os gestos e o compor-
tamento teve seu in ício” (Foucault, 1979, p. 191). Para Foucault, as
disciplinas das Ciê ncias Humanas verificam, complementam e tentam
—
aperfeiçoar essa moderna forma de poder um poder que se agrupa
em torno do “ homem calcul ável ” e o constitui (Foucault, 1979, p. 191).
As Ciê ncias Humanas estão enraizadas e imersas num clima político-
histórico no qual o pensamento é inevitavelmente ação. Elas não podem
nem recuar a uma posição de neutralidade, com outros decidindo como
usar os frutos de seu trabalho, nem estar simplesmente a serviço de
nosso bem-estar; nem abandonadas meramente a observar o indivíduo
a fim de reunir informações e comparar, nem a curar e iluminar.
O sujeito obediente está situado como um ponto de referência
sobre o qual uma rigorosa e incessante “ interrogação” é traçada. O
exame, por exemplo, é uma disciplina “ sem limites” , imbuída de uma
“ curiosidade impiedosa ” ( Foucault, 1979, p. 227). O sujeito é subme-
tido ao olhar: “ Ele é visto, mas não vê; ele é objeto de informação,
nunca um sujeito na comunicação” (Foucault, 1979, p. 200). O indiví-
duo é um objeto disciplinado formado por uma “ pol ítica de coerções
que agem sobre o corpo” (Foucault, 1979, p. 138 ).
Na medida em que o corpo é coagido (isso não é sinónimo de
“ explorado” , pois não é uma questão de tirar, mas de investir no corpo
através da aplicação de vá rias técnicas disciplinares), ele possui uma
“ capacidade aumentada” (Foucault, 1979). Mas na medida em que é
também obediente, o corpo é destituído de seu poder para ser politica-
mente eficaz, para ser diferente. A consciência não é mais o ponto de
origem ou a posição privilegiada a partir da qual o sujeito pode observar
e refletir sobre as representações que possui a fim de saber e agir. Como
explica Cleo H. Cherryholmes: “ O poder molda e informa nossa
psique. O resultado é que n ós somos objetos de instituições e processos
sociais quando intencionalmente nos envolvemos numa ação” (Cherry-
holmes, 1988, p.35).
Foucault parece nos colocar num impasse: supor a operação de um
sujeito autónomo, auto-regulado nos torna incapazes de reconhecer,
refletir sobre ou resistir às manipulações metódicas, mas anónimas, de
um poder que silenciosamente, eficientemente, profundamente, con-
trola. Mas, então, como será possível a ação ?
A Possibilidade de Liberdade
130
ela, no sentido, por exemplo, em que Anthony Giddens fala de agência
humana em sua teoria da estruturação. Para Giddens, a capacidade
humana é a “ possibilidade de que o agente pudesse ter agido de outra
forma” . Foucault silencia a respeito desse tema (Giddens, 1982, pp.
8-10). Da mesma forma, ele não presta atenção alguma ao fato de o ser 1
—
humano ter a capacidade de conhecimento um amálgama de cons-
ciência prática e discursiva e inconsciente. Embora Giddens reconheça
o caráter “ constrangido” da agê ncia humana, ele não está disposto a
fazer desaparecer o sujeito humano ou a imergi-lo num regime discur-
sivo manipulativo. Alé m disso, há a crítica de Frank Lentricchia de que
Foucault postula um “ supermaterialismo” pelo qual
o controle do espaço e do tempo do trabalhador [ou, para nossos
propósitos aqui, do professor], através da manipulação detalhada de
seu corpo, significa o controle de sua mente. A consciê ncia é reduzida
ao corpo (Lentricchia, 1981, p. 52).
131
espaço nem para a especulação/teorização política nem para o risco
pessoal.4 Pode-se argumentar que Foucault parece se colocar, tanto
pessoal quanto politicamente, fora da narrativa. Entretanto, quero
argumentar que a tentativa para se estender para alé m dessas narrativas
ou acima delas ( para falar de uma posição “ iluminada” ), através do
discurso, significaria ao mesmo tempo contradizer seu relativamente
modesto projeto e contribuir para reforçar precisamente aquilo que ele
pretende denunciar. Como narrativa libertadora "‘seu discurso seria,
como Frederic Jameson disse em outro contexto, um “ sintoma da
situação que ele busca diagnosticar ” (Jameson, 1984, p. xi ).
Essa tendência em Foucault pode ser vista como uma ilustração da
análise que Jean -François Lyotard faz das formas narrativas. Os meios
pelos quais o conhecimento científico e os movimentos sócio-políticos
são legitimados (através do argumento e da deliberação) e formados
(em torno do consenso da comunidade ) são fundamentalmente, prag-
maticamente, incompatíveis com o do conhecimento narrativo, a des-
peito do fato de que a ciê ncia tem sempre confiado na narrativa para
legitimar a si pró pria. A posição de Lyotard, tão freqiientemente citada,
está longe de ser provisória:
132
f
5 Para uma descrição histórica feita por Foucault desse “ incitamento” , veja o capítulo
“ The Incitement to Discourse” , Foucault, 1980a,pp. 17-35.
133
Isso é o máximo a que chega Foucault no sentido de forçar sua audiência
a imaginar novas possibilidades. Contudo, mesmo aqui ele se abstém
de advogar qualquer posição. Ele nem advoga, nem sugere como fazer.
A estratégia que Foucault sugere é uma estratégia que tenta permanecer
fiel ao urgente tom do ensaio de Immanuel Kant, “ Que é o Iluminismo ? ”
(Kant, 1963). Devemos nos perguntar não “ Quem sou eu ?” , pois isso
leva ao “ sujeito universal e ahistórico” , mas, corno Kant fez, “ Que
somos ? ” (Foucault, 1983c, p. 216 ). Ao formular essa última questão os
professores reconhecem e respondem não à questão de que forma eles
tê m sido internamente dominados e reprimidos, mas à questão da forma
como eles têm sido constituídos e administrados de modo ú til.
Mesmo assim, ainda gostaria de argumentar que Foucault tem um
interesse constante na liberdade, na possibilidade, em ser outro, em
construir condições menos opressivas. Há diversos elementos ou temas
recorrentes em sua obra que demonstram tais interesses. O projeto de
liberdade dé Foucault “ começa” com um desafio resoluto a “ recusar
aquilo que somos” (Foucault, 1983c). Um desses casos ocorre em sua
auto-interrogação (uma forma que Foucault usa também em seus outros
trabalhos) no Pref ácio a seu livro O Uso dos Prazeres. Ele nos diz que
está escrevendo esse livro por causa de uma obstinada curiosidade: “ não
a curiosidade que busca assimilar aquilo que é apropriado à pessoa
saber, mas aquilo que permite à pessoa libertar-se de si mesma” (Fou-
cault, 1985, p. 8 ). De fato, a definição do Iluminismo, extraída de Kant,
que Foucault decide enfatizar e defender é primariamente uma defini-
ção negativa, o Iluminismo como uma Ausgang (uma “ saída” ou “ reti-
rada” )(Kant, 1963, citado por Foucault, 1984). O auto-distanciamento
era uma preocupação tanto pessoal quanto intelectual de Foucault.6 A
pr ática da liberdade depende de uma recusa a basear a pr ó pria ação na
capacidade de ocupar um lugar iluminado ou uma identidade fixa.
O projeto de liberdade de Foucault está enquadrado também por
um profundo ceticismo. Foucault falou de sua obra como um esforço
para “ limitar os domínios do conhecimento” (Foucault, 1989, p. 331).
Para ele, a liberdade consiste numa abertura para possibilidades dife-
rentes, para formas de nos vermos a nós pró prios e a nossas pr áticas de
forma diferente, através de uma tentativa para identificar o arbitrá rio
naquilo que pode aparecer como fundamental ou essencial. Talvez ele
seja particulamente enérgico e desconfiado em relação a práticas dis-
cursivas que se formam em torno de preocupações progressistas e da
humanização de expressões brutais de poder. Isso se reflete em suas
obras principais sobre o insano, o encarcerado e a sexualidade do século
oitocentista. Em grande parte, o projeto explícito de Foucault consistiu
em documentar, como Peter Dews tão apropriadamente expressou, “ as
formas de saber e os modos de controle social característicos da
134
modernidade” que constituem uma forma de subjetividade “ regimen-
tada, isolada e autopoliciada” (Dews, 1984, pp. 91, 77). Os professores
precisam compreender essa forma de controle como uma demonstração
perturbadora da relação inversa entre a prática da liberdade e as
devastações de um olhar que, em parte, é auto-imposto e que molda e
monitora nossa identidade. Foucault quer questionar nossa tendência
a não ver esses processos. Entretanto, é també m importante lembrar
que Foucault estava preocupado em ser mais do que um cartógrafo de
identidades. Um projeto crítico-emancipatório surge através da ênfase
naquilo sobre o qual Foucault deliberadamente permaneceu bastante
evasivo. Seu rigoroso método intelectual, sua impressionante habilidade 1
como escritor que testa a capacidade que tê m as palavras de conservar
seu significado, suas diversas investigações históricas, tudo isso é arre-
gimentado para oferecer aos leitores, simplesmente, a oportunidade
“ para tirar suas próprias conclusões ou deduzir idéias gerais a partir
dessas interrogações... Penso que isso demonstra muito mais respeito
pela liberdade de todo mundo —
essa é a minha maneira de agir ”
(Foucault, 1988, p. 146 ). Para colocar de forma diferente, a prá tica da
liberdade é a luta para continuar preocupado com a presente situação
e condição de forma que a pessoa possa vê-las mais intensamente e
conhecer as próprias circunstâncias mais profundamente a fim de
reconhecer os recorrentes jogos de verdade. Esse efeito, eu argumento,
é crucial para aquilo que estou chamando de projeto de liberdade de
Foucault. Ao mesmo tempo, significa manter, como Foucault diz, “ uma
â nsia desesperada para imaginar , para imaginá-lo [o presente] de uma
forma diferente do que é e para transformá-lo, não destruindo-o, mas
capturando-o naquilo que é” (Foucault, 1988, 1984). Foucault assume
como projeto da modernidade o contínuo projeto de auto-invenção e
não de auto-descoberta, o desafio de surpreender a si próprio, o testar
e reavaliar quem realmente a pessoa é na presença de um imaginar ativo
e produtivo.7
Finalmente, um outro tema subjaz à compreensão de liberdade de
Foucault: o risco. O risco, para Foucault, tem uma espécie de status
duplo. Por um lado, há a atenção que ele concede à transgressão e suas
possíveis conseqiiê ncias, levadas a limites extremos ou ao menos a 1
7 Para mais detalhes sobre esse ponto, aquilo que Foucault chamou de
“ atitude-limite ” , veja Kiziltan et al., 1990, pp. 363-66). Com base em Foucault,
argumento que no ato de ser inventivo e na prática da auto-interrogação n ão se
pode distinguir entre os aspectos negativos da liberdade.
135
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136
estreitamente regulada coloca uma enorme pressão na prática, e até
mesmo na possibilidade, da liberdade. Sugiro que aquilo que Selman
indica a respeito dos estudantes é igualmente verdadeiro a respeito dos
professores. Como Hugh G. Petrie observa, uma dentre duas suposições
(ou ambas) sobre os professores subjazem, em geral, ao processo de
ensino-aprendizagem: ou o professor como um t écnico ou o professor
como um terapeuta (Petrie, 1990, p. 17). Em ambos os casos, uma
estratégia estreitamente pr é-determinada de ações diagnóstico-prescri-
tivas são legitimadas e expressadas na linguagem das Ciê ncias Humanas.
Se o trabalho dos professores (e da pesquisa na qual eles se baseiam )
consistir na otimização de desempenhos eficientes e da restauração da
sanidade daqueles sob sua responsabilidade, isso reduz significativa-
mente o que é possível fazer com resultados que podem ser antecipados
e calibrados. Isso corre o risco de fazer com que os professores sejam
incapazes de examinar aquilo que eles fazem e a forma como eles falam
sobre aquilo que eles fazem, tendo em vista o contexto sócio-pol ítico
mais amplo. Para dizer de forma diferente, o privilegiamento do
trabalho docente ao longo das linhas descritas por Petrie restringe
seriamente qualquer idéia de agê ncia docente que argumente em favor
de um curso de ação aberto, dinâ mico, engajado.
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137
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-
m
8 Foucault, 1980 b, tal como citado em Miller, 1993, p. 271. Essa discussão sobre a
distinção que Foucault faz entre pesquisa e teste se baseia em Miller, especialmente,
269-72.
138
vividamente, os professores não podem nem fugir, nem absolver-se da
—
violê ncia do discurso sua “ pesada, aterradora materialidade... e seus
vínculos com o desejo e o poder ” (Foucault, 1972, p. 216 ). Assim, o
projeto de se tornar consciente, de praticar a liberdade, envolve um
profundo e amplo julgamento das próprias posições discursivas e
profissionais oficiais como nós ou loci de poder mantidos pela produção
de conhecimento sobre si pr ó prio, sobre seus colegas e sobre seus
estudantes. Seguindo Foucault, argumento que os professores exercem
sua agê ncia presos num complexo paradoxo, tipicamente moderno,
entre sujeito cognoscente e objeto manipulado. Ironicamente, se os
—
professores testam os limites de “ regime(s) de verdade” 9 por exem-
plo, ao não perguntar “ E verdadeiro ? ” mas, antes, “ Quem quer que seja
verdadeiro ? Quais são os efeitos de dizer que isto é verdadeiro e não
aquilo ? ” — eles minam o chão autorizado sobre cuja base falam. Fazer
tais perguntas força os professores a reconhecer que eles estão não
apenas envolvidos com esses regimes, eles são també m constituídos em
seu interior. Eles não podem nem pretender ter uma posição fixa isenta
das exigências do poder nem advogar em favor de uma tal posição. Isso
nã o reduz tudo à intriga, ao cálculo, à vantagem. Naturalmente, normas
podem e devem existir. Sugerir o oposto significaria reduzir a agê ncia
a uma desorganização dispersa, enfraquecedora. Significaria reduzir a
alteridade a um frágil e descorporificado voluntarismo. Tendo isso em
mente (e levando em consideração o desconforto do pr ó prio Foucault
em ser identificado como um pós-modernista), vale a pena registrar as
observações de John W. Murphy sobre o pós-modernismo e a questão
das normas. Elas se baseiam na noção de agê ncia docente sugerida por
Foucault:
Os pós-modernistas nunca afirmaram que estabelecer normas é
impossível, mas apenas que elas se originam no uso da linguagem.
Para alguns realistas, entretanto, esse an ú ncio equivale a proclamar
o caos. A educação pós-modernista não encoraja a ausê ncia de
normas, mas, de forma muito mais importante, exige que as pessoas
assumam a responsabilidade por sua verdade (Murphy, 1988, p.
182).
A liberdade interpretativa permitida por esse movimento abre o cami-
nho para uma discussão mais ampla, menos privilegiada e mais pú blica
sobre o que é valorizado e quem deve ser ouvido. Não fecha a
possibilidade de um acordo. Ao mesmo tempo, reconhecer a natureza
localizada da própria participação na discussão serve como um lembrete
aos participantes sobre seu posicionamento parcial, perspectivo. A
liberdade de cada um, pois, não é assegurada através do vínculo entre
práticas libertadoras e discursos totalizadores, vagos sentimentos utó-
-
9 Veja, por exemplo, Foucault, 1980d, pp. 112 13 e 131-33.
139
picos (tais como a liberdade como a realização humana mais alta) ou
por leituras universalizantes da história. A análise de Foucault não é
nem niilista nem desesperada. Não advoga a proliferação desconexa de
incursões impensadas ou despropositadas, sem qualquer reconhecimen-
to ou compreensão daquilo que ocorreu. E uma estratégia para profes-
sores que tentam diminuir qualquer justificação pr évia de toda forma
de resistência e retardar a especulação sobre como e quando a liberdade
é exercida ou se sua prá tica é legítima. Ela abre algum espaço para
formas alternativas de pensar e agir em oposição ao presente regime de
práticas tecnicistas nas quais os professores se encontram constitu ídos.10
Essas práticas muito freqiientemente passam como respostas necessá-
rias, como movimentos óbvios em narrativas inquestionadas, dadas
como certas, narrativas que se desenvolvem ao longo de temas como os
seguintes: “ Fornecer a melhor educação para todos” ; “ Todas as crianças
podem aprender ” ; “ A educação assegura o sucesso” , e assim por diante.
Alternativamente, consideremos as implicações, por exemplo, da ques-
tão colocada por Michelle Fine em seu estudo de estudantes evadidos
da escola: “ E se o problema da evasão fosse estudado na escola como
uma cr ítica coletiva feita pelos consumidores da educação ? ” (Fine,
1987, p. 171). As prá ticas tecnicistas sustentam e exacerbam relações
assimétricas de poder nas escolas. Ressuscitar o debate no interior do
qual essas práticas normalizadoras ocorrem é um dos meios pelos quais
a auto-evidê ncia de práticas educacionais potencialmente opressivas
pode ser quebrada. O desafio colocado à questão da agê ncia docente
— —
o pensamento de Foucault parece sugerir consiste em perceber o
quanto um projeto educacional formulado nos termos convencionais
parece girar sempre e indefinidamente em torno dos mesmos e insol ú-
veis problemas, consiste em compreender que os modelos prescritivos
parecem formular apenas as questões que eles estão preparados para
responder, limitando e restringindo, assim, as ações de quem faz essas
questões.
10 Baseio-me aqui no uso que Foucault faz do termo “ práticas” como “ lugares onde
aquilo que é dito e aquilo que é feito, as regras impostas e as razões dadas, o
planejado e o dado como implícito se encontram e se interconectam” . Foucault,
1987, p. 103.
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141
i.
pus*
142
r
marginalizados e cujas vozes têm sido emudecidas ou silenciadas por
uma lógica da normalidade que reduz as diferenças a déficits. Mas saber
como e quando questões de justiça social devem ser tratadas torna-se
uma questão fundamentalmente importante. Como Daniel P. Liston e
Kenneth M. Zeichner advertem, “ impor uma perspectiva crítica” , seja
num programa de formação docente ou num programa de pós-gradua-
ção, pode, muito provavelmente, ser contraprodutivo ou grosseiramen-
te distorcido. O que é necessário é um respeito pelas pessoas, pelas suas
experiências e suas condições, juntamente com uma discussão oportuna
e uma mediação crítica, à medida que as ocasiões se apresentam.
Devemos aprender a viver na tensão entre a afirmação e a crítica. Tendo
dito isso, gostaria de discutir as três características em maior detalhe.
Uma política foucaultiana é reativa no sentido de que é instigada
por alguma circunstâ ncia problemática que ameaça nosso bem-estar
ético. Como Foucault diz: “ minha posição não leva à apatia nem a um
hiper-ativismo ou a um ativismo pessimista. Penso que a escolha
ético-política que temos que fazer todos os dias é determinar qual é o
principal perigo” .11 Para mim, reagir àquilo que é mais perigoso supõe
que essa ação seja dirigida por uma preocupação com a eqiiidade. Isso
está próximo àquilo que Max Van Manen chama de reflexão crítica.
Liston e Zeichner, baseando-se no trabalho de Van Manen, expressam
isso da seguinte forma:
A reflexão cr ítica incorpora critérios morais e éticos ao discurso
sobre a ação prática. Aqui a preocupação principal está em saber se
os objetivos, atividades e experiências educacionais levam a formas
de vida que são caracterizadas por justiça, eqiiidade e felicidade
concreta para todos e se a atividade docente e os contextos nos quais
ela é levada a efeito servem a necessidades humanas importantes e
satisfazem a propósitos humanos importantes (Liston & Zeichner,
1991, pp. 1678-68 ).
Uma política docente começa como uma orientação dentro das contin -
gências de um problema cuidadosamente delineado que age sobre nós
mesmos como educadores. Entre tais possíveis problemas estarão aque-
les que se agrupam em torno do ethos dominante do controle técnico
dos professores e da gerência científica da educação. Especificamente,
isso abrangeria temas enquadrados como questões de eqiiidade, tais
como: isolamento docente, programação de classe inflexível, desquali-
ficação e intensificação do trabalho docente, avaliações baseadas no
desempenho dos estudantes em testes padronizados, a natureza presen-
tiva do curr ículo, a falta de poder de decisão docente em questões de
administração da escola, e assim por diante. Embora tal “ capacidade de
11 Foucault, 1983b, p. 232. Veia também Albert Camus, 1972, pp. 120-21, para uma
interessante ilustração daquilo que Foucault chama de “ ativismo hiper e pessimista” .
143
resposta” exija tomar uma posição nessas questões, respostas calcifica-
das ou respostas que desencorajam mais diálogo enfraqueceriam aquilo
que acredito ser essencial a uma tal política, a saber, uma provisoriedade
flexível, informada, que permaneça atenta às aberturas e possibilidades
não-antecipadas, assim como consciente do potencial de sua própria
pr ática para marginalizar e obscurecer outras vozes (e também outros
possíveis perigos ).
Uma política docente seria uma prática não- programática. Conse-
qiientemente, agir íamos com um conhecimento parcial daquilo que
estamos fazendo, resistindo ao impulso de vincular nossas respostas a
um plano-mestre dirigido a organizar e explicar uma infinidade de
situações e movimentos. Mas em vez de “ ficarmos parados, olhando
para as coisas inominadas... para aquilo que não pode ser conhecido” ,
tal como o personagem Ishmael de Herman Melville, na descrição de
Greene, arriscamos agir, às vezes, armados apenas com a imaginação e
a paixão (Greene, 1965, pp. 104-5 ). A indeterminação, em certo
sentido, atormenta a ação; uma indeterminação que permanece alerta
às preocupações expressadas por Simone de Beauvoir em sua discussão
daquilo que ela chama de “ o aventureiro” . Ela explica:
Não esperando qualquer justificação, ele, não obstante, se gratifica
em viver. Ele não virará as costas às coisas nas quais não acredita.
Ele procurará nelas um pretexto para uma exibição gratuita de
atividade... Ele gosta da ação pelo prazer da ação. Ele experimenta
prazer em espalhar pelo mundo uma liberdade que permanece
indiferente a seu conte údo (Beauvoir, 1976, p. 58 ).
144
IT ”
145
(re)moldar o contexto social e empregar meios duvidosos para isso. Ou,
para tomar um outro exemplo, a eficiê ncia técnica não é totalmente ou
sempre ameaçadora ou perigosa. Muito dependerá da possibilidade do
grupo que está sendo afetado por uma forma pretendida ou existente
de controle técnico ver como e onde tais esforços podem limitar seu
trabalho e impedir possíveis ações, consideradas importantes ou vitais.
No que se segue, ampliarei minha discussão sobre uma política
docente e sobre o papel dos professores como agentes ao longo de linhas
mais específicas. Não se tratando, de forma alguma, de uma agenda
exclusiva, ela sugere outras implicações de uma análise foucaultiana.
Uma vez que o poder é ubíq íio, a agê ncia docente não reside
exclusivamente numa estrutura organizacional, numa filosofia pedagó-
gica, numa iniciativa política ou num programa educacional único,
ideal. Alé m disso, Foucault entende as relações de poder como “ inten-
cionais e não-subjetivas” (Foucault, 1980a, p. 94). Esta perspectiva
permite-lhe a oportunidade de tratar o poder como uma sé rie de
cálculos racionais executados por insuspeitos tecnocratas locais. As
abordagens que enfatizam o poder local, por exemplo, não levam
necessariamente ao exercício da agê ncia docente tal como desenvolvida
neste ensaio. Isso dependerá muito da capacidade e disposição dos
professores para antecipar e avaliar o impacto de agendas prescritivas
dirigidas por uma l ógica de controle técnico sobre si pró prios e sobre
outras pessoas (especialmente aquelas que tê m, relativamente, menos
poder ). Exatamente como não existe nenhum “ locus ú nico da Grande
Recusa, nenhum centro espiritual de revolta, nenhuma fonte de todas
as rebeliões ou nenhuma lei pura do revolucion á rio” ( Foucault, 1980a,
pp. 95-96 ), Foucault permanece desconfiado da busca pela fonte ou
pelo inventor da opressão. O cará ter anónimo do poder, seu movimento
através e em torno das pessoas, torna in ú til justificar os movimentos
docentes como simplesmente respostas a uma burocracia centralizada,
impiedosa, interessada principalmente em sua própria existê ncia. Os
professores, portanto, precisam reconhecer sua própria cumplicidade e
posicionamento nas condições que contestam. Dada sua situação reco-
nhecidamente provisória, as iniciativas e esfor ços docentes que agem
em nome dos professores exigem um apoio mediado por uma crítica
contínua.
Uma descrição limitada mas típica do poder o vê como uma
mercadoria, como algo transferível, definido, limitado e oficialmente
sancionado. Entretanto, o poder é mais do que aquilo que é oficialmente
delegado e legalmente legitimado. Como Foucault sugere, o poder é
uma relaçã o, incitado e intimamente alinhado com a resistê ncia e a
liberdade. A liberdade tem um caráter intransigente em relação com o
poder. Para os professores como agentes, isso significa que uma rees-
truturaçã o formal das escolas, que aparentemente concede aos profes-
sores mais poder de decisã o, pode ser vista como um movimento que
146
fornece aberturas, mas que deve també m implicar uma resposta e que
será, necessariamente, contestada. A preocupação, aqui, é com o poten-
cial para a desilusão por parte dos “ recé m fortalecidos ( empowered )"
professores, que vêem seus esforços paralisados, subvertidos ou coop-
tados. O que precisa ser estabelecido é uma compreensão da liberdade
como o local para a extensão inevitável do poder. A liberdade, portanto,
torna-se a prá tica de movimentos inventivos, imaginativos, estratégicos,
ao longo de um eixo de poder, movimentos que possivelmente previ-
nem mas não eliminam o exercício do poder. Não se pode agir num
sistema educacional sem estar implicado nesse exercício.
Dada a cú mplice relação entre a construção do conhecimento sobre
os professores, seus esforços e seu local de trabalho através das Ciê ncias
Humanas e a extensão de um poder normalizador por toda a escola, a
agê ncia docente, como uma forma de profissionalização crescente,
também precisa ser questionada e mediada por um conjunto mais amplo
de pressupostos fundados em preocupações de eq ü idade e inclusão.
Dennis Carlson, por exemplo, ao discutir a busca docente por status
profissional, nos lembra que, historicamente, “ os professores eram
empregados pú blicos burocraticamente subordinados, os quais não
tinham nenhum controle especial sobre seu trabalho” . Contudo, a
“ imagem do professor como um praticante semi-autônomo de uma
profissão ou de um of ício qualificado continua a influenciar a cultura
de trabalho dos professores” (Carlson, 1992, p.82, ê nfase minha).
Embora a autonomia profissional possa fornecer uma resposta necessá-
ria aos ditames centralizados, pode levar també m ao que ele chama de
te, penso eu — —
“ conservadorismo ocupacional ” . Ele está preocupado e corretamen-
com a redu ção das questões educacionais a questões
técnicas e científicas, reguladas por uma classe profissional, privilegia-
da, fortalecida por uma burocracia centralizada, supostamente agindo
no interesse do p ú blico.
Como fica, então, a missão democrá tica e o conte údo ético do
trabalho docente ? Como ficam, també m, as histórias e significados
locais “ encobertos e disfarçados sob uma coer ê ncia funcionalista ou
uma sistematização formal ” e aqueles “ saberes ingé nuos, localizados no
degrau inferior da hierarquia, abaixo do n ível exigido de cognição ou
cientificidade” ? (Foucault, 1980d, p. 82). Dada a interpenetração entre
discurso e poder, a análise de Foucault reconhece o possível perigo de
que seu pr ó prio comentá rio e cr ítica (e, por extensão, o comentário e
a cr ítica per se ) sejam uma violência através do discurso que também
eles geram e das prá ticas que sustentam. A questão não é que os
professores precisem (ou mesmo possam ) construir e organizar-se em
torno de um metadiscurso imune de tais condições. Para sublinhar um
argumento feito antes, os professores tanto geram quanto são constran-
gidos pelo discurso oficial. Eles precisam, portanto, reconhecer o
ambíguo status sujeito/objeto que, necessariamente, ocupam como
147
professores e, continuamente, testar e prevenir os efeitos sobre si
pró prios, assim como sobre outros, do discurso que eles utilizam.
À medida que o trabalho docente torna-se menos estreitamente
definido e localizado não apenas na sala de aula, uma política de
identidade docente deve reconhecer os múltiplos posicionamentos de
sujeito que agem tanto dentro quanto entre salas de aula, escolas e
comunidades. Isso supõe que a agê ncia docente opere de formas
variadas, contestadas e que qualquer noção de agência docente guiada
por uma agenda global, unitá ria, é impraticável e inapropriada. Isso
também supõe que as práticas e a retórica arregimentadas para assegurar
a “ autonomia” docente precisam ser substituídas por aquilo que Landon
Beyer chama de “ identidade comunal ” (Beyer, 1988, citado em Liston
& Zeichner, 1991, p. 179). Assim, a empatia, a tolerância em relação
à ambigü idade e a competê ncia comunicativa tornam-se mais valoriza-
das e importantes para a prá tica bem-sucedida da agê ncia docente.
Recentemente, uma professora-diretora (uma identidade e uma posição
que carregam um enorme grau de ambigü idade ) de uma escola p ú blica
alternativa nacionalmente reconhecida falou sobre os professores com
os quais ela trabalha como estando “ presos em seu próprio fortaleci-
mento ( empowerment )” (Matos, 1993). Embora haja uma vibrante
cultura escolar que sustenta e espera aquilo que muitos concordariam
ser um grau invejá vel de envolvimento docente em questões educacio-
nais, definidas de forma bastante ampla, ela registra um nível de
inocê ncia, uma relutâ ncia demonstrada por aqueles mesmos professo-
res, quando se trata de enfrentar as implicações de seu trabalho no nível
local. Por um lado, isso talvez signifique esperar demais desses dedica-
dos e bem-sucedidos professores, que eles ajam num ambiente mais
complexo e, talvez, menos amigável. Contudo, é també m verdade que
sua agê ncia é nutrida através da proteção que lhes é proporcionada pela
professora-diretora e outros advogados externos. Resta- nos perguntar
o que está sendo arriscado por esses professores, quando eles continuam
tão estreitamente centrados na sua escola, quando eles renunciam a
ampliar a esfera na qual praticam sua agê ncia. Sua concepção de agê ncia
perderá sua vitalidade, seu compromisso em favor dos propósitos mais
amplos da educação ? As tensões que, inevitavelmente, se seguirão entre
colegas estarão preocupadas com agendas refinadas e abertamente
cautelosas ? O argumento de Nicholas C. Burbules está bem colocado:
o diálogo entre as diferen ças nã o supõe a eliminação da diferença.
Claramente, a “ capacidade para comunicar-se e coordenar as ações
entre as diferen ças” (Burbules, 1993, p. 29), como ele diz, é crucial-
mente importante para sustentar e revitalizar a agê ncia docente.
Uma questão final diz respeito ao conte údo das maté rias escolares.
Embora Foucault de bom grado admita escrever apenas ficção, isso não
significa que suas “ histórias” não sejam o resultado de um estudo
paciente e rigoroso. Foucault usou seu estudo acadê mico para desman-
char leituras oficiais do passado e para questionar ações supostamente
148
r
149
e obter qualidade. A agê ncia docente existe como uma recusa a se tornar
impensadamente cú mplice e programaticamente fixada a um plano
totalizador e sistemá tico. A capacidade e a disposição a se desligar, a
desorganizar e a sugerir alternativas a um “ modo de controle que impõe
em vez de cultivar o significado” (Giroux, 1988, p. 17) é, num sentido
ï profundo, uma questão educacional e assinalará projetos de liberdade.
150
Ti -TT1 '
151
ma” (Schumann, 1986 , p. 303 ) . Num determinado ponto, Foucault
voltou-se para Baudelaire, que, por sua vez, tinha-se voltado para o
trabalho do pintor Constantin Guys, para assegurar-se do que signifi -
cava ser moderno, agir com propósito e poder no (e sobre o) mundo
moderno. Para Baudelaire, diz Foucault, o trabalho de Guy “ não
implica um anulamento da realidade, mas uma dif ícil interação entre a
verdade que é real e o exercício da liberdade” ( Foucault, 1984, p. 41 ) .
Se essa posição parece ser modesta para o professor, é também uma
posição que deixa espaço para o auto-engrandecimento no contexto da
retórica do fortalecimento do poder (empowerment ) docente e da
\ reforma escolar.
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154
I
8
David Blacker
Foucault e a Responsabilidade Intelectual
IO agora quase axiomático dizer que 1er Foucault é lutar com sua
J-'aparente falta de vontade ou incapacidade para contribuir com
quaisquer sugestões positivas para uma práxis libertadora que, em seus
momentos mais câ ndidos, ele proclama defender. Sua análise de insti-
tuições como a prisão, por exemplo, expõe sórdidas origens, assinala
tendê ncias alarmantes e revela relações de poder e dominação em toda
parte. Alé m disso, ele mostra como as técnicas disciplinares neo-orwe-
lianas aperfeiçoadas na prisão se espalharam como câ ncer por todo o
corpo social — prisões, escritórios e escolas. Entretanto, a despeito
dessa prognose pessimista e talvez até mesmo distópica, Foucault parece
se recusar de forma consistente a identificar ou até mesmo a esboçar
uma cura. E como se Marx tivesse exposto os males do vampiro Capital,
apenas para dar um constrangedor sacudir de braços, quando pergun-
tado: “ Bem, que podemos fazer quanto a isso ? ” .
Acho, entretanto, que essa visão é equivocada. Existe, na verdade,
muita coisa em Foucault a respeito do que “ nós” devemos fazer e como
devemos fazê-lo. Ademais, e esse é um ponto que parece ter ficado
ampiamente esquecido na literatura, o que ele tem a dizer é de particular
relevâ ncia e importância para intelectuais engajados na pesquisa no
interior de um contexto institucional tal como o da universidade
contempor â nea.
Meu esforço para demonstrar isso tem dois aspectos, um negativo
e um positivo. Negativamente, argumentarei que o empreendimento de
Foucault não é, pace alguns de seus mais influentes críticos, um exercí-
cio de ambigü idade e, em última instâ ncia, de auto- refutação.1 Pelo
contrário, mesmo seus mais provocativos “ argumentos” genealógicos
não cometem nenhum faux pas ; embora talvez questionáveis sob outras
formas, não existe nada de formalmente errado com eles. Uma dose de
caridade interpretativa os vê, na verdade, como surpreendentemente
1 Os mais lidos nos Estados Unidos são provavelmente: Taylor, 1985; Habermas,
1990, 1986; Fraser, 1989.
IS 5
1
2 Pode-se questionar um certo pressuposto psicológico dessa crítica, por ex., de que
o determinismo leva à inação. Precisamos apenas lembrar que a visão de mundo
determinista paradigmática, o Calvinismo, nunca teve falta de aderentes
“ motivados” .
156
partir da qual elas são, em geral, enunciadas, a saber, a do intelectual
circunscrito a uma instituição. O caso paradigmático aqui não é dife-
rente daquele do próprio Foucault, “ Professor de História dos Sistemas
de Pensamento” na Sorbonne, isto é, os provedores da pesquisa apoiada
e legitimada no â mbito da universidade.
Um Método na Loucura
157
1
!
o humanismo — como ele alega fazê-lo, em outros locais ( Foucault,
—
1970, p. 387; 1977a, pp. 221-2) e aceitá-lo ( para fazer com que nos 1
sintamos mal ). E como se algu é m argumentasse contra a lógica formal
usando o modus ponens.
Este problema, entretanto, parece ser, afinal, um pseudo-problema.
Na verdade, não vejo como sustentar a id éia de que Vigiar e Punir ou a
História da Sexualidade devam ser lidos como contraditórios. Embora
a genealogia foucaultiana de fato apresente uma sé rie de contradições,
ela não é, de forma alguma, autocontraditó ria. Por que não lê-la,
supondo que se deva 1er a genealogia como um “ argumento ” no sentido
usual, de forma similar à reductio adabsurdum do humanismo ? Por que
não pode ser ela uma cr ítica imanente que torna o discurso humanista
problemático por seus próprios padrões ? Dizer que o humanismo se
contradiz a si pr ó prio não é o mesmo que dizer que o argumento que
demonstra esse fato é ele pr ó prio autocontraditório. Uma tal manobra
seria equivalente a matar o mensageiro de más notícias.
Para Foucault, os ideais associados com o humanismo não são
inerentemente contraditórios, mas a genealogia revela que os atos que
dele resultam parecem sempre desacreditar suas palavras. O discurso
humanista a servi ço da “ reforma” ou do “ progresso” tem com dema-
siada freq íiê ncia sido enunciado a fim de justificar ações profundamente
inumanas; suas conseqiiê ncias práticas demonstram sua falsidade mais
eloq üentemente do que o faria qualquer dose de argumentação. A força
dessa argumentação, entretanto, depende do peso das narrativas empí-
ricas fornecidas. E cada genealogia foucaultiana está repleta desses
exemplos, uma quantidade suficiente dos quais deveria gerar a seguinte
indução: “ Eles nos prometem o ’Bem’, mas as coisas deram errado. Isso
acontece de novo e de novo e de novo. Talvez não devêssemos mais
acreditar em suas promessas” .
Para tornar esse argumento mais concreto, descreverei brevemente
tr ês desses reductios narrativos. Enfatizo outra vez que nenhum desses
exemplos, tomados isoladamente, é suficiente para provar a tese de que
os grandes ideais do humanismo são acompanhados por realidades
inumanas. E o conjunto que convence, uma vez que o padrão parece
estável.
O primeiro exemplo, extra ído do livro sobre as prisões, é de
interesse ó bvio para os educadores: o movimento em direção à “ obser -
vaçã o hierá rquica” e ao “ julgamento normalizador ” que culmina no
“ exame” e é simbolizado por ele. Aqui, a promessa de igualdade formal
entre os indivíduos é o ideal proclamado. Dizem-nos, portanto, que
somos todos “ iguais” . Mas mesmo uma análise r á pida torna óbvio que
os seres humanos, com todas as variações em fisionomia, talentos,
inteligê ncia, etc., podem parecer qualquer coisa, menos iguais.
Mais: o an ú ncio humanista (talvez pudéssemos colocar no seu lugar
“ o reformador progressista ” ) persiste: “ Iguais! Iguais!” . E por um
158
1
complexo processo de inculcação, acabamos por aceitar esse ideal
—
seja lá o que ele signifique e somos levados à busca desse escorregadio
—
“ igual ” ; existe uma busca para identificar alguma mesmice subjacente,
algo tido em comum por todos e sobre o qual possamos afixar esse
“ igual” . Na busca desesperada por aquilo que nos torna o “ mesmo” , e
incapazes de encontrar qualquer coisa concreta, prontamente aceitamos
um conte údo dado pelo poder hegemónico. “ O poder abomina o
vácuo” , como dizem. Somos transformados em “ indivíduos” e em
“ casos”— somos obrigados a nos transformar em um ideal externa-
mente manufaturado.
Quando a conformidade torna-se a norma reinante (talvez, inicial-
mente, uma mudança quase impercetível em relação ao ideal da igual-
dade), inicia-se um processo que leva a um alinhamento e a uma
ordenação cada vez mais estreitos de acordo com aquela norma. Aqueles
que se desviam dela devem ser colocados na linha; devem ser discipli-
nados, punidos, submetidos a testes de QI. Dessa forma, são construídas
as categorias de indivíduo “ desviante” e de indivíduo “ normal” : “ o
indivíduo é, sem d ú vida, o átomo fictício de uma representação ’ideo-
lógica’ da sociedade; mas ele é també m uma realidade fabricada por
essa tecnologia específica dè poder que chamei de ’ disciplina’ ” (Fou-
cault, 1979, p. 194). A apoteose desse processo é o “ exame” , esta
novelmente formada “ cerimonia de objetificação” do indivíduo. Aqui,
a pessoa é identificada, diferenciada, classificada e marcada ad infinitum
—
de acordo com a norma uma norma que nasceu da igualdade.
Em segundo lugar está a figura do delinqiiente — o fracasso (ou
sucesso ? ) do sistema de prisão. O slogan dessa vez é a “ reforma” do
convicto. “ Reformar ” : trazer de volta aquilo que se desviou, curar,
tornar outra vez normal. Em oposição a uma noção retributiva de justiça
penal, espera-se que a prisão humanista liberal “ corrija” , eduque e
reforme o criminoso. Dessa forma, o criminoso e a sociedade são
reconciliados, o primeiro sendo restaurado a seu lugar “ correto” na
segunda. Mas, naturalmente, para um grande n ú mero de convictos, esse
resultado ideal nunca é alcançado. De fato, com muita freq üência, a
situação parece, suspeitosamente, ser a inversa: o pequeno criminoso
transforma-se num expert, o amador, num profissional e o delinqiiente
juvenil, num veterano. As prisões são planejadas para fracassar.
Ocorre, argumenta Foucault, não apenas que os delinqiientes são
“ fracassados” , mas também que eles preenchem uma ú til função: eles
são essenciais à rede carcerá ria que se estende para além dos portões
das prisões. “ Os criminosos são convenientes” (Foucault, 1980a, p. 40).
Eles se tornam cafetões, prostitutas, chantagistas, furadores de
greve e — o que é mais importante — informantes. Esses ú ltimos são
transformados, num “ milieu fechado de delinq úê ncia, completamente
estruturado pela polícia” (Foucault, 198a, p. 42). Assim, um bando
autoperpetuador de figuras ambíguas circula entre a população em
159
geral, sempre escutando, registrando e levando a informação de volta
aos que as mantê m. Longe de reformar ou educar o delinq üente, o
sistema carcerá rio dele depende vitalmente:
desde o final dos anos 1830, tornou-se claro que, na verdade, o
objetivo não era recuperar os delinqiientes, torná-los virtuosos, mas
reagrupá-los no interior de um milieu claramente demarcado, inde-
xado, que pudesse servir de instrumento para fins económicos e
pol íticos. O problema, doravante, não era ensinar algo aos prisio-
neiros, mas nada ensinar -lhes, de forma a assegurar que eles não
pudessem fazer nada quando saíssem da prisão (Foucault, 1980a ).
Da perspectiva da rede carcerá ria, a delinq üê ncia e a reincid ê ncia são
sucessos triunfantes; aquela não apenas perpetua mas estende sua
influê ncia. “ Tão bem sucedida tem sido a prisão que, após um século e
meio de ‘fracassos’ ela ainda existe, produzindo os mesmos resultados,
existindo uma enorme relutâ ncia em dispensar seus serviços” (Foucault,
1979, p. 277).
Nossa terceira narrativa reductio captura no ato a noção de liber-
dade sexual (vinda da “ liberdade” sexual). Foucault contesta a id éia
popularmente sustentada que ele chama de “ hipótese repressiva” : a
id éia de que o poder é essencialmente “ puritano” e, portanto, tem
reprimido e inibido as pr á ticas e o discurso sexual. Somos afortunados
por viver hoje numa “ Era de Liberação Sexual ” , tendo finalmente
superado alguns séculos de “ Idade Média” sexual ; enquanto o passado
r - mais distante é caracterizado por uma certa “ inocê ncia” , os séculos
XVII-XIX dão origem ao “ vitoriano reprimido” . Essa é a id é ia.
Após uma análise geneal ógica, entretanto, fica claro que a era
vitoriana assinala uma profusão em larga escala do discurso sexual
encontramos aí verdadeiras matracas da sexualidade que podem ser
—
qualquer outra coisa menos inibidas. A sexualidade tem sido, certamen -
te, moldada pelo poder, mas ela não tem sido exatamente reprimida;
na verdade, a situação é quase a oposta : o discurso sexual “ longe de
sofrer um processo de restrição, tem estado sujeito, pelo contrário, a
um mecanismo de estimulação crescente” (1980d, p. 12). O poder tem,
assim, cultivado cuidadosamente o campo da sexualidade.
Mas ele faz sua colheita em uma sé rie de práticas. A proliferação
de rituais “ confessionais” (sintomático da prioridade dada à descoberta
da verdade sobre a pró pria “ profunda e oculta” sexualidade ), por
exemplo, efetivamente inculca a obrigação de çonfessar-se. Usualmente
essa obrigação torna-se manifesta através da manifestação de fluxos de
discurso sexual diante de autoridades propriamente designadas, como
o padre, o conselheiro escolar ou o psicanalista. Descobrir essas fanta-
sias e impulsos soterrados é anunciado como um ato “ saudável ” e até
mesmo libertador e a pessoa, obedientemente, aquiesce, a fim de ser
“ livre” . Entretanto, o tempo todo, o ouvido do confessor está ouvindo
160
j
e registrando as confissões; “ o sexo é açambarcado e como que encur-
ralado por um discurso que pretende não lhe permitir obscuridade nem
sossego” (Foucault, 198 Od, p. 20). Assim, o processo supostamente
libertador de estimular o discurso sexual ajuda a refinar técnicas de
dominação e de forma geral alimenta o moinho disciplinar. Mais coisas
a nosso respeito tornam-se visíveis; tornamo-nos abertos, nus e expos-
tos a graus cada vez maiores de intervenção e penetração institucional.
Além disso, de forma similar àquela pela qual as técnicas carcerá rias
“ colonizam ” outras á reas da sociedade, o imperativo a se confessar se
estende a outras práticas sociais. E a sociedade contemporâ nea arregi-
menta seus recursos para esse fim: “ o sexo tornou-se uma questão que
exige que o corpo social como um todo, e virtualmente todos os seus
indivíduos, se coloquem sob vigilância ” (Foucault, 198 Od, p. 116 ).
Temos, assim, tr ês processos que começam com ideais grandiosos
mas que resultam em realidades basicamente inumanas: “ igualdade-
conformidade-exame ” , “ reforma-delinq üente-informante” e “ liberta-
ção-confissão-controle ” . Desnecessá rio dizer que os produtos finais
dessas tr íades negam os ideais que forneceram o impulso original. Mas
nosso desconforto — na verdade, nossa indignação — com relação a
esses resultados não precisa ser baseado nesses ideais. Tanto o huma-
nista liberal quanto Foucault concordam com o argumento de que a
negação da igualdade e da liberdade é uma “ coisa ruim” .
Entretanto, os dois deixam de concordar a partir daí. Enquanto o
humanista continua a proclamar o ideal em questão, alegando talvez
que o problema será resolvido assim que o ideal for plena e propria-
mente realizado, Foucault não vê razão alguma para tal otimismo, pois
o genealogista é pragmático o suficiente para considerar que conta
contra sua verdade o fato de que um n ú mero demasiado grande de
palavras de ordem humanistas parece ter levado sempre (ou ao menos
com demasiada freq íiê ncia) ao seu oposto. Enfatizo outra vez que, de
acordo com minha leitura, Foucault não “ refutou” o humanismo nem
tentou fazê-lo. Em vez disso, ele pede àqueles que usam seu jargão que
sejam responsá veis pelo legado de decepção de seus predecessores. E,
dada a evidência genealógica, uma resposta confortadora
—
pedimos que seja convincente parece pouco provável.
— já não
161
exatamente o que há de errado com esta sociedade carcerária e por que
se deve resistir a ela” ? (Fraser, 1989, p. 50). Fraser ainda dá a Foucault
a responsabilidade de oferecer “ algum paradigma alternativo, pós-hu-
manista ” para responder à questão que ela coloca. E, na sua visão, ela
conclui que ele não pode fazer isso: um silêncio ambíguo é tudo que
vem da parte de Foucault. Parece que nos resta uma escolha bastante
infeliz: “ entre um paradigma ético conhecido [isto é, uma variante do
humanismo liberal] e um paradigma X, desconhecido” (Fraser, 1989,
pp. 50-1). Deste modo, é objetivo do resto de meu ensaio fornecer uma
resposta para o desafio de Fraser, preenchendo assim o “ desconhecido
paradigma X ” .
162
decência administrativa” pode, em grande medida, ser desvestido: “ o
que precisamos é de um estudo do poder em seu aspecto externo,
naquele ponto no qual ele está em relação direta ou imediata com aquilo
que podemos provisoriamente chamar seu objeto, seu alvo, seu campo
de aplicação...” (Foucault, 1980b, p. 97). Esse é um aspecto importante
daquilo que as genealogias tentam fazer.
Isso não significa debater os méritos relativos da “ fenomenologia”
e da “ ontologia” do poder de Foucault (se é que se pode falar nesses
termos). Gostaria apenas de sublinhar dois pontos relevantes. Quanto
ao primeiro, vou deixar o colega e por algum tempo colaborador de
Foucault, Gilles Deleuze, falar por mim:
o privilégio teórico dado ao Estado como um aparato de poder, em
certa medida, leva à prá tica de um partido condutor e centralizador
que eventualmente se apodera do poder de Estado; mas, por outro
lado, é a própria concepção organizacional do partido que é justifi-
cada por esta teoria de poder. O interesse do livro de Foucault
baseia-se num conjunto diferente de estratégias (Deleuze, 1988, p.
30).
A idéia que temos daquilo contra o qual estamos lutando afeta direta-
mente aquilo que nos tornamos quando estamos lutando. É por isso
que é tão importante, de um ponto de vista estratégico, distanciar-se de
teorias de poder centradas no Estado; a “ revolução” política não é
suficiente para efetuar uma mudança profunda e duradoura.
Em segundo lugar, aqueles que pretendem enunciar a emancipação
devem adquirir uma certa modéstia teórica. Dada a (falta de ) natureza
do poder, não devemos esperar ser capazes de dizer muita coisa sobre
ele que tenha valor universal. Se o objetivo é “ uma espécie autónoma,
não-centralizada de produção teórica, isto é, uma produção cuja vali-
dade não seja dependente da aprovação dos regimes estabelecidos de
pensamento” , não dever íamos tentar enunciar um discurso libertador
a partir de uma posição autorizada de sujeito (Foucault, 1980b, p. 81).
Por exemplo, algumas das observações mais incisivas de Foucault são
dirigidas aos teóricos que tentam legitimar suas idéias como “ científi-
cas” ( p. ex., certos marxistas estruturalistas, “ cientistas” sociais de várias
correntes), aproveitando-se, assim, da aura de autoridade da ciê ncia.
Naturalmente, mesmo assim ainda podemos teorizar, desde que esteja-
mos mais do que acautelados contra a “ tirania de discursos globaliza-
dores, com sua hierarquia e todos os privilégios de uma avant -garde
teórica” ( Foucault, 1980b, p. 83). O ponto central é que a perspectiva
163
F"
164
coletiva. O intelectual “ universal” pretende estar situado fora do poder,
contrapondo ao “ poder, ao despotismo e aos abusos da arrogância da
riqueza, a universalidade da justiça e a igualdade de uma lei ideal ”
( Foucault, 1980c, p. 128 ). Pensamos aqui em Locke, Rousseau, Jeffer-
son, Marx. Em contraste, o intelectual “ específico” origina-se de uma
figura bastante diferente: não o “ jurista ou notável, mas o sábio ou
expert” (Foucault, 1980c). Foucault identifica o cientista atómico dos
anos 40 e 50 como um precursor desse novo tipo de personagem cuja
expertise é restrita a um campo particular. Isso não significa, entretanto,
dizer que sua influê ncia é limitada. Pelo contrário, mudanças na confi-
guração poder -saber tem tornado crescentemente possível a situação
paradoxal de que experts em campos específicos, especialmente nas
ciê ncias naturais e aplicadas desfrutem (e carreguem o peso) das conse-
quências bastante gerais que advêm de sua atividade. Assim, embora
mais enredado no poder do que nunca, o intelectual específico adquiriu
uma nova importâ ncia estratégica.
Mas por que Foucault celebra esse desenvolvimento ? Por que se
deve preferir o intelectual específico ? Para responder a essa questão, o
inté rprete deve ir um pouco além daquilo que está explícito em seus
textos. Tendo isso em conta, parece haver em funcionamento dois
princípios que provisoriamente chamarei de “ eficácia” e “ honestidade” .
Talvez não inteiramente surpreendente, como tentarei mostrar, esses
dois princípios traduzem-se em dois momentos de algo muito similar a
uma “ vontade de poder ” nietzschiana atualizada e especificada.
Como afirmou Foucault: “ As pessoas sabem o que fazem; elas
freqiientemente sabem por que fazem o que fazem; mas o que elas não
sabem é o que faz (causa ) aquilo que elas fazem ” (Dreyfus 6c Rabinow,
1983, p. 187).4 Essa simples observação sintetiza de forma clara sua
recomendação estratégica para o intelectual de oposição.
A “ eficácia” , como sugeri acima, baseia-se no princípio da “ trans-
versalidade” ( para tomar emprestada uma palavra de Deleuze) (Deleu-
ze, 1988, p. 91).5 A idé ia é que, ao restringir o escopo de nossa atividade,
freqiientemente ampliamos e aprofundamos as conseq üê ncias ( poten -
ciais) daquela atividade. Talvez o exemplo mais dramático disso e, sob
muitos aspectos, paradigmático, seja o do cientista ató mico. Ao nos
centrarmos na esfera humana mais diminuta à qual os seres humanos
podem ter acesso (p. ex., o sub-atômico), podemos nos tornar “ Des-
truidores de Mundos” , como o f ísico J. Robert Oppenheimer ofegan -
temente afirmou, no campo de testes no qual a primeira bomba atómica
foi detonada. Um outro exemplo, talvez mais prontamente acessível, é
o do médico. Nesse caso, a transversalidade pode ser um teste intuitivo.
Consideremos o cená rio seguinte: esperando uma cirurgia, pede-se que
4 Eles afirmam que essa citação provém de uma “ comunicação pessoal ” de Foucault .
5 Embora haja similaridades, não uso a palavra da mesma forma que Deleuze.
165
1
você escolha entre dois cirurgiões que farão sua operação. Suas opções
são dois médicos credenciados e lhe fornecem apenas umas poucas
informações sobre cada um deles. O primeiro é “ Dr. Renascença” :
culto, de muitas leituras, viajado, bem vestido e bem relacionado. Do
segundo você conhece apenas uma qualidade: sua competência. Acho
que nesse ponto, quase sem discordar, você escolheria o último. Quan-
do a eficácia é mais importante, todas as considerações empalidecem
perante a competê ncia “ específica ” .
Acho que não é dif ícil ver como a transversalidade pode ser
—
estendida a um grande n ú mero de instâncias e nem todas “ intelec-
tuais” no sentido usual. Enfatizo que essa afirmação não implica que
não se pode aprender ou se beneficiar de alguma outra forma de esfera
que não seja a sua. Mas indica de fato a necessidade de organizar nossos
esforços em torno de um locus específico; “ especializar-se” nesse sen-
tido não é necessariamente compartimentalizar-se. Do ponto de vista
da eficácia, pois, deplorar a crescente especialização da sociedade
contempor â nea significa cair numa nostalgia autodestruidora. A é poca
do aristocr ático “ Homem da Renascença” já passou.
A “ honestidade” tem dois componentes essenciais, que chamarei
de “ atitude de alerta” e “ esforço ” . “ Atitude de alerta” significa prestar
atenção às conseqiiê ncias da pr ópria prá tica teórica; mais especifica-
mente, isso implica uma consciê ncia de como os resultados de nossos
esforços são usados. O esforço é simplesmente a vigilância persistente
e de boa f é exigida para sustentar essa consciê ncia. Deve-se enfatizar
que a honestidade não significa um esforço em direção ao autoconhe-
cimento; não significa uma hermenêutica do eu, nem qualquer outra
busca da verdade sobre si pr óprio. Em vez disso, diz respeito às
implicações de nossa busca da verdade; não auto-absorção, mas uma
atitude de alerta para a forma como as nossas ações acabam absorvidas
pelo regime de poder-saber.
E por isso que Oppenheimer é descrito por Foucault como um
“ ponto de transição entre o intelectual universal e o específico” (Fou-
cault, 1980c, pp. 127-8 ). Apesar de sua pol ítica esquerdista, e embora
ele fosse eficaz, ele não era “ honesto” , no sentido acima. Na verdade,
e com muito poucas exceções (p. ex., talvez, Leo Szilard, o refugiado
h ú ngaro que parecia sensível aos perigos do projeto atómico desde o
in ício), os cientistas do projeto Manhattan que desenvolveram a bomba
eram impressionantemente ingé nuos sobre as ramificações sociais e
pol íticas que suas descobertas poderiam ter. A afirmação de Edward
Teller de que “ não é tarefa do cientista determinar se uma bomba de
hidrogêneo deveria ser construída, se deveria ser usada, ou como
deveria ser usada” representa talvez o modelo dessa des-honestidade
(Boyer, 1985, p. 342).6 Mas mesmo que não possamos perdoar a esses
166
cientistas sua ingenuidade política inicial, há muitos outros exemplos
impressionantes de desonestidade. A cegueira à manipulação e à explo -
ração exibidas por certos anticomunistas “ progressistas” ( p. ex., a
posição assumida na ú ltima parte de suas vidas pela anarquista estadu
nidense Emma Goldmann e pelo filósofo, mistura de marxista com
-
combatente da guerra fria, Sydney Hook, assim como a posição dos
“ Novos Fil ósofos” franceses dos anos 70 ) só pode ser classificada, em
relação à honestidade, como um escâ ndalo. A motivação básica por
detrás da observação de Jean-Paul Sartre de que “ um anticomunista é
sempre um rato” aplica-se com toda força no Ocidente hoje mais do
que nunca.
—
Um corolá rio importante (ou talvez um fato necessá rio) da hones-
tidade é a observação de Anthony Giddens sobre um dos “ modos
primá rios pelos quais a dominação é ocultada como dominação” : a
“ representação de interesses particulares como sendo universais” (Gid-
dens, 1979, p. 193 ). A fim de sustentar sua legitimidade, o poder
hegemónico inventa a ficção de que representa os interesses “ comuns” .
As iniciativas principais do governo, desde orçamentos até à guerra e
ao holocausto, por exemplo, são quase sempre justificadas por algum
suposto partilhado interesse ou ameaça, seja ela a “ Ameaça Vermelha ” ,
“ Isso ou Aquilo do Povo” , a “ Escola Comum ” ou a “ Nova Ordem
Mundial” . Os intelectuais deveriam tirar uma lição desse princípio; eles
deveriam sempre perguntar: “ em favor de quem estou pretendendo
falar ?” . E deveriam compreender que, como uma regra, quanto mais
ampla a asserção, mais restrita é a posição-de-sujeito que ela serve. O
genealogista-filósofo foucaultiano honesto, por exemplo, que diz sub-
verter pressupostos básicos, deve estar especialmente vigilante em
relação a esse tipo de desonestidade:
Existe sempre algo de rid ículo no discurso filosófico quando tenta,
a partir de fora, ditar a outros, dizer-lhes onde está sua verdade e
como achá-la, ou quando argumenta contra eles na linguagem da
positividade ingé nua. Mas ele pode explorar o que deve ser mudado
em seu pr ó prio pensamento, através da prática de um conhecimento
que é estranho a ele (Foucault, 1986, p. 9).
Novamente, não existe aqui nada que impeça aprender com outros ou
revelar algo a eles. Foucault apenas apela em favor de uma certa cautela
e uma certa modéstia teórica autoconsciente.
compreender o seu pouco podç r de decisão uma vez que suas descobertas tivessem
sido assumidas pelo governo. E també m interessante observar que na última parte
de sua vida Oppenheimer tornou-se “ honesto” e foi incisivo em sua den ú ncia do
uso da bomba por parte do governo. Mas juntamente com sua honestidade veio
uma intensa perseguição política. Devemos extrair daí a lição de que a honestidade
entre intelectuais (especialmente entre os “ eficazes” ) é extremamente ameaçadora
para o poder hegemónico.
167
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168
da forma como participamos da fabricação da verdade. Foucault apre-
senta uma base para a harmonização da seguinte forma:
169
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Extensões e Implicações
170
coincide com o “ indivíduo” e que um par de discursos pode ser
incongruente entre si; a expectativa de consistê ncia é baseada, prima-
riamente, na ficção de um sujeito necessariamente e estreitamente
integrado. A operação de separar os bons dos maus tornou-se anacró-
nica; podemos certamente perder oportunidades cruciais se descarta-
mos de forma global o vilão que possamos escolher, seja lá qual for ele
— nazista, marxista ou democrata liberal.
Em segundo lugar, como sugerido acima, ao estender a vontade de
poder para outras esferas da vida, o “ ponto de partida ” e as particula-
ridades da posição-de-sujeito em questão afetarão diretamente o esque-
ma inteiro. Por exemplo, começar de uma posição- de -sujeito
relativamente sem-poder implica diferentes métodos de harmonização
e de atitude de alerta (de acordo com o telos ). Enquanto o intelectual,
em grande parte, “ se estreita ” , as posições-de-sujeito com menos poder
podem precisar se “ alargar ” ; assim, o n ível exigido de associação com
outros e o tipo de discurso enunciado variará de acordo com as
necessidades situacionais. Por exemplo, uma professora primária pode
exigir um sindicato para ser eficaz ou uma camponesa analfabeta pode
precisar enuncar uma retórica universalizante a fim de fortalecer ( em-
power ) sua posição-de-sujeito, como Paulo Freire argumentaria. Cru-
cialmente, entretanto, não existe nenhum local central ou privilegiado
para decidir estratégias específicas.
Em terceiro lugar, dada a ê nfase de Foucault na microf ísica do
poder e a natureza descentralizada das relações de poder, parece claro
que um aumento no poder qua “ dominação” (isto é, autoridade baseada
na coer ção ) não leva necessariamente a um aumento correspondente
em seu fortalecimento ( empowerment ). Na verdade, a dominação, na
maior parte dos casos, parece impedir esse fortalecimento. Por exem-
plo, o “ l íder ” nominal de um grande aparato de Estado deve depender
de uma rede quase infinitamente complexa de nós de poder na medida
em que não se pode dizer que esse líder tenha muito controle real
ao menos no sentido exigido pelo telos descrito acima. Isso não
—
significa, entretanto, que as políticas nunca sejam implementadas ou
que o governante de uma nação do Grupo dos Sete não “ tenha ” , num
importante sentido, poder. Apenas significa dizer que a forma como
uma escolha é feita e implementada freq íientemente tem pouco a ver
com “ escolha ” tal como usualmente a pensamos. Outra vez, é uma
questão de conhecer e controlar o que faz (causa) o que eles “ fazem ” .
Embora haja com freqiiê ncia “ intersecções” , o fortalecimento do poder,
no sentido de Foucault, pode muito bem, às vezes, funcionar ao longo
de linhas diferentes das linhas do poder pol ítico e econ ó mico.
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172
[
g
Thomas S. Popkewitz
História do Currículo,
Regulação Social e Poder
1 Esta discussão baseia -se em minha tentativa para desenvolver uma compreensão do
movimento de reforma da última década nos Estados Unidos, um trabalho no qual
busquei tornar as atuais categorias e distin ções da mudan ça curricular e escolar
sensíveis tanto às questões histó ricas quanto sociológicas ( Popkewitz, 1991). Na
redação desse argumento sobre a histó ria, sou grato a Barry Franklin, Tomas
Englund, Christina Florin, Jodi Hall, Ulla Johannson, Antonio Nóvoa, Miguel
Pereyra e ao Grupo das Quartas-Feiras da Universidade de Winsconsin-Madison
pelas conversas sobre as idéias deste ensaio.
2 Uso pronomes pessoais ao longo deste ensaio para reconhecer que o “ eu ” e o “ meu ”
desse discurso são tanto biográficos quanto históricos. E uma ironia e um paradoxo
com o qual convivemos. Escrevo, portanto, n ão apenas pessoalmente, mas també m
dentro de uma posição num campo social e de relações de poder que estão
continuamente inscritas através das prá ticas discursivas que falam no texto. Assim,
embora este ensaio seja um ato auto- reflexivo contra formas predominantes de
raciocínio nos discursos educacionais, ele també m corporifica as limitações desses
atos, na medida em que se constituem em atos marginais. Todos os discursos são
potencialmente perigosos, se n ão maus.
173
Minha preocupação com uma sociologia histórica é a de compreen-
der como os problemas atuais da escola, definidos pelo conceito de
reforma escolar, são constituídos da forma que são: Como viemos a
pensar sobre reforma da forma que pensamos ? Como é que viemos a
colocar os problemas referentes a conhecimento escolar, crianças,
ensino e avaliação da forma que fazemos ? Essas questões adquirem
interesse na sociologia do conhecimento curricular como uma proble-
mática central no estudo da escolarização. Elas transformam as catego-
rias, distin ções e diferenciações da escolarização em monumentos
histó ricos e sociais que podem ser interrogados como corporificando
padrões de poder e regulação.
Para superar o tom um tanto gené rico desses dois parágrafos,
tentarei descrever uma compreensão da história como uma atividade
que não consista simplesmente em construir interpretações a partir dos
dados examinados. Argumento que a história é uma atividade teórica
que constró i seu objeto de pesquisa através da forma pela qual faz
distinções e categoriza os fenômenos dos estudos histó ricos. Nosso
treinamento “ científico” freq íientemente faz com que deixemos de
compreender a forma como o raciocínio da ciência traz inscritos
princípios historicamente constru ídos de classificação e ordenaçã o.
Passo, então, ao estudo do curr ículo. Vejo o currículo como um
conhecimento particular, historicamente formado, sobre o modo como
as crian ças tornam o mundo inteligível. Como tal, esforços para orga -
nizar o conhecimento escolar como curr ículo constituem formas de
regulação social, produzidas através de estilos privilegiados de raciocí-
nio. Aquilo que está inscrito no currículo não é apenas informação
a organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir,
sentir , falar e “ ver ” o mundo e o “ eu” .
—
Exploro os efeitos do curr ículo através daquilo que chamo de
epistemologia social da escolarização ( Popkewitz, 1991). Uso o concei-
to de epistemologia para me referir à forma como o conhecimento, no
processo de escolarização, organiza as percepções, as formas de respon-
der ao mundo e as concepções de eu. O “ social” que qualifica “ episte -
mologia” enfatiza a implicação relacional e social do conhecimento, em
constraste com as preocupações filosóficas americanas com epistemo-
logia como a busca de asserções de conhecimento universais sobre a
natureza, as origens e os limites do conhecimento (veja Toulmin, 1972,
1988, para uma discussão de ciência que se relaciona com a minha
concepção de epistemologia). Meu conceito de epistemologia social está
relacionado à “ virada lingiiística ” que atinge atualmente as Humanida-
des e as Ciê ncias Sociais. Considero as questões do intelectual e do
poder nas seções finais.3 Ao longo de minha argumentação, utilizo os
3 Uso a noção de intelectual como uma categoria social que tem sido crescentemente
associada a questões de poder, estado e governo na modernidade. Veja, por ex.,
Ross, 1991; Giddens, 1987; Foucault, 1988; Bauman, 1987.
174
termos “ discurso” e “ prá ticas discursivas” como alternativas ao termo
“ epistemologia social” . Isso deve ser visto como um artif ício literá rio,
na medida em que minha preferê ncia pelo termo “ epistemologia social ”
tem a intenção de historicizar o processo de escolarização de uma forma
que a maior parte das teorias discursivas não o faz.
Discursivas
175
é poca, as pirâmides eram “ vistas” como blocos de pedra situados, sem
serem notados, num deserto (Block, 1963 ). Eram lugares pelos quais as
pessoas passavam e escreviam graffiti. As pirâ mides não se tornaram
“ fatos” da história até que os europeus começassam a questioná-las,
primeiramente como exemplares de uma civilização e, mais tarde, como
artefatos dos tú mulos daqueles que podiam se permitir tais funerais.6
As interpretações dos tú mulos egipcíos tornaram-se possíveis atra-
vés de uma visã o “ moderna ” particular ; o moderno refere-se aqui a uma
estruturação particular do conhecimento, associada com as transforma-
ções sociais dos ú ltimos cem anos.7 A “ visão ” moderna implica o
enquadramento dos artefatos do Egito como parte de sistemas abstratos
particulares de relações. Essas narrativas posicionavam as pirâ mides
numa história global na qual as particularidades do tempo e do espaço
egípcios eram situadas numa noção mais geral, evolutiva, de desenvol-
vimento sobre as sociedades ocidentais.
Colocar o Egito no interior de uma cosmologia de “ Civilização
Ocidental ” exigia uma estrutura de pensamento que desligasse o indi-
víduo e o lugar de ancoragens particulares no tempo/espaço. As expli-
cações histó ricas da arte tumular e da organização cultural expressavam
teorias impl ícitas sobre as diferenciações sociais e econ ómicas que
podiam ser transportadas às interpretações do passado. Os artefatos dos
tú mulos foram re-contextualizados e colocados no interior de sistemas
de tempo/espaço nos quais a histó ria egípcia era concebida como parte
de uma cronologia progressiva e de uma estrutura hierárquica de
desenvolvimento social. Através dessas construções históricas, os indi-
víduos das tumbas podiam ser “ vistos” como habitantes de sistemas de
relações sociais, tais como classe, desenvolvimento sócio-cultural e
olhares estéticos. Essas categorias eram invenções simbólicas constitu í-
das pelas interpretações do século XIX (Williams, 1981). As histórias
das pirâ mides eram vistas numa relação evolutiva com os distantes
lugares do Egito e da Gr écia, e depois de Roma e de uma Europa mais
ampla. A estruturação da razão histórica “ fez” as tumbas aparecerem
como o fluxo universal do desenvolvimento social e humano, ao invés
de como pedras e lugares para se escrever graffitis.
Relacionada com a construção da histó ria egípcia está a invenção
do “ fato” . O fato histórico não aparece até o século XIX, quando o
positivismo foi introduzido no estudo do passado (Topolski, 1976, p.
113; Stoianovich, 1976 ). Positivisticamente falando, os documentos e
6 Minha inten ção aqui não é colonizar a historiografia como uma invenção européia
mas focalizar uma forma particular de narrativa eurocè ntrica que inscreve os
artefatos egípcios numa cosmologia mais ampla de desenvolvimento.
7 As noções de moderno e modernidade referem -se a constelações particulares de
tecnologias, instituições e sistemas de idéias que são diferentes ae constelações
prévias. A noçã o de moderno, entretanto, é vista como um conceito sociológico em
vez de como uma noção evolutiva.
176
objetos contêm informações que servem como base para observações
similares aos dos “ fatos” das ciências naturais; quanto mais numerosas
as observações, mais confiável a pesquisa.
À medida que historicizamos a localização das pirâ mides egípcias
numa narrativa sobre o desenvolvimento, reconhecemos que as inter-
pretações histó ricas n ão se referem apenas a “ dados” positivisticamente
concebidos. As categorias e distinções que permitiram que as tumbas se
tornassem base para “ dados” histó ricos corporificam conjuntos profun-
dos e complexos de relações, o menos importante dos quais não é a
forma como a razão (e seu oposto, a não-razão) é constru ída. A razão
histórica corporifica um novo espaço epistemologico que vê o mundo
como estruturas organizadas que têm vínculos e funções m ú tuas numa
emergê ncia de sucessões. Para colocar isso em perspectiva, podemos
comparar as mudanças que ocorrem no raciocínio quando relacionamos
a noção de histó ria de Her ódoto como uma cró nica para descrever os
ciclos de Verdade que aparecem no passado, as pr áticas da Igreja nos
anais medievais que narram a cr ó nica da intervenção e providê ncia
divina e as formas contemporâ neas de ordenar o tempo e o espaço como
descrevendo seq üencialmente relações entre pessoas e eventos. No
raciocínio contempor â neo, a história não é mais uma compilação de
sucessões ou seq üê ncias fatuais, mas um modo de raciocínio que exige
evidê ncia empírica e reflexividade sobre a ordem na sociedade. Essas
mudanças no significado da histó ria são n ão uma progressão na com-
preensão humana, mas respostas construídas sobre princípios de classi-
ficação que são també m socialmente constru ídos.
O segundo exemplo ilustrativo da “ fabricação” de dados histó ricos
é dado por um exame dos lugares comuns da escolarização, isto é, da
criança concebida como um “ aprendiz ” .8 Embora seja freq üentemente
usada como uma categoria natural e descritiva da escolarização, a
categoria “ aprendiz” emergiu no final do século XIX como parte de um
sistema de idéias cujas conseq íiê ncias consistiram em revisar a forma
como se raciocinava sobre a escolarização e como se devia dar conta da
individualidade da pessoa. As categorias de estudante e aluno, por
exemplo, ainda n ão existiam no in ício do século XIX para se referir ao
processo de escolarização. A criança era chamada de “ escolar ” ( scholar ).
A invenção da categoria de estudante e, mais tarde, de “ aprendiz”
re-construiu a “ criança ” como um objeto de escrutínio por parte do
professor, uma noção diferente daquela do professor do in ício do século
XIX que via as crianças em relação à tarefa prof ética de “ professar ” a
f é cristã.
Fazer das crianças “ aprendizes” é introduzir uma concepção mo-
derna de inf â ncia. As categorias de aprendizagem “ transformam” a
177
criança moderna9 em algué m que dá atenção às coisas no mundo ao
invés de algué m que confia numa f é transcendental; e supõe-se que essa
aten ção seja mensurável de forma secular, científica. A crian ça é també m
vista por outros e compreende a si pró pria como uma pessoa racional,
“ solucionadora-de- problemas” e “ em desenvolvimento” .
A criança concebida como um aprendiz tornou-se tão natural no
final do século XX que é dif ícil pensar nas crianças como qualquer outra
coisa que não aprendizes. Contudo num sentido sociológico, a “ fabri-
cação” da criança-como-aprendiz envolveu transformações particulares
no raciocínio social que agora associamos com modernidade. O efeito
das transformações nas relações institucionais, nas tecnologias e siste-
mas de id é ias foi o de mudar a forma como a identidade devia ser
“ vista” , compreendida e como se devia agir sobre ela.
De forma mais geral, como Giddens (1987) tem argumentado, o
“ eu” moderno vive num campo social no qual as pr á ticas imediatas são
continuamente re- posicionadas em sistemas abstratos de idéias através
dos quais os indiv íduos interpretam e definem suas relações. A imedia-
tez das interações face-a-face das comunidades tradicionais foram
re-formuladas através de sistemas profissionalizados de conhecimento
l
que guiam os indiv í duos à medida que eles navegam pelas pr á ticas
cotidianas. A criança “ moderna” é um exemplo desta transformação; a
criança não está mais relacionada a concepções de tempo e espaço
restritas à pró pria comunidade. Uma crian ça pode agora ser vista em
relação a elementos universais, independentemente de seu local geográ-
fico.
Historicamente, o conceito de aprendiz constituiu um esquema de
racionalidade pelo qual as crianças deveriam ser medidas para avaliar
o desenvolvimento de personalidades e estágios de cognição. Podemos
fazer uma leitura da moderna teoria curricular como constituída de
tentativas sistemá ticas para re-ver as identidades das crian ças através da
mediação de sistemas abstratos de id éias, sem nenhuma ancoragem no
tempo e espaço concretos. A competê ncia e o rendimento pessoais
foram re-classificados. A criança pode agora ser classificada através de
estágios universais de desenvolvimento, de categorias psicol ógicas do
“ eu” e de medidas racionais de rendimento. As classificações são
178
intemporais e universais, sem nenhuma base aparente em qualquer
localidade particular ou relação concreta de tempo e espaço.
O sistema de expert da modernidade, de acordo com Giddens,
tornou-se a forma principal através da qual a confiança e a segurança
são mediadas na vida cotidiana. Entretanto, existe uma qualidade
recursiva naquelas formações: a moderna criança escolar é a pessoa que
aprende a ser um “ cidadão ” , que tem responsabilidades abstratas rela-
cionadas ao governo do Estado, que tem “ potencial ” como trabalhador,
que aprende habilidades e sensibilidades culturais para “ uso” futuro e
que é automonitorada em seu desenvolvimento afetivo e cognitivo.
Esses dois breves exemplos de ordenamento epistemologico inscri-
tos na história nos permitem reconhecer que as narrativas do passado
são mais que meramente interpretações de dados. Nossos princípios
para classificar o conhecimento escolar e “ raciocinar ” sobre ele corpo-
rificam pressupostos téoricos sobre como os objetos de estudo são
constituídos no tempo e no espaço, sendo exemplos disso a divindade
pré-moderna ou os fatos modernos. Anteriormente a qualquer investi-
gação empírica, existem estratégias para organizar questões, definir os *
fen ômenos de estudo e moldar e modelar a forma como os dados
empíricos são administrados e ordenados como objetos de investigação
— todas os quais moldam e modelam aquilo para o qual se deve olhar
e a forma como aquele olhar deve conceber as “ coisas” no mundo.
O exemplo da história egípcia, inscrita numa cosmologia de narra-
tivas européias sobre o desenvolvimento, e o da “ história ” discursiva
do aprendiz são ambos ilustrativos da problemática da construção das
narrativas históricas que quero discutir neste ensaio. Os exemplos nos
permitem considerar esquematicamente duas formas de raciocínio so-
bre o conhecimento histórico que competem na pesquisa contemporâ-
nea.10 Uma forma de raciocínio consiste em considerar a maneira como
as pessoas e os eventos mudam ao longo do tempo, focalizando a
linguagem como expressiva e descritiva da direção e propósitos da
mudança social. Boa parte da história intelectual dos Estados Unidos
está construída dessa maneira: exemplos disso sã o a biografia de John
Dewey ou a de Edward Thorndike, nas quais as idéias são descritas para
explicar mudanças na forma como atores perceberam eventos ou como
os eventos moldaram o que os atores percebiam (Karier, 1986; Jonich,
10 Esta competição envolve muitas nuances e distinções que estão alé m do escopo deste
ensaio. Também reconheço as limitações do estabelecimento de dicotomias para
fazer comparações, mas o raço por causa das limitações de espaço que exigem certas
justaposições de argumentos sobre narrativas históricas. Na discussão que se segue,
centro-me na relação entre a filosofia da consciência e a “ virada lingüistica ” para
localizar, tão bem quanto possível, o argumento no contexto daquilo aue considero
serem as questões intelectuais mais substantivas sobre conhecimento disciplinar em
vez de examinar as diferenças particulares no interior de “ paradigmas” . Minhas
citações ao longo do texto fornecem ao leitor “ fontes” através das quais ele pode
expíorar mais os argumentos feitos aqui.
179
»?
11 Para uma discussão mais geral das diferentes tradições históricas, veja Popkewitz,
1986.
12 A palavra agency (traduzida aqui por agê ncia) é usada na literatura sociológica
anglo-saxônica para salientar o elemento ativo da ação humana.(Nota do Tradutor ).
180
bido ou como o resultado racional da razão e do pensamento humanos,
aplicados a condições sociais (epistemologia kantiana ou lockeana) ou
como a identificação de contradições das quais uma nova síntese pode
ser organizada (epistemologia hegeliana ou marxista).
A histó ria assume uma posição particular nas cosmologias do
progresso. A história escrita de acordo com a filosofia da consciência
narra o passado de forma que o presente pode ser compreendido e o
futuro re-ordenado e controlado. Os atores são privilegiados como os
agentes causais na interpretação da mudança social.
O privilégio epistemologico (centramento) dos atores faz parte da
doxa nas ciências sociais e na história norte-americanas. Ele é parte da
tradição social melhorista das ciências sociais. A narrativa da tradição
social melhorista prenuncia a evolução de instituições sociais (tal como
a escola) como o movimento do mal para o bem, ou como a possibili-
dade daquele bem. Desde o final do século XIX, por exemplo, as
histórias criaram narrativas dos Estados Unidos como sendo o Novo
Mundo, como uma fronteira (tanto espiritual quanto material), e uma
representação de uma sociedade excepcional na qual um mundo mile-
narista seria encontrado. A histó ria da educação tem sido escrita como
a histó ria da evolução de escolas progressivas (Cremin, 1962) e como
biografia de pesquisadores educacionais (Joncich, 1968 ). Ou tem sido
escrita em termos de inclusão: a histó ria da educação das mulheres narra
a história de uma crescente alfabetização das mulheres, do século XVII
ao XIX (p.ex., Sklar, 1992).
A filosofia da consciência também está presente nos estudos cr íticos
da educação. Os estudos cr íticos contam as lutas pelo controle da escola
e suas possibilidades progressivas eventuais, descrevendo esforços como
os dos diferentes grupos que lutam para falar de forma legítima sobre
o que deve ser aprendido nas escolas (p. ex., Noble, 1992; Reese, 1986 ).
O desvelamento das contradições traz o progresso ao mundo, embora
aquele progresso tenha interesses diferentes daqueles das reivindicações
sociais melhorativas. O progresso está relacionado a uma tendência
hegeliana a localizar contradições a partir das quais uma nova síntese
pode ser identificada. Essa síntese está relacionada a uma visão milena-
rista que vê a substituição final de configurações históricas anteriores e
presentes ( p. ex., Manuel 8c Manuel, 1979 ). Na atual terminologia,
expressões como “ fortalecimento do poder ” (empowerment ), “ agê ncia”
e “ resistê ncia” significam uma visão da histó ria que coloca o poder nas
ações das pessoas, na medida em que elas lutam para mudar seu mundo
para melhor.
O pressuposto fundacional da filosofia da consciência é que a
mudança progressiva através da ação significativa não pode ocorrer sem
que primeiramente os atores e os eventos sejam identificados. As
intepretações dos atores e eventos fornecem um mecanismo “ condutor ”
que guia e dirige as ações das pessoas à medida que elas se esfor çam
181
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r i
^
para ser mais eficientes, mais eficazes ou, nas tradições críticas, mais
resistentes à opressão.
Antes de questionar essa suposição sobre mudança, precisamos
Kr
historicizar 13 os pressupostos da filosofia da consciê ncia que centram a
investigação nos atores, nos eventos e na mudança. Historicamente, o
foco nos atores está relacionado, em parte, à emergência do positivismo
que surgiu no contexto do historicismo alemão do século XIX. O
historicismo permitiu que a concepção idealista germâ nica recuperasse
a legitimidade através de uma máscara de ciê ncia. Seu positivismo
consistia em conceder aos “ fatos” do passado uma localização específi-
ca, concreta, num tempo e num espaço regulares.14
O principal objetivo do historicismo foi o de objetivar toda vida
social; a realidade era explicada tal “ como realmente aconteceu ” ,
através da ordenação de eventos ou dos pensamentos singulares dos
indivíduos. Os eventos e atores eram reunidos através de uma ordena-
ção cronológica das pr áticas concretas no tempo. Tendo os fatos como
a força orientadora, o historiador devia interferir tão pouco quanto
possível ao escrever os “ fatos” da histó ria. Mas para ganhar mais clareza
no estabelecimento dos fatos, assumia-se uma noção está tica de questões
sociais, a qual limitava a compreensão das categorias de mudança e
desenvolvimento.15
Explorar a evolução da intenção e do propósito humanos envolvia
um método que tornaria todos os acontecimentos humanos sujeitos a
um escrutínio sistemá tico, que iluminaria todas as formas concretas de
vida. As estratégias metodol ógicas do historicismo privilegiavam o lugar
f ísico no qual uma ação ocorria como o centro das narrativas históricas.
Cada evento pertencia a um contexto preciso e ú nico. As realidades
sociais eram determinadas através da reunião de eventos ú nicos num
padrão em desdobramento. O tempo e o espaço eram percebidos como
contendo uma concretude particular, obtida através de um ordenação
racional dos eventos e dos pensamentos das pessoas.
Embora a tradição historicista nos Estados Unidos tenda a n ão ser
teórica, ela tem uma teoria implícita. A narrativa do historiador que
escreve na tradição da filosofia da consciê ncia implica uma habilidosa
13 Historicizar, no meu uso deste termo, significa colocar o conhecimento e as prá ticas
sociais no contexto das lutas para classificar, ordenar e definir os objetos do mundo.
Em contraste, o historicismo, uma visão da histó ria que domina os estudos histó ricos
nos Estados Unidos e está suposto nos estudos etnográficos, focaliza o ator e os
eventos no mundo como a causa última de mudança social.
14 Agradeço ao Professor Miguel Pereyra, da Universidade de Granada, Espanha, por
ter chamado minha aten ção sobre isso.
15 E interessante observar que o positivismo tornou -se uma força dominante nos
estudos histó rico , anteriormente ao desenvolvimento das Ciê ncias Sociais tal como
^
a conhecemos. E també m irónico observar que boa parte das ciências críticas,
embora rejeitem o desinteresse da ciê ncia, manté m as tradições historicistas dos fatos
e textos.
182
re-organização, para mostrar como os eventos apresentam uma certa
coerê ncia e como o propósito humano atua. As interpretações mantêm
um compromisso com as realidades de movimentos específicos, concre-
tos, de eventos através do tempo, combinando a teleologia da filosofia
da consciência com os pressupostos metaf ísicos do positivismo. A
A tradição histórica de que falo neste ensaio, em contraste, é uma
tradição que focaliza a forma como as idéias estão corporificadas na
organização do conhecimento escolar. Este estudo da história tem sido,
de forma variada, chamado de semâ ntico, genealógico, conceituai ou
de epistemologia social.16 Embora o resto do ensaio discuta os pressu-
postos e prioridades desta história, podemos aqui, de forma breve,
caracterizá-la como buscando uma “ virada lingiiística ” que se centre nos
padrões discursivos através dos quais o processo de escolarização é
constituído. Se pensamos sobre a sexualidade, por exemplo, podemos
compreender que seus significados estão entrelaçados com sistemas
culturais: argumentar que as divisões masculino vs. feminino são geni-
tais e devidas aos cromossomos ou aos hormônios deixa de ver que essas
características são discursivamente selecionadas de uma forma que liga
fronteiras sexuais com questões de reprodução, uma estratégia que
historicamente serviu para conservar as mulheres em seu lugar “ apro-
priado” (Sampson, 1993). A diferença entre a virada lingiiística e o
historicismo, como diz Canning (1994), é uma diferença entre estudar
a negritude em vez do negros; a feminidade em vez das mulheres e a
homossexualidade em vez dos homossexuais.
Dessa perspectiva, podemos explorar o processo de escolarização
através dos sistemas de idéias e das formas institucionais que permitem
que seus objetos sejam compreendidos e pensados e que se aja sobre
eles. As formas de raciocínio sobre a escola são sistemas de inclusão e
exclusão na medida em que categorias, diferenciações e distinções
particulares são aplicadas às rotinas e ações do processo de escolariza-
ção.
Mas a historicização da escolarização não é constituída apenas de
regras e padrões de cognição; é constituída també m de relações de
poder entranhadas na seleção, organização e avaliação do conhecimen-
to escolar. Isto ocorre através da forma pela qual os sistemas de id éias
constroem, moldam e coordenam as ações sociais através de relações e
de princípios ordenadores estabelecidos nos processos de categoriza-
ção. Canning (1994) argumenta, por exemplo, que é central à “ virada
lingiiística” um escrutínio e um re-exame da linguagem não apenas
como descrevendo e interpretando o mundo mas como constituindo
práticas e identidades sociais. A ordenação, o disciplinamento e a
16 Poderíamos perguntar por que usar “ epistemologia social” em vez de outros termos
para descrever a tradição historicista sob discussão. Meu motivo é relativamente
simples: é o posicionamento semâ ntico da relação entre o social e o epistemologico
que quero enfatizar através da discussão do conhecimento e do poder.
183
r
— —
Na tradição que estou descrevendo aqui de uma epistemologia
social histórica existe uma “ virada linguistica” , na qual o pressuposto
do texto (que privilegia seus atores e eventos) como o centro da análise
é rompido. A atençã o é dirigida para padr ões de pensamento e razão,
vistos como práticas sociais que constroem os objetos do mundo e não
“ meramente” representam aqueles objetos. Os estudos históricos devem
compreender que as categorias, distinções e diferenciações empregadas
definem o importante, o “ real ” e o ator. Minha discussão anterior sobre
as mudan ças históricas de um professor que “ vê” o ensino como
.
»> . internalizando a sinceridade cristã, para o professor que vê a criança
como “ aprendiz ” é um exemplo desse foco epistemologico. Os diferen -
tes sistemas de idéias podem ser vistos como “ colocando” a criança em
diferentes espaços epistemológicos que definem como a competência,
o rendimento e a salvação devem ser comprendidos e como se deve agir
sobre eles. Uma epistemologia social explora os diferentes princípios
de classificação da “ criança ” presentes, não apenas num texto, mas num
amálgama de condições sociais nas quais as classificações são legitima-
das (ver, p. ex., Crary, 1990).
Neste ponto, volto brevemente para o argumento da filosofia da
consciê ncia. Naquele argumento o ator faz a história; e não ter nenhum
agente significa introduzir um mundo determinista que não tem nenhu-
ma possibilidade de mudança. Meu argumento é que problematizar o
que tomamos como dado — nossas formas de raciocínio e princípios
—
de ordenação é uma estratégia para desestabilizar as formas reinantes
de “ raciocínio” . Isto introduz um paradoxo aparente à medida que
afastamos questões de agê ncia e atores do centro da análise. Ao se
desestabilizar as condições que confinam e prendem a consciência e seus
princípios de ordem, criando, assim, uma gama mais ampla de possibi-
lidades para a ação, o ator é, paradoxalmente, reintroduzido. Tornar
as formas de raciocínio e as regras para “ dizer a verdade” potencialmen-
184
te contingentes, históricas e suscetíveis à crítica é uma prá tica que
desaloja princípios ordenadores. Voltarei a essas questões após uma
discussão das rela ções entre curr ículo e poder.
—
do Iluminismo que coloca um alto valor na iniciativa individual e na
intenção humana na direção da vida social. Minha preocupação com
regulação, entretanto, não deve ser lida como uma desconsideração
dessas sensibilidades iluministas. A razão e a racionalidade são centrais
aos esfor ços sociais para melhorar nossas condições humanas. Minha
preocupação com a regulação tampouco imputa o mal ao processo de
controle ou sugere algum bem transcendente através de sua erradicação.
Minha estratégia de investigação consiste em tornar a razão e a racio-
nalidade objetos de questionamento; isto é, consiste em explorar os
sistemas particulares de idéias e regras de raciocínio que estão entra-
nhados nas prá ticas da escola. Não podemos tomar a razão e a raciona-
lidade como um sistema unificado e universal pelo qual podemos falar
sobre o que é verdadeiro e falso, mas como sistemas historicamente
contingentes de relações cujos efeitos produzem poder.
À luz dessas preocupações, pergunto como podemos desenvolver
uma história do curr ículo que privilegie o conhecimento como um
problema de regulação social. Ao mesmo tempo, minha estratégia tem
outros dois focos: construir uma investigação histó rica do currículo que
não esteja amarrada ao positivismo e à filosofia da consciê ncia; e
assumir uma posição auto-reflexiva com respeito à relação entre o
trabalho intelectual e os movimentos sociais, uma posi ção que não
privilegie o intelectual (através de sua epistemologia ) como o portador
185
r
1
do progresso, uma questão discutida mais pienamente ao final do
ensaio.
186
existente e um apelo em favor da reforma da ordem social, da qual
Lutero tornou-se o porta-voz (Luke, 1989, p. 97).
A inf â ncia e o alfabetismo tornaram-se institucionalizados como uma
estratégia para confrontar a desordem social com padr ões de valores
religiosos, sociais e morais. Os jesu ítas do século XVI reconheceram as
qualidades disciplinadoras da pedagogia como parte da Contra-Refor-
ma (Durkheim, 1977). Eles desenvolveram práticas de sala de aula que
reinterpretavam a literatura humanista e secular da Contra- Reforma
para afirmar os valores da Igreja Católica. Sua estratégia consistia em
1er os textos fora de seus contextos históricos de forma a inserir os
preceitos morais católicos na literatura pagã. Esperava-se que as escolas
promovessem a verdadeira f é, o serviço ao Estado e o funcionamento
apropriado da família.
Podemos compreender a escolarização p ú blica do final do século
XIX e in ício do século XX como uma continuação do projeto de
disciplinação e regulação da Reforma, mas també m como uma ruptura
nos sistemas de conhecimento pelos quais os indivíduos deviam se
tornar membros produtivos da sociedade. A escolarização de massas,
uma das principais reformas desse per íodo nos Estados Unidos, encap-
sulava princípios morais que se juntavam às emergentes tarefas associa-
das com o moderno Estado de bem-estar e uma religião universalizada, .flj
'
187
padrões administrativos encontrados na sociedade mais ampla. Em
múltiplas arenas sociais, ocorrem estratégias de intervenção e reformas
estatais, à medida que aparecem novas instituições de saú de, trabalho,
educação e novas estruturas mentais, juntamente com a emergê ncia dos
novos objetivos de bem-estar social do Estado.22
As Ciê ncias Sociais representaram prá ticas importantes na constru-
ção da arte de governar. A ciê ncia era vista como parte da herança
iluminista pela qual a sociedade podia progredir. O movimento das
racionalidades da ciência em direção às arenas sociais foi uma impor -
tante inven ção do século XIX. A ciê ncia descrevia, explicava e dava
unia direçã o para resolver os “ problemas sociais” . Mas os sistemas
teóricos nas Ci ê ncias Sociais n ão eram “ meramente” id éias para pensar
sobre como interpretrar a vida social ; eles emergiram de contextos
específicos, à medida que os conceitos foram recursivamente trazidos
para as prá ticas sociais, ao mesmo tempo que as expressavam.
Podemos descrever pelo menos três dimensões através das quais as
—
Ciê ncias Sociais incorporaram a arte de governar a governamentali-
dade mencionada por Foucault. Em primeiro lugar, em certos casos,
podemos identificar como conceitos morais e pol íticos foram trazidos
para as Ciê ncias Sociais e re-classificados como científicos através das
regras de expressão disciplinar, tais como os conceitos estatais de
pobreza e raça, nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.
Ao mesmo tempo, podemos també m localizar como conceitos particu-
lares que emergiram nas Ciê ncias Sociais tornaram-se parte do senso
comum, tais como o conceito de “ classe” de Marx, o conceito de
“ burocracia ” de Weber ou de “ ego” de Freud.
Em segundo lugar, sistemas de idé ias tê m qualidades de des-aloja-
mento/ re-alojamento. Podemos pensar na pesquisa, por exemplo, como
não apenas descrevendo o mundo, mas como re-localizando eventos
particulares da vida social em sistemas mais gerais de relações, através
das formas pelas quais os problemas de pesquisa são definidos e as
categorias selecionadas (Bledstein, 1976; Popkewitz, 1991; Wallens-
tein, 1984, 1990 ). (Algumas vezes esquecemos que os conceitos e
teorias de pesquisa são freq úentemente estratégias para ordenar e
interpretar racionalmente a vida cotidiana de uma forma que é diferente
do senso comum ). Quando falamos sobre nós mesmos como “ afetivos”
ou “ analíticos” , de nossas escolas como “ democráticas” ou “ burocráti-
cas” , ou de “ capital humano” , nós, recursivamente, localizamos nossas
relações pessoais no interior de sistemas abstratos e de espaços sociais
generalizados, tais como o de “ cidad ão ” de uma democracia pol ítica,
22 Essas aparê ncias de instituição são uma conjuntura histó rica e não o resultado de
um grande plano. Trata -se da reunião de múltiplos desenvolvimentos em m últiplas
arenas da vida social, que formam o que mais tarde chamarei de ruptura ou quebra.
188
de consumidor no interior das relações económicas do capitalismo, ou
de normas sociais/culturais de afeição relacionadas a gê nero.
Em terceiro lugar, as pr á ticas de governo tê m formas corporificadas
particulares pelas quais as práticas estatais e a consciê ncia individual se
relacionam. Aqui, a invenção da estatística (um termo francês para a
aritmé tica estatal ) fornece um exemplo do duplo movimento de racio-
cínio inscrito nas questões sociais. A estatística era uma estratégia de
Estado do século XIX. Aplicando um cá lculo de probabilidade, as
reformas do Estado e a política de saúde e riqueza construíram agrupa-
mentos e interesses sociais tendo como referê ncia agregados estatísticos
de populações. O raciocínio populacional dividiu as pessoas em unida-
des específicas que podiam ser calculadas, organizadas e pensadas
através da administração do Estado, tal como o controle de epidemias
e do crime ( Hacking, 1991).23
O raciocínio populacional como pensamento social produziu novas
formas de individualidade, uma individualidade na qual a pessoa é
definida normativamente em relação a agregados estatísticos que atri-
buíam à pessoa um “ crescimento” ou “ desenvolvimento” a ser monito-
rado e supervisionado. Esse raciocínio, entretanto, não é apenas o da
ciê ncia e administração do Estado. Ele se tornou parte dos sistemas de
senso comum de classificação sobre a aprendizagem infantil, o rendi-
mento escolar e os atributos sociais/ psicológicos que são considerados
causais em relação ao fracasso escolar.
Minha estratégia para relacionar a pedagogia, as práticas do Estado,
as Ciências Sociais e o raciocínio populacional à produção de padr ões
regulató rios tem um duplo objetivo. Em primeiro lugar, quero localizar
a escolarização como um projeto que ocorre com o surgimento do
moderno Estado de bem-estar no século XIX e com as correspondentes
questões das artes de governar. Neste sentido, as racionalidades da
ciê ncia eram parte de uma modernidade pressuposta no Iluminismo e,
como tal, quando inscrita na pedagogia, estava implicada nos sistemas
de regulação.
Em segundo lugar, os projetos de reforma educacional que inclu íam
“ teorias” de curr ículo, na virada do século, incorporavam sistemas de
ci ê ncia como tecnologias que governam a forma como as crianças
devem compreender quem elas são e o que elas são na sociedade.
Embora os l íderes dos movimentos escolares tivessem diferentes visões
23 Houve alguma discussão, no in ício das Ciê ncias Sociais, sobre a forma como
raciocinar sobre o mundo, na qual o raciocínio estatístico era apenas uma parte.
Também o raciocínio estatístico inicial sobre problemas sociais envolvia discussões
etnográficas assim como agrupamentos de pessoas de acordo com o pensamento
populacional. O que é importante, para mim, é que o pensamento populacional é
muito mais uma parte das atuais definições de problemas sociais. Na pesquisa que
estou realizando sobre a formação do professor urbano e rural, os professores
continuamente classificam os problemas das escolas e do ensino através de um
raciocínio populacional.
189
- ' TS>~
1
da ciê ncia, todos pensavam que a forma científica de organizar as
atividades escolares e o desenvolvimento moral das crianças era pro-
gressiva. As mudanças curriculares que Kliebard (1987) tão habilmente
explora eram parte de uma visão/re-visão do compromisso social e do
servi ço e f é individuais. Apesar de sua diversidade, pensadores como
John Dewey, G. Stanley Hall e David Snedden tinham em comum a
tentativa para trazer o conhecimento profissional, científico, para a
escola, como uma forma de regular o pensamento e o desenvolvimento
social e f ísico das crianças e as visões de competê ncia dos professores.24
Os diferentes sistemas de idé ias do per íodo constitu íram uma
re-visã o da imagem pastoral da pessoa em relação com uma noção
moderna, científica, do cidadão “ racional” . Assim, em um certo nível,
as questões centrais sobre escolarização eram questões sobre como a
instruçã o podia construir um “ novo” indivíduo: Deveria a escolarização
consistir em treinamento do caráter ? Deveria o currículo consistir em
produzir um cidadão e um trabalhador mais eficientes? Ou em permitir
que as crianças se desenvolvessem mais eficazmente ? Ou deveria a
escola reconstruir a sociedade, ao capacitar os estudantes para desen -
volver uma compreensão mais crítica das instituições e das questões
sociais?
Num nível diferente, as diferentes teorias de currículo que compe-
tiam na arena das escolas norte-americanas na virada do século XX
estavam lutando em relaçã o à forma como os indiv íduos deviam regular
a si pr ó prios (“ vir a compreender ” e “ participar inteligentemente” ) no
interior de novos conjuntos de relações e instituições que inclu íam o
Estado, as burocracias, o comé rcio e as relações de trabalho. As questões
do “ desenvolvimento infantil ” ou de eficiê ncia social não se referiam
apenas a qual conhecimento ensinar; elas eram també m regulatórias.
Para voltar a uma discussão anterior, a escola moderna e seu
curr ículo constitu íram uma ruptura nos sistemas de conhecimento
através dos quais os indiv íduos deviam regular e disciplinar seus “ eus” .
A escolarização corporificava estilos cognitivos “ modernos” particula-
res, pelos quais os indivíduos davam sentido a seus mundos sociais e
agiam sobre ele ( Berger et al., 1973; Foucault, 1973 ).25 Enquanto o
24 É importante observar que a maior parte dos discursos sobre a escola e o currículo
são pragmáticos, embora haja uma diferen ça entre o pragmatismo instrumental da
psicologia behaviorista e os escritos de Dewey.
25 Este “ eu ” moderno tem sido descrito como fragmentado, taxonô mico e sem história,
exceto aquela que celebra o presente como progresso (veja, por ex., Berger, Berger
e Kellner, 1973). A identidade tornou-se multifacetada, mas relacionada a atributos
abstratos, a partir dos quais elementos específicos podem ser cultivados através da
administração apropriada dos ambientes atuais. O tempo foi redefinido como
segmentos universais, racionais que n ão estavam mais entranhados em lugares
particulares. As tabelas de horá rio do trem corporificavam a nova consciência:
esvaziamento do tempo e do espaço nos quais as pessoas deviam localizar a si
próprias. As dimensões da consciência poaem ser entendidas como imersas no
seq üenciamento e na hierarquia de um plano de lição escolar que impõe um espaço
190
f
mundo anterior buscava sua verdade na divina provid ê ncia, o conheci-
mento pedagógico mais moderno do indivíduo tomou certas visões
religiosas sobre salvação e as combinou com disposições científicas
sobre a forma como a verdade e o autogoverno deviam ser buscados. A
instrução foi organizada cientificamente para focalizar os processos
sociais/ psicol ógicos pelos quais os indivíduos adquirem disposições,
sensibilidades e consciências, assim como a aprendizagem de “ informa-
ção” . As novas psicologias de solução-de-problemas, medição e desen-
volvimento infantil, por exemplo, n ã o apenas corporificavam
distinções e diferenciações que deviam regular a forma como a infor-
mação sobre a escolarização e os problemas deviam ser descritos, mas
os sistemas discursivos eram també m internalizados como categorias de
competê ncia e realização pessoal. A linguagem da crian ça como “ apren -
diz” colocava f é no indivíduo racional como o locus da mudança
(Meyer, 1986).
Para onde vamos, a partir daqui ? Como a histó ria entra na equação
daquilo que estudamos como práticas e reformas escolares ? Neste
ponto, minha resposta pode parecer ó bvia. Aquilo que é constituído
como ensino, aprendizagem e avaliação escolar não está meramente “ lá”
ou é meramente negociado por aqueles que trabalham nas escolas. Os
diferentes focos curriculares inscreveram profundas mudanças nas for-
mas de pensamento e raciocínio sobre a comunidade e o eu. A histori-
ciza çã o dos meios pelos quais os objetos da escola ( ensino,
aprendizagem, administração, curr ículo) tê m sido constituídos e trans-
formados ao longo do tempo é importante não apenas para uma
compreensão do passado, mas tem també m importantes conseqiiê ncias
para as discussões contemporâneas da reforma escolar. Os padrões
discursivos da escolarização contempor ânea corporificam sistemas de
regulação e poder, através de regras de expressão e diferenciação. Essas
regras de representaçã o não podem ser pressupostas; elas tê m que ser
historicizadas.
191
r
26 Penso que é ^importante observar que muitos países europeus não têm a palavra
.
“ currículo” E uma palavra que surgiu no contexto de tradições estatais particulares,
nas quais os padrões de governo envolvem fortes relações entre as agências
governamentais oficiais e as associações profissionais de uma sociedade civil, tais
como a Grã -Bretanha e os Estados Unidos.
192
masculinas ou femininas ou como se deve agir e sentir na cozinha, no
locai de trabalho, numa classe de Matemática), e à medida que corpo-
rificam movimentos que caracterizam nosso andar, nossa fala e nossas
interações com outras pessoas. (A história da sexualidade talvez seja a
que melhor ilustra como a organização da linguagem estrutura, assim
como disciplina, o pensamento e as prá ticas corporais).
Se podemos jogar com uma palavra que é um dos lugares comuns
do processo de escolarização, o “ rendimento escolar ” é a produção de
uma determinada maneira e de maneiras, à medida que aprendemos a
nos situar no mundo. O rendimento escolar apenas parcialmente
consiste naquilo que é formalmente testado. Os discursos da pedagogia,
seguindo Luke (1990), em seus estudos da sala de aula, “ atuam não
como um conjunto abstrato de id é ias a serem transpostas para dentro
da mente/consciê ncia ” , mas como uma sé rie material de processos que
inscrevem atributos de subjetividade no corpo social (p. 5). Modelos de
alfabetização no processo de escolarização exibem “ posturas particula-
res (formas corretas de manter o corpo durante a leitura ), silê ncios,
gestos e sinais de demonstração de ‘estar presente na aula’ que codificam
formas particulares de agir, ver, falar e sentir do estudante” (p. 18).
Em vista do anterior, podemos ver os sistemas de idéias inscritos
na escolarização como tecnologias sociais. Por tecnologia social enten -
do um conjunto de métodos e estratégias que guiam e legitimam o que
é razoável/não razoá vel como pensamento, ação e auto-reflexão. As
prá ticas da escolarização ordenam quais objetos do mundo são coloca-
dos juntos e quais são diferenciados, e, ao mesmo tempo, tornam certas ü
“ coisas” dif íceis de serem referidas ou, algumas vezes, impossíves de
serem pensadas. Podemos compreender o racioc ínio populacional e as
psicologias escolares, por exemplo, como esquemas que funcionam
como tecnologias sociais. Eles formam os objetos que o professor
categoriza, interpreta e sobre os quais age. A organização do ensino
através do planejamento, seguindo uma hierarquia de objetivos, e a
administração de testes de rendimento para avaliar o sucesso/fracasso
escolar são outros exemplos de tecnologias sociais.
A organização do currículo contemporâ neo, desde o fim do século
XIX, por exemplo, tem produzido certas tecnologias sociais através de
seus princípios ordenadores de conhecimento. Boa parte da sociologia
do per íodo mantinha conceitos de controle social que explicitamente
reconheciam a relação entre padrões institucionais e o desenvolvimento
individual ( Franklin, 1986; Ross, 1991). A Psicologia foi a primeira
disciplina a ser formada na universidade, quando substituiu a filosofia
moral na definição de princípios para julgar e organizar a ação humana
(O’ Donnell, 1985 ). Com a introdução da Psicologia na escolarização
de massas adveio uma reestruturação da forma como os indivíduos
deviam ser vistos, definidos e avaliados. As Psicologias forneceram
tecnologias para organizar os métodos didáticos, os materiais instrucio-
193
nais e a organização do tempo das maté rias escolares ao redor dos quais
as crianças deviam “ aprender” (Gordon, 1987; Popkewitz, 1987).
As tecnologias de sala de aula não emergiram como uma conclusão
—
necessá ria, mas de lutas em m últiplas arenas de escolarização amal-
gamando práticas na formação de professores, currículo, organização
escolar, assim como práticas discursivas produzidas nas ciê ncias acadê-
micas relacionadas ao ensino e à administração escolar (Popkewitz,
1991). A conjunção desses diferentes padrões constituiu parte das
práticas regulató rias que guiaram e avaliaram os comportamentos de
professores e crianças.
Para sintetizar o que disse até aqui, o currículo é uma coleção de
sistemas de pensamento que incorporam regras e padrões através dos
quais a razão e a individualidade são constru ídas. As regras e padrões
produzem tecnologias sociais cujas conseqiiê ncias são regulatórias. A
regulação envolve não apenas aquilo que é cognitivamente compreen-
dido, mas também como a cognição produz sensibilidades, disposições
e consciê ncia no mundo social. Interpretar o presente
mudanças no processo contemporâ neo de escolarização
—— considerar
exige um
exame das continuidades e rupturas nos princípios classificatórios do
conhecimento corporificado na reforma educacional.
194
consiste em descartar o sujeito ou a ação dirigida pela intenção humana,
mas em mudar a maneira pela qual o sujeito é trazido para a história.27
195
estejamos falando, mas a linguagem que nos foi dada através de
formações sociais que ocorreram no passado. Por exemplo, um dos
compromissos contemporâ neos em determinadas pesquisas educacio-
nais é falar sobre a “ voz” dos professores e estudantes como próprias,
pessoais e autênticas. Mas quando ouvimos a voz das pessoas falando
nas escolas, damo-nos conta de que boa parte dessa fala foi construída
anteriormente à nossa entrada em cena. Examinando as transcrições das
falas de professores e professoras em áreas urbanas e rurais (Popkewitz,
no prelo), descobri que eles/elas falam sobre administração e aprendi-
zagem sob formas que expressam relações particulares sobre adminis-
tração escolar que não são “ naturais” para eles/elas; em vez disso, a
linguagem advém de estilos de raciocínio historicamente formados. Os
professores e professoras usam um raciocínio populacional particular
para classificar as crianças não-brancas e pobres como tendo atributos
particulares que precisam ser remediados: crianças que são “ depen-
dentes” , que aprendem apenas “ fazendo” , crianças cujos pais estão
recebendo seguro-desemprego ou cuja mãe é “ mãe solteira” . Como
discuti anteriormente, esse raciocínio populacional é um padrão histo-
ricamente incorporado de raciocínio que disciplina as possibilidades
que os professores “ vêem” e sobre as quais agem. Os professores
“ aprendem” a linguagem do raciocínio populacional no processo de
socialização ocupacional.
Podemos nos voltar também para recentes estudos de retórica e
ciência para examinar a forma como a linguagem que falamos pode não
ser a nossa própria linguagem. Escrever num estilo acadêmico está
freq üentemente associado com a prática de se colocar uma série de
referências ao final de uma sentença, tal como está prescrito no manual
de estilo da Associação Americana de Psicologia. Fazer referências dessa
maneira significa adotar uma estratégia sobre conhecimento desenvol-
vida na psicologia comportamentista nos anos 20. Essa estratégia fazia
parte das práticas de legitimação do behaviorismo, as quais consistiam
em inscrever na ciê ncia a suposição de que o conhecimento científico
é cumulativo e seqüencial (Braverman, 1974).
Quando questionamos historicamente esses atos de escrita e fala,
não achamos nada “ natural” falar da escola como processo de geren -
ciamento, ou colocar citações no final de sentenças para elaborar um
argumento acad ê mico. As diferentes práticas são elas pr óprias estraté-
gias que exigem uma investigação histórica para se determinar como
formas de falar fazem parte de um conjunto de práticas simbólicas e
não-simbólicas e de tecnologias e instituições.
Fazer da estrutura lingiiística da história um problema central
envolve um descentramento do sujeito, um adeus ao sujeito centrado
que se encontra na filosofia da consciê ncia. A remoção do sujeito
significa compreender como, em diferentes é pocas históricas, as pessoas
são transformadas em sujeitos através do tecimento de diferentes prá -
196
i
ticas sociais e padrões institucionais. Por exemplo, Riley (1990) explo-
rou a forma como o conceito de “ mulher ” transformou-se, ao longo
dos últimos cem anos, da sua colocação em espaços religiosos como
uma “ alma” dominada pela Igreja, para espaços sociais, uma mudança
que implica uma re-visão das mulheres, através de seus corpos e sua
sexualidade. Historicizar significa tomar aquilo que é visto como
não-problemático — —
as mulheres como objetos a serem observados,
examinados e praticados e colocar a constituição do sujeito no centro
da análise, isto é, compreender como formas particulares de conheci-
mento são privilegiadas em relações sociais particulares e em relações
de poder historicamente definidas. Fazer do sujeito uma construção
histórica é também central ao argumento de Foucault sobre a história
como genealogia:
Temos que descartar o sujeito constituinte, livrarmo-nos do próprio
sujeito... para chegar a uma análise que possa dar conta da consti-
tuição do sujeito numa moldura histórica, e a isso eu chamo de
genealogia... uma forma de história que possa dar conta da consti-
tuição dos saberes, discursos, domínios de objetos, etc., sem ter que
fazer referência a um sujeito que é ou transcendental em relação ao
campo de eventos ou percorre sua mesmice vazia ao longo do curso
da história (1980, p. 117).
Chamei essa abordagem de “ epistemologia social ” quando fiz uma
análise da reforma educacional (Popkewitz, 1991).30 A epistemologia
social fornece uma forma de analisar as regras e os padrões pelos quais
o conhecimento sobre o mundo é formado e pelos quais as distinções,
as categorizações que organizam as percepções, as formas de responder
ao mundo e as concepções do “ eu” são formadas através de nosso
conhecimento sobre o mundo. Embora eu tenha algumas vezes usado
o conceito de “ discurso” intercambiavelmente com o de “ epistemologia
social ” , trata-se mais de um recurso literá rio, porque as teorias do
discurso desenfatizam a historicidade dos sistemas lingiiísticos. Alter-
nativamente, pois, o conceito de epistemologia social toma os objetos
constituídos como conhecimento da escolarização e os define como
elementos de práticas institucionais, historicamente formadas através
de relações de poder que dão coerê ncia e estrutura aos caprichos da
vida cotidiana. Uso a expressão “ epistemologia social ” como uma forma
de tornar o conhecimento corporificado no currículo escolar acessível
à investigação sociológica. Este conceito enfatiza o caráter relacional e
social do conhecimento.
30 Devo observar que Foucault rejeita a epistemologia em seu trabalho: sua referência
está numa tradição filosófica que trata a epistemologia como uma busca das regras
essenciais de conhecimento. Meu uso do termo “ epistemologia” como práticas
socialmente constru ídas está relacionado à noção de Foucault de “ regimes de
verdade” .
197
Essa abordagem da história tem sido popularizada no trabalho de
Thomas Kuhn (1970), embora eu utilize Kuhn com cautela, por causa
de sua concepção idealista de mudança. Kuhn estudou o que pode ser
chamado de tradição epistemologica, uma tradição que está vinculada
à história e filosofia da ciência francesa ( p. ex., Canguilhem, 1976,
1978, 1988 e Bachelard, 1984 ) e trazida para o estudo das ciências
sociais através do trabalho de Michel Foucault.31 Em Kuhn, nos filóso-
fos franceses da ciê ncia (Bachelard e Canguilhem ) e em Foucault existe
uma mudança no foco, que passa das intenções das pessoas para as
pr óprias estruturas do conhecimento.
Por que mudar para uma história epistemologica em vez de manter
as suposições da filosofia da consciê ncia ? Poder -se-ia argumentar que
centrar -se nas intenções e propósitos dos atores sociais fornece um
compromisso social e científico importante. Coloca as pessoas e seus
mundos sociais na história. Remover as pessoas da história significa
fazer com que o mundo pareça deterministico e fora da possibilidade
de intervenção.
Na verdade, esforços para remover o ator tê m sido vistos como
reacioná rios no interior do dogma da filosofia da consciência.32 Não
ter um ator visível —
agrupamentos de pessoas e indivíduos nas
narrativas dos eventos sociais é visto como anti- human ístico (e mesmo
—
antidemocrático). Não é incomum ouvir pessoas reagir sobre histórias
da escola perguntando: “ onde estão as pessoas na história ? ” . A suposi-
ção é a de um mundo no qual a salvação pode ser encontrada através
das boas obras das pessoas ou no qual o potencial não é limitado pelos
esquemas dos teóricos.
Embora esse argumento sobre o centramento do propósito e dos
atores humanos possa parecer um argumento analítico apropriado, a
conseqíiência sociológica dessa posição intelectual nem sempre tem sido
a de fortalecer o poder dos grupos subordinados. Sem adiantar dema-
siadamente o argumento, as conseqiiências práticas de um centramento
inquestionado no sujeito implica diversas questões sobre o poder, as
31 Poder-se-ia argumentar aqui que meu movimento da epistemologia para a obra das
pessoas re-inscreve uma filosofia da consciê ncia. O movimento em direção ao sujeito
pode também ser observado anteriormente, em meu uso do pronome “ eu ” . Esses
usos do sujeito, entretanto, não re-introduzem um sujeito, como na filosofia da
consciê ncia. Em vez disso, como Butler (1992) argumenta, significa posicionar o
sujeito na gram ática que o autoriza. A escrita é minha ou de um autor através das
posições teó ricas de reativação ou de resignificação que nos constituem e as quais
trabalhamos por meio das possibilidades de sua convergê ncia e da explicação das
possibilidades daqueles que são sistematicamente excluídos ( p. 9). A inclusão do
“ eu ” , portanto, significa reconhecer “ o ponto de transferê ncia daquela reativação”
na qual eu sou constituído através das pr áticas materiais e dos diiscursos que me
produzem como um sujeito.
32 E preciso 1er a atual teoria literá ria, os estudos feministas e as críticas
pós-modernistas em educação para compreender quão política é a questão de
privilegiar esse sujeito.
198
r
199
envolve conjuntos de regras e padr ões sobre a verdade
ser estudado, por que e como — — o que deve
que são diferentes dos da ciência
normal. São geradas novas questões (e conjuntos de relações) sobre
fenômenos, para os quais os paradigmas mais antigos são inadequados.
Além disso, as distinções entre a forma como a verdade é contada na
ciência normal e na ciência revolucionária, por exemplo, não são
cumulativas; elas envolvem, em vez disso, rupturas na crença e na
cognição, que ocorrem no interior de conjunturas históricas particula-
res.
Mas devemos ir alé m de Kuhn se quisermos pensar sobre mudanças
conceptuais. A forma como as pessoas contam a verdade sobre o mundo
é parte das transformações sociais pelas quais as relações com o mundo
e com nossos “ eus” são estabelecidas. Foucault (1975 ), por exemplo,
localiza o nascimento da moderna medicina nas mudanças sobre a
doença. No século XVIII, Foucault argumenta, as configurações espa-
ciais da doença e a localização da doença em patologias particulares
substituiu um sistema de classificação que dominava a medicina. Esse
ú ltimo via o problema principal da medicina como sendo de “ inclusões,
subordinações, divisões, semelhanças” em vez de ver a doença como
localizada em órgãos (p. 5 ). A nova forma de “ ver ” permitiu um olhar
clínico médico que via tecidos particulares como relacionados a pato-
logias de órgãos individuais, em vez de relacionados ao funcionamento
do organismo como um todo. As novas configurações do olhar médico
ocorreram ao longo do desenvolvimento do hospital de ensino e outros
locais institucionais nos quais a medicina era praticada.
A história das práticas médicas não foi uma história cronológica de
avanço progressivo ou de progresso em série. Foi a história de uma
é poca que “ se move em mil ritmos diferentes, rápida e lenta, que não
tem quase nenhuma relação com o ritmo cotidiano de uma crónica ou
de uma história tradicional ” (Braudel, 1980, p. 10). Podemos nos voltar
també m para o último Wittgenstein (1966), que forneceu uma forma
de entender a mudança histórica como múltiplos ritmos, desenvolven -
do-se ao longo de diferentes instituições, em diferentes é pocas, que se
reú nem naquilo que pode ser chamado de conjunção histórica. Witt-
genstein vinculou a mudança histórica a uma trama feita de muitas
fibras. A resistência dessa trama não reside no fato de que algumas fibras
a cobrem inteiramente mas no fato de que muitas fibras se sobrepõem.
O estudo histórico epistemologico presta atenção aos padrões
plurais e instáveis pelos quais o processo de escolarização é construído.
O conjunto de relações que se transformam no processo de escolariza-
— —
ção em suas formas de expressão e desempenho existe ao longo
de diferentes dimensões de espaço e tempo e fornece exemplos para
organizar casos e reconhecer mudanças naquilo que era anteriormente
visto como contínuo. A escola de massas, por exemplo, foi uma
invenção do século XIX, que emergiu de diferentes movimentos na
200
sociedade, os quais, em um determinado ponto, agiram de forma
autónoma entre si.33 Coincidindo com mudanças no ensino de sala de
aula estavam a criação de instituições para a formação de professores
(escolas normais), a emergê ncia da universidade moderna, a formação
das Ciências Sociais e o surgimento da disciplina da Psicologia. Essas
múltiplas arenas de prá tica social ocorreram em conjunção com o
moderno Estado do bem-estar, o qual assumiu as funções de governo
da nova instituição da escola de massas. As interpretações sobre a
escolarização de massas, portanto, precisam dar conta das m últiplas
intersecções de conhecimento construídas nessas variadas arenas. E na
conjunção dessas pr áticas do século XIX que palavras atualmente
favorecidas, tais como “ profissionalismo” , “ ciências educacionais” e
“ ensino baseado nas matérias” , devem ser situadas e é em relação a essa
conjunção que suas suposições devem ser analisadas.
Com essa finalidade, podemos explorar a epistemologia social nas
histórias do currículo de David Hamilton (1989) e Tomas Englund
(1991).34 Hamilton busca compreender como palavras particulares tais
como “ classe” e “ currículo” surgiram e mudaram ao longo do tempo
em relação às condições sociais, económicas e culturais nas quais aquelas
palavras existiam. Hamilton (1989) argumenta, por exemplo, que
influências calvinistas na Grã-Bretanha foram trazidas para os pstados
Unidos para moldar os sistemas instrucionais com formas bem -ó rdena-
das de organização social que podiam fornecer mecanismos mais efi-
cientes de supervisão moral e organização do trabalho. Ele argumenta,
além disso, que existe uma estreita relação entre práticas discursivas
pedagógicas cambiantes, concepções cambiantes de processos de traba-
lho e pressupostos cambiantes sobre o indivíduo e o estado. Englund
(1991), também seguindo essa tradição, distingue entre uma história do
consenso ( na qual existe uma abordagem e uma resposta a um dado
problema) e uma história epistemologica do currículo (na qual existe
“ uma luta contínua, incessante, de epistemologia social do conhecimen-
to escolar e uma análise mais próxima das diferenças nas interpretações
e na forma como o conte údo muda” ). Esta luta, Englund continua, “ tem
lugar em vá rios níveis: o do debate pú blico, dos programas, dos
materiais de ensino e do ensino concreto” ( p. 5).
Cada uma dessas histórias da escolarização nos permite compreen-
der como os objetos com os quais construímos os propósitos e as
33 Exploro essa histó ria em Popkewitz, 1991.
34 Hamilton evita qualquer discussão da teoria neste trabalho de historiador, embora
esteja claro, a partir de suas referências e método, que a teoria, como uma orientação
e enquadramento epistemologico de questões, é essencial ao problema do próprio
estudo. Englund é mais consciente dos dé bitos intelectuais inscritos em seu trabalho.
Outros trabalhos que contribuem fortemente para essa discussão, embora
tangenciando compromissos com a filosofia da consciência, são os de Barry Franklin
sobre educação especial, os estudos pioneiros de Ivor Goodson (1987) sobre as
disciplinas escolares e o de Kliebard (1986) sobre histó ria do curr ículo.
201
í
p -7'"
202
forma que, através das categorias aplicadas, transcende instituições
particulares. Estabelece-se um campo de distinções e diferenciações
sobre a criança, um campo que cruza as instituições da escola, da
medicina, do bem-estar social, da lei, da psicologia, das instituições
culturais relacionadas à família.36
A importâ ncia da idéia de campo discursivo (o que Foucault chama
de “ região” ) está no fato de que ela nos permite focalizar a forma como
discursos historicamente constru ídos em locais fisicamente diferentes
juntam-se para formar uma plataforma a partir do qual a individuali-
dade é definida. A individualidade parece transcender eventos e anco-
ragens geográficas sociais particulares. As histórias que Foucault escreve
são histó rias de como a pessoa se torna um sujeito através de regras e
normas particulares de “ razão/ não-razão” que invadem padrões insti-
tucionais particulares, mas não são redutíveis àqueles padrões. Seus
estudos da prisão e do criminoso, do hospício e do insano, do olhar
médico e dos desejos corporais na história da sexualidade são exemplos
de construções de campos discursivos através dos quais a individuali-
dade é definida nas múltiplas instituições da modernidade.
Podemos começar, pois, a definir de forma mais exata os focos de
um estudo da escolarização, através do exame de seus desdobramentos
discursivos, como construindo a região através da qual o sujeito e as
subjetividades são formadas e mudam ao longo do tempo. Podemos
pensar nos atores centrais da escola moderna
—
no professor, na
criança, no aluno, na criança com “ distú rbios” comportamentais e no
currículo escolar — como objetos cuja construção ao longo do tempo
conformou uma região que agora classifica e ordena a forma como a
pessoa e o mundo são apreendidos. O estudo de Hamilton (1989), por
exemplo, implica compreender como a formação linguistica que ocor-
ria na França, na Inglaterra, na Escócia e nos Estados Unidos efetuou
uma re-visão da criança, colocada dentro dos conceitos de “ classe” e
“ currículo” , que se tornaram, então, princípios classificatórios. Uma
conseqíiência das categorias e distinções consistiu em propiciar tecno-
logias sociais pelas quais os objetos da escolarização puderam ser
escrutinados, observados e supervisionados.
O conceito de região pode ser ilustrado, ainda, num estudo recente
de reforma educacional na Islândia (Johnanneson, 1991, no prelo).
Desde os anos 60, a reforma educacional na Islâ ndia tem sido um
elemento-chave no projeto de modernização das escolas. A moder-
nização pode ser vista como uma racionalização da organização das
escolas e das faculdades de educação. Mas essa organização envolveu
203
mais do que estabelecer vínculos organizacionais e hierarquias pessoais.
A modernização implicou uma re-classificação do conhecimento através
do qual a escolarização era apreendida. Essa re-classificação e re-orde-
namento ficaram evidentes nos debates sobre o currículo escolar.
Estavam subjacentes às reformas nos Estudos Sociais e na Biologia, por
exemplo, conjuntos particulares de crenças a partir dos quais as matérias
escolares eram formadas. Mais: nos “ novos” conhecimentos curricula-
res, estavam inscritas disposições sobre progresso histórico, raciocínio
científico, desenvolvimento infantil e preocupações democráticas sobre
a forma como a escolarização poderia produzir uma sociedade mais
justa. Johnanneson explora como esses sentimentos estavam inseridos
no campo educacional para legitimar uma profissionalização particular
de progresso e de expertise educacional.
Para investigar como um campo discursivo recursivamente constrói
relações e atores sociais na educação, Johnanneson estudou os “ discur-
sos da pré-reforma” que emergiram no início do século XX quando a
Islâ ndia estava ainda sob domínio dinamarquês. O conhecimento cur-
ricular estava focalizado numa forma elitista de conhecimento que se
expressava numa idéia de “ excelê ncia” , numa pedagogia religiosa e de
narração de histórias, nos estudos cristãos, no nacionalismo e no
objetivismo que buscava definir as categorias do mundo como não-am-
bíguas e imutáveis.
O movimento de reforma do pós-guerra (Segunda Guerra Mundial )
na Islândia substituiu os discursos da “ pré-reforma” por discursos
profissionais de reforma. Esses discursos profissionais na arena educa-
cional competiam com os discursos pré-reforma. Johnanneson explora
como os temas discursivos se movimentavam pelos diferentes lugares:
os sindicatos docentes, a Faculdade de Educação da Islândia, a Univer-
sidade da Islâ ndia, o Ministério da Educação, o Instituto Estadual de
Desenvolvimento e Avaliação Escolar. As construções particulares de
reforma educacional reuniam-se numa rede de estratégias que organi-
zavam o que era visto como “ educacional” e como esse olhar concebia
as “ coisas” do mundo. Por exemplo, um novo currículo de Estudos
Sociais, baseado nas discussões norte-americanas do final dos anos 60,
era usado para argumentar em favor de uma escola moderna, progres-
sista e de um professor profissionalmente competente.
Podemos pensar no mapeamento que Johnanneson fez da Islândia
como uma forma de localizar as relações cambiantes de poder no campo
da educação, através de mudanças no campo do discurso. Num sentido
importante, seu mapeamento liga mudanças nos campos discursivos a
relações cambiantes entre atores e instituições na educação da Islâ ndia.
Os atores, entretanto, não são definidos anteriormente ao estudo; eles
são “ descobertos” através das posições epistemológicas que ocorreram.
Isto é, existem vá rias pessoas que falam sobre reforma, mas que,
simultaneamente, defendem as epistemologias prevalecentes das práti-
204
r
cas escolares. As relações institucionais são compreendidas através das
estratégias discursivas e não através do exame das características bio-
gráficas das pessoas ou da atribuição dos atores a causas estruturais de
mudança.
Podemos pensar no método histórico como um mapeamento social
das práticas epistemológicas e condições sociais, à medida que elas
definem fronteiras sobre o que deve ser autorizado como razão/não-ra-
zão com respeito aos objetos da escolarização. O mapeamento das
mudanças conceituais é relacionado com uma visão relacional dos
discursos para compreender como os princípios de ordenação são
re-organizados e re-visados. O foco regional nas práticas discursivas em
competição na reforma educacional nos permite uma compreensão de
como regras e padr ões particulares de verdade atravessam padrões
institucionais particulares, não sendo redutíveis àqueles padrões.
A noção de região é parte de uma estratégia que não mais privilegia
uma noção de tempo cronológico e espaço f ísico, tal como a estratégia
do historicismo e da filosofia da consciê ncia. A região é uma forma de
passar do positivismo, que vinculava o espaço social ao contexto
geogr áfico, para uma noção de campo discursivo como construindo um
campo particular através do qual as subjetividades são formadas e o
poder é desdobrado. A preocupação é a construção de um campo
discursivo, as regras de sua formação e suas mudanças ao longo do
tempo. O foco nas lutas no interior de um campo discursivo é diferente
da estratégia de olhar para lugares f ísicos particulares e para o tempo
cronológico regulado como definindo as fronteiras da pesquisa.
Conclusões
205
resultado direto da existê ncia de uma dada realidade. Ao longo deste
ensaio, forneci diversos exemplos dessas histórias curriculares.
Posso, neste ponto, considerar algumas das cr íticas feitas à episte-
mologia social, como a de que a epistemologia social leva a um
relativismo niilista que seria incapaz de fornecer normas e eliminaria o
ativismo político, através da negação do sujeito. Minha resposta, que
se baseia em Butler (1992), reconhece um certo etnocentrismo ocidental
no argumento que toma o sujeito centrado como uma categoria univer -
sal inquestion ável. A estratégia que afirma que toda pesquisa deve
focalizar o sujeito como a ú nica estratégia teórica e pol ítica legítima de
mudança é ela própria um ato político perturbador. Ela supõe que não
pode haver nenhuma oposição política à sua estratégia de especificar o
sujeito anteriormente ao ato de investigação ou de cr ítica informada.
Essa posição de um sujeito a priori na teorização, Butler (1992) argu-
menta, “ torna-se um artif ício autoritário pelo qual o conflito político
sobre o status do sujeito é sumariamente silenciado” ( p. 4).
Em resposta a essa cr ítica, argumento que a epistemologia social é
uma prática tanto conceituai quanto política. Imbricada na filosofia da
consciê ncia está uma posição social particular do pesquisador educa-
cional. Esta posição é a de um oráculo que deve trazer mudança e
progresso ao mundo. Este papel de profecia não é, necessariamente, um
papel de intenção pessoal, mas de epistemologias que ordenam e
caracterizam os discursos sobre conhecimento disciplinado (discuto isto
mais detalhadamente em Popkewitz, 1991, cap. 8 ). As tradições melho-
rativas nas Ciê ncias Sociais e na História buscam identificar padrões de
desenvolvimento — aprender da história ao planejar o futuro. A
promessa é que a eficácia e a racionalidade produzirão progresso social.
* Nas ciê ncias cr íticas baseadas em supostos hegelianos existe um esforço
para identificar o funcionamento repressivo do presente, a fim de
movimentar as práticas sociais em direção a alguma síntese universal
que produza o bem. Aquilo que é rotulado como bem é também
chamado de progressista.
Em ambos os casos, de formas diferentes, dependendo das asserções
de verdade, os intelectuais se colocam a si mesmos como capazes de
identificar a importância futura das interpretações presentes. Esta
estratégia intelectual estabelece os cientistas sociais e os historiadores
como personagens legítimas e autorizadas para o delineamento de
questões sociais. Considero essa suposi ção sobre progresso nas Ciê ncias
e na História da Educação como perigosa numa democracia. Exemplos
histó ricos de intelectuais que são posicionados como experts a serviço
do ideal democrático estão repletos de suas próprias contradições.
Podemos considerar a tradição intelectual na qual eu coloco a
epistemologia social como uma tentativa de alterar a relação entre o
conhecimento disciplinar, o pesquisador e as esferas pú blicas nas quais
as pessoas lutam para tornar seu mundo melhor. Compreender a
206
mudança como constituída de rupturas e descontinuidades é questionar
qualquer teleologia na produção de conhecimento pelos intelectuais.
Uma vez que não existem padr ões de progresso a descobrir, também
não existe nenhum papel privilegiado do intelectual em fazer emergir
aquele mundo progressivo.
Considerar a mudança histórica como rupturas epistemológicas
não significa impossibilitar a ação política. Construir histórias sobre
epistemologias sociais em vez de sobre atores não significa renunciar ao
papel da razão e da racionalidade na busca de um mundo mais demo-
crático. Na verdade, a epistemologia histórica sobre a qual escrevi até
aqui implica a tarefa paradoxal de nos colocarmos na história de forma
que nós, coletivamente, através de nossas ações no presente, alteremos
a causalidade que organiza as construções de nossos “ eus” e, nesse
processo, possamos abrir novos sistemas de possibilidade para nossas
vidas coletivas e individuais.37 A estratégia de historicizar o sujeito é
uma estratégia que reintroduz a humanidade nos projetos sociais, ao
tornar visíveis e confrontáveis os sistemas governantes de ordem,
apropriação e exclusão.
Meu foco numa epistemologia social (um descentramento do sujei-
to) não consiste em eliminar as práticas de mudança social, mas em
desafiar as convenções nas quais essas práticas ocorrem, em tornar
problemático o sujeito que tem sido tão central à pesquisa moderna e
seus efeitos regulatórios. Isso não significa negar a política do conheci-
mento, mas em tornar a política parte das condições reflexivas da
produção de conhecimento. Tornar problemático o sujeito desde o
início não é a mesma coisa que negar ou descartar essa noção. Significa
perguntar sobre os processos de construção, significado político e as
conseq üê ncias de se falar sobre o sujeito como uma exigê ncia ou um
pressuposto da teoria (Butler, 1992, p. 4).
Uma sensibilidade histórica em relação à forma como construímos
nossa subjetividade é parte da vigilâ ncia epistemologica de que falam
Bourdieu et al. (1991), quando eles advertem para a necessidade de
reflexividade nos métodos de estudo. Focalizar a epistemologia social
constitui uma estratégia teórica que “ vê” o poder como permeiando os
quadros conceituais que constroem os objetos de investigação, incluin-
do a posição de sujeito do crítico, os passos teó ricos que estabelecem
seus pressupostos fundacionais e os pressupostos que são exclu ídos ou
207
çr""" - —-
barrados. O estudo da história é o estudo da objetificação daqueles
elementos que os historiadores consideram estar objetivamente dados.38
Não estou preocupado apenas com o passado. Estou preocupado
com a forma como o passado é trazido para o presente para disciplinar
e normalizar. Penso que ao construir teorias de escolarização precisa-
mos levar a sério aquilo que as teorias lingiiísticas vêm nos dizendo há
pelo menos 70 anos. Os discursos sobre educação construídos na
formulação de pol íticas educacionais, nos relatórios de reformas e nos
documentos de outras posições institucionalmente legitimadas de auto-
ridade não são “ meramente” linguagens sobre educação; eles são parte
dos processos produtivos da sociedade pelos quais os problemas são
classificados e as práticas mobilizadas. Não existe qualquer distinção,
como muitos gostariam de acreditar, entre teoria e prática, ou entre o
“ mundo real da escola” e os sistemas de linguagem sobre a escola. O
que temos são sistemas de relações e não sistemas separados. Tampouco
podemos deixar de ser reflexivos sobre a posição de sujeito do crítico
e sobre a epistemologia do progresso.
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209
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"I
210
10
Michael Peters
Governamentalidade Neoliberal e Educação
\
/ ascondi ção da pós-modernidade representa tanto uma ruptura com
filosofias fundacionais do Iluminismo quanto uma crise de suas
—
principais ideologias seculares o Liberalismo clássico e o Marxismo.
No Ocidente, desde os dramáticos eventos de 1989 e 1990, o foco de
interesse tem-se voltado para o colapso do comunismo na Europa do
Leste. Esses eventos obscureceram e colocaram em segundo plano,
temporariamente, desenvolvimentos políticos e económicos que esta-
vam ocorrendo nos estados liberais/capitalistas. Paradoxalmente, pre-
cisamente na é poca em que teóricos como Lyotard (1984) estavam
proclamando a falência das metanarrativas (grand récits ) do Iluminis-
mo, os estados liberais/capitalistas testemunhavam a volta e a revitali-
zação das narrativas mestras do liberalismo económico clássico, sob o
disfarce da assim chamada Nova Direita, como uma base para o estado
u /
mimmo
•
.
55
211
F"
212
Nova Direita tem explorado uma narrativa política mestra de indivi-
dualismo para legitimar uma forma extrema de racionalismo económi-
co. Esta narrativa, atuando sob a forma de um artefato legitimador,
projeta uma unidade sobre o futuro. E orientada para o futuro, embora
esteja ancorada no passado. Em um violento ato de fechamento, ela
representa o futuro em termos totalizadores, excluindo, neste processo,
outras histó rias possíveis que podemos projetar no futuro, ao argumen-
tar que não existe qualquer outra narrativa.
Não existe, talvez, melhor exemplo da extensão do mercado a
novas á reas da vida social que o campo da educação. E^ claro que, sob
os princípios do neoliberalismo, a educação tem sido discursivamente
reestruturada de acordo com a lógica do mercado. A educação, neste
modelo, não é tratada de forma diferente de qualquer outro serviço ou
mercadoria. Como Fairclough (1992) observa, uma parte principal
dessa reestruturação compreende mudanças importantes nas práticas
discursivas. Nessa nova situação, as pessoas são pressionadas para se
envolver em novas atividades que são ampiamente definidas por novas
práticas discursivas tais como marketing, publicidade e ger ê ncia. Essas
mudanças incluem recodificações discursivas tanto de atividades quanto
de relações: o resultado é que os alunos e aprendizes se tornam
“ consumidores” ou “ clientes” e os cursos se tornam “ pacotes” ou
“ produtos” . Uma reestruturação mais sutil das práticas discursivas da
educação tem ocorrido em termos de uma colonização da educação por
tipos de discurso vindos de seu exterior.
A obra de Foucault fornece recursos para compreender aquilo que
vou chamar de paradoxo do Estado neoliberal. O paradoxo consiste no
fato de que embora o neoliberalismo possa ser considerado como uma
doutrina que prega o Estado autolimitador, o Estado tem-se tornado
mais “ poderoso” sob as pol íticas neoliberais de mercado. A compreen -
são deste paradoxo pode ser frutiferamente obtida através da noção de
governamentalidade de Foucault, na qual o poder é compreendido em
seu sentido mais amplo como a estruturação do campo possível da ação
de outras pessoas. Embora as pol íticas neoliberais de privatização dos
recursos estatais e de comercialização da esfera p ú blica possam ter
levado a um estado mínimo ou, ao menos, a uma “ diminuição” signifi-
cativa, o Estado tem retido seu poder institucional através de uma nova
forma de individualização, na qual os seres humanos transformam-se
em sujeitos do mercado, sob o signo do Homo economicus. Esta é a
base para compreender o “ governo dos indivíduos” na educação como
uma técnica ou forma de poder que é promovida através da adoção de
formas de mercado.
Na primeira seção deste capítulo, introduzo a noção de discurso de
Foucault e sua relação com a produção discursiva do invidíduo como
a base para uma compreensão da pol ítica educacional neoliberal. O
trabalho de Foucault pode ser compreendido como uma crítica ao
213
sujeito e à metanarrativa liberal do eu: um eu individual autónomo,
racional e pienamente transparente, um eu ao mesmo tempo separado
da sociedade e logicamente anterior a ela, capaz de fazer escolhas no
mercado de acordo com seus desejos. Na segunda seção, investigo as
formas pelas quais a educação tem sido discursivamente reestruturada
sob o signo do Homo económicas como uma forma de governamenta-
lidade neoliberal.
Em geral, pode-se dizer que existem três tipos de luta: contra formas
de dominação (étnica, social, religiosa ); contra formas de exploração
que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; contra aquilo
que prende o indivíduo a si próprio e, dessa forma, submete-o a
214
r
outros (lutas contra a sujeição, contra formas de subjetividade e
submissão) (Foucault, 1983, p. 212).
Ele sugere que embora esses três tipos de luta existam ou de forma
separada ou combinada, o terceiro tipo tem-se tornado mais importante
na época atual, na qual o poder do Estado é ao mesmo tempo indivi-
dualizador e totalizador. Ele investiga esse tipo de poder historicamen-
te, em termos da técnica de poder pastoral que se originou nas
instituições do Cristianismo. O Estado moderno, ele argumenta, cons-
titui uma “ matriz moderna de individualização, ou uma nova forma de
poder pastoral” (ibid., p. 215 ). O problema, portanto, não é o de nos
libertar do Estado per se, mas do tipo de individualização que está
vinculado ao Estado através dessa nova forma de poder pastoral e
promover novas formas de subjetividade que escapem a esse tipo de
individualização que nos tem sido imposto. Assim, Foucault focaliza a
questão da forma como o poder é exercido e analisa a relação de poder
ao focalizar instituições cuidadosamente definidas, nas quais esse tem
assumido diferentes formas (com base na escola, na família, na justiça
e nos sistemas económicos). Deste modo, o exercício do poder pode
ser definido em termos da forma pela qual certas ações podem estrutu-
rar o campo da ação possível de outras pessoas e, em ú ltima instâ ncia,
essa ênfase leva a um foco no “ governo” em seu sentido mais amplo,
como a estruturação do campo possível da ação de outras pessoas. Ao
analisar o poder nesses termos, Foucault vincula sua análise de formas
de discurso, “ a individualização de discursos” , não apenas com o assim
chamado sujeito e sua formação discursiva pluralista, mas também com
temas tradicionais na economia política e, em particular, com uma
crítica das formas de governo liberal (incluindo suas formas neoliberais
recentes).
Talvez o ponto mais importante e que mais clarifica o conceito de
discurso de Foucault é sua ênfase no fato de que ele é um pluralista: o
problema que ele diz tratar é o da individualização dos discursos. A esse
respeito, ele menciona crité rios conhecidos e confiáveis: a separação
dos sistemas lingiiísticos aos quais os discursos pertencem e a identidade
do sujeito que os conserva unidos (isto é, o sujeito da Psiquiatria, da
Medicina, da Gramática, etc.). A esses critérios ele acrescenta os de
formação, transformação e correlação, que permitem a descrição de
uma episteme em termos do exercício de diferenças específicas no
interior do espaço discursivo. A “ mudança” histórica, para Foucault,
deve ser analisada tendo como referência diferentes tipos de transfor-
mação em sua especificidade. Uma tal abordagem leva ao estabeleci-
mento do seguinte esquema para estudar a mudança (trata-se de um
esquema que não deve ser considerado como uma tipologia exaustiva):
1. fyíudanças no interior de uma dada formação discursiva incluem
mudanças de: dedução ou implicação, generalização, limitação (através
da mudança entre objetivos complementares, através da passagem a um
215
r 1
216
a fim de “ libertar o campo discursivo da estrutura histórico-transcen-
dental que a filosofia do século XIX lhe impôs” (ibid., p. 62), discor-
dando da afirmação de que a política progressista está necessariamente
presa a esses temas. Uma política progressista, pelo contrário, está presa
mesmo é ao questionamento desses temas: trata-se de uma pol ítica “ que
não faz do homem ou da consciê ncia ou do sujeito em geral o operador
universal de todas as transformações” (ibid., p. 70). Uma política
progressista “ reconhece as condições histó ricas e as regras específicas
de uma pr á tica” e “ procura definir as possibilidades de transformação
de uma prá tica e o jogo de dependê ncias entre essas transformações”
(ibid., p. 70 ).
Neoliberalismo, Educação e a Cr
ítica da Razão de Estado
217
to da totalidade: a economia como um todo ou a sociedade como um
todo. Foucault enfatiza o dom ínio da lei, no pensamento liberal, como
uma forma técnica de governo desenhada para estabelecer condições
de segurança para as quais a liberdade individual é uma condição
necessá ria. Essa liberdade, pois, é vista não apenas como um meio para
assegurar os direitos dos indivíduos contra os abusos do soberano mas
também como “ um elemento indispensável da própria racionalidade
governamental” (Foucault, citado em Gordon, 1991, p. 20 ), pois ela
assegura a participação do governo no estabelecimento de um sistema
de lei que é a pré-condição necessária para uma economia governada.
Isto é, a ideologia do individualismo, moldada em conceitos como o de
Homo economicus, estabelece um sistema de autogoverno baseado em
formas facilitadoras de regulação natural.
O objetivo aqui não é o de revisar as afirmações de Foucault ou a
interpretação de Gordon, mas o de adotar a perspectiva geral (sem
qualificação ou discussão ), a fim de ir al é m delas, em termos de uma
discussão do revival histórico da doutrina do Estado autolimitador,
como uma base para compreender as atuais formas de governamenta-
lidade neoliberal no campo da educação. Meu ponto de partida consiste
em reconhecer a força da crítica e do desafio de Gordon (1991, p. 6 )
contida na seguinte observação:
Em síntese, Foucault sugere que o recente neoliberalismo, entendi-
do... como um novo conjunto de noções sobre a arte do governo, é
um fenô meno consideravelmente mais original e desafiador do que
a crítica cultural da esquerda tem a coragem de admitir, e que seu
desafio político é um desafio ao qual a esquerda está singularmente
mal equipada para responder, ainda mais que, como Foucault argu-
menta, o pró prio socialismo não possui e nunca possuiu sua pró pria
forma distintiva de governo.
Com esse desafio em mente, volto-me para o exame das diferenças entre
liberalismo e neoliberalismo nos termos expressados por Gordon e
outros autores, aproveitando o espaço aberto pelo trabalho de Foucault
sobre governamentalidade.
Gordon descreve três versões de neoliberalismo, as quais receberam
alguma atenção de Foucault em seu curso no Collège de France, em
1979. Ele menciona, em diversas passagens, essas versões do neolibe-
ralismo, as quais tê m suas ra ízes na Alemanha Ocidental do pós-guerra
( Ordoliberalen ), nos Estados Unidos (a “ Escola de Chicago” ), e na
França. Essas novas formas não representam um retorno “ inocente” aos
principais artigos de f é do liberalismo. Em outras palavras, o revival
histórico do liberalismo na atualidade não é simplesmente um exercício
de nostalgia, representando um retorno simples e ingé nuo a princípios
do passado. Existem diferenças importantes entre as formas passadas e
presentes de liberalismo: o neoliberalismo, em outras palavras, exibe
218
uma estratégia interpretativa inovadora, ao reformular os princípios
básicos para acomodar novas exigências. O que eles têm em comum,
como afirma Burchell (1993 , p. 270 ), “ é uma questão a respeito da
extensão na qual relações e comportamento de mercado competitivos,
otimizadores, podem servir como um princípio não apenas para limitar
a intervenção governamental , mas também para racionalizar o próprio
governo” .
Gordon atribui ao Ordoliberalen a capacidade de produzir novos
significados para o conceito de “ mercado” , considerado como uma
forma de governamentalidade. Ele enfatiza, por exemplo, que , contra
Hayek, 1 sob essa forma de governamentalidade neoliberal , o mercado
não é mais pensado como uma instituição natural ou espontânea. Em
vez disso, o mercado é visto como um construto social em desenvolvi -
mento, que deve ser protegido e que exige , portanto, um quadro
jur ídico e institucional positivo para que o jogo dos negócios funcione
pienamente. Como Burchell (1993 , pp. 270- 1 ) indica claramente, as
formas neoliberais atuais diferem das formas anteriores de liberalismo
na medida em que:
elas não vêem o mercado como uma realidade quase-natural já
existente , situada numa espécie de reserva económica, num espaço
delimitado, assegurado e supervisionado pelo Estado. Em vez disso,
o mercado existe , e só pode existir, sob certas condições pol íticas,
legais e institucionais, que devem ser ativamente construídas pelo
governo.
1 Embora Hayek seja considerado uma das principais fontes de inspiração para a assim
chamada Nova Direita, ele claramente aeve ser distingíiido da posição neoliberal.
Hayek enfatiza, numa abordagem anti-racional, que muitas das instituições que
caracterizam a sociedade tê m surgido e funcionam sem um plano. Essa é a celebrada
concepção de Hayek da “ ordem espontâ nea ” , uma reinterpretação da hipótese da
“ mão invisível” , que é usada para explicar e legitimar o mercado como a instituição
—
social paradigm ática supostamente, “ um sistema sob o qual homens maus podem
fazer o m ínimo dano” . E dessa perspectiva básica, a qual Hayek chama de
“ verdadeiro individualismo ” , que ele deriva tanto sua defesa da propriedade privada
quanto a noção do estado mínimo. O estado mínimo é uma conseqiiê ncia da
“ demanda por uma limitação estrita de todo poder coercivo ou exclusivo” (Hayek,
1949, p. 16). O mercado, de acordo com Hayek, estabelece uma ordem
individualista tratável porque ele assegura que as remunerações do indivíduo
correspondam aos resultados objetivos de seus esforços e de seu valor para outros.
A preservação da liberdade individual, portanto, na visão de Hayek, é incompatível
com a noção de justiça distributiva e, em geral, com a noção de igualdade tal como
<; :
tem sido interpretada, de forma progressista, durante o período de desenvolvimento
do estado de bem -estar social. Em outras palavras, a noção de liberdade individual
subscrita por Hayek e por aqueles que o seguem, está em desacordo com a noção
de direitos sociais do século XX, uma noção que envolve a expansão gradual da
cidadania e que serviu como base para o desenvolvimento do estado de bem-estar
social.
219
nados, para o neoliberalismo, em contraste, “ o princípio racional para
regular e limitar a atividade governamental deve ser determinado em
refer ê ncia a formas artificialmente arranjadas ou impostas da conduta
livre, empresarial e competitiva de indivíduos económico-racionais”
( Burchell, 1993, p. 271). Burchell (1993, p. 274 ) descreve o neolibera-
lismo, seguindo o trabalho de Donzelot, como promovendo “ uma
autonomização da sociedade através da invenção e proliferação de
modelos quase-econômicos de ação para a conduta independente de
suas atividades” , e esclarece o que ele quer dizer com isso através do
exemplo da educação sob o governo conservador britânico. É um
exemplo importante para os meus objetivos neste capítulo e merece ser
citado mais extensamente:
Na á rea da educação, por exemplo, exige-se que as escolas indivi-
duais e outros estabelecimentos educacionais ajam cada vez mais de
acordo com uma espécie de lógica do “ mercado” competitivo, no
interior de um sistema inventado de formas institucionais e práticas.
Por um lado, elas ainda funcionam num quadro estabelecido pelo
governo central, o qual envolve, por exemplo, o financiamento
direto das escolas pelo Estado, de acordo com uma f órmula nacional,
um currículo nacional obrigatório, a testagem periódica dos alunos,
a aprovação governamental do sistema e da conduta administrativa
das escolas (que devem se conformar a um corpo complexo de
legislação e ordens ministeriais), a publicação obrigatória dos resul-
tados de exame de cada escola, e assim por diante. Entretanto, por
outro lado, exige-se que cada escola, individualmente, funcione cada
vez mais como uma quase-empresa independentemente administra-
da, em competição com outras escolas. Elas são encorajadas a se
esforçar por adquirir um status ou valor especial no mercado de
serviços escolares. Elas tê m que promover a si pr ó prias para atrair
mais alunos do tipo certo de forma que possam obter melhores
resultados nos testes e possam, assim, continuar a atrair os alunos
certos, enviados por “ pais-consumidores” , obtendo fundos crescen-
tes do Estado e de fontes privadas...
220
i
assumindo a forma de uma espécie de individualismo que envolve
moldar a vida da pessoa como a empresa de si mesma: o indivíduo se
torna, como Gordon (1991, p. 44) observa, “ o empresá rio de si
mesmo” . Esta noção é descrita em termos da ê nfase da versão francesa
do “ cuidado de si ” , especialmente em relação ao “ direito de permanente
retreinamento” . Ela també m aparece na versão norte-americana de
interpretação do trabalho como capital humano, na qual o trabalho é
constru ído em termos de dois componentes, compreendendo um dom
gené tico e um conjunto adquirido de capacidades produzidas, como
resultado do investimento privado na educação e em recursos culturais
similares.
Gordon (1991, p. 43) vê a versão norte-americana como a mais
radical na medida em que ela propõe “ uma redescrição global do social
como uma forma do econ ómico” . Vale a pena citar sua interpretação
mais longamente:
221
W'" ,
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222
chamada “ nova ordem mundial” do fim da guerra fria, do desacelara-
mento da corrida armamentista e dos acordos de paz
— o foco passou
da exploração do medo da iminente destruição envolvida na rivalidade
das superpotências para o papel que as novas tecnologias de informa-
ção, das comunicações e do computador (entre outras) podem exercer
no declínio económico, face à competição internacional e à necessidade
de se alinhar às nações líderes na ocupação do centro da arena interna-
cional.
De forma crescente, questões de sobrevivê ncia e competição eco-
nómica nacional na economia mundial são vistas, sob o neoliberalismo,
como questões de reconstrução cultural. A tarefa da cultura de recons-
trução em termos da empresa tem envolvido remodelar as instituições
de acordo com crité rios comerciais e encorajar a aquisição e uso de
qualidades empresariais e empreendedoras. Assim, de acordo com esse
novo discurso mestre, tanto o estado de bem-estar social quanto o
sistema educacional tê m sido criticados por levar a uma “ cultura da
dependê ncia” .
Se aceitamos que a noção de empresa não está confinada aos
negócios, para ser julgada puramente em termos de ganhos momentâ-
neos de curto prazo, então podemos querer reconhecer outros conceitos
de empresa, ligados às noções de iniciativa, práticas sustentáveis ou
simplesmente sobrevivência no sentido mais grosseiro. Se a empresa
deve ser definida como negócio, puro e simples, então os educadores
devem resistir vigorosamente a essa noção e à sua intrusão na educação.
A noção de “ cultura de empresa” pode ter uma série de interpretações
ideológicas, algumas das quais podem ser adequadas para a educação,
mas outras podem ter efeitos perniciosos. Podemos começar por fazer
distinção entre elas.
A educação pode, de fato, ser a estrela do futuro. Ela pode, se
concebida de forma inteligente, tornar-se a base para que a assim
chamada “ nova economia” forneça as capacidades, habilidades, com-
preensões e atitudes necessá rias para uma sociedade pós-industrial,
baseada na informação. Entretanto, a noção de “ cultura de empresa” ,
tal como tem sido apresentada nos discursos sobre política educacional,
não permite que os educadores ou o setor empresarial formulem
modelos de empresa que possam melhor servir às necessidades da
sociedade e da economia através do aumento tanto do n ível de partici-
pação quanto do bem-estar dos trabalhadores, por meio de um processo
de decisão cooperativo e de participação nos lucros. Em outras palavras,
a cultura de empresa, pode, alternativamente, tornar-se uma agenda
para estabelecer as condições necessárias para uma democracia pós-in-
dustrial. Ela pode identificar como esses modelos atuam em diferentes
á reas da economia, em pequena e em grande escala, em novas e antigas
economias. Apenas quando os educadores e o pú blico em geral puderem
223
r
ver os benef ícios da “ cultura de empresa” dessa forma é que essa noção
poderá merecer uma maior consideração.
Tal como está colocada, a noção de cultura de empresa tem sido
construída no sentido económico mais estreito. Ela é parte de uma nova
metanarrativa que , em termos retóricos, nos apresenta uma visão do
futuro baseada na expectativa de crescimento económico. Esta narrati-
va, entretanto, embora concedendo à educação um lugar privilegiado,
juntamente com a ci ência e a tecnologia, reflete a apropriação “ criati -
va” , por parte da Nova Direita, da literatura pós-industrial. Em essência,
esse discurso pode ser visto mais como “ uma reação do pós-industria-
lismo” do que como um discurso que explora suas possibilidades
democráticas sociais.
Referências
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LYOTARD, J. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Manchester, Manchester
University Press, 1984.
224
11
Alfredo J. Veiga Neto -
Foucault e Educação:
Outros Estudos Foucaultianos
^
v capítulo, entregou-me vários textos que considerava interessantes
e que se relacionavam diretamente com o tema central da obra que ele,
então, pensava publicar. Por vários motivos, aquele material não seria
incluído neste livro. No nosso entendimento, isso seria lamentável:
todos aqueles textos continham, em maior ou menor grau, contribui-
ções relevantes para a minguada bibliografia brasileira sobre Michel
Foucault e, principalmente, sobre os aportes que o seu pensamento
pode trazer à Educação. A solução pensada pelo organizador deste livro
entusiasmou-me — preparar este capítulo, no qual aqueles textos
pudessem figurar, ainda que de maneira bastante resumida. (No caso
de Jennifer Gore e James Marshall, que tê m ensaios incluídos nesta
obra, são sintetizados aqui outros trabalhos de sua autoria).
Para que fiquem claros os propósitos do presente texto, esclareço
que aquilo que segue não representa um levantamento sobre autores
que trabalham questões educacionais numa perspectiva foucaultiana.
També m, ao tratar de cada autor, não tive a preocupação de apresentar
uma aná lise extensiva da respectiva obra. E ainda mais: ao comentar
esse ou aquele livro ou artigo, não me ocupei em fazer uma síntese de
cada um. Meu objetivo consiste apenas em trazer, para a literatura
educacional brasileira, exemplos comentados sobre as possibilidades
anal íticas e críticas que a obra de Michel Foucault abre para a pesquisa
e para a prática neste campo.
Comentar trabalhos e pesquisas educacionais que adotam uma
perspectiva foucaultiana implicou, para mim, també m entrar no pensa-
mento do filósofo. Decorreu disso que, al ém das conhecidas dificulda-
des conceituais e operacionais desse tipo de perspectiva, deparei-me,
també m, com os riscos de cair numa aparente contradição: ser fiel a
Foucault significa ser-lhe ao mesmo tempo infiel. Seu desejo sempre foi
de ser ultrapassado, de que cada um de seus livros fosse um “ objeto-
evento” que “ desaparecesse enfim, sem que aquele a quem aconteceu
225
•
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226
;
——
Humanidades principalmente pelas vertentes críticas da Filosofia e
da Sociologia seriam a resistência iluminada e não teriam a força
capaz de fazer frente àquelas intenções e ações. Mesmo sem procurar
prescrever solu ções, ele desenvolve novas possibilidades anal íticas, a
partir dos conceitos de subjetivação, objetivação, poder e governamen-
talidade, para melhor comprendermos as relações entre a universidade
e a esfera governamental e podermos, a partir daí, conduzir de maneira
menos panfletá ria e mais produtiva nossas ações sobre essas relações.
227
e atualmente editor da revista New Formations, James Donald tem
partido de urna perspectiva foucaultiana para questionar a retorica da
libertação e da utopia que domina o discurso educacional, principal
mente na sua vertente que se quer crítica. O seu recente livro Sentimen
--
tal Education (Donald, 1992) reú ne vários artigos que procuram traçar
o aparecimento da educação institucionalizada
século XIX — — na Inglaterra do
como um aparelho capaz de moldar os “ corações e
mentes” das pessoas, de modo a domesticar crianças de classes popula-
res e produzir e educar aquela que se denominou explicitamente uma
nova “ raça imperial ” , qual um estranho destino para o povo inglês.
Junto a isso, Donald apresenta as analogias entre a educação e a
radiodifusão atual na medida em que elas determinam o nosso cotidia-
no.
O que se torna excepcionalmente interessante nos artigos de James
Donald são as interpretações que ele faz a partir de documentos
—
históricos que incluem textos literá rios, normativos e panfletários,
—
desenhos, álbuns fotográficos etc. , sem apelar para quaisquer cate-
gorias psicologizantes ou sociologizantes como tem sido de praxe nas
análises iluministas (e especialmente estruturalistas) sobre a educação.
Assim, ele não tem nenhum compromisso com uma pretensa “ natureza
humana” , com um “ social transcendente” ou com uma eventual dialé-
tica entre repressão e liberação. Ao mesmo tempo em que nos revela as
diferentes práticas discursivas que fizeram da educação popular uma
técnica de governamentalidade — o que se articula à noção de biopo-
—
l ítica, em Foucault James Donald nos mostra que as subjetividades
não resultam direta e mecanicamente dessas práticas mas, antes, se
estabelecem nos embates entre, de um lado, as normas pedagógicas e
culturais (estabelecidas por aqueles discursos) e, de outro lado, as
estratégias de resistê ncia, transgressão, rejeição, reinterpretação e adap-
tação que se dão no dia-a-dia das pessoas.
Ao traçar a genealogia dos modelos ingleses de escolas para as
—
massas os de Lancaster, Bell, Stow, Kay-Shuttleworth etc. James —
Donald vai buscar especialmente em Vigiar e Punir a interpretação para
as mudanças que ocorreram a partir do fim do século XVIII. Assim, ele
—
analisa as transformações: (a) nas prá ticas pedagógicas de repressivas
e punitivas, para auto-reguladas; (b) na arquitetura das escolas
uma ampla sala-escolar, para uma á rea interna para a qual se abrem
— de
várias salas de aula relativamente pequenas; (c) na forma pela qual a
criança era percebida — de ser anónimo, para categoria científica
passível de estudo, observação ( moral, atitudinal etc.) e medidas (an-
tropométricas, psicométricas, demográficas, estatísticas etc.); (d ) nos
—
currículos de elenco de conhecimentos (ainda hoje geralmente visto
como inocente ), para elemento que diferencia, discrimina e categoriza.
Não é dif ícil comprender o quanto essas transformações contribuí-
ram, num sentido mais restrito, para o estabelecimento de nossas atuais
228
r v *
229
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•
230
I
cos, mas sobretudo porque nos aponta para o fato de que, nas nossas
propostas políticas de enquadramento iluminista, talvez estejamos lu-
tando, há bastante tempo, contra moinhos-de-vento.
231
\ , -.
232
essa capacidade de discriminação deve ser trabalhada, em nós e nos
outros, como um valor moral em si. E nessa defesa estou usando
também o conceito foucaultiano de moral: além do cuidado de si,
també m o comportamento efetivo das pessoas e os códigos que regulam
esse comportamento.
Como um ú ltimo comentá rio à obra de Jennifer, saliento o quanto
sua crítica às pedagogias radicais é produtiva, não só no sentido de
“ afinar ” nossa comprensão sobre as práticas pedagógicas que há tanto
tempo abraçamos e procuramos desenvolver como, també m, no sentido
de nos mostrar que uma perspectiva pós-estruturalista, como a de
Michel Foucault, pode ser otimista ao nos apontar tanto onde, como e
quando estamos sendo dominadores, quanto apontar os espaços de
liberdade nos quais podemos colocar em movimento nossas pequenas
revoltas diá rias.
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— —
denomina disciplinas reais Psicologia, Sociologia, História e Filosofia
, ele efetua um exercício de desfamiliarização e nos oferece uma
f interpretação que inverte a visão que se costuma ter dessa área (Hoskin,
1993). Sua tese é de que “ a Educação, longe de ser subordinada, é
‘supra-ordinada’, e que comprender a Educação e seu poder é a única
maneira de comprender a gé nese da disciplinaridade e o resultante
crescimento aparentemente inexorável do poder disciplinar ” (id., ib.,
p.272). Em outras palavras, isso significa que a disciplinaridade e o
poder disciplinar tê m, na Educação, a sua gé nese e fixação. Portanto,
dela emana a calculabilidade do mundo moderno: um mundo no qual
todos nós reconhecemos e internalizamos os valores que cada um tem
e as posições que cada um ocupa. É daí que decorre a governamentali-
dade. Assim entendido o papel da Educação, não há como discordar do
status subordinado que lhe tê m a Filosofia moderna e, principalmente,
as chamadas Ciê ncias Humanas. É daí també m que decorre a idéia de
que a prá tica educacional é o elemento de conexão entre o poder e o
saber, ocultado pelo hífen que liga os dois termos.
238
A
239
entendimento do mundo é, sempre e necessariamente, representacional
e que daí decorre a impossibilidade de uma contra-ideologia suficiente.
E ignoram, ainda, que aquilo que o professor ensina não são conheci-
mentos escolhidos ( por ele, pelos sistemas educacionais etc.) a partir de
um universo mais amplo, mas são, sim, discursos preferenciais. Nessa
nova perspectiva, ocorre um deslocamento com relação ao que mais
! deve nos interessar: não são mais “ os conhecimentos em si, mas como
eçses conhecimentos se transmutam simbolicamente e como se arranjam
para montar os discursos” (Veiga-Neto, 1994, p.18). Como conseqiiên-
cia, deveria haver um deslocamento també m no currículo escolar: “ do
conhecimento de fatos e desenvolvimento de habilidades para o reco-
nhecimento dos sistemas simbólicos e práticas discursivas em que
estamos mergulhados” (id., ib.). Penso que ainda não está suficiente-
mente explorada a produtividade dessa crítica ao realismo pedagógico,
principalmente no que concerne à sua aplicação à teorização do currí-
culo. Nesse sentido, os insights de Alvarado e Ferguson, apesar de não
serem tão recentes, ainda são promissores.
£
Foi baseado també m nesses autores que, numa parte do recente
trabalho que acima citei (Veiga- Neto, 1994 ), desdobrei as discussões
relativas ao realismo em Educação e, usando a aná lise foucaultiana
—
sobre o papel da representação na episteme moderna em especial a
instigante discussão que o fil ósofo faz no texto Las Meninas (Foucault,
1992) —retomei a questão do estatuto das Ciê ncias Humanas no que
se refere à sua cientificidade e à sua impossibilidade de constitu írem o
homem moderno como objeto de seu conhecimento. Isso tem impor -
tâ ncia para n ós, educadores, por dois motivos. Em primeiro lugar, está
a questão de busca de legitimidade científica para, por exemplo a
Sociologia da Educação, para a Psicologia da aprendizagem e do
desenvolvimento e para a pr ó pria Pedagogia. Em segundo lugar, mas
igualmente importante, está a questão de nossa crença na possibilidade
de a linguagem ser transparente. Em outras palavras, ao não reconhe-
cermos que as Ciê ncias Humanas se estruturaram e operam a partir de
elementos tomados da Matemá tica e das Ciê ncias Naturais, e ao não
reconhecermos que, nesse processo, cada elemento, conceito ou idéia
se transmuta, nã o percebemos que todos eles são sempre repre-
sentações. E, ao mesmo tempo em que essas representações são o acesso
que temos à realidade humana, elas a constituem. Como comentei em
outras passagens deste capítulo, isso tudo torna extremamente proble-
mática a possibilidade de escaparmos, via uma maior cientificidade em
nossas análises, das ideologias que parecem nos cercar e dominar.
Simplesmente porque tudo é representação.
240
partir da educação matemática. Exatamente por desenvolver seu traba-
lho numa perspectiva foucaultiana, suas pesquisas, na maior parte de
natureza empírica, quase nada tê m a ver com aquilo que, comumente,
no meio acadêmico, se costuma denomirtar Educação Matemática. Ela
não trata nem de inventar/descobrir melhores tecnologias de ensino
nessa área, nem de “ usar ” a Matemática para averiguar a epistemologia
envolvida na gé nese e no desenvolvimento do raciocínio lógico na
criança, nos jovens ou nos adultos.
Ao contrá rio, boa parte da obra de Walkerdine pode ser compren-
dida como uma cr ítica às perspectivas que tomam a criança como ser
biológico que, mediante um processo de adaptações sucessivas ao meio,
desenvolveria uma racionalidade que parte de estágios concretos e
alcança a abstração. Ao invés de tomar como dada uma natureza
humana universal que seria, em cada um de nós, moldada pelo ambiente
social, e ao contrá rio de conceder crédito à idéia realista de ser possível
o acesso direto ao mundo material — isso é, à idéia de “ mente como
—
espelho da realidade” (Rorty, 1988 ) , Walkerdine dedica-se a analisar
as prá ticas discursivas que estabeleceram esse regime de verdade e
também as prá ticas discursivas nas quais as crianças estão mergulhadas
desde o ambiente doméstico.
Ela nos revela, então, que entendermos o desenvolvimento da
inteligê ncia como uma seq üência de estágios inerentes à nossa espécie
— como nos propõe, pbr
—
^ exemplo, a epistemologia genética de
Piaget é resultado de um “ movimento” discursivo que se estabeleceu
Jean
na Modernidade. Isso se deu em condições histó ricas específicas: um
ambiente social europeu, branco, machista, colonizador e capitalista. E
teve como objetivo produzir cidad ã os auto-regulados, capazes de viver
de acordo com as novas tecnologias e aparatos que engendraram novas
pr áticas de administração e governo. Ao argumento de que as pesquisas
revelam que, mesmo em classes pobres, as crianças seguem (ainda que
com atraso) aquela seqiienciação, Valerie nos responde que, se anali-
sarmos a questão a partir de fora de tal enquadramento, poderemos
compreender isso de outra forma. A pró pria idéia de atraso na seqíiência
—
das fases nos revela a idéia de normalização sobre a qual Foucault
—
tematizou tão bem em História da Loucura e Vigiar e Punir embutida
na epistemologia genética de Piaget.
Todo o programa de pesquisa de Walkerdine se movimenta no
sentido pós-estruturalista. Isso significa n ão seguir qualquer noção
iluminista de verdade, Ideologia, Ciência etc.; ela dá as costas igualmen-
te a Hegel, Marx, Althusser, Piaget, Saussure, Lé vi-Strauss, Vygotsky e
outros. E em Foucault que eia vai buscar a noção de pr á ticas discursivas
enquanto produtoras de verdade.
Num interessante artigo em que analisa as pedagogias construtivis-
,
tas Walkerdine (1984 ) nos lembra que o movimento educacional
— —
progressivista que no Brasil denominou -se Escola Nova tinha, já
241
na década de 1920, o ideal de fazer a escola funcionar no sentido de
-
educar as crianças para a liberdade, para a auto iniciativa e para a
independê ncia, de modo a se tornarem adyjtos racionais. Objetivos
muito semelhantes a esses, senão iguais, sã o proclamados ainda hoje
pelas pedagogias construtivistas. Frente a isso, ela nos pergunta: “ por
que tantas crian ças não alcan çam esses objetivos e qual é o papel da
Psicologia do desenvolvimento em tudo isso ? ” (id., ib., p.153). A
— —
resposta que ela nos propõe e em torno da qual ela vai argumentar
ao longo de seu texto é que “ a questã o central da Psicologia do
desenvolvimento, a ‘crian ça em desenvolvimento’, é um objeto tomado
como premissa enquanto localização de certas capacidades dentro da
‘criança’ e, assim, dentro do domínio da Psicologia” (id., ib., p.154 ).
Os aspectos daquilo que se costuma denominar o domínio social são
entendidos como elementos que vêm de fora e que influenciam, diri-
gem, conduzem, afetam etc. o desenvolvimento infantil; nesses enqua-
dramentos construtivistas, cabe à escola articular e montar, da melhor
maneira, essas influê ncias, direções, condu ções etc. É exatamente con-
tra essa bi-polaridade interno versus externo que se dirigem as investi-
? gações de Valerie. Ela nos propõe que (a) não só a Psicologia do
desenvolvimento toma a si valores de verdade que são, como vimos,
historicamente determinados — e que não são, por isso mesmo, os
—
ú nicos possíveis para compreendermos a inteligê ncia infantil como,
ainda, (b) as prá ticas escolares colocadas em funcionamento pelas
pedagogias construtivistas não são meras aplicações de conhecimentos
científicos sobre o desenvolvimento da inteligê ncia na criança, mas
devem ser entendidas como implicadas na produção e legitimação
desses conhecimentos.
O significado político dessas questões nã o é trivial. O construtivis-
mo tem hoje, entre n ós, ampla aceitação na medida em que se escora
numa Epistemologia e/ou numa Psicologia do desenvolvimento que têm
status de conhecimento seguro e/ou de ciê ncia. A preocupação de
Valerie Walkerdine, com a qual eu concordo inteiramente, se centra na
questão de que, considerando que as práticas escolares, moldadas nesses
pressupostos construtivistas, contribuem decisivamente para “ consti-
tuir indivíduos, nesse caso crian ças, enquanto objetos de seu olhar, elas
os produzem como sujeitos. Na medida em que tal Psicologia cria um
regime de verdade tomado como premissa sobre um indivíduo psico-
l ógico, ela proíbe outras formulações que não repitam o dualismo entre
o indivíduo e a sociedade” (id., ib., p.197).
Em Mastery of Reason , Walkerdine (1988 ) vê como particularmen-
te interessante analisar a contribuição da educação matemática no
estabelecimento desse “ movimento” discursivo, na medida em que o
discurso educacional construiu a id éia, a partir do século XIX, segundo
•
a qual o pensamento lógico- matemático promete evitar os desvios da
criança para outras formas de pensamento e prazer menos racionais.
Uma educação calcada na racionalidade controlaria a agressividade
242
própria da natureza humana e contribuiria, assim, para diminuir o
empobrecimento e a criminalidade na sociedade.
Nessa obra, extremamente interessante tanto para professores que
trabalham em Educação Matemática quanto para aqueles interessados
em conhecer novos enfoques que ajudam a comprender como se dá a
aprendizagem infantil, são exaustivamente analisadas práticas discursi-
vas, nas famílias e nas salas de aula, de modo a nos revelar “ que a
‘verdade’ sobre o desenvolvimento matemático da criança é produzida
nas salas de aula, e que toda a aprendizagem pode ser comprendida
como ocorrendo dentro das pr áticas sociais nas quais a relação entre
significante e significado é constantemente problemática” (Walkerdine,
1988, p.9).
Entre as vá rias observações que faz, em situações concretas no
ambiente familiar e em salas de aula, Valerie descreve e analisa meticu-
losamente as práticas discursivas de crianças, membros de suas famílias
e professoras
— que envolvam conceitos ou entidades lógico-matemá-
—
ticas ou apenas matemáticas , sempre evitando “ adaptar ” suas obser-
vações e interpretações a partir de um suposto desenvolvimento
semâ ntico universal que seria inerente à inteligência humana. Dessa 1
forma, ela explora, por exemplo, questões sobre a produção dos
“ significados matemáticos” , sobre as relações entre tamanhos e propor-
ções diferentes e sobre como as crianças transformam os discursos
não-matemáticos em matemáticos.
Conclusões
243
tentativas de escapar de qualquer enquadramento que postule como
não-problemáticas as idéias iluministas de um sujeito fondante, de uma
razão transcendental e de um homem ou mulher natural e universal que
habitaria dentro de cada um de nós.
tí
Referências Bibliográficas
244
Bibliografia Adicional sobre “ Foucault e Educação”
245
F
WALKERDINE, V. It’s only natural: rethinking child-centered pedagogy. In: A.M.Wolpe &
James Donald (Eds.) , 7s there anyone here from education ? Londres, Pluto Press, 1983: 79-87.
246
r ‘
12
Tomaz Ta d eu da Silva
O Adeus às Metanarrativas Educacionais
247
embora aquelas questões especificamente pós-estruturalistas sejam as-
sim identificadas.
Mas, sem entrar numa descrição prévia dos elementos do pensa-
mento pós-estruturalista, que será feita ao longo do trabalho, quais são
seus impactos sobre a teoria e a pesquisa educacionais ? Que elementos
do edif ício teó rico educacional são abalados pelas reconceptualizações
do pós-estruturalismo e do pós-modernismo ? Quais desses elementos
permanecem intactos após o vendaval pós-estruturalista ?
O campo educacional é um campo privilegiado de confrontação
para o pensamento pós-moderno e pós-estruturalista. Onde mais as
metanarrativas sã o tão onipresentes e tão “ necessá rias” ? Em que outro
local o sujeito e a consciê ncia são tão centrais e tão centrados ? Em que
outro campo os aspectos regulativos e de governo ( no sentido foucaul-
tiano) são tão evidentes ? Haverá uma outra á rea em que os princípios
humanistas da autonomia do sujeito e os essencialismos corresponden-
tes sejam tão caramente cultivados ? Existirá um outro campo, alé m do
da educação, em que binarismos como opressão/libertação, opresso-
-
res/oprimidos, tão castigados por uma certa ala do pós estruturalismo,
circulem tão livremente e o definam tão claramente ? E onde mais a
“ Razão” preside tão soberana e constitui um fundamento tão impor-
tante ? També m não haverá outro lugar em que o papel da intelectual
( professora ou acad ê mica) seja tão enfatizado, nem outro lugar em que
a mudança (do educando, da escola, da sociedade ) seja tão ardentemen -
te buscada. Utopias, universalismos, grandiloq üências, narrativas mes-
tras, vanguardismo: esse o terreno em que a educação e a teoria
educacional se movimentam. Aqui o pós- modernismo e o pós-estrutu-
ralismo tê m muito a questionar.
248
•* r.
'
249
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“ virada linguistica” , subverte todas as nossas mais queridas noções sobre
educação, incluindo aquelas que tínhamos como mais cr íticas e trans-
gressivas. Nisso reside sua força. Querer mais significará provavelmente
voltar a operar precisamente no registro do qual se quer sair.
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sua cr ítica em relação às posições de poder dos outros quanto pelo grau
de sua auto-reflexividade.
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gias sociais e educacionais que constituem para nós o campo do possível,
nos permitindo pensar, dizer e fazer certas coisas e não outras.
Essa perspectiva poderia ser aplicada a muitas outras epistemes e
epistemologias sociais no campo da educação, mas me restringirei a
apresentar aqui o exemplo das categorias e redefinições atualmente
postas a circular pelo chamado neoliberalismo. Estamos atualmente
presenciando um processo amplo de redefinição global das esferas
social, política e pessoal, no qual complexos e eficazes mecanismos de
significação e representação são utilizados para criar e recriar um clima
favorável à visão social e política neoliberal. O que está em jogo não é
apenas uma reestruturação neoliberal das esferas económica, social e
política, mas uma reelaboração e redefinição das pr óprias formas de
representação e significação social. O projeto neoconservador e neoli-
beral envolve, centralmente, a criação de um espaço em que se torne
impossível pensar o económico, o político e o social fora das categorias
que justificam o arranjo social capitalista. Nesse espaço hegemónico,
visões alternativas e contrapostas à liberal/capitalista são reprimidas a
ponto de desaparecer da imaginação e do pensamento até mesmo
daqueles grupos mais vitimizados pelo presente sistema. Em seu con-
junto, esse processo faz com que noções tais como igualdade e justiça
social recuem no espaço de discussão p ú blica e cedam lugar às noções
redefinidas de produtividade, eficiê ncia, “ qualidade ” , colocadas como
condição de acesso a uma suposta “ modernidade” (outro termo, aliás,
submetido a um processo de redefinição ). E preciso perguntar: quais
questões e noções são reprimidas, suprimidas ou ignoradas quando um
i discurso desse tipo se torna hegemónico ? Que visões alternativas de
sociedade deixam de circular no imaginário pessoal e social ?
A redefinição da educação em termos de mercado insere-se nessa
epistemologia social. A educação deixa de ser definida como um espaço
público de discussão, como uma instituição pertencente à esfera políti-
ca, e passa a ser redefinida como um bem de consumo, no qual
estudantes e pais figuram como consumidores individuais e isolados em
busca de seus supostos direitos de consumidores. Nesse processo,
tendem a ser suprimidas categorias e conceitos com os quais tendíamos
a encarar a educação institucionalizada — —
cados em favor de outras categorias conceitos mercado, consumi-
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justiça, igualdade ,- deslo-
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