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Copynghi * RCS 1^88 by Sansoni Ediiore SpA Firenze ,

Título original
L 'arte modermt
OaU 'UhtmmfcmQ at moi'im&ifi contemporntfei

Capa e projeto gr
óílco
MA $ ( Mariut Moreira jtfJUtoi tettda Dias 4e Mount
e Sttzi ScdonJ sobre A dança. de H Matisse* 1910 .
Mu$eu Ermitage, 5ào Peiersburgo

Indkuç o editorial e seleção tits ilustraçifcs


^ Artf í
*
Preparação;
Mãrçm Copota

Revisão;
Atta Maria Barbosa
.Marcar / viz /
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LV. clí clileiloa defla edição reservados ii


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cApm/i.o cots A a FAi ir>\nf F A CONSCIêNCIA 109

c das gamas vivas dos impressionistas. Degas sacrifi ¬ espelhos embaçados. Apesar do gelo da an álise, a sen ¬
ca à tcndcncia do grupo seu culto a Ingres, o qual por sação visual est á lá, intacta: não foi aprofundada, in ¬

nada no mundo teria tomado como modelo dois ti¬ terpretada, elaborada, o significado humano está im ¬
pos humanos tão comuns e decadentes: um bohé - plícito no dado visual. A impressão visual, portanto,
mien e uma pequena prostituta entorpecida pelo ál ¬ n ã o é um limitar-se a ver, renunciando a compreen ¬
cool. Tampouco Courbet, Manet, Renoir o teriam der; é um novo modo de compreender e permitir
feito, e Baudelaire também n ão o teria aprovado. No compreender muitas coisas antes incompreendidas.
.
entanto Degas não o 612 por polé mica social: n ão Assim Degas desfaz a ligaçã o que ainda vinculava a
julga, n ão condena, não se apieda, não ironiza. Bas - sensação visual impressionista à emoção romântica.
ta -lhe descobrir objetivamente a solidariedade que E é ele, fundamentaimeme ingresiano, que se liberta
une aquelas figuras àquele ambiente. A descoberta do do complexo de inferioridade que o pró prio Renoir,
caso humano , dada a capacidade de captação de seu o próprio Cézanne experimentam frente à perfeita
aparato pictó rico , é quase involunt á ria ( mas Degas lucidez de Ingres. Para ele , tão sensível à realidade do
pagou em vida esse excesso de lucidez com a solid ão seu tempo, o clássico j á não é beleza nem razão; é
e a angústia ) . simplesmente recusa do patético em favor de uma
Eis como funciona sua máquina de captação, eis a objetividade superior.
estrutura do fotograma. Uma grande parte do qua ¬
dro é ocupada pela perspectiva enviesada, com um
abrupto desvio em â ngulo agudo, das mesinhas dc
-
m ármore. Entra se no quadro por este rumo impos ¬
to, como se estivéssemos pessoalmente naquele café, PAUL CÉZANNE
numa dessas mesinhas. O desvio retarda nosso en¬ O ASNO E OS LADROES
contro com os dois personagens; primeiramente,
A CASA DO ENFORCADO EM
nossa aten ção é detida pela garrafa vazia sobre a ban ¬ AUVERS
deja, a seguir é remetida aos dois copos com as bebi ¬
das, quase por uma associação espontâ nea de ídé ias. JOGADORES DE CARTAS
No primeiro copo há um l íquido amarelo, em rela¬ O MONTE
ção com as fitas amarelas no corpete da mulher; no S A I N T E-V I C T O I R E
-
segundo, um l íquido vermelho castanho, em rela ção
-
com o terno, a barba, a cor do homem. Chega se as ¬ A biografia sem acontecimentos de CêZANNE aju ¬
sim ao centro do tema, mas o tema não est á no cen ¬ da a entender sua pintura, que conclui a pará bola do
tro do quadro. Os dois n ão se movem , estão absortos, Impressionismo e forma o tronco do qual nascem as
sem expressão nem gesto; contudo, aprisionados no grandes correntes da primeira metade do século XX .
pequeno espaço entre a mesa e o encosto do sofá, des ¬ Cézanne renunciou a ter uma vida para realizar sua
lizam numa perspectiva que a parede dc espelhos, obra, ou melhor, fez da obra a sua vida. Com posses
por trás, torna ainda mais incerta e fugidia. Mas é es ¬ suficientes para viver de seus recursos, isolou-se em
sa nova perspectiva que põe as figuras em foco. Na sua casa na Proven ça; logo renunciou também às es¬
moça, antes mesmo do que a doentia palidez do ros¬ por ádicas estadas em Paris, mantendo apenas raros
to, impressionam certos detalhes miseráveis, quase contatos com os amigos mais caros, Monet, Pissarro,
grotescos: o falso luxo, totalmente profissional, dos Renoir. Mas també m n ão permitia que interferissem
laços dos sapatos, dos enfeites do corpete, do cha ¬ cm seu trabalho; trabalhava incansavelmente, com
peuzinho periclitante; no homem , impressiona a método, consciente da enorme importâ ncia do que
vulgaridade corpulenta e sangu í nea, a tola presun ¬ fazia, e, no entanto, sempre insatisfeito.
ção. É uma humanidade macilenta e desperdiçada, -
Se às vezes ocorria lhe desejar o sucesso que lhe era
parada no tempo vazio e no espaço estagnante: fria -
negado, nem por isso empenhava se minimamente
como o m á rmore das mesinhas mal lavadas, surrada -
em obrè lo. Nã o pretendia criar obras monumentais,
e desbotada como o veludo dos sofás, opaca como os obras- primas; a descoberta de pequenas verdades,

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\ to CAMTUIO DdS A ftfcAUtWtf EA CONSCIÊ hiCIA

que demonstravam a correção de sua pesquisa, com - vem e arisco proven çal sentia que a renovação pre¬
-
pensava o pela labuta cotidiana. Concebeu a pintura tendida deveria ser algo muito diverso de uma re¬
como pesquisa pura e desinteressada, semelhante à volta contra o gosto acad ê mico e a conquista da li ¬
do cientista ou do filósofo, mesmo que diferente no berdade de olhar o mundo sem preconceitos. Tal ¬
mé todo —
pesquisa de uma verdade, justamente, vez lhe tenha sido proveitosa , nos dois anos que pas¬
que n ão podia ser alcançada sen ão com aquela refle ¬
xão ativa frente ao verdadeiro em que, para ele, con ¬
- -
sou em Auvers sur Oise, a proximidade daquele
pintor corajoso e meditativo, aberto à pesquisa
sistia o pintar. J á se aproximava da morte quando o avan çada mas avesso a aventuras, que era Pissarro: o
mundo percebeu a inigualável grandeza de sua pin ¬ fato é que Cézanne, quase de s ú bito, compreendeu
-
tura. Formou se sem mestres , procurando escolher, que do Impressionismo poderia e deveria nascer
desenhando e pintando, o n úcleo expressivo, a estru ¬ um novo classicismo, n ã o mais fundado sobre a
tura profunda das obras dos pintores do passado
principalmente italianos (Tintoretto, Caravaggio),
— imitação escolar dos antigos, e sim dedicado a for¬
mar uma imagem nova e concreta do mundo , a

espanhóis ( F.l Greco, Ribera, Zurbarán ) e moder ¬
nos ( Delacroix, Courbet, Daumier ) . Este último,
qual , por é m , n ão mais deveria ser buscada na reali ¬
dade exterior, mas na consciê ncia.
talvez, mais do que os outros, n ã o por seus conte ú dos A pintura n ão era literatura figurada, tampouco
sociais e polí ticos, e sim por seu modo de construir a uma t écnica capaz de transmitir a sensação visual ao
-
imagem modclando a duramente na maté ria pict ó¬ vivo: era um modo insubstitu ível de investigação das
rica. Nas diversas estadas em Paris, a partir de 1861. estruturas profundas do ser, uma pesquisa ontológi ¬
frequentou os pintores que posterior men te seriam ca, uma espécie de filosofia.
chamados de impressionistas; participou da primei ¬ N ão se pode pensar a realidade sen ã o enquanto é
ra ( 1874) e terceira exposição (1877), mas as obras recebida de uma consciência; não se pode pensar a
desse per íodo não mostram um grande interesse pe¬ consciê ncia sen ã o enquanto i preenchida pela reali¬
lo programa renovador deles. Provável mento tam ¬ dade, Tampouco se pode conceber uma estrutura,
bé m por influê ncia de Zola, seu amigo de inf ância e uma ordem constitutiva da realidade e do seu devir,
de escola, permanece obstinadamence ligado a um que n ão seja a estrutura ou a ordem da consciê ncia
romantismo agora extemporâ neo, todavia exaspera ¬ em seu constituir-se e formar-se. Por isso , Cézanne
do; retira seus temas da literatura e da pintura ro ¬ nunca poderá dispensar o modelo ou o tema, isto é, a
mântica (especialmente de Delacroix ) e trata -os com sensação visual (a que chamava dc " petite sensation" ) ,
um ímpeto quase furioso, amontoando com a espá ¬ nunca colocará o m í nimo toque na tela sen ão em
tula densas camadas de cores escuras e fortemente presença do verdadeiro; tampouco nunca proporá
contrastantes. Evidentemente n ão aceita a pintura abstrair, mas sempre e unicamente “ compreender".
puramente visual de seus amigos impressionistas, Seus esforços são inteí ramente dedicados a manter a
quer ser um poeta, um literato; porém quer realizar sensação viva durante um processo anal ítico de pes¬
essa literatura como pintor, e n ã o traduzindo o tema quisa estrutural , que certa mente c um processo do
cm figuras, mas construindo a imagem com os pesa¬ pensamento; durante o processo, a sensação n ão só se
dos materiais da pintura. Em sua pintura nada é in¬ mantém , como ainda torna -se mais precisa, organi¬
venção, tudo é pesquisa. za-se, revela toda a coerê ncia e a complexidade dc sua
Por isso, retoma e exagera o empaste encorpado estrutura. A operação pict ó rica não reproduz, e sim
de Courbet , a composi çã o agitada do ú ltimo Dela¬ produz a sensação: não como dado para uma reflexão
croix, os grossos contornos negros e as luzes alvas de posterior, mas como pensamento, consciê ncia em
Daumier; Manet, venerado mestre dos impressio¬ ação. A ideia de que o conhecimento da realidade
nistas, torce o nariz, n ã o aprecia "a pintura suja". n ã o é contemplaçã o, poré m nasce de uma vontade
Mesmo assim, esta fase de generosa impureza , em de tomar e se apropriar, era t í pica da estética e da ar¬
que descarrega toda a sua bagagem rom ântica, e a te romântica, e dela passou para Courbet, cujo realis¬
sua pró pria resistê ncia inicial ao programa dos im ¬ mo é um ato de apoderamenro, e os impressionistas,
pressionistas são importantes; evidentemente, o jo¬ cada um deles empreendendo um modo próprio de

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112 CAPITIXO UOIS A REUJIMIM- í A < XWSOf.naA

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Paul C&annc: A í JUAJó ettfonadc em Auirn


( t 873 )i tcU Ot55 0.66 m. Pam,
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Muscc d'Orsjy .
é um esqueleto constante sob as aparências mutáveis, espaço, são instrumentos mentais com que se efetua
é a rítmica profunda e sempre variável dessa mudan- a experiência do real: sc uma laranja, no quadro ,
ça das aparências ou, mais precisamente, de sua con ¬
aproxima- se da esfera, ou uma péra do cone, não sig ¬

tínua c variada combinação e constituição, como sis¬ nifica que a laranja seja esférica e a pêra cónica, mas
tema de relações em ação, na consciência. que o artista conseguiu especificar a relação entre os
Numa carta de 1904, ele escreve que é preciso “ tra¬ dois objetos singulares e o conjunto da realidade, is¬

tar a natureza conforme o cilindro, a esfera, o cone, o to é, fazer com que essa laranja c essa pera sejam uma
conjunto posto em perspcctiva” , c prctcndcu-sc ver laranja c uma pera, c ao mesmo tempo uma esfera c
nessa frase uma antecipação teó rica do Cubismo, um cone, isto é, formas expressivas da totalidade do
movimento que inquestionavelmente descende de espaço. Como as formas geomé tricas não são o espa ¬

sua pintura, mas interpreta-a em sentido racionalis- ço, porém modos através dos quais o homem pensou
ta. Cézanne não afirma que se devam reduzir as apa ¬ o espaço, elas não são idéias inatas, c sim formas his
¬

rências naturais a formas geométricas; ele não se refe¬ tóricas; fortalecida pela sua experiência histórica, a
re a um resultado, e sim a um processo (“ tratar"). consciência se apresta para a experiência do real pre¬

As formas geomé tricas, ab antiquo expressivas do sente. Por isso, Cézannediz que sua aspiração é refazer

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CANTULO DOES A REALIDADE È ACOEÍSOÊMCIA 11 J

Poussin a partir do verdadeiro, isto é, reencontrar a um espectador no teatro. Aí n ão pode existir uma se¬
hist ó ria na natureza, a experiê ncia refletida do passado paração entre o espa ço da vida, ou do artista que pin ¬
no flagrante da sensa ção, fi este o classicismo ( mas se¬ ta, e o espaço do quadro. É uma exigência que todos
ria mais correto dizer a classiddadc) de Cézanne. os artistas , a partir de Delacroix, percebem e tentam
Depois de falar sobre o cone e a esfera , ele acrescen ¬ -
resolver de várias maneiras: ora fazendo se envolver
ta: " A natureza, para n ós homens, está antes na pro¬ pela espacial idade atmosférico-cromá tica do quadro
fundidade do que na superfície, e da í a necessidade de ( Monet , Renoir e, mais tarde , Bonnard ), ora levando
introduzir em nossas vibrações luminosas, represen ¬ o espaço da vida para a tela e além da tela ( Degas,
tadas pelos vermelhos e amarelos, uma quantidade Toulouse- Lautrec). Os primeiros sc interessam aci ¬
suficiente de tons azulados para dar a sensação de at ¬ ma de tudo pela realidade natural , em que incluem
mosfera". As vibrações luminosas são as que emanam també m o social; os últimos, pela realidade humana
dos objetos envolvidos pela atmosfera; logo, trata -se ou social , e assim apresentam a natureza-ambiente.
ainda da relação objeto-espaço: em seu processo for¬ É ainda o problema do subjetivo e do objetivo, da
mativo, a consciê ncia opera essa distin çã o na sensa¬ alternada predomin â ncia do impulso româ ntico so¬
çã o cm que os tons quentes dos objetos iluminados - .
bre o equil íbrio clássico ou vicc vcrsa Em Cézanne,
se apresentam mesclados aos tons frios da atmosfera. não h á uma ruptura entre realidade interna e exter¬
Mas , a seguir, a distinção opera a s íntese, porqueo es¬ na: a consciência está no mundo, e o mundo na cons¬
paço é a representação global do conjunto dos obje ¬ ciê ncia; o eu não conquista o mundo e não é por ele
tos; assim, na pintura de Cézanne , a estrutura é o te¬ conquistado. Não há apenas um equilíbrio paralelo,
cido crom á tico resultante da divisão das cores locais há uma identidade. Por isso, seu classicismo não é
nos componentes quentes e frios ( vermelhos-amare- um classicismo histórico, esim uma classicidadc pu¬
lados, azulados) e de sua combinação no ritmo cons¬ ra como a de F ídias ou de Giotto, os ú nicos grandes
trutivo das pinceladas. A pintura de Cézanne , enfim , “ clássicos” . Mas não se chega a esta sua classicidade
não parte de uma concepção espacial a priori, o espa¬ -
absoluta abstraindo se da experiê ncia vivida, do pre¬
ço n ão é uma abstraçã o, é uma construção da cons¬ sente, e assim ela não abre espaço a uma nostalgia pe ¬
-
ciência, ou melhor, o construir se da consciê ncia las formas do passado, e nunca poderia ter sidoalcan ¬
através da experiência viva da realidade (a sensaçã o). çada senão depois de ter realizado e esgotado a expe¬
O pintor, portanto, representa n ã o a realidade como riê ncia do Romantismo, como a realizou Cézanne,
ela è, nem como a vemos sob o variado impulso dos com maior profundidade do que qualquer outro, no
sentimentos, mas a realidade na consciência ou o primeiro período de sua carreira.
equil í brio absoluto, finalmente alcançado, entre a Mas como conciliar a atualidade de Cézanne
totalidade do mundo c a totalidade do eu , entre a in ¬ com sua aparente indiferen ça pelos problemas so¬
finita variedade das aparê ncias e a unidade formal do ciais t ípicos de sua época ? Encerrado em seu est ú ¬
espaço consciência. O Impressionismo integral não
- dio, distante do mundo, ele pensa apenas na pintu ¬
é , pois, sen ã o um Classicismo integral. ra , nã o lhe aflora a suspeita de que seja poss ível iso¬
Ao dizer que a natureza, para o homem , est á na lar um problema social dentro do problema geral da
profundidade, Cézanne não está absolutamcntc vol¬ realidade. Um ú nico quadro (em várias versões) pa¬
tando à concepção perspecriva tradicional, ainda que rece roçar a quest ã o: jogadores de cartas ( 1890- 2 ) . É
certamente se oponha à redução impressionista ini¬ um tema que poderia ter sido tratado por Daumier,
cial da profundidade à superfície. Ao pretender reali¬
zar a unidade do espaço (como unidade da consciên ¬
cia ) , evidentemente n ão poderia conceber a profun ¬
didade como algo além de uma superfície, nem a su ¬

Courbet, Millet , e mesmo Van Gogh no período
holandês inicial com ênfases diversas, realistas
ou moralistas, ressaltando o que não escapa sequer
a ele, isro é , a compostura e a seriedade dos dois
perfície como um plano que intcrsecciona a profun ¬ camponeses , que t ê m no jogo o mesmo empenho e
didade. A profundidade é una e contí nua, e não uma a mesma moralidade que têm no trabalho. Ao abor ¬
perspectiva diante da qual se coloca o artista, numa dar esse tema inusual, Cézanne ccrtamcntc preten ¬
contemplação que permanece exterior a cia , como dia prestar uma homenagem a Courbet , a quem

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114 r^PfTVl-O Í XMS Á READ PACE E A COKSCIÊNCU

sempre teve na conta de mestre; seu impressionis ¬ lado dele, enquanto do outro lado
mo integral , como ascensão in toro da realidade à lo, A atenção, a mobilidade psicolój
consciê ncia, era també m um realismo integral . apresentada pelas cores mais claras c
Não seria justo descartar a situação expressa pelo paletó, do chapéu, do rosto e do
pintor na relação psicológica entre os dois jogado¬ menos r ígido, mais ondulado, dos rraços.
res: um deles empenhado em escolher a carta que jo¬ ria n ão é a caracterização psicológica, e sim
gará, o outro à espera. Mas é preciso observar como como os volumes de cor se desdobram no espaço
sc define essa situaçã o, embora a posição c os gestos reagem à luz. A intensa passagem dc tons escuros,
das figuras sejam perfeitamente simé tricos e não ha ¬ avermelhados e negro-azulados, no fundo e sobre a
ja em suas faces a m í nima busca de uma expressão mesa, liga e compõe os volumes numa unidade, en -
psicológica. A imobilidade do jogador à espera é de¬ -
volvendo os assim como a atmosfera,
finida pela forma cilíndrica do chapéu que se repete gem , envolve as árvores próximas
na manga, pela linha reta do encosto da cadeira, pe¬ tes. O eixo do quadro é o
las notas brancas do cachimbo e do colarinho; mes ¬ não recai exatamente no
mo a toalha avermelhada sobre a mesa cai a prumo ao geira assimetria à composição:

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Paul Céminr. J&gadorts dt cartas ( lfiOD- 2 );


td», 0.4$ * 0,57 m . Paris,
(TOreay, Copyrighted material
116 CAPITULO DOISA «EALTOADE E A CONSCIÊNCIA

grande volume cil í ndrico do jogador de cachimbo, e “ especulativas” ou “ ontológicas' de Cézanne, pomo
1

atrás dclc h á um vazio, enquanto o volume mais sol¬ de chegada de sua pesquisa dirigida à compreensão
to e luminoso do outro jogador é cortado pela borda global do ser e de sua estrutura vital: mas pode-se ne¬
do quadro. A cor já não é um tom crom á tico local li ¬ gar que esta “ filosofia” pura seja pura pintura ? E po¬
gado às coisas, e sim a substância do espaço pictóri ¬ --
der se ia porventura censurar um artista empenhado
co; o quadro i todo um tecido de notas crom á ticas a nesse problema total , disposto a demonstrar que, se o
que o toque dá uma densidade e uma direção autó¬ contato direto com o mundo é pensamento, o pensa ¬
nomas em relação à forma dos objetos. mento também é contato direto com o mundo, por
Todavia, é o mesmo tipo dc relação que, numa n ão ter considerado tal ou qual problema particular
paisagem, passa entre uma montanha e o céu , entre de sua é poca , mesmo se tratando da guerra franco -
uma casa e uma massa de folhagens, entre a margem prussiana ou da Comuna ?
pedregosa e um espelho de água; as varia ções de den ¬ De qualquer maneira, Cézanne enfrentou implici -
sidade e vibração não rompem a unidade do espaço, tamenre o problema social, como problema central
não alteram sua estrutura. A substâ ncia, a qualidade da época, ao definir n ão só a função, mas també m o
-
fundamental da cor, mantém se sempre a mesma; dever do artista no mundo, e naquele tipo de mundo.
Cézanne n ão preenche nem recobre volumes plásti ¬ O “ problema do quadro” , seu problema de represen ¬
cos com cores predeterminadas, mas constrói massas tar a natureza , a sociedade ou a vida interior c secreta
e volumes por intermédio da cor. Veja-se {para dar do artista , é o problema central da pintura oitocentis¬
apenas um exemplo) como é construído o volume ta , n ão sendo senão o problema, cada vez mais pre¬
geométrico do jogador de cachimbo: um cilindro mente devido à afirmação do pragmatismo industrial
que termina em ogiva, no qual o cilindro obl íquodo c capitalista , referente à razã o dc ser e à possibilidade
braço se insere como um tubo, É impossível dizer dc ação do artista nesse tipo de sociedade. Tal proble¬
qual é a cor exata desse paletó: não h á uma cor ú nica ma não se resolveria com reações psicológicas, senti¬
que se estenda na superf ície ou que se ilumine nas sa ¬ mentais, prá ticas, optando por este ou aquele, repre¬
liê ncias e se obscureça na sombra. H á verdes, verme ¬ sentando os camponeses no trabalho ou os senhores a
lhos, amarelos, roxos, azuis, postos com pinceladas passeio no Bois de Boulogne.
obl íquas que parecem se impelir umas às outras; a Tampouco com o lamento pelos belos tempos de
pró pria variedade tonal determina esse aumento e outrora, com as vagas evasões simbolistas ou as f úgas
diminuição, essa expansã o e contra ção da cor, até o para os tró picos. No final do século, quando se ins¬
ponto em que é bloqueada por outra forma colorida. taura o mito do Progresso, o problema se converte
Numa das obras mais tardias c grandiosas, a últi ¬ em dilema: a existência do artista tem ou n ã o tem
-
ma das vá rias imagens do MonteSnitite Victoire, vê - sentido. Não h á compromisso poss ível. Há a solução
se o grau de lucidez estrutural a que chegou o mestre. negativa dc Van Gogh: o artista c rejeitado pela socie¬
Impossível imaginar uma sensação mais fresca , ime ¬ dade e recusa -a, está sozinho perante a realidade, sem
diata e, ao mesmo tempo, definitiva que no ponto poder resistir ao seu impacto. Após um vôo fulmi ¬
em que os azuis c cinzas do céu invadem a montanha nante c vertical como o de ícaro, precipita-se, desa ¬
c a plan ície , assim como o verde das á rvores colore as parece, morre. Van Gogh é a última expressã o do “ su ¬
-
nuvens. Poré m, notc sc como o ritmo , a frequência blime’' rom â ntico: dc um in ício significativamente
das pinceladas largas e transparentes preenche todo semelhante ao in ício rom â ntico de Cézanne, ele che¬
o quadro, decompõe a imagem num conr í nuo face - ga à conclusão oposta. A solução positiva é a de Cézan ¬
tamento de prismas refringentes, e como a luz, mes¬ ne; e isso porque Cézanne viu na abertura impressio¬
mo n ão chegando a tons elevados, adquire uma in ¬ nista, que a Van Gogh se afigurara como o limite extre¬
cr ível intensidade de movimento, torna sensível o mo do Romantismo, a perspectiva de um novo classi¬
dinamismo universal do espaço, ou melhor, o dina¬ cismo, a premissa de uma nova dimensão da consciên¬
mismo da consciê ncia que, no pró prio ato de rece¬ cia c da existência, de uma relação nova, n ão mais con¬
ber a realidade e identificar-se com ela , converte-a traditória, não mais angustiada, entre o homem e o
em espaço. É esta , sem d ú vida, uma das obras mais mundo. Perguntar sobre o alcancesocial da nova estru-

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CAMTUIO DOR A REMLKMDE f A CONSCIÊNCIA 117

tura espacial definida por Cézanne é o mesmo que per ¬ ra n ão deve ser um tom unido, nem ser obtido com a
guntar sobre o alcance social do novo estnmiralismo mistura das tintas, e sim resultar da aproximação de
arquitet ônico com que os técnicos do ferro e do cimen ¬ vá rios pontinhos coloridos que, a certa distância, re¬
to definiram o processo pelo qual a sociedade moderna compõem a unidade do tom c tornam a vibração lu¬
constrói seu espaço, a dimensão de sua existê ncia; e de¬ minosa. A primeira obra demonstrativa, L a “ baigna-
vemos insistir uma vez mais sobre o paralelismo, se não dè” ( 1884 ) , causa impressão em outro jovem pintor,
a analogia, entre os dois fenômenos. PAUL SIUNAC, que havia estudado com Monet: se de
Depois de Cézanne c Van Gogh, as soluções de in ício o problema, para Seurat, consistia inteiramen ¬
compromisso indecisas c vacilantes se tornaram aca ¬ te na correlação entre o processo pictó rico e os pro ¬
dêmicas e in úteis. A partir da í, tudo, na cultura art ís ¬ cessos da visão que se comprovaram cienrificameme
tica europeia da primeira metade do século, gravita ¬ mais corretos, com a intervenção de Signac, a pesqui ¬

rá cm torno dos dois termos opostos do dilema e de sa dos dois artistas (cuja liga çã o perdura até a morte
sua relação dialética cada vez mais rensa: Cézanne ou prematura dc Seurat) sc orienta no sentido de uma
Van Gogh , clássico ou rom ântico, Impressionismo retomada do programa dos impressionistas, mas ex ¬
ou Expressionismo. purgado de seus resquícios româ nticos e reproposto
em termos cient íficos. Assim nasce o Neo-Impressio -
nismo, o primeiro movimento a colocar a exigê ncia
GEORGES SEURAT
-
da relação arte ciê ncia, o primeiro também a que se
U M D O M I N G O D E V E RÃ O N A .
re ú ne um critico (F Fcnéon ) para o controle metodo¬
GRANDE JATTE lógico da operação na poé tica. Favorecido pelo cicn
tificismo positivista do final do século, o movimento
-
PAUL SIGNAC teve ampla difusão; a repercussão mais notável ocor ¬
ENTRADA DO PORTO DE reu na Itá lia , em Milão, com o Divisionismo.
MARSELHA -
Colocada a questã o da relação arte ciê ncia, havia
três hipóteses: 1 ) o processo cient ífico e o processo
art ístico tendem para o mesmo resultado cognitivo,
c neste caso um dos dois é supérfluo, e trata -se de es¬
Na segunda metade do século XIX , a fisiologia e a colher o melhor ; 2) levam a resultados igual mente
psicologia da percepção sã o objetos de intensa pes ¬ válidos, mas diversos, no plano cognitivo, e neste ca ¬
quisa científica: é importante averiguar o funciona ¬ so é preciso distinguir claramenre o que se conhece
mento dos processos com que se efetua a experiência com a ciência e o que se conhece com a arte; 3) a arte
do real e verificar sua confiabilidade. Os estudos ex ¬ tem uma finalidade e uma função rotalmente dife¬
perimentais de Helmholtz ( 1878) e Rood ( 1881) de ¬ rentes das da ciê ncia. A primeira hipó tese está exclu í ¬
senvolvem as descobertas de Chevreul sobre o con ¬ da porque, se fosse verdadeira, a atividade que su ¬
traste simultâneo c as cores complementares que, pu ¬ cumbiria seria a arte. O valor da terceira hipótese sc
blicadas em 1839, haviam dado um fundamento restringe à conversão do problema estético, em sua
cient ífico ao Impressionismo. Em 1880, Suttcr, estu ¬ passagem da ó rbita cognitiva para a é tica (Van Gogh
dando os fenômenos da visão, sustenta que a arte de¬ e, cm parte, Gauguin ). A segunda vale para os dois
ve encontrar um plano de entendimento com a ciê n¬ fen ômenos diferentes, poré m contemporâneos e
cia, centro vital da cultura da época. Ao mesmo tem ¬ complementares, do Neo- Impressionismo edo Sim ¬
po, um jovem pintor, SEURAT, começa a elaborar e bolismo. O conte ú do da teórica neo-impressíonista
experimentar uma teoria própria da pintura, baseada é derivado da ciência, à qual , evidentemente, n ão
na ótica das cores, à qual corresponde uma nova téc¬ acrescenta nada; todavia, Seurat e seus companheiros
nica cieniificamente rigorosa. de grupo crêem que a arte també m aspira (como a
Um problema central é a divisão dos tons: como a ciê ncia ) ao conhecimento objetivo, mas não lhe cabe
luz é a resultante da combinação de diversas cores (a experimentar e verificar as proposições da ciência.
luz branca , de rodas), o equivalente da luz na pintu¬ A arte enfrenta problemas que não podem ser re-

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