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2 EDIÇÃO
Tomaz Tadeu daSilva
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I ; Coleção: CIÊNCIAS SOCIAIS DA EDUCAÇÃO


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I- ? Coordemadores: Maria Alice Nogueira e Léa Pinheiro Paixão
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O SUJEITO DA EDUCAÇÃO
Tomaz Tadeu da Stiva (org.) H J * 1
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SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO: DEZ ANOS DE PESQUISA
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Jean Claude Forquin (org.)
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NEOUBERAUSMO, QUALIDADE TOTAL E EDUCAÇÃO
Tomaz Tadeu da Silva (org.)
TEORIA CRÍTICA & EDUCAÇÃO
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Bruno Pucci (org . )
CURRÍCULO: TEORIA E HISTÓRIA
/uor Goodson
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ETNOMETODOLOGIA E EDUCAÇÃO
Í. Alain Coulon
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* Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
í (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil )
y O sujeito da educação : estudos foucaultianos / Tomaz Tadeu da Silva (org.).
-
- Petrópolis , FU : Vozes , 1994. (Ciências sociais da educação)
I

Vários autores.
ISBN 85-326- 1317-9
:

1. Educação - Filosofia 2. Foucault., Michael, 1926-19841. Silva, Tomaz


Tadeu da. II. Série.

*
94-3532 CDD-370.1

índices para catálogo sistemático:


1. Educação : Filosofia 370.1 ;
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2. Foucault : Teorias educacionais 370.1
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Tomaz Tadeu da Silva (Org.)


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O SUJEITO DA
EDUCAÇÃO *

Estudos Foucaultianos

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2- Edição

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Petrópolis
1995
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F

© 1994, Editora Vozes Ltda


Rua Frei Luís, 100
;
25689-900 Petrópolis, RJ
Brasil

FICHA TÉCNICA

: COORDENAÇÃO EDITORIAL:
i Avelino Grassi
i

EDITOR:
Antonio De Paulo

COORDENAÇÃO INDUSTRIAL:
José Luiz Castro

EDITOR DE ARTE:
Ornar Santos

EDITORAÇÃO:
Supervisão grá fica: Valderes Rodrigues

ISBN 85.326.1317-9

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' Este livro foi impresso nas oficinas gráficas da Editora Vozes Ltda. -
Rua Frei Luís, 100. Petrópolis, RJ - Brasil - CEP 25689-900 - Tel.: (0242)43-5112 -
Fax: (0242)42-0692 - Caixa Postal 90023 - Endereço Telegráfico: VOZES -
Inscrição Estadual 80.647.050 - CGC 31.127.301/0001-04.

22Èb. .
L
1

Este é dedicado ao grupo do meu


Seminá rio do Fim de Tarde de Segunda-Feira
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Sumário

1
Jennifer M . Gore
Foucault e Educação: Fascinantes Desafios 9
2
James Marshall
Governamentalidade e Educação Liberal 21
3
Jorge Lanosa
Tecnologias do Eu e Educação 35
4
Julia Varela
O Estatuto do Saber Pedagógico 87
5
Roger Deacon & Ben Parker
Educação como Sujeição e como Recusa 97
6
David Martin Jones
Foucault e a Possibilidade de uma
Pedagogia sem Redenção 111
7
Frank Pignatelli
Que Posso Fazer? Foucault e a Questão da
Liberdade e da Agência Docente 127
8
David Blacker
Foucault e a Responsabilidade Intelectual 155
9
Thomas S . Popkewitz
História do Currículo, Regulação Social e Poder 173
10
Michael Peters
Governamentalidade Neoliberal e Educação 211
11
Alfredo J . Veiga -Neto
Foucault e Educação: Outros Estudos Foucaultianos 225
12
Tomaz Tadeu da Silva
O Adeus às Metanarrativas Educacionais 247
F

1 i

Jennifer M. Gore
Foucault e Educação: Fascinantes Desafios

Nenhum discurso é inerentemente libertador ou opressivo. A


condição libertadora de qualquer discurso teórico é uma questão i

de investigação histórica, não de proclamação téorica (Jana Sa-


wicki, 1988a, p. 166). ?

Pdaara. Neste
muitos, essa frase parecerá estranha ou simplesmente equivoca-
capítulo, meu objetivo é demonstrar como essa posição í

pode ser defendida e por que ela é importante no campo da educação. j


Tanto a frase acima quanto este capítulo estão enquadrados pelo
trabalho do filósofo social francês Michel Foucault. O trabalho de :

Foucault tem influenciado profundamente o pensamento em muitos


campos da teoria social, incluindo, bastante recentemente, a educação.
Em parte, a magnitude dessa influência advém do grau em que suas
idéias — —
embora contrá rias aos entendimentos existentes são con -
vincentes e persuasivas.
A frase de Sawicki caracteriza os principais desafios foucaultianos ;
que enfatizarei neste capítulo. Embora exista um corpo crescente e 4
sofisticado de literatura, de debate e de análise do trabalho de Foucault,
meu objetivo aqui é simplesmente o de explorar as conseqiiê ncias da
visão de Foucault de que a verdade e o poder estão mutuamente :

interligados através de práticas contextualmente específicas. Inicio essa 1


'

tarefa com um desenvolvimento das idéias de Foucault sobre poder e i

saber, centrando-me na sua noção de “ regimes de verdade” . A seguir,


considero as aplicações das análises de Foucault à educação. Finalmen - 1

te, passo em revista as implicações dos desafios de Foucault. j

Antes de começar, faz-se necessá ria uma breve nota sobre o uso do
termo “ discurso” . A noção de discurso usada aqui não é a da linguistica,
na qual a preocupação principal é com a estrutura da linguagem. Em
j

vez disso, o termo “ discurso” é usado aqui tal como o é por Foucault e 1!
pelo pós-estruturalismo: o foco está muito mais no conteúdo e no
contexto da linguagem. Os discursos, no contexto de relações de poder
específicas, historicamente constitu ídas, e invocando noções partícula-
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res de verdade, definem as ações e os eventos que são plausíveis,
racionalizados ou justificados num dado campo. Portanto, ao fazer
jrjpfef êpci disçurços* minha intenção é assinalar uma preocupação não
p$l$vras* conjuntos
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Santo 'còni ò què ãs jf ãiàvras significam quanto com a forma como as
de sentenças e - prá ticas , relacionadas funcionam
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( Bové, 1990).
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Regimes de verdade, poder-saber e poder disciplinar

A noção de “ regimes de verdade” de Foucault (1980) é central à parte


de seu trabalho que quero expor aqui. O próprio termo evoca visões
de “ verdade” , qsadas de formas que controlam e regulam. Exemplos
,dramáticos, nos quais versões da “ verdade ” tiveram horr íveis conse-
quê ncias de opressão e violência, tais como as visões de uma raça ariana
pura de Hitler ou a pol ítica do apartheid da Africa do Sul, nos vê m à
mente. Na explicação que Foucault (1985 b) d á do termo: “ Á ‘verdade’
está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a
apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem ” (p. ÿ

133). Dessá foTma, eu argumento que não é apenas em relação àqb


discursos “ dominantes” ou “ dominadores” de qualquer sociedade que
faz sentido falar de regimes dé verdade (Gore, 1990a, 1993) Se o poder ;

e a ’ verdade estão “ ligados numa relação circular ” , se a verdade existe


írumá relação de poder e o poder opera em conexão com a verdade,
então todos os discursos podem ser vistos funcionando como regimes
de verdade* - •
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Desenvolvendo essa noção, Foucault (1980) diz:
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “ pol ítica geral ” de
:
verdáde: isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como
’ verdadeiiros; os mecanismos e instâ ncias que permitem distinguir
entrèlsenten ças verdadeiras e falsas, òs meios pelos quais cada um
deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na
aquisdÇão da verdade; o status daqueles que estão encarregados de
dizer o que conta como verdadeiro (p. 131).

Consideremos a “ política de verdade” na educação. Dito de forma


breve, os discursos baseados na disciplina da Psicologia e vinculados a
noções particulares de ciê ncia têm sido mais prontamente aceitos que
outros tipos de discursos; a razão científica tem sido o meio principal
pelo qual esses discursos são sancionados; as técnicas empíricas tê m tido
primazia na produ ção da verdade; tem-se concedido um status profis-
sional, científico e intelectual àqueles que estão encarregados de dizer
o que conta como verdade. Discursos alternativos ou competidores,
embora tendo que funcionar no contexto dessa pol ítica geral de verdade
na educação, constroem suas próprias versões de verdade, suas próprias

10
versões daquilo que conta, de quem está autorizado a falar. Isto é, eles
também podem ser vistos como regimes de verdade.
A fim de compreender mais pienamente a noção de “ regime de j

verdade” , quero chamar atenção para o uso que Foucault faz dos
conceitos de poder e saber ( pouvour e savoir ). E ú til começar por tentar
esclarecer aquilo que poder e saber, nessa utilização, não é. Em primeiro
lugar, a despeito de seus argumentos sobre a conexão poder-saber,
Foucault (1983a) é bastante enf ático ao afirmar que poder e saber não
são id ê nticos:

Quando leio — e eu sei que ela me tem sido atribuída — a tese de


que “ saber é poder ” ou “ poder é saber ” , começo a dar risadas, uma
vez que estudar sua relação é precisamente o meu problema. Se eles
fossem id ê nticos, eu não teria que estud á-los e, como resultado, eu
me teria poupado um bocado de cansaço. O pró prio fato de que eu
^
coloco a questão de sua relação prova claramente que eu não os tenho
como idê nticos (p. 210).

Em segundo lugar, Foucault distancia-se das definições convencionais


de poder e saber. Ele inverte a articulação convencional na qual o poder
funciona apenas de forma negativa e na qual a verdade ou o saber
podem inverter, apagar ou desafiar a dominação do poder repressivo
( Dreyfus & Rabinow, 1983; Keenan, 1987). Essa defini çã o convencio-
nal da relação entre poder e saber encontra-se em muitos dos discursos
educacionais que se autoproclamam como radicais e nos quais, através
do processo de conscientiza ção e de educação (em geral ), os poderes
dominantes podem ser desmascarados para revelar a “ verdade” e, como
resultado, aumentar o potencial para derrubar o sistema capitalista e/ou
patriarcal. O saber, nessa perspectiva, serve de contra-ataque aos males
do poder. Em vez disso, a noção de poder -saber de Foucault desafia a
suposição de que alguma verdade não-distorcida pode ser alcançada
( Diamond &c Quinby, 1988 ); ela “ delimita os sonhos dos intelectuais
em relação ao controle que a verdade pode ter sobre o poder ” ( Bové,
1988, p. xviii ). Devo enfatizar, neste ponto, que minha refer ê ncia aos
discursos educacionais radicais não implica que esses discursos sejam,
de alguma forma, mais perigosos que outros discursos educacionais
simplesmente porque eles têm uma visão convencional de poder. De
fato, essa concepção convencional de poder é partilhada com os discur- 1
sos educacionais “ tradicionais” , quando eles se envolvem, por exemplo,
com a estrutura organizacional ou o fortalecimento do poder da
professora.

Foucault expressa sua compreensão alternativa uma compreen -
são que, para mim, é altamente convincente — de poder e saber, e de
sua relação, através da expressão “ poder-saber ” . Nessa visão, o poder
não é necessariamente repressivo uma vez que incita, induz, seduz,
torna mais f ácil ou mais dif ícil, amplia ou limita, torna mais provável

11
ou menos provável (Foucault, 1983b). Alé m disso, o poder é exercido
jy praticado em vez de possuído e, assim, circula, passando através de
ou
toda força a ele relacionada. Na educação, por exemplo, é claro que o
poder não está apenas nas mãos das professoras. As estudantes (e as
mães e os pais e as administradoras e o governo) també m exercem poder
nas escolas. A fim de compreender o funcionamento do poder em
qualquer contexto, precisamos compreender os pontos particulares
através dos quais ele passa (Foucault, 1980 ). Nesse sentido, Foucault
chama aten ção para a necessidade de reconsiderar alguns de nossos
pressupostos sobre a escolarização e de olhar de forma renovada e mais
atenta para as “ micropráticas” do poder nas instituições educacionais.
Nas suas aná lises do poder, Foucault está especialmente preocupa-
do com formas de “ governo” , baseando-se no significado que essa
palavra tinha no século XVI, no qual “ se referia não apenas às estruturas
pol íticas ou à administração dos estados; designava, em vez disso, a
forma pela qual a conduta dos indivíduos ou grupos podia ser dirigida;
o governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos
j doentes... Governar, nesse sentido, é estruturar o campo possível de
ação de outros” (Foucault, 1983b, p. 221). Foucault argumenta que as
formas modernas de governo revelam uma mudança, do poder sobera-
no, que é aberto, visível e localizado na monarquia, para o poder
“ disciplinar ” , que é exercido por meio de sua “ invisibilidade ” através
das tecnologias normalizadoras do eu. Tradicionalmente, o poder é o
que é visto, o que é mostrado e o que é manifestado:
O poder disciplinar, ao contr á rio, se exerce tornando-se invisível:
em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilida-
de obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos.
Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles.
E o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que
manté m sujeitado o indivíduo disciplinar (Foucault, 1977b, p. 167).

A noção de poder disciplinar é vividamente ilustrada na apresentação


que Foucault faz do Panóptico de Bentham: uma estrutura arquitetôni-
ca, criada principalmente para as prisões, na qual células individuais na
periferia do edif ício circundam uma torre central. A contra-iluminação
criada por janelas internas e externas permite a observação de cada cela
a partir da torre central, assegurando ao mesmo tempo que os prisio-
neiros não possam saber se estão sendo observados. “ Daí o efeito mais
importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e
permanente de visibilidade que assegure o funcionamento automá tico
do poder ” (Foucault, 1977b, p. 177). O poder disciplinar torna-se,
assim, internalizado:

4 Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso,


retoma por sua conta as limitações do poder ; f á-las funcionar

12
r
espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder
na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o i

princípio de sua própria sujeição (Foucault, 1977b, p. 179).


Considerada no contexto da educação escolar, esta noção de poder
disciplinar ajuda a explicar a auto-regulação dos estudantes, que man-
tê m seus comportamentos mesmo quando a professora deixa a sala de
aula. Focalizarei agora mais de perto a educação, discutindo tanto o
trabalho de Foucault nessa á rea quanto as implicações de seu trabalho
mais geral.

A educação

Embora Foucault não faça uma análise detalhada das escolas, é claro
que ele via as escolas e a educação formal como exercendo um papel
no crescimento do poder disciplinar. Em Vigiar e Punir, num capítulo
intitulado “ Corpos dóceis” , Foucault descreve inovações pedagógicas
iniciais e o modelo que elas forneceram para a economia, a medicina e
a teoria militar do século XVIII. Mais adiante no livro, ele pergunta:
“ Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as f ábricas,
com as escolas, com os quarté is, com os hospitais, e todos se pareçam
com as prisões ? ” (Foucault, 1977b, p. 199). Essas semelhanças articu-
ladas por Foucault emergiram do foco que seus estudos colocam sobre
os mecanismos que constroem instituições e experiências institucionais,
e não sobre as pessoas no interior dessas instituições:

Diz-se, às vezes, muito apressadamente, que Foucault foi aquele que


estudou o louco, o doente e os prisioneiros... Entretanto, ele escre-
veu O Nascimento da Clínica, Loucura e Civilização, Vigiar e Punir.
Ele não coletou lamentos de pacientes, nem captou as confissões de
prisioneiros ou tentou surpreender os loucos em suas tarefas; ele
estudou os mecanismos da cura e os mecanismos da punição. Ele se
voltou para as instituições, ele se baseou em seus edif ícios e em seus
equipamentos, ele investigou suas doutrinas e disciplinas, ele enu-
merou e catalogou suas práticas e mostrou suas tecnologias...Como
resultado disso, em vez de contemplar o insano, o prisioneiro ou a
pessoa pobre como um vaso sobre uma mesa, ele preferiu estudar o
confinamento, compreender o aprisionamento e analisar a institui-
ção da assistê ncia social (Barret-Kriegel, 1992, pp. 193-4).
Os pr ó prios estudantes reconhecem esses mecanismos que Foucault
estudou quando eles usam a expressão “ esta escola é como uma prisão” .
Consideremos alguns desses mecanismos.
O processo pedagógico corporifica relações de poder entre profes-
sores e aprendizes (definidos, seja de forma estreita, para se referir aos
atores na educação institucionalizada, seja de forma ampla, para se

13
mmm wr

referir a outras relações pedagógicas, tais como as que se dão entre pais
e filhos, escritores e leitores e assim por diante) com respeito a questões
de saber: qual saber é válido, qual saber é produzido, o saber de quem.
A pedagogia se baseia em técnicas particulares de governo, cujo desen-
volvimento pode ser traçado historicamente/arqueologicamente (veja,
por exemplo, Hamilton, 1989; Hunter, 1988; Jones & Williamson,
1979; Meredyt &c Tyler, 1993; Luke, 1989), e produz e reproduz, em
diferentes momentos, regras e pr áticas particulares. De forma crescente,
a pedagogia tem enfatizado o autodisciplinamento, pelo qual os estu-
dantes devem conservar a si e aos outros sob controle. Seguindo
Foucault, as técnicas/ práticas que induzem esse comportamento podem
ser chamadas de tecnologias do eu. Essas tecnologias agem sobre o
corpo: olhos, mãos, boca, movimento. Por exemplo, em muitas salas
de aula, os estudantes depressa aprendem a levantar suas mãos antes de
falar em classe, a conservar seus olhos sobre seu trabalho durante um
teste, a conservar seus olhos no professor, a dar a aparê ncia de estar
escutando quando o professor está dando instruções, a permanecer em
suas carteiras. Podemos dizer que as pedagogias produzem regimes
corporais políticos particulares. Essas tecnologias do eu corporal po-
dem também ser entendidas como manifestações do eu (mental ) inter-
no, como a forma como as pessoas identificam a si mesmas. As
pedagogias, nessa análise, funcionam como regimes de verdade. As
relações disciplinares de poder-saber são fundamentais aos processos
da pedagogia. Sejam elas auto-impostas, impostas pelos professores, ou
impostas sobre os professores, como coloca Foucault (1977b): “ Uma
relação de fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da
prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como
um mecanismo que lhe é inerente e que multiplica sua eficiê ncia” ( p.
158 ).
Mecanismos de podè r-saber funcionam não apenas em relação a
pedagogias defendidas em discursos educacionais, isto é, em relação a
visões sociais e práticas instrucionais particulares, promulgadas em
nome da pedagogia, mas também em relação à pedagogia dos argumen-
tos que caracterizam discursos educacionais específicos, isto é, aos
pr óprios argumentos (Gore, 1993). Foucault (1985a) argumentou que
“ é justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber ” (p. 95).
Portanto:
não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o
discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso domi-
nante e o dominado; mas, ao contrá rio, como uma multiplicidade
de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferen-
tes... Os discursos, como os silê ncios, nem são submetidos de uma
vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo
complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo,
instrumento e efeito de poder, e també m obstáculo, escora, ponto

14
r
de resistê ncia e ponto de partida deruma estratégia oposta. O
discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também , o mina,
expõe, debilita e permite barrá-lo;.. Não existe um discurso do poder
de um lado e, em face dele, um outro, contraposto (pp. 95-96).
Os discursos radicais e emancipatórios não estão isentos dessa análise.
Assim, quando os teóricos educacionais radicais se apoiam em FouCault
para argumentar que podemos considerar os discursos educacionais
dominantes (aqueles produzidos pela cultura dominante ) como “ regi-
mes de verdade” ,1 eles deixam de enfatizar o argumento de Foucault
(1983c) de que “ tudo é perigoso” (p. 231).
Keenan (1987) argumenta que “ pelo fato de a articulação entre
poder e saber ser discursiva , o vínculo nunca pode ser garantido... é
impredizível... O discurso que torna o vínculo possível també m o mina,
precisamente porque poder e saber são diferentes” (pp. 17-18 ). Sawicki
(1988 b) també m apresenta esse argumento em sua análise —
orientada

por Foucault da identidade entre pol ítica e liberdade sexual. Quando
ela se refere à “ sexualidade” , eu coloquei no seu lugar “ pedagogia” , a
fim de demonstrar a relevância do argumento para a minha pr ópria
preocupação prá tica e intelectual com os discursos da pedagogia radical
(veja Gore, 1990a, 1990b, 1990c, 1991, 1993): •

O discurso é ambígiio... uma forma de poder que circuiamo campo


•> social e pode ligar-se tanto a estragégias de dominação quanto a
,

estratégias de resistência. Sem ser inteiramente uma fonte de domi-


nação nem de resistê ncia, a pedagogia não está també m nem fora do
poder nem inteiramente circunscrita por ele. Em vez disso, é ela
pr ó pria uma arena de luta. Não existem práticas pedagógicas ine-
rentemente libertadoras pu inerentemente repressivas, pois qualquer
-
pr ática é cooptá vel e qualquer prá tica é capaz de tornar se uma fonte
de resist ê ncia. Afinal, se as relações de poder são dispersas e frag-
, mentadas ao longo do campo social, assim também o deve ser a
resistê ncia ao poder.

Alguns exemplos podem nos ajudar a compreender esse ponto. Consi -


deremos o costume de dispor as carteiras em círculo, tão comum nas
pr áticas pedagógicas progressistas. O círculo é freqiientemente empre-
\
gado para afastar a interação de sala de aula do controle direto da
professora. O círculo contrapõe-se à sala de aula tradicional na qual “ a
posição fixa é o resultado da ciê ncia da super-visão , um arranjo de
pessoas em unidades coletivas acessíveis à vigil â ncia constante. Através
do arranjo dos estudantes em fileiras, todos os olhos voltados para a

1 Veja, por exemplo, McLaren (1989, p. 181).

15

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m

frente, confrontando diretamente a nuca do colega, encontrando ape -


nas o olhar da professora, a disciplina da sala de aula contemporânea
coloca em ação o olhar (a observação) como uma estratégia de domi-
nação” (Grumet, 1988, p. 111). O círculo abre a possibilidade de que
todo estudante manifeste sua opinião e de que seja ouvido. Com as
estudantes sentando no chão ou em cadeiras móveis, elas são libertadas
dos limites restritivos de suas carteiras, onde ficam separadas entre si.
Muitas de nós, que nos dedicamos ao ensino, usamos um arranjo
circular alguma vez, com esse tipo de intenção. Foucault, Sawicki e
outros (p. ex., Walderdine, 1985, 1986) nos ajudam a compreender
que não existe nada inerentemente libertador nessa prática, mesmo
quando localizada no interior de um discurso radical, e nada inerente-
mente opressivo em nossas tradicionais fileiras de carteiras. Por um
lado, o círculo pode exigir das estudantes uma maior autodisciplina,
pela qual elas assumem a responsabilidade por comportar-se “ apropria-
damente” sem o “ olhar ” da professora. Por outro lado, a privacidade
parcial permitida pela colocação tradicional de carteiras, na qual se está
sob a vigilância ou supervisão principalmente da professora, pode
desaparecer à medida que as estudantes ficam cada vez mais diretamente
também sob a supervisão de suas colegas. A estudante que prefere não
se manifestar fica menos evidente quando todas as carteiras estão
voltadas para frente da sala de aula, assim como a estudante que não
pode usar sapatos novos, que fica ruborizada, que está entediada e assim
por diante. Não estou tentando argumentar em favor de um retorno às

fileiras de carteiras eu continuo a usar o arranjo em círculo em minha
própria prá tica. Estou argumentando que práticas educacionais supos-
tamente libertadoras não tê m nenhum efeito garantido.
Como outro exemplo, consideremos a prática (freq üentemente
bem intencionada) de reconhecer as contribuições de grupos margina-
lizados através da adição de eventos tais como “ Mês da História da
Mulher ” ou “ Mês da História dos Indígenas” ao curricula escolar. Os
efeitos de tais práticas podem ser bastante conservadores em termos de
continuar a colocar a experiência dos homens brancos no centro e
manter todas as outras experiê ncias numa posição marginal. Mesmo
currículos que objetivam transformar mais radicalmente a perspectiva
a partir da qual a vida social é vista podem desconsiderar outros grupos
marginalizados. Por exemplo, em esforços para lidar com a raça, a classe
-
e o gênero, outras formações opressivas, tais como heterossexismo e
preconceitos em relação à idade, podem prevalecer. Não existem efeitos
garantidos.

Conclusão

Tal como a vejo, esta análise de nossa localização no interior de relações


de poder-saber, da sociedade disciplinar e de regimes de verdade nos

16
r
permite começar a identificar as características de discursos e práticas
particulares que têm efeitos perigosos, dominadores ou negativos.
<
i

$ . Olhar outra vez para os mecanismos de nossas instituições educacionais, ;

questionar a “ verdade” de nossos próprios e cultivados discursos,


í
'

examinar aquilo que faz com que sejamos o que somos, tudo isso abre
possibilidades de mudança. De fato, um pouco antes de sua morte,
Foucault disse: “ Todas as minhas análises são contra a idéia de neces-
sidades universais na existência humana. Elas mostram a arbitrariedade
das instituições e mostram quais espaços de liberdade podemos ainda
desfrutar e como muitas mudanças podem ainda ser feitas” (Foucault,
. > 1988, p. 153).
Regimes de verdade não são necessariamente negativos mas, antes,
necessários. O saber e o poder estão freq üentemente ligados de forma 1
1
produtiva. Exatamente como o poder pode ser produtivo, assim tam- :1
bém o pode o nexo poder-saber no qual e através do qual efetuamos
nosso trabalho. A razão central para utilizar regimes de verdade com a
finalidade de analisar discursos educacionais radicais, como fiz em
outro local, não é a de envolver -se numa “ política de acusação” (Morris,
1988, p. 23). A falta de reflexividade dos discursos radicais não é
nenhuma surpresa à luz de sua luta para se legitimarem no contexto dos
discursos educacionais tradicionais. Em vez disso, utilizo o conceito de
regime de verdade como uma tecnologia do eu, estimulando-nos a
sermos mais humildes e reflexivos em nossas justificativas pedagógicas, 1
reconhecendo que existe um trabalho desconstrutivo a ser feito tanto %
i no interior de nosso domínio quanto fora dele. Foucault contesta 1
asserções de verdade e asserções de inocê ncia em todos os discursos
educacionais.
As análises de Foucault do nexo poder-saber levantam d ú vidas i

sobre a possibilidade ou desejabilidade de dar algum dia uma resposta


final à questão: Que práticas e discursos pedagógicos são libertadores ?
(Sawicki, 1988 b). Sua pol ítica, “ concebida para evitar o dogmatismo 1

em nossas categorias e em nossa pol ítica, assim como para evitar que se

silencie a diferença que pode ser um resultado desse dogmatismo
é uma alternativa bem-vinda a um debate polarizado” (Sawicki, 1988 b,

í p. 187). 1
j

Mas aonde nos leva esse tipo de análise ? Tem havido muitas cr íticas i

ao trabalho de Foucault, centradas na questão da precisão histórica, do


rigor metodológico e das consequências políticas: é nessa última que A
quero me concentrar. Alguns cr íticos argumentam que Foucault não
nos deixa nenhuma saída em relação ao poder disciplinar; que, com sua
f vinculação poder-saber, Foucault suprimiu a base para um vínculo
político prático entre os dois (p. ex., Anderson, 1983; Habermas, 1986;
Taylor, 1986). Alguns afirmam que a análise de Foucault nos deixa
apenas com o pessimismo. Outros argumentam que seu trabalho é
contrá rio aos projetos feministas ( p. ex. Balbus, 1988 ). Esses argumen -

17
'
-
Xy

tòs advê m de leituras particulares de Foucault e de agendas intelectuais,


pol íticas e profissionais particulares ( Bové, 1988 ). Bové (1988 ) argu-
menta que muitos acad ê micos interpretam mal Foucault para “ anular
Y as consequê ncias pol íticas de sua cr ítica das disciplinas e de seus
próprios discursos e posições no interior do aparato pòder-saber” ( p .
xi). • .

Outros argumentam que “ a própria relutâ ncia de Foucault em ser


explícito sobre suas posições éticas e políticas pode ser atribuída não ao
niilismo, áo relativismo ou à irresponsabilidade política, mas, antes, à
sua id é ia dos perigos de progràmas políticos baseados na grande teoria ”
(Sawicki, 1988 b, p. 189). Minha visã o é que Foucault (1980 ) deixou
as questões de táticas, estratégias, objetivos específicos àquelas pessoas
diretamente envolvidas na luta e na resistência. Vem da í sua noção de
intelectuais “ específicos” trabalhando no interior de setores específicos
“ em pontos precisos nos quais suas pró prias condições de vida ou
trabalho os situam” ( p. 126). Como Foucault (1983b) argumentou:
,

Uma sociedade sem relações de poder só pode ser uma abstração...


Dizer que não pode haver uma sociedade sem relações de poder não
é dizer que aquelas que são estabelecidas são necessárias ou, de
qualquer forma, que o poder constitui uma fatalidade no centro das
sociedades, de forma que ele não pode ser minado. Em vez disso, eu ,

diria que a análise, a elaboração e o questionamento das relações de


poder.v é uma tarefa política permanente, inerente em toda a
existê ncia social" ( pp. 222-3).
* .
E para essa tarefa pol ítica, no setor no qual eu trabalho, que dirijo
. .

minhas energias de pesquisa e docê ncia atuais, na luta contínua para


identificar regimes de verdade dos quais eu mesma faço parte.

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Este capítulo foi inicialmente publicado no livro: R.A. Martusewicz


& W.M.Reynolds (Orgs.). Inside/ Out : Contemporary Critical Pers-
pectives in Education. Nova York, St. Martin’s, 1994. Transcrito
aqui com a autorização da autora e da editora. Tradução de Tomaz
*
Tadeu da Silva
Jennifer M. Gore é Professora do Departamento de Educação da Uni-
versidade de Newcastle, New South Wales, Austrália.

:•

20
2
James Marshall
Governamentalidade e Educação Liberal

Pom algumas exceções ( p. ex., Burbules,1986 ), os fil ósofos educa-


^ cionais, na tradição anglo-saxônica e liberal, vêem o poder como
um mal necessário, como algo à parte e ao qual recorrer apenas quando
as estruturas de autoridade se rompem. Para Peters (1966), por exem-
plo, a autoridade diz respeito a uma ordem normativa que regula o
comportamento social devido à aceitação da autoridade por parte
daqueles que se submetem aos valores do sistema da ordem. O poder,
por outro lado, diz respeito a sujeitar os sujeitos individuais à vontade
de uma outra pessoa através de coer ção f ísica ou psicológica. Nessa
concepção geral, o poder pode ser necessá rio para dar sustentação à
autoridade mas em educação ele é usualmente visto como um incomodo
ou, na melhor das hipóteses, como um mal necessário.
O poder é, então, repressivo e contrário aos interesses daqueles que
são sujeitados — —
negativo em vez de positivo e em geral tem efeitos
contrá rios aos interesses daqueles que são sujeitados. Mas nesse para-
digma liberal é a autoridade racional exercida no interesse da criança
— —
seu real interesse que carrega o peso conceituai, teórico e prá tico.
E pelo exercício da autoridade, ela mesma racionalmente legitimada
como sendo educacionalmente apropriada (e normalmente não pelo
poder), que o comportamento acadêmico e social das crianças é muda-
do. O poder, coercivo e opressivo, permanece de prontidão nos basti-
dores, em caso de qualquer emergê ncia.
Nesse quadro o poder é uma mercadoria, e uma mercadoria que

— —
pode ser possuída por algum Soberano seja ele individual ou o Estado
de forma que aqueles sobre os quais o poder é imposto ou exercido
são, de alguma forma, inferiores. O poder, essencialmente, proíbe
através da opressão e as formas que suas proibições assumem são com
freqíiê ncia não-racionais. Como diz Peters, elas podem envolver coer-
ção f ísica ou psicológica e essa é exercida a partir de cima, de uma forma
vertical. Em geral, essa proibição atua contrariamente aos interesses
daqueles sobre os quais ela se impõe.
Michel Foucault disse, em 1976, que em termos de análise política
nós ainda não cortamos a cabeça do Rei. Com isso ele quis dizer que a

21
linguagem, a análise e a prática política estão imersas numa narrativa
que inclui coisas tais como opressão, legitimação, direitos, Estado,
governo e autoridade. Ele certamente não estava dizendo que é um
objetivo f ú til tentar restringir o papel do governo em suas sempre
crescentes demandas para legitimar seu exercício de autoridade, mas,
antes, que o governo é mais que isso, que ele é uma arte e uma atividade
que atinge tudo, que ele não saiu simplesmente do nada, como uma
coisa dada, mas teve que ser inventado ou gradualmente construído
(Burchell et al., 1991, p. x ).
Liberais e neoliberais tais como Nozick (1976 ) tê m argumentado
que o papel do Estado deve ser m ínimo porque ele se opõe à liberdade
e ao direito das pessoas de escolher seu pr ó prio projeto. Subjacentes a
esse direito estão certos pressupostos sobre a capacidade da pessoa de
fazer escolhas racionais, devido ao fato de que ela é um ser autónomo,
não está sob o controle de outros, e é capaz de determinar seus pr ó prios
desejos e as formas legítimas pelas quais eles podem ser satisfeitos.
Foucault acreditava que no século XX isso é uma fachada, um mito,
que obscurece as formas pelas quais a compreensão que temos de nós
mesmos como pessoas capazes de efetuar escolhas livres e autónomas
é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados, tanto
individual quanto coletivamente. De acordo com Foucault, a arte do
governo (ou a governamentalidade [1979 b], ou a razão de Estado ) nos
atinge a todos, de forma que não somos os formuladores e realizadores
autónomos de projetos individuais que o quadro conceituai liberal e a
educação liberal ( p. ex., Strike, 1982) pretende que sejamos.
Em Vigiar e Punir, Foucault (1979a) formulou uma tese sobre a
micropol ítica do poder tal como exemplificada pela aplicação das
técnicas disciplinares em vá rias instituições, mas particularmente nas
prisões. Elas dizem respeito essencialmente à forma como o eu (ou a
identidade pessoal ) é constru ído por outras pessoas, por “ discursos
oficiais” e pelo que Foucault chama de “ poder/saber ” . Esta tese é mais
tarde corrigida e desenvolvida (Foucault, 1983). Na História da Sexua-
lidade, v. 1 (Foucault, 1980), e em escritos posteriores, ele olha para a
forma como começamos a aplicar isso a nós mesmos. Essas técnicas
podem ser chamadas, respectivamente, de tecnologias de dominação e
tecnologias do eu.

I.Tecnologias de Dominação

Foucault não está interessado em questões centradas no “ quê” ou no


“ quem ” quando se trata de poder. Sua questão em vez disso, está
centrada no como. Ele está preocupado com as extremidades do sistema
pol ítico, com o seu n ível micro e com aquilo que nós normalmente
chamamos de exercício do poder nesses n íveis “ baixos” . De fato, o
Estado só pode operar, de acordo com Foucault, “ na base de outras

22
relações de poder, já existentes... (isto é) uma série inteira de redes de
poder que envolvem o corpo, a sexualidade, a família, o parentesco, o
conhecimento, a tecnologia e assim por diante” (1976, p. 122). Mas
isso coloca problemas consideráveis para Foucault (Poulantzas, 1978;
Waltzer, 1983), pois, como Waltzer observa, é o Estado que estabelece
os quadros conceituais que permitem a existê ncia de muitas das relações
de poder com £s quais Fouçault está preocupado.
De acordo com a estrita posição nominalista de Foucault, o poder
existe apenas quando relações de poder entram em jogo. O poder não
é algo que eu posso possuir ou reivindicar: apenas quando uma relação
de poder existe, quando ela é “ exercida” , é que o poder existe. O poder
neste sentido deve ser distinguido do poder/saber que envolve apenas
certas relações de poder e um certo tipo de saber. (

Em suas primeiras obras, Foucault trata o poder como serido


repressivo. Ele reverte a asserção de Clausewitz de que a guerra é a
política continuada por outros meios e a transforma em “ o poder é
guerra, uma guerra continuada por outros meios” (Foucault, 1976, p.
90); Embora também uma forma de dominação, o poder repressivo não
é uma extensão ou abuso dos poderes legais, mas, em vez disso, é uma
continuação de uma relação perpétua de dominação for çada, exercida
,

no interior da sociedade num nível capilar e por todos e cada um dos


membros daquela sociedade, às “ margens da lei ” , como ele diz. A
repressão: não é uma extensão do poder legal, pois ela ou é exercida em
áreas de justiça arbitrária ou é legitimada por um saber que foi, ele
próprio, produzido por esse poder, isto é, por experts nas disciplinas
apropriadas. Existe, portanto, uma afinidade muito estreita entre poder
e saber (discursos verdadeiros) para Foucault. Ele desenvolve essa idéia
da seguinte forma (1976, p. 93 e ss.):
...somos forçados a produzir a verdade do poder que a sociedade
exige...: nos devemos falar a verdade; somos constrangidos ou
condenados a confessar ou descobrir a verdade. O poder nunca cessa
sua interrogação, sua inquisição, seu registro da verdade: ele insti-
tucionaliza, profissionaliza e recompensa sua busca... é a verdade que
faz as leis... somos destinados a um certo modo de viver ou morrer,
como uma função dos discursos verdadeiros que são os portadores
de efeitos específicos de poder.
Foucault está preocupado com um tipo particular de verdade. Ele está
preocupado com os “ profundos” regimes de discurso/ prática, ou po- t
der/saber, que permitem que afirmações tais como “ crianças com
dificuldades de aprendizagem podem ser identificadas no período do
primeiro ano de instrução formal ” sejam feitas e sejam legitimadas como
verdade. Ian Hacking (1981) diz que Foucault formula questões kan-
tianas sobre as condições do conhecimento em geral. Mas Foucault
localiza essas condições não-transcendentais em contextos sócio-histó-

_
L
23
ricos que são chamados de é pistémès. Se em As Palavras e as Coisas
(Foucault, 1973; versão francesa original, 1966 ) seu espaço para a
identificação dessas condições está restrito à linguagem, no livro pos-
terior, A Arqueologia do Saber (Foucault, 1972), seu “ espaço” foi
ampliado para cobrir condições técnicas e institucionais
chama de discurso/prática.
— o que ele

A preocupação é, então, com o poder/saber subjacente ou com o(s)


conjunto (s) de condições que permitem e legitimam certas asserções
particulares de verdade. Por exemplo, a noção de que para funcionar
na sociedade moderna, isto é, ser governável, uma pessoa deve ser
alfabetizada, poderia ser uma das condições subjacentes à legitimação
da afirmação acima sobre a identificação precoce das dificuldades de
aprendizagem. Esta proposição geral, claramente, carrega consigo co-
notações de poder.
E verdade que as relações de poder podem fazer com que nos
tornemos sujeitos , isto é, indivíduos com uma certa identidade, os quais,
como sujeitos, podem ser sujeitados ? Como o poder vem a existir ? E
nos blocos disciplinares que o poder/saber é desenvolvido e “ exercido”
de acordo com o saber que é, ele próprio, o produto do exercício do
poder. Isto é, as relações de poder vêm a existir por causa desse saber;
sua própria existência, por sua vez, tem o saber como um de seus efeitos.
Trata-se de um tipo particular de poder e de saber, no qual versões
humanistas do Homem (sic) e das Ciê ncias Humanas estão profunda-
mente envolvidas, e isso tem implicações educacionais importantíssi-
mas.
O pró prio uso que Foucault faz de termos como “ disciplina ” e
“ bloco disciplinar ” é apenas mais um exemplo de sua linguagem pouco
ortodoxa. Em Vigiar e Punir (1979a), por exemplo, ele fala sobre
pessoas tais como médicos, professores, psiquiatras, psicanalistas, car-
cereiros e militares; sobre as práticas que essas pessoas desenvolvem; e
sobre as instituições nas quais suas práticas são desenvolvidas. Normal-
mente usaríamos termos tais como “ profissional ” ou “ profissão” onde
Foucault usa “ disciplina ” . Isso faz parte da estratégia de Foucault:
desfamiliarizar e reconstruir nossas concepções e práticas cotidianas
comuns. Em particular, o termo “ disciplina ” capta aspectos do poder e
do conhecimento que são normalmente mascarados. (Aqui ele está
seguindo o uso original que Lacan faz do termo “ ajutissement ” nesse
duplo sentido). Na Educação, ao se falar de uma á rea de saber e de sua
estrutura conceituai, ao se falar de disciplina, isto é, de sujeição e
obediê ncia, há uma tendê ncia a se enfraquecer e a se esvaziar o conceito,
assimilando-o ao de controle social.
Em seus escritos posteriores, o conceito de repressão é retirado. A
posição de Foucault (1983) é a de que o “ poder ” designa relações entre
parceiros nas quais certas ações modificam as ações de outros. Este
poder deve ser distinguido daquele poder que as pessoas têm em termos

24
V
• '

de habilidades ou capacidades para modificar, usar, consumir ou des-


truir coisas. Como uma relação, ele deve também ser distinguido das
relações de comunicação que transmitem informações por meio de uma
linguagem e de um meio simbólico, embora a produção e circulação de
significados e conhecimento possam ter, como seus objetivos, certos
resultados no campo do poder. Entretanto, isso não significa dizer que
existam três domínios separados e diferentes, porque eles são estreita-
mente vinculados e não podem ser dissociados. Sua interconexão e
dependê ncia mú tua podem ser vistas nas disciplinas. As disciplinas são
“ blocos”— —
blocos disciplinares nos quais o ajustamento das capaci-
dades e recursos das pessoas, das relações de comunicação, assim como
as relações de poder, formam sistemas regulados. 4
Para que o poder seja exercido num bloco disciplinar, uma série de
condições deve ser satisfeita. Essas dizem respeito, essencialmente, à
organização do espaço, do tempo e das capacidades. Em primeiro lugar,
os indivíduos são distribuí dos por espaços, e ocupam espaços tais como
celas monásticas, de acordo com seu grau hierárquico e seu progresso.
Em segundo lugar, as atividades são planejadas para os indivíduos de
acordo com um cronograma, que tem também origens monásticas.
Aqui, os princípios são aqueles de prescrever atividades apropriadas à
disciplina e estabelecer ritmos regulares fixos para essas atividades. Em
terceiro lugar, as atividades são divididas em estágios, de forma que
habilidades e capacidades particulares possam ser desenvolvidas em um
período dado, através de exercícios constantes. As atividades ser ão
designadas como apropriadas para os espaços (ou estágios), depen -
dendo do estágio anterior, exames, classificações e do próximo estágio.
Os detalhes dependerão, essencialmente, do discurso “ verdadeiro”
daquela disciplina, isto é, do conhecimento das pessoas, dos processos
e atividades que foram estabelecidos através do exercício do poder no
interior daquele bloco disciplinar. Exames, classificações, promoções e
tratamentos de recuperação estabelecem padr ões “ normais” de expec-
tativas. Esse saber desenvolvido através do exercício do poder é usado
para produzir o que Foucault chama de indivíduos normalizados. As
normas que são estabelecidas, os exames, as classificações e as punições
disciplinares são todos parte dessa noção de governo. O exame ocupa
um papel-chave também pelo fato de que expõe para o indivíduo sua
pr ópria identidade, seu verdadeiro “ eu ” . Em Vigiar e Punir, Foucault í
localiza a escola, decididamente, no campo das disciplinas (1979a, p.
147).
As tecnologias de dominação agem, pois, essencialmente, sobre o
corpo, e como resultado dos exames, os indivíduos são classificados e
objetificados. Mas os indivíduos também constroem seus “ eus” e suas
identidades, na medida em que esses objetivos e classificações são
adotados e aceitos por eles. A educação liberal pretende produzir “ eus”

25
q üe sejam moralmente autónomos mas, de acorda corti Foucault, '

qualquer noção desse tipo é espúria.

II.Tecnologias dò eu

No Vol. 1 de História da Sexualidade (Foucault,1980), a chave para a


tecnologia do eu é a crença de que é possível dizer a verdade sobre o
pró prio eu. De acordo com Foucault, tornou-se quase um lugar-comum
a crença de que falar a profissionais, de uma forma similar à confissão,
sobre o corpo e seus desejos, pode revelar as Verdades rrtais profundas
sobre o próprio eu. Essas verdades estão imersas naquilo que Foucault
chama de sexualidade. Ao dizer a verdade sobre a pró pria sexualidade,
em que a verdade mais profunda está imersa no discurso e nas práticas
discursivas da sexualidade, o indivíduo torna-se um objeto de saber,
tanto para si quanto para os outros. Ao dizer a verdade, a péssoa
conhece a si própria e torna-se conhecida para os outros num processo
que é terapê utico, mas, também, controlador. Mas se a sexualidade
estrutura ás verdades mais profundas, existem outras áreas nas quais
dizemos a verdade. Esses discursos e o conjunto de práticas discursivas
a eles associado são parte daquilo que Foucault chama de Ciências
Humanas: eles penetram e “ informam” as profissões e as instituições
que as acompanham, tais como a Medicina, a Psiquiatria, a Psicologia,
o Direito e a Educação. , : ;
^
O exame e a confissão são as principais tecnologias para a constru-
ção dò eu na História da Sexualidade, vol. 1 . Essas tecnologias desen
volveram-se a “ partir de” modelos médicos, impl ícitos em métodos
-
clínicos paralelos, no século XIX. Certos exames clínicos e psiquiátricos
exigiam que o sujeito falasse e que uma autoridade treinada na obser-
vação e interpretação determinasse ou a verdade do que o sujeito dizia
ou uma verdade subjacente da qual o sujeito podia nem mesmo estar
consciente. Era necessá rio o desenvolvimento de técnicas “ apropriadas”
para provocar e interpretar confissões a fim de que $e pudesse construir
o sexo como a “ verdade” subjacente mais profunda sobre n ós mesmos
e a sexualidade como um discurso e como uma pr ática discursiva! Mas
há uma mudança em relação ao modelo clínico médico estrito. Naquele
modelo o paciente se “ confessava” ao médico como parte do exame e
da tentativa para classificar objetivamente o problema médico que
exigia correção. No “ novo” modelo, a confissão e o exame são parte
de um processo de construção terapê utica da sexualidade dos sujeitos,
de forma que seu discurso seja controlado e eles se tornem indivíduos
de um certo tipo.
Foucault é fascinado pelo desejo existente na cultura moderna para
dizer a verdade sobre o pr ó prio eu. De fato, ele diz com freqiiê ncia, por
exemplo, que “ tem havido um incitamento muito forte para falar da
sexualidade” . Ele acredita que parte da causa desse incitamento deve se-
26
aos efeitos negativos de poder de várias proibições sexuais. Ele argu-
menta que se o poder é concebido como meramente repressivo, então
falar sobre a sexualidade seria, necessariamente, uma libertação. Nos
períodos, no século XIX, em que houve proibições sexuais, houve
também um discurso florescente sobre a sexualidade, causado, em
parte, pela necessidade de se criar uma estrutura científica para explicar
o sexo e para treinar “ cientistas” . Essa estrutura e esse discurso signifi-
cavam que, ao final, o sujeito n ão podia mais compreender o que estava
sendo dito e não podia mais, portanto, ser o á rbitro das “ verdades” mais
profundas. Este papel transferiu-se para a autoridade, o “ cientista” : o
papel não apenas de incitar a “ verdade” e de interpretar essas verdades
profundas, mas também de reconstruir a experiência que o sujeito tem
da sexualidade e do discurso, controlando, assim, o sujeito. Ao conhecer
o verdadeiro eu, a pessoa tem não apenas que dizer a verdade na
confissão mas também que falar a verdade nos conceitos do discurso
sobre a sexualidade: ao falar essa verdade, ao conhecer o verdadeiro
eu, a pessoa constr ói a experiê ncia do sexo e reconstrói o próprio eu
ao adotar novas descrições e, “ espera-se” , novas práticas. O aspecto
performativo do dizer faz com que assim seja. A terapia ocorre, assim,
a partir do ato de falar a verdade, ação que pode, por si só, envolver
efeitos prazeirosos vicá rios e libertadores; a partir, portanto, do ato de
conhecer o pr óprio eu por meio da ação de falar a verdade, libertando,
assim, o pr óprio eu dos aspectos repressivos através dos atos de falar e
reconstruir o eu.
Além de falar a verdade, a pessoa não apenas descreve meramente
a si mesma, ela “ faz com que assim seja ” , por causa do aspecto
performativo ou da função performativa da linguagem. Exatamente da
mesma forma que o juiz torna a pessoa culpada por causa de uma
performance declarativa de culpa, assim, também, ao falar a verdade
sobre nós mesmos através dos novos e refinados conceitos das Ciê ncias
Sociais, nós constru í mos a nós próprios, construí mos nossas próprias
identidades naqueles atos de fala. Através da função performativa da
.
fala, então, começamos a nos construira nós mesmos (Aqui há algumas
similaridades independentes com a noção de “ performativo” de John
Austin e John Searle
relação a Searle ).
— Foucault posteriormente reconheceu isso em

De acordo com Foucault (1982a), a máxima dèlfica “ conhece-te a


ti mesmo” sucedeu à outra noção da antiguidade grega, “ cuida-te de ti
mesmo” . Ele argumenta que a “ necessidade de cuidar de si colocou a
máxima d èlfica em funcionamento” e que a segunda estava subordinada
à primeira. Isso não ocorre na cultura ocidental moderna, ele argumen-
ta, na medida em que a noção de cuidado de si passou a ser vista como
uma imoralidade, um meio de escapar das regras e respeito pela lei.
Dada ainda a herança cristã de que o caminho para a salvação passa
pela auto- ren ú ncia, conhecer a si mesmo parece, paradoxalmente, ser
o caminho para a auto- ren úncia e para a salvação. Em segundo lugar,

27
3

ele argumenta, a filosofia teórica, desde Descartes, colocou uma impor-


tâ ncia sempre crescente no conhecimento do eu como o primeiro passo
da epistemologia. Sua conclusão é que a ordem de prioridade dessas
duas máximas foi revertida: “ conhece-te a ti mesmo” passou a ter
prioridade.
Mas qual é o motivo de se retornar à Antiguidade, aos gregos e aos
romanos e à primeira Cristandade, além daquele de descrição do
projeto histórico sobre o vínculo entre a obrigação de dizer a verdade
e as proibições contra a sexualidade ? Além do óbvio recurso ao método
genealógico, trata-se, para Foucault, de uma questão de moralidade e
liberdade: “ ...pois que é a moralidade senão a prática da liberdade, a
prática deliberada da liberdade ? ” (Foucault, 1984, p. 4). No mundo
greco-romano, diz ele, o cuidado de si era a maneira pela qual o
indivíduo considerava-se como ético. De Platão aos últimos estoicos,
“ o tema do cuidado de si permeou verdadeiramente todo o pensamento
ético” (ibid.). A fim de comportar-se apropriadamente, de praticar a
liberdade apropriadamente, era necessá rio cuidar do eu, não meramen -
te para conhecer o pró prio eu, mas també m para melhorá-lo, ultrapras-
sá-lo, dominá-lo. Cuidar do eu impediria que a pessoa se tornasse um
escravo (de uma outra cidade, ou da autoridade, da família, dos amigos
e colegas e das próprias paixões). Essa era uma noção muito importante
não apenas para os gregos mas também para Foucault.
O tema da dominação por parte de outros é um tema constante em
Foucault. As Ciências Humanas, ao classificar e objetificar os indiví-
duos, transformam as pessoas em sujeitos { subjugados ). Se a mudança
de ênfase, do “ cuida do teu próprio eu” para “ conhece-te a ti mesmo” ,
já era suficientemente ruim, trata-se agora de um eu que deve ser
conhecido através das Ciências Humanas. Cuidar do próprio eu no
século XX passou a significar ajustar-se ao exterior, oferecer-se, com
um conjunto de “ verdades” que, ao serem aprendidas, memorizadas e
progressivamente postas em prática, constroem um sujeito com um
certo modo de ser e uma certa maneira visível de agir. Foucault acredita
que esse eu moderno não é livre porque, na medida em que é produto
das Ciências Humanas, o objetivo tem sido o controle político e não a
liberdade.

III. Governamentalidade

A construção de identidades ou de sujeitos é, para Foucault, um ato


altamente politizado. Essas identidades são os efeitos daquilo que ele
chama de poder/saber. Ele fala também de governamentalidade, de
racionalidade governamental e de arte do governo. Por “ governo”
Foucault quer dizer algo como “ a conduta da conduta” (Colin Gordon
in Burchell et al., 1991, p. 2) ou uma forma de atividade dirigida a
produzir sujeitos, a moldar, a guiar ou a afetar a conduta das pessoas

28
de maneira que elas se tornem pessoas de um certo tipo; a formar as
próprias identidades das pessoas de maneira que elas possam ou devam
ser sujeitos. Essa atividade diz respeito às relações privadas entre o eu
e o eu, ou a relações privadas interpessoais com mentores profissionais,
ou a relações com instituições e comunidade, ou com o exercício da
soberania pol ítica. A arte do governo consistiria em fornecer uma forma
de governo para cada um e para todos, mas uma forma que deve
individualizar e normalizar. Em Vigiar e Punir, como vimos, ele argu-
mentava que a microf ísica do poder, aplicada através das tecnologias
de dominação, ao mesmo tempo individualiza e normaliza as pessoas
como sujeitos. Na História da Sexualidade (Vol. 1 ) ele mostra como nós,
em parte, ajudamos e encorajamos esses processos, ao construir a nós
mesmos através das tecnologias do eu.
Nesse último livro, ele introduziu o termo “ biopoder” para mostrar
como a construção do eu através do conceito de sexualidade permite
ao corpo agir como um ponto ou locus de aplicação ao mesmo tempo
do controle do indivíduo e do controle da população. Se, nos seus
primeiros trabalhos, ele soa fatalista e determinista, não havendo
nenhum espaço para uma ação humana significativa, dirigida à obten-
ção da liberdade, em seus ú ltimos trabalhos ele “ corrige” essa posição
quase niilista, para afirmar as possibilidades da liberdade através da
resistê ncia, rejeitando o quadro possivelmente determinista no qual
suas primeiras descrições do poder/saber tinham sido traçadas. Em vez
disso, o poder pode apenas existir onde existe a possibilidade de
resistê ncia e, portanto, a obten çã o de liberdade (Foucault, 1983 ). O
poder não é mais uma presença onipresente e globalizante mas, em vez
disso, um jogo aberto e estratégico. Mas essa liberdade não será obtida
pelo fato de sermos seres racionalmente autonômos. Pelo contrário, é
a pró pria afirmação de que somos livres porque somos racionalmente
autonômos que faz com que nos tornemos sujeitos através dos efeitos
do poder/saber. De fato, de acordo com Foucault, é em parte a noção
pós-kantiana de autonomia racional que faz com que nos tornemos
sujeitos. Na medida em que a noção de pessoa racionalmente autónoma
“ orienta” boa parte da educação liberal ocidental, també m ela é parte
daquilo que é referido como entorpecimento pós-kantiano. (Para uma
crítica da autonomia pessoal como o objetivo da educação, ver Stefaan
Cuypers, 1992).
A governamentalidade está dirigida a assegurar a correta distribui-
ção das “ coisas” , arranjadas de forma a levar a um fim conveniente para
cada uma das coisas que devem ser governadas. Para o Pr íncipe de
Maquiavel, as “ coisas” são o território e seus habitantes, com a ênfase
no primeiro. Na nova forma de Estado, o governo não se aplica ao
território per se, mas, em vez disso, à complexa unidade dos homens
em todas as suas relações e em seus vínculos com a propriedade e a
cultura em seus mais amplos sentidos, incluindo acidentes e desastres

29
tais como a fome e a guerra (Foucault, 1979b, p. 11). Para isso, urna
nova forma de racionalidade do Estado é exigida.
Em primeiro lugar, se o Estado deve ser fortalecido, sua capacidade
e os meios para ampliá-lo devem ser estabelecidos. Para isso uma forma
de conhecimento político, diferente das teorias pol íticas sobre a natu-
reza do Estado e sua legitimação, é exigida. A governaiíientalidade
exige, pois, mais do que implementar princípios gerais de justiça,
sabedoria e prudência. Um certo conhecimento concreto, preciso e
específico torna-se necessário.
Desde o in ício do século XVII os Estados começam a entrar em
competição de forma que pontos fortes e fracos tornam-se importantes
historicamente, na medida em que cada estado enfrentava um futuro
indefinido, preso à luta e à competição com outros estados. O conhe-
cimento pol ítico e a utilização dos indivíduos torna-se criticamente
importante para preservar, senão para reforçar, o Estado. Deverá estar
5 incluído nesse conhecimento político, se é que os indivíduos devam ser
utilizados para reforçar o Estado, o conhecimento dos indivíduos, de
suas inclinações, habilidades e capacidades para serem utilizados.
Os indivíduos, nessa visão, tornam-se instrumentais aos fins do
Estado. A justiça, o bem-estar e a saúde são importantes para os
indivíduos, não porque eles são bons em si para os indivíduos, mas
porque eles aumentam a força do Estado. Os investimentos na sa úde e
na educação são agora investimentos instrumentais no indivíduo, a
serem sacados mais tarde pela crescente força do Estado.
Foucault também identifica uma tecnologia particular como a da
polícia . Com esse termo, ele quer significar técnicas específicas pelas
quais um governo, desde o início do século XVII, “ no quadro do Estado,
era capaz de governar as pessoas como indivíduos significantemente
ú teis para o mundo” ( Foucault, 1982c; p. 154). Ele identifica três
formas gerais assumidas por essa tecnologia de policiamento: primeira-
mente, como ideal, sonho ou utopia; depois, como uma prá tica real ou
um conjunto de prá ticas ou regras de alguma instituição real; finalmen -
te, como uma disciplina acad ê mica, talvez desenvolvida a partir das
práticas e do conhecimento derivado dessas práticas, em instituições.
Foucault vê essa sistematização aberta das práticas administrativas
como importante, por vá rias razões. Em primeiro lugar, existe uma
tentativa para classificar as necessidades não como nas tradições filosó-
ficas mais antigas, mas em termos de escalas de utilidade para *%s
indivíduos e o Estado. Lidar com as necessidades das pessoas e, portan-
to, com sua felicidade, não é mais visto como um efeito ou como um
resultado da polícia do Estado, mas como uma condição ou exigência
de sua sobrevivência e de seu desenvolvimento.
Finalmente, policiar torna-se uma disciplina no significado acadê-
mico da palavra, ensinada em vá rias universidades, notavelmente em
Goettingan. Foucault sugere que, por volta do final do século XVIII,

30
nós temos uma racionalidade política vinculada a uma tecnologia
política. ! Essa última envolve intervenções na vida dos indivíduos,
através de observação, vigilância, exames, classificação e normalização.
Esses processos estão profundamente imersos e implicados na emergên-
cia e desenvolvimento das Ciê ncias Humanas. A
Em uma de suas últimas entrevistas, Foucault disse (Foucault, Ì
1982a, p. lOss):
Por um período bastante longo, as pessoas me pediam para lhes dizer
o que aconteceria e para lhes dar um programa para o futuro,., os Ì
programas tornam-se uma ferramenta, um instrumento de opressão.
Meu papel é mostrar às pessoas que elas são mais livres do que
sentem... Todas as minhas análisçs sã o contra a idéia de necessidades
universais na existê ncia humana. .
Foucault, como uni “ homme de gauche” , estava preocupado com o fato
de que o socialismo nunca teve nem nunca compreendeu uma arte do
governo. Ele rejeitava a noção dé intelectual, seja em sua forma totali-
zante, o intelectual produzindo uma teoria universal da vida política
( contra Sartre), seja o intelectual cotno apoiando ideologicamente uma
forma ou grupo preferido de oprimido (talvez Gramsci ). Foucault
acreditava, juntamente com Gilles Deleuze, que os intelectuais n ão
-
podiam e não deviam falar em nome do oprimido e dizer lhe como
resistir. Em vez disso, eles deviam ficar ao lado, minai o « poder dos
*

opressores e expor suas práticas. Fascinado como era pela revolução de


1968, ele sabia també m que, uma vez que a Esquerda não possuía uma
arte do governo, ela não podia reter o poder, mesmo que o tivesse
tomado em 1968. Foucault parece, às vezes, alinhar-se com os neolibe-
rais em sua rejeição da intrusão do governo nas questões dos seres
humanos, m s ele o faz por diferentes razões. Não porque os seres
^
humanos são livres e autó nomos e devem ser deixados à vontade para
perseguir seus pró prios projetos mas, em vez disso, porque eles foram
construídos para pensar que são livres e autó nomos e porque essa
mesma construção permitiu o avanço do poder/saber e a subjugação das
pessoas como sujeitos a levarem vidas ú teis, d óceis e práticas.
Em vá rias fontes, inicialmente no artigo “ Governamentalidade”
( Foucault, 1979 b) e depois em conferê ncias no Coll ège de France,
Foucault desenvolveu a noção de governamentalidade. Ele via as tec-
nologias da dominação e do eu como técnicas usadas “ para fazer do
indivíduo um elemento significativo para o Estado ” (ibid., p. 153).

IV. Educação Liberal

A descrição que Foucault faz do poder/saber mina o projeto principal


da educação liberal e tem implicações perturbadoras para nós como
educadores e pesquisadores educacionais.

31

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1
-
1 *

(i) Com o conceito de poder/saber, Foucault dirige nossa atenção


para uma sé rie de processos de moldagem
— —
aprender a falar e a
escrever, por exemplo que o quadro conceituai da educação liberal
não identificaria normalmente como sendo contrários aos interesses da
criança porque mesmo nas recentes e desejáveis discussões liberais do
poder em educação, considera-se que existe poder apenas quando ele é
contrá rio aos interesses da criança (White, 1983; Burbules, 1986).
(ii) Aqui, Foucault chama nossa atenção porque, ao perseguir
objetivos educacionais liberais, colocamos em funcionamento o que ele
chama de poder/saber, biopoder, ou poder moderno, que é uma forma
de poder dirigida à governamentalidade e a formas de dominação
política. Boa parte da narrativa da educação liberal ignora aquelas coisas
sobre as quais Hobbes e Rousseau estavam bastante conscientes, a saber,
disciplina e poder. E irónico encontrar na própria base da teoria liberal
clássica, no Leviatã de Hobbes, o reconhecimento tanto da necessidade
de assegurar a obediência ao contrato quanto a compreensão de que
isso pode ser obtido através da educação (Marshall, 1981). Se combi-
namos isso com a visão tradicional da busca educacional da autonomia
pessoal, então, Foucault argumenta, essas pessoas seriam governáveis,
mas não “ livres” .
(iii) O poder moderno permeia toda a sociedade, mas foi desenvol-
vido e refinado essencialmente nas disciplinas e ainda tem importante
acolhida e fonte de legitimação nas disciplinas e nas Ciê ncias Humanas.
E nas escolas e em outras instituições educacionais que devemos olhar
para nossas práticas vividas de ensino e aprendizagem com respeito a
relações de poder que podem ser subjugadoras e dominadoras. Certa-
mente elas podem constituir as pessoas que acreditam que são pessoal-
mente autónomas.
(iv ) Determinadas visões teóricas dos seres humanos como agentes
morais, seres sexuais, aprendizes, ou seja lá o que for, subjazem às
disciplinas. O objetivo da autonomia pessoal permeia a educação
liberal. Mas nos procedimentos normalizadores do exame e da “ confis-
são” , as pessoas são classificadas como objetos e a verdade sobre si
mesmas lhes é revelada. Ao constituir o sujeito dessa forma, ao construir
a própria identidade dos indivíduos, o poder moderno produz indiví-
duos governáveis através de tecnologias de individualização e normali-
zação. De acordo com Foucault, a busca pessoal de autonomia e
identidade, quando imersa em noções humanistas do sujeito e na
narrativa liberal da racionalidade e da emancipação, apenas ajudará e
encorajará esses processos.
(v) Como profissionais da Educação, devemos registrar as fortes
descrições de Foucault e repensar conceitos educacionais como “ auto-
ridade” , “ poder ” , “ disciplina” e “ pedagogia” . Isso não significa ridicu-
larizar, suplantar ou tornar falsas outras abordagens dessas noções mas
mostrar um outro aspecto, ou uma outra máscara da realidade. Na

32
-vr;:* v *

opinião de Foucault, não temos que ter uma visão de mundo total para
resistirmos e nos opormos a formas de dominação e sujeição política;
podemos fazê-lo em qualquer ponto do tempo, como os vá rios grupos
de resistê ncia no mundo ocidental nos estão mostrando.
Mas o problema consiste em reconhecer quando o poder moderno
está sendo exercido e se a resistê ncia é uma resposta apropriada.
Foucault nega que ele sustente qualquer posição normativa explícita,
mas sem uma tal posição é mais dif ícil ver como proceder. Sobre essas
questões alguns de seus cr íticos vêem-no como incoerente (ver Hoy ).
Entretanto, essas objeções supõem que os princípios políticos
liberais e a noção de educação liberal, que nós todos mais ou menos
subscrevemos no mundo ocidental (em suas vertentes liberais e conser-
vadoras), não sejam em si mesmas fundamentalmente equivocadas. Mas
Foucault acredita que elas o são. Ou, no mínimo, uma vez que ele diz
pouco, explicitamente, sobre educação, mas muito sobre o Iluminismo,
estruturas de poder, disciplinas e sobre a constituição de sujeitos, seu
pensamento permite que formulemos uma crítica da educação de
inspiração humanista e liberal.

Referências
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Govemmentality. Chicago, University of Chicago Press, 1991.
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33
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WALZER, M. “ The Politics of Michel Foucault” . In: David C. Hoy (Ed.). Foucault: a critical
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Publicado inicialmente em Studies in Philosophy of Education , v. 13 ,


1994. Transcrito aqui com a autorização do autor.
Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.

James Marshall é Professor da Universidade de Auckland,


Nova Zelândia.

34
3
Jorge Larrosa
Tecnologias do Eu e Educação

A Héctor Salinas, fraternalmente

A obsessão constante de Foucault é o tema do duplo. Mas o duplo


nunca é uma projeção do interior, é, ao contrá rio, uma inte-
riorização do lado de fora ( Deleuze, 1991, p. 105).

Fste não é um trabalho de arqueologia dos saberes pedagógicos nem


de genealogia da escola. Tampouco é um trabalho de historiador,
de psicólogo, de filósofo ou de sociólogo da educação. Talvez possa
designar-se como um trabalho de “ teoria” , se por isso entendemos um
gênero de pensamento e de escrita que pretende questionar e reorientar
as formas dominantes de pensar e de escrever em um campo determi-
nado. A etiqueta “ teoria” tem designado, às vezes, trabalhos de dif ícil
atribuição disciplinar que tentam enriquecer ou modificar os aparatos
conceituais de um campo, através da recontextualização das idéias
formuladas em outro local e para outras finalidades. O que ocorreu com
a psicanálise, o marxismo ou o estruturalismo nos últimos anos, quando
foram utilizados como idéias novas e plenas de possibilidade em quase
todos os campos do saber ou quando sua utilização redesenhou as
relações disciplinares estabelecidas, pode ser um bom exemplo. “ Teo-
ria” , nesses casos, é algo assim como reorganizar uma biblioteca, colocar
alguns textos junto a outros, com os quais não têm aparentemente nada
a ver, e produzir, assim, um novo efeito de sentido. Freud, Marx,
Saussure ou, neste caso, Foucault, são selecionados porque “ dão o que
pensar ” , porque permitem “ pensar de outro modo” , explorar novos
sentidos, ensaiar novas metáforas.
Em geral, esses exercícios de pensamento e de escrita supõem um
duplo jogo. Por isso podem permitir, às vezes, um duplo benef ício, mas
implicam, ao mesmo tempo, um duplo risco. E ocorre que se joga às
vezes com dois baralhos: com o baralho da estratégia analítica, aqui a
obra de Foucault, e com o baralho das convenções, dos interesses e das

35
possibilidades de um campo de estudo, a educação, neste caso. Este é
um trabalho de “ teoria da educação” , se com isso designamos um
exercício menor que consiste em colocar alguns livros de Foucault ao
lado das formas convencionais de pensar algumas prá ticas educativas e
em ensaiar a possível fecundidade de tal associação. Embora para isso
tenhamos que fazer alguma violência tanto a Foucault quanto ao objeto
“ empírico” que, em suas descrições usuais, se toma como material de
trabalho. Mas esse é o duplo risco que sempre implica esse tipo de jogo.
Vou jogar o segundo baralho, o da 'educação, de um modo ao
mesmo tempo muito geral e muito específico. Muito geral, porque não
estabelecerei nenhum corte temporal nem geográfico, nem farei nenhu-
ma delimitação com respeito ao “ setor” educativo tomado como objeto
de análise. A ú nica coisa que farei será estabelecer um viés em relação
ao tipo de práticas pedagógicas que irei considerar. Em geral, conside-
rarei aquelas nas quais se produz ou se transforma a experiê ncia que as
pessoas tê m de si mesmas. Meu trabalho tenta oferecer ferramentas
teóricas para “ pensar de outro modo” relações pedagógicas aparente-
mente tão d íspares quanto as que se dão em uma aula de educação
moral, em uma aula de educação de adultos, em uma aula universitá ria
de Filosofia da Educação, na elaboração de um trabalho de “ pesquisa
sobre a prá tica ” em um curso universitá rio de Mestrado e, por que não ?,
em um grupo de terapia, nas reuniões de um grupo pol ítico ou religioso,
em uma conversa entre um pai e um filho, um educador de rua e um
de seus “ meninos” , etc. A ú nica condição é que sejam práticas pedagó-
gicas, nas quais o importante não é que se aprenda algo “ exterior ” , um
corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma
de relação reflexiva do “ educando” consigo mesmo. Minha tese a esse
respeito é de que a forma básica dessas prá ticas, o que é comum a todas
elas, é algo muito simples. Se deixamos de lado o conte údo concreto
de cada uma delas, os objetivos particulares em cada caso (em termos
de Bernstein, o “ quê” da transmissão), e nos fixamos apenas na forma
do dispositivo ( no “ como” da pedagogia), a similaridade é surpreen -
dente. Mas, por outro lado, minha aproximação tentará também ser
muito específica. Tentarei oferecer o arcabouço para algumas descri-
ções relativamente minuciosas das distintas modalidades nas quais esse
dispositivo geral pode se realizar. Porque, embora a similitude estrutu-
ral seja notável, a diversidade das realizações possíveis é quase infinita.
Trata-se, pois, de mostrar a lógica geral dos dispositivos pedagógicos
que constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo, como
se fosse uma gramá tica suscetível de m últiplas realizações.
No que diz respeito ao primeiro baralho, o da estratégia analítica
foucaultiana, meu jogo será também, ao mesmo tempo, muito geral e
muito específico. Tentarei, em primeiro lugar, elaborar a partir dessa
obra um enfoque teórico que permita reconsiderar o que me parecem
duas inércias fortemente encasteladas no campo pedagógico. A primeira
é sua forte dependência de um modo de pensamento antropológico ou,

36
1
1
o que é a mesma coisa, da crença arraigada de que é uma “ idéia de
homem” e um projeto de “ realização humana” o que fundamenta a
compreensão da idéia de educação e o planejamento das práticas
educativas. A segunda é a ocultação da pró pria pedagogia como uma
operação constitutiva, isto é, como produtora de pessoas, e a crença i
arraigada de que as práticas educativas são meras “ mediadoras” , onde
se dispõem os “ recursos” para o “ desenvolvimento” dos indivíduos.
Estamos lidando com inércias, nas quais o papel produtivo da pedagogia

na fabricação ativa dos indivíduos neste caso, dos indivíduos enquan-
to dotados de uma certa experi ê ncia de si — fica sistematicamente
elidido. A leitura que farei de Foucault, portanto, é uma leitura bastante
simplificada do Foucault antropólogo ou, melhor dito, do Foucault que
pode ser colocado em relação com a antropologia. O Foucault que
tentarei colocar em relação com as prá ticas pedagógicas nas quais se
constr ói e modifica a experiê ncia que os indivíduos tê m de si mesmos
é o que trabalhou numa “ ontologia histórica de nós mesmos” , justa-
mente através do estudo dos mecanismos que “ transformam os seres
humanos em sujeitos” . E nesse sentido que se pode utilizar a obra de
Foucault para questionar as inércias teóricas das quais falava antes: não
porque implique uma teoria diferente do que é a pessoa humana como
sujeito, como capaz de certas relações reflexivas sobre si mesma, mas
porque mostra como a pessoa humana se fabrica no interior de certos
aparatos ( pedagógicos, terapê uticos,...) de subjetivação. A dimensão
mais geral da educação que este trabalho pretende reconsiderar tem a
ver com a antropologia da educação, isto é, com as teorias e práticas
pedagógicas enquanto produtoras de pessoas. O jogo mais geral com a
obra de Foucault será, portanto, um jogo antropológico.
Em segundo lugar, e naquilo que se refere à utilização específica da
obra de Foucault, o jogo consiste em elaborar as bases de um método,
se por isso se entende uma certa forma de interrogação e um conjunto
de estratégias analíticas de descrição. Nessa “ dimensão metodológica ”
de meu trabalho, apresentarei exemplos pedagógicos concretos, tentan-
do fazer com que o leitor imagine em detalhe sua realização prática. E
tentarei explicitar o que significa focalizá-los com um olhar construído
na clave foucaultiana, como poderiam ser descritos com as ferramentas
conceituais de Foucault, e quais seriam as perguntas que essa estratégia
analítica permitiria. Meu trabalho pretende ensaiar os limites e as
possibilidades metodológicas de uma certa problematização foucaultia-
na da construção e da mediação pedagógica da experiê ncia de si.
Avançando já o esquema do capítulo, o que me proponho é sugerir
uma perspectiva teórica, numa clave foucaultiana, para a análise das
práticas pedagógicas que constroem e medeiam a relação do sujeito
consigo mesmo: essa relação na qual se estabelece, se regula e se
modifica a experiê ncia que a pessoa tem de si mesma, a experiê ncia de
si. Para isso, e depois de uma introdução sobre o modo como a obra de
Foucault pode contribuir para elaborar uma posição teórica e um

37
conjunto de regras metodológicas muito gerais, apresentarei brevemen-
te certos exemplos extraídos de algumas de minhas pesquisas anteriores,
com o objetivo de especificar tanto o objeto de análise quanto os
princípios de descrição implícitos no enfoque teórico. Em continuação,
explicitarei o conceito foucaultiano de “ tecnologias do eu” e o contex-
tualizarei, ainda que superficialmente, em relação à totalidade da obra
de Foucault. Em terceiro lugar, e naquilo que seria já uma elaboração
dos dispositivos pedagógicos nos quais se constrói e se medeia a
experiência de si, introduzirei um modelo teórico no qual a experiência
de si pode ser analisada como resultado do entrecruzamento, em um
dispositivo pedagógico, de tecnologias óticas de auto-reflexão, formas
discursivas (basicamente narrativas) de auto-expressão, mecanismos
jurídicos de auto-avaliação, e ações pr áticas de autocontrole e auto-
transformação. Minha aproximação tentará ser extremamente geral,
sem ancoragens espaciais e temporais concretas, embora, obviamente,
as modalidades concretas dos mecanismos óticos, discursivos, jurídicos
e prá ticos que constituem os dispositivos pedagógicos particulares só
possam ser entendidas no interior de uma configuração historicamente
dada de saber, poder e subjetivação. Trata-se aqui de assentar as bases
para uma metodologia, se por isso entendemos a elaboração de deter-
minada forma de problematização das práticas pedagógicas orientadas
para a construção e a transformação da subjetividade. Por último, e para
concluir, farei uma sumária consideração sobre o modo como essa
forma de problematização pode ter virtualidades críticas, se por isso
entendemos uma orientação reflexiva do pensamento com propósitos
práticos e no trabalho da liberdade.

A Contingência da Experiência de Si


No vocabulá rio pedagógico esse conjunto de palavras amplo, inde-
terminado, heterogéneo e composto pela recontextualização e o entre-
cruzamento de regimes discursivos diversos
— utilizam-se muitos
termos que implicam algum tipo de relação do sujeito consigo mesmo.
Alguns exemplos poderiam ser “ autoconhecimento” , “ auto-estima” ,
“ autocontrole ” , “ autoconfiança ” , “ autonomia” , “ auto-regulação” e
“ autodisciplina” . Essas formas de relação do sujeito consigo mesmo
podem ser expressadas quase sempre em termos de ação, com um verbo
reflexivo: conhecer-se, estimar-se, controlar-se, impor-se normas, re-
gular-se, disciplinar-se, etc. Por outro lado, e deixando de lado os
diferentes tipos de fenômenos que designam, todos esses termos se
consideram como antropologicamente relevantes na medida em que
designam componentes que estão mais ou menos impl ícitos naquilo que
para nós significa ser humano: ser uma “ pessoa” , um “ sujeito” ou um
“ eu” . Como se a possibilidade de algum tipo de relação reflexiva da
pessoa consigo mesma, o poder ter uma certa consciência de si e o poder

38
"h

fazer certas coisas consigo mesma, definisse nada mais e nada menos
que o ser mesmo do humano. í
Todos esses termos, sobretudo quando são usados em um contexto
pedagógico e/ou terapêutico, costumam articular-se normativamente.
No discurso pedagógico atual , por exemplo, muito influenciado pela
Psicologia Social do Desenvolvimento, é quase obrigatório falar de
como se “ desenvolve” a auto-identidade , o autoconceito ou, em geral,
a consciência de si, em um sentido cada vez mais “ diferenciado” , mais
“ maduro” ou mais “ realista” , sempre que se dêem as condições adequa-
das. Em um contexto terapêutico, e com matizes distintos, segundo a
orientação teórica e prática da terapia em questão, é freqiiente falar de
formas não desejáveis ou inclusive patológicas da relação da pessoa \
consigo mesma como, por exemplo, a culpabilidade e a vergonha de si
em alguma de suas modalidades extremas, a irresponsabilidade, a
debilidade da vontade ou do caráter, a ausê ncia de autoconfiança, a
perda ou o debilitamento da identidade, distintas formas de neurose ou
de psicose tomadas como patologias do princípio de identidade, etc.
Portanto, todos os termos dos quais falava antes podem ser elaborados
também como sç fossem características normativas do sujeito formado
ou maduro, ou do sujeito são ou equilibrado, que as práticas educativas

1 A identificação do “ humano” com alguma modalidade de “ reflexividade”


normativamente construída pode ser levada para tão atrás quanto se queira. Em
alguns textos de Platão, na República, por exemplo, a pessoa é boa quando é dona
de si mesma (literalmente, mais forte que si mesma, kreitto autou, 430 E). E essa
curiosa expressão só é compreensível a partir de uma distinção entre, pelo menos,
duas partes da pessoa. E a partir da idéia de que uma delas, a melhor, a mais alta, a
mais “ humana ” , deve dominar a outra. Ser dono de si mesmo significa que a parte
superior, a razão, domina a parte inferior, os apetites ( to logistikon domina to
epithumetikon ). Se a alma está dominada pelos apetites, que são por natureza
insaciáveis ( physei aplestotaton, 442 A) e estão em perpétuo conflito (literalmente,
em guerra civil, stasis 444 B), só h á inquietude, agitação e excesso, literalmente caos.
Mas a razão pode impor a ordem ( kosmos ) , a calma e a harmonia. Poae estabelecer
prioridades entre os apetites necessários e os desnecessários (558-559), pode julgar
como injustos os apetites que conduzem ao vício e resistir ao seu domínio, etc. Desse
modo, a pessoa “ ordenada” pela razão mostra uma espécie de autopossessão,
estabilidade e unidade consigo mesma. A razão, adquire, pois, um status moral,
exerce a liderança da alma e constitui o que n ós chamaríamos uma subjetividade
estável, unitária e centrada. Teríamos, pois, já em Platão, toda uma concepção da J

natureza humana baseada na reflexividade. Entretanto, por antigas e nobres que


possam ser as idéias sobre a relação da pessoa consigo mesma, a reflexividade só
obtém uma certa centralidade antropológica na filosofia moderna, de Descartes a
Kant e Fichte, para colocar algumas referências temporais. Para uma história da
ontologia moral da pessoa humana veja-se o excelente livro de Taylor, 1989. Uma
revisão antropológica dos diferentes modos pelos quais se tem entendido a relação
do sujeito consigo mesmo pode ver-se em Tugendnat, 1986. Em ambos os textos
podem -se encontrar algumas das elaborações filosóficas mais importantes da idéia
de que a pessoa humana não existe em um sentido meramente factual, sujeita a
certas necessidades e desejos, colada a certo modo de vida, mas, antes, que existe
de maneira que pode adotar uma relação cogniscitiva e prática com sua própria
existência, de maneira que tenha uma determinada interpretação de quem é e do i
que pode fazer consigo mesma.

39

j.
e/ou as práticas terapê uticas deveriam contribuir para constituir, para
melhorar, para desenvolver e, eventualmente, para modificar.2
Mas esse sujeito construído como o objeto teórico e prático tanto
das pedagogias quanto das terapias, esse “ sujeito individual ” caracteri-
zado por certas formas normativamente definidas de relação consigo
mesmo, não é, em absoluto, uma evidência intemporal e acontextual.
O “ sujeito individual ” descrito pelas diferentes psicologias da educação
ou da cl ínica, esse sujeito que “ desenvolve de forma natural sua auto-
consciê ncia ” nas prá ticas pedagógicas, ou que “ recupera sua verdadeira
consciê ncia de si ” com a ajuda das práticas terapê uticas, não pode ser
tomado como um “ dado” não- problemático. Mais ainda, não é algo
que possa analisar-se independentemente desses discursos e dessas
práticas, posto que é aí, na articulação complexa de discursos e práticas
( pedagógicos e/ou terapê uticos, entre outros ), que ele se constitui no
que é. Antes, entretanto, de mostrar com certo detalhe como se define
e se fabrica esse sujeito são e maduro, definido normativamente em
termos de autoconsciê ncia e autodeterminação, e no qual temos certa
tendê ncia a nos reconhecer, ao menos idealmente, talvez seja bom um
certo exercício de desfamiliarização. E uma vez que se trata de nos
desfamiliarizarmos de nós mesmos, nada melhor que aplicar, a isso que
somos, o olhar assombrado do antropólogo, esse olhar etnológico,
educado para ver, inclusive na idéia que ele tem de si mesmo, as curiosas
e surpreendentes convenções de uma tribo particular. E podemos
começar com essas expressivas palavras de Clifford Geertz:

a concepção ocidental da pessoa como um universo cognitivo e


emocional delimitado, ú nico e mais ou menos integrado; como um
centro dinâ mico de consci ê ncia, emoção, ju ízo e ação; organizado
em uma totalidade distintiva que está conformada em contraste a
outras totalidades como ela e em contraste també m a um fundo
natural e social é, apesar de todo o incorrigível que nos possa parecer,
uma id éia bastante peculiar no contexto das culturas do mundo
(Geertz, 1979; veja també m Geertz, 1987).

Porque a idé ia do que é uma pessoa, ou um eu, ou um sujeito, é histórica


e culturalmente contingente, embora a nós, nativos de uma determinada

2 O discurso pedagógico e o discurso terapêutico estão hoje intimamente


relacionados. As prá ticas pedagógicas, sobretudo quando n ão são estritamente de
ensino, isto é, de transmissão de conhecimentos ou de “ conteúdos” em sentido
restrito, mostram importantes similitudes estruturais com as práticas terapêuticas.
A educação se entende e se pratica cada vez mais como terapia, e a terapia se entende
e se pratica cada vez mais como educação ou re-educação. E a antropologia
contemporânea, ou melhor, o que hoje conta como antropologia, para alé m dos
discursos sá bios que se abrigam sob esse r ótulo, na medida em que estabelece o que
significa ser humano, não pode separar-se do modo como o dispositivo
pedagógico/terapêutico define e constrói o que é ser uma pessoa formada e sã (e,
no mesmo movimento, define e constrói também o que é uma pessoa ainda não
formada ou insana ).

40
" i .

cultura e nela constituídos, nos pareça evidente e quase “ natural” esse


modo tão “ peculiar ” de entendermos a n ós mesmos. São muitas as tribos
nas quais seus membros tendem a identificar a “ peculiar ” idé ia que tê m
de si mesmos com o ser “ homem” em geral, embora não tenham
desenvolvido, como nós, algo também tão “ peculiar ” histó rica e cultu-
ramente como toda uma tradição antropológica preocupada por defi-
nir, de uma forma universal e essencialista, uma “ id é ia de homem ” .
Ademais, o que é histórica e culturalmente contingente não é
apenas nossa concepção do que é uma pessoa humana, mas també m, e
sobretudo, nosso modo de nos comportar. Ou, se quisermos, nosso
modo de ser “ homens” . Não se trata apenas de que nossas idé ias acerca
do que é uma pessoa difiram das idé ias que, a esse respeito, tê m, por
exemplo, os azande ou os nativos de Bali. Ou que difiram das idéias
que tinham os burgueses puritanos dos novos estados centro-europeus
do século XVII ou os cavalheiros da Europa feudal na baixa Idade
Média. O que é histó rico e contingente é algo que vai muito alé m das
idéias ou das representações. O homem é, sem d ú vida, um animal que
se auto-interpreta. A História ou a Antropologia mostram, pois, a
diversidade dessas auto-interpretações. Mas o que fazemos, o modo
como nos comportamos e, afinal, o como somos, na medida em que
isso tem a ver com como interpretamos a n ós mesmos, també m pode
ser posto em uma perspectiva hist ó rica e/ou antropológica. Outro
antropólogo, Gehlen, dizia, em relação a esse ú ltimo ponto que

quer se o interprete como “ possu ído” por demónios ou pulsões,


como um ser “ controlado desde fora ” por mecanismos psicológicos
ou sociais, ou como uma pessoa auto-responsável, como maté ria ou
como sujeito ativo, como um “ modo desnudo que teve êxito” ,
provido de uma inteligê ncia técnica, ou como “ imagem e semelhança
de Deus” , ... sua interpretação tem eventualmente conseq üê ncias que
chegam até seu comportamento em relação a “ fatos reais” , até sua
conduta cotidiana, por exemplo, frente a um semelhante, frente a
um sócio comercial, frente a um adversá rio político ou a um subor-
dinado, frente a um discípulo, ou frente a uma criança. E, natural -
mente, frente a si mesmo. Em cada um desses casos, ouvirá “ tipos
muito distintos de mandatos” dentro de si mesmo.3

3 Gehlen, 1980. M. Morey (1987) comenta essa mesma citação em um texto de


Antropologia Filosófica no qual revisa detalhadamente a posição de Foucault em
relação a essa disciplina. Em um contexto diferente, e em relação a outros
problemas, Scheuerl (1985) també m comenta a citação de Gehlen. Em ambos os
casos insiste-se no car áter constitutivo, para além da questão puramente
“ ideológica” , da construção e da transmissão de uma forma de experiê ncia de si.
Tanto para Morey quanto para Scheuerl, a cita çã o de Gehlen implica que o ;
contingente na auto-intepretação é o sujeito mesmo e não apenas as “ id éias” que se
têm a propósito do que é uma pessoa.

41
Geertz falava da contingência da idéia que temos de nós mesmos.
Gehlen, dando um passo adiante, fala de como a contingência de nossa
auto-interpretação implica a contingência dos comportamentos que
temos tanto frente aos demais como frente a nós mesmos. Mas Foucault
dá, entretanto, um passo a mais. O que estuda não são nem as idéias
nem os comportamentos, mas algo que pode ser separado analiticamen-
te de ambos e que, ao mesmo tempo, os torna possíveis: a experiê ncia
de si. E isso, a experiência de si, também é algo histórica e culturalmente
contingente, na medida em que sua produção adota formas “ singula-
res” .
Na introdução ao Uso dos Prazeres, o segundo volume da História
da Sexualidade, publicado em 1984, Foucault estabelece assim o domí-
nio de seu trabalho:
... nem uma história dos comportamentos nem uma história das
representações. Mas uma história da “ sexualidade” (...). Meu pro-
pósito não era o de reconstruir uma história das condutas e das
práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas. Também não
era minha intenção analisar as idéias (científicas, religiosas ou filo-
sóficas) através das quais foram representados esses comportamentos
(...). Tratava-se de ver de que maneira, nas sociedades ocidentais
modernas, constituiu-se uma “ experiência” tal, que os indivíduos são
levados a reconhecer-se como sujeitos de uma “ sexualidade” (...). O
projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto
experiê ncia — se entendemos por experiência a correlação, numa
cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de
subjetividade.4
Ao estudar historicamente a sexualidade do ponto de vista da experiê n-
cia, Foucault aponta diretamente contra qualquer realismo ou essencia-
lismo do eu, da pessoa humana ou do sujeito. Foucault estabelece um
domínio e uma forma de análise com os quais se distancia de qualquer
idéia do sujeito como uma substâ ncia real ou uma essência intemporal
(o homem de desejo, nesse caso ) que se manteria estática ou imutável
por cima ou por debaixo da variabilidade e da contingência tanto das
idéias acerca da sexualidade quanto dos comportamentos sexuais. Por
outro lado, se distancia també m de qualquer ilusão retrospectiva na qual
a história das idéias ou das representações apareceria como uma história
do progressivo êxito da verdade e na qual a história dos comportamen -
tos apareceria como uma história do progresso da liberdade.
Não é que na natureza humana estejam implicadas certas formas
de experiê ncia de si que se expressam historicamente mediante idéias
distintas (cada vez mais verdadeiras ou, em todo caso, pensáveis desde
os êxitos e dificuldades da verdade ) e se manifestam historicamente em

4 Foucault, 1984a, pp. 9-10. Citação conforme a edição brasileira: Graal, 1985, p.9).

42
distintas condutas (cada vez mais livres ou possíveis desde o dif ícil
caminho até a liberdade ), mas que a pr ópria experiência de si não é
senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no
qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do sujeito, as
práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade
á
nas quais se constitui sua própria interioridade. E a própria experiê ncia
de si que se constitui historicamente como aquilo que pode e deve ser
pensado. A experiência de si, historicamente constitu ída, é aquilo a
respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa,
se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina,
quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc. E esse ser próprio
sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior
de certas práticas. Ao analisar a experiência de si, o objetivo é
... analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não as socieda-
des, nem suas “ ideologias” , mas as problematizações através das
quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas
a partir das quais essas problematizações se formam.5

A experiência de si, em suma, pode ser analisada em sua constituição


histórica, em sua singularidade e em sua contingê ncia, a partir de uma
arqueologia das problematizações e de uma pedagogia das práticas de
si. E o que aparece agora como “ peculiar ” , como histórico e contingen-
te, não são já apenas as idéias e os comportamentos, mas o ser mesmo
do sujeito, a ontologia mesma do eu ou da pessoa humana na qual nos
reconhecemos no que somos.
Se voltamos agora a todos esses termos em combinação com os que
se descrevem nas formas de relação da pessoa consigo mesma e que,
conforme vimos, atravessam os discursos e as práticas pedagógicas e
terapêuticas, a pergunta foucaultiana mudaria algumas coisas na pers-
pectiva de aná lise. Na perspectiva que conforma o sentido comum
pedagógico e/ou terapê utico há, em primeiro lugar, um conjunto mais
ou menos integrado de concepções do sujeito. Teríamos, primeiro, uma
sé rie de teorias sobre a natureza humana. Nessas teorias, as formas da
relação da pessoa consigo mesma são constru ídas, ao mesmo tempo,
descritiva e normativamente. As formas de relação da pessoa consigo
mesma que, como universais antropológicos, caracterizam a pessoa
humana, nos dizem o que é o sujeito são ou pienamente desenvolvido.
Portanto, impl ícita ou explicitamente, as teorias sobre a natureza
humana definem sua própria sombra: definem patologias e forma de
imaturidade no mesmo movimento no qual a natureza humana, o que
é o homem, funciona como um crité rio do que deve ser a saúde ou a
maturidade. A partir daí, as práticas pedagógicas e/ou terapêuticas
podem tomar-se como lugares de mediação nos quais a pessoa simples-

5 Foucault, 1984a, p. 17. Citação conforme a ed. bras., Graal, 1985, p. 15.

43
mente encontra os recursos para o pleno desenvolvimento de sua
autoconsciê ncia e sua autodeterminação, ou para a restauração de uma
relação distorcida consigo mesma. As práticas pedagógicas e/ou tera-
pêuticas seriam espaços institucionalizados onde a verdadeira natureza
da pessoa humana — autoconsciente e dona de si mesma
desenvolver-se e/ou recuperar-se.
— pode

Assim, o sentido comum pedagógico e/ou terapê utico produz um


esvaziamento das pr áticas mesmas como lugares de constituição da
subjetividade. Não deixa de ser paradoxal que o primeiro efeito da
elaboração pedagógica e/ou terapê utica da autoconsciê ncia e da auto-
determinação consista em um ocultamento da pedagogia ou da terapia.
Ambas aparecem como espaços de desenvolvimento ou de mediação,
às vezes de conflito, mas nunca como espaços de produção. E como se
as práticas pedagógicas e/ou terapê uticas fossem um mero espaço de
possibilidades, um mero entorno favorável, delimitado e organizado
para que as pessoas desenvolvam e/ou recuperem as formas de relação
consigo mesmas que as caracterizam.
A aproximação foucaultiana inverte essa perspectiva. E essa inver-
são se condensaria em duas regras metodológicas. A primeira seria
interrogar os universais antropológicos em sua constituição histórica.
Quanto ao que aqui nos interessa, isso significa não tomar como ponto
de partida as concepções hoje dominantes da natureza humana, mas
problematizar as idéias com respeito à autoconsciência, à autonomia ou
à autodeterminação, analisando as condições históricas de sua formação
na iman ê ncia de determinados campos de conhecimento. A segunda
regra seria tomar as pr áticas concretas como domínio privilegiado de
an álise. Não considerar as pr á ticas como espaço de possibilidades,
entorno organizado ou oportunidades favoráveis para o desenvolvi-
mento da autoconsciê ncia, da autonomia ou da autodeterminação, mas
como mecanismos de produção da experiê ncia de si. Como dispositi-
vos, em suma, nos quais se constitui uma vinculação entre certos
domínios de atenção (que desenhariam o que é real de uma pessoa para
si mesma) e certas modalidades de problematização (que estabeleceriam
o modo como se estabelece a posição da pessoa consigo mesma). Em
suma, prestar atenção às pr áticas pedagógicas nas quais se estabelecem,
se regulam e se modificam as relações do sujeito consigo mesmo e nas
quais se constitui a experiê ncia de si.

A Transmissão e Aquisição da Experiência de Si. Três Exemplos

Temos até aqui a historicidade e a contingê ncia de nossas “ idéias” acerca


de n ós mesmos. Temos també m que essas “ idéias” tê m que ver com
nossas “ ações” , com como nos comportamos com relação a nós mesmos
e com relação aos demais. E temos, por ú ltimo, que se pode isolar um
domínio de análise, o da experiê ncia de si, no qual estaria o ser mesmo

44
do sujeito, sua ontologia enquanto que histórica e culturalmente con-
tingente, enquanto que singularmente constituída. Avancemos agora
um pouco mais.
Se a experiência de si é histó rica e culturalmente contingente, é
també m algo que deve ser transmitido e ser aprendido. Toda cultura
deve transmitir um certo repertório de modos de experiência de si, e
todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em
alguma das modalidades incluídas nesse repertó rio. Uma cultura inclui
os dispositivos para formação de seus membros como sujeitos ou, no
sentido que vimos dando até aqui à palavra “ sujeito” , como seres
dotados de certas modalidades de experiência de si.6 Em qualquer caso,
é como se a educação, além de construir e transmitir uma experiê ncia
“ objetiva” do mundo exterior, constru ísse e transmitisse também a
experiê ncia que as pessoas tê m de si mesmas e dos outros como
“ sujeitos” . Ou, em outras palavras, tanto o que é ser pessoa em geral
como o que para cada uma é ser ela mesma em particular.

Autoconhecimento e Auto-Avaliação em Educação Moral

Essa produção e mediação pedagógica da relação da pessoa consigo


mesma tem especial importâ ncia em vá rios contextos educativos, três
dos quais explorei em trabalhos anteriores. Em primeiro lugar, nas
práticas educativas de “ educação moral ” ou de “ educação sócio-pes-
soal” (Larrosa, 1993, pp. 105-125; 1994c). Na literatura pedagógica
contempor â nea, as atividades de educação moral tê m nomes como
“ clarificação de valores” , “ atividades de auto-expressão” , “ discussão de
dilemas” , “ estudos de caso” , “ técnicas de auto-regulação” , etc.7 Sem
d ú vida, a educação moral tem a ver com elementos do domínio moral,
com disposições ou atitudes, com normas e com valores, mas de uma
forma muito particular. Não se trata de apresentar um conjunto de
preceitos e normas de conduta que as crianças deveriam aprender e
obedecer. Tampouco se trata de modelar disposições ou há bitos. Nem
sequer de doutrinar em uma sé rie de valores. Uma vez que se trata de
pr áticas centradas na aquisição, nelas não se ensina explicitamente nada.
Entretanto, se aprendem muitas coisas. Na sua caracter ística de prá ticas
sem um texto específico ou, às vezes, com textos cuja ú nica função é

6 Esses recursos sã o muito mais amplos que os contidos nas instituições de ensino.
Qualquer prática social implica que os participantes tratem os outros participantes
e a si mesmos de um modo particular. Quem são os participantes para si mesmos e
quem é cada um para os outros é essencial à natureza mesma de qualquer prática
social. Portanto, aprender a participar em uma prática social qualquer (um jogo de
futebol, uma assembléia, um ritual religioso, etc.) é, ao mesmo tempo, aprender o
que significa ser um participante. Aprendendo as regras e o significado ao jogo, a
pessoa aprende ao mesmo tempo a ser um jogador e o que ser um jogador significa.
7 Uma boa introdução às atividades pedagógicas de educação moral, com numerosos
exemplos, pode-se encontrar em Martinez e Puig, 1991.

45
“ fazer falar ” , provocar e mediar a fala, consistem basicamente na
produção e na regulação dos próprios textos das crianças. Por outro
lado, é essencial à realização dessas práticas a colocação em marcha de
uma bateria interrogativa e de um conjunto de mecanismos para o
controle do discurso.
Apresentarei e comentarei brevemente um exemplo dessas pr áticas
de “ educação moral ” na qual se trabalha explicitamente a experiê ncia
de si. Trata-se de uma atividade pedagógica do tipo de “ clarificação de
valores” . Ela é proposta para crianças de nove anos, tem uma duração
prevista de setenta e cinco minutos, e tem como objetivo que as crianças
reflitam sobre seu pr óprio modo de ser, que sejam capazes de comuni-
cá-lo, e que possam descobrir aspectos desconhecidos das outras crian -
ças. A sequê ncia metodológica que se propõe para sua realização é a
seguinte:
1) O professor apresenta a atividade e entrega a cada criança uma
folha de papel com perguntas como: Que coisas crês que fazes bem ?
Que coisas cr ês que fazes mal ? Que mudarias de ti mesmo se
pudesses ? Que coisas te dão medo ? De que coisas gostas ? Se pudesses
ser outra pessoa, quem gostarias de ser ? Por quê ? Qual é a pessoa
que menos gostarias de ser ? Por quê ? As crianças devem responder
individualmente às perguntas durante quinze minutos.
2) Formam-se pares ao acaso. Durante vinte minutos cada criança
explica a seu par suas respostas e responde as perguntas do outro
sobre o que não compreendeu bem e vice-versa.
3) Cada par faz um mural tentando expressar mediante desenhos,
frases, etc., em que se parecem e em que se diferenciam entre si.
4 ) Os murais são expostos e toda a classe olha e comenta todos ou
alguns deles.
Nessa atividade não há um texto anterior. O discurso pedagógico
é basicamente interrogativo e regulativo. Há apenas um conjunto de
perguntas dirigidas a fazer com que as crianças produzam seus pró prios
textos de identidade. Mas não se pode dizer qualquer coisa, nem dizê-la
de qualquer maneira. Esses textos não apenas têm que se construir de
acordo com o que estabelece a bateria interrogativa, mas, além disso, e
durante a realização da atividade, os textos são situados em uma espécie
de dramatização global que lhes dá seu significado legítimo. O que as
crianças aprendem aí é uma gramá tica para a auto-interpretação e para
a expressão do eu e uma gramá tica para a interrogação pessoal do outro.
Em geral, uma gramá tica para a interrogação e a expressão do eu.
Aprendendo os princípios subjacentes e as regras dessa gramática,
constr ói-se uma experiê ncia de si. A criança produz textos. Mas, ao
mesmo tempo, os textos produzem a criança. O dispositivo pedagógico

46
;
1.
produz e regula, ao mesmo tempo, os textos de identidade e a identi-
dade de seus autores. E aprendem também uma certa imagem das
pessoas e das relações entre as pessoas: que cada um tem determinadas
qualidades pessoais, que é possível conhecê-las e avaliá-las segundo
certos crité rios, que é possível mudar coisas em si mesmo para ser
melhor e conseguir o que a pessoa se propõe, que as outras pessoas têm
qualidades diferentes, que é possível comunicar o próprio modo de ser, *

que é possível viver juntos, apesar das diferenças, dadas certas atitudes
de compreensão, respeito e tolerâ ncia, etc. O que se aprende, em suma,
é um significado específico da singularidade do eu e da compreensão
m útua. Também um significado específico para coisas como “ autoco-
nhecimento ” e “ auto-avaliação” , “ sinceridade” , “ comunicação” e
“ compreensão” . As crianças aprendem a realizar certo tipo de jogo de 1
acordo com certas regras. Aprendem o que significa o jogo e como jogar
legitimamente. E aprendem quem são elas mesmas e os demais nesse
jogo social enormemente complexo e submetido a formas muito estritas
de regulação, no qual a pessoa se descreve a si mesma em contraste com
as demais, no qual a pessoa define e elabora sua própria identidade.
1
As Histórias de Vida na Educação de Adultos

Outro exemplo que explorei é o da mediação pedagógica das “ histórias


de vida” ou “ narrativas pessoais” na educação de adultos.8 Trata-se aí
de duas coisas: em primeiro lugar, de relacionar a aprendizagem com a
própria experiência do aluno; em segundo lugar, de estimular algum <
tipo de reflexão crítica que modifique a imagem que os participantes
tê m de si mesmos e de suas relações com o mundo, o que no vocabulário
da educação de adultos se chama de “ tomada de consciência” .
Gostaria aqui de comentar uma atividade pedagógica de alfabeti-
zação, dirigida a recé m-alfabetizados, numa escola de adultos, na qual
é utilizado como material de leitura uma narração de um livrinho de
histórias de vida muito comum nas escolas da Catalunha. 9 O texto,
demasiado longo para ser transcrito, conta as recordações de uma
pessoa sobre um professor de seu lugarejo, reprimido pelo franquismo, 4
em cuja casa se reuniam alguns jovens para estudar. O texto descreve
D. Tomás, suas qualidades, seu comportamento e suas idéias. Basica-
mente, sua conduta no lugarejo, sua honradez, sua amizade com os
pobres, suas idéias sobre as pessoas e sobre a guerra, seu desprezo para
com os setores dominantes após a vitória de Franco. Descreve algumas

8 A exploração foi feita num trabalho de pesquisa coordenado por mim e realizado
por vá rios alunos do Mestrado em Educação de Pessoas Adultas, durante o período
91/92 e intitulado La production de textos autobiográ ficos en la education de
adultos. Universidad de Barcelona, inédito. Veja-se també m Larrosa, 1994d.
9 Trata-se de um texto intitulado “ Don Tom ás” e incluído em um livro de histórias
pessoais elaborado a partir de narrações produzidas por alunos de escolas de adultos.
O livro se intitula Memórias y recuerdos. Barcelona, El Roure, 1991.

47
das coisas que se faziam em suas aulas, o que o professor explicava, etc.
Em sua caracterização como professor, insiste-se em sua amizade com
as crianças, sua sensibilidade ecol ógica, suas lições sobre as injustiças
sociais e sobre a cultura popular. E se as compara implicitamente com
o que se fazia nas escolas pú blicas oficiais. O texto termina com uma
avaliação do porqu ê não interessava aos ricos e aos padres aquilo que
D. Tomás tentava transmitir às crianças. O que organiza o texto é um
universo axiológico ou um sistema de avaliações organizado de forma
polar : de um lado D. Tomás e os pobres, de outro, os ricos e os padres.
Por outro lado, e da perspectiva do narrador, D. Tomás é apresentado
como um personagem fundamental em sua tomada de consciência, no
fato de haver-se dado conta das injustiças daquela situação social e no
“ verdadeiro” papel da educação e da cultura. Trata-se, portanto, de
uma “ história exemplar ” , sem nenhuma ambigüidade avaliativa, que
exibe de forma transparente a forma moral de construção e seu universo
de referê ncia. Por outro lado, e enquantcf histó ria pessoal, busca a
*

identificação e a cumplicidade do leitor. Por ú ltimo, e enquanto “ his-


tória pedagógica ” , contribui para construir uma determinada idéia de
educação, de escola, de professor e de aluno.
Na realização pedagógica de uma classe com esse texto, os alunos
leram, falaram e escreveram. Fundamentalmente, produziram três tipos
de histórias: histórias sobre como eles haviam vivido os anos de
franquismo (com uma relação expl ícita ou impl ícita com a atualidade );
sobre como haviam vivido a escolarização (em relação com as escolas
atuais e com sua pr ó pria experiê ncia atual na escola de adultos); e sobre
pessoas que haviam sido importantes em algum aspecto de sua “ tomada
de consciê ncia ” .
A aula de educação de adultos aparece aqui como um lugar no qual
se produzem, se interpretam e se medeiam histó rias pessoais. E a
experiê ncia de si está constituída, em grande parte, a partir das narra-
ções. O que somos ou, melhor ainda, o sentido de quem somos, depende
das histó rias que contamos e das que contamos a n ós mesmos. Em
particular, das construções narrativas nas quais cada um de n ós é, ao
mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal. Por outro
lado, essas histó rias estão constru ídas em relação às histórias que
escutamos, que lemos e que, de alguma maneira, nos dizem respeito na
medida em que estamos compelidos a produzir nossa história em
' relação a elas. Por ú ltimo, essas histórias pessoais que nos constituem
estão produzidas e mediadas no interior de práticas sociais mais ou
menos institucionalizadas. Para dizer de forma breve, o sentido de quem
somos é análogo à construção e à interpretação de um texto narrativo
que, como tal, obté m seu significado tanto das relações de intertextua-

48
lidade que manté m com outros textos como de seu funcionamento
pragmático em um contexto.
O tipo de prá tica pedagógica dominante em cada escola, as instru-
ções do professor e a forma como este regulava a realização da atividade
estabeleciam em cada momento que tipos de histó rias podiam ser
contadas, como deveriam ser interpretadas as histórias produzidas, e de
que modo algumas das histó rias particulares podiam ser tomadas como
experiê ncias mais ou menos generalizáveis. Os professores pergunta-
vam, comentavam o que os alunos diziam, generalizavam as histórias
singulares, etc. Quer dizer, estabeleciam, regulavam e modificavam o
significado das histó rias pessoais que se produziam. Ou, dito de outro
modo, realizavam certas operações sobre a experiê ncia de si dos alunos
na medida em que essa experi ê ncia estava constitu ída tanto no vocabu-
lá rio e na trama dos relatos que contavam quanto na maneira de
contá-los.

A Auto-Reflexão dos Educadores

A terceira modalidade de construção e de mediação pedagógica da i


experiência da pessoa consigo mesma que explorei anteriormente é
aquela que se produz naquelas práticas para a formação inicial e
permanente do professorado, nas quais o que se pretende é que os
participantes problematizem, explicitem e, eventualmente, modifiquem
a forma pela qual constru íram sua identidade pessoal em relação a seu
trabalho profissional.10 Do que se trata a í é de definir, formar e
transformar um professor reflexivo, capaz de examinar e reexaminar,
regular e modificar constantemente tanto sua pr ó pria atividade prá tica
quanto, sobretudo, a si mesmo, no contexto dessa prá tica profissional.
As palavras-chave desses enfoques sobre a formação do professorado
são reflexão, auto-regulação, auto-análise, autocrítica, tomada de cons-
ciê ncia, autoformação, autonomia, etc. Por outro lado, é importante
advertir que os motivos da auto- reflexão não incluem apenas aspectos
“ exteriores” e “ impessoais” , tais como as decisões práticas que se
tomam, os comportamentos expl ícitos na sala de aula, ou os conheci -
mentos pedagógicos que se tê m, mas, sobretudo, aspectos mais “ inte-
riores” e “ pessoais” , como atitudes, valores, disposi ções, componentes
afetivos e emotivos, etc. Dito de outro modo, o que se pretende formar
e transformar não é apenas o que o professor faz ou o que sabe, mas,

10 Em relação com a “ classe de Filosofia ” como um desses espaços institucionalizados


para a construção e a transformação da “ autoconsciência profissional” do educador,
ver Larrosa, 1994a, 1994d. Sobre as atividades de reflexão e sobre a prática como
atividade de auto- reflex ão e autotransformaçã o, h á uma exploração preliminar em
um trabalho coordenado por mim e por Virginia Ferrer e realizado por alunos do
Mestrado em Educação de Pessoas Adultas, durante o per íodo 93/94 e intitulado
Proyecto pedagógico para neo -lectores adultos. Una reflexion sobre la práctica.
Universidade de Barcelona, inédito.

49

i
fundamentalmente, sua pr ó pria maneira de ser em relação a seu traba-
lho. Por isso, a questão prática está duplicada por uma questão quase-
existencial e a transforma çã o da pr á tica está duplicada pela
transformação pessoal do professor.
Uma aula de Filosofia da Educação pode ser, sob certas condições,
um desses espaços institucionalizados de reflexão. Ou, no sentido que
aqui lhe estamos dando, um desses espaços de produção e mediação da
experiê ncia de si. Obviamente, isso ocorre apenas se a aula não está
constitu ída como um espaço para produzir especialistas na disciplina,
pessoas que “ sabem ” Filosofia da Educação, mas como um espaço no
qual se aprende a “ pensar ” e a “ argumentar ” sobre questões educativas
de determinada maneira. Basicamente, de uma maneira moral. Quer
dizer, construindo a idé ia da educação em relação com uma idéia do
social, do pol ítico, do cultural ou do pessoal, que inclua componentes
axiológicos e que se possa relacionar a ideais p ú blicos ou pessoais como,
por exemplo, a igualdade, a democracia, o enriquecimento da vida
cultural, o pleno desenvolvimento das capacidades humanas, o di á logo,
a comunidade, a autonomia pessoal, etc. Mas “ pensar ” como ter certas
cren ças, opiniões ou id é ias sobre a educação tomada em um sentido
moral se relaciona aqui explicitamente com submeter à consideração
um conjunto de pressuposições que podem estar impl ícitas em uma
grande variedade de comportamentos em situações prá ticas. Por outro
lado, “ pensar ” tampouco é aqui algo exclusivamente lógico ou argu-
mentativo, algo que tem a ver unicamente com a coerê ncia do discurso,
mas que inclui e integra atitudes pessoais básicas e componentes de
decisão. Por isso, as pr á ticas discursivas que se produzem em uma aula
de Filosofia da Educaçã o n ão tê m tanto a ver com o que educador sabe,
com sua competê ncia profissional, mas com o que ele é, com sua
identidade moral como educador, com o valor e o sentido que confere
à sua prática, com sua autoconsciê ncia profissional. Dessa maneira,
“ pensar ” sobre a educação implica construir uma determinada auto-
consciê ncia pessoal e profissional que sirva de princí pio para a pr á tica,
de crité rio para a cr ítica e a transformação da prática, e de base para a
auto-identificação do professor.
Outro exemplo de produção e mediaçã o da auto-reflexão dos
professores é uma atividade de reflexão sobre a pr á tica na qual um grupo
de professores de educação de adultos introduziu a pedagogia do
“ Projeto Filosofia para Crianças” em uma aula de neoleitores. Seu
trabalho consistia em adaptar o material pedagógico dispon ível e cons-
truir um material novo em função das características de seus alunos,
controlar a realização das atividades através de um conjunto de meca-
nismos de observação e registro e, sobretudo, explicitar , revisar e
transformar seu pró prio comportamento na prática em função de certos
parâ metros de dialogismo, aprendizagem signficativa, nã o-diretividade
e atenção à lógica de pensamento e à experiê ncia dos alunos. O que os
professores faziam com a introduçã o de uma pedagogia nova era,

50
fundamentalmente, modificar as idéias implícitas dos alunos a propó- I
sito do que é aprender (na medida em que essas idéias implicam certas
atitudes em relação ao conhecimento, em relação a si mesmos e aos
demais que se refletem em suas próprias condutas na sala de aula) e
modificar suas pr ó prias idéias sobre o ensino na medida em que essas 1
id é ias implicam també m atitudes, formas de atenção, aspectos emocio-
nais, valorativos, etc.
O trabalho propriamente reflexivo dos professores consistia, em
primeiro lugar, em explicitar seu pró prio comportamento através de i
mecanismos previamente planejados de observação mútua e auto-ob-
servação, e através de aparatos també m previamente planejados para o
registro de suas pr ó prias auto-observações. Por outro lado, nessas
mesmas operações de auto-observação, em suas reuniões de trabalho,
em suas leituras e em suas reuniões com os tutores de seu trabalho, i
aprendiam toda uma linguagem para falar de suas prá ticas e de si 1
mesmos em suas práticas. Por último, os professores aprendiam também
a julgar-se e transformar -se em funçã o dos parâ metros normativos
impl ícitos na pedagogia que estavam introduzindo e na qual, ao mesmo 5

tempo, estavam se introduzindo. Tratava-se, portanto, de todo um


í

conjunto de operações orientadas à constituição e à transformação de


sua pr ó pria subjetividade.
Em todos os casos mostrados até aqui, tanto os de educação moral
quanto os de educaçã o de adultos ou os de formação de professores,
trata-se sempre de produzir, capturar e mediar pedagogicamente algu-
ma modalidade da relação da pessoa consigo mesma, com o objetivo
explícito de sua transformação. Algumas práticas pedagógicas, então,
incluem técnicas encaminhadas a estabelecer algum tipo de relação do 4

sujeito consigo mesmo, a fazer determinadas coisas com essa relação e,


eventualmente, a transformá-la. Para dizer de uma maneira próxima ao
vocabulá rio foucaultiano, trata-se de produzir e mediar certas “ formas
de subjetivação” nas quais se estabeleceria e se modificaria a “ experiên-
cia ” que a pessoa tem de si mesma. E é essa proposi ção que tentarei
desenvolver agora com algum detalhe, com a ajuda de alguns dos textos
de Foucault, especialmente os que escreveu depois de 1978.11

Governo, Autogoverno e Subjetivação

Desde a História da Loucura até Vigiar e Punir e, com algumas variações


significativas, até a Vontade de Saber, Foucault desenvolveu as relações
11 Impõe-se aqui um breve comentário sobre, até aue ponto, os últimos textos de
Foucault implicam uma reorientação significativa de seu trabalho ou, simplesmente,
exigem uma certa reordenação. O mais habitual é falar em termos de
descontinuidades cronológicas. Haveria uma primeira etapa, entre 1961 e 1969,
onde a questão do saber e o método da arqueologia seriam dominantes; uma
segunda etapa, até 1976, relacionada com a questão do poder e a metodologia
genealógica; e uma terceira etapa, baseada nas tecnologias do eu e relacionada com

51
entre saber e poder em um conjunto de práticas nas quais se realiza, em
uma só operação, tanto a produção de determinados conhecimentos
sobre o homem como sua cultura técnica no interior de um determinado
conjunto de instituições (Foucault, 1972b, 1975, 1976). O exemplar
na análise foucaultiana é essa articulação entre saber e poder em cujo
interior se produz o sujeito. E no momento em que se objetivam certos
aspectos do humano que se torna possível a manipulação técnica
institucionalizada dos indivíduos. E, inversamente, é no momento em
que se desdobra sobre o social um conjunto de práticas institucionali-
zadas de manipulação dos indivíduos que se torna possível sua objeti-
vação “ científica ” .
Nesse contexto, a educação é analisada como uma pr á tica discipli -
nar de normaliza çã o e de controle social. As prá ticas educativas são
consideradas como um conjunto de dispositivos orientados à produção
dos sujeitos mediante certas tecnologias de classificação e divisão tanto
entre indivíduos quanto no interior dos indivíduos. A produção peda-
gógica do sujeito está relacionada a procedimentos de objetivação,
metaforizados no panoptismo, e entre os quais o “ exame” tem uma
posição privilegiada. O sujeito pedagógico aparece então como o
resultado da articulação entre, por um lado, os discursos que o no-
meiam, no corte histórico analisado por Foucault, discursos pedagógi-
cos que pretendem ser científicos e, por outro lado, as pr á ticas
institucionalizadas que o capturam, nesse mesmo período histórico, isto
é, aquelas representadas pela escola de massas.
Entretanto, a partir de 1976 começa a introduzir-se na obra de
Foucault um certo deslocamento que poderíamos caracterizar, não sem
precau ções, como um deslocamento em direçã o à interioridade do
sujeito. O primeiro elemento desse deslocamento é, talvez, a aná lise da
“ confissão ” iniciada no primeiro volume da História da Sexualidade
Na análise que ali se fazia sobre o “ dispositivo da sexualidade” havia
.
uma engrenagem sistemática de “ exame” e “ confissão” ou, se quiser-
mos, das tecnologias orientadas à objetivação mé dica, psicológica ou

a ética. H. Dreyfus e P. Rabinow (1993) impuseram essa divisão cronológica que é,


com reservas, compartilhada por G. Deleuze (1986 ). Por outro lado, há em Foucault
um esforço constante em reapropriar-se de seus primeiros trabalhos no contexto
.
dos subseqiientes Ele fez isso quando publicou Vigiar e Punir, dizendo que sempre
havia estudado o poder, e em várias ocasiões em relação com seus últimos escritos.
Quando Foucault oferece retrospectivamente uma revisão de seu trabalho, parece
que se podem considerar três dimensões (saber, poder e subjetivação) relacionadas
com três aproximações metodolóeicas, mas essas n ão podem ser identificadas com
,

divisões cronológicas. Sobre a relação entre as três metodologias veja-se Morey,


1990, pp. 9-44. Nas revisões retrospectivas de sua obra, Foucault situa as três
dimensões sob algum problema geral ou uma certa unidade de inten ção: o estudo
das “ diferentes modalidades de subjetivação” , a “ ontologia histórica do presente
(ou de nós mesmos) ” , a “ histó ria da verdade ” ou as “ condições de possibilidade da
experiência” . Essas expressões, entretanto, devem ser tomadas como indicações
-
para a leitura e, em nenhum caso, como a clave de um sistema arquitetô nico de
pensamento ou de uma metodologia completa.

52
social da sexualidade, à produção da sexualidade como “ objeto” de um
conjunto de disciplinas mais ou menos “ científicas” , e das tecnologias
orientadas ao pr óprio trabalho do sujeito sobre si mesmo em relação a
tentar estabelecer, em sua pró pria sexualidade, tanto a verdade de si
mesmo quanto a chave de sua pr ó pria libertaçã o (Foucault, 1976 ).
Por outro lado, e a partir de 1978, o bin ó mio saber/ poder, já
elaborado previamente em termos de “ disciplina” e em termos de
“ biopoder ” , começa a ser abordado em termos de “ governo” . E, na
perspectiva de Foucault, a questão do “ governo” está já desde o
princípio fortemente relacionada com a questão do “ autogoverno” . E
esta ú ltima questão, por sua vez, está claramente relacionada com o
tema da “ subjetividade” .
12
A problemática do governo aparece já nas primeiras aná lises como
historicamente desdobrada tanto no campo político (em relação à “ arte
de governar ” e à “ pol ícia” ) quanto no campo moral (em relação ao
“ governo de si mesmo” ), no campo pedagógico (em relação ao “ gover-
no das crianças” ), no campo “ pastoral” (em relação ao governo da alma,
da consciê ncia e da vida ) e inclusive no campo econó mico ( “ governo
da casa ” e da “ riqueza do Estado ” ).
No Curso 79/80 no Coll ège de France, a relação entre “ governo” ,
“ autogoverno ” e “ subjetivaçã o ” se estabelece do seguinte modo:
Como ocorreu que, na cultura ocidental cristã, o governo dos
homens exige daqueles que são dirigidos, ademais de atos de obe-
diê ncia e submissão, “ atos de verdade” que tê m como particularida-
de o fato de que o sujeito é exigido não somente a dizer a verdade,
mas a dizer a verdade a propósito de si mesmo, de suas faltas, de seus
desejos, do estado de sua alma, etc. ? Como se formou um tipo de
governo dos homens onde n ão se é exigido simplesmente a obedecer,
mas a manifestar, enunciando-o, o que se é ? (Foucault, 1989a, pp.
123-4 ).

E essa relação entre “ governo” , “ autogoverno” e “ subjetivação” é já


fundamental nas aná lises sobre o “ poder pastoral ” , posto que esse tipo
de poder
n ã o pode ser exercido sem conhecer o que passa pela cabeça dos
indivíduos, sem explorar-lhes a alma, sem forçá-los a revelar seus
segredos mais íntimos; implica um conhecimento da consciê ncia e
uma atitude para dirigi-la.
13

12 Por exemplo, no curso pronunciado no Collège de France, em janeiro de 1978


(Foucault, 1981).
13 Foucault, 1993, p. 214. Um estudo histórico sobre o uso religioso e pol ítico da
metá fora do “ pastor ” encontra-se em Foucault, 1988.

53
Por outro lado, a relação implícita entre as questões do “ governo” , do
“ autogoverno” e da “ subjetivação” , utilizando já o conceito de “ tecno-
logias do eu ” , aparece .no curso 1980/81, quando se afirma que, para
uma história das “ tecnologias do eu ” , seria ú til analisar

o governo de si por si mesmo ( de soi par soi ) em sua articulação com


as relações com os outros ( rapports à autrui ) tal como se encontram
na pedagogia, nos conselhos de conduta, na direção espiritual, na
prescrição de modelos de vida, etc. (Foucault, 1989 b, p. 136 ).
No mesmo texto há uma relação entre o “ autogoverno” e as “ tecnolo-
gias do eu” , por um lado, e a pedagogia e as religiões de salvação nas
quais se constitui o “ poder pastoral ” , por outro. Nas palavras de
Foucault:

Este governo de si, com as técnicas que lhe são próprias, tem lugar
“ entre” as instituições pedagógicas e as religiões de salvação ( reli-
gions de salut ) (Foucault, 1989 b, p. 137).
Em qualquer caso, as questões pol íticas aparecem cada vez mais rela-
cionadas com questões éticas. Se nos textos sobre o “ governo” e o
“ poder pastoral ” , a questão ética está claramente subordinada a uma
problemá tica política, à medida que Foucault vai tomando como objeto
de aná lise espaços histó ricos cada vez mais distanciados, a questão do
“ governo de si” se faz cada vez mais autónoma. No segundo e terceiro
volumes da História da Sexualidade, embora a questão pol ítica continue
impl ícita, a problemá tica é tica é claramente dominante. Nesses livros,
Foucault tenta uma análise meticulosa das práticas orientadas à mani-
pulação da existê ncia pessoal, ou, mais especificamente, uma colocação
em cena das “ artes da existência ” que se podem encontrar em alguns
grupos sociais na Gr écia clássica e na Roma Greco-Latina. E, nesse
contexto, o foco privilegiado é a consideração das diferentes modali-
dades da construção da relação da pessoa consigo mesma. As questões
básicas são temas como a hermenê utica do eu, a relação entre verdade
e proibição, as formas da experiê ncia de si, etc.
O sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do
sujeito, já não é analisada apenas do ponto de vista da “ objetivação ” ,
mas também e fundamentalmente do ponto de vista da “ subjetivação” .
Isto é, do ponto de vista de como as práticas pedagógicas constituem e
medeiam certas relações determinadas da pessoa consigo mesma. Aqui
os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas como
sujeitos falantes; nã o como objetos examinados, mas como sujeitos
confessantes; não em relação a uma verdade sobre si mesmos que lhes

54
f é imposta de fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que
eles mesmos devem contribuir ativamente para produzir.

Genealogia e Pragmática da “ Experiência de Si”

Com respeito à experiê ncia de si, podemos encontrar em Foucault dois


deslocamentos. Um deslocamento pragmático, que poderíamos definir
como uma atenção privilegiada às pr áticas que a produzem e a medeiam.
Um deslocamento historicista, que consistiria na consideração dessas
práticas de um ponto de vista genealógico. O que Foucault estudaria
seria algo assim como as condições práticas e históricas de possibilidade
da produção do sujeito através das formas de subjetivação que consti-
tuem sua pr ó pria interioridade na forma de sua experiê ncia de si
mesmo. Em suas próprias palavras, trata-se de
estudar a constituição do sujeito como objeto para si mesmo: a
formação de procedimentos pelos quais o sujeito é induzido a
observar-se a si mesmo, analisar-se, decifrar -se, reconhecer-se como
um domínio de saber possível. Trata-se, em suma, da história da
“ subjetividade” , se entendemos essa palavra como o modo no qual
o sujeito faz a experiê ncia de si mesmo em um jogo de verdade no
qual está em relação consigo mesmo.14
Há um enlace entre “ subjetividade ” e “ experiê ncia de si mesmo” . A
ontologia do sujeito não é mais que a experiê ncia de si que Foucault
chama de “ subjetivação” . Há um sujeito porque é possível traçar a
genealogia das formas de produção dessa experiê ncia. Aqui teríamos a
virada historicista em sua radicalidade: o que pode ser colocado em
uma perspectiva histórica não está restrito às diferentes descrições que
os homens produziram de sua experiê ncia de si mesmos. Na perspectiva
de Foucault, a experiê ncia de si não é um objeto independente que
permaneceria imutável, através de suas diferentes representações, mas,
antes, é a experiê ncia de si a que constitui o sujeito, o eu enquanto si
mesmo ( soi, self ). E essa a razão pela qual o sujeito mesmo tem uma
histó ria.
Juntàmente com essa virada historicista, que permite formular uma
história da subjetividade como uma história da forma da experiê ncia de
si, falava antes també m de uma virada pragmática. Trata-se aqui de um
deslocamento que permite perguntar pelo modo como essa experiê ncia
de si foi produzida ou, em outras palavras, que permite perguntar pelos
mecanismos específicos que constituem o que é dado como subjetivo.
Na perspectiva de Foucault, a experiê ncia de si se constitui quando um

14 A citação é de um texto que Foucault escreveu com o pseudonimo de Maurice


Florence. Trata-se de M. Florence, “ Foucault, M.” , no Dictionaire des Philosophes.
Paris, PUF, 1984, pp. 297-298.

55
determinado domínio material é focalizado como objeto de atenção.
Ou, dito de outro modo, quando determinados estados ou atos do
sujeito são tomados como o objeto de alguma consideração prática ou
cognoscitiva. Foucault chama isso de “ problematização” . Entretanto,
um dom ínio material pode ser objeto de diferentes formas de proble-
matização. E, historicamente considerado, um domínio material é
tomado como objeto de atenção apenas no interior de alguma modali-
dade de problematização específica. Desse ponto de vista, as formas de
problematização são as que estabelecem como um domínio material está
cognoscitivamente e praticamente considerado e, portanto, as que
estabelecem a especificidade da experiê ncia de si. Em uma perspectiva
histórica, a história da experiê ncia de si com respeito a um domínio
material (a sexualidade, por exemplo) é a história das problematizações
que constituem as condições de possibilidade, a história dos discursos
orientados a articulá-la teoricamente e a história das práticas orientadas
para fazer coisas com ela. E como essas problematizações são históricas,
particulares e contingentes, a “ experiê ncia de si” é também histórica,
particular e contingente.
O sujeito, sua história e sua constituição como objeto para si
mesmo, seriam, então, insepar áveis das tecnologias do eu. Foucault
define as tecnologias do eu como aquelas nas quais um indivíduo
estabelece uma relação consigo mesmo. Em suas pró prias palavras,
como aquelas práticas

que permitem aos indivíduos efetuar, por conta própria ou com a


ajuda de outros, certo n ú mero de operações sobre seu corpo e sua
alma, pensamentos, conduta, ou qualquer forma de ser, obtendo
assim uma transformação de si mesmos com o fim de alcançar certo
estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade (Foucault,
1990, p. 48 ).
Ou, no Curso de 1980/1981, como
os procedimentos, tal como existem sem d ú vida em qualquer civili-
zação, que sã o propostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua
identidade, mantê-la ou transformá-la em função de um certo n ú -
mero de fins, e graças a relações de autodom ínio ( maî trise de soi sur
soi ) ou de autoconhecimento ( connaissance de soi par soi ) (Foucault,
1989b,p. 134).
Assim, o deslocamento, nos últimos trabalhos de Foucault, em direção
à “ interioridade ” do sujeito, pode ser entendido como um novo lance
na metódica e sistemática dissolu ção de qualquer sujeição antropol ógi -
ca. A história do eu como sujeito, como autoconsciê ncia, como ser-para-
si, é a histó ria das tecnologias que produzem a experiê ncia de si. E estas,
por sua vez, não podem ser analisadas sem relação com um dom ínio de
saberes e com um conjunto de práticas normativas. A experiê ncia de si

56
seria, então, a correlação, em um corte espaço-temporal concreto, entre
dom ínios de saber, tipos de normatividade e formas de subjetivação. E
é uma correlação desse tipo que se pode encontrar, també m, em um
corte espaço-temporal particular, na estrutura e no funcionamento de
um dispositivo pedagógico.
«>

A Experiência de Si e os Dispositivos Pedagógicos

Para mostrar a construção e a mediação pedagógica da experiê ncia de


si teremos que focalizar a aten ção na forma complexa, variável, contin -
genté; às vezes contraditória, dos dispositivos pedagógicos. Não há
lugar, pois, para os universais antropológicos. Nem tampouco para
ocultar o cará ter constitutivo, e não meramente mediador, da pedago-
gia. O ser humano, na medida em que manté m uma relação reflexiva
consigo mesmo, não é senão o resultado dos mecanismos nos quais essa
relação se produz e se medeia. Os mecanismos, em suma, nos quais o
ser humano se observa, se decifra, se interpreta, se julga, se narra ou se
domina. E, basicamente, aqueles nos quais aprende (ou transforma )
determinadas maneiras de observar-se, julgar-se, narrar-se ou dominar-
se.
Um dispositivo pedagógico ser á, então, qualquer lugar no qual se
constitui ou se transforma a experiê ncia de si. Qualquer lugar no qual
se aprendem ou se modificam as relações que o sujeito estabelece
consigo mesmo. Por exemplo, uma prá tica pedagógica de educação
moral, uma assembléia em um colégio, uma sessão de um grupo de
terapia, o que ocorre em um confessioná rio, em um grupo pol ítico, ou
em uma comunidade religiosa, sempre que esteja orientado à constitui -
ção ou à transformação da maneira pela qual as pessoas se descrevem,
se narram, se julgam ou se controlam a si mesmas.
Tomar os dispositivos pedagógicos como constitutivos da subjeti-
vidade é adotar um ponto de vista pragmá tico sobre a experiê ncia de
si. Reconhecer a contingê ncia e historicidade desses mesmos dispositi-
vos é adotar um ponto de vista genealógico. Dessa perspectiva, a
pedagogia não pode ser vista já como um espaço neutro ou n ão- proble-
mático de desenvolvimento ou de mediação, como um mero espaço de
possibilidades para o desenvolvimento ou a melhoria do autoconheci-
mento, da auto-estima, da autonomia, da autoconfian ça, do autocon -
trole, da auto- regulação, etc., mas como produzindo formas de
experiê ncia de si nas quais os indivíduos podem se tornar sujeitos de
um modo particular. A pr á tica educativa de educação moral que
comentei acima não pode ser tomada como dirigida ao autoconheci-
mento, como um mero espaço para o desenvolvimento do autoconhe-
cimento, mas como definindo de forma singular e normativa o que
significa autoconhecimento enquanto que experiê ncia de si e como
produzindo as relações reflexivas que o tornam possível. Do mesmo
57
P

modo, a atividade com narrativas pessoais ou histórias de vida na


educação de adultos não está dirigida à tomada de consciência, mas é
em seu interior, em suas regras e no modo de sua realização, que a
tomada de consciência como transformação da experiência de si é
normativamente produzida e praticamente produzida. Por último, as
práticas para fomentar a auto-reflexão crítica dos professores definem
o que vale como experiê ncia crítica de si e os constituem em seu
funcionamento mesmo como práticas pedagógicas. Trata-se, em todos
os casos, de analisar a produção da experiê ncia de si (o que conta como
autoconhecimento, como tomada de consciê ncia, ou como auto-refle-
xão crítica) no interior de um dispositivo (uma prática pedagógica com
determinadas regras e determinadas formas de realização).
Se, como diz Deleuze, “ a filosofia de Foucault se apresenta como
uma aná lise de dispositivos concretos” ( Deleuze, 1989, p. 185), tentarei
no que segue descrever as dimensões fundamentais que constituem os
dispositivos pedagógicos de produção e mediação da experiê ncia de si.
Distinguirei cinco dimensões. Em primeiro lugar, uma dimensão ótica,
aquela segundo a qual se determina e se constitui o que é visível dentro
do sujeito para si mesmo. Em continuação, uma dimensão discursiva na
qual se estabelece e se constitui aquilo que o sujeito pode e deve dizer
acerca de si mesmo. Em terceiro lugar, uma dimensão jurídica, basica-
mente moral, em que se dão as formas nas quais o sujeito deve julgar a
si mesmo segundo uma trama de normas e valores. Quarto, e em uma
dimensão que inclui, relacionando-os, componentes discursivos e jurí-
dicos, mostrarei como a modalidade discursiva essencial para a cons-
trução temporal da experiê ncia de si e, portanto, da auto-identidade, é
a narrativa; esta é a dimensão na qual a experiência de si está constitu ída
de uma forma temporal e aquela que determina, portanto, aquilo que
conta como um personagem cuja continuidade e descontinuidade no
tempo é impl ícita a uma trama. Por último, uma dimensão prática que
estabelece o que o sujeito pode e deve fazer consigo mesmo.

A Estrutura Básica da Reflexão. Ver-se

A ótica, o “ ver ” , é uma das formas privilegiadas de metaforização do


conhecimento. E a mesma metáfora ótica em sua forma reflexiva, o “ ver
a si próprio” , é uma das formas privilegiadas de nossa compreensão do
autoconhecimento. A atividade de autodescrição, utilizada como práti-
ca de educaçã o moral que apresentei acima, tem por título “ Como me
vejo?” . Em todo caso, e por uma dessas metaforizações fortemente
ancoradas em nossa cultura, tendemos a pensar o autoconhecimento
em termos de visão de si mesmo. A mente é um olho que pode
conhecer/ver coisas. E o autoconhecimento estaria possibilitado por
uma curiosa faculdade do olho da mente, a saber, a de ver o próprio
sujeito que vê. Seja por “ reflexão” , através de um espelho que faz “ dar
a volta à luz” e apresenta à mente sua pró pria imagem exteriorizada,

58
r seja porque o mesmo olho da mente é capaz de “ voltar-se sobre si
mesmo” , de “ virar-se para trás” ou “ para dentro” . Dado o papel básico
da reflexão e do olhar para dentro no modo como tendemos a com-
preender a relação do sujeito consigo mesmo, talvez valha a pena
desenvolver alguns dos pressupostos implícitos nessa metaforização
ótica do autoconhecimento.
Se consideramos a etimologia de “ reflexão” no uso do verbo latino
“ re/Zecíere” , obteremos uma parte significativa das imagens básicas
associadas a todos esses conceitos em relação aos que estou tratando
aqui e que listei no princípio do trabalho. “ Reflectere ” significa “ virar”
ou “ dar a volta” , “ voltar para trás” e, també m, “ jogar ou lançar para
trás” . Por outro lado, o termo tem expl ícitas conotações óticas na
medida em que designa a ação mediante a qual as superf ícies polidas
fazem voltar a luz. Nesse último sentido, e por extensão, “ reflexão”
significa també m a reprodução dos objetos nas imagens oferecidas por
um espelho e o processo que tem lugar entre um objeto e sua imagem
tal como esta aparece em uma lâ mina polida. Como conseqiiê ncia dessa
conotação ótica, quando o termo reflexão é utilizado para designar o
modo como a pessoa humana tem um certo conhecimento de si mesma,
esse autoconhecimento aparece como possibilitado por algo análogo ao
processo pelo qual a luz f ísica é lançada para trás por uma superf ície
refletiva. O autoconhecimento, pois, aparece como algo análogo à
percepção que a pessoa tem de sua pr ó pria imagem na medida em que
pode receber a luz que foi lançada para trás por um espelho.
Teríamos, assim, um desdobramento entre a própria pessoa e uma
imagem exterior de si própria, a que aparece no espelho, a qual, pelo
efeito feliz de uma mudança na direção da luz, faz-se visível para a
própria pessoa como qualquer outra imagem. O autoconhecimento
aparece assim como uma modalidade particular da relação sujeito-ob-
jeto. Só que o objeto percebido, neste caso, é a pró pria imagem
exteriorizada que, por uma certa propriedade da luz ao bater nas
superf ícies polidas, está diante do sujeito que vê. Para que o autoconhe-
cimento seja possível, então, se requer uma certa exteriorização e
objetivação da própria imagem, um algo exterior, convertido em objeto,
no qual a pessoa possa se ver a si mesma.
Mas dizia antes que a metaforização ótica do autoconhecimento
tem també m outro sentido que não utiliza explicitamente o movimento
reflexivo da luz. Neste segundo caso, o autoconhecimento é algo assim
como um voltar o olho da mente para dentro. Haveria assim uma
espécie de percepção interna que se produziria ao voltar o olhar, este
olhar que normalmente está dirigido às coisas exteriores, para si mesmo.
Em si próprio haveria “ coisas” que se fazem visíveis ao se lhes prestar
atenção, ao dirigir a elas o pró prio olhar. Teríamos agora uma estrutura
similar sujeito-objeto, um processo similar de objetivação, embora sem
a exteriorização impl ícita na metáfora do espelho. Essas coisas que

59
existem dentro de mim são de alguma forma privadas, só eu posso
vê-las, só eu tenho acesso a elas embora, isso sim, possa comunicá-las e
“ torná-las visíveis para os outros” , através de algum procedimento,
linguistico ou não, de exteriorização. De todo modo, e este seria um
ponto crucial, o modelo solipsista da observação interna reproduziria
o esquema ótico sujeito-objeto. Só que o objeto, neste caso, seria o
conjunto de “ coisas” que há dentro de mim e que eu só posso ver quando
volto o olho da mente para dentro.
O preceito dèlfico “ conhece-te a ti mesmo” , enquanto imperativo
reflexivo, transporta toda essa duplicação entre a própria pessoa e sua
imagem e/ou toda essa divisão ao interior da pró pria pessoa entre algo
de mim que conhece e algo de mim que é conhecido. E transporta
també m, de um modo impl ícito, toda essa imagem ótica, toda essa
metaf ísica da luz, do olho, da imagem e da visão, que venho tentando
decompor até aqui.
Isso supõe que, ao pensar normativamente o modo como a pr ó pria
pessoa se vê e/ou se conhece a si mesma, é quase inevitá vel pensar em
termos de espelhos mais ou menos deformados ou imperfeitos (que não
dariam a imagem fiel, mas uma sé rie de imagens falsas), ou em termos
de olhos pouco precisos (que tampouco veriam o que há, mas algo
muito mais borrado, menos n ítido), ou em termos de uma luz que não
é suficientemente potente (o que faria que algumas coisas permaneces-
sem ocultas na sombra ou, no melhor dos casos, só pudessem ser vistas
como vultos indefinidos), ou em termos de alguns obstáculos opacos
que impediriam que a luz chegasse a seu objetivo (o que faria que
algumas coisas fossem invisíveis), ou em termos de “ filtros” intermediá-
rios que distorceriam a luz ( o que faria que o que vemos de nós mesmos
estivesse deformado ). E uma formulação desse tipo pressuporia que, no
limite, idealmente ao menos, poderia haver espelhos puros, olhares
precisos, iluminações adequadas, ou espaços intermediá rios transparen -
tes, livres de obstáculos e de filtros; o ú nico problema é que ainda não
fomos capazes de fabricar esses espelhos, de formar esses olhares, de
construir esses instrumentos de iluminação, ou de remover esses obstá-
culos e esses filtros. Todo um ideal de autotranspar ê ncia que se poderia
converter, quase sem esforço, em um ideal pedagógico e/ou terapêutico.

Máquinas Óticas

Um dos temas principais da obra de Foucault e um dos fios centrais que


permitiriam percorrer a maior parte dessa obra é justamente o tema da
visibilidade. E a visibilidade é, para Foucault, qualquer forma de
sensibilidade, qualquer dispositivo de percepção. O ouvido e o tato na
medicina, o exame na pedagogia, a observação sistemática e sistemati-
zada em qualquer aparato disciplinar, a disposi ção dos corpos nos
* rituais penais,
etc. Recorde-se, por exemplo, que a análise do Edipo Rei

60
na Verdade e as Formas Jurídicas está articulado a partir da emergê ncia
de um certo modo de “ ver ” e de “ haver visto” (o modo do pastor que
serve de testemunha, que se opõe à visão soberana do rei e à visão
prof ética dos adivinhos) como um mecanismo de prova e de estabele-
cimento da verdade (Foucault, 1980 ). Ou a análise das Meninas em a
Palavra e as Coisas em que elabora toda uma teoria ótica e pictórica da
representação clássica (Foucault, 1968 ). Por outro lado, já na História
da Loucura, o binómio manicômio/psiquiatria aparece como um dispo-
sitivo para tornar visível a loucura ( Foucault, 1972a).O nascimento da
clínica, cujo subtítulo é justamente “ uma arqueologia do olhar médico” ,
explora os diferentes modos de visibilidade da enfermidade implicados
respectivamente na cl ínica e na anatomia patológica (Foucault, 1972b).
A imagem do panóptico preside as análises foucaultianas de Vigiar e
Punir a propósito dos aparatos disciplinares (Foucault, 1975). Nessa
ú ltima obra, a prisão, a f á brica, o hospital e a escola são, entre outras
coisas, máquinas de ver. Dispositivos para “ tornar visíveis” as pessoas
que capturam (presos, trabalhadores, enfermos ou crianças ), e para
“ tornar eficazes” os processos que realizam ( reformar, produzir, curar
ou ensinar ). As mudanças na penalidade desde o suplício até o encerra-
mento são, entre outras coisas, mudanças no que se vê e se faz ver e no
que se oculta. Para Foucault, o exame é um dispositivo de visibilidade,
de vigilâ ncia, um dispositivo que inverte as relações de visibilidade
habituais no espaço pedagógico. A confissão, em A Vontade de Saber, e
em especial o sutil mecanismo do exame de consciê ncia, é também um
dispositivo pelo qual o sujeito se torna visível a si mesmo em sua
interioridade ( Foucault, 1976 ). Na ú ltima etapa de sua obra, aquela em
que analisa a gé nese, o desdobramento e as transformações dos proce-
dimentos de subjetivação, esses ser ão analisados, em diversas ocasiões,
como exercícios de atenção em relação a si mesmo e de visão de si
mesmo. Em todo caso, e no que aqui nos interessa, Foucault analisa a
constituição e o desdobramento histórico de dispositivos de visibilida-
de, de máquinas de ver.15
Poderíamos formular o problema de Foucault como o de determi-
nar, em um mesmo movimento, o que é visível e o olho que v ê, o sujeito
e o objeto do olhar. Um mecanismo de visibilidade, uma máquina ótica,
determina e constitui ambos os pólos. A visibilidade não está do lado
do objeto (dos elementos sensíveis ou das qualidades visíveis das coisas,
das formas que se revelariam à luz ) nem do lado do sujeito (de seus
aparatos de sensibilidade ou percepção, de seus sentidos, de sua vontade
de olhar). Nos trabalhos de Foucault, tanto o objeto quanto o sujeito
são variáveis dos regimes de visibilidade e dependem de suas condições.
Um regime de visibilidade composto por um conjunto específico de
máquinas óticas abre o objeto ao olhar e abre, ao mesmo tempo, o olho
que observa. Determina aquilo que se vê ou se faz ver, e o alguém que

15 Nesse parágrafo e no seguinte sigo a análise de Deleuze (1986).

61
w. *

vê ou que faz ver. Por isso o sujeito é uma função da visibilidade, dos
dispositivos que o fazem ver e orientam seu olhar. E esses são históricos
e contingentes.
O exemplo da ficha de observação analisado por Valerie Walker -
dine (1984) mostra claramente tudo o que há de implícito nessa
operação aparentemente trivial e quase natural na qual uma professora
-r de jardim de inf ância observa o jogo das crianças de sua classe e,
simplesmente, registra o que viu. Esse dispositivo tão inócuo estabelece
ao mesmo tempo o que é a criança enquanto objeto visível, quais são
as coisas que são vistas e classificadas e o que é a professora enquanto
observadora, como ela vê as crianças, o que ela deve olhar. Por outro
lado, e como mostra també m claramente Walker dine, esse dispositivo
é inseparável de toda uma distribuição espacial das pessoas e das coisas
na classe. E é inseparável també m de toda uma teoria do “ desenvolvi-
mento” da criança, da seqiiência temporal, normativamente construída,
do que a criança, com seu comportamento, torna visível. A ficha de
observaçã o, portanto, condensa e constitui ao mesmo tempo o espaço
e o tempo da pedagogia, o que, para Kant, eram as formas a priori da
sensibilidade, universais, e uniformes ao sujeito e ao objeto. Para
Foucault, entretanto, o espaço e o tempo são a prioris históricos.
Contingentes, heterogé neos e exteriores tanto ao sujeito quanto ao
objeto. A ficha de observação e registro, com todo o conjunto de
discursos e prá ticas que a tornam possível, com toda a organização
espaço-temporal que implica, estabelece, em um só movimento, o
sujeito e o objeto da visão.16
Podemos estender essa análise foucaultiana da visibilidade à meta-
forizaçã o ótica da reflexão, ao ato de “ ver-se a si pró prio” . O autoco-
nhecimento como “ ver-se a si mesmo” depende, em primeiro lugar, da
aplicação em direção a si pró prio dos dispositivos gerais da visibilidade.
Em segundo lugar, da colocação em ação de dispositivos específicos
para a auto-observação. Mas a í a visibilidade não constitui o sujeito
como quem vê algo externo a si mesmo, um objeto exterior; ela envolve
todo o conjunto de mecanismos nos quais a pessoa se observa, se
constitui em sujeito da auto-observação, e se objetiva a si mesmo como
visto por si mesmo. Através dos dispositivos de auto-observação, como
o analisado na atividade pedagógica de educação moral, produz-se esse
desdobramento do eu que tomamos como a condição de ver-se, e se
constituem de uma determinada maneira os dois polos da relação: o eu
que se observa e o eu que se vê. O que havia na prática pedagógica de
educação moral que considerei antes era todo um operador ótico
dirigido para a pró pria pessoa, no qual as crian ças tinham que fazer um
determinado balanço de seus gostos, de suas qualidades, de suas limi-
tações, de seus medos. Como se, aprendendo a administrar -se da forma

16 Sobre o tratamento foucaultiano da visibilidade pode ver-se Rajchman, 1991.

62
mais eficaz e racional possível, tivessem que começar por saber com que
contam. Por outro lado, poderíamos incluir també m nessa dimensão
ótica dos dispositivos de constituição e transformação da experiência
de si todos os mecanismos de “ autovigilâ ncia” que se põem em jogo nas
práticas pedagógicas e/ou terapê uticas (e que não são outra coisa senão
a interiorização por parte do educando e/ou paciente do olho do
educador e/ou terapeuta) e todos os mecanismos “ projetivos” nos quais
o indivíduo é levado a reconhecer-se e a identificar-se em imagens
dispostas para isso. As práticas orientadas a fomentar a auto-reflexão
crítica dos educadores incluem, geralmente, instruções para que o
professor se observe a si mesmo em seu trabalho, assim como questio-
ná rios para o registro dessas auto-observações. A atividade de educação
de adultos que comentamos pode ser tomada também como um opera-
dor projetivo no qual as pessoas têm que ver a si mesmas na figura do
narrador. Em todos os casos, é o dispositivo que inclui um mecanismo
ótico que a pessoa tem que fazer funcionar consigo mesma, aprendendo
suas regras de uso legítimo, isto é, as formas corretas de ver-se.

A Estrutura da Linguagem. Expressar-se

Apesar do fato de as atividades pedagógicas para o desenvolvimento do


autoconhecimento costumarem metaforizar-se oticamente com títulos
do tipo “ como me vejo ? ” , o que as crianças têm que fazer aí é,
basicamente, falar e escrever. Entretanto, esse deslizamento do “ falar”
para o “ ver ” está sancionado por uma certa idéia da linguagem consti-
tuída pela superposição de duas imagens: uma imagem referencial,
aquela segundo a qual as palavras são essencialmente nomes que
representam as coisas, e uma imagem expressiva, aquela segundo a qual
a linguagem é um ve ículo para a exteriorização de estados subjetivos,
algo assim como um canal para extrair para fora, elaborar e tornar
p ú blicos certos conte údos interiores. Na imagem da refer ê ncia, a
linguagem copia a realidade. Na imagem da expressão, a linguagem
exterioriza o interior. “ Ex- premere ” significa algo assim como “ apertar
para fora ” , “ trazer algo para fora ” , “ empurrar algo para fora ” , “ exte-
riorizá-lo” e, assim, “ mostrá-lo” ou “ torná-lo manifesto” . Aquilo que a
criança faz na atividade intitulada “ como me vejo ? ” pode ser entendido,
quase sem violê ncia, como “ mostrar ” ou “ fazer com que” os outros
vejam, “ tirando para fora ” , aquilo que ela “ viu ” primeiro em seu
próprio “ interior ” . E isso, simplesmente, “ dando-lhe um nome” , “ re-
presentando-o” nesse meio neutro e não- problemático que seria a
linguagem entendida referencialmente, isto é, como um mecanismo de
re-presentação. A linguagem serve para apresentar aos outros o que já
se faz presente para a pró pria pessoa. A linguagem apresenta de uma
forma repetida, representa, duplica em um meio exterior o que já estava
apresentado, tornado visível, no interior. Por isso, a metáfora mais
primitiva, a da exteriorização, pode tomar o sentido de re-presentar,

63
equivaler ou, em geral, significar. O expressado-exteriorizado na lin-
guagem expressa- representa-equivale a-significa o que foi previamente
visto no interior da consciê ncia.
Às vezes, entretanto, a imagem da expressão como exteriorização
não está ligada a uma id éia da linguagem como referencial, repre-
sentativa, mas a uma linguagem imaginativa. A id éia de expressão como
“ tirar-apertando- para-fora” també m se aplica à arte entendida como
linguagem. De fato, as atividades lingíiísticas e artísticas na escola
contempor ânea costumam ser vistas como expressivas mas não como
representativas. Na Espanha, a educação primária, as atividades artísti-
cas e, em geral, lingíiísticas, estão agrupadas em uma á rea chamada de
“ expressão” que inclui, além da linguagem natural, a expressão plástica,
a expressão musical e a expressão f ísica ou corporal. A idéia de
expressão estaria aqui possibilitada porque as produções lingíiísticas,
artísticas ou os comportamentos corporais seriam tomados como sig-
nos, e nos signos dessa linguagem haveria alguma pista, algum rastro
do indivíduo que os produz. Quando fala ou escreve de uma forma
espontânea, quando pinta, quando canta, quando faz teatro, quando se
fantasia, quando se move, a criança estaria se mostrando a si mesma,
estaria levando à linguagem, ao signo, embora de uma forma indireta,
alusiva e não referencial, aquilo que ela mesma é.
V

As vezes, també m a id éia de expressão se utiliza inclusive quando


a ação ou a fala de um sujeito não é o resultado de uma atividade
consciente e intencional de “ exteriorização” de estados interiores, seja
essa referencial ou imaginativa, mas quando está impl ícita na conduta
ou na fala habitual e cotidiana. As produções de signos das crianças
contê m formas de ideação e avaliação que permanecem ocultas e opacas
para elas mesmas. Mas que, entretanto, mostram ou tornam pú blicos
os estados interiores do sujeito, ainda que de forma não intencional.
A metáfora da exteriorização é então dominante, tanto se estiver
associada a uma linguagem categorizada como referencial, categorizada
como imaginativa mas intencionalmente expressiva, quanto se for
concebida como não intencionalmente expressiva e, portanto, com uma
refer ê ncia opaca do ponto de vista do falante. O essencial é, então, a
n ítida dicotomia entre o interior e o exterior, assim como a linguagem
como uma media ção entre estados internos de consciê ncia (sensações,
sentimentos, volições, imagens, conceitos, etc.) e o mundo exterior. A
expressão viria então definida como uma exteriorização (consciente ou
inconsciente, referencial ou imaginativa, intencional ou não intencio-
nal ) da interioridade. E as palavras e os gestos viriam a ser signos
exteriores mais ou menos transparentes, mais ou menos diretos, de
“ coisas” ou “ estados” interiores.
Assim, sob essa forma de metaforização, o falante tende a ser
entendido como o sujeito de um discurso expressivo. A expressão seria
algo assim como a externalização de estados e intenções internas ou

64
subjetivas. O discurso expressivo seria, portanto, aquele que oferece a
subjetividade do sujeito. E essa subjetividade não seria senão o signifi-
cado do discurso, aquele prévio ao discurso e expressado e exterioriza-
do por esse.
Se o preceito “ conhece-te a ti mesmo” é um imperativo para a
atenção e para o olhar reflexivo e carrega toda uma duplicação do
sujeito, o preceito pedagógico e social moderno “ expressa-te a ti
mesmo” conté m toda uma distinção entre o interior e o exterior e toda
uma imagem da linguagem como exteriorização. Portanto, ao pensar
normativamente o modo como a pessoa produz signos, é inevitável
pensar em termos de maior ou menor competê ncia expressiva (o que
explicaria a existência de restos inexpressados), ou de maior ou menor
sinceridade expressiva (o que permitiria falar em termos de simulação
ou mentira), ou de maior ou menor espontaneidade expressiva (o que
explicaria a deformação imposta pela rigidez das convenções ou dos
padrões lingüisticos). E isso supõe duas coisas: em primeiro lugar, que
a subjetividade é o significado do discurso, algo prévio e independente
do discurso do qual seria ao mesmo tempo a origem e a referência; em
segundo lugar, que poderia haver, idealmente, uma competência plena,
uma sinceridade absoluta e uma espontaneidade livre. Quer dizer, todo
um ideal, facilmente pedagogizável, da transparê ncia comunicativa.

Procedimentos Discursivos

O tema foucaultiano da visibilidade guarda um certo parelelismo com


o tema da dizibilidade. O “ ver ” e o “ fazer ver ” se correspondem, embora
não se identifiquem, com o “ falar ” e o “ fazer falar ” . A distribuição
histórica do que se vê e do que se oculta vai em paralelo com a
distribuição do que se diz e do que se cala. O visível vai em paralelo
com o dizível. As formas legítimas de olhar se relacionam com as formas
legítimas de dizer. Na História da Loucura conta-se como a loucura é
dita de distintas maneiras, capturada em distintas maneiras de dizer e
de fazer dizer (Foucault, 1972a). E o resultado, sempre conflitivo, do
entrecruzamento de regimes discursivos diversos, dos discursos que a
dizem, que a fazem falar, que lêem e interpretam seus signos, que a
classificam em função do que o louco expressa de si mesmo. No
Nascimento da Clínica, a presença da enfermidade no corpo é analisada
a partir de toda uma reorganização do discurso que está em correspon-
dência com toda uma reorganização do que é tornado visível (Foucault,
1972b). O olhar do médico é um olhar loquaz na medida em que é um
olhar capaz de 1er os signos da enfermidade, de fazer que o corpo do
enfermo lhe fale. Na Vontade de Saber, descrevem-se múltiplas formas
de fazer falar o sexo e de 1er e interpretar o que o sexo, ao fazer-se
visível, tem a nos dizer. E poderíamos multiplicar os exemplos (Fou-
cault, 1976). Mas a concepção foucaultiana do discurso não o considera
como representativo ou expressivo, mas como um mecanismo autôno-

65
TT*” -
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mo que, funcionando no interior de um dispositivo, constitui tanto o


representado e o expressado quanto o sujeito mesmo como capaz de
representação ou expressão.17
Dever-se-ia ter em conta, em primeiro lugar, a autonomia do
discurso. E a instrução metodológica de analisá-lo em si mesmo, na
medida em que tem suas próprias regras. Desse ponto de vista, o
enunciado se relaciona com outros enunciados e não com coisas, com
conceitos ou com idéias. Por outro lado, tampouco poderia ser referido
a um sujeito individual ou coletivo que pudesse ser tomado como sua
origem ou seu soberano. O discurso não admite nenhuma soberania
exterior a si mesmo, nem a de um mundo de coisas da qual seria uma
representação secund á ria, nem a de um sujeito que seria sua fonte ou
sua origem. Pelo contrá rio, o discurso é condição de possibilidade tanto
do mundo de coisas quanto da constituição de um falante singular ou
de uma comunidade de falantes.
A dependência do discurso em relação às coisas, aos conceitos ou
às idéias, Foucault oporia a primazia do significante sobre o significado
ou, caso se queira, a potencialidade do significante para criar e deter-
minar o significado. As “ coisas” , os “ estados de coisas” ou os “ concei-
tos” que se nomeiam não são exteriores ao discurso; são, antes, variáveis
do enunciado, a rigor, objetos discursivos. E o discurso, em suma, quem
constitui um domínio de objetos como seu correlato. E nesse sentido
que haveria, em Foucault, uma primazia do discurso sobre o visível. O
visível não é a base do dizível, ele depende, antes, do discurso (embora
não se possa reduzi-lo ao discurso ). O discurso, que tem seu próprio
modo de existência, sua própria lógica, suas próprias regras, suas
pr óprias determinações, faz ver, encaixa com o visível e o solidifica ou
o dilui, concentra-o ou dispersa-o.
Por outro lado, à dependê ncia do discurso com relação ao sujeito,
Foucault oporia a potencialidade da linguagem para fixar a posição do
falante como sujeito ou, no limite, para constituir o sujeito como tal.
O discurso, nessa perspectiva, não remete a nenhum sujeito, a nenhum
eu pessoal ou coletivo que o tornaria possível. O que ocorre, antes, é
que para cada enunciado existem posicionamentos de sujeito. O sujeito
é uma variável do enunciado. E são esses posicionamentos, essas
posições discursivas, as que literalmente constroem o sujeito, na mesma
operação em que lhe atribuem um lugar discursivo.
Em segundo lugar, dever-se-ia ter em conta também a contingência
de qualquer distinção entre linguagem referencial e imaginativa (ciência
e literatura) ou entre linguagem representativa e emascaradora (ciência
ou ideologia). Na perspectiva foucaultiana, tais distinções são distinções
internas ao discurso, variáveis do discurso e, como tais, têm uma
história. Uma história que depende essencialmente da “ história da

17 Sobretudo em Foucault, 1969.

66
verdade” , do surgimento e da consolidação de determinados “ jogos de
verdade” , isto é, de determinados regimes discursivos com cujas regras
se pode determinar o que é um discurso verdadeiro, um discurso fictício
ou um discurso ideologicamente enviesado. Não se trata, então, de
diferenciar o que há de verdadeiro, de fictício ou de ideológico no
discurso, mas de determinar as regras discursivas nas quais se estabelece
o que é verdadeiro, o que é fictício ou o que é ideológico.
O funcionamento do discurso, por último, é inseparável dos dispo-
sitivos materiais nos quais se produz, da estrutura e do funcionamento
das práticas sociais nas quais se fala e se faz falar, e nas quais se fazem
coisas com o que se diz e se faz dizer. Nesse sentido, as prá ticas sociais
analisadas por Foucault (um confessionário, um manicomio, uma pri-
são, um hospital, etc.) são máquinas óticas que produzem, ao mesmo
tempo, o sujeito que vê e as “ coisas” visíveis. E máquinas enunciativas
que produzem, ao mesmo tempo, significantes e significados. Incluem
máquinas de ver e práticas discursivas. Práticas de ver e práticas de dizer.
Mas tanto as máquinas óticas quanto as discursivas estão imbricadas em
formações não óticas e não discursivas. Um dispositivo implica visibili-
dades e enunciados. E, inversamente, as formas de ver e de dizer
remetem aos dispositivos nos quais emergem e se realizam.
Foucault, em seus trabalhos, reconstrói regimes de enunciabilidade.
Ou, melhor ainda, a estrutura e o funcionamento da dimensão discur-
siva dos dispositivos (pedagógicos, carcerá rios, médicos, psquiá tricos,
etc.). E, do mesmo modo que ocorria em relação aos procedimentos
óticos da visibilidade, que criavam ao mesmo tempo o sujeito e o objeto
da visão, também os procedimentos discursivos da enunciabilidade
criam ao mesmo tempo o sujeito e o objeto da enunciação. No discurso,
e segundo a perspectiva foucaultiana, tanto o sujeito quanto o objeto
são funções do enunciado. O discurso da pedagogia tal como é tratado
em Vigiar e Punir, sobretudo em relação a esse aparato ao mesmo tempo
ótico e enunciativo que é o exame, constitui simultaneamente a subje-
tividade do professor e a do aluno (Foucault, 1975). Walkerdine (1984)
e Donald (1992) analisam como o entrecruzamento de regimes diseur- ,

sivos diversos a propósito da inf ância e da aprendizagem produzem


tanto a inf â ncia e a aprendizagem (os objetos da enunciação) quanto o
professor, o psicólogo e o filantropo (os sujeitos da enunciação).
Seria possível, pois, considerar a estrutura geral do expressar-se
como a dobradura reflexiva, sobre si próprio, dos procedimentos
discursivos que constituem os dispositivos de construção e mediação da
experiência de si. Ao participar das prá ticas pedagógicas que descrevi
antes, não se trata do fato de que a pessoa aprende meios de expressão
de si mesma. O que ocorre, antes, é que, ao aprender o discurso legítimo
e suas regras em cada um dos casos, ao aprender a gramática para a
auto-expressão, constitui-se ao mesmo tempo o sujeito que fala e sua
experiê ncia de si. Não se trata de que a experiê ncia de si seja expressada

67
pelo meio da linguagem, mas, antes, de que o discurso mesmo é um
operador que constitui ou modifica tanto o sujeito quanto o objeto da
enunciação, neste caso, o que conta como experiência de si. E inserin-
do-se no discurso, aprendendo as regras de sua gramática, de seu
vocabulá rio e de sua sintaxe, participando dessas práticas de descrição
e redescrição de si mesma, que a pessoa se constitui e transforma sua
subjetividade.

A Estrutura da Memória. Narrar-se

As máquinas óticas e as máquinas discursivas determinam uma espécie


de topologia da subjetividade: aquilo que a pessoa pode ver em si mesma
e como, ao nomeá-lo, pode traçar seus limites e seus contornos. Mas a
consciê ncia e a autoconsciê ncia humana não implicam apenas uma
topologia do eu, mas toda uma construção da identidade pessoal que
está articulada temporalmente.
Tanto a filosofia da mente quanto a Psicologia Cognitiva utilizam
metáforas de “ armazenamento” para representar a memória e a recor -
dação. Uma espécie de depósito ou armazém, um “ espaço f ísico” que
“ contém” objetos e rastros e ao qual é possível voltar de quando em
quando, é transferido à estrutura da mente humana.18 Entretanto, na
medida em que é uma operação ativa na qual a subjetividade se articula
temporalmente, a recordação não é apenas a presença do passado. Não
é uma pista, ou um rastro, que podemos olhar e ordenar como se
observa e se ordena um álbum de fotos. A recordação implica imagina-
ção e composição, implica um certo sentido do que somos, implica
habilidade narrativa.
As metáforas da memória relacionadas com a etimologia de “ nar-
rar ” e de “ contar ” podem ajudar a clarificar as imagens que lhe estão
associadas. “ Narrare” significa algo assim como “ arrastar para a frente” ,
e deriva também de “ gnarus” que é, ao mesmo tempo, “ o que sabe” e
“ o que viu ” . E “ o que viu” é o que significa também a expressão grega
“ istor” da qual vem “ história” e “ historiador ” . Temos aqui outra vez
essa associação entre o ver e o saber da qual falávamos antes, e essa
imagem do falar como “ representar ” o visto. O que narra é o que leva
para frente, apresentando-o de novo, o que viu e do qual conserva um
rastro em sua memória. O narrador é que expressa, no sentido de
exteriorizar, o rastro que aquilo que viu deixou em sua memória. Por
outro lado, “ contar ” vem de “ computare” , literalmente “ calcular ” e
derivado de “ putare” que tem o duplo sentido de “ enumerar ” , literal-
mente “ ordenar numericamente” , e de “ conferir uma conta” . Contar
uma história é enumerar, ordenar os rastros que conservam o que se

18 Uma lista das metáforas espaciais utilizadas em relação com a memória pode
encontrar-se em Roediger, 1980.

68
r viu. E é essa ordenação a que constitui o tempo da história. Mas essa
ordenação se concebe basicamente como cálculo, como prestar contas,
como “ conferir as contas” daquilo que ocorreu.
Se consideramos agora a narração em um sentido reflexivo, como
narrar-se, poderíamos decompor as imagens associadas nos seguintes
elementos. Em primeiro lugar, uma cisão entre o eu entendido como
aquilo que é conservado do passado, como um rastro do que viu de si
mesmo, e o eu que recolhe esse rastro e o diz. Ao narrar-se, a pessoa
diz o que conserva do que viu de si mesma. Por outro lado, o dizer-se
narrativo não implica uma descrição topologica, mas uma ordenação
temporal. Assim, o narrador pode oferecer sua pr ópria continuidade
temporal, sua própria identidade e permanência no tempo (embora sob
a forma de descontinuidades parciais que podem ser referidas a um
princípio de reunificação e totalização ) na mesma operação na qual
constr ói a temporalidade de sua história. Por ú ltimo, a autonarração
não pode ser feita sem que o sujeito se tenha tornado antes calculável,
pronto para essa operação na qual a pessoa presta contas de si mesma,
abre-se a si mesma à contabilidade, à valoração contável de si.
Assim, se a subjetividade humana está temporalmente constituída,
a consciê ncia de si estar á estruturada no tempo da vida. O sujeito se
constitui para si mesmo em seu pr óprio transcorrer temporal. Mas o
tempo da vida, o tempo que articula a subjetividade não é apenas um
tempo linear e abstrato, uma sucessão na qual as coisas se sucedem umas
depois das outras. O tempo da consciê ncia de si é a articulação em uma
dimensão temporal daquilo que o indivíduo é para si mesmo. E essa
articulação temporal é de natureza essencialmente narrativa. O tempo
se converte em tempo humano ao organizar-se narrativamente. O eu se
constitui temporalmente para si mesmo na unidade de uma história.
Por isso, o tempo no qual se constitui a subjetividade é tempo narrado.
E contando histórias, nossas pr óprias histórias, o que nos acontece e o
sentido que damos ao que nos acontece, que nos damos a nós próprios
uma identidade no tempo.19
O problema de como o indivíduo constrói o sentido de quem ele
é para si mesmo é análogo ao que acontece com a construção de uma
personagem em uma trama narrativa. O eu, então, não é uma unidade
psíquica, de caráter substantivo, suscetível de temporalização ao contar
com o rastro do passado no armazé m da memória. O que ocorre, antes,
é que o eu da autoconsciê ncia temporal é algo que está significativa-
mente constituído na narração. A compreensão da própria vida como
uma história que se desdobra, assim como a compreensão da própria
pessoa como o personagem central dessa história, é algo que se produz
nesses constantes exercícios de narração e autonarração no qual estamos

19 Uma elaboração da construção e da reconstrução da identidade pessoal como um


jogo entre histórias pode ver-se em Larrosa, 1994e. Veja-se também Kerby, 1991.

69
implicados cotidianamente. Mas o eu da auto-interpretação narrativa
não se constitui em uma reflexão não mediada sobre si mesmo Não é .
uma entidade pré-simbólica ou pré-cultural que, simplesmente, se volta
sobre si mesma, dirige a si mesma seu olhar, em particular ao depósito
onde conserva os rastros de sua memória, e se verte na linguagem
narrativa como o meio neutro no qual expressa a articulação temporal
do que viu. O sujeito da autoconsciê ncia não é imediatez, nem pura
privacidade, nem acesso privilegiado, interioridade não mediada que se
expressa no discurso. Pelo contr ário, a narrativa, como modo de
discurso, está já estruturada e pré-existe ao eu que se conta a si mesmo.
Cada pessoa se encontra já imersa em estruturas narrativas que lhe
pré-existem e em função das quais constrói e organiza de um modo
particular sua experiê ncia, impõe-lhe um significado. Por isso, a narra-
tiva não é o lugar de irrupção da subjetividade, da experiência de si,
mas a modalidade discursiva que estabelece tanto a posição do sujeito
que fala (o narrador ) quanto as regras de sua pró pria inserção no
interior de uma trama (o personagem ). A subjetividade, portanto, está
constituída na correlação implícita e nunca saturada entre tr ês ordens
radicalmente diferentes entre si, na medida em que cada uma delas
ocupa uma dimensão distinta no espaço discursivo e tem suas pró prias
regras: o autor, o narrador e o personagem. As narrativas pessoais, as
histórias de vida, os textos autobiográficos (orais ou escritos) baseiam-se
na pressuposição de que o autor, o narrador e o personagem são a
mesma pessoa.
A construção e a transformação da consciência de si dependerá,
então, da participação em redes de comunicação onde se produzem, se
interpretam e se medeiam histórias. Dependerá desse processo intermi-
ná vel de ouvir e 1er histórias, de contar histórias, de mesclar histórias,
de contrapor algumas histórias a outras, de participar, em suma, desse
gigantesco e agitado conjunto de histórias que é a cultura. A constituição
narrativa da experiê ncia de si não é algo que se produza em um
solilóquio, em um diálogo íntimo do eu consigo mesmo, mas em um
diálogo entre narrativas, entre textos. Na aprendizagem do discurso
narrativo através da participação em práticas discursivas de cará ter
narrativo se constitui e se modifica tanto o vocabulário que se usa para
a autodescrição quanto os modos de discurso nos quais se articula a
história de nossas vidas. E no trato com os textos que estão já aí que se
adquire o conjunto dos procedimentos discursivos com os quais os
indivíduos se narram a si mesmos. O processo pelo qual se ganha e se
modifica a autoconsciê ncia não se parece, então, com um processo de
progressivo descobrimento de si, com um processo em que o verdadeiro
eu iria alcançando pouco a pouco transparê ncia para si mesmo e iria
encontrando os meios lingü isticos para expressar-se. A consciê ncia de
si pró pria não é algo que a pessoa progressivamente descobre e aprende
a descrever melhor. É, antes, algo que se vai fabricando e inventando,

70
1i

algo que se vai construindo e reconstruindo em operações de narração


e com a narração.

Políticas da Autonarração

Mas Foucault nos ensinou que o poder atravessa o discurso. Que o


discurso, essa entidade tão tê nue e indeterminada, capaz de uma
produtividade quase infinita, é algo sobre o qual se exercem múltiplas
operações de solidificação e controle.Que as práticas discursivas são
també m prá ticas sociais organizadas e constitu ídas em relações de
desigualdade, de poder e de controle. Desse ponto de vista, se a
consciência de si no tempo é o resultado de uma fabricação narrativa i
que se realiza através de um conjunto de operações no discurso e com
o discurso, essa fabricação não se faz sem violência.20 A história das
formas nas quais os seres humanos construíram narrativamente suas
vidas e, através disso, sua autoconsciê ncia, é também a história dos
dispositivos que fazem os seres humanos contar-se a si mesmos de
determinada forma, em determinados contextos e para determinadas
finalidades. A história da autonarração é também uma história social e
uma história política.
Por isso, as prá ticas discursivas nas quais se produzem e se medeiam 4
as histórias pessoais não são autónomas. Estão, às vezes, incluídas em
dispositivos sociais coativos e normativos de tipo religioso, jurídico,
médico, pedagógico, terapêutico, etc. Deve-se perguntar també m, por-
tanto, pela gestão social e política das narrativas pessoais, pelos poderes
que gravitam sobre elas, pelos lugares nos quais o sujeito é induzido a
interpretar-se a si mesmo, a reconhecer-se a si mesmo como o persona-

20 O tratado segundo da Genealogia da Moral de Nietzsche é um bom exemplo do


complexo processo de fabricação de um eu estável e, nesse sentido, expõe a conexão
entre a capacidade de fazer promessas, a sinceridade e a violência. Sobre o fazer
promessas, diz Nietzsche: “ Quantas coisas pressupõe isso! Para dispor assim
antecipadamente do futuro, quanto deve antes o homem haver aprendido a separar
o acontecimento necessá rio do casual, a pensar causalmente, a ver e a antecipar o
distante como presente, a saber estabelecer com segurança o que é fim e o que é
meio para o fim, a saber em geral contar, calcular
— auanto deve o homem mesmo,
para conseguir isso, haver-se tornado antes calculável, regulável, necessário, poder
responder-se a si mesmo de sua pró pria representação, para finalmente poder
responder de si como futuro à maneira como o faz quem promete (...). Aquela tarefa
de criar um animal ao qual lhe seja lícito fazer promessas inclui em si, como condição
e preparação, segundo já o compreendemos, a tarefa mais concreta de tornar o
homem antes, até certo grau, necessá rio, uniforme, igual entre iguais, ajustado à
regra e, em conseqiiência, calculável ” (Madri, Alianza, pp. 66-67). Essas palavras
de Nietzsche ressoam em Foucault (1980) quando diz a respeito do sujeito que “ para
saber o que é, para conhecê-lo realmente, para apreendê-lo em sua raiz, em sua
fabricação, devemos aproximar-nos dele n ão como filósofos, mas como políticos” .

71
w
gem de uma narração atual ou possível, a contar-se a si mesmo de acordo
com certos registros narrativos.
Por outro lado, Foucault se distanciou també m de todas as formas
de continuidade temporal que implicam a soberania da consciê ncia ou
do sujeito. Para Foucault, uma determinada maneira de articular o
tempo, aquela que enfatiza a continuidade, constitui tanto um ref úgio
privilegiado para o sujeito quanto o fundamento de sua soberania. Na
Arqueologia do Saber, denuncia essa continuidade na maneira de cons-
truir narrativamente o tempo com o qual se fabrica uma temporalidade
que garante a função fundadora e sintética do sujeito. Uma temporali-
dade que funciona por totalidades recompostas, por reapropriações do
passado, por tomadas de consciê ncia. Uma temporalidade, em suma,
que não é senão o progressivo desdobrar-se, apesar dos retrocessos e
dos obstáculos, de uma consciê ncia unificadora e soberana. Essa tem-
poralidade contínua não se faz senão através de um conjunto de
operações de seleção e distorsão que tê m como objetivo conjurar todo
o aleatório dos acontecimentos, todo o irregular, tudo o que escapa à
unidade de uma trama na qual o sujeito reconhece e expressa sua
soberania no devir. Qualquer narração que condense todos os aconte-
cimentos em torno de um centro ú nico ou de uma forma de conjunto
é, para Foucault, um artif ício ordenado para a construção e a recons-
trução da consciência de si em uma de suas modalidades, justamente
aquela na qual se fabrica a ficção do eu soberano.
Em Nietzsche, a Genealogia, a História , Foucault persegue esse
exercício de den ú ncia da articulação contínua, evolutiva e totalizadora
do tempo (Foucault, 1971). De análise das operações de exclusão de
tudo o que é incoerência, acontecimento aleatório, dispersão, azar,
irrupção, do que não se deixa reduzir ao princípio soberano da cons-
ciência. De desvelamento dos mecanismos que constroem uma subjeti-
vidade que se desdobra no tempo sob a forma de um recolhimento
totalizador do passado e da reconciliação unificadora consigo mesma.
Mas aqui, de uma forma já claramente política, Foucault vê no apelo à
origem ou ao destino (os elementos metaf ísicos que constituem um
ponto de vista supra-histórico para reduzir a aleatoriedade e a infinita
dispersão dos acontecimentos), na construção de uma trama narrativa
evolutiva, e na ficção de uma subjetividade soberana, o resultado do
jogo de um conjunto de sistemas de submetimento e de dominação. E
são esses sistemas de submetimento os quais, a rigor, constituem o lugar
dos sujeitos. Desse ponto de vista, a autonarração não é o lugar onde a
subjetividade está depositada, o lugar onde o sujeito guarda e expressa
o sentido mais ou menos transparente ou oculto de si mesmo, mas o
mecanismo onde o sujeito se constitui nas próprias regras desse discurso

72
que lhe dá uma identidade e lhe impõe uma direção, na própria
operação em que o submete a um princípio de totalização e unificação.
Nas práticas pedagógicas nas quais se produzem e se medeiam
narrativas pessoais, das quais ofereci antes alguns exemplos, podem-se
ver em funcionamento alguns desses mecanismos de produção de
identidade. As crianças que participam da atividade de educação moral
que apresentei são induzidas a escrever, em relação ao que “ vêem” em
si mesmas de qualidades e defeitos, de gostos e desgostos, uma projeção
de si mesmas em direção ao futuro, o que gostariam ou não gostariam
de ser, o que mudariam em si mesmas, construindo uma direção
temporal na qual elas mesmas são posicionadas como o princípio de
soberania. No uso das “ histórias de vida” em educação de adultos se
impunha uma narrativa de “ tomada de consciê ncia ” na qual uma certa
construção do passado ficava reapropriada no significado que se tratava
de impor à sua pr ópria experiê ncia atual de alunos. Nas atividades de
“ auto-reflexão crítica ” com os professores, o que se produz é toda uma
identidade prática em relação com a atividade profissional, presente ou
futura, em função de uma história pessoal constru ída sob princípios de
evolu ção e totalização. E a subjetividade mesma das crianças, dos alunos
adultos ou dos professores em formação que se está construindo através
da imposição de certos padrões de autonarração.

A Estrutura da Moral. Julgar-se

Temos até aqui esse desdobramento do sujeito que situei como a


condição de ver-se, essa dicotomia entre o interior e o exterior à qual
remeti a estrutura básica do expressar -se, e essa cisão entre o presente
e o rastro do passado com a qual relacionei a forma básica de narrar-se.
Nos três casos, a subjetividade estava constituída pelas máquinas óticas
que estabeleciam o sujeito e o objeto da visão, pelos procedimentos
discursivos que determinavam o sujeito e o objeto da expressão, e pelas
formas narrativas nas quais se articulavam temporalmente tanto o
sujeito quanto o objeto da autonarração. Em todos esses casos, a
constituição da experiê ncia de si passava por uma forma de cisão do eu
e, sobretudo, pelos procedimentos de mediação nos quais se estabele-
ciam as relações da pessoa consigo mesma. O seguinte passo será
considerar o que ocorre quando entramos no ver-se, no expressar-se e
no narrar-se, quando entramos no domínio moral. Num domínio
constitu ído por valores e normas, estruturado nas distinções axiológicas
derivadas da distinção básica entre bom e mau, ou nas leis e normas de
comportamento que tê m que ver, em geral, com o dever. E aí, no
domínio moral, a consciê ncia se faz jurídica. O ver-se, o expressar-se e
o narrar-se no domínio moral se constituem como atos jurídicos da
consciê ncia. Isto é, atos nos quais a relação da pessoa consigo mesma
tem a forma geral do julgar -se.

73
- •
*T '
*

O antecedente grego do termo jurídico por excelê ncia, o termo


latino ju ízo ( judicium), é a noção de krisis. E krisis é uma noção ao
mesmo tempo gnoseològica e prática, que denota discernimento, elei-
-
ção e decisão, e que aparece imbricada em discursos político morais e
em discursos técnicos (basicamente médicos). De krisis deriva tanto
crité rio quanto crítica (e també m, claro, hipócrita). Krinein é discernir
a marca pr ópria de cada coisa, isto é, o kriterion que a distingue e em
função da qual se a determina. E a palavra crítica designa uma espécie
de arte da interpretação, uma técnica para o estabelecimento, a apre-
ciação e a avaliação da realidade tendo em vista certos crité rios que
podem ser tanto objetivos e racionais quanto relativamente subjetivos
e pessoais. Quando a realidade que se interpreta é uma realidade
semiótica, em geral um texto, a crítica será uma atividade que tem a ver
com a avaliação de obras de arte (daí a crítica literária, teatral, cinema-
tográfica, artística, etc.). A cr ítica será assim, já na escolástica, a parte
da dialética que trata do juízo e da apreciação de textos e de sua
justificação segundo crité rios. E quando se consolida a distinção entre
ciê ncia, moral e arte, se estabelece também a distinção entre os critérios
de verdade que regem na gnoseologia, os crité rios de valor que são a
base do juízo na moral, e os critérios de gosto que fundamentam a crítica
no dom ínio da esté tica.
Que ocorre, então, com o ver-se, o expressar-se e o narrar-se da
reflexão, quando adotam a lógica axiológica da autocr ítica ? Entre o
sujeito e seu duplo que se tornou visível como imagem no espelho, entre
o sujeito e aquilo de si mesmo que se tornou visível ao dar -se ao olhar,
se intercala um crité rio. E como se o sujeito da reflexão, alé m de possuir
a capacidade de ver-se, tivesse també m um crité rio ou padrão que lhe
permitisse avaliar o que vê, criticar -se. E esse crité rio, seja ele imposto
ou constru ído, absoluto ou relativo, é o que lhe permite estabelecer o
verdadeiro e o falso do eu, o bom e o mau, o belo e o feio. Assim, sob
um olhar criterial que transporta todo um conjunto de oposições, o
visível pode ficar avaliado, distinguido por seu valor, marcado positiva
ou negativamente. Por outro lado, o expressar-se, quando cai sob a
l ógica da autocr ítica, não é senão exteriorizar o que foi avaliado, tornar
p ú blica uma atribuição de valor que teve previamente lugar na intimi-
dade da consciê ncia. E a atribuição de valor assim expressada ex-põe
tanto o que foi marcado positiva ou negativamente quanto o critério
de valoração utilizado. Por fim, o narrar-se como autocr ítica adota
decididamente essa função de “ prestar conta” de si mesmo segundo a
l ógica dos crité rios de valor que servem de padrão da contabilidade.
Se a autocrítica remete o ver-se, o expressar-se e o narrar-se a toda
uma l ógica do crité rio e do valor, o julgar-se remete a uma lógica jurídica
do dever, da lei e da norma. O ju ízo, em seu sentido l ógico, na medida
em que toda proposição é um ju ízo, implica uma decisão sobre o que
é. Não há jus sem ratio, sem razão, sem logos. Por isso o ju ízo é
inseparável do ato que o diz. A jurisdição é o dizer o juízo, a insepara-

74
r bilidade do jus e da dictio. E não há dizer sem um código no sentido ao
~r. f

mesmo tempo jurídico e lingiiístico do termo. O código é a ratio do


ju ízo. Por outro lado, dicere é mostrar e discernir, assinalar com o dedo
aquilo que se determina e no juízo (;indicere ), localizá-lo e delimitá-lo,
estabelecer seu lugar ( locus ) e seus limites (,limes), distingui-lo e separá-
lo. O dizer-se do juízo é, então, algo assim como estabelecer uma rede
geográfica de lugares e de contornos que se podem assinalar.21
O que o juízo determina é um caso (e daí a casuística como forma
essencial do discurso jur ídico ). Mas um caso é o particular entendido a
partir desse código. Isto é, desprovido já de sua particularidade, da
infinita diversidade das condições contingentes que o singularizam, de
tudo aquilo que o tornaria ambíguo, ilimitado e, portanto, indizível. E
o juízo que constitui algo em um caso jurídico ao suprimir sua aciden -
talidade, ao determiná-lo em relação à lei, ao fazê-lo cair na lei. Casus
vem de queda. Constituir algo em um caso implica, portanto, fazê-lo
cair na lei, em um lugar dessa rede geográfica que a lei constitui, ao
dizer-se. O juízo, então, é generalizante e singularizante ao mesmo
tempo. Generalizante na medida em que despoja o acontecimento de
sua particularidade e o constitui em caso. Singularizante na medida em
que localiza, discerne, separa.
Um dispositivo jurídico, pois, constitui, em seu funcionamento
mesmo, um juiz, uma lei, um enunciado e um caso. No â mbito moral,
enquanto que normativo e jurídico, ver-se, expressar-se e narrar-se
convertem-se em julgar-se. E julgar-se supõe que se dispõe de um código
de leis em função das quais se julga (embora o sujeito seja considerado
como autolegislador ou autónomo ). Supõe que a pessoa possa conver-
ter-se em um caso para si pró pria, isto é, que se apresente para si pró pria
delimitada, na medida em que cai sob a lei ou se conforma à norma.

Aparatos Jurídicos

Tanto os mecanismos óticos quanto os procedimentos discursivos


foram estudados por Foucault no interior dos dispositivos que regulam
a vida social e que permitem julgar, normalizar e canalizar os indivíduos.
Por outro lado, os procedimentos reflexivos de auto-observação, auto-
expressão e autonarração seriam também inseparáveis dos dispositivos
que tornam os indivíduos capazes de julgar-se e governar-se a si
mesmos, de conduzir-se de uma determinada maneira, de comportar-se
como sujeitos obedientes e d óceis.
Nesse sentido, e em sua análise das disciplinas e do biopoder,
Foucault mostrou a mudança dos dispositivos regulativos baseados na
lei para os dispositivos baseados na norma. Como se passou de uma

21 Para a elaboração das noções de “ cr ítica” e de “ juízo” tomei elementos de Nancy,


1983.

75
concepção negativa do juízo, formulado em relação à lei, fundado sobre
o modelo do permitido e do proibido, realizado no interior de proce-
dimentos sociais de exclusão, a uma concepção positiva do juízo,
baseado na norma, segundo o modelo da regulação, e no interior de
procedimentos de inclusão pedagógica e/ou terapêutica. Da lógica da
proibição e da transgressão à lógica da normalização e da disciplina. A
norma, diferentemente da lei, pretende ser um conceito descritivo:
média estatística, regularidade, há bito. Pretende objetividade: justifica-
ção racional. Mas o normal é um descritivo que se torna normativo. O
normal se converte em um crité rio que julga e que valoriza negativa ou
positivamente. E no princípio de um conjunto de práticas de normali-
zàção cujo objetivo é a produção do normal. Daí o caráter produtivo
da norma, do qual as noções foucaultianas de disciplina e biopolítica
dão exemplos principais. Assim, da divisão simples e binária da inclu-
são-exclusão, do lícito e do ilícito, se passa às complexas formas de
categorização do normal e do patológico, do anormal e do desviado,
do normal ou do que excede ou não chega à norma. O normal se
converte, assim, em um crité rio complexo de discernimento: sobre o
louco, o enfermo, o criminoso, o pervertido, a criança escolarizada. E
um crité rio sustentado por um conjunto de saberes e encarnado nas
regras de funcionamento de um conjunto de instituições. Por isso a
norma está ancorada no saber, na medida em que fixa crité rios racionais
que aparecem como objetivos e, ao mesmo tempo, está ancorada no
poder, na medida em que constitui os princípios de regulação da
conduta segundo os quais funcionam as práticas sociais de disciplina.
Por ú ltimo, e em seus últimos trabalhos sobre as “ artes da existê n-
cia ” na antiga Grécia e em Roma ( Foucault, 1984a, 1984 b), Foucault
mostra uma modalidade de regulaçã o que é diferente tanto daquela
baseada na lei quanto da que se baseia na norma. As “ artes da existê n-
cia ” , em primeiro lugar, não estão ligadas ao obrigatório. São “ práticas
do eu ” que não foram capturadas, nem por um código explícito de leis
sobre o permitido e o proibido, nem por um conjunto de normas sociais.
Não pertencem nem a um dispositivo jur ídico, nem a um dispositivo
de normalização. E por isso não incluem uma determinação nem do
que é transgressão, nem do que é perversão. Integram, portanto, uma
ética positiva, isto é, uma é tica referida, não ao dever, mas à elaboração
da conduta. Em segundo lugar, as “ artes da existê ncia” não pretendem
universalização. Nem se fundam em uma teoria universal da natureza
humana, nem estão dirigidas a regular a conduta de todos os indivíduos.
Nesse sentido, embora possam implicar formas muito intensas de
problematização e formas muito rigorosas de ascese e de trabalho sobre
si próprio, não constituem uma obrigação geral. Constituem, portanto,
uma ética pessoal. Em terceiro lugar, as “ artes da existê ncia ” não estão
ligadas à identidade do sujeito, a qualquer concepção normativa do que
é a natureza humana. A formação do sujeito não está dirigida a
interrogar, assumir, liberar ou reconhecer o que os indivíduos “ real-

76
!
mente ” são, mas à livre elaboração de si mesmo com crité rios de estilo, 1
à estilização pessoal e social de si mesmo. Trata-se, pois, de uma é tica i

configurada esteticamente.
No campo moral, a construção e a mediação da experiê ncia de si
tê m a ver, então, com uma dimensão de ju ízo que pode ser estritamente
jurídica (baseada na lei ), normativa ( baseada na norma), ou estética
( baseada em crité rios de estilo ). Mas, em todos os casos, teríamos a
constituição simultâ nea de um sujeito que julga, um conjunto de
crité rios (um código de leis, um conjunto de normas ou uma sé rie de
crité rios de estilo ), e um campo de aplicaçã o.
A perspectiva foucaultiana implica o privil égio do crité rio. O
crité rio, seja ele uma lei, uma norma, ou um estilo, não é exterior a seu
campo de aplicação; antes, constitui seu próprio objeto, o campo
mesmo de experiê ncias ao qual se aplica. O crité rio produz o campo
mesmo do julgado, constitui seu objeto. Simetricamente, o crité rio
tampouco é exterior ao sujeito que o aplica em um ju ízo. O crité rio
produz també m o sujeito que julga, o juiz. Ser sujeito de ju ízo, inclusive,
paradoxo máximo, sujeito autolegislador e autó nomo, não é possível
sem haver sido constitu ído antes no interior do campo de ação de um
crité rio. E no crité rio e sob o crité rio que as ações podem ser determi-
nadas e julgadas, integradas em um sistema de avaliação. E isso tanto
no interior do sistema de proibições que constitui um sistema de
dominação, como no interior da rede homogé nea e contínua de normas
estatísticas que constitui um sistema de normalização, ou como no
interior dos critérios de estilo que constituem um sistema de elaboração
de si mesmo. Tanto o sujeito do ju ízo quanto o que constitui o â mbito
do julgado são produtos dos sistemas de crité rios que se põem em jogo.
A experiê ncia de si implicada na constituição da subjetividade na
dimensão do julgar-se seria, então, o resultado da aplicação a si mesmo
dos crité rios de ju ízo dominantes em uma cultura. O sujeito só pode
pô r-se a si mesmo como sujeito reflexivo na medida em que está
constitu ído por sua sujei çã o à lei, à norma ou ao estilo. Desse ponto de
vista, a experiê ncia de si, aquilo que a pessoa “ vê ” de si mesma quando
se julga e aquilo que a pessoa “ expressa” de si mesma no ato de
enunciação de seu ju ízo, é algo que se constitui e se determina na
operação mesma do ju ízo, naquilo que os sistemas criteriais que possi-
bilitam o juízo produzem como seu campo de aplicação.
Nos dispositivos pedagógicos de construção e mediação da expe-
riê ncia de si que estamos analisando, a dimensão jurídica é a dominante,
embora se possa separar analiticamente das outras dimensões que
mostramos até aqui (a dimensão ótica e a dimensão discursiva ) e
embora, às vezes, existam fraturas, contradições e tensões entre elas.
Do mesmo modo que o discurso tinha uma espécie de primazia sobre
a visão, do mesmo modo que o dizer -se faz ver-se, o ju ízo é a dimensão
privilegiada nos dispositivos pedagógicos de reflexão: o julgar-se é o
77
que faz dizer-se e o que faz ver-se. Nas atividades de “ reflexão sobre a
prática” que destaquei acima e nas quais os professores são levados a
problematizar e transformar sua própria prática profissional, os crité-
rios de juízo são, sem dúvida, os predominantes. A pedagogia na qual
os professores estão se introduzindo implica um modelo ideal de
professor. Compartilhar a pedagogia é, portanto, compartilhar, mesmo
que implicitamente, esse modelo. Esse modelo, por outro lado, funcio-
na ao mesmo tempo como aspiração e como crité rio de juízo com
respeito ao pró prio comportamento na prá tica. A necessidade de
julgar-se a si próprio em função da pró pria transformação é, então,
desencadeante e reguladora de todas as atividades de auto-observação
e de todos os mecanismos discursivos de auto-observaçã o e de todos os
mecanismos discursivos de auto-análise que estão incluídos na “ reflexão
sobre a prá tica” . O que fizeram ali os professores foi aprender a ver-se
e a dizer-se em função dos crité rios normativos pró prios da pedagogia
em cuja l ógica estavam se introduzindo.

A Estrutura do Poder. Dominar-se

As pessoas são induzidas a julgar-se com vistas a uma certa administra-


ção, governo e transformação de si. A pessoa tem que fazer algo consigo
mesma em relação à lei, à norma, ao valor. E isso, uma ação, um fazer
que afeta algo, um afetar, é justamente a definição foucaultiana de
poder. O poder é uma ação sobre ações possíveis. Uma ação que
modifica as ações possíveis, estabelecendo com elas uma superf ície de
contato ou, às vezes, capturando-as a partir de dentro e dirigindo-as,
seja impulsionando-as, seja contendo-as, ativando-as ou desativando-as.
Ü As operações do poder são operações de conter ou impulsionar, incitar
ou dificultar, canalizar ou desviar. A estrutura do poder, então, implica
algo que afeta (uma ação), algo que é afetado (um conjunto de ações)
e uma relação entre elas. Foucault analisa as operações de poder do
ponto de vista da captura da pura e indeterminada materialidade de um
indivíduo, de um grupo de indivíduos, ou de uma população, por uma
força que, contatando essa materialidade, dá-lhe uma forma e determi-
na-lhe uma direção. As noções de disciplina, de governo, de biopolítica,
de poder pastoral são algumas dessas 'modalidades de captura. Mas
nelas, e isto é importante, são as relações de poder, as ações de afetar,
f as que constituem os dois termos da relação, tanto o sujeito quanto o
objeto do poder. Não se trata de que os indivíduos, os grupos ou as
populações preexistam às relações de poder e sejam capturados por uma
força exterior a eles, mas é essa for ça, em suas operações, a que fabrica
indivíduos, grupos ou populações a partir de uma materialidade indi-
ferenciada que só se forma em uma superf ície de contato. Os indivíduos,
os grupos e as populações só se constituem a partir das superf ícies
materiais nas quais o poder se agarra e nas profundidades nas quais se
incrustra. Não são a premissa, mas o produto das relações de força. E

78
f
por isso que a história dos indivíduos ou das sociedades é, indiscerni-
velmente, a história das relações de poder que os produzem como tais:
indivíduos ou sociedades.
O poder, para afetar, traz à luz, fala e obriga a falar, julga. O ver,
o dizer, e o julgar são, desse ponto de vista, parte das operações de
constituição do que é afetado. As máquinas óticas, os regimes discursi-
vos e os padr ões jur ídicos são inseparáveis dos procedimentos de
fabricação de sujeitos obedientes à lei, normais e normalizados, atentos
a si mesmos. Por isso, o caráter constitutivo com respeito à experiência
de todas essas operações de visibilidade, de enunciação e de ju ízo deve
ser analisado do ponto de vista das relações de poder. E o mesmo
poderíamos dizer com respeito à experiência de si. A experiência de si,
desde a dimensão do dominar-se, não é senão o produto das ações que
o indivíduo efetua sobre si mesmo com vistas à sua transformação. E
essas ações, por sua vez, dependem de todo um campo de visibilidade,
de enunciabilidade e de juízo.
Talvez seja a análise foucaultiana da confissão no primeiro volume
da História da Sexualidade a que melhor mostra como a colocação em
ação de procedimentos óticos, discursivos e jur ídicos de subjetivação é
insepará vel de operações de poder e submetimento (Foucault, 1976 ).
A tese mais surpreendente dessa obra é a id éia de que o controle da
sexualidade não passa tanto por procedimentos de restrição (segundo
as quais o sexo não deveria ser olhado e não deveria ser dito, deveria
ser excluído tanto do olhar quanto da fala), mas por procedimentos de
incitação crescente. A sexualidade é produzida, do ponto de vista de
seu controle e canalizaçã o legítima, através de procedimentos que
incitam a observá-la e a enunciá-la com uma ferocidade particular. E é
a partir daí, dessa análise da produtividade dos dispositivos que fabri-
cam a sexualidade na mesma operação em que a capturam, de onde
advé m a análise da confissão cristã como um lugar no qual a colocação
em discurso do proibido mostra a convergê ncia da vontade de saber e
da vontade de poder. O poder sobre si mesmo, do qual o confessor é o
primeiro depositá rio, passa pela obrigação de vigiar-se continuamente
e de dizer tudo acerca de si mesmo. Passa també m por uma relação com
o juízo, com o julgar-se, posto que estabelece uma relação entre a
subjetividade e a lei. A confissão, tal como o exame em Vigiar e Punir,
é um dispositivo que integra a produção do saber e a cerimonia do
poder, o lugar onde a verdade e o poder confluem. O sujeito confessante
é atado à lei e se reconhece a si mesmo em relaçã o à lei. A confissão é
um dispositivo que transforma os indivíduos em sujeitos nos dois
sentidos do termo: sujeitos à lei e sujeitados à sua própria identidade.
Promove formas de identidade que dependem de como o sujeito se
observa, se diz e se julga a si mesmo sob a direção e o controle de seu
confessor. A secularização da confissão na Medicina, na Psicologia, na
79
** ’ J*

Pedagogia, etc., não muda essencialmente, quanto à forma geral do


dispositivo, o modo corno integra a verdade, o poder e a subjetivação.

A Estrutura da Subjetivação. A Fabricação e a Captura do Duplo

Poderíamos resumir a estrutura e o funcionamento dos dispositivos


pedagógicos que constroem e medeiam a experiê ncia de si como um
conjunto de operações de divisão orientadas à construção de um duplo
e como um conjunto de operações de relação orientadas à captura desse
eu duplicado. Aprender a ver-se, a dizer -se, ou a julgar-se é aprender a
fabricar o pr óprio duplo. E a “ sujeitar-se” a ele. Esse duplo está
constru ído pela composição do eu que vejo quando me observo a mim
mesmo, do eu que expresso quando me digo a mim mesmo, do eu que
narro quando construo temporalmente minha própria identidade, do
eu que julgo quando me aplico um crité rio, do eu que domino quando
me governo. Descrever esses dispositivos pedagógicos é, em primeiro
lugar, descrever que duplo produzem e como o produzem. Em segundo
lugar, descrever aquilo que esse duplo captura e como captura a si
mesmo, isto é, que tipo de relações temos que estabelecer com nosso
duplo. As dimensões do dispositivo não são senão a materialidade e a
forma de realização dessas operações de fabricação e de captura do
duplo.
Mas esse duplo não é a projeção espontânea do eu em uma espécie
de reflexividade natural; antes, ele está constituído pela colocação em
funcionamento de uma série de mecanismos de divisão e relação: os
mecanismos óticos que determinam o que posso ver de mim mesmo e
como posso vê-lo, os mecanismos discursivos que estabelecem o que
posso dizer de mim mesmo e como posso dizê-lo, os mecanismos
jurídicos que produzem com respeito a que e como posso julgar-me, as
ações que constroem o que de mim pode ser afetado por mim mesmo
e a forma desse afetar. O foco para a análise da construção do duplo
não está nem no sujeito, nem no objeto. Nem no primeiro eu, nem no
segundo. O importante são os procedimentos de desdobramento ou de
fabricação e captura do duplo.
Aprender a olhar é racionalizar e estabilizar tanto o olhar quanto
o espaço. E acostumar o olho a deslocar -se ordenadamente, a focalizar
de forma conveniente, a capturar os detalhes significativos. E também
converter o espaço, uma simples cintilação, em uma sé rie de contornos,
de formas reconhecíveis, de fundos e figuras, de continuidades e
transformações. Um olhar educado é um olhar que sabe onde e o que
deve olhar. E que sabe, em todo momento, que é que vê. Um olhar que
já não se deixa enganar nem seduzir. Aprender a olhar é, portanto,
reduzir a indeterminação e a fluidez das formas: uma arte da espaciali-
zação ordenada, da constituição de singularidades especializadas, a
criação de “ quadros” . E també m aprender a vencer a indeterminação e

80
F
?
a fluidez do olhar mesmo: uma arte da focalização ordenada. O que a 1
pessoa vê de si mesma, com um olhar educado, é um duplo de si mesmo.
3
!

Mas um duplo racionalizado, estabilizado, convenientemente espacia-


lizado, adequadamente ex-posto. Um duplo que a pessoa pode ver de
'
1.

forma tranqiiila posto que se conjurou sua indeterminação e sua capa- :

cidade de surpresa. E um duplo que a pessoa pode ver com o atento e i


i

repousado olhar do amo. i

Aprender os nomes das coisas é a melhor maneira de aprender a


olhar. Dizer é assinalar com o dedo. Por isso o nome estabiliza as formas
e por isso a linguagem do saber, enquanto re- presentação, parece quase
espacial, quase pictórica. Em Foucault há toda uma teoria do olhar no 3
dizer-saber e do dizer-saber no olhar. Aprender a falar é aprender os í

3
nomes e as relações entre os nomes, assim como estabilizar a expressão
do nomeado. Mas o poder da linguagem consiste, no limite, em que as
coisas desaparecem sob seus nomes. Mas esse regular a indeterminação :
do discurso é, ao mesmo tempo, regular a indeterminação das coisas. 1

A espacialização ordenada é essencialmente analítica, discursiva, men -


tal. Uma integração na qual a ordem das coisas, das palavras e dos
conceitos parecem se sobrepor. O que a pessoa diz-sabe de si mesma,
quando aprende a falar, é um duplo discurso que mantém certas
correspondê ncias com seu duplo visual. Mas um duplo racionalizado,
tão estabilizado quanto estável é a linguagem que o nomeia e, ao
nomeá-lo, o fabrica. E ao aprender a nomear-se, ao fabricar um duplo
discurso mais ou menos estável, a pessoa reduz sua pró pria indetermi-
nação. Ao dizer-se, a pessoa se tranqüiliza. E ao aprender a dizer-se na .:

temporalidade de uma história, ao narrar -se, a pessoa aprende a reduzir 1

a indeterminação dos acontecimentos, dos azares, das dispersões. A


pessoa aprende a ter um passado e a administrar um futuro. A saber o
que lhe acontece. A fazer-se inteligível em sua pr ópria história, dando-
lhe uma origem ou um destino, uma trama, uma sé rie de transformações
controladas, um sentido. Se o saber-se implica a correspond ê ncia entre J
1

uma linguagem e uma especialização, o narrar-se faz corresponder a !


linguagem com uma temporalização. O duplo da autonarração permite
estabilizar e racionalizar o tempo na medida em que é um eu conve-
nientemente temporalizado. E permite também tranqiiilizar-se no mero !

fato de reduzir a pró pria indeterminação ao contar ou contar-se sua


própria história.
Aprender a julgar é racionalizar o ju ízo, conferir-lhe uma ratio,
estabilizar sua fragilidade, absorver sua indeterminação, prevenir seus
erros. E estabilizar os critérios de verdadeiro e falso, de bom e mau, de
obediê ncia e transgressão, de normal e anormal, de belo e feio. Um
duplo convenientemente espacializado e percorrido por um olhar bem
ordenado e adequadamente focalizado, um duplo convenientemente
nomeado e adequadamente preso em um discurso não ambíguo, e um
duplo temporalizado e constru ído em uma narração estabilizada, é um -á
duplo que já está pronto para o ju ízo. Seus contornos podem marcar-se

81
positiva ou negativamente, sua história pode converter-se em uma
“ conferê ncia de contas” de si ou de seu exterior. O duplo fabricado
pelo juízo tinha já se convertido em um caso para a própria pessoa, ao
ter -se determinado, em seu submetimento a um critério. Entretanto,
não é que a espacialização ou a temporalização do duplo seja prévia ao
juízo. Aqui tudo se produz simultaneamente. Há em Foucault toda uma
teoria das formas de espacialização e temporalização implícitas no juízo
mesmo. Haveria um olhar -se que é já propriamente uma operação
jurídica, uma forma de dizer-se que é já axiol ógica e normativa, e um
narrar-se que já está constitu ído na forma de “ conferir as contas” de si
mesmo. Da mesma manefra que uma espacialização e uma temporali-
zação adequadas, convenientemente estabilizadas e racionalizadas,
abrem o duplo para o juízo ao possibilitar sua conversão em um caso,
o julgar -se implica já uma determinada forma ( jurídica ) de espacializa-
ção e uma temporalização. O duplo do ju ízo implica tanto um duplo
visual quanto um duplo discursivo e narrativo.
Aprender a dominar, a governar e a conduzir é estabilizar as ações,
dar-lhes uma forma, uma direção, uma composição m ú tua, uma ordem
e um sentido. E formar e dirigir as forças, capturar e orientar as
condutas, reduzir sua indeterminação, sua fluidez, sua desordem. O
duplo da auto-afeição é um duplo construído nas operações mesmas de
sua formação e captura. A pessoa pode “ fazer ” algo consigo mesma na
medida em que se determinou já espacial, temporal e juridicamente. E,
ao mesmo tempo, essa espacialização e temporalização jurídica do
duplo depende da construção de uma determinada maneira de domi-
nar-se, de governar -se ou de conduzir-se. Há em Foucault toda uma
teoria da espacialização, da temporalização e da jurisdição impl ícitas no
poder. O autoconhecimento e o julgar-se implicam que podemos
“ fazer ” coisas com nós mesmos. O duplo que a pessoa constrói quando
se olha, se diz, se narra ou se julga está implicado naquilo que pessoa
pode e deve fazer consigo mesma. Esse duplo, portanto, só pode ser
adequadamente compreendido no interior de uma determinada confi-
guração de autogoverno. Outra figura da auto-espacialização e da
autotemporalização é, então, indiscernivelmente outra forma do atuar
sobre si mesmo.
Por outro lado, a fabricação do duplo é inseparável de um conjunto
de operações de exteriorização. O duplo converte os indivíduos em uma
coisa exterior e aberta para os outros. A pessoa não se vê sem ser ao
mesmo tempo vista, não se diz sem ser ao mesmo tempo dita, não se
julga sem ser ao mesmo tempo julgada, e não se domina sem ser ao
mesmo tempo dominada. Ter íamos então uma teoria exterior da
interioridade. A experiê ncia de si se constitui no interior de aparatos
de produção da verdade, de mecanismos de submissão à lei, de formas
de auto-afeição na qual a própria pessoa aprende a participar ex- pon -

82
-9

dose nos olhares, nos enunciados, nas narrações, nos juízos e nas
afeições dos outros.
Além disso, a pessoa não é senão o modo como se relaciona com
seu duplo. Não se deveria pensar em termos de um eu autê ntico, ou
real, ou selvagem, que estaria falsificado, ficcionado ou submetido em
seu duplo. Não se é senão um conjunto de relações consigo mesmo. Da í
a importância da noção de “ experiência” de si. A experiência não
depende do objeto nem do sujeito. Do primeiro eu (transcendental,
original ) ou do segundo (que seria empírico, e sua cópia). A experiê ncia
é o que ocorre “ entre ” e o que constitui e transforma ambos. E isso, o
que ocorre “ entre ” , a relação e a mediação que tem o poder de fabricar
o que relaciona e o que medeia, é o que os dispositivos pedagógicos
produzem e capturam.

Para Além das Evidências

As e-vid ê ncias são o que todo mundo vê, o que é indubitável para o
olhar, o que tem que se aceitar apenas pela autoridade de seu próprio
aparecer. Uma coisa é evidente quando im-põe sua presença ao olhar
com tal claridade que toda d ú vida é impossível. És o que não vês ?! Sim,
aí está, olha, é assim, aí o tens,... é evidente! Só um louco ou um cego
não o veria! Grande é, sem d ú vida, o poder das evid ê ncias. Mas
Foucault empenhou-se em mostrar a contingê ncia das evidê ncias e a
complexidade das operações de sua fabricação. O que todo mundo vê
nem sempre se viu assim. O que é evidente, al ém disso, não é senão o
resultado de uma certa dis-posição do espaço, de uma particular
ex- posição das coisas e de uma determinada constituição do lugar do
olhar. Por isso, nosso olhar, inclusive naquilo que é evidente, é muito
menos livre do que pensamos. E isso porque não vemos tudo o que o
constrange no pró prio movimento que o torna possível. Nosso olhar
está constitu ído por todos esses aparatos que nos fazem ver e ver de
uma determinada maneira. Que se propõe um autor que pretende
romper as evidê ncias, mostrando a trama de sua fabricação, suas
condições de possibilidade, suas servidões, aquilo que está oculto pela
potê ncia mesma de sua luminosidade ? Talvez nos ensinar que nosso
olhar é també m mais livre do que pensamos. E isso porque o que o
determina não é tão necessá rio nem tão universal quanto acreditamos.
O que determina o olhar tem uma origem, depende de certas condições
históricas e práticas de possibilidade e, portanto, como todo o contin-
gente, está submetido à mudança e à possibilidade da transformação.
Talvez o poder das evidê ncias não seja tão absoluto, talvez seja possível
ver de outro modo.
Os estereótipos são os lugares comuns do discurso, o que todo
mundo diz, o que todo mundo sabe. Algo é um estereótipo quando
convoca mecanicamente o assentimento, quando é imediatamente com-

83
I preendido, quando quase não há nem o que dizer. E grande é o poder
dos estereótipos, tão evidentes e tão convincentes ao mesmo tempo. Os
preconceitos são os tópicos da moral, o que todo mundo valoriza
igualmente, as formas do dever que se impõem como óbvias e indubi-
tá veis. E grande é també m o poder dos preconceitos. Os hábitos são os
automatismos da conduta. O que se impõe em relação à forma de
conduzir-se. Os procedimentos que fabricam os estereótipos de nosso
discurso, os preconceitos de nossa moral e os hábitos de nossa maneira
de conduzir-nos nos mostram que somos menos livres do que pensamos
quando falamos, julgamos ou fazemos coisas. Mas nos mostram também
sua contingê ncia. E a possibilidade de falar de outro modo, de julgar
de outro modo, de conduzir-nos de outra maneira.
Todas as operações de fabricação e captura do duplo, de constitui-
ção e mediação da experiência de si, nos indicam o poder das evidências,
os estereótipos, os preconceitos e os há bitos em nós mesmos. Mas
assinalam também sua finitude e contingência. Sua análise não nos
promete um duplo mais autê ntico ou mais real ou mais próximo ao que
de verdade somos. Não nos promete uma identidade “ verdadeira” à
r qual, sim, poderíamos nos sujeitar. De fato, não somos senão aquilo
que se constitui na fabricação e na captura do duplo. Mas, sim, nos
permite dissolver o duplo, perceber seus perigos, resistirmos a suas
inércias, ensaiar novas formas de subjetivação. Nas palavras de Fou-
cault: “ o objetivo principal não é descobrir, mas refutar o que somos
(...) Não é libertar o indivíduo do Estado e de suas instituições, mas
libertar-nos, nós, do Estado e do tipo de individualização que vai ligada
a ele. E preciso promover novas formas de subjetividade” (Foucault,
1993). Ou, nessas dolorosas palavras quase testamentais da introdução
ao Uso dos Prazeres, “ despreender-se de si próprio” .
Ver-se de outro modo, dizer-se de outra maneira, julgar-se diferen-
temente, atuar sobre si mesmo de outra forma, não é outra forma de
dizer “ viver ” ou “ viver-se ” de outro modo, “ ser outro” ? E não é uma
luta indefinida e constante para sermos diferentes do que somos o que
constitui o infinito trabalho da finitude humana e, nela, da crítica e da
liberdade ?

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84
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85
t; 1
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Londres & Nova York, Methuen: 153-202.

Este ensaio foi inicialmente publicado no livro Foucault y Educación ,


organizado por Jorge Larrosa e publicado pela Ediciones de La
Piqueta, Madri, Espanha. Transcrito aqui com autorização do autor.
Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.
Jorge Larrosa é Professor do Departamento de Teoria e História da
Educação da Faculdade de Pedagogia, Universidade de
Barcelona, Espanha.

86
1

4
Julia Varela
O Estatuto do Saber Pedagògico

/^Vs representantes clássicos das Ciê ncias Sociais e alguns pensadores


atuais reivindicam a necessidade de se assumir um distanciamento,
de se repensar a Modernidade, para entender os processos que estão
ocorrendo hoje. Permitam-me, portanto, que, para tentar compreender
o estatuto dos saberes pedagógicos, eu siga seus passos e faça uma
digressão para esboçar, talvez através de um olhar demasiadamente
r ápido e esquemático, a l ógica de toda uma sé rie de mudanças interre-
lacionadas entre si e que têm origem no Renascimento. Essas mudanças,
ainda que se refiram especialmente à reorganização que afetou desde
então o campo dos saberes, tê m també m a ver com as relações que se
estabeleceram entre saberes e poderes específicos, assim como entre
esses e os modos de subjetivação ou, se se prefere, os diferentes tipos
de identidades sociais, que se institu íram. Esse capítulo vai se centrar
sobretudo no papel que jogaram, nessas transformações, as instituições
educacionais, e me deterei fundamentalmente em dois momentos his- í
tó ricos: o começo da Modernidade e a Ilustração.

A Pedagogização do Conhecimento

A partir do Renascimento, começou a se gestar, em contato com novas


instituições educacionais e, mais concretamente, com os col égios jesuí-
tas, um processo que, com remodelações sucessivas, tem se intensificado
até chegar a nossos dias e que denominarei, de forma provisória, de “ a
pedagogização dos conhecimentos” . Que significa tal processo ? Em
função de uma nova concepção da inf â ncia — que então começava a
ser aceita especialmente por alguns grupos sociais ligados à camada
média — vai-se produzir uma separação cada vez mais marcada entre
o mundo dos adultos e o das crianças, e vai surgir a necessidade de
delinear, de pôr em ação, novas formas específicas de educação. Foi
nesse quadro que teve lugar o surgimento de novas instituições educa-
cionais. E assim, nos países católicos, os col égios das ordens religiosas
— —
especialmente os dos jesu ítas romperam com as formas até então
87
Vf
1

dominantes de socialização das novas gerações, tanto com as estabele-


cidas tradicionalmente para a nobreza (aprendizagem do of ício das
armas), como com as institu ídas para as classes populares (aprendiza-
gem dos of ícios). Os colégios exigiam para seu funcionamento a exis-
tê ncia e formação de novos agentes educativos que, no caso dos jesuítas,
foram objeto de uma preparação especial. Não vou agora detalhar as
importantes mudanças que o sistema de ensino dos jesuítas supôs,
mudanças que *tê m sido sublinhadas por diferentes autores. Quero
enfatizar, entretanto, que foram precisamente os jesu ítas que retoma-
ram a definição que moralistas e humanistas fizeram da inf â ncia e
puseram em ação uma maquinaria escolar que não apenas contribuiu
pã ra dotar as crianças de um estatuto especial, mas que també m
converteu seu sistema de ensino, nos países católicos, num sistema
modelo para as demais instituições escolares, incluindo, após lutas e
sucessivos reajustes, as universidades.1
Para levar adiante seu projeto de formação de bons cristãos, os
mestres jesu ítas não apenas reforçaram o estatuto conferido à “ inf â ncia”
com a opção de educá-la em espaços fechados, nos col égios, mas
sentiram també m a necessidade de controlar os saberes que iam trans-
mitir e de organizar esses saberes de tal forma que se adequassem às
supostas capacidades infantis. Os saberes, tanto da cultura clássica como
da cristã, foram desse modo selecionados e organizados em diferentes
níveis e programas de dificuldade crescente, ao mesmo tempo em que
se viram submetidos a censuras, em função de sua bondade ou maldade
em relação à ortodoxia católica, em função, portanto, de seu caráter
moral. Produziu-se, em conseqiiê ncia, uma censura exterior sobre os
autores clássicos, sobre os conteú dos de suas obras, de modo que uma
massa importante de enunciados foram expurgados e convenientemen-
te apresentados com a finalidade de evitar que qualquer perigo moral
se aproximasse das tenras mentes dos colegiais.
A pedagogização dos conhecimentos só adquire sentido se a consi-
derarmos em relação com os processos que levaram, por um lado, a que
os mestres jesu ítas, em oposição aos mestres das universidades medie-
vais, se convertessem em autoridades morais e, por outro, a toda uma
sé rie de expropriações de poderes detidos, até então, pelos estudantes.
Como fruto dessas expropriações, os estudantes perderam sua autono-
mia, suas prerrogativas ou, se quisermos, seus “ privilégios” ; transfor -
maram-se. assim, em colegiais, em escolares.2 Os mestres jesu ítas se
auto-atribuiram a missão de transmitir a seus colegiais a reta doutrina,
ao mesmo tempo em que trataram de se converter em exemplos vivos
de vida morigerada. O ensino das “ boas letras” e da “ virtude” obrigou-

1 Sobre os jesu ítas e o impacto de seu sistema de ensino, vejam -se Durkheim, 1982;
Foucault, 1975 e Varela, 1984.
2 E. Durkheim foi o primeiro a salientar a mudan ça que o ensino dos colégios jesu ítas
representou em reíação a outras formas de ensino (Durkheim, 1982).

88
os a pôr em prática toda urna sé rie de procedimentos e técnicas que
foram gradualmente aperfeiçoando, com a finalidade de conferir, tanto
aos colegiais, como aos saberes, uma natureza moralizada e moralizante.
Essas técnicas e procedimentos converteram-se, nas suas mãos, em
instrumentos privilegiados de extraçã o de saberes dos pr ó prios escola-
res, assim como em fonte de exercício de poderes que tornaram possível
o surgimento da “ ciê ncia pedagógica” , do saber pedagógico.
Quais foram os efeitos mais visíveis desta pedagogização dos co-
nhecimentos que surgiram e se aperfeiçoaram nos colégios jesuítas e
que, através de transformações e reinterpretações, estenderam-se a
outras instituições educacionais de sua é poca e de é pocas posteriores ?
1. Em primeiro lugar, a aquisição desses saberes moralizados não

— —
exigia uma cooperação como acontecia, por exemplo, com a apren-
dizagem de of ícios entre mestres e aprendizes, destinada a materia-
lizar-se numa obra bem feita. Os mestres passaram a ser os ú nicos
detentores do saber e os estudantes viram-se relegados a uma posição
de subordinação, converteram-se em sujeitos destinados a adquirir os
ensinamentos dosificados transmitidos por seus professores para con-
vertê-los, també m a eles pró prios, em seres virtuosos.
2. Os saberes que possuíam os professores jesuítas eram saberes
verdadeiros, que não remetiam a processos sociais, mas a outros saberes,
aos textos dos autores clássicos, descontextualizados e censurados,
sempre em consonâ ncia com a reta doutrina da Igreja e a tradição
católica. Eram saberes desvinculados das urgê ncias materiais, dos pro-
blemas sociais, saberes que se pretendiam neutros e imparciais. Desse
modo, os saberes ligados ao mundo do trabalho, às lutas sociais, às
culturas de determinados grupos ou classes sociais, começaram a ficar
marcados pelo estigma do erro e da ignorâ ncia e viram-se desterrados
do recinto sagrado da cultura culta, uma cultura que, com o passar do
tempo, converteu-se na cultura dominante e reclamou para si o mono-
pólio da verdade e da neutralidade.
3. Por último, este processo de pedagogização dos saberes implicou
a instauração, progressivamente aperfeiçoada, de um aparato discipli-
nar de penalização e de moralização dos colegiais, que ligou a aquisição
da verdade e da virtude à ascese e ren ú ncia de si mesmo. Foi desse modo
que a disciplina e a manutenção da ordem nas salas de aulas passaram
a ocupar um papel central no interior do sistema de ensino até chegar
praticamente a eclipsar a pró pria transmissão de conhecimentos.

O Disciplinamento Interno dos Saberes

A partir de finais do século XVIII, e em conexão com esse processo de


pedagogização do conhecimento, produziu-se uma nova transforma-
ção, que Michel Foucault denominou de “ disciplinamento interno dos
saberes” . Foucault utilizou-se deste conceito para poder se situar num
89
novo nível de análise que lhe permitisse ir além da infrutífera polêmica
sobre a racionalidade ou irracionalidade da Ilustração. Em sua opinião,
não se tratava tanto de discutir se a Ilustração implicou um progresso

das luzes o triunfo da razão frente aos erros ou se, pelo contrá rio,

contribuiu para a entronização de uma razão tirânica -, mas de analisar
o m últiplo e imenso combate que então se travou no campo do saber,
em relaçã o com a formação e o exercício de determinados poderes, o
que implicou uma reorganização dos próprios saberes. Uma vez mais,
as instituições educacionais, desde a universidade napoleònica até as
academias (da Língua, da História, das Ciências Morais e Políticas, e
outras) exerceram nesse debate e reorganização um papel fundamental.
O Estado, a partir dos postulados da Economia Política, em relação
com o desenvolvimento das forças produtivas e com a necessidade de
governar os sujeitos e a população, empreendeu uma ampla reorgani-
zação dos saberes servindo-se de diferentes procedimentos. E assim,
frente a saberes plurais, polimorfos, locais, diferentes segundo as re-
giões, em funçã o dos diferentes espaços e categorias sociais, o Estado,
através de instituições e agentes legitimados (entre eles, desempenharam
um papel destacado, os professores) pôs em ação toda uma sé rie de
dispositivos com a finalidade de se apropriar dos saberes, de discipliná-
los e de pô-los a seu serviço.
O poder pol ítico, como assinalou Foucault, interveio, direta ou
indiretamente, numa espécie de enorme luta econ ómico-política em
torno desses saberes dispersos e heterogé neos, utilizando quatro gran -
des procedimentos.
Em primeiro lugar, mediante a eliminação e desqualificação do que
se poderia denominar pequenos saberes inú teis e irredutíveis, ou eco-
nomicamente muito custosos. Em segundo lugar, mediante a normali-
zação desses saberes para adaptá-los uns aos outros, fazer com que se
comunicassem entre si, eliminar as barreiras do secreto e da limitação
geográfica e técnica, em suma, para tornar intercambiáveis não apenas
os saberes, mas també m seus possuidores. Em terceiro lugar, mediante
sua classificação hierá rquica, que permitiu de algum modo que se
ordenassem, desde os mais particulares e materiais (que a partir de então
serão os saberes subordinados), até os mais gerais e formais (que serão
as formas mais desenvolvidas e norteadoras). Em último lugar, mediante
sua centralizaçã o piramidal que permitiu seu controle, que assegurou
as seleções e possibilitou a transmissão, de baixo para cima, de seus
conte údos e, de cima para baixo, das direções de conjunto e das
organizações gerais que se queriam impor (Foucault, 1992, p. 189).
Em íntima relação com este movimento de reestruturação do
campo do saber surgiu toda uma série de iniciativas, de práticas, de
instituições e de agentes legítimos nas diferentes á reas de conhecimento,
o que provocou um desbloqueio epistemologico, a desaparição de
alguns saberes ( p. ex., a casuística jesuíta) e a proliferação de novos, ao

90
ì

mesmo tempo em que se estabeleceram novas relações entre saberes e


poderes. Neste quadro ganharam sentido projetos como o da Enciclo -
pédia , ou trabalhos sistemáticos como os empreendidos por pensadores
como Saint-Simon, Comte ou Stuart Mill. Uma nova ortodoxia subs-
3

tituiu assim a velha ortodoxia no controle dos conte údos. Pôs-se em


ação um controle muito mais rigoroso e interno, que implicava a
passagem da coerção da verdade à coerçã o da ciê ncia, a passagem da
censura dos enunciados à disciplina inscrita na pr ó pria enunciação.
Nesta luta de saberes que se enfrentavam para alcançar a legitimi-
dade científica, no conflito das faculdades, os saberes tiveram que se
ver submetidos a regras internas; cada campo devia delimitar os critérios
que permitissem selecionar o falso, o não saber e, ao mesmo tempo,
definir crité rios de cientificidade. Cada saber devia se constituir em
disciplina dentro de um campo global (o da ciência), um campo que se
enfrentava com o problema da divisão dos saberes, de sua comunicação,
classificação e hierarquização. Esta especialização dos saberes, a busca
de limites pr óprios, definidos fundamentalmente em oposição a outras
identidades disciplinares també m fechadas, não apenas explica que, a
partir do século XIX, os saberes nascidos à margem das instituições
consideradas legítimas (muito especialmente a universidade) encon-
trassem muito dificilmente um lugar nesta nova disposiçã o das ci ê ncias,
mas també m que em nome da especialização se criassem as condições
para que desaparecesse para sempre a figura do homem universal.
4

Tal como ocorreu desde começos da Idade Moderna, é poca em que


se iniciaram processos destinados à moralização dos conhecimentos e
ao modelamento de sujeitos moralizados segundo as normas da orto -
— —
doxia católica e protestante processos que se reforçavam mutuamen -
te entre si , novamente, a partir do final do século XVIII, vai se
produzir uma “ afinidade eletiva ” entre a disciplinarização dos saberes
e a tentativa de construçã o social de um novo tipo de sujeito. Para que
pudesse se produzir a acumulação primitiva de capital, para que surgisse
o capitalismo no século XVI, não apenas foi necessá ria, como mostrou
Max Weber, toda uma sé rie de mudanças ligadas ao mundo da produ-
ção, senão també m a formação de um determinado tipo de personali -
dade e de mentalidade própria dos capitalistas, uma personalidade
caracterizada por um tipo de “ racionalidade” que obrigava sem cessar
3 Projetos todos eles destinados a elaborar um sistema unitá rio e ordenado dos saberes
que abarcasse e hierarquizasse todas as ciências. Comte, p. ex., colocou a Sociologia
no vértice de seu sistema, a partir do princípio de que o espírito humano em sua
evolução passa por três estádios: o teológico, o metaf ísico e o positivo e ao fazer
coincidir a Sociologia com o conhecimento positivo.
4 Marx, Weber e Durkheim referem-se à desaparição do “ homem universal” ,
relacionando-a, em cada caso, com processos diferentes. Coincidem todos eles em
considerar que o “ homem universal” está sendo substituído pelo indivíduo
atomizado dos economistas políticos, contribuindo para isso a divisão social do
trabalho, a especialização.

91
r~

a acumular e reinvestir os ganhos em vez de utilizá-los para uso e


desfrute pessoal. Nascia assim um tipo de sujeito, forjado nos moldes
do puritanismo ascético, para o qual as riquezas se converteram num
fim em si mesmas, para o qual a profissão e a vocação se sobrepuseram
e se reforçaram mutuamente. Foucault deu um passo adiante nesta
direção, ao mostrar como a disciplinarização dos saberes esteve intima-
mente ligada, a partir do século XVIII, a modos de subjetivação
específicos, à formação não somente dos capitalistas mas també m dos
produtores. Para isso foi necessária a colocação em ação de tecnologias
disciplinares, a imposi çã o de “ disciplinas” , destinadas a^ conformar
sujeitos dóceis e ú teis ao mesmo tempo. A acumulação de homens, sua
disciplinarização, sua classificação, hierarquização e normalização foi
tão decisiva para o triunfo da revolu ção industrial como a acumulação
de riquezas. E isso não apenas do ponto de vista económico mas também
pol ítico e social, já que esta disciplinarização mostrou-se decisiva para
que se pudesse colocar em ação os sistemas de democracia funcional
existentes, desde então, nos países ocidentais e também para permitir
que se aceitasse “ a rentável ficção” de que a sociedade está formada por
indivíduos individualizados, por sujeitos isolados. Viram-se assim eli-
minadas, pelo menos em teoria, da cena social, as relações de poder, os
conflitos entre as classes. Deste modo o contrato social pôde funcionar
e os Estados puderam aparecer como a expressão da vontade geral.
Não vou me deter agora nas funções sociais das “ disciplinas”
enquanto técnicas de extração e produção de saberes, nem enquanto
técnicas de exercício de determinados poderes que utilizam como um
de seus dispositivos básicos o exame. Limitar -me-ei a assinalar como a
generalização do exame em diversas instituições
— — e certamente nas
educacionais , permitiu ao poder disciplinar introduzir-se, através da
vigil ância hierárquica e da sanção normalizadora, nos sujeitos, em seus
corpos, em suas mentes e gestos, mediante um mecanismo de objetiva-
ção que tornou invisíveis suas relações de força. As disciplinas foram
técnicas de adestramento e individualização que pretendiam maximizar
as forças dos indivíduos, otimizar seu rendimento e, ao mesmo tempo,
extrair deles saberes e lhes conferir uma determinada natureza. A forma
que adotou o exercício do poder fez, por exemplo, com que nas
instituições escolares se deixasse progressivamente de utilizar os meca-
nismos repressivos. O poder deixou de ser exterior aos sujeitos para
fazer-se interior ao pró prio processo de aprendizagem. Deste modo,
tenderam a desaparecer as penalizações exteriores, ao mesmo tempo
em que a natureza que se conferia a cada aluno aparecia cada vez mais
como o resultado de suas pró prias capacidades e aptidões.
Todos estes processos que subjazem à pedagogização dos conheci-
mentos e à disciplinarização interna dos saberes tentam exorcizar
perigos, evitar que os conflitos sociais ocorram, que ocupem o lugar
que lhes corresponde nas instituições acadê micas, no campo do saber.
Trata-se de pôr limites, de deixar fora o inominável, de dividir e colocar

92
]

em competição certos saberes face a outros, certos sujeitos face a outros,


tornando possível o mito da neutralidade da ciê ncia e ao mesmo tempo
naturalizar e legitimar as relações de for ça, as relações de dominação
que exercem determinados grupos sociais sobre outros. Não obstante,
como o pr ó prio Foucault destacou, essa tentativa de disciplinarização
de sujeitos e saberes não alcançou totalmente os objetivos propostos,
porque também se produziram resistê ncias, surgiram contrapoderes,
desencadou-se a insurreição dos saberes submetidos.
É preciso, portanto, distinguir as tend ê ncias gerais das intenções e
das materializações concretas, já que não apenas os sujeitos resistiram
e resistem a essas formas de exercício do poder, mas que també m, ao
lado dos saberes “ oficiais” , disciplinados, continuaram se produzindo
saberes que põem em questão os efeitos de poder ligados à organização
institucional que os sustenta. Trata-se de saberes descentrados, polimor -
fos, muitas vezes fragmentários, assim como de saberes gerais que não
deixam de lado as lutas e os conflitos sociais mas que, pelo contrá rio,
permitem recuperar a memória histórica dos enfrentamentos e das
resistê ncias, favorecendo assim a oposição à tirania dos discursos
globalizantes, com suas hierarquias e privilégios. Estes saberes alterna-
tivos enfrentam saberes e discursos que se servem de supostas categorias
universais para falar de tudo sem se referir nunca a processos reais. Por
isso são saberes que levam em conta as lutas e os interesses em jogo e,
portanto, as lutas e os interesses que atravessam os códigos teóricos, o
território mesmo dos saberes legítimos.
Os saberes pedagógicos são o resultado, em boa parte, da articula-
ção dos processos que levaram à pedagogização dos conhecimentos e à
disciplinarização interna dos saberes. Estas classificações e hierarquias
de sujeitos e saberes costumam, em geral, ser aceitas como algo dado,
como naturais, razão pela qual seu reconhecimento contribui para
aprofundar sua l ógica de funcionamento. A ciê ncia pedagógica acres-
centa uma volta de parafuso nesses processos, ao mesmo tempo em que
é ela pr ó pria produto deles. A pedagogia racionaliza, em geral, uma
certa organização escolar e certas formas de transmissão sem questionar
nunca a arbitrariedade dessa organização, nem tampouco o estatuto dos
saberes que são objeto da transmissão. Nesse sentido pareceu-me
necessário procurar mostrar, ainda que de forma talvez muito rá pida,
algumas das funções e efeitos dos códigos, das categorias e das práticas
historicamente constru ídas, para poder examiná-los criticamente e, se
necessário, transformá-los. Espero que, a partir do exposto, possa se
compreender melhor toda uma sé rie de dificuldades, de obstáculos,
com os quais nós, que trabalhamos em instituições escolares, nos
defrontamos. Entre elas, queria destacar as dificuldades ligadas, por
exemplo, ao estabelecimento de relações entre a teoria e a prática, à
formação de equipes de investigação e de trabalho, à conexão dos
saberes acadêmicos com os processos sociais, à sensibilização dos
professores no que se refere às formas de cultura das classes populares,

93
p?r" 1

às formas de colaboração entre professores e estudantes, e muitas outras


dificuldades que nos impedem de avançar.
Para avançar é necessá rio romper o círculo vicioso criado pela
disciplinarização dos saberes e pela disciplinarização dos sujeitos, que,
num processo de m ú tuo reforçamento, tornaram possível o nascimento
das Ciê ncias Humanas e a compartimentação das chamadas ciências da
vida e da natureza. Esse círculo de disciplinarização encontrou precisa-
mente no interior do recinto das instituições escolares seu caldo de
cultura. Saberes disciplinares e disciplinarização dos sujeitos são as duas
faces de um processo que atravessa o conjunto da organização escolar.
No momento atual, quando avançamos em direção a sociedades
pós-disciplinares, essa disciplinarização continua ainda vigente no que
se refere aos saberes, através do currículo escolar, através das matérias
e dos programas fechados, como fica evidente nos n íveis mais elevados
de ensino. Não obstante, nos n íveis mais baixos da carreira escolar
rompe-se a organização dos saberes por “ maté rias” , e estas são substi-
tuídas por unidades temáticas. Neste caso de aparente interdisciplina-
ridade ou transdisciplinaridade, tanto o controle dos saberes como o
controle dos sujeitos tendem a repousar em códigos psicopedagógicos
baseados predominantemente na Psicologia Evolutiva ou Genética. Os
representantes destes saberes reclamam para si o conhecimento “ da
crian ça” , “ do aluno” e portanto o poder de estabelecer diferentes
estágios de desenvolvimento e capacidades em fun çã o de um pretendido
processo universal de maturação mental. Explica-se, assim, que os
saberes que são objeto de transmissão nas instituições educacionais
sejam sacrificados em favor das destrezas cognitivas. Na atualidade, o
uso unilateral dos códigos psicológicos se constituiu no principal e
inquestionado obstáculo epistemologico que nos impede de avançar na
busca de novos modelos de transmissão, nos quais o importante não
seja mais tanto a reprodução do já sabido quanto as respostas a novas
interrogações, a novos problemas que exigem a utilização de conceitos
e mé todos abertos à exploração e à indagação científica.

Algumas Propostas

Antes de finalizar, quero adiantar algumas propostas que resultam do


exposto, propostas para a reflexão e a discussão, sem pretender,
certamente, dar soluções ou alternativas que ter ão que ser o resultado
de uma cooperação conjunta de diferentes coletivos sociais. Trata-se,
antes, de formular algumas questões, sem partir de categorias dicotô-
micas (ideologia/ciência, economia/superestrutura, pedagogia tradicio-
nal/ pedagogia renovadora ), as quais, mais do que favorecer o debate,
fecham-no, ao utilizar esquemas que proporcionam uma segurança
cognitiva pró pria das identidades fechadas. Questões, portanto, aber-
tas, que nos permitam fazer face à ambigüidade e complexidade das

94
situações, já que a reversibilidade dos discursos é historicamente com-
provável, na medida em que esses podem ser instrumentalizados em
função de poderes e interesses específicos passíveis de análise. Em
conseqiiê ncia, todos aqueles que pensamos que as instituições educa-
cionais têm que mudar, que devem funcionar de um modo mais
democrático, que devem deixar de penalizar e expulsar os meninos e
meninas provenientes das classes com menor capital cultural e econó-
mico, que têm que estar abertas a novas formas de indagação e de
exploração, quer dizer, a novos saberes e pr áticas, temos que realizar
uma opção que nos permita nos situar no ponto de vista adequado. Será
mais f ácil compreender a lógica interna de funcionamento destas
instituições e, mais concretamente, algumas das funções implícitas que
cumprem, se formos capazes de adotar, pelo menos em parte, o ponto
de vista dos que fracassam, daqueles que são rejeitados por elas. Sem
d úvida, não é fácil adotar esta perspectiva, dada nossa pr ópria sociali-
zação e identidade profissional, já que nós não fracassamos na escola.
Mas é necessá rio adotar essa distância, esse estranhamento, entre outras
coisas, porque nosso relativo êxito escolar nos incita a reproduzir o
adquirido, a transmitir saberes descontextualizados, saberes formais e
ocos, como se fossem o ú nico e verdadeiro saber legítimo.
Voltemos às proposições que gostaria de colocar:
1. Que fazer para articular a teoria e a prática ? Talvez pudéssemos
começar por tentar uma dif ícil via de aproximação entre saberes gerais,
teorias científicas e saberes locais, os saberes dos práticos, com o fim de
interrelacionar uns saberes com os outros.
2. Tratar de não confundir a cultura culta com a cultura dominante.
Vimos que, ao lado dos saberes normalizados, existem saberes não
totalmente disciplinados. Isto quer dizer que, embora as instituições
escolares desempenhem de fato funções de submetimento, elas podem
desempenhar també m funções libertadoras. Nelas é possível, como se
demonstra cotidianamente, transmitir a paixão pelo conhecimento,
ainda que seja em menor medida do que o desejável. Também é possível
a formação de sujeitos críticos que resistam às formas de imposição.
Fica aberta, portanto, nas instituções educacionais uma margem de
manobra, fica aberto um espaço de oposição à desresponsabilização de
professores e estudantes.
3. Buscar meios e procedimentos para, desde o início, pôr em
questão a logica crescente da pedagogização, dos esquemas classificató-
rios em uso. Não aceitar, sem revisão, os diferentes estádios, níveis,
programas nos quais se tentam fechar os sujeitos e os saberes. Não partir
a priori, por exemplo, de que os estudantes de um determinado nível
devem ter uma idade determinada e aprender exclusivamente certos
conteúdos, habilidades e destrezas. Ensaiar novas formas de pensamen-
to, novas formas de organização e de transmissão mais horizontais,
transversais e polimorfas, que abram caminho a outras formas de

95

L
relação na escola, que possibilitem a entrada de novos conhecimentos
e criem maiores possibilidades. Favorecer a insurreição dos saberes e a
formação de novas formas de subjetividade
como vimos, andam juntos — —
ambos os processos,
que levem a nos liberar da tirâ nica
imposição do “ conhece-te a ti mesmo” enquanto fundamento do acesso
ao conhecimento e da estruturação da subjetividade.5
4. Evitar a ilusão de que o etnocentrismo das “ pedagogias tradicio-
nais” (colocado em relevo por numerosos sociólogos da educação), seu
desprezo pelas culturas não acadê micas, sua rejeição à diversidade,
possa se corrigir facilmente mediante a aplicação das “ pedagogias
renovadoras” . As pedagogias renovadoras são, em geral, excessivamen-
te psicológicas. Ao se opor simplesmente às tradicionais, correm o
perigo de reivindicar uma cultura, també m construída, das classes
populares, excessivamente vinculada ao criativo, ao concreto, ao local
e ao prático. Podem deste modo encerrar os filhos das classes mais
desfavorecidas numa espécie de realismo concreto, negando-lhes o
acesso à cultura culta, a determinados saberes, e provocar assim os
efeitos menos desejados: impedir -lhes de escapar a sua condição de
sujeitos submetidos. E preciso, portanto, ir além desta dicotomia esta-
belecida entre tradição e renovação, para traçar novas formas de
pensamento e atuação, para evitar os espontaneísmos, para avançar em
direção a uma “ renovação pedagógica ” mais radical.

Referências Bibliográficas
DURKHEIM, E. Historia de la educación y delas doctrinas pedagógicas. La Piqueta, 1982.
FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Gallimard, Paris, 1975.
FOUCAULT, M. Genealogia del racismo . La Piqueta, Madrid, 1992.
VARELA, J. Modos de educación en la Espana de la Contrarreforma.La Piqueta, 1984.

Tradução de Guacira Lopes Louro.

Julia Varela é Professora da Faculdade de Ciências da Informação,


Universidade Complutense, Madri, Espanha.

5 Foucault aponta em seus últimos escritos para a necessidade de fundar uma nova
ética individual e secularizada, não individualista. E neste contexto que analisa
como o neoplatonismo, ao fazer passar para o primeiro plano o “ connece-te a ti
mesmo” socrático, possibilitou que, lentamente, a preocupação por si mesmo,
ligada, na Grécia clássica, à preocupação pelos outros e pelo bom governo, se
convertesse numa espécie de autofinalidade, perdendo assim suas dimensões
políticas e sociais. Assim, e reforçada esta tendência pelo cristianismo e o
racionalismo moderno, a questão de “ que fazer para que o ser se converta no que
deve ser” deu lugar a todo um desenvolvimento da cultura de si mesmo em cujo
-
interior inscreve se a história da subjetividade e a história da relação entre o sujeito
e a verdade que faz com que o connecimento, assim como a ética, se estabeleçam
cada vez mais em nosso interior e não nas relações com os demais, nas relações
sociais.

96
5
Roger Deacon & Ben Parker
Educação como Sujeição e como Recusa

A o longo da última década, as questões levantadas pelos debates sobre


-^a modernidade e a pós-modernidade — no contexto de devastadoras
metanarrativas e a morte do sujeito, da
proclamações sobre o fim das
difusão de um cultura ocidental globalizadora e de amplas mudanças
sociais— começaram a infiltrar o campo da educação. No â mbito mais
amplo das cr íticas pós-estruturalistas dos pressupostos que fundamen -
tam uma ainda potente modernidade, o trabalho de Foucault sobre a
natureza produtiva do poder , sua estreita conexão com o saber e seu
papel na constituição do sujeito é especialmente ú til para reconceptua-
lizar a educa ção moderna. Este capítulo tenta compreender a educação
como um conjunto de mecanismos de sujeiçã o, atormentada pelo
paradoxo e desenhada para o fracasso. Argumentamos també m que
apelos para resistir a essa sujeição são mal concebidos e devem ser
recusados em favor da simulação de novos tipos de sujeitos.

Modernidade, lluminismo e Educação

A educação no mundo moderno está, cada vez mais, sendo denunciada


como um dos ú ltimos e minados bastiões de uma é poca cujos ídolos —

a razão, o progresso e o sujeito autónomo têm sido irreparavelmente
maculados por guerras mundiais, totalitarismo, pobreza e fome em
massa, destruição ambiental, e cujos pr ó prios avanços científicos e
sucessos produtivos estão inextricavelmente entrelaçados com domina-
çã o e devastação de formações naturais e sociais. A modernidade pode
ser caracterizada como: um agrupamento din â mico de desenvolvimen-
tos conceituais, pr á ticos e institucionais, associados com a tradição
iluminista de pensamento secular, materialista, racionalista e individua-
lista; a separação formal entre o “ privado” e o “ p ú blico” ; a emergê ncia
de um sistema mundial de nações-estados; uma ordem económica
capitalista expansionista, baseada na propriedade privada; o industria-
lismo e, por ú ltimo, mas não menos importante, o crescimento de
97
W" ""
'

imensos sistemas administrativos e burocráticos de organização social


e regulação, tal como a escola (Hall, Held & McLennan, 1992, p. 3).
A educação ocidental moderna, vinculada à escolarização de massa
desde o século XVIII, tem assumido uma variedade de formas: religiosa;
tradicional; liberal ; centrada-na-criança; comportamentalista; socialis-
ta; fascista; nacionalista; progressista; baseada na solução de problemas;
fundamentada na formulação de problemas; educação para a liberta-
ção; construtivista; desescolarização; pedagogia crítica. Ironicamente,
entretanto, essa multiplicidade de discursos educacionais baseia-se num
n úcleo de pr áticas e pressupostos ortodoxos pró prios da modernidade
e derivados da f é iluminista na capacidade da razão para iluminar,
transformar e melhorar a natureza e a sociedade. Em obediência a essa
f é, os discursos educacionais supõem sujeitos unitá rios autoconsciente-
mente engajados numa busca racional da verdade e dos limites de uma
realidade que pode ser descoberta. O professor é constituído como o
catalisador particularmente ativo, autorizado e comunicativo da pro-
dução e reprodução do conhecimento, em relação ao qual o aprendiz
pode ser mais ou menos ativo, mas sempre subordinado. Sobre essa
fundação comum e primária, a diversidade educacional tem se baseado
em diferenças de segunda-ordem: convicções e objetivos políticos
( reprodução ou transformação social ); o status (científico ou ideol ógi-
co) do conhecimento; a eficácia relativa de métodos de instrução; a
maneira pela qual a autoridade do professor é justificada (como auto-
crá tica ou como democrática); o grau de autonomia concedido aos
aprendizes e a extensão na qual a reflexão e participação cr íticas são
encorajadas (Deacon 1994; Deacon & Parker, 1993 ).
A partir dos anos 60, a ortodoxia iluminista em educação assume
a forma da pedagogia crítica (freqiientemente sob o disfarce da pesqui-
sa-ação ou participativa, do construtivismo ou da etnometodologia), a
qual enfatiza a participação democr ática de professores e aprendizes na
construção e transformação social do conhecimento e do mundo através
da reflexão cr ítica sobre suas pr á ticas. As teorias de Habermas fornecem
a descrição mais global e sofisticada do discurso filosófico da moderni-
dade do qual a pedagogia crítica é parte. E central aos discursos
modernos a crença na universalidade de seus compromissos epistemo-
l ógicos e ontológicos básicos, não importando se o conhecimento é
ditado pela autoridade, descoberto pela razão científica, ou construído
através da comunicação racional:

Em ú ltima instâ ncia, existe apenas um crité rio pelo qual as crenças
podem ser julgadas vá lidas: que elas sejam baseadas no acordo obtido
por argumentação (Habermas, 1990, p. 14 ).

O conhecimento, entendido como uma hermenêutica pragmática, é


uma forma de ação dirigida à compreensão e ao acordo. Portanto, as
autocompreensões são consideradas importantes e o conhecimento é

98
conceptualizado como mutuamente construído. O encorajamento da
reflexão do estudante sobre seu próprio processo de aprendizagem,
assim como um crescente controle sobre ele, é visto como um elemento
de diminuição das desigualdades entre professor e aprendiz e como
fortalecendo o poder ( empowering ) dos estudantes para que falem e
ajam por si próprios. O problema da pedagogia crítica é que ela supõe,
tal como o faz a teoria de Habermas, “ como já dado aquilo que, segundo
seu próprio relato, ainda não existe, mas se supõe que deve vir a existir
como resultado da teoria: a saber, um mundo no qual o poder e o
controle são equalizados” (Lakomski, 1988, p. 58; McCarthy, 1976, p.
486). Dada essa separação entre poder e conhecimento, a f é eurocèn-
trica da pedagogia crítica na “ força não-forçada” de uma razão universal
tende a ocultar desigualdades reais entre aprendizes e professores
(Spivak, 1991, p. 14). Essa f é tende também a envolvê-la em flagrantes
contradições e paradoxos. Uma dessas contradições é aquela que coloca,
de um lado, sua aversão à manipulação tecnocràtica e, de outro, seu
impulso a intervir em favor dos oprimidos (Touraine, 1988, p. 157).
Há també m o evidente paradoxo envolvido na ação de dirigir as pessoas
para que se tornem autónomas (Ellsworth, 1989, p. 308 ).
Ao longo da última década, a pedagogia crítica, como representante
de um apelo agora secular para “ iluminar ” os sujeitos da educação de
forma a “ fortalecê-los” em seu poder ( empower ), para “ emancipá-los”
de uma variedade de forças e melhorar seu mundo, tem estado sob
ataque em várias frentes. Críticos da direita exigem a semi-privatização
da educação para voltá-la para as “ coisas básicas” ; os neomarxistas
deploram a falta de rigor téorico e análise política; as feministas e outros
grupos criticam sua inadequada conceptualização do gênero e da raça.
De forma mais importante, um corpo florescente de teoria pós-estru-
turalista tem questionado as próprias fundações iluministas dos discur-
sos educacionais, nos quais: o conhecimento é conceptualizado como
razão dirigida a descobrir a verdade inerente na realidade, repre-
sentando-a à consciência através do meio referencial da linguagem; o
sujeito é concebido como unitário, coerente, autopresente, racional,
autónomo, ativo e intencional e o poder é tratado como negativo,
homogéneo e centralizado, algo externo ao conhecimento e à ação e

inclinado a distorcê-los o produto intencional de um sujeito soberano
que o possui e o exerce de uma forma repressiva sobre outros (relati-
vamente ) menos poderosos.

Conhecimento

O conhecimento concebido como uma representação mais ou menos


acurada da realidade é um dos suportes principais dos discursos educa-
cionais. Para Foucault, em vez disso, o conhecimento é concebido como
discurso, composto de

; 99
f 1

práticas que sistematicamente formam os objetos dos quais falam...


elas não identificam objetos, elas os constituem e no ato de fazê-lo
ocultam sua própria invenção (Foucault, 1972, p. 49).
Uma teoria do conhecimento baseada no conceito de verdade como
representação da (e intervenção na ) realidade não afetada pelo poder é
substituída pelo conceito de verdade como saturada de poder e inter-
namente constitutiva da realidade:

A verdade não está fora do poder ou vazia de poder: contrariamente


ao mito, cuja história e funções necessitam maior estudo, a verdade
não é a recompensa dos espíritos livres, o fruto de uma solidão
prolongada, nem o privilégio daqueles que foram bem sucedidos em
se libertar. A verdade é uma coisa deste mundo: ela é produzida
apenas em virtude de m ú ltiplas formas de constrangimento. E induz
efeitos regulares de poder (Foucault, 1984b, p. 72-3).
As “ múltiplas formas de constrangimento” referidas aqui são exempli-
ficadas nos ritos de iniciação nos mistérios do conhecimento e nos
prazeres da ação autodisciplinada pelos quais passam em graus variados
todos os confinados em instituições educacionais: sofrimento (ascetis-
mo e trabalho duro), tabu e purificação (objetividade e isolamento
institucional ) e possessão (a busca dedicada e profissional da verdade)
( Bauman, 1987, p. 13). Esses ritos ser ão discutidos numa pr óxima seção
deste capítulo, na forma da confissão e do exame.

O Sujeito

A teoria do conhecimento como representação tem seu corolário na


concepção moderna do sujeito unitá rio e autónomo. A educação tal
como a conhecemos é um aspecto de uma prática disciplinar eminen-
temente ocidental que tomou forma com a definição kantiana dos seres
humanos como, simultaneamente, sujeitos cognoscentes e objetos de
seu próprio conhecimento (Dreyfus & Rabinow, 1982: xv). “ O Aufk -
làrung, para Kant, é o ponto no qual os seres humanos alcançam a
maturidade ao se livrarem da autoridade auto-imposta de outros o
ponto no qual eles alcançam a autodeterminação, ou melhor, a auto-

disciplina” (Foucault, 1984a, pp. 34-38 ). E essa atitude de modernidade
e em relação à modernidade que tem tornado possível, e ao mesmo
tempo necessária, a educação em massa de seres que são tanto objetifi-
cados quanto sujeitados, tanto produzidos como objetos de conheci-
mento a serem dominados quanto produzidos como sujeitos que
reificam e dominam (Deacon, 1994, p. 9). Além disso, ao interpretar
os seres como objetos, a natureza do ser que interpreta, representa,
——
conhece e domina o sujeito racional, autopresente e autónomo que
ensina ou aprende é tomada como um dado inquestionável a ponto

100
r
de ser tratada como natural, tornada às vezes invisível (Derrida, 1983,
pp. 9-14). Nesses termos, “ o poder da razão humana moderna” que
satura os discursos educacionais pode ser caracterizado como uma sé rie
de grades interconectadas de relações de saber e poder, nos interstícios
das quais são constituídos sujeitos que são simultaneamente ambas as
coisas: tanto os alvos de discursos (seus objetos e invenções) quanto os
veículos de discursos (seus sujeitos e agentes). O sujeito moderno, sobre
o qual a própria razão se baseia, e cujo status derivado é ocultado pelo
processo de objetificar outros, é assim denunciado como um paradoxo:
um efeito instável, fragmentado e potencialmente contraditório ( mas
igualmente substancial ) do saber e do poder (Deacon, 1994, p. 9).
Insistir sobre o status constituído do sujeito é começar a “ descons-
truir ” algumas das velhas antinomias que permeiam o pensamento
ocidental (sujeito e objeto, estrutura e agê ncia,1 liberdade e determinis-
mo, teoria e prática), não para negar ou “ destruir ” a possibilidade do
conhecimento ou a liberdade ou a ação intencional. Como diz Butler,
afirmar que o sujeito é constituído não significa afirmar que ele é
determinado; pelo contrá rio, o caráter constituído do sujeito é a
pr ó pria pré-condição de sua agê ncia (1991: 157).
Ao mesmo tempo criadores e efeitos de relações de poder e saber;
veículos e alvos (agentes autónomos e autómatos determinados) de
discursos poderosos; reprimidos e produzidos por relações de poder
os seres humanos são também intersubjetivamente sujeitados pelo fato

de que eles são governados externamente por outros e internamente
por suas próprias consciê ncias. Os sujeitos são artefatos, corporificados
e inscritos, da engenhosidade de uma razão entrelaçada com o biopo- -

der, “ a ordenação crescente em todos os domínios, sob o disfarce de


melhorar o bem-estar do indivíduo e da população” (Dreyfus &c Rabi-
now, 1982, p. xxii). A fabricação do tema do “ Homem” , “ uma invenção
recente” ( Foucault, 1970, pp. 385-7), ocorreu através da complexa
interação de for ças e relações m ú ltiplas, contraditórias e desequilibra-
das, nas quais os pr óprios sujeitos desempenharam um papel essencial.
“ O processo inteiro de subjetivação, de aceitação de diferentes posi-
ções-de-sujeito” (Zizek, 1990, p. 253), sempre ocorre de forma inter-
subjetiva, através dos outros e em relação com eles (incluindo o próprio
eu ), que podem ou ser objetos para si pr óprios ou sujeitos para quem
se é um objeto. Como Hegel observou, em sua discussão da dialética
entre Senhor e Escravo, “ a autoconsciê ncia... existe apenas ao ser
reconhecida” (Hegel, 1977, p. 111). A idéia “ intuitiva” que temos de

1 A palavra agency (traduzida aqui por agê ncia ) é usada na literatura sociológica
anglo-saxô nica para salientar o elemento ativo da ação humana.(Nota do Tradutor).

101
nosso próprio eu como um agente autopresente, coerente e autónomo
depende, paradoxalmente, de sermos reconhecidos como tal por um
outro (Mahoney & Yngvesson, 1992, p. 60). O sujeito se constitui,
assim, a si próprio em relação a outros, no duplo sentido de ser “ sujeito
a um outro através do controle e da dependê ncia, e ligado à sua própria
identidade por uma consciência ou autoconhecimento” (Foucault,
1982, p. 212; Foucault, 1977, pp. 221-2; Althusser, 1971, p. 169;
Deacon, 1994, pp. 9-10).

Poder

A constituição intersubjetiva dos sujeitos subjaz à crítica que Foucault


faz de uma concepção puramente jur ídico-legal do poder como sobe-
rania que permeia os discursos modernos, incluindo, e não em pouca
medida, a educação. As relações de poder não são simplesmente “ da-
nosas” ( negativas, externas, centralizadas, homogéneas, repressivas e
proibitivas); são també m “ benéficas” ( positivas, internas, dispersas,
heterogéneas, produtivas e provocativas) (Deacon, 1994, p. 10). Os
discursos educacionais institucionalizados não são meios pelos quais
deciframos o mundo e disseminamos o conhecimento, mas estão entre
os “ principais procedimentos de sujeição ” , “ grandes edif ícios que asse-
guram a distribuição de sujeitos falantes pelos diferentes tipos de
discurso e a apropriação dos discursos a certas categorias de sujeito”
(Foucault, 1984c, p. 123 ), e que têm o “ poder de constituir domínios
de objetos” (Foucault, 1984c, p. 133); eles são mecanismos pelos quais
uma ordem ou um significado são violentamente impostos sobre as
coisas (Foucault, 1984c; Heidegger, 1969, p. 207; Laclau, 1990, p.
172; Laclau & Mouffe, 1985, p. 112). Conforme Laclau:

Toda objetividade necessariamente pressupõe a repressão daquilo


que é excluído através de seu estabelecimento. A fala da repressão
imediatamente sugere todos os tipos de imagens violentas. Mas esse
não é, necessariamente, o caso. Por “ repressão” nós simplesmente
queremos dizer a supressão externa de uma decisão, conduta ou
crença, e a imposição de alternativas que não estejam alinhadas com
elas. E um ato de conversão significa, assim, a repressão de crenças
anteriores (1990, p. 31).
Toda tentativa de fechamento ou, na terminologia de Laclau, de
“ suturar o social ” , está destinada a reprimir aquilo do qual depende e,
portanto, a permanecer incompleta; aquilo que aparece como mecanis-
mo para a transmissão do conhecimento por uma autoridade, dentro
de uma instituição, representa, na realidade, condições de possibilidade
de sujeição, mascarada por alegações de favorecimento do progresso
intelectual, da mobilidade sócio-econômica e do progresso social.
Deve-se enfatizar, entretanto, que a sujeição não deve ser equacionada

102
com “ repressão” ou “ dominação” , no sentido jurídico-legal: ao falar de
dominação, Foucault tem em mente “ não a dominação do Rei em sua
posição central... mas a dos seus súditos em suas relações m útuas, não
o edif ício uniforme da soberania, mas as m últiplas formas de subjugação
que têm um lugar e uma função no organismo social” (Foucault, 1986,
p. 232). A sujeição m ú tua produz resistê ncia no momento mesmo que
a reprime; provoca insubordinação no momento mesmo que exige
obediência.

Educação como Sujeição

A sujeição, a produção de saber e o exercício do poder são facilitados


por aquilo que Nietzsche temia que tivesse substituído o Deus ao qual
Zaratrustra tinha trazido os sacramentos: a gramática e a linguagem
(Culler, 1975, p. 96). Se exercer o poder é “ estruturar o campo possível
da ação de outros” ou governar (Foucault, 1982, p. 220-21), então,
“ sem d ú vida, comunicar é sempre uma certa forma de agir sobre outras
pessoas” (Foucault, 1982, p. 217). Uma instituição educacional, Fou-
cault sugere, é uma disciplina (ou um “ bloco de capacidade-comunica-
ção-poder ” ) na qual é dada proeminê ncia à linguagem:
A atividade que assegura a aprendizagem e a aquisição de atitudes
ou tipos de comportamento é aí desenvolvida por meio de um
conjunto inteiro de comunicações reguladas (lições, questões e
perguntas, ordens, exortações, sinais codificados de obediê ncia,
marcas de diferenciação do “ valor” de cada pessoa e dos níveis de
conhecimento) e por meio de uma sé rie inteira de processos de poder
(clausuramento, vigilâ ncia, recompensa e punição, a hierarquia pi-
ramidal ) (Foucault, 1982, p. 218-9).
Contra a idealização da linguagem e da comunicação inerente aos
discursos educacionais modernos, Foucault concebe a comunicação,
particularmente no interior das instituições, como uma outra possível
técnica de poder. Educar é sujeitar professores e alunos a poderosas
técnicas hierá rquicas de vigilâ ncia, exame e avaliação ( por parte de
administradores, pais e, de forma não menos importante, colegas), que
os constituem como objetos de conhecimento e sujeitos que conhecem.
Qual conhecimento é produzido à medida que os professores extraem
a verdade ou provocam a ação dos alunos (e vice-versa) depende das
relações de poder através das quais os sujeitos são constituídos. Os
veículos de poder, aqueles através dos quais as intervenções educacio-
nais são canalizadas, são, historicamente, talvez os primeiros alvos da
disciplina (Foucault, 1981, p. 120-7): o acesso ampliado das classes
dominadas, das mulheres e das outras raças à educação ao longo dos
dois ú ltimos séculos foi ao mesmo tempo uma aplicação de tecnologias
já testadas sobre grupos dominantes. A proliferação de teorias e mesmo

103
de uma ciê ncia da educação tornou-se possível por essa extensão das
relações de poder para envolver uma população mais ampla, processo
que por sua vez foi facilitado pelo conhecimento extraído através da
escrutinização dos alunos e da profissionalização dos professores.
Dois mecanismos disciplinares são essenciais aos processos pelos
quais as relações de poder constituem os professores e os alunos como
sujeitos e como objetos: a confissão e o exame. A confissão “ a —
formidável injunção para dizer o que se é” (Foucault, 1981, p. 60)
é um ritual que, tendo adquirido status científico como uma operação

terapê utica, tem efeitos discern íveis de poder: a verdade é corroborada
pela tribulação de relatá-la e isso “ produz modificações intrínsecas na
pessoa que a enuncia” (Foucault, 1981, p. 62). Enquanto a confissão
está presente em todos os discursos que buscam obrigar outros a falar,
seja com suas pr óprias vozes seja concedendo-lhes a voz, o exame está
mais estreitamente (embora não exclusivamente ) alinhado com os
discursos educacionais institucionalizados. O exame, sustentado pela
observa ção hierá rquica e pelo julgamento normalizador, sujéita aqueles
que são percebidos como objetos e objetifica aqueles que são sujeitados
( Foucault, 1977, p. 185 ). Ele permite que caracter ísticas particulares
dos sujeitos sob observação ou análise sejam relatadas, classificadas,
julgadas e utilizadas e funciona tanto para produzir quanto para disci-
plinar, uma vez que não apenas autentica uma aquisição de conheci-
mento, mas extrai do outro um conhecimento extremamente tá tico,
reservado para o intelectual (Foucault, 1979, p. 187; Deacon & Parker,
1993). Tanto a confissão quanto o exame se baseiam na injunção
filosófica mais antiga originalmente inscrita sobre o oráculo de Delfos:
“ conhece-te a ti mesmo ” , mais prosaicamente conhecida como auto-re-
flexão crítica. Ironicamente, essa técnica de tratar o pró prio eu como
um objeto de si mesmo tem sido proclamada por uma infinidade de
discursos modernos como indispensável a qualquer prática de liberta-
ção (Deacon, 1994, p. 15 ).
Barthes levou essa idéia ao exagero quando argumentou que a
relação de ensino é o “ reverso” da relação entre psicanalista e paciente:
embora seja verdade que o “ professor é a pessoa analisada... e que...
nessa ‘exposição’ é mais certamente nomeado do que tendemos a
pensar, n ão é o conhecimento que é exposto, é o sujeito” (Barthes,
1977, p. 194 ), não se pode ignorar que, especialmente na pedagogia
crítica, o professor permanece silencioso à medida que os aprendizes
são encorajados a confessar a verdade e, portanto, tanto professores
quanto aprendizes, embora desiguais, são ambos analistas e analisandos.
Essa sujeição recíproca ou intersubjetiva daqueles que participam do
processo educacional també m ilustra como a dicotomia estrutura-agê n-
cia que caracteriza o dilema insol úvel da liberdade e da autoridade, da
educação e da doutrinação, da reprodução e da resistê ncia em educação,
pode ser deslocada. De uma forma similar à descrição que Foucault faz
da agê ncia do sujeito mentalmente doente frente a um sistema de

104
]

coerção psiquiátrica ( Foucault, 1987, p. 122), o sujeito não-educado


constitui a si pr óprio ativamente como um aprendiz em relação com
(senão em presença de) outros ( professores, pais e colegas) que o
declaram carente de conhecimento ou habilidade.
A produção da (auto ) identidade através da sujei ção do professor e !
do aprendiz em busca da verdade, baseando-se, assim, na existência de
outros iluminados institucionalizados, é movida por concepções mo-
dernistas naturalizadas de educação que desde sempre oscilam entre o
pessoal e o social, o eu e o outro: desenvolvimento ( mental e social ),
crescimento ( pessoal e económico ), necessidades ( psicol ógicas e f ísicas),
moralidade (privada e pú blica) e progresso (do eu e social) (Oilman,
1993, pp. 69ss; Zizeck, 1991, pp. 17-19). Compreender a educação
como sujeição torna possível descartar esses mitos e explicar o persis-
tente lamento de que a educaçã o deixou de cumprir seus objetivos e
deve ser, outra vez, reformada. Illich argumentou que:
Educação e Desenvolvimento são ambas empresas de construção
social. Cada uma delas cria aquele novo tipo de espaço que então
mobilia. A educação cria um vazio interno que exige ser preenchido
e então acaba por monopolizar a produção dessa escassa mobília...
através da criação de um vazio interno, a educação destrói o sentido
comum e, como resultado, o homo torna-se educandus: para apren -
der eje precisa ser educado (1984, p. 11).
f

A reação padrão ao fracasso educacional consiste em fornecer mais


educação, de forma que a educação se torna o remédio para seus
próprios males. Entretanto, as anomalias ( taxas altas de fracasso e
evasão, irrelevâ ncia da educação para o Estado ou para a economia e 1
um decl ínio mundial nos padr ões de qualidade) surgem, proliferam e
são reforçadas, ao invés de serem superadas, como a educação procla-
ma. A educação está planejada para fracassar; ela produz necessidades
e sujeitos necessitados, a fim de justificar sua pró pria necessidade.
A generalização da normalização opera através da criação de
anormalidades que ela, então, deve tratar e reformar. Ao identificar
cientificamente as anomalias, as tecnologias do biopoder estão numa
posição perfeita para supervisioná-las e administr á-las ( Dreyfus &
Rabinow, 1982, pp. 195-6).
Isso explica o paradoxo de que as crises quase perpétuas na
educação em todo o mundo são vistas como resultado da alocação de
uma alta proporção dos impostos para a educação e, ao mesmo tempo,
se exige uma ê nfase crescente na aprendizagem permanente, refinando,
assim, incessantemente, as tecnologias do sujeito, o conhecimento e o

poder pois quanto menor o seu êxito, mais eles se tornam necessá rios
(Smart, 1985, p. 106 ). O sujeito da educação (discursos, instituições,
internados) é como “ uma camada de textos sobrepostos, cada ‘texto’
marcado por uma diferente profissão para definir e separar conjuntos
105
de necessidades que somente aquela profissão pode satisfazer” (Illich &
Sanders, 1989, p. xi ).

Da Resistência à Recusa

As relações de poder são imanentes e não externas à educação e seus


discursos; os professores e aprendizes são sujeitos de poder e saber, e
suas ações estão sempre implicadas nas próprias relações sobre as quais
(e no interior das quais) eles agem. Mas insinuar que isso é fatalista ou
reacionário é algo inteligível apenas em termos da ingénua fé moder-
nista no progresso em direção ao paraíso; “ não existe nenhuma desilu-
são sem ilusão” (Spivak, 1987, p. 123). E possível, portanto, concluir
“ pessimisticamente” que
estamos sempre “ dentro” do poder, não há como escapar dele, não
existe, relativamente a ele, nenhum exterior absoluto... Isso equiva-
leria a desconhecer o caráter estritamente relacional das correlações
de poder. Elas não podem existir senão em função de uma multipli-
cidade de pontos de resistência que representam, nas relações de
poder, o papel de adversá rio, de alvo, de apoio, de saliê ncia que
permite a preensão (Foucault, 1981, p. 95; edição brasileira: p. 91).
Conceber as relações de poder e as desigualdades e resistências a elas
associadas como ubíqiias significa simplesmente abandonar a busca
infrutífera por uma Utopia na qual o poder está ou ausente ou domes-
ticado e na qual o conhecimento é transparente e significa, portanto,
descartar a ilusão de uma verdadeira educação, uma “ educação para a
libertação” . E prová vel que esse Utopismo não apenas reforce as
tecnologias de sujeição, mas que nos desvie da tarefa de “ pensar
possibilidades subversivas” para o ensino e a aprendizagem “ nos termos
do pró prio poder ” (Butler, 1990, p. 30 ).
Devemos descartar essas f ábulas baseadas na “ Utopia” e em “ 1984” ,
tornando explícitas as relações de poder no interior das quais nós
simultaneamente governamos a nós pró prios e nos sujeitamos a outros.
Embora, por um lado, a tendê ncia moderna seja indubitavelmente em
direção à uniformização, a sociedade totalmente disciplinada é uma
harmonia tão m ítica quanto utó pica (o equívoco de Adorno e Horkhei-
mer [1979] consistiu em acreditar que a impossibilidade da última
significava o triunfo da primeira). Isso é assim porque, por um lado, as
diferen ças sociais são irredutíveis: a diferença está precariamente plan-
tada sobre as areias movediças de identidades sociais discursivamente
constitu ídas (o equ ívoco de todos os imperialistas assim como dos
arquitetos do apartheid foi o de acreditar que as diferenças podiam ser
fixadas ). A sociedade moderna não é nem um monolito nem está para
se desintegrar, mas uma matriz movediça de relações na qual são
produzidos os sujeitos ativos, e na qual o poder falogocêntrico deve ser

106
entendido não como “ uma vontade divina deterministica, mas como
um tagarela perpé tuo, preparando o chão para as insurreições contra

existe resistê ncia” — —


ele” (Butler, 1990, p. 28 ). O aforisma de Foucault “ onde existe poder
é muito freq üentemente citado de forma leviana
e muito apressadamente interpretado como uma licença para reintro-
duzir de forma subrept ícia um agente unitário e não-restringido de
resistê ncia contra o poder . Mas como diz Foucault: “ e contudo, ou
,
melhor conseqiientemente , essa resistê ncia não está nunca numa posi-
ção de exterioridade em rela çã o ao poder ” (1981, p. 95 ). A resistê ncia
não é nunca oposta ao poder; em vez disso, o poder produz m últiplos
pontos de resistência contra si mesmo e, inadvertidamente, gera oposi-
ção. O uso de Foucault do conceito de “ resistê ncia ” é problemá tico na
medida que está demasiadamente ligado à concepção jurídico-política

de poder como soberania numa forma semelhante à como ele trata o
conceito de “ repressão” como problemático (1986, p. 242) e, assim,—
questões de estratégia poderiam ser mais frutiferamente tratadas em
termos de um outro conceito que está espalhado por toda a obra de
Foucault: recusa.
Em um dos poucos locais em que Foucault explicitamente sugere
alternativas ao presente, ele indica que nossa tarefa poderia ser
não descobrir o que somos, mas recusar o que somos... imaginar e
construir o que poderíamos ser... para promover novas formas de
subjetividade (1982, p. 216).

Para recusar e criticar o que somos, devemos, ao menos num sentido


mínimo, ter descoberto o que somos ou como somos constituídos e ter
imaginado e inventado que novos tipos de sujeito poderíamos ser.
Segue-se que nós, modernos, devemos buscar imaginar o presente como
“ uma coisa diferente da que é e transformá-lo, não destruindo-o, mas
apreendendo-o no que é” ( Foucault, 1984a, p. 41). Devemos recusar o
canto de sereia da libertação e através da “ persistente cr ítica daquilo
que devemos habitar” (Spivak, 1990a, p. 276; 1990b, p. 103), uma
crítica permanente que assume a forma de transgressão, iniciar a tarefa
de teorizar a “ possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que
somos, fazemos ou pensamos” ( Foucault, 1984a, pp. 42-6). A tarefa
não é derrubar ou transcender mas, através da par ódia e do paradoxo,
travestir as identidades, práticas e objetivos educacionais hegemónicos,
para subverter e deslocar as relações de poder que envolvem a educação
moderna, contestando-as, ao problematizar as desigualdades entre
professores e aprendizes, expandindo o domínio da ficção e da contin-
gência nos currículos, experimentando formas alternativas de oferta e
administração educacional e, de maneira mais importante, promovendo
novas formas de subjetividade.
Para constituir novos e diferente sujeitos, o primeiro passo consiste
em desafiar a ortodoxia iluminista com seus próprios paradoxos. É a

107
própria vontade de poder e saber da modernidade, seu anseio por
complemento e plenitude, que demonstram sua carê ncia e a existê ncia
de particulares negativos que negam sua universalidade e tornam a
recusa e a mudan ça possíveis (Jameson, 1971, p. 56; 1990, p. 32).
Praticar a recusa é confrontar, sem substituir, o universal, o necessário
e o pú blico com o particular, o contingente e o pessoal ( Mouffe, 1992,
p. 382):

— —
É necessá rio passar para o outro lado o outro lado do “ lado bom ”
a fim de tentar livrar -se daqueles mecanismos que fizeram com
que aparecessem dois lados, a fim de dissolver a falsa unidade desse
outro lado cuja parte nós assumimos (Foucault, citado em Dews,
1984, p. 91).
Centralmente, recusar o que somos e libertarmo-nos dos mecanismos
hegemónicos da sujeição exige aten ção cuidadosa a nossas atuais posi-
ções-de-sujeito e às formas pelas quais cuidamos ou governamos nossos
eus. Isso implicaria envolver-se em práticas de liberdade, jogos de
verdade ou jogos-de-poder que estejam dirigidos discursivamente a nos
re-constituir a nós mesmos, se não a outros, em padrões particulares
histórica e culturalmente propostos ou impostos (Foucault, 1987, p.
122). Cuidar do eu é controlar o abuso de poder, limitar ou minimizar
a dominação de nosso eu : “ é o poder sobre o que regulará o poder sobre
outros” (Foucault, 1987, p. 119 ). Mesmo sob condições agudamente
assim é tricas, o poder é exercido sobre outros apenas através de nosso
poder sobre o eu, e a dominação é, ao menos em parte, relativa ao grau
no qual os dominados não exercem poder suficiente sobre si próprios.
Paradoxalmente, quanto mais (auto) disciplinados somos, quanto mais
cuidamos de nosso eu, mais livres seremos e melhor governaremos
outros; quanto menos disciplinados somos, menos livres seremos e pior
governaremos outros.
Na escola, o governo dos sujeitos é, ao mesmo tempo, essencial ao
empreendimento educacional e potencialmente desestabilizante, uma
vez que as possibilidades de recusar posições-de-sujeito particulares
estão presentes em todos os momentos, mesmo ocultas sob o compor -
tamento em obediê ncia às regras (Wittgenstein, 1972, par. 201). O
projeto da educação moderna é tão estreitamente aparentado ao de
instilar princípios que “ quando vossos desejos, vossos apetites ou vossos
receios se levantarem como cães que ladram, o logos falar á com a voz
de um dono que silencia os cachorros com um simples comando”
( Plutarco, citado em Foucault, 1987, p. 117). Não obstante, esse projeto
pode ser voltado contra si pró prio: exatamente da mesma forma que a
voz da autoridade se baseia no ladrar dos cães, a disciplinação dos
sujeitos depende de sua vontade e sua participação ativa. Alé m disso,
dado que os sujeitos são artífices, deve ser possível, em princípio,
mesmo que seja muito dif ícil, constituir sujeitos que literalmente exibam

108
sua artificialidade (Butler, 1990, pp. 30-31), e dessa forma questionar
velhas certezas, através da invenção de sujeitos que certamente serão
tão ou mais “ reais” que os originais “ naturais” que eles parodiam.

Conclusão

Argumentamos neste capítulo que a educação moderna deve ser recon-


ceptualizada como um conjunto de mecanismos para a constituição
disciplinar de sujeitos individualizados, sob condições institucionaliza-
das de desigualdade legalizada, no interior de uma matriz de relações
de poder. Os insights de Foucault sobre as intricadas inter-relações
entre saber, poder e sujeitos sugerem que futuras lutas no campo da
educação dever ão renunciar a modelos jur ídico- pol íticos baseados no
conflito por recursos escassos, na luta de classes ou no patriarcado. A
pol ítica não diz respeito à libertação, ao progresso e à Utopia nem à
tirania, à estagnação e ao fim da história. Não diz respeito “ à luta ou à
morte, à guerra sangrenta ou a nada ” (George Sand, citada por Marx,
em McLellan, 1977, p. 215 ), mas ao governo e à conduta e à estratégia
em relação a si e aos outros, o que é infinitamente mais complexo e
perigoso. De forma similar, a educação não diz respeito ao desenvolvi-
mento intelectual, ao progresso social ou ao crescimento económico.
Não diz respeito ao iluminismo ou à emancipação, nem à doutrinação
e ao controle, mas à sujeição, à disciplina e à recusa. Para al é m disso,
ainda dentro da modernidade, jaz o potencial para uma nova política
de recusa, paradoxo e cr ítica imanente que, ao promover novas formas
de subjetividade, pode dar à fracassada é poca moderna causa para
oscilar e hesitar.

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Este ensaio foi escrito especialmente para o presente livro. Tradução


de Tomaz Tadeu da Silva.
Roger Deacon é Professor do Departamento de Educação, Universi -
dade de Natal , Durban, Africa do Sul . Ben Parker é
Professor do Departamento de Filosofia, Universidade de Durban -
Westville, Àfrica do Sul .

110
6
David Martin Jones
Foucault e a Possibilidade de
Urna Pedagogia sem Redenção

Não gostaria que o que eu possa ter dito ou escrito fosse visto
como reivindicando qualquer direito à totalidade. Não tento
universalizar o que digo; inversamente, o que não digo não deve,
por isso, ser desqualificado como sendo de nenhuma importân-
cia. Minha obra está situada entre pilares inconclusos e cadeias
provisórias de escoras... Em muitos casos, estou pensando espe-
cialmente nas relações entre dialética, genealogia e estratégia;
ainda estou trabalhando e não sei se estou chegando a algum
lugar. O que digo deve ser tomado como “ proposições” , “ aber-
turas de jogo” , ao qual, aqueles que podem estar interessados, são
convidados a se juntar... (Foucault in Gordon et al., 1991, pp.
90-1).

Boa parte da pesquisa tradicional sobre professores e ensino


surgiu do interesse pr ático em encontrar melhores métodos de
selecionar pessoas que fossem “ bons” professores... padrões de
comportamento interpessoal entre professores e seus alunos tê m
sido estudados por observação sistemática na sala de aula e no
laboratório (Norrison, A. & McIntyre, 1971, pp. 13-14).

p- ntre essas duas citações, escritas aproximadamente no mesmo mo-


mento histórico no século XX, há uma ruptura epistemologica. De
um lado, o racionalismo universalizador de uma ciê ncia educacional e,
do outro, uma tentativa iró nica de considerar por que as coisas “ não
eram tão necessá rias assim ” . É minha modesta intenção aqui explorar
as implicações dessa diff érance para uma leitura pós-moderna da peda-
gogia, para a busca cada vez mais esté ril de uma ciê ncia educacional
totalizadora e as implicações dessa ruptura para a prática educacional.

111
1

Qual a implicação, pois, do projeto de uma ciência educacional ?


O empreendimento para universalizar e tornar científica a educa-
ção foi um projeto iluminista. Antecipado no pensamento de Kant, que
propôs que “ o iluminismo era a autolibertação do homem de sua
auto-imposta tutelagem” e de sua existê ncia como horda ( Kant in
Brock, 1988, p. 462), o projeto do progresso universal através da
educação não careceu de prosélitos entusiastas nos séculos XIX e XX.
Filantropos, igrejas e governos progressistas estavam preparados para
investir em esquemas para transformar as pessoas em cidadãos moral e
politicamente ú teis. Nessa visão iluminista de progresso, democracia,
educação e crescimento económico pareciam caminhar de forma firme
e solidária com a terra prometida da modernização e do desenvolvi-
mento.
Esse projeto foi facilitado ainda mais, no curso do século XIX, pelas
emergentes disciplinas da Psicologia, da Sociologia e da Ciê ncia Pol ítica.
Essas ciências humanas estabeleceram, inicialmente de forma simples,
mas com crescente sofisticação, as metodologias empírica e cientifica-
i-
mente verificáveis que identificariam objetivamente sistemas sociais
mais racionais, apropriados à modernidade, os quais as Ciê ncias Físicas
I e suas concomitantes descobertas tecnológicas tinham facilitado.
Esse plano de desenvolvimento político e progresso económico
através da instrução racional é mais clara e influentemente pressagiado
no esquema utilitá rio traçado por Jeremy Bentham em sua Chrestoma-
thia (1809). Embora organizações religiosas, pessoas e sociedades filan-
tr ó picas tivessem, anteriormente, mostrado interesse na instrução
moral dos pobres, foi Bentham quem, primeiramente, propôs essa
instrução sobre uma base científica, apropriada para criar cidadãos ú teis
que contribuíssem para uma sociedade democrá tica liberal que facili-
tasse “ a maior felicidade do maior n ú mero de pessoas” . No plano
crestomático, a aprendizagem ú til ocorria num local especificamente
— —
designado e organizado a sala de aula através da inculcação de
hábitos de cálculo num regime de observação permanente, mediado por
um sistema de recompensas e punições. A sala de aula benthamiana era
um espaço intensamente competitivo. As lições eram curtas e a peda-
gogia “ inquiridora ” (exigindo recitação e respostas) ou matètica (exi-
gindo aprendizagem mecâ nica ) e invariavelmente seguida por exame.
Nessa visão utilitá ria, os governos progressistas da Europa e dos
Estados Unidos “ tomaram para si a administração das escolas e das
universidades” (Mill in Warnock 1970, p. 240). Apesar das reservas
liberais sobre o crescente étatisme, pensadores como J.S.Mill e Mathew
Arnold acabaram por ver a “ benevolência desinteressada” de uma
educação patrocinada por um Estado racional como o menor de “ dois
males” (Mill, pp. 239-40), o outro mal sendo, naturalmente, a multidão
vagando pelas ruas numa ignorâ ncia pouco iluminada. O exame legal-
mente obrigatório, o mecanismo que claramente indicava a benevolê n-

112
F
cia desinteressada do Estado, constituiu a maquinaria que levaria a
população a uma condição racional.
Uma geração posterior de pensadores coletivistas liberais e socia-
listas levou essa benevolência desinteressada um estágio adiante. A
educação, para socialistas fabianos como Sidney Webb, tornou-se uma
questão de “ eficiê ncia nacional ” e uma “ preocupação nacional assumida
no interesse de uma comunidade como um todo” (Webb, 1904, pp.
9-10).
Essa visão da educação como uma questão de central importâ ncia
para o desenvolvimento nacional e para a produtividade moldaria
fortemente as percepções governamentais da educação, tanto nas eco-
nomias em desenvolvimento quanto nas desenvolvidas, no curso do 4
século XX. Assim, um “ Panorama da Educação” , na revista The Econo-
mist, anunciava em novembro de 1991 que o investimento governa-
mental em educação “ compensa. Se a virtude obtém sua recompensa
no céu, a educação a obté m na terra ” ( 21/11/1992, p. 11). Nesse
entendimento, a atual crise econó mica nas economias européias e
anglo-americanas é diretamente atribu ível ao fracasso da educação
popular em produzir a eficiência nacional. Em contraste, o milagre
económico das economias dos “ tigres” asiáticos é diretamente atribu í- 3

vel, nessa visão modernista, ao “ culto da educação” nessas sociedades


confucianas ( p. 13).
Ao mesmo tempo que governos progressistas concebiam a educação
como vital para a promoção de uma condição racional e moderna, a
ciência educacional, de forma crescente, imaginava uma educação
apropriadamente científica que transformaria o capital humano. Uma
influência seminal sobre a visão iluminista de Kant foi a do Emile de
Jean Jacques Rousseau. Uma educação corretamente ordenada, nessa
visão, revelaria ou recuperaria a natureza verdadeira do homem e criaria
em todo indivíduo a capacidade latente para a liberdade moral. Na
verdade, como aqueles que promoveram uma ciência da educação
fundada numa psicologia do desenvolvimento neorrousseauniana, no
final do século XIX, sustentavam, “ o propósito todo da educação pode
ser resumido no conceito de moralidade” (Findlay, 1902, p. 1). Desse
ponto de vista, um método correto de educação poderia ser cientifica-
mente estabelecido por meio das ciê ncias humanas da Psicologia e da
Sociologia e das ciências médicas que inculcassem há bitos de saúde e
higiene na população.
Era central a essa transformação dos recursos humanos a visão de
que exatamente da mesma forma que a economia se transformou do
feudalismo ao capitalismo e o governo do absolutismo irracional à
democracia constitucional racional, assim a criança transforma-se num
cidadão útil através de estágios de crescimento e é papel do “ bom”
professor, cientificamente treinado, facilitar esse desenvolvimento. Esse
progresso desenvolvimentista da natureza infantil, eloq íientemente

113
pressagiado no É mile de Rousseau, adquiriu forma material nos expe-
rimentos pedagógicos de visionários educacionais como Pestalozzi e
tornou-se crescentemente regularizado e cientificizado no pensamento
pedagógico de Herbart, Spencer, Froebel, Dewey, Montessori e Mac-
millan. Era central a essa pedagogia do desenvolvimento o papel do
professor tanto como um modelo a ser imitado quanto como um
facilitador da aprendizagem através do fazer.
Por volta do in ício do século XX, os colégios da Europa e da
Amé rica do Norte estavam treinando os professores numa pedagogia
do desenvolvimento apropriada a cada estágio do desenvolvimento
racional da criança. Essa ciência do desenvolvimento permitia que o
professor eficiente “ traçasse uma ordem de desenvolvimento” no pro-
cesso de aprendizagem (Findlay, p. 137). Esse conhecimento deu ao
professor a liberdade para prever as ocorrê ncias da sala de aula e
antecipar a conexão entre estímulo e reação. Exatamente da mesma
forma que o médico tratava um paciente, a ciê ncia educacional equipava
o professor apropriadamente treinado com um “ poder de diagnóstico
e interpretação” (Sadler, 1901, p. 137).
Munido de uma ciê ncia do desenvolvimento e da capacidade para
dividir cada lição em cinco passos herbartianos, o professor profissional
estava equipado, como sustentava o fil ósofo estadunidense William
James, “ para educar as emoções” (James, 1949, p. 253). Nessa visão, o
professor treinado levava a crian ça, “ naturalmente” , em direção a novos
conceitos. Na pedagogia transformativa de Margaret Mcmillan, uma
nova raça de trabalhadores do ensino e da sa ú de educaria a imaginação
através de seu domínio do jogo. Esses professores-enfermeiros criariam
“ jardins de crian ças” , na favela urbana, os quais inculcariam há bitos de
higiene. A saú de, assim como o crescimento económico, era agora um
“ sub-produto do ensino” ( Macmillan, 1903, p. 200).
Essa visão do ensino eficiente e científico oferecia a perspectiva, no
per íodo após 1920, não apenas de um desenvolvimento racional, mas
també m de uma ordem social. A escola tornou-se “ o centro de interesse
para todos os envolvidos no trabalho de melhoria social que afetava a
vida infantil. O trabalhador social na clínica para recé m-nascidos e no
jardim de inf ância gratuito deve seguir o jovem a seu cargo até a escola
infantil onde o médico e a enfermeira já estão em alegre fun ção...
Comissões de Cuidado procurarão manter a criança em forma e em
freqiiê ncia regular... enquanto, ao final, o serviço de trabalho juvenil
entra na escola para registrar o trabalhador potencial ” (Allen, 1916, p.
217).
A partir de outros desenvolvimentos na Psicologia Aplicada e na
Sociologia, no curso dos anos 1960 e 1970, foi possível cientificizar e
objetificar ainda mais a sala de aula, o professor e o aluno. Estudos
sociométricos e pesquisas de atitudes ofereciam dados objetificáveis
para provar as observações impressionistas de gerações anteriores de

114
educadores progressistas. Por volta do início dos anos 1970, educadores
como McIntyre e Morrison (1971) podiam se basear numa quantidade
imensa de dados científicos que podiam facilitar melhorias na eficiê ncia
docente e, por sua vez, melhorar a eficiência das escolas em dar uma
educação útil para sua clientela.
A imagem de uma população cientificamente educada é isomórfica,
portanto, à de uma modernidade pienamente desenvolvida. A realiza-
ção dessa imagem exigia, por sua vez, uma personalidade cientificamen -
te transformada , uma personalidade que revelasse a plena
potencialidade de uma natureza humana latente ou obscura. A fim de
alcançar essa transformação, uma ciência educacional armada com
dados sociométricos e um conhecimento progressivo do crescimento
emocional e intelectual dos seres humanos tornou possível uma meto-
dologia de ensino cientificamente objetificável. Além disso, mesmo
quando críticos marxistas ou neoconservadores questionaram a objeti-
vidade da ciência e a validade de suas prescrições, eles nunca duvidaram
da possibilidade de uma tal transformação progressista. Para que a

modernidade progressista todos os discursos pareciam anunciar
fosse realizável era necessário apenas que o desenvolvimento humano, —
a organização económica e o desenvolvimento político fossem apro-
priada e objetivamente racionalizados.

Discurso, Genealogia e Ciências Humanas

Vamos perverter nosso bom senso e permitir que o pensamento


brinque fora da mesa ordenada das semelhanças (Deleuze in
Bouchard, 1977, p. 23 ).

Em suas tentativas, às vezes obscuras, para obter uma outra compreen -


são, aqueles pensadores historicistas nos quais, como sugere Richard
Rorty, “ o desejo de autocriação domina” , tê m exposto a densidade do
narcisismo ocidental e seu longo esforço metaf ísico para localizar uma
essência por trás da apar ência e uma verdade obscurecida pela opinião.
O enfraquecimento das fundações iluministas da epistemologia por
parte de escritores irracionalistas, de Nietzsche a Foucault, Derrida e
Deleuze, leva-nos a considerar as implicações de seus projetos arqueo-
lógicos e genealógicos para as Ciê ncias Humanas em geral e a Ciê ncia
Educacional em particular.
Ao menos desde A História da Loucura (1976 ), Foucault, Deleuze,
Guattari e seus “ companheiros de jornada ” , buscaram ficar fora das
tradições estabelecidas de pesquisa a fim de demonstrar que o desen -
volvimento epistemologico nas Ciências Humanas atua de forma polí-
tica. A pesquisa está intimamente implicada no gerenciamento prático
de problemas sociais. Um vocabulá rio científico não oferece apenas

115
r
'

“ urna função legitimadora” ; ele també m constr ói um olhar que torna


visível aquilo que Deleuze descreve como “ a nova paisagem social ” .
Através da observação metódica, os novos “ objetos de interesse” iden-
tificados nessa paisagem foram inseridos numa rede de práticas melho-
rativas ou terapê uticas.
Segue-se disso que o pós-modernismo evita a reivindicação cientí
fica à originalidade, à descoberta e à melhoria da condição humana.
-
Foucault, em particular, buscou separar a vontade científica de saber
da id é ia de progresso humano, considerando esse projeto essencialista
como sendo, em última instâ ncia, pol ítico. “ O conhecimento do ho-
mem ” , ele sustentou, “ diferentemente das ciê ncias da natureza, está
sempre ligado... à ética e à política ” (Foucault, 1985, p. 328). Assim
que entram em funcionamento, pois, as Ciê ncias Humanas “ ofendem
e reconciliam, atraem e repelem, quebram, dissociam, unem e reú nem;
não podem senão libertar e escravizar ” ( p. 328 ). Conforme David Hoy:
O conhecimento do homem... está ligado à pol ítica, isto é, ao poder,
uma vez que o conhecimento não é apenas colocado em uso, mas os
usos que temos para coletar conhecimento determinam eles pr ó prios
que tipo de conhecimento adquirimos. O conhecimento não é obtido
independentemente de seus usos, mas os fatos coletados estarão
funcionalmente relacionados aos usos que lhes serão dados (Hoy,
1988, p. 19 ).
Nesse esforço disciplinar, Foucault identificou uma interação entre “ um
código q úe rege formas de fazer coisas... e uma produção de discursos
verdadeiros que servem para fundar, justificar e fornecer razões para
essas formas de fazer coisas” ( Foucault, 1981, p. 8 ). O discurso expres-
sa, na verdade, a forma “ como os homens governam a si próprios e a
outros por meio da produ çã o da verdade” . Por verdade, alé m disso,
Foucault compreendia não a produção de um enunciado verdadeiro,
mas a formação de domínios nos quais “ a prá tica do verdadeiro e do
falso pode se tornar pertinente” (1981, p. 8).
Seguindo Georges Canguilhem, Foucault sustentava que seu tema
não era a sociedade como tal, mas o discurso do verdadeiro e do falso,
“ pelo qual quero significar a formação correlativa de dom ínios e
objetos” . O discurso é, conseqiientemente, como Deleuze argumenta,
uma “ mercadoria política ” , cujo murmú rio anónimo espalha-se a partir
de locais institucionais e invoca dois “ registros” . Em sua relação com o
conhecimento e seus objetos de interesse, o discurso exibe “ princípios
imanentes de regularidade” .
De forma significativa, a maior parte das pesquisas em Ciê ncias
Políticas pouco diz que seja impressionante, original ou mesmo mera-
mente interessante. Novos enunciados são raros. Entretanto, esse dis-
curso também descreve programas planejados para moldar ou inventar
a realidade social. Como explica Deleuze, o poder é genealógico

116
transmitindo ou distribuindo características discursivas particulares na
forma de um diagrama (Deleuze, 1986, p. 55 ).
Essa contestação discursiva a uma razão essencialista, universalizan-
te e fundacional tem profundas implicações para uma leitura pós-mo-
dernista do governo em geral e para a prática da educação em particular.
Centralmente, Foucault distinguia uma mudança na genealogia do
governo ocidental, de uma soberania jurídica para a governamentalida-
de, de um poder de morte que um soberano patriarcal exercia sobre um
povo sujeitado a um poder de vida sobre uma população administrada.
Essa mudança, explorada mais notavelmente em Vigiar e Punir (1977)
e na História da Sexualidade (1978 ) e em sua conferê ncia publicada
postumamente como “ Governamentalidade” (Gordon et al., 1991),
oferece uma perspectiva potencialmente iluminadora sobre o poder, a
sociedade civil, a ética liberal da liberdade individual e suas implicações
para uma ciê ncia pedagógica progressista.
Em particular, a mudança discursiva ocorrida no século XIX da
soberania concebida em termos jurídicos para uma nova preocupação


com a técnica gerencial ,- abriu um novo domínio de governamenta-
lidade e criou, na frase de Deleuze, “ a nova paisagem do social ”
(Donzelot, 1979). O novo campo de governo
— — Foucault argumentou
era a população e as técnicas que se desenvolveram para administrá-
I

la. Nesse novo domínio, a família, que anteriormente funcionou tanto


como um modelo da soberania quanto para a soberania, foi deslocada,
sendo relegada a um instrumento para a administração da população.
Em contraste com a soberania jur ídica e a sua preocupação com a
ordem, a governamentalidade e a ciência política que veio a acompa-
nhá-la na forma de administração pú blica, cuidado com a saúde e
educação popular, tinha como propósito não o ato de governo em si, a
mas “ o bem-estar da população, a melhoria de sua condição... e os meios
que o governo usa para obter esses fins são eles pr óprios, em certo
sentido, imanentes à população: é a pr ópria população sobre a qual o
governo agirá, seja diretamente, através de campanhas de grande escala,
seja indiretamente, através de técnicas que tornar ão possível, sem a
plena consciência das pessoas, a estimulação de taxas de natalidade” , a
economia, a saúde e a educação moral ( p. 100).
Essa preocupação emergente com a população era para Foucault
absolutamente fundamental à invenção de novas técnicas de poder. A
transição que ocorre ao final do século XVIII, na Europa, de “ uma arte
do governo a uma ciê ncia política, de um regime dominado pelas
estruturas de soberania a um regido por técnicas de governo, baseia-se
no tema da população e, portanto, também no nascimento da economia
política ” ( p. 101).
Entretanto, Foucault não pensava que tivesse havido uma simples
evolução ou progresso de uma sociedade de soberania para uma socie-
dade disciplinar e a subseq úente substituição de uma sociedade disci-

117
1

plinar por um sociedade de governo. Em vez disso, ele argumentou,


“ tem-se um triâ ngulo: soberania-disciplina-governo, que tem como seu
alvo primá rio a população e como seu mecanismo essencial os aparatos
de segurança” (p. 103). Esse projeto isola a figura da economia como
um setor específico da realidade e a Economia Política como a ciê ncia
e a técnica da interven ção do governo naquele campo da realidade. Na
verdade, o que se torna importante para a modernidade não é tanto
aquele curioso objeto — o Estado e sua estatização da sociedade
quanto a governamentalização do Estado.

Como Graham Burchell (1991) explica de forma interessante, o
desenvolvimento de técnicas de governamentalidade e segurança sob a
orientação da economia de laissez- faire exigiu, paradoxalmente, a
liberdade na esfera da sociedade civil. O princípio do laissez - faire, que
se desenvolveu a partir das teorias fisiocrá ticas francesas e do ceticismo
iluminista escocês de Hume, Ferguson e Smith, permitiu que Bentham
elaborasse um projeto utilitário baseado numa nova “ objetificação da
população e da riqueza” (Burchell, 1991, p. 127). Ele se constituiu
como “ um princípio de governo de acordo com a natureza das coisas,
pressupondo uma especificação dos objetos de governo de uma forma
tal que as regulações de que eles necessitam são, em certo sentido,
auto-indicadas e autolimitadas, com a finalidade de assegurar as condi-
ções para uma função otimizada, mas natural e auto-regulada” (p. 127).
A preocupação com o novo objeto da população tornou possível um
sujeito económico baseado no interesse calculista, em vez de um sujeito
jurídico, ligado, por contrato, à lei. Como argumenta Burchell, essa
mudança crucial eliminou restrições “ sobre a busca do interesse priva-
do” e epistemologica e praticamente implicou a desqualificação da
soberania sobre o processo económico ( p. 134 ). A Ciê ncia Política, em
outras palavras, criou a sociedade civil como o domínio da governa-
mentalidade.
Entretanto, como Foucault e depois Deleuze e Donzelot descobri-
ram, essa nova governamentalidade não contestou abertamente o qua-
dro unificador de soberania legal e política. Em vez disso, questionou
a identificação da razão governamental com a razão totalizadora da
soberania ou do Estado. “ Reformular os objetos, instrumentos e tarefas
do governo com referê ncia à sociedade civil torna tanto possível quanto
necessá rio reformular també m o problema entre o governo e a unidade
legal do Estado” ( p. 138 ). Na visão de Foucault, o liberalismo começou
com “ o reconhecimento da heterogeneidade e incompatibilidade dos
princípios que regulam a multiplicidade não-totalizável dos sujeitos
económicos baseados no interesse e aqueles que operam de acordo com
a unidade totalizadora da soberania política e legal ” ( p. 137).
O objeto de uma Ciê ncia Pol ítica, portanto, tornou-se o de assegu-
rar condições para o funcionamento otimizado e, tanto quanto possível,
autónomo, dos processos econó micos na sociedade ou, como Foucault

118
explica, “ enquadrando processos naturais em mecanismos de seguran-
ça” ( p. 138). A liberdade aqui não é uma virtude, mas uma técnica
necessária de “ governar os processos naturais da vida social e, particu-
larmente, aqueles das trocas auto-interessadas” (p. 138 ). No tempo, a
segurança das leis e a liberdade individual se pressupõem mutuamente.
Além disso, como um correlato necessário de uma “ nova forma de
governar, a sociedade civil pode ser vista como fornecendo uma base
para racionalizar a regulação legal de um governo autolimitador,
económico ou frugal, vinculado referencialmente a processos económi-
cos” ( p. 138 ). A sociedade civil situa o problema do exercício do poder
político em relação a um domínio aparentemente natural no qual o
poder, na forma de relações espontaneamente desenvolvidas de auto-
ridade e subordinação, já existe numa relação dinâ mica interna com o
exercício de interesses. O papel do Estado define-se por referência a
uma sociedade “ natural” já existente e é essa natureza aparentemente
autoproduzida da sociedade civil que o Estado tem que assegurar que
funcione de forma otimizada. Isso exige a regulação de seus processos
naturais por mecanismos de segurança que coloquem a sociedade numa
posição complexa e variável tanto dentro quanto fora do Estado. A
sociedade civil e o homem económico natural são, na verdade, os
correlatos necessá rios de uma tecnologia política de governo.
A Ciência Política, portanto, torna possível uma realidade transa-
cionai. Esse domínio na fronteira do poder político e daquilo que
naturalmente evita sua apreensão oferece um terreno f értil para a
inovação experimental. Ela permite a formação de tecnologias tatica-
mente polimorfas, como o panóptico benthamiano e a estratégia cres-
tomática para governar as vidas individuais. Essas novas tecnologias
moldam a conduta e os desempenhos apropriados à sua produtiva
inserção nos circuitos da vida social.
Esse novo poder sobre a vida desenvolveu-se em duas formas
básicas ou, mais especificamente, constituiu “ dois polos de desenvolvi-
mento” (Foucault, 1978, p. 135 ). Um polo centrou-se no corpo, como
uma máquina caracterizada pelo desenvolvimento das disciplinas, “ uma
anátomo-pol ítica do corpo humano” (p. 139). O segundo polo focali-
zou-se no corpo da espécie, a população em geral, cuja supervisão “ foi
efetuada através de uma série inteira de intervenções e controles
regulatórios” (p. 140). Houve “ uma explosão de técnicas numerosas e
diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle das populações,
marcando o começo de uma era de biopoder ” (p. 140). Assim, como
Gilles Deleuze observou, “ as duas funções puras nas sociedades moder-
nas ser ão a anátomo-política e a biopolítica e as duas questões puras,
as de um corpo particular e de uma população particular ” .
De forma crucial, o biopoder exigia o desdobramento da sexuali-
dade. Situado na junção “ do corpo e da população, o sexo tornou-se
um alvo crucial de um poder organizado em torno da administração da

119
vida e não da ameaça da morte” (Foucault, 1977, p. 147). Uma
combinação de mecanismos disciplinares como a escola, o hospital e o
hospício articulou e ordenou o biopoder. Essa biotecnologia empregou
táticas cuja

operação não é assegurada pelo direito, mas pela técnica, não pela
lei, mas pela normalização, não pela punição, mas pelo controle,
mé todos que são controlados em todos os n íveis e por formas que
vão alé m do Estado e seus aparatos ( p. 89 ).

Em particular, as Ciências Humanas transformaram a técnica religiosa


da confissão, substituindo a regra objetiva do normal e do patológico
pela preocupação pastoral com a consciê ncia e o pecado. A formação
desse olhar normalizador necessitou ainda do desenvolvimento de
mecanismos regulatórios a fim de qualificar, medir, julgar e hierarqui-
zar. Trata-se de um mecanismo de normalização mais claramente
evidente na ci ê ncia educacional que veio a moldar o treinamento dos
professores e a regularização do espaço de sala de aula.
Esse novo modo de biopoder, central à pr á tica da moderna peda-
gogia, exigia não submissão, mas um jogo de sedução. Portanto:

Captura e sedução, confrontação e reforço mútuos: pais e filhos,


adultos e adolescentes, educadores e alunos, médicos e pacientes, o
psiquiatra com suas histéricas e seus pervertidos, todos jogaram esse
jogo continuamente desde o século XIX. Essas atrações, essas eva-
sões, esses incitamentos circulares desenharam ao redor dos corpos
e sexos não fronteiras a serem cruzadas, mas perpé tuas espirais de
poder e prazer ( p. 45).

Por volta do início do século XX, as exigências da governamentalidade


tinham criado não uma modernidade progressista, mas um complexo
tutelar de conselho e segurança. A escola, o hospital, as agências
multivalentes do bem-estar social, todos forneceram locais institucio-
nais para uma constelação de conselheiros e técnicos praticar as estra-
t é gias de um biopoder sobre uma popula çã o crescentemente
terapeutizada. Estratégias que podiam ter os objetivos aparentes de
“ dizer não a todas as sexualidades errantes e improdutivas” , na verdade,
“ funcionavam como mecanismos com um duplo ímpeto: prazer e
poder ” ( p. 45 ). Uma tal modernidade movida pelo biopoder, na verda-
de, “ questiona, monitora, vigia, espia, investiga, apalpa, traz à luz” , de
forma incessante. Por volta do final do século XX, essas estratégias
tutelares saturavam a família urbana com normas médicas, psicológicas
e pedagógicas.

120
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Uma Alternativa Pós-Moderna ao Gulag da Terapia Gerencial

Pois o próprio fundamento da pós-modernidade consiste em ver


o mundo como uma pluralidade de espaços e temporalidades
heterogé neas. A pós-modernidade, assim, pode se definir apenas
no interior dessa pluralidade (Heller &c Feher, 1988, p. 1).

Ao genealogizar dessa forma a modernidade, o pós-modernismo


claramente mina as fundações epistemológicas tanto da Ciê ncia Pol ítica
quanto da Ci ê ncia Educacional. Coloca em d úvida a noçã o de história
como progresso, a noção de sociedade civil como o domínio de
atividade do cidad ão autónomo e maduro e a idéia de uma essê ncia ou
natureza que o governo progressista deveria racionalmente facilitar.
Essa desconstrução demolidora da modernidade democrá tica libe-
ral tem levado diversos analistas, notavelmente Habermas (1988 ),
Rorty (1991) e O’Sullivan (1993 ), a criticar o aparente niilismo do
discurso de pós-modernistas proeminentes como Foucault, Deleuze e
Derrida. Em particular, eles tê m observado uma “ tend ê ncia a deixar a
desconstrução degenerar em algo pior que o relativismo” . No caso de
Foucault eles denunciaram sua própria “ versão da obsessão marxista
com desmascarar” relações de poder (O’Sullivan, 1993, p. 33).
Al é m disso, quando os pós-modernistas oferecem sua versão alter-
nativa da libertação eles tenderiam ao in ócuo e ao incompreensível.
Assim, em boa parte do pensamento social pós-moderno, notavelmente
naquele proposto por Jacques Derrida e por pós-feministas como Julia
Kristeva e Luce Irrigaray, “ a pol ítica desaparece da vista, sendo substi -
tuída por uma f é ingè nua, quase mística, na harmonia natural, a qual,
se presume, será automaticamente trazida pela desconstrução ” (O’Sul-
livan, p. 34 ). Nessa leitura, a pós- modernidade deixa-nos com uma
mistura preocupante de desmascaramento de relações de poder e uma
— —
f é inócua na diff érance. Existe perguntaríamos algo alé m disso ?
Claramente, da perspectiva pós- moderna, a f é racionalista no
progresso, que constrói o tempo histórico de forma positiva, desapare-
ce. Essa idéia de tempo ocorreu durante um período de enorme
otimismo sobre a capacidade da vontade humana de moldar a história
e fazê-la conformar -se às aspirações humanas. Em contraste, a pós-mo-
dernidade reconhece que os eventos são contingentes. A transição da
modernidade à pós-modernidade, como Antony Giddens tão prescien -
temente observou, está “ limitada pela descoberta de que a razã o não
cria racionalidade” . Não existem, como conseq üê ncia, mais metanar -
rativas propondo a marcha para frente e para cima da razão. De forma
igualmente impressionante, a pós-modernidade não oferece qualquer
121
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1
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possibilidade de uma resposta radical ou “ uma pol ítica redentora de


qualquer tipo” (O’Sullivan, 1993).
Mais: o discurso pós-modernista subverte a noção de uma identi-
dade coerente e de um individualismo com um ego seguro, fundamen-
tado na natureza humana. Não existe, na verdade, nenhum eu essencial,
apenas uma identidade contingentemente negociada que vive ou em
desencanto (Rorty, 1989 ) ou em desintegração perpétua. Na pós-mo-
dernidade, tudo é questionado, tudo é provisório e todo indivíduo é
assombrado pelo arrependimento de ter perdido o que poderia ter sido.
De fato, é cada vez mais central, ao projeto pós-modernista e à sua
resposta à realidade transacionai da política, a questão da identidade.
Como se age, ou no nosso caso, como se ensina, num mundo moldado
não por causas mas pela contingê ncia e informado pelo ceticismo e pela
ironia ? De forma igualmente importante, de uma perspectiva político-
pedagógica, como manter uma ordem social pluralista na qual todas as
velhas hierarquias foram destru ídas e todas as diferen ças receberam um
certificado de validade ?
Deve-se enfatizar, aqui, que o empreendimento pós-modernista é
nominalista e historicista. Conseqiientemente, ele nega o esforço ilumi-
nista para fundar uma linguagem da presença, não-metaf órica e objetiva
ou transparente. Em outras palavras, ele reconhece apenas uma pers-
pectiva particular, selecionada de uma variedade de competidores
potencialmente válidos. Como tal, uma perspectiva particular é, ao
mesmo tempo, moldada por seu próprio passado cultural e oferece
apenas uma prescrição mutável e condicional para o presente. Tal
modéstia, naturalmente, contrasta com os grandes planos racionais da
modernidade, mas não nega as possibilidades nem da filosofia, nem da
educação.
Politicamente, pois, o pós-modernismo oferece uma gama de pos-
sibilidades e respostas imaginativas, limitadas e necessariamente retóri-
cas, à prediçã o causativa. Para um liberal burgu ês pós-modernista como
Richard Rorty, a saída está em abandonar as teleologias e totalizações
especiosas e envolver-se numa autocriação irónica. Toda experiência é
necessariamente condicional e o eu, juntamente com a polis e a escola,
está num constante estado de renegociação prometè ica.
Um tal liberalismo pós-moderno aceita que a pedagogia ocidental
não tem nenhuma asser ção universal e está limitada por sua própria
“ mônada” cultural. Conseqiientemente, uma pedagogia liberal pós-mo-
derna tenta facilitar um questionamento irónico do currículo liberal,
mas um curr ículo livre das tentativas para localizá-lo numa moralidade
racional fundacional. No lugar de verdades universais, seguindo Nietzs
che e Heidegger, existe apenas a perspectiva, a linguagem e a cultura-
que habitamos e imaginativamente interrogamos e reinventamos. Tra-
ta-se de um pragmatismo imaginativo e ludicamente iró nico. O cimento
constitutivo desse arranjo político-pedagógico é a solidariedade exis
-
122
tente entre companheiros de ironia e o reconhecimento de que a
“ crueldade é a pior coisa que fazemos” (Rorty, 1989).
Um conservadorismo pós-moderno, em contraste, oferece uma
resposta mais cé tica ao colapso da certeza racional. Assim, tanto Grey
(1992) quanto O’Sullivan (1993) tê m chamado a atenção para o
problema pol ítico prático de renegociar a relação entre a autoridade
política e a identidade mdral na pós-modernidade. Enquanto a Ciê ncia
Pol ítica e a Teoria Política e Educacional mais radicais tentaram livrar-
se do poder através de mecanismos de responsabilizaçã o e distribuição
(no modernismo educacional os estudantes são participantes iguais no
processo de aprendizagem), a pós-modernidade cada vez mais reconhe -
ce o poder como um fato social e político inescapável. Dessa perspec-
tiva, a identificação pós-moderna da contingência dos arranjos políticos
e educacionais pode ser tratada através do recurso à experiência tradi-
cional e culturalmente específica.
Assim, Grey e O’Sullivan observam que o problema pós-modernista
tem em várias ocasi ões, invocado pensadores políticos europeus pré-
,
iluministas, notavelmente Machiavelli, Hobbes e Montaigne. Para
O’Sullivan, o problema de renegociar um sentido de identidade e
autoridade requer um retorno à política limitada proposta por Hobbes.
Em termos educacionais, um curr ículo pós-moderno renegociado reco-
nheceria a contingê ncia de uma prática educacional particular e reco-
nheceria que ele pouco oferece em termos de resultados utilitários.
De forma interessante, e com um tom mais radicalmente social-de-
mocrático, Habermas (1988 ) e Zolo (1991) partilham dessa consciê ncia
dos limites do projeto iluminista. Dessa perspectiva mais radical, uma
polis pós-moderna apropriadamente comunicativa exigiria um curr ícu-
lo adequado às exigências retóricas de uma cosmópolis cada vez mais
pluralista. Uma educação civil é vital para estabelecer um campo de jogo
comunicativo plano.
Uma pedagogia pós-moderna pluralista, na verdade, ofereceria
certos recursos tradicionais, juntamente com a possibilidade de uma
interrogação inteligente e experimental de práticas culturalmente di-
versas, num espírito de autocriação e comunicaçã o incessantes. Ao
mesmo tempo, uma nova abertura pedagógica resistiria à possibilidade
alternativa preocupante de a pós-modernidade recuar a uma identidade
essencialista, àquilo que Rorty chamaria de uma mônada cultural
fechada, ou a um gerencialismo pedagógico determinado pelo Estado.
A ú ltima possibilidade, para um grupo crescente de pirronistas ociden-
tais, constitui o grande medo pós-moderno. Em vez de uma introdução
às limitadas possibilidades oferecidas por um currículo irónico não-re-
dentor, livremente negociado, o Estado educacional gerencial prende
seus membros em relações de crescente dependê ncia, através de uma
maquinaria de credencialismo e exames constantes. Assim, escritores
como Christopher Lasch e Philip Rieff tê m metaforizado o ocidente ou

123
'
F
1

mais precisamente a California como um teatro hospitalar no qual


pacientes cada vez mais narcisistas, em vez de cidadãos, recebem
conselho de uma variedade de terapeutas fornecidos pelo Estado. Essa
ger ê ncia terapê utica, não apenas de narcisistas psicológicos, mas dos

nismo, anti- racismo — —


novos movimentos sociais que lhes dão legitimidade ecologia, femi
é incompatível com uma reinventada polis
-
pós-moderna de pluralistas cosmopolitas. Esses movimentos buscam
uma transformação fundamental do “ paradigma da vida ” , uma trans
formação que, em ú ltima instâ ncia, entra em conflito com as modestas
-
possibilidades de uma política e uma educação limitadas.
Esse novo fundamentalismo e a certeza identificatória que ele
oferece aos inseguros narcisistas é “ a má consciência da condição
pós-moderna flagelando-se a si pró pria por sua excessiva indulgência
para com o relativismo” . A retribalização potencial da polis pós-moder -
na exigiria uma gama crescente de intervenções governamentais para
distribuir e equalizar as reivindicações de prolif érantes soi-disant comu-
nidades. Um tal desenvolvimento veria a substituição final da tradição
ocidental da educação liberal e do espaço político e pedagógico que
aquela permite por uma preocupante política pós-moderna de adminis -
tração e segurança.

Conclusão

Para concluir, tentemos sintetizar uma sé rie de temas. Claramente, o


perspectivismo da pós-modernidade coloca em dúvida o racionalismo
da ci ê ncia educacional e questiona a virtude necessá ria do desenvolvi-
mento racional. Ao fazer isso, ele volatiza a natureza do poder obscu
recido pelo empreendimento funcionalista e, em particular, chama a
-
atenção para a forma pela qual o espaço da sociedade civil foi desenhado
pelo discurso liberal para criar um dom ínio de educabilidade e gover-
namentalidade.
Essa desconstruçã o també m oferece recursos para uma pedagogia
pós-moderna criticamente orientada. Essencialmente, a desconstrução
é cé tica. E inerentemente desconfiada de todos os projetos visionários.
Eles, na melhor das hipóteses, terminam em desastre, e na pior, no
gulag.
Reconhecendo a impossibilidade de cientificizar a sociedade ( pla-
nejar o futuro) e o fim do projeto iluminista como um progresso
universal em direçã o à razão, a desconstrução anuncia uma nova
condição pós-moderna. Em termos educacionais, assim como em ter-
mos políticos, ela é relativista e historicista. Não pode haver nenhuma
reivindicação extra-histórica ou racionalizada a uma verdade fora de
uma prática histórica condicional e necessariamente contingente.
Reconhecer isso, entretanto, não leva ao desespero. A educação
pós-moderna deveria ser a “ ciência gaia ” (Nietzsche) abraçando as

124
possibilidades imaginativas que a contingê ncia oferece. Uma educação
apropriadamente pós-moderna torna-se uma proped ê utica a uma lin-
guagem que constitui a unidade comunicativa da polis moderna.
Em outras palavras, a pós- modernidade convida a uma resposta
pluralista à condição contingente que anuncia. Como tal, ela oferece
espaço para uma interrogação inteligente de práticas passadas e uma
resposta imaginativa a novas contingê ncias. Uma educação comunica-
tiva não-redentora é central à pol ítica comunicativa da pós-modernida-
de.
Como seu pluralismo e relativismo sugerem, uma nova pedagogia
será aberta, em uma era de globalização, a contribuições e pr áticas
culturais de tradições alternativas ou diferentes (confucionismo, isla-
mismo, etc.).
Ela deve resistir, entretanto, a um recuo à tirania de uma verdade
ú nica, científica, religiosa ou essencialista. Reconhecendo que o eu é
essencialmente contingente e um construto das linguagens que habita e
modifica, a pedagogia pós-moderna é irónica e aberta. Ela nega uma
natureza ou um essencialismo absolutista.
A desvantagem preocupante de uma nova ordem mundial sem
ideologia é o recuo ao fundamentalismo, seja de cará ter étnico, seja de
car áter religioso. O pós- modernista necessariamente se oporia a uma
tal degenerescê ncia. O reconhecimento do cont ínuo problema do poder
numa pós-modernidade cética, ironica e distó pica tem tornado possível
uma renegociação das já limitadas possibilidades da educação numa
pós-modernidade cosmopolita ou um gerenciamento pedagógico alter-
nativo de soi-disant comunidades fundamentalistas.

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Este ensaio foi escrito especialmente para o presente livro.


Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.
David Martin Jones é Professor do Departamento de Ciências
Pol íticas da Universidade Nacional de Cingapura.

126
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7
Frank Pignatelli
Que Posso Fazer? Foucault e a Questão da
Liberdade e da Agência Docente

do uso generalizado do trabalho de Michel Foucault, tanto na


Aípesar
ducação quanto fora dela, existe pouco reconhecimento entre
acadêmicos e intérpretes de seu pensamento de que a questão da
liberdade era uma de suas preocupações centrais.1 Isso não é surpreen-
dente, dada a falta de atenção que o próprio Foucault concedeu a esse
tema em seus escritos e entrevistas. Além disso, a força retórica da escrita
de Foucault, seu estilo densamente descritivo e a natureza urgente dos
tópicos que ele resolveu tratar conduzem o leitor para um conjunto
limitado, estreitamente controlado, de questões centradas em torno de
situações específicas, problemá ticas, tais como o tratamento do insano
ou do criminoso, a conduta sexual e as práticas éticas. O desafio é, pois,
duplo: aproximar aspectos de seu pensamento que demonstram quão
central era realmente sua preocupação com a questão da liberdade e
extrair sua implicação para questões mais próximas
ensaio, a questão da agência2 docente.

no caso desse

Embora o trabalho de Foucault possa ser considerado com um alto


grau de interesse por educadores atraídos por sua forte e vívida crítica
às teorias e práticas sociais e políticas modernas, ampiamente centradas
em torno de questões de poder, saber e discurso, parece-me que
Foucault é mantido a uma distância respeitosa por aquelas mesmas
pessoas quando elas se voltam para o projeto de articular e identificar
uma práxis libertadora e exortar outros a fazer o mesmo.3 Alguns, muito
provavelmente, podem ser repelidos por seu ceticismo filosófico e sua
presença auto-anuladora, evasiva, autorial. Para esses educadores, ver
as condições presentes e possíveis através das lentes da justiça social

1 Uma exceção se destaca. Veja Rajchman, 1985, 1986. Veja també m Miller, 1993,
uma irresistível biografia de Foucault, uma biografia que trata da centralidade da
liberdade tanto em sua vida quanto em sua obra.
2 A palavra agency (traduzida aqui por agência) é usada na literatura sociológica
anglo-saxônica para salientar o elemento ativo da ação humana.(Nota do Tradutor).
3 Veja, por exemplo, Beyer e Liston, 1992; Giroux, 1991, pp. 79, 82; e McLaren,
1986, p. 391.

127
?PV':

exige, no mínimo, imaginar e nomear um futuro melhor, mais justo.


Esse otimismo não se encontra em Foucault. Não obstante, acredito que
o projeto de liberdade de Foucault, tal como eu o entendo, pode inspirar
a discussão atual sobre a reforma e a reestruturação educacional,
particularmente na medida em que pode iluminar o papel crucial que
o professor, como um l íder educacional, pode exercer na tarefa de
efetuar mudanças profundas na forma como as escolas funcionam.
Como um educador de professores, minhas preocupações imediatas
são, em primeiro lugar, que os esforços de reforma e reestruturação que
se dirigem aos professores não se percam em configurações totalizado-
ras, grandiosas, do que significa, para os professores, “ fortalecer seu
poder ” ( to be empowered ) ou exercer sua agê ncia e, em segundo lugar,
que os pr óprios professores deveriam ver esses esforços de reforma
como importantes oportunidades para desenvolver e enquadrar estra-
tégias críticas contínuas que não apenas contestem arranjos estruturais
in íquos prevalecentes, mas que també m examinem sua pr ópria cumpli-
cidade nesses arranjos.
O pensamento de Foucault oferece compreensões e perspectivas
que podem ajudar a lidar com essas preocupações. Seguindo Foucault,
podemos dizer que o problema da agê ncia docente (centrado na ques-
tão: “ Que posso fazer ? ” ) está centrado na forma como o poder, a
identidade, a subjetividade e a liberdade se interseccionam e se influen-
ciam mutuamente.

A Prática da Liberdade, o Poder e a Subjetividade

Foucault levanta questões sobre as circunstâ ncias presentes, num dis-


curso profundamente educativo, embora sutil. Ele descreve o que n ós,
hoje, podemos considerar como improváveis modos de existê ncia. Por
exemplo, ele se baseia no esteticismo da ética e da pol ítica greco-roma-
nas; no “ dandy ” baudelairiano, “ que faz de seu corpo, de seu compor-
tamento, de seus sentimentos e de suas paixões, de sua pr ó pria
existência, um trabalho de arte” (Foucault, 1984, pp. 41-42); na “ vida
da desrazão ” observada e admirada nas obras de vá rios artistas “ loucos”
( Foucault, 1973a, pp. 259, 269) ; e numa crónica macabra, sangrenta
da execução de um criminoso (Foucault, 1979, pp 3-5 ). Esses não são
modelos ou modos de existê ncia os quais somos convidados a abraçar
ou a rejeitar. Em vez disso, são todos posicionamentos ou pontos de
referência possíveis, a partir dos quais se pode construir uma resposta
àquilo que Foucault considera ser nosso atual perigo e onipresente
ameaça à liberdade: a prática auto -normalizadora, com a qual ele quer
denotar nossa disposição a aceitar e internalizar limites questionáveis
em relação ao que podemos conhecer sobre n ós pró prios e à forma
como podemos agir como uma condição natural ou inevitável. A
estratégia de Foucault consiste em nos provocar a desenvolver nossos

128
1

próprios projetos de liberdade, tendo em vista esse perigo insidioso e


freq úentemente n ão-reconhecido da vida moderna.

O Sujeito Obediente

Foucault chama nossa atenção para operações semióticas corriqueiras


— “ pequenas técnicas de notação, de registro, de constituição de
arquivos, de arranjo de fatos em colunas e tabelas que nos são tão
familiares” — e as vincula a questões de profunda importâ ncia (Fou-
cault, 1979, pp. 190-91). O sujeito obediente é produzido e sustentado
por um poder pouco notado e dif ícil de denunciar: um poder que
circula através dessas pequenas técnicas, numa rede de instituições
sociais tais como a escola. Em geral, pr á ticas tais como o exame e outras
— —
pequenas técnicas tabelas, gráficos, formulá rios fabricam e fixam
(objetificam ) o indivíduo e sua diferença à medida que acumulam e
ordenam uma massa de significações. Ningué m escapa ao pr óprio
posicionamento nessa operação eficiente, produtiva, em forma de rede.
Treinados para olhar o desviante (e é isso que deles se espera), os
profissionais re ú nem informações sobre toda forma de serviço execu-
tado para restaurar o desviante ao estado normal. Não é surpreendente
que a responsabilização ( accountability ) cresça com a distâ ncia em
relação à norma. Isso é evidente, por exemplo, nas respostas cuidado-
samente reguladas e vigilantes dos sistemas escolares em relação aos
estudantes considerados como em “ risco ” de abandonar o típico pro-
grama escolar de 180 dias por ano e 6 horas por dia [Estados Unidos],
estudantes que ficaram bem para trás, academicamente, em relação a
seus colegas, com base em instrumentos padronizados de avaliação; ou
estudantes que exibem um padrão de comportamento social inaceitável.
Cada vez mais, é també m visível na crescente avaliação e regulação
pú blica daquelas escolas que consistentemente fracassam em demons-
trar progresso em suas respostas a essa espécie de preocupa ção.
Além disso, o sujeito obediente, como uma realidade fabricada,
existe em diferenciações m ú ltiplas (Foucault, 1979, pp. 194, 198 ). Ele
adquire, através de operações disciplinares, uma coleção de hierarqui-
zações e ordenações divisó rias. Assim, a superf ície sobre a qual o poder
opera é ampliada no processo de produzir indivíduos segmentados,
permitindo um aumento na quantidade de poder exercido. As observa-
das visibilidades do sujeito são a medida de um poder que se move a
fim de disciplinar. Enquanto somos produzidos, não somos meramente
um artefato ossificado do poder e do saber. O sujeito é uma presen ça
plástica, uma resposta urgente à desordem, tanto no sentido terapê utico
quanto no pol ítico.
Em sua fase intermediá ria, exemplificada por Vigiar e Punir, Fou-
cault retorna a uma preocupação que ele tinha tratado em seu livro As
Palavras e as Coisas: as condições que permitiram a emergência das

129
r 1
Ciê ncias Humanas ( Foucault, 1973c). Entretanto, ele agora pergunta:
“ Isso [a emergê ncia das assim chamadas pequenas técnicas] representa
o nascimento das Ciê ncias do Homem ? ” , pergunta à qual ele responde:
“ Ela deve ser provalmente encontrada nesses ignóbeis arquivos, onde
o exercício moderno da coerção sobre os corpos,os gestos e o compor-
tamento teve seu in ício” (Foucault, 1979, p. 191). Para Foucault, as
disciplinas das Ciê ncias Humanas verificam, complementam e tentam

aperfeiçoar essa moderna forma de poder um poder que se agrupa
em torno do “ homem calcul ável ” e o constitui (Foucault, 1979, p. 191).
As Ciê ncias Humanas estão enraizadas e imersas num clima político-
histórico no qual o pensamento é inevitavelmente ação. Elas não podem
nem recuar a uma posição de neutralidade, com outros decidindo como
usar os frutos de seu trabalho, nem estar simplesmente a serviço de
nosso bem-estar; nem abandonadas meramente a observar o indivíduo
a fim de reunir informações e comparar, nem a curar e iluminar.
O sujeito obediente está situado como um ponto de referência
sobre o qual uma rigorosa e incessante “ interrogação” é traçada. O
exame, por exemplo, é uma disciplina “ sem limites” , imbuída de uma
“ curiosidade impiedosa ” ( Foucault, 1979, p. 227). O sujeito é subme-
tido ao olhar: “ Ele é visto, mas não vê; ele é objeto de informação,
nunca um sujeito na comunicação” (Foucault, 1979, p. 200). O indiví-
duo é um objeto disciplinado formado por uma “ pol ítica de coerções
que agem sobre o corpo” (Foucault, 1979, p. 138 ).
Na medida em que o corpo é coagido (isso não é sinónimo de
“ explorado” , pois não é uma questão de tirar, mas de investir no corpo
através da aplicação de vá rias técnicas disciplinares), ele possui uma
“ capacidade aumentada” (Foucault, 1979). Mas na medida em que é
também obediente, o corpo é destituído de seu poder para ser politica-
mente eficaz, para ser diferente. A consciência não é mais o ponto de
origem ou a posição privilegiada a partir da qual o sujeito pode observar
e refletir sobre as representações que possui a fim de saber e agir. Como
explica Cleo H. Cherryholmes: “ O poder molda e informa nossa
psique. O resultado é que n ós somos objetos de instituições e processos
sociais quando intencionalmente nos envolvemos numa ação” (Cherry-
holmes, 1988, p.35).
Foucault parece nos colocar num impasse: supor a operação de um
sujeito autónomo, auto-regulado nos torna incapazes de reconhecer,
refletir sobre ou resistir às manipulações metódicas, mas anónimas, de
um poder que silenciosamente, eficientemente, profundamente, con-
trola. Mas, então, como será possível a ação ?

A Possibilidade de Liberdade

As revelações de Foucault parecem desatentas em relação ao lugar da


agê ncia humana, parecem não ter qualquer consideração expl ícita sobre

130
ela, no sentido, por exemplo, em que Anthony Giddens fala de agência
humana em sua teoria da estruturação. Para Giddens, a capacidade
humana é a “ possibilidade de que o agente pudesse ter agido de outra
forma” . Foucault silencia a respeito desse tema (Giddens, 1982, pp.
8-10). Da mesma forma, ele não presta atenção alguma ao fato de o ser 1

humano ter a capacidade de conhecimento um amálgama de cons-
ciência prática e discursiva e inconsciente. Embora Giddens reconheça
o caráter “ constrangido” da agê ncia humana, ele não está disposto a
fazer desaparecer o sujeito humano ou a imergi-lo num regime discur-
sivo manipulativo. Alé m disso, há a crítica de Frank Lentricchia de que
Foucault postula um “ supermaterialismo” pelo qual
o controle do espaço e do tempo do trabalhador [ou, para nossos
propósitos aqui, do professor], através da manipulação detalhada de
seu corpo, significa o controle de sua mente. A consciê ncia é reduzida
ao corpo (Lentricchia, 1981, p. 52).

Para esses críticos, a insistente e inexorável exegese de Foucault parece


levar a uma posição desesperada, desesperançosa. Por exemplo, quererá
Foucault dizer que todo conhecimento sobre os seres humanos é um
instrumento de subjugação, o objetivo de uma vigilâ ncia cada vez mais
detalhada ? Eles o acusam de operar num vácuo teórico que contorna a
consciê ncia crítica, mas incessantemente descreve os horrores de uma
circunstância presente que está organizada em torno da imagem da
prisão “ como um exemplar do poder como disciplina” (Giddens, 1982,
p. 223). E verdade que a sociedade inteira funciona como uma prisão ?
Qual é o centro do argumento ? E onde se coloca Foucault ? Pois não é
apenas uma questão de não ser capaz de encontrar uma linha de
resistê ncia nos seminais trabalhos de Foucault; é també m uma questão
de não sentir a luta que o próprio Foucault está disposto a travar, dada
a preponderâ ncia da evidê ncia que ele re ú ne e as sombrias conclusões
a que ele chega.
No quadro foucaultiano do mundo, conflito e dor são descritos,
mas não se trata do sofrimento de uma pessoa presa na batalha. A
venalidade, a ambição, a cupidez e o barbarismo dos poderosos estão
dispersos ou “ enfraquecidos” por um conjunto de circunstâncias nas
quais o poder personalizado, “ sustentado” , confunde-se com formas
circulantes, anónimas de discurso. Enunciados tornam-se movimentos
reativos, analisados de acordo com um campo de poder; crença pessoal
e questionamento moral sério transformam-se em traços num jogo que
sustenta aquilo que Walter Van Rossum caracteriza como “ o terror do
significante” (Rossum, 1986, p. 183).
Além disso, Foucault, como autor, está distanciado da dor que ele
relata. Ele não supõe responsabilidade pessoal, nem advoga qualquer
convicção política em seus textos, como base de suas provocativas
iluminações. Essa austera análise das práticas discursivas não deixa

131
espaço nem para a especulação/teorização política nem para o risco
pessoal.4 Pode-se argumentar que Foucault parece se colocar, tanto
pessoal quanto politicamente, fora da narrativa. Entretanto, quero
argumentar que a tentativa para se estender para alé m dessas narrativas
ou acima delas ( para falar de uma posição “ iluminada” ), através do
discurso, significaria ao mesmo tempo contradizer seu relativamente
modesto projeto e contribuir para reforçar precisamente aquilo que ele
pretende denunciar. Como narrativa libertadora "‘seu discurso seria,
como Frederic Jameson disse em outro contexto, um “ sintoma da
situação que ele busca diagnosticar ” (Jameson, 1984, p. xi ).
Essa tendência em Foucault pode ser vista como uma ilustração da
análise que Jean -François Lyotard faz das formas narrativas. Os meios
pelos quais o conhecimento científico e os movimentos sócio-políticos
são legitimados (através do argumento e da deliberação) e formados
(em torno do consenso da comunidade ) são fundamentalmente, prag-
maticamente, incompatíveis com o do conhecimento narrativo, a des-
peito do fato de que a ciê ncia tem sempre confiado na narrativa para
legitimar a si pró pria. A posição de Lyotard, tão freqiientemente citada,
está longe de ser provisória:

Defino o pós-moderno como incredulidade em relação às metanar-


rativas... A função narrativa está perdendo seus atores, seu grande
her ói, seus grandes perigos, suas grandes viagens, seu grande objeti-
vo. Ela está sendo dispersada (Lyotard, 1984, p. xxiv).
Uma dessas grandes narrativas, a que consiste na libertação da humani-
dade, continua a sustentar uma nostálgica “ retórica da libertação” que
fortifica, por exemplo, a esperança na realidade de um ego coerente
que teria sido parcialmente perdido ou reprimido e que continua
simplesmente fora do alcance. Uma outra narrativa, que funciona de
forma similar, baseia-se na esperança e nas expectativas de que as
Ciências Humanas melhorarão a condição humana ou na possibilidade
de os agentes humanos se engajarem em ações comunicativas ideais,
transparentes, que evitem as relações de poder.
A forma narrativa, em seu apelo aos aspectos universais, básicos,
da vida humana, arrisca apagar ou, ao menos, trivializar o particular, o
idiossincrático e o culturalmente determinado. Em seu lugar, ela sugere
a possibilidade ou esperança da autenticidade e da libertação, de se
chegar, em algum ponto futuro, a algum último e feliz destino para além
do poder, da estrutura, da ideologia e mesmo do pr ó prio discurso. Além
disso, não é simplesmente o sujeito falante de uma ou de ambas essas
narrativas que é suficiente para que o intencionado e o imaginado possa

4 Estou me restringindo aqui às principais investigações que Foucault conduziu sobre


a loucura, a clínica, as prisões e a sexualidade, assim como aos seus estudos
arqueológicos sobre as formas de conhecimento. Nem sempre é assim com as
entrevistas.

132
f

ocorrer. Para que as possibilidades redentoras do discurso tenham fruto,


o eocpert ou o analista (o professor, por exemplo) deve ser incorporado
na busca... o personagem que interpreta nosso desejo, afirma nosso
status na narrativa e confirma o que é essencial. A pr ó pria incredulidade
de Foucault está construída contra esse “ incitamento ao discurso” 5 que
se propõe a ser emancipatório e autenticador, mas, em seus efeitos, na
verdade, monitora, categoriza e regula o comportamento.
Esse tipo de incredulidade forma a base de um importante modo
de crítica para os educadores, na medida em que tratamos das conse-
qiiê ncias potencialmente opressivas de nossas palavras e ações. Relem-
brando John Dewey, isso sugere uma estratégia para orientar nossa
compreensão daquilo que significa uma ação responsável, ao “ localizar
a base da confiabilidade nas conseqiiê ncias futuras ao invés de nas
condições causais antecedentes” (Dewey, 1960, p. 264). E isso pode
levar os educadores, tanto como elaboradores, quanto como objetos
das Ciências Humanas, a continuar fazendo, com Richard Rorty, as
“ perguntas práticas sobre se devemos conservar nossos atuais valores,
teorias e práticas ou se devemos substituí-los por outros” (Rorty, citado
em St. Maurice, 1988, p. 222). Um local apropriado para um projeto
de liberdade, Foucault parece sugerir, é a á rea das Ciências Humanas.
O conhecimento do homem gerado nas Ciências Humanas é demons-
tração de preocupação p ú blica. Ele disciplina na medida em que
constitui e monitora de forma eficiente: o delinquente, o evadido, o
oficializado, o pervertido são marcas politicamente investidas ao longo
de um contínuo de classificações atribuíveis e identidades fixadas. O
confessional “ Eu” é ao mesmo tempo o meio e o fim de uma tecnologia
de poder que se baseia nessas identidades e se movimenta em seu
interior.
A “ ausê ncia” de Foucault deve ser situada no interior dessas
preocupações de dominação autorial e na forma como sua pr ó pria
recusa pode estar presa num discurso fixador de identidade, num
discurso de sua pr ópria fabricação. Ele leva muito a sério os conluiados
vínculos entre significado e ser. Ele parece implicar que uma estratégia
crítica pode ser formada em torno do questionamento do valor freq üen-
temente atribu ído à identidade, por causa de suas afiliações com
mecanismos de poder e saber. Tal como ele o expressa, estamos numa
dupla cadeia pol ítica, que é a individualização e totalização simultâ-
nea das modernas estruturas de poder... Temos que promover novas
formas de subjetividade através da recusa desse tipo de individuali-
dade que nos tem sido imposta por muitos séculos (Foucault, 1983a,
p. 216 ).

5 Para uma descrição histórica feita por Foucault desse “ incitamento” , veja o capítulo
“ The Incitement to Discourse” , Foucault, 1980a,pp. 17-35.

133
Isso é o máximo a que chega Foucault no sentido de forçar sua audiência
a imaginar novas possibilidades. Contudo, mesmo aqui ele se abstém
de advogar qualquer posição. Ele nem advoga, nem sugere como fazer.
A estratégia que Foucault sugere é uma estratégia que tenta permanecer
fiel ao urgente tom do ensaio de Immanuel Kant, “ Que é o Iluminismo ? ”
(Kant, 1963). Devemos nos perguntar não “ Quem sou eu ?” , pois isso
leva ao “ sujeito universal e ahistórico” , mas, corno Kant fez, “ Que
somos ? ” (Foucault, 1983c, p. 216 ). Ao formular essa última questão os
professores reconhecem e respondem não à questão de que forma eles
tê m sido internamente dominados e reprimidos, mas à questão da forma
como eles têm sido constituídos e administrados de modo ú til.
Mesmo assim, ainda gostaria de argumentar que Foucault tem um
interesse constante na liberdade, na possibilidade, em ser outro, em
construir condições menos opressivas. Há diversos elementos ou temas
recorrentes em sua obra que demonstram tais interesses. O projeto de
liberdade dé Foucault “ começa” com um desafio resoluto a “ recusar
aquilo que somos” (Foucault, 1983c). Um desses casos ocorre em sua
auto-interrogação (uma forma que Foucault usa também em seus outros
trabalhos) no Pref ácio a seu livro O Uso dos Prazeres. Ele nos diz que
está escrevendo esse livro por causa de uma obstinada curiosidade: “ não
a curiosidade que busca assimilar aquilo que é apropriado à pessoa
saber, mas aquilo que permite à pessoa libertar-se de si mesma” (Fou-
cault, 1985, p. 8 ). De fato, a definição do Iluminismo, extraída de Kant,
que Foucault decide enfatizar e defender é primariamente uma defini-
ção negativa, o Iluminismo como uma Ausgang (uma “ saída” ou “ reti-
rada” )(Kant, 1963, citado por Foucault, 1984). O auto-distanciamento
era uma preocupação tanto pessoal quanto intelectual de Foucault.6 A
pr ática da liberdade depende de uma recusa a basear a pr ó pria ação na
capacidade de ocupar um lugar iluminado ou uma identidade fixa.
O projeto de liberdade de Foucault está enquadrado também por
um profundo ceticismo. Foucault falou de sua obra como um esforço
para “ limitar os domínios do conhecimento” (Foucault, 1989, p. 331).
Para ele, a liberdade consiste numa abertura para possibilidades dife-
rentes, para formas de nos vermos a nós pró prios e a nossas pr áticas de
forma diferente, através de uma tentativa para identificar o arbitrá rio
naquilo que pode aparecer como fundamental ou essencial. Talvez ele
seja particulamente enérgico e desconfiado em relação a práticas dis-
cursivas que se formam em torno de preocupações progressistas e da
humanização de expressões brutais de poder. Isso se reflete em suas
obras principais sobre o insano, o encarcerado e a sexualidade do século
oitocentista. Em grande parte, o projeto explícito de Foucault consistiu
em documentar, como Peter Dews tão apropriadamente expressou, “ as
formas de saber e os modos de controle social característicos da

6 Veja, por exemplo, Miller, 1993, e Foucault, 1989, p. 303.

134
modernidade” que constituem uma forma de subjetividade “ regimen-
tada, isolada e autopoliciada” (Dews, 1984, pp. 91, 77). Os professores
precisam compreender essa forma de controle como uma demonstração
perturbadora da relação inversa entre a prática da liberdade e as
devastações de um olhar que, em parte, é auto-imposto e que molda e
monitora nossa identidade. Foucault quer questionar nossa tendência
a não ver esses processos. Entretanto, é també m importante lembrar
que Foucault estava preocupado em ser mais do que um cartógrafo de
identidades. Um projeto crítico-emancipatório surge através da ênfase
naquilo sobre o qual Foucault deliberadamente permaneceu bastante
evasivo. Seu rigoroso método intelectual, sua impressionante habilidade 1
como escritor que testa a capacidade que tê m as palavras de conservar
seu significado, suas diversas investigações históricas, tudo isso é arre-
gimentado para oferecer aos leitores, simplesmente, a oportunidade
“ para tirar suas próprias conclusões ou deduzir idéias gerais a partir
dessas interrogações... Penso que isso demonstra muito mais respeito
pela liberdade de todo mundo —
essa é a minha maneira de agir ”
(Foucault, 1988, p. 146 ). Para colocar de forma diferente, a prá tica da
liberdade é a luta para continuar preocupado com a presente situação
e condição de forma que a pessoa possa vê-las mais intensamente e
conhecer as próprias circunstâncias mais profundamente a fim de
reconhecer os recorrentes jogos de verdade. Esse efeito, eu argumento,
é crucial para aquilo que estou chamando de projeto de liberdade de
Foucault. Ao mesmo tempo, significa manter, como Foucault diz, “ uma
â nsia desesperada para imaginar , para imaginá-lo [o presente] de uma
forma diferente do que é e para transformá-lo, não destruindo-o, mas
capturando-o naquilo que é” (Foucault, 1988, 1984). Foucault assume
como projeto da modernidade o contínuo projeto de auto-invenção e
não de auto-descoberta, o desafio de surpreender a si próprio, o testar
e reavaliar quem realmente a pessoa é na presença de um imaginar ativo
e produtivo.7
Finalmente, um outro tema subjaz à compreensão de liberdade de
Foucault: o risco. O risco, para Foucault, tem uma espécie de status
duplo. Por um lado, há a atenção que ele concede à transgressão e suas
possíveis conseqiiê ncias, levadas a limites extremos ou ao menos a 1

limites de provação. Isso foi exercitado em sua conduta pessoal, em sua


atividade pol ítica e naquilo que ele considerou ser seu trabalho como
um intelectual. Por outro lado, dada sua preocupação com aquilo que
ele considera ser nosso atual perigo em torno da questão da prática
normalizadora, Foucault, juntamente com Friedrich Nietzsche, está
também preocupado com as conseqiiê ncias associadas com o não se

7 Para mais detalhes sobre esse ponto, aquilo que Foucault chamou de
“ atitude-limite ” , veja Kiziltan et al., 1990, pp. 363-66). Com base em Foucault,
argumento que no ato de ser inventivo e na prática da auto-interrogação n ão se
pode distinguir entre os aspectos negativos da liberdade.

135
w>

arriscar, não arriscar a pr ópria verdade, as próprias crenças. Anterior-


mente, numa discussão sobre os presentes perigos ético-políticos, ex-
pressei essa questão da seguinte forma:
Foucault quer, sim, preservar a possibilidade da agência e de poder
ser de outra forma, de ir contra uma vida construída através de (e
regulada por ) um modo normalizador de prática-discurso. Mas,
frente a uma forma de governo que continua presa no envoltório
naturalista do cotidiano e do obstinadamente invisível, ele também
quer que estejamos conscientes das conseqiiê ncias da nossa escolha
de permanecermos silenciosos e desatentos (Pignatelli, no prelo).
Para Foucault, a pr á tica da liberdade envolve tanto um engajamento
crítico “ interno ” das pr áticas autoconstitutivas quanto um questiona-
mento “ externo” das condições nas quais o eu é constitu ído,v um
contínuo desafio individual e coletivo para construir alternativas. A luz
dos compromissos epistemológicos, pol íticos e éticos que os professores
assumem para moldar aquilo que eles fazem e a forma como eles pensam
sobre o que eles fazem (e os efeitos bastante reais que aqueles compro-
missos tê m nas vidas de seus estudantes, das famílias de seus estudantes
e nas de outras pessoas), um projeto vital de agê ncia docente não pode
se dar ao luxo de permanecer desatento a essas preocupações.

O Trabalho das Ciências Humanas

Sustentado pelas Ciências Humanas, o discurso- prática educacional está


profundamente envolvido na administração de pessoas. Sintetizando
alguns aspectos do pensamento de Foucault, Mark Selman expressa
bem essa relação:
As profissões e as Ciê ncias Humanas criam os conceitos e as normas
que constituem aquilo que significa ser uma pessoa. Elas moldam e
produzem “ humanidade” ... Os educadores, por exemplo, desenvol-
vem teorias sobre como ensinar e controlar melhor os estudantes,
mas eles também desenvolvem instrumentos e justificações que são
usados para determinar o que os estudantes podem fazer e, em última
análise, o que eles pensam sobre si próprios. Os indivíduos acabam
por ser definidos (e autodefinidos) em termos de sua “ distância” de
normas definidoras (Selman, 1988, p. 319).

Atualmente, por exemplo, o r ótulo “ de risco” afixado a certos estudan-


tes, pais e mesmo escolas (e de forma ainda mais importante, por eles
internalizado) deve sua existência a um aparato de poder/saber/identi -
dade. O efeito de uma tal categorização vai bem além de sua utilidade
como um meio para permitir que os profissionais consigam realizar suas
tarefas cotidianas. Constituir a identidade numa forma “ profunda” e

136
estreitamente regulada coloca uma enorme pressão na prática, e até
mesmo na possibilidade, da liberdade. Sugiro que aquilo que Selman
indica a respeito dos estudantes é igualmente verdadeiro a respeito dos
professores. Como Hugh G. Petrie observa, uma dentre duas suposições
(ou ambas) sobre os professores subjazem, em geral, ao processo de
ensino-aprendizagem: ou o professor como um t écnico ou o professor
como um terapeuta (Petrie, 1990, p. 17). Em ambos os casos, uma
estratégia estreitamente pr é-determinada de ações diagnóstico-prescri-
tivas são legitimadas e expressadas na linguagem das Ciê ncias Humanas.
Se o trabalho dos professores (e da pesquisa na qual eles se baseiam )
consistir na otimização de desempenhos eficientes e da restauração da
sanidade daqueles sob sua responsabilidade, isso reduz significativa-
mente o que é possível fazer com resultados que podem ser antecipados
e calibrados. Isso corre o risco de fazer com que os professores sejam
incapazes de examinar aquilo que eles fazem e a forma como eles falam
sobre aquilo que eles fazem, tendo em vista o contexto sócio-pol ítico
mais amplo. Para dizer de forma diferente, o privilegiamento do
trabalho docente ao longo das linhas descritas por Petrie restringe
seriamente qualquer idéia de agê ncia docente que argumente em favor
de um curso de ação aberto, dinâ mico, engajado.
\

A Escola como Regime Discursivo

Incisivamente, Foucault descreveu a escola como um “ bloco de capaci-


dade-comunicação-poder ” (Foucault, 1983c). A escola é um local
disciplinar, um locus de poder/saber num sentido positivo ou constitu-
tivo. As escolas podem ser locais perigosos, não por causa da presença
de formas grosseiras, brutais ou ilícitas de poder, mas porque instru-
mentalidades disciplinares, aparentemente benevolentes, eficientes e
em busca da verdade sobre os professores, suas pr á ticas e seus estudantes
ampliam o domínio autolimitador da normalidade e da marginaliza-
ção/ reabilitação do desviante. Os professores podem perguntar: por que
falamos tão facilmente sobre o fracasso escolar de um estudante, sobre
seu desrespeito para com os professores, sobre seu baixo desempenho
em testes padronizados, sua incapacidade em falar e compreender a
l íngua padr ão, sobre estudantes “ de risco” , e assim por diante, como
constituindo “ comportamentos desviantes” , e muito pouco sobre essas
condições como formas de ação de resistência e como oportunidades
para cultivar a agê ncia discente ? Por que damos tão pouca importâ ncia
à “ recuperação” quando se trata de fazer nossa pró pria avaliação como
professores ? Preocupações com o cuidado e com a busca da verdade
são meios pelos quais relações não-examinadas de poder se imiscuem
em aspectos cada vez mais min úsculos das relações sociais. Os profes-
sores devem evitar, portanto, prá ticas-discursos que essencializem ca-
tegorias de desvio nas mentes dos estudantes, assim como nas suas
pr ó prias, discursos- prá ticas que fazem com que os estudantes interna-

137
r
*'
-
m

lizem e monitorem seu status desviante


pró prios por sua marginalidade.
— na verdade, culpando a si

Foucault e a Agência Docente

A liberdade, para Foucault, está situada numa contestação a formas de


poder inerentes na busca imparcial da verdade sobre nós próprios,
através da aplicação de um rigor científico. A liberdade emerge como
um apelo para recusar identidades opressivas, enfraquecedoras, “ des-
cobertas” através das Ciê ncias Humanas; como um ceticismo para com
agendas progressistas, bem-intencionadas; como um imaginar incessan-
te; como, de fato, um risco. Isso tem importantes conseq üê ncias para
traçar uma concepção de agê ncia docente. Onde a agê ncia é guiada por
preocupações tecnicistas ou terapê uticas, ela continua presa ao trabalho
das Ciê ncias Humanas tal como as descrevi. Para dizer de outra forma,
as verdades obtidas através de um método ordenado, de uma busca
científica e de uma teorização presentiva presdispõem e limitam pro-
fundamente a forma como entendemos e praticamos a agê ncia docente.
Assim, propor uma forma alternativa de pensar a agê ncia docente
implica que os professores encontrem formas alternativas de conhecer
a verdade sobre si pró prios.
Essa busca de uma outra forma de conhecer a verdade sobre si
pr ó prios está explicitamente tratada por Foucault na importante distin-
ção que ele faz entre pesquisar e testar como meios de construir um tal
verdade. Pesquisar envolve o pesquisador-da-verdade numa investiga-
ção sistemática ou coleta de informação. A pessoa descobre verdades
objetivas, verificáveis, replicáveis. Enquanto, claramente, a pesquisa
continua a ser a abordagem dominante em relação à verdade na
sociedade moderna, Foucault está inclinado, em seus escritos, a enfati-
zar a importância do ato de testar. Existe, ele observa, “ toda uma
tecnologia da verdade que a prática científica, passo a passo, desacre-
ditou, encobriu e eliminou. A verdade aqui não pertence à ordem
daquilo que é, mas antes daquilo que ocorre: é um evento” .8 Este
evento, ele explica, é produzido através da luta. É o resultado de uma
provação ou de uma luta, de um desafio seja ele assumido ou imposto
que testa uma pessoa e, portanto, determina sua verdade. Naturalmen-
te, esse é um sentido de “ testar ” bem diferente daquele normalmente
usado em contextos científicos.
Nesse sentido, a agê ncia docente é um empreendimento agonistico,
audacioso, marcado por incerteza, resolu ção e tentativa, um esforço
que pode agir às margens da verdade científica sobre nós próprios.
Como Foucault repetidamente nos lembra e com freqiiê ncia demonstra

8 Foucault, 1980 b, tal como citado em Miller, 1993, p. 271. Essa discussão sobre a
distinção que Foucault faz entre pesquisa e teste se baseia em Miller, especialmente,
269-72.

138
vividamente, os professores não podem nem fugir, nem absolver-se da

violê ncia do discurso sua “ pesada, aterradora materialidade... e seus
vínculos com o desejo e o poder ” (Foucault, 1972, p. 216 ). Assim, o
projeto de se tornar consciente, de praticar a liberdade, envolve um
profundo e amplo julgamento das próprias posições discursivas e
profissionais oficiais como nós ou loci de poder mantidos pela produção
de conhecimento sobre si pr ó prio, sobre seus colegas e sobre seus
estudantes. Seguindo Foucault, argumento que os professores exercem
sua agê ncia presos num complexo paradoxo, tipicamente moderno,
entre sujeito cognoscente e objeto manipulado. Ironicamente, se os

professores testam os limites de “ regime(s) de verdade” 9 por exem-
plo, ao não perguntar “ E verdadeiro ? ” mas, antes, “ Quem quer que seja
verdadeiro ? Quais são os efeitos de dizer que isto é verdadeiro e não
aquilo ? ” — eles minam o chão autorizado sobre cuja base falam. Fazer
tais perguntas força os professores a reconhecer que eles estão não
apenas envolvidos com esses regimes, eles são també m constituídos em
seu interior. Eles não podem nem pretender ter uma posição fixa isenta
das exigências do poder nem advogar em favor de uma tal posição. Isso
nã o reduz tudo à intriga, ao cálculo, à vantagem. Naturalmente, normas
podem e devem existir. Sugerir o oposto significaria reduzir a agê ncia
a uma desorganização dispersa, enfraquecedora. Significaria reduzir a
alteridade a um frágil e descorporificado voluntarismo. Tendo isso em
mente (e levando em consideração o desconforto do pr ó prio Foucault
em ser identificado como um pós-modernista), vale a pena registrar as
observações de John W. Murphy sobre o pós-modernismo e a questão
das normas. Elas se baseiam na noção de agê ncia docente sugerida por
Foucault:
Os pós-modernistas nunca afirmaram que estabelecer normas é
impossível, mas apenas que elas se originam no uso da linguagem.
Para alguns realistas, entretanto, esse an ú ncio equivale a proclamar
o caos. A educação pós-modernista não encoraja a ausê ncia de
normas, mas, de forma muito mais importante, exige que as pessoas
assumam a responsabilidade por sua verdade (Murphy, 1988, p.
182).
A liberdade interpretativa permitida por esse movimento abre o cami-
nho para uma discussão mais ampla, menos privilegiada e mais pú blica
sobre o que é valorizado e quem deve ser ouvido. Não fecha a
possibilidade de um acordo. Ao mesmo tempo, reconhecer a natureza
localizada da própria participação na discussão serve como um lembrete
aos participantes sobre seu posicionamento parcial, perspectivo. A
liberdade de cada um, pois, não é assegurada através do vínculo entre
práticas libertadoras e discursos totalizadores, vagos sentimentos utó-

-
9 Veja, por exemplo, Foucault, 1980d, pp. 112 13 e 131-33.

139
picos (tais como a liberdade como a realização humana mais alta) ou
por leituras universalizantes da história. A análise de Foucault não é
nem niilista nem desesperada. Não advoga a proliferação desconexa de
incursões impensadas ou despropositadas, sem qualquer reconhecimen-
to ou compreensão daquilo que ocorreu. E uma estratégia para profes-
sores que tentam diminuir qualquer justificação pr évia de toda forma
de resistência e retardar a especulação sobre como e quando a liberdade
é exercida ou se sua prá tica é legítima. Ela abre algum espaço para
formas alternativas de pensar e agir em oposição ao presente regime de
práticas tecnicistas nas quais os professores se encontram constitu ídos.10
Essas práticas muito freqiientemente passam como respostas necessá-
rias, como movimentos óbvios em narrativas inquestionadas, dadas
como certas, narrativas que se desenvolvem ao longo de temas como os
seguintes: “ Fornecer a melhor educação para todos” ; “ Todas as crianças
podem aprender ” ; “ A educação assegura o sucesso” , e assim por diante.
Alternativamente, consideremos as implicações, por exemplo, da ques-
tão colocada por Michelle Fine em seu estudo de estudantes evadidos
da escola: “ E se o problema da evasão fosse estudado na escola como
uma cr ítica coletiva feita pelos consumidores da educação ? ” (Fine,
1987, p. 171). As prá ticas tecnicistas sustentam e exacerbam relações
assimétricas de poder nas escolas. Ressuscitar o debate no interior do
qual essas práticas normalizadoras ocorrem é um dos meios pelos quais
a auto-evidê ncia de práticas educacionais potencialmente opressivas
pode ser quebrada. O desafio colocado à questão da agê ncia docente
— —
o pensamento de Foucault parece sugerir consiste em perceber o
quanto um projeto educacional formulado nos termos convencionais
parece girar sempre e indefinidamente em torno dos mesmos e insol ú-
veis problemas, consiste em compreender que os modelos prescritivos
parecem formular apenas as questões que eles estão preparados para
responder, limitando e restringindo, assim, as ações de quem faz essas
questões.

Indo Contra a Corrente Prescritiva

Embora a resistência docente ao poder disciplinar dependa de algo mais


que simplesmente a capacidade do professor para definir e conduzir
seus pr ó prios projetos de pesquisa, eu leio Foucault como estando
muito mais preocupado com o poder e o potencial do trabalho intelec-
tual para sustentar uma pr ática de liberdade e para contribuir para com
a ação de resistê ncia em locais tais como a escola. E precisamente porque
a produção de verdade e a produ ção de poder estão tão entrelaçadas

10 Baseio-me aqui no uso que Foucault faz do termo “ práticas” como “ lugares onde
aquilo que é dito e aquilo que é feito, as regras impostas e as razões dadas, o
planejado e o dado como implícito se encontram e se interconectam” . Foucault,
1987, p. 103.

140
' h - 1

que os esforços daquele que ele chama de “ intelectual específico” são


valorizados como atos pol íticos. Incisivamente (e, talvez, surpreenden-
temente), Foucault fala sobre o trabalho do intelectual (“ tornar-se
permanentemente capaz de autodistanciamento” ) em termos éticos.
Como ele diz: ’’Gostaria que este trabalho fosse uma elaboração do eu
pelo eu, uma transformação esforçada através de um cuidado constante
com a verdade" (Foucault, 1989, pp. 303-4). De forma similar, o valor
de se introduzir o papel da pesquisa na questão da agê ncia docente
supõe que qualquer noção sé ria de resistê ncia docente deve necessaria-
mente enfrentar desafios é ticos e epistemológicos, assim como pol íticos.
Maxine Greene sugere que as Ciê ncias Humanas devem atentar e
responder à diferença, ao particular, ao contexto vivido (Greene, 1984,
p. 292). O saber não-mediado, rigidamente disciplinar tende a restringir
o significado e a fixar a ação correta. Ele também preserva a dicotomia
entre concepção e execu ção, aumentando a deslegitimação e o enfra-
quecimento dos professores nas salas de aula. Uma forma de enfrentar
isso é permitir que os professores façam seu próprio trabalho de campo,
desorganizando tais conseq üê ncias e revigorando o desafio da agência
docente. Embora a pesquisa possa ser valorizada pelos professores, é
pouco comum, em minha experiência como educador de professores e
como ex-professor de escola p ú blica, ver os professores se engajarem
ativamente no processo de construir e administrar a pesquisa. E mais
freq üente que os professores se vejam como consumidores de pesquisa.
Ao mesmo tempo, a pesquisa é usada pelos superiores, consultores
externos e distantes burocratas para justificar mudanças repentinas de
pessoal e de política, as quais afetam os professores de forma muito real.
Portanto, assumir a identidade e a posição de pesquisadores num local
de trabalho com o qual eles estão, tipicamente, muito familiarizados,
dá aos professores um acesso incomum à escola e, de forma igualmente
importante, uma oportunidade para interrogar criticamente seus pa-
péis, seu status e sua identidade. Minha experiência na pesquisa sobre
o ensino sugere que existe um potencial de pesquisa prá tica, localmente
definido e articulado para encorajar e continuamente nutrir a com-
preensão e a prá tica da agê ncia docente. Contudo, a fim de que surja
um contexto mais amplo, sócio- político, de agê ncia, os professores
precisam ver seu trabalho como parte de um projeto mais geral de
construção de uma cultura democrá tica. Patti Lather fala sobre “ chegar
à plena reciprocidade na pesquisa” e sugere os tipos de estratégias de
pesquisa que se prestam e encorajam a “ auto- reflexão e a compreensão
mais profunda por parte das pessoas que estãò sendo pesquisadas” . Vale
a pena anotar sua recomendação:
Entrevistas conduzidas de uma forma interativa, dialógica, que
exigia uma explicitação por parte da pesquisadora, entrevistas se-
quenciais... para facilitar a colaboração e uma investigação mais
profunda das questões de pesquisa; negociação do significado, a qual

141

i.
pus*

implica reapresentar as descrições, a análise em andamento e as


conclusões a, pelo menos, uma sub-amostra das pessoas pesquisadas.
Uma tentativa mais completa de reciprocidade envolveria os parti-
cipantes da pesquisa num esforço cooperativo para construir empi-
ricamente uma teoria enraizada (Lather, 1986, p. 266 ).
Essas estratégias implicam — na verdade, exigem — que a pesquisa
reflita e suporte compromissos tanto pol íticos quanto educativos. Mi-
chael Apple chama isso de “ estudo crítico” e o descreve como
uma forma de pesquisa que deve ser mais que uma mercadoria que
é “ comprada” e “ vendida ” no mercado acadêmico... Ela envolve
ação no mundo real, sobre relações reais de poder. Não é apenas
contemplativa, mas deveria levar a (e partir de) uma ação política
em instituições reais... tais como as escolas (Apple, 1989, pp. 203-4).

Apple e outros sublinham a importância do conhecimento como tendo



valor estratégico em oposição a valor prescritivo. No lugar da tirania
potencial de esquemas administrados, prescritivos, Foucault oferece,
para parafrasear A. Megill, uma espécie de libertação não-visioná ria,
fundada na contestação da ordem existente (Megill, 1985, p. 197). A
falta de um conte údo positivo é mais que uma submissão dionisiaca, um
anseio niilista ou uma apologia em favor do status quo. Dado o projeto
de liberdade de Foucault, eu o interpreto, a esse respeito, como
tentando evitar o fechamento, testar a certeza e colocar diante de nossos
olhos o problema de nossa contingência histó rica em torno de questões
que exercem uma pressão sobre nós. Como responderemos a isso ? Não

há um tratamento explícito dessa questão e isso de forma deliberada.
Foucault nos fornece uma filosofia perturbadora, desorganizadora, uma
“ filosofia de afirmação não-positiva... uma afirmação que nada afirma”
(Foucault, 1977b, p. 36 ).

Que Posso Fazer? A Política Docente num Clima de Reforma e


Renovação

Qual deve ser o pensamento docente sobre a (e no interior da) arena


mais ampla da reforma educacional e dos temas da renovação pes-
soal/profissional ? Ampliando Foucault, que significa para o professor
ser politicamente engajado ?
Em minha opinião, a política sobre o cuidado e o bem-estar do eu
e dos outros tem, essencialmente, três características: ela deve ser
reativa, não- programática e esteticamente informada. Todas as três
características, alé m disso, devem estar baseadas numa contínua atenção
para com a questão da eq ü idade. A intersecção da eqíiidade com apelos
de reforma e de renovação desafia os professores a traçar alternativas,
em cooperação com aqueles indivíduos que tê m sido sistematicamente

142
r
marginalizados e cujas vozes têm sido emudecidas ou silenciadas por
uma lógica da normalidade que reduz as diferenças a déficits. Mas saber
como e quando questões de justiça social devem ser tratadas torna-se
uma questão fundamentalmente importante. Como Daniel P. Liston e
Kenneth M. Zeichner advertem, “ impor uma perspectiva crítica” , seja
num programa de formação docente ou num programa de pós-gradua-
ção, pode, muito provavelmente, ser contraprodutivo ou grosseiramen-
te distorcido. O que é necessário é um respeito pelas pessoas, pelas suas
experiências e suas condições, juntamente com uma discussão oportuna
e uma mediação crítica, à medida que as ocasiões se apresentam.
Devemos aprender a viver na tensão entre a afirmação e a crítica. Tendo
dito isso, gostaria de discutir as três características em maior detalhe.
Uma política foucaultiana é reativa no sentido de que é instigada
por alguma circunstâ ncia problemática que ameaça nosso bem-estar
ético. Como Foucault diz: “ minha posição não leva à apatia nem a um
hiper-ativismo ou a um ativismo pessimista. Penso que a escolha
ético-política que temos que fazer todos os dias é determinar qual é o
principal perigo” .11 Para mim, reagir àquilo que é mais perigoso supõe
que essa ação seja dirigida por uma preocupação com a eqiiidade. Isso
está próximo àquilo que Max Van Manen chama de reflexão crítica.
Liston e Zeichner, baseando-se no trabalho de Van Manen, expressam
isso da seguinte forma:
A reflexão cr ítica incorpora critérios morais e éticos ao discurso
sobre a ação prática. Aqui a preocupação principal está em saber se
os objetivos, atividades e experiências educacionais levam a formas
de vida que são caracterizadas por justiça, eqiiidade e felicidade
concreta para todos e se a atividade docente e os contextos nos quais
ela é levada a efeito servem a necessidades humanas importantes e
satisfazem a propósitos humanos importantes (Liston & Zeichner,
1991, pp. 1678-68 ).
Uma política docente começa como uma orientação dentro das contin -
gências de um problema cuidadosamente delineado que age sobre nós
mesmos como educadores. Entre tais possíveis problemas estarão aque-
les que se agrupam em torno do ethos dominante do controle técnico
dos professores e da gerência científica da educação. Especificamente,
isso abrangeria temas enquadrados como questões de eqiiidade, tais
como: isolamento docente, programação de classe inflexível, desquali-
ficação e intensificação do trabalho docente, avaliações baseadas no
desempenho dos estudantes em testes padronizados, a natureza presen-
tiva do curr ículo, a falta de poder de decisão docente em questões de
administração da escola, e assim por diante. Embora tal “ capacidade de

11 Foucault, 1983b, p. 232. Veia também Albert Camus, 1972, pp. 120-21, para uma
interessante ilustração daquilo que Foucault chama de “ ativismo hiper e pessimista” .

143
resposta” exija tomar uma posição nessas questões, respostas calcifica-
das ou respostas que desencorajam mais diálogo enfraqueceriam aquilo
que acredito ser essencial a uma tal política, a saber, uma provisoriedade
flexível, informada, que permaneça atenta às aberturas e possibilidades
não-antecipadas, assim como consciente do potencial de sua própria
pr ática para marginalizar e obscurecer outras vozes (e também outros
possíveis perigos ).
Uma política docente seria uma prática não- programática. Conse-
qiientemente, agir íamos com um conhecimento parcial daquilo que
estamos fazendo, resistindo ao impulso de vincular nossas respostas a
um plano-mestre dirigido a organizar e explicar uma infinidade de
situações e movimentos. Mas em vez de “ ficarmos parados, olhando
para as coisas inominadas... para aquilo que não pode ser conhecido” ,
tal como o personagem Ishmael de Herman Melville, na descrição de
Greene, arriscamos agir, às vezes, armados apenas com a imaginação e
a paixão (Greene, 1965, pp. 104-5 ). A indeterminação, em certo
sentido, atormenta a ação; uma indeterminação que permanece alerta
às preocupações expressadas por Simone de Beauvoir em sua discussão
daquilo que ela chama de “ o aventureiro” . Ela explica:
Não esperando qualquer justificação, ele, não obstante, se gratifica
em viver. Ele não virará as costas às coisas nas quais não acredita.
Ele procurará nelas um pretexto para uma exibição gratuita de
atividade... Ele gosta da ação pelo prazer da ação. Ele experimenta
prazer em espalhar pelo mundo uma liberdade que permanece
indiferente a seu conte údo (Beauvoir, 1976, p. 58 ).

De Beauvoir ainda argumenta que o aventureiro erra em não ver que


sua liberdade está ligada à liberdade de outros. Esse importante reco-
nhecimento supõe tanto um futuro aberto quanto uma interdependên-
cia que “ impõe limites sobre a ação e ao mesmo tempo dá-lhe um
conte údo” (Beauvoir, 1976, p.60 ). Esse ponto leva à terceira caracte-
rística de uma política foucaultiana.
Os professores precisam ver seu trabalho de uma forma estética.
Ira Shor, por exemplo, situa a questão no contexto do fortalecimento
de poder (<empowerment ) e da pedagogia. Ele discute o fator estético
em termos da “ des-socialização” que deve ocorrer numa estratégia
cr ítica da educação. Como ele diz:

Esse é um processo artístico, revelando temas-chave e pontos de


acesso ao inconsciente e depois recompondo-os numa desestabiliza-
dora investigação crítica, orquestrando um prolongado estudo... A
desmontagem criativa da educação passiva é ao mesmo tempo um
momento esté tico e um momento político porque ela pede aos
estudantes que re-percebam suas compreensões anteriores e que
pratiquem novas percepções como aprendizes criativos com o pro-

144
IT ”

fessor. Talvez possamos nos considerar como dramaturgos quando


reescrevemos os roteiros rotineiros de sala de aula e reiventamos
roteiros libertadores (Shor Sc Freire, 1987, pp. 27-28 ).

Isso exige uma atenção incomum às presentes exigê ncias e possibilida-


des por parte do professor. Significa cultivar uma disposição inventiva.
Ao longo dessas linhas, Greene, baseando-se em Nietzsche, traça um
argumento semelhante:

Ele acreditava que o pensamento deveria ser aprendido como um


of ício, “ como a dança, como uma forma de dança ” e que uma
educação realmente nobre significava ser capaz de dançar “ com
conceitos, com palavras...” . Trata-se de uma visão que enfatiza a
provisoriedade, o movimento, a abertura de perspectiva, a aprendi-
zagem de um of ício (Greene, 1988 ; veja també m Nietzche, 1968, p.
512).
Os professores poderiam assumir o desafio de se engajarem criticamen -
te, tendo isso em mente. Isso significaria ser não apenas comprometido
e solidá rio com os estudantes e os colegas, mas ser provocativo e
desafiador. Não é que uma pol ítica informada pela estética evitaria ou
desencorajaria o consenso e a solidariedade social e, como conseqiiê n-
cia, se reduziria a uma posição auto-indulgente, estática e neoconserva-
dora.12 Pelo contrá rio, ela permitiria e veria o valor potencial de
expressões de resistê ncia —
numa infinidade de situações por parte de

uma variedade de até então an ónimos participantes não apenas com
base na capacidade do sujeito de ser reflexivo (isto é, auto-consciente
de um poder que obstrui e impede sua liberdade ), mas também da
vontade e capacidade do indivíduo para moldar sua existência sob
formas ainda não pensadas e, portanto, ainda n ão dominadas.13 O
importante está em desarranjar a mesmice, a mon ótona paisagem, para
instigar diferentes formas de ver e ser visto. Inventar formas de proble-
matizar a sólida e persistente monotonia de formas rotinizadas e pensar
sobre o que é possível é a forma pela qual o poder, na forma de controle
técnico e prá ticas auto- normalizadoras, pode ser revertido. Aqui, en -
tretanto, outra vez, as advertê ncia de De Beauvoir são ú teis.
Deve-se enfatizar que esses tr ês aspectos da pol ítica docente fou-
caultiana existem interdependentemente, complementando-se mutua-
mente. Ao reconhecer a importâ ncia das considerações esté ticas para
uma pol ítica docente, o professor deve també m prevenir e reagir contra
os perigos de uma afiliação estético-pol ítica incontrolada, na qual as
condições esperam a imposição de uma vontade arbitr á ria que pretenda
12 Para uma crítica desse tipo, dirigida a Foucault, veja, por exemplo, Habermas, 1981,
pp. 13-14.
13 Wolin chama isso de “ decisionismo esté tico” de Foucault; veja Wolin, 1986,
pp.71-86.

145
(re)moldar o contexto social e empregar meios duvidosos para isso. Ou,
para tomar um outro exemplo, a eficiê ncia técnica não é totalmente ou
sempre ameaçadora ou perigosa. Muito dependerá da possibilidade do
grupo que está sendo afetado por uma forma pretendida ou existente
de controle técnico ver como e onde tais esforços podem limitar seu
trabalho e impedir possíveis ações, consideradas importantes ou vitais.
No que se segue, ampliarei minha discussão sobre uma política
docente e sobre o papel dos professores como agentes ao longo de linhas
mais específicas. Não se tratando, de forma alguma, de uma agenda
exclusiva, ela sugere outras implicações de uma análise foucaultiana.
Uma vez que o poder é ubíq íio, a agê ncia docente não reside
exclusivamente numa estrutura organizacional, numa filosofia pedagó-
gica, numa iniciativa política ou num programa educacional único,
ideal. Alé m disso, Foucault entende as relações de poder como “ inten-
cionais e não-subjetivas” (Foucault, 1980a, p. 94). Esta perspectiva
permite-lhe a oportunidade de tratar o poder como uma sé rie de
cálculos racionais executados por insuspeitos tecnocratas locais. As
abordagens que enfatizam o poder local, por exemplo, não levam
necessariamente ao exercício da agê ncia docente tal como desenvolvida
neste ensaio. Isso dependerá muito da capacidade e disposição dos
professores para antecipar e avaliar o impacto de agendas prescritivas
dirigidas por uma l ógica de controle técnico sobre si pró prios e sobre
outras pessoas (especialmente aquelas que tê m, relativamente, menos
poder ). Exatamente como não existe nenhum “ locus ú nico da Grande
Recusa, nenhum centro espiritual de revolta, nenhuma fonte de todas
as rebeliões ou nenhuma lei pura do revolucion á rio” ( Foucault, 1980a,
pp. 95-96 ), Foucault permanece desconfiado da busca pela fonte ou
pelo inventor da opressão. O cará ter anónimo do poder, seu movimento
através e em torno das pessoas, torna in ú til justificar os movimentos
docentes como simplesmente respostas a uma burocracia centralizada,
impiedosa, interessada principalmente em sua própria existê ncia. Os
professores, portanto, precisam reconhecer sua própria cumplicidade e
posicionamento nas condições que contestam. Dada sua situação reco-
nhecidamente provisória, as iniciativas e esfor ços docentes que agem
em nome dos professores exigem um apoio mediado por uma crítica
contínua.
Uma descrição limitada mas típica do poder o vê como uma
mercadoria, como algo transferível, definido, limitado e oficialmente
sancionado. Entretanto, o poder é mais do que aquilo que é oficialmente
delegado e legalmente legitimado. Como Foucault sugere, o poder é
uma relaçã o, incitado e intimamente alinhado com a resistê ncia e a
liberdade. A liberdade tem um caráter intransigente em relação com o
poder. Para os professores como agentes, isso significa que uma rees-
truturaçã o formal das escolas, que aparentemente concede aos profes-
sores mais poder de decisã o, pode ser vista como um movimento que

146
fornece aberturas, mas que deve també m implicar uma resposta e que
será, necessariamente, contestada. A preocupação, aqui, é com o poten-
cial para a desilusão por parte dos “ recé m fortalecidos ( empowered )"
professores, que vêem seus esforços paralisados, subvertidos ou coop-
tados. O que precisa ser estabelecido é uma compreensão da liberdade
como o local para a extensão inevitável do poder. A liberdade, portanto,
torna-se a prá tica de movimentos inventivos, imaginativos, estratégicos,
ao longo de um eixo de poder, movimentos que possivelmente previ-
nem mas não eliminam o exercício do poder. Não se pode agir num
sistema educacional sem estar implicado nesse exercício.
Dada a cú mplice relação entre a construção do conhecimento sobre
os professores, seus esforços e seu local de trabalho através das Ciê ncias
Humanas e a extensão de um poder normalizador por toda a escola, a
agê ncia docente, como uma forma de profissionalização crescente,
também precisa ser questionada e mediada por um conjunto mais amplo
de pressupostos fundados em preocupações de eq ü idade e inclusão.
Dennis Carlson, por exemplo, ao discutir a busca docente por status
profissional, nos lembra que, historicamente, “ os professores eram
empregados pú blicos burocraticamente subordinados, os quais não
tinham nenhum controle especial sobre seu trabalho” . Contudo, a
“ imagem do professor como um praticante semi-autônomo de uma
profissão ou de um of ício qualificado continua a influenciar a cultura
de trabalho dos professores” (Carlson, 1992, p.82, ê nfase minha).
Embora a autonomia profissional possa fornecer uma resposta necessá-
ria aos ditames centralizados, pode levar també m ao que ele chama de

te, penso eu — —
“ conservadorismo ocupacional ” . Ele está preocupado e corretamen-
com a redu ção das questões educacionais a questões
técnicas e científicas, reguladas por uma classe profissional, privilegia-
da, fortalecida por uma burocracia centralizada, supostamente agindo
no interesse do p ú blico.
Como fica, então, a missão democrá tica e o conte údo ético do
trabalho docente ? Como ficam, també m, as histórias e significados
locais “ encobertos e disfarçados sob uma coer ê ncia funcionalista ou
uma sistematização formal ” e aqueles “ saberes ingé nuos, localizados no
degrau inferior da hierarquia, abaixo do n ível exigido de cognição ou
cientificidade” ? (Foucault, 1980d, p. 82). Dada a interpenetração entre
discurso e poder, a análise de Foucault reconhece o possível perigo de
que seu pr ó prio comentá rio e cr ítica (e, por extensão, o comentário e
a cr ítica per se ) sejam uma violência através do discurso que também
eles geram e das prá ticas que sustentam. A questão não é que os
professores precisem (ou mesmo possam ) construir e organizar-se em
torno de um metadiscurso imune de tais condições. Para sublinhar um
argumento feito antes, os professores tanto geram quanto são constran-
gidos pelo discurso oficial. Eles precisam, portanto, reconhecer o
ambíguo status sujeito/objeto que, necessariamente, ocupam como

147
professores e, continuamente, testar e prevenir os efeitos sobre si
pró prios, assim como sobre outros, do discurso que eles utilizam.
À medida que o trabalho docente torna-se menos estreitamente
definido e localizado não apenas na sala de aula, uma política de
identidade docente deve reconhecer os múltiplos posicionamentos de
sujeito que agem tanto dentro quanto entre salas de aula, escolas e
comunidades. Isso supõe que a agê ncia docente opere de formas
variadas, contestadas e que qualquer noção de agência docente guiada
por uma agenda global, unitá ria, é impraticável e inapropriada. Isso
também supõe que as práticas e a retórica arregimentadas para assegurar
a “ autonomia” docente precisam ser substituídas por aquilo que Landon
Beyer chama de “ identidade comunal ” (Beyer, 1988, citado em Liston
& Zeichner, 1991, p. 179). Assim, a empatia, a tolerância em relação
à ambigü idade e a competê ncia comunicativa tornam-se mais valoriza-
das e importantes para a prá tica bem-sucedida da agê ncia docente.
Recentemente, uma professora-diretora (uma identidade e uma posição
que carregam um enorme grau de ambigü idade ) de uma escola p ú blica
alternativa nacionalmente reconhecida falou sobre os professores com
os quais ela trabalha como estando “ presos em seu próprio fortaleci-
mento ( empowerment )” (Matos, 1993). Embora haja uma vibrante
cultura escolar que sustenta e espera aquilo que muitos concordariam
ser um grau invejá vel de envolvimento docente em questões educacio-
nais, definidas de forma bastante ampla, ela registra um nível de
inocê ncia, uma relutâ ncia demonstrada por aqueles mesmos professo-
res, quando se trata de enfrentar as implicações de seu trabalho no nível
local. Por um lado, isso talvez signifique esperar demais desses dedica-
dos e bem-sucedidos professores, que eles ajam num ambiente mais
complexo e, talvez, menos amigável. Contudo, é també m verdade que
sua agê ncia é nutrida através da proteção que lhes é proporcionada pela
professora-diretora e outros advogados externos. Resta- nos perguntar
o que está sendo arriscado por esses professores, quando eles continuam
tão estreitamente centrados na sua escola, quando eles renunciam a
ampliar a esfera na qual praticam sua agê ncia. Sua concepção de agê ncia
perderá sua vitalidade, seu compromisso em favor dos propósitos mais
amplos da educação ? As tensões que, inevitavelmente, se seguirão entre
colegas estarão preocupadas com agendas refinadas e abertamente
cautelosas ? O argumento de Nicholas C. Burbules está bem colocado:
o diálogo entre as diferen ças nã o supõe a eliminação da diferença.
Claramente, a “ capacidade para comunicar-se e coordenar as ações
entre as diferen ças” (Burbules, 1993, p. 29), como ele diz, é crucial-
mente importante para sustentar e revitalizar a agê ncia docente.
Uma questão final diz respeito ao conte údo das maté rias escolares.
Embora Foucault de bom grado admita escrever apenas ficção, isso não
significa que suas “ histórias” não sejam o resultado de um estudo
paciente e rigoroso. Foucault usou seu estudo acadê mico para desman-
char leituras oficiais do passado e para questionar ações supostamente

148
r

progressistas. De forma similar, Foucault escreveu não para redescobrir


ou nos refamiliarizar corn formas de existência ou identidade mais
verdadeiras, mais autênticas e, portanto, mais libertadoras. Uma vez que
o presente nos prende com um poder normalizador que ameaça nossa
capacidade de pensar e de sermos diferentes do que somos, ele escreveu
para desencorajar nossa ambição para fixar aquilo que sabemos e a
forma como devemos agir.
Alé m de contestar o caráter auto-evidente tão freqiientemente
embutido de forma cristalizada nas maté rias ensinadas, os professores
precisam tornar -se há beis em modelar outras possibilidades, outras
narrativas e em sentir-se confortáveis em moldar sua prá tica com base
no condicional “ e se fosse de outra forma ?...” . Tendo dito isso, entre-
tanto, o perigo que sinto é a vulnerabilidade de uma tal posição aos
repetidos ataques de um amplo espectro de pú blicos que, deixando de
lado a melhor das intenções, apontam para o efeito não-progressista
que uma pedagogia que se autodescreve como progressista pode exercer
sobre aqueles em nome dos quais ela supostamente fala. Pois embora
um curr ículo central possa ser arbitrá rio, como admite E.D.Hirsch, ele
ainda conserva, pelo menos, o potencial de acesso a uma conversação
política partilhada para aqueles não usualmente representados (Hirsch,
1988 ). E reconhece, modestamente, realisticamente, a existência de
uma cultura do poder e as possibilidades libertadoras que o fato de ser
um membro de uma tal cultura e conversação implicam. Quanto a
Foucault, não se deve esquecer que ele foi educado de forma clássica e
era um profundo conhecedor da tradição francesa, com a qual depois
rompeu. Segue-se disso que o professor se enfrenta com um desafio
mais complexo, mas importante: Como propiciar acesso a uma cultura
de poder e, ao mesmo tempo, propiciar espaço, recursos e sustentação
para uma* cultura mais diferenciada, hibridizada ?
A questão da agê ncia docente pode ser resumida às compreensões
que os professores podem ter sobre a forma como eles e seus estudantes
falam de forma oficial e são oficialmente interpelados pela fala; à sua
capacidade para des- ritualizar o mundo sem cair no equ ívoco de uma
neutralidade descomprometida. Os professores precisam interrogar e
moldar suas identidades no meio de “ um discurso ritual, eficaz, carre-
gado de poder e . perigo...Que outra coisa é um sistema educacional,
afinal, senão uma ritualização do mundo ? ” (Foucault, 1972, pp. 232,
227). Na prática, isso significa tornar visíveis e problematizar os nexos
de discursos-e- práticas dominantes que sustentam e administram pro-
fessores produtivos, mas dóceis: os livros didáticos que não são ques-
tionados, os esquemas escolares de seletividade, a r ígida alocação do
espaço e do tempo nas escolas, o desencorajamento de projetos coleti-
vos, o parcelamento exclusivo do conhecimento em á reas disciplinares
isoladas. Significa questionar os efeitos de narrativas e de discursos
tecnicamente estreitos. Significa demonstrar, encorajar
até mesmo recompensar — — na verdade,
m ú ltiplas formas de construir significados

149
e obter qualidade. A agê ncia docente existe como uma recusa a se tornar
impensadamente cú mplice e programaticamente fixada a um plano
totalizador e sistemá tico. A capacidade e a disposição a se desligar, a
desorganizar e a sugerir alternativas a um “ modo de controle que impõe
em vez de cultivar o significado” (Giroux, 1988, p. 17) é, num sentido
ï profundo, uma questão educacional e assinalará projetos de liberdade.

Pensamentos Conclusivos: Promovendo Novas Formas de Sub-


jetividade

Como um processo contínuo de autocr ítica, a autocriação implica o


questionamento de nossos limites, a problematização daquilo que
dizemos e da forma como agimos. Produzir a si pr ó prio é uma projeto
contínuo, complexo, que está baseado, sempre, numa visão parcial de
si mesmo. Um professor assim previne e dá as boas-vindas à necessidade
de reavaliar, repensar e reinterpretar sua posição contingente à luz de
novos perigos — o fluxo constante de necessidades burocráticas, o
predizível fluxo de programas e planos novos, melhorados, mais inclu-
sivos. Como diz Nietzsche: “ a interrogação é ela pró pria um meio de
tornar -se mestre e senhor de algo” ; ou, em outro contexto: “ todo
dom ínio de si mesmo envolve interpretação” ( Nietzche, 1968, p. 643;
veja també m Nietzche, 1969, p. 77).
Para o professor a tarefa de interpretar ou moldar a si mesmo deve
enfrentar uma sempre crescente e muito freq üentemente conflitiva sé rie
de pensamentos, desejos e circunstâncias. No centro dessa prática está
a relação professor -estudante. Um ponto pertinente: tem havido um
aumento, ao longo dos ú ltimos vinte anos, na quantidade e no tipo de
pessoal auxiliar introduzido nas escolas, supostamente em apoio ao
processo de ensino-aprendizagem. Não é raro haver equipes terapêuti-
cas compostas de conselheiros familiares, trabalhadores comunitá rios,
conselheiros na prevenção do uso de drogas, psicólogos, avaliadores
educacionais, assistentes sociais, professores especialistas em interven-
ção em casos de crise, especialistas em prevenção de evasão, controla-
dores de disciplina, alé m de orientadores circulando pela escola e
apontando aqueles estudantes de mais “ risco” entre a população estu-
dantil. Espera-se que todos esses “ fornecedores de serviço de apoio ao
aluno” forneçam e enquadrem informações vitais, autê nticas, extra ídas
dos estudantes e de seus significantes outros. Os professores, freq üen-
temente, encontram-se no meio de uma proliferação de discursos
gerados por estudantes e mediados por pessoal oficial. Eles são con-
frontados com (e existem no interior de ) uma rede discursiva moral e
legalmente carregada. Dado esse contexto, o desafio para os professores
consiste em tornar problem á tica qualquer leitura definitiva do discurso
oficial (especificamente, que aquilo que lhes é dito revela algo que é
fundamental ou essencial sobre seus estudantes) para testar aquilo que
não é dito contra esse discurso e encorajar a mesma coisa nos estudantes,

150
Ti -TT1 '

seus pais e outros envolvidos.14 De forma similar, o projeto de liberdade


que Foucault sugere aos professores consiste em recuperar e honrar
aquilo que ele chama de memórias locais, os saberes populares locais,
os saberes desqualificados (Foucault, 1980d, pp. 82-83). Fine chama
atenção para o potencial crítico que existe nessas memórias locais. Os
professores precisam considerar seriamente, mas sem romantizar, aqui-
lo que a autora encontrou:
Os evadidos eram aqueles estudantes que mais provavelmente iden-
tificariam a injustiça em suas vidas sociais na escola e os que estariam
mais prontos a corrigir a injustiça por meio da cr ítica ou da contes-
tação ao professor. Os evadidos eram menos deprimidos e tinham
obtido níveis acadêmicos eqiiivalentes aos dos estudantes que ha-
viam permanecido na escola (Fine, 1982, tal como citada em Giroux,
1983, p. 284).
Se Nietzsche estiver correto quanto à afirmação de que a liberdade diz
respeito a “ facilitar a auto-direção (Nietzsche, 1968, p. 705), Foucault
fornece “ aberturas de jogo” para exercer a liberdade. Com Foucault, os
professores podem, conseq üentemente, desafiar a si próprios: é possível
“ fugir à garra das categorias” (Foucault, 1977a, p. 190), examinar o 1
status contingente da autoconstituição de si e fornecer espaço e susten-
tação para que a mesma coisa ocorra com os colegas, com os estudantes
e com outras pessoas ?15
Num sentido prático, a agência docente está marcada por práticas
an ónimas, ordiná rias, familiares, que agem para fixar aquilo que os
professores fazem e regular as pessoas nas quais eles devem se transfor-
mar. No contexto das tensões das presentes circunstâ ncias que os
posicionam, a prática da liberdade consiste nas respostas inventivas que
os professores sejam capazes de fornecer naquelas circunstâncias con-
testadas, problemáticas, nas quais eles estão situados. Essa não é uma
crítica totalizadora da razão; mas també m não é um esforço haberma-
siano para “ reconhecer a tarefa não concluída da modernidade: o
domínio da razão” (Aronowitz, 1987; veja também Habermas, 1983)
através de uma ação comunicativa não distorcida por relações de poder
e interesses hegemónicos.
Se os professores podem concordar com Foucault que “ temos que
promover novas formas de subjetividade ” (Foucault, 1983a, p. 216 ),
eles não devem também esquecer, como Reiner Schurmann observa,
que Foucault estava agudamente consciente de que “ forças heter ôno-
mas circunscrevem estreitamente o campo da autoconstituição autôno-

14 Como disse Foucault: “ Buscar no discurso... suas condições de existê ncia”


(Foucault, 1973 b, p. 235, tal como citado em Cherryholmes, 1988, p. 161).
15 Foucault trata do respeito à liberdade do outro em “ The Political Technology of
Individuals” , in Foucault, 1988, p. 146.

151
ma” (Schumann, 1986 , p. 303 ) . Num determinado ponto, Foucault
voltou-se para Baudelaire, que, por sua vez, tinha-se voltado para o
trabalho do pintor Constantin Guys, para assegurar-se do que signifi -
cava ser moderno, agir com propósito e poder no (e sobre o) mundo
moderno. Para Baudelaire, diz Foucault, o trabalho de Guy “ não
implica um anulamento da realidade, mas uma dif ícil interação entre a
verdade que é real e o exercício da liberdade” ( Foucault, 1984, p. 41 ) .
Se essa posição parece ser modesta para o professor, é também uma
posição que deixa espaço para o auto-engrandecimento no contexto da
retórica do fortalecimento do poder (empowerment ) docente e da
\ reforma escolar.

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Ensaio inicialmente publicado em Educational Theory , 43 (4 ), 1993 :


411-432. Transcrito aqui com a autorização do autor e daquela
revista. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.
Frank Pignatelli é Professor da Graduate Faculty, Bank Street
College of Education, Nova York.

154

I
8
David Blacker
Foucault e a Responsabilidade Intelectual

IO agora quase axiomático dizer que 1er Foucault é lutar com sua
J-'aparente falta de vontade ou incapacidade para contribuir com
quaisquer sugestões positivas para uma práxis libertadora que, em seus
momentos mais câ ndidos, ele proclama defender. Sua análise de insti-
tuições como a prisão, por exemplo, expõe sórdidas origens, assinala
tendê ncias alarmantes e revela relações de poder e dominação em toda
parte. Alé m disso, ele mostra como as técnicas disciplinares neo-orwe-
lianas aperfeiçoadas na prisão se espalharam como câ ncer por todo o
corpo social — prisões, escritórios e escolas. Entretanto, a despeito
dessa prognose pessimista e talvez até mesmo distópica, Foucault parece
se recusar de forma consistente a identificar ou até mesmo a esboçar
uma cura. E como se Marx tivesse exposto os males do vampiro Capital,
apenas para dar um constrangedor sacudir de braços, quando pergun-
tado: “ Bem, que podemos fazer quanto a isso ? ” .
Acho, entretanto, que essa visão é equivocada. Existe, na verdade,
muita coisa em Foucault a respeito do que “ nós” devemos fazer e como
devemos fazê-lo. Ademais, e esse é um ponto que parece ter ficado
ampiamente esquecido na literatura, o que ele tem a dizer é de particular
relevâ ncia e importância para intelectuais engajados na pesquisa no
interior de um contexto institucional tal como o da universidade
contempor â nea.
Meu esforço para demonstrar isso tem dois aspectos, um negativo
e um positivo. Negativamente, argumentarei que o empreendimento de
Foucault não é, pace alguns de seus mais influentes críticos, um exercí-
cio de ambigü idade e, em última instâ ncia, de auto- refutação.1 Pelo
contrário, mesmo seus mais provocativos “ argumentos” genealógicos
não cometem nenhum faux pas ; embora talvez questionáveis sob outras
formas, não existe nada de formalmente errado com eles. Uma dose de
caridade interpretativa os vê, na verdade, como surpreendentemente

1 Os mais lidos nos Estados Unidos são provavelmente: Taylor, 1985; Habermas,
1990, 1986; Fraser, 1989.

IS 5
1

claros e enxutos — talvez até mesmo ensináveis. Entretanto, meu


argumento não é o de que Foucault adere aos cânones da lógica, formal
ou informal, mas que seus textos contê m, na verdade, portas de entrada
para leitores que não são, nem querem ser, fluentes no jargão da teoria
pós-moderna.
A visão de que Foucault se autodestrói adquiriu um consenso geral
e é até mesmo considerada coisa sabida. Afirma-se que, do ponto de
vista da práxis, os “ argumentos” centrais de Foucault são auto-refutá-
veis porque estã o baseados nos pr ó prios ideais humanistas que, em
outros locais, ele rejeita. Com uma mão, ele quer descartar o projeto
humanista liberal de tornar o mundo mais “ humano” . Mas com a outra,
afirma-se, Foucault parece depender precisamente dessa idéia de huma-
no para gerar o choque, o terror e a indignação que sentimos quando
confrontados com as técnicas de dominação que ele tão vividamente
ilustra. Ele, realmente, se contradiz ? Penso que não, e a primeira parte
de meu ensaio aponta para uma forma de 1er as genealogias de Foucault
que contorna essa acusação, tornando, assim, seu projeto mais acessível
do que freq íientemente se pensa.
Uma vez estabelecido isso, entretanto, ainda resta demonstrar que
Foucault não fica nada a dever em outro sentido: de forma análoga às
acusações levantadas contra os teóricos da “ reprodução” em educação,
argumenta-se que as teorias de Foucault demonstram aquilo que Fre-
deric Jameson chamou de “ l ógica do ganhador que perde” : na medida
em que o teórico de oposição constrói uma explicação totalizante e
fechada da forma como a dominação funciona, seu leitor se sente
impotente; esse téorico ganha ao construir uma “ máquina cada vez mais
fechada e terrível” , mas ao mesmo tempo perde porque o potencial
crítico de seu trabalho é anulado na medida em que todas as estratégias
de mudança social parecem triviais e sem esperança e são, pois, desti-
tuídas de motivação (Jameson, 1984 ).2
Em minha interpretação, entretanto, Foucault acaba por derrotar
essa lógica ao ir al é m tanto da reprodu ção quanto da motivação. Mas
para entender precisamente como ele faz isso, devemos primeiramente
ter uma idéia de seu público
leitores desse autor peculiar.

quais poderão possivelmente ser os

Dada a ê nfase de Foucault na microf ísica do poder, assim como sua


recusa da “ indignidade de falar pelos outros” , está claro que ele deve
ser um tanto cauteloso em suas prescri ções. Mas nesse caso “ cautela ”
não significa silê ncio. Em vez disso, significa uma especificação delibe-
rada do grupo ao qual ele se dirige. Assim, as observações mais concretas
de Foucault sobre ética acabam por referir-se à posição de sujeito a

2 Pode-se questionar um certo pressuposto psicológico dessa crítica, por ex., de que
o determinismo leva à inação. Precisamos apenas lembrar que a visão de mundo
determinista paradigmática, o Calvinismo, nunca teve falta de aderentes
“ motivados” .

156
partir da qual elas são, em geral, enunciadas, a saber, a do intelectual
circunscrito a uma instituição. O caso paradigmático aqui não é dife-
rente daquele do próprio Foucault, “ Professor de História dos Sistemas
de Pensamento” na Sorbonne, isto é, os provedores da pesquisa apoiada
e legitimada no â mbito da universidade.

Um Método na Loucura

O ensaio da fil ósofa estadunidense Nancy Fraser “ Michel Foucault: A


Young Conservative ? ” exemplifica o tipo de crítica sintetizada na frase
“ Foucault não tem nada de positivo a oferecer ” . Foucault, ela argumen-
ta, não pode explicar o “ tipo de julgamento pol ítico normativo que ele
faz o tempo todo — por exemplo, ’a disciplina é uma coisa ruim >
( Fraser, 1989, p. 42). A id éia de que as estruturas carcerá rias ilustradas
em Vigiar e Punir são “ coisas ruins” parece ser relativamente incontro-
versa. Mas por que e como elas vieram a ser percebidas dessa forma ?
Como um outro analista perguntou, quais são as “ raízes da ira de
Foucault (e da nossa) ? ” (Jay, 1986, p. 195 ). A maior parte dos escritos
de Foucault, afinal, parece evidenciar, embora de forma obl íqua, um
forte senso de compromisso ético. Mas, pergunta Fraser, contra que
está ele exatamente e de que está ele a favor ? E quais são seus critérios
para decidir uma ou outra coisa ?
Fraser organiza seu ensaio sobre essas questões em torno de valores
humanistas familiares como liberdade, razão, autonomia, reciprocidade
e coisas semelhantes. E ela argumenta que a forma mais plausível de 1er
Foucault vis-a-vis o humanismo é que ele oferece uma rejei ção radical
baseada em “ fundamentos normativos substantivos” .
O problema pode, então, ser formulado como segue: se Foucault
oferece uma cr ítica descompromissada dos ideais humanistas, então,
precisamente, onde ele se coloca quando os critica ? Como pode ele
dizer qualquer coisa, sem apresentar ele mesmo algo positivo ?
Tem-se sugerido que o autor de Vigiar e Punir, na Verdade, não está
situado em lugar algum; ou, mais precisamente, que ele negou a si
pró prio qualquer ponto crítico privilegiado. Isso ocorre, argumenta-se,
porque nossas respostas à prisão pan ó ptica — nosso terror, raiva,
impotê ncia — estão enraizados nos pró prios ideais que estão sendo
contestados: nós abominamos o encarceramento porque ele nega a
autonomia, o isolamento celular e a vigil â ncia porque eles impedem a
reciprocidade, a reincid ê ncia da delinqiiê ncia porque ela é irracional e
assim por diante. Por essas razões, a posição de Foucault parece se
autodestruir.
Deve-se reconhecer que a crítica acima parte dos estudos genealó-
gicos de Foucault para desenvolver argumentos que tê m alguma susten -
tação. O problema central para Fraser e colaboradores, portanto, é que
Foucault se contradiz a si pró prio; ele tem, ao mesmo tempo, que negar

157
1
!
o humanismo — como ele alega fazê-lo, em outros locais ( Foucault,

1970, p. 387; 1977a, pp. 221-2) e aceitá-lo ( para fazer com que nos 1
sintamos mal ). E como se algu é m argumentasse contra a lógica formal
usando o modus ponens.
Este problema, entretanto, parece ser, afinal, um pseudo-problema.
Na verdade, não vejo como sustentar a id éia de que Vigiar e Punir ou a
História da Sexualidade devam ser lidos como contraditórios. Embora
a genealogia foucaultiana de fato apresente uma sé rie de contradições,
ela não é, de forma alguma, autocontraditó ria. Por que não lê-la,
supondo que se deva 1er a genealogia como um “ argumento ” no sentido
usual, de forma similar à reductio adabsurdum do humanismo ? Por que
não pode ser ela uma cr ítica imanente que torna o discurso humanista
problemático por seus próprios padrões ? Dizer que o humanismo se
contradiz a si pr ó prio não é o mesmo que dizer que o argumento que
demonstra esse fato é ele pr ó prio autocontraditório. Uma tal manobra
seria equivalente a matar o mensageiro de más notícias.
Para Foucault, os ideais associados com o humanismo não são
inerentemente contraditórios, mas a genealogia revela que os atos que
dele resultam parecem sempre desacreditar suas palavras. O discurso
humanista a servi ço da “ reforma” ou do “ progresso” tem com dema-
siada freq íiê ncia sido enunciado a fim de justificar ações profundamente
inumanas; suas conseqiiê ncias práticas demonstram sua falsidade mais
eloq üentemente do que o faria qualquer dose de argumentação. A força
dessa argumentação, entretanto, depende do peso das narrativas empí-
ricas fornecidas. E cada genealogia foucaultiana está repleta desses
exemplos, uma quantidade suficiente dos quais deveria gerar a seguinte
indução: “ Eles nos prometem o ’Bem’, mas as coisas deram errado. Isso
acontece de novo e de novo e de novo. Talvez não devêssemos mais
acreditar em suas promessas” .
Para tornar esse argumento mais concreto, descreverei brevemente
tr ês desses reductios narrativos. Enfatizo outra vez que nenhum desses
exemplos, tomados isoladamente, é suficiente para provar a tese de que
os grandes ideais do humanismo são acompanhados por realidades
inumanas. E o conjunto que convence, uma vez que o padrão parece
estável.
O primeiro exemplo, extra ído do livro sobre as prisões, é de
interesse ó bvio para os educadores: o movimento em direção à “ obser -
vaçã o hierá rquica” e ao “ julgamento normalizador ” que culmina no
“ exame” e é simbolizado por ele. Aqui, a promessa de igualdade formal
entre os indivíduos é o ideal proclamado. Dizem-nos, portanto, que
somos todos “ iguais” . Mas mesmo uma análise r á pida torna óbvio que
os seres humanos, com todas as variações em fisionomia, talentos,
inteligê ncia, etc., podem parecer qualquer coisa, menos iguais.
Mais: o an ú ncio humanista (talvez pudéssemos colocar no seu lugar
“ o reformador progressista ” ) persiste: “ Iguais! Iguais!” . E por um

158

1
complexo processo de inculcação, acabamos por aceitar esse ideal

seja lá o que ele signifique e somos levados à busca desse escorregadio

“ igual ” ; existe uma busca para identificar alguma mesmice subjacente,
algo tido em comum por todos e sobre o qual possamos afixar esse
“ igual” . Na busca desesperada por aquilo que nos torna o “ mesmo” , e
incapazes de encontrar qualquer coisa concreta, prontamente aceitamos
um conte údo dado pelo poder hegemónico. “ O poder abomina o
vácuo” , como dizem. Somos transformados em “ indivíduos” e em
“ casos”— somos obrigados a nos transformar em um ideal externa-
mente manufaturado.
Quando a conformidade torna-se a norma reinante (talvez, inicial-
mente, uma mudança quase impercetível em relação ao ideal da igual-
dade), inicia-se um processo que leva a um alinhamento e a uma
ordenação cada vez mais estreitos de acordo com aquela norma. Aqueles
que se desviam dela devem ser colocados na linha; devem ser discipli-
nados, punidos, submetidos a testes de QI. Dessa forma, são construídas
as categorias de indivíduo “ desviante” e de indivíduo “ normal” : “ o
indivíduo é, sem d ú vida, o átomo fictício de uma representação ’ideo-
lógica’ da sociedade; mas ele é també m uma realidade fabricada por
essa tecnologia específica dè poder que chamei de ’ disciplina’ ” (Fou-
cault, 1979, p. 194). A apoteose desse processo é o “ exame” , esta
novelmente formada “ cerimonia de objetificação” do indivíduo. Aqui,
a pessoa é identificada, diferenciada, classificada e marcada ad infinitum

de acordo com a norma uma norma que nasceu da igualdade.
Em segundo lugar está a figura do delinqiiente — o fracasso (ou
sucesso ? ) do sistema de prisão. O slogan dessa vez é a “ reforma” do
convicto. “ Reformar ” : trazer de volta aquilo que se desviou, curar,
tornar outra vez normal. Em oposição a uma noção retributiva de justiça
penal, espera-se que a prisão humanista liberal “ corrija” , eduque e
reforme o criminoso. Dessa forma, o criminoso e a sociedade são
reconciliados, o primeiro sendo restaurado a seu lugar “ correto” na
segunda. Mas, naturalmente, para um grande n ú mero de convictos, esse
resultado ideal nunca é alcançado. De fato, com muita freq üência, a
situação parece, suspeitosamente, ser a inversa: o pequeno criminoso
transforma-se num expert, o amador, num profissional e o delinqiiente
juvenil, num veterano. As prisões são planejadas para fracassar.
Ocorre, argumenta Foucault, não apenas que os delinqiientes são
“ fracassados” , mas também que eles preenchem uma ú til função: eles
são essenciais à rede carcerá ria que se estende para além dos portões
das prisões. “ Os criminosos são convenientes” (Foucault, 1980a, p. 40).
Eles se tornam cafetões, prostitutas, chantagistas, furadores de
greve e — o que é mais importante — informantes. Esses ú ltimos são
transformados, num “ milieu fechado de delinq úê ncia, completamente
estruturado pela polícia” (Foucault, 198a, p. 42). Assim, um bando
autoperpetuador de figuras ambíguas circula entre a população em

159
geral, sempre escutando, registrando e levando a informação de volta
aos que as mantê m. Longe de reformar ou educar o delinq üente, o
sistema carcerá rio dele depende vitalmente:
desde o final dos anos 1830, tornou-se claro que, na verdade, o
objetivo não era recuperar os delinqiientes, torná-los virtuosos, mas
reagrupá-los no interior de um milieu claramente demarcado, inde-
xado, que pudesse servir de instrumento para fins económicos e
pol íticos. O problema, doravante, não era ensinar algo aos prisio-
neiros, mas nada ensinar -lhes, de forma a assegurar que eles não
pudessem fazer nada quando saíssem da prisão (Foucault, 1980a ).
Da perspectiva da rede carcerá ria, a delinq üê ncia e a reincid ê ncia são
sucessos triunfantes; aquela não apenas perpetua mas estende sua
influê ncia. “ Tão bem sucedida tem sido a prisão que, após um século e
meio de ‘fracassos’ ela ainda existe, produzindo os mesmos resultados,
existindo uma enorme relutâ ncia em dispensar seus serviços” (Foucault,
1979, p. 277).
Nossa terceira narrativa reductio captura no ato a noção de liber-
dade sexual (vinda da “ liberdade” sexual). Foucault contesta a id éia
popularmente sustentada que ele chama de “ hipótese repressiva” : a
id éia de que o poder é essencialmente “ puritano” e, portanto, tem
reprimido e inibido as pr á ticas e o discurso sexual. Somos afortunados
por viver hoje numa “ Era de Liberação Sexual ” , tendo finalmente
superado alguns séculos de “ Idade Média” sexual ; enquanto o passado
r - mais distante é caracterizado por uma certa “ inocê ncia” , os séculos
XVII-XIX dão origem ao “ vitoriano reprimido” . Essa é a id é ia.
Após uma análise geneal ógica, entretanto, fica claro que a era
vitoriana assinala uma profusão em larga escala do discurso sexual
encontramos aí verdadeiras matracas da sexualidade que podem ser

qualquer outra coisa menos inibidas. A sexualidade tem sido, certamen -
te, moldada pelo poder, mas ela não tem sido exatamente reprimida;
na verdade, a situação é quase a oposta : o discurso sexual “ longe de
sofrer um processo de restrição, tem estado sujeito, pelo contrário, a
um mecanismo de estimulação crescente” (1980d, p. 12). O poder tem,
assim, cultivado cuidadosamente o campo da sexualidade.
Mas ele faz sua colheita em uma sé rie de práticas. A proliferação
de rituais “ confessionais” (sintomático da prioridade dada à descoberta
da verdade sobre a pró pria “ profunda e oculta” sexualidade ), por
exemplo, efetivamente inculca a obrigação de çonfessar-se. Usualmente
essa obrigação torna-se manifesta através da manifestação de fluxos de
discurso sexual diante de autoridades propriamente designadas, como
o padre, o conselheiro escolar ou o psicanalista. Descobrir essas fanta-
sias e impulsos soterrados é anunciado como um ato “ saudável ” e até
mesmo libertador e a pessoa, obedientemente, aquiesce, a fim de ser
“ livre” . Entretanto, o tempo todo, o ouvido do confessor está ouvindo

160

j
e registrando as confissões; “ o sexo é açambarcado e como que encur-
ralado por um discurso que pretende não lhe permitir obscuridade nem
sossego” (Foucault, 198 Od, p. 20). Assim, o processo supostamente
libertador de estimular o discurso sexual ajuda a refinar técnicas de
dominação e de forma geral alimenta o moinho disciplinar. Mais coisas
a nosso respeito tornam-se visíveis; tornamo-nos abertos, nus e expos-
tos a graus cada vez maiores de intervenção e penetração institucional.
Além disso, de forma similar àquela pela qual as técnicas carcerá rias
“ colonizam ” outras á reas da sociedade, o imperativo a se confessar se
estende a outras práticas sociais. E a sociedade contemporâ nea arregi-
menta seus recursos para esse fim: “ o sexo tornou-se uma questão que
exige que o corpo social como um todo, e virtualmente todos os seus
indivíduos, se coloquem sob vigilância ” (Foucault, 198 Od, p. 116 ).
Temos, assim, tr ês processos que começam com ideais grandiosos
mas que resultam em realidades basicamente inumanas: “ igualdade-
conformidade-exame ” , “ reforma-delinq üente-informante” e “ liberta-
ção-confissão-controle ” . Desnecessá rio dizer que os produtos finais
dessas tr íades negam os ideais que forneceram o impulso original. Mas
nosso desconforto — na verdade, nossa indignação — com relação a
esses resultados não precisa ser baseado nesses ideais. Tanto o huma-
nista liberal quanto Foucault concordam com o argumento de que a
negação da igualdade e da liberdade é uma “ coisa ruim” .
Entretanto, os dois deixam de concordar a partir daí. Enquanto o
humanista continua a proclamar o ideal em questão, alegando talvez
que o problema será resolvido assim que o ideal for plena e propria-
mente realizado, Foucault não vê razão alguma para tal otimismo, pois
o genealogista é pragmático o suficiente para considerar que conta
contra sua verdade o fato de que um n ú mero demasiado grande de
palavras de ordem humanistas parece ter levado sempre (ou ao menos
com demasiada freq íiê ncia) ao seu oposto. Enfatizo outra vez que, de
acordo com minha leitura, Foucault não “ refutou” o humanismo nem
tentou fazê-lo. Em vez disso, ele pede àqueles que usam seu jargão que
sejam responsá veis pelo legado de decepção de seus predecessores. E,
dada a evidência genealógica, uma resposta confortadora

pedimos que seja convincente parece pouco provável.
— já não

Estive até aqui desenvolvendo a tarefa negativa deste ensaio, isto


é, o argumento de que a genealogia foucaultiana não é autodestruidora.
E deveria estar claro que, uma vez que Foucault oferece um tipo de
reductio contra a retó rica humanista, ele não está obrigado, ao longo
de seu argumento, a oferecer qualquer alternativa positiva. Muito bem.
Mas significaria certamente abandonar seus leitores nesse ponto e
deixá-los numa dif ícil posição. Por que “ problematizar ” , se não se tem
nenhuma idéia de solução ? Assim, o humanismo é uma mentira. Mas e
da í? E de fato justo pedir, juntamente com Fraser, que Foucault diga
“ em termos que sejam independentes do vocabulá rio do humanismo,

161
exatamente o que há de errado com esta sociedade carcerária e por que
se deve resistir a ela” ? (Fraser, 1989, p. 50). Fraser ainda dá a Foucault
a responsabilidade de oferecer “ algum paradigma alternativo, pós-hu-
manista ” para responder à questão que ela coloca. E, na sua visão, ela
conclui que ele não pode fazer isso: um silêncio ambíguo é tudo que
vem da parte de Foucault. Parece que nos resta uma escolha bastante
infeliz: “ entre um paradigma ético conhecido [isto é, uma variante do
humanismo liberal] e um paradigma X, desconhecido” (Fraser, 1989,
pp. 50-1). Deste modo, é objetivo do resto de meu ensaio fornecer uma
resposta para o desafio de Fraser, preenchendo assim o “ desconhecido
paradigma X ” .

Problemas Locais, Soluções Locais

A fim de desenvolver o projeto ético positivo de Foucault devo primei-


ramente fazer alguma menção à sua descrição do que é necessário para
superá-lo e de como super á-lo. Para efetivamente combater a “ rede
infinitamente minuciosa das técnicas panópticas” da sociedade carcerá-
ria precisamos reconhecer que a sociedade industrial contemporânea é
caracterizada por relações de poder radicalmente difusas e localizadas
e que a fonte e os mecanismos de poder não podem ser encontrados em
um local ú nico ou central.
Têm-se escrito e discutido muito sobre os caprichos da teoria das
relações de poder de Foucault. Tudo o que pretendo fazer aqui é
assinalar que sua afirmação de que o poder opera em todos os níveis do
corpo social tem profundas implicações para qualquer pessoa interes-
sada em traçar um caminho viável para a mudança social. Por exemplo,
Foucault contesta a eficácia (e a desejabilidade) do modelo leninista de
revolução: um grupo de vanguarda, em nome das classes oprimidas,
apoderando-se do aparato do Estado e então “ mudando” a estrutura de
poder. Um tal evento pode assinalar uma troca de guarda, mas é pouco
provável que altere a natureza básica do “ regime de poder-saber ”
firmemente estabelecido e mantido pela inércia. Como Sheldon Wolin
sugere, a teoria de Foucault “ exige uma brusca ruptura com as concep-
ções de poder centradas no Estado e, por extensão, com a política
revolucioná ria e radical que se define por oposição ao Estado ou por
sua derrubada ” (Wolin, 1988, pp. 184-5 ).
Uma resposta teó rica muito mais promissora deve concentrar-se na
“ microf ísica” do poder. Uma vez que o poder não é homogéneo e pode
ser abordado apenas em locais específicos de aplicação, não deveríamos
esperar obter uma compreensão teórica útil no nível macro (algumas
vezes Foucault parece indicar que não existe tal coisa como o “ poder ”
em si). Em vez disso, o nível apropriado de aná lise é uma visão
microbiana; o poder deve ser considerado a “ partir de baixo” . Dessa
forma, nas extremidades locais do poder, seu ofuscatório “ vé u de

162
decência administrativa” pode, em grande medida, ser desvestido: “ o
que precisamos é de um estudo do poder em seu aspecto externo,
naquele ponto no qual ele está em relação direta ou imediata com aquilo
que podemos provisoriamente chamar seu objeto, seu alvo, seu campo
de aplicação...” (Foucault, 1980b, p. 97). Esse é um aspecto importante
daquilo que as genealogias tentam fazer.
Isso não significa debater os méritos relativos da “ fenomenologia”
e da “ ontologia” do poder de Foucault (se é que se pode falar nesses
termos). Gostaria apenas de sublinhar dois pontos relevantes. Quanto
ao primeiro, vou deixar o colega e por algum tempo colaborador de
Foucault, Gilles Deleuze, falar por mim:
o privilégio teórico dado ao Estado como um aparato de poder, em
certa medida, leva à prá tica de um partido condutor e centralizador
que eventualmente se apodera do poder de Estado; mas, por outro
lado, é a própria concepção organizacional do partido que é justifi-
cada por esta teoria de poder. O interesse do livro de Foucault
baseia-se num conjunto diferente de estratégias (Deleuze, 1988, p.
30).

A idéia que temos daquilo contra o qual estamos lutando afeta direta-
mente aquilo que nos tornamos quando estamos lutando. É por isso
que é tão importante, de um ponto de vista estratégico, distanciar-se de
teorias de poder centradas no Estado; a “ revolução” política não é
suficiente para efetuar uma mudança profunda e duradoura.
Em segundo lugar, aqueles que pretendem enunciar a emancipação
devem adquirir uma certa modéstia teórica. Dada a (falta de ) natureza
do poder, não devemos esperar ser capazes de dizer muita coisa sobre
ele que tenha valor universal. Se o objetivo é “ uma espécie autónoma,
não-centralizada de produção teórica, isto é, uma produção cuja vali-
dade não seja dependente da aprovação dos regimes estabelecidos de
pensamento” , não dever íamos tentar enunciar um discurso libertador
a partir de uma posição autorizada de sujeito (Foucault, 1980b, p. 81).
Por exemplo, algumas das observações mais incisivas de Foucault são
dirigidas aos teóricos que tentam legitimar suas idéias como “ científi-
cas” ( p. ex., certos marxistas estruturalistas, “ cientistas” sociais de várias
correntes), aproveitando-se, assim, da aura de autoridade da ciê ncia.
Naturalmente, mesmo assim ainda podemos teorizar, desde que esteja-
mos mais do que acautelados contra a “ tirania de discursos globaliza-
dores, com sua hierarquia e todos os privilégios de uma avant -garde
teórica” ( Foucault, 1980b, p. 83). O ponto central é que a perspectiva

163
F"

do teorico, embora ainda importante, não representa mais um locai


privilegiado para a enunciação de um discurso emancipatório.

Estratégias Responsáveis na Política da Verdade

Em vez de esposar a “ verdade” , o papel primário do intelectual de


oposição deveria ser o de combater a forma pela qual ela é arbitraria-
mente manufaturada e disseminada em massa. Esse processo é pré-con-
dição para o (e portanto indispensável ao) funcionamento do poder
hegemónico. O intelectual, qua participante (ou colaborador), está bem
posicionado para se engajar numa tal tarefa.3 As linhas do campo de
batalha devem ser traçadas em torno da “ política de verdade” da
sociedade:
O problema essencial para o intelectual não consiste em criticar o
conte ú do ideológico supostamente vinculado à ciê ncia ou assegurar
que sua pr ópria prática científica seja acompanhada da ideologia
correta, mas em assegurar a possibilidade de constituir uma nova
política de verdade. O problema não está em mudar a consciência

das pessoas ou aquilo que está em suas cabeças mas no regime—
político, económico, institucional da produção de verdade (Fou-
cault, 1980c, p. 133).
Não se trata de uma luta para emancipar alguma Verdade pristina das
distorções impostas sobre ela pelo poder ou pela ideologia, nem de uma
batalha em nome ou em favor da Verdade. Um tal empreendimento iria
contra o espírito de todo o projeto de Foucault; não des-centramos algo
re-centrando algum conjunto novo de slogans universalizadores (sem
conteú do). Em vez disso, como diz Barry Smart, o que precisamos é de
“ um exame crítico das vá rias formas pelas quais governamos a nós e aos
outros através da enunciação de uma distinção entre verdade e falsida-
de” (Smart, 1986, p. 171).
De acordo com sua ênfase em “ ofensivas dispersas e descontínuas”
e com o que ele argumenta ser a “ impressionante eficácia da crítica
descontínua, particular e local ” , Foucault advoga o cultivo de um novo
personagem, o “ intelectual específico” (Foucault, 1980b, p. 80). Este
deve ser contrastado com o “ intelectual universal” , um fenômeno
histórico dos dois últimos séculos, que pretende falar pela consciência

3 O “ intelectual” contemporâ neo pode ser compreendido primariamente como uma


categoria de “ poder-saber ” , em oposição a uma categoria económica ou social.
Assim como as classes na teoria marxista são definidas em virtude de sua relação
com os meios de produção, assim as “ classes” foucaultianas podem ser definidas por
sua posição nos processos de “ manufatura da verdade” .Conseqiientemente, o termo
“ intelectual” pode denotar pessoas em esferas que não a acadêmica, tais como
médicos, jornalistas, advogados ou mesmo administradores escolares
(provavelmente não professores na maioria dos casos).

164
coletiva. O intelectual “ universal” pretende estar situado fora do poder,
contrapondo ao “ poder, ao despotismo e aos abusos da arrogância da
riqueza, a universalidade da justiça e a igualdade de uma lei ideal ”
( Foucault, 1980c, p. 128 ). Pensamos aqui em Locke, Rousseau, Jeffer-
son, Marx. Em contraste, o intelectual “ específico” origina-se de uma
figura bastante diferente: não o “ jurista ou notável, mas o sábio ou
expert” (Foucault, 1980c). Foucault identifica o cientista atómico dos
anos 40 e 50 como um precursor desse novo tipo de personagem cuja
expertise é restrita a um campo particular. Isso não significa, entretanto,
dizer que sua influê ncia é limitada. Pelo contrário, mudanças na confi-
guração poder -saber tem tornado crescentemente possível a situação
paradoxal de que experts em campos específicos, especialmente nas
ciê ncias naturais e aplicadas desfrutem (e carreguem o peso) das conse-
quências bastante gerais que advêm de sua atividade. Assim, embora
mais enredado no poder do que nunca, o intelectual específico adquiriu
uma nova importâ ncia estratégica.
Mas por que Foucault celebra esse desenvolvimento ? Por que se
deve preferir o intelectual específico ? Para responder a essa questão, o
inté rprete deve ir um pouco além daquilo que está explícito em seus
textos. Tendo isso em conta, parece haver em funcionamento dois
princípios que provisoriamente chamarei de “ eficácia” e “ honestidade” .
Talvez não inteiramente surpreendente, como tentarei mostrar, esses
dois princípios traduzem-se em dois momentos de algo muito similar a
uma “ vontade de poder ” nietzschiana atualizada e especificada.
Como afirmou Foucault: “ As pessoas sabem o que fazem; elas
freqiientemente sabem por que fazem o que fazem; mas o que elas não
sabem é o que faz (causa ) aquilo que elas fazem ” (Dreyfus 6c Rabinow,
1983, p. 187).4 Essa simples observação sintetiza de forma clara sua
recomendação estratégica para o intelectual de oposição.
A “ eficácia” , como sugeri acima, baseia-se no princípio da “ trans-
versalidade” ( para tomar emprestada uma palavra de Deleuze) (Deleu-
ze, 1988, p. 91).5 A idé ia é que, ao restringir o escopo de nossa atividade,
freqiientemente ampliamos e aprofundamos as conseq üê ncias ( poten -
ciais) daquela atividade. Talvez o exemplo mais dramático disso e, sob
muitos aspectos, paradigmático, seja o do cientista ató mico. Ao nos
centrarmos na esfera humana mais diminuta à qual os seres humanos
podem ter acesso (p. ex., o sub-atômico), podemos nos tornar “ Des-
truidores de Mundos” , como o f ísico J. Robert Oppenheimer ofegan -
temente afirmou, no campo de testes no qual a primeira bomba atómica
foi detonada. Um outro exemplo, talvez mais prontamente acessível, é
o do médico. Nesse caso, a transversalidade pode ser um teste intuitivo.
Consideremos o cená rio seguinte: esperando uma cirurgia, pede-se que

4 Eles afirmam que essa citação provém de uma “ comunicação pessoal ” de Foucault .
5 Embora haja similaridades, não uso a palavra da mesma forma que Deleuze.

165
1
você escolha entre dois cirurgiões que farão sua operação. Suas opções
são dois médicos credenciados e lhe fornecem apenas umas poucas
informações sobre cada um deles. O primeiro é “ Dr. Renascença” :
culto, de muitas leituras, viajado, bem vestido e bem relacionado. Do
segundo você conhece apenas uma qualidade: sua competência. Acho
que nesse ponto, quase sem discordar, você escolheria o último. Quan-
do a eficácia é mais importante, todas as considerações empalidecem
perante a competê ncia “ específica ” .
Acho que não é dif ícil ver como a transversalidade pode ser

estendida a um grande n ú mero de instâncias e nem todas “ intelec-
tuais” no sentido usual. Enfatizo que essa afirmação não implica que
não se pode aprender ou se beneficiar de alguma outra forma de esfera
que não seja a sua. Mas indica de fato a necessidade de organizar nossos
esforços em torno de um locus específico; “ especializar-se” nesse sen-
tido não é necessariamente compartimentalizar-se. Do ponto de vista
da eficácia, pois, deplorar a crescente especialização da sociedade
contempor â nea significa cair numa nostalgia autodestruidora. A é poca
do aristocr ático “ Homem da Renascença” já passou.
A “ honestidade” tem dois componentes essenciais, que chamarei
de “ atitude de alerta” e “ esforço ” . “ Atitude de alerta” significa prestar
atenção às conseqiiê ncias da pr ópria prá tica teórica; mais especifica-
mente, isso implica uma consciê ncia de como os resultados de nossos
esforços são usados. O esforço é simplesmente a vigilância persistente
e de boa f é exigida para sustentar essa consciê ncia. Deve-se enfatizar
que a honestidade não significa um esforço em direção ao autoconhe-
cimento; não significa uma hermenêutica do eu, nem qualquer outra
busca da verdade sobre si pr óprio. Em vez disso, diz respeito às
implicações de nossa busca da verdade; não auto-absorção, mas uma
atitude de alerta para a forma como as nossas ações acabam absorvidas
pelo regime de poder-saber.
E por isso que Oppenheimer é descrito por Foucault como um
“ ponto de transição entre o intelectual universal e o específico” (Fou-
cault, 1980c, pp. 127-8 ). Apesar de sua pol ítica esquerdista, e embora
ele fosse eficaz, ele não era “ honesto” , no sentido acima. Na verdade,
e com muito poucas exceções (p. ex., talvez, Leo Szilard, o refugiado
h ú ngaro que parecia sensível aos perigos do projeto atómico desde o
in ício), os cientistas do projeto Manhattan que desenvolveram a bomba
eram impressionantemente ingé nuos sobre as ramificações sociais e
pol íticas que suas descobertas poderiam ter. A afirmação de Edward
Teller de que “ não é tarefa do cientista determinar se uma bomba de
hidrogêneo deveria ser construída, se deveria ser usada, ou como
deveria ser usada” representa talvez o modelo dessa des-honestidade
(Boyer, 1985, p. 342).6 Mas mesmo que não possamos perdoar a esses

6 Certamente os cientistas do Projeto Manhattan sabiam que a bomba podia ser


lançada sobre o Japão ou a Alemanha. Sua ingenuidade consistiu em n ão

166
cientistas sua ingenuidade política inicial, há muitos outros exemplos
impressionantes de desonestidade. A cegueira à manipulação e à explo -
ração exibidas por certos anticomunistas “ progressistas” ( p. ex., a
posição assumida na ú ltima parte de suas vidas pela anarquista estadu
nidense Emma Goldmann e pelo filósofo, mistura de marxista com
-
combatente da guerra fria, Sydney Hook, assim como a posição dos
“ Novos Fil ósofos” franceses dos anos 70 ) só pode ser classificada, em
relação à honestidade, como um escâ ndalo. A motivação básica por
detrás da observação de Jean-Paul Sartre de que “ um anticomunista é
sempre um rato” aplica-se com toda força no Ocidente hoje mais do
que nunca.

Um corolá rio importante (ou talvez um fato necessá rio) da hones-
tidade é a observação de Anthony Giddens sobre um dos “ modos
primá rios pelos quais a dominação é ocultada como dominação” : a
“ representação de interesses particulares como sendo universais” (Gid-
dens, 1979, p. 193 ). A fim de sustentar sua legitimidade, o poder
hegemónico inventa a ficção de que representa os interesses “ comuns” .
As iniciativas principais do governo, desde orçamentos até à guerra e
ao holocausto, por exemplo, são quase sempre justificadas por algum
suposto partilhado interesse ou ameaça, seja ela a “ Ameaça Vermelha ” ,
“ Isso ou Aquilo do Povo” , a “ Escola Comum ” ou a “ Nova Ordem
Mundial” . Os intelectuais deveriam tirar uma lição desse princípio; eles
deveriam sempre perguntar: “ em favor de quem estou pretendendo
falar ?” . E deveriam compreender que, como uma regra, quanto mais
ampla a asserção, mais restrita é a posição-de-sujeito que ela serve. O
genealogista-filósofo foucaultiano honesto, por exemplo, que diz sub-
verter pressupostos básicos, deve estar especialmente vigilante em
relação a esse tipo de desonestidade:
Existe sempre algo de rid ículo no discurso filosófico quando tenta,
a partir de fora, ditar a outros, dizer-lhes onde está sua verdade e
como achá-la, ou quando argumenta contra eles na linguagem da
positividade ingé nua. Mas ele pode explorar o que deve ser mudado
em seu pr ó prio pensamento, através da prática de um conhecimento
que é estranho a ele (Foucault, 1986, p. 9).
Novamente, não existe aqui nada que impeça aprender com outros ou
revelar algo a eles. Foucault apenas apela em favor de uma certa cautela
e uma certa modéstia teórica autoconsciente.

compreender o seu pouco podç r de decisão uma vez que suas descobertas tivessem
sido assumidas pelo governo. E també m interessante observar que na última parte
de sua vida Oppenheimer tornou-se “ honesto” e foi incisivo em sua den ú ncia do
uso da bomba por parte do governo. Mas juntamente com sua honestidade veio
uma intensa perseguição política. Devemos extrair daí a lição de que a honestidade
entre intelectuais (especialmente entre os “ eficazes” ) é extremamente ameaçadora
para o poder hegemónico.

167
r "

Honestidade e eficácia, pois, são dois princípios orientadores para


o intelectual específico. E, é meu argumento, eles são mais bem vistos
como dois momentos de um telos subjacente cuja máxima é algo como
“ devemos nos esforçar para nos tornar mestres das conseq üências de
nossas ações” . Isso representa um novo tipo de auto-relação para
intelectuais (pós) modernos, a qual poderia ser designada pela “ vontade
de poder ” foucaultiana.

A Autocriação e o Intelectual Específico

Deixem-me aplicar a análise quadr ú pla das auto-relações éticas encon-


tradas nos últimos escritos de Foucault à situação em tela, tendo em
vista saber como podemos transformar um intelectual universal “ deca-
dente” num intelectual específico “ são” .
Em primeiro lugar, a determinação da “ substâ ncia ética” . Esse é o
material que é “ trabalhado ” pela ética; aquela dimensão do eu que
fornece o alvo da preocupação ou aquilo que, para o indivíduo,
constitui “ esta ou aquela parte de n ós mesmos que é a maté ria prima
de sua conduta moral” (Foucault, 1986, p. 26 ). Em outras palavras, é
aquela “ parte de nós mesmos, ou de nosso comportamento, que é
relevante para o julgamento ético” (Foucault, 1983, p. 238 ). No
Cristianismo, por exemplo, a substâ ncia ética consiste dos desejos, das
intenções e da f é da pessoa. Esses são os objetos da preocupação clerical
durante a confissão; a pessoa se transforma a fim de se tornar um cristão
melhor. Para o intelectual específico, a substâ ncia ética tem que ser algo
como “ consciê ncia ” , “ autocompreensão” ou, talvez, o escopo da pró-
pria consciência (isso não significa exclusivamente conhecimento) da-
quilo que se passa no pró prio ambiente e da forma como a pessoa está
nele implicada. No caso do intelectual, isso provavelmente significa o
local de produção do saber e da “ verdade ” ( p. ex., a universidade, o
laboratório, a sala de redação) e sua interface com a sociedade mais
ampla.
Em segundo lugar está o “ modo de sujeição” : “ a forma pela qual o
indivíduo estabelece sua relação com a regra e se reconhece a si próprio
como obrigado a pô-la em prá tica” (Foucault, 1986, p. 27). Essa é a
fonte ou a base a partir da qual a pessoa produz a auto-relação.
Exemplos disso seriam o aristocrata grego que regula sua dieta de uma
forma que responde a certos crité rios estéticos ou o/a acadêmico/a
não-sexista que tenta eliminar o viés de gênero de sua linguagem. Em
suma, o modo de sujeição do intelectual específico é a “ harmonização” ,
isto é, o ato de colocar suas palavras e ações em harmonia com a pr ópria
“ esfera de influê ncia” , com base no princípio de se evitar a “ indignidade
de falar pelos outros” (Foucault, 1977b, p. 209). Isso implica um
auto-exame da pr ópria preocupação com a verdade; uma consciê ncia

168
da forma como participamos da fabricação da verdade. Foucault apre-
senta uma base para a harmonização da seguinte forma:

todos aqueles sobre os quais o poder é exercido em seu prejuízo,


todos os que o consideram intolerável, podem começar a lutar em
seu pró prio terreno e na base de sua pró pria atividade (ou passivi-
dade). Ao se engajar na luta que diz respeito a seus próprios
interesses, cujos objetivos eles claramente compreendem e cujos
métodos somentes eles podem determinar, eles entram num proces-
so revolucioná rio ( Foucault, 1977b, p. 216 ).

Para muitos intelectuais, a harmonização significa um estreitamento a


fim de encontrar “ seu próprio terreno” . (E, naturalmente, possível,
entretanto, que, dependendo da posição-de-sujeito da qual se está
partindo, seja necessá ria uma ampliação para se obter uma harmonia:
p. ex., o burocrata cuja inculcada e estreita visão leva a uma atitude
excessivamente laissez - faire em direção ao nexo ação-conseqiiência).
No contexto institucional, os intelectuais não deveriam mais buscar
“ ajudar ” o oprimido (ao final das contas, Foucault parece querer dizer

que, de qualquer forma, eles nunca o fizeram ao menos politicamen-
te ). Em vez disso, eles deveriam dirigir seu foco para os arranjos de

poder-saber que existem bem embaixo de seus narizes arranjos que
congelam e pervertem suas “ boas intenções” .
O terceiro modo de auto-relação é a “ autopr à tica” ou “ trabalho
ético” : aquilo que a pessoa faz a si própria a fim de se comportar
eticamente; os meios de autotransformação — “ asceticismo” , num
sentido amplo. Os judeus observam as regras kosher, os católicos
romanos usam o desejo sexual apenas para ter filhos, os cristãos buscam
identificar e combater aqueles seus impulsos que são conduzidos por
Satã, e assim por diante. Num nível mais geral, o trabalho ético do
intelectual específico é a rigorosa prática da honestidade e as vá rias
formas, dependendo do campo em questão, que essa pode assumir. Isso
implica um domínio da própria esfera de investigação, um alerta para
os “ resultados” e uma consciência de como esses resultados são usados
e sobre quem os usa. A pesquisadora universitá ria, por exemplo, deve
possuir um conhecimento profundo e variado do objeto de estudo
(como se pode ser eficaz sem competê ncia ? ), assegurar-se de que o
trabalho tem alguma conseqíiência estratégica (do contr á rio, por que
se dar ao trabalho ? ) e prestar atenção ao debate (se existir algum ) em
torno desse trabalho. Não existe espaço para o diletantismo, para o
“ conhecimento pelo conhecimento ” , ou indiferença para com a audiê n-
cia ou o pú blico.
Finalmente, o telos : o objetivo ú ltimo é tentar realizar. Os cristãos
buscam a purificação ou a salvação, os humanistas, a liberdade ou a
auto-realização e os gregos, o autodom ínio. Como mencionado acima,
o telos para a vontade de poder de Foucault é um novo autodomínio;

169

*¥r "

um domínio sobre as pró prias ações e seus resultados. Para dizer de


forma diferente, isso significa uma disseminação controlada e auto-re-
gulada do sujeito no mundo; uma dissolução positiva. Em outras
palavras, embora transcender relações de poder seja uma quimera,
podemos nos tornar um canal ou uma “ junção privilegiada” através da
qual o poder pode ser dirigido.
Por sua parte, o intelectual pode obter, por exemplo, uma com-
preensão mais completa das fontes e “ propósitos” de seu financiamento
( bolsas, salá rios) e usar aquela compreensão para realizar mais efetiva-
mente seus objetivos (alguns já são bastante eficazes quanto a isso). E,
naturalmente, aquilo que se é (ou não se é) mudará à medida que
ganharmos controle e confiança em fazer isso, ao “ exercitar os pr ó prios
m úsculos (institucionais)” , por assim dizer. Não auto-absorção, mas ser
absorvido no mundo; um “ perder-achar ” do eu. Podemos descrever isso
como uma nova ética de autocriação que evita os equ ívocos tanto do
esteticismo narcisista, por um lado, quanto a alienação da obsessão
política, por outro. O “ indivíduo” bem definido e de fronteiras vigiadas
dos humanistas, argumenta-se, obstrui esse processo:
Contrariamente ao discurso pienamente estabelecido, não existe
nenhuma necessidade de conservar o homem para resistir. O que a
resistência extrai desse velho e reverenciado homem, como expressa
Nietzsche, são as forças de uma vida que é mais ampla, mais ativa,
mais afirmativa e mais rica em possibilidades. O super-homem nunca
significou outra coisa senão isso: é no próprio homem que devemos
liberar a vida, uma vez que o próprio homem é uma forma de
aprisionamento do homem ( Deleuze, 1988, p. 92).
O “ homem” tal como definido pelo regime carcerário não tem nada a
perder a não ser suas cadeias; um processo que significa, em uma
palavra, fortalecimento ( empowerment ). Assim, podemos esquematizar
a é tica política de Foucault para os intelectuais engajados na “ produção
de verdade ” da seguinte forma: substância ética: consciê ncia/autocom-
preensão; modo de sujeição: harmonização; trabalho ético: competê n -
cia / honestidade / atitude de alerta; telos: f o r t a l e c i m e n t o
( empowerment )/ auto-superação.

Extensões e Implicações

Farei aqui algumas considerações relevantes à ampliação desse esquema


para outras esferas. Em primeiro lugar está o que podemos chamar de
“ regra de nenhuma garantia” . Isso significa que não devemos esper f
^
que qualquer indivíduo particular seja “ totalmente progressista” , “ to-
talmente reacioná rio” ou totalmente qualquer coisa, o que, por sua vez,
indica que talvez seja hora de repensar inteiramente essas categorias.
Isso é uma conseqiiê ncia da id éia de que a posição-de-sujeito não

170
coincide com o “ indivíduo” e que um par de discursos pode ser
incongruente entre si; a expectativa de consistê ncia é baseada, prima-
riamente, na ficção de um sujeito necessariamente e estreitamente
integrado. A operação de separar os bons dos maus tornou-se anacró-
nica; podemos certamente perder oportunidades cruciais se descarta-
mos de forma global o vilão que possamos escolher, seja lá qual for ele
— nazista, marxista ou democrata liberal.
Em segundo lugar, como sugerido acima, ao estender a vontade de
poder para outras esferas da vida, o “ ponto de partida ” e as particula-
ridades da posição-de-sujeito em questão afetarão diretamente o esque-
ma inteiro. Por exemplo, começar de uma posição- de -sujeito
relativamente sem-poder implica diferentes métodos de harmonização
e de atitude de alerta (de acordo com o telos ). Enquanto o intelectual,
em grande parte, “ se estreita ” , as posições-de-sujeito com menos poder
podem precisar se “ alargar ” ; assim, o n ível exigido de associação com
outros e o tipo de discurso enunciado variará de acordo com as
necessidades situacionais. Por exemplo, uma professora primária pode
exigir um sindicato para ser eficaz ou uma camponesa analfabeta pode
precisar enuncar uma retórica universalizante a fim de fortalecer ( em-
power ) sua posição-de-sujeito, como Paulo Freire argumentaria. Cru-
cialmente, entretanto, não existe nenhum local central ou privilegiado
para decidir estratégias específicas.
Em terceiro lugar, dada a ê nfase de Foucault na microf ísica do
poder e a natureza descentralizada das relações de poder, parece claro
que um aumento no poder qua “ dominação” (isto é, autoridade baseada
na coer ção ) não leva necessariamente a um aumento correspondente
em seu fortalecimento ( empowerment ). Na verdade, a dominação, na
maior parte dos casos, parece impedir esse fortalecimento. Por exem-
plo, o “ l íder ” nominal de um grande aparato de Estado deve depender
de uma rede quase infinitamente complexa de nós de poder na medida
em que não se pode dizer que esse líder tenha muito controle real
ao menos no sentido exigido pelo telos descrito acima. Isso não

significa, entretanto, que as políticas nunca sejam implementadas ou
que o governante de uma nação do Grupo dos Sete não “ tenha ” , num
importante sentido, poder. Apenas significa dizer que a forma como
uma escolha é feita e implementada freq íientemente tem pouco a ver
com “ escolha ” tal como usualmente a pensamos. Outra vez, é uma
questão de conhecer e controlar o que faz (causa) o que eles “ fazem ” .
Embora haja com freqiiê ncia “ intersecções” , o fortalecimento do poder,
no sentido de Foucault, pode muito bem, às vezes, funcionar ao longo
de linhas diferentes das linhas do poder pol ítico e econ ó mico.

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Este ensaio foi escrito especialmente para o presente livro. Tradução


de Tomaz Tadeu da Silva.
David Blacker é Professor da Illinois State University, Estados Unidos
da América.

172
[

g
Thomas S. Popkewitz
História do Currículo,
Regulação Social e Poder

/^omeço de uma maneira pouco ortodoxa, falando sobre a forma


^ 'como me tornei envolvido no problema da história para
1
depois
falar do tipo particular de história no qual estou interessado.2 (Minha
filiação tribal não é a de historiador ). Serei autobiográfico por um
instante para dizer que fiz minha formação de graduação em História;
mas meu doutorado relacionava questões de curr ículo com sociologia
do conhecimento, no contexto das ciências políticas. E possivelmente
nessa intersecção que reconheci a importância de uma ci ê ncia social da
escolarização que tenha um caráter histórico. Meu interesse poderia ser
qualificado como o de uma sociologia histórica ou de uma história
social . Nenhuma das duas, entretanto, faz justiça àquilo em que estou
interessado. Digo isso porque as tradições anglo-americanas pelas quais
definimos seja a história social ou a história intelectual tendem a estar
organizadas de acordo com seqíiências cronológicas e teleologias impl í-
citas, as quais, em certos momentos, são apenas parcialmente adequadas
para compreender as questões de mudança e poder envolvidas no
processo de escolarização.

1 Esta discussão baseia -se em minha tentativa para desenvolver uma compreensão do
movimento de reforma da última década nos Estados Unidos, um trabalho no qual
busquei tornar as atuais categorias e distin ções da mudan ça curricular e escolar
sensíveis tanto às questões histó ricas quanto sociológicas ( Popkewitz, 1991). Na
redação desse argumento sobre a histó ria, sou grato a Barry Franklin, Tomas
Englund, Christina Florin, Jodi Hall, Ulla Johannson, Antonio Nóvoa, Miguel
Pereyra e ao Grupo das Quartas-Feiras da Universidade de Winsconsin-Madison
pelas conversas sobre as idéias deste ensaio.
2 Uso pronomes pessoais ao longo deste ensaio para reconhecer que o “ eu ” e o “ meu ”
desse discurso são tanto biográficos quanto históricos. E uma ironia e um paradoxo
com o qual convivemos. Escrevo, portanto, n ão apenas pessoalmente, mas també m
dentro de uma posição num campo social e de relações de poder que estão
continuamente inscritas através das prá ticas discursivas que falam no texto. Assim,
embora este ensaio seja um ato auto- reflexivo contra formas predominantes de
raciocínio nos discursos educacionais, ele també m corporifica as limitações desses
atos, na medida em que se constituem em atos marginais. Todos os discursos são
potencialmente perigosos, se n ão maus.

173
Minha preocupação com uma sociologia histórica é a de compreen-
der como os problemas atuais da escola, definidos pelo conceito de
reforma escolar, são constituídos da forma que são: Como viemos a
pensar sobre reforma da forma que pensamos ? Como é que viemos a
colocar os problemas referentes a conhecimento escolar, crianças,
ensino e avaliação da forma que fazemos ? Essas questões adquirem
interesse na sociologia do conhecimento curricular como uma proble-
mática central no estudo da escolarização. Elas transformam as catego-
rias, distin ções e diferenciações da escolarização em monumentos
histó ricos e sociais que podem ser interrogados como corporificando
padrões de poder e regulação.
Para superar o tom um tanto gené rico desses dois parágrafos,
tentarei descrever uma compreensão da história como uma atividade
que não consista simplesmente em construir interpretações a partir dos
dados examinados. Argumento que a história é uma atividade teórica
que constró i seu objeto de pesquisa através da forma pela qual faz
distinções e categoriza os fenômenos dos estudos histó ricos. Nosso
treinamento “ científico” freq íientemente faz com que deixemos de
compreender a forma como o raciocínio da ciência traz inscritos
princípios historicamente constru ídos de classificação e ordenaçã o.
Passo, então, ao estudo do curr ículo. Vejo o currículo como um
conhecimento particular, historicamente formado, sobre o modo como
as crian ças tornam o mundo inteligível. Como tal, esforços para orga -
nizar o conhecimento escolar como curr ículo constituem formas de
regulação social, produzidas através de estilos privilegiados de raciocí-
nio. Aquilo que está inscrito no currículo não é apenas informação
a organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir,
sentir , falar e “ ver ” o mundo e o “ eu” .

Exploro os efeitos do curr ículo através daquilo que chamo de
epistemologia social da escolarização ( Popkewitz, 1991). Uso o concei-
to de epistemologia para me referir à forma como o conhecimento, no
processo de escolarização, organiza as percepções, as formas de respon-
der ao mundo e as concepções de eu. O “ social” que qualifica “ episte -
mologia” enfatiza a implicação relacional e social do conhecimento, em
constraste com as preocupações filosóficas americanas com epistemo-
logia como a busca de asserções de conhecimento universais sobre a
natureza, as origens e os limites do conhecimento (veja Toulmin, 1972,
1988, para uma discussão de ciência que se relaciona com a minha
concepção de epistemologia). Meu conceito de epistemologia social está
relacionado à “ virada lingiiística ” que atinge atualmente as Humanida-
des e as Ciê ncias Sociais. Considero as questões do intelectual e do
poder nas seções finais.3 Ao longo de minha argumentação, utilizo os

3 Uso a noção de intelectual como uma categoria social que tem sido crescentemente
associada a questões de poder, estado e governo na modernidade. Veja, por ex.,
Ross, 1991; Giddens, 1987; Foucault, 1988; Bauman, 1987.

174
termos “ discurso” e “ prá ticas discursivas” como alternativas ao termo
“ epistemologia social” . Isso deve ser visto como um artif ício literá rio,
na medida em que minha preferê ncia pelo termo “ epistemologia social ”
tem a intenção de historicizar o processo de escolarização de uma forma
que a maior parte das teorias discursivas não o faz.

A Construção do Objeto: Os Estudos Históricos como Práticas


“J

Discursivas

No espírito da melhor tradição pós-moderna, devemos compreender


que não existe uma ú nica visão tribal da história: a história é apenas
uma dentre diferentes tradições de interpretação (veja Lloyd, 1991).
Entrar numa discussão sobre tradição histórica, entretanto, significa
mais que considerar diferentes interpretações sobre dados similares. A
história, em seus significados modernos, envolve procedimentos que
constroem seu objeto através de lentes conceituais. Ao usar o termo
“ construir ” , enfatizo a forma como a aplicação de categorias e distin-
ções de raciocínio histórico têm o “ efeito” de construir fenômenos num
campo de dados sociais. Isso não significa que não ocorram “ coisas” no
mundo, mas que as práticas lingiiísticas dos campos disciplinares envol-
vem certas regras de expressão e censura do significado, que atuam
através da produção de signos e de sistemas de significação. Através
4

das regras de estudo disciplinar, as “ coisas” do mundo são re-feitas


como dados que são interpretados e explicados —
não existe nenhum
“ comportamento” eleitoral ou “ rendimento escolar ” até que se comece
a fazer perguntas que supõem essas “ coisas” do mundo. Mais: nosso
raciocínio sobre o mundo não é nunca uma questão filosófica “ pura” :
ele é parte de suas relações sociais e de poder ( Henriques et al., 1984).
Uso dois breves exemplos ilustrativos para orientar minha análise
das narrativas históricas como sistemas de raciocínio que constroem
“ dados” históricos.
O primeiro exemplo é o das pirâ mides do Egito. Não foi senão a
partir do final do século XVIII que as pir â mides se tornaram objetos de
investigação. Fazer perguntas sobre essas pedras como monumentos
exigia, primeiramente, uma auto-reflexividade pela qual as pessoas
pudessem perguntar como o conhecimento e as instituições são social-
mente constru ídos ao invés de teleologicamente dados. Antes dessa

4 Reconheço que existem té cnicas históricas aceitas para questionar as trilhas do


passado. Minha discussão aqui reconhece a importâ ncia da disciplina na
investigação sistemática, mas também que esta disciplina envolve regras comunais
que são socialmente construídas e influenciam a forma pela qual os objetos de
investigação são teoricamente constru ídos. Veja meus exemplos sobre os tú mulos
egípcios adiante nesta seção.
5 As pessoas votam e as crian ças fazem coisas na escola, mas esses atos tornam-se
interpretáveis e, portanto, tornam-se dados apenas quando se fazem questões sobre
sua fun ção e suas implicações.

175
é poca, as pirâmides eram “ vistas” como blocos de pedra situados, sem
serem notados, num deserto (Block, 1963 ). Eram lugares pelos quais as
pessoas passavam e escreviam graffiti. As pirâ mides não se tornaram
“ fatos” da história até que os europeus começassam a questioná-las,
primeiramente como exemplares de uma civilização e, mais tarde, como
artefatos dos tú mulos daqueles que podiam se permitir tais funerais.6
As interpretações dos tú mulos egipcíos tornaram-se possíveis atra-
vés de uma visã o “ moderna ” particular ; o moderno refere-se aqui a uma
estruturação particular do conhecimento, associada com as transforma-
ções sociais dos ú ltimos cem anos.7 A “ visão ” moderna implica o
enquadramento dos artefatos do Egito como parte de sistemas abstratos
particulares de relações. Essas narrativas posicionavam as pirâ mides
numa história global na qual as particularidades do tempo e do espaço
egípcios eram situadas numa noção mais geral, evolutiva, de desenvol-
vimento sobre as sociedades ocidentais.
Colocar o Egito no interior de uma cosmologia de “ Civilização
Ocidental ” exigia uma estrutura de pensamento que desligasse o indi-
víduo e o lugar de ancoragens particulares no tempo/espaço. As expli-
cações histó ricas da arte tumular e da organização cultural expressavam
teorias impl ícitas sobre as diferenciações sociais e econ ómicas que
podiam ser transportadas às interpretações do passado. Os artefatos dos
tú mulos foram re-contextualizados e colocados no interior de sistemas
de tempo/espaço nos quais a histó ria egípcia era concebida como parte
de uma cronologia progressiva e de uma estrutura hierárquica de
desenvolvimento social. Através dessas construções históricas, os indi-
víduos das tumbas podiam ser “ vistos” como habitantes de sistemas de
relações sociais, tais como classe, desenvolvimento sócio-cultural e
olhares estéticos. Essas categorias eram invenções simbólicas constitu í-
das pelas interpretações do século XIX (Williams, 1981). As histórias
das pirâ mides eram vistas numa relação evolutiva com os distantes
lugares do Egito e da Gr écia, e depois de Roma e de uma Europa mais
ampla. A estruturação da razão histórica “ fez” as tumbas aparecerem
como o fluxo universal do desenvolvimento social e humano, ao invés
de como pedras e lugares para se escrever graffitis.
Relacionada com a construção da histó ria egípcia está a invenção
do “ fato” . O fato histórico não aparece até o século XIX, quando o
positivismo foi introduzido no estudo do passado (Topolski, 1976, p.
113; Stoianovich, 1976 ). Positivisticamente falando, os documentos e

6 Minha inten ção aqui não é colonizar a historiografia como uma invenção européia
mas focalizar uma forma particular de narrativa eurocè ntrica que inscreve os
artefatos egípcios numa cosmologia mais ampla de desenvolvimento.
7 As noções de moderno e modernidade referem -se a constelações particulares de
tecnologias, instituições e sistemas de idéias que são diferentes ae constelações
prévias. A noçã o de moderno, entretanto, é vista como um conceito sociológico em
vez de como uma noção evolutiva.

176
objetos contêm informações que servem como base para observações
similares aos dos “ fatos” das ciências naturais; quanto mais numerosas
as observações, mais confiável a pesquisa.
À medida que historicizamos a localização das pirâ mides egípcias
numa narrativa sobre o desenvolvimento, reconhecemos que as inter-
pretações histó ricas n ão se referem apenas a “ dados” positivisticamente
concebidos. As categorias e distinções que permitiram que as tumbas se
tornassem base para “ dados” histó ricos corporificam conjuntos profun-
dos e complexos de relações, o menos importante dos quais não é a
forma como a razão (e seu oposto, a não-razão) é constru ída. A razão
histórica corporifica um novo espaço epistemologico que vê o mundo
como estruturas organizadas que têm vínculos e funções m ú tuas numa
emergê ncia de sucessões. Para colocar isso em perspectiva, podemos
comparar as mudanças que ocorrem no raciocínio quando relacionamos
a noção de histó ria de Her ódoto como uma cró nica para descrever os
ciclos de Verdade que aparecem no passado, as pr áticas da Igreja nos
anais medievais que narram a cr ó nica da intervenção e providê ncia
divina e as formas contemporâ neas de ordenar o tempo e o espaço como
descrevendo seq üencialmente relações entre pessoas e eventos. No
raciocínio contempor â neo, a história não é mais uma compilação de
sucessões ou seq üê ncias fatuais, mas um modo de raciocínio que exige
evidê ncia empírica e reflexividade sobre a ordem na sociedade. Essas
mudanças no significado da histó ria são n ão uma progressão na com-
preensão humana, mas respostas construídas sobre princípios de classi-
ficação que são també m socialmente constru ídos.
O segundo exemplo ilustrativo da “ fabricação” de dados histó ricos
é dado por um exame dos lugares comuns da escolarização, isto é, da
criança concebida como um “ aprendiz ” .8 Embora seja freq üentemente
usada como uma categoria natural e descritiva da escolarização, a
categoria “ aprendiz” emergiu no final do século XIX como parte de um
sistema de idéias cujas conseq íiê ncias consistiram em revisar a forma
como se raciocinava sobre a escolarização e como se devia dar conta da
individualidade da pessoa. As categorias de estudante e aluno, por
exemplo, ainda n ão existiam no in ício do século XIX para se referir ao
processo de escolarização. A criança era chamada de “ escolar ” ( scholar ).
A invenção da categoria de estudante e, mais tarde, de “ aprendiz”
re-construiu a “ criança ” como um objeto de escrutínio por parte do
professor, uma noção diferente daquela do professor do in ício do século
XIX que via as crianças em relação à tarefa prof ética de “ professar ” a
f é cristã.
Fazer das crianças “ aprendizes” é introduzir uma concepção mo-
derna de inf â ncia. As categorias de aprendizagem “ transformam” a

8 Tomo emprestada a noção de lugar comum de um famoso ensaio educacional de


Joseph Scnwab (1969 ), mas pretendo tornar os lugares comuns problem á ticos em
vez de naturais e essenciais ao processo de escolarização.

177
criança moderna9 em algué m que dá atenção às coisas no mundo ao
invés de algué m que confia numa f é transcendental; e supõe-se que essa
aten ção seja mensurável de forma secular, científica. A crian ça é també m
vista por outros e compreende a si pró pria como uma pessoa racional,
“ solucionadora-de- problemas” e “ em desenvolvimento” .
A criança concebida como um aprendiz tornou-se tão natural no
final do século XX que é dif ícil pensar nas crianças como qualquer outra
coisa que não aprendizes. Contudo num sentido sociológico, a “ fabri-
cação” da criança-como-aprendiz envolveu transformações particulares
no raciocínio social que agora associamos com modernidade. O efeito
das transformações nas relações institucionais, nas tecnologias e siste-
mas de id é ias foi o de mudar a forma como a identidade devia ser
“ vista” , compreendida e como se devia agir sobre ela.
De forma mais geral, como Giddens (1987) tem argumentado, o
“ eu” moderno vive num campo social no qual as pr á ticas imediatas são
continuamente re- posicionadas em sistemas abstratos de idéias através
dos quais os indiv íduos interpretam e definem suas relações. A imedia-
tez das interações face-a-face das comunidades tradicionais foram
re-formuladas através de sistemas profissionalizados de conhecimento
l
que guiam os indiv í duos à medida que eles navegam pelas pr á ticas
cotidianas. A criança “ moderna” é um exemplo desta transformação; a
criança não está mais relacionada a concepções de tempo e espaço
restritas à pró pria comunidade. Uma crian ça pode agora ser vista em
relação a elementos universais, independentemente de seu local geográ-
fico.
Historicamente, o conceito de aprendiz constituiu um esquema de
racionalidade pelo qual as crianças deveriam ser medidas para avaliar
o desenvolvimento de personalidades e estágios de cognição. Podemos
fazer uma leitura da moderna teoria curricular como constituída de
tentativas sistemá ticas para re-ver as identidades das crian ças através da
mediação de sistemas abstratos de id éias, sem nenhuma ancoragem no
tempo e espaço concretos. A competê ncia e o rendimento pessoais
foram re-classificados. A criança pode agora ser classificada através de
estágios universais de desenvolvimento, de categorias psicol ógicas do
“ eu” e de medidas racionais de rendimento. As classificações são

9 Meu uso do conceito de modernização está relacionado às histórias sociais que


localizam a mudan ça nas formas pelas quais as pessoas pensavam os fenô menos após
o século XVII. Não implica uma noção de progresso, mas sugere um certo tipo de
auto-reflexividade em relação à condição humana, que é diferente dos esquemas
anteriores que mantinham uma visão transcendental das condições humanas. Esta
modernização també m contém uma mudan ça na forma como os indivíduos estão
localizados no tempo e no espa ço, produzindo padrões cotidianos de comunicação
diferentes daqueles encontrados em comunidades tradicionais, discutidas
adiante.Esta discussão baseia-se, em parte, na discussão teórica de Giddens (1989).

178
intemporais e universais, sem nenhuma base aparente em qualquer
localidade particular ou relação concreta de tempo e espaço.
O sistema de expert da modernidade, de acordo com Giddens,
tornou-se a forma principal através da qual a confiança e a segurança
são mediadas na vida cotidiana. Entretanto, existe uma qualidade
recursiva naquelas formações: a moderna criança escolar é a pessoa que
aprende a ser um “ cidadão ” , que tem responsabilidades abstratas rela-
cionadas ao governo do Estado, que tem “ potencial ” como trabalhador,
que aprende habilidades e sensibilidades culturais para “ uso” futuro e
que é automonitorada em seu desenvolvimento afetivo e cognitivo.
Esses dois breves exemplos de ordenamento epistemologico inscri-
tos na história nos permitem reconhecer que as narrativas do passado
são mais que meramente interpretações de dados. Nossos princípios
para classificar o conhecimento escolar e “ raciocinar ” sobre ele corpo-
rificam pressupostos téoricos sobre como os objetos de estudo são
constituídos no tempo e no espaço, sendo exemplos disso a divindade
pré-moderna ou os fatos modernos. Anteriormente a qualquer investi-
gação empírica, existem estratégias para organizar questões, definir os *
fen ômenos de estudo e moldar e modelar a forma como os dados
empíricos são administrados e ordenados como objetos de investigação
— todas os quais moldam e modelam aquilo para o qual se deve olhar
e a forma como aquele olhar deve conceber as “ coisas” no mundo.
O exemplo da história egípcia, inscrita numa cosmologia de narra-
tivas européias sobre o desenvolvimento, e o da “ história ” discursiva
do aprendiz são ambos ilustrativos da problemática da construção das
narrativas históricas que quero discutir neste ensaio. Os exemplos nos
permitem considerar esquematicamente duas formas de raciocínio so-
bre o conhecimento histórico que competem na pesquisa contemporâ-
nea.10 Uma forma de raciocínio consiste em considerar a maneira como
as pessoas e os eventos mudam ao longo do tempo, focalizando a
linguagem como expressiva e descritiva da direção e propósitos da
mudança social. Boa parte da história intelectual dos Estados Unidos
está construída dessa maneira: exemplos disso sã o a biografia de John
Dewey ou a de Edward Thorndike, nas quais as idéias são descritas para
explicar mudanças na forma como atores perceberam eventos ou como
os eventos moldaram o que os atores percebiam (Karier, 1986; Jonich,

10 Esta competição envolve muitas nuances e distinções que estão alé m do escopo deste
ensaio. Também reconheço as limitações do estabelecimento de dicotomias para
fazer comparações, mas o raço por causa das limitações de espaço que exigem certas
justaposições de argumentos sobre narrativas históricas. Na discussão que se segue,
centro-me na relação entre a filosofia da consciência e a “ virada lingüistica ” para
localizar, tão bem quanto possível, o argumento no contexto daquilo aue considero
serem as questões intelectuais mais substantivas sobre conhecimento disciplinar em
vez de examinar as diferenças particulares no interior de “ paradigmas” . Minhas
citações ao longo do texto fornecem ao leitor “ fontes” através das quais ele pode
expíorar mais os argumentos feitos aqui.

179
»?

1968 ). Uma maneira diferente de raciocínio, na qual me centro neste


ensaio, consiste num mapeamento conceituai que descreve mudanças
na forma como os objetos da vida social são discursivamente construí-
dos. É um exemplo disso a forma como as categorias, distinções e
diferenciações da escolarização mudam ao longo do tempo. Para as
finalidades do argumento deste ensaio, podemos associar as primeiras
regras descritivas de raciocínio com uma tradição historicista e com a
filosofia da consciê ncia e as segundas construções discursivas com uma
tradição de epistemologia social e com a “ virada linguistica” na filosofia.

Tradições Históricas: A Filosofia da Consciência e a Virada


Lingúística

Na medida em que investigamos mais a história como formas construí-


das de raciocínio, nos aprofundamos nesses dois sistemas particulares
de classificação e de regras de conhecimento.11 O historicismo e a
filosofia da consciência privilegiam os textos de eventos como elemen -
tos “ reais” e positivos a partir dos quais intenção, propósito e vontade
podem ser afirmados. A identificação histórica de atores e a ordenação
cronológica de eventos são vistas como as precursoras de qualquer
mudança significativa no presente ou no futuro. O passado, o presente
e o futuro são vistos como os produtos da ação humana num mundo
socialmente construído e em desenvolvimento. Algumas vezes há um
herói ou uma heroína; algumas vezes fala-se sobre causas estruturais de
eventos que limitam a mudança progressiva, tais como as estruturas de
raça, classe e gê nero. As pessoas são vistas como atores guiados por
propósitos, atores que produzem mudança através de suas ações
algumas vezes intencionalmente, algumas vezes com conseqíiências

não-intencionais. Posicionar o ator na construção do conhecimento
sobre o passado permite que o ator no presente se torne um agente de
mudança, um agente movido por propósitos e intenções.
A filosofia da consciência tem dominado a construção das ciências
sociais pelo menos durante os ú ltimos cem anos e pode ser vista como
uma invenção radical do Iluminismo. Nessa perspectiva, práticas histó-
ricas não eram mais deixadas à organização social e a mudança entregue
a forças transcendentais (como Deus, por exemplo). A filosofia da
consciê ncia vê o mundo como constituído de estruturas vinculadas que
funcionam em relação umas às outras numa sucessão; mas a filosofia da
consciê ncia concede a soberania aos atores e à agê ncia12 humana nas
explicações da mudança naquelas estruturas. O progresso (ou sua
negação) é um motivo central na epistemologia: o progresso é conce-

11 Para uma discussão mais geral das diferentes tradições históricas, veja Popkewitz,
1986.
12 A palavra agency (traduzida aqui por agê ncia) é usada na literatura sociológica
anglo-saxônica para salientar o elemento ativo da ação humana.(Nota do Tradutor ).

180
bido ou como o resultado racional da razão e do pensamento humanos,
aplicados a condições sociais (epistemologia kantiana ou lockeana) ou
como a identificação de contradições das quais uma nova síntese pode
ser organizada (epistemologia hegeliana ou marxista).
A histó ria assume uma posição particular nas cosmologias do
progresso. A história escrita de acordo com a filosofia da consciência
narra o passado de forma que o presente pode ser compreendido e o
futuro re-ordenado e controlado. Os atores são privilegiados como os
agentes causais na interpretação da mudança social.
O privilégio epistemologico (centramento) dos atores faz parte da
doxa nas ciências sociais e na história norte-americanas. Ele é parte da
tradição social melhorista das ciências sociais. A narrativa da tradição
social melhorista prenuncia a evolução de instituições sociais (tal como
a escola) como o movimento do mal para o bem, ou como a possibili-
dade daquele bem. Desde o final do século XIX, por exemplo, as
histórias criaram narrativas dos Estados Unidos como sendo o Novo
Mundo, como uma fronteira (tanto espiritual quanto material), e uma
representação de uma sociedade excepcional na qual um mundo mile-
narista seria encontrado. A histó ria da educação tem sido escrita como
a histó ria da evolução de escolas progressivas (Cremin, 1962) e como
biografia de pesquisadores educacionais (Joncich, 1968 ). Ou tem sido
escrita em termos de inclusão: a histó ria da educação das mulheres narra
a história de uma crescente alfabetização das mulheres, do século XVII
ao XIX (p.ex., Sklar, 1992).
A filosofia da consciência também está presente nos estudos cr íticos
da educação. Os estudos cr íticos contam as lutas pelo controle da escola
e suas possibilidades progressivas eventuais, descrevendo esforços como
os dos diferentes grupos que lutam para falar de forma legítima sobre
o que deve ser aprendido nas escolas (p. ex., Noble, 1992; Reese, 1986 ).
O desvelamento das contradições traz o progresso ao mundo, embora
aquele progresso tenha interesses diferentes daqueles das reivindicações
sociais melhorativas. O progresso está relacionado a uma tendência
hegeliana a localizar contradições a partir das quais uma nova síntese
pode ser identificada. Essa síntese está relacionada a uma visão milena-
rista que vê a substituição final de configurações históricas anteriores e
presentes ( p. ex., Manuel 8c Manuel, 1979 ). Na atual terminologia,
expressões como “ fortalecimento do poder ” (empowerment ), “ agê ncia”
e “ resistê ncia” significam uma visão da histó ria que coloca o poder nas
ações das pessoas, na medida em que elas lutam para mudar seu mundo
para melhor.
O pressuposto fundacional da filosofia da consciência é que a
mudança progressiva através da ação significativa não pode ocorrer sem
que primeiramente os atores e os eventos sejam identificados. As
intepretações dos atores e eventos fornecem um mecanismo “ condutor ”
que guia e dirige as ações das pessoas à medida que elas se esfor çam

181
- • J
r i
^

para ser mais eficientes, mais eficazes ou, nas tradições críticas, mais
resistentes à opressão.
Antes de questionar essa suposição sobre mudança, precisamos
Kr
historicizar 13 os pressupostos da filosofia da consciê ncia que centram a
investigação nos atores, nos eventos e na mudança. Historicamente, o
foco nos atores está relacionado, em parte, à emergência do positivismo
que surgiu no contexto do historicismo alemão do século XIX. O
historicismo permitiu que a concepção idealista germâ nica recuperasse
a legitimidade através de uma máscara de ciê ncia. Seu positivismo
consistia em conceder aos “ fatos” do passado uma localização específi-
ca, concreta, num tempo e num espaço regulares.14
O principal objetivo do historicismo foi o de objetivar toda vida
social; a realidade era explicada tal “ como realmente aconteceu ” ,
através da ordenação de eventos ou dos pensamentos singulares dos
indivíduos. Os eventos e atores eram reunidos através de uma ordena-
ção cronológica das pr áticas concretas no tempo. Tendo os fatos como
a força orientadora, o historiador devia interferir tão pouco quanto
possível ao escrever os “ fatos” da histó ria. Mas para ganhar mais clareza
no estabelecimento dos fatos, assumia-se uma noção está tica de questões
sociais, a qual limitava a compreensão das categorias de mudança e
desenvolvimento.15
Explorar a evolução da intenção e do propósito humanos envolvia
um método que tornaria todos os acontecimentos humanos sujeitos a
um escrutínio sistemá tico, que iluminaria todas as formas concretas de
vida. As estratégias metodol ógicas do historicismo privilegiavam o lugar
f ísico no qual uma ação ocorria como o centro das narrativas históricas.
Cada evento pertencia a um contexto preciso e ú nico. As realidades
sociais eram determinadas através da reunião de eventos ú nicos num
padrão em desdobramento. O tempo e o espaço eram percebidos como
contendo uma concretude particular, obtida através de um ordenação
racional dos eventos e dos pensamentos das pessoas.
Embora a tradição historicista nos Estados Unidos tenda a n ão ser
teórica, ela tem uma teoria implícita. A narrativa do historiador que
escreve na tradição da filosofia da consciê ncia implica uma habilidosa
13 Historicizar, no meu uso deste termo, significa colocar o conhecimento e as prá ticas
sociais no contexto das lutas para classificar, ordenar e definir os objetos do mundo.
Em contraste, o historicismo, uma visão da histó ria que domina os estudos histó ricos
nos Estados Unidos e está suposto nos estudos etnográficos, focaliza o ator e os
eventos no mundo como a causa última de mudança social.
14 Agradeço ao Professor Miguel Pereyra, da Universidade de Granada, Espanha, por
ter chamado minha aten ção sobre isso.
15 E interessante observar que o positivismo tornou -se uma força dominante nos
estudos histó rico , anteriormente ao desenvolvimento das Ciê ncias Sociais tal como
^
a conhecemos. E també m irónico observar que boa parte das ciências críticas,
embora rejeitem o desinteresse da ciê ncia, manté m as tradições historicistas dos fatos
e textos.

182
re-organização, para mostrar como os eventos apresentam uma certa
coerê ncia e como o propósito humano atua. As interpretações mantêm
um compromisso com as realidades de movimentos específicos, concre-
tos, de eventos através do tempo, combinando a teleologia da filosofia
da consciência com os pressupostos metaf ísicos do positivismo. A
A tradição histórica de que falo neste ensaio, em contraste, é uma
tradição que focaliza a forma como as idéias estão corporificadas na
organização do conhecimento escolar. Este estudo da história tem sido,
de forma variada, chamado de semâ ntico, genealógico, conceituai ou
de epistemologia social.16 Embora o resto do ensaio discuta os pressu-
postos e prioridades desta história, podemos aqui, de forma breve,
caracterizá-la como buscando uma “ virada lingiiística ” que se centre nos
padrões discursivos através dos quais o processo de escolarização é
constituído. Se pensamos sobre a sexualidade, por exemplo, podemos
compreender que seus significados estão entrelaçados com sistemas
culturais: argumentar que as divisões masculino vs. feminino são geni-
tais e devidas aos cromossomos ou aos hormônios deixa de ver que essas
características são discursivamente selecionadas de uma forma que liga
fronteiras sexuais com questões de reprodução, uma estratégia que
historicamente serviu para conservar as mulheres em seu lugar “ apro-
priado” (Sampson, 1993). A diferença entre a virada lingiiística e o
historicismo, como diz Canning (1994), é uma diferença entre estudar
a negritude em vez do negros; a feminidade em vez das mulheres e a
homossexualidade em vez dos homossexuais.
Dessa perspectiva, podemos explorar o processo de escolarização
através dos sistemas de idéias e das formas institucionais que permitem
que seus objetos sejam compreendidos e pensados e que se aja sobre
eles. As formas de raciocínio sobre a escola são sistemas de inclusão e
exclusão na medida em que categorias, diferenciações e distinções
particulares são aplicadas às rotinas e ações do processo de escolariza-
ção.
Mas a historicização da escolarização não é constituída apenas de
regras e padrões de cognição; é constituída també m de relações de
poder entranhadas na seleção, organização e avaliação do conhecimen-
to escolar. Isto ocorre através da forma pela qual os sistemas de id éias
constroem, moldam e coordenam as ações sociais através de relações e
de princípios ordenadores estabelecidos nos processos de categoriza-
ção. Canning (1994) argumenta, por exemplo, que é central à “ virada
lingiiística” um escrutínio e um re-exame da linguagem não apenas
como descrevendo e interpretando o mundo mas como constituindo
práticas e identidades sociais. A ordenação, o disciplinamento e a

16 Poderíamos perguntar por que usar “ epistemologia social” em vez de outros termos
para descrever a tradição historicista sob discussão. Meu motivo é relativamente
simples: é o posicionamento semâ ntico da relação entre o social e o epistemologico
que quero enfatizar através da discussão do conhecimento e do poder.

183
r

regulação através de regras discursivas torna-se centralmente importan-


te na medida em que o processo de escolarização regula o conhecimento
do mundo e do “ eu ” através de seus padrões de seleção, organização e
avaliação curricular.17
Num sentido comparativo, podemos pensar na tradição historicista
como uma tradição que não rompe o texto. As id é ias dos textos são
tratadas numa seq üê ncia racional que explica a vida. Um exemplo disso
é a forma como os diferentes teóricos curriculares escrevem sobre o
processo de escolarização como uma seq üê ncia que tem sua pró pria
l ógica interna que deve ser seguida na construção da narrativa histórica.
Em certo sentido, o texto do historicista é sagrado, tal como ocorre em
grande parte da história intelectual.

— —
Na tradição que estou descrevendo aqui de uma epistemologia
social histórica existe uma “ virada linguistica” , na qual o pressuposto
do texto (que privilegia seus atores e eventos) como o centro da análise
é rompido. A atençã o é dirigida para padr ões de pensamento e razão,
vistos como práticas sociais que constroem os objetos do mundo e não
“ meramente” representam aqueles objetos. Os estudos históricos devem
compreender que as categorias, distinções e diferenciações empregadas
definem o importante, o “ real ” e o ator. Minha discussão anterior sobre
as mudan ças históricas de um professor que “ vê” o ensino como
.
»> . internalizando a sinceridade cristã, para o professor que vê a criança
como “ aprendiz ” é um exemplo desse foco epistemologico. Os diferen -
tes sistemas de idéias podem ser vistos como “ colocando” a criança em
diferentes espaços epistemológicos que definem como a competência,
o rendimento e a salvação devem ser comprendidos e como se deve agir
sobre eles. Uma epistemologia social explora os diferentes princípios
de classificação da “ criança ” presentes, não apenas num texto, mas num
amálgama de condições sociais nas quais as classificações são legitima-
das (ver, p. ex., Crary, 1990).
Neste ponto, volto brevemente para o argumento da filosofia da
consciê ncia. Naquele argumento o ator faz a história; e não ter nenhum
agente significa introduzir um mundo determinista que não tem nenhu-
ma possibilidade de mudança. Meu argumento é que problematizar o
que tomamos como dado — nossas formas de raciocínio e princípios

de ordenação é uma estratégia para desestabilizar as formas reinantes
de “ raciocínio” . Isto introduz um paradoxo aparente à medida que
afastamos questões de agê ncia e atores do centro da análise. Ao se
desestabilizar as condições que confinam e prendem a consciência e seus
princípios de ordem, criando, assim, uma gama mais ampla de possibi-
lidades para a ação, o ator é, paradoxalmente, reintroduzido. Tornar
as formas de raciocínio e as regras para “ dizer a verdade” potencialmen-

17 A questão do conhecimento e da regulação é duplamente importante no programa


conhecido por Teach for America, cujo foco está na construção que os professores
fazem das crianças pobres e n ão- brancas.

184
te contingentes, históricas e suscetíveis à crítica é uma prá tica que
desaloja princípios ordenadores. Voltarei a essas questões após uma
discussão das rela ções entre curr ículo e poder.

O Currículo como Constituição de Regulações Sociais

As distinções anteriores entre as tradições historicistas e a epistemologia


social dirige o argumento para um estudo da escolarização e do currí-
culo que esteja centrado em questões hist ó ricas particulares sobre o

conhecimento como uma construção social questões que são intelec-
tualmente mais radicais que as das atuais psicologias construtivistas, as
quais deixam de levar em conta a historicidade das id é ias. Nas escolas
aprende-se não apenas sobre o que fazer e o que conhecer. Aprender
gram á tica, ci ê ncias ou geografia é també m aprender disposições, cons-
ciência e sensibilidades em relação ao mundo que está sendo descrito.
Minha ê nfase no conhecimento curricular está dirigida a vincular nossas
formas de falar e raciocinar
verdade” sobre n ós mesmos
—e
as formas pelas quais nós “ dizemos a
sobre —
os outros com questões de poder
e regulação.
A id é ia de regulação pode produzir uma forte reação na medida em
que “ atinge” uma parte da sensibilidade norte-americana — derivada 1


do Iluminismo que coloca um alto valor na iniciativa individual e na
intenção humana na direção da vida social. Minha preocupação com
regulação, entretanto, não deve ser lida como uma desconsideração
dessas sensibilidades iluministas. A razão e a racionalidade são centrais
aos esfor ços sociais para melhorar nossas condições humanas. Minha
preocupação com a regulação tampouco imputa o mal ao processo de
controle ou sugere algum bem transcendente através de sua erradicação.
Minha estratégia de investigação consiste em tornar a razão e a racio-
nalidade objetos de questionamento; isto é, consiste em explorar os
sistemas particulares de idéias e regras de raciocínio que estão entra-
nhados nas prá ticas da escola. Não podemos tomar a razão e a raciona-
lidade como um sistema unificado e universal pelo qual podemos falar
sobre o que é verdadeiro e falso, mas como sistemas historicamente
contingentes de relações cujos efeitos produzem poder.
À luz dessas preocupações, pergunto como podemos desenvolver
uma história do curr ículo que privilegie o conhecimento como um
problema de regulação social. Ao mesmo tempo, minha estratégia tem
outros dois focos: construir uma investigação histó rica do currículo que
não esteja amarrada ao positivismo e à filosofia da consciê ncia; e
assumir uma posição auto-reflexiva com respeito à relação entre o
trabalho intelectual e os movimentos sociais, uma posi ção que não
privilegie o intelectual (através de sua epistemologia ) como o portador
185
r
1
do progresso, uma questão discutida mais pienamente ao final do
ensaio.

O Currículo como Sistema de Regulação e Disciplina

O currículo (ou eu poderia usar o conceito mais amplo de pedagogia)


existe no interior de uma instituição chamada escola, que é uma
inven ção relativamente recente da sociedade ocidental. Digo “ socieda-
de ocidental” porque existem exemplos de aprendizagem e curr ículo
no Midrash islâ mico e no Yeshiva judaico que sugerem outras formas
de relações sociais em torno das quais se organiza institucionalmente o
conhecimento para os jovens (Gerholm, 1987). O curr ículo, pois, pode
ser visto como uma inven ção da modernidade, a qual envolve formas
de conhecimento cujas funções consistem em regular e disciplinar o
indivíduo.
A id éia de currículo corporifica uma organização particular do
conhecimento pela qual os indivíduos devem regular e disciplinar a si
pr ó prios como membros de uma comunidade/sociedade ( Lundgren,
1983; Hamilton, 1989; Englund, 1991).18 Desde a Reforma Protestan -
te, pelo menos, as escolas constituem padrões institucionais que colo-
cam em relação o Estado, a autoridade civil e religiosa e a disciplina
ir moral.19 As reformas introduzidas por Martinho Lutero iriam tornar a
educação um mecanismo “ disciplinador ” importante para a Reforma
(Luke, 1989 ). As reformas alemãs do século XVI não pretendiam apenas
educar as massas de acordo com princípios humanistas. O currículo é
uma imposição do conhecimento do “ eu” e do mundo que propicia
ordem e disciplina aos indivíduos. A imposição não é feita através da
força bruta, mas através da inscrição de sistemas simbólicos de acordo
com os quais a pessoa deve interpretar e organizar o mundo e nele agir:

Os valores humanistas sozinhos n ão teriam levado a um apelo em


favor da educação p ública, de massas; mas a necessidade da unidade
do Estado e da Igreja frente ao visível declínio moral e social na
Alemanha do século XVI exigiu uma total reavaliação da situação
18 Uso as palavras “ comunidade” e “ sociedade” como distin ções que têm importância
histórica. A primeira envolve relações de tempo/espaço que são locais; a segunda
envolve concepções mais abstratas do eu, tais como a de cidadão de uma nação, de
trabalhador, ou de um grupo étnico em conjuntos mais amplos de relações. A
medida que essas noções abstratas de sociedade tornam -se parte de nossa definição
do eu, elas mudam o significado e as relações pelas quais as comunidades são
¥ definidas.
19 Enquanto as discussões sobre aprendizagem e socialização nos Estados Unidos
tendem a estruturar filosoficamente essas considerações sobre as questões mais
profundas de educação, as discussões pedagógicas marxistas relacionam as questões
de cognição e afeto com responsibilidade político-moral (veja, p. ex., Mikhailov,
1976; Ilyenkov, 1977).

186
existente e um apelo em favor da reforma da ordem social, da qual
Lutero tornou-se o porta-voz (Luke, 1989, p. 97).
A inf â ncia e o alfabetismo tornaram-se institucionalizados como uma
estratégia para confrontar a desordem social com padr ões de valores
religiosos, sociais e morais. Os jesu ítas do século XVI reconheceram as
qualidades disciplinadoras da pedagogia como parte da Contra-Refor-
ma (Durkheim, 1977). Eles desenvolveram práticas de sala de aula que
reinterpretavam a literatura humanista e secular da Contra- Reforma
para afirmar os valores da Igreja Católica. Sua estratégia consistia em
1er os textos fora de seus contextos históricos de forma a inserir os
preceitos morais católicos na literatura pagã. Esperava-se que as escolas
promovessem a verdadeira f é, o serviço ao Estado e o funcionamento
apropriado da família.
Podemos compreender a escolarização p ú blica do final do século
XIX e in ício do século XX como uma continuação do projeto de
disciplinação e regulação da Reforma, mas també m como uma ruptura
nos sistemas de conhecimento pelos quais os indivíduos deviam se
tornar membros produtivos da sociedade. A escolarização de massas,
uma das principais reformas desse per íodo nos Estados Unidos, encap-
sulava princípios morais que se juntavam às emergentes tarefas associa-
das com o moderno Estado de bem-estar e uma religião universalizada, .flj
'

civil, associada com o Protestantismo.20 A escola era uma forma insti -


tucional para resolver os problemas de administração social e de
educação, produzidos por m ú ltiplas transformações. Eram parte dessa
paisagem: a industrialização, a urbanização, a imigração, as novas
organizações políticas associadas com as democracias, assim como o
pensamento intelectual que envolvia combinações de utilitarismo e
pragmatismo.
A noção de “ governamentalidade ” de Michel Foucault (1979) é ú til
para focalizar os novos princípios de regulação corporificados na
pedagogia. A partir do século XIX, Foucault argumenta, ocorre uma
relação entre práticas estatais de governo e comportamentos e disposi-
ções individuais.21 Se o Estado devia ser responsável pelo bem-estar de
seus cidadãos, a identidade dos indivíduos devia ser vinculada aos

20 Para uma discussão da secularização da religião, transformada em civismo, veja,


Bellah, 1968.
21 A palavra “ polícia” era usada para assegurar uma continuidade descendente entre
o governante do estado e suas populações. Na Idade Média, governar era uma
atividade extr ínseca: o poder do Pr íncipe consistia em proteger seu principado
geograficamente; a questão da regulação das almas e da preparação para a vida
eterna era deixada à Igreja. No século XIX, o significado de governar envolvia o
Estado na regulação e coordenação de pr á ticas de comportamentos e disposições
individuais. O complexo de instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos
-
e táticas que definem as pessoas como populações torna se important íssimo para a
arte de governar. A idéia de contrato social passa a ser uma forma de definir o
compromisso m ú tuo de governantes e sujeitos.

187
padrões administrativos encontrados na sociedade mais ampla. Em
múltiplas arenas sociais, ocorrem estratégias de intervenção e reformas
estatais, à medida que aparecem novas instituições de saú de, trabalho,
educação e novas estruturas mentais, juntamente com a emergê ncia dos
novos objetivos de bem-estar social do Estado.22
As Ciê ncias Sociais representaram prá ticas importantes na constru-
ção da arte de governar. A ciê ncia era vista como parte da herança
iluminista pela qual a sociedade podia progredir. O movimento das
racionalidades da ciência em direção às arenas sociais foi uma impor -
tante inven ção do século XIX. A ciê ncia descrevia, explicava e dava
unia direçã o para resolver os “ problemas sociais” . Mas os sistemas
teóricos nas Ci ê ncias Sociais n ão eram “ meramente” id éias para pensar
sobre como interpretrar a vida social ; eles emergiram de contextos
específicos, à medida que os conceitos foram recursivamente trazidos
para as prá ticas sociais, ao mesmo tempo que as expressavam.
Podemos descrever pelo menos três dimensões através das quais as

Ciê ncias Sociais incorporaram a arte de governar a governamentali-
dade mencionada por Foucault. Em primeiro lugar, em certos casos,
podemos identificar como conceitos morais e pol íticos foram trazidos
para as Ciê ncias Sociais e re-classificados como científicos através das
regras de expressão disciplinar, tais como os conceitos estatais de
pobreza e raça, nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.
Ao mesmo tempo, podemos també m localizar como conceitos particu-
lares que emergiram nas Ciê ncias Sociais tornaram-se parte do senso
comum, tais como o conceito de “ classe” de Marx, o conceito de
“ burocracia ” de Weber ou de “ ego” de Freud.
Em segundo lugar, sistemas de idé ias tê m qualidades de des-aloja-
mento/ re-alojamento. Podemos pensar na pesquisa, por exemplo, como
não apenas descrevendo o mundo, mas como re-localizando eventos
particulares da vida social em sistemas mais gerais de relações, através
das formas pelas quais os problemas de pesquisa são definidos e as
categorias selecionadas (Bledstein, 1976; Popkewitz, 1991; Wallens-
tein, 1984, 1990 ). (Algumas vezes esquecemos que os conceitos e
teorias de pesquisa são freq úentemente estratégias para ordenar e
interpretar racionalmente a vida cotidiana de uma forma que é diferente
do senso comum ). Quando falamos sobre nós mesmos como “ afetivos”
ou “ analíticos” , de nossas escolas como “ democráticas” ou “ burocráti-
cas” , ou de “ capital humano” , nós, recursivamente, localizamos nossas
relações pessoais no interior de sistemas abstratos e de espaços sociais
generalizados, tais como o de “ cidad ão ” de uma democracia pol ítica,

22 Essas aparê ncias de instituição são uma conjuntura histó rica e não o resultado de
um grande plano. Trata -se da reunião de múltiplos desenvolvimentos em m últiplas
arenas da vida social, que formam o que mais tarde chamarei de ruptura ou quebra.

188
de consumidor no interior das relações económicas do capitalismo, ou
de normas sociais/culturais de afeição relacionadas a gê nero.
Em terceiro lugar, as pr á ticas de governo tê m formas corporificadas
particulares pelas quais as práticas estatais e a consciê ncia individual se
relacionam. Aqui, a invenção da estatística (um termo francês para a
aritmé tica estatal ) fornece um exemplo do duplo movimento de racio-
cínio inscrito nas questões sociais. A estatística era uma estratégia de
Estado do século XIX. Aplicando um cá lculo de probabilidade, as
reformas do Estado e a política de saúde e riqueza construíram agrupa-
mentos e interesses sociais tendo como referê ncia agregados estatísticos
de populações. O raciocínio populacional dividiu as pessoas em unida-
des específicas que podiam ser calculadas, organizadas e pensadas
através da administração do Estado, tal como o controle de epidemias
e do crime ( Hacking, 1991).23
O raciocínio populacional como pensamento social produziu novas
formas de individualidade, uma individualidade na qual a pessoa é
definida normativamente em relação a agregados estatísticos que atri-
buíam à pessoa um “ crescimento” ou “ desenvolvimento” a ser monito-
rado e supervisionado. Esse raciocínio, entretanto, não é apenas o da
ciê ncia e administração do Estado. Ele se tornou parte dos sistemas de
senso comum de classificação sobre a aprendizagem infantil, o rendi-
mento escolar e os atributos sociais/ psicológicos que são considerados
causais em relação ao fracasso escolar.
Minha estratégia para relacionar a pedagogia, as práticas do Estado,
as Ciências Sociais e o raciocínio populacional à produção de padr ões
regulató rios tem um duplo objetivo. Em primeiro lugar, quero localizar
a escolarização como um projeto que ocorre com o surgimento do
moderno Estado de bem-estar no século XIX e com as correspondentes
questões das artes de governar. Neste sentido, as racionalidades da
ciê ncia eram parte de uma modernidade pressuposta no Iluminismo e,
como tal, quando inscrita na pedagogia, estava implicada nos sistemas
de regulação.
Em segundo lugar, os projetos de reforma educacional que inclu íam
“ teorias” de curr ículo, na virada do século, incorporavam sistemas de
ci ê ncia como tecnologias que governam a forma como as crianças
devem compreender quem elas são e o que elas são na sociedade.
Embora os l íderes dos movimentos escolares tivessem diferentes visões

23 Houve alguma discussão, no in ício das Ciê ncias Sociais, sobre a forma como
raciocinar sobre o mundo, na qual o raciocínio estatístico era apenas uma parte.
Também o raciocínio estatístico inicial sobre problemas sociais envolvia discussões
etnográficas assim como agrupamentos de pessoas de acordo com o pensamento
populacional. O que é importante, para mim, é que o pensamento populacional é
muito mais uma parte das atuais definições de problemas sociais. Na pesquisa que
estou realizando sobre a formação do professor urbano e rural, os professores
continuamente classificam os problemas das escolas e do ensino através de um
raciocínio populacional.

189
- ' TS>~
1
da ciê ncia, todos pensavam que a forma científica de organizar as
atividades escolares e o desenvolvimento moral das crianças era pro-
gressiva. As mudanças curriculares que Kliebard (1987) tão habilmente
explora eram parte de uma visão/re-visão do compromisso social e do
servi ço e f é individuais. Apesar de sua diversidade, pensadores como
John Dewey, G. Stanley Hall e David Snedden tinham em comum a
tentativa para trazer o conhecimento profissional, científico, para a
escola, como uma forma de regular o pensamento e o desenvolvimento
social e f ísico das crianças e as visões de competê ncia dos professores.24
Os diferentes sistemas de idé ias do per íodo constitu íram uma
re-visã o da imagem pastoral da pessoa em relação com uma noção
moderna, científica, do cidadão “ racional” . Assim, em um certo nível,
as questões centrais sobre escolarização eram questões sobre como a
instruçã o podia construir um “ novo” indivíduo: Deveria a escolarização
consistir em treinamento do caráter ? Deveria o currículo consistir em
produzir um cidadão e um trabalhador mais eficientes? Ou em permitir
que as crianças se desenvolvessem mais eficazmente ? Ou deveria a
escola reconstruir a sociedade, ao capacitar os estudantes para desen -
volver uma compreensão mais crítica das instituições e das questões
sociais?
Num nível diferente, as diferentes teorias de currículo que compe-
tiam na arena das escolas norte-americanas na virada do século XX
estavam lutando em relaçã o à forma como os indiv íduos deviam regular
a si pr ó prios (“ vir a compreender ” e “ participar inteligentemente” ) no
interior de novos conjuntos de relações e instituições que inclu íam o
Estado, as burocracias, o comé rcio e as relações de trabalho. As questões
do “ desenvolvimento infantil ” ou de eficiê ncia social não se referiam
apenas a qual conhecimento ensinar; elas eram també m regulatórias.
Para voltar a uma discussão anterior, a escola moderna e seu
curr ículo constitu íram uma ruptura nos sistemas de conhecimento
através dos quais os indiv íduos deviam regular e disciplinar seus “ eus” .
A escolarização corporificava estilos cognitivos “ modernos” particula-
res, pelos quais os indivíduos davam sentido a seus mundos sociais e
agiam sobre ele ( Berger et al., 1973; Foucault, 1973 ).25 Enquanto o

24 É importante observar que a maior parte dos discursos sobre a escola e o currículo
são pragmáticos, embora haja uma diferen ça entre o pragmatismo instrumental da
psicologia behaviorista e os escritos de Dewey.
25 Este “ eu ” moderno tem sido descrito como fragmentado, taxonô mico e sem história,
exceto aquela que celebra o presente como progresso (veja, por ex., Berger, Berger
e Kellner, 1973). A identidade tornou-se multifacetada, mas relacionada a atributos
abstratos, a partir dos quais elementos específicos podem ser cultivados através da
administração apropriada dos ambientes atuais. O tempo foi redefinido como
segmentos universais, racionais que n ão estavam mais entranhados em lugares
particulares. As tabelas de horá rio do trem corporificavam a nova consciência:
esvaziamento do tempo e do espaço nos quais as pessoas deviam localizar a si
próprias. As dimensões da consciência poaem ser entendidas como imersas no
seq üenciamento e na hierarquia de um plano de lição escolar que impõe um espaço

190
f
mundo anterior buscava sua verdade na divina provid ê ncia, o conheci-
mento pedagógico mais moderno do indivíduo tomou certas visões
religiosas sobre salvação e as combinou com disposições científicas
sobre a forma como a verdade e o autogoverno deviam ser buscados. A
instrução foi organizada cientificamente para focalizar os processos
sociais/ psicol ógicos pelos quais os indivíduos adquirem disposições,
sensibilidades e consciências, assim como a aprendizagem de “ informa-
ção” . As novas psicologias de solução-de-problemas, medição e desen-
volvimento infantil, por exemplo, n ã o apenas corporificavam
distinções e diferenciações que deviam regular a forma como a infor-
mação sobre a escolarização e os problemas deviam ser descritos, mas
os sistemas discursivos eram també m internalizados como categorias de
competê ncia e realização pessoal. A linguagem da crian ça como “ apren -
diz” colocava f é no indivíduo racional como o locus da mudança
(Meyer, 1986).
Para onde vamos, a partir daqui ? Como a histó ria entra na equação
daquilo que estudamos como práticas e reformas escolares ? Neste
ponto, minha resposta pode parecer ó bvia. Aquilo que é constituído
como ensino, aprendizagem e avaliação escolar não está meramente “ lá”
ou é meramente negociado por aqueles que trabalham nas escolas. Os
diferentes focos curriculares inscreveram profundas mudanças nas for-
mas de pensamento e raciocínio sobre a comunidade e o eu. A histori-
ciza çã o dos meios pelos quais os objetos da escola ( ensino,
aprendizagem, administração, curr ículo) tê m sido constituídos e trans-
formados ao longo do tempo é importante não apenas para uma
compreensão do passado, mas tem també m importantes conseqiiê ncias
para as discussões contemporâneas da reforma escolar. Os padrões
discursivos da escolarização contempor ânea corporificam sistemas de
regulação e poder, através de regras de expressão e diferenciação. Essas
regras de representaçã o não podem ser pressupostas; elas tê m que ser
historicizadas.

O Conhecimento como Tecnologia Disciplinadora

A noção de regulação não serve para atribuir distinções de bom/mau ou


moral/imoral quando se fala do processo de escolarização. Ela é utili-
zada para reconhecer uma premissa sociológica de que todas as situa-
ções sociais tê m restrições e constrições historicamente inscritas sobre
nossa individualidade. Mesmo quando se diz que se deve “ agir sozinho”
se reconhece que existem princípios estruturadores sobre o que é
permissível, os quais podem ser, às vezes, violados. Embora uma forte
f é no indivíduo como uma força de ação social exista no senso comum

unidimensional esvaziado do tempo, exceto aquele da seqiiência. O espaço foi


neutralizado à medida que era separado do lugar no qual a pessoa vivia ( veja também
Giddens, 1987) .

191
r

americano, nã o falamos do indivíduo sem invocar uma teoria de


sociedade que defina a individualidade (Popkewitz, 1983). Nesta altura,
pois, preciso considerar de que forma a noção de regulação pode ser
mais explorada quando falamos sobre escolarização e curr ículo.
Podemos pensar sobre o currículo como criando regulação em dois
diferentes níveis. Primeiramente, a escolarização impõe certas defini-
ções sobre o que deve ser conhecido. Trata-se da questão spenceriana:
Qual conhecimento é mais vá lido ? Certas informações são selecionadas
dentre uma vasta gama de possibilidades. Essa seleção molda e modela
a forma como os eventos sociais e pessoais são organizados para a
reflexão e a prá tica. Os processos de seleção atuam como “ lentes” para
definir problemas, através das classificações que são sancionadas.
Um diferente n ível de regulação, um nível, para mim, fundamental
para compreender as escolas, é o de que a seleção de conhecimento
implica não apenas informação, mas regras e padr ões que guiam os
indivíduos ao produzir seu conhecimento sobre o mundo. Não se trata
apenas de que notas são obtidas e diplomas são concedidos.26 O
processo de escolarização incorpora estratégias e tecnologias que diri-
gem a forma como os estudantes pensam sobre o mundo em geral e
sobre o seu eu nesse mundo. Juntamente com a aprendizagem de
conceitos e de informações sobre Ciências, Estudos Sociais e Matemá-
tica são aprendidos métodos de solução de problemas que fornecem
parâ metros sobre a forma como as pessoas devem perguntar, pesquisar,
organizar e compreender como são o seu mundo e o seu “ eu ” . Aprender
informações no processo de escolarização é também aprender uma
determinada maneira, assim como maneiras de conhecer, compreender
e interpretar.
Podemos ver as prá ticas escolares como formas politicamente
sancionadas para os indivíduos organizarem suas visões do “ eu” . Aqui,
os estudos feministas podem ser ú teis para localizar a forma como as
práticas lingúísticas não são apenas representativas de coisas no mundo,
mas també m elementos importantes de poder ( p. ex., Fraser, 1992;
Weedon, 1987; Lather, 1986 ). No caso do gê nero, os discursos e os
desempenhos do processo de escolarização normalizam não apenas
distinções sobre o que as meninas podem fazer em comparação com o

que os meninos podem fazer a aprendizagem escolar implica també m
distinções, diferenciações e sensibilidades que inscrevem emoções e
atitudes apropriadas. Estabelece-se uma relação entre cognição e emo-
ção, à medida que as performances e discursos da escolarização inscre-
vem esperanças e desejos (tais como o que constituem ocupações

26 Penso que é ^importante observar que muitos países europeus não têm a palavra
.
“ currículo” E uma palavra que surgiu no contexto de tradições estatais particulares,
nas quais os padrões de governo envolvem fortes relações entre as agências
governamentais oficiais e as associações profissionais de uma sociedade civil, tais
como a Grã -Bretanha e os Estados Unidos.

192
masculinas ou femininas ou como se deve agir e sentir na cozinha, no
locai de trabalho, numa classe de Matemática), e à medida que corpo-
rificam movimentos que caracterizam nosso andar, nossa fala e nossas
interações com outras pessoas. (A história da sexualidade talvez seja a
que melhor ilustra como a organização da linguagem estrutura, assim
como disciplina, o pensamento e as prá ticas corporais).
Se podemos jogar com uma palavra que é um dos lugares comuns
do processo de escolarização, o “ rendimento escolar ” é a produção de
uma determinada maneira e de maneiras, à medida que aprendemos a
nos situar no mundo. O rendimento escolar apenas parcialmente
consiste naquilo que é formalmente testado. Os discursos da pedagogia,
seguindo Luke (1990), em seus estudos da sala de aula, “ atuam não
como um conjunto abstrato de id é ias a serem transpostas para dentro
da mente/consciê ncia ” , mas como uma sé rie material de processos que
inscrevem atributos de subjetividade no corpo social (p. 5). Modelos de
alfabetização no processo de escolarização exibem “ posturas particula-
res (formas corretas de manter o corpo durante a leitura ), silê ncios,
gestos e sinais de demonstração de ‘estar presente na aula’ que codificam
formas particulares de agir, ver, falar e sentir do estudante” (p. 18).
Em vista do anterior, podemos ver os sistemas de idéias inscritos
na escolarização como tecnologias sociais. Por tecnologia social enten -
do um conjunto de métodos e estratégias que guiam e legitimam o que
é razoável/não razoá vel como pensamento, ação e auto-reflexão. As
prá ticas da escolarização ordenam quais objetos do mundo são coloca-
dos juntos e quais são diferenciados, e, ao mesmo tempo, tornam certas ü
“ coisas” dif íceis de serem referidas ou, algumas vezes, impossíves de
serem pensadas. Podemos compreender o racioc ínio populacional e as
psicologias escolares, por exemplo, como esquemas que funcionam
como tecnologias sociais. Eles formam os objetos que o professor
categoriza, interpreta e sobre os quais age. A organização do ensino
através do planejamento, seguindo uma hierarquia de objetivos, e a
administração de testes de rendimento para avaliar o sucesso/fracasso
escolar são outros exemplos de tecnologias sociais.
A organização do currículo contemporâ neo, desde o fim do século
XIX, por exemplo, tem produzido certas tecnologias sociais através de
seus princípios ordenadores de conhecimento. Boa parte da sociologia
do per íodo mantinha conceitos de controle social que explicitamente
reconheciam a relação entre padrões institucionais e o desenvolvimento
individual ( Franklin, 1986; Ross, 1991). A Psicologia foi a primeira
disciplina a ser formada na universidade, quando substituiu a filosofia
moral na definição de princípios para julgar e organizar a ação humana
(O’ Donnell, 1985 ). Com a introdução da Psicologia na escolarização
de massas adveio uma reestruturação da forma como os indivíduos
deviam ser vistos, definidos e avaliados. As Psicologias forneceram
tecnologias para organizar os métodos didáticos, os materiais instrucio-
193
nais e a organização do tempo das maté rias escolares ao redor dos quais
as crianças deviam “ aprender” (Gordon, 1987; Popkewitz, 1987).
As tecnologias de sala de aula não emergiram como uma conclusão

necessá ria, mas de lutas em m últiplas arenas de escolarização amal-
gamando práticas na formação de professores, currículo, organização
escolar, assim como práticas discursivas produzidas nas ciê ncias acadê-
micas relacionadas ao ensino e à administração escolar (Popkewitz,
1991). A conjunção desses diferentes padrões constituiu parte das
práticas regulató rias que guiaram e avaliaram os comportamentos de
professores e crianças.
Para sintetizar o que disse até aqui, o currículo é uma coleção de
sistemas de pensamento que incorporam regras e padrões através dos
quais a razão e a individualidade são constru ídas. As regras e padrões
produzem tecnologias sociais cujas conseqiiê ncias são regulatórias. A
regulação envolve não apenas aquilo que é cognitivamente compreen-
dido, mas também como a cognição produz sensibilidades, disposições
e consciê ncia no mundo social. Interpretar o presente
mudanças no processo contemporâ neo de escolarização
—— considerar
exige um
exame das continuidades e rupturas nos princípios classificatórios do
conhecimento corporificado na reforma educacional.

História e Epistemologias Sociais

Tendo descrito alguns focos para historicizar a escola e o currículo,


volto-me agora mais diretamente para as conseqiiê ncias metodológicas
dessa posição. Centro-me primeiramente na virada linguistica nos
estudos históricos e na forma como ela remodela as suposições do
conhecimento histórico e da mudança social. Argumento em favor de
uma epistemologia social que se centre nas regras, padrões e concepções
cambiantes de conhecimento inscritas no processo de escolarização. O
objetivo do estudo histó rico consiste em entender como as categorias
do passado são trazidas para o presente à medida que certos padrões
disciplinadores são incorporados através da organização do conheci-
mento escolar. Isso levanta questões sobre o desdobramento das rela-
ções de poder nos princípios ordenadores do conhecimento escolar.
Esta seção é seguida por uma discussão da mudança histórica vista como
uma ruptura na estruturação do conhecimento, em vez de como um
processo evolutivo. O foco na mudança histórica como constitu ída de
rupturas e nã o de evolução e desenvolvimento progressivo nos ajuda a
repensar questões anteriormente discutidas sobre a relação entre histo-
ricismo e epistemologia social. Se o foco histórico é colocado nas
rupturas nos padr ões de raciocínio, o intelectual n ã o pode mais funcio-
nar como um oráculo da mudança social. Para antecipar meu argumen-
to, a estratégia do estudo histórico considerada neste ensaio não

194
consiste em descartar o sujeito ou a ação dirigida pela intenção humana,
mas em mudar a maneira pela qual o sujeito é trazido para a história.27

A “ Virada Lingíiística” e o Descentramento do Sujeito

A “ virada linguistica” nas atuais discussões das Ciências Sociais e da


História pode ser vista como remodelando o projeto iluminista através
de um deslocamento do ator e da agência do centro do palco da
interpretação. Isso ocorre sem renunciar ao reconhecimento iluminista
de um mundo socialmente construído; ou sem eliminar a razão como
central à mudança social.28 O foco, entretanto, está na forma como os
espaços discursivos são construídos para organizar e produzir subordi-
nação; o foco é colocado na negritude e não nos negros, no gênero e
não nas mulheres.
O movimento em direção às qualidades constitutivas do discurso,
como argumentei antes, está relacionado a desenvolvimentos interdis-
ciplinares que privilegiam a linguagem na Filosofia, na Teoria Literá ria,
nos Feminismos, na Antropologia e na Sociologia, entre outras discipli-
nas. A preocupação é com a forma como as categorias, distinções e
diferenciações de sistemas de idéias posicionam as práticas e ações do
sujeito. A discussão anterior da forma como a história constr ói seus
objetos permite-nos pensar sobre a forma como os discursos corporifi-
cam princípios estruturadores da pr ática. Nos exemplos anteriores da
escola e do currículo, nós podemos entender como os princípios de
ordenação e divisão inscrevem propósito e intenção nas práticas.29
Intenção e propósito são vistos como imbricados em eventos estrutura-
dores através dos quais o discurso torna o que é possível dizer e “ sentir” ,
e, ao mesmo tempo, faz com que diferentes possibilidades deixem de
ser seriamente consideradas.
A linguagem, entretanto, não se refere apenas a palavras e afirma-
ções. As regras e padrões pelos quais a fala é construída são produzidos
em instituições sociais, enquanto as práticas sociais moldam e modelam
aquilo que é considerado verdadeiro e falso. Nos sistemas de linguagem
estão embutidos valores, prioridades e disposições que são elementos
ativos na construção do mundo.
Uma parte da “ virada lingíiística” consiste em reconhecer que,
quando “ usamos” a linguagem, pode ocorrer que não sejamos nós que
27 Tampouco estou negando as implicações políticas da produção intelectual de
conhecimento, mas reconhecendo ativamente que sua política está na própria
produção de conhecimento. Exploro esta questão mais detalhadamente em
Popkewitz, 1984, 1991.
28 A razão, entretanto, é ela pró pria revista. E vista como uma interven ção pragmática
no mundo, ao invés de como uma busca de princípios universais sobre o mundo
(veja, p. ex., Rorty, 1989; e Cherryholmes, 1983, 1988).
29 Veja Koselleck, 1991; Tally, 1990.

195
estejamos falando, mas a linguagem que nos foi dada através de
formações sociais que ocorreram no passado. Por exemplo, um dos
compromissos contemporâ neos em determinadas pesquisas educacio-
nais é falar sobre a “ voz” dos professores e estudantes como próprias,
pessoais e autênticas. Mas quando ouvimos a voz das pessoas falando
nas escolas, damo-nos conta de que boa parte dessa fala foi construída
anteriormente à nossa entrada em cena. Examinando as transcrições das
falas de professores e professoras em áreas urbanas e rurais (Popkewitz,
no prelo), descobri que eles/elas falam sobre administração e aprendi-
zagem sob formas que expressam relações particulares sobre adminis-
tração escolar que não são “ naturais” para eles/elas; em vez disso, a
linguagem advém de estilos de raciocínio historicamente formados. Os
professores e professoras usam um raciocínio populacional particular
para classificar as crianças não-brancas e pobres como tendo atributos
particulares que precisam ser remediados: crianças que são “ depen-
dentes” , que aprendem apenas “ fazendo” , crianças cujos pais estão
recebendo seguro-desemprego ou cuja mãe é “ mãe solteira” . Como
discuti anteriormente, esse raciocínio populacional é um padrão histo-
ricamente incorporado de raciocínio que disciplina as possibilidades
que os professores “ vêem” e sobre as quais agem. Os professores
“ aprendem” a linguagem do raciocínio populacional no processo de
socialização ocupacional.
Podemos nos voltar também para recentes estudos de retórica e
ciência para examinar a forma como a linguagem que falamos pode não
ser a nossa própria linguagem. Escrever num estilo acadêmico está
freq üentemente associado com a prática de se colocar uma série de
referências ao final de uma sentença, tal como está prescrito no manual
de estilo da Associação Americana de Psicologia. Fazer referências dessa
maneira significa adotar uma estratégia sobre conhecimento desenvol-
vida na psicologia comportamentista nos anos 20. Essa estratégia fazia
parte das práticas de legitimação do behaviorismo, as quais consistiam
em inscrever na ciê ncia a suposição de que o conhecimento científico
é cumulativo e seqüencial (Braverman, 1974).
Quando questionamos historicamente esses atos de escrita e fala,
não achamos nada “ natural” falar da escola como processo de geren -
ciamento, ou colocar citações no final de sentenças para elaborar um
argumento acad ê mico. As diferentes práticas são elas pr óprias estraté-
gias que exigem uma investigação histórica para se determinar como
formas de falar fazem parte de um conjunto de práticas simbólicas e
não-simbólicas e de tecnologias e instituições.
Fazer da estrutura lingiiística da história um problema central
envolve um descentramento do sujeito, um adeus ao sujeito centrado
que se encontra na filosofia da consciê ncia. A remoção do sujeito
significa compreender como, em diferentes é pocas históricas, as pessoas
são transformadas em sujeitos através do tecimento de diferentes prá -
196

i
ticas sociais e padrões institucionais. Por exemplo, Riley (1990) explo-
rou a forma como o conceito de “ mulher ” transformou-se, ao longo
dos últimos cem anos, da sua colocação em espaços religiosos como
uma “ alma” dominada pela Igreja, para espaços sociais, uma mudança
que implica uma re-visão das mulheres, através de seus corpos e sua
sexualidade. Historicizar significa tomar aquilo que é visto como
não-problemático — —
as mulheres como objetos a serem observados,
examinados e praticados e colocar a constituição do sujeito no centro
da análise, isto é, compreender como formas particulares de conheci-
mento são privilegiadas em relações sociais particulares e em relações
de poder historicamente definidas. Fazer do sujeito uma construção
histórica é também central ao argumento de Foucault sobre a história
como genealogia:
Temos que descartar o sujeito constituinte, livrarmo-nos do próprio
sujeito... para chegar a uma análise que possa dar conta da consti-
tuição do sujeito numa moldura histórica, e a isso eu chamo de
genealogia... uma forma de história que possa dar conta da consti-
tuição dos saberes, discursos, domínios de objetos, etc., sem ter que
fazer referência a um sujeito que é ou transcendental em relação ao
campo de eventos ou percorre sua mesmice vazia ao longo do curso
da história (1980, p. 117).
Chamei essa abordagem de “ epistemologia social ” quando fiz uma
análise da reforma educacional (Popkewitz, 1991).30 A epistemologia
social fornece uma forma de analisar as regras e os padrões pelos quais
o conhecimento sobre o mundo é formado e pelos quais as distinções,
as categorizações que organizam as percepções, as formas de responder
ao mundo e as concepções do “ eu” são formadas através de nosso
conhecimento sobre o mundo. Embora eu tenha algumas vezes usado
o conceito de “ discurso” intercambiavelmente com o de “ epistemologia
social ” , trata-se mais de um recurso literá rio, porque as teorias do
discurso desenfatizam a historicidade dos sistemas lingiiísticos. Alter-
nativamente, pois, o conceito de epistemologia social toma os objetos
constituídos como conhecimento da escolarização e os define como
elementos de práticas institucionais, historicamente formadas através
de relações de poder que dão coerê ncia e estrutura aos caprichos da
vida cotidiana. Uso a expressão “ epistemologia social ” como uma forma
de tornar o conhecimento corporificado no currículo escolar acessível
à investigação sociológica. Este conceito enfatiza o caráter relacional e
social do conhecimento.

30 Devo observar que Foucault rejeita a epistemologia em seu trabalho: sua referência
está numa tradição filosófica que trata a epistemologia como uma busca das regras
essenciais de conhecimento. Meu uso do termo “ epistemologia” como práticas
socialmente constru ídas está relacionado à noção de Foucault de “ regimes de
verdade” .

197
Essa abordagem da história tem sido popularizada no trabalho de
Thomas Kuhn (1970), embora eu utilize Kuhn com cautela, por causa
de sua concepção idealista de mudança. Kuhn estudou o que pode ser
chamado de tradição epistemologica, uma tradição que está vinculada
à história e filosofia da ciência francesa ( p. ex., Canguilhem, 1976,
1978, 1988 e Bachelard, 1984 ) e trazida para o estudo das ciências
sociais através do trabalho de Michel Foucault.31 Em Kuhn, nos filóso-
fos franceses da ciê ncia (Bachelard e Canguilhem ) e em Foucault existe
uma mudança no foco, que passa das intenções das pessoas para as
pr óprias estruturas do conhecimento.
Por que mudar para uma história epistemologica em vez de manter
as suposições da filosofia da consciê ncia ? Poder -se-ia argumentar que
centrar -se nas intenções e propósitos dos atores sociais fornece um
compromisso social e científico importante. Coloca as pessoas e seus
mundos sociais na história. Remover as pessoas da história significa
fazer com que o mundo pareça deterministico e fora da possibilidade
de intervenção.
Na verdade, esforços para remover o ator tê m sido vistos como
reacioná rios no interior do dogma da filosofia da consciência.32 Não
ter um ator visível —
agrupamentos de pessoas e indivíduos nas
narrativas dos eventos sociais é visto como anti- human ístico (e mesmo

antidemocrático). Não é incomum ouvir pessoas reagir sobre histórias
da escola perguntando: “ onde estão as pessoas na história ? ” . A suposi-
ção é a de um mundo no qual a salvação pode ser encontrada através
das boas obras das pessoas ou no qual o potencial não é limitado pelos
esquemas dos teóricos.
Embora esse argumento sobre o centramento do propósito e dos
atores humanos possa parecer um argumento analítico apropriado, a
conseqíiência sociológica dessa posição intelectual nem sempre tem sido
a de fortalecer o poder dos grupos subordinados. Sem adiantar dema-
siadamente o argumento, as conseqiiências práticas de um centramento
inquestionado no sujeito implica diversas questões sobre o poder, as

31 Poder-se-ia argumentar aqui que meu movimento da epistemologia para a obra das
pessoas re-inscreve uma filosofia da consciê ncia. O movimento em direção ao sujeito
pode também ser observado anteriormente, em meu uso do pronome “ eu ” . Esses
usos do sujeito, entretanto, não re-introduzem um sujeito, como na filosofia da
consciê ncia. Em vez disso, como Butler (1992) argumenta, significa posicionar o
sujeito na gram ática que o autoriza. A escrita é minha ou de um autor através das
posições teó ricas de reativação ou de resignificação que nos constituem e as quais
trabalhamos por meio das possibilidades de sua convergê ncia e da explicação das
possibilidades daqueles que são sistematicamente excluídos ( p. 9). A inclusão do
“ eu ” , portanto, significa reconhecer “ o ponto de transferê ncia daquela reativação”
na qual eu sou constituído através das pr áticas materiais e dos diiscursos que me
produzem como um sujeito.
32 E preciso 1er a atual teoria literá ria, os estudos feministas e as críticas
pós-modernistas em educação para compreender quão política é a questão de
privilegiar esse sujeito.

198
r

quais ficam ocultas sob a retórica. Butler (1992) argumenta, baseando-


se na literatura feminista e pós-colonial, que o centramento do sujeito
é uma invenção particular da filosofia ocidental. Quando o sujeito é
tomado, acriticamente, como o locus da luta pelo conhecimento sobre
o direito e a democracia, esse tipo de análise baseia-se nos mesmos
modelos que estiveram envolvidos no processo de dominação através
da regulação e opressão de sujeitos. Essa estratégia constitui tanto uma
consolidação quanto um ocultamento de relações de poder. Por exem-
plo, a pesquisa feminista tem nos ajudado a problematizar o conceito
de “ mulher ” de uma forma que nos permite compreender que as
características que associamos com gê nero são “ atributos” historica-
mente constru ídos, formados qo contexto de relações de poder. Quan -
do se faz as ações dos indivíduos aparecer como naturais, existe uma
tendê ncia a perder de vista a forma como agendas e categorias que
definem oposições são historicamente formadas. Os sistemas de rele-
vância são tomados como dados.
O descentramento do sujeito não implica varrer o sujeito da história
ou da teoria social ou renunciar ao projeto iluminista. A estratégia de
descentramento do sujeito é ela mesma um produto da própria auto-
reflexividade produzida através do Iluminismo. O descentramento do
sujeito tem seu próprio senso de ironia: há uma aceitação da necessidade
de construir um conhecimento que possa capacitar as pessoas a agir
intencionalmente, mas essa inserção ocorre numa localização diferente
daquela advogada na filosofia da consciê ncia. Ao se reformular o cará ter
dado do sujeito em termos de sua construçã o histórica se reintroduz o
humanismo na análise social. A construção de histórias sobre a forma
como nossas subjetividades são formadas (tornando as agendas e cate-
gorias do sujeito problemáticas) pode fornecer um espaço potencial
para intenções e atos alternativos que não sejam articulados através do
senso comum corrente. O sujeito torna-se uma dimensão do questioná-
vel e de uma “ resignificação e questionamento constantes” (Butler,
1992, p. 7) e não uma fundação da pesquisa tomada como inquestio-
nável.

Descentrando o Progresso: Da Evolução a uma História de


Rupturas

O foco nas categorias e regras do raciocínio leva a um segundo princípio


estruturador de uma epistemologia social histórica: a mudança não está
na progressão evolutiva ou nos esforços conscientes de pessoas para
influenciar os eventos. A mudança está na maneira e nas condições nas
quais os conceitos mudam (Toulmin, 1972, 1988 ). Quando Kuhn
(1970 ) fala de ciê ncia normal e revolucion á ria, por exemplo, ele
considera uma visão de mudança histórica que não envolve a inten ção
e a prática de indiv íduos, embora os indiv íduos e práticas particulares
sejam parte dessa narrativa sobre ci ê ncia. A “ ciê ncia revolucioná ria”

199
envolve conjuntos de regras e padr ões sobre a verdade
ser estudado, por que e como — — o que deve
que são diferentes dos da ciência
normal. São geradas novas questões (e conjuntos de relações) sobre
fenômenos, para os quais os paradigmas mais antigos são inadequados.
Além disso, as distinções entre a forma como a verdade é contada na
ciência normal e na ciência revolucionária, por exemplo, não são
cumulativas; elas envolvem, em vez disso, rupturas na crença e na
cognição, que ocorrem no interior de conjunturas históricas particula-
res.
Mas devemos ir alé m de Kuhn se quisermos pensar sobre mudanças
conceptuais. A forma como as pessoas contam a verdade sobre o mundo
é parte das transformações sociais pelas quais as relações com o mundo
e com nossos “ eus” são estabelecidas. Foucault (1975 ), por exemplo,
localiza o nascimento da moderna medicina nas mudanças sobre a
doença. No século XVIII, Foucault argumenta, as configurações espa-
ciais da doença e a localização da doença em patologias particulares
substituiu um sistema de classificação que dominava a medicina. Esse
ú ltimo via o problema principal da medicina como sendo de “ inclusões,
subordinações, divisões, semelhanças” em vez de ver a doença como
localizada em órgãos (p. 5 ). A nova forma de “ ver ” permitiu um olhar
clínico médico que via tecidos particulares como relacionados a pato-
logias de órgãos individuais, em vez de relacionados ao funcionamento
do organismo como um todo. As novas configurações do olhar médico
ocorreram ao longo do desenvolvimento do hospital de ensino e outros
locais institucionais nos quais a medicina era praticada.
A história das práticas médicas não foi uma história cronológica de
avanço progressivo ou de progresso em série. Foi a história de uma
é poca que “ se move em mil ritmos diferentes, rápida e lenta, que não
tem quase nenhuma relação com o ritmo cotidiano de uma crónica ou
de uma história tradicional ” (Braudel, 1980, p. 10). Podemos nos voltar
també m para o último Wittgenstein (1966), que forneceu uma forma
de entender a mudança histórica como múltiplos ritmos, desenvolven -
do-se ao longo de diferentes instituições, em diferentes é pocas, que se
reú nem naquilo que pode ser chamado de conjunção histórica. Witt-
genstein vinculou a mudança histórica a uma trama feita de muitas
fibras. A resistência dessa trama não reside no fato de que algumas fibras
a cobrem inteiramente mas no fato de que muitas fibras se sobrepõem.
O estudo histórico epistemologico presta atenção aos padrões
plurais e instáveis pelos quais o processo de escolarização é construído.
O conjunto de relações que se transformam no processo de escolariza-
— —
ção em suas formas de expressão e desempenho existe ao longo
de diferentes dimensões de espaço e tempo e fornece exemplos para
organizar casos e reconhecer mudanças naquilo que era anteriormente
visto como contínuo. A escola de massas, por exemplo, foi uma
invenção do século XIX, que emergiu de diferentes movimentos na

200
sociedade, os quais, em um determinado ponto, agiram de forma
autónoma entre si.33 Coincidindo com mudanças no ensino de sala de
aula estavam a criação de instituições para a formação de professores
(escolas normais), a emergê ncia da universidade moderna, a formação
das Ciências Sociais e o surgimento da disciplina da Psicologia. Essas
múltiplas arenas de prá tica social ocorreram em conjunção com o
moderno Estado do bem-estar, o qual assumiu as funções de governo
da nova instituição da escola de massas. As interpretações sobre a
escolarização de massas, portanto, precisam dar conta das m últiplas
intersecções de conhecimento construídas nessas variadas arenas. E na
conjunção dessas pr áticas do século XIX que palavras atualmente
favorecidas, tais como “ profissionalismo” , “ ciências educacionais” e
“ ensino baseado nas matérias” , devem ser situadas e é em relação a essa
conjunção que suas suposições devem ser analisadas.
Com essa finalidade, podemos explorar a epistemologia social nas
histórias do currículo de David Hamilton (1989) e Tomas Englund
(1991).34 Hamilton busca compreender como palavras particulares tais
como “ classe” e “ currículo” surgiram e mudaram ao longo do tempo
em relação às condições sociais, económicas e culturais nas quais aquelas
palavras existiam. Hamilton (1989) argumenta, por exemplo, que
influências calvinistas na Grã-Bretanha foram trazidas para os pstados
Unidos para moldar os sistemas instrucionais com formas bem -ó rdena-
das de organização social que podiam fornecer mecanismos mais efi-
cientes de supervisão moral e organização do trabalho. Ele argumenta,
além disso, que existe uma estreita relação entre práticas discursivas
pedagógicas cambiantes, concepções cambiantes de processos de traba-
lho e pressupostos cambiantes sobre o indivíduo e o estado. Englund
(1991), também seguindo essa tradição, distingue entre uma história do
consenso ( na qual existe uma abordagem e uma resposta a um dado
problema) e uma história epistemologica do currículo (na qual existe
“ uma luta contínua, incessante, de epistemologia social do conhecimen-
to escolar e uma análise mais próxima das diferenças nas interpretações
e na forma como o conte údo muda” ). Esta luta, Englund continua, “ tem
lugar em vá rios níveis: o do debate pú blico, dos programas, dos
materiais de ensino e do ensino concreto” ( p. 5).
Cada uma dessas histórias da escolarização nos permite compreen-
der como os objetos com os quais construímos os propósitos e as
33 Exploro essa histó ria em Popkewitz, 1991.
34 Hamilton evita qualquer discussão da teoria neste trabalho de historiador, embora
esteja claro, a partir de suas referências e método, que a teoria, como uma orientação
e enquadramento epistemologico de questões, é essencial ao problema do próprio
estudo. Englund é mais consciente dos dé bitos intelectuais inscritos em seu trabalho.
Outros trabalhos que contribuem fortemente para essa discussão, embora
tangenciando compromissos com a filosofia da consciência, são os de Barry Franklin
sobre educação especial, os estudos pioneiros de Ivor Goodson (1987) sobre as
disciplinas escolares e o de Kliebard (1986) sobre histó ria do curr ículo.

201

í
p -7'"

práticas da escolarização mudam ao longo do tempo. Podemos, por


exemplo, usar termos como “ professor” ou “ sala de aula” como formas
de pensar e organizar o que ocorre no interior das escolas. Mas em
épocas diferentes, existem diferentes ordenações epistemológicas das
relações pelas quais os indivíduos (professores e alunos) são posiciona-
dos e pelas quais a competê ncia pessoal e social é determinada. Para
Hamilton e Englund, a história não consiste em identificar a intenção
dos indivíduos, os propósitos de atores sociais ou o progresso, em
qualquer sentido absoluto. A história constr ói sistemas de idéias como
parte das condições materiais pelas quais o processo de escolarização é
constitu ído.
A partir desses exemplos de historicização do conhecimento esco-
lar, podemos construir um mapeamento social das mudanças epistemo-
l ógicas nas pr á ticas da escolarizaçã o. Fazemos isso a fim de
compreender as regras e padr ões anteriores pelos quais (e as condições
nas quais) a verdade sobre o ensino e as crianças no processo de
escolarização é dita e como essas regras mudam ao longo do tempo. A
preocupação histó rica descentra os atores particulares a fim de inter-
pretar como as práticas sociais e as subjetividades são constituídas.

O Estudo Regional em vez do Contexto

Este ensaio começou com distinções entre o historicismo e a filosofia


da consciê ncia, por um lado, e a epistemologia social pelo outro. Sugeri,
mais adiante, que a mudan ça histórica envolve rupturas e descontinui-
dades, através das quais sistemas de id éias constroem os objetos da
escolarização. Introduzo agora a noção de história regionalizada.
A primeira vista, a idéia de uma história regional poderia ser
entendida como um estudo específico e localizado num lugar geográfico
particular, tal como o estudo da escolarização na Nova Inglaterra, por
exemplo. Nosso interesse na região, entretanto, não é deste tipo. Uma
região, aqui, não é um lugar geogr áfico; é um campo discursivo que
posiciona como a criança é conhecida e conhece o mundo.35 O conceito
de região focaliza o estudo nas práticas lingíiísticas particulares que
produzem um objeto de escrutínio e observação, tal como a criança
moderna que vem para a escola e é classificada através de m últiplos
sistemas simbólicos que lhe atribuem um espaço epistemologico parti-
cular em vez de um lugar geogr áfico. Ela é escrutinada como um
adolescente, um aprendiz, uma personalidade com ou sem auto-estima,
um membro da família, um membro de uma classe social (um criança

de “ risco” ), um “ problema” médico de crescimento classificações que
definem a competê ncia, o rendimento e o bem-estar da criança de uma

35 Nos trabalhos de Michel Foucault e Pierre Bourdieu existem contínuas referências


à noção de região como um local de poder simbólico.

202
forma que, através das categorias aplicadas, transcende instituições
particulares. Estabelece-se um campo de distinções e diferenciações
sobre a criança, um campo que cruza as instituições da escola, da
medicina, do bem-estar social, da lei, da psicologia, das instituições
culturais relacionadas à família.36
A importâ ncia da idéia de campo discursivo (o que Foucault chama
de “ região” ) está no fato de que ela nos permite focalizar a forma como
discursos historicamente constru ídos em locais fisicamente diferentes
juntam-se para formar uma plataforma a partir do qual a individuali-
dade é definida. A individualidade parece transcender eventos e anco-
ragens geográficas sociais particulares. As histórias que Foucault escreve
são histó rias de como a pessoa se torna um sujeito através de regras e
normas particulares de “ razão/ não-razão” que invadem padrões insti-
tucionais particulares, mas não são redutíveis àqueles padrões. Seus
estudos da prisão e do criminoso, do hospício e do insano, do olhar
médico e dos desejos corporais na história da sexualidade são exemplos
de construções de campos discursivos através dos quais a individuali-
dade é definida nas múltiplas instituições da modernidade.
Podemos começar, pois, a definir de forma mais exata os focos de
um estudo da escolarização, através do exame de seus desdobramentos
discursivos, como construindo a região através da qual o sujeito e as
subjetividades são formadas e mudam ao longo do tempo. Podemos
pensar nos atores centrais da escola moderna

no professor, na
criança, no aluno, na criança com “ distú rbios” comportamentais e no
currículo escolar — como objetos cuja construção ao longo do tempo
conformou uma região que agora classifica e ordena a forma como a
pessoa e o mundo são apreendidos. O estudo de Hamilton (1989), por
exemplo, implica compreender como a formação linguistica que ocor-
ria na França, na Inglaterra, na Escócia e nos Estados Unidos efetuou
uma re-visão da criança, colocada dentro dos conceitos de “ classe” e
“ currículo” , que se tornaram, então, princípios classificatórios. Uma
conseqíiência das categorias e distinções consistiu em propiciar tecno-
logias sociais pelas quais os objetos da escolarização puderam ser
escrutinados, observados e supervisionados.
O conceito de região pode ser ilustrado, ainda, num estudo recente
de reforma educacional na Islândia (Johnanneson, 1991, no prelo).
Desde os anos 60, a reforma educacional na Islâ ndia tem sido um
elemento-chave no projeto de modernização das escolas. A moder-
nização pode ser vista como uma racionalização da organização das
escolas e das faculdades de educação. Mas essa organização envolveu

36 Estou usando as noções de região e de campo de forma intercambiável. Elas


fornecem metáforas que assinalam conjuntos complexos de relações através das
quais os objetos do mundo são conhecidos. As noções de região e campo também
fornecem uma forma de considerar a localização dos vá rios sistemas discursivos que
interagem e mudam ao longo do tempo.

203
mais do que estabelecer vínculos organizacionais e hierarquias pessoais.
A modernização implicou uma re-classificação do conhecimento através
do qual a escolarização era apreendida. Essa re-classificação e re-orde-
namento ficaram evidentes nos debates sobre o currículo escolar.
Estavam subjacentes às reformas nos Estudos Sociais e na Biologia, por
exemplo, conjuntos particulares de crenças a partir dos quais as matérias
escolares eram formadas. Mais: nos “ novos” conhecimentos curricula-
res, estavam inscritas disposições sobre progresso histórico, raciocínio
científico, desenvolvimento infantil e preocupações democráticas sobre
a forma como a escolarização poderia produzir uma sociedade mais
justa. Johnanneson explora como esses sentimentos estavam inseridos
no campo educacional para legitimar uma profissionalização particular
de progresso e de expertise educacional.
Para investigar como um campo discursivo recursivamente constrói
relações e atores sociais na educação, Johnanneson estudou os “ discur-
sos da pré-reforma” que emergiram no início do século XX quando a
Islâ ndia estava ainda sob domínio dinamarquês. O conhecimento cur-
ricular estava focalizado numa forma elitista de conhecimento que se
expressava numa idéia de “ excelê ncia” , numa pedagogia religiosa e de
narração de histórias, nos estudos cristãos, no nacionalismo e no
objetivismo que buscava definir as categorias do mundo como não-am-
bíguas e imutáveis.
O movimento de reforma do pós-guerra (Segunda Guerra Mundial )
na Islândia substituiu os discursos da “ pré-reforma” por discursos
profissionais de reforma. Esses discursos profissionais na arena educa-
cional competiam com os discursos pré-reforma. Johnanneson explora
como os temas discursivos se movimentavam pelos diferentes lugares:
os sindicatos docentes, a Faculdade de Educação da Islândia, a Univer-
sidade da Islâ ndia, o Ministério da Educação, o Instituto Estadual de
Desenvolvimento e Avaliação Escolar. As construções particulares de
reforma educacional reuniam-se numa rede de estratégias que organi-
zavam o que era visto como “ educacional” e como esse olhar concebia
as “ coisas” do mundo. Por exemplo, um novo currículo de Estudos
Sociais, baseado nas discussões norte-americanas do final dos anos 60,
era usado para argumentar em favor de uma escola moderna, progres-
sista e de um professor profissionalmente competente.
Podemos pensar no mapeamento que Johnanneson fez da Islândia
como uma forma de localizar as relações cambiantes de poder no campo
da educação, através de mudanças no campo do discurso. Num sentido
importante, seu mapeamento liga mudanças nos campos discursivos a
relações cambiantes entre atores e instituições na educação da Islâ ndia.
Os atores, entretanto, não são definidos anteriormente ao estudo; eles
são “ descobertos” através das posições epistemológicas que ocorreram.
Isto é, existem vá rias pessoas que falam sobre reforma, mas que,
simultaneamente, defendem as epistemologias prevalecentes das práti-

204
r
cas escolares. As relações institucionais são compreendidas através das
estratégias discursivas e não através do exame das características bio-
gráficas das pessoas ou da atribuição dos atores a causas estruturais de
mudança.
Podemos pensar no método histórico como um mapeamento social
das práticas epistemológicas e condições sociais, à medida que elas
definem fronteiras sobre o que deve ser autorizado como razão/não-ra-
zão com respeito aos objetos da escolarização. O mapeamento das
mudanças conceituais é relacionado com uma visão relacional dos
discursos para compreender como os princípios de ordenação são
re-organizados e re-visados. O foco regional nas práticas discursivas em
competição na reforma educacional nos permite uma compreensão de
como regras e padr ões particulares de verdade atravessam padrões
institucionais particulares, não sendo redutíveis àqueles padrões.
A noção de região é parte de uma estratégia que não mais privilegia
uma noção de tempo cronológico e espaço f ísico, tal como a estratégia
do historicismo e da filosofia da consciê ncia. A região é uma forma de
passar do positivismo, que vinculava o espaço social ao contexto
geogr áfico, para uma noção de campo discursivo como construindo um
campo particular através do qual as subjetividades são formadas e o
poder é desdobrado. A preocupação é a construção de um campo
discursivo, as regras de sua formação e suas mudanças ao longo do
tempo. O foco nas lutas no interior de um campo discursivo é diferente
da estratégia de olhar para lugares f ísicos particulares e para o tempo
cronológico regulado como definindo as fronteiras da pesquisa.

Conclusões

Meu argumento neste ensaio moveu-se através dos diferentes níveis do


problema de construir uma narrativa histó rica. Meu passo inicial con-
sistiu em focalizar o currículo como um problema histórico particular
a fim de compreender como o poder é produzido através da produção
de regras e padrões de verdade. Nessa concepção, a história do currí-
culo, assim como boa parte da produ ção da “ virada lingiiística” , consiste
em investigar o que conta como evidência, as regras pelas quais a
verdade é estabelecida e os efeitos de se ter algumas coisas contando
como evid ê ncia e verdade enquanto outras coisas são desautorizadas e
consideradas falsas (Wickam, 1990, p. 41). Mas, como argumentei, ela
consiste em “ mais” do que estudar as regras de “ dizer a verdade” . O
curr ículo sanciona socialmente o poder através da maneira pela qual (e
as condições pelas quais) o conhecimento é selecionado, organizado e
avaliado nas escolas. Fazer história como um estudo de epistemologia
social é ver as cambiantes divisões de verdadeiro/falso em uma socieda-
de como relacionadas a relações de poder ao invés de como um

205
resultado direto da existê ncia de uma dada realidade. Ao longo deste
ensaio, forneci diversos exemplos dessas histórias curriculares.
Posso, neste ponto, considerar algumas das cr íticas feitas à episte-
mologia social, como a de que a epistemologia social leva a um
relativismo niilista que seria incapaz de fornecer normas e eliminaria o
ativismo político, através da negação do sujeito. Minha resposta, que
se baseia em Butler (1992), reconhece um certo etnocentrismo ocidental
no argumento que toma o sujeito centrado como uma categoria univer -
sal inquestion ável. A estratégia que afirma que toda pesquisa deve
focalizar o sujeito como a ú nica estratégia teórica e pol ítica legítima de
mudança é ela própria um ato político perturbador. Ela supõe que não
pode haver nenhuma oposição política à sua estratégia de especificar o
sujeito anteriormente ao ato de investigação ou de cr ítica informada.
Essa posição de um sujeito a priori na teorização, Butler (1992) argu-
menta, “ torna-se um artif ício autoritário pelo qual o conflito político
sobre o status do sujeito é sumariamente silenciado” ( p. 4).
Em resposta a essa cr ítica, argumento que a epistemologia social é
uma prática tanto conceituai quanto política. Imbricada na filosofia da
consciê ncia está uma posição social particular do pesquisador educa-
cional. Esta posição é a de um oráculo que deve trazer mudança e
progresso ao mundo. Este papel de profecia não é, necessariamente, um
papel de intenção pessoal, mas de epistemologias que ordenam e
caracterizam os discursos sobre conhecimento disciplinado (discuto isto
mais detalhadamente em Popkewitz, 1991, cap. 8 ). As tradições melho-
rativas nas Ciê ncias Sociais e na História buscam identificar padrões de
desenvolvimento — aprender da história ao planejar o futuro. A
promessa é que a eficácia e a racionalidade produzirão progresso social.
* Nas ciê ncias cr íticas baseadas em supostos hegelianos existe um esforço
para identificar o funcionamento repressivo do presente, a fim de
movimentar as práticas sociais em direção a alguma síntese universal
que produza o bem. Aquilo que é rotulado como bem é também
chamado de progressista.
Em ambos os casos, de formas diferentes, dependendo das asserções
de verdade, os intelectuais se colocam a si mesmos como capazes de
identificar a importância futura das interpretações presentes. Esta
estratégia intelectual estabelece os cientistas sociais e os historiadores
como personagens legítimas e autorizadas para o delineamento de
questões sociais. Considero essa suposi ção sobre progresso nas Ciê ncias
e na História da Educação como perigosa numa democracia. Exemplos
histó ricos de intelectuais que são posicionados como experts a serviço
do ideal democrático estão repletos de suas próprias contradições.
Podemos considerar a tradição intelectual na qual eu coloco a
epistemologia social como uma tentativa de alterar a relação entre o
conhecimento disciplinar, o pesquisador e as esferas pú blicas nas quais
as pessoas lutam para tornar seu mundo melhor. Compreender a

206
mudança como constituída de rupturas e descontinuidades é questionar
qualquer teleologia na produção de conhecimento pelos intelectuais.
Uma vez que não existem padr ões de progresso a descobrir, também
não existe nenhum papel privilegiado do intelectual em fazer emergir
aquele mundo progressivo.
Considerar a mudança histórica como rupturas epistemológicas
não significa impossibilitar a ação política. Construir histórias sobre
epistemologias sociais em vez de sobre atores não significa renunciar ao
papel da razão e da racionalidade na busca de um mundo mais demo-
crático. Na verdade, a epistemologia histórica sobre a qual escrevi até
aqui implica a tarefa paradoxal de nos colocarmos na história de forma
que nós, coletivamente, através de nossas ações no presente, alteremos
a causalidade que organiza as construções de nossos “ eus” e, nesse
processo, possamos abrir novos sistemas de possibilidade para nossas
vidas coletivas e individuais.37 A estratégia de historicizar o sujeito é
uma estratégia que reintroduz a humanidade nos projetos sociais, ao
tornar visíveis e confrontáveis os sistemas governantes de ordem,
apropriação e exclusão.
Meu foco numa epistemologia social (um descentramento do sujei-
to) não consiste em eliminar as práticas de mudança social, mas em
desafiar as convenções nas quais essas práticas ocorrem, em tornar
problemático o sujeito que tem sido tão central à pesquisa moderna e
seus efeitos regulatórios. Isso não significa negar a política do conheci-
mento, mas em tornar a política parte das condições reflexivas da
produção de conhecimento. Tornar problemático o sujeito desde o
início não é a mesma coisa que negar ou descartar essa noção. Significa
perguntar sobre os processos de construção, significado político e as
conseq üê ncias de se falar sobre o sujeito como uma exigê ncia ou um
pressuposto da teoria (Butler, 1992, p. 4).
Uma sensibilidade histórica em relação à forma como construímos
nossa subjetividade é parte da vigilâ ncia epistemologica de que falam
Bourdieu et al. (1991), quando eles advertem para a necessidade de
reflexividade nos métodos de estudo. Focalizar a epistemologia social
constitui uma estratégia teórica que “ vê” o poder como permeiando os
quadros conceituais que constroem os objetos de investigação, incluin-
do a posição de sujeito do crítico, os passos teó ricos que estabelecem
seus pressupostos fundacionais e os pressupostos que são exclu ídos ou

37 Compreendo o “ eu ” e o “ nós” dessa conversa tanto como biográficos quanto como


históricos. A construção de uma epistemologia social envolve compreender os

campos histó ricos nos quais “ minha” biografia está posicionada compreender os
movimentos sociais nos quais o trabalho intelectual ocorre, assim como as formas
disciplinares de censura que operam para moldar e modelar aquilo que é permissível
dizer e não dizer.

207
çr""" - —-
barrados. O estudo da história é o estudo da objetificação daqueles
elementos que os historiadores consideram estar objetivamente dados.38
Não estou preocupado apenas com o passado. Estou preocupado
com a forma como o passado é trazido para o presente para disciplinar
e normalizar. Penso que ao construir teorias de escolarização precisa-
mos levar a sério aquilo que as teorias lingiiísticas vêm nos dizendo há
pelo menos 70 anos. Os discursos sobre educação construídos na
formulação de pol íticas educacionais, nos relatórios de reformas e nos
documentos de outras posições institucionalmente legitimadas de auto-
ridade não são “ meramente” linguagens sobre educação; eles são parte
dos processos produtivos da sociedade pelos quais os problemas são
classificados e as práticas mobilizadas. Não existe qualquer distinção,
como muitos gostariam de acreditar, entre teoria e prática, ou entre o
“ mundo real da escola” e os sistemas de linguagem sobre a escola. O
que temos são sistemas de relações e não sistemas separados. Tampouco
podemos deixar de ser reflexivos sobre a posição de sujeito do crítico
e sobre a epistemologia do progresso.

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38 O potencial radical desta tradição está em sua combinação com as tradições


neopragmáticas que aparecem em recentes estudos. O neopragmatismo fornece uma
estratégia para nos ajudar a re- pensar as qualidades contingentes do conhecimento
e das práticas sociais à medida que nos envolvemos em lutas pú blicas para construir
novas possibilidades. A epistemologia social sobre a qual falo neste ensaio e o
neopragmatismo dos estudos recentes, entretanto, não devem ser confundidos. Eles
representam diferentes movimentos sobre a mudança social e sua interpretação. Um
consiste num movimento de desestabilização; o outro é um movimento para
desenvolver um programa progressivo de ação. (Quero agradecer a Fazei Rizvi por
uma conversa que me ajudou a compreender esta relação). Cada um dos
movimentos, entretanto, exige o outro. A construção do conhecimento histórico
como constituído de rupturas e quebras ajuda a desestabilizar os campos discursivos
existentes e suas relações de poder e, ao mesmo tempo, remove o intelectual da
posição de oráculo do progresso social. Com uma estratégia desestabilizadora, o
neopragmatismo fornece uma posição defensável a partir da qual é possível analisar
as práticas do debate pú blico ( para uma an álise dessa última em educação, veja
Cherryholmes, 1988; 1992). Os intelectuais participam desses debates pú blicos
através da produção do conhecimento como parte de sua política, mas, ao mesmo
tempo, as qualidades contingentes e n ão-progressivas de seu conhecimento não lhes
fornecem qualquer localização privilegiada.

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Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.


Thomas S. Popkewitz é Professor da School of Education, University
of Wisconsin-Madison, Estados Unidos da Amé rica.

210
10
Michael Peters
Governamentalidade Neoliberal e Educação

Em toda sociedade a produção de discursos é, ao mesmo tempo,


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo
n ú mero de procedimentos cujo papel é o de conjurar seus poderes
e perigos, para obter domínio sobre seus eventos casuais, para
evitar sua pesada, imensa materialidade (Michel Foucault, 1984,
p. 109).

Talvez possamos dizer que enquanto a Renascença substituiu o


culto do Deus da Idade Média pelo culto do Homem com H
mai úsculo, nossa era está produzindo uma revolução de não
menor importâ ncia, ao eliminar todos os cultos, uma vez que está
substituindo o último culto, o do Homem, pela linguagem, um
sistema suscetível de análise científica (Julia Kristeva, 1989, p. 4).

\
/ ascondi ção da pós-modernidade representa tanto uma ruptura com
filosofias fundacionais do Iluminismo quanto uma crise de suas

principais ideologias seculares o Liberalismo clássico e o Marxismo.
No Ocidente, desde os dramáticos eventos de 1989 e 1990, o foco de
interesse tem-se voltado para o colapso do comunismo na Europa do
Leste. Esses eventos obscureceram e colocaram em segundo plano,
temporariamente, desenvolvimentos políticos e económicos que esta-
vam ocorrendo nos estados liberais/capitalistas. Paradoxalmente, pre-
cisamente na é poca em que teóricos como Lyotard (1984) estavam
proclamando a falência das metanarrativas (grand récits ) do Iluminis-
mo, os estados liberais/capitalistas testemunhavam a volta e a revitali-
zação das narrativas mestras do liberalismo económico clássico, sob o
disfarce da assim chamada Nova Direita, como uma base para o estado
u /
mimmo

.
55

O liberalismo clássico tem sido a metanarrativa dominante, a qual,


em uma de suas formas, ao menos, tem apelado à razão sob a forma de
um individualismo que privilegia o sujeito racional, cognoscente, como

211
F"

a fonte de todo conhecimento, significação, autoridade moral e ação.


A variante particular dessa metanarrativa que informa o racionalismo
económico da Nova Direita é construída nos termos clássicos do Homo
economicus : a suposição é a de que em todos os nossos comportamentos
agimos como indivíduos auto-interessados. Desde o início dos anos 80,
a Nova Direita tem sido notavelmente bem sucedida em fazer prevalecer
uma razão fundacionalista e universalista
— — a filosofia de um indivi-
dualismo neoliberal como a base para uma reconstrução radical de
todos os aspectos da sociedade: uma mudança na pol ítica económica,
favorecendo uma economia da oferta { supply-side economics ) e o
monetarismo, uma completa reestruturação do setor pú blico e um
distanciamento em relação ao tradicional estado do bem-estar social. A
forma de razão política que veio a dominar as agendas políticas dos
governos liberal-capitalistas é eurocè ntrica em sua origem e racionalista
e totalizadora em seus efeitos. Nos seus termos mais simples, podemos
dizer que esta forma de razão é motivada por um racionalismo econó-
mico extremo, que vê o mercado não apenas como um mecanismo
superior de alocação para a distribuição de recursos pú blicos escassos,
mas també m como uma forma superior de economia política. O
princípio central das teorias que subjazem à reestruturação do setor
pú blico, incluindo as estratégias de privatização e um ataque orquestra-
do aos princípios do Estado social-democrá tico, é uma filosofia do
individualismo que representa uma renovação do principal artigo de fé
do liberalismo económico clássico. Ele afirma que todo comportamento
humano é dominado pelo auto-interesse. Sua principal inovação, em
sua versão contemporâ nea, consiste em elevar este princípio ao status
de um paradigma para compreender a pr ó pria política e, na verdade,
para compreender todo comportamento. A teoria económica da polí-
tica sustenta que as pessoas deveriam ser tratadas, tout court, como
maximizadores racionais do grau de utilidade.
Em termos globais, a Nova Direita representa um reforçamento e
uma renovação da agora dominante metanarrativa do modernismo.
Com o colapso histórico do comunismo e o aparente declínio popular
do marxismo, o liberalismo tornou-se progressivamente mais transpa-
rente como a ideologia oficial de legitimação do capitalismo multina-
cional avançado. Sob as novas políticas de desregulação e privatização
da Nova Direita, juntamente com um programa massivo de venda de
recursos estatais, os Estados liberais/capitalistas têm experimentado
uma internalização crescente de suas economias e, concomitantemente,
a influê ncia significativa das empresas multinacionais na economia. Ao
mesmo tempo, a Nova Direita tem imposto e retrabalhado sua variante
do liberalismo económico clássico como uma visão totalizante do
futuro. Um tal projeto, para propósitos ideológicos, constr ói o futuro
em termos de uma visão utó pica pós-industrial, baseada na f é na ciê ncia,
na tecnologia e na educação como os setores-chave que aumentarão, a
longo prazo, a vantagem competitiva nacional na economia global. A

212
Nova Direita tem explorado uma narrativa política mestra de indivi-
dualismo para legitimar uma forma extrema de racionalismo económi-
co. Esta narrativa, atuando sob a forma de um artefato legitimador,
projeta uma unidade sobre o futuro. E orientada para o futuro, embora
esteja ancorada no passado. Em um violento ato de fechamento, ela
representa o futuro em termos totalizadores, excluindo, neste processo,
outras histó rias possíveis que podemos projetar no futuro, ao argumen-
tar que não existe qualquer outra narrativa.
Não existe, talvez, melhor exemplo da extensão do mercado a
novas á reas da vida social que o campo da educação. E^ claro que, sob
os princípios do neoliberalismo, a educação tem sido discursivamente
reestruturada de acordo com a lógica do mercado. A educação, neste
modelo, não é tratada de forma diferente de qualquer outro serviço ou
mercadoria. Como Fairclough (1992) observa, uma parte principal
dessa reestruturação compreende mudanças importantes nas práticas
discursivas. Nessa nova situação, as pessoas são pressionadas para se
envolver em novas atividades que são ampiamente definidas por novas
práticas discursivas tais como marketing, publicidade e ger ê ncia. Essas
mudanças incluem recodificações discursivas tanto de atividades quanto
de relações: o resultado é que os alunos e aprendizes se tornam
“ consumidores” ou “ clientes” e os cursos se tornam “ pacotes” ou
“ produtos” . Uma reestruturação mais sutil das práticas discursivas da
educação tem ocorrido em termos de uma colonização da educação por
tipos de discurso vindos de seu exterior.
A obra de Foucault fornece recursos para compreender aquilo que
vou chamar de paradoxo do Estado neoliberal. O paradoxo consiste no
fato de que embora o neoliberalismo possa ser considerado como uma
doutrina que prega o Estado autolimitador, o Estado tem-se tornado
mais “ poderoso” sob as pol íticas neoliberais de mercado. A compreen -
são deste paradoxo pode ser frutiferamente obtida através da noção de
governamentalidade de Foucault, na qual o poder é compreendido em
seu sentido mais amplo como a estruturação do campo possível da ação
de outras pessoas. Embora as pol íticas neoliberais de privatização dos
recursos estatais e de comercialização da esfera p ú blica possam ter
levado a um estado mínimo ou, ao menos, a uma “ diminuição” signifi-
cativa, o Estado tem retido seu poder institucional através de uma nova
forma de individualização, na qual os seres humanos transformam-se
em sujeitos do mercado, sob o signo do Homo economicus. Esta é a
base para compreender o “ governo dos indivíduos” na educação como
uma técnica ou forma de poder que é promovida através da adoção de
formas de mercado.
Na primeira seção deste capítulo, introduzo a noção de discurso de
Foucault e sua relação com a produção discursiva do invidíduo como
a base para uma compreensão da pol ítica educacional neoliberal. O
trabalho de Foucault pode ser compreendido como uma crítica ao

213
sujeito e à metanarrativa liberal do eu: um eu individual autónomo,
racional e pienamente transparente, um eu ao mesmo tempo separado
da sociedade e logicamente anterior a ela, capaz de fazer escolhas no
mercado de acordo com seus desejos. Na segunda seção, investigo as
formas pelas quais a educação tem sido discursivamente reestruturada
sob o signo do Homo económicas como uma forma de governamenta-
lidade neoliberal.

Foucault, o Discurso e o Sujeito

Foucault (1983, p. 208 ) aplicou-se a uma reformulação do objetivo de


seu trabalho no “ Posfácio” ao livro de Dreyfus e Rabinow (1983), no
ano anterior à sua morte. Ele indica que seu objetivo tem sido o de “ criar
uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os
seres humanos são tornados sujeitos” e sustenta que seu trabalho tem
lidado com “ três modos de objetivação que transformam os seres
humanos em sujeitos” : os modos de investigação dos discursos baseados
nas disciplinas que objetivam os seres humanos sob foriílas diversas e
específicas; a objetivação do sujeito através do que ele chama de
“ práticas de divisão” ( p. ex., louco/são, doente/sadio); e a forma pela
qual os seres humanos transformam a si próprios em sujeitos, especial-
mente no dom ínio da sexualidade.
Esses tr ês temas são analisados em termos de uma nova economia
de relações de poder que, como ponto de partida, adquirem a forma de
resistê ncia contra as diferentes formas de poder. Em vez de examinar
os vínculos entre a racionalização da sociedade e do poder do ponto de
vista de sua racionalidade interna, Foucault examina as relações através
do antagonismo das estratégias. Ele toma uma sé rie de oposições
“ pr áticas de divisão” , envolvendo o poder dos homens sobre as mulhe- —
res, dos pais sobre os filhos, da medicina sobre a população em geral,
da psiquiatria sobre o mentalmente doente
— como ponto de partida
e tenta ver o que precisamente elas tê m em comum. De forma crucial,
para Foucault, essas são lutas que questionam o status do indivíduo;
elas são lutas, como ele diz, contra “ o governo dos indivíduos” , e seu
principal objetivo é o de se constituir em uma técnica ou forma de
poder. Elas são lutas contra os efeitos do poder que “ estão vinculadas
com saber, competê ncia e qualificação” (id.). Foucault observa dois
significados da palavra sujeito, sugerindo que ambos os significados
indicam uma forma de poder que subjuga o indivíduo e o torna sujeito
a algo. Com base nisso, ele argumenta:

Em geral, pode-se dizer que existem três tipos de luta: contra formas
de dominação (étnica, social, religiosa ); contra formas de exploração
que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; contra aquilo
que prende o indivíduo a si próprio e, dessa forma, submete-o a

214
r
outros (lutas contra a sujeição, contra formas de subjetividade e
submissão) (Foucault, 1983, p. 212).
Ele sugere que embora esses três tipos de luta existam ou de forma
separada ou combinada, o terceiro tipo tem-se tornado mais importante
na época atual, na qual o poder do Estado é ao mesmo tempo indivi-
dualizador e totalizador. Ele investiga esse tipo de poder historicamen-
te, em termos da técnica de poder pastoral que se originou nas
instituições do Cristianismo. O Estado moderno, ele argumenta, cons-
titui uma “ matriz moderna de individualização, ou uma nova forma de
poder pastoral” (ibid., p. 215 ). O problema, portanto, não é o de nos
libertar do Estado per se, mas do tipo de individualização que está
vinculado ao Estado através dessa nova forma de poder pastoral e
promover novas formas de subjetividade que escapem a esse tipo de
individualização que nos tem sido imposto. Assim, Foucault focaliza a
questão da forma como o poder é exercido e analisa a relação de poder
ao focalizar instituições cuidadosamente definidas, nas quais esse tem
assumido diferentes formas (com base na escola, na família, na justiça
e nos sistemas económicos). Deste modo, o exercício do poder pode
ser definido em termos da forma pela qual certas ações podem estrutu-
rar o campo da ação possível de outras pessoas e, em ú ltima instâ ncia,
essa ênfase leva a um foco no “ governo” em seu sentido mais amplo,
como a estruturação do campo possível da ação de outras pessoas. Ao
analisar o poder nesses termos, Foucault vincula sua análise de formas
de discurso, “ a individualização de discursos” , não apenas com o assim
chamado sujeito e sua formação discursiva pluralista, mas também com
temas tradicionais na economia política e, em particular, com uma
crítica das formas de governo liberal (incluindo suas formas neoliberais
recentes).
Talvez o ponto mais importante e que mais clarifica o conceito de
discurso de Foucault é sua ênfase no fato de que ele é um pluralista: o
problema que ele diz tratar é o da individualização dos discursos. A esse
respeito, ele menciona crité rios conhecidos e confiáveis: a separação
dos sistemas lingiiísticos aos quais os discursos pertencem e a identidade
do sujeito que os conserva unidos (isto é, o sujeito da Psiquiatria, da
Medicina, da Gramática, etc.). A esses critérios ele acrescenta os de
formação, transformação e correlação, que permitem a descrição de
uma episteme em termos do exercício de diferenças específicas no
interior do espaço discursivo. A “ mudança” histórica, para Foucault,
deve ser analisada tendo como referência diferentes tipos de transfor-
mação em sua especificidade. Uma tal abordagem leva ao estabeleci-
mento do seguinte esquema para estudar a mudança (trata-se de um
esquema que não deve ser considerado como uma tipologia exaustiva):
1. fyíudanças no interior de uma dada formação discursiva incluem
mudanças de: dedução ou implicação, generalização, limitação (através
da mudança entre objetivos complementares, através da passagem a um

215
r 1

outro termo de um par, através da permutação de dependê ncias),


exclusão ou inclusão. (O modelo do qual Foucault extrai seus exemplos
é o da gramática geral).
2. Mudanças que afetam as pr óprias formações discursivas, incluin-
do: o deslocamento de fronteiras, novas posições falantes de sujeito,
novos modos de funcionamento objeto-linguagem e novas formas de
localização e circulação do discurso.
3. Mudanças que simultaneamente afetam diversas formações dis-
cursivas, incluindo: as inversões de hierarquia, mudança na natureza do
princípio diretivo e deslocamentos funcionais.
Foucault (1991, p. 59) está preocupado em analisar o jogo de
dependências entre os níveis intradiscursivo, interdiscursivo e extradis-
cursivo do discurso através da arqueologia, que é a descrição de um
arquivo, isto é, “ o conjunto de regras que, num dado período e para
uma dada sociedade” , define os limites e as formas do dizível, da
conservação, da memória, da reativação e da apropriação. Em relação
a isso, o interesse de Foucault está em tratar o discurso como um
monumento a ser investigado em termos de suas condições de existê n-
cia, em vez de como leis estruturais de construção, e a ser relacionado
“ não a um pensamento, mente ou sujeito que o produziu, mas ao campo
prático no qual ele é desdobrado” (ibid., p. 61). Assim, ele retorna ao
tema do “ autor ” e do sujeito falante individual, um tema significativa-
mente problematizado no “ estruturalismo” e no anti-humanismo da
abordagem psicanalitica de Lacan, e mais tarde, de forma mais efetiva,
por Althusser. Foucault (1991, p. 59) afirma explicitamente num
determinado momento:
A questão que eu formulo não é sobre códigos mas sobre eventos: a
lei de existência de sentenças, aquela lei que as tornou possíveis
eles e nenhuma outra coisa em seu lugar: as condições de sua

emergê ncia singular; sua correlação com outros eventos simultâ-
neos, discursivos ou não. Mas eu tento responder a essa questão sem
referi-la à consciência, obscura ou explícita, dos sujeitos falantes;

sem referir os fatos do discurso à vontade talvez involuntá ria
de seus autores; sem recorrer àquela intenção de dizer o que sempre

vai além daquilo que realmente foi dito; sem tentar capturar a fugidia
sutileza não-dita de uma palavra que não tem qualquer texto.
Em outra passagem, no mesmo texto, ele torna claro que “ os sujeitos
discursantes fazem parte de um campo discursivo” , acrescentando: “ O
discurso não é um lugar no qual a subjetividade irrompe; é um espaço
de posições-de-sujeito e de funções-de-sujeito diferenciadas” (id., p.
58 ).
A tarefa que Foucault se impôs, pois, foi a de desafiar e questionar
os temas da origem, do sujeito constituinte e do significado implícito,

216
a fim de “ libertar o campo discursivo da estrutura histórico-transcen-
dental que a filosofia do século XIX lhe impôs” (ibid., p. 62), discor-
dando da afirmação de que a política progressista está necessariamente
presa a esses temas. Uma política progressista, pelo contrário, está presa
mesmo é ao questionamento desses temas: trata-se de uma pol ítica “ que
não faz do homem ou da consciê ncia ou do sujeito em geral o operador
universal de todas as transformações” (ibid., p. 70). Uma política
progressista “ reconhece as condições histó ricas e as regras específicas
de uma pr á tica” e “ procura definir as possibilidades de transformação
de uma prá tica e o jogo de dependê ncias entre essas transformações”
(ibid., p. 70 ).

Neoliberalismo, Educação e a Cr
ítica da Razão de Estado

Como Gordon (1991, p. 15) afirma, utilizando uma interpretação


foucaultiana, o liberalismo clássico pode ser caracterizado, em termos
kantianos, como uma crítica da razão de Estado. Com isso ele quer dizer
que o liberalismo é essencialmente uma doutrina pol ítica sobre os
limites do Estado. Em termos desta interpretação da doutrina, os limites
do governo estão intrinsicamente relacionados aos limites da razão de
Estado, isto é, seu poder para saber. Em seu sentido moderno, a arte
do governo, considerada de forma ampla como a administração de uma
população que habita um território, depende de seu conhecimento
sobre aquele território e seus habitantes, tornado possível pelas novas
ciê ncias da estatística e da administração (veja, p. ex., Hacking, 1991).
Como Gordon (1991, p. 16) observa: “ A finitude do poder do Estado
para agir é uma conseq üê ncia imediata da limitação de seu poder para
saber ” . Esta interpretação, naturalmente, depende de um conjunto
adicional de relações teóricas entre formas de razão ( racionalidades),
saber e poder, e de conceitos foucaultianos como poder/saber. Uma
parte importante dessa interpretaçã o do liberalismo supõe a liberdade
do indivíduo, pois o poder é definido precisamente em relação à
liberdade do indivíduo para agir. Gordon (1991, p. 47) fornece a
seguinte síntese dessa id éia:

Foucault não parece ter ficado intrigado pelas propriedades do


liberalismo como uma forma de saber calculada para limitar o poder,
ao persuadir o governo de sua própria incapacidade; pela noção do
dom ínio da lei como a arquitetura de um espaço social pluralista; e
pela forma neoliberal germâ nica de conceber o mercado social como
um jogo de liberdade sustentado pelo artif ício e invenção do gover -
no.

A história intelectual do problema-espaço do governo liberal, nesta


visão, é uma história do reconhecimento e da interpretação sucessiva
da impossibilidade, para o homem ou para o soberano, do conhecimen -

217
to da totalidade: a economia como um todo ou a sociedade como um
todo. Foucault enfatiza o dom ínio da lei, no pensamento liberal, como
uma forma técnica de governo desenhada para estabelecer condições
de segurança para as quais a liberdade individual é uma condição
necessá ria. Essa liberdade, pois, é vista não apenas como um meio para
assegurar os direitos dos indivíduos contra os abusos do soberano mas
também como “ um elemento indispensável da própria racionalidade
governamental” (Foucault, citado em Gordon, 1991, p. 20 ), pois ela
assegura a participação do governo no estabelecimento de um sistema
de lei que é a pré-condição necessária para uma economia governada.
Isto é, a ideologia do individualismo, moldada em conceitos como o de
Homo economicus, estabelece um sistema de autogoverno baseado em
formas facilitadoras de regulação natural.
O objetivo aqui não é o de revisar as afirmações de Foucault ou a
interpretação de Gordon, mas o de adotar a perspectiva geral (sem
qualificação ou discussão ), a fim de ir al é m delas, em termos de uma
discussão do revival histórico da doutrina do Estado autolimitador,
como uma base para compreender as atuais formas de governamenta-
lidade neoliberal no campo da educação. Meu ponto de partida consiste
em reconhecer a força da crítica e do desafio de Gordon (1991, p. 6 )
contida na seguinte observação:
Em síntese, Foucault sugere que o recente neoliberalismo, entendi-
do... como um novo conjunto de noções sobre a arte do governo, é
um fenô meno consideravelmente mais original e desafiador do que
a crítica cultural da esquerda tem a coragem de admitir, e que seu
desafio político é um desafio ao qual a esquerda está singularmente
mal equipada para responder, ainda mais que, como Foucault argu-
menta, o pró prio socialismo não possui e nunca possuiu sua pró pria
forma distintiva de governo.

Com esse desafio em mente, volto-me para o exame das diferenças entre
liberalismo e neoliberalismo nos termos expressados por Gordon e
outros autores, aproveitando o espaço aberto pelo trabalho de Foucault
sobre governamentalidade.
Gordon descreve três versões de neoliberalismo, as quais receberam
alguma atenção de Foucault em seu curso no Collège de France, em
1979. Ele menciona, em diversas passagens, essas versões do neolibe-
ralismo, as quais tê m suas ra ízes na Alemanha Ocidental do pós-guerra
( Ordoliberalen ), nos Estados Unidos (a “ Escola de Chicago” ), e na
França. Essas novas formas não representam um retorno “ inocente” aos
principais artigos de f é do liberalismo. Em outras palavras, o revival
histórico do liberalismo na atualidade não é simplesmente um exercício
de nostalgia, representando um retorno simples e ingé nuo a princípios
do passado. Existem diferenças importantes entre as formas passadas e
presentes de liberalismo: o neoliberalismo, em outras palavras, exibe

218
uma estratégia interpretativa inovadora, ao reformular os princípios
básicos para acomodar novas exigências. O que eles têm em comum,
como afirma Burchell (1993 , p. 270 ), “ é uma questão a respeito da
extensão na qual relações e comportamento de mercado competitivos,
otimizadores, podem servir como um princípio não apenas para limitar
a intervenção governamental , mas também para racionalizar o próprio
governo” .
Gordon atribui ao Ordoliberalen a capacidade de produzir novos
significados para o conceito de “ mercado” , considerado como uma
forma de governamentalidade. Ele enfatiza, por exemplo, que , contra
Hayek, 1 sob essa forma de governamentalidade neoliberal , o mercado
não é mais pensado como uma instituição natural ou espontânea. Em
vez disso, o mercado é visto como um construto social em desenvolvi -
mento, que deve ser protegido e que exige , portanto, um quadro
jur ídico e institucional positivo para que o jogo dos negócios funcione
pienamente. Como Burchell (1993 , pp. 270- 1 ) indica claramente, as
formas neoliberais atuais diferem das formas anteriores de liberalismo
na medida em que:
elas não vêem o mercado como uma realidade quase-natural já
existente , situada numa espécie de reserva económica, num espaço
delimitado, assegurado e supervisionado pelo Estado. Em vez disso,
o mercado existe , e só pode existir, sob certas condições pol íticas,
legais e institucionais, que devem ser ativamente construídas pelo
governo.

Enquanto para o liberalismo anterior a limitação do governo estava


ligada à racionalidade da livre conduta dos próprios indiv íduos gover-

1 Embora Hayek seja considerado uma das principais fontes de inspiração para a assim
chamada Nova Direita, ele claramente aeve ser distingíiido da posição neoliberal.
Hayek enfatiza, numa abordagem anti-racional, que muitas das instituições que
caracterizam a sociedade tê m surgido e funcionam sem um plano. Essa é a celebrada
concepção de Hayek da “ ordem espontâ nea ” , uma reinterpretação da hipótese da
“ mão invisível” , que é usada para explicar e legitimar o mercado como a instituição

social paradigm ática supostamente, “ um sistema sob o qual homens maus podem
fazer o m ínimo dano” . E dessa perspectiva básica, a qual Hayek chama de
“ verdadeiro individualismo ” , que ele deriva tanto sua defesa da propriedade privada
quanto a noção do estado mínimo. O estado mínimo é uma conseqiiê ncia da
“ demanda por uma limitação estrita de todo poder coercivo ou exclusivo” (Hayek,
1949, p. 16). O mercado, de acordo com Hayek, estabelece uma ordem
individualista tratável porque ele assegura que as remunerações do indivíduo
correspondam aos resultados objetivos de seus esforços e de seu valor para outros.
A preservação da liberdade individual, portanto, na visão de Hayek, é incompatível
com a noção de justiça distributiva e, em geral, com a noção de igualdade tal como
<; :
tem sido interpretada, de forma progressista, durante o período de desenvolvimento
do estado de bem -estar social. Em outras palavras, a noção de liberdade individual
subscrita por Hayek e por aqueles que o seguem, está em desacordo com a noção
de direitos sociais do século XX, uma noção que envolve a expansão gradual da
cidadania e que serviu como base para o desenvolvimento do estado de bem-estar
social.

219
nados, para o neoliberalismo, em contraste, “ o princípio racional para
regular e limitar a atividade governamental deve ser determinado em
refer ê ncia a formas artificialmente arranjadas ou impostas da conduta
livre, empresarial e competitiva de indivíduos económico-racionais”
( Burchell, 1993, p. 271). Burchell (1993, p. 274 ) descreve o neolibera-
lismo, seguindo o trabalho de Donzelot, como promovendo “ uma
autonomização da sociedade através da invenção e proliferação de
modelos quase-econômicos de ação para a conduta independente de
suas atividades” , e esclarece o que ele quer dizer com isso através do
exemplo da educação sob o governo conservador britânico. É um
exemplo importante para os meus objetivos neste capítulo e merece ser
citado mais extensamente:
Na á rea da educação, por exemplo, exige-se que as escolas indivi-
duais e outros estabelecimentos educacionais ajam cada vez mais de
acordo com uma espécie de lógica do “ mercado” competitivo, no
interior de um sistema inventado de formas institucionais e práticas.
Por um lado, elas ainda funcionam num quadro estabelecido pelo
governo central, o qual envolve, por exemplo, o financiamento
direto das escolas pelo Estado, de acordo com uma f órmula nacional,
um currículo nacional obrigatório, a testagem periódica dos alunos,
a aprovação governamental do sistema e da conduta administrativa
das escolas (que devem se conformar a um corpo complexo de
legislação e ordens ministeriais), a publicação obrigatória dos resul-
tados de exame de cada escola, e assim por diante. Entretanto, por
outro lado, exige-se que cada escola, individualmente, funcione cada
vez mais como uma quase-empresa independentemente administra-
da, em competição com outras escolas. Elas são encorajadas a se
esforçar por adquirir um status ou valor especial no mercado de
serviços escolares. Elas tê m que promover a si pr ó prias para atrair
mais alunos do tipo certo de forma que possam obter melhores
resultados nos testes e possam, assim, continuar a atrair os alunos
certos, enviados por “ pais-consumidores” , obtendo fundos crescen-
tes do Estado e de fontes privadas...

Ele conclui sugerindo que “ a generalização da ‘forma empresarial’ a


todas as formas de conduta... constitui a característica essencial desse
estilo de governo: a promoção de uma cultura de empresa” (Burchell,
1993, p. 275).
Para o Ordoliberalen , como Gordon (1991, p. 42) comenta, “ o
principal problema... não são os efeitos anti-sociais do mercado econó-
mico, mas os efeitos anticompetitivos da sociedade” . Todas as três
versões do neoliberalismo às quais Gordon se refere estão, em menor
ou maior medida, comprometidas com a institucionalização do jogo da
empresa como um princípio generalizado de organização da sociedade
como um todo. Em todas as versões essa caracter ística é vista como

220

i
assumindo a forma de uma espécie de individualismo que envolve
moldar a vida da pessoa como a empresa de si mesma: o indivíduo se
torna, como Gordon (1991, p. 44) observa, “ o empresá rio de si
mesmo” . Esta noção é descrita em termos da ê nfase da versão francesa
do “ cuidado de si ” , especialmente em relação ao “ direito de permanente
retreinamento” . Ela també m aparece na versão norte-americana de
interpretação do trabalho como capital humano, na qual o trabalho é
constru ído em termos de dois componentes, compreendendo um dom
gené tico e um conjunto adquirido de capacidades produzidas, como
resultado do investimento privado na educação e em recursos culturais
similares.
Gordon (1991, p. 43) vê a versão norte-americana como a mais
radical na medida em que ela propõe “ uma redescrição global do social
como uma forma do econ ómico” . Vale a pena citar sua interpretação
mais longamente:

Essa operação funciona através de uma progressivo alargamento do


território da teoria econó mica, por uma sé rie de redefinições de seu
objeto, partindo da f órmula neoclássica de que a economia diz
respeito ao estudo de todos os comportamentos que envolvem a
alocação de recursos escassos a finalidades em competição. Agora,
propõe-se que a economia diga respeito a todas as condutas inten-
cionais que impliquem escolha estratégica entre vias, meios e instru-
mentos alternativos; ou, ainda mais ampiamente, a toda conduta
racional (incluindo o pensamento racional, como uma variedade da
conduta racional ); ou ainda, finalmente, a toda conduta, racional ou
irracional, que responde a seu ambiente de uma forma não-aleatória
ou que “ reconhece a realidade ” .

Este “ progressivo alargamento” está baseado num postulado compor-


tamental conhecido como Homo economicus, isto é, na redescoberta
moderna do principal princípio da economia liberal cl ássica, de que as
pessoas devem ser tratadas como maximadores racionais da utilidade
para reforçar seus pró prios interesses (definidos em termos de posições
mensuráveis de riqueza) na pol ítica, assim como em outros aspectos da
conduta.
Sobre essa base, os governos neoliberais tê m argumentado em favor
de um estado mínimo, proposta que tem se limitado à determinação
dos direitos individuais construídos em termos de consumo, e em favor
de uma exposição máxima de todos os fornecedores à competição ou
à reivindicação, como uma forma de minimizar o poder de monopólio
e maximizar a influ ê ncia do consumidor sobre a qualidade e o tipo de
serviços fornecidos. A aplicação desse raciocínio à educação é facilmen-
te compreendida. Seus pressupostos teóricos nem sempre tê m se torna
do expl ícitos, mas eles partem claramente de uma perspectiva
-
neoliberal, sancionando reformas na administração educacional no

221
W'" ,
'T

assim chamado movimento para devolver ou delegar a responsabilidade


na medida em que isso for praticável, enquanto, ao mesmo tempo, se
aumentam os poderes locais das escolas e pais, vistos como consumido-
res individuais de educação. A teoria da escolha p ú blica resulta, dessa
forma, numa “ modelagem conservadora ” da educação (Dale, 1994),
transformando o conhecimento numa mercadoria através de seu valor
central de escolha individual e promovendo arranjos à semelhança do
mercado, os quais se tornam a base para a cultura de empresa, na qual
os seres humanos se transformam em indivíduos para o mercado.
A noção de “ cultura de empresa” , desenhada para a economia
pós-industrial dos anos 90, pode ser vista, em termos pós-estruturais,
como a criação de uma metanarrativa (Lyotard, 1984) — uma história
totalizadora e unificadora para legitimar o prospecto do crescimento
económico e do desenvolvimento, com base no triunvirato da ciê ncia,
da tecnologia e da educação. Essa narrativa mestra, que projeta uma
visão ideológica nacional, difere de “ histó rias” passadas. Não está
baseada em qualquer tentativa para reescrever o passado, para diminuir
os desequil íbrios de poder ou as desigualdades econ ó micas. Diferente-
mente da alternativa social-democrata, ela não adota a linguagem da
igualdade de oportunidades ou do multiculturalismo. Sob o imperativo
econ ómico, as questões de igualdade e justiça social sofrem um recuo.
Essa nova metanarrativa está baseada numa nova visão do futuro. A
linguagem usada para sustentar essa visão é uma linguagem de “ exce-
lência” , “ inovação, melhoria e modernização” , “ obter mais com me-
nos” , “ alfabetização tecnol ógica ” , “ revolução na informação e nas
telecomunicações” , “ marketing e ger ê ncia internacionais” , “ treinamen-
to de habilidades” , “ desempenho” e “ empresa ” .
As palavras-código “ empresa” e “ cultura de empresa” são os prin-
cipais significantes desse novo discurso. Elas fornecem, ao mesmo
tempo, uma análise da mudança e uma prescrição para ela: a educação
é um setor-chave na promoção da vantagem competitiva económica
nacional e na prosperidade nacional futura. No passado, houve uma
ê nfase demasiada nos objetivos sociais e culturais e uma ê nfase insufi-
ciente nos objetivos econ ómicos dos sistemas educacionais. Daqui para
diante, devemos investir pesadamente na educação como a base para
um crescimento econó mico futuro, redesenhando os sistemas educacio-
nais de forma que eles atendam às necessidades do comé rcio e da
indústria. O imperativo económico é o que predomina.
A noção de “ cultura de empresa ” també m apreende e atualiza algo
da iconografia popular do passado, aquela que rodeava a ideologia que
motivou os reformadores educacionais norte-americanos dos anos 60,

durante o debate em torno da “ corrida centrada no Sputnik com
os russos” , o cená rio da “ Guerra do Espaço” dos anos 80 e, mais

recentemente, a ameaça japonesa às empresas americanas. Como uma

metáfora para o discurso dos pós-industriais anos 90 na era da assim

222
chamada “ nova ordem mundial” do fim da guerra fria, do desacelara-
mento da corrida armamentista e dos acordos de paz
— o foco passou
da exploração do medo da iminente destruição envolvida na rivalidade
das superpotências para o papel que as novas tecnologias de informa-
ção, das comunicações e do computador (entre outras) podem exercer
no declínio económico, face à competição internacional e à necessidade
de se alinhar às nações líderes na ocupação do centro da arena interna-
cional.
De forma crescente, questões de sobrevivê ncia e competição eco-
nómica nacional na economia mundial são vistas, sob o neoliberalismo,
como questões de reconstrução cultural. A tarefa da cultura de recons-
trução em termos da empresa tem envolvido remodelar as instituições
de acordo com crité rios comerciais e encorajar a aquisição e uso de
qualidades empresariais e empreendedoras. Assim, de acordo com esse
novo discurso mestre, tanto o estado de bem-estar social quanto o
sistema educacional tê m sido criticados por levar a uma “ cultura da
dependê ncia” .
Se aceitamos que a noção de empresa não está confinada aos
negócios, para ser julgada puramente em termos de ganhos momentâ-
neos de curto prazo, então podemos querer reconhecer outros conceitos
de empresa, ligados às noções de iniciativa, práticas sustentáveis ou
simplesmente sobrevivência no sentido mais grosseiro. Se a empresa
deve ser definida como negócio, puro e simples, então os educadores
devem resistir vigorosamente a essa noção e à sua intrusão na educação.
A noção de “ cultura de empresa” pode ter uma série de interpretações
ideológicas, algumas das quais podem ser adequadas para a educação,
mas outras podem ter efeitos perniciosos. Podemos começar por fazer
distinção entre elas.
A educação pode, de fato, ser a estrela do futuro. Ela pode, se
concebida de forma inteligente, tornar-se a base para que a assim
chamada “ nova economia” forneça as capacidades, habilidades, com-
preensões e atitudes necessá rias para uma sociedade pós-industrial,
baseada na informação. Entretanto, a noção de “ cultura de empresa” ,
tal como tem sido apresentada nos discursos sobre política educacional,
não permite que os educadores ou o setor empresarial formulem
modelos de empresa que possam melhor servir às necessidades da
sociedade e da economia através do aumento tanto do n ível de partici-
pação quanto do bem-estar dos trabalhadores, por meio de um processo
de decisão cooperativo e de participação nos lucros. Em outras palavras,
a cultura de empresa, pode, alternativamente, tornar-se uma agenda
para estabelecer as condições necessárias para uma democracia pós-in-
dustrial. Ela pode identificar como esses modelos atuam em diferentes
á reas da economia, em pequena e em grande escala, em novas e antigas
economias. Apenas quando os educadores e o pú blico em geral puderem

223
r

ver os benef ícios da “ cultura de empresa” dessa forma é que essa noção
poderá merecer uma maior consideração.
Tal como está colocada, a noção de cultura de empresa tem sido
construída no sentido económico mais estreito. Ela é parte de uma nova
metanarrativa que , em termos retóricos, nos apresenta uma visão do
futuro baseada na expectativa de crescimento económico. Esta narrati-
va, entretanto, embora concedendo à educação um lugar privilegiado,
juntamente com a ci ência e a tecnologia, reflete a apropriação “ criati -
va” , por parte da Nova Direita, da literatura pós-industrial. Em essência,
esse discurso pode ser visto mais como “ uma reação do pós-industria-
lismo” do que como um discurso que explora suas possibilidades
democráticas sociais.

Referências
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Perspective. Discourse, 14 (2), 1994: 17-29.
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LYOTARD, J. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Manchester, Manchester
University Press, 1984.

Este ensaio foi escrito especialmente para o presente livro. Tradução


de Tomaz Tadeu da Silva
Michael Peters é Professor do Departamento de Educação da
Universidade de Auckland, Nova Zelândia.

224
11
Alfredo J. Veiga Neto -
Foucault e Educação:
Outros Estudos Foucaultianos

/'"Quando o organizador deste livro solicitou que eu escrevesse este

^
v capítulo, entregou-me vários textos que considerava interessantes
e que se relacionavam diretamente com o tema central da obra que ele,
então, pensava publicar. Por vários motivos, aquele material não seria
incluído neste livro. No nosso entendimento, isso seria lamentável:
todos aqueles textos continham, em maior ou menor grau, contribui-
ções relevantes para a minguada bibliografia brasileira sobre Michel
Foucault e, principalmente, sobre os aportes que o seu pensamento
pode trazer à Educação. A solução pensada pelo organizador deste livro
entusiasmou-me — preparar este capítulo, no qual aqueles textos
pudessem figurar, ainda que de maneira bastante resumida. (No caso
de Jennifer Gore e James Marshall, que tê m ensaios incluídos nesta
obra, são sintetizados aqui outros trabalhos de sua autoria).
Para que fiquem claros os propósitos do presente texto, esclareço
que aquilo que segue não representa um levantamento sobre autores
que trabalham questões educacionais numa perspectiva foucaultiana.
També m, ao tratar de cada autor, não tive a preocupação de apresentar
uma aná lise extensiva da respectiva obra. E ainda mais: ao comentar
esse ou aquele livro ou artigo, não me ocupei em fazer uma síntese de
cada um. Meu objetivo consiste apenas em trazer, para a literatura
educacional brasileira, exemplos comentados sobre as possibilidades
anal íticas e críticas que a obra de Michel Foucault abre para a pesquisa
e para a prática neste campo.
Comentar trabalhos e pesquisas educacionais que adotam uma
perspectiva foucaultiana implicou, para mim, també m entrar no pensa-
mento do filósofo. Decorreu disso que, al ém das conhecidas dificulda-
des conceituais e operacionais desse tipo de perspectiva, deparei-me,
també m, com os riscos de cair numa aparente contradição: ser fiel a
Foucault significa ser-lhe ao mesmo tempo infiel. Seu desejo sempre foi
de ser ultrapassado, de que cada um de seus livros fosse um “ objeto-
evento” que “ desaparecesse enfim, sem que aquele a quem aconteceu

225

rsj

escrevê-lo pudesse, alguma vez, reinvindicar o direito de ser seu senhor,


de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro devia ser ” (Foucault,
1978, p.viii). Em outras palavras, o problema que se coloca é: como
lidar com um autor que nunca quis ser modelo, que nunca quis ser
fundador de uma discursividade ?
O texto está organizado por autor, em ordem alfabética. Por causa
disso, alguns temas de pesquisa e alguns enfoques se repetem. Nesses
casos, procurei salientar o que cada investigador tem de mais original
em suas contribuições. A primeira lista bibliográfica, ao final deste
capítulo, refere-se somente aos artigos e livros que citei ou dos quais
retirei diretamente citações para este meu texto. A segunda lista é uma
bibliografia adicional sobre o tema “ Foucault e Educação” . Dados esses
esclarecimentos, vamos aos comentá rios.

Ian Hunter: A Crítica da Educação Liberal e Humanista

Alé m de se dedicar ao estudo do ensino da língua e da literatura inglesas,


numa perspectiva bastante ampla que integra questões sobre estética,
comportamento infantil, cultura etc. ( p. ex.: Hunter, 1987 e Hunter,
1991), Ian Hunter tem se preocupado em analisar as relações entre
pol íticas governamentais e instituições escolares. Em um artigo publi-
cado em Economy and Society\ Hunter (1990) nos oferece um acurado
estudo sobre os discursos governamentais — os quais esperam que o
ensino universitário atenda às demandas sociais em termos de formação
profissional — e acadêmicos — que defendem uma Universidade
autó noma e centrada sobretudo na formação human ística daquele
homem que Weber chamou de cultivado. Ainda que o contexto desse
estudo tenha sido o sistema universitá rio australiano, logo se vê que a
maior parte das situações são bastante semelhantes às brasileiras; al é m
disso, as categorias, a perspectiva foucaultiana e a argumentação de que
se vale o autor são gerais para a cultura ocidental moderna. Assim,
torna-se extremamente interessante, para nós, compreender o encami-
nhamento que Hunter dá ao assunto e seus possíveis desdobramentos.
Na medida em que algumas propostas de reformas universitárias,
articuladas pelo governo australiano durante a década passada, propu-
nham um sistema acadêmico vocacional — ou seja, voltado para o
atendimento das demandas sociais por mais e melhores profissionais
( médicos, engenheiros, professores, economistas etc.)
— a maior parte
dos professores e intelectuais das universidades, principalmente aqueles
vinculados à á rea das Humanidades, desenvolveram uma forte resistên -
cia, em nome da liberdade acad ê mica e da defesa de uma educação
liberal que, n ão estando atrelada a fins económicos, utilitá rios e prag-
má ticos, poderia educar um homem integral, e não apenas expertos (os
profissionais competitivos que habitam o mundo das especializações).
Não é dif ícil identificar, nesse dircurso, a dicotomia weberiana entre

226
;

homem cultivado (o gentleman que busca, neutra e desinteressadamen-


te, a verdade) e homem experto. Traçando a genealogia, no estilo
foucaultiano, do conceito de cultivado como produto de uma educação
liberal, a crítica de Ian Hunter vai na direção de mostrar que não só
esse conceito se funda na pressuposição iluminista de uma essê ncia
humana — construída num contexto eurocè ntrico, dominador, colo-

nialista, machista, racista etc. como, ainda, é um conceito autopro-
duzido e autolegitimado (nesse mesmo contexto ).
De Marcel Mauss, Hunter aproveita as idéias de (a) ser humano
como produto do amá lgama entre, de um lado, uma dimensão biol ógica
e psicol ógica (a que ele denomina indivíduo ) e, de outro lado, uma
dimensão social e cultural (a que ele denomina pessoa ) e de (b) contin-
genciamento dos processos em que ocorre esse amálgama (condições,
instituições e técnicas historicamente variáveis). Esse contingenciamen-
to retira qualquer transcendentalidade da pessoa maussiana, de modo
que aquilo que se diz ser um homem cultivado é um artefato cultural
muito especializado e, portanto, a educaçã o liberal que o produz é, ela

mesma, aquilo que ela diz não ser també m uma educação vocacional.
Assumindo uma perspectiva foucaultiana, Hunter coloca em xeque
o discurso que defende a universidade como formadora do homem
cultivado, uma vez que é esse mesmo conceito que se pode questionar.
A partir desses pontos, se comprende que n ão há “ qualquer sentido em
tratar [o ensino d’] as Humanidades como o caminho essencial de uma
forma de cultivo [do Homem] cujo cará ter completo ou inseparável
garantiria a imunidade da academia contra a interven ção governamen-
tal ” (Hunter, 1990, p.405). Mas disso não se deve concluir que o autor
esteja tomando qualquer partido; seu objetivo é comprender a comple-
xidade dessas determinações, sem o que nossas ações políticas ficarão
muito limitadas.
Ao partir da noção foucaultiana de poder, Ian Hunter destaca que
se, por um lado, as intenções e as ações governamentais n ão tê m o poder
que a elas se costuma atribuir, por outro lado, as reflexões feitas pelas

——
Humanidades principalmente pelas vertentes críticas da Filosofia e
da Sociologia seriam a resistência iluminada e não teriam a força
capaz de fazer frente àquelas intenções e ações. Mesmo sem procurar
prescrever solu ções, ele desenvolve novas possibilidades anal íticas, a
partir dos conceitos de subjetivação, objetivação, poder e governamen-
talidade, para melhor comprendermos as relações entre a universidade
e a esfera governamental e podermos, a partir daí, conduzir de maneira
menos panfletá ria e mais produtiva nossas ações sobre essas relações.

James Donald: Educação Sentimental

Autor de vá rios livros sobre Política, Educação, Cinema, Teoria da


Cultura etc., ex-editor do importante periódico ingl ês Screen Education

227
e atualmente editor da revista New Formations, James Donald tem
partido de urna perspectiva foucaultiana para questionar a retorica da
libertação e da utopia que domina o discurso educacional, principal
mente na sua vertente que se quer crítica. O seu recente livro Sentimen
--
tal Education (Donald, 1992) reú ne vários artigos que procuram traçar
o aparecimento da educação institucionalizada
século XIX — — na Inglaterra do
como um aparelho capaz de moldar os “ corações e
mentes” das pessoas, de modo a domesticar crianças de classes popula-
res e produzir e educar aquela que se denominou explicitamente uma
nova “ raça imperial ” , qual um estranho destino para o povo inglês.
Junto a isso, Donald apresenta as analogias entre a educação e a
radiodifusão atual na medida em que elas determinam o nosso cotidia-
no.
O que se torna excepcionalmente interessante nos artigos de James
Donald são as interpretações que ele faz a partir de documentos

históricos que incluem textos literá rios, normativos e panfletários,

desenhos, álbuns fotográficos etc. , sem apelar para quaisquer cate-
gorias psicologizantes ou sociologizantes como tem sido de praxe nas
análises iluministas (e especialmente estruturalistas) sobre a educação.
Assim, ele não tem nenhum compromisso com uma pretensa “ natureza
humana” , com um “ social transcendente” ou com uma eventual dialé-
tica entre repressão e liberação. Ao mesmo tempo em que nos revela as
diferentes práticas discursivas que fizeram da educação popular uma
técnica de governamentalidade — o que se articula à noção de biopo-

l ítica, em Foucault James Donald nos mostra que as subjetividades
não resultam direta e mecanicamente dessas práticas mas, antes, se
estabelecem nos embates entre, de um lado, as normas pedagógicas e
culturais (estabelecidas por aqueles discursos) e, de outro lado, as
estratégias de resistê ncia, transgressão, rejeição, reinterpretação e adap-
tação que se dão no dia-a-dia das pessoas.
Ao traçar a genealogia dos modelos ingleses de escolas para as

massas os de Lancaster, Bell, Stow, Kay-Shuttleworth etc. James —
Donald vai buscar especialmente em Vigiar e Punir a interpretação para
as mudanças que ocorreram a partir do fim do século XVIII. Assim, ele

analisa as transformações: (a) nas prá ticas pedagógicas de repressivas
e punitivas, para auto-reguladas; (b) na arquitetura das escolas
uma ampla sala-escolar, para uma á rea interna para a qual se abrem
— de
várias salas de aula relativamente pequenas; (c) na forma pela qual a
criança era percebida — de ser anónimo, para categoria científica
passível de estudo, observação ( moral, atitudinal etc.) e medidas (an-
tropométricas, psicométricas, demográficas, estatísticas etc.); (d ) nos

currículos de elenco de conhecimentos (ainda hoje geralmente visto
como inocente ), para elemento que diferencia, discrimina e categoriza.
Não é dif ícil comprender o quanto essas transformações contribuí-
ram, num sentido mais restrito, para o estabelecimento de nossas atuais

228
r v *

práticas pedagógicas, no que se refere, por exemplo, ao planejamento


e à avaliação e à pró pria vida cotidiana nas escolas. Num sentido bem
mais amplo, análises como as desenvolvidas por James Donald nos
permitem comprender a profundidade e a firmeza com que nossas
instituições e nossas práticas educacionais se enraízam na episteme
moderna .

James Marshall: Educação Liberal e Governamentalidade

A caracter ística que logo aparece quando se leem os textos do neo-ze-


landês James Marshall é a clareza de seu discurso e uma estrutura
argumentativa que consegue articular, a partir de referenciais teóricos
foucaultianos, interpretações e aplicações para situações educacionais
concretas e bastante comuns, mesmo para a realidade brasileira. Em
Foucault and Education, por exemplo, publicado em 1989, ele extrai
dos conceitos de poder/saber, disciplina e governamentalidade toda a
potê ncia anal ítica para examinar o trabalho do professor e a educação
escolar de hoje. Essas questões são desdobradas e detalhadas em textos
posteriores ( p. ex.: Marshall, 1990; Marshall, 1994 ), de modo a nos
oferecer um panorama muito interessante sobre as articulações entre
Foucault e a Educação.
Ainda que, como ele mesmo salienta, só se encontre implícita e
indiretamente, em Foucault, uma cr ítica radical à educação liberal,
pode-se partir da obra do fil ósofo francês para comprender a educação
moderna como um imenso aparato que se construiu, durante os ú ltimos
trezentos anos, para garantir a governamentalidade. Sob essa ótica, a
escola não é vista como um dos aparelhos ideol ógicos de reprodução
social — o que nos abriria espaços para modificar as relações sociais,
desde que consegu íssemos mexer adequadamente na vida escolar
mas é vista como locus de produção, moldagem e objetificação de —
sujeitos d óceis a uma nova dominação pol ítica (quase invisível ) que
garante a governamentalidade em termos modernos.
Como bem sabemos, segundo uma perspectiva liberal de inspiração
iluminista, a educação (sobretudo escolar ) nos ofereceria o caminho
mais seguro para a liberdade pois, ensinando-nos a ser mais racionais,
cada vez mais nos aproximaria da Razão, o que nos livraria dos mitos
e dos constrangimentos que nos impõem o Estado, a Igreja etc. Como
esse é, em ú ltima análise, um processo individual porque fundamental -
mente mental, pode-se concluir que, ao mesmo tempo em que o
liberalismo se opõe ao autoritarismo, ele se associa ao individualismo.
Por outro lado, agora segundo uma perspectiva calcada na Teoria
Cr ítica, se a teorização educacional crítica das ú ltimas décadas nos
revelou o lado reprodutor e “ sombrio ” do aparelho escolar, tomou
como dado o pressuposto iluminista da “ Razão como caminho para a
liberdade ” ; isso é visível, por exemplo, no otimismo dos discursos

229
-"C

freireanos acerca da racionalidade humana, intr ínseca e geral, e da


conscientização como construtora da autonomia.
Ainda que matizada com cores diferentes, a autonomia é invocada
como objetivo a ser perseguido tanto pelas vertentes liberais quanto
críticas. Mas, ao desenvolver sua cr ítica, Marshall analisa a genealogia
do conceito de autonomia e trata conjuntamente aquelas duas vertentes,
na medida em que, numa perspectiva foucaultiana que se despede de
qualquer transcendentalidade, tanto a dimensão normativa do nomos
quanto a dimensão subjetiva do autos são constru ídas politicamente e
são, portanto, contingentes. Em outras palavras, isso significa que
“ perseguir a autonomia do sujeito envolve a construção social de algo
que está destinado a falhar ” (Marshall, 1994, p.14). A questão que se
coloca, a partir daí, é averiguar as tecnologias do eu ( tematizadas
sobretudo em História da Sexualidade ) e as tecnologias de dominação
(tematizadas sobretudo em Vigiar e Punir ) para saber como se dá a
construção subjetivante e objetivante do indivíduo.
Para posicionar adequadamente a educação escolar em relação à
construção acima citada, Marshall esmiuça o conceito de poder no
pensamento de Foucault, tanto em seus aspectos repressivos (mais
característicos nas primeiras obras do filósofo) quanto produtivos
(salientados nas últimas obras). De maneira bastante clara, Marshall

distingue os três domínios que na prática se inter-relacionam e se

intercambiam em que o poder atua: o relacional (como capacidade
de modificar ações dos outros), o das habilidades (como capacidade e
habilidade de construir, transformar, usar e destruir coisas) e o simbó-
lico (como capacidade de produzir símbolos e comunicá-los aos outros).
Enquanto as prisões se baseiam fundamentalmente no primeiro domí-
nio e conservatórios artísticos e alguns cursos exclusivamente profissio-
nais se baseiam no segundo, as escolas jogam igual e indistintamente
com os três ao mesmo tempo. E, dada a atuação a longo termo da
educação escolar sobre a vida < e (quase...) todos nós, ela é o aparelho
^
social que mais bem e uniformemente executa a construção do sujeito
moderno. Colocando em ação tanto as tecnologias de dominação
que atuam principalmente sobre o corpo, classificando e objetivando —

os indivíduos , quanto as tecnologias do eu — que, sobretudo pelo
exame e pela confissão e em decorr ência da função performativa da
linguagem, fazem com que cada indivíduo se construa como sujeito
a escola mais produz do que reproduz as relações sociais da Moderni-

dade.
Concluindo, Marshall lembra que embora alguns tenham anterior-
mente questionado os pressupostos iluministas que fundamentam um
certo otimismo em torno das possibilidades de a Educação promover,
per se, mudanças sociais, é na obra de Foucault que encontraremos
elementos para uma crítica vigorosa e bem articulada. Considero que
isso se reveste de importância, não simplesmente em termos acadêmi-

230

I
cos, mas sobretudo porque nos aponta para o fato de que, nas nossas
propostas políticas de enquadramento iluminista, talvez estejamos lu-
tando, há bastante tempo, contra moinhos-de-vento.

Jennifer Gore: A Luta pelas Pedagogias

A australiana Jennifer Gore é uma pedagoga e feminista que trabalha


com formação de professoras e professores e que tem direcionado sua
produção acadêmica no sentido de analisar as práticas (discursivas e não
discursivas) das pedagogias radicais, especialmente as chamadas peda-
gogias feministas e cr —
íticas ambas suas conhecidas, graças à militâ ncia
que vem desenvolvendo desde o in ício de sua carreira. De uma maneira
bem resumida, pode-se dizer que o trabalho de Jennifer centra-se em
nos mostrar que, mesmo nas suas versões mais radicais, as práticas
pedagógicas são sempre problemá ticas porque perigosas.
Mesmo que atualmente ela esteja bastante envolvida com uma
perspectiva foucaultiana — a partir da qual as questões que mais
interessam “ n ã o sã o tanto questões de significado (que é pedagogia
crítica ? que é pedagogia feminista ? ) ou de m é todo (como podemos
analisar esses discursos? ), mas questões de funcionamento: de que modo
funcionam esses discursos ? de que forma são eles produzidos e regula-

dos ? quais são seus efeitos sociais?” (Gore, 1994, p.2) é interessante
ver como ela caracteriza o que entende por Pedagogia e como propõe
uma pequena taxonomia das pedagogias radicais. Mais do que um
simples exercício de caracterização e classificação, isso vai ser impor-
tante na medida em que é exatamente em relação a essas pedagogias
que Jennifer vai usar as ferramentas foucaultianas de análise, problema-
tizando vários aspectos que se costuma tomar como autoevidentes.
Ela usa a palavra Pedagogia no sentido de processo pelo qual o
conhecimento é produzido, o que “ enfatiza tanto as prá ticas instrucio
nais quanto as visões sociais subjacentes à educação institucionalizada
-
(id., ib., p. l ). As vertentes radicais da Pedágogia colocam a ê nfase

na
busca de valores tais como justiça social, dignidade humana etc., para
o que a educação contribui com um papel facilitador (Gore, 1993).
Entre essas vertentes, estão as pedagogias feministas e as críticas. As
primeiras dividem-se em dois grupos: um deles elabora seus estudos e
propostas pedagógicas a partir de uma clara ê nfase nas questões instru
cionais, de modo que entre o substantivo e o adjetivo o “ acento” recai
-

sobre o primeiro pedagogia feminista. Para o outro grupo, o que mais ,
importa é o adjetivo — —
pedagogia feminista , pois aí a educação é
entendida numa visão social mais ampla que se ocupa com as questões
do patriarcado. Jennifer usa de igual crité rio
— a distinção entre (a)
ê nfase maior no contexto específico das prá ticas instrucionais ou ( b)

ênfase maior na dimensão social da Pedagogia para fazer a distinção
entre pedagogia crítica e pedagogia crítica. Exemplos que nos são

231
\ , -.

familiares ajudam a esclarecer esse ponto: os trabalhos de Paulo Freire


enquadram-se numa pedagogia crítica, enquanto os de Henry Giroux
e Peter McLaren, numa pedagogia crítica.
Em seu primeiro livro (Gore, 1993), a autora coloca-se a meio
caminho entre as microanálises feitas a nível das salas de aula
— —
predominam nas pedagogias tradicionais e as macroanálises feitas a
que

nível institucional e ideológico — que predominam nas pedagogias


radicais. Isso é feito não tanto no sentido de conhecer as práticas —

nem muito menos no sentido de prescrever-lhes alternativas mas sim
no sentido de investigar as “ práticas específicas que fizeram da Pedago-
gia o que ela é hoje” (id., ib., p.xv). Como resultado dessa tarefa, a
a ú tora até pode descobrir meios para avançar com o seu trabalho de
formação de professoras e professores; e isso pode até servir para as
práticas de muitos de nós. Mas, bem de acordo com uma perspectiva
pós-estruturalista, isso n ão significa encontrar metanarrativas que
orientem todo o trabalho pedagógico. O que temos são ind ícios, pistas
e, no máximo, algumas sugestões que podem nos servir para aquilo que
Foucault denominou de nossas pequenas revoltas diárias (Rajchman,
1987).
Declarando não tomar o pensamento foucaultiano ao pé da letra,
nem direcionar filosoficamente suas investigações, Jennifer usa, nessa
obra, o conceito de regimes de verdade como uma “ ferramenta” para
analisar menos ingenuamente as práticas discursivas das pedagogias
radicais, de modo a revelar como essas práticas criam seus pr óprios
regimes de verdade. A partir daí, ela nos mostra que tanto os discursos
pedagógicos cr íticos quanto os feministas podem funcionar (e funcio-
nam ) como dominadores, na medida em que são incapazes de alterar
os aspectos reguladores e autoritários da Pedagogia. Al ém disso, a
autora salienta que nos dois discursos radicais dá-se quase nenhuma
atenção para os aspectos éticos, tomados aqui no sentido foucaultiano
de ética — enquanto “ cuidado de si” ou “ relacionamento consigo
próprio” (Foucault, 1983). Penso ser interessante lembrar o quanto isso
pode decorrer da dificuldade que temos em identificar as técnicas de
subjetivação (em oposição às de objetivação, que lançam nossa reflexão
para fora de nós mesmos) e do fato de que essas técnicas “ estão
freq üentemente ligadas às técnicas pelas quais nós conduzimos as outras
pessoas” (id., ib., p. 347). Para nós, professores envolvidos na formação
de professores, acho que isso é particularmente importante na medida
em que nossa maior ou menor capacidade de auto-reflexão ética ter á
conseqiiê ncias não triviais para o desenvolvimento dessa capacidade em
nossos alunos e futuros professores. Como conhecer as tecnologias do
eu implica ser capaz de discriminá-las daquelas outras “ técnicas pelas
quais n ós conduzimos as outras pessoas” (id., ib.), conclui-se que
trabalhar esse conhecimento com nossos alunos contribuirá para que
eles não reproduzam, quando atuarem também como professores, essa
maneira de promover a condução dos outros. Al ém disso, penso que

232
essa capacidade de discriminação deve ser trabalhada, em nós e nos
outros, como um valor moral em si. E nessa defesa estou usando
também o conceito foucaultiano de moral: além do cuidado de si,
també m o comportamento efetivo das pessoas e os códigos que regulam
esse comportamento.
Como um ú ltimo comentá rio à obra de Jennifer, saliento o quanto
sua crítica às pedagogias radicais é produtiva, não só no sentido de
“ afinar ” nossa comprensão sobre as práticas pedagógicas que há tanto
tempo abraçamos e procuramos desenvolver como, també m, no sentido
de nos mostrar que uma perspectiva pós-estruturalista, como a de
Michel Foucault, pode ser otimista ao nos apontar tanto onde, como e
quando estamos sendo dominadores, quanto apontar os espaços de
liberdade nos quais podemos colocar em movimento nossas pequenas
revoltas diá rias.

Karen Jones e Kevin Williamson: O Nascimento da Sala de Aula

Em um longo e minucioso artigo publicado no peri ódico inglês Ideology


& Consciousness, Jones e Williamson (1979) fazem um estudo sobre a
educação popular na Inglaterra, especialmente ao longo do século XIX.
Penso que a importâ ncia desse estudo decorre dos dois eixos em tomo
dos quais ele se situa e decorre, també m, do elemento metodol ógico
que articula esses eixos. Num dos eixos, situam-se os elementos histó-
ricos— desenhos, tabelas e documentos que, por si só, são extrema-
mente interessantes para nos colocar na “ atmosfera pedagógica ” de uma
é poca e para nos fornecer aquelas “ evidê ncias concretas” de cuja falta
alguns críticos mais severos acusam Michel Foucault. No outro eixo
situam-se as interpretações dos autores: com esse material , eles fazem
uma análise sofisticada, numa perspectiva foucaultiana, sobre as condi-
ções discursivas, durante os oitocentos, de modo a demonstrar suas
modificações ao longo do século e em que medida essas condições
determinaram que a educação popular passasse a ser considerada uma
necessidade social. Esses dois eixos se articulam por obra da metodolo-
gia usada pelos investigadores: a arqueologia que, no sentido dado por
Foucault, trata os documentos não como traços do passado a serem
decifrados (após o que ter íamos uma representação sobre esse passado),
mas os trata como monumentos que se descrevem a si pró prios e que
podem descrever suas articulações com os demais. Cada um desses
documentos se liga aos demais, ao longo de todo o trabalho; quase como
num exercício, podemos tomá-los em separado e veremos que, ainda
assim, o artigo continua interessante e provocativo, capaz de nos
inspirar ou orientar para outras investigações. Al é m disso, constatamos
que é atingido um dos objetivos expressos pelos autores: o trabalho
contribui (e muito...) para a nossa comprensão sobre as condi ções das
práticas pedagógicas contemporâ neas.

233
F ATM - •

-
T3T

Fazendo uma clara explanação sobre em quais aspectos o método


arqueológico se distingue de uma história das idéias e dos conceitos,
Karen e Kevin elaboram a arqueologia (e não a história) dos discursos
sobre a pobreza, a moral e a educação popular. Nesse sentido, não
tratam de buscar linhas de contínuo desenvolvimento ou progressão ao
longo de tais discursos, já que tais linhas pressuporiam uma trans-his-
toricidade necessária. Mas, ao mesmo tempo em que garimpam nos
estratos discursivos, os autores nos lembram que é preciso levar em
consideração também as circunstâ ncias e os arranjos não discursivos que
eram anteriores ou simultâ neos àquelas práticas discursivas. Assim,
desse cená rio fizeram parte importante, entre outras, as condições
económicas, demográficas e pol íticas; e isso não pode ser deixado de
fora numa análise arqueológica. Mas essas condições não são trazidas
para o centro das questões; funcionam, antes, como uma moldura ou,
talvez melhor, como um pano de fundo meio difuso e não determinante.
Questões tais como transição entre economia pr é-industrial e industrial,
passagem do pré-capitalismo para o capitalismo, centrais para as análi-
r ses estruturalistas, são relativizadas pela arqueologia e invocadas apenas
quando contribuem para uma melhor comprensão de uma dada episte-
me.
Uma outra questão metodológica que me parece importante (e que
esses autores comentam muito rapidamente) consiste no contraste que
se deve fazer entre a arqueologia foucaultiana e as análises funcionalis-
tas, as quais buscam construir suas interpretações segundo um enqua-
dramento que pressupõe transcendê ncias. Essas transcend ê ncias
enformam objetivos aos quais um cada vez melhor ajuste nas funções
procura dar resposta. No fundo de uma interpretação desse tipo, está
presente mais um pressuposto (també m transcendental e extraído do
pensamento biológico): a busca natural de um equil íbrio dinâmico no
funcionamento do mundo. Nada mais distante do pensamento de
Foucault. Como salientam Karen e Kevin, “ as funções desempenhadas
pelas pr áticas sociais particulares são, elas mesmas, definidas historica-
mente, isso é, essas funções não existem independentemente das con-
dições históricas que as possibilitam; elas não são dadas previamente.”
(id., ib., p.60).
Esses autores identificam três períodos sucessivos no estabeleci-
mento da escolarização das classes pobres inglesas. Argumentando que
essa escolarização começa a ser defendida não simplesmente como um
mecanismo de socialização (ou, melhor dizendo, de controle social) das
classes populares, mas que aquilo que estava em jogo era bem mais
a saber, a busca da formação de uma população com bons hábitos

morais, de modo que ficasse assegurada a autoridade religiosa e gover-

namental , esses autores nos mostram, muito detalhadamente, que a
escolarização buscou regular “ as relações entre as classes, qual um
instrumento que é capaz de modificar a topografia moral das classes,
condição que é percebida para definir [aquilo que seria] o caráter

234
'
vr"*

essencial de uma classe” (id., ib.). Assim, a escola popular se organizou



como uma peça na maquinaria social que ao mesmo tempo em que
estava ao lado, mas era diferente de outras peças ( prisões, sociedades
beneficientes, clubes para trabalhadores etc.) — colocou cada um no
seu lugar. Mas se ela hoje se relaciona corn os grandes problemas sociais,
só o faz de modo indireto, “ mediada pelas funções dessas outras
instituições, para as quais ela estabelece uma condição de existê ncia”
(id., ib., p.99 ).
Categorias como o biopoder, a disciplinaridade, a ética etc. são
tomadas de Foucault para, de maneira muito detalhada, Karen e Kevin
nos mostrarem as continuidades e rupturas discursivas que acabaram
por levar a uma redefinição das fun ções tá ticas da educação popular, já
durante a segunda metade do século XIX. Enfraqueceram-se os discur-
sos que defendiam a necessidade da escolarização para os pobres como
uma forma de garantir a eles uma boa conduta; també m deixou de ter
importâ ncia a questão da topografia moral das classes sociais. O que os
discursos estabelecem, numa terceira fase, são as condi ções de possibi-
lidade para a implantação e fortalecimento das outras instituições que
també m, e talvez mais explicitamente, colocam em marcha os “ tipos”
de biopoder, disciplinaridade, ética etc. contemporâneos.
Ao longo de todo esse processo, as prá ticas pedagógicas em curso
nas escolas populares centraram-se no estabelecimento e manutenção
de um “ treinamento moral” com fins seculares. Esse fenômeno pode
ser lido desde o título do trabalho de Karen e Kevin até suas notas e
comentários finais. Assim, seu texto tematiza tanto a dimensão macro
da Educação (em termos sociais, pol íticos, estratégicos) quanto a sua
dimensão micro (em termos de sala de aula e práticas pedagógicas).

Keith Hoskin: A Génese da Avaliação e da Disciplinaridade

Ao contrá rio dos textos de James Marshall, os do inglês Keith Hoskin


são de mais dif ícil leitura. Mas isso é largamente compensado pelo fato
de ele nos trazer muitos dados históricos e elaboradas interpretações
sobre a educação e as prá ticas escolares atuais, a partir de um enqua-
dramento foucaultiano.
Em um artigo publicado já em 1979, Hoskin procura fazer o que
ele mesmo chama de “ pr é-história dos exames [escolares escritos]
modernos” (Hoskin, 1979, p.135). Datando por volta de 1750 o
começo do emprego de tais sistemas de avaliação, nas Universidades de
Cambridge e de Oxford, ele vai buscar as continuidades entre essa nova
prática e os predecessores exames orais, especialmente no que se refere
à natureza do conhecimento em jogo, à relaçã o entre o professor e o
conte ú do ensinado e às formas das respostas esperadas. Tais continui-
dades se manifestam na autoridade e na racionalidade do processo
avaliativo. A partir dessas continuidades, Keith Hoskin busca as espe-

235
Y* T«

’ >
"

cificidades dos exames escritos, concluindo que a prática de avaliações


escritas e permanentes condensa as profundas modificações educacio-
nais que ocorreram nos últimos duzentos anos, tanto em termos teóricos
— ã

em que a educação se cientifizou ,- quanto em termos práticos
n só formatando vá rias outras práticas escolares (burocráticas e
o

pedagógicas) como, també m, determinando novas tecnologias de do-
minação e subjetivação. Em resumo, a avaliação moderna “ funde a
racionalidade e a autoridade da pr á tica educacional tradicional numa

nova forma indivisível a autoridade racional, que se torna a caracte-
rística que distingue a escolarização moderna” (Hoskin, 1979, p.146 ).
Mas, bem ao contrá rio de tomar essas transformações como resul-
tado de uma evolução cultural, à la um darwinismo social, ele as toma
como construções a serem problematizadas. Para isso, vai buscar em
Foucault (e especialmente em Vigiar e Punir ) a idéia de poder disciplinar ,
a fim de analisar aquelas continuidades e descontinuidades que ocorre-
ram tanto nas prá ticas examinatórias quanto na educação em geral. A
partir daí, Hoskin faz uma muito interessante interpretação sobre como
atuaram as técnicas de observação hierarquizada e de julgamento
normalizador que se instalaram primeiramente nas escolas lassalistas, a
partir da segunda metade do século XVII. Vejamos isso com algum
detalhe.
Os exames escritos (periódicos ou até mesmo continuados)
diferentemente das grandes provas orais, nas quais os alunos tinham de


demonstrar ( provar...) sua competência foram exatamente os instru-
mentos que colocaram em marcha tanto as técnicas de vigilâ ncia
( permanente e hierarquizada) quanto as técnicas de julgamento norma-
lizador. Os resultados disso são bem conhecidos: de anónimos, torna-
mo-nos indivíduos objetivados e submissos. Esse poder disciplinar
“ coloca cada um de nós num lugar na sociedade e produz, como efeito,
uma realidade social...” (Hoskin, 1979, p.137). Ao tomarmos essa
forma moderna de exames como lógica e natural, enquanto instrumen -
to destinado a avaliar o conhecimento dos alunos, não percebemos que
ela é, ao mesmo tempo, uma eficiente técnica de poder.
Keith Hoskin nos mostra que as avaliações escritas tornam-se uma
pr á tica escolar diá ria, na Inglaterra e outros países, por volta de 1800,
e que isso se refletiu, necessariamente, em outros aspectos da vida nas
escolas —
em termos de tempos, espaços, rituais etc.
fortalecimento dos curr ículos — — e no próprio
em termos de seleção e organização
de conteúdos e procedimentos didáticos. Mas, além de continuados, os
exames modernos são, praticamente no todo, escritos. Para Hoskin, isso
reflete aquilo que Walter Ong, ao estudar os efeitos da difusão da
imprensa e do alfabetismo, denominou de deslocamento do conheci-
mento retórico para um conhecimento topogr áfico. Mais recentemen-
te, Hoskin (1993 ) fala-nos de umgramatocentrismo como resultado do
deslocamento de um saber que privilegiava as operações mentais envol-

236
- - r
*
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'

vidas diretamente com a argumentação discursiva, para um saber que


passa a privilegiar tanto a escrita sobre fatos e dados específicos quanto
o conhecimento dos lugares em que esses fatos e dados poderiam ser
obtidos. Mas reflete ainda mais: o aproveitamento que os reformistas
educacionais fizeram, durante os setecentos, dessa reorganização do
conhecimento em termos espaciais. Os saberes passaram a ser indexados
por ordem alfabética ( pensemos nas enciclopédias criadas nesse per ío-
do ) e se tornaram mais acessíveis visualmente, graças aos cada vez mais
amplos recursos tipogr áficos (como a paragrafação, a endentação, a
italicização, as citações cruzadas, o uso de tipos com tamanhos e feitios
variados etc.). Todos esses recursos, que hoje nos parecem tão naturais,
se articulam com um poder que també m se espacializava. Uma “ mudan -
ça no saber torna pensável a mudança no poder ” (Hoskin, 1979, p.142).
A questão da disciplinaridade do conhecimento é tratada, em
termos históricos, com engenhosidade invulgar por Hoskin. Ele nos
revela como o deslocamento qualitativo do sabe levou “ os homens (e
de in ício eram apenas os homens) a inventarem as modernas disciplinas”
(Hoskin, 1993, p.274 ). Essas novas disciplinas constitu íram-se como I
ecossistemas de conhecimentos, cuja estruturação aberta sempre permi-
te um aumento pela proliferaçã o infinita de sub-disciplinas que, em
princípio, poderiam dar conta de todas as indagações e de todas as
verdades. Além disso, essas novas disciplinas e sub-disciplinas instituí-
ram uma nova economia na “ dinâ mica ” do conhecimento: em primeiro
lugar, em termos dos saberes tornamo- nos uma sociedade credenciali-
zada, isso é, cada vez se concedem mais credenciais para atender a
proliferação acelerada de especialistas que devem povoar aquele ecos-
sistema. Em segundo lugar, a proliferaçã o de saberes (e de seus corres-
pondentes expertos) cria novas formas de poder, entre os quais está o
de conceder valor a si pr ó prio. Tudo isso resultou no aparecimento de
tr ês cená rios educacionais: o seminário (iniciado na universidade alemã,
por volta de 1760), o laboratório (iniciado nas Grandes Écoles france-
sas, um pouco antes da Revolução) e a sala de aula (iniciada na
Universidade de Glasgow, por volta de 1760). Cada uma dessas inven -
ções está associada a diferentes aspectos da disciplinaridade. Ao semi -
ná rio associam-se disciplinas como a Filosofia, a Filologia, a História,
a Teoria Literária. Ao laboratório associam-se as disciplinas relaciona-
das com aquilo q úe se convencionou denominar saber científico, em
especial aquelas que tratam da Natureza. A sala de aula associam-se os
saberes não propriamente acad ê micos, de modo que é esse o cená rio
que se torna mais disseminado na escola moderna.
Num outro trabalho ( Hoskin, 1990 ), esse autor faz um apanhado
geral das potencialidades do pensamento foucaultiano para a Educação.
Partindo das raízes etmológicas de disciplina, ele discute algumas
relações entre a obra de Foucault e as de Ariès e Derrida para, logo
adiante, entrar em detalhes históricos muito interessantes, e ainda
pouco explorados, sobre aquelas mudanças na avaliação escolar que

237
ri»'*

comentei acima. A partir dai, Hoskin se ocupa em averiguar como poder


-
e saber se conectam na relação poder saber, ou seja, qual elemento está
representado pelo hífen, nessa relação. Isso tem importâ ncia na medida
em que vai nos permitir comprender melhor como se articulam essas
duas faces de uma mesma moeda. Mas certamente essa articulação varia
de época para época, de cultura para cultura, ou, como diria Foucault,
de episteme para episteme. Não importa se o h ífen representa a paideia
( num período grego clássico) ou a disciplina (na modernidade), ambas
ocultadas na palavra, mas presentes na relação, cada uma na sua é poca;
até outras poderão ser descobertas em outros contextos. O que me
parece mais interessante, aí, é a idéia de que o elemento de conexão
será sempre educacional. Para Hoskin, isso revela enfim que Foucault
foi um cripto-pedagogo.
Mas Keith Hoskin vai mais longe. Partindo de uma discussão sobre
a posição marginal da Educação em relação àquelas que ele mesmo

— —
denomina disciplinas reais Psicologia, Sociologia, História e Filosofia
, ele efetua um exercício de desfamiliarização e nos oferece uma
f interpretação que inverte a visão que se costuma ter dessa área (Hoskin,
1993). Sua tese é de que “ a Educação, longe de ser subordinada, é
‘supra-ordinada’, e que comprender a Educação e seu poder é a única
maneira de comprender a gé nese da disciplinaridade e o resultante
crescimento aparentemente inexorável do poder disciplinar ” (id., ib.,
p.272). Em outras palavras, isso significa que a disciplinaridade e o
poder disciplinar tê m, na Educação, a sua gé nese e fixação. Portanto,
dela emana a calculabilidade do mundo moderno: um mundo no qual
todos nós reconhecemos e internalizamos os valores que cada um tem
e as posições que cada um ocupa. É daí que decorre a governamentali-
dade. Assim entendido o papel da Educação, não há como discordar do
status subordinado que lhe tê m a Filosofia moderna e, principalmente,
as chamadas Ciê ncias Humanas. É daí també m que decorre a idéia de
que a prá tica educacional é o elemento de conexão entre o poder e o
saber, ocultado pelo hífen que liga os dois termos.

Manuel Alvarado e Bob Ferguson: A Crítica ao Realismo

Nessa secção farei um breve comentá rio sobre um interessante artigo


publicado no periódico Screen Education, em que seus autores (Alva-
rado & Ferguson, 1983) desenvolvem uma bem articulada crítica aos
curr ículos escolares modernos, na medida em que eles se fundam em
visões de mundo que são essencialmente realistas. Decorrem daí, segun-
do esses autores, os principais motivos pelos quais os sistemas educa-
cionais funcionam para controlar a sociedade e reproduzir a
estratificação social em termos de gê nero, raça, religião, idade de seus
membros, etc.

238
A

Como sabemos, em sua versão mais ampla, “ o realismo declara a


existência de algumas classes discutidas de objetos ou coisas, por
exemplo, universais, objetos materiais, leis científicas, proposições,
n ú meros, probabilidades” (Bynum et al., 1986, p.484). No campo
educacional, o realismo corresponde a uma consideração forte ao
mundo empírico (fatos) ; na dimensão curricular, o realismo opera
sustentando a crença segundo a qual é possível apresentar a realidade
aos alunos, de modo direto e transparente. Essa interpretação está
bastante ligada à idéia do conhecimento enquanto espelho: a mente
humana seria “ um grande espelho, que contém várias representações
— —
umas precisas, outras não e qtfe pode ser estudado por meio de
métodos puros, não empíricos” (Rorty, 1988, p.21). Abandonar essa

idéia como fizeram, entre outros, Nietzsche, o segundo Wittgenstein,

Foucault e o pós-estruturalismo significa abandonar a pretensão à
melhor ou mais correta representação do real e isso coloca em xeque a
fenomenologia e a teorização crítica.
Manuel Alvarado e Bob Ferguson dedicam parte do artigo a
discussões sobre a mídia, tendo em vista que ela “ já sabia” que nunca
í
apresenta o real, mas apenas nos oferece uma representação dele. No
entanto, ao nos oferecer uma representação do real, a m ídia o constitui
enquanto um sistema simbólico. Isso é de há muito conhecido pela
Estética; o que há de novo é trazer essa “ limitação” para dentro da
Epistemologia. O sistema simbólico constituído pela mídia, por sua vez,
constitui e conforma discursivamente o nosso entendimento sobre o
mundo. Com isso, os autores direcionam sua argumentação na trilha
foucaultiana da Teoria do Discurso.
V

A noção de sistema simbólico, Alvarado e Ferguson associam


conceitos tirados da obra de Foucault, de modo a agudizar a crítica
educacional. Còrno sabemos, a questão sempre presente nas teorias
educacionais críticas consiste em avaliar como a educação ( principal-
mente escolar ) produz e reproduz as desigualdades sociais. Tomemos,
como exemplo, o caso da vertente inglesa que foi desenvolvida princi-
palmente por Michael Young e que ficou conhecida como Nova
Sociologia da Educação; nela, a ênfase recaiu no “ estudo dos processos
de interação em sala de aula e dos processos pelos quais atores sociais,
tais como professores e alunos vivem uma realidade social que é
constru ída e negociada na interação social ” (Silva, 1992, p.20). Nesse
caso, o conhecimento escolar não é tomado como tranq ü ilo e natural
— na medida em que esse tipo de conhecimento é produto de seleções
intencionais e de transformações até chegar à sala de aula. Mas o
conhecimento, de um modo geral e amplo, é tomado em si como
tranq üilo, porque possível de espelhar o real. É por isso que tal
perspectiva — que, entre outras coisas, entende a agência humana, a

rigor, de modo não problemático não vê que nós somos constituídos
por m ú ltiplos discursos e que o real é instituído também por esses
discursos. Young e toda essa vertente crítica ignoram que o nosso

239
entendimento do mundo é, sempre e necessariamente, representacional
e que daí decorre a impossibilidade de uma contra-ideologia suficiente.
E ignoram, ainda, que aquilo que o professor ensina não são conheci-
mentos escolhidos ( por ele, pelos sistemas educacionais etc.) a partir de
um universo mais amplo, mas são, sim, discursos preferenciais. Nessa
nova perspectiva, ocorre um deslocamento com relação ao que mais
! deve nos interessar: não são mais “ os conhecimentos em si, mas como
eçses conhecimentos se transmutam simbolicamente e como se arranjam
para montar os discursos” (Veiga-Neto, 1994, p.18). Como conseqiiên-
cia, deveria haver um deslocamento també m no currículo escolar: “ do
conhecimento de fatos e desenvolvimento de habilidades para o reco-
nhecimento dos sistemas simbólicos e práticas discursivas em que
estamos mergulhados” (id., ib.). Penso que ainda não está suficiente-
mente explorada a produtividade dessa crítica ao realismo pedagógico,
principalmente no que concerne à sua aplicação à teorização do currí-
culo. Nesse sentido, os insights de Alvarado e Ferguson, apesar de não
serem tão recentes, ainda são promissores.
£
Foi baseado també m nesses autores que, numa parte do recente
trabalho que acima citei (Veiga- Neto, 1994 ), desdobrei as discussões
relativas ao realismo em Educação e, usando a aná lise foucaultiana

sobre o papel da representação na episteme moderna em especial a
instigante discussão que o fil ósofo faz no texto Las Meninas (Foucault,
1992) —retomei a questão do estatuto das Ciê ncias Humanas no que
se refere à sua cientificidade e à sua impossibilidade de constitu írem o
homem moderno como objeto de seu conhecimento. Isso tem impor -
tâ ncia para n ós, educadores, por dois motivos. Em primeiro lugar, está
a questão de busca de legitimidade científica para, por exemplo a
Sociologia da Educação, para a Psicologia da aprendizagem e do
desenvolvimento e para a pr ó pria Pedagogia. Em segundo lugar, mas
igualmente importante, está a questão de nossa crença na possibilidade
de a linguagem ser transparente. Em outras palavras, ao não reconhe-
cermos que as Ciê ncias Humanas se estruturaram e operam a partir de
elementos tomados da Matemá tica e das Ciê ncias Naturais, e ao não
reconhecermos que, nesse processo, cada elemento, conceito ou idéia
se transmuta, nã o percebemos que todos eles são sempre repre-
sentações. E, ao mesmo tempo em que essas representações são o acesso
que temos à realidade humana, elas a constituem. Como comentei em
outras passagens deste capítulo, isso tudo torna extremamente proble-
mática a possibilidade de escaparmos, via uma maior cientificidade em
nossas análises, das ideologias que parecem nos cercar e dominar.
Simplesmente porque tudo é representação.

Valerie Walkerdine: A Razão Problematizada

Valerie Walkerdine tem trabalhado as questões referentes às relações


entre o desenvolvimento cognitivo infantil, classes sociais e gê nero, a

240
partir da educação matemática. Exatamente por desenvolver seu traba-
lho numa perspectiva foucaultiana, suas pesquisas, na maior parte de
natureza empírica, quase nada tê m a ver com aquilo que, comumente,
no meio acadêmico, se costuma denomirtar Educação Matemática. Ela
não trata nem de inventar/descobrir melhores tecnologias de ensino
nessa área, nem de “ usar ” a Matemática para averiguar a epistemologia
envolvida na gé nese e no desenvolvimento do raciocínio lógico na
criança, nos jovens ou nos adultos.
Ao contrá rio, boa parte da obra de Walkerdine pode ser compren-
dida como uma cr ítica às perspectivas que tomam a criança como ser
biológico que, mediante um processo de adaptações sucessivas ao meio,
desenvolveria uma racionalidade que parte de estágios concretos e
alcança a abstração. Ao invés de tomar como dada uma natureza
humana universal que seria, em cada um de nós, moldada pelo ambiente
social, e ao contrá rio de conceder crédito à idéia realista de ser possível
o acesso direto ao mundo material — isso é, à idéia de “ mente como

espelho da realidade” (Rorty, 1988 ) , Walkerdine dedica-se a analisar
as prá ticas discursivas que estabeleceram esse regime de verdade e
também as prá ticas discursivas nas quais as crianças estão mergulhadas
desde o ambiente doméstico.
Ela nos revela, então, que entendermos o desenvolvimento da
inteligê ncia como uma seq üência de estágios inerentes à nossa espécie
— como nos propõe, pbr

^ exemplo, a epistemologia genética de
Piaget é resultado de um “ movimento” discursivo que se estabeleceu
Jean
na Modernidade. Isso se deu em condições histó ricas específicas: um
ambiente social europeu, branco, machista, colonizador e capitalista. E
teve como objetivo produzir cidad ã os auto-regulados, capazes de viver
de acordo com as novas tecnologias e aparatos que engendraram novas
pr áticas de administração e governo. Ao argumento de que as pesquisas
revelam que, mesmo em classes pobres, as crianças seguem (ainda que
com atraso) aquela seqiienciação, Valerie nos responde que, se anali-
sarmos a questão a partir de fora de tal enquadramento, poderemos
compreender isso de outra forma. A pró pria idéia de atraso na seqíiência

das fases nos revela a idéia de normalização sobre a qual Foucault

tematizou tão bem em História da Loucura e Vigiar e Punir embutida
na epistemologia genética de Piaget.
Todo o programa de pesquisa de Walkerdine se movimenta no
sentido pós-estruturalista. Isso significa n ão seguir qualquer noção
iluminista de verdade, Ideologia, Ciência etc.; ela dá as costas igualmen-
te a Hegel, Marx, Althusser, Piaget, Saussure, Lé vi-Strauss, Vygotsky e
outros. E em Foucault que eia vai buscar a noção de pr á ticas discursivas
enquanto produtoras de verdade.
Num interessante artigo em que analisa as pedagogias construtivis-
,
tas Walkerdine (1984 ) nos lembra que o movimento educacional
— —
progressivista que no Brasil denominou -se Escola Nova tinha, já

241
na década de 1920, o ideal de fazer a escola funcionar no sentido de
-
educar as crianças para a liberdade, para a auto iniciativa e para a
independê ncia, de modo a se tornarem adyjtos racionais. Objetivos
muito semelhantes a esses, senão iguais, sã o proclamados ainda hoje
pelas pedagogias construtivistas. Frente a isso, ela nos pergunta: “ por
que tantas crian ças não alcan çam esses objetivos e qual é o papel da
Psicologia do desenvolvimento em tudo isso ? ” (id., ib., p.153). A

— —
resposta que ela nos propõe e em torno da qual ela vai argumentar
ao longo de seu texto é que “ a questã o central da Psicologia do
desenvolvimento, a ‘crian ça em desenvolvimento’, é um objeto tomado
como premissa enquanto localização de certas capacidades dentro da
‘criança’ e, assim, dentro do domínio da Psicologia” (id., ib., p.154 ).
Os aspectos daquilo que se costuma denominar o domínio social são
entendidos como elementos que vêm de fora e que influenciam, diri-
gem, conduzem, afetam etc. o desenvolvimento infantil; nesses enqua-
dramentos construtivistas, cabe à escola articular e montar, da melhor
maneira, essas influê ncias, direções, condu ções etc. É exatamente con-
tra essa bi-polaridade interno versus externo que se dirigem as investi-
? gações de Valerie. Ela nos propõe que (a) não só a Psicologia do
desenvolvimento toma a si valores de verdade que são, como vimos,
historicamente determinados — e que não são, por isso mesmo, os

ú nicos possíveis para compreendermos a inteligê ncia infantil como,
ainda, (b) as prá ticas escolares colocadas em funcionamento pelas
pedagogias construtivistas não são meras aplicações de conhecimentos
científicos sobre o desenvolvimento da inteligê ncia na criança, mas
devem ser entendidas como implicadas na produção e legitimação
desses conhecimentos.
O significado político dessas questões nã o é trivial. O construtivis-
mo tem hoje, entre n ós, ampla aceitação na medida em que se escora
numa Epistemologia e/ou numa Psicologia do desenvolvimento que têm
status de conhecimento seguro e/ou de ciê ncia. A preocupação de
Valerie Walkerdine, com a qual eu concordo inteiramente, se centra na
questão de que, considerando que as práticas escolares, moldadas nesses
pressupostos construtivistas, contribuem decisivamente para “ consti-
tuir indivíduos, nesse caso crian ças, enquanto objetos de seu olhar, elas
os produzem como sujeitos. Na medida em que tal Psicologia cria um
regime de verdade tomado como premissa sobre um indivíduo psico-
l ógico, ela proíbe outras formulações que não repitam o dualismo entre
o indivíduo e a sociedade” (id., ib., p.197).
Em Mastery of Reason , Walkerdine (1988 ) vê como particularmen-
te interessante analisar a contribuição da educação matemática no
estabelecimento desse “ movimento” discursivo, na medida em que o
discurso educacional construiu a id éia, a partir do século XIX, segundo

a qual o pensamento lógico- matemático promete evitar os desvios da
criança para outras formas de pensamento e prazer menos racionais.
Uma educação calcada na racionalidade controlaria a agressividade

242
própria da natureza humana e contribuiria, assim, para diminuir o
empobrecimento e a criminalidade na sociedade.
Nessa obra, extremamente interessante tanto para professores que
trabalham em Educação Matemática quanto para aqueles interessados
em conhecer novos enfoques que ajudam a comprender como se dá a
aprendizagem infantil, são exaustivamente analisadas práticas discursi-
vas, nas famílias e nas salas de aula, de modo a nos revelar “ que a
‘verdade’ sobre o desenvolvimento matemático da criança é produzida
nas salas de aula, e que toda a aprendizagem pode ser comprendida
como ocorrendo dentro das pr áticas sociais nas quais a relação entre
significante e significado é constantemente problemática” (Walkerdine,
1988, p.9).
Entre as vá rias observações que faz, em situações concretas no
ambiente familiar e em salas de aula, Valerie descreve e analisa meticu-
losamente as práticas discursivas de crianças, membros de suas famílias
e professoras
— que envolvam conceitos ou entidades lógico-matemá-

ticas ou apenas matemáticas , sempre evitando “ adaptar ” suas obser-
vações e interpretações a partir de um suposto desenvolvimento
semâ ntico universal que seria inerente à inteligência humana. Dessa 1
forma, ela explora, por exemplo, questões sobre a produção dos
“ significados matemáticos” , sobre as relações entre tamanhos e propor-
ções diferentes e sobre como as crianças transformam os discursos
não-matemáticos em matemáticos.

Conclusões

Chegado ao fim deste capítulo, espero ter contribuído tanto para a


compreensão dos aportes que o pensamento de Michel Foucault pode
trazer à pesquisa e à pratica educacionais, quanto para a divulgação de
algumas possibilidades analíticas que foram desenvolvidas por autores
que adotaram uma perspectiva foucaultiana em suas investigações.
Tanto eles, em seus respectivos trabalhos, quanto certamente eu, em
vá rios momentos oscilamos entre a fidelidade e a infidelidade ao
filósofo, comentadas na Introdução deste texto. Penso que, até mesmo
como decorrência da abertura naquele tipo de pensamento, a obra de
Foucault pode ainda inspirar muito nossas idéias e nossas práticas

pedagógicas. O objetivo deste meu texto e, é claro, deste livro é
contribuir para isso.

Não poderia concluir sem lembrar uma questão que atravessou toda
a discussão, na maior parte das vezes de maneira não explícita. Trata-se
daquilo que eu denomino postura foucaultiana e que, de resto, está de
certa forma presente em todo o pensamento pós-estrutural ou pós-mo-
derno. Uma postura que se caracteriza pela mais completa e permanente
desconfiança sobre as verdades que se costuma tomar como dadas,
tranq üilas e naturais. Uma postura que se manifesta pelas constantes

243
tentativas de escapar de qualquer enquadramento que postule como
não-problemáticas as idéias iluministas de um sujeito fondante, de uma
razão transcendental e de um homem ou mulher natural e universal que
habitaria dentro de cada um de nós.

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Alfredo J. Veiga-Neto é Professor do Departamento de Ensino e


Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federai do
Rio Grande do Sul .

246
r ‘

12
Tomaz Ta d eu da Silva
O Adeus às Metanarrativas Educacionais

\ teoria educacional e a pedagogia encontram-se sitiadas. Atacadas


-* *pelo pós-modernismo, pelo pós-estruturalismo, pelo feminismo,
suas fundações balançam e suas praticantes se sentem desestabilizadas.
As ameaças e contestações partem de vá rios lados e atingem vá rios dos
elementos que fundam a educação. Não escapam a essa implosão nem
sequer as bases daquilo que se convencionou chamar de Teoria Educa-
cional Crítica, atingida em seu n úcleo mesmo de teoria e prá tica
vanguardista.
Em outro local (Silva, 1993), tratei de alguns dos aspectos das
contestações feitas à Pedagogia Crítica, sobretudo daqueles ligados ao
movimento pós- modernista. Neste capítulo, estarei focalizando espe-
cialmente a interação entre a Teoria Educacional Crítica e o pós-estru-
turalismo (com ê nfase nas contribuições de Foucault ), com alguma
atenção também a certos elementos do questionamento pós-modernis-
ta.
Como se sabe, pós-estruturalismo e pós-modernismo são conceitos
amplos e de definição pouco precisa. Eles tendem també m a se confun -
dir, ligados que estão a um mesmo conjunto de contestações aos
fundamentos do pensamento, da filosofia, das ciê ncias sociais, das artes.
E possível, entretanto, fazer algumas distinções, que podem ser úteis no
contexto do presente trabalho. Em primeiro lugar, pode-se considerar
pós-modernismo como um termo mais abrangente que pós-estrutura-
lismo. Em seguida, é possível também distinguir o pós-estruturalismo
como um conjunto de desenvolvimentos teóricos vinculados a uma
determinada concepção do papel e da natureza da linguagem, uma
concepção que modifica e estende aquela sustentada pelo estruturalis-
mo. E possível també m distinguir o pós-estruturalismo a partir dos
autores que o identificam. Estão claramente identificados com o pen-
samento pós-estruturalista: Foucault, Derrida, Barthes. Em contrapo-
sição, a figura que claramente identifica o pós-modernismo, ao menos
em filosofia e ciê ncias sociais, é Lyotard. De qualquer forma, neste
ensaio não estarei preocupado particularmente com essa distin ção,

247
embora aquelas questões especificamente pós-estruturalistas sejam as-
sim identificadas.
Mas, sem entrar numa descrição prévia dos elementos do pensa-
mento pós-estruturalista, que será feita ao longo do trabalho, quais são
seus impactos sobre a teoria e a pesquisa educacionais ? Que elementos
do edif ício teó rico educacional são abalados pelas reconceptualizações
do pós-estruturalismo e do pós-modernismo ? Quais desses elementos
permanecem intactos após o vendaval pós-estruturalista ?
O campo educacional é um campo privilegiado de confrontação
para o pensamento pós-moderno e pós-estruturalista. Onde mais as
metanarrativas sã o tão onipresentes e tão “ necessá rias” ? Em que outro
local o sujeito e a consciê ncia são tão centrais e tão centrados ? Em que
outro campo os aspectos regulativos e de governo ( no sentido foucaul-
tiano) são tão evidentes ? Haverá uma outra á rea em que os princípios
humanistas da autonomia do sujeito e os essencialismos corresponden-
tes sejam tão caramente cultivados ? Existirá um outro campo, alé m do
da educação, em que binarismos como opressão/libertação, opresso-
-
res/oprimidos, tão castigados por uma certa ala do pós estruturalismo,
circulem tão livremente e o definam tão claramente ? E onde mais a
“ Razão” preside tão soberana e constitui um fundamento tão impor-
tante ? També m não haverá outro lugar em que o papel da intelectual
( professora ou acad ê mica) seja tão enfatizado, nem outro lugar em que
a mudança (do educando, da escola, da sociedade ) seja tão ardentemen -
te buscada. Utopias, universalismos, grandiloq üências, narrativas mes-
tras, vanguardismo: esse o terreno em que a educação e a teoria
educacional se movimentam. Aqui o pós- modernismo e o pós-estrutu-
ralismo tê m muito a questionar.

A Virada Lingüistica e a Filosofia Educacional da Consciência

A chamada “ virada lingüistica” na teorização social e em outros campos


começa por desalojar o sujeito do humanismo e sua consciê ncia do
centro do mundo social. A filosofia da consciê ncia, firmemente assen-
tada na suposição da existê ncia de uma consciê ncia humana que seria
a fonte de todo significado e toda ação, é deslocada em favor de uma
visão que coloca em seu lugar o papel das categorizações e divisões
estabelecidas pela linguagem e pelo discurso, entendido como o con - i
junto dos dispositivos lingü isticos pelos quais a “ realidade” é definida.
A autonomia do sujeito e de sua consciência cede lugar a um mundo
social constituído em anterioridade e precedentemente àquele sujeito,
na linguagem e pela linguagem.
Nesse movimento, a consciê ncia e o sujeito não apenas saem do
centro da cena social : sã o eles pró prios descentrados. Alé m de não
serem determinantes, auton ômos e soberanos, consciê ncia e sujeito
tampouco são fixos e está veis, carecendo de um centro permanente e

248
•* r.
'

bem estabelecido. A pr ó pria natureza da linguagem é també m redefini-


da. Não mais vista como veículo neutro e transparente de representação
da “ realidade” , mas como parte integrante e central da sua pr ópria
definição e constituição, a linguagem também deixa de ser vista como
fixa, estável e centrada na presença de um “ significado” que lhe seria
externo e ao qual lhe corresponderia de forma un ívoca e inequ ívoca.
Em vez disso, a linguagem é encarada como um movimento em cons-
tante fluxo, sempre indefinida, não conseguindo nunca capturar de
forma definitiva qualquer significado que a precederia e ao qual estaria
inequivocamente amarrada.
Filosofia da consciê ncia e educação quase se confundem. É aqui,
em toda a tradição do pensamento educacional, que a consciê ncia e o
sujeito auto-centrado recebem um papel privilegiado. Esse papel central
é-lhes concedido pelas vá rias “ pedagogias” que tê m atravessado o
pensamento educacional. Ele é destacado no humanismo tradicional,
com sua suposição de uma essê ncia humana a ser desenvolvida em todas
as suas potencialidades. Ele é també m parte essencial dos fundamentos
das vá rias psicologias que têm dado sustentação às justificativas da
educação institucionalizada — das psicologias humanistas (com seus
apelos ao pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas) às
psicologias desenvolvimentistas (com sua ê nfase no desenvolvimento
das capacidades infantis). As suposições sobre consciê ncia e sujeito são
comuns às pedagogias da repressão e às pedagogias libertadoras
oposição biná ria que lhes opõem apenas revela a existê ncia de uma
— a
essê ncia a ser reprimida ou liberada, conforme o caso. Não escapam a
essa tradição nem mesmo as chamadas pedagogias críticas — a pr ó pria
noção de conscientização, tão cara a algumas de suas importantes
correntes, está integralmente vinculada à suposi ção da existê ncia de
uma consciê ncia unitá ria e auto-centrada, embora momentaneamente
alienada e mistificada, apenas à espera de ser despertada, desreprimida,
desalienada, liberada, desmistificada.
A concepção pós-estruturalista, inspirada, nesse ponto, sobretudo
em Foucault, ao colocar em d ú vida a suposição dessa consciê ncia e desse
sujeito soberano, ao desenvolvimento (ou à repressão ) do qual a edu-
cação estaria voltada, priva-lhe, evidentemente, da pró pria razão de sua
existência e “ missão” . Que se coloca em seu lugar ? Talvez não seja o
caso de tentar colocar alguma coisa em seu lugar — operação que
correria o risco de remontar precisamente aquilo que o pós-estrutura-

lismo se pôs a desmontar , mas de enfatizar precisamente o cará ter
transgressivo e subversivo de uma tal perspectiva. Uma perspectiva que
reconhece o descentramento da consciê ncia e do sujeito, a instabilidade
e provisoriedade das m ú ltiplas posições em que sã o colocados pelos
m ú ltiplos e cambiantes discursos em que sã o constitu ídos, começa por
questionar e interrogar esses discursos, desestabilizando-os em sua
inclinação a fixá-los numa posição ú nica que, afinal, se mostrará
ilusó ria. A posição pós-estruturalista, naquilo que se refere à chamada

249
r
1
“ virada linguistica” , subverte todas as nossas mais queridas noções sobre
educação, incluindo aquelas que tínhamos como mais cr íticas e trans-
gressivas. Nisso reside sua força. Querer mais significará provavelmente
voltar a operar precisamente no registro do qual se quer sair.

Desconfiar de Todos os Saberes-Poderes

A teoria educacional, em geral, baseia-se na noção de que o conheci-


mento e o saber constituem fonte de libertação, esclarecimento e
autonomia. A teoria educacional crítica, em particular, acredita que os #
presentes arranjos educacionais, afetados por objetivos de interesse e
poder, transmitem saberes e conhecimentos contaminados de ideologia,
mas que é possível, através de uma crítica ideológica, penetrá-los e
chegar a um conhecimento não- mistificado do mundo social.
A posição pós-estruturalista vai contestar essas visões. Em primeiro
lugar, ao reformular a oposição convencional entre ciê ncia e ideologia,

entre saber e ignorâ ncia/ mistificação que vincula o segundo elemento
desses pares a uma distorção que pode ser traçada ao poder (ideologia)
e o primeiro a uma posição distanciada e desinteressada em relação ao
poder (verdade ) — todo saber/conhecimento torna-se igualmente sus-
peito de vínculo com poder. Em segundo lugar, a própria noção de J
poder sofre um deslocamento, não podendo mais ser referida a uma
fonte ou a um centro ú nico, separando nitidamente o mundo social em
opressores e oprimidos, assim identificados antecipadamente e de uma
vez por todas. A natureza opressiva ou libertadora de um discurso não
pode ser determinada teoricamente, deve ser investigada historicamen-
te, em cada caso específico (Sawicki, citada por Gore,. 1994 ). Nesse
deslocamento, muda o próprio foco de análise do poder: não mais
simplesmente tentar identificar a fonte do poder, já que as relações de
poder são onipresentes, mas principalmente como elas se exercem
(Foucault, 1982).
Mais uma vez, isso atinge o âmago da teorização educacional
crítica. Em que outra coisa consiste o objetivo da pedagogia cr ítica senão
em colocar a intelectual ( professor, acadê mica) numa posição privile-
giada para identificar fontes e origens de poder que levam a mistificar
o conhecimento do mundo social e, com isso, a perpetuar situações de
opressão ? Não é a missão desse/a intelectual ajudar os/as estudantes a
chegar a uma compreensão não-mistificada da vida social, uma com-
*
preensão supostamente isenta de interesses de poder ? A perspectiva
pós-estruturalista, baseada na noção de poder-saber de Foucault, vai
nos desalojar a todos dessa posição privilegiada, a partir da qual se pode t
analisar e criticar o poder sem estar envolvido com ele.
Colòca-se sob suspeita tanto a relação da acadêmica frente aos
professores ( “ práticos” ), quanto a desses últimos frente aos/às estudan-
tes. Se não existe o exterior do poder, se não existe uma “ verdade” que

250
?
j
V

seja o outro lado do poder, todas as relações são arriscadas. A conse-


qüê ncia disso não é necessariamente uma posição niilista, cínica ou
desesperada, mas talvez uma posição mais realista, apesar de todo o
desconforto que possa ser causado pela operação de desalojamento de
uma posição de poder que deve seu prestígio precisamente à luta contra
o poder e à sua suposta isenção em relação a ele. O objetivo já não será
mais buscar uma situação de não-poder, mas sim um estado permanente
de luta contra as posições e relações de poder, incluindo, talvez princi-
palmente, aquelas nas quais, como educadores/as, nós próprios/as
estamos envolvidos.

O Pós-Estruturalismo e o Papel da Intelectual

É precisamente o papel privilegiado da intelectual que vai ser um dos


elementos mais contestados pelo pós-estruturalismo e pelo pós-moder-
nismo. Colocada sempre numa posição afastada, distanciada, isenta, em
relação ao mundo social e político, a intelectual, na melhor tradição
iluminista, vai contribuir com um saber/conhecimento desinteressado
para o avanço e progresso da vida social. Numa perspectiva que vincula
sempre saber e poder, essa posição torna-se insustentável. O saber da
intelectual não paira acima e fora das lutas e relações de poder: é parte
integrante e essencial delas.
As pedagogias críticas dependem centralmente de uma perspectiva
vanguardista do papel da intelectual, seja em relação aos movimentos
sociais em geral, seja em relação ao espaço mais restritamente pedagó-
gico. As noções pós-estruturalistas de poder vão conferir à intelectual
um papel bem mais modesto, muito menos universal e muito mais local,
que se expressa na noção de “ intelectual específica” de Foucault. Nessa
perspectiva, a intelectual assume um papel muito mais simétrico em
relação às outras participantes das lutas sociais nas quais está envolvida,
no sentido de que seu saber, sua visão e seu discurso devem tanto aos
interesses de poder quanto os de qualquer outra participante.
Essa visão tem conseqiiê ncias tanto para as teóricas educacionais
críticas quanto para os professores. Para as primeiras, fica dif ícil, a partir
daí, manter uma posição de superioridade em relação aos segundos,
uma superioridade que se deve à suposição da existê ncia de uma posição
incontaminada pelo poder. Suas pedagogias críticas só o serão na
medida em que aplicarem a si próprias os instrumentos de cr ítica que
aplicam aos outros. Para os segundos, é sua própria relação com as
estudantes que deve ser mantida constantemente em xeque, tendo em
vista seu possível envolvimento em processos de regulação e controle.
A intelectual, nessa perspectiva, não se reconhece tanto pelo grau de

251
"r.
^ppjPffs^—
• "
*

• v

sua cr ítica em relação às posições de poder dos outros quanto pelo grau
de sua auto-reflexividade.

Pedagogia Crítica e Regulação/Controle/Governo

O envolvimento da educação e da pedagogia em mecanismos de poder


e controle não é nenhuma novidade para a teoria educacional crítica.
Essa preocupação é mesmo uma caracter ística central da teorização
educacional crítica. O que distingue a posição pós-estruturalista, nisso
baseada novamente em Foucault, é a ê nfase no cará ter necessá rio e
produtivo do poder. Enquanto para a teorização cr ítica de inspiração
marxista, por exemplo, o poder distorce, reprime, mistifica, para a
perspectiva pós-estruturalista, o poder constitui, produz, cria identida-
des e subjetividades. As identidades e subjetividades assim produzidas
não representam nenhuma distorção, nenhum desvio em relaçã o a
alguma essê ncia humana que, se deixada livre ou “ bem ” encaminhada,
seguiria o seu “ verdadeiro” curso.
A regulação e o governo dos sujeitos e das populações são meca-
nismos necessá rios para “ canalizar” suas capacidades para objetivos
produtivos, no sentido de utilidade para o poder. Mas essa regulação e
governo não estão necessariamente centralizados em qualquer institui-
ção especifica, como o Estado, por exemplo. O que caracteriza a
sociedade contemporâ nea é precisamente o caráter difuso desses meca-
nismos de regulação e controle, dispersos que estão em uma ampla sé rie
de instituições e dispositivos da vida cotidiana. A educação é certamente
um desses dispositivos, central na tarefa de normalização, disciplinari-
zação, regulação e governo das pessoas e das populações.
E verdade que tudo soa familiar às pessoas formadas na tradição
educacional cr ítica. Entretanto, a diferença está em que nenhum dispo-
sitivo, nem mesmo os cr íticos, tal como as pedagogias críticas, estão
absolvidos de envolvimento em relações de poder, regulação e governo.
Para usar a terminologia de Foucault, também elas constituem “ tecno-
logias do eu ” , profundamente implicadas na produção de determinados
tipos de personalidade. A operação convencional de desmontagem na
teorização crítica de inspiração marxista consiste em examinar os
dispositivos e prá ticas tradicionais como ligados ao interesse e ao poder.
Supostamente, uma vez eliminados esses obstáculos, teríamos uma
situação de “ libertação” , isto é, de não-poder. Na perspectiva pós-es-
truturalista de inspiração foucaultiana, apenas teria se instaurado um
outro regime de regulação e controle, não necessariamente mais bené-
fico. Evidentemente não seriam apenas as pedagogias críticas que seriam
, v ítimas da ilusão de transcender o cará ter necessariamente regulativo e

252
yrwimp:

de controle da educação e da pedagogia. A pedagogia construtivista é


um outro exemplo, extremamente atual, dessa ilusão.
Uma outra implicação dessa perspectiva para a educação é não
separar regulação e saber. Embora análises como a de Althusser já
tivessem chamado a atenção para o caráter ideológico até mesmo de
disciplinas educacionais consideradas “ neutras” , havia a í sempre a
suposição de uma separação entre conhecimento (científico ) e ideologia
que permitia que o conhecimento “ verdadeiro ” pudesse emergir uma
vez desenredado de seu cipoal ideológico. Na perspectiva que aqui
estamos analisando, as disciplinas (mat é rias) escolares, estando situadas
em dispositivos de governo e controle como a educação, contê m
necessariamente aspectos regulativos dos quais n ão podem ser separa-
das — se pudessem já não estar íamos falando de educação. Educa-
ção/ pedagogia e regulação estã o sempre juntas.

Os Binarismos Que Habitam a Educação e Sua Desconstrução

Algumas pensadoras educacionais começam a extrair as conseq üê ncias


do projeto de descontrução de Derrida para a educaçã o. Interessa- me i
aqui destacar apenas duas dessas implicações. Uma das tarefas a que se
I propôs Derrida foi a de desconstruir oposições biná rias caras à tradição
do pensamento filosófico ocidental: teoria/ prá tica, sujeito/objeto, na-
tureza/cultura... Derrida tenta demonstrar que nessas oposições um
termo n ão representa a superação do outro, como se pode pretender a
partir da posi çã o que argumenta em seu favor. Embora nessas oposições
um termo sempre apareça como positivo, reprimindo o outro, na
verdade elas supõem uma essê ncia que lhes está subjacente. Ocorre não
apenas que essa essê ncia n ã o apenas n ã o existe, como a identidade que
é definida pela oposição nã o é fixa, mas flutuante, cambiante.
O campo da educação e da teoria educacional dificilmente pode ser
compreendido fora desses binarismos: libertação/opressão, repres-
são/ libera ção, teoria/ prá tica, racional/irracional... Uma perspectiva pós-
estruturalista inspirada na desconstrução buscaria desmontar essas
oposições naquilo que um de seus elementos apresenta de pretensão de
superação do outro. Assim, por exemplo, para tomar um exemplo tão
central à pró pria histó ria do pensamento educacional ocidental, se
consideramos o par “ reprimir/ liberar ” em conjunto, como uma dessas
oposições que remetem a uma essê ncia subjacente, veremos que “ libe-
rar ” , por exemplo, n ã o representa o “ outro” de “ reprimir ” mas apenas
um outro lado de uma identidade: a da essê ncia humana que deve ser
reprimida ou liberada, conforme for o caso e a é poca. A oscilação
histó rica entre reprimir e liberar é uma oscilação que volta ao mesmo
ponto ( Lerena, 1983 ).
A cr ítica das oposições biná rias relaciona-se com a cr ítica dos
significados transcendentais. Para Derrida, a filosofia ocidental tem-se
253
F»'"

caracterizado precisamente pela busca daquele significado último de


todas as coisas, um significado que as fixaria de uma vez por todas, que
permitiria sua compreensão final, um significado que serviria de refe-
rência para todos os outros, e que estaria na sua origem. Essa corrida
em busca do significado transcendental é mais do que evidente no
campo educacional. Certo tipo de questão, bastante corrente nesse
campo, define bem essa busca: Que é verdadeiramente a educação ? Que
conceito e teoria nos permitiria explicar, de uma vez por todas, esse ou
aquele processo educacional ? Em que, exatamente, consistiria a peda-
gogia progressista ú ltima e definitiva ? A sucessão de teorias e concep-
ções que se sucedem com certa rapidez na educa çã o é uma
demonstração dessa incessante e interminável busca. Embora talvez seja
necessário pensarmos os significados como transcendentais, um certo
reconhecimento da ilusão que constitui sua busca desenfreada pode
constituir um saudável elemento na constituição de uma teoria e uma
prática mais modestas e realistas. O abandono dos significados trans-
— —
cendentais como o das metanarrativas não deve deixar saudades.

Epistemologia Social, Epistemes e Educação

A tradição racionalista no pensamento social e educacional tende a


pensar o conhecimento e a epistemologia como um processo lógico e
ligado a esquemas mentais de raciocínio. Essa é uma das conseq üências
de se conceber a linguagem como um meio transparente e neutro de
representação da “ realidade” . Uma das implicações da “ virada linguis-
tica ” é conceber o nosso conhecimento e compreensão do mundo social
como necessariamente vinculado à pró pria forma como nomeamos esse
mundo. Esse processo de nomeação não é o mero reflexo de uma
realidade que existe l á fora; esse processo produz, constitui, forma a
realidade. As categorias que usamos para definir e dividir o mundo
social constituem verdadeiros sistemas que nos permitem ou impedem
de pensar, ver e dizer certas coisas. Esses sistemas constituem, na
terminologia de Foucault, “ epistemes” , ou ainda, para utilizar a suges-
tão de Popkewitz (1991), “ epistemologias sociais” . As epistemologias
sociais ordenam, formulam, moldam o mundo para nós, um mundo
que não tem sentido fora delas.
Isso tem muitas e variadas implicações para o campo educacional
e sua análise. Quero destacar aqui apenas uma delas, justamente uma
das mais importantes. Como outros campos sociais, também o da
educação é “ governado” pelas categorias que nos permitem nomeá-lo.
Em geral, tendemos a ver essas categorias e nomes como resultado de
um processo racional e lógico de significação da realidade, envolvendo
atores també m racionais e razoá veis. Tendemos, por outro lado, a
esquecer o quanto essas categorias, conceitos, nomes, taxonomias
capacitam ou restringem aquilo que podemos pensar, sentir, dizer,
fazer. Como atores sociais, vivemos dentro de verdadeiras epistemolo-

254
gias sociais e educacionais que constituem para nós o campo do possível,
nos permitindo pensar, dizer e fazer certas coisas e não outras.
Essa perspectiva poderia ser aplicada a muitas outras epistemes e
epistemologias sociais no campo da educação, mas me restringirei a
apresentar aqui o exemplo das categorias e redefinições atualmente
postas a circular pelo chamado neoliberalismo. Estamos atualmente
presenciando um processo amplo de redefinição global das esferas
social, política e pessoal, no qual complexos e eficazes mecanismos de
significação e representação são utilizados para criar e recriar um clima
favorável à visão social e política neoliberal. O que está em jogo não é
apenas uma reestruturação neoliberal das esferas económica, social e
política, mas uma reelaboração e redefinição das pr óprias formas de
representação e significação social. O projeto neoconservador e neoli-
beral envolve, centralmente, a criação de um espaço em que se torne
impossível pensar o económico, o político e o social fora das categorias
que justificam o arranjo social capitalista. Nesse espaço hegemónico,
visões alternativas e contrapostas à liberal/capitalista são reprimidas a
ponto de desaparecer da imaginação e do pensamento até mesmo
daqueles grupos mais vitimizados pelo presente sistema. Em seu con-
junto, esse processo faz com que noções tais como igualdade e justiça
social recuem no espaço de discussão p ú blica e cedam lugar às noções
redefinidas de produtividade, eficiê ncia, “ qualidade ” , colocadas como
condição de acesso a uma suposta “ modernidade” (outro termo, aliás,
submetido a um processo de redefinição ). E preciso perguntar: quais
questões e noções são reprimidas, suprimidas ou ignoradas quando um
i discurso desse tipo se torna hegemónico ? Que visões alternativas de
sociedade deixam de circular no imaginário pessoal e social ?
A redefinição da educação em termos de mercado insere-se nessa
epistemologia social. A educação deixa de ser definida como um espaço
público de discussão, como uma instituição pertencente à esfera políti-
ca, e passa a ser redefinida como um bem de consumo, no qual
estudantes e pais figuram como consumidores individuais e isolados em
busca de seus supostos direitos de consumidores. Nesse processo,
tendem a ser suprimidas categorias e conceitos com os quais tendíamos
a encarar a educação institucionalizada — —
cados em favor de outras categorias conceitos mercado, consumi-
e

justiça, igualdade ,- deslo-

dor, qualidade total. Como resultado, temos uma nova “ realidade”


lingiiisticamente definida, que, ao reprimir e tornar impossível qualquer
forma alternativa de pensar e dizer, nos aprisiona na ú nica forma que
parece possível.

A Educação na Idade da Razão

É dif ícil pensar a educação fora do contexto do predomínio da Razão,


tal como definida e elaborada pelo Iluminismo. A história da educação
255
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de massas e a do pensamento ilustrado quase se confundem. A educação


institucionalizada é um dos mecanismos pelos quais a Razão se instala
e se difunde, os currículos educacionais são baseados na concepção de
Razão, o cultivo da Razão é um dos principais objetivos educacionais.
Em muitos sentidos, educação significa produção da racionalidade. Para
tomar um exemplo mais atual, pode-se dizer que o objetivo central das
chamadas psicologias desenvolvimentistas é produzir a criança racional
(Walkerdine ). Por isso, numa era em que o predom ínio da Razão
iluminista é colocado em questão a partir de variadas perspectivas
pós-estruturalismo, pós-modernismo, feminismo, pacifismo, ambienta- —

lismo é dif ícil deixar de repensá-la também no âmbito da educação.
As perspectivas pós-modernista e pós-estruturalista, em conjunto,
colocam em questão esse predomínio de uma Razão, universal e abstra-
tamente definida. Nessa visão, a noção predominante de Razão é
encarada como produto de uma construção histórica que deve suas
características às condições da é poca em que foi desenvolvida e não a
uma essência humana abstrata e universalizante. Essa Razão é eurocè n -
trica, masculina, branca, burguesa, setecentista e, portanto, particular,
local, histórica, e não pode ser generalizada.
Em termos mais educacionais, o desenvolvimento da criança pen -
sante e racional, como um objetivo abstrato, deixa de levar em conta
exatamente o cará ter relacional, contextuai e histórico do pensamento.
Ao ter como objetivo a produção desse “ pensador ” descontextualizado,
a educação e, sobretudo, as psicologias desenvolvimentistas, tendem
precisamente a universalizar e a abstrair a noção de razão, ocultando
com isso seu caráter particular e histórico. Esse raciocínio, assim
concebido e desenvolvido, separado da consideração de seu objeto,
tende a despolitizar o processo de pensamento, na exata medida em que
o concebe fora e acima de seu contexto pol ítico e histórico.

As Metanarrativas: Como Viver Sem Elas

Possivelmente nenhum questionamento pós-modernista tenha atingido


mais seriamente a educação que o desfechado contra as metanarrativas.
O campo educacional é um campo minado de metanarrativas. Impos-
sível andar nele sem esbarrar em uma. Usamos metanarrativas para
construir teorias filosóficas da educação; utilizamos metanarrativas
para analisar sociol ógica e politicamente a educaçã o; nossos currículos
educacionais deixariam de existir sem as metanarrativas metanarra-

tivas históricas, sociais, filosóficas, religiosas, científicas. O golpe contra
as metanarrativas é, portanto, um golpe contra o edif ício teórico
educacional, seja aquele tradicionalmente construído, seja o da teoriza-
ção crítica.
Parece que o abandono das metanarrativas é irreversível. As meta-
narrativas, em sua ambição universalizante, parecem ter falhado em

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fornecer explicações para os multifacetados e complexos processos


sociais e pol íticos do mundo e da sociedade. A depend ê ncia em relação
às metanarrativas pol íticas tem revelado uma tendência a produzir
regimes totalitá rios e ditatoriais. O apego a certas metanarrativas tem
servido apenas de justificação para que certos grupos conservem outros
r sob opressão.
Em educação não é diferente. Temos presenciado com freq üência
a busca cíclica da “ Grande Pedagogia ” que, finalmente, vai dar resposta
a todas as nossas grandes questões educacionais e sociais. Em seu af ã
universalizante, essas pedagogias têm chegado a formular conjuntos de
princípios pelos quais se testaria a adesão a seu credo. Analiticamente,
também se observa uma tendê ncia a adotar esquemas explicativos
universalizantes para os processos educacionais.
Em termos de teoria, as metanarrativas educacionais têm servido
freqiientemente apenas para que certos grupos imponham suas visões
particulares, disfar çadas como universais, às de outros grupos. As
metanarrativas com freq üê ncia impedem a discussão pú blica e aberta
ao suprimirem antecipadamente perspectivas que se lhes opõem. Por
outro lado, em termos mais curriculares, as metanarrativas tê m servido
apenas para justificar a exclusão do curr ículo de outras narrativas que
não se encaixam nos pressupostos e dogmas da narrativa mestra que
! está no comando.
Por tudo isso o adeus às metanarrativas não constitui necessaria-
mente uma despedida dolorosa. Ela significa apenas que nossas teori-
zações precisam ser mais refinadas, mais atentas aos detalhes locais e
\ específicos, enquanto que o conhecimento corporificado no currículo
precisa estar mais atento às vozes e às narrativas de grupos até então
excluídos de participar de sua produção e criação. As metanarrativas:
é possível viver sem elas. E talvez melhor.

E Agora?

Num campo atravessado por preocupações pr á ticas e pol íticas não há


como evitar a pergunta: dados esses questionamentos, que fazer daqui
pra frente ? Uma possível resposta é que esses questionamentos apenas
estendem e ampliam o projeto educacional crítico de desestabilização
dos poderes, certezas e dogmas estabelecidos. Que isso constitui em si
uma prá tica, uma prá tica de cr ítica que tem objetivos e resultados
pol íticos. E verdade que desta vez o pr óprio projeto cr ítico torna-se
objeto da operação de cr ítica e questionamento e nisso está precisamen -
te uma de suas novidades. Mas a auto-reflexividade não significa
niilismo ou cinismo, nem falta de compromisso e responsabilidade. Há
talvez um aumento de responsabilidade, na medida em que nossas
posições deixam de ter um ponto fixo e está vel e ficam constantemente
submetidas à crítica e à d ú vida. Isso tampouco implica um abandono

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da política. Se existe abandono é apenas de uma política baseada em


certezas, dogmas e narrativas mestras.
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Os questionamentos colocados pelo pós-modernismo e pelo pós-
estruturalismo també m implicam uma posição de mais mod éstia por
parte da intelectual e do professor. O pr ó prio alcance da teoria torna-se
mais modesto e limitado. Não mais obrigada a dar conta de tudo, não
mais obrigada a prescrever uma sé rie de receitas para todas as situações,
a intelectual educacional pode talvez agora assumir sua tarefa política
de participante coletiva no processo social: vulnerável, limitada, par-
cial, às vezes correta, às vezes errada, como todo mundo. A intelectual
do modernismo e do estruturalismo está em crise. Talvez surja em seu
lugar uma intelectual mais de acordo com o tempo em que vivemos.
Mas a partir daqui vou ficar tentado a prescrever. Melhor terminar
antes disso. Pós-estruturalmente.

Referências
FOUCAULT, M. Afterword. In : H. L. Dreyfus & P. Rabinow. Michael Foucault: Beyond
Structuralism and Hermeneutics. Chicago, The University of Chicago Press, 1982.
GORE, J. Foucault e Educação: Fascinantes Desafios. In: T.T. da Silva (Org.). O Sujeito da
Educação: Estudos Foucaultianos. Rio, Vozes, 1994.
LERENA, C. Reprimir y Liberar. Crítica sociológica de la educación y de la cultura contem-
porâneas. Madri, Akal, 1983.
POPKEWITZ, T.S. A political sociology of educational reform. Power/ knowledge in teaching,
teacher education, and research. Nova York, Teachers College Press, 1991.
SILVA, T.T. da. Teoria Educational Crítica em Tempos Pós-Modemos. Porto Alegre,
Artes
Médicas, 1994.
WALKERDINE, V. Reasoning in a post -modern age. Londres, Department of Media and
Communication, Goldsmiths’ College. Mimeo.

Este ensaio foi apresentado em Painel no VII ENDIPE,


5 a 9 de junho de 1994, Goiâ nia.
Tomaz Tadeu da Silva é Professor do Departamento de Ensino e
Curr ículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

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