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M^feíMEC
\NNO I SÃO PAULO, 2 DE MAIO DE 1921 NUMERO I

COLLECÇAO de pequenos livros de versos a CADA volume, caprichosamente confeccionado,


se,publicar sob a direcção de Amadeu Ama- impresso a duas cores em excellente papel,
ral(da Academia Brasileira) e destinada a com artísticos ornatos e solidamente enca-
vulgarizar as obras dos poetas novos de dernado, será vendido a 2$5O0. __
grande merecimento, ainda pouco conhe- Na NOVA PLEIADE somente serão publica-
cidos do publico. ' das obras de verdadeiro valor.
Iniciaremos a collecção com o primoroso livro M A N H Ã do poeta paulista Graccho Silveira
SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO — Rua Br. Abranches, 43 — Caixa, 1172 —jS. Paulo

bCEDITORA.OI^GARIORIBE^^
VELLA SEMANAL
DlRECTOR BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AS SEGUNDAS-FEIRAS
Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphabefos,- MS tiragens dos livros naeionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collecções
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num circulo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extracç.ão no
cioso : o livro não se diffunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se diffunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e s e esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa cia ereação oeste periódico, mente nunca-leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas, para que qualquer
boa literatura. pessoa possa-fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o iivro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais a t t r a h e n t e aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possível pela escrúpulos» escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação' constituirá, .portanto, ao"
tística confecção de cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que uni-abundante" repositório de infor-
dos os meios para o diffandir em todo o território na- mações bibiiographicas, uma selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes exeellentes, organizada com o fito de cornar melhor co-
sociae.s, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi,, resumido em poucas palavras, todo o nosso -pro- fronteiras.
gramma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as vantagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos ' inte-
leitura leve e variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos e desconhecidos, consagrados e estreantesjcomtanbo
te, a toda gente'; mas não será lutil e de interesse e- que taes obras tenham valor e sejam conformes eom a
phemero como pila : pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A NOVE!LA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento' á edição do
u m a bibliotheea literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volumes, por serem "esses os
gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
e creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta irablicação.
curiosos, pela totalidade, emftm, da população ledora, Todos on outros gêneros terão o seu logar no nosso
procurará nos auctores a vida, a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- tio melhor.
' pagahda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao q u e d e m A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros naciõnaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. Não-seria este o melhor mejo de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathico.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
t a n t a cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- O s ÊOITOUES.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col- queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessante para qualquer
Aos leitores que nos enviem relações de auctores
das secções deste periódico, A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seunome, villas, povoações. estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, hotéis, clubs, bibliothecas, e t c ,
ferecem a sua collaboração. estando porisso organisando u m ser- Importante
Os originaes devem ser escxiptos de viço de distribuição que será o mais Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em ealligraphia completo possivei, de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legivel e de preferencia dactylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos adeantadamente a res-
graphados. " ' '' não tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, .terá d i r e i t o - a
Toda a correspondência deve ser trada, á venda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
' gario Ribeiro — Caixa postal n. 117'2 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceromos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se
interessar pela venda ou leitura des-
catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOYELLA SEMANAL publicará sil, no valor de 20 o,'o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por iirsignincante que seja.
dereço do editor, de todas as obras -Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito, do Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, Anno 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra,
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre . r 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre 5$000
lém dis.^o uma noticia critica. fornecida, rogando a todos quantos Numero avulso . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - R. Dr. Abranches, 43 - Caixa Postal, SI72 -Teleph.: Cidade, 544! - S, PAULO
NUMERO 1

FILHO PRÓDIGO —
SUMMARIO deu Amaral — Curio-
sidades literárias - Auto-
biographia de MONTEI-
RO LOBATO — O s n o s -
PARÁBOLA — Léo Vaz sos poetas - Os sonetos
O TOIRO NEGRO - Alui- Baptista Júnior SUPPLEMENTO - A . vida de A D O L P H O ARAÚJO
. . _ MfcW,tV _„ ___ _,,-^„ anecdotica e pittoresca — Leituras - Negrinha -
zio A z e v e d o N A T A L D E FREI GUIDO Aos grandes escriptores Coivára - Dialecto caipira
A MATTA MALDICTA — - M a g a l h ã e s de A z e r e d o OLAVO BILAC - Ama-

O 22 DA * 6
MARAJÓ 9 9

Esse delírio que por ahi vae pelo futebol tem assistir-se a espectaculo mais revelador da alma
seus fundamentos na própria natureza humana. humana que os jogos de futebol em que disputam
O espectaculo da luta sempre foi o maior encanto a primasia paulistanos e italianos, em S. Paulo.
do homem; e o prazer da victoria, pessoal ou do Não é mais esporte, é guerra. Não se batem;
partido, foi, é e será a ambrosia dos deuses ma- duas equipes, mas dois povos, duas nações, duas
nipulada na terra. Admiramos hoje os grandes raças inimigas. Durante todo o tempo da luta,
philosophos gregos, Platão, Sócrates, Aristóteles; 40, 50.000 pessoas deliram em transe, extacticas,„
seus coevos, porém, admiravam muito mais aos na ponta dos pés, coração aos pulos e nervos
athletas que venciam no estádio. Milon de Cro- tensos como cordas de viola. Conforme corre o
tona, campeão na arte de torcer pescoços a tou- jogo, ha pausas de silencio absoluto na multidão
ros, só para nós tem menos importância que seu suspensa ou deflagrações violentíssimas de enihu-
mestre Pythagoras. Para os gregos, para a massa siasmo que só a palavra delírio classifica. E gente
popular grega, seria inconcebivel a idéa de que pacifica, bondosa, incapaz de sentimentos exalta-
o mestre pudesse um dia bffuscar a gloria do dos, sae fora de si, torna-se capaz de commetter
lutador. os mais horrorosos desatinos.
Em França o homem verdadeiramente popular A luta de 22 feras no campo transforma em
é George Carpentier, mestre em soccos de pri- feras os cincoenta mil espectadores, capazes todos
meira classe. Se derem nas massas um balanço de se esfaquearem mutuamente num conflicto
sincero, verão que elle sobrepuja em prestigio horrendo, caso um incidente qualquer funda em
aos próprios chefes supremos vencedores da guerra. corisco as elèctricidades psychicas em ponto su-
Nos Estados Unidos ha sempre um campeão de premo de concentração.
boxe tão entranhado na idolatria do povo, que O jogo do futebol teve as honras de despertar
está em suas mãos subverter o regimen político. o rtosso povo do marasmo de nervos em que vi-
Entre nós ha o exemplo recente de Friedenreich, via. Antes delle só nas classes médias a luta po-
um pé de boa pontaria pelo qual milhares de lítica tinha prestigio necessário para uma exal-
creaturas, sobretudo creanças, são capazes de sa- taçãosinha periódica.
crificar a vida. E isso porque de todos os esportes tentados no
E os delírios collectivos provocados pelo em- Brasil só o futebol conseguiu acclimar-se, como
bate de dois campeões em campo ? Impossível o café. Hoje, alastrado de norte a sul, transfor-
A NOVELLA SEMANAL

mou-se quasi em praga, conseguindo só elle, in- dissimas, como façanhas de Rolando. E taes fez
teressar vivamente, exaltadamente, delirantemente, que o governo,íncommodado, deportou-o para o
ao nosso povo. norte, a servir no Alto-Amazonas em canhoneira
No Estado de São Paulo não ha recanto, vil- da flotilha estacionada no Pará. A mudança de
loca, fazenda, bairro onde se não veja num chão clima regenerou-o e o rapaz, resolvendo tirar
plaino e batido os dois rectangulos oppostos, as- partido de seus dotes plásticos, ferrou namoro
signaladores dum groand. Pelas regiões novas, com a mulher de um shipchandkr, da qual se tor-
de virgindades só agora atacadas pelos invasores, nou logo amante.
é commurrt topar-se, de súbito, em plena matta, Pouco durou o trio.
uma clareira aberta e limpa onde, nas horas de O shipchandler morreu e o 22 casou-se com a
folga, os derrubadores de páo vêm bater bola. viuva, herdeira dum paço de quatrocentos contos.
já assistimos um match em certa fazenda. Tu- Pediu baixa, obteve-a e foi com a esposa em
do muito bem arrumado; os players uniformisa- viagem de nupcias á Europa, onde permaneceu
dos, de meia grossa e botinas ferradas, tal qual como dois annos. Ao cabo, regressou á pátria, elegendo
nos clubs das cidades. E falando em corners, goals, o Rio de Janeiro para residência definitiva.
hands, halfs-times, a inglezia inteira dos termos Mas quanto mudara ! Transformado num per-
technicos. Ao nosso lado um fazendeiro explicava: feito gentleman, embasbacava a rua do Ouvidor
— Aquelle goal-keeper é carreiro; amanhã de com seu apuro de trajes, suas polainas, suas lu-
madrugada está de pé no chão puxando lenha. vas, sua cartola clara.
O center-half é madeireiro; está me lavrando — Quem é ? Quem é ? Ninguém sabia.
umas perobas na roça velha. Os full-backs são tro- — Algum fidalgo, certamente, cochichaVam.
peiros e os forwards, simples puxadores de enxada. Não vêem que modos distinctos ?
Era assombroso! Estávamos deante da maior E o 22 impávido, petroneando, de monoculo
revolução de costumes operada em terras de Santa no olho, a olhar de cima para homens e coisas.
Cruz desde o dia de Cabral. E tudo por arte e obra Tinha hábitos certos, e todos os dias passava pe-
de uma simples esphera de couro estufada de ar!... lo largo de S. Francisco, como paca pelo carreiro.
Antes do futebol só a capoeira conseguiu um Aconteceu, porém, que ali era ponto de uma
cultozinho entre nós e isso mesmo só nas classes roda de rapazes chiques, fortemente despeitados
baixas. Teve seus períodos áureos, produziu seus ante a esmagadora elegância do desconhecido, ri-
Friedenreichs, afinal, acabou, perseguida pela poli- val perigoso, sem duvida. Os quaes rapazes, de-
cia, com grande magua dos tradicionalistas que viam pois de inuito cochicho, deliberaram quebrar a
neíla uma das poucas coisas de creação indígena. proa ao novo concurrente, aguardando para isso
Infelizmente não se guardou memória escripta apenas a opportunidade.
desse esporte, cujos annaes se encheram de ma- Certa vez em que o Petronio passava mais im-
ravilhosas proezas. Não teve poetas, não teve ponente que nunca, coincidiu approximar-se da
cantores, não teve sábios que a salvaguardassem roda chique um capoeira, mordedor que se ga-
do olvido; e de todo o nosso rico passado de bava de ser mestre em "soltas".
capoeiragem só restam impressões esparsas, em Quem sabe hoje o que é "solta", nesta época
via de se diluírem, na memória dos velhos con- de kikes eshootes ? "Solta" era uma cabeçada sem
temporâneos. hands, isto é, sem encostar a mão no adversário.
Que bellos themas a nossa literatura deixa á mar- Mas o capoeira chegou e mordeu-os em cinco
gem, victima que é da eterna fascinação franceza ! mil réis.
Que se fixe pois, em letra de forma ao menos — Perfeitamente, responderam os rapazes, mas
o caso do 22 da "Marajó", com tanto chiste nar- primeiro nas de sapecar uma solta naquelle fre-
rado pelo maior humorista brasileiro, esse pro- guez que ali vae de monoculo ! . . .
digioso Marck-Twain inédito que é o senhor — E' já! exclamou o capoeira gingando o cor-
Felinto Lopes. po. E tirando o chapéo foi. postar-se na calçada
O 22 da Marajó era um imperial marinheiro, por onde vinha o 22, de cartola e monoculo,
mestre em desordens e amigo de revirar de per- sacudindo passos de lord, muito esticado dentro
nas para cima kiosques de portuguez. Rapazinho do seu croisé cortado em Londres.
bonito, esguio, branco de côr, bigode espetado, Um, dois, t r ê s . . . Quando Petronio defrontou
imperava na Saúde, onde suas proezas de capoeira o capoeira, despejou-lhe este uma formidável e
excepcional andavam de boca em boca, discuti- primorosa cabeçada.
A NOVELLA SEMANAL

O desconhecido, porém, quebrou o corpo, e a


cabeçada do atacante foi de encontro á parede,
ao mesmo tempo que um pé bem manejado plan-
tava-o no chão com elegantíssima rasteira. O mor-
dedor, tonto e confuso, mal ergueu-se e já desa-
bou de novo, cerceado por outra gentil rasteira.
Passara, imprevistamente, de aggressorja aggre-
dido e, desnorteado, deu sebo ás canellas, indo O FILHO PRÓDIGO
apalpar o gallo a cem passos de distancia. (PARÁBOLA)
Emquanto isso o Petronio, concertando a gra- Certo Absaul, de Babylonia, homem a quem o
vata, com grande calma, dirigiu a palavra aos Senhor abençoara nas obras das suas mãos, ac-
moços elegantes, assombradissimos: crescentando-lhe as riquezas sem conto, tinha
— Só uma besta destas dá soltas sem negaças! dois filhos. E' possível que tivesse tido outros;
Já dizia o Cincinato Quebra-Louças: soltas sem é mesmo muito provável, dado o seu gênio; mas
negaças só em lampeão de esquina. Se grampeas- a Historia, não se sabe porque, só menciona es-
se, inda vá lá. O- Trinca-Espinhas, o Estrepolia, tes dois privilegiados, e a ninguém é dado tor-
o Zé da Gamboa e outros praxistàs admittem-n'a cel-a ao sabor das próprias conjecturas. A Histo-
neste caso, e isto mesmo só quando o semovente ria é a Historia.
não é firme de letra. Ora, destes dois filhos do rico Absaul, Izar, o
E gyrando a bengala de unicornio entre os mais velho, era o modelo dos Izãfres. Trabalhador,
dedos annelados, finamente superior, concluiu, com honesto, pouco falante, leal e submisso, nunca ao
saudades: pae dera o menor aborrecimento. Todos os dias,
— Já gostei desse divertimento. Hoje, minha desde os seus sete ou oito' annos, ainda madru-
posição social e o meio em que vivo não m'o permit- gada nova, reunia o grosso das ovelhas paternas
tem mais. Vejo, porém, que a arte está decaindo... e lá focava com ellas para as planícies, a apas-
E lá se foi, imperturbável e superior, murmu- cental-as, até a noite, quando tornava ao redil,
rando comsigo: onde dormia, num palheiro, ao lado de duas ou
— Soltas sem negaças . . . Forte besta! três ovelhinhas favoritas. Era como se não
Os elegantes, passado o momento de estupor, existisse. Era mais: era um novo servo do pae,
planearam solenne desforra. e gratuito. As suas únicas ambições não iam
Contratariam o famoso Dente de Ouro, da Saú- mais alto do que o mendrugo que levava ao
de, para quebrar a proa ao prosa. pastoreio e a sopa que á noite partilhava com
Tudo ajustado, no dia marcado postaram-se no os criados.
carreiro, com o rompe-e-rasga á frente. Emfim, um optimo rapaz, o Izar.
— E' aquelle! disseram, quando repontou ao Já Balaad, o mais moço, era outra fazenda. Dez
longe a cartola clara do Petronio. annos mais novo que o irmão, desde a infância
Dente de Ouro avançou feito para o desconhe- que só trazia ao velho attribulações e cabellos
cido. Ao fronteal-o, porém, entreparou, e abriu-se brancos. Creançola ainda, já desencaminhava ca-
num grande sorriso palerma: chôpas, com graves desembolsos paternos, que
— O' 22! Você por aqui ? ! . . . só assim lograva a aquietação dos rendeiros sus-
— Cala o bico moleque, e toma lá para o ci- picazes e pães de filhas.
garro. Mas afasta-te, que hoje sou gente e não Mas ainda assim, isso era o de menos. Avan-
ando em más companhias, disse o Petronio, cor- çando em idade e em maus costumes, promove-
rendo-lhe uma pellega e seguindo caminho. ra-se Balaad a collaborador de lares alheios,
Dente de Ouro voltou ao grupo dos elegantes, escandalisando a sociedade babylonica em clan-
alisando a nota. destinas e escandalosas aventuras. E, mais, as-
— Então ? perguntaram elles, desnorteados com signava letras respeitáveis, que o bom do velho,
o desenlace imprevisto. temeroso de ver o nome da sua estirpe a figurar
— 'cês 'tão bestas! Pois aquelle é o 22 da em protestos e citações desagradáveis, ia resga-
"Marajó", corpo fechado para sardinha e pé quc~ tando, entre fundíssimos suspiros.
nunca malou saque. Estrompar o 22 ?! 'cês 'tão O diabo. Aquelle filho era realmente uma
bestas ! . . . immerecida penitencia para um tão fiel servidor;
MONTEIRO LOBATO de Jehovah. Já o velho pae se via privado de
A NOVELLA SEMANAL

certas excursões á noite, muito de seu gosto e


inclinação, pela certeza de topar infallivelmente E abalou satisfeito. O primeiro comboio trans-
com o filho nos mais abomináveis sitios e com- portou-o a Damasco, para onde de ha muito o
panhias. Nem á casa do seu amigo, o optimo chamava a fama dos seus vinhos e das suas mu-
Yozias, lhe era dada a antiga assiduidade, pois de lheres. E, uma vez alli, poz os capitães em con-
lá não sahia Balaad, que induzira a crime de la- ta-corrente no London Bank até que lhes achasse
pidação a linda esposa delle, a rochonchuda melhor e definitivo emprego.
Vitelia!... E foi o leão das rodas elegantes de Damasco.
*
Até que um dia mandou Absaul vir-lhe á pre- Mas não ha leão que sempre dure, nem cheque
sença o incorrigivel. E, .pousando o jornal, co- que nunca se acabe. O de Absaul extinguiu-se
meçou uma reprimenda, já muito surrada: ao cabo de alguns annos, e um dia, no "guichet"
— Os desígnios do senhor são altos e inattin- do bartco, um saque de Balaad foi polidamente
giveis á misera comprehensão dos homens . . . regeitado.
No que foi interrompido por Balaad, que, so- — Hein ? ! . . .
prando para a braza do charuto a baforada, e — Perdão, meu caro senhor; temos muito gos-
encostando as nádegas á borda da mesa, lhe cortou to em servir ao illustre dr. Balaad, mas devemos
para logo o fio ao sermão: advertil-o de que os seus fundos já estão exgot-
— Meu pae nasceu, innegavelmente para pregar tados. Faça o favor de conferir a sua caderneta...
na synagoga; o seu discretear é sempre magní- V e r á . . . O ultimo saque, de Talentos 2,50, a 19
fico, quer no fundo, quer na forma, não ha du- de Rhamadan, só em parte foi satisfeito... O dr.
vida nenhuma. Mas, porque diabo essa mania deve ter recebido o aviso... Faça o favor de
de m'o pregar a mim, que já o sei de cór e conferir a caderneta...
salteado? Ha por ahi tanta gente, meu velho, a Balaad conferiu a caderneta, que pela primeira
cuja ignorância muito mais aproveitaria a vossa vez abria. Estava limpo. Alheio de miudezas,
oratória . . . elle retirava toda a sua fortuna, em grossas par-
Absaul olhou-o alguns instantes por cima dos cellas, sem nenhum instincto de, conservação.
óculos e resolveu abandonar a rhetorica, por evi- Estava a nenhum.
tar remoques novos. E enfiou direito pelo" as- E logo naquella noite de prémière, em que tinha
sumpto: v • de ir cear com a divina Pitta! A z a r ! . . .
— Bem. Falemos claro. Mandei chamar-te para •
te dizer que isto não pode continuar assim. Tu Não havia que ver: era voltar.
não te emendas e eu já te não posso aturar por Empenhadas as ultimas andainas deixadas pelos
muito tempo nas minhas barbas... credores surprehendidos e inexoráveis, embarcou
— Perfeitamente. dias depois para Babylonia, sem saber muito bem
Após nova olhadela, Absaul continuou: o que iria lá fazer. Para evitar desagradáveis
— Tens direito a uma parte da fortuna cuja encontros com algum conhecido damasquino, de
guarda me confiou o Senhor, e ella tem de ir alto bordo, vestiu um fato de operário e tomou
ter ás tuas mãos, por morte minha. Pois bem: passagem na terceira classe.
Adeanto-te agora mesmo esses cabedaes, sob a Mas uma desgraça nunca vem só. A de Ba-
condição de deixares immediatamente Babylonia. laad também trazia no bojo outra. Pois eis que
Vae para Damasco, vae para Ninive, vae para o justamente o seu comboio, já nas proximidades
Egypto, vae para o Inferno... Estabelece-te alli, de Babylonia, abalrôa com um trem de cargas,
ou ènforca-te, mas cá nunca mais tornes, a en- que conduzia grandes manadas de porcos para os
vergonhar com tua presença as minhas cãs hon- frigoríficos de Ninive.
radas. Aqui tens o cheque. Suma! Foi um desastre horrendo. Muitas mortes e
— Sim, senhor! disse o rapaz, mettendo o che- muitíssimos feridos.
que na carteira; até que emfim, sempre ao meu Balaad, propriamente, não teve mais do que
pae occorreu uma idéia luminosa! Nunca sus- pequenas contusões e excoriações de somenos. O
peitei de proceder de tão intelligente creatura . . . acaso porém combinou as coisas por tal modo
Mas, vendo que o velho fingia engolphar-se de que elle, quando deu tento de si, estava encurra-
novo na leitura, despèdiu-se com um lado sob os escombros dum vagão, de parceria
— Até 8 ? vista! com uns poucoff bacoros immundos.
A NOVELLA SEMANAL

O serviço dos bombeiros deixou muito a dese- e inattingiveís á mísera intelligencia humana! Sou
jar. Pelo menos quanto á presteza, muitíssimo. um grande e desgraçado peccador, porque contra
Eis porque o bom filho, que assim tomava á o Senhor e contra o meu pae pequei! Já não
casa, como quer o brocardo, teve de permanecer sou digno da vossa inexgottavel complacência.
alli uns cinco dias naquella camaradagem humi- Já não mereço sequer o lugar de um dos vossos
lhante e, ao cabo dos primeiros dias, sobre hu- servos mais humildes ! . . .
milhante, perigosa. Se não fora aquella faquinha Ia juntando gente, o que não entrava nos gos-
que tiveia a idéia de trazer comsigo para o que tos do velho, que não augurava boa sahida para
desse e viesse, aquelles brutos esfaimados dar-lhe- aquelle exordio do filho. Assim, tratou de re-
iam com toda a certeza cabo do canastro. matar logo a scena:
Mas teve que contentai-se com a carne crua e, — Mas acaba com isso, homem! Que foi que
até certo ponto, faisandée. Uma perfeita miséria !.. te aconteceu?
Emfim, sempre deram com elle alguns bom- — Uma desgraça, meu pae, uma tremenda mas
beiros, que não deixaram de deitar piada, ao ver muito merecida desgraça, imposta por mãos de
surgir aquella face humana de onde só contavam Jehovah ao filho indigno e reprobo . . .
ver apontar as fuças de algum suino faminto. — Sei disso... Mas conta logo o caso...!
Mas'estava salvo, e isso era tudo para o forte — Aquelle cheque, que na vossa magnanimidade,
espirito do nosso Balaad. meu pae, me concedestes, quando daqui parti,
* com o coração orgulhoso e empedernido, deixan-
Immediatamente dirigiu-se ao ninho antigo. do o santo conchego do lar, aquelle cheque, rou-
Já de longe, percebendo certa animação extra- baram-m'o ladrões cruéis!... Fiquei na miséria
nha aos hábitos hocturnos da sua casa, sorriu. e nú que nem um cão. E por não macular o
Não havia duvida: era uma festa. vosso nome com a minha abjecção, pelo mundo
T— Hum! pensou o rapaz, meu pae vae ás mil andei erradio e desprezado. Servi, como clarivi-
maravilhas . . . Estará viuvo ? . . . dentemente o dizeis, feito guardador de pqrcos. a
Acertara, Dois annos antes morrera a mulher amos sem piedade, que até o sustento me ne-
de Absaul, levando comsigo para o seio de Abrahão garam, obrigando-me a compartil-o com a ali-
as ultimas peias que cerceavam ainda o gênio maria immunda para saciar a minha fome. Vede
alegre e folgazão do velho. E desde ahi foram como estou magro ! . . . Muito soffri pelo muito
festas, beberetes, patuscadas na cidade ou no cam- que pequei, Jehovah seja louvado . . . !
po, com côristas e senhoras equívocas, taes e A multidão era já compacta ante a porta de
tantas, que o povo de Babylonia já alcunhara o Absaul.
viuvo de Balthazar II. — Mas, afinal... ?
Parado em frente ao pórtico da xasa paterna, — Afinal, cançado de tantos soffrimentos, pen-
Balaad ouvia esses informes aos basbaques que sei que aqui em vossa casa encontraria um
no sereno espreitavam o festim. Até que, ba- canto onde morrer, e o perdão e a bençam do
tendo na testa a clássica palmada e piscando meu pae... Sinto que a chegada do impio venha
um olho, dirigiu-se ao saguão de entrada e man- em momento de perturbar as santas praticas com
dou annunciar-se ao pae. que certamente meu pae rendia ao Senhor o seu
O rico Absaul, ao ouvir que alli estava á porta culto, como homem justo e recto que é . . .
Balaad, de torna-viagem, não pôde compor de Aqui Absaul julgou prudente intervir, movido
prompto as idéias, que lhe andavam razoavelmente da risota que começava entre os circumstantes:
dispersas, mas abandonou precipitadamente os — Não, meu-filho, as graças ao Senhor, costu-
convivas e foi ter com o filho. Mas ao topar mo rendel-as, é certo, como manda a Lei... Mas
com elle naquelle estado lastimável em que sahira tudo tem seu tempo e opportunidade... Esta festa"
de sob os destroços feiroviarios, sentiu reviver não tem precisamente esse caracter que lhe dás.
no animo a humana e patefnal piedade: E' q u e . . . S i m . . . Como já estava informado de
— Que é isso ? Que maus fados te puzeram que finalmente te arrependeras e,- deixando o triste
nessa extremidade ? De onde vens, a estas horas, mister de guardador de porcos, procuravas o per-
assim immundo como um guardador de porcos ?... dão e a bençam de teu pae, mandei organisar
Ao que Balaad, apanhando a deixa no ar, pro- esta surpreza, afim de celebrar a tua volta e a
rompeu: nossa reconciliação. Anda dahi, pois; vae lá- dentro,
^ h ; meu pae! Jehovah tem desígnios altos banha-te convenientemente e vem para nossa
6 A NOVELLA SEMANAL

companhia, onde anciosos te aguardam os nossos publica pelo promettido règabofe, quando chegara
amigos... afinal o grande dia, deslumbrante ao vivo sol de
E descendo uns degraus, Absaul segredou aos agosto e acclamado ardentemente pelo povo como
ouvidos de Balaad, mas não com a prudência um dia de gloria nacional. Houve salvas e to-
sufficiente para que não fosse escutado pelos ou- ques de cometa ao romper d'alva. Das duas da
vidos mais afiados dos curiosos: tarde em diante, as principaes ruas da cidade, no
— E olha, meu filho, afim de honrar como meio de uma poeirada de cegar, transformaram-se
convém o teu regresso, mandei vir a Vitelia, em estrepitosas torrentes de carruagens, carroças,
sabes ? a viuva do Yozias, a Vitelia Gorda, como ginetes, e peões de toda espécie, que lá iam, em
lhe chamavas... Tu te lembras... ancioso alarido, desagiiar na praça de toiros.
* A entrada do circo, donde vinha um quente
E..emquanto, no banheiro, os servos lhe ungiam rumor de caldeira a ferver, homens de má cata-
os membros com óleos e essências finas, Balaad, dura, com grandes taboleiros amparados ao ventre
sorrindo, murmurava: e suspensos do pescoço por grossa correia de
— A Vitelia Gorda, hein ?... Este senhor meu coiro cru, offereciam aos circumstantes, não re-
pae é das Arábias!! A . frescos, frutas e flores, mas navalhas e facas de
LEO VAZ
todos os feitios e tamanhos. Mais adiante, viam-
se outros a vender, em vez de doces e confeitos,
chouriços, paios e lingüiças, e ouviam-se ainda ou-
tros, cercados de barris e garrafões, apregoar vinho,
azeitonas e aguardente. Em volta dos felizes que
entravam para assistir ao espectaculo, rilhava in-
vejosa a matilha dos que ficavam cá de fora sem
poder fazer outro tanto, e um enxame de mulhe-
O TOIRO NEGRO res, de lenço de cor á cabeça, doidejava em re-
A noticia de uma estrondosa corrida de toiros, dor dos sujeitos que se dirigiam aos corretores
que^se ia dar na velha cidade da Gallisa, onde de bilhetes, supplicando-lhes, a sorrir ansiosas,
nessa época me achava, assanhou o povo como uma senha de entrada em troca de tudo que ellas
por encanto, pondo-lhe o animo num estado de lhes pudessem dar com o corpo, e mendigos ber-
alegria do qual estava eu bem longe de o suppor ravam por outro lado, lanceando o espaço com
capaz. Viria como Primeiro Espada e Chefe da os dedos hirtos, a reclamar esmolas como quem
«cuadrilla» o guapo Torbellino, dono então por reclama justiça no meio de caiphazes, e atiravam
alguns instantes da cruenta alma espanhola, sem para o ar o nome de Deus e das virgens num
conseguir, está claro, com esse passageiro namo- intenso diapasão de pragas; ao passo que os
ro distrahi-la completamente da sua sádica paixão guardas-civis, sombrios debaixo do seu reluzente
por Lagartijo e Frascuello. chapéu de oleado em forma napoleonica e da sua
enorme capa, rondavam de um lado para outro,
A boa nova começou logo a chamar gente de
cruzando-se, com os chulos de facha encarnada e
todas as cidades e povoações vizinhas. Ninguém
as manolas de trunfa alta, que também rondavam,
por alli em volta resistia ao soffrego desejo de
mas com fins inteiramente oppostos.
vir buscar o seu quinhão de sensações violentas
que tão grata toirada promettia, e gosar o seu O corredor do amphitheatro estava ensalsicha-
bocado de sangue fresco, que havia tanto tempo do de espectadores até a boca, e lá dentro, tanto
já se não gosava por aquellas alturas. Dir-se-ia do lado da sombra como do sol, não havia lugar
que os restos da sacrosanta Espanha de Torque- vazio. Meu banco felizmente era á sombra, e eu
mada e de Philippe II, não se podendo saciar via palpitar no lado contrario, em plena luz, os
como dantes, nos bons tempos, com o capitoso leques de milhares de espectadores de ambos os
sangue dos heréticos e dos impios,- se contentava sexos, lembrando borboletas presas pelos pés e
agora, em falta de melhor, com o innocuo sangue doidas por voar; as sombrinhas de todas as cores,
de bois e de cavallos, sempre na esperança, to- as vistosas mantilhas e as roupas, clamas tinham,
davia, de qualquer acaso feliz, que viesse enrique- nessa vasta e illuminada banda do circo, um as-
cer a festa com o apreciável sangue de algum pecto tão allucinador, que parecia ser a expressão
toireiro desastrado. palpável daquella infernal algazarra, feita de rixa
E já não havia meio de conter a soffreguidão e riso, e da qual os palavrões obscenos se desta-
A NOVELLA SEMANAL

cavam, iguaes a esses estalos mais fortes que re- uma dura vida de trabalhos no campo ou nas
bentam por entre a constante crepitação de um cidades, para ser, em recompensa, dos seus bons
incêndio na floresta virgem. Ouviam-se de todos serviços, escorneadas por companheiros de mar-
os lados sonoras pragas e alegres exclamações de tyrio.
arrancar coiro e cabello; á minha esquerda, uma Feita a apresentação, separados da «cuadrilla*
família, em que havia meninas menores de quinze os toireiros que tinham de ficar na praça e cor-
annos, manifestava o seu enthusiasmo pelo mes- rer o primeiro toiro, fechado de novo o portão
mo depilatorio systema, e aquelles castos ouvidos por onde vieram, bem vendados os olhos aos
recolhiam palavradas capazes de fazer tremer a um cavallos dos picadores, para que não fugissem
soldado, que não fosse espanhol; á minha direita espavoridos ao perigo, a cometa deu novo signal,
o chefe de outra família, sem duvida não menos abriu-se daquelle mesmo lado uma cancella, e a
honesta que a da esquerda, empinava de vez em victima designada surgiu a galope, estacando logo,
quando uma formidável borracha de vinho, a que porém, em pleno circo, fascinada e aturdida n o
elle chamava «bota», e fazia também beber aos meio de toda aquella estrondosa berraria, a olhar
seus por igual sorte, entremeando os successivos perplexa para todc^ os lados, até que, como se
tragos corri tarâscadas de chou- só então desse pela presença
riço, partida rente da boca por dos capinhas, investiu contra
uma navalha, de inquietadoras Monteiro Lobato um delles.
proporções. Estava travada a pugna.
Cinco minutos antes das E começaram a repetir-se
quatro horas, momento marca-
do a rigor para começar a A Ond defronte
olhos
tes e
daquelles milhares de
ávidos
passes,
as estafadas sor-
que ha séculos a
funcção, a berraria recrude-
sceu, preparando-se já para
protestar, mas o Alcaide da
Ve r d e
JORNALISMO
Espanha
o mesmo
vê e revê sempre com
enthusiasmo, e que
cidade, pomposo nas suas in- sempre applaude com a mes-
sígnias, assomou logo no cama- ma convicção patriótica. Os
rote de honra, acompanhado Brochura 3$500, enca- capinhas, como ha cem annos,
pelo Presidente da corrida,
dernado, 4$500 pelo atormentavam a pobre besta,
correio mais 500 réis negaciando defronte delia com
cumprimentou cerimoniosa-
mente o publico, e uma vi- as suas irritantes e traiçoeiras
brante cometa militar, acolhida capas vermelhas, ou os ban-
Pedidos ã
com tumultuosos regosijos, M O N T E I R O L O B A T O ®» C . darilheiros lhe espetavam na
deu o signal de abertura. Rom- R . B o a V i s t a , 5 2 - S . P a u l o espadua e no pescoço farpas
peu então a banda de musica carregadas-de enfeites e, ás
a tanger uma marcha dobrada, escancararam-se vezes também de fogo, ou então os picadores lhe
as grades de um portão no lado opposto ao da apresentavam as ilhargas das suas deploráveis caval-
entrada de espectadores, e entre applausos geraes gaduras, para que o enfurecido animal as destri-
a «cuadrilla» fez a sua solenne apparição na liça. passe ferozmente, e também como ha cem annos,
se o misero cavallo não morresse logo á primeira
Vinha na frente, a cavallo, o Primeiro Espada, aggressão e ainda se pudesse equilibrar sobre as
o guapo Torbellino, todo agaloado, com chapéu patas, recolhiam-lhe de novo ao ventre os intes-
de plumas e botas de canhão, empunhando- se- tinos, cosiam-lhe o coiro com alguns pontos
nhorilmente o seu bastão de Chefe; seguiam-se apressados, e de novo o offereciam, sempre com
os bandarilheiros e capinhas, a dois e dois, numa a venda nos olhos, aos truculentos cornos, e afinal,""
vistosa ala de cinco pares, todos a gingar, bri- ainda como ha cem annos, quando o toiro se
lhantes nos seus bordados trajos de jaqueta curta achasse já bem cansado e exhausto, o Matador se
e calção justo, o braço esquerdo dobrado por apresentava defronte delles com a sua gloriosa
debaixo da capa vermelha e o direito solto, acompa- espada e lh'a enterrava no cerviz até matál-o.
nhando os requebros do corpo; fechavam o séquito Fidalgo gesto, que sempre teve o condão de ar-
os picadores, em numero proporcional, formados rancar do publico espanhol delirantes manifesta-
de três a três, com brutaes perneiras de chumbo ções de applauso, traduzidas não só em brados
e lanças formidáveis, cavalgando velhas alimarias, de louvor e em flores, alli mesmo arrebatadas do
tristes e alquebradas, que ali vinham, depois de
A NOVELLA SEMANAL

próprio collo ou do próprio toucado pelas mu- Mas o tremendo adversário não lhes deu tem-
lheres, mas muitas vezes também em ricos len- po para negaças, e de roldão foi investindo sobre
ços de renda, finos leques e até jóias preciosas, um dos picadores, que logo desabou da sella co-
que lá iam cair aos pés do triumphador de en- mo um S. Jorge, e ao qual era preciso acudir
volta com charutos, cigarros e moedas de prata antes de mais nadax e carregar promptamente
arremessadas pelos homens." dalli, se o não queriam ver num ápice acabar nas
Só a quinta e ultima corrida da toirada, gra- pontas do toiro. E para este distrahir e arredar
ças ao imprevisto das circumstancias que se deram daquella zona durante a subtracção do picador
nella, discrepou daquelle veneravel ramerrão, e em apuros, armou-se em volta delle uma agitada
por isso mesmo foi a única digna de ser contada. tropelia, emquanto os outros dois cavalkiros, bem
O toiro então a correr era um bello animal scientes do que os esperava, tratavam de chegar-
negro e reluzente, com os cornos curtos e atila- se á salvadora trincheira, contra a qual de facto
dos como os de um bufalo. eram em poucos segundos arrojados impetuosa-
Ao abrirem-lhe a cancella, elle invadiu a praça mente com as suas cavalgaduras, apesar de rece-
num formidável é insólito galope, centripeto e berem á ponta de lança o cornigero aggressor.
cerrado, e a circulou repetidas vezes, com tal Derreados os cavallos e eclipsados os picadores,
velocidade e tamanha fúria, atropelando tudo por o toiro fêz-se de todo para os capinhas, que aliás
tal modo, que foi logo uma debandada geral em não o conseguiram capear uma só vez e quando
toda a arena; os capinhas e bandarilheiros voa- muito só lograram o enraivecer ainda mais. De
vam por cima da trincheira, sem quasi lhe tocar cada feita que o quadrúpede arremettia sobre
com a mão, e os picadores, chumbados aos seus um delles, saiam-lhe os outros pelos lados, agi-
pretensos corseis, abeiravarh-se delia e eram ás tando as capas, sem lhe dar tempo a marcar alvo
pressas colhidos lá de dentro e carregados no ar, para o assalto. Todo o empenho dos toireiros era fa-
a pulso, como manequins de pernas tesas, entre- tigá-lo, a ver si desse modo alcançavam equilibrar
tanto que os expiatórios rocinantes, abandonados as forças em acção e obtinham, para decoro profis-
e ás cegas, iam recebendo cornadas por conta sional, realizar algumas sortes, embora das mais
própria e pela de todos os lidadores que deser- simples, como o passe da Verônica ou o da Navarra.
tavam o campo. Eram três os miseros, e os três O toiro, com effeito, apesar de sempre árdego
pouco tardaram a cair mortos, enchendo de sangue e rebelde, já dava mostras de cansaço e parecia
o chão, já coalhado de restos das capas, sombreiros, já não acommetter com a mesma vehemencia, tanto
lanças, bandarilhas e outros despojos, que o toiro assim que Torbellino, sem se poder conformar com
espezinhava com raiva, rugindo de cabeça erguida. aquella vergonhosa corrida composta só decorre-
O publico, a patear e a trapejar com as ben- rias de um para outro lado da praça e repetidas es-
galas, protestava em delírio contra a ausência dos caladas á trincheira, resolveu salvar a situação com
toireadores no lugar do perigo, e reclamava, a ber- um golpe de audácia, e declarou que ia executar
ros loucos, novos cavallos na praça, como estabelecia immediatamente a sua famosa sorte da cadeira.
o regulamento das corridas. E essa feroz reclamação O publico acclamou-o de novo, mas desde que
de «chair-au-taureau» encheu muitos minutos, que elle, com um par de farpas na mão direita e a
foram até ahi os mais estrepitosos da toirada. cadeira na outra, se pôs a bater com aquellas,
Era tal o fragor, que o toiro pela primeira chamando o toiro á cita, este, em vez de partir de
vez se mostrou atordoado e se pôs a correr á toa, cara, como era de esperar, torceu de banda, anteci-
procurando instinctivamente uma aberta qualquer', pando-se assim no ardiloso quebro que o toireiro
por onde fugir aquella diabólica tempestade que contava fazer, e repontou-lhe pela esquerda, sem
bramia em redor delle e parecia querer tragá-lo. lhe dar tempo senão para fugir. De sorte que
A tempestade se acalmou quando de novo se os papeis singularmente se trocaram, o toireiro
abriu o portão, para dar passagem a outra turma não toireou e o toiro toireara, e Torbellino lhe
de três picadores, desta vez precedidos por todos teria sentido o gosto dos cornos se não se livra
os toireiros da «cuadrilla», que foram entrando tão depressa, abandonando ao adversário as farpas
de cambulhada e dispostos para tudo. Torbelino, e a cadeira, que voou logo em estilhas pelos ares.
agora vestido de seda cor de esmeralda recama- O peor, porém, é que o demônio do animal se
da de galões de oiro, trazia comsigo uma cadeira, lhe ferrou no encalço, e começou a persegui-lo
£uja magistral sorte figurava no programma da a galope cerrado por toda a volta em redondo
corrida em letras garrafaes. da praça, sem fazer caso dos capinhas que tenta-
A NOVELLA SEMANAL

vam desviá-lo da porfia. Torbellino, afinal, com dade, esqueceu-se dos toireadores, para dar todo
inaudita destreza, agarrou-sè na carreira que le- o seu enthusiasmo ao toiro. Os applausos re-
vava á borda da trincheira e a transpôs de um bentaram do amphitheatro em peso mais deliran-
salto; o toiro, porém, não menos destro, galgou-a tes do que nunca, e o inconsciente heróe como
atrás delle, rastrejando-lhe â pista. se os comprehendera, sacou a-cabeça das entra-
E então é que foram ellas! No interior da nhas do cavallo para encarar orgulhoso a" multi-
trincheira havia como sempre refúgios e defesas, dão, apresentando-lhe uma hedionda mascara
mas a tudo levava o toiro de vencida, ameaçando vermelha e verde, feita de estrabo e de sangue.
até as primeiras filas de espectadores. O pavor Redobrou o enthusiasmo, e uma ânsia febril a-
não podia ser maior. Na inversão dos pontos de poderou-se dos espectadores.
perigo, via-se agora encher-se a arena com os — Que Io maten 1 Que Io maten !
que a invadiam, saltando a trincheira falsa em bus- E a- nuvem dos toireiros acudiu de novo á pra-
ca de segurança, e era lá para dentro que accor- ça. O toiro, ha sua immediata investida, viu-se
riam os capinhas em perseguição do intoirejavel bqi. logo cercado por todos os lados e, arquejante de
Ah I não havia duvida que a quinta corrida, se, pe- cansaço, já sem força para os .repellir, escarvava
lo seu imprevisto, ia bem para grande parte do pu- a terra com as patas deanteiras.
blico, ia positivamente muito mal para os toireiros: — Que Io maten ! Que Io maten 1
Das farpas e bandariínas destinadas ao feroz bicho, Um lugubre toque de cometa deu o signal de
nenhuma lhe chegara a picar o coiro; das lanças dos morte. Pela primeira vez, fêz-se no circo um
picadores que o attingiram, a nenhuma foi dado con- pouco de calma quasi silente, na qual se sentia
servar-se inteira, e dos últimos três cavallos sobre- resfolgar a velha alma espanhola.
vindos, só um vivia ainda, e esse mesmo já ferido E o guapo Torbellino, na sua linda roupa cor
nas costelas e mal se podendo ter nas pernas. de esmeralda, perfilou-se defronte do toiro, ex-
Agora, o que os espectadores reclamavam nos pondo-Ihe a capa vermelha, debaixo da qual se
seus implacáveis berros, era a presença do toiro escondia a lamina fatal. O adversário, de cabeça
na praça; felizmente, porém, já lá dentro tinham baixa, a arfar com o corpo todo, recuava defronte
conseguido encurralá-lo, e não tardou a que o delle, negando-se á provocação; mas os capinhas,
restituissem ao publico. tanto o instigaram e tanto o enredaram nos seus
Vinha cansado e vinha colérico. Mal surgiu, entre- mil ardis, que o condemnado foi afinal collocar-
tanto na liça, encapotou logo,ássestando para frente, se deante do Matador, em posição favorável para
cornos atilados, e desembestou, tal qual ao iniciai a receber o supremo golpe. »
corrida, no seu centripeto galope a que nada resistia. Torbellino não deixou fugir a vez. Aprumou-
A praça esvaziou-se inda uma vez, e o toiro> se, mediu o bote e, com um gracioso, salto de
bem senhor delia, como para completar a sua mestre, enterrou-lhe até os punhos a espada na
victoria, arremetteu contra o cavallo já- ferido de raiz do pescoço, por entre os cornos.
morte, único sopro de vida que alli respirava. A A arma ficou no corpo do ferido, e este esta-
pobre cavalgadura jazia encostada á trincheira, cou, como surpreso do que se passava por dentro
com os olhos sempre vendados, e com o sangue delle. O Matador approximou-se então da sua
a desfilar-lhe por entre as costelas partidas. Ao victima, puxou-lhe da cerviz a ensangüentada espa-
primeiro assalto caiu logo, mais de costa que de da e bateu-lhe com ella desdenhosamente na cara.
flanco, agitando as patas no ar. O toiro acom- O toiro deu ainda um arranco, que era já de •
metteu-o de novo, engolfando-lhe no ventre os moribundo, a cambalear, cruzando as pernas da
cornos por inteiro e revolvendo-Ihe as entranhas frente, e foi cair aò lado do ultimo cavallo morto.
que arrancou afinal de todo para fora. Levantou então a cabeça e abriu os seus olhos
O desviscerado escorjava-se, ululando, num tre- de animal vindo ao mundo para ser bom e forte.
mor de todo o corpo, e o toiro, a saciar nelle a Da boca escorria-lhe sangue, mugiu soturnamen-
sua tremenda cólera, só recolhia as armas para te, e nesse mugido ia toda a lamentação de sua
as cravar de novo com mais fúria. Depois, não alma simples pelos campos verdes e amigos, que
Conseguindo nella levantar a victima e arrojá-la, elle tivera de deixar para vir morrer alli tão
como um despojo vil, por cima da trincheira, se cruamente nas mãos de bárbaros.
desforrava em mergulhar de todo a cabeça no E poi fim, deixando pender a cabeça sobre o flan-
arrombado ventre do agonizante, esfocinhando lá co do companheiro de sorte, suspirou muito rèpou-
dentro na sagrenta lameira dos intestinos. sadamente como um ente humano quando adormece.
O publico, empolgado por tão cruenta feroci- (Nápoles, Agosto de 1910.) ALUIZIO AZEVEDO
10 A NOVELL A SEMANAL

ninguém ; mas não tinha medo de homem. Quan-


do estava no seu direito poderia vir quem viesse:
—achava gente I E depois, aquillo tudo era medo,
era bobagem da Belmira 1 O Zé Pedro vinha lá
nada 1 Estava, talvez, a uma hora d'aquella, esten-
dido na cama, lá em baixo, na cidade, a cozi-
nhar a.bebedeira, como era de costume. A Bel-
A MATTA MALDICTA mira, coitadinha, tinha razão... Ella" não queria saber,
de questões em casa, porque aquillo a desmorali-
i.
O Rosendo, num rompante, esbarrou a mula á sava. Mas Zé Pedro naquella noite? Zé Pedro vinha
porta da casinha da Belmira. Depois, dando um lá nada 1 E esteve conversando com a amante até
geito nas abas largas do chapéu molle, entrou tarde. Quando se foram deitar passava das onze.
para a sala e foi abraçar com ternura a rapariga. Para a madrugada, Rosendo acordou em so-
Mas recuou logo, espantado. Que era aquillo ? bresalto, ouvindo um ruido, fora, na rua, perto da
Que frieza era aquella? Pois elle viera de tão janella. Desconfiado, poz o ouvido á escuta. Era
longe, da fazenda, para encontral-a naquella tris- uma voz de regougo, desconnexa e arrastada.
teza? Dissesse... Num susto, reconheceu a voz grossa do Zé Pe-
dro. Segurou com força a garrucha debaixo do
Belmira foi levantar o pavio da candeia de azeite,
travesseiro e chamou baixinho a rapariga:
sem dar resposta. Mas' o caboclo insistia, já meio
maguado com aquella seccura. — Belmira, Belmira, o Zé Pedro está ahi...
— Que é que você tem, Belmira ? Belmira levantou-se de um pulo. Que horror I
A rapariga olhou-o, desapontada e medrosa: Ellá bem dizia 1 Ouviram-se pancadas na janella
— Eu acho bom você não ficar hoje aqui, Rosendo. e a voz do Zé Pedro estourou fora:
— Mas porque ? — Abre essa droga 1
Não! Não convinha!... Elle sabia: O Zé Pedro Belmira poz as mãos na cabeça:
quando bebia um pouco, ficava maluco. E ella — Ai 1 meu Deus !...
já soubera, que, desde a boquinha da noite, o Zé Estava perdida I E correu para a tozinha, es-
Pedro andava a fazer estrepolia pela cidade. Era tonteadamente, com a roupa debaixo do braço,
capaz de vir, pela madrugada, como costumava, a vesti-la atarantada, sacudida do choro e susto...
bater á janella. Se encontrasse homem, desfeiteava, No meio do quarto, só, tremulo, com a garru-
brigava, queria botar para fora... Se fizesse isso, cha na mão, Rosendo esperava.
já não seria a primeira vez: e ella, Belmira, não — Abre essa gronga, senão arrombo I
queria saber d'aquillo. Rosendo continuava calado. E as pancadas con-
Fora sempre uma rapariga bem vista das vizinhas: tinuaram mais fortes.
não queria dar motivo de queixas. Não ! Não con- — Abre!
vinha que o Rosendo ficasse!... Era para evitar... Então o caboclo de dentro respondeu para fora,
Viria outro dia, um dia qualquer em que o Zé Pe- num largo desabafo de peito.:
dro não estivesse com a cabeça cheia de cachaça. — Aqui não se abre nada!
O matuto relanceou, com orgulho, o olhar para a — Então, arrombo 1
garrucha e a faca, na cintura, e deu um muchôcho: — Arromba, se és homem 1...
— Ora, um homem é para outro! Um murro secco estalou e a janella franzina
Mas não 1 Ella não queria briga em casa... se escancarou ao luar! A cabeça do Zé Pedro
Rosendo cortou-lhe a palavra com um gesto de- appareceu, e logo um braço, e outro braço, nu-
finitivo : ma escalada furiosa.
— Eu vim e fico ! Se elle vier cá, peior para elle... — Pára ahi, ladrão! — trovejou Rosendo.
E ficou. O outro não respondia e bufava, esforçando-se
Tirou o chapéu, dependurou o pala no prego para transpor a janella, fungando, ancioso, roçando
do portal e foi ao quintal despejar num caixão o peito no peitoril, os olhos chammejantes de raiva.
dous litros de milho á mula Guariba. Que aquelle — Pára ahi, ladrão !
vagabundo viesse I Havia muito que já não se E levantava o braço, engatilhando a garrucha.
gostavam por causa da Belmira; pois acabava de Zé Pedro, num resfolegar continuo, num deses-
uma vez com as rixas... Que viesse! Não tinha a pero, galgava com os braços, com o peito...
fama de valentão do outro, porque nunca matara — Pára ahi, ladrão, senão te mato!...
A NOVELLA SEMANAL 11
Zé Pedro subia. Apoiou a barriga; num ar- fugir, correr para muito longe, chegar a uma
ranco poz um joelho, outro joelho, um pé... terra onde fosse desconhecido, e assim,- talvez
— Pára ahi 1 escapasse da cadeia.
...Outro pé... Ia pular...
A Guariba trotava largo, fazendo estalar as fer-
Um tiro atroou na vastidão calada da noite...
raduras no chapadão duro do caminho. O sol já
II. tinha subido,' numa gloria, para a esplendencia do
Rosendo montou rapidamente a Guariba e to- azul, e o caboclo tocava sem descanso. E fazia
cou a galope pela estrada poeirenta. Esporeou o trotar a mula, subindo comorps, descendo outeiros,
animal com fúria. Em breve as ultimas casinhas ora sumindo-se na curva ensombrada da estrada,
da cidade tinham desapparecido. ora sahindo para a amplidão desolada dos campos.
Meia légua de caminho já tinha ficado, quando, Deixou campinas louras rutilando ao brilho do
á sua frente, o horizonte foi tomando uma vaga sol ardente, varou mattas escuras, cortou o en-
coloração, o céu branquejou, os campos vastos trelaçamento espinhado das capoeiras, embrenhou-
em torno, foram apparecendo, as montanhas cre- se pelo coivaral dos cerrados, atravessou córregos
scendo ao longe, as arvores surgindo, aos poucos, e córregos, atirando ae passagem, na liquescencia
por entre a neblina da manhã. prateada, a binga de chifre para refrescar a gar-
Metteu a Guariba a trote, para rememorar o ganta, num gole suavisador.
que tinha feito. Como fora aquillo ? Porque ti- O sol, durante o dia inteiro, do alto, queimou
nha disparado a garrucha tão de repente ? Como como um castigo. A' tardinha, Rosendo entrou nos
é que tinha matado Zé Pedro? Que estupidez campos da Loanda, que ficavam a dez léguas da
tinha feito! Não podia esperar que elle entrasse, cidade, interminavelmente estendidos, intermina-
agarral-o, tomar-lhe a arma, dar-lhe muita pan- velmente verdes. Guiou a mula para uma bai-
cada e depois deixal-o com o corpo retalhado de xada, á beira de um brejo onde fluía o zig-
chicote, do lado de fora? Porque, então, não fi- zag fino de um fio de água. A's suas costas,
zera assim, elle que nunca pensara em matar ?! no poente, o sol já se tinha engolphado por
Mas que horror! Matara mesmo 1 Sentira a queda * traz das nuvens pardas, espirrando para ó alto
,do corpo cahindo pesadamente na rua. -E estava uns laivos de sangue vivo. Em breve as primei-
perdido! Era um assassino! ras sombras crepusculares começaram a envolver
E agora como havia de ser?- E sua mãi, que os campos, e uma grande tristeza baixou do céu
seria d'aquella pobre velha, lá naquelle ermo, ao sobre a terra silenciosa. Rosendo subiu a um cu-
abandono, sem poder trabalhar e sem ninguém pim e estendeu longamente a vista pela extensão
que lhe fosse levar um pedaço de pão ? Que seria morta d'aquellas paragens. A campina se esten-
agora da sua própria existência, agora, que vi- dia, ampla, arrasada e quieta. Nem uma voz es-
veria andando, errantemente, de terra em terra, tranha, nem o mais pequenino ruído para pertur-
de fazenda em fazenda, sempre perseguido pelos bar a immobilidade d'aquelle ermo. As arvores
soldados, sem descanso, sem um momento de so- se erguiam, recolhidas e tristes, sem o bulicio leve
cego? Sim, que seria? Na cidade, aquella hora, de uma folha. O céu era de uma tristeza infinita
já sabiam de tudo... O crime era fallado em to- e desamparada, arqueiando-se, como a derramar
das as esquinas; o seu nome, que fora sempre sobre a terra toda a angustia que enchia a solidão.
tão respeitado, já andava de bocca em bocca, Só então, Rosendo levantou os olhos para a es-
manchado com uma maldição! E os soldados já querda e viu, a meia légua, a estrada sombria
lhe haviam sahido á procura, farejando pelo ras- da Matta das Cruzes, d'aquella matta profunda e
tro fresco da Guariba na poeira da estrada, hu- maldicta, de uma légua cerrada de arvores e so-
medecida pelo sereno da noite. E vinham sem cavões, sem uma clareira, sem o alivio de um pe-
descanso, dous, três, quatro, de bonets, terríveis, daço de campo. Era a matta excommungada que
armados de carabinas, a perguntar, aqui, alli, "se o povo d'aquellas redondezas havia cercado de
não tinham visto passar o criminoso l" uma lenda apavorante e tenebrosa. Nunca houve
Para attestar o crime, o corpo do Zé Pedro lá_, um cabloclo, por mais valente e sarado, que ou-
ficara estendido no chão, com uma bala cravada^ sasse atravessal-a, á noite, sem rolar morto por
no peito. Podia ir para onde quizesse — encon- uma grota. Contavam de muitos que lá entra-
traria sempre a mesma perseguição... ram, em noites de lua, e nunca mais sahiram. E
E a esta idéa, Rosendo chegou mais as esporas d'ahi a dias, era nova cruz que se levantava, no
de prata no peito suado da Guariba. Era preciso sitio onde se presumia ter desapparecido o teme-
12 A NOVELLA SEMANAL

merario... Elle mesmo, Rosendo, sabia do Ma- Um frio de terror gelou-lhe as carnes. Levou
mede, d'aquelle caboclo decidido da Serrinha, que machinalmente a mão á faca, na cintura, mas fi-
escorara tantos homens na ponta da sua faca ma- cou sem acção. E sentiu distinctamente, horri-
tuta, e que um dia lá amanhecera, esfaqueado e velmente, que qualquer cousa grossa e asqueiosa,.
rígido, com os dentes arreganhados. Ouvira tam- com um bafo quente de sangue, pulara na ga-
bém fallar do Rabello que, perseguido pelos sol- rupa e o agarrava pelo paletot. Quiz voltar a
dados, certa noite quizera passar a matta, lá se cabeça, mas não pode. Estava estarrecido sobre
sumira e nunca mais voltara. o arreio, sem forças, transido, a cabeça ardendo,
E elle, Rosendo, d'alli a pouco tinha que rom- num pavor mortal, as mãos tremulas e frias, o
per pela matta sinistra fora, na escuridão da noite. corpo gelado... E fincava as esporas desespera-
Não podia ficar do lado de cá. Era uma noite damente, e queria avançar e avançava, queria li-
perdida, o mais que preciso para a policia chegar. vrar-se d'aquelle bicho sanguisedento e cruel, que
Era preciso romper, custasse o que custasse 1 ja lhe arranhava as costellas com as unhas afia-
Conhecia o caminho, já passara por'lá, de dia, das. Um suor glacial descia-lhe abundante da
três ou quatro vezes. Do outro lado, logo ao testa em fogo e o corpo lhe tremia todo, enre-
sahir ao campo, á raiz da matta, ficava a casa do gelado e duro, sem um movimento, fincado no
Liberando. Descansaria lá meia hora, para co- lombilho como uma estaca.
mer qualquer cousa, e em seguida, tocaria... Era E o medo crescia e o terror augmentava. E
preciso seguir: E Rosendo montou. A noite já o porco immundo já lhe penetrava as carnes com
tinha cahido, negra e profunda. O caboclo já as unhas ponteagudas e o estreitva já nas mãos
não via mais a Matta das Cruzes, que se sumira lamacentas ei cabelludas, roçando-o, roçando-o, fe-
na treva cerrada. Foi pensando na morte que rindo-o, num encarniçamento de gula allucinada»
tinha feito e teve medo: Tremeu. Sentia um pa- numa fome selvagem, num desespero feroz. E
vor horrível ao approximar-se á travessia perigosa. elle apertava furiosamente a mula, fincando no
Veiu-lhe á mente excitada a figura do Zé Pedro, sovaco, no peito que era já uma sangueira toda
bebedo e morto, com os olhos terrivelmente aber- a roseta da espora. E a Guariba iavançava, so-
tos a clamar por vingança. Tinha matado!... prando ruidosamente, avançava, tropeçando aqui,
Quem sabe se não seria atacado e morto na matta tropeçando alli, desvairada, sempre para a frente,
por um inimigo estranho ? sempre para sahir d'aquelle inferno. E fincava
Ao enfrentar a matta parou a mula um mo- sempre as esporas, rangia os dentes, apertava—
mento. Pensou. Mas era preciso seguir! De como um recurso supremo—o cabo da faca na
um arranco atirou o animal para a frente aper- cintura, porque queria arrancal-a da bainha, virar
tando-o com força nas esporas. o braço e espetar, socar, socar com a ponta, socar,
Cobriu-o uma abobada de arvores agigantadas escortaçar aquelle monstro estranho e pavoroso,
e sombrias. Mergulhou medrosamente pelos ca- que o agarrava e que o ia matar. E a mão,
minhos sulcados pelos carros de bois. Não enxer- segurando a faca, ficava immovel, ficava pesada
gava um metro á frente. A noite estava cada e não conseguia arrancal-a, não conseguia movel-a!
vez mais negra e mais soturna. A matta era um E atraz, o bicho insaciado enterrava as unhas
silencio intermino, desolado e lugubre. A mula com mais gana, com mais violência, já o abraço
tropeçou num galho secco, elle sentiu um arrepio maligno envolvia-lhe toda a cintura e, em breve,
percorrer-lhe todo o corpo. Já havia andado meia seria derrubado por terra, arrastado para o seio
légua seguramente. Cada vez se entranhava mais da matta, morto num ataque doloroso de que
no silencio e na treva, e cada vez apertava com não se podia defender. E o pouco de energia
mais anciedade o animal. Não podia olhar para que lhe restava empregava nas pernas, arquejante»
traz: parecia-lhe que qualquer cousa o perseguia, num esforço desvairado e supremo, a enterrar as es-
aquelle inimigo da lenda, para vingar a morte do Zé poras, para avançar, avançar sempre!... Mas sentiu
Pedro. Começou a suar frio... A Guariba resfole- que as pernas iam fraquejando, ammollecendo, bam-
gava, doida, tonta, cançada, a arquejar e a romper..- bas já do esforço continuo, e que a Guariba ia tam-
Vagamente, elle divisou na treva, de passagem' bém- afrouchando a carreira desenfreada, tropeçan-
os braços abertos de uma cruz. Era aquelle o do a todo o instante, como a querer cahir. E o suor
trecho assombrado. descia-lhe sempre da cabeça em braza, ensopando
a roupa, e o corpo era a mesma pedra inerte e
De repente, sentiu que o animal encolhia as
gelada, incapaz de um movimento. E para a
ancas, dando um estirão medroso para a frente :
A NOVELLA SEMANAL 13

frente era a espessura absoluta da treva e elle


não via nada do que o cercava, não sabia se es-
tava longe, se estava perto da sahida d'aquella matta
amaldiçoada e demoníaca. Sabia que ia cahir, ia ser
arrastado, esmagado, espedaçado e morto. E o bi-
cho atroz continuava, destruindo e ferindo. O bafo
era agora mais quente e mais vivo, mais irregu-
lar e mais forte. Era um cheiro nauseante de O NATAL DE FREI GUIDO
sangue que" sahiâ d'aquella bocca escancarada, que Isto foi no tempo de S.„ Francisco de Assis,
ia começar a comer d'alli a pouco, a comer, por- o doce asceta, o bardo contemplativo e lyrico, o
que era um monstro que estava louco de fome!... frei amante da natureza, que chamava o lobo
De repente como um allivio, sentiu na treva uma seu irmão e as aves suas irmãs"e suas irmãs tam-
vaga clareira; e, logo á frente, a dez metros, na bém as flores da terra e as estrellas do céo...
baixada, um fogo á porta da casa do Liberando. Num dos conventos, que elle fundara, hayia
Cambaleando em cima do arreio, já quasi mor- então um joven monge, de nome Frei Guido;
to, sentindo nas costas, a agarral-o sempre, o porco era um bello frade, alto e magro, de barbas
horrendo e sujo; num ultimo esforço, encostou a louras e figura suave; diziam-n'o sabedor de
Guariba á porta da casinha, e deixou-se cahir para muitas disciplinas, mas os seus ademanes eram
o chão, pesado e inerte. O Liberando e a mulher, modestos, quasi tímidos. Muito mettido com-
apavorados, correram, e levantaram o- corpo do sigo, só fallava quando era preciso; ás pales-
chão. O dono da casa conheceu logo o caboclo. tras da communidade preferia o commercio dos
Que significava aquijlo? livros na sua cella, e as longas meditações taci-
Rosendo, desvairado, febril, apontava para as an- turnas, em que êxtases divinos o vinham por
cas da Guariba, batendo o queixo:-Lá...lá... Liberan- vezes consolar. — E todos lhe queriam bem, os re-
do foi examinar. Mas que erá? Não havia alli nada! ligiosos pela sua piedade e brandura, a gente
Deitaram-o no quarto da sala, e a mulher cor- de fora pelas maneiras cortezes com que elle
reu para arranjar remédio. E toda a noite, deliran- tratava pobres e ricos, e pelas muitas obras de
do, foi aquella perseguição dolorosa! Via-se á beira caridade que fazia. Mas poucos lhe conheciam o
do brejo, no campo, do outro lado da matta mal- timbre da voz, e quando elle sorria era de modo
dicta, ao cahir da tarde triste, já medroso de atra- vago e distrahjdo; como de pessoa cujo pensa-
vessal-a. Depois a noite negra, como um pre- . mento anda por longe...
nuncio de desgraça, estendida pela terra... Depois E assim o iam deixando viver tranquillo, sem
a travessia sinistra... o ataque... a resistência deses- maiormente perscrutar os segredos da sua indole.
perada... o mesmo frio de morte e tranzir-lhe o Mas o superior do convento, o velho guardião,
corpo... E a perseguição do bicho cada vez mais que, preposto ao governo de tantas almas, devia
encarniçada, e as unhas a penetrar-lhe a carne... estudar mudamente cada uma del'as, levava não
e elle a debater-se, a querer livrar-se... Depois, a raras horas a fio scismando nesse gênio original
sahida súbita, na clareira, e as pessoas conhecidas... de Frei Guido. Por virtuoso o tinha de certo:
Em seguida, via-se de novo no seio mysterioso mas por que de ordinário era elle tão calado, e
e escuro da matta tenebrosa, na mesma anciedade, se apartava constantemente dos outros ? Dir-se-
no mesmo pavor. E, de repente, já não era o porco hia triste : e tristuras num bom servo de Deus
abjecto! era um cadáver ensangüentado, de rosto li- a que propósito vinham ? O Santo Patriarcha
vido, o cadáver do Zé Pedro, a perseguil-o também, queria discípulos que aceitassem com animo forte
com um riso atroz na bocca escancarada, e a gritar: o jugo do Senhor, alegres sempre, embora aus-
«— Abre esta droga! Abre esta droga!» teros. Não haveria alli fumos vãos de orgulho ?
E depois a mesma sahida, o mesmo fogo salvador. Que é commum derivar o homem negras melan-
Já manhã, não conseguira ainda dormir. Tinha colias da excessiva preoccupação de si mesmo.
o corpo moido, pôr certo ensangüentado, e a cabeça Ou seriam tormentos de concupiscencia, revolta
ardia-lhe na mesma febre devoradora. De repente, dos sentidos ainda não de todo domados ?
ouviu pancadas na porta da entrada. Levantou a ca- Pois tentações de tal ordem quando assaltam o
beça: no mesmo instante, viu o Liberando correr pa- justo, soem prostrar-lhe o espirito em grandes
ra abrir. Três homens entraram debonetse refles. desmaios e abatimentos...
Eram os soldados. Pôz as mãos na cabeça. Es- Varias provas ensaiara já o cauteloso guardião
tava perdido! BAPTISTA JÚNIOR. e de todas sahira victoriosa a virtude de Frei
14 A NOVELLA SEMANAL

Guido: mandara-o beijar o chão de braços, cili- de onde a fome sahe geralmente mal aplacada,
ciar-se e açoitar-se em publico, lavar os pés a vêem-se hoje iguarias finas, pão branco, pucaros
seus irmãos de habito, dormir sobre as lages do de leite e mel, e no meio o bolo tradicional, a
adro em noite de vento e chuva, fazer os ser- immensa torta dourada e fumegante.
viços mais rudes e materiaes da casa; a tudo Até Frei Guido, usualmente tão concentrado,
elle se submettera sem murmurar, simples, dócil, parecia ter abandonado com gosto a consultação
diligente. Mas o severo director daquellas cons- dos livros e a mudez das suas intimas cogitações,
ciências mais próximas da perfeição evangélica para tomar também parte na alegria commun.
que as da gente mundana, ainda não se dava por Já muito expansivo e animado, encetara calorosa
satisfeito ; havia de expor o moço frade á sua pratica com vários noviços e professos, discutindo
experiência ultima e decisiva. pontos subtilissimos de philosophia e dogma com
basto dispendio de distingos e ergos, emquanto
Ora, precisamente aquelle dia era véspera do
esperavam o signal de entrar para o refeitório.
Natal; era a noite feliz, Ia noche buena, como a
denominavam os castelhanos. Todos no convento Ora, exactamente quando ia começar a ceia,
e nos burgos visinhos se aprestavam a celebrar já rezado o Benedicite e posto cada um no seu lugar,
dignamente a festa popular e universal, uma o velho guardião chamou Frei Guido e lhe disse :
das poucas que não eram apanágio exclusivo dos — Irmão, tomai já o manto, e o bordão de
senhores e potentados mas traziam prazer tam- viagem, e ide de minha pai te ao Mosteiro prin-
bém aos corações humildes. A Igreja do mos- cipal de S. Bento, saudar o Dom Abbade e os
teiro estava adornada sumptuosamente a despeito seus monges. Vede se podeis chegar lá antes de
de serem pobres os religiosos, — pois uma cousa nado o sol.
era o exiguo interesse delles, a parca e insossa Os frades todos estremeceram de espanta-
alimentação, a estamenha grosseira e remendada, dos ; até o decano octogenário, acostumado ás
outra era a necessidade do culto, para cujo es- sorprezas da férrea disciplina, fez um gesto irre-
plendor nada havia demasiado. E para altares, flectido de assombro. A ordem do prelado era
paramentos e alfaias, fidalgos devotos e opulentos absurda ; tinha mais visos de zombaria que de
lhes offertavam dons de valia. A multidão en- cousa séria. O Mosteiro principal de S. Bento
chia o templo ; plebeus com as suas vestes gros- distava mais de cem léguas ; como havia o pobre
sas de valenciana e bifa, nobres, com seus gibões do Frei Guido chegar lá antes de nado o sol ?
e capeirotes de velludo, damas envoltas em man- E demais que idéa singularissima a de mandal-o
tos de seda com forro de branca armelina, todos jornadear penosamente numa noite como essa —
assistiam igualmente recolhidos aos- officios divi- na entre todas santa noite do Natal — pelos ca-
nos ; cânticos sagrados reboavam harmoniosa- minhos brancos de neve sob o luar mortiço !
mente de arcaria em arcaria em espiraes azuladas Só Frei Guido não proferio palavra, nem se
de incenso e centenas de ei rios ardiam por todos lhe alterou a placidez do semblante. Deixou o
os lados. seu lugar, foi inclinar-se ante o guardião, para
Deo gratias ! E, terminada a missa, dá o ór- receber-lhe a benção, e tomando o manto e o
gão os accordes finaes. Todos voltam jovial- bordão de viagem, partio.
mente para suas casas ; têm pressa de rir e fol- II
gar com parentes e amigos diante da ceia eopiosa Eil-o vai, açodadamente. Desertas são as es-
no conforto do lar bem aquecido — tanto mais tradas ; quem se atreve a affrontar tão damnado
que o inverno vai rude ahi fora e os caminhos a inverno ?
perder de vista estão brancos de neve sob o luar Eil-o vai. O vento gélido lhe corta as faces ;
mortiço. Nos castellos, nos palácios e nas her- as arvores despidas • de folhas reflectem triste-
dades de em torno começam os saráos de dansas mente sobre a neve os troncos encarquilhadoá e
e trovas que durarão até amanhecer: e nem nas tortos.
mais desmanteladas choças dos pastores serranos A principio Frei Guido vê ainda cá e lá a cla-
falta o ódre de vinho ou a marmita a rosnar so- ridade das casas onde se canta e se baila ; rumo-
bre as brasas crepitantes. Mesmo no convento, res festivos sahem dellas, e perdem-se na solidão
os rigores da disciplina se abrandam por algumas da noite. Mais além o monge viandante divisa
horas, os frades também são homens, mercê de no cimo dos montes as luzinhas escassas das chou-
Deus e o bom Jesus nasceu para todos. Tréguas panas de zagaes, e escuta virem de lá notas tre-
ao jejum e á penitencia ! No espaçoso refeitório, mulas e rústicas de flauta, cascalhar de adufos
A NOVELLA SEMANAL 15

trechos de trovas sentidas como suspiros. Os e quebrada, que excitam a fantasia e subjugam a
mastins de guarda ladram á sua passagem. De- vontade. Musicas taes pelas estradas desertas ?
pois, nem isso. Está'em pleno campo. Será algum bando de árabes ou de bohèmios ?
Faz uma hora que, caminha. Não encontra Frei Guido não cabe em si de assombrado.
viva alma ; mas, que ruidos extranhos são esses Trazem as lufadas do vento aromas penetran-
que lhe chegam aos ouvidos ? tes que embriagam ; não aroma simples como o
Dir-se-hiam murmúrios, cochichos como de quem das flores no campo ou nos jardins, mas compli-,
falia em segredo, risinhos abafados e malignos... - cados perfumes, intensos e raros, de sapiente
De súbito, cachinam-lhe em torno gargalhadas composição, como os que se respiram nas. salas
ásperas, estridentes, como as das bruxas nas or- dos paços.
gias do sabbat. Frei Guido pára sobresaltado, e E agora um sem numero de lâmpadas escarla-
vozes sinistras entram a dialogar ao pé delle, em tes, roxas, amarellas, de todas as cores, se agitam
tom de sarcasmo e desdém: *em círculos concentricos, e giram, e volvem, e
— E' louco ! é louco o pobre frade ! ah ! ah ! revolvem, approximando-se cada vez mais de
-=• Aonde vai elle tão de- frei Guido ;• e approximando-
pressa ? se cada vez mais vêm as mu-
— Vai ao grande convento A M A D E U AMARAL sicas de toada exquisita, e mais ,
(DA A C A D E M I A B R A S I L E I R A ) fortes, mais capitosas se tornam
dos Benedictinos, ah! ah! ah!
E as gargalhadas estrugem. as essências esparsas pelo ar...
— E diz que 'quer chegar E' sonho ? E' delírio da
amanhã, ah ! ah ! O DIÀLECTO mente
ta-se o
enferma?... — pergun-
moço frade ; e eis o
— Chegará... chegará... no
Natal do anno que vem ! CAIPIRA que elle
pasmar-se
vê ainda para mais
e benzer-se.
E as gargalhadas redobram. (PHONET1CA, LEXICOX.OGIA, MORPHOLOGIA.
SYNTAXE, VOCABUI..ARIO)
Mas, depois do primeiro mo- São mulheres, uma legião
mento de susto, frei Guido incalculável de mulheres as que
percebe de que se trata; sabe Preço 5$000, Pelo cor- sacodem essas lâmpadas de to-
reio, registrado, 5$500 das as cores ; e desse grupo
como são freqüentes estas his-
torias de trasgos e duendes que encantado, que sobre a neve
andam a perturbar no somno PEDIDOS Á
dansa em movimentos vertigi-
ou-nas viagens nocturnas o so- nosos, vêm as melodias e os
cego dos christãos; assim se
Casa Editora "O LIVRO,, intensos, raros aromas.
R. 15 NOVEMBRO, 32-S. PAULO E um momento, sem dar
vê a Dama branca, e o caval-
leiro renegado... O mesmo por isso, frei Guido se vê ro-
demônio apparece ás vezes sob a forma de um deado de todas ellas; bailam-lhe em torno com
aragão, como appareceu a S. Jorge e a S. Mau- tal rapidez que elle não pode distiaguir-lhes
rício, chefe da legião thebana. as feições. São apenas figuras indecisas, envoltas
Aquillo não era mais que velhacaria de Sata- numa sorte de nevoeiro, que volteiam, volteiam,
naz, que forcejava perversamente por despertar e não acabam de voltear. E os sons dos múl-
duvidas no espirito do monge, e ridicularizar a tiplos instrumentos se alteiam mais vibrantes e os
fidelidade com,que elle cumpria o voto da santa perfumes se condensam em nuvens como de incenso
obediência. A sua alma de crente desprezava e myrrha. E o joven monge sente-se aturdido e ton-
taes zombarias do grande blasphemo. Ah ! diabo to ; e vacilla como quem vai cahir sem consciência.
malvado e pícaro. Com um Padre Nosso e uma Cessa," porém, o bailado infernal. E então de
Ave Maria havia da fugir para o inferno, corrido entre aquella multidão sahe a mais formosa de todas
e envergonhado ! E as gargalhadas cessaram, e e, acercando-se do frade, lhe diz com voz maviosa:
as vozes emmudeceram. — Vem comnosco, vem, Guido. E's moço e
E frei Guido proseguio tranquillo pelos cami- estás perdendo sandiamente a tua mocidade. Eh !
nhos brancos de neve a perder de vista sob o Guido, deixa lá conventos e escapularios : deixa
luar mortiço. isso para mais tarde ; que sempre é tempo de
III raspar o cercilho na cabeça. Pois o mundo tem
Trazem as lufadas do vento musicas de toada tantos fulgores e deleites para dar-te, e tu te se-
exquisita ; musicas profanas, de cadência languida pultas em vida entre os muros frios de um
16 A NOVELLA SEMANAL

claustro. Anda, vem espairecer um tanto em li- arrastavam pelo chão ; o terceiro grossas chaves
berdade : cerra de vez com seus broches de pra- de prata sobre a almofada de terciopelo ; o ulti-
ta a theologia e o livro de Horas ! mo empunhava o baculo pastoral, ponderoso e
— Mulher, respondeu elle friamente, são moucos finamente lavrado.
meus ouvidos para as tuas propostas insensatas. E a procissão se dirigia para frei Guido que,
Vai-te de minha vista, somé-te com as tuas com- de admirado, não sabia que pensar ; e já o cer-
panheiras malditas ! Eu sei bem o que perdi e cavam, de um lado e de outro, as alas >das con-
o que espero ganhar. Não serás tu que me en- frarias e do clero; até a gente do pallio parou
sine o modo como me cumpre viver. Nem me deante delle. Então separaram-se da turba três
sobra tempo comtigo, que sou mandado ao mos- homens, que pelos trajes e ademanes se conhecia
teiro de S. Bento, e devo lá estar amanhã. serem de elevada graduação.
— Oh ! Guido ! pois podes tu crer em tama- — Eu sou o arcediago, desta veneravel Sé —
nha parvoice ? Não percebes que mofaram de ti disse um, apresentando-lhe a mitra e o baculo.
como de uma creança ? O mosteiro de que fal- A fama de vossas virtudes e de vosso muito sa-
las é tão remoto que necessitadas mais de um ber chegou até nós. Venho em nome dos pa-
mez para chegar lá, viajando a pé como viajas. dres e do povo saudar-vos como bispo desta
-O guardião quiz humilhar-íe com esse escarneo diocese. A eleição que fizemos foi approvada pelo
indigno. Vinga-te delle segundo convém ao pun- Summo Pontífice e o Imperador concorda. As-
donor de um homem que se preza ! Vem com- sim a vós prestamos obediência, e protestamos
nosco ! Serás feliz: tua existência correrá toda em defender-até a morte a vossa autoridade.
prazeres sem sombra de pensamentos merencórios. — Eu sou legado do Santo Padre de Roma, —
Mas frei Guido debateu-se heroicamente, re- disse outro, pondo-lhe ante os olhos o chapéo ver-
pellio de si as hetairas diabólicas e, invocando o
melho de largas abas. Elle vos tem ha muito
nome de Jesus, e persignando-se muitas vezes, em alto conceito, e determinou dar-vos a mais
correu espavorido pelo campo fora... valiosa recompensa que da sua munificencia de-
pende. Por isso, de sua parte vos offereço o
IV
chapéo cardinalicio e a magna capa de purpura.
Correndo a bom correr, divisou as torres es-
Ave, Príncipe da Igreja !
guias de um templo gothico, que se aprumavam
no fundo alvacento do céo. Os sinos tangiam, E o terceiro disse (esse, de idade provecta, era
tangiam lindamente no meio da noite. As tres- o vidama, ou Governador daquellas terras):
largas. portas da cathedral estavam de par em par — A mim me cabe, Dom Guido, entregar-vos
abertas ; por ellas e através dos vitraes ornados as chaves do castello visinho, — pois, conforme
de imagens e florões, viam-se brilhar milhares de deveis de saber, o Bispo desta Sé é Barão e Conde
tochas, dando uma claridade festiva como deve do Império, e exerce domínio feudal sobre o cas-
ser a do Paraizo. tello e as villas fronteiras, tendo a seu mando
E um cortejo immenso sahia do templo a pas- hostes numerosíssimas. Assim fallando, apontava
sos lentos, alumiado por muitos brandões e lan- para um vasto solar, que a pouca distancia da
ternas ; e entre as solemnes harmonias dos hym- cathedral demorava e tinha, com os seus muros
nos liturgicos, adeantava-se pelos caminhos bran- negros e ameiados, carrancudo aspecto, como te-
cos de neve sob o luar mortiço. Era um luzido merosa fortaleza que era. Dispostos ao longo das
e pomposo prestito. Vinham á frente as solitas barreiras, estavam servos e vassalos, donzeis, es-
confrarias com seus hábitos de differentes cores canções, estribeiras, bucellarios, monteadores com
e feitios ; vinham depois galhardas companhias seus falcões e nebris, lebreus e podengos. Nem fal-
de homens d'armas, arautos e passavantes ; se- tava o costumado jogral, agitando o seu sceptro de
guia-se numeroso clero secular e regular; e, fi- guizos, fazendo toda a sorte de momos e visagens.
nalmente, carregado por infanções e cavalleiros — Aqui vos juramos, senhor, preiio e home-
de mui fidalga nascença, o vasto pallio de tela nagem ! — ajuntou, curvando-se, o vidama.
d'ouro. Debaixo delle, quatro nobres varletes, -V Excusais de o jurar — disse frei Guido se-
magnificamente vestidos sustinham nas mãos os renamente. Eu não quero ser Bispo nem Car-
symbolos e emblemas da mais alta dignidade ec- deal, nem senhor de castellos e villas. Levai a
clesiastica ; o primeiro trazia, uma mitra crave- outrem taes cargos ; são rudes em demasia para
jada de gemmas ; o segundo um chapéo verme- os meus fracos hombros. Eu não passo de pobre
lho de largas abas com bordas pendentes que religioso, cuja só ambição é servir a Deus obscu-
A NOVELLA SEMANAL 17

ramente, e prestar obediência aos superiores. O tão excellente, eu pediria licença ao guardião
Santo Padre de Roma é assás bom para não que- para acompanhar-vos. Mas agora nãopossq, que
rer esmagar-me sob o fardo da mitra e da pur- devo ir para o mosteiro de S. Bento sem me des-
pura. Mas, se a todo o transe lhe aprouvesse impôr- viar desse rumo...
tne tão duto sacrifício, não a mim, mas ao guardião — Mas um dia só—que importa um dia?—des-
de meu convento, mandaria lettras ou mensageiros! cobrir os mysterios dos astros, as propriedades das
— Senhor! — exclamou o nobre vidama. Não plantas, os nunca vistos thesouros da alchimia —
é de monges rezadores que a Igreja e o Império não vos compensa isso tudo de tão pequena demora?
precisam hoje: é de Bispos guerreiros denodados, — Vós que tudo conheceis, lestes sem duvida
que defendam o Occidente e façam recuar a mou- a Escriptura Sagrada: Recordai-vos do que lá se
risma reféce de Mafoma. diz: O principio da sabedoria é o temor de
— Frei Guido — murmurou-lhe baixinho ao Deus. Initium sapientiae timor Domini. Eu vou
ouvido ó que se intitulava legado apostólico — ao mosteiro de São Bento...
aceitai, por quem sois, o chapéo e baculo! Lem- Numa encruzilhada, um grupo de vagabundos
brai-vos que podeis ser Papa um dia e reger assaltou o monge. Diísé-hiam ladrões, eram apenas
toda a Christandade ! mendigos.
— De tal sorte me guarde o Todo-Poderoso — Frei Guido ! r— disse um — vede como sou
— replicou o monge. Deixae-me ir que o meu coxo. Ja caminhei muito ; e preciso de, cami-
rumo é outro. Vou-me ao mosteiro de S. Bento, nhar ainda o dobro. Não tenho um bordão em
como me foi ordenado... que me arrime.
V — Fiei Guido deu-lhe o bordão de viagem.
Já ficavam muito para traz o solar e o templo — Frei Guido!—disse outro—soccorrei-me ! Te-
gothico, e frei Guido continuava em paz a sua nho os pés feridos de espinhos e cortados das neves.
jornada,/quando um desconhecido se chegou a Frei Guido desatou as correias das suas sandá-
elle, e puxou-lhe de leve a manga do habito : lias e calçou-lh'as.
— Quanto vos prezo e venero, varão insigne — Frei Guido!— disse outro ainda, estou tiritando
entre os insignes! Bem andastes em recusar e não tenho nem uma capa velha com que me cubra!
aquellas honrarias. Para homens de summo en- Frei Guido despojou-se do próprio manto e
genho como vós nada valem vaidades e ouropéis abrigou-o nelle.
e são cargos difficeis de levar, os grandes títulos. O frio era agudissimo; mas o bom religioso ia tão
— Quem sois vós ? — perguntou o frade, e abrasado de caridade e amor divino que não sentia.
da cabeça aos pés o mirava. Era um velho de — Frei Guido ! gemeram muitas vezes a um
barbas alvas, embrulhado numa espécie de túnica tempo — temos fome! dai-nos um boccado de pão !
cinzenta e grossa; escondia as cãs sob uma am- Ahi o monge, pela primeira vez nessa noite,
pla fota da mesma tela. tendo desprezado com alegria todas as grandezas
— Sou cultor da sciencia, frei Guido ; busco do mundo, ficou triste por não ter trazido com-
na terra e na esphera azul o segredo intimo das sigo nem um boccado de pão na sacola.
cousas. No estudo da natureza, ponderando os Os mendigos foram-se ; e frei Guido, tendo-se
factos e investigando as leis, eu attingi verdades sentado um momento para descansar numa pe-
nunca antes sonhadas. Sou perspicaz também em dra da estrada, adormeceu sem dar por isso.
penetrar o coração humano. Que é comparado Quando acordou, ia nascer o sol; biilhava
a mim ? Hermes, o egypcio ? Que é o rei Sa- límpido o céo, sem nuvem alguma, e as tintas da
lomão ? Que são os philosophos gregos ? Eu aurora o alindavam. Frei Guido olhou assom-
vou muito mais longe, muito mais longe. brado ao redor de si. Estava num leito de flo-
— Bella e nobre cousa é a sciencia, — disse res. Rosas hrahcas> vermelhas, amarellas, haviam
frei Guido como em sonho. E se ha bem que eu am- nascido no meio da neve. E andorinhas chilrea-
bicione após a Salvação da minha, esse é de certo... vam voando rápidas, em bandos. No cimo de
— Pois se desejais possuil-o, vinde commigo, umacollina próxima, o enorme vulto do mos-
fazei-vos meu discípulo, e num dia, num só dia, teiro de São Bento apparecia distinctamente.
eu vos transmittirei quanto aprendi. Então Frei Guido conheceu quanto a sua vir-
O diabo pensava com razão que essa tentação tude fora agradável a Deus, que assim o trouxera
era a mais forte, e por isso a deixara para o milagrosamente ao seu destino, e fizera florir
fim. Mas, frei Guido tornou muito calmo : junto delle a primavera em pleno inverno...
— Se em outra occasião me désseis conselho MAGALHÃES DE AZEREDO
A NOVELLA SEMANAL

EMENTO
ração e a sua vida. F a l a v a dos ta, sempre a encontrei presente
Avída&i\ecdotícdv seus negócios, dos seus proje- em suas palavras e em suas ma-
e pítíorfeSc«xdos:
torfeSc«xdos : ctos, dos seus sonhos, das suas neiras.
gm3\d<^ eácrípíoreS tristezas, com a simplicidade Na mesma occasião do episó-
lisa e clara de um bom rapaz dio aqui referido, elle esponta-
entre rapazes ; de tal modo que, n e a m e n t e nos confessou, com a
f OLAVO BILAC em pouco, quem quer que hou- mesma despreoccupação encan-
NOTAS, KEMINISCEN-
vesse merecido a sua afeição se tadora, que levara t r i n t a annos
CIAS E DOCUMENTOS sentia i n t e i r a m e n t e á vontade para descobrir que a palavra
na sua presença. A intimidade hetere, empregada n u m a das
D u r a n t e m u i t o tempo, apezar estabelecia-se mesmo sem que composições do seu primeiro li-
de todas as oportunidades, não se desse por isso. E , ás vezes, vro, varias vezes reeditado, era
desejei ser apresentado a Olavo depois de u m a hora de des- gallicismo crasso, desnecessário
Bilac. E u t i n h a por elle u m a preoccupada e alegre camarada- e indesculpável.
g r a n d e admiração, e sempre te- gem, em que a gente o ouvira
mi approximar-me das pessoas e se fizera ouvir sem a t t i t u d e s , Desses erros, todos os com-
que admirei... Afinal, h a poucos não se podia deixar de reflectir, mettem. Não h a quem fuja á fa-
annos, estando no Rio, a afeição a sós, com u m vago acanhamen- talidade inelutavel de algum
que me t i n h a o saudoso E milio to retrospectivo, que o interlo- t r i b u t o á soberana Tolice. Altos
de Menezes, — afeição que me cutor de quem nos havíamos engenhos t ê m roçado pela. mais
envolvia e a r r a s t a v a como u m separado momentos antes, baten- r a s t e i r a estupidez. Raros, porém,
rio impetuoso, •— me poz em con- do-lhe no ombro, era, afinal, u m são os homens que têm a virtu-
tacto com o grande poeta. J á dos mais altos espíritos que o de de confessar as fraquezas do
nos conhecíamos de v i s t a . Bilac Brasil tem engendrado. seu espirito e de revelar pelas
t r a t o u - m e desde logo como a u m próprias mãos, sem rodeios e
velho amigo, com u m a cordiali- Nunca vi joven literato, suan- sem ceremonias, os aleijões a
dade singela e distinota. P u d e do timidez e modéstia, falar da que deram existência. Bilac te-
então observal-o de perto e á própria obra com mais despreoc- ve, p l e n a m e n t e , essa virtude e
vontade. cupação e simplicidade. U m dia, essa coragem. E i s ahi, após ou-
N e n h u m a pose se lhe notava, eu, Roberto Moreira e mais al- tros, mais u m traço altamente
embora t a m b é m não fosse ho- guém, que não me recorda quem sympathico da sua physionomia
mem de fáceis e desmanchados fosse, lhe fazíamos p e r g u n t a s . moral.
abandonos. Sempre bem senhor E m vez de se remontar e for- AMADEU AMARAL.

de sua pessoa, compondo a toi- malizar como alguém que gosta


lette do seu espirito como a do de m o s t r a r que é um homem
seu corpo, sem j a m a i s esquecer complexo, com m u i t a s peças e
u m a conveniência (ou r a r a m e n t e m u i t a s molas, m u i t o cheio de
fCuríosíd&deSj
esquecendo-a) como não esquecia
n n n c a de acabar o laço irrepre-
considerações e de intencionali-
dades, atafulhado de t h e o r i a s e
de mistérios, — elle a tudo res-
líter&xíaLS11
hensivel da gravata.
pondia sorrindo sem hesitação e
A principio, desconfiei que a sem calculo, em poucas e rápi-
sua gentileza podesse não ser Aut obiographia
das palavras, naquella sua voz
^rnais do que uma doce hypocri- cheia e sonora. de MONTEIRO LOBATO
;
sia, confeitada expressamente a-
fim de manter os importunos á Indagou u m de nós qual o Pedindo-lhe u m amigo u m a
/distancia. H a uma boa maneira motivo porque elle dera certa noticia biographica, Monteiro
.le ser aberto e accessivel — sem forma a u m pequeno passo de Lobato forneceu-lhe as seguintes
p e r m i t t i r a entrada a ninguém, uma de suas mais celebres poe- notas, que achamos-interessante
sem mesmo p e r m i t t i r grandes sias ; e elle, immediatamente : publicar :
proximidades... Mas enganei-me. — " P o r t o l i c e . " E m seguida,
.Bilac cv.i, real e espontaneamente explicou que commetteu no re- «Nasceu em Taubaté, aos 18
Jkmavel. Sem se expandir nem ferido lugar u m a simples e- re- de Abril de... 1884. Mamou até
d e r r a m a r com o primeiro apre- donda asneira, sem outro nome 87. Falou tarde, e ouviu pela
aentado, era comtudo muito chão e sem n e n h u m a a t e n u a n t e ; as- primeira vez aos 5 annos um
e muito tratavel para com todos. neira que só corrigira muitos celebre dictado :
Com aquelles que sabiam to- annos depois de dada a publico Cavallo p a n g a r é
car-lhe o coração mais no fundo, pela primeira vez... Mulher que... em pé
aão hesitava èm escancarar, E s t a simplicidade, esta lisura Gente de T a u b a t é
lespreoccupadamente, o seu co- e esta modéstia singela e sensa- Dominus libera mé
A NOVELLA SEMANAL 19

Concordou. de ser productcr é synonimo de Mas, quaes são as âncoras e as velas


/
Depois, teve c a c h u m b a aos 9 que o coração levanta- ? As de um
ser imbecil e mudou de classe. navio ideal, creado para o effeito da
a n n o s . Sarampo aos 10. Tosse Passou ao paraizo dos interme- imagem: «levantar» âncoras», que é
comprida aos 1 1 . P r i m e i r a s es- diários. Fez-se negociante, ma- passar da irnmobilidade ao movimen-
p i n h a s aos 15. triculadissimo. Começou editan- to e «desfraldar velas», que é correr
offegante como um coração' ancioso.
Gostava de livros. L e u o " C a r - do a si próprio e acabou editando Nessas phrases predomina o subten-
los Magno e os doze p a r e s de aos outros. Escreveu u m a s t a n t a s dido sobre o expiesso. Com methodo,
França", o "Robinson Crusoé" lorotas que se vendem — FJru- absoluta clareza e precisão, diriamos:
«Vae, coração. Começa a navegar no
e todo o J ú l i o Verne. pês, gênero de grande saída, teu navio, como vim marinheiro,
Mettido em collegios foi u m Cidades Mortas, Idéas de Geca que és...-.
a l u m n o n e m bom nem máo — (sub-productos), P r o b l e m a Vital, «A onda corno uma houri de Stam-
apagado. Tomou bomba em exa- Negrinha, Narizinho. Pretende bul...» E a mesma arte, confundindo
os dois termos da comparação, diz—"
me de p o r t u g u e z , dada pelo Frei- publicar ainda u m romance sen- «Mole, se embala e ri». O qualifica-
re. I n s i s t i u . Formou-se em di- sacional que começa por u m tivo diz tanto da onda como da h e -
reito, com u m simplesmente no tiro : taira, mas quem Be embala é a vaga
e quem ri, a sultana de « requebro
h.° anno — merecidissimo. F o i — Pura ! E o infame caiu re- taful». Condensa e depois analysa.
promotor em Áreas mas não pro- dondamente m o r t o . . . Mas, j á a synthese fecha o quarteto:
moveu coisa n e n h u m a . Não ti- Nesse romance introduzirá u m a «E abre por te acolher os seios de es-
n h a geito para a chicana e a- novidade de g r a n d e alcance, qual meralda !» Quem ? Ambas — a onda
e a houri. «Os seios de esmeralda»
'bandonou o anel de r u b i (que seja a de s u p p r i m i r todos os do mar — perfeito logar commum —
nunca usou no dedo, aliás). pedaços que o leitor pula. Par- assume consistência de expressão le-
Fez-se fazendeiro. Gramou ca- gitima, porque «a onda é como u m a
ticularidades : não faz nem en- houri de Stambul...»
t e a 4.200 a arroba e feijão a tende de versos, nem tentou o «E se arqueia e soluça e desfolha a
4.000 o alqueire. raid a Buenos Aires. a grinalda de espumas e eoraes !»
Convenceu-se a tempo que isso Phvsico : lindo !» E' ainda a onda com attributos de
mulher.
Coração, vae, como um marinheiro
que se exila.
Os nossos «Borrascas? Nem signal! Céu a z u l !
Céu azul !»
Quanta significação neste extranho
verso ! Attico, apenas ostenta os ele-
Os sonetos de ADOLPHO ARAÚJO mentos essenciaes .da phrase. Uma
-só palavra para interrogar. Para res-
ponder, simples exclamações. E tudo,
CORAÇÃO EXILADO profundamente expressivo. E' como
velho marujo que interroga o espaço
Vae; coração, levanta as âncoras ! Desfralda e a si mesmo responde, em sua l i n -
As velas ! A onda como u m a houri de Stambul, guagem pittoresca e forte. Evoca u-
Molle se embala e ri, num requebro taful ma scena dramática.
E abre 1 por te acolher os seios de esmeralda !
Em seguida, expediente rhetorico,
E se arqueia e soluça e desfolha a grinalda um verso que se repete, invertido, .
De espumas e eoraes ! Vae, marinheiro exul ! com extraordinário effeito", trasbor-
Borrascas ? Nem signal ! Céu azul, céu a z u l ! dando do segundo quarteto para se
O ar é leve, o m a r é manso, o sol escalda... engastar nos tercetos:

O sol escalda, o m a r è manso, o ar é leve «O ar é leve, o m a r é manso, o sol


E a branca multidão das gaivotas descreve escalda...
G-yros em pós a náu que bem longe passou... O sol escalda, o' mar é manso, o ar
ó leve...»
^ V a e , coração, sem temer maus presagios,
Pois que não pode, emfim, receiar os naufrágios E como conclue o soneto ? ,
Quem, tanta vez no mar da vida naufragou ! Com u m a das mais arrojadas e mais -
bem acabadas imagens que se conhe-
Raros sonetos em, língua portugue- Impressionismo ? cem. Compara-se o coração com o
za se comparam a «Coração exilado», Poesia e eloqüência. Poesia, pelo próprio coração, em dois aspectos di-
de Adolpho Araújo. enoant'o da sensação que provoca; e- versos: — o que naufragou na vida e
Se ha inspiração, se é possível pos- loquenoia, pela força expressiva da o que — marinheiro que se exila —
suir-se um poeta do seu thema, de phrase. Os termos não são apenas não teme naufrágios. Um bellissimo
modo t a l que a poesia delle saia em precisos. Com a exacçâo do sentido, contraste, que se resolve, confinado
bloco, vigorosa e perfeita, animada e trazem acima delle u m complexo de dentro de u m a comparação... unila-
palpitante, eis aqui o exemplo. E ' associações e significações secunda- teral, cujo segundo termo não existe.
o inspirado -quem fala. O homem rias. São palavras especiosas, a que
que raciocina desappareoe. Encarna- o uso das multidões empresta u m a
se o propheta, de intuições súbitas, alma. Vejam-se: — «exilado», «cora-
revelações inconscientes. Não pensa, ção», «espumas», «âncoras», «esme- «Coração exilado» consagra u m poe-
imagina. Não raciocina, fala. E o seu ralda», «gaivota», «presagio» ... Pa- ta. Mas Adolpho - Araújo produziu
falar surprehende e maravilha, pelo drões cie poesia, chaves de eloqüência. também outros versos de'valor. As-
inesperado da phrase, pelo grandioso Magújas, dir-se-ia basta pronuncial- sim, os seguintes sonetos:
da imagem, peia eloqüência da pala- as... Longe, porém, de chavões, pois
vra, que luz e reverbéra. que falam intensamente. *
Mas, não fala, canta; nem diz por- - (*) Adolpho Araújo, natural do Sul
que apenas suggere. Não completa «Vae, coração, levanta as âncoras ! de Minas, cursou a Faculdade de Di-
as idéias. Elias se entresacham, en- Desfralda as velas !» reito de S. Paulo, onde se formou. Mi-
graxadas no mesmo fio, enbrozadas Coração que levanta as âncoras e litou na imprensa e fundou «AGazeta.
na mesma engrenagem. E' a arte de desfralda as velas é marujo que na- Eoi tido como dos melhores 'pole-
não dizer, de p a r a r a tempo e de pro- vega, com esperança de porto e sal- mistas de São Paulo. Morreu ha pou-
seguir sem voltar atraz. vamento. E ' como u m marinheiro. cos annos, sem deixar livro.
20 A NOVELLA SEMANAL

MODELO ALMA NOVA


E' boa B linda, e mais que linda e boa, Voltas de novo oom teu gesto amigo,
Nobre. A oorôa augusta das princesas Desafogando as nevoas de m i n h ' a l m a ;
Doura-lhe a fronte ao lado da coroa E a alacridade, o goso, o riso, a calma
Que provém das olympioas bellezas. Voltam de novo, par a par oorntigo.
Nobre . . . Não da nobreza que se cô» Bemdito sejas, astro que eri bemdigo;
E m veias d'ouro, n a opulencia presas, Pois me trazes do amor a mesma palma
Mas dessas puras, clássicas nobrezas, E o mesmo puro affecto, que se espalma
Cuja fama nos séculos ecoa. Dentro em meu peito, de teu nome abrigo.

Mas se- ella tanto é boa quanto bella Bemdita sejas, Luz astral,do riso,
E si ella é tanto quanto bella nobre, I m m o r t a l projecção do paraíso,
Sua nobreza cresce mais, quando ella Que transformas m i n h ' a l m a em céu aberto;
A sua alma puríssima descobre Que, como a flor na neve desabrocha,
E manda-me um sorriso da janella, Mettes um ninho dentro duma rooha
Como esmola que cae nas mãos dum pobre. E rasgas um jardim sobre u m deserto.

ALMA GÊMEA SENHORA


Seja fidalga ou simplesmente seja Mandae, emfim, senhora, que eu prometta
Plebéia vil; puríssima on devassa, Ser cavalheiro fino, lesto e brando ;
A sua sombra lubrica me beija, Seguir-vos-ei, captivo ao vosso mando,
Seu espirito cândido me abraça. Como u m planeta segue outro planeta.
Louco, sigo-a nos ares sem que a veja, E se a etiqueta impõe, preceituando,
E vejo-a, sem que a siga, quando passa Andar de luvas e casaca preta,
Num ruflo do azas de veloznarceja, Eu sou, senhora, escravo da etiqueta :
Cheia de timidez, cheia de graça. De luvas pretas e casaca eu ando.
Si é creatura nobre, creatura Serei modelo puro na calçada,
Nobre serei, pois quero ser, como ella, Mais brando, puro, lesto e prazenteiro—
De altiva raça, de ascendência p u r a . Que um cavalheiro nobre de embaixada ;
Mas, se em logar de aristocrata e nobre, E, em vos saudando de manha, primeiro
E' pobre e simples, sendo assim tão bella, Oscularei a vossa mão nevada,
E u quero ser também simples e pobre. Como compete a um nobre cavalheiro.

II

dineiro Timotheo», além de «O drama Vianna, collooa-se ao lado deste, oom*

LEITÜ da geada», pagina de effeito.


Em resumo, o autor de «Urupês»
offercceu ao publico um" bello livri-
nho. que vem augmentar a sua gran.
pletando-se ambos. Ao estudo histo-
rico-social das nossas populações, trou-
xe a inapreciavel contribuição philo-
logica, portadora de esclarecimentos
de nomeada como contista brasileiro. também históricos e sociaes.
«O dialecto caipira», além do copiosO'
repositório de expressões e termos
C01VA'RA — Gastão Cruls — Ed. consagrados pelo uso em São Paulo,
Livraria Castilhos — Rio, 1920. encerra o seu estudo summario, posi-
NEGRINHA — Monteiro Lobato — «Coivára», de Gastão Cruls, é um li- tivo e esclarecido, que projecta uma
Ed. da «Revista do Brasil» — S. Pau- vro de grande valor, que injustamen- luz nova sobre as nossas investigações
lo, 1920. te tem sido esquecido pela critica. O lingüísticas. Representa um caminho-
Monteiro Lobato publicou, sob o autor se revela um narrador, de^ex- novo, que se vem de abrir e que ha
titulo «Negrinha», u m a nova Berie de cepcionaes qualidades, ás quaes dá de ser pisado e repisado.
contos, dos quaes o primeiro dà nome largas em meia dúzia de contos, que
ao livro. Nelle ha de tudo, desde o se lêm com todo o interesse. J á ao nosso estylista não bastará —
sentimentalismo da pretinha que nun- «O nocturno n.o 13», «A noiva de depois de publicado este livro — ir
ca vira uma boneca e morre depois Oscar Wilde», «Noites brancas», «O ca- buscar aos clássicos da língua os en-
que a vê, até o ridículo estardalhante çador de pacas», «A morte do sacy» sinamentos do bem falar vernáculo.
de u m gramrnatico, victima de u m são trabalhos de invulgar mérito. Quem pretenda escrever com arte e
pronome mal collocado. Entre esses vida, com expressão e vigor, ha de
extremos, ha um logar 'para o pathe- agora, compulsando os mestres, cote-
tico e para o h o r r í v e l : — u m retiran- DIALECTO CAIPIRA — Amadeu jal-os com esse grande mestre rústico
te do Ceará, veterano do Paraguay, Amaral — Casa Editora «O livro» — que é o povo, de quem nos é dado o
cego e valetudinario, dá com os costa- São Paulo. código verbal. De facto, as tosca»
dos na Hospedaria dos Immigrantes Entre os livros de mór valia, ulti- phrases do vulgo, tocadas de toda a
de São Paulo, onde vem a reconhecer mamente publicados em São Paulo, sorte de contaminações e corruptelas,
com inaudita alegria o seu velho capi- figura «O dialecto caipira», de Ama- são u m inesgotável manancial de vida.
tão, que lhe restitue com a vista o deu Amaral. Livro de estudo serio, força e belleza, que só esperam o lo-
prazer de contemplar a filha, que * destaca-se entre os mais como traba- pidario que as trabalhe inteligente-
deixara no Ceará, para onde volta lho aturado, methodico e constante, mente, dando-lhes visos de cultura,
«nadando em felicidade»; e u m preto que não se faz n u m dia, mas em an- rutillações de jóia acabada, para 89
que, deitando olhos pouco respeitado- nos ; como observação sagaz e intel- engastarem, no phrasear urbano e
res á sra. fazendeira, é assado â or- ligente, fructo de leitura e reflexão ; letrado.
dem do sr., que assim pode offererer como, emfirn, a primeira tentativa de Quanto effeito de luz e de arte não
à mulher, todos os dias, um prato de coordenação dos elementos do falar tirará o artista daquelle barro bruto ?
«bugiu moqueado . . .» vulgar para comprehensão da historia O estylo se enriquecerá soberbamente
Como se vS, «Negrinha» é um livro da língua em nosso meio, tanto quan- e a lingua se plasticisará considera-
para todos os palaãares, dos mais fi- to da comprehensão da a-lma do povo. velmente. Aos nossos escriptores e
nos aos mais gastos, que exigem con- Assim, «O dialecto caipira», appare- poetas «O dialecto caipira» presta um
dimentos poderosos. cido quasi ao mesmo tempo que «Po- relevante serviço : — filiar a lingua
Ha nelle ainda uma jóia — «O jar- pulações meridionaes», de Oliveira vulgar ao perfeito vernáculo.
l ^ D I Ç O ^ S r>A.'

AMADEU AMARAL F. T. DE SOUZA REIS . i


A Pulseira de Ferro (novella), 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
Um soneto, de Bilac (critica) , 2$000
WALDEMAR FERREIRA
MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante . . . . . . 8$000
Os Negros (novella) . . . 1$000 Estudos de Direito'Commercial . . . . 10$0()0
A Hypotheca Naval no Brasil 3|Ò00
LÉO VAZ i

Ritinha (novella) . . . . •. No prelo AUCTORES DIVERSOS


O qüe todo o commerciante precisa saber
GUSTAVO BARROSO
(10.° milheiro) . • . 2$00D
Mula sem cabeça (novella) No prelo Almanach.Commercial Brasileiro de 1918 6$000
A. DE SAMPAIO DORIA NICOLAU ATHANASSOF
Os Suínos, manual do criador de porcos
O-que o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) 31000

OS PEDIDOS DO INTERIOR'DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

< S O O I B Í J 3 À I > E > E D I T O R A O X y E X ^ A í í r O R I B E I R O


l e t i e i . D a ? . A.1 4 3 =C a i x a r»osteil l l í r a = «S.A.O PAUIvO

EDIÇÕES D A
tt
vista do Brasil,,
Broch. Encad. - Brooh. Encád.
NEGRINHA, xontos por Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pelo
URUPÉS, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4$0Q0 5$000.
bato, õ.a edição . . . . . . . 4$000 5$000 . MADAME POMMERY, íomance
CIDADES MORTAS, contos por satyrico, por Hilário -Tácito. . 4$000 ' ^~ ,
Monteiro Lobato, 2.a edição . . 4$000 5$000 BRASIL COM S OU COM Z, por
IDÈAS DE JECA TATU, critica F. Assis Cintra 3$000 —
por Monteiro Lobato, 2.a edição 4$000 5$000 VIDA .OCIOSA, romance por Go-
NARIZINHO ARREBITADO, li- dofredo Rangel 4$000 5$000
, yró. de historias para crianças, , OS CABOCLOS, contos por Val-
por Monteiro Lobato . . . . 3$500 domiro Silveira 4$000 5$00Ò
POPULAÇÕES MERIDIONAES HISTORIAS DA NOSSA HISTO-
DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato Corrêa . . . 3$500 4$500
gia por F. /. Oliveira Vianna . 8$000, 10$000 . ESPHINGES, versos de Francisco.
PROFESSOR JEREMIAS, por Léo Julia 5$000 —'.'.
Vaz, 3.a. edição . . . . . . . 4$000 5$000 S C E N A S E PAISAGENS DA MI-
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires 5$000 —
reto 2$000 — CASA DE MARIBONDO, contos,
LIVRO DE HORAS DE SOROR João do Norte. . . . . . . 3$000 ' —
DOLOROSA, poesias por Gui- PAIZ DE OURO E ESMERALDA,
lherme de Almeida 5$000 — romance, J. A. Nogueira . . . . 4$000- —
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição . . ., . 3$000 4$000 M A I S 10 0/Q p A R A 0 poRTE

P e d i d o s a o s E d i t o r e s : M On t e i r o L o b a t o (£L C , caixa 2-A - s. PAULO


A NOVELLA NACIONAL
'Volumes publicados: .
A. NOVELLA NACIONAL ó uma A Pulseira d e Ferro por
série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : offerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação *'W no gênero uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato •prima,, — disse desta novella o grande
possível. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é clirector o gr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n b a por LEO YAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do : 'Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
- Apparece approximadamente um vo- literário da actualiclade, alcançando três-
lume por mez, com. cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato Itj >/2 X 12 </2 centí- M \ i l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de • auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e .apreciadas.
OS N E G R O S

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelío Pires e outros.
Cada volume LfOOO em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado lf300.
Assignaturas com direito
a receber'todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3$500; série de seis no- „»sr-
vellas 7|000; série de
doze novellas 14f000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr» Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SA0 PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Oleprio Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — Lá, foges, acoijy.íhou-me um, t-fc
ANNÔ I --SSCTKTOLO, 9 DÊ MAIO DÊ 1021 NUMÊRÓ 2

ANOVEIXA
SEMAJVAL

30C.EDTTORA OLEGARIQKroEIRO-Rre^
A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AS SEGUNDAS-FEIRAS
Para os 30 milhões de "brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido-as me-
dos.os analphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collccções
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesonro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num circulo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extracçao no
cioso : o livro não se. diifimde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se diffunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares, e em publicações periódicas
nas dé milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auotor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem- esse reclame, muitos provavel-
paiz, snggeriu a iniciativa da creação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa, um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações "precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a. todos, som rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel p,ela escrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo anbtor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
I tistica confecção de cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que um abundante repositório de infor-
dos os meios para o diffundir em todo o território na- mações bibiiographicas. uma selocta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira,» e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
gramma. .
Não viveremos, porém, de alheia seiva. '"Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa.collaboração especial, de um punhado dos raais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as \antagens desta e daquelle: como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
. leitura leve c variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores oonheci-
apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos o desconhecidos, oonsji-grados õ estreantes,comtanto
le, a toda gente ; mas não será futil e de interesse c- uue taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phomero corrio ella : pelo fundo "— pela qualidade e pela feição d'A NOVEI.LA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gento.
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volumes, por serem esses os
gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
e creançys. senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
curiosos, pela totalidade, emflm, da população ledora, Todos os outros gêneros terão o sen logar no nosso
procurará, nos auctores a vida, a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de- tudo o só '
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. Não seria este o melhor meio de se editores, aos quaes, deseja servir e dos quaes ospera re-
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathico.
ahi, esquecida e " ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- Os EurroiíKS.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda ool- Aos leitores queiram nos auxiliar neste trabalho
laboi ação interessante para qualquer que. nos'enviem relações de auctores
das secçòes deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda parto : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seu nome, villas, povoações, estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, hotéis, clubs, bibliothecas, e t c ,
fereveni a sua collaboração. estando porisso organisando um ser-
viço de distribuição que será o mais
Importante
Os originaos devem ser eseriptos de Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em calligrapbia completo possivel, de sorte a não 'ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legível o de preferencia dactylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos adeantadamente a res-
grgphadws. não tenha, leitores o não seja encon- pectiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve ser trada á \enda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á. Sociedade Editora Olc- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
Lrurio Jí-ibeiro — Caixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços do livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores ele jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará interessar pela venda ou leitura des- sil, no valor de 20 o|o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para is«o os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, Anrto 20$000
indicações. alim de lhes poder divulgar a obra,
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . 5$000
lém disso uma noticia critica. fornecida, rogando a todos quantos Numero avulso $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - R. Dr. Abranches, 43 Caixa Postal, 1172 - Teleph.: Cidade, 5441-S.PAULO
ANNO I A N O V E L L A SEMANAL - São P a u l o , 9 de Maio r deI1921 NUMERO 2

O SUPER-HOMEM E O
"TROUXA" — Amadeu
SUMMARIO Monteiro Lobato - B. F .
Curiosidades literárias - Eu-
Amaral. clydes da Cunha no Peru.
O DESTACAMENTO - Vida literária - A moderna
Godofredo Rangei. orientação da novella.
T E R R A PROHIBIDA SUPPLEMENTO — A vida O s nossos poetas - Os ver-
F R U T A B R A V A —Afranio Oscar Lopes. anecdotica e pittoresca sos do Imperador.
Peixoto. dos grandes escriptores

O SUPER-HOMEM E O "fROUXA„
Júlio de Sá passou e repassou distraidamente o cção. Para mim a vida que merece ser vivida é a
guarda-napo sobre os beiços carnudos, distendi- vida ultra-movimentada: movimento incessante, em
dos num vago- sorriso tranquillo. O companheiro todos os sentidos; expansão física, expansão afecti-
de mesa, que ouvira calado a abundante narrati- va, expansão dos instintos, expansão do espirito;
va, aconchegou a gola erguida do sobretudo, e, viagens e lutas, paixões e negócios, prazeres, jo-
com uma voz cujo timbre e cuja toada diziam, go, carraspanas, arte,, mulheres, sport, tudo, e
antes e melhor que as palavras, a indole de uma tudo de pressa, sem parar em coisa alguma nem
filosofia, de resignação e de comodismo : em parte alguma.
— Mas isso cança, ó Júlio, não cança ? De to- — Então, é convicção t u a . . .
das essas aventuras, de todas essas idas e vindas, — Convicção, sim, senhor.
viagens, festas, pândegas e idilios, o que tens ti- , — Convicção, não, senhor. Dize que tu gostas,
rado, de certo, é a conclusão de que não ha como que o teu temperamento te leva por aí, que o
a gente viver na sua terra, com os s e u s . . . teu feitio dá para essa vida dispersiva e doida.
Convicção, é que não. Que diabo de convicção
Júlio de Sá cravou os olhos nos do comensal,
pode ser essa, ó Júlio! Tu confundes os ter-
carregando ó cenho.
mos... /
— Estás doido. Eu quero lá saber de socego! — Não confundo nada. O que estou é com a
Eu quero lá saber de calma, de paz, de vida me- boca seca. Este diabo de vinho . . . «Garçon»,mais
tódica ! Não nasci para isso, meu velho. meia garrafa de cerveja aqui para este senhor, e
E o outro, apertando com as mãos a gola do vê se me arranjas aí um «Bourgogne» gelado,
sobretudo, o guarda-chava entre os joelhos : mais decente do que essa coisa que me/deste ha
— Gostas então de uma vida desordenada e pouco. Digo-te que não confundo nada. Repito
áspera ? - que, se assim não vivesse por temperamento, vi-
— Quanto mais, melhor. A vida de carneiro veria assim por efeito de uma maneira minha de
não me tenta. A agitação é uma necessidade do encarar as coisas. Não sou um simples pratican-
meu temperamento. E mais,: é uma maneira por te, sou um teorista da vida superactiva. A exis-
que eu entendo, cá por umas idéias, que devo tência repousada, assente, dentro de um quadro
viver a minha vida, Se eu não fosse um exhube- prefixado, com principios gerais imutáveis e com
rante por natureza, seria um agitado por convi- um programa particular miudamente estabelecido,
22 A NOVELLA SEMANAL

é apenas um atentado contra a natureza. A vida E sabes que mais ? Vamos embora.
do homem não pode ser uma construção arqui- Júlio de Sá tomou o chapéu, e, acendendo um
tectonica,scom terreno escolhido a dedo, com charuto:
plantas matematicamente organizadas, com mate- — Vais para casa ? Pois vamos juntos. Eu não
riais conhecidos, com destinação certa. Toma no- vou a parte nenhuma. Talvez recolha também.
ta deste teorêma negativo : a nossa vida não é E os dois, braço dado, sairam da claridade e
uma construção. A nossa vida é apenas isto: vi- da tepidez do bar, mergulhando na cerração da
da — uma coisa cuja essência e cuj o sentido nos rua, ponteada de pequenos borrões de luz. Júlio
escapam,' que nos é superior, que nunca conse- de Sá, as mãos enfiadas nos bolsos, a bengala a
guiríamos abarcar nos limites da nossa conciência* emergir de um deles, encostada ao ombro, apoia-
.porque esta não lhe apreende senão umas pálidas va-se rudemente ao braço do companheiro pa-
faúlhas, nem subjugar á nossa vontade, que só é chorrento, e falava sempre, numa voz cada vez
forte quando se lhe submete a éla . . . mais pastosa:
Todos os princípios morais com que nós pen- — Tú não vives, meu caro Lucas, tíi não co-
samos dominar a matéria e o instinto se repar- nheces a vida . . .
tem em duas classes : ou são inerentes^á própria O outro tentou uma réplica. Não conhecia a
indole das coisas, e nesse caso não valia a pena vida que êle, Júlio, levava e exaltava, mas conhe-
gastar tanto tempo e tanto esforço em compen- cia-a por uma outra face, menos fascinadora tal-
diá-los, ou são puro artificio humano, inútil e vez, mas com certeza mais nobre. Era a vida
ridículo como a pretenção de um sujeito que fosse apagada, subterrânea e sofredora do maior nume-
pregar normas de movimento e de orientação ás ro, a vida feita de sacrifícios quotidianos, de
ondas do mar. De resto, nem podemos saber desejos contidos, de aspirações imoladas, de sonhos
quais são os princípios que existem na própria recalcados, de trabalho tenaz, absorvente, esma-
natureza e quais os que éla desconhece e rejeita. gador, opiniático, heróico . . .
Não ha normas de vidal Nenhuma norma. Nin- E sublinhava com o gesto o ultimo qualifica-
guém sabe se o santo- que passou pelo mundo tivo. Tinha a sua poesia, pois não tinha ? Mas o
empanturrado de virtudes, dizendo palavras de julio, feroz:
concórdia e de piedade, distribuindo benefícios — Poesia ! A poesia do Dever, hein ? Que raio
aos homens, não terá feito maior mal ao homem de poesia tu achas numa vida artificial, toda de
do que o bandido de alma opaca e de mãos mor- restricções duras, que te foi imposta sem discussão
tíferas..- Aquele que espalha esmolas e consola- nem consulta, e que assim acceitas e praticas ?
ções pode garantir e suavizar, a existência a al- A poesia da c a n g a . . , a poesia da polé . . .
guns que consideraria menos dignos dela; o que Gaguejando estas coisas, Julio sacudia pesada-
cria exaltações e represálias em torno( de si coo- mente o braço do amigo. E, num repelão forte,
pera para a formação de corações fortes, de almas que o levou de brusco á parede:
altivas, de energias indómitas. — E' isso que tu achas belo, meu pedaço d'asno ?
E, de pé, batendo no ombro do amigo es- O amigo pachorrento olhou-o na cara, insulta-
tar íecido : do, e fez o gesto de quem queria desvencilhar-se
— A vida é para ser vivida. Viva cada qual a e ir embora. Mas Julio de Sá reteve-o. Ora essa!
sua vida. A maior virtude que um homem Já não se podia brincar! Deixasse de tolices. A-
pode ambicionar é a de viver — amplamente, migos sempre . . .
desasbombradamente, sem restricções, sem liames, Agora Julio de Sá, com o chapéu atirado para
sem dobras, sem receios, deixando livre ao pró- a nuca, pendurava-se ao braço do camarada, res-
prio ser o máximo de expansão a que êle possa mungando desculpas entremeiadas de elogios e
atingir. Aí tens a minha moral, e aí tens o que de indirectas. Estava maçador, carinhoso e irri-
eu faço: vivo, num esforço contínuo, numa con- tante. Sucumbido sob a dura prova, Lucas ia e
tínua agitação, sempre fremente, inquieto e ane- vinha, aos boléus, jungido ao braço pesado do
lante, sempre envolto na maravilhosa nuvem das boêmio, ao longo da interminável rua deserta.
sensações que me mandam os sentidos hipereste- Passou um carro. Lucas meteu-se nele com o im-
ziados, tudo vendo, tudo palpando, tudo experi- portuno, resignado a.sofrê-lo até que o largasse
mentando. Vivo, numa palavra, durante o meu em casa. Abandoná-lo não podia, não seria de-
fugitivo minuto de existência, a própria vida cente. Tinha de ser naquela hora o seu arrimo;
eterna, magnífica e indecifrável do universo. — era o seu protector forçado. O super-homem de-
A NOVELLA SEMANAL 23

pendia, naquele momento, do seu sacrifício; sem para por cobro áquelles desmandos. Toniqui-
este, talvez tivesse de dormir na rua, como um nho, porém, humillimo boticário de natural pouco
beberrão vulgar, ou num posto de policia. bellicoso, magricela, vozinha habitualmente cho-
Aos solavancos do carro, sob. o ar frio que rosa, explicava aos encanecidos vereadores:
zunia na coberta, Julio espalhou-se molemente — Se autuo o Bahiano, elle é capaz de me
nas almofadas, as pálpebras descidas sobre os matar 1
olhos mortiços. E quando chegaram á casa, saltou — Basta prendel-o correcionalmente por alguns
sósinho, quasi firme, e bateu. Uma luz amarela dias; insinuavam-lhe.
veju de dentro, por baixo da porta, sobre a so- Crescia a difficuldade. Nem pensar em tal 1
leira. Em seguida silenciosamente, a porta abriu- O caso, como se vê, punha-o em aperturas. Se
se, e apareceu o vulto de uma velhinha, vagamente os amigos do directorio o não coagissem à ser-
lambido pelo clarão, alongando de sob o chaile vir, Toniquinho já se teria demittido do cargo
traçado o braço que sustentava o lampião caseiro.
policial. <
Sorria, curvada e trêmula, na longa resignação de
A Câmara, entretanto, »não cedia. Muitas vezes,
um velho sacrifício. Era a mãe do notivago.
tomando a iniciativa, ella própria mandava inti-
Mas havia no seu semblante e na sua voz um
mar o Bahiano, em nome do sub-delegado. Avi-
vago e suave resentimento. Julio, como quem está
savam a este com a antecedência necessária, re- ,;
acostumado, não lh'o percebeu. Percebeu-o e com-
commendando:
prehendeu-o vivamente o Lucas, que com enfado
se atirou para o fundo do carro, depois de uma — Passe-lhe umà descalçadeira enérgica; e, se
despedida apressada. o pilhar de geito, zás 1 tranque-o na despensa.
Depois mande-o para a cadeia.
— Adeus, ó, super-homem!
— Adeus, ó trouxa! Medita no que eu te disse, Merecia este nome pomposo, o gallinheiro do
mastigou Julio de Sá^, cuspinhando grosso. padre.
De dentro do carro, numa volta, Lucas ainda Quando o Bahiano acudia á intimação e surgia
viu o filósofo, com um pé na soleira, a acender á porta da botica com o cano da garrucha es-
pachorrentamente um cigarro sobre a chaminé piando sob a aba do paletó, o capitão Toni-
do lampião, que a velhinha lhe baixara á altura quinho (capitão da Guarda), tremendo, fazia-o en-
do nariz. trar para a sala de visitas; tratava-o com toda a
AMADEU AMARAL attenção, mandando buscar café; e conversava
(Da Academia Brasileira)
com voz de mel sobre tudo, menos sobre o ver-
dadeiro motivo da citação. O Bahiano, por signal
começou a tomar-lhe certa amizade; um dia ou
outro elle trazia da roça um frango ou um girivá
e ás vezes chegava a pedir-lhe uns cobres em-
prestados. ,
Nesses dias, o que mais incommodàva Toni-
quinho, era a sanha de sua metade contra o va-
O DESTACAMENTO lentão. Siá Candola era guerreira no trabalho;
Quasi todo o domingo o Bahiano turbava o so- ninguém soccava mais depressa uma pillãozada de
cego das Três Barras esbordoando sua compa- arroz, ot£ mais depressa lavava e batia uma trouxa
nheira, a Rufina. A boda era desenvolta, dava de roupa; o reverso da medalha, porém, era seu
corda ao primeiro que encontrasse; e como o gênio explosivo; esgalgada, pelle em gelhas, de-
Bahiano não era cego e havia deliberado casar dos aduncos, olhos agudos de ave de rapina, re-
com ella brevemente, esmerava-se em trazer sem- tratava exteriormente a fúria que internamente
pre limpa a sua honra; lavava-a como podia, a era. Ai do Toniquinho se desattendesse 1 Na vi-
eachação, a porrete, e com isso se tornara o ter- zinhança, que ella trazia em pânico, tinha sempre
ror ao pacatíssimo arraialete mineiro, ao qual se em andamento sua meia dúzia de pendências; e
antolhava com a temibilidade de um famigerado era mais que certo que todas acabariam em unha-
facínora. A Câmara, a summa potência local, em da velha.
conseqüência de suas terrificantes façanhas, reu- Ella, em verdade, é que era subdelegada alli.
nia-se ás vezes extraordinariamente e fazia pres- A inércia do Toniquinho em relação ao Bahiano
são no sub-delegado, o Toniquinho da Candola, valia-lhe tremendas descomposturas.
24 A NOVELLA SEMANAL

— Ah 1 se fosse eu ! gritava ella. Havia de en- de mysterios de uma religião. Os pulmões pa-
sinar 1 Nasci para ser homem! ravam de arfar, as boccas se abriam, os olhos
E, se acaso lidava com arroz, brandia amea- não se fartavam de pasmar, emquanto lentos e
çadoramente a mão de pilão sobre a cabeça do graves os senadores acariciavam as barbas inter-
inerme Toniquinho, para reforçar as suas pa- mináveis.
lavras. Explicava-se por essa forma o considerável pres-
Por ultimo, quando o Bahiano lá estava, era tigio de que gosava a edilidade em Três Barras.
precisa toda a vigilância do marido para evi- Ultimamente havia uma nota dissonante, que amea-
tar algum despropósito da mulher, que bufava çava tornar-se para esse prestigio a eiva do ce-
na cozinha, querendo investir para aquelle com a lebre vaso trincado. Nos derradeiros mezes an-
sua maça de combate. Toniquinho supplicava-lhe dava na ordem do dia de todas as sessões, um
agonisado, em tremuras: projecto que mandava entupir no pasto de um
— Oli! Candola... Veja, Candola... Candolinha! dos vereadores, o Manoelzinho Junqueiro, certo
rego rasgado de má fé, para onde fugiam águas
Toda a paciência tem limites. Por vezes, ante
dos terrenos dp agente executivo. O dono do
a insistência dos camaristas, Toniquinho. tão cal-
rego recalcitrava, chegando ás vezes a erguer as-
mo, exasperava-se e mostrava o punho para longe:
peramente a voz contra os companheiros, no re-
— A culpa tem esse governo, que não manda
cinto, em risco de fazer-se impopular. Os outros
as praças! Juro que, emquanto não vierem, não
emittiam opinião em longas reticências desfavo-
mexerei mais com uma palha!
ráveis ao Manoelzinho, e em olhares irresolutos,
Havia tempos, o directorio fizera pedido d'um
sem atrever-se a approvar o projecto, cuja vota-
destacamento, sem obter solução.
ção era sempre protelada. Em muitas sessões até
E Toniquinho da Candola começou a mostrar-se nada se falava a respeito; em sua eterna irreso-
tão exaltado, tão enérgico pela primeira vez em lução, limitavam-se os camaristas a olhar para Ma-
sua vida, falando contra o governo, contra "essa noelzinho, ao passo que Manoelzinho fincava os
súcia de comedores", que os políticos o admoes- olhos no tecto, furioso, entrincheirado em sua pir-
tavam em particular: raça, dando a entender que não cederia uma li-
— Toniquinho, você não faz bem em falar as- nha. Debalde a expressão angustiosa de toda a
sim. Ha tanta gente linguaruda que gosta de in- assistência lhe dizia sem palavras: "Manda entu-
trigar 1 O governo pode vir a saber. pir o rego! Ora, manda, Manoelzinho 1" elle fin-
. — Não me importa! que saiba! gia não comprehender; e désfarte, permanecendo,
/ Um bello dia a Câmara resolveu reunir-se para a causa da discórdia, reinava constrangimento nas
reiterar o pedido das praças. A concurrencia, co. ultimas sessões. Ao casmurro, já o alcunhavam,
mo era de esperar, foi enorme, pois, sempre que pelas costas, de Manoelzinho do Rego; por si-
havia sessão, os tresbarrenses affluiam ao prédio gnal que elle damnou ao sabel-o.
da municipalidade, acotovelando-se, disputando lo-
gares, nunca saciados de ver o impressionador es_ Quando a Câmara se reuniu para tratar nova-
pectaculo dos camaristas, reunidos. E, na ver- mente da vinda das praças, o germen da discór-
dade, como testemunha ocular, garanto-lhes que dia tomou vulto, porque Manoelzinho dissentiu
era justificada a concurrencia. Apenas quem nun- vehemente, com palavras acerbas contra o subde"
ca assistiu a uma sessão em Três Barras, não legado, que era todo dos outros camaristas. Como
sabe o que é solennidade. Fazia correr arrepios embirrava com o negocio do rego, embirrava se-
pelo espinhaço do observador. Os" vereadores melhantemente agora com o caso das praças, re-
eram velhos, austeros, olhar mysterioso e profun- cusando de antemão sua assignatura a tudo que
do. Quem os visse em volta da comprida mesa> com elle entendesse. Essa attitude inesperada,
graves, silenciosos, acariciando com gestos lentos causou sorpresa e alarme; teceram-se infindas
as longas barbas brancas, tinha a impressão de conjecturas sobre o que poderia motival-a, pro-
achar-se no senado romano. O silencio, enorme, palando-se que na política local se tramava ás es-
pesava no recinto como a paz tumular. Nenhum condidas um principio de dissidência. Soube-se
falava, e não ser raramente, uma voz sussurrante, mais tarde que era medo de soldado, o pueril ter-
que lembrava a do sacerdote ao altar. A voz so- ror que a farda inspira a todo o mineiro de bi-
lenne do presidente abrindo a sessão, o tinir da bocas arredias da civilisação. Nisto os outros ve-
campainha, a leitura da acta, transpoitavam o es- readores se mostravam mais progredidos, porque,
pectador, como se fossem o ritual augusto e< cheio quanto ao pedido das praças, malharam de rijo,
A NOVELLA SEMANAL 25

resolvendo, nessa sessão e ulteriores realizadas nal. Tudo' debalde ! O povo não assentava a ca-
com o mesmo fito, dirigir petições sobre petições beça, e a deserção se fazia mais sensível de do-
ao governo, reforçando d primeiro pedido. E mingo para domingo. Datava dessa época sua
tanto se implorou, insistiu, exigiu, foram taes as ligação política com o Manoelzinho, a quem ia
supplicas e empenhos, que, porfim, numa bella ver freqüentemente, tendo com elle infindáveis
manhan, desembarcou o destacamento, entre o conciliabulos, conservados em sigillo hermético.
pânico de uns e regozijo de outros, na estação Com o divorcio da Egreja, a Câmara tremia
do modesto íogarejo. em seus alicerces; todavia, não dava o braço a
O acontecimento deu brado. Manoelzinho do torcer, confiante na victoria. O destacamento
Rego, vergonhosamente derrotado, retirou-se fu- afinal, era seu, como também o era o subdele-
rioso para sua fazenda. Dessa data em deante do Toniquitihò.
embirrou em não apparecer mais em Três Bar-
Toniquinho ? Não... Esse agora não erá de nin-
ras. Apenas se abalava para cabalar votos nas
guém. Não sahia mais de casa, somente entre-
cetcanias, tramando uma insidiosa dissidência. O
visto confusamente no fujido da botica, fazendo-
- patriotismo local, ao contrario, rejubilava, acceso
se de atarefado, a aviar receitas imaginárias. Dis-
em legitimo orgulho pelo melhoramento adqui-
farçava d'este modo o terror que lhe inspirava a
rido. Quando o destacamento em peso, um cabo
má catadura do cabo commandante. Também o
e duas praças, carabinas ao hombro, passo mar-
modo sacudido com que cada manhã o bruta-
cial, atravessou o povoado, olhares derretidos em
montes lhe dizia, rigidamente perfilado, renteado
pasmo pousavam-se sobre elles, acompanhando-os
com a mão a pala do boné: '-'Sr. capitão, com-
até aonde a vista alcançava, como presos á trajec-
munico a vossuria que não houve novidade 1"
toria de um meteoro raro e miraculoso.
PVó diabo 1 Toniquinho, o imbelle Toniquinho,
Com essa numerosa milícia, todos se sentiam não queria saber de nada d'isso. Deixassem-n'o'
garantidos e fortes. Ao menor bate-bocca, ex- viver obscuramente em companhia de suas pacificas
clamavam os eontendores: "Hoje você ha de dor- pilulas, poiá não tinha velleidades de mando. Não
mir no pau !". E com essa perspectiva, os ag-> succedia o mesmo com siá Candola, sua terri;
gravos se desaggravavam sem rixas, o punho le- veí metade; sentia-se agora poderosa, invencível,
vantado para esmurrar não abria o angulo amea- resuscitava rixas velhas, encruecia as novas, tra-
çador do braço, contente cada qual com roncar zendo pânico á vizinhança dos quatro lados. Um
em voz sinistra: "Hum I você já me conhece!" panno que voava para lá, um frango que passava
E as próprias línguas taramelavam menos. Valia- a cerca, não precisava mais para que ella, esque-
se o patrão dessa considerável força, para exigir cendo o pilão e a barrela, mettesse a mão á ilhar-
submissão do empregado e a sogra sonhava noites ga e descompuzesse céos e terras, com vocabu-
a fio, com o genro preso e algemado. O pró- lário adequado, a imagem feliz, a elocução fluente,
prio nivel das conversações se elevava; os que e encorpada de timbre, todo esse primor de per-
eram seu poucochinho eruditos, traziam á baila feição que apenas sabe proferir a bocca das co-
as guerras celebres da Historia, rememorando Na- madres litigiosas que já teem, na fé de officio,
polèão, Alexandre e as façanhas dos Doze Pares um longo tirocinio de rusgas.
de França.
Quanto ao vigário, esse implicou. Padre Gan-
queiro era um cincoentão rubicundo, sujeito a fre- Chegara, afinal, o dia do Bahiano. Num do-
nesis, amante de proferir sermões terroristas, em mingo, em pleno largo, espancara novamente a
que fazia horrendas descripções das tachas infer- amasia. Fora o caso, que na véspera elle a pi-
naes. Suas fúrias rhetoricas traziam cada domingo lhara com um fula de quem já tinha velhas des-
á missa numeroso rebanho de fieis. Três Barras confianças. Machucara-a bastante "no sufragante",
era o que se podia chamar nm povoado devoto. e já haviam feito as pazes; mas, no outro' dia,
Pois não é que com a chegada das praças rarea- entre os fumos retroactivos de uma cabreuva
vam os freqüentadores da egreja ? Todo o mundo "braba", preparada com restilho, relembrava a of-
andava com a cabeça no ar, esquecido de Deuse fensa recente, mal perdoada, e segundava a surra,
das obrigações de maior monta. Por isso, padre descendo-lhe o guatambú purificador. A noticia
Ganqueiro desatinou. Poz-se a berrar ao púlpito correu num átimo e o povo affluiu ao largo, para
barbaridades contra a republica e contra o casa- saborear as conseqüências. Emquanto o pau can-
mento civil, apregoando, em fúria apocalyptica, tava, centenas de olhos inquiriram a rua do quar-
para mtiito breve, o fim do mundo e^ojuizo Fi- tel á espera das praças.
26 A NOVELLA SEMANAL

Súbito houve reboliço. E' que apontara ao lon — Ora não me arrelie, sô coisa 1
ge a farda de um soldado. Vinha ás pressas, teso E, ao dizer isso, Bahiano vi rou-se para elle com
no seu uniforme de dolman vermelho e calças catadura ameaçadora.
brancas, refle no boldrié, os braços para deante O soldado amuou. Metteu o refle na bainha
e para traz. Chegara um pouco tarde, pois o ca- e, sem dizer palavra, voltou-lhe as costas, altiva-
boclo já descansava o pau, tendo posto a honra mente, tomando o rumo do quartel.
limpa e a Rufina contusa e ensangüentada. Mes-
O povo, electrizado, aguardava os acontecimen-
mo tarde, era ainda de admirar que viesse, por
tos. Cruzavam-se commentarios:
não ser pequena proeza atrever-se alguém a levar
— Foi buscar reforço, opinava um.
a noticia ao cabo commandante. Ao vel-o sen-
i— Esqueceu-se da carabina, dizia outro.
tado na calçada do quartel, com o olhar carre-
— Que o cabra é chegador.
gado, a pulir a monstruosa carabina, os que ti-
nham como trajecto forçado aquelle trecho de rua, — Não foi por medo, isso não!
passavam de largo, no andar apressado de quem Entrementes, rebocando a amasia aos repellões,
arrisca. Pois houve um decidido o Zé Cotia, pa- Bahiano seguia a estrada da fazenda. João e a
nelleiro; foi dar parte, resoluto, gritando, de uma outra praça, em marcha accelerada, foram topal-o
certa distancia ao commandante: já para fora do povoado. Numerosa chusma acom-
— Sô cabo, ha um guaiú lá no largo! panhava-os, ao passo que os tresbarrenses • mais
O cabo encarou-o com expressão severa: precavidos fechavam as janellas, de receio dos
tiros.
— Você não estará contando rodela ? Veja lá 1
— Esteje preso 1 conclamaram as praças _ fazen-
— Juro pela alma do defunto meu pae, afiançou
do alto.
o Zé Cotia.
— Ora deixem de arrelia, que eu não tou bãol
Então, mal humorado, o commandante ordenou
e o Bahiano cocou o cabo da garrucha.
a um dos subalternos que ouvira a parte:
— O' João, vá ver que estrumela é essa. A policia, affrontada, fez meia volta, retomando
E como o panelleiro se fosse pisando: o caminho do quartel.
— Você, alto ahi! Vá com a praça mostrar o O povo ao principio ficou pasmado, como quem
logar. não comprehende; porfim alguém murmurou;
O soldado apertou o cinturão e abalou com o "E' medo 1" A essas palavras quebrou-se o en-
mensageiro. Vendo-se em tão temerosa compa- canto e abriu-se a válvula aos commentarios pe-
nhia, Zé Cotia tremia por si próprio; mas dep i s jorativos. A farda começava a perder o seu pre"
de vencido um pedaço de caminho, como nada stigio. Um sussurro de descontentamento escol-
lhe succedia de alarmante, e tranqüilizado pela tou as praças em todo o percurso da volta, fa-
affabilidade do João, que se mostrava de boas zendo-lhes errar o passo. No quartel o cabo com-
avenças, chegando a tirar com elle Zé um dedo mandante estrilou com os subalternos, chamando-
de prosa, seu terror transformou-se em nobre or- lhes a Vergonha da farda e ameaçando recolhel-os
gulho ; media o passo pelo do soldado, copiando- ao batalhão. E a fraquejar infernalmente resol-
lhe o entono marcial; e se encontrava um conhe- veu-se a acompanhal-as.,
cido, olhava-o sobranceiro, sem cumprimentar. Restituiu-se ao povo uma parte de sua confian-
E assim alcançaram o largo. ça, quando o destacamento em peso apontou na
O policia avançou para o Bahiano, no meio da extremidade da rua. Infelizmente já não era a
expectativa anciosa do povo. passagem triumphal do costume; mas as dimen-
— Esteje preso 1 disse. sões formidáveis das carabinas, e o reluzir das
O caboclo botou-lhe de travez um olho enfe- bayonetas caladas, reduziam os commentarios ma-
zado. lignos. Onde o borborinho de descontentamento
— Quem é que está preso? era maior, o cabo carregou o kepi na testa, com
— Não se faça de besta 1 E' você mesmo! re. um ar terrível, o que, em verdade, foi água na
trucou o João desembainhando o espadim. fervura. t
Como única resposta, Bahiano volveu-se para a Quando distancearam os curiosos, o comman-
Rufina: dante repetiu suas invectivas contra a cobardia
— Pega na trouxa e bamo s'imbora. das praças; e com brios "estornados", repisava a
.— Bamo s'imbora é uma conversa! tornou a estribilho: '
praça. Então resiste á prisão? — Vivo ou morto, havemos de trazer o homem.
A NOVELLA SEMANAL 27

Aqui é preciso salvar o prestigio da farda ou O bebedo, mal desperto, ria e babava, sem fa-
morrer. lar, mal podendo abrir os olhos, que acabavam
E com isso, fora do povoado, iam vencendo es- exactamente de sahir debaixo da tenda.
trada, no encalço do criminoso. Afinal, avistaram- — Esteje preso, gritou o commandante, com
n'o muito ao longe, numa volta. Perceberam que uma voz terrível. E, se resistir, han!
nesse momento o Bahiano parou, como a esperai-
Resistir! O borracho nem pensava em tal. O
os. EHes também pararam.
diabo é que elle não se agüentava nas pernas.
— O homem teve medo, por isso foi-se ras- A poder de sacões e' cachações e de uma serie,
pando para a roça, disse }oãoi de "não se faça de besta l" os dois subalternos
— Desta feita sabia que vinha mesmo, com- vingaram mettel-o em pé. r
mentou a outra praça. — Para o quartel! Marchar! commandou então
Quanto ao cabo, nada disse, porque, estava a o cabo.
cocar a cabeça, irresoluto, pesando motivos, Vol- Era difficil obedecer'; mas, a fazer suas cam-
tarem sem o Bahiano, reflectia, seria cahírem no betas, e com o auxilio das praças, afinal foi an-
ridículo e merecer as chufas de toda a população. dando, sempre a rir e a babar, numa alegria
E trazerem o criminosoá força, era empresa dif- infantil de ir daquelle modo, quasi carregado.
ficil, pois tinha fama de cabra chegador, de com- Foi um triumpho o regresso, um triumpho im-
prar e pagar, d'esses que não olham a conse- previsto, pois. acontecia que o Tobias de sô Pedro
quencias. Podiam estar certos de que resistiria, era por demais conhecido vagabundo, pedinchador
e ás direitas. Que fazer? de "ajutorios", ebrio habitual e ladrão de galli-
E o cabo cocava a cabeça. Depois começou a nhas. Uma vez que o Toniquinho o trancafiava
cocai o queixo. , Pòrfim espetou o dedo grande na "cadeia", não é que elle achara geito de aba-
nos dentes de cima, quedando-se cogitativo nessa lar alta noite, com uma dúzia de aves do revê-'
postura. tendo nas pontas de uma manguara ? Quando o
— Que é que vocês acham? desembuchou, ao padre Ganqueiro deu pelo "destroço", chegou a
cabo de certo tempo. Podíamos daqui mesmo pioferir blasphemias pretas, capazes de infernar
fazer um tiroteio contra o Bahiano. a alma do > santo de maior santidade. Por um triz
A idéa, nascida murcha, cahiu sem discussão. , que não privou os poderes públicos tresbanenses
Então, numa inspiração suprema, o commandan- da inestimável enxovia. Desde esses tempos su-
te puxou o revolver e disparou um tiro para o ar. mira-se o Tobias e eis que voltava agora inopi-
Os seus inferiores fizeram o mesmo. A chusma nadamente com escolta, para pagar as feiissimas
dos curiosos, espaventada, debandou ao longe, ao culpas!
passo que o Bahiano, bravateando, teimava em Com a importante noticia, logo esqueceu o
esper.ar no mesmo sitio. Bahiano. Mal soavam, no principio, vozes espar-
Um ronco sahido da beira da estrada, attrahiu- sas : "Uai! Pois não é outro ? Cadêle o Bahiano ?"
lhes nesse momento a attenção. Era um bebedo ao que se respondia vagamente que afundara no
a quem o estampido das detonações despertava capoeirão, baleado. Depois, esqueceu totalmente.
em sobresalto. E sabe Deus de que somno com- Só se falava no Tobias, no famigerado Tobias,
prido 1 Pois o Tobias de sô Pedro, quando se pu- que afinal ia pagar as falcatruas.
nha a cozinhar a pinga, era obra para uma fieira A noticia voou electricamente de ponta a ponta
de dias. Havia nao sei quanto dormítava na- do arraial; e em todo o percurso, debruçados das
quella beira de estrada, pouco sensível ás intem- janellas, confluindo das ramificações da rua prin-
péries, pois attenuava-lhês o effeito com o seu ve- cipal, por onde havia de passar o preso ladeado
lho chapéo de pello, que o uso fizera conico co- pela força publica, agglomeravam-se, movidos pe-
mo um funil. Assim, fosse o tempo, agradável, lo mesmo profundo interesse, todos os morado-
armava-o no embigo, e todo se gozava da sua- res do povoado. E todos glosavam animadamente
vidade da luz e do calor; se o sol feria a vista, o suecedido. Ora o Tobias! o larapiador de gal-
ou o relento peneirava humidade, removia-o do linhas! Fugisse de novo agora, que estava na
embigo para a cara, e ficava alli debaixo como mão do onça! Pois não é que o trouxa viera
quem armou tenda e dentro se agasalhou a seu cahir na ratoeira, sabendo que agora, graças a
seguro. Deus, tinham uma unidade militar incumbida de
— Que está fazendo ahi, siô traste? vociferou velar pela segurança publica ?
o cabo, de péssimo humor, dandô-lhe um pontâ-pé. Como se vê, a exultação não podia ser maior;
28 A NOVELLA SEMANAL

por isso ficou sempitemamente memorável, nos — A vida, meu.amigo, é uma historia . . . inve-
fastos da modesta povoação mineira. rosimil, o que é mais. Pobre imaginação que in-
E foi assim que d'essa data em deante se fir- venta casos pueris, quando elles, trágicos até o
mou definitivamente o prestigio do destacamento sangue, cômicos até as lagrimas fervilham por
policial de Três Barras, para maior orgulho e ahi!...
segurança dos habitadores do arraial. O facto te- Senti que uma confidencia chegava. O meu
ve toda a sorte de conseqüências felizes. A noti- animo curioso em ouvil-o, sensibilizava-se, por
cia da prisão do Tobias chegou aos ouvidos do que agora, além de vivido, tinha o seu caso, o ca-
Bahiano com tão terrificos pormenores, que o so do meu amigo. Um dos seus, devia dizer, por
cabra abriu o pala para terras remotas, levando que, reparo, ha pessoas predispostas a estas aven-
comsigo a Rufina, sem coragem de tornar a pôr turas na vida. Eu o desejo muito, mas o meu
o pé no povoado, em dias de sua vida. A captu- é vulgar e indifferente, eomo uma folha de pa-
ra serenou o ecclesiastico, que no , domingo se- pel branco.
guinte elogiou do púlpito as praças. Exerceu sa- — Conta lá! Ha sempre pausa de soffrimento
lutar acção sobre o próprio directorio; pois o na confidencia. Aproveite...
gesto magnânimo da Câmara, esquecendo depois
Elle se dispoz a isto. Mas, bom narrador, até
d'isso a questão do rego, valeu reconquistar-lhe
da própria magua, não annunciou coisa espanto-
o Manoelzinho, que dizem já fez as pazes, e está
sa. Ageitou-se sobre a cadeira. Parou um instan-
disposto a voltar, mais dia menos dia, a Três
te, e começou :
Barras, para aff irmar publicamente, em plena ses-
são da Câmara, sua solidariedade com os antigos — E' preciso dizer do principio. Você que é
companheiros de directorio. sertanejo, exilado e nostálgico, lembra-se de uma
d'aquellas caminhadas árduas pelos nossos carras-
OODOFREDO RANGEL cos ou chapadas bravias, queimadas de sol, em
que as léguas se ajuntavam ás léguas, no indefi-
nido dos desertos, sem uma sombra demorada,
sem uma frescura de águas ? Aqui e alem, ao al-
cance do braço, os ramos despidos expandem-se
em flores tristes e fructos extravagantes. Como a
bocca secca implora uma gotta de humidade,
tenta-se alcançal-a, levando aos dentes, mordendo
e provando as frutas silvestres. A voz solicita do
FRUTA B R A V A camarada intervém:
— Meu amo ! . . . é perigoso provar fruta
Havia um mês que o não via. Ter-lhe-ia acon-
brava...
tecido alguma coisa ? Vagamente soubera que um
E com a segurança do seu empirismo, mais
caso sentimental o occupava, desde a chegada da
forte do que as nossas sciencias vacillantes, o co-
província, mas, como não me dissera nada, de
nhecimento do tropeiro S2 resume um aphorismo;
nada indaguei. E' imprudente saber dos amores
dos outros: causam sempre inveja, ou desdém, e — Fruta do mato é venenosa!
a gente se aborrece ou descontenta os amigos. E embora a bocca se torça muitas vezes no tra-
Mas que se ha de fazer numa tarde desoccu- vo do tanino, se encha d'agua ao azedo do surn-
pada ? mo, ou dôa na ardencia das sementes . . . instan-
Tomei o bonde e saltei numa pensão do Cat- tes depois, de novo estirada, torna a anciã desse
tete. Elle estava. Fui atravessando corredores e azedume, dessa dôr, bemditas no meio do deserto,
aposentos e, por fim parei diante d'elle, absorto, porque concedem a satisfação de uma curiosidade
com os olhos pregados no macisso imponente do ou de uma distracção, no indefinido das distan-
Corcovado, estampado em negro no lusco-fusco cias, com a variedade dos encontros imprevis-
da tarde que morria. Apesar da penumbra do tos...
quarto, pareceu-me ver na sua phisionomia o vin- São frases... Repare como as frases criam es-
co profundo de um soffrimento. Alheiava-se, o- tados de alma, tão deliciosos de serem avaliados,
lhando parada e estupidamente para fora, para a como dolorosos de serem vividos... Assim, meu
vida tranquilla das coisas, como a fugir. amigo, na banalidade de uma capital de provín-
— Em que pensa ? cia, oscillando entre o vasio de minhas preoccupa-
A NOVELLA SEMANAL 29

ções e o tédio dos meus sentimentos, surgiu um tinha-se domesticado e viçava num vaso de por-
dia, inesperadamente, uma mulher. Não sei de cellana, feiçoada nas modas e nas maneiras, como
onde vinha. Como as flores silvestres não tinha se houvera nascido numa chácara da Tijuca ou
arrebiques de cultura, mas era fresca, engraçada, num jardim de Botafogo. Lembrou-me a Dubarry,
desenvolta, independente como as flores do campo, também flor do campo, que Versailles viu, sem
sem jardineiros, adubos, tutores, nomes de conve- a transição de aprendizagem, entrar na corte, du-
ção.., tinha, a mais, o que é tudo, perfume, que é o queza e cortezã.
sentimento. Vimo-nos, olhamo-nos longamente, No intimo, para a banalidade da minha vida,
penetrantemente, durante uma festa de igreja. E entre a Câmara e a esquina do Watson, das in-
passamos, e nos perdemos. Procurei-a, nos dias trigas políticas aos escândalos mundanos, ella fi-
immediatos, com empenho, mas não logrei en- cou a mesma flor do matto, o mesmo fruto bra-
contral-a. Descoroçoado, no despeito do insucces- vo, de gosto bem raro, sempre com ânsia apete-
so, entro uma noite em casa, quando o criado, o cida, como os gravatas ásperos e providenciaes
único companheiro de meu lar provinciano, diz- das estradas sertanejas.
me, com rosto bregeiro: Do seu passado quasi «nada soube. "Nasci, vivo,
— Ha muito tempo ahi está uma senhora, á desde o dia em que te vi. Morrerei no dia em
espera. Disse que o senhor sabia quem e r a . . . que não gostares mais de mim. O mais não me
Tive um sobresalto. Bateu-me o coração apres- - importa !"
sado, num desejo. Seria ella? Alpha e ômega podiam ser falsos: uma seqüên-
Entrei e na meia luz discreta de minha sala, cia de desejos, emoções, arrebatamentos, desespe-
vi-a de pé, junto ao sofá, de onde se levantara ros, de beijos que vertiam sangue, espasmos que
quando minha mão torcera o fecho da porta de tinham a imagem de morte, diziam numa conti-
entrada. Mas, incoherente com a sua posição de- nuidade e uma ascenção que eu soffria a felici-
cidida, uma voz suave, entrecortada e por vezes dade. As minhas occupações, deveres, interesses
velada, disse-me: eram apenas o intermédio apressado e malsoffrido
— Desculpe-me ter vindo. Não sei onde tinha como os trechos urentes do caminho sertanejo,
a cabeça. Não pude resistir. Mas já me posso ir entre as pausas de um goso violento' e incansável.
embora... Houve pausa. Na meia sombra que já era, di-
Não contava com esse introito. Achei-o simples visei entretanto, que os olhos do meu amigo se
e eloqüente. Estupidamente, fiquei calado. Ella fechavam ás ultimas palavras. Estirou os braços,
mais decidida então, continuou: num gesto languido de desejo e preguiça amoro-
— Vi-o algumas vezes. Ha alguns dias vimo- sa, um instante, como evocando esse tempo. Eu
nos. Senti que havia alguma coisa nova em mi- tive a sensação diabólica que elle gozava ainda a
nha vida. Quiz reagir, mas não pude. Fugi, viajei, lembrança do ,que fora... Ia, porem, pungir-se
mas aqui estou. Sou uma tonta. Vim vel-o. Des- na saudade do que passara... e não volta mais.
culpe-me. Posso agora ir-me embora... — Como não me era licito sahir sempre com
—• Não. Fique um. instante. Andei também á ella, principalmente de dia, enamorada do Rio e
sua procura. Não pude esquecel-a, da vez que a dos seus armazéns de modas, sahi muitas vezes
vi. Este momento é deveras agradável para mim... só e, ao volver, me1 dizia:1
Não foi um momento que ella ficou, mas defi- — E' quasi impossível a uma senhora andar
nitivamente. Não sei de' uma ligação mais franca, hoje nas ruas. Você não imagina quanta gente
mais prompta, mais original. O resto se afinou mal educada tem esta cidade. Uma mulher des-
pelo começo. Você não imagina! Você não sabe acompanhada parece-lhes presa fácil, e assim, ao
que fúria sagrada a nossa. Só o nome é-commum longo das ruas, na porta das lojas, nos corredo-
com esta flor de estufa, que é o amor elegante, res das costureiras, na estação dos bondes, senta-
meio "flirt", meio decepção, ou esta flor de mon- dos ao nosso lado, são indiscreções admirativas,
tureira, o amor galante, meio-espasmo, < meio-nojo. cumprimentos inesperados, propostas indecentes,
Tenho vivido um pouco, e entretanto não p co- que • fazem irritação e vergonha. Chegam ' a se-
nhecia ... \ guir, a acompanhar, saltar no mesmo ponto, pa-
O meio provinciano, bisbilhoteiro, enredava-me. rar de fronte da porta, até escrever... Não fosse
Foi preciso de apressar a vinda para o Rio; trou- medo de um escândalo já teria quebrado leque
xe-a. A principio amedrontada, depois confiante, e sombrinha num destes atrevidos...
transplantei-a. Em poucos mezes, a flor silvestre Eu comprehendia isto perfeitamente. Ella era
30 A NOVELLA SEMANAL

bonita e bem feita, vestia-se bem, tinha ar esqui- foi decisivo . . . Comecei a falar, a dizer as loucu-
vo e modesto de provinciana; de outro lado os ras que tenho na cabeça, ha dias. Ouvi os seus
cavalheiros do Rio sofrem da falta de educação e passos, o fecho da porta agitado freneticamente...
da falta de mulheres. Comtudo, nunca me inquie- ella que se atira desesperada sobre o leito, a cho-
tei porque tinha confiança n'ella e conhecia que rar... eu que abro a porta para lhe dizer estas
não me era possivel educar os rapazes finos da palavras, que são a absoluta verdade...
Carioca. Após uma pequena pausa, diante da minha iro-
Um dia, á tarde, um pouco mais cedo do que nia despeitada de descrente...
de costume, fui vel-a. Aó chegar ao patamar da — Não tenho nenhum direito a merecer a sua
escada, a criada que a servia passava e, sem que confiança. O que lhe disse é, porém, a absoluta
eu lhe perguntasse nada, um tanto confusa, dis- verdade. Aquella senhora está pura para mim,
se-me : como minha mãe. Ha uma apparencia desgraçada
— A senhora sahiu . . . Creio que foi á costu- produzida pela minha loucura. Sou um homem
reira . . . de honra e estou disposto a dar-lhe todas as sa-
Ah ! as costureiras... Parece que as creadas já tisfações.
conhecem a desculpa clássica. Mas eu não des- Como eu tomasse um attitude de desdém brin-
confiava de nada. Tranquillamente affirmei: cando com a corrente do relógio entre os dedos,
— Eu espero . . . elle atravessou a portada, fez-me um cumprimen-
E fui varando pelo corredor, abri a antecama- to ríspido e repetiu :
ra que faz de sala de espera de seus aposentos. — F..., official de marinha, Flamengo 20, ás
A porta que dava para o quarto estava fechada. suas ordens.
Ensaiei o fecho: estava trancada. Olhei pela fe- E sahiu. Não lhe dei palavra.
chadura: estava a chave por dentro. Dei mais um passo, notei a ordem do quarto
Se a criada não me tivesse falado, pensaria que e vi-a apenas, cahida de biuços sobre o leito,
'estava dormindo, mudando de roupa e nao me chorando sem ruido, com a face sobre os braços
inquietaria. Ensaiei novamente o fecho, com re- cruzados, agitando o busto de quando em quando
solução. Ouvi passos que se aproximavam. A cha- por um soluço mais fundo. Olhei tudo .aquillo
ve deu uma volta, e a porta se abriu . . . Um ho- com desdém, ou despeito... Maiá desdém, que
mem, fardado, um official de marinha, extrema- despeito. Accendi um cigarro com lentidão affe-
mente pallido, estava deante de mim. ctada, para dominar a minha indignação... e ia
No primeiro momento não vi mais: tive uma sahir sem uma violência... Mas não pude, ou pen-
sensação rápida de tudo, objectivada naquelle ho- sei não poder : automaticamente, impulsivamente,
mem de pé que me defrontava. todas as fezes do meu caracter se revolveram cá
— Estou ás suas ordens... Chamo-me F . . . , dentro e saturam numa injuria de viella, num ca-
primeiro tenente da marinha. Devo-lhe porem di- lão de bordel. E lhe atirei a palavra de insulto.
zer m a i s . . . Não me desculpo. Explico. Sou um Sahi. Mas não volvi a casa. Chamei um carro
desastrado, um louco. Vi esta senhora, ha dias na e mandei tocar para longe. A passo, para a Gá-
rua do Ouvidor... .segui-a, acompanhei-a, falei- vea ! para Copacabana 1 para o inferno! Cami-
lhe, escrevi-lhe... todos os dias. Nunca me at- nhe, não me pergunte nada! Errei assim toda a
tendeu com um olhar, um gesto, uma palavra. A noite, até se cançar a parelha. Quiz pôr em
principio indifferença, depois indignação. Hoje ordem os meus sentimentos, minhas idéias e não
passava deante desta casa; como tenho feito es- pude. Havia dentro de mim um demônio a espi-
tes dias todos — tenho-o visto varias vezes... — caçar-me. Quando a intelligencia lúcida ia recom-
quando a vejo só, á janella. Não reflecti, galguei pondo a scena e achava coherencia nas palavras
as escadas, não respondi á criada que me indaga- que ouvira, o maligno, no intimo, friamente,
va do que queria, abri a primeira porta, abri ain- ironicamente, insinuava-me : ingênuo 1 E crescia
da esta e achei-me diante d'ella. Falei-lhe, repel- e fervia dentro de mim o despeito, a indignação,
liu-me. Ameaçou-me de gritar, de dar escândalo. o asco, a raiva, feitas de uma perversidade, de
Fechei a porta resolutamente, disse-lhe que não.a uma villania, de que não me suppurihacapaz.
queria pela violência, mas apenas dizer-lhe umas O amor próprio offendido, embora apenas por
palavras... ir-me-ia depois. Um escândalo deixa- uma apparencia — como isto é bárbaro ! — deixa
ria na duvida sempre uma cumplicidade... um a besta deçaimada para todas as violências, bru-
homem dentro do seu quarto... Este argumento talidades, torpezas !
A NOVELLA SEMANAL 31
Depois andei febrilmente, andei até exgottar — Não foi a que vim... Conheço de mais o-
o meu despeito e a minha raiva no cansaço. bruto orgulho dos homens, que só amam atravez
Dormi profundamente. Ao accordar, tarde, no do seu amor próprio. Não é disso que me vim
outro dia, tinha o corpo moido numa fadiga ex- occupar. Devo, porem, para que me acredite, con-
trema, a alma cansada, como se viesse de soffrer fiar-lhe antes os meus sentimentos a respeito da
longa doença moral. Estava inerme, vencido. Já sua' crise. Creio que gostava muito, e ainda gosta
não tinha ódio : apenas desprezo. A mesma bru- da Rosa. Sei disto por ella mesma, nas raras con-
talidade, com outro nome, aspecto diverso. E ti- fidencias ,que, curiosas de affecto e companheiras,
nha uma resolução. Ha resoluções feitas para to- de casa, viemos a fazer. Ella gosta do serihor, até
das as situações. A gente já não resolve por si; a morte. Estou certa pelo que sabia antes, prin-
uma serie infinita de outros brutos, outros idio- cipalmente pelo que soube depois.
tas, já codificou uma resolução para todos os ca-
Uni gesto de impaciência de minha parte, fel-a
sos. E' seguil-a! Eu tinha, pois, minha resolu-
comprehender que enveredava por caminho des-
ção:
agradável.
— Não admittir explicações... Eu não era um — Não irei lá... Depois do que houve hontem.
ingênuo... A mulher de César é a mulher de todo exisíirá entre ambos/, sempre, uma duvida a os
o mundo — nem sequer suspeitada í Não a que- infernar, se se podessem unir de novo, ate os se-
ria ver mais. Eu era um homem digno! parar, miseravelmente. Melhor vale agora. Deixe
E com toda a emphase humana pronunciei vá- contar-lhe um caso pessoal.
rios termos sonoros e limpos... dignidade, brio, O seu modo de falar, preciso, correcto, a sua
asseio... simplicidade e elegância de trajar, predispuzeram-
Como para me conformar a estas deliberações, me a seu favor sympathicamente, talvez superior
barbeei-me, banhei-me, vesti-me, almocei. Eu era pela condição e pelo soffrimento á primeira idéa
um homem I Não sahi, porém. A' tarde o criado que me occorrera.
trouxe-me um cartão de mulher, de nome desco- — Em meio de uma vida de desvario depois
nhecido, sob o qual estava escrípto a lápis: «Pre- que abandonei meu marido, o meu primeiro en-
ciso absolutamente dizer-lhe uma palavra.» gano de mulher, encontrei alguém a quem o.
Haveria connexão com a minha aventura ? Tal- acaso a principio, um doce habito depois, uma
vez. Devia receber ? Não. Eu era um homem: não paixão retribuída em seguida me uniu na única
queria explicações! estava decidido, minha reso- felicidade que já gozei. Era casado, com dois fi-
lução era inabalável! lhinhos, uma esposa moderada, em todo o caso
Mandei entrar. tolerante. Não lhe perturbei a paz domestica.
Era uma senhora sympathica e discreta. Cum- Maltratei-me, venci-me no meu feroz exclusivismo
primentou-me com a cabeça; sentou-se na cadei- amoroso e subjuguei-me á situação de o amar só
ra que lhe offereci; fiz Um gesto de quem estava, quando elle podia ser meu. Fui-lhe absolutamen-
disposto a ouvil-à. te fiel desde ahi. Os meus conhecidos^ os meus
— Venho falar-lhe de Rosa... amigos de outro tempo,. espantaram-se de minha
Era inevitável! Era a comadre, a intermediária, virtude intractàvel. Evitava-os, não lhes permit-
a pannos-quentes... tindo que me freqüentassem. Um dia, um delles,
— Ah, não!, interrompi, violentamente. — E' um delicioso rapaz que tão mal empregava sua
inútil continuar... Eu deveria imaginar que ^have- primeira affeição e desde antes do outro ia á
ria uma v . onze letras... para a accommodação! minha casa, fala-me, pede-me para deixar-me ver,
A mulherzinha levantou-se indignada. conservar-se-ia á distancia, seria meu amigo, não
— Perdão... O senhor não tem o direito de me seria nocivo nem importuno. Apenas isso,,
insultar-me, a mim, uma mulher, que não lhe pos- ver-me... Tudo o que, o senhor deve saber, com
so responder á insolencia, e de mais em sua casa... que se finge o amor dissimulado e vigilante. Nu-
Gosto de mulheres fortes. Envergonhei-me da ma noite estava só, enervada, saudosa, triste, ha-
minha brutalidade; foi água na fervura do meu via três dias que não via o meu amigo, quando me
arranco. entra por casa o outro, o rapaz, com os seus pés
— Peço-lhe desculpas. Comprehende o meu es- de lã de amoroso sem pretenções, e fala-me, fa-
tado de espirito desde hontem. Diga o que quer, la-me, lentamente, sentidamente... Por fim, con-
mas previno-lhe que é absolutamente inútil qual- vida-me para um passeio; era tarde, em Copaca-
quer tentativa de conciliação. bana, não haveria indiscrição, uma companhia
32 A NOVELLA SEMANAL

apenas affectuosa, voltaríamos quando eu quizesse, convencemos, vimo-nos ainda algumas vezes. So-
viríamos innocentemente como foramos. Não sei mos amigos, simplesmente, indifferentemente
como me deixei enganar; julguei-o, e era, incapaz amigos...
de uma ousadia, como eu de uma fraqueza. Cedi, Houve nina pausa. Senti no abafamento de sua
reluctante. Fomos, passeiamos simplesmente, cas- voz ás ultimas palavras, a emoção da sua saudade.
tamente. Quasi meia noite voltamos. Fazia calor Continuou: - Se amou a Rosa, se a ama ainda,
na cidade e na praia de Botafogo. O meu com- pela raiva de sua suspeita, é ainda uma maneira
panheiro imprudentemente fez descer a capota do de amar, não tente debalde conquistar uma fe-
carro. O nosso destino depende ás vezes de licidade que passou... Não corra atraz de uma
um gesto imprudente destes. Rua Marquez de decepção... Ao fim de muita lida e talvez muito
Abrantes. As luzes do Largo do Machado. Va- soffrimento, o desengano lhes daria talvez mal-
zia a praça: apenas no passeio três pessoas..: um querer. Melhor vale romper a g o r a . . .
velho empregado dos bondes e... um homem e Calou-se de novo. Comprehendi que a verdade
uma senhora... Quem havia de dizer ? Sim, "elle" falava pela sua bocca. Mas a minha desconfiança
e a mulher... Ha verdades inverosimeis. Preciso pareceu-me perguntar: — Mas porque aqui está ?
jurar que a despeito de ter entrado em casa e a que queres chegar ? Ella mostrou comprehender.
ter persistido como o meu amigo me deixara ha- — Mas não vim a isto. Contando-lhe a minha
via três dias antes; a sua convicção absoluta foi historia quiz justificar a sinceridade de meu pe-
que eu lhe mentia, tinha outro amante, que até dido. Não sou alcoviteira ou a onze letras do
me conduzia desaforadamente a passear, de carro seu insulto: sou uma pobre mulher sensível, que
descoberto? Não houve entre nós explicações. soff reu, que tem pena! Ella ficou num estado
Evitou-me sempre, a despeito de uma encanzina- desesperador, rasgada, descabellada, numa fúria
da tenacidade posta ao serviço da minha defesa. de possessa, na intermittencia de um choro que
Não houve meio, não me quiz nunca attender. não cessa. Não ha consolo possivel para ella. Te-
Silencio..., indifferença... responderam sempre á nho medo até de um acto de desespero. Não se
minha perseguição. Assim três annos. Enviuvou, ria, que é esta a minha impressão. Está guardada
mas não mudou de propósito. Um dia no <High- para não commetter um desatino. Talvez os seus
Life», sentado em uma mesa, vejo-o solitário, nervos estejam doentes, talvez uma hysterica, mas
num canto. Approximei-me resolutamente. Não é uma criatura que soffre... A vida é já bastante
me evitou. Disse-lhe tudo, toda a verdade. Ao triste na sua banalidade para não lhe ajuntarmos
sahir acompanhou-me, subimos para um carro, uma crueldade inútil a exasperal-a. Venho pedir-
rodamos para minha casa. Na porta quiz deixar- lhe simplesmente que vá vêl-a... tranquillamente,
me. O Gocheiro assistiu á manifestação da minha calmamente... Finja, represente. E' honiem, e for-
-sinceridade, sem palavra. Desatei a chorar. A por- te: seja caridoso. Vá dizer-lhe que não lhe quer
ta se fechou sobre nós. Imagine depois o que foi, mal;, que acredita na sua affeição, que lastima
pensando num desejo, quasi uma raiva, de três uma oceurrencia desgraçada... mas essa suspeita
annos seguidos. Tarde, muito tarde, cuidamos em mesma seria capaz de os fazer d'agora por dian-
dormir. Fechei os olhos pensando nisso, mas vi-o te infelizes, atormentados numa duvida constante.
que se sentava na cama: Emfim, o senhor saberá melhor do que eu. Acal-
— Que tens ? mar-se-ão. E viverão, esquecidos e indifferentes...
—Tu me perdoas que te diga? Porque ha de um gozo de amor terminar na
— Dize... brutalidade de uma violência?
— Tu não és mais a mesma... Como me enganei; Continuou assim por muito tempo, catechisan-
Houve um grande silencio. Uma claridade enor- do-me o animo bárbaro. Por fim, partiu levando
me fez-se em minha consciência. Vi-me por den- a minha promessa de attendel-a. Ás nove horas
tro. E o que é mais, vi-o também, sentí-o. lá estaria. Podia avisar a Rosa. Não queria porém
— Tu me perdoas que te diga ? encontral-a no estado em que me descrevera. De-
— Dize.. . testava estes espectaculos. Queria conversar com
— Tu não és também mais o mesmo... Como ella tranquillamente, como me recommendára.
nos enganamos! Mas não fui. Meu orgulho, meu amor próprio,
De facto, não éramos mais os mesmos, havia- minha crueldade, insurgidos logo após não me
mos de ter mudado, um para o outro. Como deixaram... Ao outro dia, pela manhã recebi esta
não nos amávamos mais, e bem tristemente nos carta.
A NOVELLA SEMANAL 33

Tirou da secretária um papel azulado, e deu-m'o Não sei. A consciência, essa, emquanto se lem-
a ler: brar, terá um peso em cima: um cadáver sobre
"Senhor. Não imaginei que fosse tão estupida- ella...
mente cruel. Voltando da sua casa, arranjei a Fez-se um silencio lugubre.
scena, contando á pobre Rosa a defesa que delia Depois a voz sumida do meu amigo, cono vin-
fizera no seu animo, deixando entrever suas dis- da de longe, murmurou:
posições, consolando-a emfim sobre o inevitável — As frutas do matto são venenosas!
desenlace. Apesar de reluctante, acabou por accei- Ennoitecera completamente. Lá ao longe,, sobre
tar tudo e disse-me: "Pois bem! Será! Viverei! o macisso do Corcovado, uma estrellinha brilha-
E com o tempo hei de convencel-o!" Pareceu-me va timidamente.
conformar-se. Vestiu-se, ageitou-se. Depois, de AFRANIO PEIXOTO
quando era quando, perguntava inquieta: " Elle (Da Academia Brasileira)-
virá mesmo ?" Ella previa-o. Passaram-se algumas
horas. Quando toda a esperança foi perdida, tran-
cou-se no quarto, onde debalde quiz entrar. De-
pois de'bastante tempo abriu e chamou: "Aqui
tens umas lembranças minhas para você que foi
bôa. Aqui uma nota de outras pequeninas lem-
branças, para amigas. Uma carta para a justiça:
não culpo a ninguém da minha morte: digo que
estou aborrecida de viver. Silencio absoluto sobre TERRA PROHIBIDA
os meus pezares, está ouvindo ? E' como si não
Chegando ao jardim, tendo deixado ainda cheios
existissem. Acabo de dispor de tudo: tomei uma
de ruido e brilho os vastos salões que abrigavam
droga mortal. Não tente salvár-me, para quê?
todas as maravilhas mundanas, Máximo parou,
Recomeçaria..." E mostrou-me um copo onde ha-
abotoou o rocló sobre o peitilho da camisa, ac-
via ainda um resíduo branco. Era tão lúcida e
cendeu um cigarro, lançou a primeira fumarada
tão calma, que cheguei a duvidar um momento.
ao ar frio e fino da noite de Junho, sorriu com
Depois vi-a cambalear e dizer: "sinto a cabeça
um sorriso de immensa satisfação e tornou a an-
tonta... começa!" Aos gritos chamei por soccorro,
dar — tudo isso com um leve lume de espanto nos
mandei buscar medico, fizemos tudo o que foi seus olhos grandes e calmos.
possivel: vomitiyos, injecções, tudo. Está agora
inanimada, num estado de somnolencia, só inter- Passou o portão, que o (0 porteiro abriu, des-
rompidapor gemidos. O doutor diz que não escapa- cobrindo-se respeitosamente. Achava-se em plena
rá. Morrerá hoje? Deus o queira. Acabará de soffrer rua, onde se arrumavam em fila os carros dos
Quanto a mim, acho-o cruelmente estúpido, como convidados, negros e lustrosos. Um coupé desta-
lh'o disse no começo d'esta, e repito. Não pode- cou-se da fila e veio parar em frente de Máximo.
ria, depois do que fez, vir vel-a pela ultima vez? O groom pulou da boléa ao chão para abrir a
Seria talvez uma impressão feliz que ella levaria. portinhóla. Máximo impediu-lh'o:
Posso assegurar-lhe que a sua dignidade de ho- — Não. Eu vou andando. Siga-me a passo.
mem não correrá perigo: ninguém o verá.—Luiza." E começou a caminhar pela rua solitária, acom-
Devolvi-lhe o papel e accrescentei: panhado pelo seu carro que a alguns metros
— Que ironia neste final! de distancia rodava lentamente.
— E justa . . . Para recompor a sua situação imprevista na-
Continuou depois de uma pausa: quella noite toda de sorprezas, preferira o ar livre
— Vesti-me, profundamente commovido e aba- á estreita caixa do coupé, pensara que o clarão
lei para lá. Ao entrar na ante-sala, encontrei das estrellas faria bem á sua vista ainda tomada
Luiza, num desalinho afflicto, que sahia do quar- de um offuscamento estonteante. Eram três e
to. Olhou para mim, rancorosamente e disse-me meia da manhan. Andaria a pé uns vinte ou trin-,
num desdém macabro: ta minutos, rumo de casa. Mais dez ou quinze
— Chegou á hora..' Está morta! de carruagem bastariam para perfazer o caminho
todo. Não tinha somno. Antes, estava de uma
leveza singular..
Ahi tem uma historia fúnebre. Tenho eu o co-
ração num aperto indizivel. Remorso ? Saudade ? Máximo principiou a recapitular a sua noite
34 A NOVELLA SEMANAL

que intimamente considerava uma*noite de gloria. Pouco a pouco, porém, provou-lhe que sabia al-
Entrara no baile ás onze horas e ja a festa attin- guma coisa da sua vida intima. Uma palavra ma-
gira o auge de esplendor. Logo vira que a noi- liciosa, ás vezes uma phrase onde cada vocábulo
tada seria sem aborrecimento. De resto, eram parecia fazer o papel de testemunha, insinuações
sempre encantadoras as recepções naquella casa, meio directas, situações intelligentemente prepa-
onde se reuniam as mulheres mais formosas da radas, tudo isso mostrava que ella conhecia os
sociedade e os homens notáveis nas artes, no seus segredos e até os segredos da sua garçon-
jornalismo, na política, os banqueiros mais em nière. Nas indiscreções de Madame era visivel a
evidencia e os senhores, os jovens senhores ricos necessidade de fazer d'ella um camarada, um
e indolentes de uma reconhecida incapacidade bom camarada, no original.
mental. Além disso, Mme. tinha o segredo de- Na ultima visita feita por Máximo aquella casa,
accrescentar á lista das celebridades que lhe havia quasi dois mezes, Madame conversara de
davam lustre ás recepções a meia dúzia das se- Syrte, exigira uma confidencia completa. Elle
nhoras da alta roda cujas virtudes maior discussão contou um pouco de seu amor, quasi nada do
houvessem soffrido nos trinta dias de intervallo tempo bom, e narrou com a maior precisão de
entre uma festa e outra. detalhes o rompimento ainda recente. Quando a
Feitos os cumprimentos a Madame e ao marido, narrativa terminou, Madame lhe ganhara toda a
Máximo deteve-se á porta da sala de dança e cir- confiança. De modo que não houve o menor
culou o olhar investigador, fazendo graciosos ace- constrangimento nesta phrase que foi cahir nos
nos de cabeça ás pessoas que ia reconhecendo. ouvidos de Máximo:
A valsa que nesse momento a orchestra começou — Apezar de tudo, o meu amigo vae dizer que
a executar poz em campo dezenas de pares. Ao Syrte é a mais linda creatura da sala...
rodopelo da dança, logo reconheceu num gyro — Talvez o dissesse, se V. Ex. não estivesse
languido a figura de Syrte, cujos olhos de longe aqui.
o fitaram, rápidos e medrosos. Máximo viu que — Ahi vem com o seu máo costume de lison-
os olhos de Syrte eram os que elle sempre co- gear. Mas, ao menos, acha qi^e está irresistível...
nhecera, os mesmos olhos negros e macios, de — Também não. Faço toda a justiça dizendo
um neg ror de peccado. E viu mais, disfarçando que Syrte está formosa; digna emfim de ser aco-
quanto podia a analyse, que Syrte estava suprema lhida em sua casa.
de belleza e graça, no vestido finíssimo côr de — O meu amigo' já a cumprimentou, de certo.
pérola, sem uma prega, sem uma ruga, que lhe — De certo, não. Ella ainda não me viu e por
desenhava escrupulosamente o corpo de linhas do- mim não tive tempo ainda. V. Ex. sabe que,
ces e ondulantes, e acima do busto se abria, dei- mal cheguei, dei-me pressa em vir á sala, á dan-
xando surgir o collo de um tom de pérola mais ça, guiado pela minha boa estrella.
fraco e o pescoço esguio e a pequena cabeça de — E acha que d'esse modo evita os perigos ?
um contorno hellenico oscillando ao rythmo da — Tenho a certeza. Não crê a gente nos anjos
valsa como uma nobre flor ao vento. impunemente...
Nesse instante um roçagar de sedas contra se- Houve uma pausa no dialogo, que Máximo
das fel-o voltar-se para traz. Era Mme. que che- com facilidade preencheu deixando a vista envol-
gara e se dirigia para a sala. ver o corpo todo da creatura que bailava pelo
— Esperava por V. Ex. para começar o meu seu braço, sentindo em ondas embriagadoras o
baile... cheiro que se evolava d'aquella carne ainda moça.
E como Mme. cedesse com um claro sorriso e Em um momento, os olhos de ambos se encon-
um alegre olhar, Máximo tomou-a pelo braço e, traram, justamente quando Máximo se achava em
depois de alguns segundos, os dois entraram no mais absoluta contemplação. Ella estremeceu, per-
turbilhão. cebendo o olhar abrazado de seu par. E o fim
Pelo sexo, Madame era indiscreta sem ser le- da valsa foi delirante.
viana. Mais de uma vez pedira a Máximo que a — Já foi ver o jogo ? perguntou ella depois
considerasse como um amigo ou pelo menos um de fazer uma volta pelo salão.
bom camarada. Era difficil ou impossível tratpn- — Ainda não.
do-se de uma mulher bonita ainda nos seus trinta — Venha commigo.
annos viçosos. Isso mesmo lhe dissera Máximo. Atravessaram o salão, passaram pela sala de
Ella agradeceu o cumprimento e não insistiu. orchestra e entraram em outro aposento da casa,
A NOVELLA SEMANAL 35

amplo, confortável, destinado aos velhos sem ou- rar o capitulo e evocar a maldade satânica da
tra paixão que o azar das cartas e aos moços que alma de Syrte. Com effeito, Syrte lhe fizera
a Sorte já dominava. Pararam ambos á porta. grande mal. E o que mais lhe impressionava nas
Madame olhou rapidamente e disse afastando-se: suas perversas acções, de uma infinita perversi-
— Não está. dade, era a fôrma de inconsciencia de que se
Máximo não comprehendeu a scena e pergun- revestiam. Syrte o amara, seguramente muito o
tou: amara. Tinha disso provas deliciosas. Mais de uma
— Poderei saber por quem V. Ex. procura? ' vez lhe experimentara a sensibilidade para verifi-
— Procuro Syrte. car até que ponto a tinha captiva. E a conclusão
Foi com espanto que elle replicou: a que chegava era sempre a melhor: ella era de
— Mas tenho quasi a certeza que a deixamos uma docilidade, de uma humildade que nunca
no salão... encontrara em outra mulher. E a audácia de Syrte
—Neste caso vamos lá. naquelle amor que devera
O passo de Madame viver á sombra faziá-o
era pressurosõ. pasmar e algumas vezes
— Porque me leva a MONTEIRO LOBATO tremer. E fora essa mes-
minha boa amiga para ma audácia que a per-
junto de Syrte? dera, quando abertamen-
Ella deteve-se. E foi te concedeu a corte a
entre" risonha e séria que
respondeu:
— O meu amigo é que
OS NEGROS outro homem deante de
Máximo,
portando-se
e do marido,
como uma
se dá ao incommodo de Novella cine-romantica, com pios de perfeita inconsciente. Du-
me levar até onde está coruja, noites tempestuosas, mor- rante três dias elle a
Syrte. ! tes trágicas e outros ingredientes odiou, ou antes, deixou-
-Ah! de tomo; leitura perigosa ás me- se invadir por um pro-
Entraram na sala d e ninas hystericas e aos velhos car- fundo sentimento de des-
orchestra. O salão ao la- , diacos que crêm em almas do prezo. No quarto dia
do, cessada a valsa, es- outro mundo. Syrte lhe appareceu ino-
tava cheio do rumor dos pinadamente em casa, ás
que agora andavam e de Um bello volume, com lindas illus- duas horas da tarde dé
um brando murmurar trações de Ruy Ferreira . 1$000 um lindo dia de Prima-
de vozes em surdina. De Pelo correio, r e g i s t r a d o . . . . 1$300 vera, depois de em vão
súbito, a figura esbelta ter esperado resposta ás
de Syrte surgiu á porta, Soe. Editora Olegario Ribeiro suas cartas afflictase ei-
face a face de ambos, e CAIXA POSTAL N. 1172 — S Ã O P A U L O vadas de perguntas de
estacou insensivelmente. toda a sorte. Máximo
Máximo adeantou-se e a estivera a principio de
saudação que lhe dirigiu foi de uma serena po- uma brutal simplicidade. Como não houvesse hu-
lidez. milhação que a fizesse demover do intento de se
— Onde vaes, Syrte, com tanta pressa ? inqui- reconciliar, após longos vinte minutos de rogos e
riu Madame. imprecações, foi Máximo quem deliberou sahir,
— Aeonteceu-me um pequeno desastre na sala. cheio d e raiva e de aborrecimento, deixando-a em
Vou ao boudoir. seu gabinete, aos pés do soberbo grupo do Trium-
E Madame para Máximo: pho de Aphrodite, em mármore, onde se vê a deusa
— O meu amigo vae acompanhar-te até lá... victoriosa; nô seu carro tirado por quatro cavallos
fogosos e de azas abertas deslocando o ar.
— Sem incommodo...
— Nenhum, minha senhora. Pela madrugada voltou. Havia de Syrte, um
Os dois partiram, em silencio, contratei tos, em- vestígio: uma carta febrilmente escripta, come-
quanto Madame penetrava., outra vez no salão. çando por um montão de injurias, descendo gra-
A' porta do boudoir Syrte desprendeu-se do dafivamente até o mais pungitivo lamento. Má-
braço d'elle, que se deteve á espera. Pouco tem- ximo sorriu com piedade e guardou a carta com
po alli esteve, o bastante comtudo para rememo- cautela. Deitou-se pouco depois e adormeceu com
36 A NOVELLA SEMANAL

a tranquillidade de um justo. Quando no dia se- jogo, com mais ou menos monotonia, findara a
guinte acordou, tinha a certeza de que Syrte o sua noite. Achava-se agora ali na rua, seguindo
odiava de morte. E com isso se alegrou. Nunca a pé para casa, ao clarão das estrellas. Nos seus
mais a vira desde então, até aquelle baile, aquel- olhos grandes e claros persistia o mesmo lume
le momento em que a encontrara fugindo da sala de espanto.
caminho do boudoir, a remediar o desastre. E' que, recapitulando tudo, não encontrara uma
E nisso ella appareceu, refeita a toilette. To- explicação para o incidente. De certo não amava
mou-lhe o braço, um pouco esquerda, ainda. Elle Syrte. Seria uma imprudência e uma tolice. E
disse: ella ? A resposta foi categórica. Sim, era eviden-
— Quer. jogar uma partida de bilhar ? te. Mas como não haver naquella alma o menor
Syrte acceitou. A sala de bilhar estava inteira- movimento de recusa para a caricia de um ho-
mente vasia. Ao penetrarem, mal o reposteiro mem que com bruteza e crueldade a tratara?
cahira sobre ambos, de um gesto Máximo tomou- Porque humilhar-se d'esse modo, se lhe não fal-
lhe a cabeça formosa nas mãos e collou os lábios tavam corações inflammados de amor, tocados
nos seus lábios que de repente embranqueceram. pela sua magia?
E houve de bocca a bocca um sorvo longo, Elle ainda a dominava e sentia que em qual-
que parecia não ter fim, onde todas as volupias quer momento da vida aquella creatura seria sua
se encontraram reunidas, numa condensação de e o amaria com exhuberancia e paixão.
frêmitos e palpitações de carne, num deliquio de Máximo considerou fácil e de bom sabor esse
almas em surtos longínquos e mysteriosos, e hou- conceito. Mas elle? Porque aquella brusca mu-
ve de bocca a bocca um beijo farto, sustadas as dança no seu procedimento? Não fora uma ex-
respirações em um minuto interminável, como periência. Não teria tido coragem para tental-a,
se ambos renunciassem á Vida e ali ficassem hir- na certeza da repulsa. Um súbito accesso de af-
tos, ligados um ao outro, fundamente ligados feição ? Também não, isso jurava. Então, então
um ao outro, fundamente ligados num enlace, fora a saudade de um recanto da Terra que se
eterno, na apotheose radiante do Amor e da Bel- amou, de um logar em que se viveu um dia fe-
leza... ( liz, aonde se aportou com todas as esperanças e
A um rumor próximo de passos ambos se re- de onde se sahiu fatigado depois de vistos todos
pelliram assustados. Deram-se o braço, deixando os segredos, quebrado o encanto que de longe
a sala. Madame vinha para elles, com alegria e nos acenava. Mas ps dias passaram. A' medida
pressa: que passavam os dias, o encanto retomava o seu
— Jogaram bilhar ? antigo prestigio. As tentações estavam lá, cha-
— íamos jogar, disse Máximo, escondendo a mando e attrahindo, irremediavelmente attrahindo.
emoção. Mas a sala está quente e preferimos dan- Fora a saudade que lhe arrastara os lábios sof-
çar esta valsa. Si V. Ex. permitte . . . fregos para aquelles lábios, para aquella bocca.
— Não percam tempo, vão. E agora, vista de de novo a Terra Prohibida, a
E a valsa foi encantadora. Quinze minutos de- indifferença retomava o seu logar. A saudade,
pois, Máximo sentava-se a uma meza de pocker, fora apenas a saudade...
de onde se ergueu ás duas horas para a ceia,
tendo ganho alguns centos de mil réis. Não teve Máximo parou. O coupé, quede manso rolava,
á meza (e com isso deu graças a Deus) visinhan- correu um pouco, a seu encontro. O groom des-
ça incommoda ou indiscreta. Madame sentara-se ceu, abriu a portinha que logo em seguida se
longe, ao lado de um inglez, um claro rapaz lon- fechou, com estrepito. Uma chicotada estalou, fus-
drino, que tinha a vantagem de saber jogar o tigando os animaes. Com um arranco o carro
tennis. Quanto a Syrte, ficara ao pé do marido. partiu pelo f rio da manhan de hinverno, ao clarão
das estrellas desmaiadas.
Um charuto fumado em companhia de homens
que falaram de política, a um canto da sala de Rio, 1905. OSCAR LOPES
A NOVELLA SEMANAL

SUPPLEMENTO
Avíd$&ã&cÚ®U ca. — E u quero ser Zé B e n t o ! sua, mas fica guardada. Quando
e píUèrj£$£o*dps quero, quero, quero !... você ficar grande...
S -X- *
E José Renato azoinava todos
os ouvidos do fidalgo solar de E , de facto, quem ficou g r a n -
fj# Tremembé. H a v i a j á três dias de não foi outro senão J o s é
MONTEIRO LOBATO que aquillo começara e ainda Bento Monteiro Lobato, que de-
n e n h u m a esperança de salvar o certd, hoje não se lembra m a i s
DE COMO JOSÉ RENATO castão de ouro, relíquia da fa- da bengala do castão de ouro...
MONTEIRO LOBATO PASSA mília, escondida n u m canto do 5. P,
A CHAMAR-SE JOSÉ BEN- guarda-roupa, onde, sempre que
TO MONTEIRO LOBATO. o abriam, lá ia admiral-o o pe-
quenote, fazendo scenas como
José Renato deve t e r sido u m essa. fCuríosídaideSj
menino endiabrado e manhoso.
T a n t a s diabruras quantas ma-
Felizmente, agora, o argu-
mento do monogramma encami- literárias
nhas, tantos caprichos quantas nhava-se p a r a bom êxito, Im-
voluntariosas teimas ; encheria, portava n a mudança de nome,
sém duvida, a casa solarenga coisa, séria e complicada, que EUCLYDES DA CUNHA
do sr. Visconde de Tremembé. exige, pelo menos, padre e água
Seria o terror da passarinhada benta. NO PERU
e bom amigo da creação — ca- — Queria trocar de nome ?
britos e bezerros, — uns, ex- E m Euclydes da Cunha o ca-
Então, paciência u m pouco. Isso racter principal era, sem duvida,
cellentes para o c a r r i n h o ; outros, não se iaz n u m dia, quando se
optímos para os corcóvos . . . a altaneria civica.
queira. Espefe que venha o A alma de guerreiro antigo,
Traquinagem inaudita iria por 7
Bispo e, na occasião do Chris-
terreiros e pomares, cafésaes e que o levou ao exercito e q u s
ma, então, sim... tão depressa delle o desligou,
invernadas.
E José Renato teve um grande por incompatível á instituição
Mas, tudo aquillo j á não ti-
problema a resolver : a escolha moderna da disciplina militar,
nha encantos. A roda d'agua;
a engenhoca, o carro de bodes, >, dos padrinhos, que o absorveu animou sempre o "egresso da
e distrahiu no momento. Mas, farda", que, u m dia, insólito,
estilingue e bodoque, faca de
não vinha o sr. Bispo e, em- arrostara a magestade do I m p é -
ponta e Winchester, ora, tudo
quanto não, a metamorphose ono- rio; perante as suas mais altas
muito i n t e r e s s a n t e s bonito, mas
mástica se ia operando. Renato auctoridades. O episódio não fi-
— que diabo! — t u d o infantil...
só a t t e n d i a ao nome de José cou sem par. A cnronica anec~
Também isso de calças curtas
Bento. Chamassem-no, o dia dotica do auctor dos Sertões está
vae indo, , vae indo e enfára.
inteiro, por outro nome — não cheia delles. Revelam-nos mes-
Nem u m fio de barba, n e m som-
apparecia. Deu-lhe a vontade de mo as suas obras, naquellas pa-
bras de buço...
apprender : queria ler e escre- ginas memoráveis da exploração
Aquella bengala, por exem- amazônica.
plo, cerne de alecrim, castão de ver. Via agora que a importân-
cia da escripta é decisiva. R e - E n t ã o , em c o n t n c t o ' com o
ouro e monogramma, porque não extraugeiro, em momento cri-
lh'a dariam? solve a sorte das bengalas de
castão de ouro... E m breve, es- tico da questão nacional de li-
— Quero a bengala !... mites, elle mesmo arbitro d a
tadeava o novo nome com todas
— Não pode, filho. E s t r a g a , as letras, sobrenome e todos os questão, a sensibilidade da gran-
sae o verniz, quebra o castão... cognomes : de alma brasileira se apurava e,
— Não quebra. Quero a ben- não raro, irrompia em explosões
J O S É BENTO M O N T E I R O LO- altivas. E ' desconhecida;' cre-
gala !...
BATO mos, u m a bella e expressiva pas-
— Não. Olha aqui. E s c u t a sagem da sua vida nos confina
um pouquinho, quieto como gen- E r a no papel, nos batentes e brasilio-peruanos." Conta-a, ago-
te. Isto aqui é o m e u mono- folhas da porta, nas paredes, em ra, o sr. dr. P i m e n t a da Cunha,
g r a m m a : J . B . A bengala é mi- todas as paredes. As mucamas companheiro de Euclydes n a
nha, é de José Bento, por isso não t i n h a m mãos a medir no Commissão Brasileira do Reco-
tem essas duas letras. Você é apagar as g a r a t u j a s . nhecimento dos Rios J u r u á e
José R e n a t o . . . E José Renato, Puros.
dono da bengala, precisava es- Afinal, o nome pegou. E a
bengala do m o n o g r a m m a ? — Depois de u m a j o r n a d a cheia de
crever aqui J . R. Não pôde... peripécias,, navegando rios e iga-
Se você fosse J o s é Bento... Ah ! Essa tenha paciência. E'
33 A NOVELLA SEMANAL

r a p e s , transpondo " f u r o s " e ven- feito de altivez, esse impulso de d r a m a daquelles. Actores e es-
cendo mil perigos e sacrifícios, patriotismo, que os nossos ob- pectadores, é u m a só a impres-
a 28 de j u n h o , a commissão che- sequiadores, sentindo-se mal pos- são que os envolve.
g o u a Curanja, caserio peruano, tos ante nós, em seu próprio Quaes, pois, as novas directri-
em franca decadência, n a mar- território, se justificaram dó es- zes l i t e r á r i a s ?
g e m direita do rio P u r ú s , si- quecimento, propositado ou não, Mal definidas ainda, percebem-
tuada defronte da confluência da nossa bandeira, dizendo, pela se, e n t r e t a n t o , aqui e alli, indi-
desse com o " C u r a n j a " , que no voz, não me recordo bem se de cadas j á por diversos críticos.
mappa de W . Chardless está com Eloy Barbaran, n u m a satisfação A n t e s da conflagração, a psy-
o nome de Curumaha e que de- com vincos de d i p l o m a c i a : chologia era a espinha dorsal àe.
pois do Acre é a principal for- «TJsted comprendió m u i bien novella e chegou-se a desdenhar
quilha do P u r ú s , onde se demo- n u e s t r o pensamiento.» nos altares desta moda literária,
rou 5 dias ide 28 de j u n h o a 2 da u r d i d u r a , t r a m a ou intriga,
•de julho.) Curanja teve outr'ora, que foi, é e será a razão eterna
cerca de mil habitantes, mas de toda n a r r a t i v a . Certa perver-
•era 1905 a sua população estava sidade enferma e decadente, con-
reduzida a 120 pessoas. siderada de «bom tom» e sym-
Ahi, onde a população cau- p t o m a t i c a de refinamento espi-
«hera vive em perpetua g u e r r a
com os indios " c o r o n a u h a s " , rea-
VtddLu literária
~ p
ritual, pôz o seir grão de pimen-
ta no g e r a l m e n t e desabrido dos
lisou-se, em casa do peruano a r g u m e n t o s e desta arte, obras
Eloy Barbaran, u m almoço tíf- absolutamente fracas e inverte-
ferecido á commissão brasileira. A moderna orientação bradas adquiriram apparencias
de robustez. A novella franceza,
Recebida para a cerimonia com da novella que o r i e n t a v a caminhos, estava
salvas de 21 tiros de riffle —
conta o dr. P i m e n t a da Cunha : reduzida, quasi exclusivamente,
A guerra não abalaria o m u n - ao trabalho cirúrgico de pers-
— cAo iniciar-se o repasto, o do, subvertendo todas as nossas
o l h a r investigador de Euclydes c r u t a r e descobrir «modalidades
idéias, sem que sobre a litera- h u m a n a s >.
d a Cunha notou a ausência da t u r a desencadeasse as ultimas
nossa bandeira naquella profu- descargas de sua influencia, ge- Os novellistas que durante a
são de ornamentos, onde o sym- neralisada a todas as manifesta- g u e r r a deveriam bater-se ou em-
bolo peruano avultava ostensi- ções da vida. As letras, sujeitas p r e g a r seus talentos • em obras
vamente com as suas bellas co- não só á evolução, mas até As mais u r g e n t e s , ao retomar a
res. Mas o verde amarellado do modificações dictadas pela moda penna, relatam o àbysmo aberto
-"palmito" que elles para alli ephemera, não veriam passar, entre 1914 e 1920 pela conten-
levaram, inspirou a Euclydes, no incólumes, a grande catastrophe. da, achando-se n u m estado de
seu discurso de agradecimento, Producto do ' espirito, no que deslumbramento, como se se hou-
a s palavras de requintado civis- elle tem de mais intimo e pro- vessem transportado de uma épo-
mo, pelas quaes ficaram os pe- fundo, soffreriam parallelamente ca conhecida a o u t r a ignorada.
ruanos sabendo que melhor va- o que soffresse aquelle. Ora, com A s i d é a s , a, moral, os sentimen-
liam, alli, perto dos extremos os phenomenos sociaes e econô- tos, a orientação esthetica do
virgens da nossa Pátria, a sua micos, que profundamente mo- povo, são para elles u m enigma
representação entre aquelles en- dificaram o meio, t a m b é m pro- e como qüe adivinham uma mu-
feites de momento, pelos leques fundamente se mudou a menta- dança radical no que antes era
colhidos á palmeira altiya e re- lidade collectiva. a «elite ; o espectaculo da vida
<".ta, como também altiva e rec.ta e dos homens apresenta-sè por
A trincheira foi um nascedouro
e altaneira ella tem sabido ser, um signal de interrogação.
de emoções dispares. 0 mysti-
e m vezde symbolisada por tecidos
cismo de quem viu perto a A moderna novella é a que se
mal tintos, que os mercados of-
morte e a possibilidade de uma escrevia para creanças, que só
ferecem.,.
vida futura não desarraigou, an- são capazes de c u r t a attenção.
Tamanhos sacrifícios, seme- tes desenvolveu e acirrou o ma- Urdidas u n i c a m e n t e com o ob-
l h a n t e s desconfortes, iguaes tor- terialismo de quem, instinctiva- jectivo de divertir, não se pre-
t u r a s de corpo e de espirito, mente, t a n t a s vezes se concen- oocupam nem com o colorido
todo o tortuoso itinerário pelo t r o u n a necessidade premente da dos logares, nem com a observa-
qual alli chegamos, si a nossa própria conservação. Situação de ção da sociedade, n e m com a
consciência não nos tivesse dado naufrago, solicitado, no momen- realidade dos personagens, nem
quitação delles, pelo bem do to estremo, por tão desencon- com a intensidade das paixões
dever cumprido, pela fortuna de tradas suggestões, determinaria, que affrontam, nem sequer com
s e r v i r á Pátria, esse gesto ca- certo, u m novo estado d'alma, a credibilidade.
valheiresco de Euclydes, com o Experimentaram-no milhões e A «Atlandida», do Pi erre Be-
•orgulho de que nos encheu fora milhões de homens. Contagia- noit, accusada como plagio de
* recompensa mais eloqüente por ram-se delle, á força da emoção Rider H a g g a r d , é o typo. Pode
q u e nos satisfaríamos. mais intensa, sentida por uns, figurar ao lado dos romances de
Esse gesto valeu, pois, por si sobre as mais flebeis, sentidas Alexandre D u m a s (pae) e dos
só, a pena dos soffrimentos. por outros, os restantes milhões auctores inglezes como Maiae
E tanto m a i s ' avultou esse de homens que assistiram ao Reid e outros. E m poucos me-
A NOVELLA SEMANAL 39

zes as edições alcançaram 80.000 mysterio d a vida do além. A provamos entre alguns jovens
exemplares. predilecçâo pelas u l t i m a s leitu- poetas que fizeram a g u e r r a .
O quinquennio da g u e r r a pre- ras explica-se pelas circumstan- A novella moderna degenera,
parou a mentalidade publica com cias especiaes , em que viviam pois, em folhetim, até que, u m
a ferramenta cinematographica. os leitores ; a essa influencia se dia, a nova geração, aproveitan-
Nos paizes em que se comba- devem m u i t a s das numerosas do essa tendência, possa riesta-
tia, a angustia era enorme p a r a conversões mysticás, que com- belecel-a em nivel superior.
permi ttir aos cérebros u m esfor-
ço supplementar de attenção e
penetração. Os povos só procu-
ravam balsamos obliterantes nas
leituras ,e espectaculos,' natural-
mente pela variedade, pela mo-
Osnosms
dicidade de preço e pela profu-
são e diffusão. O cinematographo
era o. espectaculo predilecto mes- OS VERSOS DO IMPERADOR
mo das pessoas, que antes o re-
pelliam pelo seu gosto, educação D. Pedro II, imperador do Brasil, soaes injjjmas, das circumstancias do
e, condição social. sábio e erudito, acatado como tal nas momento, propicias ao desabroohar
Academias e Institutos das capitães da inspiração, que a equivalência dos
P e l a mesma razão, generah- européas, foi também poeta e não o valores moraes e meutaes no homem
foi sem razão. O gosto artístico e o nos dá essa estupenda maleabilidade,
zaram-se os, romances de aven- gênio não começaram para se extin- que atravez das vicissifcudesnos con-
t u r a s e as novellas policiaes, guir com elle em sua longa cadeia duz, podendo fazer de nós tâo grande
sobretudo quando a America do dymnastioa. A corte de D. João V I poeta quanto hábil carpinteiro, tanto
foi u m "Viveiro de artistas. Na pintu- artista quanto artifice,tanto dramatur-
N o r t e introduziu esses monstros . ra, Taunay, Debrèt, Grandjean, Du- go quanto financista, rico mercador
o a E u r o p a — monstro hybrido bugras e,v na musica, Marcos Portu- ou literato, heroe ou bandido, excel-
que se denomina a novella ci- gal, José Maurício e Praneisço Ma- lente imperador ou bom poeta. D. Pe-
noel oompuzeram o ambiente dós reis dro I I rei, era o plasma, continente tle
nematographica — que se lê nos lusos no Rio de Janeiro. D. Pedro I Pedro I I , poeta. O artista nelle con-
j o r n a e s de m a n h ã e á noite se foi pianista e musico notável. tido rompeu feito, assim que o plas-
ve representada n a s salas de Não admira, pois, que D. Pedro I I maram as circumstancias.
fosse poeta. Razões ethnicas o pre- A revolução feriu-o, fundo. B elle,
exhibição dos bairros. dispunham para tanto e razões aotuaes que nao era hospede no mister, sur-
Anciãos, t n u l h e r e s e crianças de faotos abundavam em sua larga giu grande poeta. Os seus sonetos
cultura, seu espirito philosophieo, seu mais reputados datam,do exilio, pro-
sentiam a necessidade do con- impenitente idealismo com todo o sé- vêm da grande dor que o cruciou. A
tacto, da mudança de impres- quito de sentimentos que o distin- magnanimidade do imperante se fez
sões, das confidencias, dos te- para gúiam. Com isso, que lhe faltava poesia e belleza.
poetar como grande poeta ? Appareeeram, então, os seguintes
mores, das esperanças... e tam- Carecia, talvez, das condições pés- versos:
bém a necessidade de esquecer,
d u r a n t e u m a s duas horas, p a r a TERRA DO BRASIL
dar tréguas á excitação que a- y
ctuava sobre os nervos, e reno- -Espavorida agita-se a creança
var o a r sentimental dos cora- De noc turnos phantasmas^com, reoeio,
ções que afogavam as a n g u s t i a s . Mas se abrigo lhe dá materno seio
Pecha os doridos olhos e descança.
Então, recorriam á sala dos ci-
nemas. Viam-se em pleno in- Perdida é para mim toda a esperança
De volver ao B r a s i l : de lá me veio
verno, sobre a neve caida e sob Um pugilo de terra ; e nesta creio
-a neve que caia, em r u a s escu- Brando será meu somno e sem tardança.
ras por economia, de luz, as fi- Qual o infante a dormir em peito amigo,
leiras intermináveis de gentes Tristes sombras varrendo na memória',
resignadas e m a r t y r i z a d a s , q u e O' doce pátria, sonharei' comtigo !
iam esperar a vez de penetrar E entre visões de paz, de luz, de gloria, '
no palácio da illusâo e do olvido. Sereno aguardarei no meu jazigo
E os combatentes ? , A justiça de Deus n a voz da Historia!

E r a de ver-se esses ofücíaes e


esses soldados licenciados sitiar
«music-halls?, cafés-concerto e Acaba de apparecer
cinematographos, para rir, para A PRIMEIRA SERIE DE
sentir-se n a vida civil e sobre-
tudo para esquecer o pesadello
de 3 mezes.
De u m inquérito feito por u m
VULTOS E LIVROS
(ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS)
diário de P a r i s , d u r a n t e a guer-
ra, resultou que nas trincheiras
se liam duas classes de livros :
POR A R T H U R MOTTA
as novellas de imaginação e as P e d i d o s a M o n t e i r o L o b a t O (&. C . E d i t o r e s
obras que objectivam de algu- Rtaa B o a V i s t a N . 5 2 & C a i x a 2 - B & S Ã O P A U L O
ma forma aclarar o turbador
40 A NOVELLA SEMANAL

MENSAGEIRO DO AMOR TREZE DE MAIO

«Mensageiro do amor e da saudade, «Desfallecido, errante, forasteiro,


Toma teu vôo pela azul planura ; .lá das sombras da morte circumdado,
Vai dizer ao Brasil em que tristura Súbito ouvi : «Resurge ! que extirpado
Tu nos deixaste aqui na soledade. Foi no Brasil p'ra sempre o captiveiro !»

Vogam commigo os meus na immensidade, Presto a fugir, o alento derradeiro


Buscando em terra estranha sorte escura Volveu-me ao coração quasi parado :
E eu mais longe inda irei : que desta agrura «.Grande povo I» exclamei, -povo adorado !
Sei que caminho vou da Eternidade». Entre os demais da terra és o primeiro !»

Mas ah ! que vejo ! Apenas te remontas Traguei, depois meu calix d'amargura,
Entre dous pegos voejando ás tontas Mas da verdade a lei não ha quem mude :
Rápido tombas em revoltas águas. Grande povo ! e u dissera entre torturas.

Bemvindo sejas, ó celeste aviso ! Grande povo no brio e na virtude !


i Que assim me revelaste de improviso S« feliz, goza em paz as mil venturas
A morte como termo a tantas magnas. Que deparar-te quiz e que não pude!>

CALVA RIO A' IMPERATRIZ

A provação nem uma o Heroe divino Corda que estala em harpa mal tangida,
No drama da paixão tentou forrar-se, Assim te vaes, ó doce companheira
E na fronte a sangrar sentiu cravar-se Da fortuna e do exilio, verdadeira '
Duro espinho por mãos de algoz ferino. Metade de minha alma estremecida !

Vaias do poviléo em desatino, De augusto e velho trohoo haste partida.


Sob o látego a carne a lacerar-se, E transplantada á terra brasileira,
E, para o sacrifício consummar-se, Lá te fizeste a sombra hospitaleira
Na cruz a morte oomo escravo indino. Em que todo infortúnio achou guarida.
Porém a Virgem Santa, alto sacrario. Feriu-te a ingratidão no seu delírio ;
Manda efcernal poder que immune seja Oahiste e eu fico a sós, neste abandono,
De escàrneos e baldões da grei malvada. Do teu sepulcro vacillante cirio !
iDeus, ó Deus! tarabem estou no meu Calvário Como foste feliz ! Dorme o teu somno...
E assim possa eu morrer, antes que veja Mãe do povo, acabou-se-te o martyrio ;
A Pátria, minha mâi, despedaçada ! Filha de reis, ganhaste um grande throno '.

CÁRCERE DE ARG.ILLA INGRATOS


Deus, que os orbes regulas esplendentes Não maldigo o rigor da iniqua sorte,
Em numero e medida ponderados, Por mais atro^ que fosse e sem piedade,
Nelles abrigo dás aos desterrados, Arrancando-me o throno e a magestade,
Que se vão suspirosos e plangentes. Quando a dois passos só estou da morte.
Assim, dos céos às vastidões silentes Do jogo das paixões minha alma forte
Ergo os meus pobres olhos fatigados, Conhece bem a estulta variedade,
Indagando em que mundos apartados Que hoje nos dà continua flicidade
Lenitivo á saudade nos consentes. J£ amanha — nem um bem que nos conforte.
Breve, Senhor, do cárcere d'argilla Mas a dôr que excrucia e que maltrata,
Hei de evolar-me, murmurando ancioso A dôr cruel que o animo deplora,
Timida prece : digna-te d'onvil-a. Que fere o coração e prompto mata,
Põe-rno ao pé do Cruzeiro majestoso, E' ver na mão cuspir á extrema hora
Q.ue no autarctico céo vivo scintilla, A mesma boca aduladora e ingrata
Filando sempre o meu Brasil saudoso ! Que tantos beijos nella poz outr'ora.

São, de faeto, do Imperador'! Ou diminuil-o como letrado no conceito Não é de crer, porém, a hypothese-
lh'os attribuem, simplesmente ? publico, são numerosas. Conta-se, por Mystificação e charlatanice innomina-
exemplo, que, publicadas «As pom- veis, repugnam tanto á índole nobre,
Coincidindo a publicação delles com hriit», S. M., apreciando immenso o recta, equanime do ex-monarcha, en-
o agitado momento político dos pri- celebre soneto de .Raymundo, como tão ainda vivo para nao consentir no
meiros annos do regimen, não falta- toda a gente, dirigiu-se, entretanto, embuste, como á feição moral doa
ram versões varias que deram a este ao poeta e em conversa lhe pergun-
ou aquelle a gloria de tão bellos dois iIlustres homens de letras.
tou porque não substituía o verso :
versos e a D. Pedro, apenas, a attri- Por certo, não são apocryphos os
buição simples, arma política para o sonetos do Imperador. Quando menos,
effeito sentimental perante a multi- Ruflando as azas, sacudindo as ha na vida e precisa haver uma pre-
dão, Afíonso Celso e Carlos de Laet pennas», sumpçâo de sinceridade e verdade pa-
foram chamados, á surdina ; a perfi- di/.endo de preferencia : ra, o recto julgamento de homens e
lhar os sonetos — bombas, que pu- • Sacudindo as azas, sacudindo coisas. Desse presupposto de honesti-
nham, mansamente, em cheque a Re- as pennas...» dade, que não pode ceder ao primei-
publica nascente. ro choque, pois que é de exacta veri-
JI.is com ()UH fundamento se duvi- Seria um desastre. Perder-se-ia o ficação a impotência da erronia e da
dava, assim, da assignatura de D. Pe- rxcellente verso de Raymundo, mag- mentira, parte a crença na authenti-
dro ? Xão era elle o sábio e o erudito nífico muito apesar do neologismo — cidade dos sentidos versos do monar-
conhecido ? ' ruflando^ — e ter-se ia um verso es- cha deposto, corroborada por tantas
randalo^amente quebrado e pifio... probabilidades.
E' que, impiedosamente alvejado
pela critica, nunca lhe respeitaram os Assim, a suspeição assumia visos de Não tergiversamos, portanto, ao re-
adversários a reputarão de homem \erdade, estribada em tamanha cinca produzir aqui, sob os queridos versos,
cultn. As anerdotas. que procuram de e r i t i e o . a imperial assignatura.
A D I Ç Õ E S D A

AMADEU AMARAL F. T. DE SOUZA REIS


A Pulseira de Ferro (novella). 1Í000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
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Os Negros (novella) . . . , 1$000 Estudos de Direito Commercial . . . . Í0$0rj0
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Ritinha (novella) No prelo
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Almanach Commercial Brasileiro de 1918 6$000
Mula sem cabeça (novella) No prelo
NICOLAU ATHANASSOF
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Os Suínos, manual do criador de porcos
O que o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) . 3$000
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Revista do Brasil
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NEORINHA, contes por Monteiro DIAS DÊ GUERRA E DE SER-
Lobato . : 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pelo
URUPÉS, contos por Monteiro Lo- ~ Visconde de Taunay . . . . 4$000 5$000
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Vaz, 3.a edição 4$000 5$000 SCENAS E PAISAGENS DA MI-
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires. 5$000 —
reto 2$000 - CASA DE MARIBONDO, contos,
LIVRO DE HORAS DE SOROR João do Norte. . . . . . . 3$000 —
DOLOROSA, poesias por Gui- PAIZ DE OURO E ESMERALDA,
lherme de Almeida 5$000 — romance,/. A. Nogueira . . . 4$000 —
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 MAIS 10 o/o PARA O PORTE
Pedidos aosEditores? M o n t e i r o L o b a t O (Si C , C a i x a 2 - A - S . P A U L O
A NOVELLA NACIONAL
'Volumes publicados:™
A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por
série de pequenos livros, nos quaes. AMADEU AMARAL, o successor, de
se mira ao seguinte escopo : offerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "W no gênero uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima „ — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEQ VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do ''Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 i/2 X 12 l / 2 centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias j á sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

OS NEGROS

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelío Pires e outros.
Cada volume lífliOOO em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado lfl>300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados:
Série de três novellas
3$500; série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas HfOOO.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr. Abranches N« 43
Caixa, 1172 - SA0 PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — Lâ, foges, aconspíiiou.-me um, etc.
ANNÔ 1 SÃO PAULO, 16 DE MAIO £>É 1Ô21 NUMERO 3

SEMANAL

COLLECÇÃO de pequenos livros de versos a


se publicar sob a direcção de Amadeu Ama-
ral (da Academia Brasileira) e destinada a
vulgarizar as obras dos poetas novos de
grande merecimento, ainda pouco conhe-
cidos dojpublico.
Iniciaremos a collecção coin o primoroso livro MANHA do poeta paulista Graccho Silveira
SOCIEDADE EDITORA OLEOARIO RIBEIRO — Rua Dr. Abranches, 43 — Caixa, 1172 — S. Paulo

OCEDITOEáLOLEGARiai^Ea^
A NOVELLA SEMANAL DlRECTÒR BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE ÁS SEGUNDAS-FEIRAS
Tara os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collecções
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam,
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remn- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neraÇão dos auctores. Vivemos, assim, num circulo vi- cido e inacoessivel. Das obras ainda em extraoçSo no
cioso : o livro nao se diífunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e e caro porque não se diffunde. Isto succede com, o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didaoticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do-livro e do auotor,
E s t a situação, de tão funestas conseqüências para o de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
paiz, suggeriu a iniciativa da creaçSo deste periódico, vros que, sem, esse reclame, muitos provavel-
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
boa literatura. tempo todas as indicações precisas para que qualquer
pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o acce'ssivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui u m a pequena amostra e das outras obras- do mes-
possivel pela escrupulnsa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que um abundante repositório de infor-
dos os meios para o diffundir em, todo o território ntt- mações bibiiographicas. uma selecta de pequenas obras
cional. de fronteira, a fronteira, e entre todas as classes exçellenres, organizada com o fito de tnrnar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- .fronteiras.
gr*mma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
f. da revista, A NOVK1.LA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as vantagens desta c daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por. auctores conheci-
apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos e desconhecidos, consagrados e estreantes,comtunto
le, á toda gente ; mas não será futit e de interesse e- aue taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phemero como ella : pelo fando — pela qualidade e pela feição d'A NOVEILA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
ilo pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
nina bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volumes, por' serem esses os
gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores, Mas não nos restringiremos a elles, em-
p creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e, bora .delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora. Todos os outros gêneros terão o seu logar no nosso
X^rocurará nos auctores a. .vida, a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se colloca â disposição do publico., dos auctores.e dos
trabalhos inéditos. Não seria.este o melhor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathiro.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- Os EDITOIIKS.

Aos auctores
Acceítaremos com prazer toda col- queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessante para qualquer Aos leitores que nos enviem relações de auctores
das secções deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a noH
Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seu nome, villas, povoações. estradas de ferro, os examinar.
endereço ,e o preço pelo qual nos of- navios, hotéis, clubs, bibliothecas, e t c ,
ferecem a sua collaboração. estando porisso organisando um ser- Importante
Os originaes devem ser escriptos de viço de distribuição que será o mais Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em calligraphia completo possivel, de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legivel e de preferencia dactylo- ver ponto, do território nacional onde enviando-nos adeantad.amente a. res-
graphados. não tenha leitores e não seja.-encon- pectiva importância, terá direito à
Toda a correspondência deve ser trada à venda. P a r a obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
garío Ribeiro — Caixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
interessar pela venda ou leitura des- sil, no valor de 20 o/o sobre o preço
A NOVELLA SEMANAL prrbliearà
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, Anno . . 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra,
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre . . . . . 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . . 5$000
lém disso uma noticia critica. fornecida, rogando a todos quantos Numero avulso . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - R. Dr. Abranches, 43 - Caixa Postal, 1172 - Teleph.: Cidade, 5441 - S. PAULO
A N O V E L L A SEMANAL - São P a u l o , 16 de Maio de 1921 N ÚMERO 3
ANNO I

V
MÚSCULOS E N E R V O S r
' \luizio Azevedo.
1UMM4RIO Curiosidades literárias -Vic-
tima da critica.
Vida literária - A áctivida-
A M O R T E D O CAMICÊGO de editorial de S, P a u l o .
— Monteiro Lobato Os noSsos poetas - Um so-
A SESSÃO D O INSTITU- MUSICA DE A M O R — S U P P L E M E N f O — A vida neto 4e Laêt.
T O — Rodrigo Octovio. A r m a n d o Erse - (João ' anecdotica e pittoresca Leituras - Populações meri-
Luso). dos grandes escriptores dionaes do Brasil — His-
O SINEIRO D E C A N U D O S torias da nossa historia.
—' Escragnolle Doria. Luiz Delphino.

MÚSCULOS E NERVOS
Terminava a primeira parte do espectaculo, — 'Bravo I Bravo, Scott!
quando D. Olympia entrou no circo, pelo braço E os applausos. recrudesceram ainda.
do pae. O gymnasta, que entrara de carreira, parou em
Havia grande enchente. O publico vibrava, ain- meio da arena, aprumou o corpo, sacudio a ca-
da sob a impressão dó ultimo trabalho exhibido, belleira anelada, e, yoltando-se para a direita e
que devia ter sido maravilhoso, porque o enthu- para a esquerda, atirava beijos, sorrindo, no meio
siasmo explodia por toda a platéa e de todos os d'aquella tempestade gloriosa.
lados gritavam ferozmente: «Scott! A' scena Scòtt!» Depois de' agradecer, estalou graciosamente os
Dous sujeitos de libre azul com alamares doura- dedos e retirou-se de costas, a dar cambalhotas
dos conduziam para o interior do theatro um ca- no ar.
vallo que acarWa de servir. Muitos espectadores, Desencadeou-se dè novo a fúria dos seus admi-
de chapéu no alto da cabeça, estavam de pé e radores, e' elle teve de voltar á scena inda uma
batiam com a bengala nas costas das cadeiras; as vez, mais outra, e outra, cada vez mais trium-
cocottes pareciam loucas e soltavam guinchos, phante.
que ninguém entendia- das galerias trovejava um Olympia entretanto, com a cabeça pendida para
barulho infernal, e, por entre aquella descarga a frente, o olhar fito, os lábios ehtre-abertos,
atroadora, só o nome do idolatrado acrobata so- dir-se-ia hypnotisada, tal era á sua immobilidade.
bresahia, exclamado com delido por mil vozes. O pai tentou chamal-a á conversa; ella respondeu
- S c o t t ! Scott! por monosyllabos
Olympia sentiu-se aturdida; o pae, no intimo, — Queres... vamos embora.
arrependia-se de lhe ter feito a vontade, consen- — Não.
tindo em leval-a ao circo; mas o medico recom- Na segunda parte do espectaculo, a moça pa-
mendára tanto que não a contrariassem... e ella recia divertir-se. Não despregava a vista de Scott,
havia mostrado tanto empenho no capricho de ir a quem cabia a melhor parte dos trabalhos da
aquella noite ao PoJytheama... noite.
De repente, um grito unisonp partiu1 da mul- O mais formoso era a sorte dos vôos. Con-
sistia em dependurar-se elle, de um trapezio
tidão. Estalaram as palmas com mais ímpeto; cho-
muito alto, deixar-se arrebatar pelo espaço e,
veram chapéus; arremessaram-se leques e ramalhe-
em meio do trajecto, soltar as mãos, dar uma
tes. Scott havia reapparecido. '
42 A NOVELLA SEMANAL

cambalhota e ir agarrar-se a um outro trapezio Olympia, livida, tremula, estonteada, quando


que o esperava do lado opposto. deu por si, achou-se sem saber como, ao lado do
moribundo.' Ajoelhou-se no chão, tomou-lhe a
Cada um destes saltos levantava sempre uma
cabeça no regaço, e vergou-se toda sobre elle,
explosão de "bravos.
procurando sentir nas faces frias o derradeiro
Scott havia feito já, por duas vezes, o seu vôo
calor d'aquel!e bello corpo esculpiural e másculo.
arriscado; faltava-lhe o ultimo e o mais perigoso.
E, desatinada, offegante, apalpava-lhe o peito, o
Differençava este dos primeiros em que o acro- rosto, a bronzea carne dos braços, e, com um
batk, em vez de lançar-se de frente, tinha de ir grito de extrema agonia, molhava a bocca no
de costas e voltar-se no ar, para alcançar o tra- sangue que elle expedia pela bocca.
pezio fronteiro.
Scott teve um estremecimento geral de corpo,
O publico palpitava ancioso, até que Scott afi-
contrahiu-se, vergou a cabeça para traz, volveu
nal assomou no alto trampolim armado nas tor-
para a moça os seus límpidos olhos commovidos,
rinhas, junto ao tecto.
agora turvados pela morte, cerrou os dentes e
, Cavou-se logo um fundo silencio nos especta-
n'um arranco supremo, soltou o gemido derra-
dores. Os corações batiam com sobresalto; todos
deiro. !
os olhos estavam cravados na esbelta figura do
artista, que, lá muito em cima, parecia, nas suas E o corpo do acrobata escapou das mãos finas
roupas justas de meia, a estatua de uma divinda- de Olympia, inanimado.
de olympica. Destacava-se-lhe bem o largo peito ALUIZIO AZEVEDO
hercúleo, guardado pelos grossos braços nús, em
contraste com os rins estreitos, mais estreitos
que as suas nervosas coxas, cujos músculos de
aço se encapellavam ao menor movimento do
corpo.
Com uma das mãos elle segurava o trapezio,
emquanto com a outra limpava o suor da testa.
Depois, tranquillamente, sem o menor abalo»
prendeu o lenço na sua cinta bordada de lente- Á MORTE DO CAMICÊGO
joilas e deu volta ao corpo. Foi o Edgard quem lançou o monstro, um dia.
Ouvia-se a respiração offegante do publico.
O Camicêgo era, na sua imaginação 'de quatro
Scott sacudio o braço do trapezio, experimen- annos, um bicho "malvado", grande como o ar-
tando-o, puxou-o afinal contra o collo e deixou- mário a principio, deppis do tamanho do morro.
se arrebatar de costas. Comia gente, e tinha um bico assim. Este assim
Em meio do circo desprendeu-se, gritou: «Hop!» não era dito, mas figurado nu*ma careta de lábios
deu uma volta no ar e lançou-se de braços es- repuchados em bico e olhos esbogalhados. Com
tendidos para o outro trapezio. tão gentil fodnho não devia de ter má rez o
Mas, o vôo fora mal calculado, e o acrobata monstro, pensava a "gente grande" que de pas-
não encontrou onde agarrar-se. sagem o via refranzir-se naquella onomatopéa
Um terrível bramido, como de cem tigres a muscular — mas para os cinco annos nervosos
que rasgassem a um só tempo o coração, echoou da Martha era de crer fosse horrendo, tal o rictus
por todo o theatro. Vio-se a bella figura de Scott, d'assombro com que enfitando a macaquice do
um instante solta no espaço, virar para baixo a irmão lhe arremedava o muxoxo, sem o perce-
cabeça e cahir na arena, estatelada, com as pernas ber. E eram proezas intermináveis do Camicêgo
abertas. improvisadas na rede com muitas interrupções
O recinto do circo encheu-se logo. Nos cama- perguntativas e explanações de truz.
rotes mulheres desmaiaram em gritos; algumas
-<- E elle come gente ?
pessoas fugiam espavoridas, como se houvesse um
incêndio; outras jaziam pallidas, a bocca aberta e Preoccupava á Marta, sempre que se lhe anto-
a voz gelada na garganta. Ninguém mais se en- Ihava algo desconhecido, visto pela primeira vez,
tendia; nas torrinhas passavam uns por cima dos um bezourão, um lagarto, uma coruja, saber do
outros, n'u.ma avidez aterrada, disputando ver se grau da sua anthropophagia, delle bicho.
conseguiam distinguir o acrobata. O mundo andava repartido em duas classe9
Este, todavia, sem accordo e quasi sem vida, oppostas: a dos bons, que hão comem gente e a
•agonisava por terra, a vomitar sangue. dos maus, que a comem.
A NOVELLA SEMANAL 43

— Pois nãó sabe que comeu o filho da Mariana Um dia appareceu por lá um morcego mori-
lá no morro, na noite de chuvarada ? bundo d'azas amarrotadas pela vassoura da copeira.
A menina volvia os olhos sonhadores para a mor- O Edgard identificou incontinente o bicho nunca
raria enquadrada pelas vidraças e quedava-se a visto.
scismar. — E' o Camicêgo.
Já o Guilherme, cujos dois annos e pico inda E de roda em torno ao monstrengô quedaram-
o traziam muito amadòrnado de imaginativa, nãó se os três em demorada comtemplação: a menina
se impressionava grande cousa e a meio da pa- em arredio rio meio asco da sua feminilidade
pagueada hoffmanica saltava da rede a pedir cousa nervosa; o Guilherme espichado no soalho de ca-
mais positiva, o pão de ló, o bolinho de milho, rita apoiada nas mãos ambas; o outro á pegar sem
a guloseima qualquer do dia entrevista no guar- nojo no bicharoco, a estirar-lhe as azas em gomos
da-comida. de guarda-chuva,.a abrir-lhe a bocca para mostrar
a serrilha dos dentes brancos, explicando, inventan-
E a historia lá continuava, a dois, na rede onde
do petas a respeito.
os ' passa ricos se balou cavam isochronos como
dois ponteiros de metronomo — sempre entre- — E elle come gentef?
mèiada das perguntas da Martha, futura consu- — Boba! pois não vê que nem come carne
midora de Escrich, e cabalmente delueidada pelo este fósforo ? e mettia um palito guella a dentro
Edgard, um Wells em embrião. do bicho em transe final.
— E onde mora elle ? Nisto "gente grande" pilhou a "porcaria" e com
No quarto escuro, debaixo da cama, no buraco ralhos ásperos dispersou o bando, pondo termo
do forno, rtaquelje barranco, onde cahíu a vacca á lição de cousas. E o morcego voou zunindo
— Edgard encontrava de pancada uma dúzia de para o quintal. Não valeu o pito. O necrotério
luras tenebrosas onde encafuar a sua creaçãp. transferiu-se para lá, á sombra de uma jabotica-
A's vezes brincavam de casinha na sala de vi- beira. O Edgard com uma faca de, mesa procura
sitas, sempre em meia luz como todas as salas abrir a barriga do "cevado". Iam fazer sabão da
de visita da roça; sob o sofá antigo de cabiúna, barrigada e lingüiça das tripas. Mas a faca não
armavam com álbuns de musica e as almofadas cortava, o monstro rijo e molle fugia á direita, á
a casita da Irene, a grande boneca de louça sem esquerda, e a cosinheira, em busca de cebola pa-
pernas. ra o jantar, pilhou-os de novo na "porcaria".
Com sua autoridade de negra velha e "gente
-Ç era todo um fantástico mobilar de casa. Ca-
grande" e para evitar reincidência pinchou com
cos de tigelas coloridas figuravam de sumptuosa
a nojenta pellanca do vampiro p'ra riba do telhado.
porcellana, em'travessas, sopeiras e pratos onde
sabugos apanhados ao pé do cocho das vacas e
representando os grande personagens da casa, a Datou d'ahi a morte do Camicêgo. Não ame-
Anastácia cosinheira, o Ezáu, o Virgolino cata- drontava mais. Se alguém o relembrava, riam-se
cego, o domador, comiam folhas de carúrú em- porque a imaginação dos três incarnava logo o
quanto, amarrado ao pé da cadeira, pinoteava a monstro na carcassa triste do pobre morcego.
égua moura. Esta alimaria não passava de um Ha muita gente que não dispensa moralidades.
xúxú espetado de quatro palitos á guiza de per- Querem-n'as tanto nas fábulas como em historias
nas, uma penna de galliriha como cauda e trez de crianças.
caroços de feijão enterrados na cara, prefiguran- A esses, para contental-os, diga-se que os ho-
do bocca e olhos — "suggestiva esculptura da co^ mens, como crianças grandes, quando corporisam
sinheira que todos preferiam aos cavallos de suas idealisações em realidades palpáveis, veem-
Nurémbefg, pimpões de garbo eqüino sobre suas n'as definhar miseravelmente.
quatro rodas de chumbo, áquellas horas esqueci- Com serem "gente grande" não deixam de ter
dos ãtraz dos armários a conversar com teias de lá seus Cah^icêgos e estes saem-lhes rélissimos
aranha. morcegos sempre que a vassourada de um cria-
A's súbitas, o Edgard já farto, apontava um do os pespega para cima da mesa anatômica.
desvão da sala mais intenso de sombras e berra- Ou esta ou outra qualquer. Ou melhor nenhu-
va: o Camicêgo ! ma, que isto é simplesmente historia de criança
E debandavam todos em grita, n'um louco copiada d' ao vivo e não fábula de Phedro a
moderno.
pânico até a sala de jantar, onde paravam offe-
gantes, a rir de susto. Fevereiro de 1915 M. LOBATO
44 A NOVELLA SEMANAL

rompendo subitamente a existência de casaes que


toda a gente, mesmo a mais intima, via levar
sem attrictos a monotonia conformada do casa-
mento ?
É que essa existência vivia apenas da força do
habito, dá convenção da fatalidade do matrimô-
nio. Uma qualquer circumstancia que venha
A SESSÃO DO INSTITUTO demonstrar praticamente a mentira dessa conven-
(Trecho de carta)
ção pode operar o desmoronamento de toda a
E a propósito de teu casamento dá que te conte architectura.
uma historia da qual poderás tirar fecunda lição.
Só a felicidade, gerada pela comprehensão dos
O caso é verdadeiro tanto quanto o possa af-
espíritos, tornando necessária e desejável a con-
firmar, pois se passou commigo. Como sabes,
tinuidade desse estado, cria a indissolubilidade
com tua prima, essa nobre e sadia creatura que
desses laços.
foi minha mulher, vivi na mais confiante harmo-
Para mim, pela sciencia que adquiri da socie-
nia; não alguns annos somente, quasi um quarto
dade e do coração humano, esta se me afigura
de século.
a verdade, e a transmitto ao meu jovem amigo
Attribuo esse entendimento entre nós dois,
no momento em que me communica o seu pró-
essa justa comprehensão da vida conjugai, a um
ximo enlace, sem tomar nada pelo sermão.
pequeno episódio, quasi uma anecdota, que oc-
correu nos primeiros tempos de nossa união e Vejo agora que o meu caso ficou á margem
que me ensinou a comprehender o coração da tendo-me eu embrenhado por umas considerações
mulher e a inutilidade de o procurar enganar, philosophicas de que me penitencio. Se não com-
mais que a leitura de tantos psychologos que a- prehenderes o que acima ficou dito ou se achares
bundavam já por aquellas eras. pueril, a velhice é a segunda infância, perdoa ao
O que faz a felicidade de entes que se casam, teu velho amigo e rasga 'esta carta, mas rasga-a
não é tanto a perfeita conformidade na vida ma- depois de a teres lido até o fim. Ganharás com
terial de que a intima confraternisaçãó do espi- isso. Torno ao meu caso.
rito. Sem o reciproco entendimento do caracter Foi nos primeiros tempos do meu casamento.
e da vontade não pode ser definitiva a conjunc- Mal havia escoado o primeiro anno de uma exis-
ção de duas creaturas. Certo a Continuidade da tência suave, iniciação do longo período dessa
vida commum, e sobre tudo a crença convencio- intensa vida a dois que foi a nossa vida commum.
nal de que é definitiva tal situação, gerando Eu ainda não havia sido inteiramente conquis-;
hábitos que se inveteram, creando essa atmosphe- tado pela collaboração de minha mulher no tra-
ra da vida normal do indivíduo, têm uma grande balho de meu espirito, na realisação do meu
força de resistência que ás vezes dura por uma programma de vida. Aconteceu que por esse
vida inteira. Mas, quantas vezes a apparencia re- tempo, uma pequena aventura amorosa, um sim-
gular e calma não nasce da calada resignação ples capricho, se intercallou, já me não lembra
com que duas creaturas infelizes esperam uma como, na regularidade de meu dias.
futura libertação sem a energia de se rebellar A intriga se enredou e eu não tive o espirito
contra o destino, ou convencidas da inutilidade de resistir a uma tentação fácil; acceiíei uma en-
dessa rebellião? trevista que ficou marcada para certa noite em
Pode existir entre marido e mulher a inteira e que havia, ou devia haver sessão num instituto
completa confusão de existência; sem a compre- de que eu era sócio.
hensão ideal dos espíritos, sem que a vida intel- Minha mulher não se mostrava curiosa dos
lectua! se confunda também, se integre uma com meus passeios, que alias não eram freqüentes
a outra, não ha essa ligação indestructivel que, nem longos, e nada houve que embaraçasse mi-
satisfazendo as exigências do temperamento de nha sahida nessa noite fatal.
cada um, constitue a só felicidade que pode tor- Eu deveria ter*, porém, tanto explicado a ne-
nar supportavel a vida conjuncta. cessidade de ir ao instituto, tanto deveria ter
Sem essa felicidade assim construída, o mais procurado mostrar a naturalidade de minha sahida
pequeuo successo pode determinar a desagrega- que no animo arguto de tua prima se desenhou
ção daquella intima coexistência. Quantos factos a suspeita de meu delicto. Nada me objectou,
de divergências retardatarias, de divórcios cre- porém; deixou-me partir e nossa despedida, a
pttsculares não têm sorprehendido a sociedade não ser o requinte de ternura com que minha
A NOVELLA SEMANAL 45
excitação procurava encobrir a minha infidelidade,para dormir... Não sei como pude terminar o
foi semelhante ás nossas despedidas de sempre. meu vestuário. Perturbado, humilhado, diminuído,
Parti. Quando tornei á casa, onze horas pas- vaguei pelo quarto, fazendo mil pequenas cousas,
sadas, encontrei minha mulher que. ainda lia, DeU deixando passar o ternpo, sem coragem de me
tada, na ampla, levíssima camisola aberta de onde metter no leito, n'aquelle leito meu, cuja ampla
emergiam o eólio e o busto, num confiante abando- metade minha mulher, enrodilhada a um canto, me
no, a luz de uma lâmpada sobre a pequena meza de deixava vasia, convidativa, apeteciyel. Passaram-mç
cabeceira délineava-lhe em claro-escuro as formas pela mente mil projectos; quiz ir dormir para outro
gracis do corpo joven. quarto; quiz atirar-me aos pés da viva creatura e
As minhas explicações ao entrar deveriam ter? pedir que me perdoasse, quiz...' nem sei quanta
sido mais. compromettedoras que as anteriores. cousa quiz. O que nesse momento me teria en-
Minha mulher ouviu-me a não habitual loquaci- tretanto sido mais desejável seria que o soalho
dade; olhou-me longamente, envolvendo-me no afundasse numa súbita transformação dé theatro,
1
seu claro olhar bondoso e fundo. Eu estava muito e eu desápparecesse daquelle logar, das vistas da-
longe de me aperceber da miraculosa intuição da- quella creatura de que me não julgava digno.
quelle olhar. E minha mulher decifrava nas dema- Afinal, decorrido não *sei que tempo, metti-me
sias de minha linguagem a verdade do meu desvio na cama. Acocorei-me livido, longe, o mais que
como si eu lhe falasse no próprio idioma nosso. pude do corpo de minha mulher, temendo de
Precisava, porém, dar-me a lição e chamar-me'' lhe sentir o contacto.
á consciência de minha miséria. Apaguei minha luz. E o peso da treva cahiu
E então, Maria, do modo mais natural do mun- sobre a minha miséria.
do, disse: Ao outro dia minha mulher se ergueu do leito
— M a s . . . tu foste sem gravata ? . . . como si nada tivesse acontecido, com uma supe-
E eu, num rápido relancear de uma perspicácia rioridade stoica, que fez o meu assombro; a ma-
extraordinária, prevendo que havia esquecido a nha e o dia correram como todas as nossas
gravata no escuso quarto onde estivera, volvi af- manhãs e todos os nossos dias...
fectando: Sahi para o trabalho, tranquilisado, posto no
— E' verdade... Fui sem gravata... Quando che- meu lugar, sem que ò mais ligeiro olhar de minha
guei ao Instituto vários de meus collegas obser- mulher, a mais leve expressão na conversa de-
varam; alguns troçaram, perguntando onde eu nunciasse a insinuação mais subtíl, a referencia
havia jantado... Um continuo offereceu-áe para ir mais. longiqua aos factos da véspera. Voltei • á
comprar uma gravata num armarinho próximo... tarde e ao vel-a ainda senti-me contrafeito um
Achei que não valia a pena... Levantei a golla pouco. Minha mulher, porém, me recebeu como to-
do palitot e assim passei a noite... Mas, não sei dos os dias costumava receber-me e o nosso jantar
mesmo como tal aconteceu. Um caso extraordi- correu como os nossos jantares de todos os dias . . .
nário... sahir sem gravata... nem sei como não Somente, quando o café foi servido, um tinto
reparaste, ao jantar... café fumegante, em finas canequinhas da índia,
sem que nada lhe denunciasse, na voz ou no
Ditas que foram por mim estas palavras", minha
rosto, uma intenção de ironia, minha mulher
mulher tomou de seu livro e recomeçou a leitura.
perguntou-me, pondo-me no olhar envergonhado
Eu fui despir-me e avalia tu, meu caro, do os seus meigos olhos dominadores:
meu desapontamento quando, ao tirar o collarinho, — Tu hoje não tens sessão no Instituto?
vi que estava de gravata, que trazia ao pescoço Ao que' eu retorqui, vivamente, com uma ca-
uma grande gravata de plastron, de cores vivas, ricia: ,
gritadoras, barulhentas, que não poderia passar — Mas, não!. .. O meu Instituto és tu . . .
despercebida de olhos mesmo que pouco vissem... E dizia uma verdade, porque com ella apren-
Comprehendi, no máximo enleio que, de um dera o segredo da vida e da ventura...
modo extraordinariamente fino, minha mulher me RODRIGO OCTAVIO
havia feito sentir que ella estava senhora de meu
segredo, que, ella me havia colhido ha flagran-
cia de minha mentira,
O peso da humilhação me fixou no soalho.
«NW
Maria comprehendeu a afflicção do meu momen-
to e, com generosidade, pousando o livro, apagou
a luz e accomodou-se no leito fechando os olhos
A NOVELLA SEMANAL

baréo, nervos afogados em preguiça, Salvador


era o homem de lucta que são todos os matutos
nortistas quando um obstáculo qualquer lhes fus-
tiga a alma adormecida, os músculos afrouxados,
de nativo ócio, molles como a fruçta sorva, ou
inquebráveis qual ferro resistente. "Eu só tenho
medo do sol" — dizia Salvador rindo; realmente
O SINEIRO DE CANUDOS o sol é o tyranno do sertão e o carrasco do ser-
Salvador Mocambo tinha na cabeça, a palmos, tanejo. Quando os céos choram apenas em Ou-
o sertão de Canudos, onde tanta gente suou san- tubro as chuvas do caju, será de lagrimas o verão
gue na revolta de Antônio Conselheiro. Nascera sertanejo. Até as aves emigram na rápida trajec-
na caatinga, quasi delia se não afastara. Vaqueiro toria da fuga.
fora o pae de Salvador Mocambo, o filho seguiu- Um dia Salvador teve a vida povoada pela paixão.
lhe a profissão. Na mocidade destemperara bas- Amou e soffreu. Quiz casar e a noiva acabou
ante. Serenando na dança, ralhára na viola raptada por um moço da, cidade. O tabaréo sen-
cantigas sem fim; puzéra ás tontas, com minés- tiu a raiva, o ciúme, a afronta bater-lhe ás portas
tras e denguices, muita cabocla bonita, tornando-se do coração pedindo agasalho eterno. Travou-lhe
figura obrigatória de quanta encarniçada havia. a bocca o gosto do sangue; na mente enterrou-
Destro, forçudo, valente, um galalão, não se se-lhe, á moda de prego, a terrível justiça da
repassava de sol ou chuva. Sabia das manhas das vingança. Montou a cavallo, atirou-se pela caatin-
boiadas, conhecia pelo volume da barriga a se- ga como no encalço da boiada em disparo. Al-
gurança das éguas, conservando sem falha de cançou o par fugitivo num sitio onde os molungús
memória os ferros de gado do patrão e os mar- e as quixabeiras vicejavam luxuriantes á beira
cos 'das fazendas visinhas. O vaqueiro Salvador, das cacimbas. Matou o rival, poz nua a mulher
tal a melhor jóia da fazenda do capitão Jonas e tocou para traz. Deixou a antiga noiva com o
Lebre, ignorante ás posses próprias, pois vivia á cadáver do amante e raptor junto dos molungús
larga na capital bahiana. Solteirão, impertinente, e quixabeiras, aquelles de flores vermelhas, o
gastava dinheiro com as mulheres damas, só de sangue do assassinado, estes de fructos negros,
cor duvidosa. No fim do inverno o capitão Jonas como o luto da miséria desamparada.
recebia o producto da venda do gado, honestis- Correram vozes pelo sertão acerca do crime.
simamente vendido pela jagunçada. O boiame do As autoridades não se moveram, nem os matutos
capitão progredia de anno em anno; as epizootias culparam o autor do desaggravo pundonoroso.
do rengue e do mal triste não pareciam feitas Salvador Mocambo tornou-se, porém, insociavel,
para os seus touros ou garrotes. taciturno, gelado em silencio torvo. Já nem es-
Salvador Mocambo constituíra-se o vigilante-mór crevia ao capitão Jonas, deixando a um jagunçote
da bicharada do capitão Jonas cuja única obriga- a tarefa de communicar-se com o senhor da fa-
ção era, consoante o habito sertanejo, conceder zenda. O capitão Jonas mostrava-se cada vez mais
ao vaqueiro o quarto dos productos da fazenda. amigo das crioulas de baraugandâu. Contribuía,
Salvador não desejava riquezas. Bastava-lhe o ser- com o áspero labor dos vaqueiros, para a compra
tão, os seus thesouros quando respeitados pelo daquelles vistosos ornamentos de prata que, sobre
vento da secca. Era dono dos joazeiros, de folhas as camisas de bicão, as crioulas collocam á cinta
muito verdes e flores amarellas, como vestidos nos dias festança do Bomfim. As Venus de
de esmeralda e ouro; sem impecilhos possuía os chamusco davam-lhe em troca a gamma variada
mandarucús isolados e muito altos no centro da de suas ambrosias e dos seus nectares, o vatapá,
vegetação rasteira, torres de cathedral sobre ci- o carurú; o acassá de leite, o agurá larangiforme
dade pequena; os chiques-chiques, abrindo a neve de arroz fermentado, moido em pedra e água a-
em perfumes de folhas alvinitentes, defendidas doçada, sem esquecer a misturada do bobó, com
pela ponta de agudos espinhos, os saxateis cabeça os seus ingredientes vários: o feijão mendubi,
de frade, os canudos de pito, que, quando juntos, água, sal e banana da terra. O velhão do Jonas
pelas flores em espigas e penachos, lembram um preferia taes comedorias aos embigos-de-freira,
exercito só de officiaes. biscoutos que as mãos das sinhasinhas lhe of-
Salvador Mocambo adorava os sertões, amor fereciam á hora do chá n'alguma casa de cabe-
forte, singelo, bom. Desgracioso como todo ia- daes, dotes e heranças. A pesca do marido á
A NOVELLA SEMANAL 47

moda do fárraxo, attrahindo o peixe coma luz, Dispunha-se Salvador a voltar de novo ás anti-
era infructifera com o ricaço do Jonas, cujo es- gas lidas de vaqueiro, quando vozes de amigos
tômago amoroso só admittia jabá de gado preto. entraram a contar-lhe as proezas do famoso as-
Para este pândego negreiro suavam a mais ceta sertanejo, Antônio Vicente Mendes Maciel,
não poder o Salvador Mocambo e os companhei- o Antônio Conselheiro, que, mercê da dor, pre-
ros no sertão, agachados á beira das cacimbas g a v a pelos sertões a fora a redempção dos ho-
ou correndo atraz das boiadas soltas, emquanto mens. No animo do vaqueiro havia ainda restos,
a jia d.o capitão Jonas, alias bem branco, se en- do temor pelo crime de morte praticado no
lodava no charco dos amores africanos, alguns desafogo do ódio e do ciúme, o grande espinho
cheirosos á maritacáca. dos corações humanos. Começou a ruminar a
Salvador deixara de escrever ao patrão depois idéia de limpar pelo perdão a escorralha sangüí-
do assassinato commettido por elle, receioso co- nea de sua vida. Hora a hora cresceu-lhe o de-
mo desconfiado matuto, que o viessem incommo- sejo de juntar-se ao Antônio Conselheiro, cujos
dar. Chegada a época do verde, a feliz quadra devotos alcançavam o çéo. t

chuvosa, Salvador sentia-se rei na caatinga onde Um dia entendeu partir para Canudos, a im-
a bicharada fervia, desde as seriemas chorosas plorar os favores do Alto pela sua salvação. Par-
até as sussuaranas ferozes de garras promptas a tio. Achou em caminho gente de todos os pontos
pôr qualquer vivente em um bolo de carnes. Sal- e laias, gente de Alagoinhas, Feira de Sanr/Anna^
vador conhecia egualmente os dias de aragem, as Geremoabo, Bom Conselho, Simão Dias. Era mes.
horas da medonha secca quando só o ouricury cia de tudo a peregrinação e os peregrinos.
fornece a padaria sinistra dos pães de bró, pon- Salvador passava de continuo por patrícios
do os ventres em forma de tambor sem saciar a simplórios e bons. Acotovelava nas estradas as
fome. Salvador não arredara pé, quasi fmorrera, mais despejadas\sotorczs, vestidas de vícios, mas
ao grunir do vento da secca, o flagelante nor- despidas de vergonha, e os mais terríveis clavi-
deste. noteiros, réos de muitas mortes.
Não tinha mais um boi, nem mais um cavallo Chegado a Canudos, quedou assombrado ante
para açoutar a manguá de couro! Alimentava-se a belleza da egreja nova, molle assombrosa, pro-
com um nada, sem o recurso da caça. Lá se ar- testo formidável contra, a architectura e a esthe-
masse mundéos para mussuananga. Ah ! se ainda tica, á margem do Vasa-Barris.
houvesse uma castanha de muturí nos cajueiros! Salvador foi acolhido em Canudos com satis-
Pretendel-o, era querer a pititinga miúda, que fação e applauso. Não tardou em ser querido na
nada em águas fartas, a rastejar pelo solo rese- grei de Conselheiro e de seus temerosos asseclas:
quido . . . Uma porcellana cheia d'agua valeria Chico Ema> Quimquim de Coiqui, João Abbade^
um thesouro. Salvador rapou rente as crinas do Pajehú, Laláu; José Gammo e tantos outros.
cavallo, poz-lhe ás ancas esqueléticas* o sino, ou- Privou logo com Antônio Bentinho, mulato que
trora cheio de provisões e demandou a serra era osso e ronha, trazendo o Conselheiro a par
longínqua onde a mulhejr do, compadre João Min- de quanto se dizia e pensava em Canudos; não
do sevava mandioca no tijupá hospitaleiro. O ca- faltou a um só beija, cerimonia na qual os san-
vallo custou a subir o tombador íngreme, mas tos, verônicas e cruzes eram osculados, de bocca
afinal sempre attingiu o suspirado sitio do Mindo. em bocca, pela multidão dos jagunços fanatisa-
Dissipada por completo a medonha catastrophe dos, desencardindo a consciência de crimes no
da secca, Salvador regressou ao sertão, soltando beaterio hystero-illuminado da religião do Con-
por pequenas jornadas, saudando uma por uma, selheiro.
com indizivel emoção, as plantas surgindo aos Salvador admirava o Conselheiro com todas as
clhos saudosos: as baranas offerecendo ao via- forças d'alma. Acompanhara-o de longe, respei-
jante o presente das suas flores em cacho, os toso, na sombra; quando o Conselheiro, por
joás apertados em moitas e os marpeiros disse- indicação de Antônio Beatinho, dirigio-lhe a pa-
minadissimos, o roxo dolente da casca das mu- lavra, Salvador sentiu uma zouzeira na cabeça,
busanas, um mundo de ramos a occultar uma quasi perdeu os sentidos..
fauna das mais ricas. O canto da primeira seri- O Conselheiro falou-lhe, duas ou trez palavras
coia trouxe lagrimas aos olhos rudes, de Sal- apenas, e afastou-se caxingando um pouco, ves-
vador. Sentiq, pela primeira vez na vida, uma tido de azulão, a cabeça nua, as mãos grosseiras
sensação indefinivel, agridoce, a saudade, o divino sustendo um cajado, os hombros varridos pela
travo-gozo. grenha hirsuta, o peito invadido pelas barbas gri-
48 A NOVELLA S E M A N A L

salhas tirante a brancas, os olhos pretos nas tro da jagunçada contra as tropas de Moreira
covas das orbitas em o rosto macerado, o rosto César,-sempre de corda na mão, sempre puxando
comprido, pallido, a pallidez dos desenterrados. o velho sino para o clamor da vingança, o ber-
Salvador nem teve tempo de responder-lhe, reiro da revide. A casaria de Canudos fora inva-
confessar-lhe o seu antigo crime, expor-lhe o dida pela gente de Moreira César, o Coronel
sangue oxydado da velha culpa. Salvador raro o Corta-Cabeças, e o combate se travara immenso,
vja a não ser nas cerimonias do sanctuario, nem disperso, brutal, implacável, até as tropas legaes
havia muito quem visse o Conselheiro no arraial ficarem em pavoroso desbarato.
dos bequihhos e das casas de taipa. No meio das sangrei ras vinham cahindo os
Depois chegaram os dias aziagos de Canudos. crepúsculos, véo de pudor sobre os mysterios da
Cresciam as desgraças á maneira de fértil lingua morte. Salvador trepava á torre, diluia-se no es-
de vacca, que todos têm e ninguém cultiva. A paço o som da Ave Maria, o sino entrava a to-
paizagem triste entrou a só ter échos para ,tiros car umas notas doces, plangentes, pacificas. Os
e lutas; Antônio Conselheiro queimara em 1893, jagunços cessavam o fogo.
no Bom Conselho, as taboas que na localidade Assim foi sempre, até nos dias de completo
recebiam os editaes para a cobrança dos impos- cerco do arraial. O toque da Ave Maria era in-
tos decretados pelas câmaras recem-autonomas da falível. Contraste singular, os canhões da Favella
Bahia. Em Masseté, Uaná, no Cambaio, em mil pareciam esperar aquelle momento para despejar
encontros, cada vez mais renhidos, a jagunçada sobre Canudos a mais dura cólera. As pausas da
habituou-se a derrotar a fraqueza do governo, Ave Maria marcavam-se a estouro de granadas e
isto é, as forças commandadas por chefes cuja schrapnells.
hierarchia vencida ia mostrando a importância
das derrotas legaes, o tenente Pires Ferreira, o Na descahida da noute serena o sineiro punha
major Febronio, o coronel Moreira César, o ge- a faceirice trágica de não perder uma só nota da
neral Arthur Oscar. Salvador prestou relevantes voz religiosa do bronze até transformar a mys-
serviços na caatinga. A principio a voz do canhão tica Ave Maria n'um signal de alarnje, feroz,
o intimidou bastante, mas dissipou-se célere a continuo, animando a fuzilaria dos jagunços nas
pavida impressão. Nas gargantas do Cambaio crinalhas das egrejas.
obrara proezas contra as forvas do major Febro- Toda a alma de Canudos vivia no sino e no
nio, atirando enormes lascas de*pedra "que pas- sineiro da egreja velha. A jagunçada, rija de bron-
savam como balas razas monstruosas sobre as ze, rezava e matava, matava quando lhe cortavam
tropas apavoradas." o caminho do céo alcançado nas preces e jejuns.
A egreja velha, ao peso de tanta bala, mostrava
Quando Salvador voltava a Canudos não era
enorme ventre aberto. Aluido o madeiraménto,
mais o heroe, mas o candidato a salvação, jejua-
o campanário a cahir, Salvador nelle subia para
va, rezava á semelhança da beata mais débil e
o toque vespertino.
hysterica. .
Por fim a batalha foi apenas em torno de Ca- Um dia, porém, monstruoso schrapnell alargou
nudos bloqueado. Salvador Mocambo assumiu ainda mais o escancarado ventre de ruínas do
então as funcções de sineiro effectivo da egreja templo. O tecto saltou em estilhas, a torre des-
velha, funcções desempenhadas com uma pontua- ceu numa queda violenta. O sino, o sino de Sal-
lidade fervorosa. Canudos tinha diante de si um vador, vodu pelos ares, badalando ainda, chegando
exercito de quasi 6.000 homens, recebendo dia- ao solo a tinir de raiva.
riamente a visita incommoda das balas de um Salvador Mocambo comprehendeu o fim da
Withorth 32, a matadeira dos jagunços. Desde missão própria. Contemplou longamente o ins-
a madrugada pelo correr do dia, o duello de trumento, o fiel companheiro, inerte na terra,
morte se travava, enchendo de echos sinistros os rezou um Padre Nosso e dirigiu-se a desapparecer.
ermos onde as arvores eram a excepção da regra De tarde, na linha de fogo, á hora da Ave
triste de uma esterilidade infinita, a esterilidade Maria, um tiro de Mauser varou-lhe os intestinos.
das maldições bíblicas. Quando a balaria da fra- Salvador veio se arrastando gemendo até alcançar o
queza do governo se tornava mais densa, Salva- sino da egreja velha. Apalpou-o, cingiu-o, agoni-
dor ia para a torre da egreja velha. O sino ba- sou e morreu, abraçando sempre o velho sino,
dalava furioso, com impaciencias e coleras, vibrante, posto ao chão, entregado ao rigor de todos os
falando de ódios surdos pôr todas as moléculas silêncios.
vibrantes do metal. Assistira Salvador ao encon- ESCRAONOLLE DORIA
A NOVELLA SEMANAL 49*

Que faria ella, assim, por longas horas, alheia


á rua, olhando o céo, como um personagem de
romance ? Coitada ! Era o único meio de esque-
cer a miséria da casa, a miséria que embota a
alma e engrossa as delicadezas. Carlota ficava ali,
numas attitudesjserenas de pássaro triste, com o
olhar cravado no infinito, e toda a sua vida de
MUSICA DE AMOR sensitiva quebrada pela incomprehensão dos ou-
tros, mucilagináva uma dolorosa expectativa. Pa-
Sós estávamos na sala malva, a sala das re-
cepções intimas, das conversas leves em torno da recia um typo de lenda, á espera da fada que a
meza do chá. Mme. de Souza, linda no seu tea- fosse salvar do bairro escuro e d'aquella pobre
gowre côr de pecego, posava entre a trefega Mme. senhora sempre a trabalhar e sempre de preto.
Werneck e a sisuda viscondessa de Santa Maria, Como estão a ver era uma menina romântica,
e nós, eu e o barão Belfort, já tínhamos exgo-r e que romantismo minhas senhoras! Até eu che-
tado o ataque á musica italiana quando Mme. guei a admiral-a. Tossia mais, estava diaphana,
Werneck deu conta da sua ultima descoberta: parecia uma nympha virada em anjo da saudade,
— O barão está triste. — porque, de certo, quem lhe, visse o olhar e os
— Pois se venho de acompanhar um enterro. irresolutos gestps, julga!-a-ia perdida de um pa-
— Triste por isso? O barão, o homem sem raíso artificial. Não lhe pude saber a origem
emoções, triste porque acaba de fazer a coisa d'esse esquisito feitio, e certa vez que lhe levara
mais banal' desta vida entre pessoas de sociedade ! bonbons e lhe falei em paixão, ella teve um gesto
— Não é propriamente por isso. Estou triste tal que me esfriou a alma. Também, como su-
porque vi enterrar a ultima mocinha romântica mida da realidade, nunca ninguém a tinha visto
d'este agudo começo de. século. Se lhes contasse á janella, baixar o seu severo perfil ás vulgari-
a historia da pobre Carlota Paes ficavam para dades do namoro. Esperava, nada via, e com a
ahi todos a chorar, e antes de tudo, nesta hora sua anciedade, assim ficava até tarde, muito branca
' agradável nunca me perdoariam ter envermelhe- e muito loira, olhando o céo.
cido os lindos olhos de Mme. Werneck. Uma vez, no mez de junho, a Carlota estava
— Mas pelo que vejo a sua historia tem a pro- a chorar, nem sabia bem,porque, deante da alr-
priedade do dilúvio! fez asperamente a viscondessa. gida luz do luar, quando na casa junto, o har
— Conte-nos isso barão, disse Mme. Werneck, pejo brusco e sonoro de um piano sobresaltou-a^
com a sua historia contemporânea do dilúvio-fare- Do outro lado lentas espiraes melódicas espraia-
mos decididamente coleção de antigüidades sisudas. vam-se, envolviam-na.,Era, num turbilhão conti-
Houve um approximar de cadeiras. O barão nuo de notas, de expressões subitaneas e diver-
bebeu um gole de chá. sas, a expressão persistente, torturante do desejo-
— Não conheceram a Carlota Paes ? Pois a que não se termina e se preludeia, do amor cuja
pobre Carlota Paes, coitada ! já com um começo ^volúpia jamais alcança o paroxismo. Ella ficou
de tisica e um perfil romântico, dava mesmo pena, presa, estarrecida. Quem seria ? Nunca ouvira
á noite, no parapeito da janella, muito branca, aquillo, nunca sentira os nervos tocados d'aquelle,
como'desmaiada. Ninguém lhe sabia da vida, e brusco quebranto, d'aquelle epidérmico encanto
vendo-a assim, á janella d'aquella velha casa, to- do som, exprimindo o inexprimivel. Os sons,
dos a deploravam. Quando a Carlota atravessava como caricias de rosas, iam a pouco e pouco des-
a brutalidade do bairro pobre, com a apagada fibrando-a, envolvendo-lhe a ajma, machucando-a.
dôr dos humildes aristocratas, traria no -rosto um Toda ella palpitava agora com uma tremura de
tal desgosto que era por quantos a conheciam um folha ao vento. Teria chegado a felicidade, o im-
só lastimar. Também só sahia para acompanhar palpavel prazer até então vedado ? Aconchegou-
a mãe, uma senhora escalavrada e roida como se mais ao chaile, com um arepio de goso que
um vaso antigo, para acompanhar com o seu subia pêlos braços e lentamente irradiava pela nuca.
passo de visão a pobre velha carregada de pesadas, Do outro lado a musica, velada, num resumo
costuras. Fora assim desde nascida ! Olhava os de mil emoções, esboçava paizagens subtis e es-
pobres e os parentes como se guardasse n'alma fumadas, desfiava risos perlados, cavava-sè em so*-
a recordação de um mundo melhor, alheiava-se turnas maguas, e como se a vida' extrahumana.
d'elles, e quando a viam recolher ao sobrado em fosse um só gemido d'amor, toda ella espiralava
ruína, já todos tinham a certeza de vel-a appare- tormentosos queixumes, ehdeixas dolorosas, per-
cer á janella, muito loira. didos soluços de paixão. Para os grandes sen-
50 A NOVELLA SEMANAL

suaes só ha um goso integral que exprima a anciã a pleno trago, o delírio, a morte, o êxtase da
de acabar e a fraqueza humana —• o som, ^ vi- musica encantada. De certo ninguém, ninguém
bração de uma corda na lamentável evocação de no mundo amava, sentia-se ainda com esse sa-
vidas que se não realisam. grado e impalpavel amor. Encostava-se ao para-
Í Para que o sentir da pobre creança fosse mais peito, esperava e era sempre com um susto que
intenso, no espaço as estrellas palpitavam e a luz de repente ouvia abrir-se uma escala como acor-
do luar lustrando as casas com o seu misericor- dando o piano, e as duas vibrações de bordão,
dioso brilho, entrava pela janella num retangulo dois accordes de contra baixo, pezados e sonoros.
de oiro que parecia milagre. Depois um som subia, outro respondia, o aviario
Essa noite passou-a á janella até muito depois se encadeava num trinado., Muita vez o pianista
do piano calar, ouvindo-lhe o ultimo som per- que fundia a alma com as notas, tocava varias
dido na cinza avelhada do luar, e desde então árias simples, com um ar velho como se os sé-
andava o dia á escuta e toda a noite passara, em culos todos chorassem a vida, d'outras eram tre-
que o occulto pianista tocava, presa ao parapeito chos modernos trançando no ar uma flora bizarra
entre a luz do astros e os sons mysteriosos. Nós de nervosos accordes e era então uma revoada
já riamos da paixão. de dores, ais sem fim, queixas em harpejos ar-
— Então a Carlota ? quejados, rugidos rubros de ciúme eiri que o piano
— Ai! meu, senhor, continua a viver dos sons, parecia abalado e a musica estrebuchava...
está de todo virada !
Nos últimos dias a coitada ardia em febre, ple-
E quando eu lhe levava alguma coisa. namente fora dq mundo, gozando com um gozo
— Então a sra. dona Carlota sempre com feroz de agonisante o amor incorporeo emquanto
os sons ?
Ella pendia na cadeira, sussurrando : ao lado noites em fora as mãos invisíveis solu-
— E' tão bom ! çavam a magua e a tristeza.
Aquelles sons como um rosário sem fim que Ora, hontem, quando eu subia a escada íngre-
se desfiasse iniciavam-na numa religião de amor me da sua velha casa, D. Anna, appareceu-me
desgrenhada.
desencarnado, e quando qualquer difficuldade em-
— Venha, acuda, a Carlota morre.l.
perrava do outro lado a mão do tocador, a Car-
— Como foi isso ?
lota sentia uma agonia como se hesitasse em
— Sei lá! Passou toda a noite á janella, o mu-
comprehender todo alcance peccaminoso da phrase.
sico não tocou, a chuva, hemoptises, sangue...
Vinha-lhe ás vezes a curiosidade de saber quem
era esse tocadot. Passava os dias á espreita ; a Na sala de visitas, a pobre Carlota, coitada !
casa ao lado, uma pensa», não lhe deixava advi- estava caida numa cadeira de braços, entre as
nhar entre as muitas pessoas que entravam-o ar- bacias, as botijas, os pannos, a lugubre confusão
tista estranho da noite. Perguntou á mãe se a que precede o eterno descanço. Fez um esforço,
informavam e a velha senhora respondeu que não estendeu a mão.
sabia, que nãó era possivel saber. — Estou á espera da musica...
Bruscamente, então, perdeu esse desejo. Co- Deixei-a, despreguei-me pelas escadas. Era pre-
nheceí-o para que ? Bastava a delicia de ouvil-o, ciso que a musica lhe levasse o supremo consolo.
bastava a inconsutil paixão que a rojava a seus Entrei pela casa ao lado. '
pés! E perdia totalmente as noites, essas noites — O pianista ? perguntei ao encarregado.
de agosto trahidoramente frias em que a luz — O maluco ? No l.o andar, á direita, quarto
numero 5.
brilha mais, ha mais perfume no ar e as bru-
mas aot longe parecem sudarios consoladores. Era Subi, bati com força np quarto, empurrei a
um enebriamento até o romper d'alva. No fim, porta, desesperado, encontrei um velho homem
quasi se arrastando, ia para o peitoril como para magro e adunco.
uma tortura e do outro lado a musica inquisi — E' o sr., o pianista ?
•—. Sou.
porá amortalhava-a desabridamente no delirante
trôpel do amor. — Ha aqui ao lado uma creança que agonisa.
Ah ! o gozo: do raro ! Os seus nervos sensíveis Vinha pedir...
chegavam ao pranto, ao soluço, ao sorriso como — Para não tocar hoje. Vá com DeuÇ.
hypnotisados. Cada nota já lhe exprimia um sen- — Não, venho pedir que toque. Não é possivel
timento, os trechos repetidos pelo artista ella os explicações. Essa menina vive ha um mez de
seguia, advinhando accordes, advinhando sons ouvil-o. Está morrendo, pede-lhe que toque.
como se fizesse o exame da sua alma de amorosa O homem passou as mãos pelos cabellos.
e de cada vez mais maravilhada ficava, bebendo — Escute, é uma loira, muito loira ? Meu Deus!
A NOVELLA SEMANAL 51

Pobre pequenina ! Então ella me ouvia ? Vá, eu argollas de ouro, enramalhetadas e lindas, já todo
toco, vou tocar, vá. se consolava o pae.
Depois agarrou-me o braço. — Tu como as quere, cachopa?
— Mas escute, não lhe diga como eu sou. Eu De qualquer geito ella as queria; como fosse
sou feio, perdia o encanto ! da vontade de senhor p a e . . .
Quando outra vez entrei na sala, a Carlota — Grandes, hein ?
morria. Como a querer beijal-a, o luar entrava — Sim, elle sempre será melhor.
pelas, janellas um golphão de oiro, e ella com as Não mostrava muito empenho — sempre seria
mãos de magnolia cruzadas sobre o peito, tinha melhor... Mas os seus bellos olhos luziam já,
na face a tortura da agonia, como se estivessem vendo alli befn perto, ao al-
Mas, subitamente, teve um estremeção. Ao lado cance da mão, os enormes brincos-, de um lavor
como uma fonda de astros que se despregassem complicado, com florinhas em relevo, e sua pedra
do infinito o piano explodia uma indivisível re- de cor viva, a dar-lhes graça.
volta, Um tropel de sons reboou, entrechocou-se, • O pae desejava, porém, informações miúdas e
deslisou, rasgando o ar, do mundo ás estrellas, precisas; não fosse elle, na sua ignorância, com-
com uma dor infinita. Depois, pareceu parar, tre- prar coisa fora dos termos.
mulou brevemente como se o paraíso abrisse e — Pintalgadas, hein, que te parece?
os archanjos cantassem, e emquanto Carlota sor- Parecia-lhe que sim. Uns "não me esqueças"
ria, os accordes como um choro de rosas envol- pequeninos em toda a volta, ficariam a calhar. E
veram-na, beijaram-na.; E ella morreu, docemente, numa palavra — o senhor pae que visse bem se
sem uma contracção, ouvindo a musica do amor... lh'as podia, arranjar eguaes ás da Thereza. Lem-
Houve um longo, silêncio na sala malva, onde brava-se ?
ha conversas tão alegres á hora suave do chá. O Sim, tinha uma lembrança, não havia duvida.
barão limpou o monoculo : — Pois, está dito, como as da Thereza: gran-
— Ora aqui está porque eu estou triste ! des, bem trabalhadas e com florzinhas. Dito.
— Coisas da sua phantasia macabra, fez a se- E festejando-rhè a bonita cara com a mão ca-
vera viscondessa de Santa Maria. losa e larga, deu as boas noites. ,
— Para entristecer a gente, açcrescentou Mme. Caminho do quarto, fez idéia da impaciência
de Souza, linda e sentimental. em que o esperaria a filha no dia seguinte, das
E de novo, emquanto Mme. Werneck fazia um vezes sem conta que ella iria á janella a ver
grande esforço para não chorar, todos nós com quando o lobrigavà na volta da estrada, ao longe,
afinco e erudição-atacámos a musica italiana. entre os dois grandes pinheiros mansos.
PAULO BARRETO — Presumpçosas, presumpçosas! — dizia baixo
— Que elle também se a presumpção fosse tinha...
E pegou a despir-se para se metter na cama.
Mas a voz da filha ouviu-se fora.
— Senhor pae, o l h e . . .
— O que é rapariga?
— Se me comprasse também uma caixinha
p'r'ás arrecadas...
— Compra-se a caixinha, fica descançada.
AS A R R E C A D A S (A COELHO NETTO)
-Olhe.
— Hein.
1
No outro dia, manhãsinha cedo, havia de o Neto — Se eu fosse comsigo?...
marchar para a feira, com os dois novilhos ásoga. — Hom'essa! E quem ha de tratar da obri-
Os anímaes eram galhardos, escorreitos e sãos, gação?
benzesse-os Deus; de dez moedas para riba com — Fallava a alguém.
certeza davam. E o Neto' botava já contas á vida — Tens medo que me roubem no caminho?
no destino daquelle dinheiro: — três para a dé- E largou a rir.
cima, quatro para emprestar a juros de um al- — Cá de mim, não. M a s . . .
queire cada, e as restantes, com essas compraria — Nada, fica, fica. Aquillo não é romaria; não
as arrecadas da filha. ha lá danças. Negócios, tudo negócios. Mulheres
Ai! as arrecadas! Atenue emfim, a Adelaide não andam p'las feiras.
ia ter umas arrecadas; e só de lhe lembrar o a- Ella suspirou, tinha grande vontade de ir. Mas,
legrão que a* cachopa sentiria ao ver as ricas emfim...
52 A NOVELLA SEMANAL

— Boa noite, disse desconsolada. — Nove moedas, toma lá dá cá; escusa de ir


— Boa noite. mais adiante...
E faziam já menção de rapar do bolso as nove
Mal o dia rompeu, logo o Neto desceu á cor-
moedas, e coníar-lh'as ali num prompto.
te, a apparelhar os novilhos. Passou-lhes a soga
nos chifres, tirou-lhes com cuidado a poeira do — Por menos de dez ninguém m'os leva.- E'
pello; e depois de ir buscar atraz da porta a a- excusado.
guilhada de marmelleiro, passou os dedos no — Nove e meia.
ferrão a ver se estava agudo, botou a jaqueta ao — Nada.
hombro e partiu, acenando aos novilhos que o Mas pessoas, em volta, mettiam-se no contraco.
seguiram aos saltos. Verdade, verdade, seu Neto. Nove moedas e meia
A feira ficava longe, num soito largo, onde era um bom preço ; não senhor, era um bonito
castanheiros velhos e enramalhados punham na preço.
relva fresca enormes manchas de sombra. Altercou-se; alguns iam-n'o agarrar, arrasta-
Havia um grande chocalhar de campainhas: os vam-n'o fora do grupo, fallavam-lhe devagarinho
vendedores passeavam os animaes, encarecendo-os ao ouvido. Que diabo, homem, a offerta não era
e gabando-lhes a boa andadura, o 'ensino apura- de desprezar. Visse bem que eram nove moedas
do, a submissão e a valentia. Discutiam-se defei- e meia —- dez libras e seis tostões ! Era um alto
tos, falava-se com sciencia em nevoas dos olhos, negocio, um negociarrao !
nodoas nos dentes, -peito aguado, má bocca ou Outros segredavam-lhe amigavelmente nue não
máo trabalho. cedesse; o outro chegaria ás dez. Estava encan-
Sobre pedras, alguns vendedores tilintavam uma tado com os animaes.
a uma, punhados de libras, cuidadosamente, veri- Mas um vèlhote chegou. Pediram-lhe o parecer.
ficando se eram das boas. Morgados e ricaços, —r Dez moedas é de májs, você que diz ? pergun-
de esporas e chibata, botas altas de montar, pas- tou o comprador. — Eu até ás nove e meia
savam devagar, cumprimentando popularmente em ainda dou.
grandes mãosadas, apreçando os bois, com gran- O velhote adquiriu maneiras de juiz, prestes a
de ar de entendidos. Um abbade — troquilha, de julgar uma causa celebre. Pediu fogo a um delles>
chapéu largo, jaquetão comprido e cigarro na accendeu pachòrçentamente o cigarro.
bocca, tentava manhosamente, num contracto re- — Então você quer dez moedas ?
thorico, impingir aos freguezes uma égua escan- O Neto acenou com a cabeça.
zelada e velha. — Você (para outro) dá as nove e meia?
Palrava-se muito: em grupos havia mesmo ra- — Saltadinhas.
lhos, palavras feias, princípios de bordoada grossa. — Pois ahi vae o meu conselho; vende-se os
Junto ás pipas, decilitrava-se, em saúdes, por bois p'las dez menos um quarto, e o outro quarto
grandes malgas vidradas. vae-se beber de vinho, em súcia.
O Neto chegou tarde; mas em volta dos no- — Approvado.
vilhos armou-se logo uma roda de compradores. — Dito.
Alguns arrebitavam-lhes o beiço para ver a eda- Contou-se alli o dinheiro, e foi-se beber o
de, miravam-lhes bem as patas, commentando a quarto em súcia.
perfeição dos cascos. O que alli estava á vista de Depois o Neto partiu; tinha umas coisas a fa-
todos (o Neto o affirmava) era trigo sem joio: zer; tinha que tratar dos negócios, deixou ainda
animaes de uma canna só. os amigos discutindo de malga na mão, em volta
— Quanto quer p'los bichos, ó tio ? de uma pipa.
Dez moedas ; era o preço. Abalou para o lado dos ourives; correu-os to-
— Puchadote, hein? puchadote. dos, de cabo a rabo, analysando bem os brincos
E remiravam ainda, separadamente e miuda- pendurados em cartões verdes á volta das bar-
mente o corpo de cada animal, passando-lhe a rancas, ou mettidos em caixinhas, por cima dos
mão por todo o comprimento do lombo, amei- mostradores.
gando-o com pancadinhas doces. A junta desper- Custava-lhe o decidir-se; por fim, um tanto
tava interesse. namorado por dois ricos argqlões, fortes e capri-
— Diga lá a ultima palavra, a ultima. chosamente floreados, perguntou a medo o preço.
O Neto declarou que a ultima palavra era — dez Veiu avial-o a mulher do ourives, uma senhora
moedas. Nem mais nem hontem. Nunca fora homem alta. gorda e loira, de" mãos finas e brancas, bo :
de regatear; nada, isso era bom para ciganos. nitos modos, fallas muito doces; a sua voz tinha
A NOVELLA SEMANAL 53

um tom extrangeiro, carregava muito nos rr. — Vá de cantiga, berram-lhe, pois o que leva!
— Os lindos brrincos custam ao sinhorre trreze Pois elle havia de entregar assim, imbecilmente,
mil réis. passivamente, o preço dos seu bois, as arrecadas
— Não faz um abatimentosinho ? aventou o da sua filhinha ? . . .
Neto, vagamente. — Eu cá de mim não levo nada commigo. . .
— Não sinhorre, não pode serre menos. — Isso é que vamos ver.
E convencia-o com argumentos brandos. E um dos salteadores adiantou-se, ia deitar-lhe
— Eu pode vénderre outrros mais barratos; soffregamente a mão ás algibeiras. O Neto re-
mas estes são bons. Muito na moda; muito bons. cuou dum salto e despediu-lhe rija pancada á
Então, titou da algibeira a bolsa e poz-se a nuca; mas um companheiro aparou o golpe ; com
contar o dinheiro; queria também umas caixinha, destreza, e então os três deram de malhar no
daria mais a mais alguma coisa se preciso fosse. pobre homem, brutalmente, em cacetadas que o,
Ella arranjou-lhe uma caixa preta de forma mediam de ilharga a ilharga, desvairados, furio-
triangular, metteu-lhe dentro as arrecadadas, co- sos, até que mais certeiro golpe, apanhando-o
briu-as preciosamente com frouxel branco. pela cabeça, deu com elle em terra, exangue, sem
— Prompto. sentidos. . . »
E com um gesto gracioso apresentou-lhe ama- Foi um carreiro do logar, vindo de Coimbra
velmente a caixinha; elle pagou sorrindo. Pediu nessa noite, quem o achou na valeta, immovel,
ainda um papel para embrulhar, e sepultou com mudo, numa poça de sangue, sem dar côr de si.
cuidado os brincos na algibeira de dentro. Carregou-o geitosamente até ao carro; ali o depoz
Cahiam as trindades quando largou da feira. sobre a palha, que havia crescido da ração dos, bois.
Ia-se gente embora, puxando os bois á sóga; Eram altas horas quando chegaram ao logar;
apenas alguns feirantes meio bêbados pairavam a Adelaide estava n'uma afflicção, com tal de-
ainda ao redor das pipas. mora. E apenas lhe disseram do occorrido, largou
Estrada fora o Neto de novo pensou na filha. a gritar, desfazendo-se toda em lagrimas, juntan-
Que alegrão! Botava as mãos ao peito, palpava do as mãos nüm desepéro, soluçante, doida de dôr.
a saliência da caixa. Era verdade, levava ali a — Bem me adivinhava o coração, bem m'o
prenda tão cubiçada, ha tanto tempo promettida. .. adivinhava. Ai meu rico páesinho,que m'o mataram.
: E advinhava-a na janella. espiando a estrada, ape- Galgou as escadas, e ella mesma, com a ajude
sar da escuridão da noite, julgando a todo passo do carreiro, trouxe o Neto pelo corredor, fóra>
vêl-o chegar, subir a escada, atirar-lhe ao regaçó até a cama.
as bellas arrecadas d'oiro. A moça por certo Vieram visinhos, numa balburdia, solícitos, of-
ficava doida. Que alegrão, que alegrão! fe recendo o seu prestimo, todos empenhados em
' E alargava o passo. dar o seu auxilio naquella desgraça. Um delles
A noite era negra e silenciosa: raras estrellas foi chamar o medico.
tremiam apenas escassamente no azul ennevoado Afinal, o homem estava apenas desmaiado. Ti-
do cêo; a espaços o piar melancólico dum rao- nha a cabeça ferida em duas partes, nodoas ne-
çho varava o ar; o vento soprava surdo por gras em todo o corpo, a cara toda ensangüentada,;
dentro dos pinheiros. mas havia de salvar-se. E applicaram só de
O Neto, de mãos nos bolsos da jaleca, varapau prompto mésinhas.
debaixo do braço, caminhava. A Adelaide ficou a rezar fervorosamente á beira
do leito, com os Olhos no pae. Pela volta da
Perto havia uma encruzilhada de má fama. Diabo!
madrugada é que elle se voltou debaixo da roupa.
Um presentimento lugubre, quasi o fez parar;
— Ai, és tú, cachopa?
mas tentou recuperar sangue frio. ~ Ora bolas, que
— Senhor pae! E beijou-lhe as mãos.
creança medrosa! Pois não queriam vero homem
— Moeram-me de pancada. . . Por pouco me
com receio de passar a encruzilhada ?Tinha graça !
não mataram. . Roubaram-me. . .
E estugou mais o passo, ancioso e offegante.
Teve um suspiro fundo, que o abalou todo e
Mesmo no sitio em que as estradas se cruza-
fez torcer de dôr, fincando os dentes nos beiços.
vam, três homenzarrões, de cacete erguido, num
— Lá se foi o dinheiro dos novilhos. . .
prompto o rodearam. ,
E como reparasse que ella soluçava muito:
— O' amigo, poise o que leva! — Não chores, não; p'ra que? Perderam-se
Ficou sem pinta de sangue. Logo três, Senhor, os novilhos? As vaccas tornam a parir.
logo três! Quiz fingir-se um pobre diabo, sem Suspirou outra vez. E depois, mais dolorosamante:
dinheiro para lhes poisar, que o deixassem se- — O peior foi roubarem-me as arrecadas!,
guir o seu caminho, que o deixassem. I ARMANDO ERSE (João Luso).
A NOVELLA SEMANAL

idatônecdòtícã. raras envergaduras de poetas que P r o m p t o s , cinzelados, bruni-


e piuòrfe&&-- áps: ; temos tido.
Nelle é tudo imaginação e elo-
dos; um incêndio destruam- a
t y p o g r a p h i a e os primeiros qui-
qüência — disseram. N u n c a se n h e n t o s sonetos.
viu mais imaginoso poeta. E ' a E r a caso para enlouquecer.
M<
encarnação do Verbo. Não seria Quando se lhe falava nisso, Luiz
LUIZ DELPHINO difHcil, e n t r e t a n t o , citar delle Delphino dizia a p e n a s :
a l g u m a s paginas do mais in- — Foi o diabo a q u i l l o !
A 25 de agosto de 1834, em tenso e acendrado s e n t i m e n t o , P a r a elle, meio m i l h a r de so-
Santa Catharina, nasceu L u i z como poucas se escreveram em netos não eram. nada.
Delphino. Foi um extraordiná- vernáculo.
rio poeta. Fecundissimo, só se Com tudo isso, é auctor iné-
lhe comparam aquelles poetas dito. Seus versos correm m u n d o ,
hespanhoes, que, como Lope de impereciveis, em anthologias, ál-
Vega, contavam aos milhões os buns, revistas e jornaes. Não fez
seus versos. Do velho comedio- parte da Academia de L e t r a s .
grapho se disse que, calculada Morreu velho, com cerca de oiten-
a sua producção proporcional- ta annos, como um pródigo das
m e n t e á sua vida, não perdeu Musas, u m perdulário de bel- Victima da critica
u m a hora de existência sem u m lezas.
verso ao menos. Luiz Delphino E, p a r a produzir tanto, como
foi de egual facundia. Si nunca A 23 , de fevereiro de 1821,
escrevia Luiz Delphino ? N u n c a morria em Roma um joven in-
publicou livro, t i n h a em casa, teve methodo. Nem siquer u m a
em autographos, mais de 80 vo- glez de 25 annos, muito obscuro
mesa certa, preparada e especial, e que era, entretanto, um dos
lumes, mais de cem poemas e teve que, com conforto e requin-
perto de 5.000 sonetos. maiores poetas do século XIX
tes de prazer, acolhesse no papel só mais tarde reconhecido. Era
Começou a escrever aos 8 an- as producções do creador. Es- J o h n K e a t s , auctor de Endy-
nos. Ainda no collegio, verse- crevia em qualquer p a r t e e em mion, de Hyperion e da*"Ode
j a v a . Ao e n t r a r para a Faculdade qualquer papel. Preferia, em- sobre uma urna grega. Dez an-
era j á um g r a n d e poeta. Aos 25 t a n t o , a ponta da mesa de jun- nos depois de sua morte, Fanny
annos, formado medico, casado t a r e escrevia, sobretudo, depois Brawne, a noiva que o amara
e com filhos, deixou a lyra e foi do almoço em meio ao vai-vem p e r d i d a m e n t e , dizia delle em
clinicar... Durou 30 annos o e- e o ruido da sala, alheio a tudo carta a um amigo : «O acto mais
clypse do poeta.. E m compensa- em redor. Muitas vezes, o j a n - caridoso seria deixal-o repousar
ção, brilhou o medico,, u m dos t a r encontrava-o no seu posto. para sempre na obseundade a
melhores de seu tempo. Não trabalhava á noite. J o g a v a que o haviam conileirm-.do as
J á então produzira o bastante então a bisca, com as filhas e circumstancias». 0 próprio By-
e o melhor para, figurando en- netos. Mas se entre duas carta- ron, levado por questões de es-
t r e os nossos maiores poetas, das lhe vinha a inspiração, là cola, o havia desconhecido ; re-
merecer a critica demolidora de ia para um canto a escrever. ft-re-se, em u m a e>trophe de
Sylvio Romero, que lhe não per- Aborrecia n. solidão. Não o viam Don Juan. em magnífica home-
doou o crime de não ser nor- isolado em casa, reconcentrado, n a g e m , ao titaneo Hyperion,
tista e a leviandade de inter- a m e d i t a r , mas sempre cercado «sublime como Eschylo».
roriirtfir a sua carreira poética... dos seus. Muitas vezes, se es-
De.faoto, n a «Historia da Lit- crevia no primeiro a n d a r e hnvia A animosidade de Byron de-
teratura», o grande critico pro- ruido em baixo, descia e v i n h a via ter-lhe sido ainda nuns p e .
flign-lhe o pouco amor á a r t e e para o «barulho». nosa que a dos censores da Qudr-
a irssinceridade, reveladas pela terly Review e do Blackwood,s
U m a única vez, a Casa Laem- Magazine, u m a das quaes desa-
sua dpserção das letras. Ora,, m e r t pediu-lhe um livro. En-
caso de n a t n r e z a antes moral que fiava os leitores a achar um
tregou, pois, ao editor as «Im- sentido qualquer nos seus ver-
literária, pouco importa desde mortalidades» — quinhentos sone-
que o mérito do auctor é sem- sos e a o u t r a o aconselhava a
tos, novos todos, escriptos quasi se fazer boticário, mostrando-se
pre notável em qualquer das de um fôlego e todos magnifi-
phases. E Luiz Delphino dos pri- p o r é m , ' m a i s cuidadoso com o
cos. Escreveu ainda, sobre o soporifero de suas poções do que
meiros tempos como dos últi- mesmo assumpto, mais quinhen-
mos, romântico ou parnasiano com o de suas poesias. O nobre
tos sonetos, prodígio nunca al- e g r a n d e Shelleyfoi o primeiro,
ou, ao mesmo tempo u m e ou- cançado por poeta algum do
tro, por fim, é uma das mais sem duvida, que lhe fez justiça.
mundo. No mesmo anno da morte de
A NOVELLA. SEMANAL 55

K e a t s , dedicava-lhe o p o e m a Paulo de Azevedo & Cia. 113.000 32;


Àdonais, com u m prefacio em Saraiva & Comp. . . . 3.0C0 a
que p r o c l a m a v a o Hyperion não Sociedade Editora Ole-
gario Ribeiro . . . . 41 700 12
inferior a n a d a do que fora pro-
Total 801.Ú0O. 20&
duzido a esse t e m p o . S e g u n d o
S h e l l e y , K e a t s foi u m a v i c t i m a Calculado pelo preço de venda o
valor das obras produzidas, attingiu,
da critica, no sentido trágico da a cerca de 2.500 contos.
p a l a v r a \ foi o pezar causado Pouco mais do dois terços da tira-
pelos a r t i g o s dos s e u s detracto-
res que t e r i a apressado o seu
A actividade editorial de gem total cabe aos livros didaoticos.
Do terço restante, cerca de 100.000
fim. Mas a Blackwood's e,a Sâo Paulo. exemplares representam as edições d e
livros de literatura, isto é, livros de
Quarterly floresceram em 1818 e Procedendo a u m inquérito sobre a boa literatura ; os demais comprehén-
o poeta só m o r r e u três annos industria livreira em Sao Paulo, che- dem as edições de livros de direito,
depois, de t u b e r c u l o s e . gámos a interessantes conclusões, quo medicina, commercio, conhecimentoa
foram publicadas pelo «Estado de S. úteis, literatura de cordel, etc. .,,j
Paulo» e pela «Gazeta de Noticias». A tiragem dos livros didaoticos o s -
Depois de m o r t o , sua gloria Em resumo, foi o seguinte o movi- cilla entre -5.000 a 50.000 exemplares
não cessou de se engrandecer. mento editorial desta capital, am por edição ; as dos livros de direito,
F i g u r a ao lado de Byron e Shel- 1920 : medicina e commercio, entre 1.000 a
2.000 exemplares ; as dos livros de b o a
ley. Distingue-se como puro ar- Existem em São Paulo cerca de 530 literatura, entre 1.000 a 4.000 exem-
tista, e x c l u s i v a m e n t e n a m o r a d o casas editoras, oom u m capital de plares, sendo excepcional a tiragem
3.6Ó0 contos. de 8.000 alcançada pelo «Urupês«, d e .
do bello e indifferente a t u d o o As obras editadas por 15 desses es- Monteiro Lobato, e representando
m a i s , e m q u a n t o os seus dois tabelecimentos foram em numero de duas edições a da «Alma Cabocla» d e
gloriosos emulos se interessa- 203, attingindo a sua tiragem o total Paulo Setúbal. Os livros de pequeno
de 901.000 exemplares, assim discri- tomo, como «A Pulseira de Perro» da
v a m por todos os assumptos, minados : Amadeu Amaral, chegam a alcançar-
m e s m o políticos. K e a t s é um dos tiragens maiores. De obras de agri-
Exem- Obr.
mais eminentes r e p r e s e n t a n t e s da plares cultura tiram-se de t.000 até 10.000 e«
t h e o r i a da a r t e pela a r t e , da a r t e A. O. Rodrigues . . . . 25 900 8 xemplares e de livros de literatura d e
Antônio F . de Moraes . 32,000 8 cordel, de 3 000 até 15.000 exemplares.
considerada como u m fim em si.
Augusto Siqueira & Cia. 156.000 26 Se nem todos esses algarismos são.
C. Teixeira & Cia. . ,. . 23.500 10 lisonjeiros, alguns pelo menos meie»
A thing of beauty is a joy for ' Casa Editora «O Livro» . 7.000 5 cem' ser registrados com prazer.
[ever Companhia Melhoramen- Em todos ess-s números não. estão-
tos 144.700 35 contados os pequenos editores, nem
D. Silva 60.000 11 as pequenas obras editadas pelos pró-
: E s t e p r i m e i r o verso de s e u Empresa Editora Brasi- prios auctores. nem tâopoueo as e-
Endymion, t a n t a s vezes citado, leira 35.100 9 dições feitas em Santos, Campinas ó
r e s u m e a sua d o u t r i n a , de que Empresa Editora «Chá- até em cidades menores, como Ribei-
caras e Quintaes» . . 80.000 8 rão Preto, S. Carlos, Piracicaba, J a -
n u n c a se desviou. N a Ode sobre Livraria Magalhães . ,|100.000 13 mi, Sorocaba, etc. E m Campinas, por-
uma urna grega, muito antes Lyceu . do Coração de \ exemplo, a livraria Genoud tem feito,
de Teophile G-autier, m o s t r a que Jesus ' . . '24.000 9 dezenas de edições de livros infantis,,
Monteiro Lobato & Cia. . 56.000 15 escolares e outros.
o m á r m o r e sobrevive á cidade,
que só o bello conserva u m va-
lor i m m u t a v e l a t r a v e z das eda-
de^, qu,e só elle é e t e r n a m e n t e

Os nossas5
verdadeiro : «Belleza é, V e í d a d e .
^Verdade é~ Belleza. E i s t u d o o
que sabeis na t e r r a e tudo o que poetàf
é preciso saber», Como t a n t o s
outros poetas ^inglezes e francezes
depois delle, foi u m pagão ab- Um soneto de CARLOS DE LAET
soluto, u m f e r v e n t e adorador do
Quem o diria poeta, o velho esgri- respiram sempre um ambiente de es-
hellenismo. mista da palavra ? pirito. Discípulos tem-nos muitos,
Carlos de Laêt, ninguém o desco- porém, quão raros os que não resva-
F a n n y B r a w n e não se sur- nhece no Brasil. E ' o estylo feito laram para a lama em que se mode-
prehenderia de que elle a amasse homem, o sarcasmo feito jornalista, lam Pasquinos e Aretinos ! . . .
a ironia armada em critico, a analyse Laêt, assim organisado, é o.prínci-
por sua belleza ? Suas c a r t a s pro- desfeita em chronista ligeiro mas fe- pe da prosa, o grande heròe da pole-
vam que a a m a v a com o mais rino, alacre porém maldoso, explosivo, mica, consagrado por u m sem conto
t o c a n t e , o m a i s sublime amor... incontrastavel. H a mais de cínçoenta de refregas. Prosador è polemista,
annos, vibra a sua penna em u m a só pareceri_a a absoluta negação da poe-
Em R o m a dorme elle no pequeno vergastada, sempre suspensa no ar, sia e do verso. Mas, o estylista é.por
cemitério s i t u a d o em meio de attenta a todos os ridículos, a todo natureza poeta. A poesia nãó é mais
a n t i g ü i d a d e s , p e r t o da p y r a m i d e bom senso improvisado e facíl, coihen- que o estylo metrificado e, às vezes v
do-os a uns e outros com a bravia rimado.
de Cestins e da v i a Appia. «Ao impiedade dos fortes. A irreverência, Quem, no emtanto, conhece versos
ponsar que se vae ser amorta- a sua , feição primacial. Dahi tudo do iIlustre màioral de nossas letras,,
decorre: — a analyse, a ironia, o sar- o presidente da Academia Brasileira ?
lhado em tão doce logar, poder- casmo, o estylo. Mas — traço notá- Conhecemol-os nós, como rara e-
ser-ia a m a r a morte» — disse vel — nunca o baldão se lhe insinuou inestimável preciosidade, que como
Shelley. na prova tersa, o insulto não a pejou, tal offerecemos aos leitores. E' ,um
o doesto e a injuria, a plebéia ralé soneto que não daeta de hoje, quando,
da linguagem, lhe quebraram a linha já se conhecem delle os versos com
P. s. aristocrática do pensamento. A s . r a " que saudou a memória de D. Pedrtt
jadas mais violentas de sua critica, II, por occasião da chegada de seus.
ainda que desaçaimadâs e pessoaes, despojos ao Brasil. Eil-o :
56 A NOVELLA SEMANAL

TRISTE PHILOSOPHIA A casa editora, entretanto, tem fortes


razões para a aventura, que j á lhe
sahiu oomo um dos seus mais bellos
Ia Rosa vestir-se e do vestido suecessos, quer de livraria, quer de
Uma voz se desprende e assim m u r m u r a : oritioa.
— « Muitos morremos de u m a sorte escura, E' que Oliveira Vianna, espirito de
escol, fez obra de extraordinário va-
Por que te envolva sérico tecido ! » lor, estudando a nossa formação so-
cial, indicando os prinoipaes faotores
Ia toucar-se e escuta-se um gemido da nossa Historia e traçando os mais
Do marfim que as madeixas lhe segura: admiráveis e perfeitos quadros da
nossa evolução histórica. Estudo pro-
— « Por dar-te o affeite desta minha alvura, fundo e esclarecido, «Populações me-
Jaz na selva meu corpo succumbido ! » ridionaes» apresenta, além disso, lei-
t u r a fácil e agradável em todas as
Põe um collar; è a pérola mais fina: paginas do alentado volume, as quaes
se contam por algumas centenas.
— « P a r a pescar-me quantos párias, quantos 1 Ha apenas que lamentar a escassez
Padeceram no mar lugubres sortes ! » da tiragem : mil exemplares de uma
obra que todos os brasileiros deviam
E Rosa chora: — « Oh! desditosa sina ! 8
Todo sorriso é feito de mil prantos ! H I S T 0 R I A S DA NOSSA HISTORIA
— Viriato Corrêa — Ed. «Revista do
Toda vida se tece de mil mortes ! » Brasil» — São Paulo — 1920.
Ha varias maneiras de escrever-se
E' o mesmo estylo com laivos de a Historia. Em geral, relatam-se os
tdassieisrno, seja no bem coordenado acontecimentos na ordem ohronologi-
-e symebrico das idéias, seja na lin- cá, capitulo por capitulo. E' a forma
guagem perfeita, elegante e solida, de compêndio escolar. Outras vezes
cheia de arte e de surpreza. reunindo-se os faotos, approximando-
os, comparando-os e commentando-
De seda veste-se Rosa e a seda cho-
ra a metamorphose das nymphas e á
morte das borboletas. Só com o sa-
crifício de umas e outras, póde-se
LEITÜ os, facilita-se a compreheusão delles,
fazendo-se a philosophia da Historia.
Existe.'porém, mais u m a modalida-
•desfazer o casulo para o «sérico teci- . do da historiographia e essa, de to-
do » que ampara o pudor da menina das, a mais intelligente para o effei-
para estadear a vaidade da mulher. to de vulgarisaçâo e o de despertar o
Touca-se. E o marfim, saudoso das sentimento civico: — ó a historia
florestas e areaes da África, lembra a contada pelas suas notas vivas, pes-
mill,ennaria hecatombe das manadas, POPULAÇÕES MERIDIOÍ^AES DO soaes, bem marcadas com um traço
<juè vãm tornando possivel um luxo, BRASIL—Oliveira Vianna — Ed. da de vida e de caracter profundamente
com todas as suas exigências. «Revista do Brasil» —São Paulo—1920. humano. E' a historia pittoresca e
Por fim, vem o collar e a pérola cho- Entre os serviços prestados pela aneedotica, irmã gêmea da, chronioa
ra os tristes pescadores que por ella «Revista do Brasil» á literatura na- e da legenda.
morreram. Rosa, pois, chora ttvm- cional, destaca-se a publicação do Assim procedeu Viriato Corrêa, co-
"bem, com todo o seu triste luxo, toda «Populações meridionaes do Brasil>, nhecido escriptor brasileiro, ao com-
a sua lugubre vaidade, inteirando-se de Oliveira Vianna. por «Historias da nossa Historia», um
do sentido profundamente trágico da Paiz fie poaca leitura, ondo todas dos livros mais interessantes que ul-
vida. as difficuldades assoberbam os aucto- timamente se têm publioado no paiz.
res, no Brasil não é façanha commum Edição da «Revista do Brasil», a con-
a edição de tomo tal e tal matéria. fecção apresenta-ée bem acabada.

MONTEIRO LOBATO

O ^ t* o
Novella cine-romantica, com pios de coruja, noites tempestuosas, mor-
tes trágicas e outros ingredientes de tomo; leitura perigosa ás mçninas
hystericas e aos velhos cardíacos que crêm em almas do outro mundo.

Um bello volume, com lindas illustrações de Ruy Ferreira 1$000


Pelo correio, registrado 1$300

PEDIDOS A aci SÀO PAULO


RUA DR. ABRANCHES 43—TELEPHONE, 5441-CIDADE
EDI<pÕE« DA

AMADEU AMARAL F. T. DE SOUZA REIS


À Pulseira de Ferro (novella). 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . 4$000
Um soneto de Bilac (critica) , 2$000
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Rxita. E>r. A b r a n c h e s , ^5tS « C a i x a . P o s t a l Xl-STS m S Ã O P A U t i Ò

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Revista do Brasil
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por Monteiro Lobato . . . . 3$500 domiro Silveira . . . . . . 4$000 5$000
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DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato Corrêa . . . 3$500 4$500
gia por F. /. Oliveira Vianna . 8$000 10$000 ESPHINGES, versos de Francisca
PROFESSOR JEREMIAS, por Léo Julia :5$000 —
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VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires. . . 5$000 —
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ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$Q00 4$000 MAIS 10 o/o PARÁ O PORTE
Pedidos aos Editores: M o n t e i r o L o b a t O <SX C , C a i x a 2 . A . S. P A U L O
A NOVELLA NACIONAL 'Volumes publicados:""
A NOVELLA NACIONAL é uma A P t i l s e i r a d e F e r r o por
série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : ofíerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "E' no gênero uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima „ — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celçbre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo maíá dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do. : 'Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 »/2 X 12 »/i centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

OS NEGROS 21

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume. lfliOOO em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado lí|300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3$!500; série de seis no-
vellas 7f000; série de
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr. Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SA0 PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo Lá, foges, a c o n s e l h o u ^ f^wim -oto,
ÀNNÔ I $k0 1PAÜLÓ, 23 DÊ MAIO DE lâ2i NUMERO 4

A NOVELLA
SEMANAL

»c.E»m>i^oij;G4raoiuBEi^
A NOVELLA SEMANAL DiREcrroR BRENNO FERRAZ
PUBLICA-SE ÁS SEGUNDAS-FEIRAS
Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collecç.ões
sao ridioulas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num oirculo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extracção no
. cioso : o livro não se diffunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destaoará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se diffunde. -Isto sucoede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tSo funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da creaçâo deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais a t t r a h e n t e aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel pela escrupulosa eBcolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de t o - mesmo.tempo que n-m abundante ..repositório Tte irrfbr- ,
dos os, meios para o diffundir em todo o território na- mações bibiiographicas, uma selecta de pequenas obras,
c-ionnl, di- fronteira a fronteira, e entre todas as classes exeellentes, organizada com o fito de tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido cm poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
grnoima. Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa collaboração especial, de um punha.do dos ràais
e da revista. A NOVKLLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos oom
as vantagens desta e dnquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
apregoada ruis ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos e desconhecidos, consagrados e estreantes, oomtanto
te, a toda gcute ; mas não será iutil e de interesse e- oue taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phemero como ella : pelo fundo — pela qualidade, e pela feição d'A NOVEILA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá u m a verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma- bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volumes, por serem esses' os
gêneros que contam, e»tre o publico, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
. e creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
-curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora, Todos os outros gêneros terão o seu logar no nosso
-procurará nos auctores a vida, a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publico, dos auotoros e dos
trabalhos inéditos. Nâo seria este o melhor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera Re-
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathieo.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- Os EDITORES.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col- queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessante para qualquer A o s leitores que nos enviem rolações de auctores
das secções deste periódico, A NOVELLA SEMANAL ambioio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seunome, villas, povoações, estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, hotéis, cluhs, bibliothecas, e t c ,
ferecem a sua collaboração. estando porisso organisando um ser- Importante
Os originaes devem ser escriptos de viço de distribuição que será o mais Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em calligraphia completo possivel, de sorte a não ha- gnaturas d*A NOVELLA SEMANAL,
- bem legível e de preferencia dactylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos adeantadamente a res-
graphados. não tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, terá direito »
Toda a correspondência deve ser trada á venda. P a r a obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda.pessoa q.ue angariar qual-
garío Ribeiro — Caixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
A.os editores pessoas e instituições que possam se
interessar pela venda ou leitura des-
catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará sil, no valor de 20 o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, Anno 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra,
muito agradeceremos qualquer indi- Semestre 10$000
De todas as obras das quaes lhe for
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . . . . 5$000
lém disso uma noticia critica. fornecida, rogando a todos quantos Numero avulso . . . . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - R. Dr. Abranches, 43 - Caixa Postal, 1172 - Teleph.: Cidade, 5441 - S. PAULO
ANNO I A NOVELLA S E M A N A L - São Paulo, 23 de Maio de 1921 § NUMERO 4

O HOMEM QUE SABIA


JAVANEZ — Lima
Barreto.
SUMMARIO Euclydes da Cunha.
Vida literária - Um novel-
lista brasileiro do século
A ES CO L H A - C o e l h o XYIII.
Os nossos poetas - O pri-
Netto. / meiro soneto de Bilac.
SACRIFÍCIO — Carlos da — Octavio Silveira. SUPPLEMENTO — A vida
'Fonseca. G. C. P. A. — Gastão anécdotica e pittoresca
ETERNIDADE do SONHO Cruls. dos grandes escriptores

O HOMEM QUE SABIA JAVANEZ


Em uma confeitaria, certa vez, ao rneu amigo — Conta lá como foi isso. Bebes mais cerveja ?
Castro, contava eu as partidas que havia pregado — Bebo.
ás convicções e ás respeitabilidades para poder Mandámos buscar mais outra garrafa, enche-
viver. mos os copos, e continuei:
Houve mesmo, uma dada occasião quando estive — Eu tinha 'chegado havia pouco ao Rio e es-
em Manaos, em que fui obrigado a esconder a tava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa
minha qualidade de bacharel, para mais confiança de pensão em casa de pensão, sem saber onde e
obter dos clientes, que affluiam ao meu escripto- como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do
rio de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. Commercio o annuncio1 seguinte:
O meu amigo ouvia-me calado," embevecido, «Precisa-se de um professor de língua javaneza.
gostando daquelle meu Gil-Blas vivido, até que, Cartas, etc.»
em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os co- Ora, disse cá commigo, está ahi uma collocação
pos observou a esmo : ' que não terá muitos concorrentes; se ' eu capis-
— Tens levado uma vida bem engraçada, Cas- casse quatro palavras, ia apresentar-me. Sai do
tello 1 café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me
— Só assim se pode viver... Isto de uma oc- professor de javanez, ganhando dinheiro, andando
cupação única : sahir de casa a certas horas, vol- de bond e sem encontros desagradáveis com os
tar a outras, aborrece, não achas? Não sei como cadáveres. Insensivelmente dirige-me á Bibliotheca
me tenho agüentado lá no consulado ! Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir;
— Cansa-se; mas, não é disso que me admiro. , mas, entrei, entreguei o chapéo ao porteiro, re-
O que me admira, é que tenha corrido tantas cebi a senha e subi. Na escada, acudiu-mè pedir
aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático. a Grande Encyclopedia, letra J., afim de consultar
— Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se o artigo relativo a Java e á lingua javanezai
podem arranjar bellas paginas de vida. Imagina Dito e feito. Fiquei sabendo ao fim de alguns
tu que eu já fui professor de javanez! minutos que Java era uma grande ilha do archi-'
— Quando ? Aqui, depois que voltaste do con- pelago de Sonda, colônia hollandeza, e o javanez,
sulado ? lingua agglutinante do grupo maléo-polynésico,
possuía uma literatura digna de nota e escripta
— Não; antes. E, por signal, fui nomeado côn-
em caracteres derivados do velho alphabeto hindu.
sul por isso.
58 A NOVELLA SEMANAL

A Encyclopedie dava-me indicação de traba- está o senhor ? — e duas ou três regras de gram-
lhos sobre a tal lingua malaia e não tive duvidas matica, lastrado esse saber com vinte palavras do
em consultar um delles. Copiei o alphabeto, a sua léxico.
pronunciação figurada e sai. Andei pelas ruas, Não imaginas as grandes difficuldades com que
perambulando e mastigando letras. lutei, para arranjar os quatrocentos reis da via-
Na minha cabeça dançavam hieroglyphos ; de gem ! E' mais fácil — podes ficar certo — apren-
quando em quando consultava as minhas notas ; der o javanez... Fui a pé. Cheguei suadissimo,;
entrava nos jardins e escrevia estes calungas na e, com maternal carinho, as annosas mangueiras,
areia para guardal-os bem na memória e habituar que se perfilavam em alameda diante da casa do
a mão a eserevel-os. titular, me-receberam, me acolheram e me recon-
Á noite, quando pude entrar em casa sem ser fortaram. Em toda a minha vida, foi o único
visto, para evitar indiscretas perguntas ao encar- momento em que cheguei a sentir a sympathia
regado, ainda continuei no quarto a engulir o meu da natureza . , .
abe malaio, e, com tanto afinco levei o propó- Era uma casa enorme que parecia estar de-
sito que, de manhã, o sabia perfeitamente. serta ; estava mal tratada, mas não sei por que
Convenci-me que aquella era a lingua mais fá- me veiu pensar que nesse máo tratamento havia
cil do mundo e sai, mas não tão cedo que não mais desleixo e cansaço de viver que mesmo po-
me encontrasse com o encarregado dos alugueis breza. Devia haver annos que não era pintada.
dos commodos : «Sr. Castello, quando salda a sua As paredes descascavam e os beiraes do telhado,
conta ? » daquellas telhas vidradas de outros tempos, esta-
vam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras
Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora
decadentes ou mal cuidadas.
esperança: «Breve... Espere um pouco... Tenha
paciência... Vou ser nomeado professor de java- Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vin-
nez e . . . » Por ahi o homem interrompeu-me: gativa com que a tiririca e o carrapicho tinham
«Que diabo vem a ser isso, Sr. Castello ?» Gos- expulsado os tinhorões e as begonias. Os crotons
tei da diversão e ataquei o patriotismo do homem : continuavam, porém, a viver com a sua folhagem
«E' uma lingua que se fala lá pelas bandas do de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir.
Timor. Sabe onde é ? » Veiu, por fim, um antigo preto africano, cujas
Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da barbas e cabello de algodão davam á sua phisio-
minha divida e disse-me com aquelle falar forte nomia uma aguda impressão de velhice, doçura e
dos portuguezes : «Eu cá por mim, não sei bem: soffrimento.
mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá Na sala, havia uma galeria de retratos ; arro-
para os lados de Macáo. E o senhor sabe isso, gantes senhores de barba em collar se perfilavam
Sr. Castello ?» enquadrados em immensas molduras douradas, e
Animado com esta sahida feliz que me deu o doces perfis de senhoras, em bandos, com gran-
javanez, voltei a procurar o annuncio. Lá estava des leques, pareciam querer subir aos ares, enfu-
elle. Resolvi animosamente propôr-me ao profes- nadas pelos redondos vestidos á balão ; mas, da-
sorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei quellas velhas coisas, sobre as quaes a poeira,
pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida voltei punha mais antigüidade e respeito, a que gostei
á bibliotheca e continuei os meus estudos de ja- mais de ver foi um bello jarrão de porcellana da
vanez. Não fiz grandes progressos nesse dia, China ou da índia, como se diz. Aquella pureza
não sei se por julgar o alphabeto javanez o único de louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do de-
saber necessário a um professor de lingua malaia senho e aquelle seu fosco brilho de luar, diziam-
ou se por ter me empenhado mais na bíbliogra- me a mim que aquelle objecto tinha sido feito
phia e historia literária do idioma que ia ensinar. por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos
Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta olhos fatigados dos velhos desilludidos . . .
para ir falar ao Dr.' Manoel Feliciano Soares Aí- Esperei um instante o dono da casa. Tardou um
bernaz, barão de Jacuecanga, á rua Conde de Bom- pouco. Um tanto tropego, com o lenço de alco-
fim, não me recordo bem que numero. E' preciso baça na mão, tomando veneravelmeiite o simonte
não te esqueceres que entrementes continuei es- de antanho, foi cheio de respeito que o vi che-
tudando o meu malaio, isto é, o tal javanez. Alem gar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se
do alphabeto, fiquei sabendo o nome de alguns não fosse elle o discípulo, era sempre um crime
autores, também perguntar e responder — corno mystificar aquelle ancião, cuja velhice trazia á tona
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do meu pensamento alguma coisa de augusto, de dera, em Londres, em agradecimento a não sei
sagrado. Hesitei, mas fiquei. que serviço prestado por meu avô. Ao morrer,
— Eu sou, avancei, o piofessor de javanez, que meu avô chamou meu pae e lhe disse : «Filho,
o senhor disse precisar. tenho este livro aqui, escripto em javanez. Disse-
— Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor é me quem m'o deu que elle evita desgraças e traz
daqui, do Rio ? felicidades para quem o tem. Eu não sei nada
— Não, sou de Cannavieiras. ao certo. Em todo o caso, guarda-o ; mas se que-
— Como ? fez elle. Fale um pouco alto, que sou res que o fado que me deitou o sábio oriental
surdo. se cumpra, faze com que teu filho o entenda,
— Sou de Cannavieiras, na Bahia, insisti eu. para que sempre a nossa raça seja feliz.»
— Onde fez os seus estudos ? Meu pai, continuou o velho barão, não acredi-
— Em S. Salvador. tou muito na historia; comtudo, guardou o livro.
— E onde aprendeu javanez ? — indagou elle, Ás portas da morte, elle m'o deu e disse-me o
com aquella teimosia peculiar aos velhos. que promettera ao Pai. Em começo, pouco caso
Não contava com essa pergunta, mas immedia- fiz da historia do livro,. Deitei-o a um canto e
tamente architectei uma mentira. Contei-lhe que fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me
meu pae era javanez. Tripulante de um navio delle: mas, de uns tempos a esta parte, tenho
mercante viera ter á Bahia, estabelecera-se nas passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm
proximidades de Canniveiras como pescador, ca- caido sobre a minha velhice que me lembrei do
sara, prosperara e fora com elle que aprendi talisman da família.
javanez. Tenho que o ler, que o comprehender, senão
— E elle acreditou ? E o physico ? perguntou quero que os meus últimos dias annunciem õ de-
meu amigo, que até então me ouvira calado. sastre da minha posteridade; e, para entendel-o,
__ — Não sou, objectei, lá muito differente de um é claro, que preciso entender o javanez. Eis ahi.
javanez. Estes meus cabellos - corridos, duros e Calou-se e notei que os olhos do velho se ti-
grossos e a minha pelle basané podem dar-me nham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos
muito bem o aspecto de um mestiço de malaio... e perguntou-me se queria ver o tal livro. Res-
Tu sabes bem que, entre nós, ha de tudo : ín- pondi-lhe que sim. Chamou o (criado, deu-lhe as
dios, malaios, taitianòs, malgaches, guanches, até instrucções e explicou-me que perdera todos os
godos. E' uma comparsaria de raças e typos de filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha ca-
fazer inveja ao mundo inteiro. sada, cuja prole, porém, estava reduzida a um fi-
— Bem, fez o meu amigo, continua. lho, débil de corpo e de saúde frágil e ;oscil-
— O velho, emendei eu, ouviu-me attentamente, lante.
considerou demoradamenfé o meu physico, pare- Veiu o livro. Era um velho calhamaço, um in-
ceu que me julgava de facto filho de malaio e quarto antigo, encadernado em couro, impresso
perguntou-me com doçura : em grandes letras, em um papel amarellado e
— Então está disposto a ensinar-me javanez ? grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não
A resposta saiu-rhe sem querer: se podia ler a data da impressão. Tinha ainda
— Pois não. umas paginas de prefacio, escriptas em inglez,
— O senhor ha de ficar admirado, adduziu o onde li que se tratava das historias do príncipe Ku-
barão de Jacuecanga, que eu nesta idade, ainda íanga, escriptor javanez de muito mérito.
queira aprender qualquer coisa, m a s . . . Logo informei disso o velho barão que não
— Não tenho que admirar. Têm-se visto exem- percebendo que eu tinha chegado ahi pelo inglez,
plos e exemplos muito fecundos... ficou tendo em alta consideração b meu saber ma-
— O que eu quero, meu caro senhor... ? laio. Estive ainda folheando o cartápacio, á laia de
— Castello, adiantei eu. quem sabe magistralmente aquella espécie de vas-
— O que eu quero, meu caro'Sr. Castello, é conço, até que afinal contratámos as condições de
cumprir um juramento de família. Não sei se o preço e de hora, compromettendo-me a fazer com
senhor sabe que sou neto do conselheiro Alber- que elle lesse o tal alfarrábio antes de um anno.
naz, aquelle que acompanhou Pedro I, quando Dentro em pouco, dava a minha primeira lição
abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui mas o velho não foi tão diligente quanto eu.
um livro, em lingua exquisita, a que tinha grande Não conseguia aprender a distinguir e a escrever
estimação. Fora um hindu ou siamez que lh'o nem sequer quatro letras. Emfim, com metade do
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alphabeto levámos um mez e o sr. Barão de Ja- Os chefes de secção levaram-me aos officiaes e
cuecanga não ficou lá muito senhor da matéria ; amanuenses e houve um destes que me olhou
aprendia e desaprendia. mais com ódio do que com inveja e admiração.
A filha e o genro (penso que até ahi nada sa- E todos diziam : «Então sabe javanez ? E' diffi-
biam da historia do livro1! vieram a ter noticias cil ? Não ha quem o saiba aqui ! »
do estudo do velho; não se incommodaram. Acha- O tal amanuense, que me olhou com ódio, acu-
ram graça e julgaram a coisa boa para distrail-o. diu então : «E' verdade, mas eu sei canaque. O
Mas com que tu vaes ficar assombrado, meu Sr. sabe ? » Disse-lhe que não e fui á presença
caro Castro, é com a admiração que o genro fi- do ministro.
cou tendo pelo professor de javanez. Que coisa A alta autoridade levantou-se, poz as mãos ás
única! Elle não se cansava de repetir: «E' uni cadeiras, concertou o pincenez no nariz e pergun-
assombro! Tão moço ! Se eu soubesse isso, ah ! tou : «Então sabe javanez ?» Respondi-lhe que sim;
onde estava ! » e á sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-
O marido de D. Maria da Gloria (assim se lhe a historia do tal pae javanez. «Bem, disse-
chamava a filha do barão), era desembargador, me o ministro, o Sr. não deve ií para a diploma-
homem relacionado e poderoso-; mas não se pe- cia ; o seu physico não se p r e s t a . . . O bom seria
java em mostrar diante de todo o mundo a sua um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora não
admiração pelo meu javanez. Por outro lado, o ba- ha vaga, mas vou fazer uma reforma e o sr. en-
rão estava contentissimo. Ao fim de dois mezes, trará. De hoje em diante, porém, fica addido ao
•desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe meu ministério e quero que, para o anno, parta
traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do para Bale, onde vae representar o Brasil no Con-
livro' encantado. Bastava entendel-o, disse-me elle; gresso de' Lingüística. Estude, leia o Hovelacque,
nada se oppunha que outrem o traduzisse e elle o Max Muller, e outros ! »
ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cum- Imagina tu que eu até ahi nada sabia de java-
pria o encargo. nez mas estava empregado e iria representar o
'Sabes bem que até hoje nada sei de javanez, Brasil em um congresso de sábios.
mas compuz umas historias bem tolas e impingi- O velho barão veio a morrer, passou o livro ao
as ao velhote como sendo do chronicon. Como genro para que o fizesse chegar ao neto, quando
elle ouvia aquellas bobagens ! . . . tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa
Ficava estático como se estivesse a ouvir pala- no testamento.
vras de um anjo. E eu crescia aos, seus olhos ! Puz-me com afan no estudo das línguas maléo-
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de pre- polynesicas; mas não havia meio !
sentes, augmentava-me o ordenado. Passava, em- Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não
fim, uma vida regalada. tinha energia necessária para fazer entrar na ca-
Contribuiu muito para isso o facto de vir elle chola aquellas coisas exquisitas. Comprei livros,
a receber uma herança de um seu parente esquecido assignei revistas: Revue Anthropologique et Lin-
, que vivia em Portugal. O bom velho attribuiu a cou- guistique, Proceedíngs of the English, Oceanic
sa ao meu javanez; e eu estive quasi a crel-o também. Association, Archivi Glottologico ltalianp, o diabo,
Fui perdendo os remorsos , mas, em todo o mas nada ! E a minha fama crescia. Na rua os
caso, sempre tive medo que me apparecesse pela informados apontavam-me, dizendo aos outros:
frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. «Lá vae o sujeito que sabe javanez >. Nas livra-
E esse meu temor foi grande quando o doce ba- rias os grammaticos consultavam-me sobre a col-
rão me mandou com uma carta ao visconde de locação dos pronomes no tal jargão das ilhas de
Carurú, para. que me fizesse entrar na diploma- Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os
cia. Fiz-lhe todas as objecções: a minha fealdade, jornaes citavam o meu saber e recusei aceitar uma
a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. «Qual! turma de alumnos sequiosos de entenderem o tal
retrucava elle. Vá, menino ; V. sabe javanez ! >- javanez. A convite da redacção, escrevi, no Jornal
Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos do Commercio, um artigo de quatro columnas so-
Extrangeiros com diversas recommendações. Foi bre a literatura javaneza antiga e moderna...
um successo. — Como, se tu nada sabias ? interrompeu-me
O director chamou os chefes de secção : «Ve- o attento Castro.
jam só, um homem que sabe javanez — que — Muito simplesmente: primeiramente, descrevi
portento ! - a ilha de Java, com o auxilio de diccionarios e
A NOVELLA SEMANAL 61

umas poucas de geographias, e depois citei a mais


não poder.
— E nunca duvidaram ? perguntou-me ainda o
meu amigo. '
— Nunca. Isto é, uma vez quasi fico perdido-
A policia prendeu um sujeito, um marujo, um
typo bronzeado que só falava uma lingua exqui-
sita. Chamaram diversos interpretes, ninguém o A ESCOLHA
entendia. Fui também chamado, com todos os A PAULO BARRETO
respeitos que a minha sabedoria merecia, natural-
Todas as tardes, de uma d'aquellas cabanas, com
mente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O ho-
um alto lamento que chegava ao ceu, sempre azul
mem já estava solto, graças á intervenção do côn-
e dóirado, sahia um corpo para o eterno repouso,
sul hollandez, a quem elle se fez comprehender
entre altos sycomoros de basta folhagem e finos
com meia dúzia de palavras hollandezas. E o tal
cyprestes altos que, ao livido clarão dò luar, to-
marujo era javanez — uff !
mavam o aspecto lugrfbrè de enormes pegureiros,
Chegou, emfim, a época do Congresso, e lá fui com os agudos capuzes sobre a cabeça, immoveis,
para a Europa. Que delicia ! Assisti á inaugura- guardando os sepulcros brancos, que alvejavam
ção e ás sessões preparatórias. Inscreveram-me na -' como um quieto rebanho espalhado entre flores.
secção de tupy-guarany e eu abalei para Paris. Debalde os,altares rústicos cobriam-se de offe-
Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bale rendas que o fogo lento dos sacrifícios consumia;
o meu retrato, notas biographicas e bibliographi- debalde os homens santos, que viviam nas caver-
cas. Quando voltei, o presidente pediu-me descul- nas, clamavam prostrados, com a rude face na
pas por me ler dado aquella secção; não conhe- terra morna, os deuses bárbaros e QÍ Deus meigo
cia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu dos eremitas pareciam desattentos ás vozes que
americano brasileiro, me estava naturalmente in- subiam da terra em grita lamentosa, aos cânticos,
dicada a secção do tupy-guarany. Aceitei as expli- ás murmuradas preces. A morte continuava a
cações e até hoje não pude escrever as minhas ferir sem pena a pobre gente.
obras sobre o javanez, para lhe mandar conforme Dizia-se que um anjo negro, armado de gladio,
prometti. tendo escolhido a sua victima, arremessava-se d'alto
Acabado o Congresso, fiz publicar extractos do sobre ella, como um abutre sobre á presa, feri-a
artigo do Mensageiro de Bale, em Berlim, em e remontava ás nuvens, desapparecendo até á tarde
Turim e Paris, onde os leitores das minhas obras seguinte quando, de novo, pairava, adejava e pre-
me offereceram um banquete, presidido pelo se- cipitava-se violento.
nador Gorôt. Custou-me toda essa brincadeira, in- Ora, em uma d'aquellas cabanas, vivia Ayiché,
clusive o banquete que me foi offerecido, cerca pobre mulher, cujo esposo partira, com um car-
de dez mil francos, quasi toda a herança*do cré- regamento de balsamo, para os lados do mar dei-
dulo e bom barão de Jacuecanga. xando-a a cuidar do campo, que era farto e de
Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Pas- dois filhinhos, que eram lindos.
sei a ser uma gloria nacional e, ao saltar no cáes Ayiché, na sua pobreza, quando, á sombra de
Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes uma das grandes figueiras, em torno das quaes
sociaes e o presidente da Republica, dias depois, enxameavam abelhas, dava o peito ao pequenito
convidava-me para almoçar em sua companhia. vendo- correr, a rir, o mais velho, considerava-se
Dentro de seis mezes fui despachado cônsul em tão venturosa que não trocaria a sua vida de por-
Havana, onde estive seis annos e para onde vol- fiado trabalho pela da princeza mais rica.
tarei, afim de aperfeiçoar os meus estudos das Ayiché fora bella, ainda os seus grandes olhos
línguas da Malaia, Melanesia e Polynesia. negros conservavam o esplendor do tempo em
— É fantástico, observou Castro, agarrando o que, entre as donzellas da aldeia, uma amphora
copo de cerveja. ao hombro, a túnica fluctuando, descia á fonte
— Olha : se não fosse estar contente, sabes que ou, graciosamente coroada de flores, com os bra-
ia ser ? ços enrodilhados em braceletes de prata, um veu
— Que? airoso desfraldado ao vento, leve, languida sor-
— Bacteriologista eminente. Vamos? rindo, volteava nas danças como uma fina libel-
— VamOS. LIMA BARRETO lula esvoaçando á flor das águas límpidas.
62 A NOVELLA SEMANAL

Virtuosa, desde que o seu esposo partira, nunca "Este não ! Este é mais agarrado a mim. O ou-
mais homem algum cruzara o solar da sua porta, tro anda lá fora.. . Passa minutos longe de meus
riem mesmo os marabutos santos que abençoam olhos. . ."
os lares; e, todas as tardes, á hora em que o sol A voz do mais velho chamou-a:
morre, com o pequenito nos braços e o mais ve- •'Mamãe 1"
lho agarrado aos seus vestidos, ficava, um mo- O coração de Ayiché esbarrou contra o peito,
mento, a olhar saudosamente o horisonte, para as as lagrimas saltaram-lhe dos olhos e, estrangula-
bandas do oceano, á espera de ver surgir a cara- damente, desesperàdamante a coitada bradou entre
vana em que devia chegar alegre, com o ginete os dois amores:
a reluzir de suor e a bolsa pesada de ouro, o seu "Meu Deus! Que vos fiz eu para que assim
esposo esbelto, senhor da sua alma e do seu corpo. me castigueis com tamanho rigor! Como que-
Uma tarde, justamente ella alongava os olhos reis que eu escolha onde não ha que escolher?
pelo vasto deserto, sempre com os dois filhos Como quereis que eu divida o coração, Senhor
— um ao collo, outro pela mão — quando uma Deus ?! E' a mim que propondes tal supplicio,
sombra fria escureceu gelidamente a cabana e uma a mim que nunca vos esqueci, que sempre vos
voz sinistra falou: venerei ?
«Ayiché, mulher de Abdul, filha de Ahmed, ca- Porque não fizestes em silencio o vosso mister,
çador de leões, amanhã á hora em que a lua su- anjo da Morte ? Eu choraria sobre o cadáver,
bir no ceu e as aves escuras da-noite soltarem-se cobril-o-ia de flores, abriria o seu túmulo entre
no espaço, a Morte passará pela tua cabana em rosaes, mas não soffreria tanto como soffro. Que
busca do seu tributo. Tens dois filhos — escolhe vos fiz eu, senhor Deus ! ?"
um d'elles e deixa-o ficar sob a figueira da tua Os pequenitos brincavam á sombra cheirosa das
porta.» arvores e o dia escoava-se.
E clareou de novo, e de novo aqueceu.
A' tarde Ayiché sahiu a olhar o horisonte: de-
Ayiché ficou como petrificada e, tanto apertou serto, nem sombra de caravana. Se elle, ao me-
ao collo o pequenito, que a creança abriu num nos, chegasse...!
pranto e o outro, de medo poz-se também a cho- Mas as cigarras cantavam, o sol transpunha o
rar. Ayiché recolheu-se, sempre a ouvir as rou- ceu, rente das areias longínquas, abrazando as
cas palavras de sentença cruel, accendeu a candeia, dunas e os palma res.
adormeceu os filhos e, ajoelhada entre os dois
Silvavam ríspidos os trissos dos morcegos, os
berços, d'olhos muito abertos, ficou-se immovel,
chacaes uivavam e a primeira estrella luziu.
fazendo a escolha.
Olhava o mais velho. Coma era lindo a dor- Era a hora em que as creanças costumavam
mir ! Os cachos dos seu cabellos negros rola- dormir.
vam-lhe pelo rosto moreno como as ramas flori- O mais velho abraçou-a, beijou-a e subiu para
das pelo frontão de um templo. o seu berço de palha, o. mais novo estendeu-lhe
O pequenito rechonchudo sonhava e sorria, com os bracinhos e, tanto que ella o tomou, logo, avi-
duas covinhas nas faces. damente, collou a boquinha ao peito e adorme-
A misera sentia a noite correr... Nunca as ho- ceu. Deitou-o e, ajoelhoda entre os berços, que-
ras lhe pareceram tão ligeiras. Já os pássaros dou-se contemplando os filhos.
cantavam nas arvores e os rebanhos saudavam a Um raio de lua entrou pela cabana escura e
alvorada nos campos. . . e Ayiché ouvia sempre quieta — era a hora.
as palavras fataes. Ergueu-se allucinada — curvou-se, estendeu os
Não teve animo de ir á lavoura, não se des- braços a um berço, a outro. As estryges chir-
prendeu dos filhos, olhando-os, ora um, ora riavam.
outro. Vacillou ; mas, rápida, cobrindo-se com o manto,
«Que vá o pequenito. . . Ainda não anda, ainda ainda beijou os filhos, ainda os molhou de lagri-
não fala. . .-• Mas o pequenito, como se advinhasse mas e, lenta, em passos arrastados, voltando-se de
o seu pensamento, estendeu-lhe os bracinhos gor- quando em quando, sahiu, desceu o degrau de pe-
dos, sorrindo e tartareando e a infeliz, em solu- dra e, tremendo, bastendo os dentes, arrepiada de
ços, tomou-o ao collo, deu-lhe o peito cheio e, medo, os olhos voltados para a cabana, sentou-se
emquanto elle mamava, sob o seu olhar lacri- sob a figueira.
moso, ella exclamou desesperada: COELHO NETTO
A NOVELLA SEMANAL 63

e directas, verdadeiros abminários, a reçumar epi-


tetos de bordel, a cujo lado subornado, venal,
peculatário e que taes seriam honrosos. Com va-
gar beatificameníe, o somno subtil acercava-se e
chumbava-me as pálpebras. Isto nem sempre:
havia occasiões em que esse "bálsamo dos espíri-
tos", como lhe chamou Musset, dava tempo a que
S A CR I F ICI me salteasse uma recordação triste que desfechava
P a s s o d e urn manuscripto a c h a d o em uma lágrima impoituna. Difícil sciencia é
essa que, adargando-nos para a vida objectiva,
i nos faz homens de nosso tempo!
Ai de mim 1 Para a indiscrição, transeunte fi-
Por uma série de factos imprevistos e ensarta- cava-me apenas um frágil paládio: a consciência
dos, por um concurso de circumstancias especiais, do meu desvalor e, — singular! — um orgulho
eu, derreado pela anemia, com os nervos imper- indómito dela resultante.
tinentes, aceitando tudo como o melhor possivel,
Alimentava-me desse orgulho e dele hàuria
á força de ver tudo mau e de aborrecer a todos, forças.
me fni encontrar professor público do logarejo.
Algumas dezenas de casas disseminadas, onde Para diante, um quê, interessante, a contrastar
algumas suportáveis; pequena igreja de paredes com a insulsez dessa vida monócrosma, veio pos-
sem reboco e húmidas, com o seu sino, o único tar-se na senda por onde eu me arrastava cobár-
e petulante que o preto Vicente, na funcção de demente, como entregue a uma destruição de mim
puxador da reza, vinha badalar, com a convin- mesmo, abdicando de minhas preferencias e na-
cção e o empenho que nascem do fanatismq; al- turais pendores, desenganado, acolhendo tudo co-
gumas lojas; o casarão grotesco e baroco que mo o melhor possivel, a dizer, num travoso sor-
abrigava um batalhão de aparatosa e inútil guar- riso de piedosa indulgência:
da á fronteira, com as suas rótulas uniformes e — Podia ser peor...
eqúidistantes; uma dúzia de burguezes aperal- Para ir da escola ao alojamento, pouco menos
tados, com pretensões a "podres de chique"; que pobre, onde, entre quadro paredes, eu me
acrescentem-se alguns capanemas, giria local, bons desforrava dos dissabores e do tédio que tragava
cavaleiros, guapos e ginetes, ostentando arreios lá fora, passava pela frente de certa casa, cujas
com profusão de prata, e tei-se-há uma idea do portas e janellas via de hábito fechadas. Uma só
ambiente, onde o guante irônico e feroz do meu janela aberta abria também, para mim, uma ge-
destino me álibambara. nerosa excepção. Nella residiu por algum tempo
Recentemente chegara; de pouco abrira mão o objecto de uma preoccupação que nutri, pie-
da vida contemplativa e errante que levava na- gas, tolamente vulgar, trazendo comtudo o pico
quella serra que ora meus olhos, amarados, pela do vário e da novidade.
saudade, buscavam longe, esfumados no horizonte Se eu saia, fechava a porta e corria o ferrolho
e onde me corriam os dias dispartidos a carre- com uma estouvice acinte, com estrondo adrede
gar troncos para levantar a trincheira da roça, ao provocado; e, assim me via na rua, levava os
lado do arrife ou a marombar, em lances de olhos á janella, que já por esse tempo encaixi-
acrobata, sobre a coivara para colher milho. Ihava um determinado busto. Bonito? Talvez...
Não se pode imaginar um viver mais charra- Louro; suporte de uma coma farta, ondada, de
mente burguez: despertar ás cinco; banho frio, nm fulvo tostado, coroando um rosto de feições
se mo permetia a Iassidão mórbida que acom- simpáticas : branco amarfinado, servido por um
panhava o anêmico; café; aula de duas horas a jogo de olhos sombrios, esquivos, quasi tempes-
meninos que já tinham o curso integro da mart- tuosos.
driice; sueto ao meio dia; lição das duas ás qua- Passava, sem lhe dispensar mais que o olhar
tro e jantar ás seis. momentâneo que acompanha o cumprimento que
A' noite, após uma palestra frivola e insipida é uma das injunções de urbanidade em terras pe-
ao pé de algum balcão, vinha para casa, acendia quenas. Na primeira esquina voltava-me, num
a vela e estirava-me na rede a ler jornais sero- furtivov relance, e verificava envaidado que a dona
dios, inçados de mofinas, de agressões pessoaes dos olhos celebrados continuava impassível na sua
64 A NOVELLA SEMANAL

moldura, mandando depôs mim o olhar, fito po- Era mestre-escola sério, acadimado ao trabalho,
rém frio, olhar que nada prometia. cangueiro nos deveres, ensinando com honesto
Lá se me occasionou aberta para falar aos vi- empenho o a-b-c, não obstante a mocidade,
zinhos : pediram-me que entrasse para que me re- o mau sestro da literatura - e a fantasia mui,
comendassem um menino da casa que ia ser man- muita.
dado á matricula. Vimo-nos então, soubemos re- Na casa vizinha dignaram-se tomar informações
ciprocamente de nossos nomes, entretivemos uma sobre mim, respeito o meu procedimento. Co-
pontazinha de ligeira palestra e a vir dai... amá- lheram-nas cabaes, pelo menos indulgentes: eu
mo-nos? não sei. Esse amor, coisa que se me era bom, ridiculamente bom. Convidaram-me,
afigura abstruso hoje, amanhã metafísico, depois portanto, a dar lições particulares... a quem? A'
impenetrável, não tenta a minha análise. quela mesma que, dias antes, me fizera a tácita
Demais, lembra-me que — "não vá o sapa- e generosa proposta de nos atuarmos; àquela para
teiro...", etc. Que nos gostámos, sim, assevero-o. quem eu, ameigando e compondo as maneiras
Gosto com veras do verbo gostar. Tolerem-me canhestras denunciadoras de acanho e timidez,
e perdoem-me o enxabido equivoco. criara uma excepção aos meus hábitos de semi-
Sem que nos entendêssemos por palavras fo- curso.
mos nos deixando.levar ao léo de acaso, como- Doloroso arrepio transiu-me; esbatia-se a mi-
damente, sem protestos, para esse "rio claro das nha ideal e rósea nuvem; esvanecia-se o meu
delicias". Encontros casuaes e freqüentes em ca- oásis e se me antolhava outra vez o areai que
salejos de sociedade diminuta; esboços de sor- mata, a esperança. Essa confiança tolhia-me: era
risos sublinhavam o dantes seco e circumspecto um grilhão.
cumprimento; casualidades entraram em franca Estava a ouvir:
çonjura: ora ia eu perguntar pe Io novo discípulo
— Porta-te curialmente! Afivela a máscara da
que, doente, não fora á escola; ora portava em
frieza! Podia, como num caso mais que trivial,
procura de um amigo, de visita na casa.
tomar a ocasião como ela se me oferecia e si-
De uma occasião veio ela própria, "a dos olhos", mular que extinguia a pyra alimentando-a sob-
rèceber-me. Na sala parecia arder uma caçoila: capa; porém não: quis ser original. Quão cara
rosas de forte viço e intenso aroma pendiam das me ia custar a originalide!
bordas de um^vaso. Afavel, sorrindo, tomou-me
Demais, eu precisava e mais alguns sobejos me
ò chapéu e para a irmãzinha:
eram atirados... Trabalho, poleá: repara as dis-
— Vai dizer á Mamai que F... está aqui. tancias e esquece-te de que tens coração. Fui ini-
Um frêmito de agradável surpreza vibrou-me ciar as lições. Recepção requintádamente cava-
os nervos. Não contava que as cousas assim se lheiresca: a dona da casa, senhora de princípios
precipitassem tão imprevistas. rígidos e austeros, com a gravidade de uma ca-
,Conformei-me, com um amplo sorriso de in- stelã medieva, assistiu á lição reclinada em velha
condicional aprovação, e puz nos olhos a expres- poltrona. Para me retirar estendi á discípula a
são de um súbito penhor pela concessão ma- mão que me tremia e toquei uns dedos que se
gnânima. abandonavam gelados entre os meus.
Qei as boas vindas ao tu, como já as dera aos Os olhos? fitavam o soalho, para onde tam-
olhares e sorrisos. Permiti-me o pensar em ob- bém os meus se obstinavam em ir; o sorriso?
jectos mais suaves e seductores que esses de qne sumira-se-nos; o tu? esqueçemol-o... Ali apenas
se apascia a minha imaginação. estavam discípula modelar e professor compene-
Mas... como ficou dito em começo, eu era mes- trado de que o era. Pela primeira vez não vol-
tre-escola, por uma centena, de mil réis que o tei á esquina. A meus ouvidos uma voz dolente,
poder publico me mandava, mediante formalida- acúsmata remotíssima, cantava em língua maviosa,
des intérminas e abates iniquos. Que! eu que essencialmente musical, estes versos:
estaria talvez aquella hora vergado á enxada, ar-
rancando á leiva o necessário para viver com par-
cimônia, passar a perceber honorários prefixados "Contempleró taciendo,
por lei, a gosar da consideração imanente a esse "Taciendo fameró""
cargo? Venhamos na bizarria dos que po-
dem . . . CARLOS DA FONSECA.
A NOVELLA SEMANAL 65

Sung-ti, b mais afamado sábio de todo o Impé-


rio. O Dr. Sung-ti, reconhecido, cbnduz para a
casa o seu salvador. Faz mais: promette a fé do
valor de toda a sua sciencia que havia de realisar
um desejo de Yu-Thsin.
O já feliz Yu, ao ser consultado, cáe aos pés
do sábio, beija as suas veneraveis plantas e faz o
ETERNIDADE DO SONHO seu pedido. Queria elle que o primeiro sábio da
Flor do Meio lhe preparasse um sonho... eterno.
Na populosa Pekin vivia Yu-Thsin, o mais des- Disse que da vida nada desejava.
prezado filho do Celeste Império. Como bom budhista desprezava o mundo, anhe-
Puxava carreta, carregava fardos, tudo fazia para lava pelo Nirvana.
merecer o appetecivel prato de arroz. Fazia mais: Mas como gostava do ópio, do ópio que faz.
alimentava um vicio, o vicio de todo bom chinez, sonhar, Yu-Thsin pedia com os seus humidos olhi-
a opiomania. nhos oblíquos que o grande sábio desse-lhe tanto_
De dia, arrastava o corpo magro pelas ruas de ópio quanto fosse preciso para elle, morto, viajar
Pekin, fazendo esvoaçar o seu rabicho esguio, para o paiz do Nada, sonhando!
iendo apenas momentos de folga para, com dois O Dr. Sung-ti, que o ouvia attento, coçoü »
pausinhos, agilmente, saborear o seu arroz feito nariz com gravidade, signal evidente de grande
em pelotas. A' noite sorrateiramente, como um preoccupação. Achava o problema originalíssimo.
criminoso, penetrava numa baiuca sórdida, pe- / E considerando o esfarrapado Yu deu razão ao
dia um cachimbo dbpio, refestelava-se nüm canto asserto. dum, philosopho: — todo sábio tem o que
e fumava. O sonho começava a esboçar-se... A aprender com a ignorante gente do povo.
cabeça ia ficando pesada,- até que, completamente Depois, num largo gesto, fez levantar o sub-
embriagado, cahia no lagedo frio. Então a visão, misso Yu, dizendo :<
do sonho apparecia-lhe nitida. "Descança Yu-Thsin, teu desejo será cumprido.
O tecto pobre transformava-se num delicioso E's moço. _ Espera dez annos e poderás sonha r
pedaço de céo, onde Yu-Thsin, rodeado das mais eternamente."
bellas patrícios, era abanado com leques enormes, Cumpriria a palavra o sabiò ?
deliciado com musica acariciádora.. . Seguia-se um
Seria crivei que um processo de embalsama-
bailado envolta delle. . . Depois mudava-se o sce-
mento sai generis conservasse o cérebro perfeita
na rio.
para sonhar ? x Oh! que maravilha, fechar a vida
Yu-Thsin tomava uma carruagem, como um num sonho bom, não conhecer dores, não ter no-
mandarim feliz, e ia visitar os seus domínios. Pas- ção do tempo, encerrada a gente num caixão d'aço
sava por vastos campos de cultura de arroz e chá. e sonhar, sonhar, onde quer que seja, na terra,,
Verdes amoreiras indicavam criações dos ope- como no fundo do mar.
rosos bichos da seda. O Dr. Sung-ti era um sábio ás direitas. Não
Tudo pertencia ao feliz sonhador. perdeu tempo: encerrou-se nos seus vastos labo-
ratórios e ninguenl mais soube de sua vida. A vi-
De manhã, oh decepção! o pobre opiomaniaco sinhança do sábio assustava-se de que, uma vez por
era acordado a pontapé pelo amável dono da ba- outra, entrasse, escoltado, um criminoso chinez.
iuca. Yu-Thsin despertava em sobresalto. Erguia Que iria fazer alli o triste condemnado ? Expli-
a mão ao céo, estremunhado, como quem apanha cava-se.
alguma cousa fugitiva. Pagava é, tropego, lá se O illustre sábio, na qualidade de medico de S„
ia cambaleando tomar conta dos seus domínios, M. o Imperador, gosava das graças imperiaes é,
isto é atrelar-se ao carrinho como àlimaria reles. em beneficio da sciencia, rogava um ou outra
Bello despertar! condemnado ao supplicio, para as suas famosas
Assim vivia Yu/Thsin^assim continuaria a viver, experiências.
si Budha não se compadecesse delle. Foi um Passaram-se annos. O sábio envelhecia. Yu-Thsin
acaso. já estava cançado de esperar quando, um dia, foi
Na rua, Yu-Thsin, çom um sangue frio de chamado. Foi pulando e saccudindo frenética-
verdadeiro heróe salvara um homem que ia sej mente o rabicho.
victima dum atropello de carruagem. Era o Dr. O sábio tinha descoberto o segredo da con-
00 A NOVELLA SEMANAL

servação do cérebro valendo-se de velhos manus- pequeno amphitheatro fazer lições mais cuidadas
criptos da sciencia hindu. O felicíssimo Yu en- sobre os casos occorridos no Serviço. O mestre
tregára-se de corpo e alma. Soffreu a preciosa in- reservava para essas prelecções os indivíduos por-
jecção de ópio. Concentrou os seus melhores so- tadores de moléstias raras ou mal definidas, sobre
nhos. Passou por innumeros processos de em- os quaes lhe fosse fácil basofiar erudição, calcando
balsamamento. Ia mirrando, mirrando, até tor- diagnósticos rebuscados á symptomatologja falha
nar-se uma perfeita múmia. E múmia de nossa e controversa. Hypotheses mirabolantes e ousadas
«specie, múmia que sonhava. desforravam-n'o das ignorancias da sciencia, eter-
Como? Quem poderia affiançal-o? namente emperrada ante os caprichos da natureza
O Dr. Sung-ti não se deixava caminhar ás apal- sempre mysteriosa.
padelas. Para verificar tão grande descoberta va- Attentos, alguns de lápis em punho, nos ban-
leu-se de sua especialidade. Tinha profundos co- cos dispostos em semicirculo se acotovellavam
nhecimentos do magnetismo. As suas sessões de os discípulos, frementes por ouvir a palavra au-
magnetisação assombravam. Assim, quando ia torisada do mestre sobre a causa do implacável
fazendo a arriscada operação, o sábio communicava- mal que prendera no leito, ia para mais de um
se com o operado por intermédio dum paciente mez, a figura tão popular entre elles do Sylvino,
em estado de somnambulismo. Nada mais natural. o próprio enfermeiro da Clinica.
A múmia sonhava, estava alli para comproval-o De olhos vivos e miudinhos a rebrilharem ir-
o secretario do sábio — o narrador do sonho de requietos sob os óculos de largos vidros enfuma-
Yu-Tsin! çados, o professor Rodrigues, empavonado uo seu
Era completo o triumpho do afamado glorioso luzente avental de linho branco, atinha-se junto
sábio chinez. ao carro leito, anediando preguiçosamente a barba
Mas o velho Dr. Sung-tí não sobreviveu por em ponta, já prestes a branquear, emquanto um
muito tempo á sua dscoberta. Agraciado pelo dos internos, alvo de todos os olhares, typo fran-
imperador, cumulado de commendas de todas zino e cuspinhento de cabellos empastados sobre
as ordens, num sorriso seraphico, fechou os olhos, a testa, lia com voz áspera e nasalada a observa-
prelibando as delicias inegualaveis do descanço ção minuciosa do caso.
«terno do Nada, sem sonhos. . . Immovel entre as almofadas que lhe chumaça-
Guardara egoisticamente o seu segredo. vam o corpo ossoso, uma baetilha enrodilhada ás
E lá no Império da Flor do Meio, depositado pernas, Sylvino, de sua maça, igualmente não o
numa ermida, onde é venerado como um santo, desfitava, enleado na descripçãoj das varias phases
Yu-Thsin, mirrado, ennegrecido, feio — continua do mal que tão traiçoeiramente o acommettera.
a sonhaF o seductor sonho do ópio e sonhará, E diante do seu rosto baço e encovado, em que
sonhará, emquanto durar a ermida dos Crentes os olhos garços e suaves entravam a desluzir or-
de Budha, emquanto durar a terra! lados de roxo, bem poucos reconheceriam o Syl-
OCTAVIO SILVEIRA vino de outros tempos, de face sempre aberta, o
olhar fulgente, um riso á flor dos lábios.
Affeito ao trabalho, diligente nos seus múlti-
plos encargos, o doente que alli estava illustrando
a lição, era o mesmo enfermeiro que ainda pouco
tempo antes, quando por manhãzinha chegavam
ao hospital os primeiros internos, já se achava de
tarefa concluída, disposto a auxilial-os, cheio de
deleite e ufania, nas mais delicadas pesquizas de
G. C. A. laboratório. E tal o garbo de seu porte e ma-
neira irreprehensivel de trazer o avental, que, se
Science, sans conscience, est Ia ruine de l'ame.
RABELAIS não fora a emblemática cruz bordada a um dos
A gente não se cura, mas fica bem informada cantos do peito, bem poucos o separariam dentre
de que morreu. a estudandada quando em commum passavam a
AFRANIO PEIXOTO
manipular reactivos e corantes. De igual modo,
As terças e sextas o professor deixava a cabe- doente que lhe fosse confiado teria a mais abne-
ceira dos doentes, e apageado por um alvo sé- gada e vigilante das assistências, recebendo á hora
quito de assistentes e internos, vinha para um exacta a sua colher de medicamento, c as mar-
A NOVELLA SEMANAL 67

chás do pulso e da temperatura ficando consi- se exarcebasse o mal, dores agudas e freqüentes
gnadas na pápeleta. E assim, quer porque a sua acutilando-lhe as ilhargas, maior ainda a debili-
intelligencia em tudo encontrasse campo á dís- tação, e elle já amanhecesse esfadigadd, sem ani-
tracção, quer porque1 os seus predicados lhe gran- mo para nada, as pernas tropegas e bambeántes
geassem junto dos estudantes um atmosphera de como se lhes pesassem algemas — Sylvino resol-
•intimidade e sympathia — elle a pouco e pouco veu falar a um dos assistentes, vexado ainda por
se foi avezando ás agruras daquella profissão, já confessar fraquezas que fundo iam ferir o seu
não experimentando mais a repugnância' da vida animo de rapaz até então forte e disposto.
entre os doentes, que tão mal o impressionara — Que não ligasse aquillo e fosse usando de
em começo. um tônico ás refeições dissera-lhe o assistente, de
Sentindo-se agora motivo de tanta curiosidade, vistas já voltadas para um novo entrado, que ge-
o seu corpo transformado em material de estudo micava arfando numa cama próxima, e pelos mo-
como o de muitos outros que elle mesmo, indif- dos parecia ser um caso interessante e digno de
ferentemente, para ali conduzira, Sylvino tinha o estudo.
peito oppresso, num temor vago e affligente; e o Terminada a leitura da observação, o professor
arrependimento de não haver obedecido ao seu Rodrigues, seguido de dous discípulos, passou a
primeiro ímpeto, abandonando o hospital logo no um rápido exame do doente, percutindo-lhe e
inicio da doença, voltava a preoccupal-o. A illi- auscultando-lhe o thorax. Sylvino, já desembara-
mitada confiança na bondade dos mestres, de que çado da camisa e soffreando a'respiração, sub-
elle só então começava a duvidar, e o receio de mettia-se impassível a mais aquellas provas, os
novamente aggrayar a vida difficultuosa e attri- braços encruzados sobre o peito magro e avellado
bulada de um cunhado, que já tão generoso aga- em que as claviculas espipavam, ameaçando per-
salho lhe dera desde a sua chegada da roça até o furar a pelle.
instante em que se vira collocado, fizeram Sylvino — Quasi nada nos revelará este exame — disse
sopitar o primeiro impulso, convencendo-o do o professor Rodrigues, descolando-lhe o ouvido
quanto seria insensato deixar o hospital no mo- do thorax, e dirigindo-se para a assistência, que
mento em que delle mais carecia, e quando os es- o acompanhava das archibandadas — a nossa at-
tranhos e necessitados lhe vinham bater ás portas. tenção já tendo sido solicitada para a região re-
Também o mal fora tão proditorio, tão de manso nal, ponto em que o doente localisa, com muita
e sorrateiramente se installara . . . Ao começo, e precisão, as terebrantes. crises que tanto o marti-
durante muitos dias, uma simples sensação de fa- rizam. Não bastassem essas dores e já um outro
diga, mal estar indefinivel, acompanhado de dores symptoma — essencial no quadro mórbido —• nos
vagas e erráticas pelo dorso e membros. Qual- forçaria o interesse para a mesma região.' Quero
quer cousa demulcia-lhe os músculos, outr'ora referir-me á profunda asthenia de que se queixa o
rijos, quebrantando-4he as forças. Dir-se-hiam a paciente, e que, installando-se gradativamente, veio
molleza e o entorpecimento que se sentem em do cansaço inicial e quasi imperceptível, tão bem
seguida a uma longa caminhada. Mas ainda as- descripto pelo interno Castro na observação que
sim, tudo isso era muito vago, só se aetentuando vos acaba de ser lida, até o estado de fadiga ex-
para a tarde, o que fazia crer num natural can- trema e lassidão profunda em que o encontramos
saço após as suas laboriosas matinadas junto aos hoje. Como sabeis, este symptoma é pathogno-
doentes, embora até então, por muita robustez e monico da insufficiencia das cápsulas supra-renaes
juventude," jamais experimentasse provas de esmo- e faz parte, ao lado de outros que passaremos a
recimento. Por fim, já em vésperas de acamar, assignalar, e existentes também no nosso caso, de
suppliciava-o uma sonnolencia irrefreável; a ca- um conjuncto clinicotão admiravelmente descripto
beça ôca e torvelinhante exigia-lhe socego a cada por um autor inglez, que até hoje lhe conserva o
passo e, se acaso repousava nalgum canto, era nome : a syndrome de Addison.
para logo cahir acarrado em profunda modôrra. Esmiuçando o quadro clinico, o professor Ro-
Elle mesmo chegara a se espantar das manifesta- drigues, depois de apontar outros symptomas de
ções extranhas e, por vezes, palestrando com menor relevância, salientou, com pormenorès des-
companheiros em ar de troça, zombeteara da lom- criptivos, as manchas que matizavam, sob tonali-
beira que agora o perseguia, derrengando-o ao dades varias, certos pontos do tegumento do doente,
menor esforço. encontrando ahi ensanchas para "muitas conside-
Como, porém, longe de esmaecer, mais e mais rações sobre as desordens da pigmentação .cuta-
68 A NOVELLA SEMANAL

nea. Em seguida, ordenando a Sylvino que abrisse se quizesse levar mais adiante o seu diagnostico,
a bocca, e repuxando-lhe fortemente os lábios, investigando a natureza do tumor, elle estava
elle fez ver que a dyschromia se estendia também quasi certo de não errar se pendesse as suas sym-
ás mucosas, em pequenas máculas de côr fuligi- pathias para um sarcoma, esse terrível neoplasma
nosa, perfeitamente iguaes ás que se encontram que se locupleta sobre os organismos moços. A
na cavidade buccal dos cães heráldicos e lhes ser- fallencia da therapeutica, já que medicamento ne-
vem de garantia á filiação. nhum se mostrava capaz de tonificar os músculos
Depois de se referir com brevidade a algumas do enfermo, era ainda um outro factor, de alta
perturbações para o lado dos apparelhos circula- estima, em auxilio das suas ultimas- asserções.
tório e nervoso, sobre as quaes elle se não de- Desejoso de dar maior realce á lição, o pro-
teria, pois que o interno Castro já as havia ana- fessor Rodrigues passou a exhibir diante dos
lysado convenientemente ao relatar a observação aluirmos, algumas peças do seu laboratório ana-
que lhe iria enriquecer a these, o professor pas- tomo-pathologico. Para tal fim, bem próximo
sou á tarefa mais curiosa e delicada de senhorear delle, sobre uma pequena mesa de tampo es-
a causa da affecção, mal encobrindo sob o brilho maltado, quatro ou cinco frascos de vidro grosso
flammejante do olhar e os repetidos ticos que conservavam, mergulhados num liquido turvo e
agitavam a sua face esquerda, a grande satisfação sanioso, órgãos e vísceras de outros doentes que
que lhe traziam as difficuldades daquelle caso, por ali já haviam passado, deixando bocados de
tão propicio ás suas exhibições de preparo scien- si em pabulo á sciencia, Intromettendo o punho
tifico. arremangado por um desses largos boccaes, o
Ennumerando então as affecções que, pelo professor expoz ao olhar perspicuo dos presen-
acommetimento das supra-renaes, podem originar tes, uma das peças mais curiosas da sua collecção.
a syndrome de Addison, elle passou a contrastear Era a mão de um desgraçado que se finara, por
cautelosamente as symptomatologias, buscando uma sarcomatose generalisada, e que tinha a sua
entre todas a que melhor se accomodasse ás per- palma esburgada até os ossos pelo mal roaz e
turbações apresentadas pelo doente. E porque du- proliferante. Cortada cerce pelo punho, a pobre
rante a elucidação do diagnostico o instante lhe mão parecia ainda reter, entre os dedos grossos
fosse favorável, o mestre com gatimanhos alaem- e nodosos a se engripharem ameaçadoramente,
bicados, o braço constantemente erguido, a mão todo o exaspero e dôr do ultimo estorcegão que
em concha rasgando o ar num gesto convulsivo a immòbilizara.
e muito seu, passou a divagar pela pathologia, Fugindo á horrida visão, Sylvino, já mal con-
embrechando as mais simples citações com arreve- tendo as lagrimas que lhe vidravam os olhos, la-
zados nomes de autores extrangeiros. deou a face para uma janella aberta sobre a área
Sylvino, o olhar consultivo e ancioso, encolhido ajardinada, e foi espairecer a vista no azul do ceu
entre as cobertas do carro-leito, não perdia uma longínquo, tecido naquella manhã numa musse-
só daquellas palavras ásperas e sentenciosas que lina traslucida e inconsutil, pronunciativa do dia
em meio á linguagem obscura e inescrutavel, lhe de gloria e belleza que andava a cantar lá por
ditavam comdemnação. E' que o mestre se es- fora. Embebidas de sol, as ramas de um manacá
quecia, nos surtos de seu enthusiasmo, de que o em flor vaporavam na sala um perfume morno e
tirocinio hospitalar dera azo ao pobre enfermo elanguescente ; e, a despeito do ar molesto, uma
para se familiarizar com a terminologia medica ou outra roseira mais teimosa estadeava o brilho
Voltando a discutir a violência das crises dolo- das suas corollas entre a vegetação mofina dos
rosas e o estado de cachexia rápida em que cahia canteiros.
o doente—rapaz até então forte e nada ha acha- Ao deparar aquella amostra de paisagem, Syl-
diço, o que não era para desprezar — o profes- vino entrelembrou-se, numa rápida e saudosa vi-
sor Rodrigues afastou as hypotheses da syphilis e são interior, de alguns quadros de sua vida de
da tuberculose*1 para assentar suas preferencias ouírora, quando, despreoccupado e feliz, gastava
sobre uma neoplasia. os dias na labuta da terra, em uma distante fa-
De facto, a concomitância e marcha daquelles zenda de Minas. Era também por um céu assim,
symptomas impelliam-n"o para a supposição muito quando o sol claro e dourado começava a esgar-
convinhavel de um tumor das supra-renaes, em- çar a nevoa que se condensara sobre as várzeas
bora a percussão da região, como muitas vezes adormecidas, que elle partia todas as manhãs^en-
succedia nesses casos, nada revelasse até então. E xada ao hombro e balaio ás costas, para o tra"
A M O V E L L A SEMANAL 69

balho da lavoura, onde os seus dias decorriam gressivo evoluir da cachexia addisoniana. Este
céleres na capina das roças, replanta do caf é ou prognostico, já de si tão sombrio, mais se aden-
colheita de milho enlourecido. A' sua passagem sava ainda, por maior brevidade na moléstia, nos
por trilhos ermos e estreitos, mal rasgados no casos em que a syndrome corria por conta de uma
verde das pastagens ainda borrifadas de orvalho, neoplasia das supra-renaes, como naquelle sobre
bandos assustadiços de anús, num vôo lento e o qual versava a licção.
descompassado, partiam das toiças próximas para — Como vedes, meus caros discípulos — disse
pousar no arvoredo mais distante ; ou emão, de o professor Rodrigues para terminar — caso mais
sobre a pedra em que se aquietara, fugia rápido beílo e completo da moléstia de Addison, diffi-
para a sua loca, por entre um reboliço de folhas cilmente se teria encontrado do que este que
seccas, o lagarto que se aquecia á luz. È nas ho- apresenta o nosso doente , e eu estou bem certo
ras do meio dia soalheiro, quando sob a atmos- de que, se cada um de vós o examinar demorada
phera rutilante o calor ia mais forte, e os seus e pacieníemeute guardareis uma indelével lem-
músculos já se enrijavam ao esforço da labutação brança do que seja essa curiosissima syndrome.
exhaustiva. compendando-lhe o monótono resoar Uma clangorosa salva de palmas esírondeou nas
da enxada sobre a terra dura e áspera, a copa archibâncadas, apagando as ultimas palavras do
vermelhaça dos mulungus em flor entrava a gor- mestre, emquanto começava entre os estudantes
gear revestida de guaches em algaravia infrene ; um fallario de enthusiasticos commentarios á ma-
e da matta distante lhe vinham os echos da or- gistral licção que acabavam de ouvir.
chestração de jaós e inhambüs, que no seu re- De volta á enfermaria, dois padioleiros, com
cesso humido e umbroso se revezavam num con- gestos rápidos e precisos, de quem os executa
certo ininterrupto. E tudo o que lhe era então muitas vezes, baldearam o corpo ieve de Syl-
motivo de tédio e insoffrido desejo de conhecer vino para a cama, a mesma cama que já lhe co-
os múltiplos encantamentos de uma grande cidade, meçava a desgastar os quadris, abrindo-os em feri-
desenhava-se agora no fundo da sua retina com das. Sylvino vinha ainda mais derreado e suc-
os contornos avivados pala palheta mágica da cumbido, depois daquella aula em que nem uma
saudade. palavra acariciativa ou tranquillizadora lhe fora
Tir?ram-n'o desse devaneio beatifico e doloroso dirigida, o professor, ao contrario, não esconden-
as ultimas palavras do professor, fazendo o pro- do as mais brutas verdades sobre o seu estado.
gnostico da sua moléstia e advertindo os discípu- E na relembrança de tudo o que ouvira, presen-
los de que seria muito breve, pois que já eatava tindo a morte próxima, uma sensação de vacui-
a passar da hora. dade e estonteamento aturdia-lhe o cérebro, e no
seu coração pequeno e descompassado, esfervi-
A moléstia de Addison tinha geralmente uma
lhava a inquietação presagiosa.
marcha lenta e progressiva, durando de um a três
annos, e sendo a sua cura excepcionalissima. Em- Alheiados da sua dôr, ainda no rosto a alegria
bora sem grande freqüência, já se haviam obser- que lhes dera a bella lição, assistentes e discípu-
vado alguns casos de desfechos súbitos e rápidos, los regressavam também ao serviço, repartindo-se
sem symptoma algum apparente, por um envene- por entre os leitos numa ultima olhadella aos
namento super-agudo do organismo. O seu longo doentes, seguida de recommendações ao enfer-
tirocinio clinico, com um bom acervo de obser- meiro novato:
vações, permittia-lhe dizer jamais ter visto caso — Não se esquecesse de guardar os escarros
algum de cura. do n. 7; tomasse de quatro em quatro horas B
temperatura do 18...
A morte quasi sempre se verificava pelo pro- OASTON CRULS.
(Conclue no próximo numero).
A NOVELLA

«Obras do diabinho da mão dado, que se chama André Pe-


furada para espelho de seics en- r a l t a , e n t r a no palácio da Cobi-
ganos e desenganos de seus ar- ça, onde pompeiam a Mentira,
bítrios, palestra moral e profa- a Soberba e a Ignorância e, en-

Vida, literária na, donde o curioso aprende clausurada, n u a e desacreditada,

" nw v para a doutrina dictames e pa-


ra o passatempo recreios».
A auctoria da novella t e m si-
vive a Verdade.
A n d r é P e r a l t a , segundo o re-
g i m e n infernal, não deveria sair
Um novellista brasileiro do muito discutida. Araújo P o r t o mais desse palácio, mas desper-
Alegre, Sacramento Blake, João tando p a r a sair o próprio Dia-
do secylo XVIIÍ. Ribeiro, Machado de Assis estu- binho da mão furada o auxilia
Nos í«6meços da era quinhen- daram a questão o, mais recen- a infringir a vontade da sobe-
tista, Gil Vicente fundara o temente, no Jornal, do Rio, F i - r a n a moradora, porque, «seu
theatro em Portugal; fundando- delino de Figueiredo, parecendo officio era só t e n t a r e persua-
o também n a Europa. Mas a certa a auctoria do J u d e u . dir aos vicios» ; mas que não po-
semente que não germinou no E m resumo, a n a r r a t i v a é a dia forçar o livre alvedrio para
paiz, produziu fora a mais bella seguinte : elles ; que o soberano Autor da
floração. Lope de Vega e Calderon «Um pobre soldado da milicia n a t u r e z a o não permittia, e que
se inspiram nos autos vicenti- de F l a n d r e s , no tempo de F e - assim não podia Lucifer por is-
nos e, por sua vez, passam a lippe I I , abandonando a incer- so castigal-o, p o r q u e fazia recta-
inspirar Moliére. Só em Portu- teza da g u e r r a se dirigia a Lis- m e n t e j u s t i ç a a seus direitos
gal não tem còntinuadores o boa, «pátria commum de estran- vassallos.
grande mestre, que precedeu a geiros, madrasta de n a t u r a e s e Porfim, P e r a l t a consegue li-
hespanhoes, franoezes e ingle- protectora de venturosos». No bertar-se do ' diabinho amigo,
zes. termo de Évora, depara-se-lhe e n t r a n d o para o convento de S.
Decorridos quasi dois séculos, o diabinho da mão furada, assim Francisco de X a b r e g a s «com
porém, apparece Antônio José chamado por ser grande dispen- grande edificação, gosto e ale-
da Silva. As suas peças, então sador de benefícios aos seus a- gria» .
chamadas «operas», se represen- deptos. Após um espirituoso dia- São só «Diabinho da mão fu-
tam com grande successo. «As logo, o diabinho institue-se es- rada» os seguintes interessan-
Guerras do Alecrim e da Man- pontaneamente em seu amigo e tíssimos versos :
gerona», o «Amphytrião», «Eso- protectòr, e j u n t o s seguem via-
gem, o diabólico guia forcejando Acuda vossa Diabrura,
paida», «D. Quixote», têm qua- Poderoso Lucifer,
lidades raras a par de não raros por t e n t a r com enganosos delei-
tes ao pobre soldado, este de- Que se l e v a n t a o mundo
defeitos. Com a jurdicção que tem.
Quem foi Antônio José ? fendendo-se com firmeza.-)
Todos nelle são Diabos
Antônio José, o J u d e u , nasceu No segundo «fôlego» apparece Tão exhorbitantes que
no Rio de Janeiro, filho de pães o Inferno com suas visões dan- Podemos nós outros delles
hebreus emigrados para o Bra- tescas. D i a b r u r a s aprender.
sil. Cresceu em Portugal, onde No terceiro «fôlego» defende- O ódio que aos homens temos
estudou e obteve os mais ruido- se de u m a «illustre fregona» que E x t r a n h a v e l e cruel
sos triumphos. Conheceu as au- o tenta. I g u a l a , se não excede,
ras da popularidade e soffreu as E m u m dos episódios o sol- O que uns aos outros têm.
agruras da perseguição, e do
cárcere e, por fim, o supplicio e
a morte. E m 1739 foi queimado
nas fogueiras da Inquisição. MONTEIRO LOBATO
Escreveu para o povo. Como

O® Negros
Aristophanes e o próprio Gil
Vicente, não escolhe termos, n e m
recua ante situações. A lingua-
gem é por vezes desbragada,
mas, sob o artmcioso da forma N. 2 DA NOVELLA NACIONAL
theatral, tem a v i r t u d e da es-
pontaneidade, da viveza e da
graça.
Ao notável theatrista que foi
PEDIDOS Á Vreço í$ooo
Antônio José attribue-se tam-
bém a auctoria de u m a novella :
A NOVELLA SEMANAL 71

Ávidaaúvecdotacá. ia mudar. Aquella pasmaceira de


tantos aunos ia ter o seu fim.
voltava, coração confrangido, o ani-
mo a explodir contra a vilania de
>íttc Eoi quando se ateou a guerra de
Canudos no intimo dos sertões bahia-
quem não soube vencer sem manchar,
contra a miopia d'aquelles que não.
«3 • 4»SK
nos, em 1896, após o insuccesso de duas souberam ver, para além do jagunço
successivas expedições mandadas con- fanático, a alma do brasileiro do ser-
t r a os jagunços fanatisados de Antô- tão capaz dos mais sublimes rasgos,
nio Conselheiro. de heroísmo.
EUCLYDES da CUNHA Crescera no paiz a fama dos atrevi-
dos sertanejos, forçando a retirada
Euclides resolveu então escrever as
suas impressões daquella tragédia l u -
(Exceptos de om discurso) de forças regulares federaes ao man- gubre ; era um como que protesto in-
do do Coronel Eebronio de Brito, ha timo contra aquelle criminoso exter-
pouco fallecido. mínio que nem a mulheres e crianças
Euolides da Cunha chegara, havia A fama tinha dado proporções exa- tinha poupado. O «Sertões» que elle
pouco, do Rio de Janeiro, sahido das geradas ao successo ; mas subira de então escreveu, teve esse fundamenta
fileiras do Exercito, quando o conhe- ponto a estupefacção popular quando de protesto do seu espirito de patrio-
ci em S. Paulo. Casara-se e tinha se espalhou por todo o paiz a noticia ta revoltado.
vindo fazer vida nova, laborioso, na do desastre completo da expedição
terra dos Andradas. Uma vulgaris- Contava-nos contristado os episó-
sima transacção imposta pela neces- .Moreira Cezar, a terceira que a j a - dios horríveis da oatinga conflagrada^
sidade de se elle installar, nos apro- gunçada tinha repellido e esta agora Repugnava-ihe aquella reacçâo da le-
ximou. com a perda de vida do próprio che- galidade que não lhe pareceu na al-
fe da expedição e de bôa parte de t u r a da nossa força militar, como.
Foi isto ali por 1892, se bem me sua officíalidade. não agiu consoante á cultura que,
recordo ; mas Euclides, nomeado en- como um povo oivilisado e christão,
genheiro das obras publicas do Esta- Grandíssimo foi o abalo na opinião representávamos. Não accusava a in-
do, na sua faina de construir pontes publica nacional. Os republicanos jul- divíduos ; reprovava, porém, a acção
e estradas e a viajar pelo interior, gavam-se mais uma vez trahidos pelo descabida, errônea, incontida dos res-
raro então me apparecia. adhesismo monarchico, victimas elles ponsáveis. Não escreveu para accu-
De volta dos seus trabalhos de cam- da sua bôa fé e de sua moderação sar, mas para reprovar. I)ahi o seu
po, trazia um ar de tédio a trahir-lhe p a r a com os adeptos do decaindo emudecer diante das misérias de que
uma repugnância invencivel. Não que regimen. Era o « sebastianismo » im- foi testemunha ; dahi o não carregar
a vida activa de engenheiro lhe pe- penitente, diziam, que armava essa as cores, antes até esse esmaecer de,
zasse; mas porque não encontrava trahição de Canudos, onde, se suppu- tintas no quadro da realidade amarga,
na funcção, como exercida, a superior nha, estavam refugiados ex-marinhei- onde se lhe percebe, entre o silencio
elevação, capaz de o libertar da pas- ros dos da revolta do Almirante por compostura e o estrugir num pro-
maceira de u m a technica que lhe pa- Custodio José de Mello, capitaneados testo de indignação, a tortura de sua
recia duvidosa. por hábeis officiaes europeus contra- alma de patriota.
Maior ainda era o seu nojo pelas tados. E r a a monarchia que levanta-
va o collo no sertão, apunhalando Eoi nesse estado d'alma que escreveu
cousas publicas, consideradas no ter- traiçoeiramente, pelas costas, a re- os « Sertões i>. O escriptor másculo,,
reno da política indígena. Não as publica. que se ia elle revelar, vinha pleno,
queria commentadas por mais em fo- das mais desencontradas impressões.
co que se lhe deparassem ellas na 0 Visconde de Ouro Preto, si então As scenas daquellas terras, devastadas
tela da vida nacional. A republica, escapou com vida á fúria da multidão pelas seccas peiiodicas e pela cólera
que elle sonhara e pela qual até sa- ignara e incontida, viu entretanto insana dos'homens, revelavam-se-lhe-
crifícios fizera, não a reconhecia elle tombar ao seu lado, victima de sce- de u m imprevisto inimaginável e elle
nesse arremedo de instituição políti- lerados energúmenos, o seu amigo, o como que se sentia com forças para
ca, que então era o governo do Bra- coronel Gentil de Castro, apontado fixal-as na tela de uma obra impere-
sil, tão ao avesso dos seus ideaes de como dos principaes responsáveis pe- civel. Parecia-lhe isso uma repara-
mocidade ardorosa, intransigente. A- la revolta sertaneja. ção, uma divida a pagar á memória
baixava então a vista para não ver a Castro tombara innocente, como in- daquella gente obscura que soube
miséria a que chegara a ruina dos seus nocente estava o monarohismo accu- morrer por um ideal, fosse embora,
ideaes desvanecidos. sado. Mas a turba dos exaltados que- um ideal obscuro também, mas gente
O seu positivimo ou materialísmo, r i a culpados em que cevar o seu máscula que á rendição humiihante
já u m tanto esmaecido, não collidia desejo de sangue, e o «sebastianismo^ preferiu a morte, ainda que fosse a
com o meu espiritualismo, por elle impenitente, só elle, ó que lh'o podia morte n ' u m braseiro ao fundo de um
polidamente respeitado. Havia tanta fornecer. fosso, com tão maior heroísmo quan-
cousa em que conversar que não fos- Canudos, diziam, é por certo uma to o não fora outr'ora o dos defen-
se política ou philosophia em que machinação de monarchistas ; è a res- sores da abrasada Sagunto.
militavamos em campos opppostos ! tauração que faz volta pelas catingas
Tratávamos então dos livros novos, e cae agora de improviso sobre a r e - Euclides começou a escrever.
dos que faziam época e logravam publica. A principio trazia-me aos domingos,
interessar-nos, a ambos. Euclides lia, Euclides chegou um instante a acre- os primeiros capítulos, os referentes
porem, com muito particular atten- ditar nisto e ainda nutria duvidas á natureza physica dos sertões, geo-
ção a Herculano e a Camillo Castello muito serias quando me veio annun- logia, aspecto, relevo, e m'os lia na-
Branco has suas obras de polemica ciar que partia e trazer-me as suas quella sua calíigraphia minúscula que
litteraria. Vi-o muitas vezes a folhear despedidas. E partiu como corres- era como a minha também. A leitura
os escriptos de ambos, mas principal- pondente do "O Estado de S. Paulo", fazia-se pausada a meu pedido, por-
mente os escriptos de combate, onde a seguir de perto a columna expedi- que tinha eu a sensação de com ella
a paixão não raro arrebata, e a criti- cionária do comando do General Ar- estar a trilhar vereda nova, cheia de
ca, posto que sincera, chega a ser t h u r Oscar. novidades. Não havia, porém, no no-
cruel e terrível. O vocabulário, ahi Levou-me algumas notas das que vel escriptor o abuso da adjectivação,
mais espontâneo e enérgico,^ seduzia eu lhe offereci sobre as terras do ser- tão commum aos novos. A phrase
sobremaneira ao escriptor « in fieri > tão que eu viajara antes delle, em 1878. sahia-lhe perfeita, moldando-lhe com
dada a sua predilecção accentuada Pediu-me copia de um meu mappa exactidão e nitidez as ideas. Uma
pelo phrasear enérgico, expressivo, ainda inédito, na parte referente a propensão comtudo se lhe notava e-
quente, mais de accordo com a sua Canudos e v a l l e superior do Vasa era a do emprego de termos desusa-
maneira de sentir. Barris, trecho de sertão ainda muito dos a que eu, a gracejar, chamava
desconhecido, e eu lh'a forneci como « ealhaus » no meio de uma corrente
Mas o Euclides, na sua vida de en- forneci ao governo de S. Paulo que harmoniosa — que de resto era a sua
genheiro errante pelas regiões do Oes- delia tirou mais de um exemplar, re- bôa linguagem. "*
te paulista, me desappareoia por longo mettido para o Bio, ao Ministério da
tempo. E r a u m a raridade quando me — Por velho ou esquecido, contes-
Guerra. tava-me, não perdeu para mim a for-
surgia de improviso em casa a con-
tar-me a sua odysséa e a maldizer o Quando, porém, por entre fogo e ça de expressão que eu procuro no
seu tédio que j à se prolongava por sangue aquelle lugubre episódio ter- vocábulo. Que me importa, a mim,
muito tempo. minou ; vencida, mas não rendida, a que o leitor estaque na leitura cor-
pertinácia do jagunço fanatisado, ^ e rente, si a imxiressão que lhe dou com
Uma vez tornou-me mais de pressa Euclides, convencido e também desil- esse termo esquecido ó a mais verda-
do interior, e vinha mais animado. ludido, tornou ao seio da família, a deira, a mais nitida, e, em verdade,
Era outro e tinha como que um vago alma do patriota agora é que se re- a única que eu lhe qeuria dar '! '.
presentimentô de que o seu destino
72 A NOVELLA SEMANAL

A nitidez da expressâa era o seu rado a quem as iguarias faziam mais Euclides, a bem dizer, só se conside-
•cunho,, o seu empenho maior. Cata- medo do que as carabinas da jagun- rava tranquillo á mesa, quando nada
va termos expressivos até na giria çada revolta na catinga. Comer fosse via de especial a se lhe offereoer.
popular ; saboreava o phrasear do o que fosse era-lhe u m tormento, por Mordicava, não oomia, e ainda as-
sertanejo, por achal-o mais espontâ- mais innocente que lho pareoesse a, sim se enchia de reoeios. Não sei se
neo e verdadeiro ; ávido colhia-os to- iguaria e isso notei-lhe sempre, antes mais tarde essa inapetencia nervosa
dos, como a diamantes na cata o ga- como depois da sua visita a Canudos. se lhe dissipou. O que posso dizer é
rimpeiro . Não t i n h a prazer á meza onde se que o auctor dos * Sertões », do * A'
Conversamos u m a vez a propósito assentava, de ordinário, oonviva ta- margem da Historia»,' do « Pervú er-
•do estouro da boiada e dos costumes citurno e desconfiado e neste estado sus Bolívia», de tantos outros escrip-
do vaqueiro da catinga, quando me de espirito tudo lhe servia de escusa tos fulgurantes que o sagraram o mais
•occorreu citar-lhe um bilhete de ser- aos obséquios e offerecimentos. potente dos escriptores, interpretes
tanejo cujo theor, como se vae ver, — Que é que se ha de offerecer ao dá natureza brasilica, era um doente,
m e deram por authentico de u m va- Euclides ? Era a pergunta da dona da talvez imaginário, mas de laoto um
queiro dos Inhamuns : casa toda vez que se aguardava a vi- doente.
•' Illustrissimo Senhor meu amo. sita do auctor dos « Sertões ». E o THEODOKO SAMPAIO ,
" Participo-lhe que a sua boiada
metteu-se em despotismo. Um boi
no deixar o curral entregou o couro
ás varas. 0 resto . . . o resto trove-
jou naquelle mundão."
— Ealar assim é que é falar com
a natureza, atalhou-me enoantado o
Euclides. Não conheço deveras povo,
-como o nosso do sertão, que por pa-
lavras dê mais realce ao seu sentir,
tenha mais energia no dizer.
O primeiro soneto de BILAC.
U m a boiada que " se metteu em
despotismo ", commentavamos então, Qual teria sido o primeiro soneto definitiva, mas respira sentimento o
•é em verdade a revolta, a convulsão de Bilac ? poesia, nas suas grandes phrases re-
da bovina caterva, mugindo, arre- Não ha quem, conhecendo «Ouvir dondas e sonoras, prenunciando o
snettendo, arrombando porteiras e le- estrellas» e toda a constellação mara- exoelso vate, que, logo, apparecia.
v a n d o tudo adiante de si. " Metter-se vilhosa da «Via lactea«, não haja per-
em despotismo " quer dizer tudo ÍBSO guntado a si mesmo qual fora a es-
n ' u m a phrase synthetica muito ver- treia do Poeta. P a r a chegar à subli- MANHÃ DE MAIO foi publicado a
dadeira ao sabor da gente simples do midade de tantas obras-primas, de 19 de Setembro de 1883, na «Gazeta
sertão. " Um boi que entrega o cou- que altura levantaria vôo ? Acadêmica», quando Bilac, residente
ro ás varas " é a victima do inconti- Podemos dar aqui aos leitores, com n i Rio, em casa de seus pães, no ;
do tropel sobre cujo cadáver passou todo o sabor das primicias, que ape- Engenho Novo, freqüentava as aulas, \
-a avalanohe da manada e de que o zar dos tempos não perdeu, o primei- que abandonou depois, da Faculdade '
provido boiadeiro tirou o couro, es- ro soneto publicado com a assignatu- de Medicida.
pichando-o por meio de varas a sec- ra de Olavo Bilac. Não é u m primor, No anno seguinte, j á trramphavn o
-car no oitão da. casa da fazenda. digno de figurar ao lado de sua obra
"• Trovejar naquelle mundão . . ." ex- Poeta.
prime de modo incomparavel o que
ó o horizonte da catinga quando, co-
mo um furacão, o sacode o arranoo MANHA DE MAIO
-da boiada por entre nuvens de pó. O
•chão treme. O ruido da ramalhada Lá fora a natureza alegre e verdejante
partida e levada a peitos estruge co-
mo um trovão ao longe, numa tem- Expande-se ao oalor do sol da primavera . . .
pestade em que aos Euros se substi- Gorgeia a patativa um canto inebriante
tuem bisões furibundos como que E como que sorri, contenta, o azul da esphera.
tangidos por demônios invisíveis.
Euclides repetia essas phrases como Parece que a campina esplendida e brilhante.
•que a pezar-lhes as imagens, a aurír- Em vestir-se de rosa e de j a s m i m se esmera
llies na onomatopéa significativa a
sensação real que lhe produziam. Como a noiva gentil que; tremula c hesitante,
Com cuidado se veste e o lindo noivo espera.
Outro homem na penna que não na
-ordinária conversação era o Euclides. £ emquanto em frente a mim duas pombinhas mansas
Raro na palestra se animava. Não
-era verboso, nem alacre, nem causti- Mais brancas do que a alma Ingênua das crianças,
cante no discretear ordinário. Pre- Conversam sobre amor, beijando-se em delírio,
feria pensar, refletir, ouvir antes que
dizer, o que trahia natural propensão
mais para colher do que para dispar- Eu penso em ti, compondo esta canção florida
t i r as jóias do seu espirito. Que quizera enviar-te, ó minha flor querida,
A' meza o Euclides era um tortu- Eseripta a tinta azul, nas pétalas de um lyrio . . .

A C A I 3 A A P P A R E C I

V/STOS "o«
r I <C7 LJ rX KJ LZ O DENTRO
ESTUDO DE PSYCHOLOGIA SOCIAL BRASILEIRA
POR S I M Ã O DE M A N T U A (Ti À </>

— : ^rreço4$ooo
M O N T E I R O L O B A T O & C. EDITORES - RUA BOA VISTA, 52 - S. PAULO
EÜIÇÔE» r>A

AMADEU AMARAL F. T. DE SOUZA REIS


A Pulseira de Ferro (novella) 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
Um soneto de Bilac (critica) 2$000
WALDEMAR FERREIRA
MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante 8$000
Os Negros (novella) . 1$000 Estudos de Direito Commercial . . . . 10$0()0
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O que o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) . . . . 3$OO0
OS PEDIDOS DO INTERIOR DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

SOCIEDADE EülTORA OEEGARIO RIBEIRO


R « a E>r. A b r a n c h e s , 4 3 - C a i x a P o s t a l X1-5T& » S Â O r»AXJ0L,O

EDIÇÕES DA
tt
Revista do Brasil
Broch Encad.
99
Broch. Encad.
NEORINHA, contos por Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato ", 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pelo
URUPÉS, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4$000 5$000
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NARIZINHO ARREB1TADO, li- dofredo Rangel 4$000 5$000
vro de historias para crianças, OS CABOCLOS, contos por Val-
por Monteiro Lobato . . . . 3$500
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POPULAÇÕES MERIDIONAES HISTORIAS DA NOSSA HISTO-
DO BRASIL, estudo de sociolo-
gia por F. /. Oliveira Vianna . 8$000 10$000 RIA, por Viriato Corrêa . . . 3$500 4$500
ESPHINGES, versos de Francisco
PROFESSOR JEREMIAS, por Léo Julia 5$000 —
Vaz, 3.a edição 4$000 5$000 SCENAS E PAISAGENS DA MI-
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires 5$000 -•*-
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lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 MAIS 10 o/o PARA O PORTE
P e d i d o s aos E d i t o r e s ! M o n t e i r o L o b a t O <S2> C , C a i x a 2 - A . S. P A U L O
mu iii .•••n.i i ir. II ' '« • » M » » « « M » « — — U — 1 » M — « M M t — . i i iii ai ' I I — M — á

A NOVELLA NACIONAL Volumes publicados:


A NOVELLA NACIONAL é uma A Pulseira d e Ferro por
série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : offerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação " J ? no gênero uma verdadeira obra
mais artistica, ao preço mais barato prima „ — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lerrima — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n H a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do "Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 1/2 X 12 i/8 centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artisticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias j á sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

OS NEGROS 21

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume. lí$000 em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado 1$300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados:
Série de três novellas
3$500; série de seis no-
vellas 7|000; série de
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Roa Dr. Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SA0 PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo Lâ, foges, aconselhou-m£_iija_-£tt-
ANNO í SÃO PAÜLÓ, 28 bÊ MAIO DE 1Ô21 NUMERO S

IJLA
SEMAIVAL

SOC-EDIT^^A Of,EGAmOMmEIRO-RD.RABRANCIiES,45-SPAlJLO
A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR: BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AOS SABBADOS


Par* os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas o as sepultadas em eollecções
sfto ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um'opulento thesouro literário quasi de todo deseonho-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num circulo vi- cido e inaocessivel. Das obras ainda em extracçfto no
cioso : o livro não se diffunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se difiunde. Isto suocede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
paiz, suggeriu' a iniciativa da creação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu liwreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel pela escrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que um abundante repositório de infor-
rtos os meios para o diffundir em todo o território na- mações bibliographicas. uma selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada, com o fito de tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
gramma. Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos ty
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as vantagens desta e daque le : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
apregoada uns ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos e desconhecidos,' consagrados e estreantes, comtanto
te, a toda geule : mas não será iuri 1 e de interesse e- one taes obras tenbam valor e sejam conformes com a
phemei-o como ella : pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A NOVEI DA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá urna verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma bibliotheca literária realmente preciosa. couto e da novella nestes volumes, por serem esses os
gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
e creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora. Todos os outros gêneros terão o seu logar no nosso
procairàrá nos auctores a vida, a acedo, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro lí\ ro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
ipairanda das l,ons letras — dos melbores auctores e d<>s Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAD, que
'"melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publieo, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. .Vão seria este o melbor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
cumprir esta. parte <io programma rriçado, havendo por ceber um acolbimento sympathico.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NQ- Os EMTOIÍKS'.

Aos auctores
Acceitaremos eom prazer toda col- queiram nos auxiliar neste trabalho
.Iaboraçâo interessante para qualquer
Aos leitores que nos enviem relações de auctores
,das seeções deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e. de livros publicados, de modo a nos
Os auctores devem nos remetter os na ser lida, em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
.seus trabalhos, declarando o seunome. villas, povoaeões. estradas de ferro, os examinar.
^endereço e o preço pelo qual nos i.í- navios, boteis, ctubs, bibliotheeas, e t c ,
íferecem a sua collaboração. estando porisso organisando um ser- Importante
Í-. Os origiuaes devem HT escriptos de viço de distribuição que será o mais Toda pessoa que. angariar três assi-
lum só lado do papel, em call igrapliia completo possivel, de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legível e de preferencia daefylo- ver ponto do território nacional onde enviatido-nos adeantadamento a res-
graphados. não tenha leitores e não seja encon- peetiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Para obter este resul- unia assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
trario Ribeiro — Caixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— s. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
interessar pela venda ou leitura des- sil, no valor de -20 o/o sobre o preço
A NOVELLA SEMANAL publicará
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignifieante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra, 10$000
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . . s$ooo
lém disso uma noticia critica. fornecida, rogando a todos quantos Numero avulso $400

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ANNO I A NOVELLA SEMANAL - São Paulo, 28 de Maio de 1921 NUMERO 5

O LUNDUM — José Ve-,


rissimo.
DMMARIO do theatro.
Curiosidades literárias— ('A
A FEITICEIRA — Inglez Comedia».
de Souza. Os nossos poetas -^Urna sa-
Uma Santa Brasileira — tyra de Hilário Tácito.
SANTA DIANA — Li- G. C. P. A. Gastão SUPPLEMENTO — A vida
ma Campos. Cruls. literária - Psychologia

O L ü N D ü M
A moldura é uma casa de sitio. iupá pintados de verde, um ou dois bancos e
Paredes de barro, esteios amarrados com cipó, peitos de jacaré.
tecto de palha. Em uma das redes o dono da casa fuma tran-
Na frente da casa um mastro, coberto de fo- quillamente no seu cachimbo.
lhas, ornado com fructos: ananazes, bananas e É um velho tapliyo de cara alegre e cabellos
outros. grisalhos. Veste a sua melhor calça de panno a-
No topo do mastro uma bandeira. mericano riscado e camisa branca.
Na bandeira, pintada por um Pedro Américo Em uma rede a dona da casa, sentada de um
campestre, uma pomba. lado, conversa com uma comadre que senta-se no
É o Espirito-Santo. outro. Na cabeça de ambas dois formidáveis pen-
tes erguem-se como os montes do Almeirim.
Em outra, três moças — que eu chamaria as
É dia de festa. três Graças, não fosse tão sediça a comparação —
A festa do Divino ou do Senhor Divino Espi- duas de um lado e outra do outro, reclinando-se
rito-Santo, como chamam. a meio, deixando ostensivamente ver os pés nus
É uma festa muito popular na Amazônia. meio calçados em chinellas encarnadas, e um
Durante muitos dias andam as canoas, cheias trecho das pernas bem feitas, aos namorados que
de devotos,, a tirar, esmolas pelos sitios. olham-nas cubiçosos, sentados nos bahús ou nos
Estes pedintes aceitam tudo. Fructas, doces, vi- bancos.
nhos, cachaça^ carneiros, vitellas, tudo lhes serve. Nos outros assentos amontoavam-se homens, e
Preferem dinheiro. mulheres, moços, velhos e crianças.
O dia da festa chega. Vestidos encarnados, camisas de rendas, gran-
Então, ao menos em apparencia, o Senhor Di- des brincos de ouro velho, cabeças cheias de flo-
vino Espirito-Santo é substituído por Baccho. res, lábios cheios de risos, seios cheios de dese-
jos, olhos cheios de amor — tudo ha ahi.
Os moços fumam o perfumado tabaco do Rio
Na sala da casa estão reunidos todos. Preto em seus longos cigarros de taquari, e os
Ha. redes atadas aos cantos. velhos nos cachimbos de barro, por longos e en-
0 resto da mobília compôe-se de bahús de ma- feitados taquarys.
74 A NOVELLA SEMANAL

Em uma .mesa, coberta com uma colcha de sil. O "catêretê", a "chula" e outras danças são
chita, está a coroa do Divino Espirito-Santo, cheia suas filhas.
de fitas e flores. O lundum é uma dança que admitte todas as
Dos lados da mesa ficam encostadas á parede outras.
as bandeiras. As castanholas da jota, a morbideza da taran-
Em dois castiçaes de prata de forma antiga — tela, os passos seductores do bolero, os passos
pedidos para esse fim ao vizinho rico — ardem insipidos da quadrilha, as voltas rápidas da valsa,
duas velas de cera. o sapateado do catêretê, o requebro lascivo do
Aos pés da coroa amontoam-se maços de velas, fandango, a arrogância do fado.
dadas de esmola ou em cumprimento de pro- E a flauta e a viola tocaram um lundum. E
messas. dançaram o lundum.
Ha poucos momentos distribuiu-se o caxiri. A flauta e a viola gritaram.
A alegria reina. — Ninguém mais vem ! . . .
Passaram-se alguns minutos.
Alguém appareceu na arena.
Ha uma orchestra.
Uma flauta e uma viola.
A flauta toca, a viola acompanha. Fez-se profundo silencio.
De vez em quando a viola briga com a flauta. Todos os olhos se fitaram "nella".
Ha então um desconcerto. "Ella" deu os primeiros passos e as primeiras
Mas os "dilettanti" são nitniamente condescen- voltas.
dentes. Não havia pateada. De ora em quando Um cheiro activo de periperioca espalhou-se na
davam palmas. sala, de mistura com o perfume do jasmin e do
Era' quando a viola e a flauta tocavam os li- molongó.
mites do sublime. "Ella" começou por passinhos curtos: um pé
Isso não era raro. para diante, outro para traz. Os dedos afilados
Os músicos são cantores, acompanham-se. batiam com preguiça as castanholas. Nos lábios
Têm o defeito de não serem originaes. Cantam de um vermelho arroxado brincava um sorriso
o "Não te esqueças meu anjo, de mim" — mu- provocador. ,.
sica e letra velhas, que tornavam novas com uns Deu assim três voltas: ninguém lhe saiu ao
requebros langorosos de olhos para as eleitas de encontro.
seu coração, que faziam ás vezes, um máo modo Temiam todos.
e diziam: Então dos lábios purpurinos, no meio de um
— Axi!... frouxo de riso zombeteiro, saiu-lhe esta admira-
Este — a x i ! . . . era um chumbo. Cortava as ção e esta pergunta.
azas ao sabiá que errava a ultima nota e caia — l á ! ! . . . Ninguém ? . . .
estatelado no chão da sua desdita. Os homens, principalmente os rapazes, entreo-
Os ouvidos dos circumstantçs lucravam. lharam-se e abaixaram os olhos envergonhados.
* + * Passaram-se alguns momentos.
"Ella" esperava no meio da sala com um sor-
Lembraram-se de aproveitar a musica para dançar. riso de mofa nos lábios.
Dançaram. Alguém saltou.
Eram polkas, quadrilhas, valsas, lanceiros — to-
do o cortejo das insipidas danças civilizadas.
Depois pararam. Um então gritou : 17 ra um rapaz desse bello typo mameluco, alto,
— O lundum, venha o lundum ! . . . esbelto, vaqueiro, de calça branca, camisa branca
A viola e a flauta puzeram-se de accordo e to- bordada, botões de moedas de ouro nos punhos
caram o lundum. e no peito, lenço beira de chita no pescoço co-
Nápoles tem a tarantela; o Aragão tem a jota; brindo o collarinho. Apezar de todo o seu garbo,
a França tem o can-can; a Hespanha tem o bo- via-se-lhe receio no semblante.
lero; Portugal tem o fado; Montevidéo tem o A musica começou.
fandango; o Brasil tem o lundum. Elle deu principio á dança.
O lundum, creio, nos veio pela Bahia. Tem o O corpo esbelto requebrou-se e torceu-sé, os
seu tanto de africano. Depois espalhou-se no Bra- pés giraram no chão.
A NOVELLA SEMANAL 75

"Ella" comprehendeu que elle era digno de si. De súbito "ella" parou.
Começou. ' , A alegria reappareceu no campo 'feminino.
Os pésinhos, a meio mettidos nas chínellas en-" Foi um momento.
camadas, correram ligeiros no chão, os dedos ba- Quando um sorriso de triumpho assomou sos
teram as castanholas com força. lábios do vaqueiro — "ella" recomeçou.
A luta principiou. O que se passou então eu não p\>sso pintar.
"Ella" deixava-o, aproximar-se e fugia rápida Os pés correram mais velozes, os dedos bate-
quando ia tocal-a, ou então procurava-o e quando ram as castanholas com mais força, os Requebros fo-
elle pensava que ella ia render-se-lhe, enganava-o ram mais gentis, nos olhos mortos pelo cansaço
fugindo. houve/mais langor, no sorriso mais zombaria, os
Depois, nas mil voltas que davam, elle procu- •seios tremeram mais fortes, o coração bateu mais
rando-a, "ella" esquivando-se, quando elle estendia precipite.
os braços, "ella" passava-lhes por baixo soltando Ora dançava com uma rapidez vertiginosa, ora
uma grande gargalhada. os pés corriam lentos.
O rapaz suava, "ella" estava calma. Depois dava ao corpo,, flexível como o jünco,
Corriam, gritavam, fugiam, iam, vinham, tor- mil geitos cheios dessa coisa que os italianos
navam, chegavam quasi a abraçar-se e estavam a- chamam "morbideza" e dessa, outra coisa que
partados, dir-se-ia que iam beijar-se e afastavam-se. nós chamamos "denguice".
"Ella" mostrava-lhe os lábios rubros, apertan- Em uma das voltas os seus cabellos despren-
do-os para não rir, elle lançava-lhe olhares amo- deram-se e cairam longos, espreguiçando-se sobre
rosos no meio de sorrisos. as espaduas e impregnando o ar com o aroma
Elle procurava-a, "ella" fugia; elle supplicava, rescendente da baunilha.
"ella" ria-se. As flores que estavam enlaçadas nelles cairam;
A dança era um duello. "ella" pisou-as.
Só uma rosa ficou. O vaqueiro foi apanhal-a;
como a veada das campinas "ella" abaixou-se e
As outras mulheres estavam arrufadaá, ninguém levantou-a.
mais as olhava, seus namorados mesmo tinham Elle ficou de joelhos, palpitante, supplicándo,
os olhos fixos "nella". com as lagrimas | quasi nos olhos, um pedido
Si pudessem teriam gritado: — f o r a ! . . . quasi na bocca.
Os homens, esses, estavam contentes. O mais "Ella" girava.
corajoso.de entre elles ia ser vencido. Não gri- Parou, estendeu-lhe os braços, o vaqueiro a-
tavam — Bravo! porque a commoção embarga- poiou-se-lhe nas suas lindas mãos e ergueu-se.
va-lhes a voz. "Ella" retirou as mãos e a dança continuou.
Contradição lógica.
O velho, pai d'"ella", sentou-se melhor na rede,
deitou de manso o cachimbo no chão, fincou os Os negros cabellos voavam-lhe nos ares, tre-
cotovellos nos joelhos, encostou as faces nas miam-lhe as narinas, o collo arfáva, os seios tu-
mãos e olhou-a muito attento. midos pulavam sob a fina cambraia do vestido,
Por seus lábios passou um sorriso de ufania v o peito offegava, o coração parecia querer sal-
A mãe deixou a conversa da comadre, que não tar-lhe.
gostou nada, pois via uma sua filha ficar para o Nos olhos negros havia um mar de volúpia,
canto, e poz-se a miral-as. nos lábios roxos ondas de desejos.
A comadre disse suspirando: Os cabellos soltos volitavam-lhe ao redor da
- - Ah ! meu t e m p o . . . cabeça e hombros, . enroscavam-se-lhe no collo
O marido da comadre olhou-a com ironia. airoso, introduzindo-se-lhe no seio.
Esse olhar era um desmentido formal aquella A bocca semi-aberta, humida, mostrava os den-
lembrança do seu tempo. tes brancos e afiados, que pareciam querer morder.
O lundum continuava. As faces estavam vermelhas como a tinta, do
A viola e a flauta comprehenderam agora a sua urutu.
elevada missão e, de mãos dadas, redobraram de E "ella" girava.
esforços e de notas desafinadas. O furor da dança se apossara d"ella",
Não podia parar.
76 A NOVELLA SEMÍcWrfc

Na sala, alem dí musica, só se ouvia o sapa- custa a ouvir com paciência os sarcasmos com
teado de suas chinellas encarnadas. que os moços tentam ridiculisar as mais res-
peitáveis tradições, levados por uma vaidade tola,
pelo desejo de parecerem espíritos fortes, como
A viola e a flauta cansaram. dizia o Dr. Rebello. Peço sempre a Deus que
Cansar é uma fatalidade. me livre de semelhante tentação. Acredito no
A cara dos tocadores mettia dó. que vejo e no que me contam pessoas fidedignas,
Rubros, suados, com os cabellos espetados hu- por mais extraordinário que pareça. Sei que o
midos, olhos e boccas abertas, estavam grotescos. poder do Creador é infinito e a arte do inimigo
Pararam. vária.
Ultimo som e nota, como diz o poeta. Mas o tenente Souza pensava de modo con-
O lundum cessou. trario I
Houve uma chuva de bravos. Apontava á lua com o dedo, deixava-se ficar
Os homens á mulher, as mulheres ao homem. deitado quando passava um enterro, não se ben-
- -* =i zia ouvindo o canto da mortalha, dormia sem ca-
misa, ria-se do trovão ! Alardeava o ardente de-
"Ella'' foi cahir exhausta em uma das redes.
sejo de encontrar um coropira, um lobishomem
ou uma feiticeira. Ficava impassível vendo cahir
Dizem que foi aquelle o seu ultimo lundum. uma estrella e achava graça ao canto agoureiro
Depois de mulher do vaqueiro, teve de cuidar do acauan, que tantas desgraças occasiona. Em-
dos filhos e ninguém mais a viu nas festas do fim, ao encontrar um agouro sorria, e passava
Divino. tranquillamente sem tirar da bocca o seu ca-
JOSÉ VERÍSSIMO chimbo de verdadeira espuma do mar.
— Quereis saber uma cousa? Filho meu não
freqüentaria esses collegios e academias onde só
se aprende o desrespeito da religião. Em Belém
parece que todas as crenças velhas vão pela água
abaixo. A tal civilisavão tem acabado com tudo
que tínhamos de bom. A mocidade imprudente
e leviana alasta-se dos princípios que os pães lhe
incutiram no berço, lisongeando-se d'uma falsa
A FEITICEIRA sciencia que nada explica, e a que, mais, acerta-
damente se chamaria charlatanismo. Os mãos
Chegou a vez do velho Estevam, que falou livros, os livros novos, cheios de mentiras, são
assim: devorados avidamente. As cousas sagradas, os
— O tenente Antônio de Souza era um desses mysterios são cobertos de motejos, e em uma pa-
moços que se gabam de não crer em nada, que lavra a mocidade de hoje, como o tenente Souza,
zombam das coisas mais serias e riem dos san- proclama alto que não crê no diabo, (salvo seja,
tos e dos milagres. Costumava dizer que isso que lá me escapou a palavra!) nem nos agou-
de almas do outro mundo era uma grande men- ros, nem nas feiticeiras, nem nos milagres. E'
tira, que só os tolos temem a lobishomens e fei- de se levantarem as mãos para os ceos pedindo
ticeiras, jurava ser capaz de dormir uma noite a Deus que não nos confunda com taes ímpios!
inteira dentro do cemitério, e até de passear ás O infeliz Antônio de Souza, transviado por es-
dez horas pela frente da casa do judeu, em sexta ses propagadores do mal, foi victima de sua le-
feira maior. viandade ainda não ha muito tempo.
Eu não lhe podia ouvir taes leviandades em Tendo por falta de meios abandonado o estudo
cousas medonhas e graves sem que o meu co- da medicina, veio Antônio de Souza para a pro-
ração se apertasse, e um calefrio me corresse a víncia em 1871 e conseguiu entrar como official
espinha. Quando a gente se habitua a venerar do corpo de policia. No anno seguinte era pro-
os decretos da Providencia, sob qualquer forma movido ao posto de tenente, e nomeado delegado
que se manifestem; quando a gente chega á idade de Óbidos, onde antes nunca tivera vindo.
avançada em que a lição da experiência demons- O seu gênio folgazão, a sua urbanidade e de-
tra a verdade do que os avós viram e contaram; licadeza para com todos, o seu respeito pela lei
A NOVELLA SEMANAL 77

e pelo direito do cidadão faziam delle uma au- feiticeria trazia ao pescoço um cordão sujo, d'onde
toridade como poucas temos tido. Seria um moço pendiam numerosos bentinhos,. falsos, já se vê, com
estimavel a todos os respeitos se não fora a des- que procurava enganar ao próximo, para occul-
graçada mania de duvidar de tudo, que adquirira tar a sua verdadeira natureza.
nas rodas de estudantes e de gazeteiros do Rio Quem não reconhece á primeira vista essas crea-
de Janeiro e do Pará. turas malditas que fazem pacto com o inimigo,
Desde que lhe descobri esse lastimável defeito, e vivem de suas sortes más, permittidas por Deus
previ que não acabaria bem. Ides ver como se para castigo dos nossos peccados?
realisaram as minhas previsões. A Maria Mucoim, segundo dizem más lín-
Em principio de fevereiro de 1873, por occa- guas (que eu nada affirmo nem quero affirmar,
sião do assassinato de João Torres, no Parana- pois só desejo dizer a verdade para o bem estar
miry de cima, Antônio de Souza para alli partiu, da minha alma), fora outr'ora caseira do defuncto
em diligencia policial. Realisada a prisão do cri- padre João, vigário do Óbidos. Depois que o re-
minoso, a convite do Ribeiro, que é o maior fa- verendo foi dar contas a Deus do que fizera cá
zendeiro de Paranamiry, resolveu o tenente dele- no mundo (e severas deviam ser, segundo se di-
gado lá passar alguns dias, afim de conhecer,<Jisse zial, a tapuya retirou-se para o Paranamiry, onde,
elle, a vida intima do lavrador da beira do rio. em vez de cogitar em purgar os seus grandes
Não vos descreverei o sitio do tenente Ribeiro, peccados, começou a exercer o hediondo officio
porque ninguém ha em Óbidos que o não co- que sabeis, naturalmente pela certeza de já estar
nheça, principalmente d'aquella grande demanda condemnada em vida.
que elle venceu contra Miguel Faria por causa Quem nada pode esperar do céo, pede auxilio
das terras do Uricurisal. ás profundas do inferno. E se isto digo, não por
Basta lembrar que todos os cacauaes do Parana- leviandade o menciono. Pessoas respeitáveis afir-
miry communicam entre si por uma vereda mal maram-me ter visto a tapuya transformada em
determinada, e que é fácil percorrer uma grande pata, quando é indubitavel que a Mucoim jamais
extensão do caminho, vindo de sitio em sitio até creou aves dessa espécie.
á costa fronteira á cidade. Mas o Antônio de Souza é que não acreditava
Antônio de Souza passava o tempo a visitar os nessas toleimas. Por isso atreveu-se a caçoar da
sítios de cacau, conversando com os moradores, feiticeira:
a quem ouvia casos extraordinários, alli succedi- — Então, tia velha, é certo que você tem pacto
do.s e zombando das crenças do povo. Como com o diabo?
lhe falassem muitas vezes da Maria Mucoim, afa- (Lá me escapou a palavra maldita, mas foi
mada feiticeira d' aquelles arredores, mostrava para referir o caso tal como se passou. Deus
grande curiosidade de a conhecer. Um dia em me perdoe).
que caçava papagaios, com Ribeiro, contou o de- A tapuya não respondeu, mas poz-se a olhar
sejo que tinha de ver aquella celebre mulher, cujo para elle com aquelles olhos sem luz, que inti-
nome causa o maior terror em todo o dis- midam aos mais corajosos pescadores da beira
tricto. do rio.
O Ribeiro olhou para elle, admirado e depois O rapaz insistiu, admirando o silencio da velha:
d'uma pausa disse: — E' certo que você é. feiticeira ?
— Como? Não conhece a Maria Mucoim? O demônio da mulher continuou calada e le-
Pois olhe, alli a tem. vantando um feixe de lenha, poz-se a caminhar
E apontou para uma velha que, a pequena dis- com passos tropegos.
tancia d'elles, apanhava galhos seccos. O Souza impacientou-se:
O tenente Souza viu na Maria Mucoim uma — Fallas ou não fallas, mulher do... ?
velhinha magra, alquebrada, com uns olhos pe- Como moço de agora, o tenente gastava muito
quenqs, de olhar sinistro, as maçãs do rosto muito o nome do inimigo do gênero humano.
salientes, a bocca negra, que, quando se abria Os lábios da velha arregaçaram-se, deixando
n'um sorriso horroroso, deixava ver um dente, ver o único dente, Ella lançou ao rapaz um olhar
um só! comprido e escuro. A cara côr de cobre, longo, longo que parecia querer traspassar-lhe o
os cabellos amarellados presos ao alto da cabeça coração. Olhar diabólico, olhar terrível de que
por um trepa-moleque de tartaruga, tinham um Nossa Senhora nos defenda a mim e a todos os
aspecto medoj^TJircTISRrRJrlsTgõ-' d e s c r e v e ^ A bons christãos.
7S A NOVELLA SEMANAL

O riso murchou na bocca'de Antônio de Souza. floresta. Adiantavam os sapos dos atoleiros e as
A gargalhada próxima a arrebentar ficou-lhe presa rans dos capinzaes o seu concerto nocturno, al-
na garganta, e elle sentiu o sangue gelar-se-lhe ternando o canto desenxabido.
nas veias. O seu olhar sarcástico e curioso sub- Tudo isso viu e ouviu o tenente Souza do meio
metteu-se á influencia dos olhos da feiticeira. do terreiro, logo que transpoz a soleira da porta,
Quiçá pela primeira vez na vida soubesse então mas convencerá a um espirito forte a precisão
o que era medo. dos agouros que nos fornece a materna! e franca
Mas não se mostrou vencido, que de rija tem- natureza ?
pera de incredulidade era elle. Começou a di- Antônio de Souza internou-se resolutamente no
rigir motejos de toda espécie á velha, que se re- cacaual. Passou sem parar nos sitios que lhe fi-
tirava lentamente, curvada e tropega, parando de cavam no caminho, e os cães de guarda, sahindo-
vez em quando e voltando para o moço o olhar lhe ao encontro, não o conseguiram arrancar á
amortecido. Este, consegui tdo afinal soltar o profunda meditação em que cahira.
riso, dava gargalhadas nervosas que assustavam aos Eram seis horas quando chegou á casa da Ma-
japiins e afugentavam as rolas das moitas do ca- ria Mucoim, situada entre terras incultas nos con-
caual. Louca e imprudente mocidade! fins dos cacauaes da margem esquerda. E' segundo
Quando a Maria Mucoim desappareceu por de- dizem, um sitio horrendo e bem próprio de quem
trás dos cacaueiros, o Ribeiro tomou o braço do o habita.
hospede, e obrigou-o a voltar para a casa. No Numa palhoça miserável, na narrativa de pes-
caminho ainda deram alguns tiros, más .de caça soas dignas de toda a consideração, se passavam
nem signal, pois se em algum animal acertou o as scenas extranhas que firmaram a reputação da
chumbo foi num dos melhores cães do Ribeiro, antiga caseira do vigário. Já houve quem visse,
que ficou muito penalisado e viu logo que aquillo ao clarão de um grande incêndio que illuminava
era agouro. O Ribeiro, apezar das ladroeiras a tapera, a Maria Mucoim dansando sobre a eu:
que todos lhe attribuem, é homem crente e de mieira danças diabólicas, abraçada a um bode ne-
bastante siso. gro, coberto com chapéo de três bicos, tal qual co-
Quando chegaram á casa da vivenda, seriam mo ultimamente usava o defuncto padre. Alguém,
seis horas da tarde. Ribeiro exprobou com bran- ao passar por alli a deshoras, ouviu o triste piar
dura ao amigo o que fizera á feiticeira, mas o do murucututú, ao passo que o suffocava um forte
desgraçado rapaz riu-se, dizendo que iria no dia cheiro a enxofre. Alguns homens respeitáveis
seguinte visitar a tapuya. Debalde o dono do que por acaso se acharam nos arredores da ha-
sitio tentou dissuadil-o de tão louco projecto, não bitação maldita, depois de noite fechada, senti-
o conseguiu. ram tremer a terra sob os seus pés, e ouviram a
Era demais a mais esse dia uma sexta-feira. feiticeira berrar como uma cabra.
Antônio de Souza, depois de ter passado toda A casa, pequena e negra, compõe-se de duas
a manhã muito agitado, armou-se d'um terçado peças separadas por uma meia parede, servindo
anrericano e abalou para o cacaual. de porta interior uma abertura redonda, tapada
A tarde estava feia. Nuvens côr de chumbo com um tope velho. A porta exterior é de japá,
cobriam quasi todo o céo. Um vento muito forte o tecto de pindoba, gasta pelo tempo, os esteios
soprava do lado de cima, e o rio corria com ve- e caibros estão cheios de casas de cupim e de
locidade, arrastando velhos troncos de cedro e pe- cabas.
riantans enormes onde as jaçanans soltavam pios Souza encontrou a velha sentada á soleira da
de afflição. As aningas esguias curvavam-se so- porta, com o queixo mettido nas mãos, os coto-
bre as ribanceiras. Os galhos seccos estalavam, vellos apoiados nas coxas, com o olhar fito num
e uma multidão de folhas despegava-se das ar- bemtevi que cantava numa embaubeira. Sob a
vores, para voar ao sabor do vento. Os carnei- inffluencia de olhar da velha, o passarinho come-
ros approximavam-se do abrigo, o gado mugia çou a agitar-se e a dar gritinhos afflictivos. A
no curral, bandos de periquitos e de papagaios feiticeira não parecia dar pela presença do moço,
cruzavam-se nos ares, em grande algazarra. De vez que lhe bateu familiarmente no hombro:
em quando, dentre os trêmulos aningaes sahia a — Sou eu, disse. Lembra-se de hontem ?
voz solemne do unicornio. Procurando aninhar- A velha não respondeu. Antônio de Souza
se, as fétidas ciganas augmentavam com o grasnar continuou depois de pequena pausa :
corvino a grande agitação do rio, do campo e da — Venho disposto a tirar a limpo as suas fei-
A NOVELLA SEMANAL 83

lavam, um algôr electrisante coaudo-se-lhe pela


nuca abaixo. É que a lápis vermelho, em um
dos cantos de papeleta, lá estava a abreviatura
sinistra, a/almenafà da morte: G. C. P. A.
O laconismo destas quatro iniciaes, que por
tanto tempo lhe aguçaram a curiosidade, e de cuja
significação só após um longo noviciado na en-
Ci. C/. P. A. fermaria elle tivera finalmente a chave, conden-
sava sobre, o seu destino a mais terrível das amea-
(Continuação e fim)
ças : elle também seria espostejado sobre a mesa
Obedecendo aos conselhos do mestre, um ma- de autopsiss.
gote de futuros morticolas mais ciosos de scien- No receio de que a piedade e o carinho de pa-
cia, veio abeirar-se do leito de Sylvino, no. de- rentes e amigos viessem reclamar os despojos dos
sejo de perquirir signaes e symptomas apontados seus pobres mortos, antes que a vaidade dos mes-
durante a prelecção. Num torpor espasmico, já tres e a voracidade da sciencia tivessem tempo de
incapaz de reacção, Sylvino deixou que mais uma cevar seus apetites, a mão zelosa de um assis-
vez examinassem as suas misérias; e sob os de- tente ou interno se apressava em advertir a ad-
dos ágeis que percutiam e apalpavam o seu corpo, ministração do hospital de que este ou aquelle
elle tinha o' sangue regelado, numa prematura cadáver não deveria sahir sem a conveniente au-
sensação de guzanos que lhe mordiscassem se- tópsia. E assim, prevenindo possíveis enganos e
quiosamente as carnes. Satisfeita a curiosidade, decepções incònsolaveis, mal um doente engrs-
entre risos e commentarios ao caso em estudo, o vecia, desde que o seu caso fosse raro ou de dia-
bando jovial não tardou em partir, hospital afora, gnostico, obscuro, logo se affixava na papeleta,
para novas aulas e trabalhos' práticos. synthetizada nas quatro letras, a ordem fatídica
Foi então que o interno Castro, sempre.um e decretoria: Guarde o cadáver para autópsia.
dos íetardatarios no serviço, se approximou tam- Mais de irevoita, pela sua muita ingenuidade,
bém do seu leito. Já ahi a enfermaria estava quasi do que mesmo de pavor, foi o gesto de Sylvino
deserta. Apenas a uma das portas da ante-sala ao deparar o aviso deshumano. Quanta decepção
esperava-o o professor Rodrigues, que pouco an- se lhe reservara para aquelle dia! E que nunca
tes lhe bichanara qualquer cousa ao ouvido. -O lhe bacorejara no peito tão desgraçado fim, e só
chefe da clinica, embora'desembaraçado do gorro agora a venda impenetrável cahia definitivamente
e do avental, conservava sob o fraque de sarja dos seus olhos, convencendo-o de que a moléstia
azul ferrete a solemnidade costumeira, um dos o nivelava aos outros enfermos do hospital. Tudo
seus predicados de grande êxito junto á crendice o que se lhe afigurara até então, carinhos e at-
da vasta clientela. tencções especiaes dedicados á sua pessoa, quan-
Sylvino muito de affeiçoára ao interno Castro do assistentes e internos o examinavam repeti-
que, desde o inicio de sua moléstia o acompa- damente, prèoccupando-se com a sua saúde, não
nhava com a máxima solicitude, examinando-o re- passava de um zelo pharizaico de. morticolas es-
petidas vezes e interpellando-o todos os dias" so- condendo curiosidades scientificas deante de um
bre a marcha do mal, desejoso de que o minimo caso raro e concupiscivel. Não fosse digna de
pormenor lhe não escapasse. Depois de assigna- estudo a sua moléstia e, certamente num corvejar
lar rapidamente qualquer cousa no boletim cli- agoureiro, elles não se revezariam com tanta pres-
nico appenso á cabeceira do doente, o estudante teza junto do seu leito. Até o interno Castro, a
perguntou-lhe se a ida ao arnphitheaíro não o quem tão confiantemente elle se entregara, não
havia fatigado em demasia, e advertiu-o de que, fugia também ao bando atroz, e se o acom-
talvez, no dia seguinte, o tivesse ainda de súb- panhava com desvelo e abnegação especiaes era
metter a novos exames. Em seguida elle partiu por que — conforme o professor dissera em aula
ao encontro do mestre, que já o esperava no cor- aos discípulos — a sua observação lhe iria enri-
redor, de livro em punho e chapéu na cabeça, quecer a these, versando sobre a moléstia de Ad-
apressurado em attender a numerosos doentes. dison. A prova, se ainda alguma fosse necessária,
Relartçando de esconso a vista pela papeleta ahi estava na presteza com que o doutorando vi-
pouco antes annotada, Sylvino sentou-se dum Ím- nha salvaguardar os interesses da sciencia," pre-
peto, mãos travadas nos cabellos que se arrepel- meditando-lhe a carneada. ,
84 A NOVELLA SEMANAL

Ah! mas elle não levaria a termo o seu mar- tópsias a que elle assistira e mesmo auxiliara.
tyrkr Os seus restos não iriam ter ao esfola- Uma das mais recentes, e que tanto o impres-
douro! O mestre dera-o como perdido, futu- sionara, fora a de um rapaz de compleição leo-
randõ-lhe d'alli por diante peioras rápidas até a nina, peito largo e polpudo, que já entrara para
morte que já não andava longe. Pois perdido o serviço de olhos vidrados, o corpo tetanica-
por perdido, elle mesmo daria fim ás suas des- mente convulsionado nas crises de uma menin-
graças, comtanto que os seus despojos se vissem gite super-aguda, morrendo ao fim de três dias.
poupados á sanha dos bisturis perscrutadores. A sua autópsia tinha sido das mais longas e mi-
E na escuridade da sua desespe ração, como nuciosas. Pára a retirada do systema nervoso
uma scentelha salvadora, veloz atravessou-lhe o abriram-lhe o craneo ao meio e esnocaram ver-
cérebro a idéia de uma fuga desnorteada, fosse tebra por verjtebra. Ao cabo de duas horas de
para onde fosse, desde que se visse fora do hos- porfiante tarefa, em que serras e escopros se suc-
pital. Como, porem, levar avante o insoffrido cediam nas mãos dos internos, a medulla surgiu
desejo, se os seus membros desnervados e bam- numa tripa languinhenta e acinzentada, cheia de
bos já mal se moviam ? Sobrar-lhe-iam as for- ramificações lateraes, á semelhança de um myria-
ças para alcançar a rua, palmilhando a enfiada in- pode de proporções desmesuradas. Durante to-
terminável de corredores ? das essas manobras, o morto, deborcado sobre
Torturado por essa e outras duvidas, cada qual o mármore, tinha a cabeça a balouçaf de um cepo,
mais anciosa e angustiante, assim passou Sylvino e a bocca entreaberta deixava escorrer uma baba
as horas do meio dia, em que a enfermaria após esverdongada e pestilencial.
o almoço, adormece numa relativa calma, só en- De outra feita fora um impaludado, cuja in-
trecortada aqui e ali pelo palavreado desconnexo fecção, contraída no Amazonas, aqui de novo se
de algum delirante, ou pelos gemidos e esterto; accendera, para abatel-o em poucos dias. Como
res dos que soffrem sem tréguas. se tratas*» de uma inalaria de forma mixta e rara,
Era preciso partir ao lusco-fusco, antes que al- com o parasito ainda mal conhecido, o seuTmar-
drabassem o grande portão, e a irmã de guarda, tyrio foi delongado, retardando-se-lhe a medica-
com o molho de chaves a tilintar na cintura, en- ção necessária e urgente, até que boas e copiosas
trasse a percorrer maciamente os corredores, as lâminas de seu sangue fossem retiradas e se lhe
mãos enclavinhadas sobre o peito, aluz brunindo- estudassem as curvas do accesso febril, de typo
Ihe o perfil num recorte amarfinadó. extremamente bizarro. Ao mesmo tempo a no-
Por vezes, durante o lento desfiar das horas, ticia do caso raro espalhava-se pelo hospital, e
o seu cérebro já esfalfado pelo continuo esmoer das outras clinicas, numa' romaria incessante, che-
dos mesmos planos e cogitações, forçava-o a bre- gavam novos estudantes para morcegar-lhe o san-
ves instantes de modorra, de que elle despertava gue. Esse fora também escalpellizado.com cui-
rápido e ainda mais sobresaltado, no receio de dado: e o seu baço enorme e congesto, a espir-
perder o momento propicio á sua libertação. Mas rar sangue por todos os' lados, mettido num lar-
para que o seu desígnio não tergiversasse diante go boccal, até hoje se conservava no laboratório,
das difficuldades a vencer, prefigurando o fim para deleite e admiração dos necrophilos.
trágico que o esperaria se permanecesse no hos- Sylvino lembrava-se ainda do doente do leito
pital, acudiam-lhe á memória, com uma precisão 16, uma das ultimas autópsias a que ele assistira,
terrificante de particularidades, algumas das au- antes de se acamar definitivamente. Era um bri-

A C A B A D E A R P A R E C E R

I I W LJ íX \~J £Z O DENTRO
ESTUDO DE PSYCHOLOGIA SOCIAL BRASILEIRA
POR S l f t f l A O CS E IVI A N T U A c
Preço4$ooo
M O N T E I R O L O B A T O & C. - EDITORES R. BOA VISTA, 52 - S. PAULO
K NOVELLA SEMANAL

ghtico. O seu corpo anasarcado da cabeça aos pés, mente livre! Os morticolas já não se banquetea-
tinha uma cor cardea e transparente. Á medida riam mais sobre as suas carnes. A these do
que lhe abriam o ventre e a barrigada ia sendo interno Castro ficaria sem o seu melhor capitulo.
avidamente examinada entre os dedos ágeis do E saboreando os effeitos da vingança que elle
operador, da pelle grossa e infiltrada escorria mesmo não gosaria, Sylvino dirigiu-se resoluta-
uma serosidade visquenta, e postas de um sangue mente para o mar, emboscando-se na álea dos
negro se agrumelavam sobre a mesa. oitys. O vôo ruflante de alguns pombos, em
E Sylvino sentia ainda maior a sua desespera- busca de um beirai próximo, trouxe-lhe uma
ção, o remorso afistulando-lhe a alma, quando se perradeira reminiscencia do lar distante e querido,
recordava- de que, conchavado com o pessoal da por onde todos os dias, já ao escurecer, os tro-
enfermaria, também currípliciara em todas aquellas cazes passavam aos pares, procurando uma soca
ignomínias. Era elle quem limpava e afiava o ins- de bambus farfalheiros.
trumental destinado ás carnificinas, e os doentes No cães, recostado á murada, Sylvino quedòu-
escolhidos para taes scenas de barbaria ficavam se algum tempo, os olhos errantes pela belleza
sob a sua immediata fiscalização, de maneira que da tarde que se finava. Havia no ar uma infi-
não fosse possivel o extravio de seus cadáveres nita doçura, e a paisagem parecia toda feita uma
— vitualha opima para o banquete dos morti- pellucia macia. No poente cambiante e afoguea-
colas. do, entre o recorte verde-negro das montanhas,
Á luz hesitante do crepúsculo, quando sé infil- o sol esmorecia, ainda franjando de ouro um
travam na enfermaria as primeiras sombras da bando de nuvens altas, que se aquietavam sobre
noite e, no altar, a chamma vacillante de uma o anilado terno do ceu. Oaivotas reiardatarias,
lamparina convulsivava sobre o madeiro, em tran- num giro leveiro, librando cadenciadamente as
ses de dor, o corpo exangue de um Çhristo, Sylvi- azas, esvoaçavam sobre a superfície immota e es-
no saltou apressadamente do leito ,esgueirando-se pelhante das águas. Uma nevoa lilaz e transpa-
pela primeira porta que se abria para o corre- rente envolvia a serrania longínqua, engrinaldan-
dor. A sua blusa de enfermeiro facilitar-lhe-ia a do-a de roxo e esfumando-lhe a projecção no
passagem no caso de um possivel encontro com roseo pallido do horizonte. Sobre o debrum ne-
alguma freira ou algum servente do hospital. gro de Nictheroy phosphoreavam as primeiras
Guinando de uma parede para outra, as pernas luzss, que o mar debuxava numa esteira em tre-
infirmes e pesadas genuflectindo a cada instante, mulina de ouro . . .
ora agachado no desvão de uma janella, com o Uma dor incomportavel e dilacerante, como se
coração aos pulos mal presentia qualquer ruido, garra adunca e invisível lhe estorcegasse os rins,
ora já mais resoluto, avançava mais alguns pas- despertou Sylvino daquella contemplação inebrian-
os. Sylvino chegou ao fim do interminável e te, que o chamava á vida. Era preciso não he-
lugubre primeiro corredor, que apenas o olho sitar mais, se elle estava irremediavelmente per-
baço de umá pequena lâmpada electrica alumiava. dido . . . E o seu corpo resvalou na escorrencia
A anciã de liberdade e a superexcitação cerebral algosa e verdoenga das pernas do quebradoui'0,
enseivavam-lhe os músculos. Ainda um esforço sumindo-se no crespo das ondas.
igual, entre sustos e recuansos, e elle vencia o si- Mas três dias depois, já de calcanhares poidos,
lencio do segundo corredor. Já noadro, quando o o ventre bojante e marbreado, as orbitas vazias,
seu coração ia mais desafogado e a partida pode- com a mesma mdifferença com que o havia tra-
ria considerar-se ganha, um vulto, só presentido gado, o mar devolveu-o á praia; e o futuro mor-
a breve distancia, fel-o coser-se sumidamente á ticola, feliz-na inconsciencia do seu crime, fare-
parede, empedrado e quedo, sentindo-se aluir pe- jando a presa com volupias de carnifice, lá foi
los joelhos. Era uma irmã de caridade que se desvisceral-o sobre a mesa de autópsias, na anciã
encaminhava para a capella, desfiando as contas de encontrar a absconsa lesão que lhe desse á
de um rosário. Toda absorta na prece, os olhos hese o cunho de interesse e originalidade.
demissos a reflectirem doçura, ella não se aper- GASTÃÒ CRULS
cebeu do fugitivo.
Chegado á porta e sorvendo a largos e insa-
tisfeitos haustos o bafejo da viração marítima, que
fazia sussurrar a ramaria alta das figueiras, Syl-
vino sentiu nm renovado alento. Estava final-
A NOVELLA SEMANAL

EMENTO
Os personagens têm de agra- veis n a sombra, a olhar obsti-
dável a circumstaucia de traze- n a d a m e n t e u m quadro de fogo
rem na cara o seu caracter e de não estão inteiramente em estí-
lhes ver desde logo o que são. do de vigília, mas em estado
Vidat literária Um trahidor tem o nariz de
trahidor, uma g r a v a t a de trahi-
dor e calçados de trahidor. E 1 o
comparável ao do sonho. As se-
melhanças entre o sonho e o
espectaculo são numerosas e sur-
ti — u que se chama a composição. Não prehendentes. Assim comoJj.no
Psychologia do theatro h a exemplo de que elle t e n h a o sonho ora somos espectadores
ar de bom rapaz, o que é u m a ora actores e passamos, súbito,
" E m u m rectangulo illuminado, differença feliz para com a v i - de u m a outro papel, também
personagens imitam os meneios da. A namoradeira só tem que no theatro ora nos oppomos ao
humanos. U m a luz forte, egual apparecer e logo a reconhece- actor, ora nos identificamos com
e doirada, que sae de baixo, do mos. E ' u m typo que só existe elle. E ' assim que o coro grego,
alto e de todos os pontos do u- no theatro, impossível n a reali- esse espectador ideal, ora ap-
niverso que elles habitam, tor- dade, pois, consiste em seduzir parece como testemunha, ora
na-os uniformemente brilhantes toda a gente com um m i x t o de como personagem.
e coloridos. Como Pedro Schle- pretenção e perfídia. A i n g ê n u a No sonho, tudo o que é con j
mib.1, perderam sua sombra. O se revela, por sua vez, por u m cebido como possivel é tido im-
espaço invariável em que se mo- arzinho idiota e u m a voz esga- m e d i a t a m e n t e como real, sem
vem alterna-se em quarto de niçada. Não existe, também, si- tcuidado das difficuldades darea'
dormir e salão. São esses os não no theatro. Produz-se diffi- lisação : egualmente, em scena,
dois commodos da casa. Sala de cünrente n u m a espécie dè galli- o que u m a vez se annuncia qo.«
j a n t a r não existe. P a r a as re- nheiro que se chama Conserva- vae acontecer é acceito quando
feições trazem os creados a mesa. tório. acontece, qualquer que seja a
Outróra, a decoração da co- Todos esses seres são estrei- inverosimilhança ; é o segredo
media era a da rua : mas esse t a m e n t e especialisados. Os a- das preparações.
costume passou. Os actores não mantes recusam-se ás peças As famosas leis do theetro, i
sahem mais de casa. São raras em que não são amados. E ha que se procura sem poder foi-
as peças modernas que não se pas- moças, commummente um pouco mulal-as, não são talvez sinão
sam n u m a p a r t a m e n t o ou quando fortes, cujo emprego é rir, mais as leis que no sonho dirigem a
muito, rio terraço ou no j a r d i m . rir de certa maneira, a maneira serie das imagens. A principal
A única occupação das perso- da scena, ora em i, ora em o, é a do movimento ininterrupto.
nagens é amarem-se. P r i m a en- ora em e. São espécies de ama- Uma peça^ de theatro, como um
tre elles, a respeito, a maior dores, como o caçador de pratos sonho, não pôde immobilisar-se.
cortezia. Quando, em seu meio, e o tocador de xylophone. No Prohibem-se a u m a como a ou-
dois experimentam inclinação e theatro nunca se ri quando se t r a as regressões, os movimen-
necessidade de se approxiinarem, é rhagro. tos circulares. E m um e outro
vão-se todos os outros e os dei- D u r a n t e três horas, essa pe- caso, as imagens nascem umas
xam sós. A própria luz diminue quena população contende com das o u t r a s . Elias agradam uni-
e u m raio de luar vem pousar o destino ou entre si. Especta- camente por sua desfilada. Que-
sobre os amantes. E ' t a m a n h a dores amontoados, mudos e im- remos, apenas, que se desfaçam
essa discreção que os persona- moveis, seguem, entretanto, essa docemente a nos dizerem adeus,
gens em scena g r i t a m os seus lucra, mastigando confeitos. De antes que nos acordem : eis por-
segredos sem medo de que os tudo o que se diz em scena, ne 1 que nos é agradável que os he-
surprehendam e se abraçam sem n h u m a palavra é verdadeira. As róes morram. Ao contrario, uma
cuidar das portas, que poderiam a v e n t u r a s são imaginárias, as peça sem desenlace nos dá a
abrir-se, mas que, de facto, só garrafas são vasias e as pisto- sensação desagradável de um
terminada a scena se abrem. A- las, carregadas a pólvora secca. brusco despertar, sendo o panno
pesar dessa tranqüilidade, são Mas essas dores fingidas provo- que cae, como um desses creados
tumultuosos os amores. São cam u m a dor verdadeira nos es- do hotel que brutalmente nos
apenas suspiros e soluços. Quan- pectadores. E essa dor é ao mesmo fazem sentir que é tempo de nos
do as coisas estão muito más, a tempo um prazer. As lagrimas levantarmos.
actriz romã os cabellos com as correm ; são lagrimas deliciosas. Ora, a fusão momentânea en-
duas mãos e descobre a fronte. Qual o segredo de tão extra- tre o espectador e o personagem
E ' o signaldas peiores catastro- nho prazer ? tem como conseqüência a justi-
phes. Olha fixamente diante de Comprehender-se-ia mal o thea- ficação pela scena moderna de
8i, deixa cahirem us dedos ao tro, si não se dissesse que esses u m a velha theoria de Aristote'
longo das faces : é o desespero. milhares de espectadores, immo- les. Pode-se conceber assim ó
A NOVELLA SEMANAL 8T

papel do Theatro: nós todos na- grande época de gloria — daremos O ultimo numero appareceu larga-
scemos côm os germens de todas u m a idéa, transcrevendo alguma cou- mente tarjado de negro, vindo o a r -
sa do primeiro e do ultimo numero. tigo de fundo precedido de um e m .
as paixões,-, os quaes desenvol- Eis o artigo de apresentação: blemá fúnebre: u m a eça cóm tochei-
vendo-se mais ou meno$, nos « Todos nós temos lido os bons ro- ros, sendo os artigos espaçados por-
dão. uma certa necessidade de mances bui-guezes, em que o enredo lagrimas... de tinta preta.
é a vida, a alma da historia. Esse numero , escandalosamente
homicídio, de perjúrio e de am- Não gostamos então que venha o mortuario, foi collabórado por Fon-
bição. Mas, da mes.ma forma visinho impertinente, alardeando eru- toura Xavier, Raul Pompéia, Ray-
que, inoculando-se-lhe uma doen- dição de Pousou e ' de Dumas, dizer- mundo Corrêa, Augusto dei D i m a e
nos se o cavalleiro Armando deu ou JLmiz Murat, alem de Eduardo Prado.
ça attenuada, se immunisa o não a estocada promettida no donzel e Valentim Magalhães, proprietários,
paciente, que não poderá mais Y, ou se raptou D. Leonora Sanches. inconsolaveis.
softrer a mesma moléstia em Assim acontece com «A Comedia». Foi escripto por aquelle o seguinte
egtado agudo, também dando-se Está aberta a scena: as luzes esclare- artigo de fundo:
cem o salão} e quer talvez o leitor Í Nós hoje fallecemos.
ás paixões dos espectadores a aprecial-a, apalpal-a, estudal-a e — Ao darmos esta noticia aos nossos
satisfação illusoria do theatro, prétençâò de auctor ! — admiral-a. leitores pedimos-lhes desculpas poi-
impedem-se esses mesmos espe- Contar-lhe a historia futura, o pro- esta falta involuntária.
gramma, o itinerário, o enredo, é Não dizemos que o paiz se cobre
ctadores de as sentir ao natural. yulgarizal-a, achatal-a, diminuil-a. de lucto, nem tSò pouco que nas fi-
Um burguez, bom pae e bom Nunca ! leiras da imprensa abre-se um claro-
esposo, vae ao theatro. Entra 0 Nao temos programma, temos acto- que difficilmente será preenchido.
res: o publico e nós. O mundo de Nada disso. Morremos sem mais
primeiro personagem. Não duvi- todos é o nosso mundo. Como toda cerimonia? J à na outra vida traça-
dais que é elle mesmo. Tudo o comedia acaba em casamento, espe- mos este artigo de fundo, que é mes-
que se diz em scena, o especta- ramos que pela lei dos absurdos ine- mo do fundo da sepultura. F a l t a r í a -
vitáveis, nesta não se dê o contrario, mos porém á mais comesinha delica-
dor ouve com o coração. E' elle antes comecemos, nós e o publicof deza para com a memória dos illustres.
mesmo quem deseja, quem teme, amando-nos, gostando-nos, a 40, reis finados, se não lhes traçássemos um.
quem é amado. Faz uma decla- por entrevista, e enlacemos-nos numa sentido necrológio.
união productiva, financeira, mone- Uhm ! Uhm !
ração pela voz do actor, affron- tária. Nós nos curvamos compungidos em
ta o marido em pessoa e morre Subiu o pãnno ; venha da platéa o frente do nosso túmulo, e, si não es-
por procuração. Tendo tido uma applauso ou a pateada: nunca o pu- tivéssemos mettidos dentro delle, de-
blico o faça, porém, á moda dos poríamos um osculo sobre a lapide,
pequena febre de moculação, es- chins, isto é : nunca nos volte as iria que cobre os nossos restos.
tá immunisado e volta em paz costas.» Nós vivemos, escrevemos e m o r -
para casa. Bastou-lhe a noitada. Agora a apresentação em verso: remos.
Foi assassino e adúltero. Segun- Anciosa, alegre, cheia Viver ! escrever ! morrer ! talves
do Aristóteles, purgou as suas A piaté», seja tolo !
Ao apito soberano
paixões. E' no que o theatro é Sobe o panno ! i
salutar e moral. A única diffi- TJm de nós foi poeta; o outro, cousa
cnldade da theoria consiste em E a comedia da Alegria nenhuma. Immensa superioridade !
Principia, A sorte porém igualou-nos dotando,
que,'levada ao extremo, , con- Deslumbrando de repente í ambos com um myopia digna de
cluir-se-ia que o theatro é tanto ' Toda a gente. menção.
mais moral, quanto mais crimi- Quem é myope vê pouco. Foi por-
Sois vós mesmos os actores, isso que não vimos a mínima neces-
nal, mais romanesco e mais Meus senhores, sidade de dizer adeus, aos nossos,
lubrico. E é palco enorme, profundo, leitores.
"è (De um estudo de HENRY BIDOTJ) Este mundo. 'Abstemo-nos deste adeus porque»
de sentimento, seriamos capazes de
A morte, ingênua caiada, morrer ontra vez, contrariando o,
A embrulhada principio de «Nos b i s i n idem».
Desenreda e, á luz da rampa, ' Depois o leitor deve estar n u m a
Abre a campa. posição difíiçil e incommoda, no ter-
reno das supposições e da curiosidade.
A' scena, burguez ricaço Um pé aqui,,outro acolá, um para.
literárias De cachaço !
Airosa, gentil morena
Eia á scena !
cá e outro mais longe.
Mas é inútil a gymnastica de seu
espirito de leitor para descobrir a,
oausa da- nossa morte.
Dansem; sob e sobre flores Esta causa é a seguinte: — Falta,
Os amores ! „• de vida.
i,"A Comedia,, { D. Quixote, Sancho Pansa Que diz, senhor leitor ?
Sus ! á dansa ! Confesse que sósinho não.atinava...»
|! « A Comedia » foi um jornal áiario Nao foi somenfe neste artigo que o.
acadêmico (diário !) temerariamente Vem, ó Musa abençoada publico paulistano foi chamado1 tolo.
fundado em 1881 por Valentim Maga- Da Risada ! Seguia-se-íhe outro, dedicado «Ao.
; #iSes e Silva Jardim, que então es- Canta, canta; canta, canta Respeitável Publico», no qual «A Co-
tudavam Direito de S. Paulo. Pinta a manta ! media» declarava que, estando á bei-
r
Durou de 2 de março a 22 de maio ra do túmulo e não precisando mais
, de 1681, sendo assiduamente collabo- Vem, consciência dos edis, de leitores, ia dizer-lhe francamente,
| rada pelos então acadêmicos Raul Vem e diz para desafogo de sua consciência,
Pompéia, Raymundo Corrêa, Eduar- Se não merece piedade qnanto o achava ridículo e, digno d&
d o Prado, Affonsó Celso, Assis Brasil, ~" A cidade ! pena. Imaginem os leitores o resto
Fontoura Xavier e muitos outros, sem do artigo.
contar Machado de Assis e Filinto de Vinde todos, vinde todos, ;\ Na impossibilidade de o transcrever-
Almeida, que também mandavam, Como doudos bem como aos muitos outros escrip-
do Rio, a sua collaboração. Pouco Dar bons dias á COMEDIA tos «fúnebres», em que era chorado a
antes de expirar «A Comedia» foi Sil- Fresca e nédia ! prematuro passamento «d'A Comedia*
va Jardim substituído na redacçâo rematamos esta noticia reproduzindo
por Eduardo Prado. Tem sorrisos, tem pilheirias abaixo as duas lindíssimas poesias
. Do que foi essa interessante folha Muito serias ! que se seguem. A primeira é de
— orgam de u m a robusta geração, Apenas não tem bastantes Raymundo Corrêa e a segunda de
I que inaugurou na Academia u m a Assígnantes . . . Valentim Magalhães. Eil-as: ,.
88 A NOVEELA SEMANAL

Morres~porque não pagam-te (que espiga) XVI


Os que de riso tu morrer fizeste ! A musica cessara, estarrecida,
Mas olha, amiga: si a sorrir nasceste. Que, inda ha pouco, se ouvia em cada sala:
Morre a sorrir como nasceste, amiga ! De mais de uma donzella commovida
Se conta que perdeu de susto a fala.
Se ninguém na agonia te socorre, Num bolo, junto á porta de sahida.
Morre como Aretino: ás gargalhadas ! Estava a multidão de grande gala
jvlorre pândega, calma, alegre ! Morre — Com os olhos cada qual buscando o centro
Rindo, rindo, ás bandeiras despregadas ! Por melhor observar o que ia dentro —
Morre soltando u m a risada immensa XVII
E n t r e a vida e o morrer, jornal jocundo ! Um velho, feio, alto, alli se via.
De menos um jornal que importa á Imprensa ? Mettido em vil casaca amarrotada,
<Que haya u m cadáver más que importa ai mundo ?• Puxando pelas mãos, por companhia,
Em roupa domingueira, a filharada :
Agora o soneto de Valentim Magalhães, o «pae» incon- — Seis meninas (si a conta não varia)
solavel d'«A Comedia»: „ Com seus lenços de chita desbotada,
Morres, filha, e ao descer á terra ingrata e fria, Nos quaes depois levassem, com dextreza,
Causas um grande abalo á pansa dos burgueses. Os doces da bemdita sobremeza.
Diz nm, irado: «E eu que assignei por seis mezes !»
Outro diz: «Eu pensei que a COMEDIA rendia . . . » XVIII
« Não pode ! Não ! s — Com voz firme, sonora,
Que assignou sem pagar o burguez esquece ! O Cyro assim lhe diz, postado á frente —
E hoje que o mundo vil retira-se da scena, « A Etiqueta Official que aqui vigora
E a dourada alegria em teu lábio emudeoe, « O ingresso das meninas nao consente.
K' que elle diz: «Tão bella e tão bôa ! Que pena !> « E' preciso, portanto, e sem demora
« — São ordens que me vêm do Presidente
Fosto travessa, alegre e ríspida também; .x E dellas eu, porisso, não me aparto —
Mas foste sempre justa, independente e honrada: » Fecharmos as creanças n'nlgum quarto. »
"Como quem sonha e ri, mas não deve a ninguém !
Morres como a bohemia aos clarões da alvorada: XIX
'Guitarra ao peito, a fronte enfeitada de flores. « N'algum quarto ! Mas isso não tem geito ! •>
Rindo á Morte, ao Destino, ao Throno, aos devedores ! — Respondo em pasmo o triste Pica-Fumo,
Que nunca na sua vida tinha feito,
Nem na Gamara, assim com tal aprumo,
Discurso mais solenne, mais perfeito,
Do que este que eu a custo aqui resumo —
« Então . . . pretende Vossa Senhoria
«Tranear-me as innocentes . . . na. onxovia !

XX
i. E' a lei ! Num regimen democrático
s A todos por. egual obriga e manda.»
-- Ao velho, que escutava, sorumbatico,
Uma satyra de HILÁRIO TÁCITO Junto á prole, encolhida cVuma banda,
Prompto replica o moço aristocrático
Hilário Tácito, bastante conhecido como escriptor Ao qual sua desventura não abranda.;
desde o seu grande successo com a «Madame Pommery >, Ordenando lhe cumpram, sem detença,
•é também excellente poeta. Entre os nossos satyricos Três lacaios a. asperrima sentença.
cabe-lho um logar na primeira plana, como se prova
com os versos abaixo, escriptos ha annos por oooasião XXI
da visita da Embaixada Uruguaya a São Paulo e só a-
gora por nós publicados : Quem poderá jamais, pela linguagem
(Contanto que não seja Homero ou Dantoj
0 pasmo descrever, a triste imagem,
Musa, tu, que meus estros aceendendo, Do Ancião, quando viu, naquelle instante-,
Inspirado me tens, me inspira agora Presa nas rudes mãos da criadagem,
Uns versos de salão com que pretendo A prole, que na escada e j á distante,
A historia divulgar por mundo afora Chorava, com tamanho destempero,
De um baile diplomático estupendo Que ao triste Pae dobrava o desespero.
—T Cuja fama farei correr sonora —
A uruguaya embaixada ofEerecido XXII
<Com__brilho que jamais será excedido.
Na Torre de Gualandi celebrada
Ugolino não foi mais lastimoso,
II Quan Io viu perecer a prole amada
Confesso, aborrecido, ao mundo inteiro Da fome no supplicio pavoroso,
(E por modéstia não, pois que appetite Do que o foi, por amor da filharada,
De vel-o sempre tive, prazenteiro) O bravo Pica-Fumo ; o qual, raivoso.
Que ao baile, só por falta de convite, Planeava, para a ceia, mil vinganças,
Não assisti. Porém o meu barbeiro Que doces lhe valessem ás creanças.
— Amigo (embora alguém não me aoredite)
Do cônsul que nos deu a Guatemala — XXIII
Lá esteve, só por isso, e por mim fala.
Entanto a multidão, irreverente,
O larga sem consolo e sem piedade,
Echoando pelo paço incontinente,
XV Espessa, contagiosa hilaridade ;
Bm sendo já bem grande o movimento — Quando o triste vislumbra, derrepente,
Do povo que lá dentro se encontrava Entrando, sem nenhuma novidade,
(Do todos distrahido o pensamento O Cândido Batata e a prole inteira
Nas pompas que este bailo apresentava) Que a r r u m a na Etiqueta...-uma rasteira.
— A' porta eis que se forma, num momento,
Um grande reboliço, em fúria brava,
Que todos a correr, de prompto, obriga
Paru o sitio em que andava aceesa a briga. HILÁRIO TÁCITO
E D I Ç O B S D A

;
£KW0UC>
AMADEU AMARAL F. T. DE SOUZA REIS
A Pulseira de Ferro (novella) 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) , 4$000
Um soneto de Bilac (critica) 2$000
WALDEMAR FERREIRA
MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante 8$000
Os Negros (novella) 1$000 Estudos de Direito Commercial . . . . 10$0fj0
A Hypotheca Naval no Brasil. . . . . 3$000
LÉO VAZ
AUCTORES DIVERSOS
Ritinha (novella) No prelo
O que todo o commerciante precisa saber
* GUSTAVO BARROSO (10.° milheiro) 2$000
Almanach Commercial Brasileiro dé 1918 6$000
Mula sem cabeça (novella) No prelo
NICOLAU ATHANASSOF
A. DE SAMPAIO DORIA
Os Suinos, manual do criador de porcos
O què o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) 3$000
OS PEDIDOS DO INTERIOR DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

S O C I E D A D E E D I T O R A O I v E G A R I O R I B E I R O
R u a r>x'. A b r a n c h e s , -St» m C a i x a P o s t a l XIT1& - S Ã O P A U L O

EDIÇÕES DA " R e v i s t a do Brasil 9f


Broch. Encad. Broch. Encad,
NEORINHA, contes por Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pelo
URUPÉS, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4$000 5$000
bato, õ.a edição 4$000 5$000 MADAME POMMERY, íomance
CIDADES MORTAS, contos por satyrico, por Hilário Tácito. . 4$000 —
Monteiro Lobato, 2.a edição. . 4$000 5$000 BRASIL COM S OU COM Z, por
IDÈAS DE JECA TATU, critica F. Assis intra - 3$000 —
por Monteiro Lobato, 2.a edição 4$000 5$000 VIDA OCIOSA, romance por Go-
NARIZINHO ARREBITADO, li- dofredo Rangel 4$000 5$000
vro de historias para crianças, OS CABOCLOS, contos por Val-
por Monteiro Lobato . . . . 3$500 domiro Silveira 4$000 5$000
POPULAÇÕES MERIDIONAES HISTORIAS DA NOSSA HISTO-
DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato orrêa . . . 3S500 4$500
gia por F. /. Oliveira Vianna . 8$000 10$000 ESPHINGES, versos de Francisco
PROFESSOR JEREMIAS, por Lá>, Julia 5$000 —
Voz, 3.a edição 4$000 5$000 SCENAS E PAISAGENS DA MI-
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- o rnelio Pires • w. . 5$000 —
reto 2$000 — CASA DE MARIBONDO, contos,
LIVRO DE HORAS DE SOROR João do Norte 3$000
DOLOROSA, poesias por Gui- - PAIZ DE OURO E ESMERALDA,
lherme de Almeida 5$000 — romance,/. A. Nogueira . . .
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 MAIS 10 o/o PARA O PORTE
Pedidos aosEditores: N o n t e í f O L o b a t O (&L C , C a i x a 2 . A - S . P A U L O
A NOVELLA NACIONAL
"Volumes publicados:
A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por
série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o successor. de
se mira ao seguinte escopo : offèrecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "_E" no gênero uma verdadeira obra
mais artistica, ao preço mais barato prima,, — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o-celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma —• LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do ; 'Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 >/2 X 12 '/2 centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume. lífOOO em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado 1$300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3$500; série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14|000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr, Abranches N, 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de- Commercio e Industria „ da


Soe. Ed.Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S.Paulo
ANNCTf* ^aSCX^ÜLÕ, 4 D Ê JUNHO DE 1921 NUMERO 6

ANOVEIXA
SEMANAL

BREVEMENTE: "A NOVA PLEIADE"


COLLECÇÃO de pequenos livros de versos a CADA volume, caprichosamente confeccionado
se publicar sob a direcção de Amadeu Ama- impresso a duas cores em excel lente papel
ra) (da Academia Brasileira) e destinada a com artísticos ornatos e solidamente enca<
vulgarizar as obras dos poetas novos de dernado,será vendido a 2$500.
grande merecimento, ainda pouco conhe- Na NOVA PLEIADE somente serão publica
cidos do publico. das obras de verdadeiro valor.
Iniciaremos a collecção com o primoroso livro M A N H A do poeta paulista Graccho Silveira
SÓCIEDADEjEDITORA. OLEGARIO RIBEIRO — Rua^Dr. Abranches, 43 — Caixa, 1172 — S. Paulo

SOCEDITORA^JfíâRIQ^IBEmO-^
A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR BRENNO FERRAZ

PUBLICA SE A O S SABBADOS
Tara os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphahetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collecoões
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesonro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num circulo vi- cido e inaccossivel. Das obras ainda em extracção no
cioso : o livro não se difiunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se difiunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se_ tiram por ahi deze- tomo, didaoticas e populares, e em publicações periódicas
— as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da creação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que _ qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel pela êscrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que uni abundante repositório de infor-
dos os meios para o diffundir em todo o território na- mações bibliographicns, uma selecta do pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito da tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
gramma. Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro ; nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
I as vantagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
' leitura leve e variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes q u e n o s sejam enviados por auctores conheci-
apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, em toda par- , dos e desconhecidos, consagrados e estreantes,comtanto
te, a toda gente ; mas nSo será futil e de interesse e- une taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phemero como ella : pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A NOVEILA, isto é, que tenham pequena ex-
i extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
ide pequenos livros, que se encadernarão no lim de cada Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará conto e da novella nestes volumes, por serem esses os
; uma bibliotheca literária realmente preciosa. gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
e creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
icuriosos, pela totalidade, emfim, da população ledora, Todos os outros gêneros terão o seu logar no nosso
procurará nos auctores a vida, a.acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
•modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. Não seria este o melhor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaos espera re-
• cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathico.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- O s EoiTORICS.

Aos auctores / queiram nos auxiliar neste trabalho


Acceitaremos com prazer toda col-
laboração interessante para qualquer
Aos leitores que nos enviem relações do auctores
das secções deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seunome, villas, povouções. estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, hoteio, clubs, bibliothecas, e t c ,
ferecem a sua collaboração. estando porisso organisando um ser- Importante
Os originues devem ser escriptos de viço de distribuição que será o mais Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em calligraphia completo possivel, de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legível e de preferencia dactylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos adeantadamente a res-
graphados. não "tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. P a r a obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
gario Ribeiro -- Caixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se
interessar pela venda ou leitura des-
catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará sil, no valor de 20 o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as epoeus, Anno . . . 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra. . . 10$000
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . . 5$000
lém disso uma noticia critica. fornecida, rogando a todos quantos Numero avulso . . . . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO-R. Dr. Abranches, 43 Caixa Postal, 1172-Teleph.: Cidade, 5441-S.PAULO
ANNO I A N O V E L L A SEMANAL São P a u l o , 4 de Junho de 1921 NUMERO 6

PREÇO DE S A N G U E
Jorge Falleiros.
- SDMMARIO Simões Pinto — Louren-
" ço Filho.
ÇS VÍCIOS DELLES . - . - Vida literária — O parado-
Julia Lopes de A l m e i d a . x o da cultura. — A . M.
SUPPLEMENTO — A vida
CLARINHA D A S R E N D A S ECONOMIA DOMESTICA anecdotica e pittoresca Curiosidades literárias —
— Mario Sette. — Euclydes A n d r a d e . dos grandes escriptores Versos. — J o ã o Ribeiro.

PREÇO DE SANGUE
A antiga fazenda do Domingos Nunes agaoha-se dias de calor. Encostado duma banda, permanecia
num descampado, esparrimada nos flancos de um inerte o tear. Rocas desmanteladas jaziam para
declive que verte para um riacho. os cantos. No meio dos- trastes abandonados, em
Tem o aspecto sen.il duma tapera. As paredes desordem, como os destroços dum naufrágio, so-
denegridas, o madeiramento pesado, o telhado brenadava uma argola de ferro com duas hastes
ennegrecido e escabroso dão' aquella decrepitude como chifres, trazendo guizos nas pontas. Ao mo-
architectonica os ares torvos dalguma cousa morta. do de canga chineza, ia ao pescoço das fujonas
Para os fundos se mostra o quintal, no verde que costumavam varar matto. A parca luz, que
fosco das laranjeiras a enfeitar debalde sua ve- entrava pela única janella aberta e também enca-
lhice com as flores de noivado que todas rada pelo corredor que ia ter á cosinha, dava a
se desprendem á mais fagueira viração da tarde. tudo uns ares de sombra e de mysterio. O vasto
Na frente, o curral de aroeira fincada e o chão compartimento offerecia sahida a outros aposen-
duro do terreiro. Junto da porta, um montão de tos, cujas portas, fechadas desde muitos annos,
pedras á guiza de escadaria. A porta, muito gros- enclausuravam almas penadas e morcegos que a-
sa e perra nos seus gonzos ferrugentos, dá ac- tordoavam a casa, pela noite a dentro, com uma
cesso a uma sala desguarnecida e vasia. Apenas algazarra infernal. Junto da escada de madeira,
[alli se notam uma grosseira mesa de cerne, dois lisa pelo uso constante, arrumada á parede, Do-
i bancos duros de taboa e uns arreios de couro, mingos Nunes parou meditabundo, como atando
amontoados a um canto. a idéa da escada ás outras que tivera á ja-
|s A urna janella lateral, um velho magro, Domin- nella, em frente do paiol. Alli estava ainda
gos Nunes, estava olhando para os lados do paiol. no mesmo logar a maldicta escada, aquelle ins-
Um pouco além, subsistiam ainda uns destroços trumento de supplicios para as pobres captivas;
de senzala. ligadas debruços a ella, dos pés á cabeça, como
A tarde declinava. Domingos Nunes, como se numa cruz, supportavam entre gemidos a brutali-
o invadisse uma tristeza immensa, á vista do dade da pancadaria. Junto do moirão, aquém
paiol arruinado, arrancou-se dalli e, arrastando os da senzala, ainda se achava a sepultura anony-
passos pelo assoalho de grossas pranchas de pe- ma daquella mestiça que sucumbira aos golpes
roba, enveredou para o salão, onde outr^ora as do azorrague. Domingos Nunes chamou para
.africanas laboriosas trabalhavam nos interminos dentro, na sua voz asthmatica:
90 A NOVELLA SEMANAL

— Escrava! ficava tranzido de agonia. Todo barulho extra-


Outra voz também asthmatica respondeu: nho o congelava de susto. Já era noite fechada
— Sinhô . . . quando elle se recolheu ao quarto junto da sala.
E á bocca do corredor assomou uma annosa Accendeu a candeia, abriu a janella e derreou-se
creoula, meio coxa : no parapeito. Soffria de insomnia. Antes de con-
— Veva! ciliar o somno não arredava d'alli, -a olhar os
— Sinhô . . . astros como um cão de guarda. Naquella noite
— Ainda resta lenha para o lume ? estava preocupado com recordações dolorosas.
— Sim, s i n h ô . . . Depois de ficar assim uma hora esquecida, a ab-
— Leva também esta escada para queimar. sorver a aragem e o silencio, começou a sentir
— Sim, sinhô . . . um tremor exquisito nas carnes. Súbito pare-
Sahindo difficultosamente LOIII o traste, Geno- ceu-lhe ouvir uma voz semelhante á sua dizer-lhe
veva murmurava entre dentes, benzendo-se: ao ouvido o seu nome:
— Credo! Sinhô parece capeta ! Raias de san- — Domingos Nunes!
gue nos olhos! Sinhô não tarda morrer! . . . Todo tremulo e reprimindo a respiração, despre-
Veva estava livre, mas em Domingos Nunes goú-se da janella e se recostou á parede como
era tão entranhado o sentimento daquella pro- temendo que uma alma do outro mundo o as-
priedade que não a tratava como tal. Depois, saltasse pelas costas. E que, na pressão do medo
ella mesma tinha, por instincto e habito, Ín- que sentira, não viu que fora elle mesmo quem
dole por demais servil; no dia 13 de Maio de pronunciara o próprio nome. Mas, como reinasse
1888, rejeitara a liberdade. Prezava-a menos do depois um silencio de pedra, começou a recupe-
que a honra e esta lhe fora extorquida por aquel- rar a tranquillidade, imaginando:
le homem cruel. Pouco se lhe dava agora pas- — Foi o vento . . .
sar o resto da vida sob o seu jugo. Por orgu- Teve então uma idéa que já o salvara em e-
lho e por despeito renegara aquella liberdade guaes conjunturas, para dissipar as sombras do
tardia. Os filhos que nasceram da sua deshonra e espirito: — abrir o seu bahú — porquanto na-
das suas dores, ella os vira partir, um a um, nos da o distrahia mais do que mirar e remirar, con-
balaios, em cargueiros, vendidos como vis ani- tar e recontar o dinheiro que rendera a venda
maes. A sede de fortuna fizera do seu senhor um dos seus filhos. Foi á canastra, tirou o bahú,
deshumano. E não fora só ella a victima; todas as approximou a candeia, espalhou sobre a cama os
suas companheiras de escravidão foram também pacotes embolorados de papel-moeda. E contou
sócias do mesmo infortúnio. Por tudo isso, por toda .mentalmente :
aquella deshonra e por toda aquella revolta que — Onze maços de cinco contos de reis!
sentia dentro d'alma, Veva sardonicamenle prefe- E accrescentou depois duma demora:
rira ficar junto do déspota, alimentando a espe- — Tudo preço de sangue ! . . .
rança de se vingar um dia. Vingar-se terrivel- Ngsse mesmo momento explodiu lá dentro a
mente, povoando de phanrasmas e assombrações sarabanda das almas perdidas. Gemidos, vozerio,
o fim da vida do velho fazendeiro. Ainda na pancadaria, ranger de ferros. Domingos Nunes,
execução do seu plano sinistro lá estava ella car- pallido de espanto, poz-se a rezar. O alarido ces-
comida pelos annos, emperrada pela dor do sou por uni instante. Foi quando elle ouviu no fundo
rheumatismo que lhe torturava os ossos. Sentia do grande compartimenío das escravas um arras-
dentro em si a morte! tar vagaroso de chinellas. E aquelles passos ca-
Também o velho parece que a percebia, a negra minhavam para elle, trazendo atravez da casa
parca, enganchada nos seus hombros. Naquella uma voz horrível a engrolar uma lingua estapa-
tarde vieram-lhe certos caprichos de quem vae fúrdia que elle não entendia. Pareceu-lhe conhe-
morrer. Havendo escutado o gemido cavo do cer a voz, que era de mulher, mas a linguagem
monjolo, a mourejar, pilando arroz, fel-o parar. como era extranha! devia vir do inferno...
Tendo visto pendurado na varanda o sino que Tendo atravessado o vasto salão, parou á sua
em outros tempos servira para reunir, e/n deter- porta, monologando muito tempo naquella mo-
minadas horas, o seu harem negro, desprendeu-o notonia desconcertada do sotaque africano. Se
d'alli a muito custo e o depositou a um canto. entrasse! Mas não entrou. Calou-se é voltou so-
Aquelle sino, ás vezes, alta noite começava a ba- bre os passos, ao arrastar socegado dos chinellos.
dalar tristemente. Nessas horas, Domingos Nunes Houve um silencio. Domingos Nunes tremia.:
A NOVELLA SEMANAL 91

Tomado de sobresãlto arrebanhou a dinheirania um esforço supremo e achegou o lume aos paco-
no bahú e metteu tudo no esconderijo. Depois, tes embolorados è sujos.
agarrando a'candeia, sahiu do quarto. Viu ainda Um clarão sangrento illuminou o quarto.
na escuridão um vulto, como sombra envolta na Domingos Nunes, inteiriçado no seu catre, ex-
sombra, emboccando pelo corredor. Não gritou tendendo os braços ao estalar dos ossos, os olhos
pela escrava: teria, medo da sua própria voz. A- arregalados para o tecto, resmungava numa an-
pegou-se mais á claridade que tinha nas mãos, ciã desesperada:
como se aquella luz mesquinha desmanchasse to- — Preço de sangue...
dos os espectros. Cobrou animo e avançou. Te-
S. Paulo, 1921. jOROE FALLEIROS
mendo sempre pelas costas, sorfdava, com os
olhos èsbugalhados, as trevas em redor. Chega-
do ao quarto de Veva, fez um esforço e chamou:
— Veva!
— Sinhô . . .
*' — Vem para o meu^ quarto . . . traz a tua cama.
A negra, temerosa, agarrou o colchão de palha
e seguiu o seu senhor. Em chegando, extendeu
a enxerga no assoalho e deitou-se.
— Veva!
os vícios DELLES...
Quatro horas da tarde. Izidora acaba de ser-
— Sinhô . . . vir chá com bolos ás suas amigas Magdale-
— Eu vou morrer ? na, Luciana e Martha. O gato preto Nhônliô
persegue no chão as sombras movediças da
— Não morre, não, s i n h ô . . . trepadeira da janella, de folhas chatas como
Domingos Nunes estirou o corpo sobre o lei1- borboletas. As senhoras palestram.
to, ao estalar dos ossos, como um cadáver. Rei- Izidora — Qual é o vicio que as mulheres
nou a solidão. Fora a água da bica querelava sem perdoam com mais facilidade aos seus maridos ?
descontinuar, despejando-se no poço do monjolo. Luciana — O do fumo.
À noite já ia muito adiantada quando um chama- Martha — Dizes isso porque és casada com
do roufenho interrompeu o silencio: meu irmão, fumante tão incorjrigivel que nem pa-
— Veva! ra dormir tira o charuto da bocca. Também
Ella dormia. Chamado mais forte: por isso está ficando com o bigode manchado,
,. — Escrava... Escrava . . . crestado, e com os dentes amarellos, como as te-
— Sinhô... clas de um piano martelado por muitas gerações.
— Vae aquella canastra, no canto. Se soffresses do fígado, como eu ou não o bei-
Ella cumpriu a ordem, Ievantando-se devagar e jadas nunca na bocca, ou já terias morrido. O
recéiosa. tabaco é um veneno, de uso grosseiro e conse-
— Arranca fora o b a h ú . . . Traz a candeia. qüências terríveis; basta lembrar que o cancro
'• A negra se approximou com o bahú e a candeia. na lingua é quasi sempre produzido por elle. De
mais a mais dispendioso, porque o havana é um
í — Abre!
luxo caro, que arruina a bolsa e o organismo, de
Escancarou o bahú, apalermada ao ver tanta uma assentada. Não era atoa que Alfonse Karr
riqueza de papel pardacento... af firmava: . .
"~ Põe no chão e ateia fogo ! " Fumer est un des plaisirs les plus betes et le
;> E elle accrescentou como uma idéa fixa: plus couteux."
— Tudo preço de sangue... Não sei si é dos mais estúpidos, mas é o mais
A velha africana começou a chorar. Lembrou- constante de' todos os vicios, porque é de todas
se dos filhos, lembrou-se de t u d o . . . E soluçava: as horas, e o que mais rouba a energia e a in-
!,,, — Não queime, nãofsinhô, não queime, não... dependência dos homens. Um fumante sem ta-
Sf— Obedece! baco é um homem inútil. Roubem-lhe-a cigar-
* A esse mando imperioso, Genoveva dobrou a reira e roubar-lhe-ão as idéias e a disposição do
cerviz. Numa longa obediência e numa longa trabalho. O fumo é um vicio que escravisa, que
servidão habituára-se a servir e obedecer. Fez nullifica, que toma para si todas as faculdades
92 A NOVELLA SEMANAL

productivas dos indivíduos. Senão, vocês reparem: Luciana — Qual reacções! Nos intervallos de
tal ou tal mathematico, e isto para citar homens descanso o jogador não pensa senão em recome-
affeitos a abstracçõés, sente-se positivamente inca- çar o jogo; vive assim numa perenne anciedade,
paz de resolver problemas, que em outras cir- devorado por ambições, gasto por noitadas con-
cumstancias lhe pareceriam fáceis, se, ao metter a secutivas e toda a espécie de desordens physicas
mão no bolso á cata do cigarrinho, verificar que e moraes.
o deixou em casa, a uns tantos kilometros de O jogador é quasi sempre fraco de caracter,
distancia. A essa catastrophe o cérebro nega-se a supersticioso, desconfiado, casmurro . . . Para elle,
qualquer trabalho digno. O despotismo do cigar- gloria, família, trabalho, amor, tudo se dilue
ro é mil vezes maior que o do czar de todas nas duas cores dos quatro naipes de um baralho
as Russias, porque elle escravisa e submette á e na rapidez dos minutos na roleta do azar'...
inacção mais desesperadora o próprio pensamento ! Felizmente, o marido aqui de Martha é apenas
Ha escriptores que só produzem, ao sabor e ao um dilettanti, não é um profissional; entretanto,
atordoamento de cigarros consecutivos; o cigar- supponho que ella se deva aborrecer, porque ne-
ro entra assim a fazer parte integrante do seu cessariamente elle preferirá ir jogar o poker no
ser moral. Ah ! ao cigarro é que eu não perdôo seu club a leval-a aos espectaculos, ás recepções
nada. Elle é a expressão reles, malcriada, de vi- das amigas ou a lêr alto para ella ouvir, em ca-
cio barato, uma coisa Ínfima, que entrou para as sa, os romances do Eça ou do Machado de Assis...
rodas superiores, como certas criadas de servir A mulher de um jogador aferrado é uma vic-
entram para a aristocracia — levadas pelo capri- tima ignorada no silencio das noites, curtindo
cho de alguns homens de gostos depravados. saudades do passado e sustos pelo porvir, sempre
Não conheço nada mais petulante do que um com medo de vêr entrar o marido em casa ar-
cigarro, e quanto mais ordinário é, mais se ac- ruinado ou louco, ,quándo não volte cadáver, nos
centua nelle essa qualidade aggressiva. Vocês braços de parceiros mais felizes...
talvez não acreditem, mas a verdade é que cada Se o fumo estraga a saúde em picadellas len-
vez que eu encontro um collegial meninote de tas de alfinetes, que transformam o figado e o
cigarrinho na bocca, sinto vontade de cuspir; e baço em colchões velhos e informes, o jogo muti-
notem que eu não faço tal coisa senão por en- la-a de pressa a machadadas fundas e bem vibradas.
jôo ou por doença. Esse acto é, portanto, de- E' uma paixão com sopro de vendaval, que tu-
terminado em mim por uma impressão de repug- do leva diante de si, essa do jogo e a que mais
nância e de vexame, que não sei reprimir. E alheia o homem da sua família e dos seus deve-
é talvez porque de todos os vicios esse é o mais r e s . . . Ante a tentação de um tapete verde — a
generalizado e de que se abusa com mais desfa- honra é um espectro de papelão e o amor uma
çatez, que eu tanto o abomino. Felizmente, meu phantasia de crianças... De sério e de i interes-
marido não fuma. Quando o beijo é como se sante no mundo só ha os dados do a z a r . . .
beijasse uma criança. Seria esse o vicio que eu menos perdoasse a
Luciana — Deus me livre. Que horror! um homem, se ainda não houvesse outro peor...
Martha — Eu não lhe perdoaria a bocca amar- Izidora — As mulheres?
ga, os pellos do bigode queimados, o hálito es- Luciana —- Não! O vinho.
tragado, as unhas côr de â m b a r . . . Martha — Esse é torpe.
Magdalena —- Pois eu gosto do cheiro do ta- Magdalena — E' bestial. A inconsciencia da
baco, e para mim um homem que não fuma bebedeira dá á physionomia do homem mais ín-,
parece-me incompleto . . . Mas eu sempre quereria telligente e mais fino uma mascara de porco im-
que me explicassem por que, sendo nós mais fracas, mundo. Haverá amor de mulher que resista a
segundo a affirmação universal, não nos deixamos tão rude prova ?
dominar pelos vicios, como os homens fortes; Acreditará alguém qne a esposa de um alcoó-
porque mesmo o teu, Martha, se não fumajoga... lico possa ter por elle alguma espécie de consi-
Martha — Infelizmente . . . Mas vejam como deração, sem a qual não existe a felicidade na
são as mulheres: como alludi ao vicio do marido família ?
delia, ella não quiz deixar na sombra o do meu... Eu não. E custa-me até imaginar que um ho-
Magdalena — Sabe que isso não é segredo mem culto se entregue ao vicio da embriaguez.
para nós... Mas ahi está: de todos os vicios, o do O vinho é um vicio de taberna, de ruas escusas
jogo é o único intellectual; e, como é'sujeito a perí- um vLio execrável, de ignorantes e de brutos...
odos de repouso, favorece o espirito para reacções. Izidom — Entretanto... f;
A NOVELLA SEMANAL 93

Magdalena — Entretanto, bem o sei, ha mui- bém aquelle que uma esposa, embora diga o
tos homens educados, responsáveis muitas vezes contrario, menos perdoa . . .
por um nome de família bem considerado na Martha — Pois olha, filha, para mim, de to-
sociedade, que não resistem a ir tomar com fre- dos os vicios, esse é o único comprehensivel . . .
qüência os seus copinhos de wisky, quando não Luciana — Eu ainda digo mais: é o único
de paraty, á beira dos balcões, esquecendo-se, no desculpavel.
convívio das garrafas, da própria dignidade, di- Magdalena — Sim, nos maridos das outras...
zendo asneiras, chorando como um dia de chuva,
JULIA LOPES DE ALMEIDA
rindo como palhaços ou clamando como posses-
sos. A falta dé compostura dos bebedos offende
até as paredes. Não ha nada mais ridículo nem
mais repugnante., Felizmente, o meu marido não
bebe senão á comida : mas então, ai de todo o
pessoal da casa se lhe não puzerem junto do
prato a sua garrafa de Bordeaux!
Martha — p meu também; e igualmente não
dispensa o seu cálice de cognac ao café. Mesmo CLARINHA DAS RENDAS
que chova a cântaros, não havendo cognac em (NOVELLA SERTANEJA)
casa tenho de o mandar buscar ... E' uma maçada ! I
Luciana — O meu de vinho gosta pouco; mas No oitão de taipa do casebre — todo em re-
não passa sem cerveja, pelo menos três garrafas boco, com o tecto de telhas vermelhas — risca-
por dia.. . vam-se, trifurcando-se, veredas abertas entre ar-
Martha — O h ! bustos das catingas, duas em aclive demandando
Magdalena — Oh! a estrada de rodagem, e a outra, em descida,
Luciana — Uma ao almoço, outra ao jantar e buscando a margem esquerda do rio que corria
outra á noite. grosso, barrento, invernoso, a arrast?r os florões
Magdalena — Não deves consentir nesse abu- verdes das "baronezas" catadupando mais á ju-
so, elle assim ficará obeso ! sante, em lençóes d'agua, no parapeito da repre-
Luciana — Oh! minha querida, que mulher sa recamado de limo.
terá prestigio bastante para impedir ao marido & Na encruzilhada dos atalhos, para onde dava a
satisfação dos seus desejos E tu, Izidora, que nós sahida, ao fim da tarde, Maria Clara,—Clarinha
dizes de teu marido ? elle não bebe ? das rendas—vinha sentar-se perto da porta, na so-
Izidora — Não; meu marido não bebe senão leira de páo, pondo-se a desenhar no risco da almo-
água . . . fada a alva e linda renda do seu casamento, traçan-
Martha — Faz elle muito bem. Parece-me que do entre Os dedos hábeis, os bilros tôscós de
também nunca o vi fumar . . . madeira.
Izidora — Não; meu marido não fuma. Era a costumada tarefa quando já a roupa ti-
Luciana — Joga? nha sido colhida dos coradouros e a criação aga-
Izidora — De longe em longe, uma ou outra salharã-se nos poleiros, com o sol no occaso.
paciência, commigo . . . Mais tarde, quando escurecia, o pae, o tio Zéca,
Magdalena — Mas nesse caso teu marido é estafado da labuta, vinha também descançar ali,
um poço de virtudes ? E' um monstro ! estirando-se na relvâ, fincando no solo o coto-
Izidora — Vais vêr: como parece forçoso que vello pafa apoiar numa das mãos, aberta, a ca-
todo o homem se submetta á humilhante contin- beça meio encanecida velada pelo esfiapado cha-
gência de um vicio, meu marido não pôde resis- péo de carnaúba.
tir ao do amor. A candeia de kerozene accesa no casebre, pen-
As mulheres fascinam-o, como os jacarés ás dente de um caibro, inflectindq uma restea de
crianças. Elle vive sempre alheiado de mim, no luz avermelhada pelo rectangulo da porta, dava
deleite das suas paixões de aluguel ou de em- ainda claridade aos olhos garços de Maria , Clara
préstimo, e, o que lhes posso afiançar, é que isso para accrescer o seu delicado labor de rendeira.
me occasiona as mais dolorosas revoltas de amor Quando as estrellas vinham fazer a sua / ronda
próprio, e me dá a certeza de que, embora o vi- nos céos, Raphael, no passo bálancead^ de ser-
cio das mulheres seja entre todos os vicios o de tanejo moço, chegava, no verdor alacre dos seus
mais curta duracãn na vida de um homem, é tam- dezenove annos quasi feitos, na alvorotante fe-
94 A NOVELLA SEMANAL

licidade da promettida que o acolhia, com a sin- fiz á capital. Andava por ahi nos meus vinte
gela affeição dos rústicos, mostrando-lhe, antes dois annos bem tirados no matto. Nesse tempo
de tudo, o avanço feito na renda pelo dorso de o vapor nem inda chegava cá por perto. A gente
papelão da almofada labyrintada de alfinetes em ia nos lombos dos cavallos, serra para baixo, dor-
riste-renda que era como que o laço a avisinhal- mindo nos ranchos ou nas catingas até topar com
os dia a dia das nupcias visionadas. os trilhos do "vapor". Três dias bem puxados
Raphael, de estatura meã, grosso, thorax largo num bandão de léguas. Quando meus olhos ca-
a medir os hombros abertos, era bem moreno a hiram*em riba do Recife, estava assombrado, ima-
realçar os olhos azulados, uns olhos sempre a re- ginem lá vocês o que aquillo é de boniteza, com
flectirem um espirito que parecia encarcerado na- um rio largo, com umas pontes grandes cheias
quella formosa paysagem de sertão. O trabalho, de luzinhas, com umas casas ricas de gente apes-
porém, o não apavorava: os seus dias elle os soada. E o mar!... Só para ver aquelle mundo
vencia a guiar de aguilhão em punho, um carro d'agua que nem tem fim, vale a fadiga do ca-
de lenha, do brejo para as povoações servidas minho... Aquillo ronca, espuma, fica de todas as
pela via férrea, estradas afora, fustigando as jun- cores que só onça acuada. Um punhado de ve-
tas de bois encangadas, embalado pelo ranger linhas anda por ali que até parecem estar no
monótono dos eixos apertados... chão: são as barcaças, como elles chamam. Nas
Em chegando acocorava-se ao pé da rapariga, praias as ondas se arrebentam muito brancas co-
e os três iam discorrendo do que fora feito na- mo a roupa enxuga ao sol de Nosso Senhor. Lá
quelle dia, cujo poente se amortalhava numa no fundo, onde o mar encontra o céo, passam
franja roxa, por traz dos montes empardecidos, os bichões, uns brutos de vapores, com umas va-
lá longe, realçando a côr de sangue dos cortes ras altas cheias de bandeiras, com as fumaças
abertos nos flancos das serras por onde, num relâm- compridas; a perder de vista. Que bom ha de
pago, corria o trem, entre torvelinhos de fumaça. ser a gente ir por ali vêr os outros mundos!...
Os dois haviam se promettido ha um punhado Raphael e a noiva escutavam attentos a voz
de mezes; casar-se-iam pelo S. João. Bem perto cadenciada do velho. Ella, curiosa, poréni sem
vinha, pois ia entrar, cinco dias mais, o mez de maiores impulsos de vontade em deixar o seu
Maria. Continuariam a morar juntos, ali, conju- rincão de terra, contente de sua sorte, sem lar-
gando parcos haveres, num gesto prudente de gas aspirações. O rapaz ficara a repassar na me-
solidariedade domestica e econômica. mória as phrases do tio Zéca, cahindo numa sen-
Raphael tinha assegurado o seu ganho de se- sação de desejo mesclada a um véo de melan-.
mana ; o tio Zéca cuidava das suas roças de mi- cholia, mal ouvira falar do mar, esse gigante fur-
lho, feijão, mandioca, trabalhando também em um ta-côres, estrada sem termo a conduzir, os ho-
engenhoso iôrno na feitura de pequenos pilões, mens ás terras,mais distantes e fascinadoras,mar
vasos para pó de arroz, artefaclos curiosos ein ma- de que falavam embasbacados todos os sertane-
deira tenra e alva, indo aos sabbados e ás quar- jos vindos do littoral.
tas vender na feira, um quarto de légua adiante, Elle crescera na choupana de uns tios porque
os seus productos e as suas colheitas. Maria os pães haviam morrido das bexigas deixando-o
Clara cuidava do amanho da casa, descia ao rio bem pequeno. O tio vivera por annos na costa;
lavar as roupas, fazendo ainda as rendas da terra embarcara em barcaças, fizera longas rotas pelo
que eiam a cubiça, o encanto das famílias vera- norte, a negocio, e dessa vida marinha ficara-
neando na cidade e que iam ao povoado em lhe a necessária dose de recordações para só cui-
passeios longos sob o sol forte para criar sangue dar de falar delia nos serões do matto, na roda
novo. Da mãe, Maria Clara nunca vira o rosto. dos matutos, serões que o sobrinho, ainda nos
Naquella noute o tio Zéca estava numa das seus oito annos, ouvia curioso e sacudido de in-
suas veias de expansão, não raras, Deus louva- vejas. Quando se tornara rapazinho, a luta pela
do. Elle as chamava, rindo, de "momentos de bocca, o trabalho concorreram para esquecer uni
taramella''. Essa loquacidade girava sempre em pouco os sonhos da infância agora despertos, es-
redor de cousas do passado, saudades de ancião, timulados pelo sangue ardente da puberdade, es-
façanhas de moço, reflexo de saúde d'alma, de cutando o tio Zéca, o pae da sua enamorada. 0
contenteza de plantador que via promissora a mar, para elle, era a ribalta magestosa de todos
apanha e farta a invernia. os gozos, de todas as phantasticas maravilhas do
— Dos dias da minha vida neste mundo —- mundo: a felicidade se lhe afigurava pertencera
escutem lá — o melhor pedaço foi a ida que eu auem se fosse oceano afora, no dorso das vagas.:
A NOVELLA SEMANAL 95

Quantos menos rudes pensam assim também! lheres vinham buscar ou levavam água em potes
No correr da noute poucas palavras mais bal- de barro equilibrados nas cabeças. Perto da
buciou: as bastantes para acudir ás interrogações ponte o gado descia para se desalterar de focí-
da noiva. Mais cedo que sempre ergueu-se, re- uho baixado e ávido.
parou o tempo na marcha das estrellas, deu os Maria Clara tinha o seu canto predilecto, um-i
"boas noutes" e foi-se atalho acima, gingando, pouco afastada de certas companheiras* tagarel-
a principio com rumo á casa, depois enveredan- las ou doidivanas, porque ali as havia de toda a
do pelas catingas a passeio, emquanto 'Maria casta, desde as bem vividas com seus maridos ou
Clara, não de todo calma, reentrava no casebre •'amigos" ás levianas, as que se gabavam de per-
carregando a almofada, deixando o pae a co- turbar o socego dos casaes, com as seducções nos
chilar a costumada meia hora antes de se aga- sambas, nos "bois", na promiscuidade das catin-
zalhar nas dobras da rede sustida pelos punhos gas a horas mortas... Bem deixara de falar com
nos caibros da sala de janta. a Carlota, uma mulatinha, amaneirada sem re-
cato, cujo pae morrera do "ar"—de uma conges-
fe II tão—por encontral-a certa* noute em peccaminoso
O outro dia, um sabbado, escuro ainda, perto colloquio com o marido da Amélia, um bebedo
do amanhecer, despertado pelo hymno dos poleiros, habitual, conhecido por espancar a mulher que
tio Zéca ao peso das suas provisões de feijão e era tysica.
farinha, puzera-se em caminho para a feira, afim Na beira do rio, Maria Clara arregaçou as
de lá chegar com o raiar do dia, ganhando mangas do casaco, desnudando os braços até os
tempo para se installar e estender o toldo da sua hombros, prendeu entre as coxas a saia de chita
barraca. azul, erguendo-a ao meio das pernas, e de cor
Mal clareara, Maria Clara sahiu para o quintal coras, começou a ensaboar uma velha camiseta
espalhando ás mancheias os grãos louros de mi- de mo rim.
lho para as gallinhas que a enrodilhavam coco- A filha do tio Zéca na pujança sertaneja dos
ricando, sacudindo ainda as azas, beliscando o dezeseis estios, acaboclada, de olhos garços,, ma-
chão, chamando as longas ninhadas, os lindos e deixas escorridas e retintas, na elegância despre-
vivos pintinhos de plumagem ambarina, saltitan- tenciosa das naturaes do sertão, menos bonita que
tes, piando, piando muito... Todo o terreiro al- sympathica, que o era deveras, tivera do pae a
vorotava-se com a madrugada, uma friorenta e educação rudemente austera, o revestimento mo-
branca madrugada de Abril, com o céo claro azul, ral, a coragem espiritual dos velhos lares. Em
os serros esfumaçados de nevoa, as arvores espa- menina chegará a aprender a ler com uma se-
nejando-se voluptuosamente, e o sol morno a esprei- nhora da cidade, casada com o collector, onde es-
tar nos cabeços verdes das montanhas do levante. tivera a servir na arrumação. D'ahi uma certa
Depois de cuidar da criação, a rapariga abra- ascendência sobre os demais moradores do po-
çada a uma trouxa de roupa, desceu o atalho voado, a quem lia cartas recebidas ou escrevia
ainda rociado de orvalho, por entre os arbustos missivas encommendadas.
viçosos, cheirando a velame, emparelhando-se com Em meio da tarefa, alvas peças de roupas es-
outras mulheres que iam de rumo igual, cru- tendidas no coradoiro do capim, esquentando ao
zando tropeiros a pé e a cavallo, em demanda sol, Raphael surgiu de uma azinhaga approxi-
da feira, dando-lhes bons dias, até chegar á orla mando-se da rapariga qüe o acolheu admirada
do rio avolumado e barrento. pondo-se de pé, levando as mãos á cintura:
Nas margens muitas lavadeiras já installadas — V. por aqui a esta hora? Está doente?
zurziam as roupas ensaboadas de encontro aos Não foi trabalhar?
batedoiros de pedra negra e lisa: umas tendo — Não. N^m preguei olho... Passei a noite
trazido os filhos pequeninos que dormiam semi- rondando fora...
nus, sobre o capim, com as barrigas dilatadas, — E por modo o que? Que tem V. na ca-
para o ar. Dos banheiros de palha de dende- beça, homem? Botaram feitiço em cima? Desde
seiros vinha o ruido dos banhistas a chapinha- hontem que eu reparei o seu geito exquisito...
rem n'agua, quando por vezes o olhar malicioso Que tem V. no coração?
e indiscreto não via, nadando fora, um dorso fe- — Nem sei; não ando bom...
minino nu ou o roliço de uma perna amorenada — Isso é rabo de saia, Raphael. V. já não me
a debater-se gostosamente, no frio do banho. quer bem. Está mudado...
Abaixo e acima, pelos caminhos, outras mu- — Lá está V. com choramingas, mulher. En-
96 A NOVELLA SEMANAL

xugue esses olhos. Eu não sinto nada. Ouça — Até a volta, Clarinha; reze por mim em-
lá: eu preciso é fazer uma ida na praça. Uns quanto estiver longe.
negócios... Deram-se as mãos. Nem mais uma palavra,
— Que negócios, Raphael! V. está assanhado nem um gesto, nem um beijo.
com as conversas de hontem de meu pae. Eu Raphael desprendeu-se, olhou-a com ternura,
bem maldei isto. subiu a vereda tufada de flores silvestres, lenta-
— Pois é isto mesmo. Eu vou é ver o mar. mente, volvendo o rosto três ou quatro vezes
Esse mundão d'agua que chega perto do céo, até sumir-se na fronde larga de um umbuzeiro.
feito os urubus, bole cá commigo. Si eu não Maria Clara, calcando a pena, seguiu-o com a
fôr ver eu morro... vista, amparada na porta, numa attitude de pun-
— Santo Deus! Que foi fallar meu pae! V.' gente tristeza.
no Recife homem! E si V. não volta? Que ha s Quando reentrou ém casa, angustiada, encfu-
de ser de mim! Tanta cousa bonita por aquel- zou os braços na parede, enterrou o rosto entre
las terras!... Quem se lembra mais dos que ficam elles e desatou a chorar...
na tristeza destes mattos! V. não vá, Raphael...
Maria Clara prenden-lhe as mãos num assomo III
de irmã mais velha, actynselhadora. O rapaz olha- Raphael já se fora ha bem sessenta soes. 0
va-a commovido, vacillante, mas scintillando nos mez de Maria passava e a cada tarde Maria Clara
olhos o desejo de infância renascido, indomável, ia, na graça natural do seu vestido branco, á
forte, o seu desejo de descer a serra como os nave enflorada da matriz, na cidade, entoar com
outros, ver o mundo, ver o mar... as raparigas da terra as doces litanias, os enter-
— Escuta, Clarinha. É uma semana que eu necidos cânticos mysticos de agrado á Mãe Virgem,
fico na praça. Eu lhe juro. Volto sem tar- toda linda, toda vistosa no seu véo recamado de
dança. Trago umas cousas lindas para o seu en- pequeninas estrellas côr de ouro, aureolada de
xoval... O tempo corre como os veados: quando V. luz tremula de velinhas coloridas l e de flores
me sonhar por lá, eu já venho na ladeira de casa... cheias de viço.
A rapariga traduziu a decisão do noivo, aquella Como sabia ler, era quem, nos degráos atapetados
aspiração que elle realisaria tarde ou cedo, e si do altar, tirava no breviario a toada e os versos.
havia de ser depois, casado, antes fosse agora, Na piedade de suas orações ia sempre envolto
em tudo e por tudo. imaginariamente o desejo, que os lábios tímidos
— Si é tanto do seu gosto, eu não me im- nem enunciavam, da volta do noivo, a todo ins-
porto. Fico é morrendo de saudade. Vá com a tante lembrado, perdido lá no Recife, essa terra
companhia de Nossa Senhora e volte logo. E linda, fascinadora aos olhos dos matutos.
para quando essa viagem ? • O pae, nas suas noutes de taramella, contava-
— Para hoje mesmo. Eu vim conversar com lhe tanta cousa bonita!
V. por isto. O trem chega na estação perto do E ha tanta gente ruim para virar a cabeça dos
meio dia ; vou mais o Antônio das Neves. O bons! Bem lhe segredava o coração na hora da
Joãosinho fica no carro fazendo o meu trabalho. despedida, fitando o seu Raphael a dobrar a curva
Ambos silenciaram uns minutos. Raphael apa? da catinga, perto do umbuzeiro grande. Era
nhara do chão uns gravetos e quebrava-os ner- para nunca mais... No entanto a esperança es-
vosamente entre os dedos; Maria Clara entrou- voaçava-lhe de novo na cabeça. Talvez tornasse.
xára a roupa apertando o nó; desceu as mangas Quem sabe ? Logo que chegara do Recife, oito
do casaco, soltou a saia, poz a trouxa á cabeça. dias depois da partida, o Antônio das Neves trou-
Puzeram-se a caminho, cabisbaixos, galgando xera-lhe um recado do noivo : ficava bom e con-
a rampa do rio, retomando o atalho de casa. tente ; estava encantado pelo mar, pela fita si-
No oitão estacaram. nuosa e loura das praias, pela vida agitada dos
Ella pousou a mão direita no hombro do ra- cáes, olhando os barcos veleiros a acostarem ou
paz, fitou-o seria e disse: os bellos transatlânticos a se sumirem no horizonte
— Raphael, vá com Deus, e se lembre de mim. remoto. Mandara-lhe, entre outros mimos sin-
Si V. ficar por lá é muito ruim... Está ouvindo? gelos, uma caixinha atulhada de mariscos e búzios
Naquelle tom rústico e franco da sertaneja, cheirando á maresia, ainda cheios de areia fina
mixto de carinho e ralho, silhuetava-se a alma sin- e setinosa que é a almofada onde as vagas te-
cera da rapariga, a nitida expressão do seu sen- cem as suas rendas. Voltaria naquella semana:
tir e do seu affecto. era a sua promessa.
A NOVELLA SEMANAL 9T
Depois, nem mais um recado, nem mais uma radas. Alguns mocambos se toucavam de ban-
noticia. O Antônio das Neves, em viagens sub- deirolas ou de balõesinhos em fieiras, multicô-
sequentes, não vira o rapaz na capital. res, vistosos.
Vezes havia em que a rapariga tinha frêmitos Anoutecendo de todo as fogueiras crépjtavam,
de tomar luto pelo promettido, pois ao seu co- esbrazeadas, espiralando chammas, estalidando>
ração lealdoso só com a morte se podia justifi- mandando aos céos muito limpos e estrellados,
car o esquecimento da jura feita. mensagens de fumo pardo, em rolos escuros co-
Assim desfilavam os dias amáros e triste. Ma- mo bandos de corvos a subirem.
ria Clara ia-os vencendo na faina da lavagem, ao Todos os atalhos regorgitavam: ia e vinha a
pé do rio, arredia de todos, melancholica. A' gente do sertão de roupa aceiada e cara alegre,
noute, por força de habito ou por inspiração da abaixo e acima; uns no calcante á procura de
esperança, botava a almofada na porta e reto- um casebre amigo onde se lhes prom?ttia um
mava a tarefa de rendeira, trocando os bilros, samba; outros nos dorsos das montadas deman-
fincando alfinetes, a desenhar com os fios alvos dando, alguns quartos de léguas adiante, a fa-
da linha a formosa renda do seu noivado. Es- zenda de um compadre meio abastado de nome
tava linda e crescida! Iniciara a vigésima vara e do santo festejado.
emquanto trabalhava, os seus.sonhos de ventura Os tiros das ronqueiras simultâneos já se fa-
se iam dispersando como as nuvens nos céos... ziam freqüentes e nas ruas' os busca-pés numa
Quando o tio Zeca vinha também repousar na serpe de fogo garatujavam luminosamente o es-
grama, sentindo remorsos de haver despertado o paço, zigzagueando, rodopiando no chão, cor-
desejo do rapaz em descer a serra, punha-se a rendo num rastro avermelhado para por fim es-
consolal-a, animando-a, simulando motivos para tourar com força de encontro a uma soleira ou ao
desculpar o retardo delle. pé de uma arvore, quando não enfiavam, entre gri-
— Nas terras grandes ha muito o que a gente tos e susto dos moradores, por uma porta aberta.
ver, menina, e em que labutar... Quem sabe si Creanças, á solta, cercavam as fogueiras, dandcn
o Raphael. não está a fazer umas patacas,? se as mãos, cirandando a entoar cantigas infan-
— Mas, meu pae, se é assim, que custava a tis, populares.
elle botar no correio um recado para nós? Acaso Maria,Clara, na tristeza de sempre, depois do
não sabe que eu estou a morrer de saudades? pae haver ateado a sua fogueira, foi vagarosa-
— Ainda não é tempo para afflição nem choro, mente subindo a vereda do oitão até chegar ao alto,
rapariga. Muito defunto já tem tornado vivo do na estrada, de onde os olhos alcançavam a ci-
cemitério... Tem confiança na Virgem. O ra- dade, em baixo fumaçando.
paz d'aqui a pouco está por aqui. O coração ' Era o Alto da Balança. A rapariga encostou-
me diz... se no umbuzeiro onde se encobriu, no dia da par-
— Deus lhe ouça, meu pae... tida, o seu noivo.
Maria Clara começava a chorar e o velho, co- A cidade era toda um facho de chammas. As,
cando os cabellos meio embranquecidos, calava- artérias delineavam-se pelos renques luminosos das
s,e, roido de pena, matutando. fogueiras, desde a rua da feira, rectilinea, larga
Uma1 vez, de repente, foi ao Recife. Já na es- faixa, até os caminhos riscados nas vertentes dos
tação mandou avisar a filha. Correram dez dias: montes, trepando as serras ou procurando os
quando regressou vinha num desalento terrível. brejos. As limalhas caricaturavam no alto bi-
Nada soubera e nem uma pegada do n oivo da ra- zarrias geométricas. A luz das candeias tremia
pariga. Redobraram-se os soffrimentos de ambos. em todas as janellas e portas dos mocambos e
E assim Junho entrou, chegando a noute rui- das casas ricas, illuminando-se a matriz na pea- .
dosa de S. João. nha de sua pequena collina. Até o rio reflectia
Pelos caminhos, fronteiros ás palhoças, os gros- arabescos igneos das fogueiras ateadas nas mar-
sos toros de madeira, entrecruzados, alteiavam-se gens povoadas.
para arderem mais tarde, e de quando em vez, Sertanejos, passando, saudavam á Maria Ciara
embora cedo, uma ronqueira espoucava ao longe. com um "Deus nosso Senhor vos dê Q desejado" •
Nos lares, sobre os fogareiros, mechia-se a cart- e as moçoilas, em branco, tafues, com os ca-
gica ou assavam-se as espigas de milho verde, bellos atados em fitas berrantes, diziam-lhe phra-
muito tenras, doces, ha pouco desnudadas das ses de carinho e esperança, porque todos, légua
túnicas verde^brancas que jaziam pelo chão de em derred©r, sabiam de desdita da "Clarinha das.
niassapé ou tijolo de envolta ás cabelleiras alou- rendas".
9S A NOVELLA SEMANAL

4|f^poiada no tronco do umbuzeiro, á meia som- Fevereiro corria sem a promessa de um agua-
bra do crescente, ella, angustiadamente, espiando ceiro. A feira era escassa, as verduras raras, os
a ventura alheia que passava nos pares de na- fructos pouco vistos e caros.
morados, a cochicharem, felizes, quedou ali até O sol rutilo, flammejante, ardia, esmaltando os
bem tarde, com medo de volver á casa naquella serros, resequindo as catingas, e as noutes eram
noute, a rever o canto onde, ainda no outro abafadas, mornas.
anuo, na mesma data, Raphael, na sua fatiota Tio Zéca, preoccupado, via a sua colheita per-
nova de brim riscado, trincando uns grãos de dida, os dias vindouros amargos, emquanto a fi-
milho assado, num gesto de timidez vencida, in- lha numa crescente penúria moral, enfraquecida,
dagara-lhe de brusco: Você quer ser minha mu'- tossindo, embora assim agarrada ao trabalho.
ler, Clarinha ? De noute, no serão do Costume, pouco con-
Na sua alma casta de matuta não vibrava o versavam. De tempos para cá o Joãosinho, que
desespero do homem que se fora, o ciúme da substituirá o Raphael no carro vinha também ta-
posse.furtada, a idéia sensual de que o noivo an- garellar um pouco ali, posto que nem sempre
dasse aos galanteios com outras mulheres, não. lhe respondessem, tão pensaíivos andavam pae e
O que a deprimia, a estiolava, era a dor de ser filha.
esquecida, a ingratidão de um ente a quern ama- Era um rapazote de dezesete annos, muito rús-
ra depois do pae, a surpresa da fuga á fé jurada, tico, feio ptfrém ungido de uma bondade extre-
míraduzivel ao seu espirito que tinha uma pro- ma : uma alma boa. A' força de vir por ali, á
messa como um pacto para toda a vida. força de ver penar a rapariga, foi-lhe querendo
Era somente o seu espirito a penar:—á fêmea bem, sentindo até que já lhe queria bem de mais.
sobravam o trabalho e o sentimento paia refrear Talvez tivesse ímpetos de dizer-lh'o ; retinha-o a
o instincto. Demais creada na natureza, sem ar- imagem leal do companheiro partido e também
rebiques de maldade, via a maternidade dos ani- a sua timidez innata.
maes, conhecia-lhes os amplexos fecundos para Uma vez afoitara-se a balbuciar, encontrando
comprehender, sem jaca de impureza, o seu de- Maria Clara a sós:
ver de mulher. — E Você não se casa mais, Clarinha ?
Emmagrecia ; as cores desmaiavam com as suas A rapariga olhou-o pasmada, viu-lhe a expressão
esperanças. Os lábios iam esquecendo o "rictus" e só então entendeu o que ia pelo coração do
gracioso do riso, o riso lindo de quem ri sem rapaz, sem poder dar remédio.
ironia, sem fel. Raphael era a idéia fixa, um — Emquanto V. me avistar a fazer esta renda,
Raphael cheio de brumas, por cujo bem ella fre- Joãosinho, ninguém tem direito de me falar nisto...
mia, por quem nutria tantos cuidados quantos eram Esta renda me amarra a Raphael. Ouviu?
os seus votos de que voltasse. Embora olvidada, Nunca mais se falaram a respeito. A renda
talvez fosse feliz si lhe dissessem com segurança crescia. Maria Clara não a queria vender: a-
que elle estava bom e contente naquella noute arden- figurava-se-lhe que o fazendo partia o ultimo
te de S. João, em outras plagas, em outros lares... élo da esperança -mantida na volta do noivo, de
Só desceu quando o pae, intranquillo, a foi quem nem uma nova se soubera até então. De-
buscar na estrada, reprehendendo-a com ternura certo embarcara e por lá, em climas estranhos,
rude de sertanejo, pelo sereno apanhado, pela frieza morrera. A's vezes pensava assim, para em se-
da hora, ella andando sempre a tossir e espirrando. guida ter maior fé num regresso.
Os estrondos das ronqueiras alternavam com A sêcca ia queimando.
a toada monótona dos sambas. Da cidade ba- Numa tarde, tarde de agonia e canicula, ao re-
lões alteiavam-se, claros, tangidos pelo vento. colher do sol entre nuvens adamascadas, ensan-
Tio Zéca, em casa, sentou-se á porta, fumando güentando os flancos das montanhas crestadas
cachimbo, mirando, abstracto, as estrellas perto pela estiagem, Maria Clara, num desalento in-
do horizonte. coercivel, numa crise nostálgica, tão de sua fei-
Maria Clara, num tamborete, ao pé da nua ção de tempos para cá, viera continuar a sua ta-
mesa de pinho, rezava num terço de contas refa de rendeira, á porta de casa, emquanto o
azues... pae andava ainda pela feira.
IV A's suas attribulações de abandonada, ás suas
Foi-se o inverno e veio o verão cruel, adusto, saudades viera juntar-se maior cuidado ao ver o
queimando as vegetações, seccando o. rio, com- tio Zéca cheio de receios pelo futuro, com as
bu rindo tudo. plantações queimadas, as feiras fracas, a gente do
A NOVELLA SEMANAL 99

Recife fugindo á cidade, um cortejo de misérias. fessar o seu gesto filial para não desmerecel-o na
Sentia a previsão da fome. ' Em breve faltaria bocca de todo mundo.
tudo. A sêcca ardia, os céos eram limpos e cla- — Para que V. me quer, Joãosinho ? Eu não
ros, as catingas esqueletos, galhos sem roupa- tenho mais coração. De que serve uma mulher
gem. Só os jatobás davam sombra. Do alto em casa quando ella não nos pode querer bem,
sertão já se contava dos mortos que tombavam direito? Magra, doente, triste, eu serei um tram-
nos caminhos e do gado a succumbir nos paro- bolho para V. que é moço e pode ter outra sorte.
xismos da sede, a gemer, a mugir, na anciã extre- Não pense nisto, homem.
ma, focinhando a terra gretada, resequida, estéril... Joãosinho não te,ve tempo de replicar. Ao alto
Maria Clara tinha a visão nítida de todo o in- da estrada um grupo surgiu, approximando-se.
fortúnio sertanejo, periódico, torturante, cuja nar- Um velho cavallo, esquálido, tropego, puxado por.
rativa já ouvia do pae quando creança. Trabalha- um sertanejo magro, maltrapilho, chapéo de couro
va a pensar. Perto, chocalhando, uma vacca, sol- sujo, calçado de velhas alpercatas denunciando a
ta, de pello amarello, remoia as fibras das palmató- exhaustão de longa caminhada e duras privações,
rias do matto, único alimento daquelle dia quente. marchando ao seu lado uma rapariga amarellada,
E a pensar, Maria Clara baixou os olhos para vacillante, seguida de um meninote de doze an-
a renda, a sua renda de enxoval. Vendel-a-ia, nos, rachitico, com tronco nu'. No animal pen-
estava decidido. Eram bem umas trinta varas ; duravam-se dois caçuás : um contendo cacaréos,
dariam alguns mil réis para o sustento. Dias outro servindo de berço para uma creancinha en-
atraz um casal passara ali, a passeio; viera vel-a feixada nos retalhos de uma coberta vermelha.
attrahido pela sua fama de rendeira. Fechava o prestido macabro um canito branco de
A "Clarinha das rendas"? indagou o par. Re- costellas desenhadas na pelle.
cem-casados; elle muito elegante e caricioso a des- Era a primeira leva de retirantes a passar por
manchar-se de cuidados; ella, pallida, loura, can- ali, naquella sêcca. Em frente á casa, pararam. A
çando ao marchar, inclinada, denunciando a ma- mulher tirou do caçuá o filhinho, sentòu-se numa
ternidade. Viram a renda e cubiçaram-na para pedra, pôz de fora um peito mirrado e achegou-o
uma blusa, talvez, ou para uma veste de creança. á boquinha sequiòsa do petiz que chorava por não
Chegaram a offerecer três mil réis á vara. achar seiva.
A nada accedeu a rapariga: — era a sua espe- Maria Clara, penalisada, foi buscar um pouco
rança, não venderia. dágua com assucar.
Agora, porérti, estava resolvida; era justo que — Deus abençoe a Você, minha moça. Ha dois
auxiliasse o pae naquelle transe. No dia seguinte dias que penso ficar pelo caminho.' Nem um
iria á cidade, procuraria o casal ou quem lhe pingo nos peitos! O pobresinho só faz chorar...
desse algum dinheiro pelo seu trabalho. Depois — Para onde vão ? — interrogou Joãosinho.
faria outros, em linha, em fíló. \ — Para baixo, para a praça. Hoje cuidamos de
•f Ah! si as costas lhe não doessem tanto! os pedir um rancho na cidade para descançar a noute,
seus serões iriam até o amanhecer. Segura era a Amanhã é de serra abaixo, querendo Nosso Se-
sua resolução: cortou com uma tesourinha a renda nhor. Pobresinho ! Ainda si a gente podesse ar-
da almofada, mediu-a nos braços abertos, do-rosto ranjar um leitinho para elle! Perdemos tudo, seu
para a ponta dos dedos. Trinta e duas varas, moço. O sol queimou...
uma lindeza. Lembrou-se ido seu vestido de nup- Maria Clara esteve a olhar aquelle quadro de
cias assim enfeitado, brilhando á luz do altar da miséria, maior que a sua. Depois, num gesto
Virgem, na matriz... brusco, rápido, entregou a renda, já dobrada, á
, i As lagrimas afloraram; enxugou-as com a man- inditosa mãe :
ga do casaco. Ia dobrando a renda quando João- — Tome para você. Na cidade darão por ella
sinho vinha chegando. algum dinheiro. E' para comprar leite para o pe-
Estiveram em silencio uns 'segundos. Depois queno e uma camisa para o rapazinho.
o rapaz, mirando-a espantado, sentou-se-lhe ao A mulher esgazeou os olhos, extatica, surpresa,
pé, no chão. mastigando bênçãos e agradecimentos que mor-
— Clarinha, você uma vez me disse que só se" riam na gorja.
casaria outra vez quando cortasse essa renda. Era De novo o grupo se moveu e ia partir. A ci-
verdade ? dade era perto mas o crepúsculo cahia. O ho-
Ella estremeceu : não se recordara do que ha- mem e o meninote deram «boas noutes» e anda-
via dito aquelle rapaz. Também não desejava con- ram para a frente. A mulher, com o filho nos
100 A NOVELLA SEMANAL

braços, a choramingar, seguiu também a de- ra enterrara de novo a cabeça entre os braços,
sejar : a chorar e a tossir.
— «Nosso Senhor lhe dê um noivo bem vbo- A noute estava calma e o céo era um crivo
nito». de estrellas: — perto, os chocalhos do gado a
Maria Clara sentara-se de novo em frente da remoer, tangiam; bezerros apartados das vaccas
almofada nua. Fincou os cotovellos no papelão berravam; chegava de um casebre, o mais vi-
do risco, apoiando nas mãos espalmas o rosto zinho, uma toada de mulher; longe, trazido no
doentiamente gracioso, dolorosamente sympathico, vento, a plangencia de um carro de bois, tardo,
rodando os olhos garços na paizagem, a sua linda monótono, a reentrar na porteira do curral.
paizagem sertaneja tão mudada também. Tio Zèca vinha descendo o atalho, apressado,
A tosse renitente, rouca, vibrava-a de quando alegre, embora a feira tivesse sido escassa: —•
em vez; sentia o corpo quente e o coração ba- trazia no bolso da calça uma carta de Raphael,
tendo forte. Na véspera parecera-lhe na bocca um achada no correio, chegada na véspera do Acre,
travo de sangue. Talvez do dente. de onde, entre os seringaes, após ter estado a
Naquelle momento tudo se lhe clareava: era o morrer de febres, o rapaz mandava dizer que
fim. Estava doente, bem doente. A Mariasinha estava a juntar uns contos de reis para fazer a
começara assim, a tossir, a doer-lhe as costas e sua Clarinha, a Clarinha das rendas, bem feliz,
fora um dia para a terra de Deus. Não tinha bem bonita .. .
medo de morrer; tinha era pena da velhice do MARIO SETTE
pae, sósinho no mundo. Raphael? Só pedia á
,Virgem é que, si estivesse vivo, fosse feliz. Era
o fim. Para que alimentar mais' uma esperança
mofina como se rega uma planta que não pode
medrar!... O único fio era a renda, a sua lin-
da renda que partira também nas mãos esquáli-
das daquella mãe dolorosa,— branca, muito bran-
ca como si já fosse o leite que ella, virgem, dera
aos lábios famintos daquelle petiz, ajudando-o a ECONOMIA DOMESTICA
crescer, a ser homem para, mais tarde, talvez, Na residência de um casal "modern-style", ás
fazer soffrer as raparigas de amor e de febre. 10 da manhan.
No ferrotear das suas maguas, sentia um bem Renato Silveira e Mme. Silveira acabam de to-
estar, uma volúpia casta pela caridade que fizera. mar o seu café com leite.
Donzella como ia morrer, ao menos fora mãe Elle — (levantando-se e atirando o guardanapo
também, naquelle gesto. A saudade vencia-a; os para cima da mesa). Bem, meu amor, cá me vou
soluços garroteando-a explodiram. A cabeça des- á vida; até logo.
cahiu sobre as mãos mornas e os braços dobra- Ella — (cobrindo de manteiga uma côdea de
ram-se na almofada, num accesso de tosse, com pão). Até logo, bemsinho. Olha. . . Tu vens al-
estremecimentos nervosos, emquanto as lagrimas moçar hoje á casa ?
desciam do céo dos olhos. Elle •-— Não posso. Hoje é dia de mala para a
Quando Maria Clara alteiou de novo o rosto, Europa e tenho muito que fazer no escriptorio.
o morim da almofada mostrava rosetas de san- Almoçarei na cidade. Virei jantar ás 7 da noite.
gue, sangue goiphado da bocca premida no te- Ella — Nesse caso, vou sahir depois do al-
cido alvo. moço, sim ? . . .
Joãosinho puzera-se de pé e chegou-se para acu- Elle — Aonde vaes?
dil-a, assustado. Ella — A' cidade, fazer umas compras... A
— Você está vendo, Joãosinho ? É sangue. Já propósito: tens ahi dinheiro ?
não valho para nada. É a moléstia da Mariasinha. Elle — Tenho. De quanto precisas?
Para que você foi querer seu bem a uma mu- Ella — De pouco, para umas comprinhas in-
lher como eu que tem uma doença que pega? significantes: uma peça de entre-meio, que a cos-
Esqueça isto. Procure outra que lh'o mereça e tureira mandou me pedir; uma carta de alfinetes,
esteja ,mais perto da vida do que eu . . . um maço de grampos. . . (Pausa) Duzentos mil réis
O rapaz revolvia o chapéo de carnaúba entre dar-me-hão p'ra tudo. . .
as mãos, sentindo os olhos humidos. Maria Cla- Elle — Vê lá. . . Para comprares um maço de
A NOVELLA SEMANAL 101

grampos, uma peça de entremeio e uma carta de Ella — (rindo) — Quem sabe ? . . . A crise na
alfinetes talvez os duzentos mil réis não sejam Europa... (Pausa) Mas fallemos a sério, Re-
sufficientes.. . Pede mais, queridinha. A ordem ' nato. Achas muito quinhentos mil réis ?
é rica e os frades são poucos... Elle — Não acho. Deque me vale achar muito ?
Ella — Achas muito? Se soubesses como à Precisas, não é assim ?
crise na Europa repercutio no Brasil! . . . Está Ella — E ' . . . Preciso... Tenho que comprar
hoje tudo pela hora da morte... uma peça de entre-meio...
Elle — E'... Tens razão. A crise. . . é pavo- Elle — Já sei I . . . Uma peça de entre-meio,
rosa. Então, ficas satisfeita com 20Ó$000? uma carta de alfinetes e um maço de grampos...
Ella — Fico. Mas, olha lá, bemsinho: se achas Ella — Estás zangadinho commigo, Renato?
muito, dá-me apenas 10o$000 e e u . . . quando che- Olha: se é para ficares aborrecido, não é pre-
gar á cidade, passarei pelo escriptorio para que ciso que me dês os 500$00. Dá-me apenas 450$000.
me dês os outros cem. Elle — Qual aborrecido!... Mas, vamos a saber:
Elle— (irônico) Não é preciso. Para que has vaes apenas á loja comprar os alfinetes ou tens
de fazer economias, meu amor? Temos apenas que fazer algumas visitas ?
oito filhos e elles, quando crescerem que se ar- Ella — Não faço visitas, hoje. Irei primeiro á
ranjem. . . casa Ferreira comprar os alfinetes, depois irei á
Ella — Como tu és mau, Renato! Então pre- joalheria.. . — oh! descança; é só para ver as no-
tendes deixar as crianças sem nada, quando mor- vidades — á costureira, ao "five-o-clock-tea no
reres ?! Alhambra e voltarei para casa, passando de ca-
Elle — (cada vez mais irônico) — Creio que minho pelo Municipal, afim de avisar que ficas
sim. Se continuarmos pelo caminho em que vamos... com a assignatura para o Lyrico.
Ella -- (admirada) — Que dizes, Renato ? ! Achas Elle — Quer dizer que só ás 7 estarás em casa ?
então que estamos gastando muito? Ella — Achas muito tarde? Se/achas, sê franco,
Elle — Quah . . Eu disse isso ?! que eu virei ás seis e três quartos. E, sabes de
Ella — Não, mas, pelas tuas palavras, tirei essa uma cousa? Para não andares sempre a ralhar
conclusão. Mas olha: se achas necessário que commigo, voltarei de bonde para fazer economias.
economisemos, o melhor é tirarmos os pequenos Tens razão, Renato, é preciso que façamos eco-
do collegio — elles já sabem o sufficiente para nomias. . .
ganharem a vida quando forem homens — tu ven- Elle — Qual! . . Eu estava a brincar comtigo.
derás a tua "voiturette". Ella _ Não, senhor. E' preciso que sejamos
Elle — E, tu, a tua "limousine". . . econômicos. Do principio do mez em diante vou
Ella — A minha "limousine" ?! E, depois, como dizer ao pequeno dos jornaes que não precisa
farei, quando tiver de ir á cidade, ás minhas com- mais trazer-me a folha. Assim economisaremos
pras? 3$000 por mez, não é? E' preciso economisár,
Renato, economisár muito. . .
Elle — (com paciência evangélica1! — Irás de
bonde, como toda a gente. Elle — Bem. Até logo.
Ella — Até logo, meu amor. Economia, ou-
Ella — Estás doido, filho?! Queres que as
viste, muita economia! . . . Olha, Renato!
Mendonças se riam de nós? Era só o que fal-
Elle — Que queres!
tava ! . . . Se ellas, agora, já dizem que, neste an-
Ella — E' que tu te ias esquecendo de me da-
dar, terminaremos implorando a caridade publica,
res os 500$000 para comprar os alfinetes.. .
'' á porta de uma egreja, que não diriam, como não
EUCLIDES ANDRADE
se haveriam de rir, quando soubessem que vendi
a minha "limousine" ? ! Não, Renato, não, meu
( amor. Noblesse oblige...
Elle — Bem, são horas de ir para o trabalho.
De quanto precisas, então, para ps teus alfinetes ?
•$ Ella — (distrahidamente, alhos perdidos no es-
paço) — De quinhentos mil réis...
Elle — Será possivel que neste pequeno lapso
: de tempo que levamos a palestrar, tenham os al-
finetes subido de preço ? !
I ^ ^\\A
A NOVELLA SEMANAL

0 desprendimento de si era o como em despojal-a, antes d.e


traço dominante do caracter de tudo, dos obstáculos que a im-
Avídívôínecdoíícck Simões P i n t o . Tendo convivido pedem de adoptar u m a attitude
c piuõifc£èfr-'óps:: com elle nas revistas que diri- oomprehensiva e de dirigir um
giu, e, mais tarde, no Jornal olhar p e n e t r a n t e sobre o campo
do Commercio, bem pudemos da arte, da moral ou da scien-
apreciar a bondade profunda da- cia.. Antes do que em um pro-
f SIMÕES PINTO quella alma, em quem a har- cesso de accumulação, estriba.
monia era u m a expressão natu- se, pois, a obra cultural em um
ral de vigorosa saúde e equilí- prévio processo de desintegração
Dentre as figuras que a grip- brio. E s p i r i t o frondeur, estava dos elementos que a torpeza e
pe apagou, rudemente, no tor- sempre disposto a rir e a zombar, a insinceridade do ambiente so-
mentoso fim do anno de 1918, mas sempre disposto também c i a l ' v ã o depositando sobre o es-
está a de Arnaldo Simões P i n t o , a corrigir e a a n i m a r . pirito, á maneira de uma crosta
o suave poeta da " C a r m i n a " e
Foi por isso, mais que tudo, que obstrue a clara visão das
do " L i v r o de D o n ' A l d a " .
na sua vida de trabalho inten- coisas. Só depois desta opera-
Poucos se lembram j á deste ção poderá o espirito directa-
nome. Simões foi u m perdulá- so, em que se fez por si, u m a
solicita e maneirosa a g u l h a , m e n t e adquirir noções relativa-
rio da intelligencia e do cora- mente verdadeiras e formar con-
ção, e nunca cuidou de fixar que conduziu e poz em relevo
m u i t a linha que hoje por ahi ceitos mais ou menos exactos
n u m livro definitivo os primo- acerca do m u n d o exterior, do
res da sua inspiração e as excel- apparece e brilha.
È como agulha, coube-lhe a «não eu». Neste sentido a cul-
lencias de seu estro. Mas a in- t u r a não importa n u m atavio,
dividualidade que foi não pode sorte de depressa ser recolhido
á sombra, donde só o evoca, em senão, ao contrario, n u m retorno
ficar assim olvidada: não só franco e saudável para a nudez
porque fosse a de um bello ar- intensa saudade, a lembrança
dos amigos. ingênua. O importante, o pri-
tista, n a inteireza do epitheto, mordial consiste em dar ao pen-
como também pelo papel de L0TJRENC0' PILHO samento a capacidade para jul-
construcção social-literaria que gar rectamente, apreciando o
ella desempenhou. valor ethico ou esthetico das
Simões assumiu em 1916 a coisas e e x t r a h í n d o dos pheno-
chefia da " Vida Moderna"', a menos circumdantes idéias pró-
que deu uma pliase áurea. Pois prias e v i r g e n s de todo precon-
oom tal revista auxiliou, incen- ceito. ,
tivou, guiou e fez appareoer
muitos dos bellos nomes que ho- O processo da educação, como
je florescem a geração inteliec- se sabe, implica a passagem das
tual de S. P a u l o . noções do consciente para o sub-
Monteiro Lobato, Guilherme O paradoxo da cultura consciente. As idéias bem assi-
de Almeida, Léo Vaz, Sud Men- miladas se trasladam para a
nucci, Brenno F e r r a z , Lindol- P a r a a maioria dos indivíduos esphera do affectivo : convertem
pho Esteves, Thales Andrade, o termo «cultura» significa con- se em sentimentos, regido pelos
para não citar outros, todos re- j u n t o de conhecimentos. A rea- quaes o indivíduo então exerce
ceberam da revista de Simões lisaçâo da cultura estaria então os seus actos, j á espontanea-
P i n t o u m grande espirito de superiormente encarnada em u m mente. Reage de modo determi^
estimulo e de dedicação ás le- professor universitário, de es- nado ante as coisas, de accordo
tras. pessa erudição, congestionado de com a maneira de sentir que
Monteiro Lobato, si bem que noções e capaz de expor, com formou com u m a opportuna e
ao tempo em que começasse a abuso de tecrmologia — a meu- c o n t i n u a infiltração de idéias,
publicar os seus contos n a «Vi- i&£ illegitima sob o ponto de pois, como disse Fouillée «a
da Moderna» fosse j á um esty- vista etymologico e portanto idéia é i n h e r e n t e a todo senti-»
j d i s t a vigoroso e perfeito, todavia falta de clareza e propicia H mento que se distingue da pura
só perdeu a sua timidez e se confusões — theorias mais ou sensação informe». Dahi o va-
lançou resoluto á publicidade, menos abstrusas. Não obstante, lor de u m a verdadeira educação
depois de privar com o poeta a erudição pode e costuma ser e es perigos de u m a educação
da « Carmina ». Foi ainda por precisamente o contrario da ver- falsa.
instâncias suas que Lobato pu- dadeira cultura. Com effeito, Se a v e s t i m e n t a espiritual,
blicou os « TJrupés», cujo suc- esta não consiste t a n t o em amon- isto é, a s u m m a das ideas ad-
cesso literário e de livraria ha- toar na mente noticias acerca quiridas e dos conhecimento»
via predicto com segurança. da sciencia, da moral e da arte, accumulados que foram mode-
A NOVELLA SEMANAL 103

Isâkto a psyche do sujeito, pu- discípulos, começava por trazel-o


desse, em momento dado, osten- ao ponto de p a r t i d a ' mais ele-
tar-se aos nossos olhos, como a m e n t a r , a u m estado por assim
[indumentária corporal, veriamo- dizer de virgindade intellectual.
nos cobertos com as mais des- Logo, m e d i a n t e o seu systema
harmonicas e absurdas vestias. de interrogações, successivas e
Aquelles que nos parecem mais coordenadas, o ia levando, como
sábios seriam provavelmente os que pela mão, até a idéia que Versos.
ique nos deixariam estupefactos desejava inculcar-lhe e fazia que O verso portuguez por excelleneía ê-
com o incompatível e discorde o próprio discípulo" a surprehen- o da «redondilha-*. Não é que se não
:de sua roupagem ideológica. Ap- desse, n a t u r a l m e n t e , em v i r t u d e possa praticar outras espécies e nem
i pareceriam nella prendas ana- daquelle encadeiamento lógico se pede o extermínio da variedade-
infinita *dos versos. Mas basta dizer-
ichronicas e irreductiveis a todo perfeito. A idéia, alcançada de tal que aquelle é o verso da «poesia po-
svncretismo, amontoadas sobre o modo pelo sujeito, mercê do pular» : isto é, o rytlimo ingênuo e
;espirito, em v i r t u d e de, u m a se- exercício da sua própria facul- espontâneo da nossa alma, quando
tocada por qvialquer agitação emo-
irie de ^superposições inexplicá- dade de raciocínio e de livre tiva.
v e i s . J u n t o a u n s calções re- exame, se incorporava definiti- E não só o da poesia, mas o da pro-.
. mondados de «sans culotte,» mos- vamente, como u m thesouro, á sa apaixonada. E' o molde das nossas
t r a r i a m alguns u m a casaca de expressões mais ídiomaticas e profun-
sua bagagem intellectual. E ' o das. Toda» as nossas invocações e in-
. cortezão e á cabeça, adornada de contrario da educação dogmática terjectivas, se acaso excedem o g r i t a
f melenas românticas, se alçaria e essencialmente memorial, em animal, logo se fundem no septisyl- ,
i uma ridícula cartola contempo- labo.
que alguns fazem repousar er- Vae para quatro annos, fazendo a l -
i ranea. F r u c t o de u m a cultura roneamente a cultura. P a r a ob- gumas lições acerca do «Folklore», na
heterogênea, desbarmOnica, fal- tel-a, n a realidade, é mister, Bibliotheca Nacional, chamei a atten-
sa, este homem j u n t a r i a a u m ção dos meus raros mas impávidos
quando se chega á edade em que ouvintes para o freqüente habitualis-
fundo jacobino, moderado e co- é possivel libertar-nos do «ma- mo com que meneiamos aqnelle m e -
mo que oppresso por preoccupa : gister dixit,» proceder a u m a es- tro popular.
ções respeitosas acerca da hie- pécie de revisão das idéias funda- Cicei exemplos vulgarissimos da lin-
guagem commum.
rarchia social e da auctorídade mentaes adquiridas antes, desnu- O povo só adopta epithetos, invoca-
uma disposiçãe sonhadora, con- dar-se tranquillamente das noções ções, formulas, quando septisyllabicas.
trariada por sua vez pela disci- emprestadas e t o r n a r a adqui- As dimensões do molde exigem, coma
um leito de Procrustes, aquellas pro-
plina utilitária e pratica da vida ril-as paulatinamente, sobretudo porções exactas.
actual. Esse conjuncto varie- com u m critério orgânico, de Os santos que se invocam appare-
gado e héteroclito não seria se- modo que o conjuncto constitua cem singelos ou acompanhados, mas.
sempre segundo a formula :
não a resultante de u m a deplo- u m a visão harmoniosa e am- , — Nossa Senhora da Lapa !
rável educação intellectual e pla da vida, que influa na har- — Jesus ! Maria ! José !
moral, de u m a pseudo-cultura, monia correlativa da conducta. — Santa Barb'ra, São Jeronymo.
— Mãe de Deus da Conceição.
«II vaut mieux forger l'es- Só isto pode significar uma ver- B nunca por'exemplo — Nossa Se-
prit q u e l e m e u b l e r , » dizia Mon- dadeira cultura. O conceito ha- nhora da Conceição ou «Nossa Senho-
taigne, falando da educação com bitual da mesma não é senão r a da Candelária» — pessoas egnaes,
mas inadequadas ao metro idiomatico.
seu bom senso insuperável. For- u m paradoxo falaz e pernicioso, Uma besta pode ser i'everenda e um
jar o espirito : fazer delle u m que t a n t o mais nos alheia da patife pôde ser grande : mas as for-
instrumento de comprehensão, de posse delia quanto mais simula mulas métricas exigem que se diga :
— Beverendissima besta.
discernimento, de juizo, em vez approximar-nos delia... — G-randessissimo patife.
de convertei-o em u m a despensa Não se pode dizer «grande» nem se-
intellectual... Tal é o verdadeiro A. M. quer «grandíssimos. Seria um verso
sentido da cultura. quebrado, e, entretanto ao dize^-o.
ninguém' pensa tratar de versos.
Ha uma multidão de phrases que
Indivíduos ha, opulentos de só existem,, por serem aperfeiçoadas
noções adquiridas de segunda e acepilhadas pelo metro fundamen-
tal, ainda mesmo quando não- encer.
rnâo, que se v e r i a m perplexos rem grande sentimento. Mas assim é_
para emittir u m j u i z ó claro e Aqui vão alguns «logares commmis»
simples sobre qualquer pheno- do linguajar do povo.
meno n a t u r a l algo complexo. — Tenha santa paciência.
— Tenha dó deste seu negro.
Estão mais longe da c u l t u r a que — Tire o cavallo da chuva.
o homem «ignorante» n a ac- — Você não é dos peóres.
cepção corrente, mas que disci- — Faça lá o que quizer.
— Deu dois pinotes e.meio.
plinou o seu entendimento na -— Misericórdia, meu Deus.
observação directa e no estudo — Por Deus e a Virgem Maria.
experimental. Toda a sua eru- Basta fazer a simples experiência
de mudar algumas dessas palavras e
dição livresca não serve aquelle logo se evidencia a impropriedade que,
mais que para falsear-lhe a vi- adquirem. — «Mariquinhas, meu co-
são das coisas, que de o u t r a ração U é phrase indigna de u m a>
paixonado : este dirá :
maneira seria mais lúcida e pre- — Mariquinhas, meu amor !
cisa. — Maria, meu coração !
Ou, acaso, poderá escolher uma re~
Quando Sócrates queria infun- duplicação que é ainda ternura :
dir aíguma noção em u m dos seus — Mariquinhas ! Mariquinhas !
104 A NOVELLA SEMANAL

E' claro, se não estou a tresvariar, Assim a «redondilha» e o verso «he- as comédias do famoso Nioolau Lu
que — «Maria ! Maria !» — não passa róico» sao os dois typos vernaoulos Seus alexandrinos, da espécie a qVe
5%
de expressão gélida, apathica e inerte. tyranicos e incoeroiveis como as nos chamei de «alexandròes.-. dizem as-
E' o que sinto, mas posso estar em sas lagrimas, o nosso fôlego, e todas sim :
erro. Tenho por um sujeito seeco, as expressividades em que se crysta- A minha filha ó honrada, ó virtuosa,
íleugmatico, .aquelle que diz a seu in- lizam as nossas paixões.
ferior : Não temos outra geometria nem [é boa,
outro numero. Tiral-as dahi é enfor- Mas j á que você tonto oasou com oi-
— Tire o chapéo ! [Ia á toa,
E tenho por um homem nervoso, cal-as. Tratando o grande ndagio, de coco
-elegante e poeta, o que diz : Não quer isto dizer qrie nos sejam [dos rapazes,
— Tire o chapéo da cabeça ! vedados os outros caminhos de artifi- Que diz, antes que cases repara no
J á vae longa a impertinencia dessas cio, fora daquelle trivio e quatrivio [que fazes,
frioleiras phraseologicas. da lingua e do pensamento portu-
Se estou com a verdade nesses des- guez ; e nem foram os portuguezes
propósitos que venho de referir, não que os inventaram. E' incrível de estupidez.
í destempero grave, vir sempre lem- A poética abrange numerosas espé- Emfim, veiu líocage. E veiu Casti-
brando a justeza do metro idiomatico cies, j á compendiadas pelos technioos lho que poz tudo nos eixos de mais
e a difficnldade (a «difiiculdade», a-r- e didactas. acurada imitação, li' aquelle um ver-
tentem nisso) de vencer o habitualis- Ao poeta é licito percorrer toda a so amplo, sonoro e magestoso ;' mas
mo das nossas legitimas dicções. escala, de valores e de rythmos. não é para quem. o quer e muito me-
Todos os que estudam a philologia O alexandrino appareceu em Por- nos para estreantes inhabeis ou pouco
e a linguistica, sabem que temos uma tugal pelos fins do seoulo XVIJI, en- affeitos aos segredos da technioa.
lingua dupla : a popular e a erudita, tre duas épocas medíocres da poesia, Todos os que versejam, entre nós,
nas palavras e na phi-aseologia. a gongorica e a arcadioa. Um dos pri- querem principiar por aquella adapta-
A medida de unia ó a redondilha, meiros que usaram o alexandrino ção, balbuciam e gargarejam suas
-e o gênio da outra é talvez de- foi um escriptor de oomedias, Manoel primeiras vozes ntiquollo metro de
casyllabico. de Figueiredo, auctor da «Çrritaria», importação recente ; e, para falar se-
Não é grande erro nem disparate poema dramatioo de versos estopares gundo a doutrina que nxpuz ha pouoo,
dizer que escrevemos ou «falamos Ca- e nauseantes. saltam do «sentimento» para o «arti-
11
mõás» substituindo á lingua o gênio fioio», e, abafando a redondilha quasi
formador, mais poderoso que ella te- Este Manoel de Figueiredo buscou
afrancezar o theatro (então de ope- immanenr.e e hereditária no seu estro,
ve. Esse será sempre O molde erudito, vão ás camisas de onze varas da
o modelo literário e culto, que aos ras, burlas e farças). A sua obra, sal-
poucos se vae entranhando na alma va a intenção, era aehamboada, tosca moda.
popular. E' o modelo « h e r ó i c o . e malfeita, e valia ainda menos que JOÃO RIBEIRO

ACABA APPARECER
SIMÃO DE MANTUA ABANDO CAIUBY
i

FIGURÕES SAPEZAES
VISTOS POR DENTRO
ESTUDO DE PSYCHOLO-
E TIGUERAS
GIA SOCIAL BRASILEIRA
C O N T O S

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PEDIDOS AOS EDITORES:


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MONTEIRO LOBATO & C. * Caixa, 2 B — S. PAULO
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Os Suinos, manual do criador de porcos
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S O C I E D A D E E D I T O R A O E E G A R I O R I B E I R O
R u a r>r. A b r a n c h e s , -gtí3 - C a i x a P o s t a l XXÍ?S « S Ã O P A U L O

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DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires 5$000 —
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LIVRO DE HORAS DE SOROR João do Norte 3$000 —
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lherme de Almeida 5$000 — romance,/. A. Nogueira'. . . 4$000 —
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
, Io Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 MAIS 10 o/o PARA O PORTE
Pedidos aos Editores: M o n í e i f O L o b a t O O . C , C a i x a 2 - A - S. P A U L O
A NOVELLA NACIONAL
"Volumes publicados:
A NOVELLA NACIONAL é uma A P t i l s e i r á d e F e r r o por
série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : offerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "ü? no gênero uma verdadeira obra
mais artistica, ao preço mais barato prima „ — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do "Professor Jeremias",'
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes!
ginas, no formato 16 »/a X 12 J/2 centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS- I
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e, artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. joiâs literárias, j á sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

OS NEGROS

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume. 1!$000 em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado 1|300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados:
Série de três novellas
3$500; 'série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr, Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO
... - - - • - '

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — L á , f o g e s , « n n t i a a l l i n i i . m » njm _ „<-,,

: A C M C f i E
"'•'-• " ' " ' " -' "
^ÂNNO I SÃO PAULO, l i DE JUNHO DÊ 1Ô21 — NUMERO 7

ANOVEL
SEMANAL

EDITORA OfP.G4RIORIBEIIU3-Rl>rABRANCIIES,45-SJPAÜLO
A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR: BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AOS SABBADOS


Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collceçòos
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, r.um circulo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em cxtracçfto no
cioso : o livro não se difiunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se diffunde. Isto succede com o em vários páizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muito t provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da crea^ão deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
q-ue representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o aceessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
. descuidar de.Q fazer, ao,.mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-"
possivel pela escrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que vim abundante repositório de infor-
dos os meios para o diffundir em todo o território na- mações' bibliogi-aphicas, uma selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
grumma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as vantagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trattalhos inte-
liMtura leve e variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos e desconhecidos, consagrados e estreantes,comtanto
te, a toda gente ; mas não será futil e de interesse e- aue taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phemero como ella : pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A N O y E I L A , isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira sério tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volumes, por serem esses os
gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
Pretendendo, ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
e creanças. senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publioaç.&o.
curiosos. j>ela totalidade, emfim, da população ledora. Todos os outros gêneros terão o seu logar no nosso
procurará nos auctoresi a vida, a acção, o interesse, de siipplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA. SEMANAL, que
melhores livms nacionaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. Não seria este o melhor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
oirmprir esta parte do programma traçado, havendo por
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico, ceber um acolhimento sympathieo.
ranta cousa opfcimn a pedir um editor. Assim, A NO- Os EIHTOKKR.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col- queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessante para qualquer Aos leitores que nos enviem relações de auctores
das secçòes deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus- trabalhos, declarando o seunome, villas, povoações. estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, hotéis, clubs, bibliothecas, e t c ,
terfteem a sua collaboração.
'Os originapR devem ser escriptos de
'estando porisso organisando um ser-
viço de distribuição que será o mais
Importante
um só lado do papel, em calligrnphia Toda pessoa que. angariar três assi-
completo possivel, de sorte a nao ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL
bem legivel e de preferencia dactylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos adeant.adamente a res-
graphados. não tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
garío Ejbeiro — Caixa postal n. 117'2 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO»
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo <le qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará interessar pela venda ou leitura des- sil, no valor de 20 o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, Anno 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra,
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre . 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . . S$000
lém disso uma noticia critica. fornecida, rogand a todos quantos Numero avulso , . . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - R. Dr. Abranches, 43 - Caixa Postal, 1172 - Teleph.: Cidade, 5441 - S. PAULO
\ N N O I AcNOVELLA SEMANAL - São P a u l o , 11 de Junho de 1921 NUMERO 7

BRIGA DE£GALLOS — Ju- Melian Lafimir.


lio Scheibel. Paginas Celebres — Da "Ar-
te de Furtar,,
LAGRYMA P E R D I D A — Leituras — O Nome Brasil
Lúcio de Mendonça. - Questões de Português
O^CORDÃO — T h a l e s A n - — Relíquias da Memória.
O ARREPIO Oscar SUPPLEMENTO — Vida O s nossos poetas — Unia
drade. Lopes. Literária --• Critica — bella imagem. ;

BRIGA DE GALLOS
O coronel José. Fulgencio era durante os seis dos, que ladeavam o passeador, começava a es-
dias úteis da semana, unia figura respeitável „no colha das victimas do día.
restricto, ankylosado meio provinciano, em que .— Solte o Cedro, Salustiano. Quero ver si
vivia a sua vida, pouco menos que vegetativa, tal elle não está sentido da escorva.
a sua monótona uniformidade. Aberta a porta do caixote, salta para a liça —
Representando; na collectoria federal, uma das perdão! — salta para o chão batido um beliissi-
incontáveis radiculas da arvore do fisco, já cin- mo indio vermelho-queimado.
coentão e tendo ás costas o fardo da família, nu- Estiraudo-se, como quem se espreguiça, pal-
merosa como ellás soem ser por esse interior, meou azas e, soitando-o aos echos dos muros
onde quasi nada existe a se fazer, tudo se con- divisórios, o indio expelliu da garganta aquelle
jugava-para compellil-o a ser um homem ajuisado mesmo, gallinaceo brado, que foi o motivo má-
e serio, pacato nos seus hábitos e solido palan- ximo das atrapalhações do claviculario do céo.
que da ordem de coisas vigente, á phalange de — Está na conta e vai, fez, satisfeito. Vamos
cujas ventosas de sucção desfructava a subida ver agora si o Prata lambem serve.
honra de pertencer. Soberbo na sua plumagem branca, aqui e além mes-
clada de pennas pretas, pula um novo Chanteclér.
Assim era, de facto; mas ao cabo dos seis dias,
Tacteação cíé pescoço, exame anatômico dos
entrava-lhe o demônio naquelle lerdo corpanzil
músculos das coxas e todo o resto da ladainha,
adiposo, de burocrata da roça, tão fundamente
disposições combativas inclusive.
característico da classe.
— Não, o Prata não serve, Salustiano.
O demônio era a briga de gallos. Corrjdos todos os passos daquella via sacra,
Mastigado e deglutido o almoço, saboreado de- moleque atraz e coronel adeante, em faina selec-
níoradamente 0 café e, mais demoradamente, o cionadora, estava eleita a cohorte dos mais aptos
seu complemento indefectível — o cigano de pa- a representarem a pujança Ha sua creação nesse
lha — o coronel desandava para o quintal, tendo gênero de sport, com que, si a archeologia nã©
aos calcanhares a sua ordenança é consultor te- € uma peta, já se deliciavam os ruivos e guede-
chnico — o moleque Salustiano, que lhe fazia lhudos antepassados do sr. Lloyd George, ao tem-
as'compras, os recados e lhe-carregava os gallos. po em que descobriram na sua pátria insular as
Nas duas estiradas fileiras de caixões gradea- primeiras minas de estanho.
106 A NOVELLA SEMANAL

A rinha era lá para os cafundós de um bairro, vinte mil reis, para encher tempo, foram rapida-
no quintal de um preto velho e velhaco, que del- mente ganhas pelos gallos do coronel, que se en-
ia e de outras artes ainda menos limpas mungia tufava, como um peru, com o chapéo cada vez
o látex sustíntador da sua regalada existência de mais para a nuca, falando de papo e, no sórdido
malandro. botequim appenso á rinha, onde caboclos e ne-
O coronel á frente, o Salustiano atraz, sobra- gros emborcavam martellos de canninha, regando
çando um par de gallos, que sobrara da correi- fartamente a cerveja cada uma das victorias.
ção matinal, sulcavam a poeira da rua, rumando — Solte o Cedro, Salustiano, tonitrooti. E,
para o polo magnético, onde a ralé mais reles se vocês, fiquem sabendo agora que este é sem re-
congregava, conclamada pelos berros dos gallos serva e não briga por menos de quinhentos.
e, mais ainda, pela esperança de topar com um O gallo. como si entendesse o dono, todo se
pato, cujas pennas, estampadas e de curso pavoneava, altivo e fanfarrão, flammante na sua
obrigatório, não fossem muito duras de arrancar... plumagem acobreada.
Das escorias, a mais Ínfima alli se reunia. Eram Dois ou três dos velhacos presentes confabula-
negros esfarrapados e trescalando cachaça, cabo- ram aparte, longa, demoradamente, contaram
clos de pés no chão, uns poucos de bodes per- umas notas sujas, tiradas de uns lenços sujissimos
nósticos e avalentoados, em summa, a borra da e, alfim, sacaram de uma das gaiolas-caixas uni
matéria prima de que se fez a raça brasileira.
t gallo feio, mal empennado, chambão, uma coisa,
sem geito, afinal de contas.
Circo de cavallinhos em ponto pequeno; ban-
cadas mais empinadas; picadeiro de três metros; — Nois pomo este no seu, si dé lambuge, seu
três palmos de altura no rodeio; gaiolas de gal- coroné, disse o Nito.
los, um começo de poço — o rebolo — e, pelas — Para brigar com esse defuncto, dou, oh! si
bancadas, uma coJleção de trombas, onde Lom- dou, dou, gargalhou em gyrandola de grossas
broso teria um pouquinho a aprender. gargalhadas o coronel, saudando o apparecimento
— O coroné vem hoje, nhô Nito? do lamentável adversário. Quanto querem vocês?
— Elle não faia, é pinhão cosido, nhô Bié. ••— Cincoenta.
— Hoje é o dia delle toma um banho. Voceis — Feito. Soltem os bichos.
hão de vê. Depois dos primeiros choques, dos esbarros
E, pelos cantos escusos, era um nunca acabar preliminares, em que o lindo gallo do coronel
de cochichos, de conciliabulos mysteriosos, em atirava longe, aos trambulhões, o seu mal ajam-
que os typos mais representativos daquella súcia brado contrario, trançaram, como se diz na gyria
de vadios preparavam manhosamente todas as dos freguezes dessas espeluncas.
etapas do tombo reservado ao coronel. Erecto e lépido, o gallo vermelho, gyrando ve-
loz, não poupava as pancadas rápidas e firmes,
As brigas, nesse ínterim, se iam arrastando
do passo que o outro, acaçapado e sorna, apenas
frias, desanimada a jogatina e mais inda os jo-
buscava esconder-se-lhe sob as azas, ou escapar
gadores. Faltava, evidentemente, o prato de re-
á saraivada de golpes com curtas, desgeitosas
sistência . . .
carreirinhas.
Por fim, despontou o coronel no portão, de — Dou dobrado contra singelo, bufou o coro-
chapéo atirado para a nuca e um ar de animação, nel, impando de enthusiasmo.
que vincadamente contrastava com o seu sorum- Silencio.
batico todo costumeiro. — Cinco para um e é para o que quizerem,
Era a praga da gallomania, o demônio do urrou de novo.
vicio incoercivel que lhe reinava nas tripas. Vi- Troca rápida de olhadellas furtivas, mas nin-
nha sonhando despiques de amor próprio ferido guém ergueu a luva. A briga pròseguiu nos seus
e estrondosas desforras dos pesados rombos pe- tramites, favorável ao gallo do coronel.
cuniários idos. A uma pancada mais violenta, de nuca, que
— Hoje, ruminava lá com os seus botões, esta fez o outro gallo estrebuchar, elle, já incapaz de
cambada vai pagar-me o novo e o velho. Hão se conter, explodiu:
de conhecer. Outras brigas .pode ser que perca, — Dou dez, dou até vinte por um!
mas a do Cedro é minha, nem que chovam ca- — Si vancê sustenta a palavra, eu pego, retru-
nivetes. cou nhô Bié, caboclo velhusco, matreiro e sonso.
Coisa extraordinária: duas briguinlias atoa, de O coronel viu malignamente fitos em si os
 NOVELLA SEMANAL 107

olhos, entre attentos e escarnecedores, de toda


aquella cafila.
Subiu-lhe o sangue á cabeça.
— Sustento, sim. Quando foi que eu não susten-
tei o que disse?
— Pois então, eu jogo quinhento, hiais ha
de sê casado.
Passou-lhe ante os olhos o dinheiro que havia LAGRYMA PERDIDA
no cofre da collectoria. Era só ir buscal-o, dar (A URBANO DUARTE)
uma licção de mestre aquella corja, que vivia de I
explorações e tornar á leval-o. Somente quem min :a esteve na villa fluminense
— Mas, preciso ir buscar o dinheiro. onde se deu o extraordinário caso pôde ignorar
— Si seu coroné quizé, -tem ahi um troíynho, a historia do Raphael ourives. Também, a his-
interveiu, officioso e todo salamaleques, o dono toria do coitado rèsúme-se no facto que lhes vou
da rinha. contar: o mais de sua vida obscura apenas tor-
Um instante o coronel ainda hesitou. Mas nou-se conhecido e falladp depois que se illumi-
foi um instante só. Virou mais dois copos de nou com este acontecimento notável.
cerveja, separaram-se os gallos, poz o moleque de A modéstia do meu pobre heróe começa já pelo
sentinella e trepou para a carriola, chicoteando o nome: chamava-se unicamente Raphael, sem ne-
escanzellado rossim. nhum appellido de familia; ourives, accrescentavam
Antes de meia hora estava de retorno e exhi- alguns, sem cuidar que assim lhe estavam decla-
bia os pacotes de dinheiro do governo, que se rando um bello titulo de*nobreza, conferido pelo
foram misturar com as notas do batoteiro. seu trabalho, pela sua profissão, que, tão bem
Proseguiu a briga. exercida, se tornara de simples officio verdadeira
Contra tudo que se podia prever, contra as arte. Raphael ourives era, de feito, um artista:
probabilidades todas, o que o coronel qualificará rimava o ouro com o diamante como Gautiér
de defuncto patenteava numa tenacidade, uma lapidava a estrophe,; compunha braceletes que fe-
resistência incríveis. Não só seguia apanhando a chavam bem como sonetos de Petrarcha; ha um
pé firme, como já reagia, a intervallos progres- broche delle tão rico e scintillante que é vêr uma
sivamente mais curtos, com golpes cada vez mais pagina das Orientaes. /
fortes e certeiros. E era ourives mascate; levava, triste rhapsoda,
Por f i m . . . de povoado em povoado os seus poemetos de ouro
i Por fim, uma pancada violentíssima na cabeça, e pedraria.
na nuca, fez com que Cedro, o bello gallo ver-
Quiz a má fortuna que aquelle coração pere-
imeiho-queimado, deitasse a fugir, gritando la-
grino se agrilhoasse no captiveiro de um amor
mentosamente...
forte; enamorou-se o rapaz de uma creaturinha
O coronel viu rima nuvem deante dos olhos;
anêmica e desengraçada,' primeiro e futil pretexto
depois, andaram-lhe á roda bancadas, rinha e toda
que a sua imaginação de artista'por desgraça en-
aquella grey.
: controu para incarnar o formoso ideal que o ena-
Zunindo-lhe os ouvidos, andando titubeante, morava.
inconsciente, automaticamente, sahiu.
A menina — chame-se Laura> que é nome ro-
No cérebro congestionado a demissão do car- mântico — tinha por pae um portuguez cheio de
go, a penhora da casa, que era a fiança e a ca- senso pratico e de cálculos exactos; comprehen-
deia misturavam-se, baralhavam-se numa sara- dia muito poucas coisas, mas de tudo o que me-
banda hedionda. nos comprehendia era genro pobre. Ora cumpre
'; Piracicaba, Maio de 1921. JULIO SCHEIBEL
dizer que Raphael não teve tempo de informar-se
das opiniões do burguez antes de achar encanta-
dores os olhos da t filha: mais culpada foi ella,
que, de,vendo conhecer o bom do pae que tinha,
alimentou com fartura de olhares e sorrisos o in-
feliz amor ainda implume que, com isso, crtou
azas. Azas tão atrevidas que Raphael, em poucos
dias, foi ter com o pae da moça e pediu-lh'a em
108 A NOVELLA SEMANAL

casamento. Ahi é que foi uma scena triste para casar, dahi a dois mezes, com o sr. Luizinho a»
o namorado; o homem respondeu-lhe, com um armazém: A
risinho brejeiro que era muito seu: — Meu pae quer, e eu acceito, acabava de dizer,
— Meu caro sr. Raphael, eu sou homem de quando Raphael entrou, depois de estar parado i
negócios francos: a menina já me foi pedida porta algum tempo, ouvindo a^ phrases banaesj
por um moço do commercio, bem encarreirado, com que a menina sem coração ingenuamente o
que tem de seu uns dez contos e ha de vir a ter apunhalava.
mais um par delles por morte da mãe, a qual, se Laura, quando viu o namorado, assustou-^
Deus fôr servido, não pode tardar muito.. O se- como uma criança apanhada em flagrante traves-
nhor desculpe a sinceridade... eu sei que a me- sura, e corou vivamente, \
nina lhe quer mais que ao outro . . ; mas na minha — Peço desculpa, balbuciou Raphael, não pen-
posição de pae e homem que conhece a vida, bem sei, que viesse sorpreender uma conversa intima..,J
vê que não posso deixar de perguntar-lhe... de Mas d. Laura não tem de que ficar assim, enver-
quanto dispõe o senhor ? gonhada ... é tão natural casar, na sua edade.
Raphael empalüdeceu de indignação e pergun- Cumprimentou com um modo digno e triste, e'
tou-lhe, mal contendo a ira que o engasgava: sentou-se; conversou pouco, — a conversa geral'
— E a sra. d. Latira pensará como o senhor? esfriara com a sua entrada, — e, ao despedir-se,'
— Nesses negócios penso eu por ella, meu declarou que se despedia para uma viagem de
caro amigo! muitos annos, talvez para sempre.
— Acha então .que é apenas um negocio ?! — Para onde vae? perguntou-lhe a dona da casa.
— Mais importante que alguns outros, é só — Por esse mundo fora, respondeu, e sahiu,!
a differença. todo enleiado.
— Está claro, o senhor é sectário da doutrina Quando chegou ã estalagem onde estava hos-
do casamento em concurso; por outra, é pae lei- pedado, encontrou um moço que o esperava. Era!
loeiro; entregará a filha a quem mais der. o sr. Luizinho do armazém. ' -4
— Pois, senhor, não conte commigo, que sou
— Eu vinha encommendar ao sr. Raphael que
mau licitante.
me fizesse uma'jóia bem/bonita; pode s e r . . . Não'
E voltou as costas ao riso amarello com que o
tem pressa; basta que fique prompta nestes dois
outro o escutava. Quem pudesse ouvir o dolo-
mezes: é para dar de presente a minha noiva,
roso monólogo que elle ia revolvendo no espirito
no dia do casamento... Quero coisa ahi para
perceberia, pouco mais ou menos, isto:
cento e cincoenta, are duzentos mil réis, quando
— Dez contos de réis e mais a herança ma- muito... '
terna ! não tenho tanto dinheiro ! E o mais ? — a — Não senhor, atalhou Raphael, não posso:]
minha vida, cheia de privações, mas sem uma faço viagem amanhã e não volto.
única vergonha, o meu talento, a minha arte ? . . . — Mas a Laura queria mesmo que a jóia fossei
que me vale tudo isto? o que elle quer, o que feita pelo senhor...
elle conhece, é o dinheiro. E a sra. d. Laura — já disse que não faço, que não posso, que
pensará como o senhor ?" perguntei-lhe; devo tam- não quero. E passe bem; tenho mais, que fazer.j
bém perguntar-lh'o, a ella. Antes disso, nem a Deixou o sr. Luizinho pasmado na sala e en-i
posso julgar com justiça, nem decidir com pru- trou para o seu quarto.
dência o que hei de fazer de mim.
Mas, depois do que ouvira e dissera ao pae de II
Laura, não podia voltar á casa delle; não queria, Estava, emfim, só. Sentia uma constrícçãó na
tão pouco, escrever á moça: nunca lhe tinha es- garganta; tinha vontade de chorar, de blasphemar.
cripto, nem sabia escrever que prestasse; demais A sorte opprimia-o, indignamente. Dizia-lhe a
entendia que era mal feito dirigir-lhe carta : — es- consciência que era um rapaz honesto, laborioso,
perou que ella fosse a uma casa do seu conhe" cheio de boas intenções; dizia-lhe o coração —
cimento, onde poderiam conversar francamente. dizia-lh'o em tumultos desesperados — que amava
'Só oito dias depois, foi Laura uma tarde, á tal immensameute, e não o amavam nem compre-
casa. * hendiam. Outro, bom rapaz, talvez, honrado e
Raphael entrou pouco depois delia. Conver- trabalhador tambem^mas estúpido e feliz, ia re-
sava-se na sala de visitas; a filha do burguez, como ceber, sem exaltação nenhuma, com uma natura-
se tractasse de costuras, dizia como e porque ia lidade idiota, a ventura transcendente, que a elle o
A NOVELLA SEMANAL 109
endoideceria de júbilo! E ella também, que alma Avivou a luz do lampeão que ardia no quarto,
pequenina! com que facilidade o sacrificava! Só e tirando de uma canastrinha de viagem o mys-
se lembrara delle para desejar que lhe fizesse terioso guardado, rompeu commovido, o. envol-
uma jóia para o dia do casamento; suggestão de tório de papel amarellecido pelo tempo; achou
(vaidade, não de amor. Afinal, mostrava que me- uma caixinha de velludo rox#, ^ibriu-a . . . Teve
Jrecia bem o marido que lhe impunham. um deslumbramento ! era um thesouro esplendido,
Instinctivamente olhou-se ^ a um espelho que um diamante enorme, fascinante, incrível, o maior
pendia da parede, defronte; assustou-se do seu que já encontrara, elle que muitos e riquíssimos
próprio olhar, tão sombrio era. Que cara de re- tinha visto! Tomou-o na mão tremula, mirou-o
probo!, e a angustia, a febre e o ciúme dos úl- á luz: cegava; era uma pedra magnifica, sem fa-
timos dias escaveiráram-lhe o aspecto, {já de si lha, sem jaca, rutilante maravilha!
pouco formoso; emmagrecera como um naufrago
— Estou rico! exclamou attonito. Era este o
num rochedo isolado; o rosto todo anguloso, es-
diamante que tantas vezes ouvi dizer que foi rou-
tava devastado; os olhos, que tinha azues e es-
bado a meu pae, e cuja perda lhe custou a vida!
plendidos de vivacidade, luziam sinistramente, en-
E accrescentou, chorando no intimo da alma:
covados; queimava-lhe os lábios um sorriso irô-
— Deus te perdoe, minha mãe, a tua santa,culpa!
nico e mau. Não estava, com certeza, menos feio
bem caro paga hoje teu filho o desvario de teu
que o Gilliat depois da salvamento da Durande,
amor: é,inútil este thesouro: eu já nada ambi-
maltrapilho, flagellado dos ventos, sugado pelas
ciono do mundo; conheço-o; é para os estúpidos
pústulas vivas cia pieuvre, coberto de chagas irri-
e maus; é para o sr. Luizinho; é para Laura . . .
tadas pelos beijos da onda acerba.
Esses hão de casar e ser felizes... Felizes ?! e .
Meditando da tristeza do seu destino, que se porque não ? E eu que amo ainda tanto! tanto!
anfolhava ermo e desconsolado, lembrou-lhe, de misero de mim!
improviso, que desde criança guardava, com in- Escondeu a face nas mãos e rompeu em solu-
i violado segredo, uma.dádiva mysteriosa, que sua ços convulsivos.
mãe lhe entregara, c o m a mão já fria, no leito
IÍI
de morte. Era um cofresinho quadrado, envolto
em papçl branco, lacrado, com esta inscripção em Três dias correram sem que Raphael sahisse do
caracteres miúdos : Lembrança de tua mãe, para quarto, onde esteve fechado, noite e dia; na ter-
só abrires um mez antes do teu casamento. Res- ceira noite, ordenou ao criado que lhe foi levar
peitara até alli, fielmente, a recommendação ma- o chá:
terna; muitas vezes soffrera necessidades de di- — Diga a seu amo que preciso falar-lhe sem
nheiro, estreitas^ necessidades, e imaginara que demora.
/aquillo podia ser algum objecto precioso; mas Dahi a nada entrava o estaíajadeiro, e o ou-
nunca se resolvera a rasgar-lhe o invólucro: fora rives lhe dizia: %
uma antecipação, que se lhe afigurava sacrilega. — Parto amanhã de madrugada; faça o favor
Demais, pensando bem, que valor podia ter em de vêr a minha conta.
moeda a dádiva de sua mãe, que morrera tão po- — Amanhã!... Mas o sr. Raphael a modo que
bre?! E' certo que o pae, garimpeiro feliz da está doente...
província de Minas, fora em outro tempo, senhor — E' o que lhe parece; não tenho nada. Veja
de bons haveres; mas dissipara em jogo desen- sem' demora quanto lhe devo; ainda tenho muito
freado todos os bens dà fortuna aventurosa, e um que fazer hoje. i
dia, achando-se roubado na ultima importante par- O homem sahiu com a morosidade què enten-
cella de sua riqueza, um fabuloso diamante, que dia ser de boa delicadeza quando lhe pediam a
até então conservava bem guardado, suicidára-se conta, e pouco depois voltava com o quarto de
covardemente, deixando ao desamparo a viuva papel garatujado e o apresentava ao freguez. Este
e o filho a i n f infante. Mas naquella tristíssima leu a somma, pagou sem observação, e disse, fi-
noite, desenganado para sempre, vendo fechado tando em face o negociante:
em trevas todo o futuro, assentou Raphael des- —Agora, por despedida, quero pedir-lhe um
vendar o segredo de-tantos annos, depois de ha- favor.
ver assim raciocinado comsigo. — Dois ou três, sr. Raphael.
•i ~ Ou abro agora a caixinha ou nunca mais, — Esta caixinha é uma pequena encommenda
porque eu, decididamente, já não caso; do sr. Luizinho do armazém; já está paga; queira
110 A NOVELLA SEMANAL

entregar-lh'a em mão, amanhã mesmo, com esta do ! Nem calcula o dinheirão que isto me custa...
carta. E boa noite! contos de réis, homem 1
— As suas ordens hão de ser cumpridas pon- — O Raphael disse-me que já estava pago.
tualmente. E agora até quando? O sr. Luizinho metteu-se então em funduras...»
— Até breve; | | v e z para a semana... Boa — Homem, não: isto era uma divida perdida;
noite! o sujeito pagou-me com este brilhante. Podia ser
— Pois boa noite, e boa viagem ! peior.
'— Isso agora é outro cantar. E quem lhe diz
IV que o brilhante não é falso?
No outro dia, estava o sr. Luizinho no arma- — Bem pode ser, não digo que não; mas como
zém, que lhe dava a alcunha, quando o estalaja- eu já não contava com a tal divida, tudo serve.
deiro veio ter com elle. Despediu-se o estalajadeiro e sahiu. O sr. Lui-
— Ora viva o sr. Luizinho! zinho leu segunda e terceira vez a carta; não en-
— Bom dia . . . Sente-se, que estou muito occu- tendia nada! dizia assim:
pado agora; ando ás voltas . om os taes papeis «Sr. Luiz. — Lembrei-me da encommenda que
do casamento... Olhe que é uma campanha! me fez e na occasião não acceitei e envio4hç
— E quando é isso? este alfinete de peito. Qualquer ourives daria por
— Sabbado... se não chover. elle cincoenta contos de-réis; mas não deixe de
— Pois o que aqui me traz não tem demora: o dar, em seu nome, á sua noiva. E estime-a e
o Raphael ourives... respeite-a, faça-a feliz: é este o preço por que
— Sim ! . . . Que sumiço levou esse malcriado ? lhe vendo a jóia. Pode dizer a sua mulher que
Olhe que outro dia estive para lhe dizer b o a s . . • o trabalho foi meu, como ella queria; mas exijo
— Fez viagem esta madrugada; ficou de voltar que não diga nunca, nem a el!a, nem a ninguém,
pYa semana. Venho mesmo a mandado delle- como obteve isto. Queime esta carta. — Raphael.»
— Ahn! -— Seja como fôr, acceito muito calado, que não
— Deixou commigo, para lhe entregar, a sua sou tolo, resolveu o sr. Luizinho. E faço um fi-
encommenda, com uma carta. gurão. Mas pelo menos, devo convidar para o
— Eu não fiz encommenda nenhuma; estava-a casamento o maluco do rapaz que se mostra tão
fazendo... e até o desabrimento delle causou-me interessado (cincoenta contos de réis!; ern que a
bem bom transtorno . . . Mas emfim, deixe ver Laura seja feliz... Ha de se cuidar disso, meu
isso. caro, pôde ficar descançado.
Deu-lhe o estalajadeiro a encommenda e a mis- Dissera-lhe o estalajadeiro que a ausência do
siva. Luiz abriu curioso a carta, relanceou por ourives era por uma semana; adiou o casamento
ella os olhos e metteu-a no bolso, fazendo-se cir- â espera delle; chegou a lembrar-se de o convi-
cumspecto: dar para sua testemunha; mas passou-se a semana,
— Nunca pensei que o homem tomasse a serio passou-se um mez e Raphael não veio: celebrou-
a minha encommenda: foi uma loucura, das de se sem elle o acto.
noivo, sabe? mas, agora que está feita, é tratar Na occasião de irem para a egreja, o sr- Lui-
de ser bom cavalheiro.. Olhe só o presente de zinho offereceu a jóia a Laura, dizendo-lhe que
casamento que vou dar a minha noiva. Já viu fora, segundo o seu desejo, encommendada ao
algum dia jóia mais rica, hein? Raphael; a moça, fascinada de tanto esplendor,
O estalajadeiro ficou boquiaberto deante da ma- abraçou com effusão o noivo:
ravilha que, sem saber, trouxera ao outro. — Oh! agradeço-lhe muito ! muito! nunca vi
Obra-prima de ourivesaria e prodigalidade como brilhante tamanho nem tão bonito ! . . . A idéia
um príncipe poderia ter! era um alfinete de peito do punhal,e da lagryma é que foi infeliz e im-
original e preciosíssimo: uma grossa lagrima de própria . . . Só mesmo daquella cabeça . . .
brilhante gottejando de um punhalzinho ae ouro. Durante toda a festa, a jóia foi objecto de ge-
— E' rico, sim senhor; mas é exquisito, ho- ral admiração e manifesta inveja; a r más línguas
mem ! assim á primeira vista parece um punhal da terra chegaiam a rosnar coisas feias a pro-
com uma lagryma;... e é que é mesmo, é . . . pósito de tão rico presente dado por quem não
— E' uma lagryma, não tem duvida, mas olhe possuía muito; mas foi voto unanime que era um
que vale. mais que todas as da senhora Magdalena esplendor o alfinete da noiva, e o nome do ar-
arrependida, mais que todas as lagrimas do mun- tista andou de bocca em bocca. O mais mara-
A NOVELLA SEMANAL 111
vilhado foi o pae de Laura; mas, suspeitando al- gosto, de muita coisinha posta na lista. Um car-
gum mysterio criminoso, achou prudente nem se ro de bois, estrada a fora, cantando, baldeou
pôr com grandes admirações. para o <• Itaquiry > as compras do noivo.
Correram annos e annos; o casal .teve muitos «Itaquiry » ficava perto do « Macüco ». Era um
filhos; e Raphael ourives nunca mais voltou, nem bom sitio e só lhe encontravam como defeito sé-
nunca mais se soube delle. rio,, o pertencer ao João Mandinga, que lh'o ar-
Rio Bonito, Dezembro, 1877. rendava por bom dinheiro.
LÚCIO DE MENDONÇA

Chegou o dia do casamento.


De manhã, o Mariano chamou a filha e disse-
Jhe: — Olhe, Luiza Maria, como você sabe de
sobejo, eu faço muito gosto nessa união. O meu
sobrinho é um homem ás direitas.' Você também
tem dois braços que valem uma fortuna, não
tem medo de serviço. E'."Vão formar um casal-
O C O R D Ã O zinho que pode alcançar muita cousa no mundo.
Mas...
(A MONTEIRO LOBATO)
— Que é meu pae? perguntou-lhe a filha as-
«Macuco», o sitio de Mariano José Bento, es- sustada . . . i
tava sendo preparado ha muitos dias, para uma — E que não tenho grande couqa para lhe of-
festança rara. ferecer de\lote. j
Os caminhos foram capinados, a casa levou — Ora, meu p a e . . .
duas mãos de cal, a prateleira, ha tanto esque- — A canastra de couro é pouco, é muito pouco.
cida, foi lembrada, ganhando uma dúzia de chi- . — Mas . . .
caras com florzinhas roxas. — Quer saber de uma cousa? Vou dar-lhe a
No chiqueiro, duas leitôas, gorditas, andavam ünica jóia que resta do meu tempo de fartura.
em ponto de levar faca. ,.Vou dar-lhe o cordão...
No cercado diversos frangos, escolhidos, pas- — P'ra mim ?!
savam regaladamente..: — P'ra você mesmo. '
Ao fundo da dispensa, um bahú antigo e mor- — Deus lhe pague, meu pae... E o senhor dei-
gado, cheirando a roupas velhas, ficou até a boc- xa que eu leve também 0 «Crô-Cró?.
ca, abarrotado de cousas assucaradas: doces de — Ora essa! Pois o «Crô-Cró > desde pati-
abóboras, de cascas de laranja, de cidra, de ba- nho é seu mesmo . . .
tata e brevidades, cocadas, broinhas...
— Não ha duvida, dizia o Mariano puxando a
Chegou a hora do casamento.
barba, a casa vae ser estreita para conter o po-
Quando a noiva sahiu do quarto, toda a gente
vão que vem assistir o casamento da minha Luiza
encompridou a vista, de espanto, vendo-a com
Maria. Pois até o Manéco Honório, com a fa-
um enorme e lindo cordão de ouro,. brilhando-
mília completa, prometteu não faltar! E olhe que
lhe no pescoço. ,
elle tem de subir a serra! Agora que se dirá dos
O João Mandinga, presente, não se conteve.
outros ?
Poz-se a estalar os dedos no bolso. Depois com
Mas socegava ao lembrar-se que o terreiro era
o bom pretexto de dar parabéns e de pedir um bo-
grande...
tãosinho da grinalda, chegou rente da noiva, para
Luiza Maria cuidava do enxoval. melhor avaliar a jóia.
Antônio Pinto, noivo e primo delia, inda an-
dava pela fr.eguezia do Rio Claro, pechinchando,
com uns e com outros, na compra do que fosse Já fazia um anno que Luiza Maria estava casada.
indispensável para a montagem da casa. No «Itaquiry», as cousas não corriam pelo
Fora previdente. Dois annos consumira numa melhor. Antônio Pinto cuidava pouco daquellas
sovinice damnada, juntando dinheiro. Mas as terras que não lhe pertenciam. Tinha como tolice
cousas andavam « p'ra hora da morte» e elle só rematada fazer bemfeitorias em terreno alheio.
poude adquirir o principal, desistindo a contra- E por causa disso viviam sem conforto. A ca-
112 A NOVELLA SEMANAL

sa pedia urgentes reformas, as ceicas já não se- — Puis vae.


guravam os animaes, o pasto praguejava . . . v E Antônio Pinto foi consultar a esposa, en-
— Quando os ipês florescerem, finda-se o ar- contrando-a a debulhar lagrimas. Ouvira a pro-
rendamento, disse um dia Antônio Pinto; a h i . . • posta e não queria...
— Ahi o quê? perguntou-lhe a mulher. — Que pranto mais esperdiçado Luiza Maria!
— Ahi tomarei uma decisão que preste. Isso de Não chore. Uma vez que não é de seu gosto,
viver «sem eira nem beira»' não é commigo. está tudo acabado. Mais vale a nossa harmonia
Hei de comprar um sitio, seja onde fôr, á vista do que todos os * Itaquirys » da terra !
ou a praso, custe o que custar . . . Deixou a mulher enxugando os olhos e voltou
— E porque você não compra o ••• Itaquiry - ? á sala. Disse ao Mandinga que lhe desculpasse o
— Ora, Luiza Maria . . . recusar-lhe o negocio. Era uma grande massada
— E porque não ? e sentia demais, porém, o cordão era dessas
— Comprar o «Itaquiry . . . E, seria mesmo cousas que não têm preço.
" um pão e um pedaço», mas não sei o que tem João Mandinga não insistiu. Não insistiu, mas
o Mandinga, desde o nosso casamento. De cada também nem o café quiz esperar. Montou a ca-
vez que nos vemos, principia a gabar o «Itaqui- vallo. e disse: — «Não/<z;s má. Vanceis hão
ry •-, arrematando sempre a dizer elle vale ouro. de se arrepende. Hão do torce as oreia, mas san-
— Isso é tactica. Decerto o Mandinga anda gue não ha de sahi .
com tenção de subir o preço do arrendamento e E lá se foi, desconsolado, rilhando os dentes,
se põe a gabal-o desse geito. disposto a não renovar o arrendamento do Ita-
— Que cousa ! exclamou Antônio Pinto olhan- taquiry * quando os ipês florescessem.
do para fora. Bem diz o dictado que «-falar no -t ' -*•

mau é apromptar o pau .


Como era natural, a proposta do Mandinga ficou
— Porque ?
sendo no - Itaquiry» o assumpio. predilecto e
— Pois o «homem vem vindo.
obrigatório de todos os dias. E isso acontecia
— Não diga !
sem a interferência de Antônio Pinto. Elle não
já no .terreiro o João Mandinga berrava um
procurava geito algum para influir a mulher a
* ó de casa! com toda a força dos pulmões.
que cedesse o cordão. Não! Embora curtisse es-
— Vá se chegando, seu João; vá se chegando se desejo, intimamente, tinha escrúpulos de de-
e apeie, respondeu-lhe Antônio Pinto, solicito. monstra r-lh'o.
— Bastarde, Antónho,
Assim conseguira reprimir-se, de cada vez que
— Bôa tarde. Entre e sente-se.
luiza Maria se punha a discutir o caso.
— Como vão mecêis, de calo, por aqui ?
— Assim... assim, seu João. E que bons
ventos «lhe trouxeram em visita á gente ? Certo dia o ceu se mostrou carfancudo.
— Não é visita, meu amigo. É p'ra mor de Não tardou, porém, que a artilharia dos tro-
outra coisa. Vô usá de franqueza. Neín quero/<z- vões ribombasse e as nuvens, após as vergastadas
zê arrodeios. Vim prepô um negocio da china, do vento, se despejassem num aguaceiro tão pe-
p'ra mecêis. ' sado como não havia em memória daquella boa
— Que negocio é ? gente.
— Oie, inté agora andei de nó na lingua. Mas Foi uma derrama! Parece que o mundo se
o nó vae se desata. acabava!
— Pois fale, seu João. No «Itaquiry» os estragos calaram fundo. Cer-
— É simpres. Fiquei com enguiço por aquelle cas, porteiras, paiol e arvores derrubadas. Parte
cordão de nhá Luiza Maria. Como sô hónte que da casa descoberta . . . Um horror!
se apincha numa tranzação, acho que devem — Como é? dizia Luiza Maria, depois da tem-
aporveitá a febre . Dô o «Itaquiry •> em troca pestade, a espiar as minas. Como é?
do cordão e sem vorta. — É como já lhe disse, cubro a casa...
— E o resto ?
— Que me arresponds ? Veja que é uma bar- — O resto fica assim mesmo. Não mudo uma
ganha de se acceitd c'as duas mãos. «palha-. Vou é pegar a minha « matadeira • de
— Por mim acceitava, até já. Mas o snr. sa- formigas, que tanta sorte já me deu e saio por
b e : elle é da patroa . . . Vou ver si ella quer. esse mundo a fora, amontoando cobre >. A meio
A NOVELLA SEMANAL 113
cruzado cada «olheiro», garanto que já terei a- ranto em como elle não desapprova o negocio.
juntado com que comprar um sitiosinho, antes Ahi você corre ao sitio do Mandinga, agrada o
que appareçam as içás. ^ homem, pede-lhe desculpas, realiza a barganha e
— E eu ? o < ; Itaquiry » fica sendo nosso. Não acha bom ?
— Você fica na casa de meu sogro. - —- Acho bom demais, Luiza Maria. A felici-
— Ora, Antônio P i n t o . . . Não haverá por ac- dade entrou nesta casa, hoje. Aquella coruja"que
caso, um geito d'eu ir também? tanto agoirou, na figueira secca, perdeu o tem-
— Não ha geito nenhum. po. O meu sonho, o sonho ruim que tive «a
— Isso é o que havemos de v e r . . . noite retrazada não foi aviso.
i E ficaram pensativos. — Que sonho ruim foi esse, agora?
i '

No dia seguinte, Antônio* Pinto, logo depois — Pois sonhei que iam roubar o cordão! So-
do café, pegou a tal «matadeíra» de formigas, nhei que . .'. nem sei direito o que sonhei. Foi
machina de madeira, toda cheia de folies e canu- uma atrapalhada dos «quintos».
dos, inventada por elle mesmo) e levando-a ao — Como você está ficando exquisito . . . Não
terreiro, poz-se a limpal-a cuidadosamente. contou nada para mim !
| Luiz3 Maria, vendo-o assim tão disposto a cum- — Eu? Contar o sonho p'ra você? Eu,não í
prir o promettido, reflectiu algum .tempo e de- Você podia dizer que era um geito arranjado-
pois, disse ao marido não querer que elle a para influir. . .
deixasse em casa do pae, sósinha, para sahir pe- — Está bom, Antônio Pinto. O melhor é dei-
las estradas, feito mascate... xarmos disso. O que já foi, foi. Vamos é pegar
— Você não quer? Pensa que vou fazer isso o cordão e fazer o que eu disse, o quanto antes.
para meu regalo. Pois está muito . enganada. Estou aflicta. Pôde succeder que o Mandinga já
Mas também não estou disposto a continuar, co- não queira, ou morra . . .
mo até agora, «um pé rapado». A minha queda Instinctivameníe o casal se dirigiu ao quarto.
é pela roça. Preciso ser dono de uns bons al- Luiza Maria abriu a canastra e, mesmo sem
queires de chão. olhar, poz a mão no cantinhó onde devia estar
o precioso cordão. Sim, devia estar porque já
— Pois isso é a cousa mais fácil. É só ficar
não estava.
ao «Itaquiry».
— Você buliu aqui, Antônio Pinto ?
— De quê geito, Luiza Maria ? Por accaso eu
— Eu ? Ora e essa! . . .
ürei a sorte grande ?
— Não tirou a sorte grande, mas tem o cordão. Ella apalpou todo o fundo da canastra, mas
— Você fala a serio, ou está brincando ? nãò encontrou o objecto procurado. Já nervosa,
— Falo a serio. tirou, ás braçadas, tudo o que estava dentro e......
. — Ué ! que revira-volta é essa agora ? só lhe viu o fundo, limpo ! Então, pegou as rou-
pas, peça por peça, vasculhando-lhes as algibeiras,.
— É que tenho imaginado tanta cousa, Antô-
todas, meticulosamente. Mas nem signal!
nio Pinto. Olhe: o cordão é presente de papae,
isso é verdade; mas é um aftigo de luxo, que — Meu pae do ceu ! Aonde está o meu cordão?
vive ahi na canastra, á tôa; sim, porque botal-o E Luiza Maria, com as mãos na cabeça, desan-
no pescoço, mesmo em dia de festa, nãó tenho dou num choro de creança batida.
coragem. O que haviam de dizer? Nem "um lo- Antônio Pinto, ajoelhado, rente da canastra,,
gar p'ra cahir morto" essa gente tem ? Tudo isso não queria acreditar. Também remexeu tudo e>
eu pensei. Ora, o Mandinga dá o «Itaquiry» a troco também nada encontrou.
do cordão. Porque hei de me fazer de rogada ? Num desespero horrível, procuraram pela casa
Pra que? Seria tontura refinada! O «Itaquiry»" toda. Revolveram até a cinza do fogão ! Nada !
é bom sitio, fica perto de papae, não é longe da Promessas, rezas, exclamações e blasphemias
parerrtada; arranjadinho por você, virava um pa- não conseguiram pôr o cordão á mostra. Elle se
raizo! Inda mais que o mundo para mim está derretera!
nesta redondeza! — É castigo ! dizia Luiza Maria, inconsolavel
: Antônio Pinto escutava, encantado. e sem arrumação. Parece obra do sacy ou do
—- Vamos, continuou ella. Hoje mesmo, sem . tinhoso».
falta, damos uma chegada ao «Macuco». Con- Antônio Pinto emmudecera. Com a cara fecha-
tarei tudo ao papae, 'tim-tim por tim-tim» e ga- da, pensava efn João Mandinga.
114 A NOVELLA SEMANAL

Antônio Pinto começou, pois, a pôr em ordem


Si aquelle pobre casal de roceiros morasse em todas as cousas do sitio. Ia fazer de conta que
Londres, em Pariz ou em New-York, natural- aquillo era delle. Fez planos. O «Itaquiry» havia
mente não se conformaria com o succedido e, de ter horta, pomar, roças, bôa casa, pastagens
sem demora, pressuroso, recorreria á «infallibilí- bem cercadas, monjolos e até um jardinsinho ha-
dade> de um policia amador. Assim, um bigodu- via de ter.
do Nick Winter ou um Scherlok qualquer, após Depois de outros arranjos, resolveu, um dia, dar
a cachimbada costumeira, por-se-ia logo em cam- uns retoques na habitação, tão avariada pela tem-
po e em «três tempos » descobriria as pegadas pestade. Começaria do alto.
f resquinhas do . . . Em cima da casa, montado num barrote de
Mas nós bem sabemos que o Itaquiry » fica coqueiro, assobiando arranjava o sapé da coberta,
no Brasil, no Estado de São Paulo, alli no mu- quando, por accaso, ao olhar p'ra baixo, viu o
nicípio de Rio Claro. Depois, note-se que o Esta- «Crô-Cró», que como sabemos era o pato de
do de São Paulo inda não tinha a policia de , estimação de Luiza Maria, viu-o dentro da canas-
carreira e em Rio Claro não estava aquartelada tra, deitado nas roupas.
uma secção de metralhadoras. Depois, naquelle De súbito' uma suspeita surgiu-lhe na imagina-
tempo do «Imperador» quem é que sonhava com ção e cresceu. Tinha sido o «Crô-Cró ». Pato
o cinema ? Nem Julio V e r n e . . . Quem é que é de uma voracidade inconcebível! Engole tudo.
comprava espalhafatosos romances policiaes a tre- E «Crô-Cró» morava dentro da casa, vivia por
sentos reis o fasciculo ? toda a parte. Quem sabe si encontrara a canastra
Itaquiry» era apenas um sertão bravo, onde aberta, como naquella hora, aboletara-se dentro,
onças miavam em noites de l u a r . . . descobrira o cordão e . . . engulira-o!»
Ia matar o "Crô-Cró".
Desceu da casa e foi contar tudo á mulher.
O pobre casal não teve outro remédio, sinão o — Matar o meu querido "Crô-Cró" ? disse ella,
de se conformar com o mysterioso acontecimen- protestando. Não quero Antônio Pinto. Não foi
to. Era incrível, mas não achavam uma explica- elle. Não ha perigo. Um cordão daquelle tama-
ção rasoavel, para tudo aquillo. nho ! Depois si fosse elle, havia de estar doente...
A canastra andava, á beira da cama, fechada a E Luiza Maria defendeu o "Crô-Cró" da me-
chave. Largar a casa sósinha, foi cousa que elles lhor forma que poude.
não fizeram. Hospedes elles não tiveram... E Antônio Pinto não matou o "Crô-Cró"- Não
— E assombroso, disse o Mariano, ouvindo a o matou aquella hora, como determinara.
triste narração. É para pôr uma pessoa sem juí- Mas no dia seguinte, amollava uma enxada,
zo ! Depois^ de um largo tempo de cogitações, sentado na soleira da porta, quando viu a mu-
«continuou: — «Mas o João Mandinga não foi. lher sahir com uma lata e .encaminhar-se para o
Tenho tanta certeza disso que sou capaz de jurar córrego em busca de água.
sobre i innocencia delle. Conheço-o desde crian- Não resistiu mais.'
ça. E incapaz de roubar. — Ah! seu "grandississimo" tratante, disse el-
Antônio Pinto ouvindo aquella solemne afirma- le pegando o pato, Com que então já não chega
ção na bocca do sogro, velho respeitado e serio, o milho, nem os restos de comida, nem bolachi-
profundo conhecedor dos homens, tirou um pe- nhas? Agora é avançar em tudo. Papas finas:
so do coração e suspirou, como que alliviado de cordões de ouro . . .
uma idéa trágica. E de repente, para não dar tempo ao arrepen-
— Vou dar-lhes um conselho, meus filhos, con- dimento, torceu-lhe o pescoço. O pobre pato, que
tinuou o Mariano. Acho bom que vocês não pensem até alli, todo contentão, esperava por alguma gu-
mais nisso. Não comecem a esquentar a cabeçada loseima, esperneou, os olhos vidraram-se-lhe, es-
tôa. É bobagem. Tratem agora é de trabalhar tava prompto.
com afinco. Vão fazendo as suas economias, de- Foi então agarrado novamente e aberto á pon-
vagarinho. Mais dia menos dia compram o «Ita- ta de faca. ;
quiry >. Contem commigo. Ajudal-os-ei com o — Eu não disse ! gritou Antônio Pinto, como
que estiver nas minhas forças. doido, olhando para dentro do papo do "Crô-Cró"
1
O casal resolveu seguir os conselhos do Mariano. onde avistara umas fagulhas rebrilhantes. Eu não
A NOVELLA SEMANAL 115

disse? continuou elle, correndo, sujo de sangue, Sem dizer palavra á mãe, tratou de executar o
ao encontro da esposa. Veja! Veja, Luiza Ma- plano concebido.
ria! E mostrava-lhe o papo aberto do palmipede. Principiaria mudando a canastra.
Luiza Maria largou da lata d'agua. — Mudar a canastra! Ha quantos annos dor-
— Você matou o meu «Crô-Cró» ? Você... miria ella naquelle canto?
Eu ja sabia que o fim delle era este mesmo. To^ Fez alavanca com o cabo da vassoura e come-
da vida você não gostou delle. Era cada ponta-pé. çou a empurrar a canastra, m a s . . . os seus olhos
— Não se zangue, minha Luiza Maria. Seja o deslumbraram. Dentre as taboas e o couro, em
razoável. Olhe que era preciso tirar as duvidas. baixo, num logar furado, surgira a ponta de um
Agora estou mais descançado. Matei o «Crô-Cró». cordão de ouro. ,
Mas você nem deve ter dó delle. Fez o papel Ora, Zé Miguel que sabia a historia, de cór e
daquella vibora que sendo salva pelo calor dum salteada, foi pulando e gritando, chamar a mãe.
homem, quiz mordel-o. «Crô-Cró» não era pato. Pouco depois estavam todos no quarto, estu-
„ — Então o que elle era ? pefactos. -
'" — Era uma vibora, Luiza Maria. Era uma vi- Antônio Pinto abaixou-se e puxou a «ponta que
bora damnada! Hei de comel-o com arroz! apparecia.
O cordão, o derretido, o chorado cordão, sa-
hiu . . . inteirinho'
• —' Ah! que cousa exquisita, meu Deus 1 excla-
E assim, parece que a historia se acabou, ter- mou Antônio Pinto, batendo na testa. Que cousa
minando naquella noite, com uma ceia de pato extraordinária! Na minha vida garanto que não
e arroz. ( chegarei a ver outra igual. Façam idéa... Tanto
Mas hão sé acabou ainda. Falta mais' um pe- quebra-cabeça, tanta choradeira, tanto mau juizo
dacinho. Contemol-o: e . . . o cordão tão bem guardadinho ahi. Guar-
O tempo, que é também distancia, deixou lá dadinho por estas minhas mãos!
longe, em ponto pequenino, quasi esquecida, a — Como é Antônio Pinto? Como é que você
historia do cordão. disse ? t
Os conselhos do Mariano fruçtificaram. — 'É, Luiza Maria. Só agora, por esta casuali-
O «Itaquiry» estava outro. Quando os ipês dade, dez annos depois do succedido, é que me
floresciam já se não falava em arrendamento. lembro como foi. E quem havia de dizer? Pois
João Mandinga, sabedor que foi do sumiço do foi durante aquelle sonho ruim. Sonhei que iam
cordão, ficou mudado, virou uma «áeda». Sem roubar o cordão e sonhei também que o escondi
ninguém pedir, offereceu o «Itaquiry» a praso, a aqui. Até parece que estou vendo como foi.
praso bem largo. — E não ha de ver que podia ser mesmo?
Antônio Pinto acceitou ó offerecimento. Ac- M a s . . . e as faiscas de ouro no papo do « Crô-
ceitou-o e depois não teve descanço. Si por um Cró » ?
lado amortisava a divida, muito de vagar, por — Aquellas faiscas que brilhavam? De certo
outro, melhorava o sitio. Construiu boa casa, nem eram de ouro, Luiza Maria. De certo eram
fez pomar e horta, conseguiu pastagens bem cer- pedacinhos de qualquer metal amarello.
cadas, assentou o monjolo e o jafdinzinho sahiu. — No emtanto, continuou Luiza Maria, no
Luiza Maria tinha filhos. Um delles, o José emtanto o pobre pato é que pagou o...
Miguel, ou Zé Miguel como era tratado, já an-
dava nos 6 annos. Era o queridinhc, mas traba-
lhava, como trabalhavam todos naquella Casa. Emquanto o facto corria ligeiro, contado por
O mais velho ralava mandioca, para fazer pol- toda a gente daquellas redondezas, o cordão deu
vüho; o do meio fazia um pouco de cada cousa, hora. João Mandinga acceitou-o pelo resto da
e elle, por ser o menor, ficava ajudando nos ar- divida, que ainda era bem grande.
ranjos de casa. Para festejarem a escriptura de quitação, pas-
Pois bem. Certa manhã, Zé Miguel pegou na sada semanas depois, na f reguezia ' de São João
vassoura de guanxuma e foi varrer o quarto. Baptista de Rio Claro, Antônio Pinto e Luiza
Como soffresse da mania dos arranjos, verruma- Maria fizeram muita cousa no «Itaquiry »: jantar,
va-lhe a cachola o desejo de dar uma nova reza, ceia, baile, desafios e um animado racha-pés.
disposição aos moveis do quatro de seus pães. THALES ANDRADE
116 A NOVELLA SEMANAL

altos prédios da cintura de construcções. Era um


prédio novo, dos mais bellos da nossa época, pro-
ducto dessa espécie de renascimento architecto-
nico que se manifestou quando a bem amada ci-
dade do Rio de janeiro resolveu finalmente reagir
contra a tyrannia inesthetica dos mestres de obras,
classe execrável de utilitaristas sem imaginação,
O A R R E P I O sem idéas, sem gosto e sem responsabilidade pro-
fissional. Era uma casa alta, de linhas graciosas,
A caminhada fora longa, embora feita lenta- ao sabor flamengo, com um dos lados se projec-
-mente, porque não tínhamos pressa nem destino. tando em torre até grande altura. Não estava
Não será a melhor maneira de repousar idéas, concluída, mas não se via senão um andaime,
de adormecer preoccupações, de preparar o es- exactamente no mirante, dando-lhe a volta toda
pírito para um jantar appetecido e para uma noite e sem pontos de apoio do lado exterior. Não
reparadora, andar a tôa, uns vinte minutos, meia passava de uma platibanda feita de iaboas ligadas
hora, a pé, em companhia de alguém com quem umas ás outras, conjugadas provisoriamente, todo
se esteja em intimidade absoluta, assim pelos cre- o apparelho preso pela parte interna da casa. Não
púsculos de verão, nas tardes ventiladas, j quando tinha mais que três palmos de largura e sobre o
já desappareceu o calor afogueante dos últimos estreito passadiço estava um homem agachado,
raios do sol, quasi horizontaes? provavelmente o operário que reunia os seus uten-
Se não estávamos, na verdade, cançados, pu- sílios, acabada a tarefa.
nham já os nossos músculos uma certa indolência — Tiveste receio que o homem viesse abaixo,
na marcha e uma Iassidão agradável se insinuava perguntei, quando o operário se retirou.
nas pernas, nos braços em abandono e chegava — Não...
mesmo ás nossas espaduas. Assim o convite nnido — Soffres da vertigem das alturas?
mas persuasivo, daquelle banco sob a aparada — Também não. E se soffresse, não havia
fronte do oity, perto dos massiços em flor, sendo risco porque eu estava em .baixo. Queres a ex-
oppórtuno, foi aceito com agrado por nós ambos. plicação do meu arrepio ?
— Um cigarro ! — Está claro que sim.
— Se não for muito forte...
— O arrepio vem todas as vezes que vejo al-
Era de fumo fraco. O meu amigo aceitou-o e
guém trabalhando numa torre ou mesmo em qual-
entramos a fumar com preguiça, os olhos perdi-
quer andar mais elevado, em equilíbrio sobre unia
dos no mar immovel da enseada, nos claros pa-
taboa que se projecta fora das fachadas.
lácios da Praia Vermelha, até o céo, do outro
lado das pedras. Carros passavam, de volta de Hoje foi a vez daquelle pobre homem.
um enterro, seis, oito em fila, apressados, em- Vem-me o arrepio porque me lembro de certo
poeirados, conduzindo sujeitos vestidos de preto, facto, já muito remoto, que me causou uma ter-
as faces a reluzir das fricções violentas dos lenços rível sensação, sem, entretanto, no momento, fazer-
enxugando o suor. Em sentido contrario passou me estremecer.
um elegante double-phaeton de 40 cavallos, rá- Eu cursava o primeiro anno de direito, numa
pido, e um instante brilharam vestidos frescos de Faculdade de província.
verão e véos e gazes de côr, echarpes que fluc- Tinha uma boa roda de amigos na turma.
tuaram nervosamente para fora da carrosserie ... E nessa roda havia de tudo: o estudante
— Quem é ? modelo, vivendo apenas para o compêndio —
— Não sei, não pude ver. classe de moços que até a terminação do curso
E a poeira implacável que se levantava na es- fecham todas as portas deslumbrantes da vida e
trada e subia até nossos olhos, bocas e narinas, se contentam com a miserável janela do exacto e
fez-nos voltar com desgosto a face para o outro acanhado cumprimento dos seus mesquinhos de-
lado. Ao mesmo tempo o meu amigo estreme- veres acadêmicos; o alitmno brilhante que se não
ceu dos pés á cabeça. vê esíudar e presta excellente exame; o repetente
— Que foi isso ? eterno, que sempre tem a sorte de encontrar um
— Foi o arrepio, respondeu-me a rir, apon- professor sem entranhas, reprovador desalmado,
tando com o dedo .o mirante de um dos mais poço de ódios pessoaes; outro que, para não per-
A NOVELLA SEMANAL 117

der uma hora estudando um ponto, comprehen- lado esquerdo, vi surgir da mais alta janela, da
dendo-o, gasta duas apparelhando o material de, ultima ogiva, a figura do magro. Deteve-se um
fraude para as provas, com muito engenho mas instante. Avançou o pé, experimentando a plati-
sem a assimilação de uma só idéa; e até mesmo banda. Passou para fora, deitando logo a correr.
o que sem estudar durante o anno, sem o menor Não tinha ainda desapparecido do lado de lá da
cabedal armazenado, consegue por um prodigio forre è o gordo já transpunha também a ogiva,
de presença de espirito, dizer coisas certas em ganhando a platibanda e disparando ,empós do
banca. Morávamos oito na republica. Tínhamos outro.
'a casa toda, uma casa térrea, situada na praça, Essa plataforma não chegava a medir três pal-
em frente á Cathedral. mos de largura — na tarde desse mesmo dia fui
Certa occasião — a época de exames vinha perto verificar — distava do solo, meu caro, apenas qua-
— eu estava abancado na saja da frente,' devo- renta e cinco metros. Não tinha corremão ou
rando os pontos de Direito Romano, quando su- balaustráda, nada que se parecesse com um vago
bitamente no interior estaloq uma algazarra, uma ponto de apoio. Pois, foi por ahi mesmo que,
altercação. Mal reconheço a voz de dois collegas durante uns três infinitos minutos, vi em voltas
em disputa, gil-os atravessam a sala como um pé successivas, o magro passar perseguido pelo gordo
de vento, um perseguindo o outro, e, saltando a o gordo perseguindo encarniçadamente o magro.
janela baixa, caem no passeio, ganham a praça Eu tinha o coração pequeno, apertado, e creio que
que um alvo lençol de areia cobria e por ella a minha emoção ainda era maior quando algum
continuam a desabalada carreira. Eu deixara o livro, dos dois, ou, ás vezes os dois ficavam occultos
nteressado na aventura, acompanhando as peri- pela torre. Eu acompanhava, suspenso, a pavo-
pécias daquelle sport improvisado. rosa carreira: o magro . . . o gordo . . . o magro. :.
A praça não era muito grande, de sorte que o g o r d o . . . o magro . . . o g o r d o . . . De repente
eu podia seguir todos os movimentos dos com- — e nunca mais tive sentimento de alivio tão
panheiros. O perseguido conseguia manter o ou- grande — o magro desappareceupela Ogiva. O
tro a-distancia'de seis a oito metros. Varias vezes gordo seguiu-o. Respirei. Estavam salvos.
fizeram a volta á praça e de cada vez que passa- Na dia seguinte, voltados á razão os conten-
vam em frente á janela mais afoguerdos vinham, dores, fizemos a nossa mudança para longe da
mais excitados e cada qual menos disposto á ren- Cathedral. E ahi tens a historia do calefrio...
dição. Inda lhes soltei um grito: — Malucos! OSCAR LOPES
Ambos viraram os rostos rubros e-risonhos para
o meu lado e continuaram a correr talvez mais
animados.
Um era magro, outro era gordo. Parece que MONTEIRO LOBATO
o gordo, com o meu grito, ganhara certa vanta-
gem! O magro, o perseguido, logo viu isso e
enfiou pela 'porta aberta da egreja, defronte. E
o gordo passou atraz delle. Eu repeti para mim
mesmo: Malucos! e ia abandonar a janela, vol-
vendo ao livro.
OS NEGROS
A manhã estava fresca e alegre. O sol nas- N. 2 DA NOVELLA NACIONAL
cendo no oitão de nossa casinha, batia em cheio
nos prédios fronteiros. A Cathedral, toda branca,
mais branca estava do sol. A brisa que corria
rente ás casas do lado ensombrado era uma ca-
ricia boa. Creadas regressavam do mercado, os
Vreço t$ooo
cestos abarrotados de legumes. Creanças brinca-
vam de roda e cantavam, á sombra de um cas-
tanheiro. Mas, uma pancada, de sino, uma pan-
PEDIDOS A
cada secca, falha, de resonancia áspera, veiu ti-
rar-me da contemplação em que estava mergu- SOC. EDITORA OLEGARÍO RIBEIRO
lhado. Levantei, instinctivamente, os olhos para RUA ABRANCHES, 43 - CAIXA, 1Í72 - S. PAULO
as torres, alvas da,Sé e, de repente, na torre do
A c a b a d e apparecer s

^j^l^Sr^f^r^r^
S I M & 0 BEM&NTUA

k'?

MONTHROLOBA.TO&O -EDITORES
RUA BOA VISTA N. 52 - SÃO PAULO -1921
^^^^^p^frftagfrj

Preço 4$000
A NOVELLA SEMANAL,

UPPt
assignala as condições funda-
mentaes x e 'difficeis de reunir
que tão alta actividade intellec-
r-TTrTtl.
dinasCelebres
t u a l exige, ou sejam a intuição
Vida literária artística, que logra penetrar na
própria alma das coisas, o sa-
• q -• v ber e o bom gosto indispensá-
veis á comparação, á reflexão e
CRITICA analyse, a imparcialidade e i n - DA "ARTE de FURTAR,,
teireza moral , que outorgam
^Juntamente descobri dora e Vieira ou alguém por elje, na cArt»
sinceridade ao juizo e permit- de furtar», afim cie nos mostrar pomo-
creadora de belleza, g u i a soli- *tem reconhecer, sem obstáculos, elevem os governos "bem remunerar os.
cita e amável e n t r e o intricado a summa de verdade, de bon- seus servidores, para \que por suas
labyrintho que é o contradicto- próprias mãos não se paguem estes em '
dade e de belleza que possa ca- dobro, figura-nos interessante paraT
rio mundo das idéias actuaes, ber sem toda espécie de idéias bola, umn das mais bellas e expressi-'
clarividente percéptorá de jtodos e em toda forma de arte. vas que se conhecem e que tanta e-
os matizes e aspectos da obra loquencia tem, quanta grana, resum-
Affirmemos u m a vez mais que bra.
de arte e do espirito que a pro- «Tenham todos por certo, que, se
jduz, a critica moderna é o gê- a critica, bem entendida, não nao guardarem com seus subditos a
nero prestigioso e a t t r a h e n t e é somente obra de analyse mas devida correspondência nos pagamen-
que, abraçando todos os outros t a m b é m obra de grande e fe- tos e remunerações dos serviços qua
lhes fazem . '. . — conclue o incógnito
ijgeneros, mais v o g a adquire to- cunda creação. Porisso os en- pamphletario.
ados os dias n a l i t e r a t u r a u n i - saios de critica scientifica ou Alas não nos dilatemos de antemão,
versal. Não a i m a g i n e i s , de estopsychologia como a chama nas conclusões, quando ainda o feito,
não referimos.
! accordo com a preoccupação v u l - H e n n e q u i m , só podem adquirir Precavenha-se o leitor contra as.
! gar, como u m a senhora sisuda valor indiscutível sempre que, rebarbas de dous ou três aichaismo»
e rígida, que e s q u a d r i n h a as ao seu methodo analytico insu- de maior tomo, uma ou outra expres-.
são vernácula esquecida e leia a bella
'faltas para condemnal-as com perável, j u n t e m a capacidade de pagina, capitulo VI, paragrapho 16 :
i rigor, como pôde ser ' nos tem- s y n t h e s e e a, belleza de expressão
1
pos de Boileau, Despreaux e de um espirito artístico. A gran-, «COMO NÃO ESCAPA DE LADRÃO.,
ainda posteriormente. E ' , antes, deza do trabalho critico de Tai-i QUEM SE PAGA POR SUA MÃO
uma musa alada e graciosa, e- n e está t a n t o em suas systema- A um cego, desses que pedem por
namorada e ágil, cujas virtudes" ticas construcções sociológicas, portas, deram em certa parte u m ca-
são a curiosidade de todo co- buscadas no estudo de obras li- cho de uvas por esmola ; e como se
guarda mal cevadeira de pobres, o
nhecimento , a s y m p a t h i a , a terárias, como n a côr, no movi- que se pode pizar, tractoü de o asse-
comprehensão e a tolerância e mento e n a riqueza do seu es- " gurar logo repartindo igualmente com
que, percorrendo airosamente os tylo, sem o qual aquellas viriam o seu moço que o guiava : e para isso
concertou com elle, que o comessem
jardins da arte, da sciencia e a ser pallidos ^esquemas in- bago e bago alternadamente ; e depois
da vida, r a e adsignalando com capazes de suscitar urn fundo de quatro idas e venidas, o cego para
interesse e de suggerir profun- experimentar si o moço lhe guardayai
sua varííiha mágica cada flor fidelidade, picou os bagos a pares : o
aberta á sua passagem, emquan- das ideações. moço vendo que seu amo falhava no
to a sua palavra inquieta, va- contracto, calou-se e deu-lhe os oàbes
MELIAN LAFINUR a ternos : nao lhe esperou muito o oe7
riada e pittoresca, tece, sobre go ; e ao terceiro invite descarregou-
taes motivos, cpmmentarios mais lhe com o bordão na cabeça. Gritou
bellos e profundos ás vezes que o rapaz : porque me daos '? Respondeu
o amo • porque contratando nós que
o próprio objecto que os sug- comêssemos igualmente estas uvas ba-
gere. Assim a conceberam e rea- go a bago, tu comes a três e a qua»
lisaram esses mestres sábios e tro. Perguntou-lhe então o moço : e
quem vos disse a vós que iiz en tal
elegantes que se chamam Be- alêivosia? Isso està : claro, respondeu o
nan, Taine, Sainte B e u v e . Ma- cego ; porque faltando-te eu primeiro
xaulay, Saint-Victor, Matew Ar- no contracto, comendo a pares, tu te
calaste sem me requereres tua justi-
nold, De Sanctis ou D. J u a n ça, e não eras t u tão santo que me
Valera. ; íévasses em conta, nem em silencio a
minha sem-razito,senüo pagandò-te em
dobro pela calada.3
«Um excellente critico — disse
Voltaire — seria u m a r t i s t a que Leram '! Comprehenderam ?
A um cego, que de porta em porta
possuísse m u i t a sciencia e gos- mendigava, em N certo logar deram de
|to e que estivesse isento de pre- esmola u m caclíp vde uvas. Ora, ai-
Ijuizos e de inveja.» E i s aqui forge de pobres' resguarda-se mal,
tanto porquo, pela fome de seus do«
firma definição excellente que
120 A NOVELLA SEMANAL

uc«, nelle nada sóe permanecer guar- questiunoulas de grammatica pura- um porco, E o romance continua, a»
dado, como porque, cevadeira incon- mente formal. E' um amontoado de trave» de visões macabras, sonhos, pn-
sistente, de tecido, nelle só se guarda observações estreitas, sem ordem nem sadellos. horrores, até romatar em
mal aquillo que se pode amassar e es- methodo, sem espirito nem fôlego. nova epidomin de cholera. E' o digna j
rnigalhar. O cego, pois, tratou de ga- Imaginávamos que no Brasil j á pas- epílogo de tamanho prólogo.
rantir-se as uvas, antes q u o s e pizas- sáramos o período da grammatiquiee Como se vê, o romance acompanha '
sem, combinando oom o seu guia o pelo prazer da própria grammatiqui- a theoria do j o r n a l . O jornal twm,
comerem-nas irmanmente, bago a ba- ee e que, j á ha muito, haviamos en- êxito. O romance tel-o-á também.
ilo. E depois de quatro idas e vindas trado em uma phase nova de estudos A psycbologia ambiente não se :U4,
ao cacho, não podendo com os olhos methodicos. elevados e largos, alta- tora . . . ,|)l
assegurar-se d» lealdade do servo, i- mente . inspirados num pensamento
maginou o cego faltar ao promettido. superior, preoecupados com entender
comendo aos pares os bagos e pondo e explicar os pheuomenos da, lingua-
assim á prova o contracto com o ou- gem. Era j á tempo, parece, do dar al-
tro. Híi-0 protestou, calou-se o moço ma a essa coisa terrifica — à gram-
e «deu-lhe os cabes a ternos», que é matica. Pois ainda não somos capazos
como se disséssemos — «passou-lhe a de fazer algo como a philosophia da
perus, comendo a três e três...» Não linguagem ?
se fez esperar alarmado o velho e,
ao terceiro golpe assim multipli- Talvez, não. Se agora, depois que
cado, desancou-o a bordoadas de le- Mario Barreto nos deu uma serie de
gitimo bordão. estudos «liberaes» de portuguez, os
quaes são ttm encanto e uma delicia
Que mais apreciar ahi ? de vistas largas, de espirito e de ele- Uma beila imagem.
A belleza do estylo, caracterisado vação, descabimos nesta estreiteza de
pela boa regência prepositiva, pela «magister-dixit» é que ainda não sa- Escrever é jogar-com ideías,!J„IÍ!n«»
Ordem inversa sempre que o pronome himos daquelle período. pagina sem idéias é menos que xnk
sujeito apparece, pela força dos ver- Lamentável. Decididamente, porém, manequim, ainda que irreprehcasí-
bos e expressividade dos termos, ca- já não cabem grammatiquices no Ín- velmente vestido. 10' uma ronpSJon-
racterísticos de uma época ? Ou o am- dice de nossa cultura. funada no cabide . . .
plo e dilatado da verdade moral, ap- Pelo que o prof. Cintra está na obri- Mas não bastam idéias. São cilas
plieavel universalmente a tantos ea- gação de arejar e aclarar um pouco a apenas matéria bruta, que cumpre
sos da diutumu pragmática? sua pesada, nevoenta e r u d i ç ã o . . . forjar, modelar, poiir. Só vale a ima-
gem. A vulgaridade de uma idoia
RELÍQUIAS DA MEMÓRIA — CASTO cohtòm os elementos da belleza de
K ft.KM.o — E. Typ. Ed. d'«0 Pen- uma imagem, como a bruteza da si
samento* — São Paulo. lica os brilhos docrystal e a opacidadt
Ha uma dozena do annos, proxima- da pedra as scintillações do brilhante
mente, havia no interior de São Paulo Assim, a idéia, de uma voz que
um jornal de grande circulação, que, echôa é a simples representação mon-
nas linhas da Paulista e adjacências, tai de um phenomeno physico de ob-
entrava em todas as estações, penetra- servação quotidiana : a repercussão,
va em todas as casas, devorado por Faltam-lhe caracteres ele precisão o
leitores de todas as camadas sociaes. forma artística. Prôcisemol-a, pois:
Era um expoente, nm grande expoen- gritos de dor echoam pelas mura-
te social. Não tinha, nunca teve côr lhas de um mostoiro. Ainda é o fac-
O NOME BRASIL — V. Assis Oix- politica. Era, porém, vermelho por
i KA — Monteiro -Lobato & Cia. — to em sua singeleza. Onde a poesia \
duas feições. Imprimia-se em cor de Onde a arte ?
São Paulo. rosa e. carregando no mesmo matiz,
Depois do apparecíinento de meia só imprimia o rubro : — crimes, assas- Seriam, porem, múltiplas as sttss
•dúzia, de obras notáveis, estamos em sinatos, assaltos na estrada, dramas expressões poéticas. Eis uma:
•São Paulo em pleno florescimento da de amor e de adultério, tragédias, to- s... meus gritos de profundas dores
mediocridade. Dos nossos últimos li- da a craveira do trágico, do horrivel hão de perder-se desoladamente
vros salva-se apenas a intenção, a e do fúnebre, j o r n a l vermelho, o me- na mudez cavernosa das muralhas.*
louvável intenção df trabalhar o pro- nos lugubre de suas rosadas paginas Quasi se não reconhece, á, falta do
duzir, eram os fallecimeutos ela gente da termo — « eeho >, cuja significação,
A tudo, porem, sobrepaira consola- terra, únicas locaes admittidas no seu aliás, paira sobre os vorsos, residindo
dora, constatação : a mu estila editora abundante noticiário... Pois,por cumu- principalmente no verbo c-perdor-se ,
se firma. •• consolida. 10' pai'a o (jue lo, pacatíssima ora a eidadesinha em e rio qualificativo « cavernosa ;.
valem os maus livros - - dão a medi- que se publicava. Esplendida expressão ! Na. verdade,
da de resistência do iueio..,e a t. testam a què è o éoho ? E' o silencio que se
elasticidade do commercio livreiro. Q.ue preciosidade não seriam as ool- eava em galerias sonoras, atravez de
Assim, <> progresso do negocio edito- lecçõos dessa, folha ! Os nossos roman- todos os anteparos. São cavernas de
rial anda hoje na' proporção inversa cistas. a,beberados nellas, suppririam som, abertas' na solidão e quietado
da qualidade da, matéria-prima intel- todas as deficiências da imaginação e dos paramos. í
lectual e artística. Pois, si quanto, da preguiça, mental, com o apreciável São esses verlsos das <. Terzos • , livro
mais moiinus as obras, mais prospera proveito de se manterem á altura do de, estreia de, Amadeu Amaral, publi-
& industria... publico. cado em 180W. São do soneto inicial,
Não está bem nesl es moldes o livro 'Relíquias da memória nos faz todo elle um longo eeho, como a
do prol. As.sis Cintra i \ssis com S;,. pensar no antigo orgam-expoente do affirmação de um temperamento de
O SÍUI —- cO nome Brasil- representa Oeste. Começa., logo de entrada, com auditivo :
um trabalho valioso de investigação ^ferimentos graves. e «cicatrizes-^.
e methodo. trabalho completo, exijans- I)'-sde logo, uma epidemia de ebolera. Quem me conheça, muitas vozes ha do
tivo. de analyse e documentação. Es- a resurreição de um morto e o des- ver que na, Dor, como bojo, me en-
tudando todas a-, hypothese-., pró ou vario, enfureeimento e morte,de uma [ clausuro
contra u m a ou outra graphia da pa- rapariga,,. Duas paginas além da epi- — monge vagando em corredor escuro,
lavra Brasil, inclusive as mais absur- demia, antes de recobrada a sereni- alheio aos eebos da cornmnuidado.
das, o auctor se revelou um critico dade dos nervos, eis... Eis o que, lei- Mudo e grave e alquebrado, como um
Io admirável s.-uirrH—íjdo. que, não tor amigo V Nada menos que um sup- [ frade
r-ontente de refutar as opinões re.-pei- plicio que escapara á inventiva, ehi- que sonha um sonho religioso e puro,
taveis. refasH-as todas, uma por uma. n e z a ; a morte de um homem esfa- olho. ás janeDaí ogiva,es do muro.
:-om grandes gastos de erudição. queado entre quatro mourões, como as o roxo pór-de-sol da mocidade.
diagonaes de u m rectangulo . . K a
Em meio desta florada rachifíea. -erie dantesca prosegue : marcação de Sinto qtie a noite vem. cheia de bor-
fez obra consistente, gado. a. ferro em brasa, morte de um | rores
ffTKSTÚES DE PORTTOCKS — E. touro a cabeçadas de carneiro, assas- colher-me neste claustro, onde ómeu-
Assis CINTRA — YYeis/.fiog X: Irmãos sinio de um guitarrista. Depois, uma . 1te
Sã'o Paulo. s<-ena horne.ríca : dois, quatro, seis resoam pelo chão, minhas sa,nda1iíts;
meninos se atracam, num só bolo,
Nao SÍ- dirá o mesmo do livro «Ques- num unieo pugilato, de que ainda e que meus gritos de profundas dorís
tões de português;, em que o mesmo participam dois cães, uma vacca e... hão de porder-se desolodamcnte
r>rofjssnr se compraz em resolver na mudez cavemos» das murttlliBS;
^ D I Ç O B í S JDJV

AMADEU AMARAL F. T. DE SOUZA REIS


A Pulseira de Ferro (novella). 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
Um soneto de Bilac (critica) , 2$000
WALDEMAR FERREIRA
i MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante 8$000
Os Negros (novella) . . . . . . . . 1$000 Estudos de Direito Commercial . . . . 10$0rj0
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OS PEDIDOS DO INTERIOR DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

S O O I K O À I X B E D I T O R A O I v E O A R I O R I B E I R O
réua O r . A b r a n c h e s , ^ S = C a i x a P o s t a l l l ^ S S = S à O í»AXJI_,0

EDIÇÕES DA
ti
Revista do Brasil
Broch. Encad. Broch. Encad.
ff
NEGRINHA, contos por, Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato . . . . . \ . . . 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pelo
URUPÉS, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4$000 5$000
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1DEAS DE JECA TATU, critica F. Assis Cintra 3$000
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por Monteiro Lobato . . . . 3$500 domiro Silveira 4$000 5$d00
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DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato Corrêa . . . 3$500 4$500
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PROFESSOR JEREMIAS, por Léo Julia 5$000
Vaz, 3.a edição . . . . . . 4$000 5$000 S C E N A S E PAISAGENS DA MI
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires 5$000 —
reto, 2$000 — CASA DE MARIBONDO, contos,
LIVRO DE HORAS DE SOROR João do Norte , . 3$000. —
DOLOROSA, poesias por Gui- PAIZ DE OURO E ESMERALDA,
lherme de Almeida 5$000 — romance,/. A. Nogueira . . . 4$000 —
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 ._ MAIS 10 o/o PARA O PORTE
Pe«licU editores: M o n t e i r o L o b a t O (SL C , C a i x a 2 - A - S. P A U L O
vwalHaaa^HaHMBIBMaMaaalllllnaHlallM^

A NOVELLA NACIONAL 'Volumes publicados:


A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por
série de pequenos livros, nos quaes AMADEU. AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : oíferecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "E' no gênero uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima „ — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão nó prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do "Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 i/s X 12 »/* centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnifico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor -A
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL, 1
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras!
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-J|
cidas e apreciadas.

OS NEGROS

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volunie.'11000 em
todas- as livrarias. Pelo
correio, registrado lí|300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3$500; série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14J000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr. Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo Là, foges, aeonsel]*"'
ANNO i SAO PAULO, 18 DE JUNHO DE 1921 NUMERO 8

iJLA.
IVAL

^CEDITOI^OIJeCl*RIORIBEII^-R^^
A NOVELLA SEMANAL DIREC.TO*: BRENNO FERRAZ
P U B L I C A - S E AOS S A B B A D O S
Par» os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collecções
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, t u m circulo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extraeção no
cioso : o livro não se difiunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se difiunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares,-e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
de sorte a" despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reolame, muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da creação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui u m a pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel pela escrupulosa escolha' era matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de t o - mesmo tempo que u m abundante repositório de infor-
dos os meios para o diffundir em todo o território na- mações bibliographicas, u m a selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura^ dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
gramma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa collaboração especial, de u m punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as vantagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos e desconhecidos, consagrados e estreantes ,oomtanto
te, a toda gente ; mas não será futil e de interesse e- que taes obras tenham valor e sejam conformes oom a
phemero como ella : pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A NOVE1LA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá u m a verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que sô encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
urna bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volumes, por serem esses os
gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
e creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação,
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora, Todos OÍI outros gêneros terão o seu logar no nosso
procurará nos auctores a vida, a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — cios melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. Não seria este o melhor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathieo.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- O s El>lT0I!F,S.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col- Aos leitores queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessante para qualquer que nos enviem relações de auctores
das secções deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda parte • cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seu nome, villas, povoações, estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, boteis, clubs, bibliothecas, e t c ,
ferecem a sua collaboração. estando porisso organisando u m ser- Importante
Os originaes devem ser escriptos de viço de distribuição que será o mais Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em ealligraphia completo ^possivel, de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legível e de preferencia dactylo- ver ponto do território nacional onde envi ando-nos adeantadamente a res-
graphados. não tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa quo angariar qual-
garío Ribeiro — Caixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará interessar pela venda ou leitura des- sil, no valor de 20 o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os jiditores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, Anno 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra,
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre . 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . 5$000
lém disso'uma'noticia critica. fornecida, rogand » todos quantos Numero avulso $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO-R. Dr. Abranches, 43-Caixa Postal, 1172-Teleph.: Cidade, 5441-S.PAULO
VNNO I A NOVELLA SEMANAL São P a u l o , 18 de Junho de 1921 NUMERO 8

ROGÉRIO, O R U D E - R a u l
Pompeia.
SIÍMMARIO — Euclides da Cunha •
Viriato C o r r ê a -
UM PROBLEMA DE PSY- Vida Literária A <Aflan-
CHOLOGIA — L é o V a z . t tida».
O s nossos poetas — Paulo
A FUGA—Affonso Arinos. " M Ã E „ M A R I A — Olavo SUPPLEMENTO — A vida ' Eiró — Amadeu Arríaral.
NOITE DE S Ã O J O Ã O — Bilac. anecdotica e pittoresca Paginas Celebres —De Ana-
Luis Carlos. JESUS ,— T h o m a z Lopes. dos grandes escriptores creonte.

ROGÉRIO, O RUDE
E nm velho appareceu. Muito velho; os cabel- chitecto vem e debuxa a linha aristocrática do
los brancos, encacheada coma, desciarh-lhe aos arabesco,,que é como uma inscripção em que se
hombros, tão brancos, tão realmente prata, que recommenda ao futuro a gloria. E o éstatuariç;
todo o ouro do dia nascente não conseguia dou- sobre o monumento do pintor e do architecto
rar. Perdia-se sobre aquelle inverno, todo o es- apoia uma grande estatua, azas de bronze abertas,
forço de um sol pujante de primavera. * para o ceu, como um anjo insolente de gênio,
— Vens, talvez, ao meu appello ? Ninguém me presto a escapar-se para a apotheose. Quem vae
pode valer. Queixo-me4o passado irrevogável que' lembrar-se, deante d'esta grandeza, do obscuro
me preparou esta vida de amarguras.. Não ha operário da, muralha? O pedreiro trabalha; é o
remédio. servo; os outros triumpham. Triumphar é fabri-
— Nada desejo, entretanto, para mim; meu car apparencias. O melhor pedestal da nossa'vi-
filho é a minha aspiração e o infeliz^ tão moço, ctoria é o despeito da concorrência. A evidencia-
é já um, condemnado. Eu o quizera illuminado e fere o despeito com um deslumbramento. Fabrica
a escola o repeüiu. Crescem-lhe pellos á beira da a evidencia e verás.
testa, como orelhas de onagro, e eu lhe quizera Nada me perguntes. Bem sei do que digo.
um perfil de medalha. Indico-lhe a cidade, o ca- Sou muito velho. Chamam-me zombando a Ex-
minho largo do successo, e o selvagem reclama periência, e eu me chamo Século. Sou filho do
o campo, o campo. Quizera vel-o calcando aos Tempo e vou . . . meu destino é ir. Qs dias são
pés o galanteio das princezas, tapete de cora- os rneus irmãos; passam por mim, conheço-lhes
ções ! . . . e vou sorprehèndel-o a desabotoar as o sorriso. Toma. Este é o cofre-dos meus recur-
virtudes camponias cheirando a estrume e a ferio... sos. Retira a mão, cheia quanto precisares. Ocon-
— Tranquillisa-te. Teu filho será grande. Mas dão mysteriOso da carta guarda expedientes con-
é preciso que me ouças. Deixa cahir a fouce; o tados pelos teus desejos. Tudo terá teu filho. Será
trabalho é a escravidão. Míseros, aquelles que se grande, illuminado, poderoso. Vencerá distancias
escravisam á glefya. O pedreiro accumula a alve- sociaes e altitudes de prestigio. Fidalgo? E>pou-
naria, sobrepondo custosamente as lascas de rocha: co. Príncipe? Pouco. Monarcha? Ainda pouco.
edifica o fundamento e o esqueleto da muralha. Elle será Papa! Chamar-se-á — Leão."
Veio o pintor é encobre a valia de todo aquelle E o velho extinguiu-se numa evasão de sonho,
trabalho* com a ligeira camada de tintas. E o ar- desfeito em nevoa, em nada, como uma forma de
122 A NOVELLA SEMANAL

vapores no espaço, deixando apenas por momen- pouco. Príncipe ? Pouco. Monarcha ? Ainda pou-
tos a impressão lúcida, das alvas barbas, como a co. Tú serás Papa! Chamar-te-ás Leão. Parte!"
lembrança de um meteoro. E tantas vezes abriu-se o cofre dos recursos,
que Rogério, o rude, subiu ao throno pontificai.
Mordei-vos despeitados! Invejosos, imitadores e
— Fabrica a evidencia e verás, dissera o velho,
plagiados, basbaques das honradas, que levaes a
^fabrica a evidencia. Mas é incrível! A alma laten-
vida olhando para o alto, impotentes de todas as
te do mundo não revela assim . . . mas este cofre
categorias, e de todas as ambições, mordei-vos!
é real, é positivo. Uma illusão palpável ? Abra-
Elle triumphou. Enthronizou-se no superlativo da
mol-o e ensaiemos."
pose. Tudo que se ama na terra, de brocardo e
Aberto o cofre, foi como um derramamento de
ouro, tudo elle foi; hoje, é Papa e chama-se
Paraizo. Expandiu-se no ambiente uma sensação
Leão. Dobrai o joelho; beijae-lhe as pegadas, que
de ventura, que chegou até ás flores. Os pendu-
cada prego de seu calçado grava no chão um sello
clos dobraram-se vencidos, ternos da morbidez
de santidade. O favor de um só de seus olhares
langue do ar.
exalta-nos e nos enche com a munificencia de
— Que meu filho appareça! Ashaverus, Que se ha de fazer ao homem a quem \
E mal fora este desejo enunciado, eis que sur- el-rei quer honrar? Elle olha e basta. Aquelle <
giu em pessoa, Rogério, o rude, olhos oblíquos olhar veste-nos de linho real, e, sobre opulentos
de selvagem, pellos fartos á beira da testa, como jaezes de um corcél altivo, passeia-nos atravéz de
orelhas de onagro. uma capital em delírio.
— Que me quereis, pae?
Roma é o scenario de seu triumpho, a herdeira
— Que sejas nutrido.
universal do explendor artístico das edades, do
E alli mesmo, a olhos vistos Rogério inchou
apparato ostentoso da humana vaidade rio passa-
como um balão, arredondou-se de plástica; exi-
do, metrópole arrogante de todas asemphasesdo
biu-se ás ambições paternas, bochechando como
catholicismo, orgulhosa das glorias dymnasticas
um sopro de Eolo, alteadas as protuberancias da
das próprias tradições. j
carne em polpas de adipe, avançando o ostensivo
umbigo, em prospero ventre de Sileno joven. Lá está.
"Que sejas bello." Deante rojam-se os cardeaes, fazendo agitar-se
E no mesmo instante, sobre a gorda prosperi- em mar de sangue a multidão dos hombros, em
dade, abriram-se as rosas da formosura. Esvahi- cabeções vermelhos. Mais baixo, no escuro, a
ram-se os pellos, de onagro, o olhar oblíquo de massa miserável de uma população prostrada.
selvagem endireitou-se em franca perpendicular, D'essa humilhação e d'essa sombra, eleva-se ape-
temperada de atrevimento. Fossem lá reconhecel-o nas, medroso ainda assim de se elevar, um mur-
dentro d'aquella frescura macia de cores, e de múrio de prece. Ao redor do throno, sob o docel,
carnes, esgaravatar-lhe a minguadissima parcella vistosa homenagem de Arte, imagens que passam
de boçalidade agreste que lhe servia de alma, com expressão celestial dos rostos de Fra-An-
nos interstícios da ironia d'aquelle perenne sorriso gelico, visões da capella Sixtina, academias fu-
da bailarina petulante! uambulescas que se contorcem, acrobatas do terror,
que se despenham de toda a altura do ceu e da
"Que detestes convictamente o campo e todas
Fé — povoando o espaço de aspectos contradicto-
as suas tentações."
rios, em grandiosa desordem, emquanto vibra e
E no coração de Rogério nasceu, de súbito,
avulta, solemne na cúpula enorme, a musica dos
estranho mal estar, a febre dos predestinados; es-
êxtases de Santa Cecília.
pécie de saudade absurda de cousas desconheci-
das, grandes ruas, vastas praças, tumulto e movi- E elle no centro, Rogério, hoje Leão, nutrido
mento durante o dia, luz e festas durante a noite; e bello, em seda branca da côr das transfigura-
sede de viagens e fome de aventuras, avidez in- ções, sob a thiára de ouro, pasmado de se ver
tensa por grandes tentativas e maiores êxitos. tão grande, mal avistando ao longe, na multidão,
Apagou-se a memória dos primeiros annos, a me- o pae que o adora de baixo, acaçapado e sa-
ninice de poldro solto, a adolescência de bode tisfeito !
A * *
farto. Fugiu-lhe de vez o aferradissimo apego aos
idyllios do estrume e dos ferios. Até que um dia, notando-se-lhe espantosa ini-
"Parte, meu filho, e vae pelo mundo. Grande mobilidade, como se pela magia transformadora
has de ser, illuminado e poderoso. Fidalgo? E' das grandezas, acabasse por se consubstanciar o
A NOVELLA SEMANAL 123

enthronisado com o throno, alguém, ousado, subiu. psychologo. E psychologo com todas as consoantes
até a eminência a verificar/ ^ vogaes pronimciaveis, psicólogo articulado in-
Levantaram-lhe a thiára como uma tampa, e tegralmente, como piscina, e não esse outro vil
viram maravilha 1 e viram nè fundo, secco, mir- , psychologo barato e vulgar, dos que lhe empres-
rado e reduzido.., tam a prosódia de psalmo.
Rogério, o rude, morrera havia muito, dentro Todo o mundo sabe como a psycholomania é
d/aquella armadura de explendor e de apparencia, uma moléstia insidiosa.
da nostalgia de seus campos, represália terrível E eu soffria-lhe, successivámente, todos os ef-
da boçalidade ludibriada. feitos, um dos quaes foi a obcessão do caso Joa-
-' Rio, 1887. quim. Dera-me na telha que havia de descobrir a
RAUL POMPEIA causa primaria da misanthropia do meu bom amigo
e eu punha nisso o ponto de honra de toda minha
psychologuice.
Assim," quando vi baldádamente exgottados to-
dos os recursos da pesquiza directa sobre o moral
do Joaquim, resolvi procurar no meio ambiente
o que me hão dera o primeiro methodo.
Este meio ambiente era, ao tempo, summamen-
te considerável para nós, os psychologistas, e de
UM P R O B L E M A DE toda a minha psychologia esvahida ao depois, çorn .
a edade, o que mais sinto é ter perdido a noção
PSYCHOLOGIA exacía de tal meio, cujo auxilio, no caso, me foi
Que haveria ? , dos mais profícuos.
Eu sempre conhecera o Joaquim alegre e dis- Do que me recordo, o meio ambiente de Joa-
posto, rindo á larga ao meu primeiro "ameaço de quim era o seu quarto, pois foi ali que concen-
piada, sempre promplo para as troças e garotadas trei-as minhas indagações.
estudantinas, risonho como uma crea,nça sadia em Remexi com indiscreção própria de psychologo
dia de festa, dizendo-me quotidianamente alguma as gavetas de sua mesa de estudos, vasculhei sob
anecdota, em que a sua perenne jovialidade des- o colchão possíveis cartas lyricas, afastei a ojeo-
cobria farto manancial para gargalhadas intermi- graphia dum Othelo de parede, forcei á caixa da
náveis que fundamente me confortavam. roupa, farejei, apalpei, escutei por todOs os in-
Porque estaria assim mudado, ao começo da- terstícios dissimulados e dissimulado r e s . . . Puz no
quelle anno, sem motivo visível e apesar mesmo avesso velhos bolsos de colletes vetustos, sacudi
dum benevolo augmento da mezada? Que diabo umas chinellas v
veneraveis que jaziam aposentadas
teria elle ? Que dramas profundos e terríveis te- num canto. Nada! Joaquim parecia tão ligado ao
riam fechado aquelle espirito, outro ra sempre seu meio ambiente Como ás manchas do sol....
aberto em mudas confidencias? Estaria doente? Eu estava já naquelle estado de espirito bem
Apaixonado ? Dar-se-ia ao jogo ? conhecido de quem já foi psychologo, quando,
Em vão formulava eu, mentalmente, estas in- distrahidamente, os meus olhos pousaram sobre
terrogações, a que os factos respondiam logo pe- uma folhinha de desfolhar, viuva já do chromo,
la negativa. Em vão interpellava-o directamente: fincada por um prego,, á cabeceira da cama. Lem-
— Que diabo, Joaquim, estás mudado!... ^réi-me de que inda não inquirira aquella teste-
— Porque ? redarguiu elle, de manso; é enga- munha dos secretos pesares do meu camarada e,
no teu; não estou tal. Talvez o mudado sejas embora convencido da inanidade daquelle esforço,
tu, e . . . Como honesto psychologo que era, dispuz-me a
Era inconsciente o pobre rapaz. Não tinha o mais uma tentativa.
vicio das miradas introspectivas. Para elle, estava Bemdicta honestidade ! Se acaso a tivessem e-
intacto; e só poderia descobrir-lhe variações quem gual todos os psychologòs passados e presentes,
o examinasse com olhos differentes. certo a psychologia estaria hoje num outro pé...
Então resolvi pesquizar por conta própria. A Mas voltemos ao caso. Tomei o block, arripiei-
solução daquelle caso iarse-me tornando uma idéia lhe as folhas e descobri a verdade. Estava alli,
fixa e, naquelle tempo, todas as minhas idéias se perfeitissimamente alli, nas minhas, mãos, a chave
tornavam fixas em pouco tempo, porque eu era do mysterio. Naquella pobre folhinha ! . . . Foi
124 A NOVELLA SEMANAL

quando eu aprendi a admirar bem profundamente psychologismo, resolvi salvar o amigo periclitan-
esse capricho da Natureza que só revela os seus •te. Corri ao meu quarto e após demorada busca
segredos aos distrahidos como eu, Newton, Ar- descobri um outro block para quem o tempo se
chimedes e alguns outros. Foi também, quando, havia crystalisado no terceiro dia do anno.
tomado de uma universal benevolência, eu perdoei Era dos antigos. Tinha as facecias. Pul-o em dia
aos sábios a escassez das suas descobertas. A Na- e sobre a cabeceira do Joaquim. O outro, o mo-
tu reza tem coisas ...' \ ralista, precipitei-o na valia comrnum que existia
Mas é assim: eu' descobrira a causa da meta- sobre vm velho armário de roupa, o valle de
morphose do meu amigo. Aquellas folhinhas, co- Josaphat de todas as nossas intimidades.
mo todas as folhinhas, traziam, no verso, alguma Foi um milagre. Ao outro dia Joaquim, ainda
cousa impressa, destinada á leitura matutina dos não de todo restabelecido, era já bem outro.
que costumam trazer o seu tempo bem contado Recitou-me a primeira anecdota e em uma se-
Mas, fugindo ao geral, que lhes reservou sempre mana, ninguém suspeitaria do immenso drama
para aquelle effeito, as anecdotas, ditos agudos e que perpassara no intimo daquella alma.
facecias, a folhinha de Joaquim, em vez, trazia E gracejando, perguntava-me muitas vezes, tro-
umas rígidas máximas moralistas, dignas do mais cista e irônico:
austero marquez. — Então, Léo, ainda me achas muito modi-
Lembro-me d'álgumas, que podem dar bem ficado ?
amostra da forma e do fundo: E me encabulava terrivelmente, o Joaquim.
"As mocidades ruidosas, velhices saudosas". LÉO VAZ
"Quem não olha para a frente dá com a cara
no batente''.
"Os últimos serão os primeiros a encontrar a
porta fechada".
"Respeitae os mortos: elles nos deixam loga-
res vasios".
"Não remendes o teu panno: elle se romperia
noutro ponto".
"O pudor é a valorisação da nudez". 1^ XJ O A
"Quanto mais se sobe mais cançado se fica".
"Quem dá aos pobres prolonga a miséria". Pelas estradas barrentas, no meio dos rugidos
"Vintém poupado, gosto perdido". do temporal desfeito, quando a ventania dispa-
"Depois de viver, todos outros desvarios são rava pelos campos em arranco de boiada, e, to-
ãdmissiveis". pando o capoão além, constríngia-o na medonha
"Quem cospe para o ceu nunca viu uma es- luta, ouvia-se, ao esmorecer das yozes do trovão,
carradeira". um tilinlar de correntes, cadenciado, rythmico,
"Em casa onde não ha pão, alguém vae á pa- acompanhando o estrupido de passos fortes.
daria". O víandante tresmalhado,, ou o vaqueiro que
"Dae de comer a quem tem dente". se recolhia a deshoras, ébrio, das delicias do ba-
E outros igualmente profundos. tuque, fugiria apavorado, julgando ver no som
Pois estava alli a fonte dos pezares do Joaquim. das correntes arrastadas a penitencia de alguma
Eile tinha o habito de ler invariavelmente, me- alma penada, — quem sabe se a do pobre Tris-
"thodicamente, as suas folhinhas. Noutro tempo, tãosinho, espancado ha tempos, brutalmente, ali
quando ellas traziam as pilhérias tradicionaes, mesmo, á beira do rio, quando de volta da casa
eram para o seu espirito como um banho lustrai de Paquinha, procurava desamarrar a canoa para
quotidiano, desopilante, que lhe dava aquella ín- a travessia ?
dole risonha que me encantava. O tilintar das correntes, cadenciado, rythmico,
Agora, nesse anno nefasto, os pezados brocar- fugia, a pouco e pouco, pela estrada afora, aba-
dos infundiam-lhe, sem que o meu pobre amigo fado a espaços pelo glú-glú das enxurradas, que,
o suspeitasse, aquella grave sizudez, aquelle ar sopitadas nos caldeirões do caminho, estancavam,
recatado e sombrio de pae de família desempre- reunindo forças para se derramarem depois, im-
gado, que me assustava s intrigava. petuosas, assoberbantes, pelos sulcos de carros
Lisongeado nos recônditos do meu entranhado de bois até ao longe, no grande rio.
I
A NOVELLA SEMANAL 125

Dous condemnados da Extracção, escravos reú- cançadas pelas águas, junto aos filhos ainda aque-
nos, confiscados a seus donos pela Real Fazenda, cidos pelo calor materno; berros de sucurys des-
aproveitando-se da tempestade, fugiam da ran- pertando do somno costumeiro com as notas
charia junto de uma gupiara á beira do córrego, vibrantes e sonoras da tempestade.
onde eram obrigados a trabalhar para El-Rei, Isidoro carregava já seu companheiro, arcando
como galés, no - serviço da mineração de dia- ao peso, roncando de esforço a cada passo, in-
mantes. certo, titubeahte, no meio da estrada. i
Percebida a fuga, foi dado o alarme, pouco O vaqueano sentiu perto o rio e, norteando-se
depois, ao som rouco de corneas buzinas, e a ao clarear dos relâmpagos, entrou á esquerda, por
força de dragões avançou confusamente, dando uma trilha de anta, que conduzia a uma grande
descargas paia aqui, para acolá; mas recuou logo, rocha á beira d'agua, seu pesqueiro habitual em
pela improficuidade da perseguição nessa noite outros tempos.
tormentosa. Acocorou-se ahi com o pobre do companheiro,
Os dous fugitivos porfiavam por metter aos que riem falava mais. Suspirando longamente,
sabujos grande espaço em meio. ' quedou-se, resignado, á espera da madrugada.
— Não agüento mais, Isidoro ! , * >:•• *

— Agãrra-te a meu hombro e vanio-nos em- Serenou a tormenta.


bora. Olha que os fulares não tardam. E, já na meia claridade da ante-manhã, uma
— Valha-me, Senhora da Abbadia ! sensação súbita de frio principiou de invadir os
— Não esmoreças, Bento. Estou-te desconhe- míseros. Era a grande massa d'agua, farrusca,
ceríoo. Não pareces o mesno cabra que aquelle ameaçadora, qne grimpava a pedra, traiçoeira-
dia tirou a scisma do macho ruão, no terreiro mente, como um jacaré que se arrasta, subtil e
da Cacimba. feroz, na algidez repellente de sua pelle esca-
—' Dóe-me tanto o peito, que me responde cá mosa, querendo pilhar a presa durante o somno.
nas costas. E que descarga damnada! Os judeus Espessa camada de neblina cobria toda a super-
me metteram uns dous balasios aqui no braço e fície do'rio, montando,,da flor das águas, pelas
na perna. Foi Deus que não os deixou acertar em' barranceiras acima, aos ramos mais altos do matto
logar mortal. frondejante. O tope de arvoredo rasgava no alto
Por cima de tudo, a pontada, esse demônio de o denso véo cinzento, que se esfarrapava, pren-
p.ontada perto da maminha, desta banda . . . dendo nas pontas da galhada longas flammulas
A marcha dos fugitivos enfraquecia. Já não era brancas, arfando serenamente ás auras matutinas.
o mesmo pisar forte, seguido do ranger dos Os tons roxos do ceu iam cedendo a uma co-
grilhões. loração de ouro tenuissima, que se accumulàva
Abeiravam, então, o Jequitinhonha, cuja pre- ao longe, na barra do horizonte, onde o rio num
sença era indicada pelo estalar das águas em prestito triumphal de pequenas ondas muralhoías,
plena cheia. Quviam já o som cavernoso do rio, parecia perder-se no espaço illimitado.
rolando formidávelmente, no meio dos ribombos Longas fitas de ouro e purpura cairelavam o
causados pelas grandes arvores, arrancadas a custo céu na commissura do rio, sobrepondo-se paral-
.pela fúria da corrente, precipitando-se nõ abysmo lelamente,* até se afogarem no pélago de nimbus
das águas com gritos despedaçados dos ramos e que refluía de onde se arqueavá o firmamento.
raizes. -— Eh lá! companheiro! Esperta e vamos em-,
: bora, batendo matto pela beira do rio. Olha que
Dentro do camoão,< denunciando aos tredos
caminhantes por um grau mais intenso de sombra, enchente! Vigia: se nós cochilamos mais um
tomaram fôlego, pavidos, baixando instinctiva- boccadinho, a água nos papava.
mente a cabeça com a sensação da grande massa E, meio estarrecido da longa quietação e do
negra, informe, que lhes pairava em cima. No frio, Bento estremunhou distendendo os braços
pandemônio de sons e movimentos que se adi- com gritos de dor das feridas.
vinhavam no bojo da atra escuridade, presentiam — Assim, com esse inferno de corrente pesada,
lutas supremas de troncos contra os estirões da eu quasi não me posso mexer — disse Bento,
borrasca, inundações de ninhos, dramas trágicos batendo p queixo, apertando no corpo o timão
de animaes silvestres mortos pela queda dos gar de baeta já meio enxuto.
lhos e outros arrastados pelas enxurradas; uivos Isidoro lembrou-se, então, da lima finíssima que
entrecortados de onças abrigadas nas lapas al- lhe dera, ha tempos, o Chico Julio e de que se
126 A NOVELLA SEMANAL

não pudera «ervir na precipitação da fuga. Co- çou a lutar a grandes remadas, para approxi-
meçou a cerrar vigorosamente o annel de aço mar-se da margem opposta. Então jangada e tri-
que rôxeara o tornozelo do seu pobre companheiro. pulantes se confundiram, se unificaram, seme-
Depois, prendendo num gancho de ferro pen- Ihándo, no movimento que se lhes percebia, o
dente do cinturão de sola toda a corrente, que dorso mosqueado de um suruby retouçando ao
lhe subiu do pé pela perna acima, exclamou: sabor da correnteza.
— " Vamos ganhar a estrada! " E, suspendendo Quasi não se lhe notava a marcha, mas sen-
o companheiro por baixo dos braços: tia-se que um esforço vivo e intelligente, terrível
— Corpo duro ! Nós já desnorteamos os fulares, e heróico, lutava contra a força esmagadora dá
que andaram bestando pelo matto. A chuva apa- natureza omnipotente.
gou os rastros, mas elles podem andar farejando Conseguiram vingar o portosinho, que era
por ahi; eu deixo para limar minha corrente na antes um bebedouro de animaes.
venda do Chico Julio." Sahindo d'agua, tiraram os chapéus de couro
Iam começar a marcha, quando estacaram de e puzeram as mãos, levantando os olhos ao céu,
chófre, estremecendo, com o estrepito de um em profundo reconhecimento pela salvação; já
corpo que cahia pesadamente na água. Assum- não temiam os fulares, nem os tiros de reúnas.
ptaram algum tempo, mas ouviram logo outro A jangada que tinham abandonado lá foi,
ruido igual e, não longe duas ou três capivaras boiando sempre, topar uma grande arvore esga-
que se precipitavam no rio, assustadas com a Ihada, fluctuando também. Outros ramos se lhe
presença de taes franduleiros nos seus domínios. foram juntar e mais uns restos de macégas e
Tranqüilizados, partiram, numa farfalhada de garlanchadas, que formaram um batei selvagem,
folhas molhadas e de taquaras que se quebravam, todo franjado de espumas pardas, no qual pou-
assustando as jaós, fazendo os uhambús occultar sava ás vezes um martim-pescador, soltando gritos
as cabecinhas no meio das folhas, levantando estridentes, numa alacridade de victoria e de
para o ar o uropygio coberto de frouxeis. fartura.
Queriam atravessar o rio a nado, fora de porto O sol illuminou, ainda baixo e frio, o campo
freqüentado, onde pudessem ser vistos, mas a de batalha da véspera; beijou, reverente, numa
fraqueza de Bento, fel-os hesitar diante da impe- caricia de vassallo humilde, a face do rio, que
tuosidade da corrente. pompeava seu poderio, ostentando os despojos
Encontrado, alfim, um espraiado, onde a en- da liça com os bosques marginaes e rolando
chente, sem a constricção de barrancos, podia sempre, no meio de um como "ave! trium-
pavonear suas forças, avassalando pacificamente, phator! " da natureza.
sem tropeço, os descampados, os fugitivos derri- Do outro lado, lobrigavam-se ainda, peque-
baram algumas piteiras, já meio seccas, cujas ninas, amesquinhadas, as figuras dos fugitivos.
hastes se erguiam, ainda rectas e altaneiras, das Esses primeiros raios do sol no levante, esba-
touças em redor, e, jungindo-as fortemente com tendo suas cabeças, aquecendo seus corpos meio
cipós em grossos travessdes de taquarussú, im- entorpecidos e alquebrados de soffrimeuto e de
provisaram uma jangada. fadiga, pareciam ter uma caricia de amor e pie-
Isidoro encontrou, arrancada pela ventania da dade para os miserandos, um resplendor de vic-
véspera, uma folha de coqueiro, cujo tallo lhe toria para os lutadores.
serviu de remo. AFFONSO ARINOS

— Encommenda a alma a Deus e vamos em-


bora. Tu não tens alguma oração contra enchente ?
Esta jangada é muito leve e nos agüenta, mas
não por muito tempo, porque a pita encharcando
afunda sob o peso. Segura bem, rapaz!
Cavalgaram a jangada e fizeram-se ao largo,
demandando um portosinho na outra margem,
muito em baixo.
Bento acurvou o busto, azindo fortemente a
estiva.
Ao ganharem o fio da corrente, a jangada foi
fortemente impellida para baixo e Isidoro come-
A NOVELLA SEMANAL 127

tra- mão a dourada cabeça, levou-o para o quarto.


Deitou-o.
Lili beijou-a com resignação e fingiu dormir.
Entrou-lhe o cérebro de conceber, para logo,
poeticamente, a perspectiva exterior da noite de.
Santo Antônio. Cruzavam-n'o como lúcidas idéas,
as imagens dos múltiplos balões, que deviam es-
NOITE DE SÂO JOÃO tar constellando maravilhosamente, lá fora, o céo
negro da noite.
— Porque estás amuado, meu ámiguinho ? A enfezada creança suffocava, a medo, soluços
Quem te fez mal ? Levanta-te dahi da soleira e e lagrimas.
vem dar-me um abraço. Porque has de ficar ao re- Emquanto isso, d. Constança, a velha vósinha,
lento ? rezava contrictamente as ultimas Ave-Marias do
: — A vósinha bem o sabe. Sou creança como terço, consagrado a Santo Antônio.
as outras; preciso brincar. Veja... lá vae um fo- De vez em quando, o estrondo retumbante de
guete comprido riscando a noite; acolá um balão uma bomba ^sacudia o velho casebre em quepla-
de três cores subindo; além, um pistolão arro- cidamente transcorria a existência silenciosa da-
tando fogo... Todos os meus amigos estão rindo, quelles dois extremos da vida.
pulando, dando vivas a Santo Antônio... e eu aqui Depois, vinha uma pausa. A breve trecho, o
abandonado, sem um companheiro! A vósinha é remoto estoirar de uma gyrandola, num eeho
que é a culpada. Porque não me quiz dar uns surdo, perdia-se frouxamente nos longes da noite.
vinténs para eu comprar rodinhas ? A vósinha Veiu, emfim, o ultimo silencio e o arraial so-
tem tantos, dentro daquelle lenço amarrado a cegou numa larga expressão de somno.
dois nós ! ' No dia seguinte d. Constança, ao dar o beijo
Todo o arraial era, naquella noite, uma diffusa da benção matinal, na testa do netinho, sentiu-a
phosphorescencia multicôr. Balões polychromos furtivamente morna. Inquietou-se; levou as cos-
pontuavam phantasticamente a treva1. Retalha- tas da mão ao ventre do menino; teve um gesto
vam-n'a em largos rasgões os estoirazes foguetes. de simulação; mas não logrando modificar o ef-
— Olhe, vósinha, veja só si eu não tenho ra- feito de terror pânico, que a tomava, mandou
zão. Todos se divertem; todos festejam o santo chamar o boticário Maurício.
padroeiro. Só eu aqui! Sò eu, em casa, preso — A vósinha não quiz que eu atirasse fogos a
como nos dias de Iic v ão! Santo Antônio! Santo Santo Antônio. Ahi está. Fiquei doente. A culpa
Antônio! Tanto prómetti ao Juquinha ir hoje é sua.
comprar-lhe, na barraquinha, bombas e busca- — Não digas tolices, meu ámiguinho. Tu já
pés. Mas, a vósinha já não parece a mesma. estavas doente e si eu consentisse que fosses ás
Nem um vintém ! Santo Antônio até pôde pôr fogueiras é que seria então, um Deus nos acuda.
castigo aqui! -y O boticário Maurício, dentro de pouco, se apre-
— Ora, ahi está., Tu és ainda muito creança sentou minucioso e solicito.
para avaliar as cousas. Não te dou dinheiro por- Não era nada; uma pouca da febre decorrente,
que não te quero vêr na cama. Bem sabes que quiçá de um resfriamento; fígado volumoso; ven-
não estás hoje de bôa saúde. Não convém, por- tre tympanico, mas estado geral bom. Lili estaria
tanto, que apanhes o ar da noite. Santo Antô- de pé com mais dois dias de cama.
nio é muito bom; não pode aqui castigo algum. O rosto encarquilhado da velhinha rejuvenesceu
O oratório está acceso. Também lhe accende- momentaneamente, num sorriso fugaz.
mos fogo a elle. A vela está lá. Vem dahi. O Era mister, agora, a administração criteriosa
frio entra cortante. Espera por S. João. Have- dos remédios receitados.
mos de o festejar. O pequenino enfermo offerecia tenaz resistên-
O louro e franzino Lili èrgueu-se; distendeu os cia á ingestão dos medicamentos.
membros num molle espreguiçamento; fitou uma Mas... as vósinhas sabem sempre sugestionar
ultima vez os olhos lacrimosos nos balões espar- thriumphalmente a ordem, quando se lhes anto-
sos no ar e entrou. lham as rebelliões infantis.
A tropega velhinha abraçou-o; pegou-lhe do Como recompensa ao sacrifício de ingerir as
descarnado ante-braço e afagando-lhe com a ou- drogas do seu Maurício, Lili celebrara com ,D.
128 A NOVELLA SEMANAL

Constança, um pacto solemne, em virtude do qual O silencio voltou. A madrugada transpareceu


devera ganhar um immenso balão de muitas co- e a estrella d'Alva, em pouco desmaiou, voluptuo-
res, da altura da casa, para a noite de S. João. samente, ao contacto sensual do lábio rubro
A' tarde desse mesmo dia, foram á casa da ve- do sol.
lhinha, era visita ao doentinho, seu Geraldo, ven- Raiara o dia de S. João.
deiro da esquina, e o Juquinha, seu filho, feste- Lili, esquelético, amanhece escancellando os lá-
jado proprietário da barraquinha de fogos. bios, na anciã de saciar aos pulmões a cega sede
O pequenino enfermo ouviu maguadamentè a de ar, que os resequia: As narinas dilatain-se-
narrativa movimentada e alegre da festa de Santo lhe; os punhos crispam-se-lhe nos lençóes; os
Antônio, feita, ao vivo, no quarto, pelo minúsculo olhos nublam-se-lhe frouxamente velados por uma
negociante dos fogos. sombra etherea. O cérebro estala-lhe, na vibrante
De quando em quando, procurava disfarçar, exaltação do delírio:
num sorriso triste, o effeito de uma lagrima, que — O balão da altura da casa... o balão...
irresistivelmente lhe deslisava pela face. Oh ! in- A velha vósinha, ao lado, enleia ao rosário que
justiça das cousas! Porque havia de ser elle no tem nas mãos, outro rosário de lagrimas...
arraial o único menino privado daquelle goso ?! Na transfiguração sinistra do susto, seu Maurí-
E, no curso destas desalentadas considerações mu- cio estagna'o olhar dilatado sobre o rosto livido
das, eis que lhe açode á lembrança a promessa do pequenino moribundo.
da vósinha. Reanima-se de repente; solevanta-se Os foguetes, entretanto, começam de assobiar
no leito e, agitando no ar a mãosinha num rapto pelo espaço. Toda a lépida infância do arraial
de enthusiasmo, dirige-se ao Juquinha: chilrêa, em regosijo, pelas ruas...
— Pois, olhe, havemos de passar um S. João, Sem attentar, sequer uni momento, no estado
melhor. A vósinha prometteu-me um balão enor- de saúde do ámiguinho, o Juquinha faz urna feria
me, de muitas cores, da altura da casa. Olhe os farta, entre risadas e vivas a S. João.
vidros dos remédios: estão quasi vasios. Amanhã E o Lili, cada vez mais livido, mais indefeuso,
já estarei bòm. esvaia-se abandonado, entre a vósinha e o MW
* *. *. Maurício apenas, como se evola, no abandono
Seu Maurício voltou diversas vezes ao casebre selvrgem de um campo o perfume subtil de uma
de D. Constança. açucena...
As melhoras do pequenino enfermo accentua-
vam-se. O arraial allumiára-se, ao flammivomo clarão
O curandeiro exaltava os effeitos da sua the- das primeiras.fogueiras... Enchia sempre o ar a
rapeutica e o enfezado Lili, no abstracto deslum- aguda algaravia da infância aloucada e livre.
bramento do seu sonho,, antegosava o dia de São A noite de S. João estendeu-se fria...
João, palpando imaginariamente os gomnios do As estrellas entraram de tremeluzir timidamente
balão -promettido, cada vez que, por acção do pela vastidão suspensa, como si todo o Céo fosse
vento, a saia da vósinha, avolumando-se, lhe pas- um vibratil calafrio luminoso...
sava ao alcance da mão. Emquanto isso, no Humido recesso do casebre
de d. Constança — mãos cruzadas ao peito, entre
Chegara a véspera de S. João. A noite ia pelo quatro velas frouxas, que bruxoleavam com cre-
espaço, desenleando a eterna meada de estrellas... pítação,desgastando-se em compridas lagrimas--
O Juquinha exibia a barraca toda ornamentada já dormia, muito alvo e muito tranquillo, o pe-
e cheia de fogos. quenino corpo do Lili.
Nesse dia, Lili acordara peor: faces cavadas ; A velha vósinha e o boticário recostados, então,
tosse offegante; febre... silenciosamente ao parapeito da janella, enlreo-
Ao tombar da noite, aggrava-se-lhe a moléstia. lhavam-se, a espaços, numa intima'impressão de
Seu Maurício t chamado urgentemente. angustia rebellada, em face da vibração de feli-
A sóbria illustração do boticário lucía gigan- cidade, que arastava o arraial...
temente com a insufficiencia econômica do orga- Dealbava o levante um immenso clarão des-
nismo da creança. maiado, que ia aos poucos, desvelando as cousas...
A noite passava entre os esguios e luminosos E, assim, surdiu da treva o vulto irrequieto do
pontos de admiração que lhe insculpiam na treva Juquinha que, apontando alegremente aos com-
os foguetes. panheiros a apparição do oriente, sobrelevou á
A NOVELLA SEMANAL 129'

algaravia infantil, numa voz sibilante, que íeper- tava dè espaço a espaço cortada de largos ver-
cutiu pelas quebradas 3 gões, cicatrizes, signaes de queimadu ra. Eu, com
— Olha, gente, parece que lá vai subindo o os meus inhocentes olhos de seis annos, olhava
balão do Lili. E a lua cheia assomou phantastica- aquillo sem comprehender. C o m o foi isso, Mãt
• mente na cumeada da serra. Maria?» Maldades,dos homens, sínhôsinho, mal-
LUIS CARLOS.
dades dos homens... > Certa noite, como ella me
contasse unia historia em que se falava de crean-
ças roubadas aos pães, perguntei: «Você nunca
teve filho, Mãe Maria?». A' pobre negra lím-i
pou uma lagrima e não respondeu: mudou de
conversa, e, continuou, com a sua meia lingua
atrapalhada a contar a historia—uma dessas com-
pridas historias da roça, em que ha sacyperêres
íí
ÁE" MARIA e capóras. almas de outroniundo e anjos do céo..
E eu olhava-a, com uma secreta magoa... Não-
— É ainda esta, — disse-nos Amando — no fim que comprehendesse bem aquillo: mas a milihV
de minha longa vida, tão cheia de alegrias e de intelligencia de creança já advinhava uma parte
tristezas, a recordação mais funda que guardo daquella vida dolorosa de captiva.
dentro da alma. Como ainda me lembro dessas noites!... Era
Fechados os olhos para mais claramente, evocar na sala de jantar que tinha uma grande varanda,
o memória dos dias de minha infância, vejo loL deitando para o quintal. Estou ainda véndp o
go nitidamente desenhada pela minha saudade, a velho sofá de madeira negra em que meu pae
doce figura da velha Mãe Maria. Tão velha !... dormia a sesta, à longa taboa de engommar em
Quando nasci já o seu cabello encarapinhado em- que as mucamas passavam ? ferro a roupa bran-
branquecia. Ainda viveu commigo uns treze an- ca, e perto da mesa em que ardia o grande
nos. E nunca ninguém me soube dizer onde lampeão de ^azeite, minha mãe immovel e palli-
morreu, nem onde foi dormir o ultimo somno o da, na sua feia e enorme cadeira de paralytiça.
seu corpo de velha escrava, alquebrado por quasi Moça ainda, ficara ella assim, jogo depois de
um-século de captiveiro e de trabalho. ter eu-vindo ao mundo. Como a perdi muito-
Comprar e vender escravos era, naquelle tem- cedo, não me lembro bem dellá: lembra-rne ape-
po, uma cousa natural. Ninguém perguntava a nas que era bonita e não falava nunca. Olhava
um negro comprado o s£u passado, como nin- para mim, para meu pae,- para as escravas, com
guém procurava saber de onde vinha a carne de um olhar apagado de louca resignada e mansa.
que se alimentava ou a fazenda com que se vestia. Assim, a velha Maria foi a minha verdadeira
De onde vinha a velha Maria, quando, logo de- mãe. Havia ainda em casa uma, senhora edosa,
pois do seu nascimento^ meu pae a comprou ? prima de meu pae, que era quem dirigia tudo.
Sei apenas que era africana; e tinha talvez um Essa, porém, apenas tinha tempo para governar
passado terrível: porque, quando a interrogavam as es.çravas, fazer doces, e cuidar das costuras e
a esse respeito, um grande terror lhe dilatava os das roupas engommadas. Boa Mãe Maria! era
olhos, e as suas negras mãos. reluzentes e calle- quem me lavava, quem me vestia, quem me atu-
'jadas eram saccudidas de um tremor convulsivo. rava... Quando eu não queria obedecer, procu-
Comnoscq, a sua vida foi quasi feliz; Na ci- rava fingir-se zangada, e ameaçava-me: «Nhô
dade o captiveiro era infinitamente mais brando Amando ! Nhô Amando 1». E acalmava-me, por
do que na roça. Aqui, sj havia o trabalho sem fim, promettendo-me uma nova historia. Sentava-
tregoas, não havia ao menos o chicote do feitor. , se no chão, cruzava as pernas e ,começava. Ou-
Lá fora sim! lá fora, era a labuta esfalfante do via-se apenas na sala o resomnar de meu pae que
café, os dias terríveis sob o sol implacável, a co- dormia a sésta, o pigarro da velha prima que co-
mida pouca e„o castigo muito. Maria, quando zia, o ruido que faziam os ferros de engommar
eu ás vezes lhe perguntava o que era na roça, sobre as taboas, e a voz arrastada de. Mãe Ma-
ficava calada, olhando 0 chão; como se estivesse ria, falando de sacyperêres, de cáporas, de almas.
revendo o horror dessa vida antiga. Um dia des- do outro mundo e anjos do Senhor.
piu a meio a camisa de algodão grosso, e mos- Todo aquelle enredo fantástico, em que passa-
trou-me as costas e o peito. A pelle preta es- vam bruxas cavalgando cabos de vassouras, prin-
130 A NOVELLA SEMANAL

cipes que roubavam princezas, archanjos que des- mãos, e a sua voz, e as suas historias, me appa-
ciam do céo para curar as feridas dos escravos reciam indistinetamente, como ao fundo de um
no tronco, negras aleijadas, que invocavam o dia- passado remoto. A' noite, quando me deitava,
bo, á meia noite, no meio do matto, e eram afi- depois do exercício violento da cabra-cega e
nal arrebatadas por elle numa nuvem de fogo e da barra, o somno já não me deixava pensar na-
enxofre, — tudo aquillo se atropellava na minha quella que ficara rezando a Nosso Senhor por Nhô
cabeça, cançando-me, dando-me arrepios e verti- Amando. Nhô Amando só se lembrou de Mãe
gens de medo. Maria quando as ferias chegaram...
D'ahi a meia hora, pesavam-me as palpebras. — Ah! Nhô Amando! — dizia a preta cho-
Aos meus ouvidos, a voz da Maria chegava cada rando de joelhos, beijando-me as mãos — como
vez maia fraca até que, quasi sumida de todo, Nhô Amando está crescido e bonito!
parecia vir de longe, de muito longe, vaga e in-
Um anno de collegio bastara para rnè trans-
distincta como um eeho. Eu deixava cahir. a ca-
formar. E, agora, eu apparecia á velha ama-
beça sobre o seu collo, e dormia. E era ella
secca como um novo sinhô-moço, — um sinhô-
quem, carinhosamente me levava para a cama,
moço que tinha, 11 annos, que já sabia lêr e es-
era ella quem me despia, e, obrigando-me a fi-
crever, que já se julgava um homem, e que ás
car de joelhos, tonto de somno, me fazia repetir
historias atrapalhadas e tolas de Mãe Maria pre-
•o Padre Nosso, estropiado pela sua lingua de
feria a malha e a gymnastica.
africana.
A vida da casa era a mesma. Apenas Mãe
Maria, não tendo agora sinhô-moço para criar
Quando tive de ir para o collegio,— um internato passara a tratar da lavagem da roupa.
severo, de onde só sahiam uma vez por anno, —
E era no quintal que estava agora quasi sem-
chorei muito tempo, abraçando Mãe Maria, agar-
pre, de saia levantada, patinhando na água da bar-
rado á sua grosseira saia de riscado azul. Ella
rela, indo de coradouro a coradoyro, um pouco
chorava também, chamando-me seu filho, beijan-
mais velha, um pouco mais tropega, mas ainda
do-me, consolando-me:
robusta.
— Vae, Nhô - Amando ! vae, meu filho ! vae
Foi durante essas ferias que se deu o caso, cuja
p'ra ser homem ! vae, Nhô Amando! a sua negra
recordação ainda hoje, no fim da minha longa
fica rezando a Nosso Senhor ! A velha fica re-
vida, tão cheia de alegrias e de tristezas, é a mais
zando...
viva das que guardo dentro d'alma.
Pela mão de meu pae, fui pela rua soluçando,
soluçando...
Oh ! os primeiros dias de internato ! Que casa !
Uma tarde Mãe Maria lavava roupa no quintal.
As salas, muito altas e muito claras, tinham um
Desci. Ao fundo ficavam os cercados das galli-
silencio que dava medo. Entre as bancas de es-
nhas. Comecei a atirar-lhes pedras. Mãe Maria
tudo, o padre Francisco passeava batendo com
protestou logo : «Nhô Amando: Nhô Amancio !
força os tacões dos sapatos, fungando pitadas de
que maldade, menino! deixa os bichos, Nhô
rape. Eu, com a morte na alma, lembrava-me
Amancio! •>. Eu ria e continuava.
da casa, lembrava-me da varanda que dava para
o quintal, de minha mãe immovel na sua enor- Entre mim e os cercados do gallinheiro ficavam
me e feia cadeira de paralytica, da velha prima os coradouros. As pedras passavam sobre a ca-
que costurava, e de Mãe Maria... de Mãe Maria ! beça da velha.
e das suas mãos callejadas e reluzentes ! e de seu — Nhô Amancio ! Nhô Amancio ! Deus cas-
cabello encarapinhado! e de sua voz! e das suas tiga, Nhô Amancio 1 repetia a preta, mas sem
historias! E as letras do livro iam-se confun- gritar, temendo que meu pae a ouvisse. E eu
dindo e dançando, vistas atravez das lagrimas que ria. E as pedras passavam por ella, rentes al-
me embaciavam os olhos. gumas, na direcção dos cercados.
Mas, passou a primeira semana; passou o pri- Não sei como foi... Via-a cambalear e cahir,
meiro mez, passou o primeiro trimestre. Criei levando as mãos á cabeça, de onde o sangue
amizade aos companheiros. E a minha saudade corria aos borbotões. Senti no coração uma pan-
foi diminuindo, diminuindo, diminuindo... cada secca, dolorosa. Uma nuvem de pranto me
Quando o primeiro semestre findou, já Mãe cresceu nos olhos. Corri para a velha, com a
Maria, e sua face, e a sua carapinha, c as suas garganta suffocada de soluços.
A NOVELLA SEMANAL 131

' Uma pedra lhe quebrara a cabeça, e o sangue Quando, pensada a ferida, eu, a sós, com ella,
ensopava a suai carapinha dura, já quasi toda a vi salva e repousada,—cahi nos seus braços pe-
branca. Principiei a. gritar allucinadamente. E dindo-lhe perdão, cobrindo de, beijos aquella face
ella, tremula, desfallecida, apertando a ferida com que me parecia tão bella, tão clara, tão illumi-
a mão manchada de vermelho rnurmurava: nada como a face de um daquelles anjos do
-v Não grita, Nhô Amancio, não grita! não Senhor, de que ella me falava nas suas compri-
foi nada! não grita, que sinhô ouve! das historias da roça. E ella chorando também:
Mas eu gritava. Todo o antigo affecto esque- — Que é isso, Nhô Amancio? que foi que
cido renascia ali diante da minha velha Mãe Ma- Mãe Maria fez ?... tinha que ver que Nhô Aman-
ria, toda banhada em sangue, ferida por mim. cio fosse apanhar uma sova por causa do cangalho
Toda a casa acudira aos meus gritos. Vi junto de uma negra velha!...
de nós meu pae, a prima, as escravas. Então * v yf

tive medo do castigo... v ;,"


D'ahi a um anno, quando de novo voltei do
Ma$ a .velha negra já tinha um sorriso nos lá-
collegio, ainda abracei Mãe Maria. Viâ-a, abra-
bios. E olhando meu pae, que indagava a causa
cei-a ainda, pelo Natal, dois annos seguidos. De-
d'aquillo, dizia:
pois... morto meu pae, morta minha mãe, ven-
— Não foi nada, Sinhô, não foi nada! A ne-
didos todos os escravos da casa—nunca tive quem
gra'velha escorregou no sabão, e quebrou a ca-
me dissesse onde foi dormir o seu ultimo somno
beça nas pedras. Mas Nhô Amancio, acudiu logo.
a minha velha Mãe Maria, alquebrada por quasi
Não foi nada, Sinhô, não foi rtada!
um século de captiveiro e de trabalho.
OLAVO BILAC.
' • " •V

ACABAM DE APPARECER
SLMÃO DE MANTUA AMANDO OAIUBY

FIGURÕES SAPEZAES
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PEDIDOS AOS E D I T O R E S :

MONTEIRO LOBATO & C. * c™IT™£


132 A NOVELLA SEMANAL

lém; e as andorinhas revoavam em tomo de sua


cabecinha loira, e as abelhas esvoaçavam ao re-
dor de sua bocca vermelha, —- doce como uma
colmeia em que se fabricam favos de beijos.
Pairava sobre ella a graça do Senhor, e tinham
descido sobre ella todas as bênçãos do céo. Poz-
se a coitadinha da repente a definhar; mais frá-
J E> «S XJ gil do que a onda que se quebra na praia a saú-
de de minha filha foi fanando. Flor que ella era
' I ! fant se rappeler. d'ailleurs, que ainda hoje o é, mas tão emmurchecida que só de
toute idée perde quelque ehose de se pu- vel-a os olhos se enchem de lagrymas como ne-
reté dòs qu'elle aspire à se realiser*. blina de inverno. Seus bracinhos estão agora co-
<ERNEST RENAN - Vie de .Jesus;.
mo hastes supportando o doce peso de duas rosas
>As-.hn que aurora nenhuma condem- brancas. Oh! Mestre, tu que és, infinitamente
naeão lia para os que estão em Clirisfco- misericordioso e bom; tu que geras milagres
.lesus. qxie não andam secundo a carne,
mas secundo o espirito . com a mesma facilidade com que o céo se recobre
.SÃO PAULO — Epístola aos Romanos). de estrellas; tu que esconjurasos demônios; ah!
tu bem podes salvar um anjinho do Senhor!
Depois de acalmar a irada tempestade das agoas,
Jesus voltou novamente de rumo á Galiléa que Jesus, erguendo o braço de dentro da ampla
deixara para ir á terra dos Gadarenos. Mas manga da túnica, pousou de leve a mão no hom-
agora as agoas eram tranquillas, quietas como a bro de Jairo, que todo se recobriu de uma re-
pureza macia do céo azul, refulgentes e meigas fulgente luz; e descenando os lábios, disse em
como as pupillas do Nazarethno. palavras mais doces do que beijos:
Pela região se sabia que na outra banda, logo — Um homem opulentamente rico, que todas
ao pisar terra- firme, Christo fizera milagres, por- as coisas da terra podia com dinheiro comprar,
que afugentara os máos espíritos de um louco, cultivava com apurado esmero um jardim; linha
prisioneiro de sepulturas onde o recolhiam alge- elle terra fecunda e boa, e descia de uma fonte
mado e agrilhoado; mas o doido partia as cor- a agoa maviosa e tranquilla; sem falar na agoa
íentes, subia aos montes, descia ás covas onde do céo que era muita. Mas nem a chuva bené-
nas duras e pontudas pedras,rasgava a fragilida- fica, nem o orvalho da noite poderam fazer que
de de sua carne. Christo o curara ; em sujos por- no jardim surgisse mais de uma roseira; e a 10-
cos prendera os immundos espíritos, que com a seira só deu uma rosa. E o rico homem que ao
manada se afogaram nas agoas inquietas; e o principio ficou triste, consolou-se pensando que
louco levou a fama do Mestre a sua terra em De- a planta vicejava e que a flor era sempre pur-
capolis. Todas as multidões perguntavam quem purina e cheirosa. Uma vez a roseira começou
era aqueüe homem que com tanta mansidão acal- a definhar, e a rosa começou a emmurchecer; o
mava as procellas, dava vista aos cegos, curava homem tudo fez para salval-as, e todos os con-
corpo e espirito, dizia tão eloqüentes parábolas, selhos ouviu. E estes eram muitos: uns acha-
— e atravez de todos esses milagres era o Mes- vam que eram espinhos; outros achavam que só
tre-Perfeito ? A sua gloriosa fama chegou até das lagartas vinha o mal. Emquanto isso, roseira
Jairo, Príncipe da Synagoga. E logo sabendo este e rosa morriam. Foi então que appareceu mu
do regresso de Jesus, foi ao seu encontro, e assim jardineiro, e deu-lhes outra vez a virtude que de
lhe falou: Deus trouxera. Tu talvez sejas o homem rico; a
— Oh ! Mestre, ouve a minha palavra porque rosa é a tua filha; a roseira é a vida; mas eu
a minha bocca é um sepulcro de dor. Ha doze 'sou o jardineiro de Deus. Vae, c (em fé ! Sal-
annos pela graça do céo, de minha mulher nas- varei a tua filha.
ceu uma filha a quem amo e estremeço pelos en- Jairo partiu cheio de esperança e de fé,--por-
cantos da sua pessoa e pela affectiva bondade do que, á sua vista, uma mulher doente que se ro-
seu coração. E' minha filha; si tu a visses cer- çou no manto de Jesus logo sarou da enfermi-
tamente a amarias! Quando ella sahia aos cam- dade. Em verdade, em verdade! Que homem
pos, vinham as ovelhas e os cordeiros comer as prodigioso era aquelle ?
hervas á palma de sua mão, — fresca como um Passaram-se algumas horas, e viu o Príncipe
lyrio dos montes, rosada como a aurora em Beth- da Synagoga que o Mestre-Perfeito não chega-
A NOVELLA SEMANAL 133

va: foi outra vez em sua busca,, com marcha va- Isso ouvindo todos riram como ás insensatas
cillante e palavras que hesitavam: palavras de um visionário;, e o Mestre, deante da
< —. Mestre! Si tardas em ir, bem receio que só falta de fé d'aquella geáte, expulsou a todos dí-
•encontres, em minha casa um cadáver! Minha zejido:
filhinha bate ás portas da Morte; já os ' homens — Aqui só permanecerão os que têm fé ,e
de saber affirmam que é tarde e ella se não sal- amor — porque a misericórdia não é feita nem
vará. Tem pena de mim! Vae salvar a minha de pedras nem de cardos.
filha! Depois, acompanhado dos que com elle tinham
Jesus moveu para o pae afflicto a refulgencia vindo, e mais .tambern da esposa de Jairo, en-
luminosa dos seus olhos tranquillos: trou no quarto da menina.
— Não temas, homem ! Eu te disse que tua fi-
lha se salvará; guarda mais a confiança e acrescen- Branca e immovel a formosa creança jazia com
ta a-tua fé! Por mais que te digam de perigos os olhos cerrados, a fronte rnuito pallida, envolta na
insensatos; por mais que te afflijam a esperança, aureola dos seus cabellos loiros. Jesus achou que
por mais que te deitem veneno no soffrimento; os olhos fechadcs eram como um céo azul den-
— lembra-té da minha promessa, e crê na sal- tro das nuvens negras de uma tempestade; A
vação de tua filha ! Antes que desesperes terceira mãe afflicta — que, apenas no quarto, se debru-
vez, eu lá irei e a curarei. ••• çara chorando sobre 0 leito da filha morta —
De novo partiu Jairo, e ao voltar-se uma vez ergueu-se de repente, grande, trágica, dolorosa,
viu Jesus em pé e sereno, com a face angélica indo cahir ajoelhada aos pés do Rabbi, que ti-
voltada para o céo azul. Mas ai! de Jairo, que nham o pó das estradas:
ao chegar á casa teve ternpo apenas de beijar a — Jesus de Nazareth, olha para a minha dor
filha que parecia morta. Voltou acompanhado e salva esta criança, única filha das minhas en-
de muitos dos seus á procura de Christo que em tranhas !
caminho encontrou. Rabbi Jesckoua sorriu, e disse n'um outro sor-
— Mestre, vem depressa! Tarde chegarás para riso:
salvar a minha filha! E como Jesus se apressas- — Tem fé, mulher!
se disseram em torno: Houve um longo silencio; n'esse minuto d'es-
panto, Jesus dirigiu-se para o leito. Todas aquel-
— Oh! Jairo, porque atormentas o Mestre, si
las pessoas eram como estatuas petrificadas: a
tua filha já está morta?...
mãe do anjinho ainda ajoelhada, os Cabellos sol-
Mas Jesus, estendendo a branca mão sobre ò tos como a coléra do oceano, com ôs olhos em
Príncipe da Synagoga: êxtase fitava Jesus e a menina; Jairo pallido e
— Não temas! Crê na minha palavra que é a immovel segurava a cabeça entre as mãos. Pe-
palavra de Deus ! , dro, Jacobo e João, a um canto da sala, ajoe-
; Então, todos aquelles incréps, em alvoroço do lhados rezavam. Jesus sorriu outra vez, — e to-
milagre promettido, quizeram acompanhar Jesus mando a mão da menina, murmurou como uma
e Jairo; mas por ordem do Mestre, foram ape- caricia:
nas Pedro, Jacobò e João, irmão de Jacõbo. — Vem, minha filhinha, levanta-te.!
A- tarde ia alta, e começava a cahir o crepús- E logo a menina, como si as palavras divinas
culo... lhe dessem azas, levantou-se sorrindo, e foi cahir
Quando os- cinco homens entraram, mais des- nos braços paternos...
encontrado ia alvoroço em casa de Jairo. Ele- Depois abraçou Jesus que a estreitou ao peito-
vavam-se preces como vôos de azas, pedindo mi- longamente, amorosamente, cobrindo-a de beijos,
sericórdia ao Senhor; depois as promessas ces- deante da derramada alegria de Jairo e de sua
saram e eram apenas surdas lamentações sobre esposa, deante do assombrado espanto dos com-
o corpinho da creança morta. Jesus, á porta, per- panheiros.
guntou : Mas aos pães do anjinho parecia, vendo Jesus
abraçar e beijar a filha resuscitada, que um mi-
— Porque vos alvoroçaes ? Porque tanto ge-
lagre também n'elle se operara, — e que aquelle
mido e tanto pranto ? Serenae os vossos corações,
Deus pela primeira vez era um Homem...
guardae as vossas lagrymas, que a menina não
está morta, e apenas dorme... THOMAZ LOPES.
A NOVELLA SEMANAL

de acordar e dormir. E nunca teve. das obras e passava os dias em cál-


A sua existência tem sido revolta sem culos, a lutar com os , x x» da mate-
Ávida ctoecdotica». assento em logar nenhum, irregular, mática. Poi ahi que lhe veiu a idéa
c pítíóre^a.dos: imprevista, incerta, nômade, u m a
hora aqui, outra onde o diabo perdeu
de escrever os «Sertões».
Um livro-d'aquelle peso toda gente
as botas, sempre carregado de traba- tem a impressão de que o seu autor
lho, trabalhando por noites além, um escreveu-o cercado de volumes para
dia no costado de u m cavallo, per- consultar. Não foi assim. Euclides
correndo sertões, outro medindo ter- não tinha um livro comsigo, nem
Euclides da Cunha ras, outro suando, entre o fragor dos unia historia do Brazil, nem um vo-
martellos, n u m a ponte que elle cons- lume de geologia. Nada.
E' alli, em Copacabana, ao rumor das tróe. Um horror ! Mas assim mesmo atirou-se. A todo
ondas, numa casa batida pelo vento — Continuo a ser o estudante que o momento tinha que levanbar-se,
do mar e de janellas abertas para o era. Tudo à revelia. para vir vôr a marcha do tra'balho
azul do oceano, que Euclides da Cu- Ao entrar-se em casa de Euclides, da ponte, que se ia erguendo ; quan-
nha vive a sua existência extraordi- a gente íica á vontade. Não parece do estava n u m trecho d'esses com
nária, do mais completo e do mais ar- que se está em frente de um dos má- que os escriptores se torturam e dão
tista historiador brazileiro. ximos prosadores de uma língua, mas um pedaço de vida para acabal-o, eis
Urna tarde, em que, á rua do Ou- sim de \\m rapaz amigo, de um velho que um operário vinha chamal-o para
vidor, fallavamos de livros e de arte, camarada com quem se viveu larga solver uma diíficuldade. Apezar cFisso
elle me bateu amigavelmente nos om- quadra, de um companheiro que nos os «Sertões» iam oaminhando. A' tarde
bros : ,. falia do suas cousas como se fossem o juiz de direito, o presidente da Câ-
nossas, uma d'essas creaturas que vão mara Municipal, mais duas ou trás
— Vai um domingo lá em casa, que pessoas do Rio Pardo, reuniam-se á
diabo ! Conversamos, almoçamos e de- logo á primeira vista, espavorindo a
cerimonia, e a quem a gente se sente casinha de Euclides, para ouvir ò «fo.
pois sahiremos descalços a passeiar na lhetim».
praia. mal de dar até o tratamento de «se-
Desde as pi-iinenas paginas dos < Ser- nhor--. Elle lia então as tiras que havia es-
tões) que eu comecei a ter pelo hi- E o que é curioso, o que mais re^ cripto durante o dia. D'entre as pes-
storiador de Oanudos a mais cega e salta e o que mais commove, é a pro- soas que vinham ouvil-o, havia na
commovida admiração Não era ad- funda modéstia de Euclides. Isso paulista conhecedor dos sertões ; um
miração apenas, era mais — adoração d'elle ser o mais completo dos nossos d'esses talentos fulgurantes, estupen-'
— adoração por aquelle escriptor, que historiadores, o artista extraordinário, dos que nunca são cousa alguma por-
imprevistamente surgia omnipotente o escriptor surprehendente, o paiza- que ,nunca entraram numa escola.
e supremo, para o espanto de uma gista formidaveL, isso, somos nós aqui Esse homem tinha cócegas de esorip-
lingua e de uma raça, por aquelle fora que o dizemos. EHe, elle ó que tor. Tinha Já os seus versos, as suas
narrador de guerra que de tão alto não está convencido d'isso. A sua tiras , de p apel cheias de rascunhos
se punhaNpara historiar todos os pro- modéstia é orgânica. O «Sertões para litterarios. Euclides da Cunha fallou
blemas da luta, pelo artista ruidoso elle nada tern de extraordinário. E' que ia descrever o «estouro da < bo-
e formidável, que abria uns novos um livro como outro qualquer. iada», um dos quadros mais épicos e
painéis de arte robiasta e .essencial- Aquellas paginas assombrosas, che- mais sinistros dos campos e mattae
mente nossa, pelo paizagista incom- ias d'aquelle fragor e d'aquella eom- brasileiras.
paravel, evocado, como nenhum ou- burencia de phrase, d'aqnelles pai- Nunca havia visto o «estouro»; sa-
tro, gigantesco, replandescente, como néis faustosos, que nos fazem vibrar bia-o apenas por informação, por ou-
ninguém. e arder de enthusiasmo e de orgulho, vir contar, o paulista vira diversos,
Eoi num domingo que lá estive. para elle são paginas rasteiras, co- estava «cansado de vêr» dizia elle.
Era sol e era azul. A casa estava bertas de defeitos. De defeitos ! — E se «seu» doutor quizer, «seu»
com as janellas abertas para o vento — De defeitos, sim ! confirma Eu- doutor escreve, eu escrevo também e
do mar rumorejante da alegria das clides, muito espantado de ninguém vamos ver quem é que faz mais per-
ondas próximas, que, na areia, se es- ter dado por isso. Aqui estão elles. feito.
farellavam, toda lavada do sol d'a- Na nova edição dos «Sertões» fiz Euclides teve, devoras, medo da-
quelle domingo alacre. seis mil emendas. Não se diga que quella proposta. Atirou-se á descrip-
Euclides é um simples corno nunca sejam erros de revisão, são defeitos ção. receioso de ser derrotado. No
vi assim. Quem o encontra na rua, meus, só meus. E mostrou-nos o li- outro dia, á tarde, o matuto apresen-
macro, o rosto carregado, numa pro- vro, onde em cada pagina apparecem tou-se corajosamente, com as suas ti-
funda concentração, não acredita o pelo menos trez remendos. ras do papel.
que pode haver de alegre, carinhoso — Hei de concertar isto por toda a O juiz de direito, o presidente 'Ia
o desprendido, naquella alma. Quem vida. Até j á nem abro os «Sertões» Câmara, as duas ou trez pessoas do
devora as paginas rutilantes tios «Ser- porque fico sempre adormentado, a Kio Pardo, esperavam o duello.
tões» imagina que alli está um escrip- encontrar imperfeições a cada passo. — Leia !
tor de socego e methodo e que a obra E' ao almoço, numa sala aberta — Leia o doutor primeiro !
foi feita com o maior dos methodos para o mar emquanto o vento da praia Euclides leu. Leu aquella descrip-
e o mais regular dos socegos. agita os guardanapos, que Euclides çfi.o inoomparavel, assombrosa, qnn
Nada d'isso. Nem uma cousa nem me conta como escreveu os «Sertões». nós todos conhecemos nos «Sertões». E
outra. Euclides nunca se «-.assentou». Estava por esse tempo em S. José ao terminar voltou-se para o homem.
A sua vida tem sido uma vida er- do Rio Pardo, reconstruindo unia — Leia !
rante, ora aqui, ora alli, numa com- ponte. E r a um trabalhar sem conta, — Qual nada «seu» doutor. Olho alli.
missão, noutra, as malas sempre noite e dia, elle alli a dirigir as obras, No chão, as tiras do pobre homem
promptas. os livros dentro das ma- sempre á frente, no tumulto dos ope- escavam aos pedacinhos, esfranga-
las. Ora em Minas, em S. Paulo, no rários. lhadas.
Amazonas, no Acre, em Canudos ; de A ponte construída por outros en- — Eu vou então l«r alguma cousa
lápis na mão, enchendo de algarismos genheiros havia uma noite desabado depois d'isso '.' ! Mão é possível, não è
os livrinhos de notas, como enge- desastradamente e o governo de São possível, que o senhor não tenha vÍ6to
nheiro. Paiilo convidara-o a reconstruil-a. pelo menos cem «estouros de boiada».
Ao que elle conta, desde estudante A obra era da mais alta responsa- E no meio da barulhada infernal
que o seu sonho é pousar ; ter uma bilidade, principalmente depois do dos martellos, das traves de ferro,
vida pacata, a sua casa, tudo em or- desastre. Euclides, por amor próprio, dos foles, os «Sertões» caminhavam.
dem, os seus livros arrumadinhos, a em respeito á sua carta de engenhei- Quando a ponte ficou conoluida, o
hora certa de começar o trabalho, a ro, estava sempre á testa de tudo. livro estava concluído também.
hora certa de terminal-o„e hora certa Morava numa casinha, a dois passos Ninguém sabia nesse tempo que Eu-
A NOVELLA SEMANAL 135
elide s era escriptor. Elle apenas se — Ora veja, dizia, estes homofis me da rua S. José, por cinco e nem u m
'havia mostrado.no «Estado de São tinham em tão bôa conta ! só açceitara.
.-Paulo», numas chronioas ligeiras, com ' /" Ao fim de oito dias* sentiu saudade
as iniciaes. Tinha medo da publici- — Se eu,.tivesse lido essa carta em
da família. Do livro não tinha a mais primeiro logar, parece que -morreria,,
dade. Mas resolveu-se a publical-o. vaga noticia,. Mas via-se servindo de
ÍO juiz de direito, o presidente da Ga- conclue -Euolídes, sorrindo.
troça nas rodas litterarias da' rua do E' essa a historia ingênua da obra
mara do Rio, Pardo, o m a t u t o do Ouvidor, o editor desesperado com
«estouro«, haviam lhe dito que o li- máxima da nossa litteratura.
a «buxa», a mandal-o para o inferno. ' ' A profunda modéstia de Euclides é
vro era bom. Eoi a S. Paulo e le- Chegou a Taubaté, de volta, em-
vou-o ao «Estado», para .pub)ical-o ( organica.
em folhetins. poeirado, á tardo. Depois da che- Com a publicação dos «Sertões»,
gada do trem do Rio, seguia um ex- quem mais se espantou foi elle.
O maço de tiras era enorme. Isso presso para Lorena. Emquanto es- Nós nos espantamos de ver que a
parece que espantou. Seis mezes de- perava o expresso foi comer alguma nossa raça j á tinha um . escriptor,.
pois, ao voltar a S. Patxlo e ao subir cousa, no «restaurante da estação. que attíngira ao mais alto grau de
à redacçâo do «Estado», lá encontrou, jJhega o,trem do Rio. Uma multi- perfeição.
num canto o seu embrulho de tiras, dão de passageiros, salta e corre para Elle se espantou ao saber que esse
empoeirado. Pol-o debaixo do braço, o «restaurante. Entre elles um ho- escriptor era elle.
e veiu a ao Rio de Janeiro. Não co- mem alto, barbado, de, guarda-pó e VlBJkT0 CoRKÊA
nhecia aqui nenhum escriptor a não um livro debaixo do Brfl,ço. Euclides Rio, 1909. -
ser Lúcio de Mendonça. Lúcio de tem um sacolejão. Se não se enga-
Mendonça procurou-lhe editar. O es- nava tinha visto os «Sertões» sob o
cripíor era desconhecido e o volume braço, do homem. Parece que foi al-
de tiras assustava. Os editores tor- guma mola que', o fez levanrtar-se.
ciam o nariz. Chegou-se ao typo, sacudido de emo-
ção.
O «Jornal do Commercio», não quiz
a obra para folhetins. — O senhor pode deixar-me vêr esse
Afinal o velho Masson da casa Lae- livro ?
mert, depois de muito pensar e de
muito vacillar, disse que ficava com
O lmmem fitou-o, mediu-o e serio,
desconfiado, de má vontade, esten-
deu-lhe mudamente o livro, sem lar-
VLddL literária,
o rolo de tiras.
Entra o livro no prelo. Mezes de-
gal-o. !LJ^J>
pois Euclides, que por essa feita esta- Era mesmo o «Sertões».
va em Lorena, é chamado para vir vêr -— Obrigado.
A "Atlantida,,
a sua obra. Vem ; ao chegar á Com- O seu desejo foi atirar-se ao su- O romance de Pierre Benoit — «A-~
panhia Typographieá, á r u a dos Invá- jeito e abraçal-o. Mas voltou para tlantida»—apparè%ido depois da guer-
lidos, abrindo ao acaso u m volume a sua mesa. E poz-se a pensar e re- ra assignala bem as modernas ten-
lá encontra um «a» com uma, crase pensar. O livro estaria fazendo suc- dências da literatura.
intrusa, adeante uma vírgula de mais, cesso ? Teria sido bem succedido ? Eis o seu entrecho :
etc. etc. Elle estava nesse tempo ata- Os jornaes o que estariam dizendo ?
eado de uma neurasthenia profunda. Dois officiáes. francezes, o tjenente
E , a figura do passageiro de guarda- Eerrières e o capitão Saint-Avit se
Aquella crase, aquella vírgula, aquel- po surgia-lhe á imaginação. Aquelle
les outros erros, pareceram-lhe gran- preparam para partir para o Sahara
sujeito nao tinha cara de gostar de em exploração. Murmura-se que al-
des blocos de pedra, que vinham ata- lêr. Se estava lendo seu livro é por-
car o seu nome. Que h o r r o r ! E a guns annos antes, em exploração aná-
que estava gostando. E estaria mes- loga, O capitão Saint-Avit assassinara
ponta de canivete (parece mentira-, mo ? Quem sabia se aquillo não era
mas é verdade) a ponta de canivete, o seu companheiro, capitão Morhange,
apenas ostentação, vaidade de mos- crime que, certa noite', o próprio
em dous mil volumes, Euclides ras- trar-se aos outros passageiros do trem
pou oitenta erros. ..Foram cento e Saint-Avit confessa a Ferrières. Como
como leitor de um livro grosso ! Po- e .porque — é o romance :
essenta mil emendas"! dia ser ! Mas como foi que elle 'com- A certa distancia do macisso de
Levou dias e dias nessa trabalheira prou, o livro ? O volume custava dez Hoggar, u m a tempestade apanhou
gigantesca. mil réis. Saint-Avit e Morhange, que então-
Os .Operários da typographia esta- Só se dão dez mil réis por um li- ..puderam salvar um Thouareg que se>
vam assombrados com aquillo. Elle vro, quando se sabe, ou se ouve dizer, afogava numa torrente subitamente
passava os dias, as noites, curvado so- que esse livro é bom. formada pelas águas da chuva inten-
bre os volumes, a raspar com a pon- Se aquelle, homem comprou, é por- sa. Ao mesmo tempo, Morhange des-
tinha do canivete. que ouviu- dizer, ou por um amigo cobre na gruta, onde se tinham abri-
Só acabou na véspera da chegada •ou pelos jornaes. Mas podia ser que gado, uma inscripçSò que lhe faa
do barão do Rio Branco, em dezem- aquillo fosse um presente. Podia. E çrêr que a Atlantida de Platão ainda
bro de 1902. O livro ia ser posto á o sujeito estaria gostando? Se elle existe. O thouareg, de nome Chegheir
venda no dia seguinte. nao estivesse, ao saltar do trem para ben Cheik diz conhecer o caminho ei
Um extranlio pavor se apoderoir de tomar um refresco na estação, dei- promette conduzil-os-
Euclides. , Tinha certeza de que a xaria o volume no seu banco. Se o
trouxe debaixo do braço era porque Entrando em suas funcções, o guia,
obra ia ser um desastre. E pediu ao começa p o r ' embebedal-os com has-
editor que retardasse a venda para o livro lhe era precioso. Mas tam-
bém podia ser que fizesse aquillo para chich. A primeira impressão é a de»
d'ahi a trez ou quatro dias. Ê to- que atravessam um corredor, pene-
oou-se para Lorena. que lh'o não roubassem. Mas um li-
vro mau, ninguém se importa que trando num palaoio extranho, ao cen-
O seu pavor tinha crescido estupen- carreguem com elle. tro de uma região cercada por u m a
damente, tanto que, chegando a Lo- tríplice cadeia de montanhas e de
rena á meia noite, ás trez da manhã E nesse torturar de espirito, Eucli- mares extinctos. Sobrevivem ahi os
estava de viagem. Para onde ? Sabia des chegou a Lorena» Esperavam- derradeiros Atlantas, com seus escra-
là ! O que elle queria era fugir, es- lhe jornaes ecartas. Cartas do editor, vos negros e .aluados aos Targui (os
conder-se no no fim do- mundo, não Do editor havia duas. Abriu uma Thouaregs, como nós dizemos). Sua
vêr mais ninguém, rasgar o livro, ao acaso, por felicidade. Por felici- rainha descende ao mesmo • tempo, de
nSo ter noticias do «desastre». E an- dade era a segunda ! Nessa carta,-o Clèopatra e dos reis atlantas, a me-
dou oito dias a cavallo pelo interior editor dizia que estava assombrado nos que não seja de uma pequena e,
de S. Paulo, sem destino. O que lhe oom a venda do livro e que em oito impura celebridade do Segundo I m -
passava pelo espirito era curioso : dias estava quasi esgotado um mi- pério. Apreciando muito os europeus,
via-se inteiramente achatado, a sua lheiro ; contava-lhe do suceesso, das ella manda capturar aquelles que se
reputação de engenheiro por terra, criticas dos jornaes, do barulho que aventuram até os arredores da Atlan-
|0 seu nome espatifado nas chronioas a obra estava fazendo. tida, fazendo-os seus amantes, pois.,
•los jornaes. A outra carta, a primeira, era es- ninguém resiste á sua belleza, Quan-
— Para que me fui metter eu nisso, magadora. O editor confessava-se-lhe do se farta delles, fal-os -matar e, d e -
senhores ! redondamente arrependido de tel-o pois, em vez^de embalsamal-os, trans-
editado, dizia que não havia vendido forma-os em bronze, por meio de um
Ao chegar aos pousos do sertão, processo de g&lvanoplastia. Dos re-
onde ossertanejosvirmamrecebel-o ao uni. único volume e mais : que sendo cém-chegados, ella prefere Morhange.
-terreiro^, para hospedal-o, as reflexões cada volume pelo preço de dez mil Mas, espécie de monge soldado, Mo-
que lhe acudiam eram interessantes. réis, mandara offerecer aos «sebos»
136 A NOVELLA SEMANAL

rhaiiL-e repeli e-a. Portanto, morrerá. fitar-nos os seus olhos parados, ful- bom numero de pequenos trabalhos
E por um refinamento de perversidade gentes da claridade morta dos sonhos avulsos. Nos livros de versos, \mrn
feminina, quem o in imolará ha de ser que se extinguiram com elle. Paulo só dtdles falar, o talento irradia em
o tenente Saint-Avir. que, de factn, Kmilio de Salles nasceu em Santo todo o fulgor da evidencia. Soutu-s»
o assassina depois de embriagado por Amaro, ahi por IXít*, Se S. Paulo, em ali o desabrochar de uma alma pro.
-ella com sobrehumana volúpia-. Em ÍKjf-í, era uma aldeia grande, pôde funda e grave, sdnsivel, apaixonada
seguida. Saint-Avit acha meio de fu- imaginar-se o que seria, na sua ex- e pensativa. sedenta de comprei teni
írír-, graças á pequena escrava Tanit reusào e na sua vida. esse ainda hoje são e de belleza, de amplitude e iie
Zerga e a Chegheir ben Cheik, que pequeno e modorrento viHurejo à força... Paulo Kiró foi, ebronologien-
lhe diz : — < Tu me salvaste. da água: margem do Jurubatuba e ao sopé do mente, o primeiro poeta verdadeiro
devo-te alguma oqi.sa : aliás, em pri- jMorumby. Foi nesse acanhado scena- de que S. Paulo se pôde orgulhar -
meiro logar, como mataste teu cama- rio, mais isolado do mundo que as de que S. Paulo se poderá^ orgulhar
tia. estou certo que não dirás donde localidades sertanejas de agora, que quando o conhecer, <-omo é precise
vens:-em secundo lo^ar. sei que não o pequeno Paulo JEmilio .se fez me- como ó indispensável que o conhec»!
terás mais que um desejo, voltar.» nino e moço, conheceu os„ homens e- Esperemos que algliem se iueuml>a
Effectivamenro. Saint-Avit e Fer- as coisas, e despertou para os exercí- da apresentarão, nos moldes amplos
rières partem com Ohe^heir para a cios austeros do espirito. Mas o agui- que o valor do d,esventnrado moço!
Atlantida e pode-se snppor que tudo lucho, onde quer que tenha visto a tanto merece, isto 6, através de urim*
vae recomeçar . . . luz, seja no alto da escarpa, seja no edição conveniente dos mais períodos
fundo de uma grota, é sempre uma dos seus versos.
águia pequena. 0 rapazelho santa-
marense, no meio de uma população -\j\iADEF AMAJUL
r a refeita e ignara de sitiantes, de
tropeiros, de mercadores e de caipi-
ras, surgiu com o sello divino e tra-
i^ieoda genialidade. Nascera com azas.
'l'enleou-as. Sentiu o deslumbramento
e a tortura, o orgulho, a «uriosidade,
_CM3L
a tenraçâo. o receio, a vertigem da
visão alta, para além do horizonte .àírvasCelebres
commum, muito para além de onde
chegavam as vistas mais agudas da
terreola. Viu esplendores que em 10-
Paulo Eiró dor delle ninguém suspeitava, e, ai,
A3ÍKI-TK
do pobre rapaz ! também viu os abys- De Anacreonte
nios da miséria e da dôr humana, por
Amei-te I do poeta a alma ineendída cujo cairei jamais esvoaearam as al- A fillia de Tantalo fui i-nuislnmimlii
Precisava adorar* fosso um momento, mas felizes, sem mais aza que a suf- em rochedo sobre as ribanceiras da
Konnosa esta rua sobroaltardeargentn. ficíeute para uns vôos cansados, à Phrygia ; a filha de Pandíon voou sob
No molde d*' seu peito derretida. nôr do terreiro natal. Reeonoentrou- a, forma de nraa andorinha. Por mim,
se, ensombrou-se. tornou-se uma fi- queria tornar-me espelho, para que
Estatua foste. sim ! nem commovída gura extravagante, caprichosa e in- me olhasses sem cessar : tuuica, para
Tornar-te pôde meu ai ro/, tormento, comprehensível. — um < poeta-. JCsse que me tragas sempre comtigo. Que-
Essa idiamma infeliz que, sem sus- }>oeta chamou-se Paulo Kirú, appelli- ria ser, ó minha amiga, a água em
[ tento, do obsoLeto de um ascendonte qual- que banhos teu corpo : a essência de
Híe devorava pouco a pouco a vida. quer, que lhe ajustava melhor á per- que te perfumas : a faixa que sustem
Mas o culto fanático abalado sonalidade original e lhe falava mais os teus seios, a pérola que orna o tf ti
Kstá por teu. rigor, por esse zelo á esthesía. Durante algum tempo — pescoço; queria ser , sandália ; pulo
Com que, pacra de amor, me dás apenas o tempo de uma juventude — menos fu me calcárias aos pés.
[agrado. o p^eta passeou entre Saut.o Amaro e
S. Paulo, sem muita publicidade e Os cavallo* tem nas anoas a marca
Amante posso ser, deixar de sel-o... quasi sem confidentes, arisco e in- impressa a ferro em brasa: reeonhe^
Mulher, o coração é limitado : 'comprehendido, os seus sonhos e as cem-se os Pai-thas pela sua tliiara;
No fundo dos vulcões também ha golo. suas illusões, os seus ideaes e os seus eu, por mim, sei distinguir logo os
A propósito do mallogrado poeta auhelos. as suas magnas e os seus amiuitra . no fundo da almn, tóm.ej-
paulista', tio quem damos acima um desconsolos. Até que um dia a cabeça b-s uma matca, leve.
soneto, escreveu Amadeu Amaral em ensangüentada dos embates do mundo, Como ós feliz, cigarra, quando no
•abril de JítíK, rui ; Vida Moderna . a combalida pelos tormentos do coração alto das arvores, imbida uma goMa
seguinte chroniea : e da intelligencia. emperrou, desarti- de orvalho, dormes I-.IDÍIO mi-
Passou ha poucos dias, — e passou, t-ulou-se e poz-se a trabalhar aos es- n h a . Tudo o que fe cerca c teu.
naturalmente, sem que o publieo des- tremeções e ás guinadas, com ruídos icu — o que \ ós na planície e o que
•HJ por isso. - o anni versario da morte arythmieos de machina em ruina. Le- produz :i floresta,. E's amaila dos eam-
•de Paulo Emílio de Salles. Um nonv- varam-no para o hospício. Oa, pro- ponios, a quem não causas nenluim
desconhecido, um talento ignorado, funda noite em que esteve mergulha- ma) ; és honrada pelos mortaes que
uma vida rápida <• angustiada, sepulta do por mais de dez annos, não saiu saúdam em ti a amável mensageira
sob a poeira de quatro par» cinco senão para essa outra noite, maior, do estio. As massas te querem e o
decênios... Não importa. Sob a cau- sem estrellas nem lua, fie cuja treva próprio ( Apollo, que te deu uma voz
dal dos successns da hora presente, ainda ninguém tornou. Os dez annos, harmoniosa. A velhice não pode irt.
•com todo-; os. seus rumores, o chro- ou pouco mais. que elle viveu entre íinglr-te : filha da terra, tu que t)à<»
nista não pôde esquivar-se k melan- a meninice e a loucura, foram-lhe, amaU senão o canto, tu que não r<>-
cólica seducção dessa interessante fi- entretanto, sufricíent-.es para compor nhW,es o soffrimento, tu que uílo tens
gura, que, do fundo do tempo, esl.a- três livros de versos, um drama e nem ; sangue, nem carne, tu és quasi
tida na penumbra do olvido, parece semelhante aos deuses.

A C A B A A R R A R E C E R

ALLEMANHA SAQUEADA c
POR MARIO PINTO SERVA Preço3$ooo
M O N T E I R O L O B A T O & C. - EDITORES R. BOA VISTA, 52 - S. PAULO
B D I Ç O B N D A

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lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 M A I S 1 0 o / o P A R A Q poRTE

Pedidos a o s Editores; M o n t e i r o L o b a t O ® . C , C a i x a 2 - A - S. P A U L O
A NOVELLA NACIONAL "Volumes publicados:

A NOVELLA NACIONAL é uma A P t i l s e i r a d e F e r r o por


série de pequenos livros, nos qnaes AMADEU AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : offerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "E' no gênero uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais~dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do : 'Professor Jeremias",
romance que obteve o maior suecesso
Apparece approximadamente um vo- literário da actualiclade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 >/2 X 12i/ s . centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnifico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

o s NEGROS

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume. llJiOOO em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado 1$300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados:
Série de três novellas
3$õ00; série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas' 14J000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr. Abranches N, 43
Caixa,! 172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S.Paulo — Lá, foges, aconsellLtta»**m-:iim, ,«fa>.,
ÀNNÒ i SÃO PAULO, 25 DE JUNHO DE 1921 NUMERO 9

ANOVELLA
SEMAJVAL

pOCEDrrrtRA OIJEG4RIOraBEII^-RDfABRANCHES,45-SJ>AIJLO
A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR: BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AOS SABBADOS


Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphahetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collecções
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos anctores. Vivemos, assim, num circulo vi- cido e inaceessivel. Das obras ainda em extracção no
cioso : o livro não se diffunde 'entre nós porque é caro mercado livreiro, destacava — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se diffunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
de sorte a despertar nos loitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da creação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indioações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem. rectamente ao editor, da obra da qual' se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel pela escrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publioação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de- to- mesmo tempo que um abundante repositório de infor-
rtos os meios para o diffundir em todo o território na- mações bibiiographicas, uma selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de t-ornar melhor co-
. sociaes, desde as mais cultas à< menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
gramma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza <lo livro nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as vantagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, será vendida a preço intimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos e desconhecidos, consagrados e estreantes, com tanto
ti-, a toda gente ; mas não será futil e de interesse e- que taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phemero como ella : pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A NOVE1LA, isto ó, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volumes, por serem esses es
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
e creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora, bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
procurará nos auctores a vida, a acção, o interesse, de Todos os outros gêneros terão o sou logar no nosso
modo a constituir o verdadeiro livro popular. supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se eollooa á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. Não seria este o melhor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathico.
ahi, esquecida- e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optirna a pedir um editor. Assim, A NO- Os EDITOKKB.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col- Aos leitores queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessante para qualquer que nos enviem relações de auctores
das secções deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, d o m o d o a n o s t
• Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda p a r t e : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seunome, villas, povoações, estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, boteis, clubs, bibliothecas, e t c ,
ferecem a sua collaboração.
Os originaes devem ser escriptos de
estando porisso organisando um ser-
viço de distribuição que será o mais
Importante
Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em calligraphia completo possivel, de sbrte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legível e de preferencia daetylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos adeantadamente a res-
graphados. não tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita."
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
garío Kibeiro — faixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offeroceremOH a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará interessar pela venda ou leitura des- sil, no valor de 'iO o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em ' conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os listados e de todas as épocas,
indicações. Anno . . 20$000
afim de lhes poder divulgar a obra,
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre . . . 10$000
remettido;um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . . S$000
lém disso umaonoticia critica. fornecida, rogand a todos quantos Numero avulso . . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - R. Dr. Abranches, 43 - Caixa Postal, U/2 - Teleph.: Cidade, 5441 - S. PAULO
s^

ANNO 1 A NOVELLA SEMANAL São P a u l o , 2 5 de Junho de 1921 NUMERO 9

A N E C D O T A PECUNIA- verba-, de Bilac — B. F.


1
RIA — M a c h a d o d e Curiosidades literárias — A
«Atlantida» de Platão —
A LAVÃDEIRA — J o s é £ H. DÍC R A U V I L L E .
Veríssimo. Leituras — Vultos e Livros
NATAL NO L O U R E N P A O O V E L H O ESCRINIO — anecdotica e pittoresca - - Figurões vistos por
— Waldomh-o Silveira. F. Silveira. dos grandes escriptores dentro — Piraquaras.
A VENDA SECCA — Oli- O T Ô N I C O - J o ã o do Norte. Coelho Netto.
veira e Souza. SUPPLEMENTO — A vida O s nossos poetas «Inania

ANECDOTA PECUNIÁRIA
Chama-se Falcão o meu homem. N'aqueile contemplação. Vai muitas vezes á burra, que
dia — quatorze de Abril de 1870 — quem lhe está na alcova de dormir, com o único fim de
entrasse em casa, ás dez horas da noite, vel-o-hia fartar os olhos nos rolos de ouro e maços de
passear na sala, em mangas de camisa, calça pre- títulos. Outras vezes, por um requinte de ero-
ta e gravata ffranca, resmungando, gesticulando, tismo pecuniário, contempla-os só de memória.
suspirando evidentemente afflicto. Ás vezes sen- N'este particular, tudo o que eu pudesse dizer,
tava-se; outras, encostava-se á janella, olhando ficaria abaixo de uma palavra dJelle mesmo, em1
para a praia, d.ue e r a a da Gamboa. Mas, em 1.857.
qualquer logar ou attitude, demorava-se pouco Já então millionario, ou quasi, encontrou na
tempo. rua dois meninos, seus conhecidos, que lhe per-
— Fiz mal, dizia elle, muito mal. Tão minha guntaram se uma nota de cinco mil réis, que lhes
amiga que ella era! tão amorosa! ia chorando, dera o tio, era verdadeira. Corriam algumas no-
coitadinha ! Fiz mal, muito m a l . . . Ao menos tas falsas, e os pequenos lembraram-se disso em
que seja feliz! caminho. Falcão ia com um amigo. Pegou tre-
Se eu disser que este homem vendeu uma so- mulo na nota, examinou-a bem, virou-a, revirou-a...
brinha, não me hão de crer; se descer a definir — E' falsa? perguntou com impaciência um
o preço, dez contos de réis, voltar-me-hão as dos meninos.
costas com desprezo e indignação. Entretanto, — Não,; é verdadeira.
basta ver este olhar felino, estes dois beiços, mes- — Dê cá, disseram ambos.
tres de calculo, que ainda fechados, parecem estar Falcão dobrou a nota vagarosamente, sem ti-
contando alguma cousa, para advinhar logo que rar-lhe os olhos de cima; depois, restituiu-a aos pe-
a feição capital do nosso homem é a voracidade quenos, e, voltando-se para o amigo, que esperava
do lucro. Entendamo-nos: elle faz arte pela arte, por elle, disse-lhe com a maior candura do mundo:
não ama o dinheiro pelo que elle, pode dar, mas — Dinheiro, mesmo quando não é da gente,
pelo que é em si mesmo 1 Ninguém lhe vá fat- faz gosto vêr.
iar dos regalos da vida. Não tem cama fofa, Era assim que elle amava o dinheiro, até á
nem mesa fina, nem carruagem, nem commenda. contemplação desinteressada. Que outro motivo
Não se ganha dinheiro para esbanjai-©, dizia elle. podia leval-o a parar, diante das vitrinas dos cam-
Vive de migalhas; tudo o que amontoa é para a bistas, cinco, dez, quinze minutos, lambendo com
138 A NOVELLA SEMANAL

os olhos os montes de libras e francos, tão arru- — Um anjo! dizia o Falcão ao Chico Borges.
madinhos e amarellos ? O mesmo sobresalto com Este Chico Borges tinha quarenta annos, e era
que pegou na nota de cinco mil réis, era um dono de um trapiche. Ia jogar com o Falcão á
rasgo subtil, era o terror da nota falsa. Nada noite. Jacintha assistia ás partidas. Tinha então
aborrecia tanto, como os moedeiros falsos, não dezoito annos; não era mais bonita, mas diziam
por serem criminosos, mas prejudiciaes, por des- todos « que estava enfeitando muito. •> Era pe-
moralisarem o dinheiro bom. quenina, e o trapicheiro adorava as mulheres pe-
A linguagem do Falcão valia um estudo. As- queninas. Corresponderam-se, o namoro fez-se
sim é que um dia, em 1.864, voltando do enterro paixão-
de um amigo, referiu o esplendor do prestito, — Vamos a ellas, dizia o Chico Borges ao en-
exclamando com enthusiasmo : — < Pegavam no trar, pouco depois de ave-maria.
caixão três mil contos!» E, como um dos ouvin- As cartas eram o chapéu de sol dos dous na-
tes não o entendesse logo, concluiu do espanto, morados. Não jogavam a dinheiro; mas o Falcão
que duvidava d'elle, e discriminou a affirmação: tinha tal sede ao lucro, que contemplava os pró-
— « Fulano quatrocentos, Sicrano seisceníos . . . prios tentos, sem valor, e contava-os de dez em
Sim, senhor, seiscentos; ha dois annos, quando dez minutos, para ver si ganhava ou perdia.
desfez a sociedade com o sogro, ia em mais de Quando perdia, cahia-lhe o rosto n'um desalento
quinhentos; mas supponhamos quinhentos . . . > E incurável, e elle recolhia-se pouco a pouco ao
foi por diante, demonstrando, sommando e con- silencio: Se a sorte teimava em perseguil-o, aca-
cluindo : — > Justamente, três mil contos !» bava o jogo, e levantava-se tão melancólico e
Não era casado. Casar era botar dinheiro fo- cego, que a sobrinha e o parceiro podiam aper-
ra. Mas os annos passaram, e aos quarenta e tar a mão, uma, duas, três vezes, sem que elle
cinco entrou a sentir uma certa necessidade mo- visse cousa nenhuma.
ral, que não comprehendeu logo, e era a saudade Era isto em 1869. No principio de 1.870 Falcão
paterna. Não mulher, não parentes, mas um propoz ao outro uma. venda de acções. Não as
filho ou uma filha, se elle o tivesse, era como tinha; mas farejou uma grande baixa; e contava
receber um patacão de ouro. Infelizmente, esse ganhar de um só lance trinta a quarenta contos
outro capital devia ter sido accumulado em tem- ao Chico Borges. Este respondeu-lhe finamente
po; não podia começal-o a ganhar tão tarde. que andava pensando em offerecer-Ihe a mes-
Restava a loteria; a loteria deu-lhe o prêmio grande. ma cousa. Uma vez que ambos queriam vender
Morreu-lhe o irmão e três mezes depois a cu- e nenhum comprar, podiam juntar-se e proporá
nhada, deixando uma filha de onze annos. Elle venda a um terceiro. Acharam c terceiro, e fe-
gostava muito desta e de outra sobrinha, filha de charam o contracto a sessenta dias. Falcão esta-
uma irmã viuva; dava-lhes beijos, quando as vi- va tão contente, ao voltar do negocio, que o sócio
sitava; chegava mesmo ao delírio de levar-lhes, abriu-lhe o coração e pediu-lhe a mão da Jacin-
uma ou outra vez, biscoitos. Hesitou um pouco, tha. Foi o mesmo que, se de repente, começas-
mas, enfim, recolheu a orphã; era a filha cobi- se a fallar turco. Falcão parou, embasbacado,
çada. Não cabia em si de contente; durante as sem entender. Que lhe desse a sobrinha? Mas
primeiras semanas, quasi não sahia de casa, ao então...
pé d'ella, ouvindo-lhe historias e tolices. — Sim; confesso a vossê que estimaria muito
Chamava-se Jacintha, e não era bonita; mas casar com ella, e ella. .. penso que também es-
v
tinha a voz melodiosa e os modos fagueiros. timaria casar commigo.
Sabia ler e escrever; começava a aprender musi- — Qual nada! interrompeu o Falcão. Não se-
ca. Trouxe o piano comsigo, o methodo e alguns nhor ; está muito criança, não consinto.
exercícios; não pôde trazer o professor, porque — Mas reflicta . ..
o tio entendeu que era melhor ir praticando o — Não reflicto, não quero.
que aprendera, e um dia.. . mais t a r d e . . . Onze Chegou á casa irritado e aterrado. A sobrinha
annos, doze annos, treze annos, cada anno que afagou-o tanto para saber o que era, que elle
passava era mais um vinculo que atava o velho acabou contando tudo, e chamando-lhe esquecida
solteirão á filha adoptiva, e vice-versa. Aos tre- e ingrata. Jacintha empallideceu ; amava os dous
ze Jacintha mandava na casa; aos dezesete era e via-os tão dados, que não imaginou nunca esse
verdadeira dona. Não abusou do domínio; era contraste de affeições. No quarto chorou á larga,
naturalmente modesta, frugal, poupada. depois escreveu uma carta ao Chico Borges pe-
A NOVELLA SEMANAL 139

dindo-lhe pelas cinco chagas de Nosso Senhor ' Cessara o terror dos dez contos ; começara o
Jesus Christo que não fizesse barulho nem bri- fastio da solidão. Na manhã seguinte, ,foi visitar
gasse com o tio; dizia-lhe que esperasse e' jura- os noivos. Jacintha não se limitou a regalal-o com
va-lhe um amor eterno. um bom almoço, encheu-o de mimos e affagos;
Não brigaram os dois parceiros; mas as visitas mas nem estes, nem o almoço lhe restituiram a
foram naturalmente mais escassas e frias. Jacintha alegria. Ao contrario, a' felicidade dos noivos en-
não vinha á sala ou retirava-se logo. O terror tristeceu-o mais. Ao voltar para casa não achou
do Falcão era enorme. Elle amava a sobrinha a carinha meiga de Jacintha. Nunca mais lhe ou-
com um amor de cão, que persegue e morde viria as cantigas de menina e moça ; não seria
aos extranhos. Queria-a para si, não como ho- ella quem lhe faria o chá, quem lhe traria, á noite,
mem, mas como pai. A paternidade natural dá quando elle quizesse ler, o velho tomo ensebado
; da Saint-Clair das Ilhas, dádiva de 1.850.
forças para o sacrifício da separação; a paterni-
dade d'elle era de empréstimo, e, talvez, por isso — Fiz mal, muito m a l . . .
mesmo, mais egoísta. Nunca pensara em perdel-a; Para remediar o mal feitq, transferiu as cartas
agora, porém, eram trinta mil cuidados, janellas para a casa da sobrinha, e ia lá jogar, á noute,
fechadas, advertências á preta, uma vigilância com o Chico Borges. Mas a fortuna, quando fla-
perpetua, um espiar os gestos e os ditos, uma gella um homem, corta-lhe todas as vazas. Quatro
campanha de D. Bartholo. mezes depois, os recem-casados foram para a
Entretanto, o sol, modelo de funccionarios, Europa ; a solidão alargou-se de toda a extensão
continuou a servir pontualmente os dias, um a do mar. Falcão contava então cincoenta e quatro
um, até chegar aos doi^ mezes do prazo marca- annos. Já estava mais consolado do casamento de
do para a entrega das acções. Estas deviam bai- Jacintha ; tinha mesmo o plano de ir morar com
xar segundo a previsão dos dois; mas as acções elles, ou de graça, ou mediante uma pequena re-
como as loterias e as batalhas, zombam dos cál- tribuição qué calculou ser muito mais econômico
culos humanos. N'aquelle caso, além de zombaria, do que a despeza de viver só. Tudo se esboroou;
houve crueldade, porque nem baixaram, nem fi- eil-o outra vez na situação de oito annos antes,
caram ao par ; subiram até converter o esperado com a differença que a sorte arrancára-lhe a taça
lucro de quarenta contos n'uma perda de vinte. entre dous goles.
Foi aqui que o Chico Borges teve uma inspi- Vai senão quando cai-lhe outra sobrinha em
ração de gênio. Na véspera, quando o Falcão, casa. Era a filha da irmã viuva, que morreu e
abatido e 'mudo, passeava na sala o seu desapon- lhe pediu a esmola de tomar conta d'ella. Falcão
tamento,, própoz elle custear todo o déficit, se não prometteu nada, por que um certo instincto
lhe desse a sobrinha. Falcão teve um deslumbra- o levava a não prometter cousa nenhuma a nin-
mento. guém, mas a, verdade é que recolheu a sobrinha,
-1- Que eu . . . tão depressa a irmã fechou os volhos. Não teve
— Isso mesmo, interrompeu o outro, rindo. constrangimento ; ao contrario, abriu-lhe as portas
— Não, n ã o . . . de casa, com um alvoroço de namorado, e quasi
Não quiz; recusou três e quatro vezes. A abençoou a morte da irmã. Era outra vez-a filha
primeira impressão fora de alegria, eiam os dez perdida.
contos na algibeira. Mas a idéa de separar-se de — Esta ha de fechar-me os olhos, dizia elle
Jacintha era insupportavel, e recusou. Dormiu comsigo.
mal. De manhã, encarou a situação, pesou as Não era fácil. Virgínia tinha dezoito annos,
cousas, considerou que, entregando Ja.cintha^jio feições lindas e originaes; era grande e vistosa.
outro, não a perdia inteiramente, ao passo que Para evitar que lh'a levassem, Falcão começou
os dez contos iam-se embora. E depois, se ella por onde acabara da primeira vez : — janellas
gostava d'elle e elle d'ella, porque razão separai- cerradas, advertências á preta, raros passeios, só
os? Todas as filhas casam-se, e os pais conten- com elle e de olhos baixos. Virginiá não se mos-
tam-se de as vêr felizes. Correu á casa do Chico trou enfadada. — Nunca fui janelleira, dizia ella,
e acho muito feio que uma moça viva com o
Borges, e chegaram a accordo.
sentido na rua.'Outra cautella do Falcão foi não
— Fiz mal, muito mal,. bradara elle n a ! noite
trazer para casa senão parceiros de cincoenta an-
do casamento. Tão minha amiga que ella era !
nos para cima ou casados. Emfim, não cuidou
Tão amorosa ! Ia chorando, coitadinha . . . Fiz mal
mais da baixa das acções. E tudo soe ra isdesne-
muito mal.
140 A NOVELLA SEMANAL,

cessario, porque a sobrinha não cuidava realmente New-York, e trazia por única assignatura este
senão d'elle e da casa. A's vezes, como a vista do nome : Reginaldo. Um dos trechos dizia assim:
tio começava a diminuir muito, lia-lhe ella mesma < Vou d'aqui no paquete de 25. Espera-me sem
alguma pagina do Saint-Clair das Ilhas. Para falta. Não sei ainda se irei ver-te logo ou não.
supprir os parceiros, quando elles faltavam, apren- Teu tio deve lembrar-se de mim ; viu-me em casa
deu a jogar cartas, e, entendendo que o tio gos- de meu tio Chico Borges, no dia do casamento
tava de ganhar, deixava-se sempre perder. Ia de tua prima...-*
mais longe : quando perdia muito, fingia-se zan- Quarenta dias depois, desembarcava este Regi-
gada ou triste, com o único fim de dar ao tio um naldo, vindo de New-York, com trinta annos fei-
accrescimo de prazer. Elle ria então á larga, mo- tos e trezentos mil dollars ganhos. Vinte e qua-
fava d'ella, achava-lhe o nariz comprido, pedia um tro horas depois visitou o Falcão, que o recebeu
lenço para enxugar-lhe as lagrimas ; mas não dei- apenas com polidez. Mas o Reginaldo era fino e
xava de contar os seus tentos de dez em dez pratico ; atinou corn a principal corda de homem
minutos, e se algum cahia no chão (eram grãos e vibrou-a. Contou-lhe prodígios de negocio nos
de milho) descia a vela para apanhal-o. Estados-Unidos, as hordas de moedas que corriam
No fim de Ires mezes, Falcão adoeceu. A mo- de um a outro dos oceanos. Falcão ouvia deslum-
léstia não foi grave nem longa ; mas o terror da brado, e pedia mais. Então o outro fez-lhe uma
morte apoderou-se-lhe do espirito, e foi então extensa computação das companhias, e bancos,
que se pôde vêr toda a affeição que elle tinha á acções, saldos de orçamento publico, riquezas
moça. Cada visita que se lhe chegava, era rece- particulares, receita municipal de New-York; des-
bida com rispidez, ou pelo menos com sequidão. creveu-lhe os grandes palácios do commercio...
Os mais Íntimos padeciam mais, porque elle dizia- — Realmente, é um grande paiz, dizia o Fal-
lhes brutalmente que ainda não era cadáver, que cão, de quando em quando. E depois de três mi-
a carniça ainda estava viva, que os urubus en- nutos de reflexão : — Mas pelo que o senhor
ganavam-se de cheiro, etc. Mas nunca Virgínia conta, só ha ouro ?
achou n'elle um só instante de máu humor. Fal-
— Ouro só, mão ; ha muita prata e papel; mas
cão obedecia-lhe em tudo, com uma passividade
alli papel e ouro é a mesma cousa. E moedas
de creança, e quando ria, é porque ella o fa-
de outras nações ? Hei de mostrar-lhe uma col-
zia rir.
leçãó que trago. Olhe ; para vêr o que é aquillo
— Vamos, tome o remédio, deixe-se disso, basta por os olhos em mim. Fui lá pobre, com
vosmecê agora é meu filho... vinte e três annos ; no fim de sete *mnos, trago
Falcão sorria e bebia a droga. Ella sentava-se seiscentos contos.
ao* pé da cama, contando-lhe historias, espiava o Falcão estremeceu: — Eu, cóm a sua edade,
reiogio para dar-lhe o caldo ou a gallinha, lia- confessou elle, mal chegaria a cem.
lhe o sempiterno Saint-Clair. Veiu a convales-
cença. Falcão sahiu a alguns passeios, acompa- Estava encantado. Reginaldo disse-lhe que pre-
nhado de Virgínia. A prudência com que esta, cisava de duas ou três semanas, para lhe contar
dando-lhe o braço, ia mirando as pedras da rua, os milagres do dollar.
com medo de encarar os olhos de algum homem, — Como é que o senhor lhe chama ?
encantavam o Falcão. — Dollar.
— Esta ha de fechar-me os oíhos, repetia elle — Talvez não acredite que nunca vi essa moeda.
comsigo mesmo. Um dia, chegou a pensal-o em Reginaldo tirou do bolso de collete um dollar
voz alta: — Não é verdade que você me ha de e mostrou-lh'o. Falcão, antes de lhe pôr a mão,
fechar os olhos ? agarrou-o com os olhos. Como estava um pouco
— Não diga tolices ! escuro, levantou-se e foi até á janella, para exa-
Comquanto estivesse na rua, elle parou, aper- minal-o bem — de ambos os lados ; depois res-
tou-lhe muito as mãos, agradecido, não achando tituiu-o, gabando muito o desenho è a cunhagem
que dizer. Se tivesse a faculdade de chorar, fi- e acerescentando que os nossos antigos patacões
caria provavelmente com os olhos humidos. Che- eram bem bonitos.
gando á casa, Virgínia correu ao quarto para As visitas repetiram-se. Reginaldo assentou de
reler uma carta que lhe entregara na véspera uma pedir a moça. Esta, porém, disse-lhe que era pre-
D. Bernarda, amiga de sua mãi. Era datada de ciso ganhar primeiro as boas graças do tio; não
A NOVELLA SEMANAL 141

casaria contra a vontade d'elle. Reginaldo não de-


sanimou. Tratou de redobrar as finezas ; abar-
rotou o tio de dividendos fabulosos.
— A propósito, o senhor nunca me mostrou
a sua collecção de moedas, disse-lhe um dia o
Falcão.
— Vá amanhã á minha casa.
Falcão foi. Reginaldo mostrou-lhe a collecção A LAVADEIRA
mettida n'um movei envidraçado por todos os
Era a flor das lavadeiras de ***
lados. A surpreza de Falcão foi extraordinária ;
Chamava-se Raymunda da Outra-banda.
esperava uma caixinha com um exemplar de cada
Qutra banda do rio — pois lá nascera.
moeda, e achou montes de ouro, de prata, de
Conhecia-a assim.
bronze e de cobre. Falcão mirou-as primeiro de
Um dia levantei-me cedo.
um olhar universal e collectivo; depois, começou
Abri a janella do meu quarto e olhei para a
a fixal-as especificadamente. Só conheceu as li-,
terra e para o céo. *
bras, os dollars e os francos, mas o Reginaldo
O dia estava bellissimo. O céo azul e rosa, a
nomeou-as todas : fio rins, coroas, rublos, drach-
terra alegre. Os passarinhos trinavam nas ar-
mas, piastras, pesos, rupias, toda a numismatica
vores e o vento agitava de leve as franças das pal-
do trabalho, concluiu elle poeticamente.
meiras.
— Mas que paciência a sua para ajuntar tudo
Respirei ávido os perfumes da floresta que tra-
isto! disse elle.
ziam as brisas da manhã.
— Não fui eu que ajuntei, replicou o Regi- Por debaixo da minha janella passaram duas
naldo ; a collecção pertencia ao espolio de um mulheres, pareciam mãe e filha.
sujeito de Philadelphia. Custou-me uma bagatella: A mãe não me attraiu a attenção: era uma ve-
— cinco mil dollars. lha vulgar.
Na verdade, valia mais. Falcão sahiu d'alli com A filha era mais bonita que a manhan.
a collecção na alma; fállou d'ella á sobrinha, e,
imaginariamente, desarrumou e tornou a ai rumar
as moedas, como um amante desgrenha a amante Era de estatura mean, tinha a fronte breve co-
para toucal-a outra vez. De noite sonhou que mo a de Venus pagan, cabellos pretos, olhos
era um florim, que um jogador o deitava á mesa também negros, gordinha, cara alegre, o nariz
do lansquenet, e que elle trazia comsigo para a pequeno e um tanto achatado na ponta.
algibeira do jogador mais de duzentos florins. Trazia na cabeça um balaio cheio dè roupa, o
De manhã para consolar-se, foi contemplar as que fazia-a corada.
próprias moedas que tinha na burra ; mas não se Tinha atraz da orelha um, pequeno ramalhete
consolou nada. O melhor dos bens é o que se não de jasmins, isso tornava-a seductora.
possue. Vestia uma saia amarella com floresinhas azues
D'alli a dias, estando em casa, na sala, pareceu- sobre a camisa branca como a penna da garça,
lhe ver uma moeda no chão. Inclinou-se a apa- debruada por uma renda larga que deixava ver-
nhal-a; não era moeda, era uma simples carta. lhe o soberbo collo.
Abriu a carta distrahidamente e i leu-a espantado: Tirei os olhos delia e olhei para o |dia, a ma-
era de Reginaldo a Virgínia... nhan era bellissima.
— Basta ! interrompe-me o leitor; adivinho o Olhei para a lavadeira, ella era mais bella que
resto. Virgínia casou com o Reginaldo, as moe- a manhan.
das passaram a -mãos do Falcão e eram falsas... Depois ella voltou uma esquina e desappareceu.
Não, senhor, eram verdadeiras. Era mais moral As auras trouxeram-me ainda em seu regaço
que, para castigo do nosso hoínem, fossem fal- um aroma dos jasmins dos seus cabellos.
sas , mas, ai de mim ! eu não sou Seneca, não Quanto tempo levei a respirar esse aroma,
passo de um Suetonio que contaria dez vezes a não sei.
morte de Cezar, se elle resuscitasse dez vezes, Entrando de novo no meu quarto, vi a minha
pois não tornaria á vida, se não para tornar ao espingarda a um canto.
império. Machinalmente vesti-me, tomei os preparos de
MACHADO DE ASSIS caça, puz a espingarda ao ombro e saí.
142 A NOVELLA SEMANAL

Nunca havia acertado um tiro, essa espingarda Junto á margem, com as águas a lamber-lhe o
era um luxo campestre, um pretexto para gosar tronco, espalhando sua sombra nas águas de cris-
dos encantos das florestas. tal da bacia, elevava-se airosa uma palmeira mi-
Parti. rity.
Segui o caminho que levara a lavadeira. Ha- Em uma das palmas do mirity umjcarachué
via nella ainda o perfume dos jasmins dos seus cantava.
cabellos negros. Mais longe erguia-se uma grande arvore de
Segui-o distrahido. cujos ramos pendiam os ninhos aboboriformes dos
A sussuarana — a rainha da matta virgem — japiins, que saltavam de galho em galho, soltando
podia atravessa r-se-me no caminho, sem que eu aos ares os seus alegres cantares.
me lembrasse que trazia uma espingarda. O japiin é o garoto dos pássaros; o seu canto
é irônico, galhofeiro, e, ás vezes, insolente.
O sabiá cantava no mirity e um canto simi-
Leitor, si algum dia fores a *** e te disserem que lhante partia do meio dos japiins.
existe ahi um lago, não crê. E' uma mystifi- O sabiá exasperava-se, sacudia frenético as azas
cação. e arrancava da garganta as suas mais bellas
Houve, é verdade, em outras eras, um lago notas.
aberto, grande, franco e bello, a acariciar com Dir-se-ia que no bando de japiins havia um sa-
suas pequenas ondas a fina e branca areia das biá, porque um canto idêntico, de notas tão bel-
suas margens. las, respondia ao cantor pousado na rama do
Hoje a aninga, as nymphéas, e outras plantas mirity.
aquáticas, como o mururé e o capim, cobrem to- E assim continuavam esse mimoso duello á face
talmente a sua superfície. da natureza.
Somente aqui e ali se forma uma bacia de que
se aproveitam os banhistas e lavadeiras... para la-
varem a roupa e o corpo. A roupa havia sido lavada e estendia-se agora
Mas, apezar disso, convido-te, leitor, caso fores sobre a macia relva que bordava a praia.
a *** não deixes de ir visitar o lago ou antes as A lavadeira estava no banho.
diversas bacias que elle forma; ha ahi paizagens Viam-se no chão seus vestidos.
de uma perfeição acabada. A saia amarella com raminhos azues devera
Esse caminho levava ao lago. ter sido solta de uma só vez da cintura e caliira,
Segui-o. formando um circulo, aos pés de sua dona. Com
Foram primeiro infructiferas as minhas pes- elle e por baixo delia caiu também a anagua. A
quizas. camisa essa estava atirada á beira da praia, bem
Com a cabeça pendida, voltava — sonhando perto d'agua, onde, com medo de molhar-se — >
mil sonhos da mocidade — quando um delicioso a ingrata - - teria abandonado aquella cujo corpo
cheiro de jasmim e uma risada argentina me fi- cobria.
zeram, como a um cão de caça, levantar a ca- Sobre a saia repousava — e sentia-se que ali
beça e dilatar as narinas" fora posto com todo o amor — o ramo de jas-
mins.
Procurei por todos os lados. Por entre a fo-
Do regaço liquido das águas surgiu um corpo
lhagem vi como um lençol prateado e nelle al-
trigueiro e esbelto.
guma coisa que se movia.
O que se via primeiro era uma cabeça emmol-
Approximei-me e olhei.
durada por uns cabellos negros e lustrosos como
* * * as azas da arauna, a espelharem-se humidos so-
Ella estava alli. bre o collo e hombros.
As águas do lago formavam nesse logar uma Em seguida o pescoço roliço e bello como da
bacia. garça, entroncando-se no collo soberbo, moreno
O fundo era de areia alva como a pétala do e avelludado.
bogarim. Depois os seios esphericos, tumidos, de uma ad-
As bordas eram formadas pelas magníficas es- mirável pureza de linhas, terminando em ponta
meraldas das folhas do muraré, corada por suas aguda, desafiando desejos e pedindo beijos.
garbosas flores. Dois braços torneados e bem feitos, acabando
A NOVELLA SEMANAL 143

por umas mãosinhas microscópicas, que cobriam o Turuman. Essa virgem é a ygara, a mãe d'agua.
seio com pudico recato de mulher bonita. Seu sorriso mata como a flexa do guerreiro e a
Tudo isto, todas estas bellezas, envoltas no man- sua voz é traidora como a pépéua que se oc-
to liquido formado pelas águas, cobertas de pin- culta nas folhas. Filho, por Tupan, não voltes
gos d'agua onde o sol irradiava fingindo dia- ao igarapé do Taruman.
mantes, fazia-me pensar na ygara da lenda indí- A cabeça do moço inclinou-se sobre o peito e
gena e a mim mesmo perguntava si não era eu elle ficou mudo.
o mancebo da lenda, a quem a mãi. d'agua apa- E no dia seguinte, quando o sol se punha, a
recia cõm todos os seus encantos para o seduzir. ygara cortava ligeira as águas do Turuman.
O moço manáos nella ia e não voltou mais á
taba de seus pães.
«Foi na taba dos Manáos. Não souberam mais delle.
Um dia um moço tapuyo, filho do tuxáua, Ousados pescadores contavam á noite, junto ao
seguia em uma ygara o igarapé que banha a fogo da âca, que ao passarem de volta de suas
ponta do Taruman. pescarias pelo igarapé de Taruman, quando a noite
Era o mais valente, o mais forte e o mais bello vae alta, viam ao longe o vulto de uma mulher
da tribú. que cantava, e junto delia o de um guerreiro
Na ponta de sua flexa pairava certeira a morte. moço.
O seu tacape era o terror da onça e do mun- E si alguém mais atrevido se aproximava, as
durucú. águas do rio abriam-se e os vultos desapareciam
E um dia, em uma ygara, o moço seguia o nellas».
* * v
igarapé que banha a ponta de Taruman.
A tarde ia linda, e o sol, mergulhando por de- Esta poética lenda dos filhos dos Manáos es-
traz. da coluna, onde se erguia a floresta, dou- tava-me na memória.
rava as águas do rio Negro. E ao ver banhando-se a linda lavadeira de ***
E a ygara, impellida pelo braço robusto do lembrei-me da ygara.
moço manáos, cortava ligeira, como a setta do * **
seu arco, as águas do riacho. Apezar de sosinha, a gentil lavadeira não es»
De noite, alta noite, o moço voltou. tava socegada.
Estava triste e não dormiu. Ora seu corpo cortava airoso como o da irerê as
A mãe delle chorou por ver a tristeza do filho águas claras da bacia sobre as quaes boiavam seus
e quiz conhecer o motivo de suas maguas. negros cabellos, quando não repousavam humidos
O moço falou assim: no dorso lustroso. Ora fazia de uma folha, que
— Ouve, mãi, ouve, porque só a ti posso contar a sua mãozinha travessa ia buscar aqui ou ali,
a dôr que me,vae n'alma. uma canôinha, qué punha-se a impellir como o
Era uma moça linda... como nunca vi nem en- sopro da sua bocca mimosa até ella ir ao fundo.
tre as filhas dos Manáos, nem dos Mundurucús. E quando se dava o naufrágio, como si elle a di-
Quando a ygara vogava, ouvi um canto longín- vertisse muito, seus lábios arroxados abriam-se
quo mais doce do que o do carachué, mais terno em um riso alegre e ruidoso, deixando ver duas
que o arrulho da jurity. Era delia. Estava sen- ordens de dentes pequenos, apontados e alvos
tada á margem do rio. Tinha tos cabellos cor como os jasmins que usava em seus cabellos.
de pedra amarella e nelle enlaçadas flores do mu- E o brinquedo continuava.
ruré e cantava como jamais ouvi cantar. Depois Brincava e ria sosinha como as aves suas com-
seus olhos, verdes como a pedra das icamiabas, panheiras que cantam na solidão.
fitaram-se em mim.
Um momento olhou-me e em seguida estendeu-
me os braços, e... o seu corpo esbelto como o Como era bella assim!
assahyseiro, mergulhou nas águas do igarapé, que E o sabiá cantava e ella escutava-o.
resvalaram-lhe pelo dorso branco como as pennas O pássaro notou essa attenção e estimulado
da garça. soltou uma escala nitida, estridente, argentina,
E o moço calou-se. clara.
A velha ouviu, chorou e disse: Depois começou uma ária, melodiosa, sublime,
— Não voltes, filho, não voltes ao igarapé de em que a sua voz alcançava todos os tons com
144 A NOVELLA SEMANAL

uma clareza e perfeição dignas de reparo, sobre Uma tarde estava sentado no parapeito do al-
os motivos talvez de alguma Lúcia dos bosques. pendre da linda capellinha do Bom Jesus, edifi-
Ás vezes o canto tomava uns accentos clássicos, cada em uma risonha collina.
que recordavam Haendel ou Mozart, outras ha- Do sol apenas uns raios vinham bater nas pa-
via nelle uma melodia terna que lembrava Verdi. redes brancas da capella.
Os japiins escolheram o seu melhor cantor Era Ave Maria.
para zombar da ave rei das mattas. Elle fez fiasco. As lavadeiras, com seus balaios na cabeça vol-
Não conseguiu arremedal-o. O chilro do pás- tavam do lago e passavam em minha frente no
saro passava do lyrico ao épico, do épico ao bu- lado opposto da praça.
cólico. Ora era pastoril, terno apaixonado. Ora Lembrei-me então da gentil lavadeira que vira
era altivo, arrogante, heróico. Havia algumas outrora banhando-se nas águas do lago.
notas que pareciam uma risada. Tinham seu que Meu amigo A... estava commigo.
de chacota. Offenbach misturava-se com Rossini. Perguntei-lhe pela Raymunda da Outra-banda.
Os japiins estavam mudos, corridos de ver- Respondeu-me: Morreu.
gonha. Eu estremeci e, com esse acento de quem não
E a gentil lavadeira parará de folgar e escutava, quer crer uma verdade dolorosa, tornei-lhe:
com a bella cabeça erguida, o canto do carachué. — Morreu ! ?... Como ?
— Vive hoje com um regaíão, commerciando
nos lagos de Faro.
Eu também escutava-o e olhava-a. Disse e calou-se.
De repente estremeci.
Por detraz da linda lavadeira apareceu, pri-
Alguma coisa opprimiu-me o coração.
meiro uma cabeça, e depois um corpo, redondo,
Era o toque plangente de Ave Maria no sino
negro, luzidio, asqueroso.
da capella.
Era a sicurijú. JOSÉ VERÍSSIMO.
Tinha a bocca aberta e desusava branda e cau-
telosa sobre as folhas verdes do maruré.
E aproximou-se.
Alongou o pescoço, esmagou com a repugnante
cabeça uma flor, escancarou as fauces e...
E a horrível cobra ia morder no collo airoso
da Raymunda da Outra-banda.
Levantei a espingarda e, rápido, tremulo, pre-
cipitado, atirei. NATAL NO LOURENÇÃO
O réptil estorceu-se, girou sobre si nesmo e Foi debaixo de uma chuvinha persistente e man-
caiu com a cabeça esmigalhada sobre o murur é. gueira que o Neca Alves voltou do capoeirão, ao
A lavadeira deu um grito, correu para a mar- fechar da tarde, carregado de palmas de guari-
gem, envolveu-se instinctivamente nas roupas e fi- canga e de folhas de samambaia das miúdas. Um
tou os olhos pasmos na serpente, com as mãos ameaço de sol doirara o fundo do poente, que
amparando o seio offegante, como si o coração logo, entretanto, se acinzentou de novo, até que
lhe quizesse saltar tora. a barra da noite, menos escura, talvez, que as
Foi esse o primeiro tiro que acertei. • nuvens do alto do céo, se foi alastrando pela cos-
O povo de minha terra crê que ninguém erra taria verde-negra das montanhas. Urrou, pelas
tiro em cobra. sofraldas, e voz melancólica e pausada das vaccas
v * v
errantes: e de longe lhe respondeu, vingando o
Voltei á cidade. morro todo tremulo das touceiras de jaguara, o
Perguntei pela lavadeira. bramido áspero de um touro costa d'Africa.
Disseram-me seu nome e contaram-me quem era. O Neca era um mestre dos nataes d'aquelles
Era casta e pura como a Mani da lenda in- centros. Em três léguas em volta ninguém sa-
dígena. bia pôr a mão num presépio nem puxar. uma
* y *

reza como elle. Catava quanta barba-de-velho


Passaram-se dois annos. pendia das arvores heradas, pelos campos-cober-
Eu voltei a ***. tos; quanta folhagem exquisita nascia á beirados
A NOVELLA SEMANAL, 145

córregos: e até — coisa que fazia piedade! — os que isto: e, apezar de ser tão pouco,a Risoleta
ninhos que podia topar, dos sabiás, joão-de-barro já não foi mais, de então por diante, o alvo ly-
e dos tico-ticos indiscretos. Fazia o giráu a um rio do ribeirão, porque inteirinha se fez rosada
canto do alpendre, armava um empalizado junto como a flor do pecegueiro. Foram chegando os
d'este, compunha e concertava os musgos e as visinhos: a mangedoura mais ficou sendo um jar-
flores a todo o arranjar, lançava ao fundo a man- dim e um mercado de fructas, que mangedoura,
gedoura, e tinha um geito todo seu de collocar onde havia cordas e trapezios em que brincavam
ps clássicos animaes que viram, logo ao nascer, creanças, umas viradas para o menino' Jesus, ou-
a linda creancinha de Belém, que foi Nosso Se- tras sungando a outras.
nhor Jesus Christo. O dono da casa appareceu afinal, rengo e pe-
Assim, pendentes sobre a palha secca e aos la- zado, arrastando pelo chão soccado a sua erysi-
dos da cumieira, com os rostos muitos risonhos pela doida e barulhenta. Quem o viu, triste e
voltados para o berço rústico, os anjos pareciam entregue no meio de toda a alegria espalhada no>
mandar ao gallo que cantasse, ao boi que mu- alpendre, ficou logo também triste. Mas houve
gisse e ao carneiro que balasse brandamente, por quem procurasse combater a" impressão de magua
não estorvarem o somno plácido do filho de Ma- que se ia entranhando no povo:
ria Nazarena. E via-se bem que o carneiro e o boi — Ué, seu Caetano, você 'tá que nem moça
e o gallo não» tinham vozes agudas, porque mais da roça, _c'uma perna fina e outra grossa?
se occupavam em olhar para o doce vulto infan- Elle voltou-se para o caipira alegre, e seus o-
til que tinham diante, cercado de flores agrestes, lhos tiveram um grande olhar de commovida re-
de mangas, de cajubys, de pingos-d'agua e de nuncia. O caçoista ficou sério, approximou-se,.
marmellinhos. poz-se a examinar o pé inchado do doente, e con-
Era um verdadeiro mutirão, o preparo do pre- cluiu, solemne como numa conferência:
sépio: cada qual dos convidados trazia uma no-
— E não é que o home 'stá mesmo c'a erzipa
vidade ou uma surpreza, como rosas raras na-
das brabas ? Mas porém isso não vale nada'.
quelles ermos, jaboticabas atrazadas, galhos ver-
atuche-Ihe uma banharada de arve-de-lagarto, uns
melhos de café-murta em pencas. A Risoleta, o-
pánnos molhados em cozimento de herva-lanceta
pancadão do bairro, alva e engraçada como um
que numa volta de mão 'tá prompto p'ra outra.
lyrio de ribeirão, trouxera agora um braçado de
Exp'rimente só!
tabúas e ramalhetes de bariricó ladeados de ma-
ravilhas- O Neca, vendo-aa entrar assim, admi- Fazia-se estridente a gritaria dos grillos e dos
rou-se : gafanhotos, fora. Viam-se brilhar no céo, muito
— Tabúa, aqui, siá dona ? Eu cuidei que isto nítidas como pregadas num velludo já gasto, as
só dava na minha terra, pVas esteiras que a maiores estrellas: que as outras, fraquinhas ou
gente vende nas festas e neste rincão só tinha o desconsoladas, não se animavam a apparecer na
piry, que p'ra mim é uma planta cansada! profundeza d'aquella noite de festa. Levantou-se
Ella corou ligeiramente; não tanto como as o tempo, mas a horas que os gallos principia-
maravilhas que trazia nas mãos, mas decerto muito vam a bater as azas e a cantar, espaçadamente
mais que o namorado, quando lhe disse taes coi- ainda. E como o Neca se puzesse em frente.ao
sas : que o Neca Alves, um tostado de Serra Acima, presépio, e ajoelhasse, todos ajoelharam também,
era quebra e decidido para , pensar e dizer... Co- numa grande agitação de bancos e prucas arras-
meçou a ajudal-o, então: e Nosso Senhor, si pu- tados, num forte rugir de saias e de calças cheias
desse ver, acordando de repente e com olhos que de gomma.
entendem, toda flor e toda fructa que lhe foi Começou a reza. O Neca era afiado para
posta ao lado, teria de estranhar que na terra de aquillo, sabiam-n'o todos: mas, fosse lá como
sua natureza pudesse haver uvaias e araçás, offi- fosse, não tinha a voz tão segura como sempre,
ciaes-da-sala e sumbaré. distrahia-se ás vezes, estava um capellão de meia
Num certo momento, encontraram-se as mãos patacà. Engrolou a maior parte da ladainha, res-
de ambos. Era natural, na continuação do tra- mungou outra parte, liquidou a obrigação tão
balho: e, comtudo, a delia tremeu de leve, a ma- depressa* como poude, e sentiu no peito um doce
neira de uma juruty que a aragem toca, e elle allivio, quando, chegando aos últimos versos da
pediu-lhe desculpas, serenamente, como quem cantoria necessária, ouviu no terreiro o estrondar
sabe que vai ser logo desculpado. Nada mais dos tiros de garrucha e de rouqueira. Ergueu-se,.
146 A NOVELLA SEMANAL

avisinhou-se das Três Pessoas, fez uma reveren- escondidas delle e delia, os prendera um ao ou-
cia ao Menino Deus, beijou-o: e saiu. tro a poder de alfinete de fralda.
Já trilavam as violas, roncavam os violões, e E a conversa dos dois era esta, por fim:
uma animosa sanfona fazia ouvir, da cosinha, o — Quando eu lhe vi, nhá Risoleta, esfro dia,
seu repertório fanhoso e curto, quando os con- na casa do Carmo, de vestido côr de rosa e cravo
vidados se chegaram ao presépio e foram dei- branco no cabello, e tive que vir-me embora, já
xando esmolas e retirando fructas e flores: que voltei mais seu do que meu: fiquei logo late-
ellas são sempre capazes de fazer feliz a quem jando si havia de lhe pedir por minha bocca ou
quer que seja, nas virações da vida... Como fosse mandar soletrar uma carta, si a carta devera de
augmentando o movimento nas cercanias do pre- ser p'ra você ou pV.o seu pae.
sépio, e crescesse também o rumor, surgiu da — Tanto faz, seu Neca: a gente querendo, já
noite um macho crioulo, pinhão, muito inhato e vê que ninguém pôde contra. Eu queria, não é?
'rabicó, de piques nas orelhas, e pegou a trocal-as Já tava meio caminho andado...
ao pé^da porta, contemplando extasiadamente o — E adonde foi que você me disse que queria,
povo, cheio de bichos e de anjos nos negros olhos ' ou ao menos, me deu a entender essa vontade ?
pasmos. — Quem quer bem adivinha pensamento; era
Pouco durou, porém, aquella contemplação: os da sua intenção que eu saisse annunciando que
guapécas que andavam cercando a mesa, onde já lhe tinha amor, ver esses piás que carrega tabo-
se viam lourejar os quartos de leitão e os fran- leta de circo de cavallinhos ?
guinhos' assados, saltaram ao pobre do burro, si- Apontava a manhã fresca e rubra. O sol mos-
não quando, e elle de novo entrou na noite, a trote trou-se com pouco. Houve tremuras de orvalho
secco, zonzo e meio cadeira. Muito tempo ainda na grama-seda do piquete, porque ventava rijo.
se ouviu, de mistura com os primeiros canta- E o macho pinhão, ao longe, encostado á cerca
dos, o ladrar bravio dos cachorros e a tropeada de cangiquinha, dirigia para a casa de morada um
fugitivahre tudo se afastou, afinal, até se con- olhar muito repassado de tristeza e saudade. To-
fundir com a barulheira do córrego do Louren- da prata da grama foi sumindo, envergonhada,
ção, que as chuvas recentes tinham engrossado. porque todo o ouro do sol deu de roda e pelo
Quem tirou o primeiro coreto foi o Caetano, chão.
embora estivesse increnco e pesadão desde já — ...E que casamento bonito, não é nhá Riso-
muitos dias atraz': leta ? Bonito e singelo... feito o Menino Jesus...
Aos amigos
VALDOMIRO SILVEIRA.
um brinde é feito:
reina a alegria
em nosso peito.
E a rapaziada cantava deliciadamente o conhe-
cido estribilho:
Grato licor,
Alegre e jocundo,
Que todo este mundo
Desafia a amor. A VENDA SECCA
Uma velha, rodeada de creanças, contava a his- Beira-corgo também sabe suas lendas. Ouvi
toria do nascimento de Christo: uma de um piraquara anguloso, certa vez, pes-
— O gallo, ahtão, cantou por este geito: «Je- cando á sombra de uma ceboleira, entre porcos que
sus Christo- nasceu !- E a vacca preguntou-lhe : fossavam o tijuco e sapos coaxantes no brejo.
- Adonde?* E o carneiro ar respondeu: «Em Contou-m'a a propósito da «venda secca», entre-
Belém . meando as palavras nasaladas de benzimentos
Mas a festa não ia boa: faltava-lhe o Neca Al- mofinos e devotissimos.
ves, que era todo enlevos e mimos com a Riso- , Num alto de espigão, entre cafeeiros "largados-,
leta. Já lhe chamavam puxa-puxa, coisa com que carurús, rubins e cupins, amontoam-se minas de
elle dava um cavacão sem altura; já diziam que uma tapera. Como toda tapera, fora mal-assom-
tijolo e azeite d'aquelle feitio, et a desaforo de brada e, ainda hoje continuam seus restos met-
mais : e houve um senhor muito saido, que, ás tendo arrepios de pavor em pleno dia, com suas
A NOVELLA SEMANAL 147

lesmas, morcegos, rans, cobras, aranhas peludas sussurra-nos conselhos, transmitte-nos maravilhas
que se arrastam e caem no velho poço, corujas tão próximas de nós, mas que não conhecemos !
dorminhocas que durante a noite viram defuntos Em cada uma dellas se vislumbra um acto de
e se dependuram em cruzes, lá ficando, a brilhar tragédia horripilante, uma scena de drama pun-
macabramente ao clarão do luar sinistro, gelando gente, uma batalha vencida na asperrima luct£ da
a espinha, já de longe, a viandantes noctivagos colonização, da formação da Pátria por extranhos
extraviados. , aventureiros penetrando o myst,erio apavorante da
3 — 'tá 'hi «venda secca» ! Garra o santo, moço... terra virgem. Galopam-nos pela visão sonhadora
E o tabareu passa de largo, encolhido no lom- mil procissões phantasticas ide caravellas, frotas,
bilho. povoações, reductos, missões, frechamentos, ,co-
í_ Noutros tempos aquillo fora uma venda. Não hortes de devastadores e cathechizadores, entra-
se sabe quem foi o maluco constructor da casa. das, bandeiras — toda a estupenda obra, emfim,
O certo é que, pela sua situação, a água ahi era do arrebatamento de uma terra fecundissima, á
djfficilima. Somente de raro em raro, quando selvatiqueza dos gentios, das feras, dos reptis. E
chovia, é que ella marulhava, transitória como um recitamos baixinho :
sonho fugacissimo em mente árida de esperanças, , «Ah ! quem te vira assim', no alvorecer da vida,
escorrendo, feita enxurros, pelas gretas do ter- Bruta Pátria, no berço, entre as selvas dormida...
reno resequido. O. lugar era mesmo fatídico. Não
se sabe Ronque artes do Demo, mas o facto é Mas vamos á lenda :
que quanto mais aprofundado, o poço mais es- Tempos idos. Só Tapuyas, naquellás regiões de
condia o liquido precioso. O vendeiro era o que cerradissima floresta virgem. Reinava Gulamby—
hoje se chama um urso ou exquisiíão. Lá vivia um cacique potente, com sua tribu antropophaga.
atraz do balcão, a soltar baforadas sem fim, can- Chegaram os brancos, com maldades inauditas.
tarolando : Houve guerras, massacres sangrentos, captiveiro
. «Biroca morreu, tchim, tchim» . . . penosissimo, e os Índios que escaparam á sanha
Naturalmente algum desilludido que, não as- invasora refugiaram-se, com seu chefe, pelas fur-
pirando a mais nada na vida, para lá transpor- nas das cercanias. No meio dos invasores, porém,
tara seus tarecos e botara venda. estavam os capuchinhos, bons, piedosos, que pro-
Certo dia, aquecendo as mãos ao fogo, disse tegiam os bugres. Os índios eram seus amigos.
umá beatona que confabulara a noite toda com Ora, um dia, por lá apparecera um capuchinho
o padre, entre mucamas escarrapachadas em torno isolado, talvez maluco, de longes terras, olhos
á panella de pipocas : ardentes em êxtase, sonhando um mundo. Viera
— Seu vigário diz que o dono da venda-secca do Oeste, do paiz do sombrero, onde estavam as
é um bruxo. Vive sem água o coisa, como o doces chatas paireiras de saia rubra. Havia phan»
coisa-ruim... , tasiado grandezas, em seu cérebro melodioso co-
Alastrou-se a suspeita, aquellas palavras da re- mo a voz de suas bellas patrícias, e sahira, louco,
zadeirà, nascida fácil na alma supersticiosa dos só, a realizar seus castellos. Jornadeara longa-
tabareus. A venda secca foi isolada. Excommun- mente, atravessara mattos sem conta, passara pela
garam-n'a, e ninguém mais ousou por lá os pés. região dos largos rios atoladiços, dos xarayes,
Um dia os corvos começaram de baixar, sinis- chegara á terra roxa, aos domínios da esfarrapada
tramente, sobre a casa maldicta... E ella lá fin- tribu de Gulamby. Subira a uma eminência do
cou, tapera, lembrando aos posteros melancholias terreno, onde só havia vegetação rasteira. Er-
ou explendores extinctos de uma vida extincta. rara a vista em torno, deslumbrado. Vira o
Mas, porque o poço não dava água ? aurorecer, e se não contivera ante tanta belleza.
E' aqui que começa o mysterio e, portanto, Exclamara : «Eldorado !» Depois, seu coração
vem a lenda do beira-corgo. Lendas... quanto as parece que se derreteu como mel. Era a nos-
adoro! As de nossa terra, de mistura com as talgia, o spleen da selva, a saudade dos que amava.
tradições de nosso povo, tão meigas, tão tristes, Procurou água. A seus pés, no alto do morro,
tocadas de suavíssima nostalgia, narradas em noi- cantava o crystal de uma lympha encantada. Tu-
tes apprehensivas, de geada, em redor do fogo ! pan prohibira que se bebesse delia. O capuchinho
Sente-se uma como revivescencia do passado, tem bebeu e morreu. Gulamby encontrou-o. Reconhe-
a gente a impressão dulcissima de que o espirito ceu a vestimenta. Era amigo. Era dos que pro-
sempre vivo das geraçõesjpassadas nos fala á alma, tejiam os selvagens, ensinavam as creanças e
148 A NOVELLA SEMANAL

brandamente aconselhavam os adolescentes. Reu- á hora da saudade, com o ultinio raio de sol
niu a tribu. Houve ritos tristes, fúnebres, e Tu- apagou-se a luz derradeira do seu ultimo olhar e
pan, compadecido, fez seccar a fonte maléfica, piedade e censura, que é reprehensão e dó. O
dizendo que em tal lugar vida humana não seria seu é copia delle. Oh! que mal e que bem me
mais possivel, porque a água não surgiria mais. fez quando eu o vi.
E muito mansamente deixaram o capuchinho dor- E a sua mão de seda affagava-me a cabeça num
mindo seu somno eterno, e aquella paragem que- gesto de bençam. Perguntei-lhe o nome desse
dou no mais absoluto repouso. primeiro e inesquecido amor; num riso triste, es-
Nesse lugar, mais tarde, surgiu a venda secca... palmando a destra sobre o peito e, apontando o
OLIVEIRA E SOUSA céu com o indicador que tremia, exclamou trans-
figurada :
«Ah ! moço, talvez esse nome também seja o
seu ! jurei nunca mais pronimcial-o depois que o
li gravado na alliança de outra mulher.
Sabel-o-á um dia,quando eu morrer».
As visitas repetiram-se, o affecto estreitou-se e
para mim, aquelle vulto sombrio de ancian en-
tristecida, sombra que em si guardava uma re-
O VELHO E S C R I N I O cordação luminosa, fez-se parte do meu ser, en-
Quando entrei na sala, chamou-me a attenção chendo de paz e saudade o meu coração vasio.
a insistência daquelle olhar que me fitava, que Vel-a discorrer com tanta paixão sobre o passado,
me penetrava, que me illuminava todo. Nunca evocal-o traço a traço na contemplação religiosa
eu a vira em minha vida ; conversava intelligen- do meu rosto, era para mim um encanto. Era
temente com um meu amigo, mas, os seus olhos sempre de tarde, á hora da saudade que ella ap-
faiscavam de continuo sobre mim. parecia, quasi nunca da noite, a conversar com-
Que haveria de ser ? alguma extravagância na migo na janella do seu quarto, velha ogiva go-
minha veste ? alguma nódoa no rosto ? alguma thica, olhando longe, um horizonte infinito. A
tristeza incoadunavel com a minha mocidade ? sua mão se extendia, reerguendo na distancia, á
Nada. Eu falava descuidadamente e o riso estilha- luz morna do crepúsculo, os fulgentes saráus da
çava-sè nos meus lábios. sua mocidade galante. E, no meio das sedas, ao
Na semana seguinte, repetiu-se tudo com mais brilho dos crystaes, ao retinir das copas em cur-
um accrescimo de curiosidade : pediu ao amigo vas elegantíssimas de brindes, ao esfusiar dos mi-
que me apresentasse. Seus olhos flammejaram nuetes e madrigaes, sempre elle, elle sempre sur-
ainda mais quando os fixei e senti na mão que gia donairoso e esbelto, olhando-a com aquelle
apertava a minha uma energia que eu não jul- olhar que era censura e dó, reprehensão e pie-
gava existisse naquelle corpo envelhecido. dade. E a oradora arrematava infallivelmente o seu
— O senhor me fez muito mal quando o vi discurso, por achar um meneio qualquer do meu
pela primeira v e z . . . corpo que reflectisse um qualquer ademaue do seu
— Como assim ? fallecido amor.
—- . . . a recordação de uma juventude quasi Um telegramma, um dia, chamou-me para
divina é o maior tormento de um coração que a cabeceira da ancian; quando entrei, illumi-
envelheceu ! é uma saudade que nos leva ao de- nou-a ainda um sorriso e r a mão emagre-
sespero, o pensar no que somos e no que nunca cida que eu apertava, senti um tremor longínquo
mais tornaremos a ser ! de commoção. Falava comprehensivelmente: «As-
Havia eloqüência nas palavras da ancian e o sente-se aqui; quero-o para meu companheiro
seu toucado negro tremia aos gestos da sua ca- nesta ultima hora. Olhe-me sempre ; em toda a
beça branca. minha vida, em toda a minha velhice um só con-
— Não vos comprehendo ; que recordação an- solo eu tive — foi o seu olhar. Olhe-me ainda
gustiosa poderia evocar-vos neste meu traje escuro? quando os meus olhos não o virem mais! > De-
— Não falo do seu traje, falo do seu rosto ; pois, apontando-me com a cabeça um escrinio
elle evoca-me uma visão passada ha cincoenta sobre um movei: «E' seu. Abra-o quando eu for
annos na luz dos meus olhos ; nunca mais a es- morta ; dentro estará o nome que me perguntou
queci e hoje, meio século depois, esse rosto ainda um dia e que lhe neguei revelara Definhou por
me olha e com que olhar! com um olhar que é quasi um mez ainda e no fim duma tarde quente,
A NOVELLA SEMANAL 1

em minhas mãos senti o gelo do seu extroem adeus. Já o sol ia alto quando passei por uma crôa
Momentos após, abria o escrinio. Dentro, no fechada, onde havia, abeirando a vereda, uma por-
brilho de algumas jóias raras, um maço de velhas ' ção de paus-brancos seccos.
cartas que um pedaço de trança loura amarrava. Lá em cima de um dos*paas havia um buraco,
Folhas seccas de malvas exhalavam ainda um um oco, e dentro remexia uma coisa. Calculei que
perfume que fazia sonhar e encher-se a alma de fosse um ninho de papagaios. Apeeí-me, deixei a
uma saudade profunda. Minha mão tremeu ao bestinha solta e marinhei pelo pau arriba. Era,
violar o segredo daquelle amor e foi de joelhos com effeito, um ninho; e dentro estavam dois
que abri as velhas cartas e aspirei o morto aro- papagainhos ainda pelladinhos da silva, — um ma-
ma daquellas flores mortas. chinho e uma fêminha.
Que enigma ! que mysterio! No fim de todo a Peguei o machinho, desci e pul-o no chão, bem
carta, naquelle mesmo talhe tão meu conhecido, perto da minha eguinha, que estava pastando;
tão meu familiar ; com aquella sua calligraphia Quando subia de novo pelo pau, para buscar
caprichada e artística, o nome do meu pae — A. fêminha, ouvi uma vozinha fanhosa e fraca dizer
de Noronha e Castro ! por aqui assim: „
Elle fora o primeiro e inesquecido amor da — Meu sinhôzinho, tire a bestinha daqui, sinão
minha inesquecida ancian. E eu fiquei de joelhos ella me piza!
diante das relíquias daquelle amor que era tam- Olhei admirado. Era o papagainho quem estava
bém um pouco meu. falando.
No dia seguinte lia-se na" fita mais roxa da co- A fêminha morreu logo, mas o machinho du-
roa maior — «Eternas saudades de A. N. C» ; rou muito e ficou um papagaio bom, falador de
era eu que, em nome desse outro morto cujo fama. Sabia toda a ladainha de Nossa Senhora e
rosto vivia rto meu, saudava no dia do enterro o responso de Santo Antônio, de.cor. Era meus
delia, a essa que fôrà minha adoradora por que pés e minhas mãos no arranjo da casa. Servia
não pudera ser minha mãe. também de chama.
F. SILVEIRA Attrahia, gritando e chamando, os bandos de
papagaios que passavam — rumo do sertão, no
inverno, — buscando as praias, no verão.
Botava-o sempre nas arvores do quintal. Quan-
do o bando de papagaios sentava-se chamado por
elle, zaz !' traz ! papocava fogo: três, quatro co-
miam terra. Escolhia os mais gordos. Eram a
janta ou a ceia.
O T N I C O Uma vez ia passando um bando: botei o bi-
chinho no cajueiro. Elle chamou e os outros, meio
O Tônico, que muito conheci, gostava de pregar desconfiados, poisavam muito chegadinhos a elle
suas petas com aquella voz de falsête, hesitante e de modo que eu quasi não podia atirar, temendo
humilde ao mesmo tempo, que era o seu melhor feril-o. Estava hesitante, arma em punho, procu-
característico. rando um geito, um modo melhor, quando elle
Essas historias sempre versavam sobre caçadas, gritou-me, o meu bichinho:
pássaros de estimação e cães de caça; invariavel- — Atira, Tônico, sinão elles vão embora! Gran-
mente tinham um heroe ou heroina: — uma ra- de custo homem!
posa de manhas inacreditáveis, surgindo a uivar Não tive duvida, mandei chumbo num casal de
pelas encruzilhadas em ermas horas, tetricamente, papagaios gordos, mais distanciados. Ambos cahi-
o ventre pregado ao espinhaço, esfaimada, olhos ram; m a s . . . coitadinho ! . . . (As lagrimas reben-
phosphorecentes; um pintasilgo de canto harmo- tavam-lhes dos olhos) um caroço de chumbo
nioso e arrebatador, attrahindo a poisar no peitoril variado pegou no meu papagainho, que cahiu
da janella os canários bravios, côr de oiro; ou também . . . Corri para o meu bichinho, agonizan-
um lebréu de fôlego terrível e faro nunca visto, te no chão: e, quando me abaixei para pegal-o,
costumeiro a pegar pelo gasnete os guaxinins rai- elle botou a mãozinha no peito cheio de sangue;
vosos e a pendurar-se ao nariz dos ásperos novilhos. com os olhinhos rasos d'agua me disse:
Um dia pregou-me esta : - Mataste-me, Tônico, sem querer... mas eu
— Seu compadre, eu andava de viagem pelo te perdôo a minha morte
sertão, montado numa bestinha ruça e estradeira E o Tônico soluçava..
que foi do finjdjiJViJjgfll Mi.SwwAf^lha. JOÃO DO NORTE
A NOVELLA SEMANAL

EMENTO
que saíram quatro n ú m e r o s ape- norte e do sul do paiz ; na «Ci-
Avída &i\ecdotic&. nas. As idéias combativas do dade do Rio», com Patrocínio,
tempo levavam-nos á t r i b u n a , sendo secretario da *A Folha»,
epittòr^e^típs:: que ocupei por varias vezes, em quando veiu a abolição. Ainda
discursos incendiarios pró abo- fui folhetinista do «Correio da
CTòiKms
& eieriptoreS licionismo... Manhã», publicando um conto
E m outubro desse a n n o em- aos domingos...
COELHO NETTO barquei para Recife, onde fui E i s ai m i n h a obra de jornal.-..
A 21 de fevereiro de 1920, prestar exame do meu primeiro O primeiro volume publiquei
completando Coelho Netto 55 an- anno de direito. Na luminoza depois do meu cazamento, em
nos de edade, «A Folha» de capital nortista colaborei em «A 1890, «Rhapsodia». Tendo feito
Medeiros e Albuquerque, man- Folha do Norte >, de Martins u m contrato com Domingos de
dou entrevistai-o a respeito de J ú n i o r . . . P a i r a v a sobre todos Magalhães,, obriguei-me a dar'
sua carreira literária. As res- nós a figura inolvidavel de To- mediante a quantia de 400$
postas do grande escriptor são bias, de quem fui i n t i m o . . . Nas mensais de dois em dois mezes,
interessantes : minhas horas de izolamento orijinais para u m volume, nunca
— «A minha primeira publica- completo vejo o g r a n d e mestre inferior a 200 pajinas.
ção data de 1880 a 1881, si não ria minha retina : os lábios gros- Esse editor publicou oito vo-
me falha a memória... E r a u m sos, os olhos empapuçados de lumes' perdendo os orijinais de
soneto «No Egypto», que publi- longo escudo, o cabelo puxado sete obras, consideradas. São
quei nos «A pedido», do «Jor- na testa, a explodir a sua gi- e l a s : «Painéis», «Georgicas»,
nal do Commercio» . . . E m se- gantesca admiração pela Ale r «Mozaicos», «Fagulhas», «Ma-
guida mandei para a «Gazeti- manha... ravilhas» e «Vida Nômade».
n h a » , s o b a direção de Favilho Sigamos. Voltei a S. Paulo Também dezapareceu o volume
Nunes, dois contos, u m dos em 84 onde, com fervor, tentei «Fim de Século», negociado em
quais 66 intitulava «Marocas;>... os primeiros contos, os artigos 1901 com João Mofreita, de São
A r t h u r Azevedo, que fazia então de polemica, e senti as primei- Paulo.
o «Correio» desse jornal, pas- ras manifestações exercidas no Tenho t a m b é m entregues e
sou-me u m a descoruponendazi- meu espirito por Maupassant. não publicados, á/Livraria Alves,
nha. Disse lá que o autor de Foi para m i m o periodó mais desde 1900, o orijinal de uma
tal «Marocas» devera procurar fecundo de l e i t u r a ao lado de obra intitulada «Viajem de uma
outro oficio. Aquilo doeu-me no Pompeia, que era u m devorador familia ao Norte do Brazil» e um
intimo. Fiquei tristíssimo, mas de livros clássicos... sainéte, i n t i t u l a d o «Água de
não dezanimei. No meu izola- Só em 85 vim para o Rio, Caxambú», escrito por enco-
mento comecei a trabalhar n u m onde, a convite de Patrocínio, menda da empreza das referidas
poema épico «Guanabara», de me fixei, entrando a fundo na águas...
que üão sei por onde andam os campanha abolicionista, com pre- Tenho, portanto, publicados,
orijinais. Ao mesmo tempo, es- juízo da m i n h a carta de bacha- até hoje, 62 volumes.
crevia também uma peça para rel. Aqui, morando com Aluizio E n t r e g u e s e em vésperas de
theatro, u m a opereta «A prophe- de Azevedo, comecei as m i n h a s sair, tenho quatro, sendo um ao
cia»... Tudo, porém, ficou sem primeiras tentativas de romance, editor Romualdo dos Santos, da
publicação. E m 1883 fui para trabalhando ativamente na «Ga- Baia ; outro, a m i n h a campa-
São Paulo e lá encontrei Raul zeta da Tarde», em obra jorna- n h a política no Maranhão, que
Pompeia, meu companheiro li- lística... Na «Vida Moderna», de eu mesmo editarei com o titulo
terário, com quem comecei a Luiz M u r a t e A. Azevedo, co- «Reaceão Civica» e mais dois
escrever. Entrando na Academia mecei a colaborar, publicando em mãos de Lello, Irmãos do
de Direito, lá fui companheiro os c Contos», com o pseudônimo Porto. Esses editores estão ree-
de Raymundo Correia, Valentim de Charles Rouget. Diriji « 0 ditando, em ediçõis revistas, e
Magalhães e Augusto de Lima, Dia» e o «Diário Illustrado». algumas i n t e i r a m e n t e refundi-
naquela vida boêmia de então, Trabalhei no «Novidades», com das, toda a m i n h a obra... Nessa
sob a impressão ainda dos ver- Alcindo Guanabara ; na «Gazeta estatística, não incluo os folhe-
sos de Alvares de Azevedo . . . de Noticias», no «0 Paiz>, no tos e opusculbs que são em nu-
Vários jornais acadêmicos saiam «Diário de Noticias», com R u y mero de sete... Alem disto, te-
mensalmente, combatendo pelas Barboza. Rediji <0 Meio», com nho vertidos paru línguas es-
idéias abolicionistas. E m «A P a r d a l Mallet e P a u l a Ney. t r a n g e i r a s , trez volumes em ale-
Onda» colaborei ao lado de Ri- Mais tarde, colaborei na «A No- mão, anunciando os editores em
vadavia Correia, Muniz Barreto, ticia» , como folhetinista, no <Wilduis», o aparecimento de
Gomes Cardim e Nelson Tobias. «Correio do Povo» e como cor- m a i s dois outros : <Urwald->
Depois fundei «O Meridiano» de respondente de vários j o r n a i s do (Floresta) e «Schwartz Koenig»
A NOVELLA SEMANAL 151

(Rei Negro), livros esses que fi- aliás — arte que desde logo se pene- deza quanto na superfície,- não é obra.
caram encalhados por motivo da tre em sua plenitude. Exprimir pen- para uma simples vista de olhos.
samentos è alguma coisa diffioil, oom Que custa essa arte ao artista ? A -
guerra. raias pelo torturante. Comprehen- penas, a anciã, o desespero, a revolta
Uma caza franceza anuncia a del-os, pois, em todas as suas minu- que Bilac exprimiu em jjj« I nania.
dencias' e nuanças, tanto na profun- verba »:
traducção de «Rei Negro», sob
0 titulo de «Macambirá». Ah! quem ha de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a bocca não diz, o que a mão não escreve ? "
Além- disso, outras cazas, uma — Ardes, sangras, pregada á tua cruz, e, em breve,
franceza e outra sueca, pedem- Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...
me para traduzir contos para ' O Pensamento ferve, e è um turbilhão de lava.
uma antholojia de escritores A Forma, fria e espessa, é um sepolcro de neve..
4bericos... E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
1 Que, perfume e clarão, refulgia e voava.
Acham-se em minhas mãos
para enviar aos meus editores' Quem o molde achará para a expressão de tudo ?
portuguezes seis volumes e mais Aí ! quem ha de dizer as aneias infinitas
Do sonho ? e o céo que foge á mão que se levanta ? -
um á Livraria Alves, sendo tre/,
romances, dois volumes de con- E a ira m u d a ? e o asco mudo? e o desespero m u d o ?
tos, de fição ; um volume de E as palavras de fé que nunca foram ditas ?
E as confissões de amor que morrem na garganta ? !
contos sociais e um livro em
que escrevo as minhas confe- E', decerto, tão velha como o ho- quando muito tem para exprimir-
rências na Escola Dramática... mem a insufficiencia da linguagem. Pregada á cruz desse supplicio, arde
Eis o que você queria. Estão ai Nasceu com elle e'com elle progrediu. e sangra, buscando a expressão. E, sa
a minha obra e a minha vida.» Que, quanto mais se aperfeiçoa o es- acaso uma, idéia a deslumbra, é para.
pirito, menos a lingua lhe correspon- em breve, ao fixar-se, se , desfazer
de ás exigências. E, si ella também em lodo.
se aperfeiçoa, vão os dois aperfeiçoa- «Olhas, desfeito em lodo, o que t e
mentos em desegual carreira, longe [deslumbrava...»
este de alcançar aquelle. Gomo pode «o que te deslumbrava* ,
E' que as palavras são limitadas. uma idéia, desfazer-so em «lodo» ? 'A
' Na própria limitação têm a sua for- idéia, unidade espiritual, nunca se-
ça. E o pensamento, livre, só tem desfaz em «lodo» nem em pó...
limites onde se acaba a razão e, com Entretanto, continuemos a leitura.
ella, as suas ultimas apparencias. Eis O Pensamento ferve, e é um turbilhão
todo o trabalho: definir o indefinido, [de lava:
conter o infinito no finito. Ppr ou- A Forma, fria e espessa, é um sepul-
tro motivo não é que, no fundo, toda [cro de neve...
discussão è um' caso grammatícal a
"Inaraia v e r b a " , d e Bilac /resolver... A philosophia transcende,
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
,Que, perfume e clarão, refulgia e
mas, attingidas as ultimas circumvo- [voava.
0 verso, obra de arte do pensamen- luções, fecha o seu circulo regressan-
to, opera como obra de arte : pela do á grammatioa. Palavras, palavras Na alma que arde e sangra, o pen-
simples presença. A' primeira leitura, e só palavras . . . samento é um turbilhão de lava, em-
empolga como a tela ou o m á r m o r e A grande indignação de Nietzsche quanto a, forma é um sepubcro de
à primeira vista. Esfazer o verso, era a insufficiencia das palavras, des- neve. E ' pesada e abafa a idéia, que
pois, rarefazendo-lhe as bellezas em gastadas pelo uso, desvirtuadas pelo voava e refulgia, num deslumbra-
mal coada prosa, desarticulando-o,des- abuso, alargadas e empallidecidas na mento. O pensamento, pois, é a lava
membrando-o, parece muito o mister sua significação! E ellas. são n a t u r a l - informe, ttirbilhonante, ardente, que,
do iconoclasta: pura profanação. mente, assim con vencionaes. Nada, em contaeto com a atmosphera, se
em essência, as prende ao objecto solidifica e se conforma. Êesfriada,
Comtudo, jamais nada suggeriu tan- por ellas significado. As próprias o- congela-se num sepulcro do neve.
to como a própria arte, essa que age nomatopéas, mais eloqüentes, mais Assim è que a iâeia se tranforma
á. primeira vista, como à primeira próximas do seu sentido essencial, em lodo. Lava, substancia incandes-,
leitura, pela simples presença. E ' do são meras expressões auditivas, ads- cente, affeioôa-se aos moldes que lhe
seu natural o suggerir. E, si o é, trictas a sensações de um só dos cin- damos. A's vezes, porém, não acha
porque não supportará ella a expres- co sentidos humanos. Não ha ono- moldes... e eis o lodo.
são disso mesmo que lhe é próprio ? matopéas possíveis para a vista, o Pois,
Nao. Só não tolera analyse obra gosto, o tacto, o olfacto, nem para «.Quem o molde achará para a ex-'
inconsistente de arte pêcea. A outra, as idéias geraes. As palavras são no- [pressão de tudo ?»
a grande Arte, resiste mesmo »á i m - tações symbolicas e, quanto mais o Ha inexprimíveis. Sentimentos e
pericia . . . sejam, mais transcendentes. A insuf- sensações nem sempre se exprimem
, Nada tão falso como a analogia en- ficiencia é, pois, innata. com palavras. As próprias formas
tre a dissecção anatômica e a anato- não se reproduzem. As palavras ex-
mia do verso. O cotejo é forte. Vio- Dahi nasceram as' aspirações sym- primem idéias e imagens ideaes. A
lenta a imagem e, portanto,' falsa. A bolistas. Mas do nascedouro levaram ira muda, o asco mudo, o desesjmro
belleza humana, que se desfaz a gol- o germen do mal. Bilac, depois de mudo pertencem á mimica, á lingua-
pes de ferro, desfeita, clama em nós t Inania v e r b a » , poderia ter iniciado gem dos gestos e das attitudes. As^
por todos os sentimentos e instínotos: a escola. A profissão de fé estava sim também, a fé intensa e o amor
emociona pelo horrível. Não se ins- feita. Não quiz, porém, o poeta e, intenso, que requerem, mais que pa-
pira o anatomista na arte ou na poe- felizmente, passar da verificação do lavras, factos. São paixões : tendem
sia, senão na sciencia . . . faeto, aggravando-o com procurar-lhe a realisar-se, mais que a exprimir-se.
Ora, diversa é a operação critica, , remédio.
que na belleza procura mais belleza, «Inania verba» ,é um soneto philo-
outras bellezas, novas bellezas, ou a Ah ! quem ha de exprimir, alma im-
sophico. E' um caso singular nas
ausência dellas, o que ainda é u m a [potente e escrava, «Poesias». Mas, não quiz Bilac uma
homenagem a ellas mesmas, na espé- O que a bocca não diz, o que a m ã o pedra solta no seu monumento. E
cie. Salve-se, pois, ao menos pela [não escreve ? integrou-a na saa obra, rematando-a
intenção, que é toda e apenas artis- com aquelle fecho de ouro, profunda-
tiea. — Ardes, sangras, j>regada á1 tua cruz-,
mente bilacqaeanno :
[e, em breve, «B as confissões de amor que m o r r e m
• Ademais, a composição poética, ex-, Olhas, desfeito em lodo, o que te des- [na garganta ? !»
pressão de sentimentos reduzidos a V[lumbrava . . .
idéias, não é assim — como nenhuma, A nossa alma, impotente, é [escra- B. F .
va: não age, não diz nem escreve,
Í52 A NOVELLA SEMANAL

da existência da Atlantida : falamos


dos indícios ethnologicos.
fCÜtíosíáKSSí ijnem visita o museu G-uinnet ou as
sa'as egypcias do Louvre se impres-
siona com o seguinte facto : sobre os
frescos, fielmente reproduzidos, dos tú-
mulos do antigo Egypto e das Pyra-
mides, todos os objeetos têm a côr
natural que se conhece : as messes
A "Atlantida" de Platão são verdes ou amarellas, conforme a
estação, os bois são' brancos o\\ rui- VULTOS E LIVROS — AUTUI-I
A propósito do romance — «Atlan- vos, os asnos são pardos, etc. — o ho- JÍOTTA — E d . Monteiro Lobato &
tida», de Pierre Benoit, — de que de- mem é vermelho, a mulher é ama- Cia. — São Paulo — Iftíl.
mos o resumo em nosso ultimo nu- rella ! — Não é, pois, desarrazoado Tratando dos livros do jirof. Assis
mero — entrou para a ordem do dia deduzir que o egypcio era vermelho Cintra e do romance do sr. Canto o
o problema do antigo continente que e a egypoia, amarella. Mello, dissemos que a literatura em
teria ligado a Europa á America até Vede açora o indio da America do São Paulo baixara muito a craveira
que o submergiu bruscamente uni ea- Norte, principalmente o Araucario e do seu valor. E do facto. De Mon-
taclysma geológico. Em todos os tem- o Pafcsicão, os especimens mais puros teiro Lobato, Léo Vaz, Hilário Tácito
pos, curiosos têm procurado averiguar da raça : ó o mesmo typo facial, a e Godofredo Rangel, estréias que t<>-
-os fundamentos da creação platônica. mesma côr de tijollo, nos homens e ram estupendas revelações, para os
Sobre os Atlantes, os guerreiros que, nas mulheres, a mesma caínaçao últimos nomes que vêm urinando o-
«m edades remotas conquistaram a amarellada. Ha mais : os Índios brinhas mofinas de vario gene.ro, vae
Grécia e sobre o seu paiz de origem, mexicanos mumilicavam os mortos uma distancia, que só não percebe'
a Atlantida, dá Platão descripeões como os egypcios, itsando os mesmos quem não enxerga.
tão precisas que é difficil acreditar processos.""No museu do Trocadéro se Assim, eis aqui u m livro novo:
as inventadas. Segundo elle, os Atlan- encontram múmias mexicanas, mara- « Vultos e livros :>, do sr. dr. Ar-
tes habir,H,vam u m a ilha immensa, si- vilhosamente conservadas. Emfim, thur Motta. K' um livro de critica?
tuada além das columnas de Hercu- nuns e noutros, são as mesmas as De estudo ? Do ensaios ? Não é. Nem
les, m:is tão perto dellas que facil- doutrinas religiosas que motivavam a critica, nem estudo, nem ensaio. To-
mente podiam passar á Europa. Du- mumiíicação cios mortos, isto è, a n«; mando cada um dos quarenta imutor-
rante uma de suas guerras contra os eessidade cie conservar o corpo para taes, seus patronos e predècossores
.gregos primitivos, quando sitiavam deixar viver a alma, que também mor- nas respectivas cadeiras, o autor em-
Athenas, de^appareceu sob as ondas reria no caso de desapparecer o seu prehendou fu.zer-lb.es a bio-bibliogra-
a sua terra natal. Tirando-lhes a ca- antigo envolnero de carne. pliia. E fez. Dá-nos a biograpliia
tastrophe todas as possibilidades de de cada u m e a lista das suas obras.
«uxilío, levantaram o eerco e susta- A hypothese mais verosimel c q u e "Um excellente catalogo, revelador de
ram as operações. Embarcados nos os indígenas da America e cs antigos um magnífico temperamento de anti-
seus bateis. encaminharam-se para o e"ypoios descendem da mesma raça quario. Esse valor ninguém lhe podo
-oriente do Mediterrâneo, af«stuudo--.c que povoava a Atlantida. Tendo sido neííiir: é um perfeito repositório de
o mais possivel do' loi^ar em que sos- mais completa a submersão a leste, informações. O próprio auctor, cer-
sobrara a, sua Pátria. só permit.tiu a sobrevivência dos A- to, não pretende mais.
tlantes em guerra na Grécia, os quaes
Muitos geólogos < stão hoje conven- desembarcaram no Kgypto e ahi lan- O que não se pode é confundir tal
cidos de que realmente existiu a A- çaram raízes, emquanto a maior par- trabalho oom literatura. Não é si-
t-lantida e que Platão se fez eeho de te da população escapada ao oataclys- quer historia da literatura. São ele-
lendas antiquissimas, que repousavam ma ficava n a outra margem. mentos para OH.SU historia,.
sobre um facto real. Sobretudo, es- Todo o livro não tem uma idéia,
cudaram a questão sob o ponto de E' também di^no de nota que a a- uão apresenta a menor marca de es-'
vista geológico e zoológico. 0 sr. Ter- resta da cordilheira dos Andes segue pi ri to e intellectual idade.
mier, da Academia das Sciencias de symetricameute as aresta submarina
Paris, mostrou que a actividade vul- da Atlantida, acima, assignalada e que
cânica do oceano* Arlanc-ico não está os contornos da África, e os da Ame- EIGXltÕKK V1STUS POR DENTRO
•extincta e que numerosos navegado- rica têm uma configuração syinetri- — SI.MÃO ou MÍKTUA — VA. Montei-
res têm verificado os seus effeitos afi- ca, como si, approximando-os, viessem ro Lobato & Cia. — São Paulo—1981.
na superiicie, sob a forma de fervi- a encaixar uns nos outros. Está nesses moldes o volume « Fi-,
Ihamento do m a r ou de desprendi- H . i)i,; R A U V I I . L K .
gurões vistos por dentro >. Também-
mento fie vapores o gazes atravez das nem sombra de idéia, nem vestígio de,
águas. As sondagens effectnadas pelo espirito, nem simulacro de arte. Co-
príncipe de Mônaco deram a physio- mo s'i nos fosse revelar inauditas coi-
nomia exacta do solo sub-marino des- sas, segredos insuspeitados, altos es-
se oceano : uma immensa crista em cândalos, o auctor se fecha hermeti-
forma 'le S alongado occujia a sua camente dentro de um pseudonymo
parte mediana, attestando u m a frac- para nos contar aneedotas semsaboro-
tura gigantesca, que, partindo rias im- mts de Pinheiro Machado, liías Fortes,
mediações do polo norte, passa o K- Costa Senna e outros.
quador. Os seus jjontos emergentes Escreve mal. Desconhece a syntaxe.
são a Islândia, as ilhas Kcrue, Ob A- Estylo noticioso e iia vezes vaseonso.
çores, as Canárias, a Ascenção, Tris- Acompanha a mania chamada «nacio-
tan da Cunha, etc. As explorações nalistas, de fazer «graça-», roprodu-
oceânicas do principe de Mônaco per- zindo o falar caipira, simplesmente.--
mittiram também trazer á superfície,
de u m a profundidade de 3.000 metros,
certas categorias de lavas que não po- PUtAQUARAS - OI.IVMKA e SOUSA-
deriam ter-se formado senão ao ar Ed. Casa tw li tora «O Livro» --Sim
livre. Paulo — 1921.
Emfim, o sr. G-ermain, assisten- O sr. Oliveira e Sousa apresenta-se
te do curso de zoologia do Insti- com um livro de contos. E' uma o--*
tituto Oceanograxmico de Paris, re- treia auspiciosa. O auctor não é ain-
velou as apreciáveis similitudes en- da o perleito senhor de si mesmo, le"!,
tre a flora e a faina das Ilhas o estylo anguloso, irregular, extranhff
do Cabo Verde, da Madeira e da- dos que começam. Esses defeito*, •
Canarias com a° das Antilha-, ao porém, perfazem a massa de que sabem
passo que em nada se assemelham os escriptores. De resto, Oliveira t
com as da África visinha. Sousa tem qualidades que o faraó ei-
Ha ainda um ponto de vista que eellente contista, quando se desvon-
parece não ter sido aproveitado até cilhar de-rnfluencias e se assenhores^
hoje e que, entretanto, parece de im- do seu mister.
portância capital para apoiar a these E' o que esperamos para breve.
E D I Ç i O E » r > A ~

AMADEUJAMARAL F. T. DE SOUZA REIS


A Pulseira de Ferro (novella) l$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
Um soneto de Bilac (critica) 2$000
WALDEMAR FERREIRA
MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante 8$000
Os ftegros (novella) 1$000 Estudos de Direito Commercial . . . . 10$0rj0
A Hypotheca Naval no Brasil 3$000
LÉO VAZ
D ... u, ,, v H „ AUCTORES DIVERSOS
Ritmha (novella) No prelo
O que todo o commerciante precisa saber
''GUSTAVO BARROSO ( 10 -° milheiro) . . „ 2$000
,, , u / 11 \ ., „ Almanach Commercial Brasileiro de 1918 6$00Õ
Mula sem cabeça (novella) No prelo
NICOLAU ATHANASSOF
A. DE SAMPAIO DORIA „ c , , , . . ,
Os Sumos, manual do criador de porcos
O que o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) ". . . . 3$000
OS PEDIDOS DO INTERIOR DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

S O C I E D A D E E D I T O R A O I v E G A R I O R I B E I R O
Httiei X>r. A b r a n c h e s , -5=3 = C a i x a P o s t a l ll-STa * S Ã O r*AXJX/0

EDIÇÕES DA " R e v i s t a d o Brasil,,


Broch. Encad. Broch. Encad
NEGRINHA, contos por Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato 2$500 3$500 T A Q , interessante narrativa pelo
URUPÉS, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4|000 5$000
l
bato, 6.a edição < 4$000 5|000 MADAME POMMERY, íomance
CIDADES MORTAS, contos por satyrico, por Hilário Tácito. . 4$000 —
Monteiro Lobato, 2.a edição . . 4$000 5$000 BRASIL COM S OU COM Z, por
IDÈAS DE JECA TATU, critica F. Assis Cintra 3$000 —
por Monteiro Lobato, 2.a edição 4$000 5$000 VIDA OCIOSA, romance por Go-
NARIZINHO ARREBITADO, li- dofredo Rangel . . . . . . 4$000 5$000
vro de historias para crianças, OS CABOCLOS, contos por Val-
por Monteiro Lobato . . . . 3$500 domiro Silveira 4$000 5$0Q0
POPULAÇÕES MERIDIONAES HISTORIAS DA NOSSA HISTO-
DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato Corrêa . . . 3$500 4$500
gia por F. / . Oliveira Vianna . 8$000 10$000 E S P H I N G E S ) v e r sos de Francisco
-PROFESSOR JEREMIAS, por Léo julia 5$000 - :
Voz, 3.a edição . . . . . . 4$000'5$000 S CENAS E PAISAGENS DA MI-
V1DA Er MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires 5$000 —
reto 2$000 — CASA DE MARIBONDO, Contos,
LIVRO DE HORAS, DE SOROR João do Norte 3$000 —
^.DOLOROSA, poesias por Gui- PAIZ DE OUROEESMERALDA,
lherme de Almeida 5$000 — romance, / . A. Nogueira . . . 4$000 —
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
Io Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 M A I S 1Q o / o p A R A Q p o R T E

Pedidos aos Editores: M o n t e i r o L-ObatO O . C , C a i x a 2 . A - S. P A U L O


152 A NOVELLA SEMANAL
da existência da Atlantida . falamos
dos indícios ethnologicos.
Quem visita o museu Guinnet ou as
sa ! as egypcias do Louvre se impres-
siona com o seguinte facto : sobre os
LEITl»
frescos, fielmente reproduzidos, dos tú-
mulos do antigo Eg3'pto e das Pyra-
mides, todos os objectos têm a côr
natural que se conhece : as messes
A " A t l a n t i d a " d e Platão são verdes ou amarellas, conforme a
estação, os bois são brancos ou r a i - VULTOS E LIVROS - Alem™,!
A propósito do romance — cAtlan- vos, os asnos são pardos, etc. — o ho- MOTTA — Ed. Monteiro Lobato &'
tidas, de Pierre Benoit-, — de que de- mem é vermelho, a mulher é arna- Cia. — São Paulo — 1921.
inos o resumo em nosso ultimo nu- rella ! — Não é, pois, desarrazoado
mero — entrou para a ordem do dia deduzir que e egypcio era vermelho Tratando dos livros do prof. Assis
o problema do antigo continente que e a egypcia, amarella. Cintra e do romance do sr. Canto e
_teria ligado a Europa á America até Mello, dissemos que a literatura ern
que o submergiu bruscamente um t-s- Vede agora o índio da America do Sao Paulo baixara muito a craveira
taclysma geológico. Em todos os tem- Norte, principalmente o Araucario e do sen valor. E de Cacto. De Mon-
pos, curiosos têm procurado averiguar o Patagão, os especimens mais puros teiro Lobato, Léo Vaz, Hilário Tácito
os fundamentos da creacão platônica, da raça : é o mesmo typo facial, a e G-odofredo Rangel, estréias que fo-
feabro os Atlantes, os guerreiros que, mesma côr de tijollo, nos homens o r a m estupendas revelações, pura os
•em edades remotas conquistaram a nas mulheres, a mesma carnação últimos nomes que vêm firmando o-'
G-recia e sobre o seu paiz de origem amarellada. Ha mais : os índios brinhas mofinas de vario gênero, vae
s Atlantida, dá Platão descripções mexicanos mumilicavam os mortos uma distancia, que só não perco]»'"
tao precisas que é difíicil acreditar como os cgypcios, usando os mesmos quem nao enxerga. '
as inventadas. Segundo elle, os Atlan- processos. No museu do Trocadéro se
encontram múmias mexicanas, mara- Assim, eis aqui u m livro uovo:
tes habitavam uma ilha immensa, si- s Vultos e livros », do sr. dr. Ar-
tuada além das columnas de Hercu- vilhosamente conservadas. Emiim,
nuns e, noutros, são as mesmas as thur Motta. E' um livro de critica!
les, mas tão perto dellas que facil- De estado ? De ensaios ? Não é. Nem
mente podiam passar á Europa. Du- doutrinas religiosas q<ie motivavam a
mumifieação dos mortos, isto é, a ne- critica, nem estudo, nem ensaio. To-
rante uma de suas guerras contra os mando cada um dos quarenta imuior-
-gregos primitivos, quando sitiavam cessidade de conservar o corpo para
deixar viver a alma,, que também mor- taes, seus patronos e predèccssores
Athenas, desappareeeu sob as ondas nas respectivas cadeiras, o autor em-
a sua terra natal. Tirando-lhes a ca- reria no caso de desapparecer o seu
antigo envoluero de carne. prohendeu faxer-lhes a bio-bibliogra-
tastro ihe todas as possibilidades de pliia. E fez. Dá-nos a biographia
wixiho, levantaram o eevco e susta- A hypothese mais verrtsimel é q u o cie cada u m e a lista das suas obras,
ram as operações. Kmbarcados nos os indígenas da America e cs antigos Um oxcellente catalogo, revelador d»
seus bateis, encaminharam-se para o egypcios descendem da mesma caça um magnífico temperamento tle anti-
oriente do Mediterrâneo, afastando-se qnario. _ Esse valor ninguém lhe pode
•o mais possivel do logar em que >«•-. que povoava a Atlantida. Tendo sido
mais completa a submersão a leste, negar: é um perfeito repositório de
sobrara a sua Pátria. só permittiu a sobrevivência dos A- informações. O próprio auctor, cer-
tlantes cm guerra n a Grécia, os quaes to, não pretende mais.
Muitos geólogos estão hoje conven- desembarcaram no Hlgypto e ahi lan-
cidos de que realmente existiu a A- çaram raizes. emquanto O que não se pode é confundir tal
tlantida e que Platão se fez eeho de a maior par- trabalho oom literatura. Não é. si-
lendas antiquissinius, que repousavam te da população escapada ao cataclys- quor historia da literatura. São ele-
sobre um facto real. Sobretudo es- ma ficava n a outra margem. mentos para essa historia.
tudaram a questão sob o poi-to de E' também digno de nota que a. a- Todo o livro não tem uma idéia,
vrsta geológico e zoológico O M-. Ter- resta da cordilheira dos Andes segue nao apresenta a menor marca do es-
mier, .Ia Academia das Sciencias de symetricameute a. aresta submarina pirito e intellectualidade.
.Paris, mostrou que a actividade vul- da Atlantida, acima, assignalada e que
cânica do oceano» Atlântico não esta os contornos da África e os da Ame-
•extmeta e que numerosos navegado- rica tí-m uma configuração symetri- FIGURÕES VI STOS POR DENTEO
res têm verificado os seus cffeitos até ca, como si, approximando-os, viessem — SIMÃO J>K MANTUA — Ed. Montei-
na superiicie. sob „ forma de fervi- a encaixar uns nos outros. ro Lobato & Cia. — São Paulo—13:21.
ibamento do m a r ou de desprendi- Está nesses moldes o volume * Fi-
mento de vapores o gazes atravez das H. I>E KAUVII.LK. gurões vistos por dentro ». Também
águas. As sondagens eifectnadas pelo nem sombra de idéia, nem vestígio de
príncipe de Mônaco deram a physio- espirito, a t a simulacro de arte. Co-
nomia e.xacta do solo sub-marino des- mo si nos fosse revelar inauditas coi-
se oceano : uma immensa crista em sas, segredos insuspeitados, altos es-
forma de S alongado oecupa a sua cândalos, o auctor se fecha hermeci-
parte mediana, attestando uma frac- cauieute dentro de um pseudonymo
tura gigantesca, que, partindo das im- p a i a nos contar aneedotas semsaboro-
mediaçoes do polo norte, passa o E- nas de Pinheiro Machado, Bias Kortcs,
quador. Os seus pontos emergentes Costa Senna e outros.
sao a Islândia, as ilhas Peroe, os A- Escreve mal. Desconhece a syntaxe,
<;ores, as Canárias, a Asoencão Tris- Estylo noticioso e ás vezes vnsconso.
tan da Cunha, etc. As explorações Acompanha a mania chamada «nacio-
oceânicas do príncipe de Mônaco per- nalistas, de fazer «.graça-, reprodu-
mittiram também trazer á superfície zindo o falar caipira, simplesmente...
üe uma profundidade de 3.000 metros'
certas categorias de lavas que não po-
deriam ter-se formado senão ao a r PtRAQIJARAS — OMVKIRA e SOUSA -
livre. Ed. Casa Kditora sO Livro» --São
Emfim, o sr. Germain, "assisten- Paulo — 1921.
te do curso de zoologia do Insti- O sr. Oliveira e Sousa apresenta-se
tituto Oceanographico de Pari.-, re- com n m livro de contos. E' uma ÇH-
velou as apreciáveis similitudes' en- treia auspiciosa. O auctor n£o é ain-
tre a flora e a faina das Ilhas da o perieíto senhor de si mesmo. Tem
do Cabo Verde, da Madeira e d a , o estylo anguloso, irregular, extranho
b a n a n a s com a i das Antilhas. ao dos que começam. Esses defeito»,
passo que em uada se assemelham porém, perfazem amassa de que sabem
com as da África visinha. os escriptores. De resto, Oliveira •
Ha ainda um ponto de vista que Sousa tem qualidades que o faraó ox-
parece não ter sido aproveitado até eellente contista, quando se clesven-
hoje e que, entretanto, parece de im- cílhar de%ifluencias e se assenhori-M
portância capital para apoiar a these do seu mister.
E' o que esperamos para breve.
BDIÇOBS HA

AMADEUJAMARAL F. T. DE SOUZA REIS


A Pulseira de Ferro (novella) 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
Um soneto de Bilac (critica) 2$000
WALDEMAR FERREIRA
MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante 8$Q00
Os Negros (novella) 1$000 Estudos de Direito Commercial . . . . 10$OQ.O
A Hypotheca Naval no Brasil 3$000
LEO VAZ
AUCTORES DIVERSOS
Ritinha (novella) . No prelo
O que todo o commerciante precisa saber
GUSTAVO BARROSO (10.° milheiro) 2$000
Almanach Commercial Brasileiro de 1918 6$00Ó
Mula sem cabeça (novella) No prelo
NICOLAU ATHANASSOF
' A. .DE SAMPAIO DORIA
Os Suínos, manual do criador de porcos
O que o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) . . . . 3$000
OS'PEDIDOS DO INTERIOR DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

SOCIEDADE EDIITORA OEEGARIO RIBEIRO


Rtaa E»r. A b r a m o h e s , ^,& - C&ixe». P o s t a l H Í T S . {SÂ.O PAUIvO

EDIÇÕES DA
i*
Revista do Brasil
Broch. Encad. Broch.
»>
Encad'
NEORINHA, contos por Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato . . " 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pelo
URUPÉS, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4$000 51000
bato, 6.a edição l 4$000 5$000 MADAME POMMERY, íomance
CIDADES MORTAS, contos por satyrico, por Hilário Tácito. . 4$000 —
Monteiro Lobato, 2.a edição. . 4$000 5$000 BRASIL COM S OU COM Z, por
IDÈAS DE JECA TATU, critica F. Assis Cintra 3$000
por Monteiro Lobato, 2.a edição 4$000 5$000 VIDA OCIOSA, romance por Go-
NARIZINHO ARREBITADO, li- dofredo Rangel 4$000 5$000
vro de historias para crianças, OS CABOCLOS, contos por Val-
por Monteiro Lobato . . . . 3$500 domiro Silveira 4$000 5$000
POPULAÇÕES MERIDIONAES HISTORIAS DA NOSSA HISTO-
DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato Corrêa . . . 3$500 4$500
gia por F. /. Oliveira Vianna . 8$000 10$000 ESPHINGES, versos de Francisco
PROFESSOR JEREMIAS, por Léo Julia 5$000 —
Vaz, 3.a edição 4$000' 5$000 SCENAS E PAISAGENS DA MI-
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires
reto 2$000 — CASA DE MARIBONDO, contos,
LIVRO DE HORAS, DE SOROR João do Norte 3$000
DOLOROSA, poesias por Gui- PAIZ DE OURO E ESMERALDA,
lherme de Almeida 5$000 — romance,/. A. Nogueira . . . 4$000
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 MAIS 10 o/o PARA O PORTE
P e d i d o s aos E d i t o r e s : M o n t e i f O L o b a t O ® . C . , C a i x a 2 - A - S. P A U L O
A NOVELLA NACIONAL "Volumes publicados:
A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por
série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : ofíerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "BF no gênero uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima „ — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do "Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 '/2 X 12 »/» centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnifico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor Á
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL, 1
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.
OS NEGROS m
A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldorníro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume. 1$000 em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado 1|300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3$!500; série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr, Abranches N, 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — Là, foges, aconselhou-me um, eto.
ÀNNò Í SAO PAÜLÓ, 2 DÈ JULHO DE 1Ô2Í NUMERO 10

fVEULA.
NAL

j^OGEDIT** 1 ^ OlJr«aR4jRriq^
A NOVELLA SEMANAL DIREC.TOR: BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AOS SABBADOS


Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se. propõe a salvar do olvido as me-
dos o» analphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em colleoções
sao ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num oirculo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extracçSo no
cioso : o livro não se diffunde entre nós piorque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se diffunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auotor,.
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, ^muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da creação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda. ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possível pelaescrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que um abundante repositório de infor-
dos os meios pura o diffundir em todo o território na- mações bibliographicas. uma selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor oo-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.

Participando ao mesmo tempo da natureza do livro Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
e da revista, A NOVELLA HEMAXAL pretende reunir nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
as vantagens desta e daquello. ramo a revista, será de notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
leitura leve e variada, será vendida a preço intimo, será prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
apregoada nas ruas. nus estradas de ferro, em tinia par- ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
te, a toda gente ; mas não será lutil e de inroressè e- dos e desconhecidos, consagrados e estreantes, contanto
pliemero como ella : pelo fundo — pela qualidade e pela oue taes obras tenham ^alor e sejam conformes com a
.extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série feição d'A NOVE! LA. isto é, que tenham pequena ex-
de pequenos livros, que se encadernarão no fim década tensão e possam ser lidas por toda gente.
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma bibliotheea literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volum es por serem esses os
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
e creanças. senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora. bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
procurará nos auctores a vida, a acção, o interesse, de Todos os, outros gêneros terão o seu logar no nosso
modo a constituir o verdadeiro livro popular. supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
trabalhos inéditos. Não seria este o melhor meio de se se eolloca á disposição do publieo. dos auctores e doa
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico, ceber um acolhimento sympathico.
tanta cousa optimn a pedir um editor. Assim, A NO- O s EllJTOUKS.

Aos auctores
Aceeitaremos com pra/er toda col-
laboração intores-ante para qualquer Aos leitores queiram nos auxiliar neste trabalho
que nos enviem relações de (iiietorcs
das secçòes deste periódico. A NOVELLA SEMANAL e-de livros publicados, do modo a nos
Os auctor.-s de\ em nos remetter os na ser lida em toda parte am Inei habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seunorne. villas povoações. estradas cidadt- os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, hotms, elul.s, biblíothecas, etc.
de ferr
fereeeni a sua eidlaboraçáo.
Os oríiriuaos devem ser escriptos de
estando pori-.so organisando um ser-
viço de distribuirão que será o mais
Importante
Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em oalligraphiy completo pessivei. de sorte a não ha- gnaturas d"A NOVELLA SEMANAL,
bem legível e de preferencia dactvlo- ver pomo do território nacional onde .enviando-nos adeantadamente a res-
graphados. não tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, terá. direito a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Fará obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos' com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
garío Ribeiro — Caixa postal n. 11T2 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero ile assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias. VELLA SEMANAL ofíereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo ile brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo ele qualquer livraria'do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará interessar pela venda ou leitura des- sil, no valor de 20 o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas,
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra, Anno 20$000
De todas as obras das quaes ihe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre . . . . . 10$000
remettido'um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . 5$000
lém disso umalnoticia critica. fornecida, rogand a todos quantos Numero avulso . . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIOJBEIRO-R. Dr. Abranches, 43 Caixa Postal, 1172 - Telepb.: Cidade, 5441-S. PAULO
ANNO I A NOVELLA SEMANA]L São Paulo, 2 de Julho de 1921 NUMERO 10

A FAÇANHA DO IMPE-
RADOR — Theodoro
SUMMARI© DI5 Ar.ENCAR.
Vida literária — Capitães li-
terárias - No Brasil e na
Magalhães. Itália — Tradição e novi-
QUERER BEM - Afranio dade em poesia.
Peixoto. SUPPLEMENTO — A vida Curiosidades literárias —
anecdotica e pittoresca Helena, « a dos braços
ULTIMO LANCE — Alui- SÃO JOSÉ — (A. R. B.)- dos grandes escriptores brancos». - Helena, «a
zio Azevedo. Thomaz Lopes. — Olavo Bilac — MARIO das bellas faces ».

A FAÇANHA DO IMPERADOR
(CHRONICA DO 1.» REINADO)
Tocava trindades e d. Pedro, recostado num
eanapé antigo, entre duas almofadas de bordado
D. Pedro deixou transparecer-lhe nos lábios um
azul, vio entrar,- inesperadamente, nos seus apo-
ligeiro sorriso de contentamento e rosneou com-
sentos, o lacaio privado, teso e rijo, comprimido
sigo : — «Alguma entrevista para amanhã.» E,
na desbotada libre de pano verde.
pausadamente, rompeu o lacre que fechava a cor-
O príncipe, naquele dia, não sairá do palácio. respondência. Leu-a e empalideceu. Um cursivo fino
Repousara o corpo dolorido pela queda que so- e miúdo lhe narrava, em meia pagina, factos de
frerá, na véspera, tentando, escalar a janela de alta gravidade. Mordeu os beiços amarfanhando
um sobradinho do caminho do Vallongo para es- o papel, olhou distraidamente o retrato de seu
preitar uma mulher. Precisava de descanso. irmão d. Miguel que pendia da parede e in-
Inquietou-se á chegada do págem a quem dera dagou :
ordens tèrminantes de não chamar. Os negqcios '— Veio alguém hoje procurar-me ao paço?
da coroa não exigiam, a toda a hora, a sua pre- — Os ministros de V. M. Ha pouco se retirou
sença em conselhos de ministros, deliberando so- s. exa. o sr. Carneiro de Campos e, , no salão,
bre as medidas que fosse mister adotar no escopo conversa com S. M. a Imperatriz o sr. José Bo-
de sofrear a luta de raça entre portugueses e nifácio.
brasileiros. Depois, si algo de monta surgisse,
— José Bonifácio ! — repetio o imperador, ar-
José Bonifácio podia resolvê-lo.
regalando o sobr'olho — Inda bem. Dize-lhe que
Vendo o criado aparecer apressado e quebrar
me espere e não saia sem primeiro falar-me.
as determinações expressas, dispostas, pela manhã,
na sala dos despachos, levantou-se coxeando a O pagem ia a transpor a porta, quando o prín-
perna esquerda e interpellou em tom contrariado: cipe o deteve, ordenando-lhe:
— Que ha ? — Previna, depois, ao commandante Pardal
— Uma carta,urgente para Vossa Magestade. que me deve aguardar, dentro de quarto de hora
— Quem a trouxe ? no roseiral, preparado como na excursão de
— Desconhecido emissário, que apeiou ao por- quinta feira.
tão da Quinta, entregou a missiva ao reposteiro — V. M. adoentado vai sair ? objectou o fâ-
de V. M. e desapareceu sem proferir uma só mulo. É uma imprudência, meu senhor!
palavra. — Cala-te e avia-te.
154 A NOVELLA SEMANAL

Sem articular mais uma só frase, o doméstico — Preciso apertar as estribeiras. Vamos cortar
particular do imperador do Brasil escoou-se pelo o atoleiro e não confio no animal.
umbral da porta, dobrando a fronte em reveren- — Não te aflijas. Os caminhos estão bons, a-
cia cerimoniosa. D. Pedro abrio o armário de páo travessei-os ante-hontem, de volta dos Barbonosa
santo que seu pai trouxera de Cintra, apanhou a tada a brida sem nenhum incidente.
capa larga de pano felpudo, o chapéo vareiro que Mal acabava de falar, D. Pedro divisou ao
costumava usar nas suas aventuras nocturnas, me- longe uma malta que, á lumieira de intensos ar-
teu na cava do casaco o punhal de cabo lavrado chotes, quebrava a placidez daqueles sítios com
e se dirigiu pelo corredor que dava acesso aos as passadas fortes e cadenciadas no solo empe-
fundos do palácio. Atra^essou-o vagarosamente ; dernido.
não havia ninguém. Desceu uma escada de pedra O monarca travou do braço do commandante
e ganhou a alameda de bambus. Chiavam ratos Pardal, apressado, inquieto, e atirou-o para cima
nas moitas e, sobre a terra em socego, caia pe- da sela murmurando :
sada a sombra espessa de uma noite estrelada- — Toca a montar, sem demora, podemos nos
Serena tranqüilidade se espalhava por todo o par- comprometer. Rápido sumio-se á volta da azi-
que envolto em densa escuridão. D. Pedro deu nhaga de Mata-cavalos a caravana real. Fugia re-
alguns passos e por traz das ramagens fitou á ceiosa de uni rancho que, ao clarão dos fogachos,-
distancia a sala illuminada, distinguio junto ao vinha resar o terço junto á peanha de pedra do
peitoril da janela uma cabelleira branca anelada
canto da rua do Conde da Cunha.
que circumdava luzidia calva. Méneou a cabeça :
acabava de certíficar-se de que José Bonifácio
A torre dos capuchos do Castelo badalava oito
ainda esperava por êle.
horas e D. Pedro chegava com sua gente ao pa-
n- # * redão do mosteiro d'Ajuda. Apeou-se, deixou uma
Uma equipagem corria veloz pela estrada de ordenança guardando os animaes e andou a pé,
S. Cristóvão, á calada da noite. Ia silenciosa, ru- com o seu séquito, direito á Guarda Velha. Pi-
mo da cidade. Montados em cavalgaduras dester- saram sem fazer rumor até ao portal do antigo
radas, homens embuçados bamboleando sobre as quartel [do commando das armas. Na rua era
sellas, aconchegavam-se ao lombo das alimarias, imenso q socego e só se escutava omarulhar pa-
aquietadas, afim de não despertarem suspeitas ou cifico das ondas quebrando nas anfractuosidades
evitarem descobrisse alguém as suas. fisionomias do boqueirão de Santa Luzia.
durante aquela jornada nocturna. Caminhavam O príncipe mirou o edifício : não descobrio
cautamente. Naquele bando se encontrava d. Pe- ninguém. Galgou uma janela e espreitou por uma
dro, o imperador do Brasil, cujo poder andava fresta ; notou luzes dentro ; pôs o ouvido alerto
jogado nas conjurações de uma loja maçonica. O e verificou que falavam á surdina. Desceu e, se-
príncipe era precavido mas intimorato e, sempre gurando o cunhai da arma que ocultava, nervos<í
que queria vaguear a desoras ou se meter n'al- cheio de raiva, rosnando pragas, fincou um murro
guma empresa amorosa, difficil e recatada, pro- na porta : os homens da sua companhia, emba-
cedia por aquela forma, organizando a sua comi- raçados e decididos, aperraram as pistolas. Brus-
tiva, com lacaios, soldados e officiaes de sua pri- camente, de fora ouvio-se um barulho estranho:
vança. Pretendia, á densa escuridão, envolver-se - arrastado de cadeiras, mover de mesas, corre-
numa arremetida arriscada ; avisara o comman- rias rápidas transformaram toda a tranqüilidade
dante que, recebendo o recado do soberano, com- que existia no interior daquela casa. Teve um
preendeu a natureza da tarefa que lhe era reco- impulso o príncipe: abater a golpes fortes a porta
mendada. e entrar sem detença. Reflectio. Voltou-se para o
D. Pedro, sombrio, preoccupado e mudo, flo- capitão e disse-lhe, apenas:
rindo robusta mocidade, atingi"! as imediações de — Mande guardar o outro lado por dois ho-
Mata-cavalos, quando o capitão Pardal, engan- mens de coragem.
chado numa mula alazã, estacou e pulou num A gente do imperador fitava-o admirada, sem
salto. Todos pararam também e o príncipe, em- perceber-lhe os intuitos. Também, nenhum daque-
brulhado no seu manto negro, deu com a rédea les officiaes, obedientes vassalos, se atrevera a
na cavalgadura, acercou-se do militar e pergun- fazer-lhe a mais leve inquizição. Compreendiam
tou-lhe : que qualquer^coisa de impetuoso, de apaixonado,
— De que receias? de enérgico, agitava o animo do monarca habi-
A NOVELLA SEMANAL 155

tuado ás emoções, caloroso, afoito, insubmisso e tenebroso, os rostos carrancudos, demoravam-se


brutal: não lhe decifravam os motivos da reso- imóveis, quasi ' petrificados, parecendo estatuas
lução intempestiva, trazendo-os de longa travessia guerreiras enfileiradas epi postura de defensiva.
até aquele logar onde lhes parecia prestes inevi- O imperador, porém, ante a bruteza de seus sol-
tável assalto de conseqüências temerosas. dados, enfrentou-os de braços abertos, colérico,
Cessara a bufha escutada da rua, o vozear de as faces avermelhadas e gritou com retumbancia.
pessoas em sobresalto súbito se extinguio e a casa — Estúpidos! Quem dá aqui ordens senão eu?
volveu á quietude primitiva. Teriam escapado ? — Vá, canalha, para o vestibulo!
calculou comsigo d; Pedro. Torneou êle, então, Rápido, aqueles homens se retiraram obedien-
o sitio, interrogou as suas vedetas e se conven- tes, submissos, cabisbaixos. A sala voltou á tran-
ceu de que ninguém havia saido. D. Pedro pro- quillidade e o soberano andou em direitura á pre-
jectou, de sopetão, violar aquela casa ; tinha au- sidência.
xiliares que não receiariam em coadjuval-o: — — Quem estava a dirigir a sessão ? indagou
cometeria uma imprudência, sem êxito para os d. Pedro intimativamente. *
seus fins ? Bosquejou diferentes alvitres e todos — Eu! — murmurou do fundo da sala um per-
ofereciam seus inconvenientes. Começou a impa- sonagem que, encostado a uma colunata, alta-
cientar-se : a porta continuava fechada e o silen- neiro e intimo rato, a mão na cava da casaca de
cio inalterável. Ia a chamar um soldado, hesitou briche, o braço caido no espaldar de uma ca-
e mudou de propósito. Chamejou-lhe no cérebro deira de estofo, em sentinela ao pequeno cofre de
uma idea perversa e hipócrita: — dobrando o ferro que encerrava documentos secretos, esprei-
Índice, vagorosamente bateu três vezes no umbral tava toda aquela scena, pronto, na hora decisiva,
grifando: • a derrubar os candelabros de prata e estabelecer
— Democracia e independência ! * Um irmão a confusão dentro do recinto invadido.
pede entrada no templo! A resposta monosilábica e expressiva que es-
Do interior uma voz timbrada bradou «Guati- cutara sacolejou os nervos ao imperador. Voltou
mosim» e, em seguida, claro e ordenativo alguém o monarca o rosto para o sitio donde lhe fala-
disse : — «Dêem ingresso ao arconte-reL> vam, resoluto a cometer qualquer desforço contra
Os ferrolhos correram na aldrava e a porta o insolente que lhe falava atrevidamente. Recuou,
abrio-se. O imperador, com o seu acompanha- porém, do propósito: fixo, inalterável, apenas
mento, transpôs a soleira e descobrindo a cabeça com um leve sorriso de escárneo, o imperador
para que bem o vissem com a fisionomia desa- tinha diante de si o tipo arrojado de Antônio
fiadora, o olhar afrontoso e rispido, o gesto ar- Carlos. Domina-se; poupa-se a um desatino e
rogante e provocador, aparecia, atrevida'e auda- rosna fitando-o de soslaio :
ciosamente, diante de numerosa assembléa. Tinha — Tu, meu peralta ! Levaste a taramelar, aqui,
alcançado -o recinto do Apostolado. ha pouco, cousas contra mim. E teu irmão, es-
:-: t -i . perando-me no paço. Onde anda Martim Fran-
Na sala larga, mobiliada com cadeiras de es- cisco ?
paldar, e uma pesada mesa quadrangular sobre — Antes de satisfazer-lhe ás suas perguntas,
um estrado tosco, reuniam-se naquela noite os cabe-me inquirir-lhe CQtno ousou penetrar neste
mações que obedeciam ao partido de José Boni- templo, acostado á sua baderna para quebrar o
fácio e se tinham desligado do Grande Oriente. sigilo desta loja e afrontar-nos em hora de traba-
A' aparição do monarca, todos se puzeram de lho e cuidados. /
pé, com os braços alçados e as mãos firmes se- — Irás já conhecer os intuitos do teu príncipe.
gurando delgados floretest, em cujas lâminas ra- — Cá dentro, d. Pedro não é o imperador do
diavam as chammas dos bugios das serpentinas. Brasil, mas o irmão mação, iniciado, e sujeito ás
D. Pedro não estranhou aquela recepção singu- disciplinas severas da ordem.
lar; regulava o rito da sociedade secreta, por pru- — Tens rasão ! Sou o arconte-rei — fez-mé bem
dência ou valentia, que os congregados esperas- lembrá-lo. No uso das minhas funções assumo a
sem, de armas em punho, os intrusos e rétarda- presidência.
tarios que interrompessem as deliberações da E sem dar tempo a Antônio Carlos se mover,
loja. Os oficiaes do imperador, ignorando tão ex- intrépido, num salto, -trepou ao alto do estrado.
quisita liturgia, desembainharam as espadas e in- O irmão de José Bonifácio deteve-se, estupefacto
vestiram para aqueles homens que, de aspecto daquele gesto brusco; agitou-se porém e, segu-
156 A NOVELLA SEMANAL

rando a faca occulta, com um ronco de raiva a a voragem de um tufão tudo revolvera: — mo-
rumorejar-lhe na garganta, arrojou-se para cima veis partidos, documentos estraçalhados no soa-
da mesa onde se esquecera do escrinio bronzeado lho empoeirado e, até, o seu chapéo braguense,
que, costumadamente, guardava os compromissos tombado de um sofá desconjuntado denunciavam
solenes á execução de qualquer plano assentado o desarranjodaofficina do Apostolado. Observou,
na sociedade secreta. O imperador soltou um ru- de relance, a força de sua audácia, a ascendên-
gido estridente, apertando nos seus dedos pos- cia da sua soberania: era rei, fôra-lhe gloriosa a
santes os fracos pulsos de Antônio Carlos ; aba- façanha, desmanchando a assembléa, debandando
teu-o, subjugou-o, atirou-o ao soalho, apoderan- o agrupamento onde ontr'ora confabulara á con-
do-se imediatamente do objecto da disputa ; em- quista do trono. Correu, então, o olhar por to-
poleirado na mesa, arfando de cansaço e fúria, a dos os lados á cata de Antônio Carlos, não o
fisionomia descomposta á palidez que a luta lhe achou; foi á janela, não o vio ; — percebeu atra-
causara, virou-se para os circumstantes que, aco- vés a cortina adamascada que pendia ao fundo
vardados, assistiam àquele incidente e determinou- da parede, a claridade de um aposento. Estendeu
lhes com os lábios trêmulos de fadiga: o braço, empurrou o reposteiro e entrou: havia
— <Retirem-se, senhores; está dissolvido o lá dentro uma parede que dava accesso a uma
Apostolado ••>. escada escusa — chegou até ao patamar e ouviu
Antônio Carlos já afastado, irado, a face cres- em baixo o rumor de uma passada. D. Pedro
tando ódio, o olhar tresvariado, numa convulsão teve nos lábios insultuosa obscenidade: Antônio
indomável, corajosamente, investio de novo para Carlos acabava de desaparecer por uma saida falsa.
a mesa e arrebatou, no impulso raivoso de seu * **
gesto, o maço de manuscritos onde d. Pedro es- Galopando a toda a brida na mais fogosa alíma-
palmara a sua mão truculenta. Puxou-os, estrafe- ria de que dispunha àquela noite, D. Pedro en-
garam-se. trava na quinta de S. Cristóvão com a fronte
O Andrada baixou a fronte e mirando, dolo. contraída pelo cansaço da carreira. Pulou da
ridamente, os fragmentos de papel que rolaram sela, atravessou o manguei ral copado, subio ao
ao solo, gemeu, vencido, profundamente magoado. terraço e parou no terraço do palácio. Um mur-
— Destruiu-me muitas horas de estudo! múrio de folhagens que a ventania balouçava
O príncipe, lendo o sentimento de Antônio percorreu o espaço; levantou os olhos para o
Carlos prostrado na sua attitude contemplativa e céo, tinham desaparecido as estrellas e nuvens
triste, interrogou-lhe respeitoso: densas corriam prenunciando a tempestade. Con-
— Que era isto ? sultou o relógio de ouro que pertencera a d. José
— Um projecto de constituição! l.o e, sob a aureola de luz da candeia, vio que
— Para prejudicar o soberano ? era tarde, pouco faltava para as onze horas. Pen-
— Para garantir a Coroa. sou comsigo : inda estará José Bonifácio á minha
Immediatamente d. Pedro afastou-se sem nada espera ? Nisto, debruçado sobre a amurada de
retrucar e, ganhando o vestibulo, pronunciou o pedra, deparou-se-lhe em atitude submissa um
nome de um dos seus officiaes. negro que, de calça de ganga e chapéo sombrei-
A sala ficou vasia; no chão voavam á brisa ro, mascava um rolo de fumo.
que soprava do lado do mar folhas dilaceradas; O monarca abordou-o, interpelando :
ouviam-se fortes pancadas de um pêndulo osci- — Que fazes ai ?
lando vagarosamente; Antônio Carlos, extenuado, — Trouxe uma carta para o sr. José Bonifácio.
deprimido, procurou encostar-se ao peitoril da — Para o sr. José Bonifácio! repetio D. Pedro
janela; volveu para fora o rosto e lobrigou, á abanando a cabeça em movimento de surpreza.
escuridão da noite, os vultos dos companheiros Calou-se durante alguns segundos, de pé, baten-
enfileirados sob a vigia da escolta do imperador. do com o chicote de montaria no acicate da bo-
Saio daquele sitio e foi se colocar próximo ao ta de couro. Depois, tocou levemente no ombro
vão de uma porta escondida por trás do repos- do preto e disse-lhe, simulando conhecer a pro-
teiro de damasco. cedência da missiva.
Quando o príncipe regressou ao salão donde — Vens da casa do sr. Antônio Carlos ?
expulsara os seus antigos confrades da maçona- Não teve resposta; insistio com afabilidade e
ria, encontrou-o totalmente abandonado; calmo, • ouvio o timido mensageiro pronunciar afogada-
notou-lhe a enorme desordem. Parecia que, ali, mente :
A NOVELLA SEMANAL 157

— Venho de mando do sr. Martim Francisco. pode estar á mercê dos caprichos dos Andradas
— Que ha pouco recebeu a visita do irmão — — faiscou com malevolencia e aleive.
acrescentou o príncipe. José Bonifácio magoou-se; picará-lhe o despei-
Titubeante, confuso, transluzindo no seu em- to ; mas não se perturbou. Tirou do nariz adunco
baraço a confirmação da pergunta, o emissário os suas lunetas d'ouro, encavalou-as na abertura
do Andrada balbuciou timoratamente: do colete e, cruzando os braços, objectou ferino:
— Sim, meu senhor! — Os Andradas só se teem esforçado á causa
— A trindade vai confabular, rosnou comsigo da Pátria, da terra onde nasceram: V. M. não
o bragança. E, galgando num ápice a escada, dirá o mesmo; ,rebelou-se contra Portugal e ti-
entrou no salão. José Bonifácio lia uma folha rou-lhe a mais rica colônia, usurpando poderes.
escripta em desordenada caligrafia, junto á ser- Não cabe a V. M. a culpa desse acto de que, tal-
pentina de prata que guarnecia o alto aparador vez,, esteja arrependido; toca a mim e a meus
de mármore; despertou-o a aparição brusca do irmãos que auxiliavam V. M. em tão nefasta em-
dinastaque, desafivelando a capa, sentou-se ao preza, visando, embora, a liberdade do Brasil.
sofá de carvalho, cruzou a perna, esticou o busto — Gralha com penas de* pavão! A obra da
para traz" e, agitando o rebenque, falou com Independência não é tua exclusivamente. Perten-
zombaria. ce a outros também: Frei Sampaio, Ledo, José
— Apanhei o melro do teu irmão conspirando Clemente — bradou D. Redro. ;
contra meu poder na sessão do Apostolado: fu- Atagantado no seu orgulho, escutando do mo-
gio, receiando que eu o prenderia. Támbem, narca o elogio ao nome de Ledo, experimentou
dissolvi aquele antro? de desordem. Patifes! E um estremeção de ira. Turvou-se-lhe a vista e
soltou uma gargalhada forçada, estridente, irônica. deixou-se cair no estufo de uma cadeira de bra-
José Bonifácio, transido, mas numa dissimula- ços. Houve um grande silencio. D. Pedro teve
ção delicada, aproximou-se do rei e replicou: um leve transporte de contentamento porque co-
— Soube já do acto de V. M. Não o comento nheceu que enraivecera o seu valido; em seguida,
porque me não merece classifica-lo. Agradeço- decorridos alguns minutos, fingindo carinho, in-
lhe a sua gentileza pouco fidalga, retendo-me em dagou ?
sua casa durante três horas emquanto cometia, á — Que tens ó'josé? Alguma deiiuncia? José
traição, essa façanha grotesca e violenta, ampa- Bonifácio agitou-se num repelão súbito e com
rado de aguazis, garantindo-se de soldados mer- sobranceria explicou:
cenários. V. M. tentou inutilizar amigos e mal- — Pensava numa resolução. Tomei-a. Nem
tratar servidores liais que sempre d respeitaram. Martim Francisco nem eu somos ministros de V.
— Não devo admitir no meu império a infâmia ,M: reconhecemo-nos inúteis e prejudiciaes á Coroa:
de associações secretas. — Aceito essa demissão com enorme prazer.
— Tem razão. Elias respondem por grandes É um serviço que prestam ao paiz, retirando-se
crimes; tramaram o Fico, conjuraram a Inde- do governo, porque o povo só se queixa das
pendência e collocaram no trono do Brasil um insolencias e perseguições dos Andradas. Dar-te-
príncipe aventureiro! ei amanhã o substituto conveniente.
—Desaforo! rugio quasi alucinado D. Pedro, — O conego Januário 1 atalhou josé Bonifácio,
levantando-se livido, num impeto de desespero! esperando o efeito dè suas palavras.
— Alto! retrucou José Bonifácio espalmando D. Pedro não prosegüio. Baixou a cabeça fi-
no ar sua mão já rugosa. Seu pai o disse e V. tando distraidamente o desenho da tapeçaria que 3
M. o confirmou quando, partindo para o Ipiran- ornava a sala do palácio; atordoára-o a insinua-
ga, me perguntou confidencialmente si, retardada ção do Andrada. Mas, de repente, tocou a cam-
a independência, os brasileiros proclamariam o painha. Um pagem rubicundo apareceu, curvan-
governo republicano. \ do-se numa mesura estudada.
— Adúlteras sempre os meus pensamentos, — Vá chamar o intendente da policia.
obtemperou o rei, vencido ante a eloqüência dos O criado saio promptamente a executar a or-
factos. Tens sobre mim a finura da astucia, alia- dem, sem balbu,ciar uma só palavra, pisando nos
da a inegável cultura. Pensas acovardar-me. Ab- bicos dos pés para que não rangessem os seus
solutamente, meu caro . . . sapatos de sola grossa. José Bonifácio contem-
« O préstimo da maçonaria está terminado; plou D. Pedro e, observando que ele estava con-
acabou-se o tempo das conspiratas e o Brasil não trariado, afoitou irônico:
158 A NOVELLA SEMANAL

— Para prender os Andradas? da princesa Maria egual á sua formosura; uma


— Para mandar abrir devassa nas casas de poesia de Helena Vacaresco; recordação de que
Ledo, José Clemente e Januário. era romena, princesa Brancovan, essa genial poe-
— De Januário! Não o deseja para ministro ? tisa francesa, a Condessa de Noailles... Caiu-me
— Conheço-te bem, José Bonifácio. Queres no a vista, por fim, num faits divers que esse me
governo o orador do Grande Oriente, certo de prendeu mais que as vaidades dos poderosos.
que sofrerás, amanhã, a vindicta do teu adversá- Era um pequeno drama, que tinha intima signi-
rio e pássaras ao papel de victima diante da na- ficação. Nos arredores de Galatz, á beira do Da-
ção. Por isso, denuncio já ao propósito de pro- núbio, uma formosa rapariga fora cortejada por
ceder contra os teus confrades do Apostolado. dois belos e fortes rapazes, que ambos a mere- ,
— Magestade! Sou amigo de Januário; apre- ciam e ambos, alternativamente, lhe inspiravam a
ciei-lhe, sempre, os artigos da Gazeta do Rio de mesma paixão. Os psicólogos podem discutir a
Janeiro. Depois pondero a V. M. que no Apos- tese, que dá ao coração a propriedade de não ser
tolado não se põem em peso os actos do soberano. ocupado a um tempo por dois amores, como a
— Tens muita lábia; mas não me engazopas extensão não permite a dois corpos tomarem o
— interrompeu, em tom canalha, o imperador. mesmo logar no espaço, mas a realidade era esta,
José Bonifácio, amável, despediu-se de D. Pe- ela amava os dois. Quando estava com um deles,
dro. A aragem da noite balouçava o velario do era este o preferido e as razões da preferencia se
gabinete real, enfunando entre os estofos e can- impunham, tão persuasivas, que ficava resoluta,
delabros. O velho político, através a abertura pedra e cal, que seria desse. Aparecia o outro, a
da cortina que o vento oscilava, divisou, na câ- pedra e cal amoleciam e lá se iam delidas, ao
mara perto, cinzento de terra e de poeira, o encanto novo que a tomava, a convencia, a ven-
commandante da guarda do imperador. Compre- cia, só agora certa que este sim era o seu prefe-
endeu que o príncipe providenciara na sua cap- rido, o eleito, o único, o senhor do seu coração.
tura, mas a relaxara diante da perfídia assacada Nessa perplexidade vivia, decidida a cada instante,
ou ante as represálias de um dialogo irritante. indecisa entre elles, quando longe dos dois se lembra-
Deixara de ser ministro, perdera o Apostolado, va deles ambos, para ver-se combatida e sem re-
mas tinha intrigado, lograra a perseguição dos solução, repuxada sempre em sentidos contrários.
seus oposicionistas. Aniquilara, em segundos, Um dia, os dois, que esta situação por egual
os intuitos desabridos do imperador. Voltaria ao desagradava, apareceram-lhe juntos e pediram-lhe,
poder; estava certo disso. sem piedade, a rejeição de um, com soberbia, a
THEODORO MAGALHÃES
exaltação do outro . . . Errou os olhos por ambos,
lembrada disto e daquillo, cada vez mais perplexa
e confessou toda a sua dolorosa e irremovivel
indecisão. Só a sorte a livraria dessa duvida, pois
que os santos a quem rezara não lhe deram recur-
so : a novena a Santo Anastácio, o orago da terra,
fora inútil. Pois bem, exclamaram os rapazes, ve-
nha a sorte . . .
QUERER BEM Ela reflectiu e o Danúbio aos pés deu-lhe uma
sugestão; a nado o atravessassem, fossem á outra
Vindo de Constantinopla, desembarcara em banda e tornassem: o primeiro a chegar seria o
Constanza, no Mar Negro, tomara o trem para escolhido... Mediram os rapazes a largura do
Bucarest, onde amanhecera, ouvira missa na Me- rio, aí quasi máxima, porque já perto da foz...
trópole, percorrera a carro a cidade, e, só comi- sentiram o frio da ãgua, agora no começo da pri-
go, ia almoçar, num dos beüos restaurantes da mavera, quando a neve das nascentes se funde
"calea Victoriei'', quando, na companhia, trago e augmenta a correnteza... mas era mais com-
um jornal, que em francês era escripto, e só por prido e mais ardente o amor de moços. Despiram
isso preferido aos da lingua indígena. Emquanto roupas supérfluas, e puzeram peito á caudal.
me serviam, passava os olhos vagamente pelas Correu a voz no povoado e a multidão da al-
noticias políticas e mundanas, que pouco interes- deia, logo dividida em dois partidos, olhava com
savam : a próxima queda do ministério Bratiano; ânsia, votos e aclamações os dois bravos conten-
uma nova obra de^Carmen Silva; a generosidade dores, que pareciam ter o mesmo folêgo. Forarn
A NOVELLA SEMANAL 159

e tcrrnaram quase sem distancia, braçadas eguaes, dela e ambos puseram taes extremos em lhe agra-
apesar da grandeza do esforço e do tempo de- dar, que a rapariga, que não sabia ser ingrata,
morado posto em o vingar. Mas, devia ser assim, embora tivesse a sua preferencia, não soube ou
um deles^ conseguiu a ultima braçada, junto á não pôde manifestá-la claramente. Os dois por-
margem, antes do outro: era o vencedor! O ri- fiam e como não era pequena a paixão, sobreveiu
val chegara também segundos depois, é só che- o ciúme e, depois, o ódio. Os rivaes juram-se e
gava atrasado porque todo era agitado num cale- se querem matar. A pobresinha vem a saber e
frio intenso. Tomaram-no com piedade, deram- pretende intervir. Eles o disseram, haviam de
lhe estimulantes, enxugaram-no, aqueceram-no, cumprir: um era demais sobre a terra. Exacta-
mas nada lhe valeu pcgflue,
Kgpt instantes depois, ardia mente o mais fraco ou mais delicado seria o pre-
em febre, d peito oppfesso,
ipress a pontada do lado, ferido, e o outro era mais turbulento e desabri-
numa pneumonia fulminante. Dois dias depois, d o . . . Procura-os, não os encontra. A rixa ia ter,
era cadáver.. a qualquer momento, o seu desfecho: só um, o
Quando tornou do cemitério aonde levara o ri- vencedor, apareceria. Nessa tribulação, de homens
val, procurou o vencedor uma folha de papel e que a amam e se vão matar, por ela, nessa maior
escreveu á namorada: porventura de. perder aquele a quem ama e vir
«Ganhei a sua mão, mas, porque estou certo a ser do outro a quem não quer bem, chega-lhe
de não ter tido jamais o seu coração;, lh'a venho a resolução desesperada. Escreve-lhes uma carta e
restituir. Em nossa lingua amar é querer bem. ingere uma dose de veneno. Na carta dizia que
Você não me podia, nem ao meu infeliz compa- hão lhe seria possivel ter paz na consciência, com
nheiro, amar, pois que nos sujeitou a um perigo, uma morte, por causa dela. Não poderia ser mu-
do qual podíamos morrer, como de facto morreu lher do seu amado, se ele fosse assassino, menos
meu desgraçado rival. Podia ter sido eu. Empre- ainda do outro, se desse a morte ao seu preferi-
guei portanto mal o meu amor, em quem não do. Só achava uma solução: desapareceria! Per-
me queria bem. Perdôe-me o erro, como eu lhe doassem-lhe, continuassem a querer-lhe, na sau-
perdôo o risco que me fez correr... Basta-nos o dade; ela queria tanto a um deles que para sal-
remorso da vida que fizemos perder-se...» vá-lo de ser morto, ou ser assassino, chegara a
morrer...
Talvez o jornalista pusesse sal no estilo da car-
ta, mas o facto era este. Amar não pode jamais Talvez empreste ênfase ao escrivão, ou á pobre
ser querer mal. Como em português, no romeno, rapariga: o facto era porém este. Na carta não
lingua irmã, também è querer bem. E bem lon- declarava o preferido: ficava a possibilidade, a
ge, no estremo dos Balcans, numa sala de restau- cada um, de ò pretender, dentro de s i . . . Eles se
rante, em Bucarest, lembrou-me uma historia, que reconciliaram e agora estavam aí fora, para vê-la,
bem podia ser réplica desta outra. para lhe prestarem os últimos carinhos de afei-
| Trabalhava eu no Serviço Medico-Legal do Rio,, ção. Como eu duvidava da historia, que me pa-
quando um dia, preparado para as autopses, que recia demasiado romântica, dissè-me o escrivão:
aí se faziam todas as manhãs, ás vezes numero- ,,; — Elles aí estão na sala de espera, juntos, e
sas, disse-me o escrivão que me tomava as notas não cessam de chorar...
para|o laudo: Entrei a espiá-los é vi-os, pobres diabos, um a
— Temos, hoje, apenas um caso... o de uma consolar o outro, também em pranto: falavam
rapariga que se suicidou. Parou um instante e dela, naturalmente. Penetrei então na sala de áu-
ajuntou: — Uma historia comovente . . . valia a topse. Ela parecia dormir, hirta e fria, sobre a
pena ouvil-a antes de começar. mesa de dissecção, já sem resguardos de pudor.
Embora apressado, e a emotividade romba de "A morte não lhe tirara o mimo...", não seria
medico, que se embota mais que o gume dos ca- a minha impiedade de perito que o havia de fa-
nivetes, levantei a vista e pedi-lhe que m'a dis- zer. Mandei que a retirassem, piedosamente, e sem
sesse, sem delonga. detença. Ao escrevente ditei um laudo de exame
— Foi este o caso. Era uma rapariga geitosa, cadaverico: uma escara enegrecida no lábio con-
morena, cabelos pretos anelados, apenas de deze- firmava o tóxico, que fora o lisol.
seis anos. Pode vêl-a, sobre a mesa, não terá A' tarde, seguia o humilde prestito fúnebre pa-
mais disso: a morte ainda não lhe tirou o mimo. ra S. Francisco Xavier. Alem dos parentes, de al-
Só ela nos deixa agora ver todo ele: como era gumas amigas, iam os dois namorados, põr quem
bonita! Pois bem, dois rapazes se engraçaram morrera, por bem querer. Num automóvel os a-
160 A NOVELLA SEMANAL

companhou^um desconhecido, que assistiu como- das riquezas; descobriam-se dotes fabulosos! Se
vido á sepultura que se abria para recebê-la... fosse preciso trabalhar — trabalharia!
Nas flores que sobre o túmulo singelo lhe dei- Não sabia^em que, e como, iria trabalhar, mas
xou, não se foi entretanto toda a sua comoção, a miragem do novo mundo surgia-lhe á imagi-
pois que ainda agora revive, numa terra longín- nação num sonho de ouro, numa apotheose de
qua, entre gente diversa, mas que fala uma lingua milagres de representação, em què a sua incom-
irmã da nossa . . . Em romeno, como em proven- petência para qualquer trabalho productivo en-
çal, como em português, irmãos mais moços da contraria logar entre os vencedores. Nenhum
latinidade, amar é "querer bem". Das duas histo- programma, nenhuma idéia acompanhava aquella
rias, só posso tirar uma conclusão, é que lá — na esperança; confiava na America como confiara
minha terra, se ama melhor; aqui, ás vezes, se nas cartas e na roleta. Era ainda uma esperança
mata por querer bem; lá, ás vezes, a gente morre de jogador. Era a cega confiança no acaso!
por bem querer. Não seria a America também um taboleiro verde,
AFRANIO PEIXOTO
banhado pelo ouro da Califórnia?... Elle era a
moeda jogada n'um ultimo lance pelo desespero!
Iria!
E depois ? . . . Como seria bello volver á Eu-
ropa, muitas vezes millionario, com um resto de
mocidade, para continuar a gosar os vicios inter-
rompidos ? . .
E, emquanto castellavam seus doidos pensa-
ULTIMO LANCE mentos, succediam-se os golpes da roleta, e o ouro
e a prata dos jogadores perpassavam em rio por
defronte dos seus olhos distráhidos.
Dez luizes!...
— Mas, e se eu perder ? . . . interrogou elle á
Era tudo que lhe restava!... Eram as ultimas
própria consciência.
moedas da larga e velha herança que até a elle
E o fidalgo não teve animo de entestar coma
chegara, escorrendo sonoramente, de degrau em
solução que esta pergunta exigia, como se te-
degrau, por uma nobre escadaria de avós. Dez
messe abrir de prompto, ali mesmo, um duro e
luizes!...
violento compromisso com a sua honra.
E D. Filippe, depois de agitar na mão fidaiga, Todavia, se perdesse aquelle miserável punhado
as derradeiras moedas de ouro, encaminhou-se de moedas, que lhe restava alem d o . . . suicídio ?...
lentamente para o logar que meia hora antes ha- Que lhe restava no mundo, que não fosse ridí-
via abandonado a banca da roleta. culo e humilhante ? . . .
De pé, apoiado ao espaldar da sua cadeira ainda E viu-se sem vintém, esgueirando-se como uma
vazia, deixou cahir sobre o taboleiro verde o seu sombra pelas ruas escuras, com as mãos escon-
frio olhar indifferente e altivo. Os números des- didas nas algibeiras do sobretudo, fugindo de to-
apareciam afogados no ouro e na prata dos ou- dos, desconfiado de que a sua irremediável mi-
tros jogadores. séria fosse de longe presentida como uma mo-
Permaneceu immovel por longo tempo, sem léstia infecta. Teve um calafrio de terror.
ver o que olhava. Seus sentidos estavam de todo As fallazes hypotheses de salvação, que covar-
occupados pelo pensamento que lhe trabalhava demente se lhe apresentavam ao espirito, lem-
afflicto dentro do cérebro: — Era preciso re- brando amigos ricos e recursos inconfessáveis,
fazer a fortuna esbanjada, ou parte d'ella . . . eram amargamente repellidos pelo seu orgulho,
Mas com cem mil francos, apenas cem mil! ainda não vencido.
poderia salvar-se, sem cahir no ridículo aos — Faites vous jeus, messieurs! exclamou o
olhos do meio em que se arruinara... Com cem banqueiro.
mil francos correria, sem perda de tempo, a Pariz, E D. Filippe sorriu resignado e triste, como
solveria as dividas que ahi.deixara garantidas sob respondendo afirmativamente para dentro de si
palavra, e logo em seguida a pretexto de qualquer mesmo á voz que appellava para seus brios, e,
exigência da saúde, simularia uma viagem á Suissa depois de saccudir inda uma vez as dez moedas,
e partiria para a America com o que lhe restasse espalmou sua linda mão inútil e, com um ar mais
em dinheiro. Na America engendravam-se rápi- do que nunca indifferente e sobmnceiro, despe-
A NOVELLA SEMANAL 161

jou-as na secção do Vermelho que á mesa lhe fi- E já os olhares dos homens e das mulheres não
cava em frente. se podiam despregar d'aquelle mysterioso com-
— Rien me va plus! panheiro de vicio, cuja physionomia nenhum d'elles
Uma vertigem toldou-lhe a fingida calma. conhecia ainda, absorvida como até então estivera
A pequena esphera de marfim girava já no cada qual no próprio jogo.
quadrante da roleta. Fez-se em toda a sala um Vermelho! Vermelho!
silencio que doia de frio. E o monte de ouro ia crescendo, defronte d'à-
Se naquelle golpe, em vez de um numero ver- quellas duas mãos que pareciam cada vez mais
melho, viesse um numero preto, pensou o des- brancas, mais escarninhas, e mais ferradas ao rosto
graçado, qualquer mendigo das ruas seria mais do jogador immovel.
rico do que elle ! . . . Vermelho! Vermelho Vermelho!
E a bola girava já com menos força, prestes a E as moedas alargavam a zona inteira escor-
tombar no numero vencedor. rendo por entre os cotovellos do jogador de pe-
O fidalgo deixou-se cahir assentado na cadeira, dra, e cahíam-lhe pelas pernas inalteráveis, e ro-
fincando os cotovellos na mesa e escondendo o lavam tinindo pelo chão. *
rosto nas suas duas mãos abertas. Vermelho! E os jogadores esqueciam-se do
A bola tombou no numero. Vermelho! próprio jogo para só attentar no jogo do singu-
Os dez luizes de D. Filippe transformaram-se lar conviva; á espera todos que aquellas duas
em vinte. E o fidalgo não teve um gesto; es- mãos de mármore se affastassem; que aquella es-
perou*novo golpe, apparentemente imperturbável. carninha mascara cahisse, revelando alguém.
O taboleiro esvasiou-se e de novo se encheu de E a cada golpe uma nova riqueza vinha dobrar
reluzentes paradas. O banquei ro fechou o jogo; a riqueza accumulada defronte do sinistro mas-
a bola girou, cahiu. carado de mármore. Em vão, ao lado d'elle, uma
Veiu outra vez vermelho. formosa creatura, com ares de rainha e olhos de
D. Filippe continuou immovel, sem tirar as mãos soubrette, aquecia-lhe havia meia hora.a perna es-
do rosto. Sobre os seus vinte luizes dei ramaram-se querda côm a sua perna direita; em vão, por de-
outros vinte. traz da sua cadeira, formára-se um palpitante
E o jogo continuou, silenciosamente. grupo de mulheres, que riam forte e lhe discu-
E, no meio dp surdo anciar dos que jogavam, tiam a fortuna, apostando, a cada novo golpe da
um terceiro numero vermelho dobrou a parada sorte, se o original jogador sustentaria ou não
de D. Filippe, que conservava a sua immobilidade o lance por inteiro."
de pedra. E já quando o vermelho era ainda uma vez
Tão forte porém era o arfar do seu peito, que annunciado pelo tremulo banqueiro, partia de
todo o corpo lhe acompanhava as pulsações do toda a sala uma explosiva exclamação de pasmo.
coração. Era preciso tocar a cada instante o tympano,
Vermelho! pedindo attenção e silencio.
E oitenta luizes despejaranvse sobre os oitenta Mas os commentarios reproduziam-se, fervendo
luizes do jogador immovel. em torno da estatua feliz. Uns protestaiam contra
Vermelho! a loucura d'aquella pertinácia, pedindo para seu
E o ouro começou a avultar defronte d'elle. castigo um numero negro; outros se*, enthusias-
Vermelho ainda! maram com ella e soltavam bravos de applausos;
E as moedas iam formando já um conioro de outros ainda calculavam o ouro accumulado, som-
ouro defronte daquella figura extatica, da qual só mando os lances.
se viam as duas mãos, muito brancas, ligeira- E o banqueiro, cada vez mais palíido, tomava
mente veiadas de azul puro. com a mão tremula a bola fatídica, e, a tremer
Ainda vermelho! fazia-a girar na gamella dos números, e a tremer,
E a figura imperturbável parecia agora de todo annunciava o numero vencedor, que era sempre
petrificada. E as duas mãos brancas pareciam fi- vermelho.
tar escarninhamente os outros jogadores, rindo Cada numero vibrava acompanhado de um coro
por entre os dedos fixos. de pragas e, gargalhadas.
A immobilidade e a fortuna do singular par- Até que, n'um desalento de capitão vencido, o
ceiro começavam a impressionar a todos. banqueiro, dando ainda o ultimo vermelho, annun-
Vermelho! ciou com uma voz de naufrago sem esperanças;
162 A NOVELLA SEMANAL

— Banca -... á gloria ! A sua casa no campo era o certo abrigo dos
Mas, nem assim, o imperturbável jogador mys- pobres, porque nunca lamento ou supplica, som-
terioso fizera o menor gesto; ao passo que em no, tristeza ou fome tinham ficado esquecidos á
redor d'elle se acotovelavam os viciosos de ambos soleira como cães sem dono e sem destino. A ami-
os sexos e de todas as nações, foi mando uma nu- go ou estranho, era sempre de bom rosto que o
merosa e irrequieta muralha, anciosa de curiosidade. velho dava pouso. Era uma singela casa no meio
Chamaram-n'o de todos os lados, em todas as de um tosco jardim onde chorava a murmura e
línguas e em todos os tons. sonora queixa de um regato; e esse regato era
Elle se não moveu. de certo a única lamentação que repetidamente.
Tocaram-lhe no hombro ; tocaram-lhe na cabeça. passava á sua porta. Na primavera as flores per-
Nada! fumavam toda a casa; brancas santas e alvos
Saccudiram-lhe o corpo. santos de gêsso e de mármore surgiam do ora-
A estatua continuou immovel. tório durante os três mezes da suave estação,
Então, dois homens, tomando cada um uma das como flores nascendo de flores; 110 inverno, quan-
mãos do fidalgo, arrancaram-lh'as do rosto, em- do o céo era griz e os caminhos eram brancos,
quanto um terceiro lhe levantava a cabeça. á bocca do seu calorifero vinham os pobres aque-
E um só grito de hoi;ror partiu d'entre toda cer-se do rude frio.
aquella gente. O doce Bernardin, homem simples e bom, sem
Quem á gloria levara a banca e ali estava im- a enredada sabedoria dos magnos sacerdotes, sem
movel a jogar com elles durante a noite, provo- largos vôos de imaginação, pouco se aprofundara
cado pelas mulheres e invejado pelos homens, era em dogmas e conceitos; cumpria fielmente as leis
um cadáver frio, de, olhos escancarados, a bocca de Jesus com a mesma facilidade imiocente com
semi-aberta, e com duas lagrimas compridas es- que um fructo sáe de uma flor. Assim, não mal-
correndo pela algidez das faces contratadas. dizia porque de ninguém se queixava; era esmo-
Largaram-n'o espavoridos; e o morto também lér porque se condoia de quem era pobre e tinha
com a cabeça sobre a mesa, collando o rosto e fome; não mentia por ignorar que outra coisa
as mãos de mármore sobre o seu ouro, como se além dos beijos e da verdade podesse poisar em
o quizesse defender da cobiça dos outros joga- humana bocca, — nem mesmo as abelhas que es-
dores sobreviventes, que já discutiam aos gritos voaçavam em torno dos lábios de Platão; não
a legitimidade daquella posse. praguejava porque de nada serve a blasphemia;
ALU1ZIO AZEVEDO não odiava porque todos o amavam; era casto
porque tinha bons pensamentos. Lera pouco du-
rante a longa existência; sabia que no principio
Deus creou o céo e a terra, depois separou a luz
e a treva . . . Não conhecia historias de raças e
de conquistas, nem chronicas de guerras religio-
sas, nem falsidades e manhas d'inimigos. A In-
quisição com todos os supplicios e todas as victi-
S À O mas era uma espécie de lenda para amedrontar
os atheus, assim como o papão era uma fantasia
(LENDA CHR1STAN) para intimidar ?s creanças; o Papa era um padre
(A. R. B.) muito santo'e muito sábio que morava em Roma;
1 Roma era uma cidade visinha de sua França. Com o
O velho cura morava na aldeia, e só muito ra- latim do Seminário dizia missa, fazia citações ao
ramente, com mais sacrifício do que esforço, arras- amigo pharmaceutico, pregava ás vezes no púl-
tava a sua velhice pachorrenta e a sua discreta vir- pito e ensinava declinações e conjugações: ancilla,
tude até o borborinho da grande cidade tão cheia de ancilla'; fero, fers, tulli, latum, ferre...
fortuna e de miséria, eternamente escabujaudo no Gostava de passar bem porque dizia que não
volutábro do vicio. Chamava-se Bernardin, e era santo ; e quando sentado á mesa, com a porta
era um homem de altura mean, quasi gordo, com aberta para quem tivesse fome e quizesse entrar,
um ar sadio de campo, olhos pequeninos e claros, tendo dado esmola e distribuído pães (mais pão
cabellos brancos e faces ainda de punicea côr, do que conselhos), orava e acalmava o estômago
onde começava a sulcar o valle das rugas. com o pão que é o corpo, com o vinho
A NOVELLA SEMANAL 163

que é o sangue de Jesus, muitas vezes pensava: — Meu Padre, eu sei que vae amanhan á ci-
— Coitadinho de São João que comia gafa- dade, e lhe venho pedir um favor.
nhotos ! . . : Tanta doçura havia nas palavras do desconhe-
Era tranquillo e meigo; qualquer soffrimento cido, tanta certeza, tão amável e boa era a sua
lhe causava pena, para toda esturdia encontrava physionomia, que o velho sacerdote teve a ex-
uma desculpa, e para os crimes tinha sempre um quisita vontade de lhe beijar as mãos.
perdão. — Mas como soube que eu vou amanhan á
Certa vez, numa tormentosa noite de inverno, cidade ?
quando lá fora cahia o gelo e rugia a fúria do O carpinteiro tirou o gorro/passou a mão pelos
sudoeste degladiando as arvores nuas, elle deitado, cabellos e pela barba castanha, e falou com uma
accomodado começava a dormir; de repente es- voz persuasiva:
cancarou-se a porta e entrou pelo seu quarto um — Não lhe posso dizer ao certo como tive noticia
homem todo coberto de Sangue e de medo. de sua visita amanhan a Paris; mas o que é ver-
—- Meu Padre ! dade é que ha mais de quinze dias eu ando á sua
— Que é, filho ? busca para lhe pedir a graça a que vim. Sempre,
E o assassino tremendo como si já estivesse infelizmente tem havido desencontro entre nós;
deante da machina sinistra e fatal da guilhotina: aqui estou porém; e mesmo que o Padre qui-
— Matei meu irmão! zesse adiar a viagem, é tão caridoso o que lhe
O Padre Bernardin olhou-o, mal comprehen- vou pedir, que certamente accederá á obra de
dendo as suas palavras loucas. tanta misericórdia e caridade!
— Teu irmão ? — Fale, irmão!
— Sim, meu irmão! — Depois de amanhan é o Carnaval; é a lou-
Com uma infinita calma e uma suave ternura, cura da embriaguez e da orgia. N'um dos cen-
o velho sacerdote accrescentou: tros mais populosos e vergonhosos do cidade
• — Que horrível crime, meu filho! Deus te mora uma pobre peccadora que ha seis mezes
perdoe! definha, vencida pelo mal terrível da tuberculose.
Persígnou-se, — e como tinha somno continuou A casa em que habita é muito mais que suspeita;
a dormir. desde janeiro até Sjk> Sylvestre estrebucha entre
Toda a aldeia o' estimava; havia moças que ba- as quatro paredes uma horrenda bacchanal; é lá
ptisára e casara; quando sahia, já.se apoiando a a reunião dos vadios, dos alcaiotes, dos compa-
um tremulo bordão, as mulheres vinham dos ca- nheiros do vicio, dos sodalicios da orgia. E' a
saes á porta, á espera de sua benção, e elle pas- villança da intelligencia e do caracter, a pândega
sava sem se apressar e sem se admirar, como si pulha e ignóbil de bordel e de taverna! A crea-
estivesse em casa ou como si a aldeia fosse a' con- tura de que falo muito me interessa; parece-me
tinuação de sua casa. E quantas vezes, quando-ha- que no matto, descobri um remédio que si não
via lua no céo, as creanças se reuniam á sua porta, é cura, é aç> menos um allivio ao doloroso mal
e o Padre, ingênuo e bom começava com sua dos pulmões. Mas me diga, irmão: eu, um pobre
voz repousada e tranquilla: , carpinteiro posso entrar assim de blusa, sem cha-
— Era uma vez uma camponeza que se chamava mar a attenção numa casa de tanto peccado e
Joanna... . tanto luxo ? O Meu amigo é um sacerdote; e para
II que não desperte suspeita, quando levar o remédio
Foi nos primeiros dias de Fevereiro que uma ouvil-a-á em confissão, pois a creatura, enfermiça
vez, por uma tarde fria, quasi á hora da noite, um ha muito, anda agora a morrer. Bastará que
homem pobremente vestido de calça e blusa, com chegue á sua casa ás dez horas da noite, quando
uma espécie de gorro de operário, entrou em casa os rapazes e as mulheres sahirem em algazarra
do Padre Bernardin. A classe terminara. Bernar- para o ruido do Carnaval. O seu quarto é no
din estava só no seu quarto, quando duas pan- segundo andar, n'um corredor, terceira porta á
cadas discretas resoaram á porta. Tão habituado esquerda. Vá, meu irmão, e fique certo de que faz
estava o Padre a todas as visitas, que nem de leve uma grande obra de caridade. Vá, ella o espera!
se admirou, e calmamente disse: E o marcineiro deu a rua e o numero da casa.
— Entre! Com tanta firmeza elle falara que o Padre não
O homem tão modestamente vestido de ,mar- pensou em pôr a menor objecção; apenas com
cineiro penetrou rio seu quarto. um sorriso que a tristeza severisára indagou:
164 A NOVELLA SEMANAL

-- E o remédio que lhe devo dar, onde o en- fetti; e pairava no ar um cheiro de harém, e subia
contro? no espaço um perfume de absyntho . . .
Quedou-se alguns instantes pensativo com o so- A's dez horas da noite, de uma casa da rua des
brecenho carregado o desconhecido; parecia que Petits Correaux sahiu um grupo alegre de mas-
uma grande magna lhe lancinava a alma; por fim, carados e mascaradas; carruagens se aproxima-
murmurou: ram ; houve uma grulhada de vozes, uns risos e
— Irmão, ella já está desenganada pelo medico ! uns gritinhos nervosos, um ar de coxixo e Se-
— Sim, mas o seu remédio descobertp no matto ? gredo que ha sempre entre mascaras para que
toda gente saiba que elles se conhecem entre si ;•
O carpinteiro meneou a cabeça negativamente.
— E' inutjl levar-lhe remédio! Vejo que é depois um ajuntamento de curiosos, e os carros
tarde! Leve-lhe a-extrema-uncção ! partiram. Aquelle trecho da rua ficou por ins-
Bernardin curioso ainda perguntou si elle a vira tante silencioso; nesse momento, um carro mo-
ultimamente. desto parou ; desceu o * Badre Bernardin acom-
— Não, eu nunca a vi ! panhado pelo acolyto, e os dois entraram na casa
Até hora alta da noite os dois homens conver- d'onde haviam partido os mascarados. Defronte,
saram ; um do outro se agradara na simplicidade um homem de blusa de operário e que parecia
que os fazia parecidos; e era tão symrjathica a um marcineiro, rondava.
convivência dos seus espíritos que nem um reparou IV
na madrugada que vinha nascendo no c é o . . . O velho Bernardin sentiu-se contrafeito ao pe-
III netrar naquelle corredor, ao subir aquella escada
onde pairava um ar de mysterio e de orgia, onde
Paris estava no deslumbramento da festa louca.
havia pouco roncavam deboches e bebedeiras,
Explodiam por toda a parte orchesíras de assovios,
onde passaram homens sem fé e mulheres semi-
faiscavam illuminações, retumbavam clamores de
nuas, e onde entrava agora com Jesus-Christo,
orgia. Já passavam os grupos para os bailes numa
ruidosa algazarra a que se sentia o vinho. Era para dar a extrema-uncção a uma moribunda. Mas
o domínio do regabofe e da troça, da pândega lembrava-se das palavras do seu visitante: «Ella
desconjunctada, da pilhéria, da chalaça, da cha- o espera!» Ella> o esperava; mas onde? Todas
cota, da laracha, do insulto mascarado a que se as salas estavam vasias; por toda parte, em vez
chama geralmente espirito... Passavam pierrots, de remédios, jaziam garrafas esgottadas de vinhos
arlequins, clowns, dominós; todo mundo tinha Seus pudícos olhos surprehendiam interiores des-
uma physionomia mais ou menos mascarada; ti- honestos de alcovas lascivas... O acolyto lem-
liritavam guizos, sacodiam-se canções lascivas de brou que era no segundo andar, terceira porta á
bordel. Era o Carnaval. Era a intriga elegante esquerda. Subiram uma nova escada, chegaram
para a gente fina, era a pilhéria boçal para os ao corredor; mas pairava o mesmo silencio, des-
nides; eram os vinhos Champagne para os ricos cançava o mesmo abandono. O velho padre es-
e clubmans, era a agua-ardente para os pobres e tava receioso; temia que entrasse alguém e o visse
g liardos. Para muitos era a verdade. Vinham os conduzindo o Salvador aquella casa de peccado e
grupos e os carros de todas as ruas e penetravam de vicio ' E si voltassem de repente aquellas mu-
ruidosos nos boulevards festivos. A grande, a lheres e aquelles homens? De certo o desres-
gloriosa, a immortal cidade parecia toda entregue peitariam, tontos pela loucura da bebida e do
á momice e á graçola do entrudo. Onde estava Carnaval. Foi com uma vaga esperança de iugir
o grande cérebro de Paris produzido por cen- aquella casa sem fé e sem Deus, que elle disse
tenas de edições, em milhares de brochuras, a ao companheiro:
seiva fecunda do seu grande espirito pelas artes — Parece que nos enganamos! Não ha nin-
e pelas sciencias? Onde os cursos em que se guém na casa ! . . .
aprendem todos os conhecimentos do saber hu-
Mas este não respondeu: com a mão em con-
mano, em que se prevêm todas as hypotheses, em
cha sobre a orelha, parecia ouvir attentamente.
que se investigam todas as causas, e se determi-
— Que é que fazes ?
dam todos os effeitos? Paris descauçava; o Car-
— Não está ouvindo um rumor que parece um
naval se estendia sobre a opulenta cidade como
gemido?
um grande polvo que abre tentáculos . . .
Effectivamente aos ouvidos do Padre chegavam
Cahia a neve; choviam polychromias de con- agora uns dolorosos e abafados ais. Encaminha-
A NOVELLA SEMANAL 165

ram-se mais para porta, e bateram de,leve; nin- A pobre creatura ficou com os olhos rasos de
guém respondeu; outra vez, com os nós dos dedos, lagrymas felizes; e com a voz tremula indagou
Bernardin de mansinho fel-a resoar; também não curiosa:
houve resposta, mas aos dois amigos pareceu que — Diga-me, meu Padre, conhece-me? Como
o sussurro cessara. Por fim o rapaz entreabriu soube que estava doente?
a porta, e o Padre entrou sósinho. — Um homem que foi á minha casa e me fa-
lou do seu estado . . . Não o conheço; creio que
é um carpinteiro.
Longo tempo durou a confissão. — Talvez queira fazer o meu caixão...
Quando o Padre abeiróü-se do leito da enferma, — Talvez queira salval-a, minha filha!
quando ella o viu, não mostrou o menor espanto
Ella contou-lhe a sua historia. Era a mesma
nem o mais ligeiro sobresalto; apenas 'nos seus
de sempre, dolorosa e banal; era a seducção es-
grandes olhos muito fundos e soffredores, fulgiu
túpida de um homem covarde; depois da posse
rápida e fugace uma scentelha de alegria. O ve-
vinha o gualdipério immedmto; era a primeira
lho sacerdote olhou em volta de si. O quarto era
queda no lodo e na lama do vicio, o espectro da
pequeno, mas conservava um luxo atrevido e con-
fome apparecendo, e por fim a rendição completa,
vencional de velludos e de setins; o leito largo,
o aluguel do seu corpo, a prostituição da sua alma.
fofo, sensual, era encimado por um baldaquino de
O Padre escutava-a em silencio, ancioso pela
seda vermelha como sangue; e á cabeceira, pre-
obra da graça e do perdão; ouviu-lhe ainda todos
gado á parede, um grande espelho reflectia o
os feios peccados, e àb.solveu-a. N'esse momento
quadro triste de uma doente ' quasi na agonia.
a vela se apagou. Quando conseguiu de novo
O Padre que vencera facilmente a vergonha de
acendel-a, reparou com um vago tremor que a
entrar naquella casa suspeita, escrupulisou deante
estatua de São José tinha cahido, e que a rapa-
d'aquelle crystal de serralho, luzente e obsceno,
riga estava morta...
e desviou os castos olhos. Perto da porta um
divan ostentava a sua côr vermelha também; ha- VI
via espalhadas duas ou três cadeiras largas; o la-
Muitas horas passara no quarto da moribunda;
vatorio estava cheio, transbordando de frascos
quando chegou á rua reparou que era hora alta
seccos de essências e caixas vasias de pó de arroz >
da madrugada. Por todos os lados ainda estru-
ao lado um atril onde descançavam os três vo-
giam gritos alegres de carnaval.
lumes do Chevalier de Faublas e uns números
O carro approximou-se; Bernardin deu um der-
velhos de «Sans-Gêne», «L'Indiscret», «Ctilotte
radeiro olhar á triste casa onde ficara abandonado
Rouge», íLa Dame aux Camélias», e uma histo-
um cadáver, e entrou çom o acolyto para a car-
ria de Napoleão 1; perto da cama estava a me-
ruagem. Vinham pela rua carros alegres, illumi-
sinha; havia frascos de remédio, — e uma vela
nados a fogos de bengala; era o grupo de mas-
illuminava uma pequena e tosca imagem de S- José.
carados que regressava. Os animaes fustigados
Bernardin, eom uma voz tranquilla deu as boas
partiram, e elle pensou:
noites é rapariga, e indagou solicito:
— Ahi voltam os doidos para o cemitério ! . . ,
—- Sente-se melhor? Gemia tão baixinho que Para traz não tinham ainda ficado dez metros,
mal pude ouvil-a 1 ^ quando ao aceno de um desconhecido, a caleça
Ella fez um esforço cançado e murmurou com parou. Era o marceneiro; e assim disse :
tristeza: — Muito obrigado, meu Padre, por ter vindo!
Coitada, ella morreu!
— Tinha medo de incommodar os que se di-
Foi só; caminhou e desappareceu na sombra.
vertiam! Já hontem quizeram mandar-me para
Mas o Padre Bernardin, dando ordem para de
o hospital! Diziam que eu ia estragar-lhes o en-
novo partir, pensou que havia qualquer coisa de
trado . . . Não me queriam dar um confessór!
extranho n'aquelle homem tão pobremente vestido
Mas eu. sempre tive a esperança de não morrer
de operário; pareceu-lhe que havia uma luz re-
com tanta culpa!
fulgente e tranquilla nos seus olhos; e suppoz um
E olhou com um ar devoto para a imagem de instante que em fim aquelle carpinteiro talvez
S. José... fosse São J o s é . . .
— Pois aqui estou, minha filha, para ouvil-a e Rio — 1904.
perdoal-a ! THOMAZ LOPES
NOVELLA jSEM AN AL

ca minúscula. Lembro-me bem Bilac desforrou-se com bonho-


Avídat ôútvccdotíóy do exemplar de «Romeu e J u - mia, chacoteando em palestras :
e píttòrfe§è& dos lieta*, que o acompanhou alguns depois de solto, o ridículo dos;
~>for
círài\o^^elrípforcS dias, e sobre o qual elle tradu-
ziu com apaixonada vida a sce-
fanfarrões do poder. A sua vin-
gança não foi além do remoque
na do balcão. Lido e às vezes e não assumiu a fôrma de ran-
relido o volumezinho, perdia-se, cor. A simples extravagância
/ OLAVO BILAC. e Bilac ia continuando escoteiro dessa prisão devia pol-o a salvo
em seu caminho bohemio, leve, da suspeita na revolta de 18$3;
E m 1888. quando me aclie- despreoccupado, m a s levando pois ainda ahi elle soflreu. No
guei ao grupo, cora u m a timi- comsigo um cabedal literário mesmo dia 6 de setembro, á tar-
dez que se me afigura hoje ou- que a u g m e n t a v a sem elle dar de, encontrei-o em companhia
sadia, Bilac era o mais recente por isso e que podiam invejar de G u i m a r ã e s Passos e de um
dos habituados : Patrocínio, o outros pesadamente installados moço, de nome creio que Freire,
maioral da família b o h e m i a ; e na vida e nas bibliothecas. Não camarada recente dos dois. A
os outros eram j á para mim pensava em alardear leitura, nova da revolta surprehendia-
grandes nomes : Murat, Coelho nem sabedoria, nem coisa ne- nos a todos e fomos curiosa-
Netto, Porapéa, Aloysio e Ar- n h u m a . E r a sempre como uma m e n t e observar o que se pas-
t h u r de Azevedo, Pardal Mal- ave contente de cantar ao sol e sava no largo do Paço. Assisti
let, Guimarães Passos, P a u l a contente das outras. Por esse ao j a n t a r dos três no Hotel Glo-
Ney e Alcindo Guanabara. Só tempo, trabalhava P a t r o c í n i o bos e rodos commentavamos
A r t h u r Azevedo tinha posição num plano de levar á Europa, com espanto e galhofa o novo
.segura ,; dos outros, um Aloysio em vapor especial fretado, os l e v a n t e . Dias depois tive a no-
era exclusivamente escriptor de seus amigos de letras, da «Ci- ticia de que, denunciados por
livro, Murat iniciava advocacia, dade do Rio >, e os que a fre- aquelle F r e i r e como partidários.
os mais fluctuavam no jorna- qüentavam. Iríamos todos, mas de Custodio, Guimarães Passos
lismo, collaboradores ou redac- ao cabo só poude elle m a n d a r fora recrutado e Bilac fugira
tores, levados de esperanças ou Bilac, em vapor commum, como para Minas. Aquelle Freire foi
de sonhos que não faziam sen- correspondente da «Cidade do depois o emissário que levou
tir muito os apertos quotidia- Rio», em P a r i s ; e alli esteve para P a r a n á a ordem de fuzila-
nos. E n t r e todos, Bilac surgiu- emquanto durou a aura de ca- mento de Serro AzuL e outros
me como uma alma escoteira, prichosa fortuna de Patrocínio. revolucionários. Bilac permane-
a carregar sobre si, physica e De volta da Europa, Bilac era ceu em Minas até passar a bor
espiritualmente, tudo o que era a mesma criatura, despreoccu- rasca de delações e, chegando
seu. pada,fiuctuante, simples, a viver aqui tranquillamente, foi por
no seu mundo de sonho, de poe- maior precaução apresentar-se
Escrevia chromicas para «A sia e de espirito, alheio á re- ao chefe de policia, que era seu
Cidade do Rio», onde Patrocí- volução que se operava em tor- conhecido. Não o recebeu o che-
nio pagava então os collabora- no delle, m^nos no que podia fe e reteve-o preso dois dias.
dores pontualmente com um far- converter-se em matéria de gra- F u i vel-o e passei algumas ho-
to almoço na própria casa do cejo. E n t r e t a n t o , as circums- ras ouvindo-o rir da sua própria
jornal e em promessas infinitas, tancias fizeram delle victima ab- ingenuidade e da estupidez me-
que eventualmente reduzia a surda da política rancorosa da- drosa do poder publico. Sup-
dinheiro em horas incertas de quelles tempos. Collaborador li- ponho que entretanto a policia
fortuna e prodigalidade. Bilac terário d' «O Combate», soffreu revolvia o seu archivo, á cata
morava em casa de commodos, a culpa de ser amigo de Pardal do libello de culpa de Bilac, ou
como um pobre, ou menos que Mallet e pagou-a como imagina- porventura machinava na reten-
um estudante, pois nem t i n h a do cúmplice da conspiração nu- ção do poeta u m motivo de no-
livraria. Mas era dos mais li- ma prisão da íortaleza da Lage. toriedade do seu zelo pela sal-
dos e cultos do grupo bohemio; Attribuiam-lhe uns versos, de vação do Brasil. Bilac sorria
as suas leituras eram íeitas em que era autor Guimarães Passos, surpreso da attribuição perigosa
livros de empréstimo, ou nos e que celebravam, com as mes- que davam á sua presença. Era
volumes pequeninos da «Biblio- mas rimas e fecho em todas as como se a uma cigarra, que só
theque Nationale», que se ven- quadras, as attitudes do almi- se a l i m e n t a de orvalho e de sol,
diam naquelle tempo a 300 réis r a n t e Custodio de Mello. Dizia attribuissem a acção rasteira e
e cabiam sem constrangimento a primeira das quadras : clandestina de uma saúva ou
num bolso do paletot. Lia-os raivosa.
em bonde ou em casa ; e assim 'Typo serodio
conheceu o que havia de maior E amarello
e melhor na extensa bibliothe- Quem é ? Custodio Mas enfim, passaram as re-
José de Mello. voltas, e effeito da edàde ou da
A NOVELLA SEMANAL. 167

dispersão dos companheiros, a tituição '. Escrever um livro é um nam a literatura abstraofca, critica,
cigarra aprendeu a ser também problema de taboleiro. Editar um li- esthetioa, politi"a internacional, para
vro é um jogo com partido de rainha. estudar a terra natal, a sua região.
formiga. Inspector escolar, se- Expol-o á venda é ordenar as pedras O regionalismo, aliás, não é novi-
cretario da Prefeitura, secreta- por brancas e pretas. Xadrez em toda dade na península. De Manzoni1 a
rio do Congresso Internacional, a linha. Verga, de D'Aununzio á Deledda, de
E' que somos visceralmente irnpas- Fagazzaro á Seráo, de De Amicis
Bilac foi modelar em diligencia, a Giacova, no romance, no conto e
siveis '! Ou somos o producto da épo-
exactidão e methodo de traba- ca, estes quinze ou vinte annos de no theatro, os mais famosos escripto-
lho. Trabalho administrativo, transições de toda ordem ? Ou re- res levaram inspirações da provincia.
incumbência que tomasse a seu sultante do meio physico e social ? E' mais ou menos o que acontece
cargo, particular ou publica, Tudo, certamente. O facto é que a no Brasil. Os escriptores que se fa-
cconfraria:», com muito de social e zem no Rio são geralmente productos
era desempenhada com a niti- bem yiouco de literária, diverge de dos Estados. J á alguém, Sylvio Ro-
dez pontilhosa com que elle com- tudo o que se conhece no gênero. Tao mero talvez, acc cisou a capital de es-
punha os seu versos. O artista raro surge um «neophyto» caracteri- tragar os nossos melhores talentos...
sado ! Ora, pela iniciação se conhece J á hoje, porém, cessou esse perigo:
desdobrou-se também num pa- a seita. E ou não ha «confrades» por Os paulistas sé fazem em São Paulo
ciente constructor de dicciona- falta de confraria ou sãos de feitio e, nos outros Estados, ha o mesmo
rio, e o orador acadêmico sur- muito especial. meio de affirmações regionaes.
giu um dia constructor de ci- O quanto alcança a observação, o Certo parallelismo existe, portan-
vismo. mais que se pode enxergar nas rodas ta, entre o phenomeno literário no
literárias de São Paulo é esta «pose»: Brasil e fia Itália. A subdivisão do
MARIO DE ALENCAR. nao ter" «pose». Os homens de letras trabalho, de um para vários centros,
são homens de tudo, mas nao o que- é, pelo menos, commum, aos dois
rem ser de letras. Preferem sel-o de paizes.
carne e osso, como toda a gente. Se-
rão, com isso, os fortes ? Talvez. Se
se bastam a si mesmos . . .
Assim, não seria nesse meio, capaz
Tradição e novidade em
de correr a gargalhada o primeiro poesia.
Vida, literária inexperto enthusiasta que surgisse,
que teríamos o problema da «oapita-
lidad» Kou coisa semelhante. Por mais nova que pretenda ser,
uma arte não passa de tradição. Mus-
E nisto parecemos mais amadureci- set o disse em um desses alexandri-
_——u ^ dos que povos bem mais maduros nos que nos lembram que, quando se
y que nós. Veja-se a Itália, literaria- fala na esthetica do verso, Boileau
mente dividida em dois campos — Mi- nunca está longe : «Cest imiter quei-
lão e Roma. Auctores milanezes quei- qu'un que de planter des choax» —
CAPITÃES LITERÁRIAS xam-se de hostilidade em Roma e ro-
manos em Milão. Dramaturgos ap-
e mesmo quando as plantamos de raiz
para o ar — aecrescentemos nestes
NO BRASIL E NA ITÁLIA. plaudidos em Milão são pateados em tempos de innovações e de alcebiadis-
O desenvolvimento da literatura em Roma. De lado a lado, a boicotagem mo exasperado. Os ge=tos são quasi
Sao Paulo fez pensar em possíveis ri- literária- e theatral e a conjura do si- os mesmos que para plantal-os de raiz
validades que nos incompatibilisassem lencio. Fala-se oom desprezo em lite- para baixo.
com o Rio e o resto do paiz. O in- ratura «milaneza», com ironia em li- Não se encontrou ainda o melo de
cremento dás nossas letras coroava teratura «romana». poetar sem palavras. Ora, falar, ser-
uma serie de progressos, na generali- vir-se de palavras é imitar os mortos,
dade materiaes, que levavam mesmo Entretanto, «a Casa Treves, que é acceitar uma enorme tradição. Quan-
ao temor dos ciúmes alheios. João sempre foi a maior e a mais aucto- do um «poeta» publica um poema,
Ribeire lembrou, a propósito, o phe- risáda da Itália não está, agora em em que parece ter empregado trinta,
nomeno da «oapitalidad» boliviana, en? Milão,e não estampa muitíssimos li- palavras tiradas por sorte do diccio-'
tre Sucre e La Paz, que se disputam vros sérios, entre os quaes alguns de nario, o simples facto de empregar
a primazia entre os grandes «pue- importância nacional >? Pensae . Pan- essas palavras importa na acôeitação
bloB» do paiz limitrophe. Entre nós, zini, Pirandello, Deledda . . . — Alto mais humilde do mais milennario pas-
porém, o caso nao se complica. So- lá, esses são «romanos». — Estão em sado. Elle é, com isso, infinitamente
mos, os paulistas, bastante frios para Roma mas não são romanos : e se por tradicionalista, pois lembra nesse mo-
árrebatamentos taes. Frios e um pou- milanezes e romanos se querem en- mento o longínquo quadrumano, que;
co scepticos. Os nossos livros ahi o tender os que editam numa ou noutra juntando o que lhe servia de lábios
provam. Qualquer das obras capitães, cidade, esses devem ser considerados em sua face ainda animal, creou a
que representam a mentalidade pau- «milanezes» . . . linguagem para pedir os seios mater-
lista, se vasa n u m scepticismo bem Milão é ohamada a «capital moral» nos, balbuciando : «Ma... mã...»
pouco oondueente ao que quer que nao e milanez quer dizer pornographico,
seja o próprio scepticismo. A ultima escola, que pretende fa-
assim como romano quer dizer ar- zer taboa rasa de todo o passado e
Nao ha, pois, «capitalidade» literá- chaieo e tedioso.
ria em jogo entre Sao ; Paulo e Rio. recomeçar tudo a partir do primití-
Será extranhavel, surprehendente, tal- A verdade, porém, que nos conta vismo absoluto, está mal denominada.
vez, mas nao ha. Se despertamos pa- Ghiído Tonelli, é que acima dessas Em vez de «dadaismo» devia chamar-
ru as letras, despertamos tão natural- contendas, as casas editoras de uma «mamaismo». A primeira palavra de
mente, como de um longo somno sem cidade e de outra editam obras de quasi todas as línguas é «mama». «Da-
entremeio de sonhos que se prolon- toda a parte da Itália, Assim também, da» j á é uma alteração do grito priroi-,
ha a considerar no conjuncto a notá- tivo ; «dada» já é decadente.
gassem pela realidade além. Para os
nossos melhores escriptores e poetas vel acoão de Florença, posta â mar- O que é verdadeiro para as palavras
o trabalho literário é uma funeção gem do conflicto. De outra parte, è também para os rythmos. Não se
natural, incapaz de arroubos e trans- no erotismo de Milão ha a conseqüên- pode exceder a tradição.
portes. O prazer de crear é nelles co- cia da guerra, de caracter geral e nao Ha trinta annos se repete que ha
mo um goso egoísta, momentâneo e looal, tão grande lá como alhures. outros rythmos além dos habituaes.
passageiro. Nao tem repercussões nem Florença, continua Tonelli, não po- Decerto. Mas esses rythmos são tam-
encadeiamento de u m para outro in- de ser esquecida. Embora decahida bém muito menos perceptíveis. Por
divíduo. Ligam-se uns aos outros . . . do seu predominio-s. literário de antes isso mesmo são menos usados.
pelo isolamento mental. São os me- da guerra, o . seu papel se impõe es- Sejam empregados no verso livre
lhores amigos do mundo, mas nao pecialmente como introductora da li - e aproveitados, no verso regalar, Mas
são «confrades». Reunem-se ? Conver- teratura regional. Ora, é exaotamen- não se mata nem se matará o verso
sam ? Discutem? Decerto, sim. .Pa-, te esse o caracter da literatura con- regular. Aliás, elle se defende muito
zem piadas e «blagues». . . jogam o temporânea em suas mais reoentes bem, neste momento.
xadrez. O xadrez é o symbolo, a ex- manifestações. Os escriptores abando- F. GliEGH
pressão oollectiva. com todos os seus
attrativos e maçadas... Que grande ins-
168 A NOVFI.I.A S!"MANAI.

cedida pelos historiadores aos poetas, um véu tênue as rvpiuluas divinamen-


que lhe puzeram ao serviço mais te nuas, ou cessar de sorrir um mo-
'Curiosidade^ mentiras do que elhi teria tido tem-
po de engendrar no decurso de sua
mento. Ella sabi.-i. porém, que em a
dos braços brancos» e que sorria de-
líter&rí&s" vida radiante de mulherzinha fatal.
Graças a elles e segundo a tradição,
liciosamente . . . Continuou. Nao lhe
desagradava que, para a oonquista da
sua pessoa, povos se entre-matassom
que nem sempre é tão bem educada, e recorressem elles ás invenções mais
Helena passa por ter sido de incom- mortiferas que os seoulos seguintes so
paravel belleza. A sua cabelleira de contentaram em aperfeiçoar. Se nisso
HELENA, "a dos braços um louro ardente, na radiosa obseu- se pensa, não ó o cavallo de Trova o
ridade das noites hellenicas, j u n t a v a primeiro «tank» ?
brancos". HELENA,'"a sua luz á. das estrellas. Ella era He-
lena, ..a das bellas faoes->, Helena «a Não obstante, a antigüidade toda
das bellas faces." dos braços brancos». 0 que ella tinha concordou em absolver Heloua. Os
de mais acabado, parece, eram os su- velhos,amigos do mais velho Priamo
E' uma rude mulherzinha. De que percilios, entre os quaes apontava não aoharam em sua sabedoria razões
não triumpharam sua vida e sua me- uma pinta. A opereta negligenciou bastantes paramaldizel-a. Longe disso.
mória ? essa particularidade, que no emtanto Escapos à mobilisação pelo numero
As guerras, os séculos, as revolu- parecia pertencer-lhe. de seus annos, reuniam-se de costu-
ções, os conflictos mundiaes, as mais me ás portas da cidade. Ahi trocavam
Mas, além desses admiráveis dons impressões sobre o ultimo eommuni-
espantosas carnificinas, nada pôde al- physicos, Helena possuía outro, ainda cado. «Sua voz era egual a das cigar-
terar o seu bom humor, nem gelar o mais irresistível : tinha sorte. Seguiu ras, que na floresta, sobre os ramos
seu sorriso. Mulher que, viva, não re- documente a linha de má condueta das arvores, fazem ouvir os seus dn-
sistiria a nenhum homem, resistiu que é o caminho mais curto de uni <-es acordes.*. Quando viram appro-
depois a todos os acontecimentos. E ' deus a outro e de tal modo soube ximar-se Helena, dando tréguas ás
um destino vantajoso, mas injusto. avii--se que os séculos-' se escandalisa- discussões estratégicas, endereçaram
Sei bem que Helena era de excel- ram o menos possivel. A posteridade uns aos outros estas palavras aladíis:
lente família. Filha de Zeus e de Le- fez muitas coisas ; colheu a lembran- — «E' justo que Troyanos e Acheanos
da, irmã dos Dioscuros, mais conhe- ça de todas essas aventuras em nar- soffram por muito tempo males innu-
cidos no mundo mythologico sob o rativas seduetoras e escabrosas para meros por tal mulher, porque oi In
nome do Castor e Pollux, era, ainda, os homens, de todas reservando, para tem o semblante de uma deusa im-
esposa legitima do rei Menelan, cujo uso das famílias, interpretações quasi mortal . . . » Eis, segundo Homero, o
infortúnio não concorreu pouco para edificantes. Assim ó que, para oertos que de Helena pensavam os olhos da
a sua gloria. commentadores de Homero, Paris não retaguarda. Não nos transmittiu elle,
conseguiu vencer a resistenoia de He- é verdade, o que delia se dizia nas
Mas se Helena muito deve ao espo- lena senão tomando as feições de primeiras linhas. E' muito provável
so, deve .ainda mais ú Fatalidade, de Menelau, de tal modo que esse rapto que ahi se exclamasse : «Por Júpiter !
que, pode-se dizer, foi a primeira iüustre não teria sido mais que o mais Temos a couraça cheia desta filha slt<
grande atalaia. Nenhum destino se tocante exemplo de felicidade con- eysne !-> Tudo é, uma supposição, He-
enfeitou de tantas graças como o seu. jugai. lena de nada soube. Nenhum mur-
Amaram-na Ulysses, Ajax e Diome- múrio dèscortez chegou aos seus ou-
des, o que prova que sua influencia Mereceu Helena tão constante feli- vidos. E em meio ao estrondar dos
abraçava os meios diplomáticos, mi- cidade '! Não se ousaria afhrmar. De- exércitos em marcha, continuou a
litares e esportivos. Toda a chronica sencadeiou, com effeito, a mais teme- sorri i-.
de sua existência tão cheia poderia rosa e a mais longa das guerras da
ter-nos sido transmittido, de maneira antigüidade, sem parecer de qualquer
medíocre e villã, talvez. Mas Helena modo contrariada. Para sustar a car-
conheceu a suprema ventura de ser nificina, ter-lhe-ia bastado cobrir com R . ws Fl.KKS

A C A B A DE A P P A R E C E R

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A NOVELLA NACIONAL
"Volumes publicados: ™"

A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por


série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o suceessor de
se mira ao seguinte escopo : otiereeer Olavo Bihu', na Academia, Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "bT no gênero ama verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima ,, — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é direetor o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do ''Professor Jeremias'",
romance que obteve o maior suecesso
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 10 l/2 X 12 ij% centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa IIEROES E BANDIDOS e outras
cie auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.
O.S N10UKOS

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume l!f!000em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado 1|300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3$500; série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr. Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — Lá,, foges, aoouft
ANNO I SÃO PAULO, 9 DE JULHO Í)È 1921 NUMERO i:

ANOVEIXA
SEMANAL

SOCEDrmRA (nÊQNtXUMIBESR&RMABt^^
A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR BRENNO FERRAZ

P U B L I C A - S E AOS SABBADOS
Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphahetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collecç-Sesv
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expausão. impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
Heração dos auctores. Vivemos, assim, num oirculo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extraeção no
cioso : o livro não se diffunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque nSo se diffunde. Isto succede com o em vários paizes, em antbologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didaoticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
•Esta situação, de tão funestas conseqüências para o de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
paiz, suggeriu a iniciativa da creação deste periódico, vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
boa literatura. tempo todas as indicações precisas para que qualquer
pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel pela escrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que um abundante repositório de infor'
dos os meios para o diffundir em todo o território na- mações bibliographicas, uma selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
É,ramma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa collaboração especial, de u m punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as vantagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, sorá vendida a*preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheoi-
apregoada nas ruas. nas estradas de ferro, em toda par- ilos e desconhecidos, consagrados e estreantes ^conitanto
te, a toda gente ; mas não será lutil e de interesse e- aue taes obras tenham valor c se iam conformes com a
phemero como ella: pelo fundo -- pela qualidade e pela feição d'A NOVELLA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá u m a Verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volum es por serem esses os
Pretendendo ser lida. muito lida, lida por homens gêneros que contam, entre o publico, maior numero de
e creanças. senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora. Todos os outros gêneros terão o sen logar no nosso
procurará nos auctores a vida. a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
'modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das bons letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se c.olloca á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. ,\'ão seria este o melhor meio de se editores, aos qnaes deseja servir e dos quaos espera re-
cumprir esta parte do progj-amma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympatliico.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim. A NO- Os EKITORKS.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col-
laboração interessante para qualquer Aos leitores queiram nos auxiliar neste trabalho
que nos enviem relações de auctores
das secçôes deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, do modo a nos
Os auctores devem nos remetter os na ser lida em toda p a r t e : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seunome. villas, povoHções. estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço peto qual nos of- navios, boteis, elubs, bibliothecas, e t c ,
ferecem a sua collaboração. estando porisso organisando um ser- Importante
Os origituies devem ser escriptos de viço de distribuirão que será o mais Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em calligruphia completo possível, de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legível e de preferencia dactylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos adeantadamente a res-
graphados. não tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
garío Ribeiro — Caixa po-uü n. 1172 no.-sos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços ile livrarias, VELLA SEMANAL offeroc.croinos a
agencias e vendedores de jornaes è titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer iivra,ria do Bra-
A NOVELLA SEMANA I, publicará, interessar pela venda ou leitura des- sil, no \ alor de 20 o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor. preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso 06 escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas,
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra. Anno 20$000
De todas as obras das quaes lhe for mui-to agradeceremos qualquer indi- Semestre . . 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . 5$000
lém disso uma noticia critica. fornecida, rogand a todos quantos
Numero avulso $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO -R, Dr. Abranches, 43 Caixa Postal, 1172 - Teleph.: Cidade, 5441-S. PAULO
ANNO I A NOVELLA SEMANAL - São Paulo, 9 de Julho' de 1921 NUMERO 11

A RESALVA — Joã<| Luso


A VIRGEM DAS ESME-
SUMLMAMIO- res — Amadeu Amaral —
PAUI.O DüAK't K
Curiosidades literárias —
RALDAS — Castro Me- Pensamentos de RUY
nezes BAHBOSA (collectanea de
O VELOCÍPEDE — 1
MARIO DK LIMA BARBOSA).
TIA E L I S A - Julio Schebel SUPPLEMENTO — A vida Racine em Café-concerto.
J. Ramos A CARTA DO SUICIDA anecdotica e pittoresca Lèconte de Lisle -í JHAU
A ESMOLA — Mario Sette — Sud Mennucci ' dos grandes escripto- DoRNIS

À I * K> {S A.
JL, V
33. I ^ r t a n o i s o à . Jxiliai c i a
A
Sil-sra.

Elle na rua, ella ao balcão, os namorados con- tura da duvida; a noticia duma doença no hos-
versavam no silencio da noite, sob um céo cri- pital ; e já o coração se lhe apertava á lembrança
vado de estrellas. dé ver o João afastado da sua beira, talvez para
— Também, diz a moça, ruins peccados lie- nunca mais, esquecido ou morto no decorrer dos
mos de nós ter p'ra tal castigo... Eu sei! pois annos, que se arrastariam vagarosos, vagarosos
Nossa Senhora não se porá de nossa banda? até parecerem eternos. Um só raio de luz bri-
lhava ' no sm triste scimar. Não estaria Nossa
— Emfim... Mas qual! Olha Joaquina, eu es-
Senhora da banda delles naquella afflicção ?
tou a ver o número, a ve!-o como se já o ti-
— Olha, ó quelle.
vesse nas mãos; <ajem do 6 não vou. Emfim,
Deus sobre tudo; mas esta maldita coisa que se O Maia, abysmado também a matutar no fu-
metteu na cabeça... turo, esburacava a terra com o ferrão do vara-
pau. Ergueu a cabeça.
— Ah agora, p'ra longe sementes agoiros.
— Ahn.
Calaram-se pensando no dia seguinte. Apurado
— Não é possivel que tú vas p'ra soldado.
pelos médicos como um valente soldado, o Maia
Não vafiys!
partiria de manhã cedo para Coimbra, a tirar as
sortes e num bocadinho de papel, sabido duma — Hom'essa! Tú lá adivinhas, doida ?
urna, estaria a grande ventura ou a grande des- — Parece que tenho aqui o dedo mendinho a
graça — voltar á terra, continuar vivendo nas dizer-rn'o...
doçuras daquelle amor puríssimo e leal, ou ficar Apezar dos pezares, elle riu.
por lá um rebanho de annos, de fardeta e arma — Tinha que ver! Eu dava cabo de mim!
ás costas, a servir o rei, curtindo a amargura Posso lá crer em semente desgraça? E bonito
duma saudade immensa. E no espirito da rapa- seria ver essas lambisgoiàs a rirem-se de mim, a
riga já se estendia, minuciosa e nitida em seus chamarem-me «viuvinha» conforme uma já se
detalhes, toda a dolorosa estrada a percorrer, se a atreveu... Ai, por pouco a não esgano! Eu bem
fortuna lhe fosse avessa; lembrava-lhe já o transe as oiço, cá me chegam aos ouvidos certos diti-
despedaçador do ultimo adeus, mais tarde a falta nhos, tratam-me de presumpçosa, de soberba. Que
de rioticias de que outras se queixavam: a tor- era muito bem feito tu tirares máo numero, p'ra
170 A NOVELLA SEMANAL

eu abater a proa... Mas ha de o Senhor ser ser- Não sei; eu sou capaz de me botar ao rio, eu
vidoque lhe quebraremos os olhos. endoideço, morro!
A Joaquina começava a dar largas ao forte — Temos o caldo entornado, resmungou elle.
gênio que lhe valia os remoques das companhei- E vendo-a chorar de rijo: — O caldo entornado,
ras ; quasi esquecia o seu amor pelos seus ódios... e musica p'ra toda a noite! Olha,. Joaquina, o
Certamente iria mais longe a apostrophe, mas rapaz não vae p'ra forca. São três annos, passam
a voz do pae fez-se ouvir dentro de casa, cha- depressa; depois elle volta, ha de haver foguetes,
mando-a : um pagode; e então casaes. E ainda pode ser que
— Então, cachopa, isto vão sendo horas de elle tire numero alto...
acabar o paleio; façam lá as despedidas de uma — Mas se não tirar ? Deixa-me fazer aquillo
vez! que eu pedi, deixa ? •
— Bem, disse o Maia, adeus. Se lá eu ficar, até... — Pensa no que estás a pedir, cachopa de não
— Olha, João, eu vou pedir ao meu pae p'ra sei que diga, e terás a resposta que te posso
ir á cidade comtigoí dar! E p'ra mais, isto são horas e mais que
— Mas assim ainda te é mais custoso... horas; vae-te deitar, anda , vae com Nossa Se-
— Qual, também eu sei mais depressa a no- nhora e deixa-me em socego.
ticia. Até amanhã, sim ? Vou rezar. O que Deus Ajoelhou a moça á beira da cama, tomou-lhe
quizer, mas p'ra soldado não vaes. as mãos, cobriu-as de lagrimas. O coração ,do
Deram-se as boas noites; ella atirou uma flor velho amolecia aos poucos; em boa verdade, á
do alegrete, que foi cahir nas mãos do Maia; vista de tal espalhafato; nem mais sabia de que
elle em paga atirou-lhe um beijo, afastou-se. A maneira negar.
cachopa entrou em casa. — Deixa-me, cachopa, que me fazes doido!
No corredor ia pensando no meio, num meio E pensava entre si: Isto que é bonito ; se me
por extraordinário e difficil que fosse, para livrar dá outro beijo, não tenho remédio senão...
o seu conversado das correias militares. Mas nem o pensamento acabou, que já um
Relampejou-lhe no cérebro uma idéia rápida e chuveiro de beijos vlhe acariciava as barbas
viva como a lingua dum relâmpago penetrando brancas.
numa toca. O' Mãe do Céu, e se... Correu ao — Senhor pae, senhor pae...
quarto do pae, já deitado áqúella hora. Cedeu; cedeu como um tyranno fracalhão, co-
— Senhor pae, dá licença ? mo um juiz que dá mais ouvidos á alma do que
— Entra. á consciência; cedeu como um pae...
— Eu queria pedir-lhe uma coisa... — Está bem, rapariga, está bem, disse, fin-
— Venha de lá. gindo má vontade. Quebra lá a cabeça a teu
— Que me deixasse ir amanhã á cidade. gosto, asneia bastante. Depois se te arrepen-
— Adeus minhas encommendas ! Pois que vaes deres...
tu lá fazer, cachopa ? Se o rapaz tiver sorte, — Não senhor, não me hei de arrepender. A
muito bem, que volta; se não tiver... sua benção; nós vamos cedo num rancho.
— Ainda queria outra coisa. E a Joaquina sahia do quarto, já alegre. Ai,
— Mais alguma das tuas. Dize. agora estava descançada. Se o Maia tirasse máu
— O João não pode ir p'ra soldado. numero...
O velho embasbacou. » A Joaquina accordou no outro dia, ao primeiro
— Hein, não pode ? Pois se os médicos dis- cantar dos gallos; ergueu-se, fez as suas orações,
seram que sim... abriu de par em par a janella. Nos campos e
— Mas eu não quero! azinhagas a vida accordava também ; já um carro
— Hom'essa cá me fica! Pois tú não queres. de bois chiava ao longe o seu ramerrão monó-
Has de lhe ir agarrar c'um trapo quente! tono e rangido, e já a cantiga dalgum almocreve
— Não senhor, mas... madrugador subia ao ar de mistura aos sons das
E, debruçando-se sobre o rosto do velho, to- campainhas da recua; a manhã era fresca, to-
mou-lh'o nas mãos, falou-lhe ao ouvido, entre cada a tons primaveris ; os olhos adelgaçados os-
dois beijos. cillavam sob o afago do nordeste, e a passarada
— O' filha, que isso já é loucura! Não, se- ia ás folhas cheias de orvalho tomar regalada-
nhora, não consinto. mente o seu café do almoço.
— Mas eu não posso ver o João ir-se embora. A Joaquina, aperaltando-se como para uma
A NOVELLA SEMANAL 171
festa, penteou devagar os cabellos fortes, cruzou rece um enterro do que outra coisa. Va lá uma
no peito o mais bello lenço, grande, com florões cantiga p'ra animar.
vermelhos no fundo cor de ganga, enfiou sobre Elle mesmo começou; quasi todos cantaram;
as outras a saia de lã com barra azul; e, para o Maia, calado, ia parafusando no 6.
que nada faltasse, foi buscar aõ fundo da arca o
Chegaram a Coimbra. A rapaziada, avistado
cordão d'oiro macisso — uma fortuna! — pol-o
Civil, esmoreceu como um rebanho de bois, á
ao pescoço em quatro dobras folgadas, encos-
vista do açougue. Bateram as dez horas, entrou
tando o medalhão que tinha uma Nossa Senhora
tudo. O João quiz que a namorada ficasse fora,
esculpida, a prumo sobre o seio alto. poupando-se a um espectaculo que iria talvez
— Joaquina ? magoal-a.
Era o namorado na rua, a chamal-a. —r Nada, eu vou também. Escuta, quando
— Hein, lá vou. metteres a mão na urna olha p'ra mim. Talvez
E já entre a porta do quarto, não podendo te dê sorte...
conter-se, voltou de novo ao pé da cama, para se Em breve um continuo fez.a chamada.; os ra-
mirar no espelho. pazes iam respondendo - - prompto ! presente!
Gostou de si e teve um sorrisinho de presump- — e por uma porta do fundo entravam aucíori-
ção — a tal que as vizinhas notavam; deu ainda dades, officiaes do exercito, os regedores de cada
ura geito ao vestuário; poz um poquito mais á freguezia. Procedeu-se ao sorteio.
banda o chapelico de velludo, guiou para traz Os três primeiros foram felizes; a cada nume-
da orelha duas madeixas de cabello teimosas, que ro que um major gritava, havia cá fora reboliço,
faziam empenho em tapar-lhe o rosto. Galgou a muitos parabéns.
escada, foi dar a mão ao conversado. — João da Maia !
— Ih, como tu vens... O rapaz, muito pallido, adiantou-se; ao passar
— Como ? pela Joaquina, murmurou: — É o 6, aquelle raio
-^Bonita! do 6, como quem o está vendo ! — Passou as gra-
'Caminharam a par. No largo havia outras des,, foi enfiar a mão tremula no interior da urna.
moças, outros rapazes que marchavam para à ci- E trouxe dois papelicos entre os dedos.
dade a tirar o numero. — Só um! berrou-lhe o major. 4
Irmãs, namoradas, rara a que disfarçava o te- E João, mais atarantado, mergulhou de novo a
mor dum caso infeliz, que «delle» privasse. Houve mão na urna; arquejava, parecia suffocar; final-
cumprimentos, festas á nova companheira, por mente, caçou no canto uma sorte mais bem em-
quem ninguém esperava, e o rancho abalou final - brulhada e deu-a ao major, voltando a cara.
meute, já dividido em pequenos grupos, já todo — 6! '
um, ora silencioso, ora gargalhando e pairando. O raio de 6! Bem lhe dizia o coração agoi-
reiro; era aquelie maldito, aquelle excommungado
— A Joaquina parece qüe se vae casar de ale-
numero, que se lhe não tirava da cabeça ha três
gre que tem a cara, observou uma. — Não que
dias.
até-dá gosto a gente olhar p'ra ella.
Saltaram as lagrimas dos olhos da Joaquina,
— Ai vida, não que tristezas sãoseccuras ! res-
tão fortes que lhe foram regando as faces. En-
pondeu alegremente a moça. E lá para si: —
xugõu-as depressa. Dirigiu-se logo ao continuo,
Bem te conheço, meu pau de larangeira...
querendo saber, se a pergunta não. era atrevida,
— Pois olhem, eu, disse o Maia, levo o cora- em quanto poderia andar uma resalva. O homem
ção do tamanho dum grão de milho. riu, indicou-lhe a administração.
— Vale bem a pena! Momentos depois, a Joaquina sem esperar o na-
E foi tal o. desprendimento da Joaquina isto morado, ganhava a rua, pediu a uma rapariga
dizendo, que elle ficou de pé atraz, intrigado. que a acompanhasse, levaram sumiço as duas.
— Então não é coisa de grande monta se eu O Maia procurou-a por todos os; recantos do Ci-
fôr p'ra soldado ? vil. Que é da Joaquina ? Viran|-na ? Deram fé?
— Ora, tudo tem remédio ;,,tudo tem remédio, Nada.
só á morte não. "I Quasi meia hora depois é que a viu voltar
E como visse, a companhia murcha, carninhan- N muito apressada, inquieta, numa agitação em que
do em silencio: havia a febre temerosa de chegar tarde, como
— O' cachopas !, gritou. — Isto assim mais pa- quem vai no encalço duma ventura que foge.
172 A NOVELLA SEMANAL

— Que é isso, ó 'quella ? mes palmas recurvas. As portas, mulheres cho-


— Espera ahi, disse, quasi sem lhe dar atten- ravam.
ção. — Espera um instantinho. — Fica lá com quantos quizeres, cão damnado.
E subiu as escadas do Civil; outras raparigas O meu amor cã o levo! exclamou a Joaquina.
curiosas seguiram-na, entraram atraz delia na ad- — Toca p'r'á aldeia.
ministração; e alli, pedindo a resalva de João da E já fora da cidade, como os pássaros cantas-
Maia, a Joaquina fez cantar um punhado de libras sem muito nos ramos que o sol doirava!
sobre a mesa do administrador, batendo-as uma — O' João, olha os melros tocando á forma!
atraz da outra, até á ultima. Depois olhando as Ande lá p'rá frente, seu militar!
mãos: JOÃO LUSO.

— Nossa Senhora, se custa um pouco mais caro,


estava perdida!
Um amanueuse começou com indifferente pa-
chorra a encher de rabiscos a pagina dum talão.
Palpitante, a moça esperava, seguindo com o
olhar as viagens do papelucho, que ia de mão
em mão, para este assignar, para aquell'outro
fazer o assento nos livros. Parecia-lhe que taes A VIRGEM
formalidades não tinham fim; a todo o passo
estendia as mãos supplicantes. DAS ESMERALDAS
— Tenha paciência, creatura, gritavam-lhe. Muito longe daqui, num paiz governado por
Quando lhe entregaram a folha assignada, ca- um Rei avarento e orgulhoso, aconteceu um dia
rimbada, coberta de garatujas, a Joaquina aper- uri! milagre: numa gruta, perto do mar, appare-
tou-a ao peito, como receiosa de que outras (as ceu a uma camponeza Nossa Senhora, no seu
taes que a tratavam de presumpçosa) lh'a arre- manto de estrellas. Maravilhada, a camponeza
batassem. correu pelos campos e chegou á'cidade, espalhan-
Com que estouvada alegria ella atravessou os do pelas choupanas e palácios a noticia da appa-
corredores do Civil 1 Tropeçando, cá e lá, com um rição.
grito a voar-lhe do peito, assim foi cahir nos O povo alvoroçado accorreu á gruta. Era ver-
braços do seu João. Apertou-o muito, muito, dade : a Santa lá estava, resplendente, envolta na
num longo amplexo amoroso, a choiar e a rir. sua túnica luminosa.
— O' Joaquina, mas que é isto ! Eu cá de Era uma imagem de admirave' formosura que
mini...
parecia sorrir, extendendo as mãos afiladas como
— Toma a tuaiesalva! íE mettia-lhe nas mãos num gesto de eterno perdão. Quem a collocara
o papelucho). Toma-a. Tu não vaes p'ra soldado. alli ? Ninguém soube. Os traços do rosto sereno,
Não. Eu o que dizia, hein ? a delicadeza infinita das mãos tão brancas e o
O rapaz desvencilhou-se-lhe dos braços, recuou, rutilar dos astros que lhe constellavam o manto
poz-se a fital-a. E teve um brado ao notar-lhe não podiam ser obra de homem, revelavam um
o pescoso nú... artífice divino.
— O' doida, e ò teu cordão, a tua Nossa Se- Não tardaram, para tornar famosa a doce Vir-
nhora d'oiro? gem, os milagres. Os cegos, beijando a pedra da
— Vae lá agora atraz do cordão á rua dos gruta, recobravam a vista por encanto. Punham-
Ourives... se a andar os paralyticos, os entrevadinhos. As
— Pois tu vendeste... creanças pallidas saravam. Em torno da gruta,
— Qual vender, troquei-o por ti! dentro em pouco, havia uma porção de muletas
O João, apalermado, benzia-se com as mãos abandonadas. Offerendas de toda a sorte eram
ambas, mas ella segredou-lhe ao ouvido. levadas á Santa pelas mães agradecidas. Os pesca-
— Bem te jurei que havia de quebrar os oihos dores diziam que em noites de tempestade, pelo
a estas seresmas. mar alto, quando invocavam a Virgem, as ondas
Olhou o Civil, grande e branco, com os seus amainavam, rolando mansas como cordeiros em
nichos onde os santos encafuados liam em gros- torno dos frágeis barcos. Quando fez um anno,
so* livros ou empunhavam evangelicamente enor- todos, ricos e pobre», camponios e fidalgot, »f-
A NOVELLA SEMANAL 173

fluíram á gruta maravilhosa,-para levar a Nossa cida, sem flores, sem cirios votivos, perto do mar.
Senhora, açucenas e lirios, velas de cera e precio- Correram assim muitos annos, até que certo
so incenso. Ao chegarem lá, depararam, attonitos, dia, num paiz visinho, uma pobre menina, filha
com o novo milagre: sob o tosco altar uma fon- de um pescador, vendo a mãe doente e o velho
te de água muito pura surgia. A lyrnpha, crys- pae já sem forças para guiar o barco, lembrou-
tallina e branca, rolava da lapa é, ao tocar o chão, se da Virgem das Esmaraldas, cuja lenda tantas
espadanava transformada em esmeraldas. vezes ouvira contar ao canto do lume.
Passado o momento de espanto, todos, deitando Sosinha, cheia dé fé, a bôa menina partiu de
fora as offerendas e as flores, numa grande con- noite, a pé, ao clarão da lua. Atravessou compri-
fusão, lutando uns contra os outros, precipitaram- das estradas, ermas veredas, florestas bravas cheias
se, procurando cada qual apanhar maior quanti- de feras. Voavam á sua frente, guiando-a, os
dade de esmeraldas. Com as mãos cheias, o s yagalumes. Depois de uma longa jornada, chegou
bolsos transbordantes, os chapéos repletos, loucos finalmente á gruta; lá estava, serena e linda, a
de alegria voltaram depois para suas casas, cren- imagem milagrosa. A água borbotava sempre,
tíb-se ricos para sempre. Mas qual não foi o es- transformando-se em esmei^ldas. A filha do pes-
panto dessas almas gananciosas quando, ao esva- cador, ajoelhando-se, ergueu para a Virgem as
siar nos lares as riquezas que haviam trazido, mãos postas e, numa prece fervente, rogou pela
viram, em vez de esmeraldas, simples conchinhas mãesinha enferma, pediu pelo pae velhinho. Finda
sem valor algum! a oração, apanhou uma esmeralda, uma só, das
Logo tornaram, de roldão, para deante da gru- mais pequeninas, e, beijando o manto da imagem,
ta, enfurecidos e ameaçadores. Mas a água bro- tornou para a casa distante. Eil-a que entra a
tava ainda, cada vez mais pura e continuamente humilde cabana e corre para junto do leito onde
se mudava em esmeraldas. No altar, nimbado de sua bôa mãe jazia enferma, e a cuja cabecei ^aper-
esplendores, a bôa virgem já não sorria. Appa- tando a cabeça entre as mãos, o velho pae chorava.
recia tristíssima, dir-se-ia com os olhos rasos — Papae ! Papae! não chores . . . Nossa Se-
d'agua. nhora deu-me uma esmeralda. Vamos vendel-a è
^Cheios de cupidez, fizeram todos, num deli rio, comprar remédio para a mãesinha doente.
nova provisão de esmeraldas e, voltando para suas Dizendo isto, procurou no bolsinho do avental
casas, passaram pela mesma decepção. de chita a sua riqueza. E qual não foi a admi-
O velho Rei, sabendo disso, exclamou : ração de seus pães, vendo por sobre o leito não
— A Santa fez muito bem. Os pobres não me- uma só mas innumeras esmeraldas, grandes e bri-
recem pedrarias e os fidalgos dellas não preci- lhantes, de um immenso valor. Nossa Senhora
sam. As gemmas são para os thesouros reaes. multiplicara-as. A menina, pela bondade de seu
Irei eu mesmo buscal-as, no meu manto de pur- coração angélico e por sua gratidão infantil, me-
pura, de coroa e sceptro. Vendo um rei ajoelhar- receu tão celeste recompensa.
se, a Santa não terá coragem para mudar-lhe nas Assim que no reino do velho avarento soube-
mãos as lindas esmeraldas em conchas. ram de tamanho milagre, todos, novamente, cor-
A' frente de um séquito numeroso, o monarcha, reram para a gruta. Longe ainda, já iam de mãos
numa liteira de ouro, fez-se tranpo.rtar á gruta. postas, resando em coro, como nas procissões,
Lá chegando, nem olhou para a imagem, tanto com o monarcha á frente, sem coroa nem scep-
o deslumbraram as esmeraldas que borbotavam tro. Mas perderam seu tempo. A gruta estava
como lagrimas de luz. vasia. A imagem desapparecera. A fonte maravi-
Nervosamente, curvando-se, o soberano poz-se lhosa seccara. Nossa Senhora voltara ao céo, cum-
a apanhal-as, entregando-as, depois, aos fâmulos prida a suâ missão de misericórdia e de graça.
que lhe extendiajm grandes salvas de prata. Re- CASTRO MENEZES
pletas todas as salvas, eil-o que volta, com o seu
séquito, na sua liteira, de ouro, para o palácio.
Anciosas esperavam-n'o a Rainha e as princezas.
Mas quando o Rei quiz mostrar-lhes o thesouro, nas
salvas de prata haVia apenas pequeninos mariscos.
Tomado de cólera, o monarcha fez annunciar
que mandaria cortar a cabeça de todos aquelles
que tornassem á grata. E a Santa lá ficou esque-
174 A NOVELLA SEMANAL

da-te e depois falaremos. E dizia-o muito sério,


encarando-me firme, com severidade quasi. Mas
era difficil emendar-me, se não impossível.
Quando o desejo me pungia com mais força,
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e era-o ás vezes a ponto das lagrimas encherem-!
me os olhos e amaldiçoar a sovinice paterna,
contendo a custo a raiva que me ia por dentro,
O VELOCÍPEDE sentava-me a um canto na sala de jantar, folhea-
va o livro ou enchia,a lousa de caretas, olhando
Entre as minhas muitas ambições de creança a para a rede em que meu pae cochilava' entre as
de possuir um velocípede foi, particularmente, a baforadas do cigarro; lnas elle não dava pelos
mais intensa e mais custosa de alcançar. Nunca meus rnodos sérios, numa indifferença irritante.
desejei, como meus compa iheiros, attingir postos Isso durava pouco. O tédio não demorava a
de vulto, ser rei ou ser imperador de algum reino invadir-me. O rabo de um papagaio entrevisto
phantastico, ou mesmo um general; nem, como da janella ou o assobio de um garoto chamando
um visinho meu que era coroinha, ser Nosso os outros para os brinquedos, faziam-me esquecer
Senhor Jesus Christo para padecer o supplicio da a ambição, os propósitos deliberados de emen-
cruz entre dois ladrões, e que lá anda, agora ele- dar e as misérias triviaes da existência; fechava
vado a sacristão, á espera de um Judas que não o livro de mansinho, esgueirava-me pé ante pé
apparece. até á porta e lá me ia pela rua afora, alegre como
As minhas ambições foram sempre moderadas um pássaro.
e ao alcance das mãos, razão por que as vi sa- Uma tarde, á sobremesa, quando a esperança
tisfeitas todas, ou quasi todas. Hoje, volvidos de possuir o velocípede já de todo se desvane-
muitos annos e com muitas illusões desfolhadas, cera, meu pae, a meio de descascar um pecego,
continuo com o mesmo methodo, com o meu ficou com a faca suspensa e disse-me pausada-
terra a terra dos tempos de creança. mente:
• Para possuir o velocípede eu vivia atormen- — Si não me engano, Antoninho, o teu com-
tando meu pae. Este adiava a compra a troco portamento tem mudado bastante. Pelo menos
das minhas peraltices e vadiação e do trabalho que os visinhos não me têm incommodado com as
lhe dava. Meu pae não desgostava das peral- queixas que provocas e o professor confessou-me
tices que eu praticava e, só quando as queixas que és outro. Terás o velocípede no dia de teus
dos visinhos eram mais violentas, limitava-se a annos. Mas é preciso que até lá sejas em tudo
puxar-me as orelhas á vista delles, de envolta com um modelo, ouviste, maroto?
os conselhos que eu já sabia de cór. Mas por E, sorrindo, ameaçou-me com a ponta da faça,
dentro sorria e applaudia-me. em ar de de gracejo.
Applaudia-me, é verdade, mas o velocípede não Escancarei a bocca, entre espantado e jubiloso.
vinha. Elle lá estava, com suas três rodas de O espanto era causado pelo sorriso e mais pelo
metal branco e o sellim de couro amarello, co- gracejo, coisas que em meu pae raramente se
berto de poeira e teias de aranha, pendurado no manifestavam e que eu não me lembrava jamais
forro da loja triste do Esteves. Sempre que por de ter visto de mãos dadas. O júbilo, vencido
lá passava eu o namorava com olhos cheios de pelo outro, encolheu as azas receioso e não che-
cobiça, e o meu receio era não dar mais com gou a expandir-se por inteiro; mas sempre me
elle, algum dia, no logar costumado entre uma deu um ímpeto de saltar ao pescoço de meu pae.
dúzia de vassouras e uma gaiola, onde um sabiá Ia fazel-o e é possivel que chegasse a levantar-me,
cantava ás vezes desconsoladamente. si um olhar pão me grudasse á cadeira, immo-
Cheguei a ter sonhos deliciosos com a appete- bilisando-me. Meu pae gostava de rir e gracejar,
cida machina; uma noite, ao fazer uma curva mas interiormente sem dar trabalho aos mús-
mais rápida, rolei da cama abaixo, acordando com culos; por fora era um homem casmurro, ini-
a cabeça contundida. Mas os meus sonhos con- migo de expansões.
tados de manhã com o fito de abrandar o cora- Nessa noite não fui á rua e passei estudando
ção paterno, nada conseguiam. A cada assalto ou fingindo isso.
que eu fazia para havel-o, meu pae meneava a No dia de meu anniversario, que foi d'ahi a
cabeça e dizia-me, cofiando o bigode: —- Emen- umas semanas, levantei-me com a aurora. Tinha-
A NOVELLA SEMANAL 175

me esmerado no comportamento que meu pae, Não veiu nem indigestão, nem eólica, mas um
exultante, classificava de impeccavel. Como' de santo, compadecido do meu soffrer, enviou-me
costume sahi de casa ás dez horas e passei pela uma idéa santa. Santo bemdito: na bemaventu-
casa de Raul e de Zezé, filhos de um sapateiro, rança em que repousas e que bem mereceste re-.
os alumrios mais quietos e palermas da escola. cebe agora os agradecimentos que então esqueci
Eu ia apprehensivo. A cartilha do Galhardo e de dirigir-te.1 A idéa do santo era simples e linda.
a lousa pesavam-me como nunca sob o braço. Porque não iria correr pelos campos atraz das
E tinha motivos para isso; logo para aquelle dia borboletas, descobrir ninhos de pássaros e tomar
o professor mandara decorar a taboada e a his- banho no rio, em vez de ir á escola?
toria dos donatários, com datas e nomes. E de- Parei de novo e sorri.
via ser repetido sem piscar, como dizia elle. — Vocês sabem a lição de hoje? perguntei
Eu não tinha a menor queda pára a mathe- aos outros. Eu cá não sei e por isso não vou á
matica e era o primeiro a reconhecel-o; minhas escola. Não estou para apanhar como burro de
faculdades mnemonicas eram escassíssimas e os carga. Vamos passear?
donatários davam-me calafrios na espinha. Tra- Elles olharam-me estupidqs e disseram que não,
tasse-se de armar uma arapuca, de furtar fructas admirados da proposta. Tunda por tunda prefe-
na quitanda da esquina, de esborrachar o nariz de riam a vara do professor á correia paterna.
alguém com um murro ou de amarrar latas á — Ora, não sejam tolos, quem saberá que fo-
cauda dos gatos, com grande gáudio das creanças mos passeai ? Hão de ver que dia soberbo pas-
de calças compridas, estava eu prompto e poucos saremos no rio.
se sahiam com tanta perfeição dessas emprezas. E fui por ahi, tentando-os, com palavras mei-
Mas encaixar no cérebro as combinações dos nú- gas e promessas seduetoras. Os dois eram tei-
meros e as lições de histoiia eram coisas para mosos e então desci ás iameaças. Esse argumento
mim inattingiveis e que me pasmavam de ver al- decidiu-os.
guém realizal-as. Fomos. Quem nunca gazeou um dia de aula
O nosso professor não era mau de todo; era desconhece os encantos que se gozam longe da
antes bondoso. Fechava os olhos a muita traqui- disciplina e da massada do estudo, pensando rios
nagem e os ouvidos ás asneiras. Mas era homem, collegas que lá estão enfileirados nos bancos, dois
e como tal imperfeito; tinha- o fraco de ser in- a dois como bois na canga, a cabeça enterrada nos
flexível na taboada e na historia pátria, aos sab- livros e cadernos, emquanto o professor passeia
bados. Não perdoava. E menino vadio não ha- pela sala, de vara atraz das costas.
via que não tremesse deante dèlle, quando a vara Quando o sol escafdava e já cansados de andar
se erguia ameaçadora para cahir no mísero, asso- a esmo, dirigimo-nos para o rio. Despi-me num
biando no ar. abrir e fechar d'olhos e atirei-me á água com vo-
No caminho, um pedacíquito de ave que era só lúpia. Os dois irmãos seguiram meus movimen-
bico, sugava as flores de uma goiabeira; quedou, tos com alegria e a minha habilidade nos mer-
suspenso numa vibração de azas, vendo-me de gulhos arrebatava-os. Gritei ao Raul que guar-
cabeça baixa a remoer quantas vezes a vara me dasse a covardia para outra occasião e elle, de-
lamberia as costas e interpellou-me, sarcástico: pois de hesitar um instante, tirou as roupas e
— Bons dias, Antoninho, que tristeza é essa? metteu-se n'agua, não sem antes benzer-se três
Quantos foram os donatários ? Oito vezes seis ? vezes. íamos de uma margem á outra apostando
Noves fora? Cuidado com a vara. Parei, apa- quem primeiro chegaria, lutávamos onde a pro-
nhei uma pedra, mas elle voou, rindo-brejeira- fundidade não era muita, quem mais tempo fi-
mente. caria debaixo d'agua, deslembrados do Zezé que
Continuei a andar, encurtando o passo, em- continuava a roer a eterna codea de pão, inquieto,
quanto os meus dois companheiros mastigavam arrependido talvez de ter faltado á escola.
um pedaço de pão com afan. Nunca a escola Occorreu-me então urh pensamento mau, ao
me pareceu tão próxima. Implorei aos santos dar com elle assim. Cheguei-me a elle e convidei-o
uma doença justificadora, fosse ella uma eólica, a nadar.
que me apanhasse de repente e com a qual pu- — Não, meu pae ficará zangado si o souber e
desse voltar para casa. Mas a eólica não veiu. eu não sei nadar.
Tive algumas depois, quando dellas não precisava — O que tem isso ? E' muito fácil e eu te en-
e em oceasiões inopportunas. sinarei. Verás. Vamos, um pouco de coragem.
176 A NOVELLA SEMANAL

Turrou que não nadaria e foi precisa a ameaça mara e não ouvira syllaba da narração, agarrou
de jogal-o ao rio mesmo vestido para que elle se o braço do filho e foi dizendo, entre soluços e
decidisse a tirar a roupa, que dobrou e depoz na lagrimas:
margem com cuidado. Enfiou os pés n'agua me- — Como aconteceu isso' Dize, como? Não
drosamente e deixou-se estar alli perto, acoco- deviam estar a estas horas na escola? Foste tu
rado. Comecei a dirigir-lhe chufas, a zombar- que o levaste ao rio ?' Fala !
lhe do medo, até que, num assomo heróico, de E o Raul, de beiços lividos e olhares esgazea-
olhos fechados, como quem se precipita num abys- dos, gaguejou:
mo e não quer vel-o, o Zezé lançou-se ao meio — Não fui eu, pae... Juro... Foi o Antoninho...
do rio. O rio era fundo e o Zezé não tinha a que não quiz que fossemos á escola... Foi elle
noção mais rudimentar da arte natatoria. Deba- que empurrou o Zezé n'agua... E' delle a culpa...
teu-se alguns momentos desesperadamente, gritou Juro!...
por soccorro, agitou as mãos e afundou. Vendo-o O olhar de meu pae veiu direito a mim e va-
desapparecer, eu e o Raul puzemo-nos a berrar, rou-me de lado a lado. Era o meu anniversario;
quando seria mais conveniente fazer alguma ten- lembrei-me do velocípede e vio-o perdido. Era
tativa de salvamento. Mas o assombro em que preciso mentir, mentir com energia, com força,
ficámos tolhia-nos os movimentos e desatava-nos desassombradamente.
a lingua. Não trepidei: Avancei um passo e, entre indi-
Aos nossos berros afflictivos um homem — ha gnado e colérico, as faces afogueadas, apostro-
sempre um homem prompto para semelhantes sce- phei meu camarada:
nas que surge não sabemos de onde, nas novel- - E u 1? Tens a ousadia de dizer isso quando
las e na vida real, e mais vezes naquellas — que foste tu que me convidaste para nadar, por não
ia passando veiu lesto ver o que era; e, intei- saberes a taboada e a historia dos donatários?
rado do desastre, não perdeu um segundo e ar- Eu é que empurrei o Zezé? Grandíssimo men-
remessou-se ao rio, com tão desprendida coragem tiroso !
que não pude furtar-me á admiração. Mergulhou Os circuinstantes fitaram-me pasmados; vi ges-
e appareceu alguns metros adeante trazendo o tos approvadores. O pobre Raul baixou a ca-
Zezé num dos braços. beça e o sapateiro abateu-se na cama, aos pés do
Tudo isso fora rápido, fulminante, Vestimo- morto, soluçando amargamente.
nos ás carreiras e o homem, depois de indagar Meu pae, jjsensibilisado, tomou-me dâ mão e
da casa do Zezé, para lá fomos nós. O coração puxou-me para fora:
palpitava-me descompassadamente. Olhei para — Com que então, não foste tu ?
o Raul; tremia como um farrapo agitado pelo — Eu? Não! Juro por Nossa Senhora que
vento e uma pallidez immensa cobria-lhe o rosto. me ouve 1 I
Eu também devia estar assim, tremulo e pallido. E beijei os indicadores em cruz, para dar mais
Ao entrarmos na loja o sapateiro atirou a um expressão ao juramento.
canto a botina que estava a remendar, precipi- — Bem, vamos ver o velocípede. Hoje é o
tou-se para o homem e soltou um tão grande dia de teus annos. O promettido é devido.
urro que nos gelou a todos. Só então nos aper- D'ahi a pouco o Esteves, ainda commovido com
cebemos que o Zezé estava morto. O homem a nobilissima acção, descia o abençoado e sujo
enfiou pela casa a dentro e depositou o cadáver velocípede. Tomei-o nas mãos com veneração
nà primeira cama com que topou. Meu pae, que como a uma relíquia e fui arrastando-o para a
estava á janella., veiu ver do que se tratava. Jun- casa, jubiloso. Quiz estreal-o logo, mas meu pae
tou gente, a invasão foi completa. O generoso não consentiu.
salvador, sem que ninguém lh'o pedisse, começou 1
No dia seguinte, de manhã, levaram ao cemi-
a dizer como fora o caso, não sem fazer resaltar tério o desastrado Zezé. Alguns meninos da es-
a magnanimidade do acto praticado. O Esteves cola, acompanhados do professor, seguiram o
que era apaixonado dos lances dramáticos, excla- caixão azul, com ramalhetes de flores. Eu, esca-
mou com tremura na voz: ranchado no velocípede brilhante de muito o pu-
— Nobre procedimento ! Bella acção ! Bellis" lir, agitando galhardamente o boné, atroava a
sima! rua com meus gritos, sob o olhar baboso de meu
E foi d'ahi com o homem á loja. pae...
O sapateiro, sahindo do torpor em que seabys- j. RAMOS.
A NOVELLA SEMANAL 177

pas na costura. Vou deprçssa para casa; hoje, á


noite, ainda vamos ao Parque. O «Conde de
Luxemburgo'» sabes? E tu, sempre caseira?!!...
Teu marido ? — falou Margarida em catadupa.
— O Raul no trabalho. Não tarda. E' pre-
ciso ganhar a vida, o lar se povoa... Não temos
tempo para cuidar da rua: — demais, ella pouco
A E S M O L A me interessa. Acho mais'suavidade, maior en-
canto em cuidar dos meninos, no governo da
«Les belles mesdames, enfin, auront mon-
> trée Ieurs seins un péu partout, dans les sa- casa... Sempre fui assim.
lons ; tout le monde les aura vus, sauf Ieurs — E's urna exquisitona! Também, tenho um
1
enfantsi. «menage», também tenho filhos, mas isto não
BKIBCX.
importa na renuncia dos meus gozos. Para que
;
Na saleta de costura, toda caiada e fresca, ja- servem as criadas ? Temol-as, felizmente, uma
íèlla e porta abertas para o copiar, embora cinco para cada creança^ Havia dp ter graça que por
horas soadas, querendo escurecer, Regina, cur- ser mãe deixasse de ouvir hoje o duetto, dos
vada sobre o collo, costurava uma camisolas de beijos...
creança. Ao pé, montada sobre gavetinhãs de — Tens um gênio antagônico ao meu, mas
madeira clara, a machina de costura, na sua nic- nem por isto deixamos de ser as mesmas amigas.
lcelagem bem cuidada, espelhante, mostrava sob — Sim, porque cada uma age a seu modo.
a lançadeira um trabalho interrompido. Quer me parecer que andas errada, esperdiçando
, Do quintal vinha um perfume suave de rosas a tua mocidade, a tua vida, numa clausura vo-
abertas ao tepido esmorecer da tarde, de envolta luntária. Nem vás ás lojas...
com o tropel de pequenitos a correrem, ora na Regina sorriu-se com bondade, numa expres-
.calçada do terraço, ora na areia fofa do jardim. são calma de beatitude: A's lojas? Raul com-
Emquanto o marido não chegava, ella, se dis- pra-me o que quero, e si é força minha pre-
trahia em fazer uns pontos mais, accrescentando sença, vamos juntos. Aliás, tu nem sempre sahes
a tarefa, porque «ós meninos andam quasi sem á rua por necessidade: — é o chie, é por ser
roupa», dizia sempre, com extremos de carinho moda, perdendo algumas horas abaixo e acima,
maternal. Escurecia. nas calçadas da rua. Nova, fazendo jús a uma
l menção na chronicas dos jofnaès. Não gosto
— Maria! anda accender esta lâmpada... . '
A criada, uma rapariguinha aceiada,, geitosa, disso. Tenho outros deveres; alguns á hora fixa.
trouxe uma cadeira de junco, trepou-se e deu luz Olha, ahi vem um...
á lâmpada:— um referver forte, um cheiro de A criada, de novo entrando, trazia nos braços,
sapoti maduro e logo depois o álcool gazeificado a choramingar, um petiz de alguns mezes, todo
encheu o globo de uma çjaridade doce, leitosa. enfeixado numa camisolinha de rendas, garrida
A campainha do portão vibrou; passos se ou- de fitas ; Regina acolhe^o, amoravel, mostra-o a
viram lá fora. Margarida que o amima com frieza, desabotôa o
— Deve ser o Raul..'. casaco, desaninha do talho da camisa o seio nú,
Não era elle ainda. Margarida, companheira redondo e chega-o á bocca morna do filho.
de infância, entrava, a sorrir numa elegância mun- A amiga contempla-a com um risozinho de
dana com excessos de modas, cingida em tafetá desdém:
e gaze, collo e braços diaphanamente nús, saia — Olha, Regina. Dos deveres da mulher esse
muito avançada dos aríelhos para melhor mos- é o mais prosaico, o mais prescindível... Rebaixa-
trar as botinas caras, bizarras, de pellica-i intei- nos a animaes. Nunca amamentei os meus. Acho
riça. As faces eram duas telas bem trabalhadas, desgracioso, incommodo, horrível! Envelhece-
os olhos realçados pelos supercilios bistrados, a nos cedo, rouba-nos a tumidez dos seios, a per-
cabelleira sob o chapéo de velludo, extranha- feição dos contornos. Num baile, decótada...
mente basta para quem, em casa, tinha os ca- — Não sabes ainda é ser mãe! Preferes o
bellos tão ralos... luxo, as exigências sociaes, os prazeres. Nunca
Numa olhadellà furtiva, Regina notou todo o provaste o sacrifício de um desejo, pelo bem da
exagero da amiga. prole. Ainda não conheceste, — oh! Deus ' t'o
— Um instante para te ver; não te interrom- preserve... — as agruras da vigília na cabeceira
178 A NOVELLA SEMANAL

de um filhinho doente, a gemer... Ha dias li sos assim são urgentes. Com certeza, intestinos,
num jornal a gente se sente tão feliz quando leites azedos, mamadeiras sujas...
vê as crianças alegres L. E' uma verdade... Regina já entrouxava os cabellos, procurava
Margarida escutava, contrafeita, as phrases sim- nos gavetões roupa branca, despira o roupão, a
ples e sinceras da amiga. Por fim atalhou: — trocar as vestes com pressa.
Paciência, minha cara. Não sou tão má como Na casa da amiga ia a lufa-Iufa que precede as
pensas. Prefiro não saborear tudo isto que af- desgraças. A amiga pehdurou-se-lhe ao pescoço,
firmas de bom, a viver aprisionada em casa, a chorar, a recriminar-se:
atraz de fraldas, desnudando as pomas a cada — Tinhas razão; não soube ser mãe. O meu
berreiro dos meninos... Oswaldo! Tão bonitinho: não parecia ter dez
Levanta-se da cadeira, retoma as luvas, uns mezes ! Soffro tanto ! Foi aquella desastrada da
embrulhinhos, a sombrinha: — Adeusinho, Re- Josephina que se esqueceu de referver o leite.
gina. Lembranças ao Raul. Apparece uma noite, Fez mal. Anda vel-o.
avisa-me para não sahir... Vai á vontade; lá po- Na cama de casa! a criança tinha estrecimentos
des dar de mamar ao teu pimpolho... nervosos, soltava gritinhos espaçados. O apo-
Margarida sae, rindo-se... Regina leva-a ao por- sento, meio escuro, cheirava a remédio: — o me-
tão. Em caminho os filhos, três mais crescidos, dico, vindo de novo, de pé, olhava a agitação do
se lhe enrodilham nas saias, acanhados da visita, doentinho, pensativo, abstracto.
muito limpinhos, corados, flores que dão maior — Uma gastfo-enterite, phenomenos convul-
viço aos rosaes, louros cysnes das piscinas dos sos... E' preciso já e já, outra alimentação...
olhos meigos da mãe devotada. E emquanto a — Dr... aqui está a minha amiga, de quem lhe
amiga se afastava, ella deixou-se ficar no portão, falara esta noite. Vem me fazer a esmola de dar»
entre as creanças, rindo com ellas, ralhando com o seu leite ao menino.
doçura, á espera da marido que tardava. O esculapio volveu-se, saudou Regina:
— Muito bem. A senhora, melhor do que
11.
tudo, pode fazer pelo doente. Chegou agora?
Acordara cedo, como de costume; abrira a Descance um pouco e tente dai-lhe de mamar...
casa, fora soltar as gallinhas, dera-lhes milho aos Eu passarei aqui de tarde.
punhados, andara pelo quintal apanhando uns cajás Regina acompanhando-o á porta, ouviu delle a
cahidos durante a noite, guardando-os para os sentença: Caso serio, muito difficil!... Ha phe-
meninos. nomenos claros de meningite...
Quando, de toalha ao braço, ia ao banheiro,
Tremula recompoz a face para rever a amiga,
um mulato bateu no portão. Era uma carta,
no quarto. A criancinha contorcia-se, gritava, esti-
uma carta de d. Margarida — dissera o portador.
rava as pernas, cerrava os punhos, delirava. A
Alli mesmo, abriu a enveloppe roxa, aromati-
febre intensa. Descançada, Regina sentou-se a
sada e, num bizarro rectangulo de velino, len,
uma poltrona e Margarida trouxe-lhe, embrulhado,
escriptas numa tremura evidente, as phrases ner-
o filho.
vosas da amiga: <Que noite de agonias, Regina!
Do peito desnudo, apojado, escorria uni fio de
Ah! agora é que me sinto ser mãe... O meu
seiva: — a criança, a principio, sugou uns golos,
pequenito, Oswaldo, está mal, muito mal. Encon-
depois recusou, inteiriçou-se, reagiu. Deitaram-
trámol-o assim de volta do theatro. Estou louca
n'a de novo.
de dor. O medico diz ser precizo alimental-o
com leite humano. Os meus peitos já estão seccos. —- Oh ! meu Deus! Que castigo ! Está tudo
Lembrei-me de ti: — queres me fazer esta es- perdido! Elle já não quer mamar... Meu filhi-
mola?» nho morre ! Por culpa minha...
Regina chorava, lendo. Deu um recado ao ho- Atirava-se sobre o leito, beijava a testa quente
mem e foi ter com o marido que, no quarto bar- do doentinho, chorava, torci.", as mãos. O ma-
beava-se em frente cio espelho. rido, Paulo, que viera da pharmacia, tentava acal-
— Olha Raul, recebi esta' carta de Margarida. mal-a. Regina, a um canto resava, fazia uma pro-
O filhinho delia está mal. Lê... messa, enxugava os olhos.
O rapaz passou a vista na carta, coutrahindo De tarde, o medico já não deu esperanças ao
os sobrolhos: pae. E á noite, a meningite violenta dominara
— Você deve ir lugo, minha filha. Esses ca- de todo. Depois da excitação dolorosa, viera a
A NOVELLA SEMANAL 179

coma, ligeiro estremecimento das perninhas, dos A gente grande debitava-lhe essa tqlerancia na
braços. conta corrente da surdez.
Pela madrugada, quando Margarida exhausta, Maldade, pura maldade. Apesar de Lamartine,
cochilava ao pé da cama, e o marido, em silen- do chá verde, da surdez, dos óculos, da gordura
cio, mettera-se numa espreguiçadeira, Regina co- e da velhice, tia Elisa era um anjo.
nheceu os derradeiros anceios da criança. Tia Elisa não se casara, nem se podia conce-
Uma vela tremebrilhou... Paulo veio de joelhos, ber que tia Elisa se houvesse^ casado algum dia.
beijar os pésinhos a esfriarem, chorando. Ao res- Só era conceptivel sob uma forma e em um es-
paldo da cama à velha ama do casal, enterrara tado — tia de nós todos, sobrinhos e não sobrinhos.
a cabeça "entre os braços cruzados. Mas, além de nós, tia Elisa tinha mais um so-
Gallos cocoricavam nos quintaes; um vento brinho, que nos enciumava.
forte — o terral — farfalhava as arvores; um Era seu Antoninho, um pobre velhote todo
cão uivava longe, grillos trillavam por detraz branco, tolhido das pernas, para quem ella man-
de uma commoda no quarto visinho... dara fabricar uma carriola de três rodas, entre
"Margarida despertou, ergueu-se sobresaltada, poltrona e tricyclo, que, bem ou mal, lhe per-
olhou a scena, adivinhou. Quiz lançar-se'sobre o mittia locomover-se, transportar-se de um logar
corpo sem vida do filho, mas as forças fugiram, para outro.
um grito hysterico resoou e-ellacahiu, de costas, Uma espécie de habeas-corpus rodante contra
no chão. as arbitrariedades do rheumatismo . . .
Regina apagou a vela, já inútil, e accorreu com E seu Antoninho era o santo Antoninho de
um vidro de água de Colônia. Abriu o casaco tia Elisa. Tocassem-lhe e tia Elisa . . .
. da amiga, [repuxou a camisa, descobriu o eólio II Perdão! Nunca nenhum de nós lhe tocou; nem
para friccional-o: — os seios redondos, alvos, soube o que faria tia Elisa. O que fazíamos eram
türgidos, alteiaram-se, roseolas dos bicos erectos queixas.
— seios lindos de mulher, seios estéreis de mãe... — Que tia Elisa gostava mais de seu Antoni-
MARIO SETTE. nho que de nós; que tia Elisa tinha mandado
fazer o'carrinho para <t\\M que, de todos os do-
ces que fazia, os melháfes: eram para seu An-
toninho . . .
E a tudo respondia tia Elisa, com a sua voz
macia, como si fosse de creme:
— Meninos, pois vocês não vêm que elle é um
entrevadinho ? »
Um de nós — eu quiçá — um dia, num ac-
cesso de ciúme, sapateando, gritou:
TIA ELISA — Tia Elisa, por que é que a senhora não casa
com seu Antoninho?
Em casajtodos nós adorávamos tia Elisa, sobri- Tia Elisa não respondeu; entrou para o quarto
nhos e não sobrinhos. e fechou-se., Mas, ao jantar, tinha, por detraz
E tia Elisa, realmente, era adorável. E que dos óculos, os olhos empapuçados e vermelhos.
adoráveis doces ella sabia fazer! E como, farta, Essa tarde, não leu Graziella, nem quiz saber
prodigamente, os distribuía a nós iodos, sobrinhos do chá verde...
e não sobrinhos, que todos éramos sobrinhos delia. Um dia, tia Elisa amanheceu morta. Morrera
Tia Elisa era velha; tia Elisa era gorda; tinha docemente, suave, maciamente, como tinha vivido.
os cabellos brancos e usava óculos; . era surda e Nós não acreditávamos que ella tivesse morrido:
adorava o chá verde; acima do chá verde, só os — parecia dormir, parecia ainda estar dormindo,
romances sentimentaes, Lamartine á frente. quando a carriola do seu Antoninho entrou no
Além de tudo isso, que eram as más qualida- pateo e elle desatou em pranto, pedindo, suppli-
des, tia Elisa tinha uma porção de qualidades cando que o levassem, que o- carregassem para
boas: era terna, carinhosa, esmoler' e de uma ver á sua Elisa...
egualdade de gênio que nem um terremoto al- Elle e a nossa tia Elisa, trinta, quarenta annos
teraria, ainda quando esse terremoto fizesse mais antes, haviam sido namorados, noivos . . .
barulho que os nossos Zé-Pereiras. JULIO SCHEIBEL
ISO A NOVELLA SEMANAL

nesta luminosa Sebastianopolis. Serei assim <o


amigo inesquecível que abre, com o seu prema-
turo passamento, uma lacuna imprehenchivcl em
nosso meio culto». E' que o commentario com-
pungido-dos jornaes sobre os moços suicidas, com
as suas phrases repassadas de um profundo sen-
timento de piedade e de sympathia, exerceram
A CARTA DO SUICIDA sempre sobre mim um irresistível encanto.
Caríssimo Alfredo Ajunta a isso a probabilidade ou artes a cer-
teza de que a formosa franceza do High-life de-
Hoje, ás cinco horas da manhã, suicido-me. clarará tristemente que minha morte lhe peza
Has-de necessariamente querer saber das causas, sobre a consciência, porque foi da sua repulsa aos
dos horríveis motivos que me levam a esse acto meus desejos que brotou a idéa do meu suicídio,
de desespero e de revolta, acto que vem soff rendo pensa nas lagrimas que derramará e no confran-
a abominação dos séculos, previsto até pelo Có- gimento de sua alma como responsável moral de
digo Penal: meu desapparecimento e terás mais urn motivo
Não baterás a cabeça á procura do enygma. bem forte de minha rematada loucura. Dirás que
Basta-te ler o que vem abaixo : é um gozo posthumo. Não é, é apenas uma vo-
Hoje, mais ou menos ás três horas da madru- lúpia prelibada.
gada, sahia eu. do Hih-life, depois de haver jo- Ha mais ainda, ha a consoladora certeza de que
gado e perdido toda a minha primeira mesada, o a elegante mignonne da rua São Christovão me
que implicava a perda de uma linda marselhesa, a contará como mais um sacrificado ao altar de sua-
quem vinha fazendo a corte ha uma boa porção fulgurante belleza. Tu conhecel-a bem melhor que
de dias. eu para garantir a justeza de meu asserto. E'
Como gosto extraordinariamente do mar, em verdade que ainda aute-hontem, no cinema Ave-
especial desse «sonho inattingivel de poeta» que nida, o nosso flirt chamara a attenção dos bons
é a bahia de Guanabara, e como houvesse lua, burgueses que vão ás casas cinematographicas na
fui andando pela praia do Flamengo em direcção mais santa e mais pura intenção de ver as fitas.
á minha casa. Apoiando-me. por acaso, á amurada Mas que lhe custará, hoje á tarde, apresentar-se
do cães para ver melhor uma incidência de raios á sua mais intima amiga e com as faces afoguea-
lunares sobre a água viva e irrequieta do mar, das de carmim, os cabellos desgrenhados num
que produzia uma extranha e deliciosa refulgencia, estudado negligé, declarar que a sua alma não
não sei porque, assaltou-me de improviso a idéa encontra paz, ameaçar também suicidar-se, porque
de dar hoje mesmo cabo da vida. Achei, a prin- dirá — ella também me amava e si me repellia
cipio, o pensamento curioso e faceto, por não lhe era apenas porque não tinha a plena convicção
achar ligação nenhuma com o espectaculo magní- do meu amor. Quizera humilhar-me c sahira-lhe
fico da bahia. E emquanto me punha a andar, já cara a experiência.
esquecido do mar, comecei a meditar sobre essa Ora, bem sabes, meu velho Alfredo, que da in-
grande «cobardL tima amiga ao grande publico leitor de novidades
Por uma natural associação de idéas, lembrei- só ha uma questão de... minutos.
me do suicídio de Henrique, aquelle nosso sau- Depois minha família far-me-á funeraes esplen-
doso e bizarro amigo, tão amigo do paradoxo e didos, riquíssimos. Deixo as minhas disposições
do sofisma que, num dia de duvida sobre a exis- para que haja luxo, muito luxo e com muitos
tência de Deus, >)oz termo á vida quasi heroica- actos religiosos, os que ferem a imaginarão sen-
mente. Lembras-te do escândalo levantado em sível das mulheres e prolongam a duração de
torno daquelle caso doloroso? Pois,o espaliiafato minha lembrança.
da imprensa pareceu-me digno remate de um es- Depois virão as missas pomposas e solemnes,
pirito saturado de snobismo qual o meu e que com catafalco e luzes, no sétimo, no trigesimo
bem me poderia elevar á altura do acontecimento dia e e;« todos os anuiversarios de meu passa-
máximo da semana. Considera, meu amigo : mento. Depois o mausoléo custoso, encommen-
Sou um rapaz elegante, demasiado conhecido dado especialmente na Lu topa e emfim de vez
pela alta sociedade do Rio, relacionado com to- em quando, a recordação grata e necrologica de
das as boas e illustres famílias que marcam o tom, algum amigo. Conto para isso comtigo...
A NOVELLA SEMANAL

Conheces-me ha muito tempo, Alfredo, para sa- não analysa com esta minha calma que é quasi
ber que isso que ahi fica é a mais pura expressão cynica. Demais o covarde despreza e maldiz a
da verdade. vida. Eu não. Agradeço-lhe os momentos de ven-
Suicido-rne porque acho chie e de muito bom tura e de delicia — e foram tantos ! — que me
tom esse acto .que todos, numa instinetiva solida- proporcionou.
riedade de rebanho, classificam de loucura ou de E si o meU suicídio fosse para a redempção de
covardia. um grande peccado ou para a redempção pos-
Desespero de minha parte não o ha, não o thuma de toda a minha vida — que cousas en-
pode haver. O perder a mesada era para mim um graçadas sabe inventar a dialectica humana! — não
facto vulgarissimo. Meu pae que é rico e largo seria com este meu ar jovial que me encaminha-
de mãos, mandava-me, ás vezes quatro e cinco ria para a grande treva. Os sacrifícios reflectidos
mesadas. Vês dahi que' a perda da francesinha era fazem-se de cenho carregado !
uma simples questão de dias... Suicido-me com 'uma pistola Browning, typo
O amor tàmbem ,não é a causa. Nunca me li- moderno, com o cabo de prata todo cinzelado.
guei a mulher nenhuma, porque não achava nes- Numa das faces ha uma allegoria contradictoria:
sas conjunções nada que as nobiliíasse. Achava-as representa Hebe distribuindo o vinho aos Deuses/
sujas. no Olympo...
Pelas moças de hoje, também não poderia apai- Escolhi, a pistola por achal-a a mais digna ar-
xonar-me. Ha uma falta tamanha de aristocracia ma com que eu me podia eliminar do mundo sem
e de linha que, para mim, uma paixão por qual- que a minha physionomia soffra alteração. Quero
quer das moças que conheci seria a amostra de que me encontrem barbeado, penteado, empoado,
amollecimento de meu cérebro e a prova da de- os lineamentos calmos e firmes, deitado direito e
cadência completa de minha faculdade de analyse. placidamente no meu divan, sorridente como quem
As minhas, galanterias á mignonne da rua São dorme um somno longo povoado de sonhos
Christovão nunca foram alem da amabilidade que- bellos.
me impunha o código de rapaz da moda. Porque o Não quero que haja uma contracção, uma. só,
amor é, para mim, ainda neste momento, a au- a quebrar a linha de fidalga distineção que me
sência dessa instinetiva superioridade da razão elevou tanto na vida.
sobre a carne, que deve distinguir um homem de No meio de tanta alegria, só levo uma pequena
um bruto, superioridade que sempre quiz ter e magua: é a de não poder ler os artigos dos jor-
pude manter em. todos os actos da vida. naes sobre o meu «extranho suicídio», as noticias
Seria então, desespero pelo desmoronar de al- sobre o luxo do enterro, sobre a concorrência
guma linda esperança ? das missas e os discursos fúnebres ; não poder ver
Pelo que disse acima, nunca as tive, desde que os faniquitos da mignonne nem as lagrimas co-
o homem põe a volúpia e mesmo a razão de ser piosas da encantadora franceza . . . Seria meu ul-
da vida no amor. timo gozo.
Desespero da vida? Tampouco. Nunca fiz idéa Até pelo reino dos mortos.
nenhuma optimista on pessimista e sempre pro- Do teu
curei viver sem saber como nem porque. Diver-, Sylvio
tia-me, achava-lhe sabor, graça e encanto, vivi. V 4. *

Agora acho graça em morrer. Vou com os


Quando Alfredo, meia hora mais tarde, chegou'
demais.
á casa do suicida, encontrou-o deitado, rígido e
Nunca tive religião nenhuma porque nunca um
direito, e, como elle mesmo dissera, barbeado,
sentimento mau brotou em minha alma, como nella
penteado, enipoado, os lineamentos calmos e fir-
não. brotaria nunca um sentimento bom. E isto pelo
mes, e um fio de sangue vincando-lhe o rosto
simples facto de que nunca pude fazer a abstra- alvo, levemente azulado "pela barba. Nos lábios, le-
cção necessária e perceber qual a differença que vemente entreabertos, parecia bailar, mobil e in-
havia entre uns e outros. Para mim vinham da quieto, um sorriso indizivel de satisfação, um sor-
mesma argilla. riso diabólico dé triumpho e sarcasmo . . .
Não ha covardia também em meu acto. Co-
SUD MENNUCCI
varde porque? Um covarde não ri deante da morte.
NOVELLA SEMANAL

nome. Vê-lo, porém, era a primeira viajasse pelo nocturno, ohegxiei ao Rio
vez. Lancei então um prolongado e do mauha, seguindo direotaments pa-
Avíd&sókecdôtícà curioso olhar, analysando-o minu-
ciosamente da cabeça aos pés. Era
ra o Hotel da Lapa, onde se achava
hospedado o fino prosador das «Letras
também a primeira vez que eu ob- floridas ».
servava de perto um grande homem.
E Amadeu j á bem que o era: grande 0 porteiro, que recebera do poeta,
na figura e grande no talento. medroso da invasão dos jornalistas
cariocas, ordens severas e terminau-
Com a reincidência dos nossos en- tes de não deixar entrar quem quei'
AMADEU AMARAL contros, principiamo-nós a cumpri- que fosse sem prévio aviso, barrou
mentar; mais tarde, depois da retira- com o suado corpanzil, a porta do
J á lá vai um punhado de tempo da do meu antigo companheiro de ascensor que devera levar-me ao quar-
que vi, pela primeira vez, o poeta imprensa, ficamos, Amadeu Amaral to de Amadeu, dizendo não estar o
das «Espumas». e eu, companheiros de caminhada, meu amigo em casa aquelle momento...
Trabalhava eu então no «Jornal do porquanto o burilador da «Nevoa» Desconfiado das palavras do oérberol
Commercio» de S. Paulo até três e também residia no alto da Consolação. hoteleiro, declarei que era um irmão]
meia ou quatro da manhan, hora essa A primeira vez que fizemos a via- i!o poeta, e porisso sentia muito nao"
em que se encerrava também o ex- gem juntos, foi, recordo-me bem, encontrá-lo.
pediente do «O Estado de S. Paulo-, numa escura madrugada de intenso
que era secretariado por Amadeu frio e rascante garoa. — Ah I então é outra coisa ! Se é
Amaral. da família, pode subir que elle está
Viamo-nos sempre no Café Acade- Achava-se no café, agoia só (Hora- em casa.
*mico:>, nesse tempo ponto obrigatório cio <ie Andrade, o meu antigo com- Encontrei-o ainda deitado, a, ler os*
cie encontro de todo o pessoal da im- panheiro e amigo, já havia deixado jornaes da m a n h ã .
prensa matutina de S. Paulo, por de ser o companheiro para continuar Palestramos alguns instantes, eoii-
ser uma das pouquíssimas casas que sendo unicamente o velho amigo J, vidando-me elle depois para almoçai
se conservavam abertas durante toda quando entrou o poeta, todo respin- em sua companhia, « em outra parte
a noite. gado de chuvisqueiro, e com o guar- que não o hotéis — aceresoenton —';
As duas salas do café que, á ex- da-chuva também a escorrer, depen- pois queria fugir do bando de photn«'>
eepçSo dos sabbados, desde meia noi- durado de um dos braços. E após graphos e jornalistas que o agoniavam',
te se conservavam quasi vasias, só beber, aos golinhos, meio cálice de havia já dois dias.
com um ou outro noctambulo, a essa <cognac3, metteu-se novamente pela — Imagine você,— ajuntou—quo já
hora enchiam-se de animação com a neblina a dentro, em direcção ao via- soffri o snpplicio da photographiu,
chegada de redactores, revisores, em- ducto do Chá. uma centona de vezes I...
fim todo o pessoal dos jornaes que Dois minutos depois, Bahia eu tam- No dia seguinte, 14 de novembro,
alli ia, após o trabalho, tomar sua bém pelo mesmo caminho e, ao tomar pela manha, no dia em que se roali- '
«média com pão quente*, ou o seu a rua Xavier de Toledo, avistei o zava a recepção na Academia, ao pro-
golezinho de álcool. vulto inconfundível de Amadeu, que curá-lo de novo, encontrei no seu
se sumia ao longe, na primeira curva quarto, commodamente montado em
Todos os dias, ou melhor, todas as da rua.
madrugadas, conforme o nosso velho uma cadeira, a palestrar, o esnriptor
Estuguei o passo e, quando falta-, Alberto de Varia, com o qual almo-
habito, depois de terminado o serviço, vam uns vinte metros para alcança-lo,
para lá eu me dirigia juntamente çamos.
devido ao ruido do meu pisar, pois A' tardo, Amadeu convidoti-me 11
com Horacio de Andrade, meu inse- éramos sós na rua, elle voltou-se, pa-
Xjaravel amigo, afim de, com café com rou á minha espera, falando-me ao acompanhá-lo ao barbeiro, onde i»
«mistura», si havia fome, ou com uma approximar-me: • por o rosto em condições do entrar
farta dose de vinho do porto si fazia para a Academia».
frio, ou com as duas cousas juntas, — Aproveite o guarda-chuva, que Ahi pudemos então assistir á mais
o que era mais commum, nos munir- o tempo está de mau humor ! . . interessante desfiripeão que se pode
mos de coragem suffieiente para af- Dahi por diante, faziamos a nossa imaginar, de uma festa, relatada ft
frontar a gélida garoa da madrugada, jornada sempre juntos. Corno eu aro dos fígaros por um froguez qnn
que nos lategava durante a diária sahisse mais cedo, esperava-o no café. se harbeava, escarrapachado n'outra
jornada pela rua da Consolação, ern No caminho conversávamos sobre as- cadeira.
busca da ancio-aunente desejada cha- sumptos òifferontes, salientando-se a
naan dos nossos leitos, pura cujo al- literatura que tinha preferencia. Descreviaelleum convescote em qiw
cance fazíamos todo o longo caminho E começou a nossa amizade. tomara parte, findo- o qual escála/a,
a pé pela falta de bondes a essa hora. juntamente com alguns companhei-
Tempos depois, contra a espectativa ros, uma janella, para roubar um
Amiude, depois de haver tomado geral, devido unicamente á grande frango assado.
logar sempre na mesma mesinha, modéstia de que è dono, veiu a sua
viamos, por uma das portas da rua eleição para a Academia do Letras, — Vocês não imaginam, rapazes, o
Direita, entrar a figura calma e en- na vaga de Olavo Bilac. que fizemos ! dizia, o orador em altas
capotada de Amadeu Amaral que ge- vozes: pulámos a janella, qua era
ralmente só, behia o seu café, sabia As nossas palestras então eram ge- alta á «bessa», surripiámos o fransfo
e tomava a direcção do Viaducto do ralmonte sobre o grande poeta e o e, nisto vem entrando uma garota
Chá, sempre com aquelle geito muito seu discurso de posse, no qual estava que nos pega com a bocca na botija t;!
seu, como si estivera a fazer versos trabalhando, e que veio constituir Foi uma corrida gerai, Jiu então, .
no prop-io caminhar, segundo a ex- depois de acabado um dos mais per- agarrei o frango assado (pue estava'
pressão de Roberto Moreira. feitos estudos, sobre a personalida- •<espiando3 e cheio de manteiga, e ]al-
de do excelso cantor das estrellas. iei assim ! (e o homem, deixando a
Quando, pela primeira vez. logo Corria o mez de outubro. Uma noi- poltrona em que se barbeava, com a
depois de entrar eu para a imprensa, te, communicou-me Amadeu Amaral cara semi-ensahoada, trepou por uma
vi entrar, pelo café a dentro, aquella a sua próxima partida para o Rio, cadeira do salão o, com as mãos aber-
figura alta que sohresaia de todas afim de ser empossado na cadeira de tas á parede, mostrava como descer»
as outras, interroguei intrigado, mos- Bilac. da alta janella, a segurar o frango>'
trando-o com os olhos a Horacio de Efíecti vãmente, passados dias, se- roubado).
Andrade : guia, elle para a capital da Republica Quando sahimos da barbearift, disw
— Quem é ? Eu, por minha vez, resolvi também o meu companheiro ainda a rir :
— Nao conhece? E Amadeu Amaral. até lá ir, afim de assistir-lhe aposse. A sessão da Academia será mW* .
Conhecia-o sim, e muito, mas só de Parti pouco tempo depois, Como
A NOVELLA SEMANAL 183

Despedímo-nos no ponto dos bon- ie bonheur de vivre. On ne peut pas


des. Eu ia ao centro da cidade, ha- s'y soustraire, en voyant Ia magnifi-
vendolhe antes promettido passar na cence de- 1'univers, en reoontrant Ia
casa do acadêmico João Ribeiro, com bonté, en éprouvant 1'amour, en se
o fim de buscar una espadim que de- sentant caressé par Ia dotfcenr a m -
vera servir para a cerimonia, á noite. biente des choses. C e s t bon de vivre,
De facto, regressando ao hotel, fui quand on croit, quand on espere,
ao Flamengo, na residência do conhe- quand on fait bien . . .
cido grammatico, onde recebi um fi- •^ (Anatole France).
jnlssimo espadim, pertencente, se me P e n s a m e n t o s de RUY
iivao engano, aó Corpo Diplomático.,
motivo pelo qual se viam gravadas no
manubrio as iniciaes C. D.
BARBOSA Só as más causas dependerão do
Como ignorasse o significado das (Collectanea de Mario de Lima Barbosa) talento dos grandes pregadores. As
duas letras, já no hotel, interroguei boas vingam pela sua santidade, que
Amadeu Amaral, indicando as mes- Emquanto Deus nos dê um resto basta apparecer, para ser reconheci-
mas : de alento, não ha que desesperar da da, como" a deusa antiga, revelada na
sorte do bem. A injustiça pôde irri- majestade silenciosa do seu andar.,
— Que quererá dizer isto aqui? «Et vera incessesu patuit dea».
Este espadim não pertence á Acade- tar-se, porque é precária. A verdade,
mia ? não se impacienta, porque é eterna. (Guerra Enropéa, Conf. Petropolis
0 meu amigo que, á frente do es- Quando praticamos uma acção boa - 1917).
pelho luotava para abotoar u m reni- não sabemos se é para hoje, ou p a r a
tente collarinho, volveu o rosto pára quando. O caso é que os seus frue-
o objeeto, com os dedos firmes, ao bo- tos podem ser tardios, mas, são cer- Os pleitos que encheram Athenas
tão da camisa, mirou por "alguns ins- tos. Uns plantam a semente da oouve e Roma coiti as orações de Demos-
tantes o cabo do espadim e, com voz para o prato de amanhã, outros a se- thenes e Cicero demandavam, para
sumida, gemeu, v.oítando-se ao penoso" mente do carvalho para o abrigo do sobreviver ao seu tempo, o gênio da-
trabalho de pôr o collarinho no res- futuro. Aquelles cavam para si mes- quelles monstros da palavra. O man-
pectivo lugar: mos. Estes lavram para o seu paiz, dato que trouxe o Christo à terra, e
para a felicidade dos seus descenden- o pregou na cruz, resplandece em
— Pois então ? Gademia D'letras !... tes, para o beneficio do gênero hu- qualquer, boca, donde saia o Evan-
Quando o poeta vestia a volumosa mano. gelho na pureza da sua humildade e
oasaca da farda acadêmica, ao veri- (Contestação da Eleição Presiden- na innocencia da sua doç ira. A tri- .
ficar o peso e a grossúra do unifor- cial — 1910). buna humana só se abraza com as
me, que devera trazer durante grande inspirações do gênio. Mas o verbo
parte da quentissima noite que fazia, de Deus arraia de luz o mais obs-
suspirou desconsoladamente : curo canto do mundo, onde se le-
Só o bem, neste mundo, é durável,
— Quantas provações para se pas- e o bem, politicamente, é todo justi- vante uma consciência christã, apos-
sar a uma immortalidáde> interina !... ça e liberdade, formulas soberanas da tolando a lei de Jesus contra a lei de
autoridade e do direito, da intelligen- Caim.
Ninguém ignora o brilhantismo de cia e do progresso.
que se revestiu a posse de Amadeu (Guerra Européa. Conf. Petropolis
Amaral. Os jornaes do Rio e de Sao (Conf. Bahia, 24 de Maio, 1897). - 1917).
Paulo incumbiram-se de divulgal-o,
bem como os discursos do novo aca-
dêmico e de Magalhães Azeredo, o A grande obra dos bemfeitores pre- Todos os sentimentos * puros obede-
orador 'official da Academia. destinados está na illimitada sobrevi-' cem á lei da verdade. Onde começa a
Finalizada a sessão solemne, dirigi- vencia delia aos seus autores, que do mentira, principia a infidelidade, se
mo-nos ao hotel, afim do poeta mu- seu próprio trespasse revivem todos abre o caminho da traição.
dar de roupa,' seguindo depois para o os dias nos fructos do bem, que plan- (Conf. Juiz de Fora — Eev. 1919).
centro da cidade, para tomarmos, eu taram, na corrente de bênçãos, que
o primeiro alimento do dia, pois pas- deixaram aberta e borbotante- São
sava de meia noite, e Amadeu Ama- fontes de bondade, em que se desen- Nada expõe tanto uma nação a ca-
ral o primeiro, após a sua entrada na tranha a vida ephemera dos mortaes lamidades irreparáveis, oomo a in-
immórtalidade immortalizados, para a continuarem, consciencia das suas chagas e a pre-
atravez de séculos e séculos, em cau- sumpção cia sua sufficiencia, devidas
Dirigimo-nos á «Brahma», onde fi- daes cie benevolência e caridade. ao atabafamento systematico da ver-
cámos em palestra por varias horas, (Oswaldo Cruz). dade.
em companhia de alguns amigos que (Conf. Juiz de Fora — 1.910).
chegaram dejois, entre elles, Alberto
de Faria, G-oulart de Andrade, Julio Só ha uma gloria verdadeiramente
de Mesquita Filho, Mauro Pacheco e digna deste nome : é a de ser bom; e
outros. ',-. essa nao conhece a soberba nem a As decepções em que aecordam os
A' sahida, despedimo-nos dos com- fatuidade. povos enfatuados e cegos são inenar-
panheiros, rumando, os dois, para o (Disc. Collegio Anehieta). ráveis, i
ponto do bonde, que levou um» eter- (Conf. Juiz de Fora — 1910). ,
nidade a chegar. Como estivéssemos < **
fatigados de estar de pé, á espera cio
carro que nos conduzisse ao hotel, O. mal nunca venceu o bem, senão
lamentei ao meu companheiro a usurpando a este o necessário para o O principio dos princípios é o res l
falta de um banco alli pelos arredo- illudir, o arredar, a adormecer, o peito cia consciência, o amor ria ver-
res, em que pudéssemos descançar. fraudar, o substituir, o vencer. Se a dade.
injustiça, a mentira, o egoísmo, &ao- fConf. Juiz de Fora — 1910).
— Você quer saber de uma coisa ? biça, a rapacidade, a grosseria d al-
respondeu-me o poeta. Contentemo- ma, a baixeza moral, a inveja, o ran-
nos com o que ha. E unindo a acçao cor, a vingança, a traição, appareces- Os antigos enxergavam no menti-
ás palavras, sentou-se elle na calçada sem nus e desnudos aos olhos do in- roso o mais vil dos tarados moTaes.
da rua, com os pés na sargeta. divíduo, aos olhos do povo, aos olhos Depois de enumerar iodas as misé-
— Mas um immortal ? commentei da sociedade, aos olhos do mundo, rias de um perdido, concluiam, quan-
a rir. ninguém preferiria o mal ao bem e o do cabia: «E até mente». Entre
— Então vooê pensa que a immór- bem nao se veria jamais desterrado dous ladrões crucificaram os judeus
talidade não cança ? Catíça, e muito. pelo mal. a Jesus ; porque não ousaram excru-
Desçancemo-nos, portanto ! Sente-se cial-o entre dous baldroes. O ladrão
aqui. . . prostitue com o roubo, as suas mãos.
Autour du malheur et de Ia souf- O mentiroso com a mentira, a pró-
São Paulo, 6-921. pria boca, a sua palavra e a sua cons-
PAUÜO DUARTE
france, qui ont une si grande part ciência. O ladrão offende o próxi-
dans notre lot, i l y a u n rayonnement mo nos bens 'da fortuna. O menti-
de joie, qui enveloppe ies cheses et roso, nao é no patrimônio, é na hon„
les ames, en nous donnant, a savourer
A NOVELLA SEMANAL
m
ra, na liberdade, na própria vida. Que diüer de tSo brusca mudança ? e de La Pontaine, ahi se tavia enfeu-
Tanto vai do latrocínio ã calumnia... Como ducha esoosséza, impOBsivel en- dado, nfto via sem viva inquietude,
(Conf. Assoc. Com. Rio de Janeiro. contrar melhor. os excossos de seus oondíscipulos. E'
Março — 1919;. O publioo, assegura-se. não se des- que, si consentia em alargar a dis-
concertou em nada. Ainda que para ciplina do verso, não desejava vcl-a
a maioria os versos íranoezes sejam de todo siipprimida. Sabia que para
A tolerância constituo a mais pre- como se fosse o hebreu, os espectado- que haja verso é preciso que haja
ciosa das virtudes de educação, nas res tinham o ar de quem se interessa- rythmo e rima : «No presente, — af-
almas habituadas a estudar com phi- va por Orestes, quasi tanto como a firmava elle — fazem-se versos de mil
losophia as cousas humanas. Nelson Keys^ pés : isso não são versos. E' prosa e
(Diário Noticias — 7, Março, 1S89). E' que as contorsões o os rugidos sobretudo, algumas vezes, nfio é irar
têm a vantagem de se entenderem per- oez. Chamam-no de versos rythmiona,"
feitamente em todas as línguas. Os mas nós ao somos nem Latinos, nem
espectadores acompanham a mímica, o Gregos, nós somos Francezes . . . \
', Toda a sciencia da administração poesia é um teclado, o poeta um ar-
é, economia dos Estados é um vasto jogo physionomico como se seguissem
e mais emooionantd dos «füms». tista. Elle pode, deixando a tradicio-
oampo de debates e nma lição de nal rotina, quebraudo os velhos mol-
transacções. des, tirar effeitos novos, inventando
(Diário Noticia — li, Março, 1889). novos aocordes; mas, si elle bate ao
accaso ou de lado, o rythmo desappa-
Leconte de Lisle. reoe, o som não mais existe, a ima.
ginaçao ultrapassa o.fim a attingir e
Politica e transacção, na melhor
moral deste mundo, são termos equi- . . . «O senhor Leconte de Lisle me nós chafurdamos nos versos de deze-
valentes. Reformas duradouras são agrada» — escrevia Gustave Flaubert, sete, de dezoito, de viilte e quatro
unioamente as que se operam tran- desde á estreia do autor de «Midi». pés . . . »
sigindo. As próprias revoluções tran- «Amo as pessoas decididas e enthu- O publioo franoez concordou com
sigem, e na therapeutica humana,, siastas. Nada se faz de grande sem Verlaine. A. apotheóse do «Cyrano» de
os mais sábios syst.emas de cura são fanatismo». Que importava, após isso, Edmond Rostand foi, por sua vez,
transacções oom o mal, cujos agen- ao joven mesr.re, os brutaes insultos para os anarchistas da poesia, uma
ter a medicina utiliza para obter a que se levantaram em torno d'elle ? primeira advertência de que iriam
saúde pela doença. Outra coisa não faziam senão saturar ficar sós em Aigues-Mortes, a oidade
(Diso. Th. Lyrico. Rio, Outubro — de desdém a profundez tranquilla de areienta, emquanto em redor delles a
1909). sua indifferença. Alias, desde os seus torrente da vida continuava a rolar
quarenta annos, as homenagens de as magias da arte viva. J á se tinha
seu cenaoulo parnasiano deviam dar- visto um Maurice Bonchor, um Henri
lhe occasião de constatar, duma ma- de Régnier se evadir, a passo oada
Racine em café-concerto. neira clara, a altura de sua gloria.
J á então finha elle para publicar seus vez mais rápido, desse preconoeita do
versos e os dos seus companheiros, a symbolismo que lhes havia dominado
Uma extranha aventura aconteceu a primeira juventude. Jean Morena,
a Racine, ou à sua obra, ha pouco «Revue du Parnasse Contemporain». o mais perfeito coadjuetor do sym-
tempo, em Londres. Estava cercado por uma elite de poe- bolismo, foi o que melhor oonrribuirt
Na oapital britannica existe um em- tas que o admiravam e que elle ama- para sustar a sua evolução. So elle
presário emprehendedor. O que agra- va : «A amizade viril, dizia elle, nao fora um dos primeiros a se revoltar
da ao publico — disse elle, lá oom os é outra coisa sinão um amor intelle- oontra as tyrannias da poesia parna-
seus botões — é o contraste e, sobre- ctual»; e elle oultivava esse amor co. siana, se seu «Pèlerin passioné» mar-
tudo, o imprevisto. Feito isso, eis o mo uma planta infinitamente pre- cara a hora mais brilhante da ,esoola
,qae imaginou. Ao meio da represen- ciosa. symbolista, foi elle também o pri-
tação de uma revista intitulada «Lon- A phalange que se unia ao chefe meiro a fazer apparecer, no que con-
dres, Paris e Nova York:», entre as da escola parnasiana sentia bem que cerne á lingua, preocoupaçõos quo
scenas mais cômicas, resolveu inter- o que lhe faltava então era uma fir- prepararam a evolução próxima. A
calar nada menos que o terceiro acto me disciplina, uma linha de condu- maneira ruidosa pela qual rompeu
da «Andromaoa», representado por cta plena e resoluta : «Certo, escrevia entSo contra os symbolistas, provocou
dois dos melhores artistas francozes, CacuUe Mendes, historiador do «Par- contra elle coleras terríveis. Heleno,
especialmente contractados para esse nasse», certo, o sentimento do Bello, vindo para o gênio francez caminhan-
fim . . . o horror ás tolas sensibilidades que des- do ao longo das fontes originaes,
Nelson Keys, celebre actor de café honravam por esse tempo a poesia Jean Moréas nao se incommodou:
concerto, capaz de excitar hilaridade franceza, nós os tínhamos ! Mas era apartou^se de seus companheiros de
nos mais diversos papeis, representa em desordem que nós nos atirávamos luetas, desde que percebeu que eram,
um velho almirante nutria praia da a essa campanha e que marchávamos emfim, na maioria homons chegados
moda e, assim, ás gargalhadas sacode á conquista do nosso ideal... Precisá- das quatro cantos do horisonte e que
toda a platèa. Cae o paDO, um instan- vamos de uma regra imposta do alto pretendiam versificar em francez sem
te, reergue-se logo e eis Hermíona, fi- e que, deixando-nos a nossa indepen- nenhum estudo preliminar e conside-
lha de Helena, com Orestes, filho de dência intellectual, fizesse convergir rando oomo superioridade escrever
Agamennon. De uma praia elegante gravemente, dignamente, as nossas — em francez pretendem elles — sem
salta-se para o palácio de Pyrrho, no forças esparsas para a victoria entre- querer ou sem poder se conformar ás
Epiro, alguns tempos depois da guerra vista. Essa regra, foi de Xjeconte exigências do gênio francez.
de Troya. de Lisle que nós a recebemos».
Os alexandrinos do grande poeta de- A realesa poética, exercida pelo Pode-se, pois, dizer que, após ter
viam ter soado estranhamente em tal mestre do Parnaso sobre tantas gera- rejeitado asinsufficiencias oscapriohos
scena. Não que se entendessem muito ções de poetas francezes, nao se ex- mais ou menos nervosos do decaden-
bem as tiradas de Hermiona, pois ella tinguiu ainda, nem se extinguira. tismo, e até do symbolismo, nossos
as reoitava de costas para o publico. Com effeito, mesmo no momento poetas os mais puramente francezes
Demais, ella se encontra em terrível em que, ahi por l890,triumphavamrui- se tornaram no presente duma una-
estado de excitação. dosamente, sob o nome de decaden- nime admiração para com o Renova-
Mas essa excitaçâo não é nada peran- tes e de symbolistas, de primitivistas dor, cuja morte nao suspendeu ocul-
te a de Orestes. Eil-o com a physiono- e de naturistas, do inteusistas e de to devido aos semí-deuseB que trou-
mia transtornada, cabellos em desor- unanimistas, de harmonistas, de * ver- xeram a seu paiz a fiammft do gênio,
dem, olhos fora das orbitas. Quando esou so libristas» e de futuristas, uma nu- e cuja gloria faz parte da riqueza
ta as furiosas recriminaçóes de Hermio vem de rimadores bolcheviks mais ou nacional.
na, quando se lhe annuncia o seu sui- menos extrangeiros, todos indepen- Assim, é a alta figura do Leconte
cídio, tomam-no a loucura e o, delí- dentes e cada um prompto a crear a de Lisle que a esta hora nos appare-
rio, a voz se lhe torna sibilante, cada sua prosódia, a fazer a sua métrica, ce levantada ao meio desse templo
vez mais rugídora e elle transborda a erigir em dogma «as decisões de seu da Santa Belleza elevado por suas
em um accesso de cólera. bestunto» — mesmo nesse momento, mãos a Apollo delphico, mestre do»
Cae o pano. Segundos depois, Nel- os nosBos poetas, os mais notoria- rythmos perfeitos segundo os quae»
son Keys reapparece elegantemante mente nacionaes, repugnavam e se foram construídas a Acropole, as trí-
bem posto como um «gentleman» doB recusavam a aoceitar a doutrina da rémesde Salamina, « a Agora, oud«
tempoi mod«rno«. R«cora»ç* a hila- poética nova. Verlaine que, mau gra- falara D«meath«n«i.
ridadt. de «»* d»»«»nd«n«ia àir»«ta d» Vilion
J*AM D M Í I I
E D I Ç Õ E S :;E»A.

'Sxiéeãc
^AMADEU AMARAL F. T. DE SOUZA REIS
A Pulseira de Ferro (novella) 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
Um soneto de Bilac (critica) 2$000
WALDEMAR FERREIRA
MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante . .
Os Negros (novella) 1$000 Estudos de Direito Commercial lOSOfjO
A Hypotheca Naval no Brasil. 3$000
LEO VAZ >
AUCTORES DIVERSOS
Ritinha (novella) No prelo
O que todo o commerciante precisa saber
GUSTAVO BARROSO (10.° milheiro) 2$000
Almanach Commercial Brasileiro de 1918 6$000
Mula sem cabeça (novella) No prelo
NICOLAU ATHANASSOF
A. DE SAMPAIO DORIA Os Suinos, manual do criador de porcos
O que o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) . . . .

OS PEDIDOS DO INTERIOR DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

S O C I E D A D E E D I T O R A O I v E G A R I O R I B E I R O
R Ü O . E>r. A b r a n e l i e S t 4 3 - C a i x a P o s t a l 11-5TSS - S Ã O r » A X J I v O

EDIÇÕES DA " R e v i s t a d o Brasil,,


Broch. Encad. Broch. Encad
NEGRINHA, contos por Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pelo
URUPES, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4$000 5$000
bato, 6.a edição 4$000 5$000 MADAME POMMERY, romance
'CIDADES MORTAS, contos por satyrico, por Hilário Tácito. . 4$000 —
Monteiro Lobato, 2.a edição. . 4$000 5$000 BRASIL COM S OU COM Z, por
IDÈAS DE JECA TATU, critica F. Assis Cintra 3$000 —
por Monteiro Lobato, 2.a edição 4$000 5$000 VIDA OCIOSA, romance por Go-
NARIZINHO ARREBITADO, li- dofredb Rangel 4$000 5$000
vro de historias para crianças, OS CABOCLOS, contos por Val-
por Monteiro Lobato . . . . 3$500 domiro Silveira 4$000 5$000
POPULAÇÕES MERIDIONAES HISTORIAS DA NOSSA HISTO-
DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato Corrêa . . . 3$500 4$500
gia por F. /. Oliveira Vianna . 8$000 10$000 ESPHINGES, versos de Francisco
PROFESSOR JEREMIAS, por Léo Julio 5$000 —
' Vaz, 3.a edição 4$000 5$000 SCENAS E PAISAGENS DA MI-
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires 5$000 —
reto . . . 2$000 — CASA DE MARIBONDO, contos,
LIVRO DE HORAS DE SOROR hão do Norte 3$000 —
DOLOROSA, poesias por Gui- PAIZ DE OURO E ESMERALDA,
lherme de Almeida 5$000 — romance,/. A. Nogueira . . . 4$000 —
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 MAIS 10 o/o PARA O PORTE
Pedidos aos E d i t o r e s : M o ü t e í r O L o b a t O (£L C , C a i x a 2 - A - S . P A U L O
184 Á NOVELLA SEMANAL

ra, na liberdade, na própria vida. Que dizer de tão brusca mudança ? e de La Fontaine, ahi se havia enfa-
Tanto vai do latrocínio á calumnia... Como ducha esoosséza, impossível en- dado, nSo via sem viva inquietude,
(Conf. Assoc. Com. Rio de Janeiro. contrar melhor. os excessos de seus oondiscipulos. E'
Março — 1919,. O publico, assegura-se, não se des- que, si oonsentia em alargar a dis-
concertou em nada. Ainda que para ciplina do verso, nao desejava vi>l.n
a maioria os versos francezes sejam de todo supprimida. Sabia que PRra
A toleranoia constitue a mais pre- como se fosse o hebreu, os espectado- que haja verso é preciso que haja
ciosa das virtudes de educação, nas res tiuham o ar de quem se interessa- rythmo e rima : «No presente, — «f.
almas habituadas a estudar com phi- va por < 'restes, quasi tanto oomo a firmava elle — fazem-se versos de mil
losophia as cousas humanas. Nelson Keys^ pés : isso não são versos. E' prosa a
(Diário Noticias — 7, Março, 1689). E' que as contorsões e os rugidos sobretudo, algumas vezes, nao é fritir
têm a vantagem de se entenderem per- cez. Chamam-no de versos ryrhmioos,'
feitamente em todas as línguas. Os mas nós ão somos nem Latinos, nem
espectadores acompanham a mímica, o Gregos, nós somos Francezes . . . A
Toda a soiencia da administração poesia é um teolado, o poeta um ar-
é economia dos Estados é um vasto jogo physionomico como se seguissem tista. Elle pode, deixaudo a tradicio-
campo de debates e uma lição de e mais emooionantd dos «films». nal rotina, quebrando oa velhos mol-
transacções. des, tirar effeitos novos, inventando
(Diário Noticia — '7, Março, 1889). novos accordes; mas, si elle bate ao
accaso ou de lado, o rythmo desappa-
Leconte de Lisle. reoe, o som não mais existe, a ima.
ginacSo ultrapassa o fim a attingir e
Política e transacção, na melhor
moral deste mundo, sao termos equi- . . . «O senhor Leconte de Lisle me nós chafurdamos nos versos de deze-
valentes. Reformas duradouras silo agrada» — escrevia Gastava Flaubert, sete, de dezoito, de viüte e quatro
unicamente as que se operam tran- desde a estreia do autor de »Midi». pés . . . »
sigindo. As próprias revoluções tran- «Amo as pessoas decididas e enthu- O publico franoez concordou com
sigem, e ua therapeutica humana, siastas. Nada se faz de grande sem Verlaine. A apotheóse do «Cyrano» de
os mais sábios sysr.emas de cura são fanatismo». Que importava, após isso, Edmond Rostand foi, por sua vez,
transacções oom o mal, cujos agen- ao joven mestre, os brutaes insultos para os anarohistas da poesia, uma
ter a medicina utiliza para obter a que se levantaram em torno d'elle ? primeira advertência de que iriam
suude pela doença. Outra coisa não faziam senão saturar ficar sós em Aigues-Mortes, a cidade
(Disc. Th. Lyrieo. Rio, Outubro — de desdém a profundez tranquilla de areienta, emquanto em redor delles a
1909). sua indifferença. Alias, desde os seus torrente da vida continuava a rolar
quarenta annos, as homenagens de as magias da arte vivi. Já se tinha
cr seu cenaculo parnasiano deviam dar-
lhe occasião de constatar, duma ma- visto um Maurice Bonchor, ura Henri
de Régnier se evadir, a passo aula
Racine em café-concerto. neira clara, a altura de sua gloria.
J á então tinha elle para publioar seus vez mais rápido, desse preconceito do
versos e os dos seus companheiros, a symholismo que lhes havia dominado
Uma extranha aventura aconteceu a primeira juventude. Jean Morens,
a Racine, ou á sua obra, ha pouco «Revue du Parnasse Gontemporain». o mais perfeito coadjuetor do sym-
tempo, em Londres. Estava cercado por uma elite de poe- bolismo, foi o que melhor oontribuin
Na oapital britannica existe um em- tas que o admiravam e que elle ama- para sustar a sua evolução. Se elle
presário emprehendedor. O que agra- va : «A amizade viril, dizia elle, não fora um do9 primeiros a se revoltar
da ao publioo — disse elle, lá oom os é outra coisa sinão um amor intelle- oontra as tyrannias da poesia parna-'
seus botões — é o contraste o, sobre- ctual»; e elle oultivava esse amor co. siana, se seu «Pèlerin passioné» mar-
tudo, o imprevisto. Feito isso, eis o mo uma planta infinitamente pre- cara a hora mais briJhants da ,esooia
,que imaginou. Ao meio da represen- ciosa. symbolista, foi elle também o pri-
tação de urna revista intitulada «Lon- A phalange que se unia ao chefe meiro a fazer apparooer, no que con-
dres, Paris e Nova York», entre as da escola parnasiana sentia bem que cerne á lingua, preoccupações qn«
scenas mais cômicas, resolveu inter- o que lhe faltava então era uma fir- prepararam a evolução próxima. A
calar nada menos que o terceiro acto me disciplina, uma línlia de condu- maneira ruidosa pela qual ronpeu
da «Andromaca», representado por ota plena e resoluta : «Certo, escrevia então contra os symbolistas, provocou
dois dos melhores artistas francezes, Caculle Mendes, historiador do «Par- s contra elle coleras terríveis. Heleno,
especialmente contractados para esse nasse», certo, o sentimento do Bello, vindo para o gênio franoez caminhan-
fim . . . o horror ás tolas sensibilidades que des- do ao longo das fontes originaes,
Nelson K.eys, celebre actor de café honravam por esse tempo a poesia, Jean Moréas não se incommodou :
ooncerto, capaz de excitar hilaridade franceza, nós os tínhamos ! Mas era apartou*-se de seus companheiros de
nos mais diversos papeis, representa em desordem que nós nos atirávamos luctas, desde que percebeu que eram,
um velho almirante numa praia da a essa campanha e que marchávamos emfim, na maioria homens ohegados
moda e, assim, ás gargalhadas sacode á conquista do nosso ideal... Preoisa- das quatro cantos do horisonte e que
toda a platèa. Cae o pano, um instan- vamos de uma regra imposta do alto pretendiam versificar em francez sem
te, reergue-se logo e eis Hermiona, fi- e que, deixundo-nos a nossa indepen- nenhum estudo preliminar e conside-
lha de Helena, com Orestes, filho de dência intelleotual, fizesse convergir rando oomo supçrioridade escrever
Agamennon. De uma praia elegante gravemente, dignamente, as nossas — em francez pretendem elles — sem
salta-se para o palácio de Pyrrho, no forças esparsas para a victoria entre- querer ou sem poder se conformar ás
Epiro, alguns tempos depois da guerra vista. Essa regra, foi de Leconte exigências do gênio franoez.
de Troya. de Lisle que nós a reoebemos».
Os alexandrinos do grande poeta de- A realesa poética, exercida polo Pode-se, pois, dizer que, após ter
viam ter soado extranhamente em tal mestre do Parnaso sobre tantas gera- rejeitado asinsufficiencias oscaprichos
scena. Nao que se entendessem muito ções de poetas francezes, nao se ex- mais on menos nervosos do decaden-
bem as tiradas de Hermiona, pois ella tinguiu ainda, nem se extinguira. tismo, o até do symbolismo, nossos
as reoitava de costas para o publico. Com effeito, mesmo no momento poetas os mais puramente francezes
Demais, ella se encontra em terrível em que, ahi por 1890,triumphavamrui- se tornaram no presente duma una-
estado de exeitação. dosamente, sob o nome de decaden- nime admiração para com o Renova-
Mas essa exeitação nao é nada peran- tes e de symbolistas, de primítivistas dor, cuja morte nao suspendeu o cul-
te a de Orestes. Eil-o com a physiono- e de naturistas, de inteusisras e de to devido aos semi-deuses que trou-
mia transtornada, cabellos em desor- unanimistas, de harmonistas, de «ver- xeram a seu paiz a flamma do gênio,
dem, olhosfóradasorbitas.yuando esou so libristas» e de futuristas, uma nu- e cuja gloria faz parte da riqueza
ta as furiosas rerriminaçòes de Hermio vem de rimadores bolchevíks mais ou nacional.
na, quando se lhe annuncia o sen sui- menos extrangeiros, todos indepen- Assim, é a alta figura de Leconte
cídio, tomam-no a loucura e o. delí- dentes e cada um prompto a crear a de Lisle que a esta hora nos appare-
rio, a voz se lhe torna silnlante, oada sua prosódia, a fazer a sua métrica. ce levantada ao meio desse templo
vez mais rugidora e elle transborda a erigir em dogma «as decisões de seu da Santa Uellexa olovado por suas
em um accesso de cólera. bestunto» — mesmo nesse momento, mãos a Apollo delphico, mestre dos
Cae o pano. Segundos depois, Nel- os nossos poetas, os mais notoria- rythmos perfeitos segundo os quaes
son Keys reapparece elegantemante mente nacionaes, repugnavam e se foram construídas a Acropole, as tri-
bem posto como um «gentleman» dos recusavam a aooeitar a doutrina da rémesde Salamina, s a Agora, ond*
tempos modvraoa. Biporatci a hila- poética nova. Verlaine que, mau gra- falava D«mottb»n«t.
ritlatt», d» §tt* d«s«*n«*a«i« d_lr»«t* d* Vilion
J*JJS D»«su
EDIÇÕES 1**^

'Mcitewy
r AMADEU AMARAL F. T. DE SOUZA REIS
A Pulseira de Ferro (novella) 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
Um soneto de Bilac (critica) 2$000
WALDÉMAR FERREIRA
! MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante 8$000
Os Negros (novella) 1$000 Estudos de Direito Commercial . . . . 10$OoO
A Hypotheca Naval no Brasil 3$000
LÉO VAZ
AUCTORES DIVERSOS
Ritinha (novella) No prelo
O que todo o commerciante precisa saber
GUSTAVO BARROSO (10.° milheiro) 2$000
Almanach Commercial Brasileiro de 1918 6$000
Mula sem cabeça (novella) No prelo
NICOLAU ATHANASSOF
A. DE SAMPAIO DORIA
Os Suinos, manual do criador de porcos
0 que o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) . . . . 3$000
OS PEDIDOS DO INTERIOR DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

S O C I E D A D E KXH^TORA O E E G A R I O R I B E I R O
R u a D r . JVt>reuc»«sl-xe>®» - i S = O e i i r s c e » . I ^ o s t e i l l l ^ S= S Ã O P A U L O

EDIÇÕES D A
€6
Revista do Brasil,,
Broch. Encad. Broch. Encad
NEORINHA, contos por Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pelo
URUPÉS, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4$000 5$000
"•"• bato, 6.a edição 4$000 5$000 MADAME POMMERY, romance
CIDADES MORTAS, contos por satyrico, por Hilário Tácito. .
Monteiro Lobato, 2.a edição . . 4$000 5$000 BRASIL COM S OU COM Z, por
IDÈAS DE JECA TATU, critica F. Assis Cintra 3$000 —
por Monteiro Lobato, 2.a edição 4$000 5$000 VIDA OCIOSA, romance por Go-
NARIZINHO ARREBITADO, li- dofredo Rangel 4$000 5$000
vro de historias para crianças,
por Monteiro Lobato . . . . 3$500 OS CABOCLOS, contos por Val-
domiro Silveira 4$000 5$000
POPULAÇÕES MERIDIONAES HISTORIAS DA NOSSA HISTO-
DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato Corrêa . . . 3$500 4$500
gia por F. J. Oliveira Vianna . 8$000 10$000 ESPHINGES, versos de Francisco
PROFESSOR JEREMIAS, por Léo Julia 51000 -
Vaz, 3.a edição 4$000 5$000 SCENAS E PAISAGENS DA MI-
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires 5$000 -
reto 2$000 — CASA DE MARIBONDO, contos,
LIVRO DE HORAS DE SOROR João do Norte 3$000 —
DOLOROSA, poesias por Gui- PAIZ DE OURO E ESMERALDA,
lherme de Almeida . . . . _ , . 5$000 — romance,/. A. Nogueira . . . 4$000 —
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição . . . . 3$000 4$000 MAIS 10 o/o PARA O PORTE
Pedidos aos Editores; M o n t e i r o L o b a t O (£t C , C a i x a 2 - A - S . P A U L O
A NOVELLA NACIONAL "Volumes publicados:

A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por


série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o snccessor de
se mira ao seguinte escopo : offerecer Olavo Bilac. na Academia Brasileira.
a )
a melhor leitura, sob a apresentação E no gênero uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima,, — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do "Professor Jeremias",
romance que obteve o maior suecesso
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes. .--*
ginas, no formato 16 »/a X 12 i/* centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

OS NEGROS 1
A seguir novellas de u
Coelho Netto,
Afranio Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume. lífOOO em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado 1$300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3|600; série .de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas MfOOO.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr, Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SÀ0 PAULO
^.M
T y p . " Revista de Commircio e Industria „ da
Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — Lá, foges, »nmTjwWTfwi»w»w"
ata», "V.
ANNO I SAO PAULO, 16 DE JÜLtfO DE 1921 NÜMÉftO 12

SEMATVAL

SOCEDITORA EIKO-RDfABRANCHES,45-SJPAÜLO
A NOVELLA NACIONAL "Volumes publicados:

A NOVELLA NACIONAL é uma A. P u l s e i r a d e F e r r o por


série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o snccessor de
se mira ao seguinte escopo : offereeer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "E1 no gênero uma verdadeira obra-
mais artística, ao preço mais barato prima,, — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatik
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do "Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualiclade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 i/s X 12 y's centí- M t i l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa HEROES E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.
OS NEGROS

A seguir novellas de u
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume 1 $000 em
todas as livrarias. Pelo
.correio, registrado 1$300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3$500; série .de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr. Abranches N, 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de Comiturcio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — Li, foges, aconaelbon-me um, eto.
ANNO SÀÕ PAULO, 16 DE JÜLrio DE 1921 NÜMÊHO 12

ANO

CEDFroRA OIJ?OARIORroEmORDllABRANCHES,45-SPAlJLO
A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR: BRENNO FERRAZ

PUBLICA SE A O S SABBADOS
Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos osanalphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em collecções
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num circulo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extraoçao no
cioso : o livro não se difiunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se luz
e é caro porque não se diffunde. Isto succede com o em vários paizes, em antbologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didaoticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do anotor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da oreação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa* possa fazer encommenda, ao seu livreiío ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, Ha obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais .attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel pela escrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de t o - mesmo tempo que-,um abundante repositório de infor-
dos os meios para o diffnndir em todo o território na- mações bibliographicas. uma selecta, de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
.gramma.
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
e da revista. A NOVELLA SEMANAL pretende reunir nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
as vantagens desta e daquelle: como a revista, será de notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos coin
leitura leve e variada, será, vendida a preço iníimo, será prazer — e remuueraremos — todos os trabalhos inte-
apregoada nas ruas, uns estradas de ferro, em toda par- ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
te, a toda gente : ma- não será Jufcil e de interesse e- dos e desconhecidos, consagrados e estreantes, comtnnlo
phemero como ella: pelo fundo — pela qualidade e pela aue taes obras tenham valor o sejam conformes com a
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série feição d'A NOVELLA. isto é, que tenham pequena ex-
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada tensão e possam ser lidas por toda gente.
trimestre, em bellos volumes oom os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma bibliotheca literária realmente preciosa. couto e da novella nestes volum es por serem esses os
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens gêneros que oontam, entre o publico, maior numero de
e creanças. senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora. bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
procurará nos auctores a vida, a acção, o interesse, de Todos os outros gêneros terão o seu logar no nosso
modo a constituir o verdadeiro livro popular. supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a. se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
trabalhos inéditos. Não seria este o melhor meio de se se colloca á disposição do publico, dos auctores e dos
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico, ceber um acolhimento sympathico.
tanta cousa opfima a pedir um editor. Assim, A NO- Os EIUTOKKS.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col-
laboração interessanl e para qualquer Aos leitores queiram nos auxiliar neste trabalho
que nos enviem relações de auctores
' das secções deste periódico, A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores .levem nos remetter os na ser lida em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seunome, villas, povoaçoos. estradas de ferro, os examinar.
endereço o o preço pelo qual nos of- navios, boteis, clubs, bibliothecas, e t c ,
íeroeem a sua collaboração.
Os originaes devem ser escriptos de
e-tando poritso organisando um ser-
\iço de distribuirão que será o mais
Importante
um só lado do papel, em calligraphia Toda pessoa que angariar três assi-
completo possivel. de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem leirivel e de preferencia dactylo- ver ponio do território nacional onde enviando-nos adeantadamente a, res-
graphados. não tenha leitores e não seja encon- pectiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda, pessoa que angariar qual-
garío Ribeiro - Caixa po-tal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereeereinos a
agencias e 'vendedores de jornaes e título de. brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará interessar pela venda ou leitura des- sil, no valor de '20 o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total ilas assignaturas angariadas.
nome do auctor, preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso
que os editores lhe enviem aquellas
os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
todos os Estados e de todas as épocas, Anno . . 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra.
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre 10$000
reinettido'um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre 5$000
lém disso umalnoticia critica. fornecida, rogand a todos quantos
Numero avulso $400

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ANNO I A N O V E L L A S E M A'N A L São Paulo, 16 de "Julho de 1921 NUMERO 12

NA ESCOLA — J o s é S i z e -
nando.
CONTO DE F A D A S — R a u l
SUMMAR* MONTF.IRO LOBATO —
aurora de Castro Alves
RONALD D E CARVALHO
A

Pompeia. Curiosidades literárias —Li-


A CARA D O MEU VISI- teratura do outro mundo
NHO — Julia Lopes d e
Almeida. \ CHRISTO — Sylvio Floreal. SUPPLEMENTO — Vida H-
AVINGANCA D O TEIXEI- T R A P O S D A VIDA — Ma- teraria — Visão geral
' RINHA — N i c o l a u P e r o . noel Victor. da literatura brasileira -

IV À É> ÍS O O JU A
Foi na minha própria cidade natal que aprendi tados e de três mocinhas, que, quasi'sempre, á
as primeiras letras. lição, saiam-se muito bem, chorando copiosa-
1
O meu professor era um homem intelligente, mente á primeira difficuldade; á segunda,, maior
dos seus quarenta annos de edade, sisudo e res- no numero que a primeira, constituída pelos
peitável. «médios», que liam o «Terceiro livro» de Felis-
Devo-lhe o não ter ficado analphabeto, porque, bertb de Carvalho ; e a terceira, maior que a se-
a principio eu votava aos livros uma grande gunda, composta de todos os principiantes, desde
aversão, e um professor descuidado, que pouco os que começavam a soletrar até os que liam o
se interessasse pelos alumnos, jamais teria con- «Segundo livro», do barão de Macahubas.
seguido que eu fosse além do A B C. O mestre, ás vezes, quando havia accumulo de
Graças, porém, á paciência, ao zelo, á dedica- serviço, mandava-me dar lição á terceira classe e,
ção do mestre e, principalmente, á ferula, que majís de uma vez fez o mesmo em relação á segunda.
elle manejava a continuo ' e adextradamente, ao Isso dava-me ares de grande importância entre
cabo de algum tempo tomei decidido agosto pelo os meninos daquellas classes e mesmo entre os
; estudo. • E ao fim de três annos de escola era collegas da primeira eu gosava de uma certa re-
eu o alumno mais disfineto e mais adeantado de putação, como grammatico, mathematico e geo-
toda a aula. grapho...
Nessa época, lia o «Coração», o adorável livro 'Quando algum tinha qualquer duvida, uma re-
de Amicis, estudava grammatica e arithmetica e gra de^syntaxe pouco clara, um problema de
decorava lições de geographia. mais difficil solução era a mim que recorria, na
1 ausência do professor, e eu me saia sempre bem
Considerava-me, então, um verdadeiro sábio e
esta minha presumpção tanto mais crescia quanto das arguições.
maior era a consideração que o mestre me dis- A hora da lição da primeira classe, todos nós
pensava, elogiando-mè á vista dos collegas, no- iamos nos postar em pé, em frente ao mestre,
-meando-me decoriãp da escola, o que desperta- que se conservava sentado junto á sua mesa de
va uma grande inveja aos outros estudantes. cedro, em cima da qual havia o tinteiro, pennas,
Havia na aula três classes differentes, em gráo livros e a palmatória, com os seus cinco olhos
de adeantamento: a primeira, de que eu fazia redondos e fundos, que parecia' assobiar quando
parte compunha-se dos oito rapazes mais adean- era levantada no ar para os estudantes.
A NOYFJLLA SEMANA!

A' lição, primeiro liamos um capitulo do Cora- —- Senhor Raul, leia essa palavra.
ção^, depois diziamos de cór o ponto de geo- O Raul soletrou e leu :
graphia e, finalmente, analysavamos um trecho de — Ximéra...
prosa e ouvíamos a explicação do professor. — Adente, disse o professor.
Nessas occasiões o silencio era absoluto na es- — Ximéra...
cola. — Adeante...
Todos ou outros estudantes que não eram da- — Ximéra...
quella classe, ficavam mudos, a olhar admirados — Adeante...
para os < grandes>, invejosos do seu saber e adean- — Ximéra...
tamento... O mestre franziu o sobr'olho. Percorreu com
O mestre mesmo, por mais de uma vez, hou- o olhar toda a terceira classe a passou á se-
vera dito que quem conversasse ou fizesse baru- gunda,
lho aquella hora ficaria de castigo. - - Leia, senhor Jacintho...
Um dia, estávamos ouvindo a explicação do O Jacintho tomou a «Cartilha» emprestada por
mestre, muito attentos, quando um pequeno da um alumno da terceira classe, o que fizeram todos
terceira classe, entrado ha poucos dias para a es- os seus collegas, e timido, surdamente, murmurou:
cola, poz-se a ler alto, lá no fundo da sala, a — Ximéra...
sua «Cartilha Nacional?. — Adeante...
O mestre, activo, perspicaz, intelligente, nada — Não é ximéra, não senhor..-
perdia do que se passava em volta. — Então, diga como é...
Com olhar astuto, ouvido attento, parecia ler, — Xímera...
ouvir, e observar-nos a todos ao mesmo tempo. — Adeante...
.No momento justamente em que termináva- — Xímera...
mos a analyse lógica de um período, cujo sujeito, — Adeante...
por signal, dera muito que fazer, para ser en- — Ximéra...
contrado, por causa da ordem inversa do propo- — Adeante..- e percorreu toda a segunda clas-
sição, o mestre levantou os olhos do livro que se... Quando não era ximéra era xímera, quando
tinha na mão e, voltando-se para a terceira classe, não era xímera, era ximéra...
chamou: O. mestre teve uni sorriso exquisito, que nós
— Venha aqui, senhor Octavio. não compiehendemos, e falou pausadamente:
Toda a sala teve um estremecimento. — Nenhum alumno da terceira, nem da se-
Octavio era o menino que lia alto, emquanto gunda classe, soube ler esta palavra, tão fácil.
o professor explicava á primeira classe, e todos Não ha remédio: passemos á primeira...
nós pensámos que fosse, por isso, castigado. • Todos nós deixámos as grammaticas e toma-
Um pequeno louro, olhos azues, cabellos com- mos aos pequenos as suas «Cartilha», e pegámos
pridos, levantou-se e veio até á mesa do mestre. a olhar na tal palavra...
Este, austero, sem tirar os olhos da granima- — Senhor Julio, leia...
tica, disse ao menino: O Julio era um estudante intelligente, que se
— Ha pouco, lendo a suá lição, o senhor pro- collocava/sempre na extremidade esquerda da
nunciou uma palavra que desconheço. Quero que classe, emquanto eu ficava á extrema direita, uma
repita a leitura para eu ouvil-a de novo. Vamos, pequena prova da nossa rivalidade que ia até ás
leia a sua lição... pequenitas cousas... Mas, neste instante, tive
O pequeno, com voz tremula, poz-se a ler e uma enorme piedade por elle! Estava horrivel-
todos nós, suppondo que aquillo fosse a pena, - mente pallido, visivelmente commovido, seu lábio
ler alto na nossa frente, em pé, tivemos um sor- superior tremia e, mais de uma vez, tentou falar,
riso de approvação ao acto do professor... sem o conseguir...
Num certo ponto, porém, quando o alumno O professor insistiu:
pronunciou uma palavra, o mestre interrompeu-o: — Senhor Julio, vamos...
— Como ? Repita essa palavra. O Julio sorriu desenxabido e articulou a custo:
O menino repetiu: — E' ximéra...
— Ximéra... — Adeante...
O mestre voltou-se para a ponta do banco da - - Xímera...
terceira classe e mandou : — Adeante...
A NOVELLA .SEMANAL 18?

— Ximéra... Já me impacientava a demora do mestre ém


E toda a primeira classe, numa afflicção, poz-se perguntar-me: temia que outro estudante ainda
a soletrar baixinho: antes de mim, dissesse como era e, não podendo
— C-h-i — xi — m-e me r-a — ra dominar-me, fiz signaes significativos ao profes- ,
xímera... sor, aos collegas; sorri desvanecido, dei passos
— Adeante... para a frente, para traz; tossi, escarrei, limpei a
— E' ximéra mesmo, senhor professor... garganta, assoei-me, fortemente, para chamar so-
— E'... é, sim, senhores. O que é é uma ver- bre mim a attenção geral.
gonha. Moços que estudam grammatica, que lêm O mestre, afinal, voltou-se para a classe e disse,
contos do «Coração», e os interpretam, não sa- num tom compungido:
berem ler uma palavra que vem na «Cartilha — Entre quarenta e três rapazes, alguns dos
Nacional»,... E' para desanimar. Adeante. quaes eu suppunha adeantados, nãó houve um
Silencio. que soubesse ler essa palavra, tão fácil, que está
-v-,Adeante, repetiu o mestre. na livro primeiro... È' contristadOr! Não é por-
& X-ímera... que eu deixe de ensinar e cuidar dos meus de-
— Adeante... veres, não é!... Esforço-me, canso-me, mato-
— Ximéra... me.... Mas os senhores ligam mais apreço aos
— Adeante. seus brinquedos que á palavra do mestre. Falta
— Xi... um único, alumno para ser interrogado e está
— Basta, interrompeu o professor. ^claro que a elle não se estende a minha censura.
Aquelle rapaz que apenas pronunciara o «xi...» Esse, posso affirmar, vae responder direito. Por
estava unido a mim! Suei frio e tive como um que ? Porque presta attenção ao que ensino';
enebriamento... Só eu faltava... Só a minha opi- porque estuda. Por que não fazem os senhores
nião não havia ainda sido pedida, nem dada... o mesmo?
Soletrei, li, reli ó terrível vocábulo, que pare- Tomem sentido no que elle vae dizer e apren-
cia já um ponto negro, deante da minha vista dam com elle a sèr bons estudantes, para que
cançada, a dansar, a pular, nuns saltos macabros, nunca mais lhes aconteça cousa semelhante a
que me entonteciam... C-h-i — xi — m-e — me esta...
r-a — ra — ximéra ou xímera... E não podia — Vamos, senhor decorião, ensine a seus col-
sair dahi: ou ximéra ou xímera... Mas o mes- legas como é que se lê e se pronuncia essa pa-
tre assim não queria, Vi perdida a minha ascen- ' lavrai
dência sobre os outros: senti periclitar o meu Atirei um longo olhar em torno: toda a es-
prestigio, ruir a minha fama. cola, em êxtase, me contemplava, embevecida!
Um suor frio corria-me pela testa; o coração Nem, sei como não morri de orgulho e de sa-
parecia querer fugir-me do peito... tisfação naquelle momento verdadeiramente feliz
' Soletrei ainda... De súbito, um clarão estranho da minha vida.
illuminon-me a vista... Tive uma idéa, uma lem- O mestre comprehendeu a minha emoção, e, num
brança, um deslumbramento...' o quer que fosse tom carinhoso e de paternal affecto, repetiu...
que me fazia quasi enlouquecer de alegria... — Leia...
1 Dividindo bem as syllabas, vagarosamente, alto
Enxuguei o suor da testa, esfreguei os olhos,
respirei forte, sorri victorioso!... Não era xí- e com emphase, para que toda gente pudesse
mera, nem ximéra: era... Contive-me. bem ouvir, pronuncie com ares de quem doutrina
i Li baixinho, medroso que me ouvissem, repeti e. sabe bem o que diz :
a leitura e achei tão doce, tão sonoro o vocá- — Ximerá!.
bulo, que até me pareceu nunca ter ouvido outro JOSÉ S1ZENANDO.
de tamanha suavidade...
Calculei o successo que eu ia alcançar!
Estava garantida e agora firmada a minha su-
perioridade sobre todos os estudantes...; Na mi-
pha opinião, Sò havia três maneiras de ler aquella
palavra: duas estavam excluídas, e a terceira, a
certa, a correcta, só eu, no meio de todos os col-
legas, sabia qual era!...
188 A NOVELLA SEMANAL

E o que pensarão os figos d'esta vida ? Que


*s?fe opinião a d'elles sobre os pássaros e sobre as as-
pirações ? Também, pobresinhos, têm um cora-
ção que palpita insensivelmente. Abri um figo;
i-. ..lj':,.,v?i-c5./^-L,.,:;.l;'.. sr . *• ' •-;•:.u^-^sjsss vereis ouriçada de pontas sangrentas . . . Como
MW^V^Í' não ? os fructos sangram ! Têm todos os direi-
tos da maternidade... Não respeitais a materni-
CONTO DE FADAS d a d e ? . . . inclusive o Santíssimo direito da dôr!
Percebo, percebo. Ha homens — figos, ha ho-
mens — pássaros. Sim ! mas eu, figo ! . . . uma
Contrasensos de atavismo. Algumas vezes nas- figa ! E' preciso que um degrau se estenda em
cem príncipes das poeiras humildes das ruas. baixo, para que outro degrau se estenda em ci-
Não da espécie dos conspiradores felizes, que fa- ma, e a escada suba ? . . .
zem da própria nullidade original arma de guerra Eu trabalhei o ferro. Como me comprehendia'
e lutam e sobem, cobrejando atravez dos conhe- o másculo metal, parente da energia inflexível de
cimentos até campear^ triumphantes sob o domí- meu gênio ! Não me valeu a força de operário:
nio dos homens, não: verdadeiros príncipes, que faltou-me a habilidade ,de mendigo. Trabalhei
o são ao nascer; que tem a purpiira do manto então o panno. Homens do dispendio, mantene-i'
diluída em glóbulos de altivo sangue, absoluta- dores da industria, não sabeis de que tecido se
mente a salvo da embolia mortífera que a impu- fazem as ricas vestes.. Passaram fibras de cora-
reza do ambiente da sua miséria poderia occa- ção pelos teares ; tingiram-se os padrões com as
sionar ; príncipes nobilissimos, que têm a força cores escuras da miséria. Conheceis os rebanhos
do imblematico sceptro vertebrada em espinha humanos encurralados nas fabricas. O carneiro
dorsal, inflexível ás humilhações da sorte, e no dá a lã. , Toda essa lã puríssima : sensibilidade,
olhar firme, sem jaca, que lhes clareia a testa, a delicadeza, pudor, de que se faz a superioridade
magestade dos diademas. moral, se apara ao rebanho humano.
Podemos encontral-os, ao dobrar uma esquina,
Este precioso estofo: vedes esta rosa, entre fo-
em andrajos, face cavada pela necessidade e pelo
lhas, labiada em pétalas esplendidas sobre a tra-
suor — lagrimas de fadiga.
ma da tecelagem ? E' a honra de uma operaria,
Pesa-lhes mais que a ninguém a fatalidade ar-
a infâmia feita tinturaria'. Não quizeram que eu
chitectonica do edifício social, que obrigp a su-
visse o que eu vi, nem prevendo-o sentisse. •;
perposição dos andares e a inferioridade do
Passei a ser compositor. Ia encontrar de frente
baldrame.
o pensamento, como encontrará a industria. Ma-
São oriundos d'esta raça os peiores criminosos
ravilhou-me a infinidade de typos nos caixotins,
e ós revolucionários sublimes. Entre estes extre-
palavras reduzidas a migalhas, idéias pulverisa-
mos ha, porém, o meio termo, mais commum,
das ! Criei amor ao estanho dos typos. O es-
dos obscuros que succumbem, bloqueados na vai-
tanho vale mais que o bronze, porque se de
dade inflexível da imaginaria realeza.
bronze se pôde fazer o glorioso escriptor, de es-
* * A.
tanho se faz o livro. Ao metal do gloriado pre-
«Impossível ! monologava Aristo. Com os dia- firo o metal da gloria.
bos ! E' uma solução arrebatada, que não me Deram-me a compor esta phrase de um poetar
enthusiasma. Supprimir-me ! E' bôa ! e o meu Philosophia do mar: os menores peixes, devoram-
logar no refeitório da vida ? Então não lia um n'os os maiores. Assim os homens...
talher para cada um nesta mesa redonda, como E neste dia não compuz mais. E odiei o es-
não ha, no campo, um figo para cada pássaro ? tanho; voltei definitivamente ás Velhas sympathias
Quem me privou do figo nesta partilha ? Im- pelo ferro.;.
plorar . . . Mas haverá pássaros mendigos ? Ha
creancinhas que esmolam cantando; nenhuma E Aristo amaciava na palma da mão o ferro
outra miséria conheço qne cante, não ha lagrimas de um punhal, com a alma varada pela meditação
aladas ; a própria chuva, porque parece pranto, cruciante, sentindo rasgar-se-lhe aos pés a aberta
cahe na terra. Não será, pois, a vida como o es- por onde, mais dia menos dia, nos escapamos
paço, e as aspirações como um vôo ? Ah ! mas todos para a sombra.
refliclamos com justeza. — Aristo, vem commigo ; disse-lhe alguém ao
A NOVELLA SEMANAL 189
ouvido, uma pequena "voz de mulher, áurea e
musical.
Era uma visão de risos, trajando o vestido
ethereo dos sonetos de Petrarcha, maneando a
haste leve de uma varinha de fadas.
— D'onde vens,- desertora gentil dos contos da
infância, graciosa importuna do meu desespero ? A CARA DO MEU VISINHO
— Anda commigo, Aristo. Partamos para a
Independência feliz. Fui hoje informado pelo meu criado Evaristo
Céu vasto, de transparência inexprimivel. As de que os ladrões entraram na casáfdo meu vi-
alvas nuvens, por uma superfluidade de aceio, zinho Nuno e lhe tiraram das gaveta? todas as
iam, como esponjas, esfregando, uma a uma, as saas jóias e todo o seu dinheiro.
saphiras limpas do céu. Cobria-se a terra de Embora eu considere muito o meu vizinho e
pedraria, poeira scíntillante de gemmas; ergüíam-se estime a sua prosperidade^ essa noticia em nada
taludes de facetado crystal. Estranha vegetação prejudicou o sabor da vitelia que eu mastigava a
brotava. Perfeita floresta de ourivérsaria. Tron- preceito. Em todo caso, fui perguntando:
cos de ouro lavrado e folhagem soldada a fogo. — Então como foi isso ?
Atravez dos ramos reluzentes, a viração ia e vi- — Ós ladrões saltaram o portão do jardim, ar-
nha, fria do contacto metálico da selva, sem que rombaram a veneziana do quarto de banho e
o mais débil galho tremesse, sem que a minima passaram dahi para a salinha de «toilette», a qual
flor vacillasse no hastil. A's vezes, a um sopro tem /duas portas, uma para a alcova do sr. Nuno
mais forte, soltava-se um ramusculo com um es- e outra para o escriptorio, onde esvaziaram os
talido secco de agulha partida, ou uma flor de- moveis principaes.
,s,àrmava-se, e as pétalas cahiam, produzindo o
barulho de moèdínhás pelo chão. Nenhum outro — E ó Nuno?
rumor, nem um perfume, nem uma vida, em toda — Ò sr. Nuno dormia.
a paizagem, immovel e rutilante. — E os criados?
4í Desapparecera a fada com o rosto em risos e — Esses ficam fora, no «çhalet» do quintal!...
o vestido celeste, que descansavam a vista da crueza — E o guarda nocturno ?
das scintillaçÕes. O Evaristo levantou os hombros e esboçou um
' Brilhava no ar, terrivelmente, a claridade verde desses sorrisos sigriíficativos, de cuja finura eu
dos reflexos combinados das saphiras do céu e, nunca suppuz que elle pudesse ter o segredo.
do ouro da floresta. — E o cão ?
Horas passadas, Aristo teve fome,; exacerbou- — O cão, como late sempre, já ninguém faz >
lhe a sede a seccura cáustica do ambiente. Des- caso do seu ladrido. Eu bem o ouvi pela volta
cobriu pomos no arvoredo, inchados de maturi- das ires horas, mas suppuz que fosse para quem
dade, e gottas de orvalho no cálice das flores. passava na rua.
Mas, quando quiz trincar pomos, quebraram-se-
— E vá a gente fiar-se em cães...
Ihe os dentes contra a rija resistência da casca
dourada, e bebendo orvalho, puríssimos • diaman- — Nem nelles, meu senhor, nem nelles!
tes, aliás, foram-lhe as arestas da pedra, ensan- — Naturalmente, deixaram o portão aberto e
güentar o esophago. a tal janella mal fechada...
* ** — Talvez. O sr. Nuno', recolhe-se tarde e o
pessoal que tem na casa é fraco e distrahido.
<- Maldição ! maldição ! Que me trouxeram
ao inferno da pureza e da inflexibilidade ! •+- Veja lá si nos vai acontecer e mesmo!
A fada apparecendo : — Oh, não ha perigo. Emquanto eu estiver a
-— Eu sou, pobre Aristo> a fada Ironia. Guiei- seu serviço, aqui ninguém entra, a não ser pela
te á pátria inexorável do teu orgulho. porta e com licença.
E baixando a voz, a um tom confidencial: —
Rio — Í887. aquillo foi gente que sabe os cantos da casa e on-
RAUL POMPEIA de se guarda o dinheiro. O cozinheiro do sr.
190 A NOVELLA SEMANAL

Nuno joga ainda ainda mais do que uma canoa — E' exacto.
em alto mar... — Mas como diabo puderam os ladrões entrar
Puz termo á tagarelice do criado, engolíando- no seu quarto, sem que ps sentisse?
me na leitura do jornal, onde encontrei um ras- — Isso é que eu não sei explicar. Narcotiza-
gado elogio ao novo chefe de policia, cuja ad- ram-me...
ministração enérgica e bem orientada já se fazia — Achou-se mal ao acordar?
sentir por toda a cidade. , — Ao principio não. Levantei-me até bem dis-
Ainda na véspera, ao recolher-me á noite do posto ; mas quando percebi tudo, fiquei ator-
meu club, eu topara com vários homens estira- doado !
dos pela linha do cães, uns de encontro aos ou- — É' natural.
tros, dormindo nas pedras sem outra coberta que — Acredite que é uma impressão horrível, esta
a do delgado nevoeiro que me humedecia a mim de um homem saber que esteve á mercê de ban-
a lã do sobretudo... didos, que ao menor de seus movimentos o po-
Talvez que a boa orientação do novo chefe de deriam matar, sem que elle tivesse tempo de dar
policia se fizesse sentir no nevoeiro! um grito síquer!
Passou-me também pela memória o risco em que E ainda por cima disto e do prejuízo, o ridí-
eu estivera, horas antes, de ser esmagado por um culo; porque ninguém pôde negar que a situa-
automóvel, que descia como um raio a Avenida ção de um homem roubado seja ridícula 1
de Ligação, quando eu a percerria como nm sim- — Os ladrões naturalmente ficaram dentro de
ples mortal, que era a peor qualidade que eu po- casa...
dia ter no momento! E' verdade que o guarda — E' possivel... talvez em baixo da cama !
civil da esquina me ajudou a erguer do tram- — Quem sabe.."
bolhão e sacudiu-me o pó das calças. Essas é A esta hypothese, a cara do Nuno pareceu
que podem servir de testemunhas da energia que ainda alongar-se mais e mais se tornou macü-
se faz sentir por toda a cidade... lenta.
Sou dos que avaliam a civilização de uma terra — Mas ouvi falar em arrombamento de ve-
pela sua boa ordem policial. A minha não pri- nezianas... ,
mou nunca por essa qualidade e mais do que ne- Nuno não respondeu e continuou:
nhuma outra care:e de quem lh'a imponha com — Pois eu sou um homem corajoso e durmo
o tal guante de ferro de que ainda falam os pe- sempre com um revolver á cabeceira.
riódicos, em cuja prosa está todo o alimento men- E, depois de uma pequena hesitação: — pois
tal da nossa época. A nossa epiderme fina gosta até mesmo esse revolver os demônios me leva-
de caricias, mas nem sempre estas' produzem o ram...
, effeito benéfico de certas massagens scientificas — Que audácia...
dadas nos pontos fracos de oiganismo. Que — Já dei queixa á policia apesar de que não
venha de verdade a mão corajosa desse lisonjea- espero que ella me faça voltar para casa nem as
do reformador de costumes dar um pouco de ele- minhas jóias nem o meu dinheiro. Nada menos
gância e de corteziá ás nossas desmazeladas ca- de quatro contos...
madas populares e tranquillidade aos burguezes
honestos, em cujo rói estou eu* — Porque não ha de ter esperança? Nós agora
temos um magnífico chefe d2 policia, homem de
grande energia e muito caracter.
Quando sahi para a rua, a primeira pessoa As cousas começam a ser tomadas a sério no
que eu vi logo ao pé do meu gradil foi o Muno. nosso paiz, meu caro, e o senhor verá como o
Não sei si por defeito da minha visão, ou por seu caso se liquida em poucos dias...
que effectivamente se tivesse'dado um phenome- — Cantigas, rneu amigo! ' ,
meno exquisito, achei-!he a cara muito mais com- , — Verdades... c adeuzinho. Desejo-lhe bom
prida, como a querer virar-se do avesso para pa- êxito nas suas pesquizas.
tentear-me as suas decepções. Separei-me do Nuno, levando na mente a im-
— Então já sabe? ! perguntou-me elle pressu- pressão extravagante de que o seu rosto tinha
rosamente. crescido alguns centímetros de um dia para o
— Sim. Disse-me o meu criado Evaristo que outro. E tanto isso me fez espécie, que encon-
o senhor foi roubado... trando por acaso um physiologista meu amigo,
A NOVELLA SEMANAL 191

perguntei-lhe si a acção dos narcóticos usados pelos — Patrão, patrão, estamos roubados!
ladrões noçturnos exerce modificações visíveis — Hein?
nos rostos das suas victimas. Elíe repetiu a phrase, debruçando-se sobre o
Apesar de muito intelligente, o physiologista meu espanto. , Pulei da cama e ao procurar a
não me entendeu á primeira abordagem. Tive de minha luneta sobre a mesa da cabeceira verifiquei
narrar-lhe o facto, ao que elle retrucou que não que os ladrões a tinham levado. Um calafrio
acreditasse eu em narcóticos ministrados a gente percorreu-me a espinha, á certeza de que os pa-
sã por bandidos na própria hora do assalto. tifes tinham roçado pelos meus lençóes...
O cheiro violento dos anesthesicc* acordaria — Foi tal como na casa do sr. Nuno dizia o
qualquer mortal que dormisse, antes de o ador- Evaristo muito enfiado: pularam a grade do jar-
mecer artificialmente! dim ; arrombaram a veneziana da saleta, e esva-
ziaram as gavetas da secretária...
O meu vizinho não acordara, só porque ,tinha
— E você que ainda hontem me dizia não ha-
0 somno pesado, tanto quanto os ladrões deve-
ver perigo! bradei, furioso, voltando-me para o
riam ter sido cautelosos.
meu, criado, cujo queixo se tinha repentinamente
E a respeito do crescimento do seu rosto, disso
alongado como o do Nuno!
não sabia dar explicação... .' —' Felizmente, elles não puderam abrir o cofre...
Era a primeira vez que este meu amigo tinha murmurou elle como a desculpar-se, sem saber
a coragem de manifestar a sua incompetência que o cofre estava vazio...
para qualquer cousa, o que me tornou ainda mais Vesti-me á pressa com um terno velho, por-
curioso pelo que tinha succedido ao meu vizinho que os novos já deviam andar por longe, e sahi
Nuno. a queixar-rne á policia, na ingênua candura de
Quando cheguei a casa, disse-me o Evaristo que ella ainda me pudesse acudir.
que esse senhor mandara pôr trancas em todas A dois passos de casa esbarrei com o meu
as portas e janellas, campainhas de alarme até no vizinho, que, já informado de tudo, corria apôr-
se ao meu dispor. Não pude deixar de olhar
telhado e" fios 'electrizados no gradil do jardim...
tinha havido todo o dia grande azafama no cha- para elle com surpresa, tão differente o vi do que
let do lado — só a policia lá não puzera os pés. o vira no dia antecedente. O rosto estava sério
— Também para' que ? ! perguntei eu serena- como convém a quem lamenta um conhecido, de
mente. Os ladrões já lá não estão... um accidente desagradável; mas tinha voltado ás
suas naturaes dimensões de lua cheia.
, Evaristo sorriu, subtilmente, superiormente, co-
mo um verdadeiro Sherlock Holmes de avental. , Pareceu-me perceber mesmo um certo conten-
1 tamento através das suas pupillas pesarosas, e
Percebi. Elle ainda continuava a desconfiar do
então, empurrando disfarçadamente o meu queixo
pobre cozinheiro do Nuno.
para cima, disse-lhe rindo;
.* * A.
«Meu caro vizinho, fiz-me roubar para lhe
Depois de ter jogado e ganhado no meu club ser agradável, porque sei bem que não ha nada
è de ter passado a horas mortas pelos mesmos a que a gente menos se resigne do que a estar
homens que dormiam encolhidos e tiritantes so- isolado na desgraça...».
bre os Iagedos do cáes, entrei no meü quarto JULIA LOPES DE ALMEIDA.
com muito tédio e algum somno.
A extravagante singularidade que reproduz na
memória já quasi inconsciente de quem adormece
afigura do que mais nos occupou ou mais nos
impressionou durante a vigília fez com que já no
limiar do sonho eu visse a cara pallida e longa
do meu vizinho destacada no escuro como uma
mascara.
E adormeci.
.Talvez dormisse ainda si a voz, retumbante do
Èvàristo não me tivesse despertado ás seis ho-
ras da madrugada com palavras que me sobre-
saltaram:
192 A NOVELLA SEMANAL

trella á lingua: palrador incansável, vivia a contar


anecdotas em todas as rodas em que se achasse;
e como colleccionador paciente, que era, conse-
guira reter na memória um rosário interminável
dellas, — algumas picantes, de sal grosso, — sem
contar que ás vezes recorria á segunda edição,
conecta e consideravelmente augmentada.
A VINGANÇA DO Além disso, Teixeirinha era o orador forçado
e indispensável de todas as festas de Tapioca, e
T E I X E I R Í NH A correspondente do «Correio», semanário que se
publicava na sede do município, ao qual enviava,
Tapioca era uma pequena povoação, contando, com grande satisfação de todos, o movimento so-
bem apuradas, umas trinta casas, inclusive as ta- cial do districto. Por esse motivo, não havia cho-
peras. rincas recém-nascido que fosse levado á pia baptis-
Districto grande, más em sua maioria com- mal, que a mãe não corresse, pressurosamente, a
posto de terras safaras e estragadas, nada pro- levar ao mestre-escola, para ser registrada em le-
mettia a este paiz «essencialmente agrícola». tras de fôrma, a noticia de tão auspicioso acon-
Viviam os seus habitantes do- plantio annual tecimento.
da mandioca, já porque as terras não dessem de Das suas^peregrinações diárias pelo'diccionario,
si outra coisa, já porque eram elles indolentes, Teixeirinha annotava algum termo que não fosse
preguiçosos, incapazes de uma resolução, de um conhecido do vulgo, e, depois de o gravar bem
acto de energia. na memória, antegozando o effeito que ia pro-
E como a industria do logar fosse a fabricação duzir, atirava-o, com pasmosa prodigalidade, á
da farinha de mandioca, empregada no feitio do circulação.
bolo de que todos se fartavam a valer, d'ahi o Mas, quem sorria sempre, com o seu eterno
nome, Tapioca, embora alguém já por duas vezes sorriso malicioso, que deixava Teixeirinha numa
aventasse a idéa de mudarem-no para o de Sam- descocha, era o padre Feitosa. O mestre-escola,
paiopolis, em homenagem ao nome de seu illus- porém, não se dava por vencido, e reincidia: para
tre chefe . . . elle o vigário era um tolo, que tinha até medo
Todas,as tardes as pessoas da elite se.reuniam de falar...
em frente á botíca do Mendonça, e ali versavam Uma tarde em que o assumpto cahira sobre a
os assumptos transcendentaes e momentosos: a falta conferência da Paz, a Liga das Nações, o presi-
de trigo no mercado e a alta, em vista disso, da dente Wilson e outras mil coisas, o coronel Sam-
farinha de mandioca, para regalo do fu tu roso dis- paio, como homem entendido nas coisas da alta
tricto : a guerra com a Allemanhá, a conferência política, — emquanto o padre sorria e Mendonça
da p a z . . . pensava no seu preparado, — dissertou longa-
Faziam parte da roda: o coronel Sampaio, chefe mente sobre a nossa posição na política interna-
político do novel districto, Teixeirinha, o mestre- cional, cooperando pela derrota da barbaria...
escola, o padre Feitosa, vigário da parochia, e o Teixeirinha, porém, que, como homem lido, era
dono da casa, o boticário Mendonça. pela. cultura, discordou, criticando a imperdoável
O coronel chefe éra homem entendido, segundo leviandade do paiz em se pôr ao lado da França,
se dizia, nas altas coisas da nossa política; Men- e rematou pausadamente, carregando no adjectivo
donça era o feliz auctor de um preparado, ainda •encontrado na véspera e que ia empregar pela
em experiências, que curava tudo, e dizia cobras primeira vez:
e lagartos das escolas de pharmacia «que proli- — Falem os zoilos, mas a Allemanhá ainda não
feram em nosso meio corno os cogumelos, for- está derrotada ; ha de levantar-se, em breve, para
mando verdadeiras nullidades que impam, solen- a conquista do mundo! Digam o que quizerem,
nes, sciencia e quejandas, mas que não sabem meus amigos, mas a Allemanhá ainda é uma in-
fazer uma pílula» . . . gente» nação...
O padre Feitosa era homem prudente e calmo; E' que Teixeirinha, nas suas rebuscações da
parco no falar, parecia ter especiaes cuidados com véspera, encontrara, no diccionario, ingente >
a economia do seu apparelho vocal, e limitava-se a como synonymo de «grande».
sorrir, maliciosamente. Teixeirinha, ao revez, dava Se os demais lhe não penetraram o significado
A NOVELLA SEMANAL 193

e ficaram boquiabertos, o vigário não poüde mais sica, e, pasmados, viram todos que no coreto/lin-
conter-se, e, ao envez de se limitar a sorrir, como damente embandeirado, estavam Iáyá e Meliça,
fazia sempre, rompeu numa gargalhada sacole- duas intelligentes alumnas de Teixeirinha, vesti-
jante. E, como o riso é contagioso, os outros, das de branco e de fita azul nos cabellos e com
sem saber ao certo porque, désmandibularam-se um papel na mão., A cadeira que lá estava, in-
também a fartar... , dicava que ia haver falação.
Teixeirinha, cahido num serio, entrou-se de du- O vigário não poude encobrir uns resaibos de
vidas sobre o termo empregado, mas, ao cabo, despeito e cõntrariedade: não sabia, daqüillo, não
considerando bem que elle lá estava, no diccio- estava no programma. Teixeirinha, porém, tra-
riario, para quem o desejasse vêr, e que a sua balhara na sombra, ê para não apparecer, incum-
memória nunca o trahira, attribuiu a explosão do biu o coronel Sampaio de dar as tintas . . .
vigário á inveja, que o mordia;1 por ouvir alguém Iáyá, que era a mais espevitada, trepou logo a
falar com tal pureza de linguagem. cadeira, e leu, muito alto, o seu ^discurso, sau-
Jurou de si para dentro que havia de se vingar; dando, com uma adjectivação estonteante, amais
engatilhou o seu ódio e esperou a occasião asada alta auctoridade ecclesiastica ,dá diocese. E pal-
para desandar o tiro no pobre do vigário... mas fragorosas resoaram ali após, o ehthusiastico
* • % * discurso da menina. A banda, como é do estylo,
E a occasião não se fez esperar. se fez ouvir em seguida, os sinos bendelengaram
Np primeiro domingo, após a missa, o padre de novo e os foguetes de três bombas subiram
levara ao conhecimento dos seus parochianos que pelo ares. '
acabava de receber uma carta do 'secretario do Depois, Melica subiu á cadeira, e, mais acanha-
bispado communicando-lhe que o sr. Bispo, que da, com voz sumiça, começou a recitar o seu
se achava em visita pastoral, resolvera chegar até discurso, emquanto Iáyá lhe ficava ali, ao lado.
Tapioca. Chamou a postos os seus parochianos, Não tinha, porém, a menina chegado ao fim
recornmendando-lhes que envidassem todos os es- da primeira tira do papel, qu ando Iáyá, pasmada
forços possíveis para preparar a sua exa. revma. exclamou muito alto : ,
uma digna recepção', como merecia, maximé atten- — Gente! esse discurso é o meu ! . . Melica
dendo-se a que era a primeira vez que Tapioca perturba-se, vira-se para o lado e revida com ares
ia ter tão subida honra. de choro:
A npticia, num abrir e fechar de olhos, alas- -*• Seu, não senhora, sua lambida!
trou-se por toda parte, repetida de bocca em bocca. — Lambida é ella, ouviu ?
• Teixeirinha exultou de contentamento, esfre- — Eu, não senhora! — replicou Melica, e quiz
gando as m ã o s . . . '; continuar, mas Iáyá teimava, batendo com u'a
D'ahi a uma semana, o povo.todo de Tapioca, mão fechada na outra:
tendo á frente, as suas mais altas auctoridades, ia — E' o meu, é o meu, é o meu 'ta' hi!
á entrada da povoação receber o sr. Bispo e sua Murmúrio, desaponto, hilaridade.
comitiva, não faltando, para realço da festa, o E' que Teixeirinha!, o maroto, escrevera o mes-
comparecimento de uma banda musical, vinda ex- mo discurso para as duas meninas, e recommen-
pressamente para tal fim, da sede do municipio. dara-lhes que guardassem o mais absoluto se-
• A's„tantas, assomou na volta do caminho a co- gredo, — pára causar uma grande surpreza, dis-
mitiva, e os foguetes estrugiram no ar, com o sera elle. O sr. Bispo sorriu-se; mas o padre
bimbalhar alegre dos sinos. Feitosa, que comprehendera tudo, perturbou-se
Depois das apresentações da pragmática, a comi- da cabeça aos-pés; .e, antes que a tempestade
tiva, acompanhada pela multidão, que, radiante, desencadeasse, livido como a morte, nervoso, com
dava «vivas» ao illustre prelado e á religião, di- um signal imperativo, deu ordem á banda para
rigiu-se immediafamente para a egreja, ao som tocar, e ao sacristão, para puxar com força o
da cháranga, que atacara um dobrado», com badalo.
os seus respectivos pratos e bombo. E a ordem foi executada: a banda tocou, es-
O padre Feitosa floria no* rosto toda a alegria poucaram os foguetes no ar e os sinos repicaram
que lhe ia no interior: Tapioca, a exemplar Ta- ensurdecedoramente, emquanto o prestitó se mo-
pioca dera uma bella nota de si! via para entrar na egreja.
1
Ao chegarem, porém, em frente á egreja, o co- E Teixeirinha, de longe, a rir, a rir a ban-
ronel Sampaio mandou fazer alto: cessou a mu- deiras despregadas, da peça que pregara ao padre...
194 A NOVELLA SEMANAL

fome, abriu-se-lhe um dia a duma fabrica de te-


Desse dia em deante, o vigário não se riu mais cidos, onde havia trabalhado quando menina.
dos adjectivos de Teixeirinha, que usou e abusou Alugou um pequeno quarto no Belemzinho e
delles a seu bel prazer, convencido de que o pa- durante o dia, o seu filho ficava em casa, entre-
dre não o molestaria mais com o seu sorriso gue aos cuidados de uma velha napolitana, doente
zombeteiro. e hemiplegica, que fora penteadeira, quando forte
Não deixou, no entretanto, de chegar aos seus e menos usada pelo tempo e manuseada pelos
ouvidos — as más línguas nunca faltam ! — que homens, de Marieta e outras rascôas, desabaladas
o vigário, com o seu eterno sorriso malicioso, que escondiam o nome de família sob o manto
carregando no adjectivo, dizia a todos, que o ou- de Zazás, Fifis e Frufiis !
viam boquiabertos, que elle, Teixeirinha, era, na
verdade, — um «ingente» homem . . .
N1COLAU PERO Luiz crescia á solta, por entre uma alluviãode
outros gurys peraltas e safadinhos. Era ágil, ar-
guto, vivo, como são todas essas crianças que
vivem em liberdade, entregues aos seus próprios
í'<" , ,'Í l!±J d'^
instinctos, nos meios populosos em que a ladinice
e a malícia se respiram no'ar...
Ausente do carinho materno, desabrochava ro-
busto como um broto germinado no flanco de
CHHI STO uma arvore plethorica de seiva. Confirmava-se
nelle a sentença popular: filho de ninguém traz
os germens de todas as qualidades !
Luiz era filho de pães anonymos, filho da mul-
tidão, filho de ninguém! Bem perto de onde morava, havia uma bella
Marieta, sua mãe, concebera-o por descuido, casa, de aspecto feliz, residência de uma família
uma noite de aventura e galanteria, quando tinha abastada, possuidora de muitos filhos.
approximadamente uns 20 annos. Todos os dias, ali pelas 6 horas da tarde, o pae
Na idade em que todas as mocinhas flirtam e entrava, e ao chegar ao portão do jardim, era
namoram innocentemente, ella, sosinha na vida, recebido pelos filhos que lhe saltavam ao redor,
já tinha uma noção acabada da ferocidade dos alegres e satisfeitos, chamando-o ternamente de
homens, com todo o complemento das suas ani- papae: e Luiz assistia a este espectaculo de
malidades, manifestadas sob todos os vicios : e ternura e não sabia explicar porque é que todos
conhecia também o cynismo dos proxinetas e das os meninos tinham pae e elle não tinha! Come-
inculcadeiras das casas de tolerância. vava a surgir no fundo de sua infantilidade, o
primeiro vislumbre da razão. E ficava triste, com
Luiz entrou na vida a golpes de "forceps", gra-
vontade de chorar...
ças á perícia de um gynecologista.

A mãe, sempre mourejando na fabrica, parecia


Impossibilitada por diversos motivos, de se- ter tomado a vida a sério, e trabalhava sem tré-
guir essa mesma vida que seguiu Maria Magda- guas, como se quizesse refazer e limpar, com um
lena, antes de conhecer o Rabi, concentrou toda presente de sacrifícios e extenuações, todo um
a sua attenção sobre o seu filho e procurou tra- passado de, ignomínias-e ociosidades. Assim que
balho. Desnorteada na rotunda da vida e asse- pilhava um tempinho fora da fabrica, costurava
diada por todas as difficuldades, ia á busca de vestidinhos do seu filho e dos filhos de outras
occupações, mas o seu aspecto de ex-rameira pouco mulheres suas visinhas e companheiras de serviço.
a recommendava, embora ella appellasse por to-
dos os disfarces possíveis. Atravez da sua mo-
déstia, analysando-a bem, gritava sempre a mulher Approximavam-se as festas do Natal, e ella toda
que desdenhara a boa conducta : faltava-lhe o entregue á confecção de umas calcinhas para o
habito da honestidade. seu pequeno, feitas dum vestido seu, que conser-
Mas, á custa de bater em todas as portas, que vava no fundo da mala, de optima casemira, ves-
se lhe fechavam, como a querer condemnal-a d tígios ainda da sua loucura."
A NOVELLA SEMANAL 195

Costurava e quando a roupa que cosia lhe evo- espadaúdos rapagões, filhos de italianos quasi to-
cava o passado, se levantava lentamente e ia bei- dos, estacionam para1" ver passar as Rosinhas, as
jar a cabeça de seu filho adormecido. Uma noite, Conchetas e as Pimpinellas que vão á igreja.
faltando poucos dias para o Natal, o pequeno ac- FJirt não ha ! A plebe não perde tempo com
çorda sobresaltado e chorando, chama pela mãe cousas inuocentes e inúteis.
e depois pelo pae. mstinctivameiite. A mãe affli- Grupos dispersos namoram muito agarradinhos,
cta não sabia como consolar o filho. E acaricia-o nessa distancia fatal em que os lábios dizem pa-
ternamente: — papae? sim, elle vem..." Dorme, lavras que são projectis atirados ao coração.
meU filho, elle está viajando. Na, noite de Natal
virá com sapatinho branco cheio de doces. Dor-
me, meu coração ! Dprme ! . . . O babaréo cresce na proporção directa em que
Luiz adormece novamente. Ella, para espaire- as ruas vão enchendo de povo. Luiz, que a essa
cer um pouco, abre a janella que dava para um hora dormia, accorda, e como a sua mãe lhe
guintalorio cheio de latas e roupas estendidas no havia promettido que o seu pae viria na noite
coradouro. Olhava para todos os lados; tudo em de Natal, interroga-a : — Mamãe, não estamos na
silencio. noite de Natal ?
Levantou a cabeça para o ceu e com os Olhos — Sim, meu filho, daqui a pouco nasce o Me-
humedecidos contemplava a lua solitária que es- nino-Jesus!
palhava um brilho monótono e suave, como se —- E papae, parque é que não veiu ?
fosse o olho de "alguém" qae estivesse espiando —- Papae ainda não chegou da viagem. So-
lá do alto esta dolorosa scena',..
çega, qualquer dia elle apparece.
— E' muito longe lá onde. foi papae?
No dia seguinte, o menino, quando brincava Emquanto Luiz pasava por um curto silencio a
com os outros, ouvia de espaço a espaço, contar mãe procurou um pequeno retrato que tinha
que na noite de Natal nascia o Menino7Deus, e guardado, encaixilhado numa moldura ordinária,
que. por isso iam com papae e mamãe á missa estrelada e pintalgada de manchas cinzentas. E
dó gallo ver o presepe; levando-o aos lábios da criança, diz fervorosa-
mente : — beija-o, meu filho, é o retrato de
Luiz, filho espúrio, era a personificação desse seu pae !
phenomeno inexplicável que põe os physiologis-
tas que nutrem velle^dades de nobreza e desmen- Luiz afaga-o ternamente contra o peito e apoia
tem que ha no fundo genesico da plebe qualida- a cabeça contra o travesseiro, balbuciando : —
des geniaes, em. constante alarme. papae . . . papae... papae... e adormece religio-
samente com o retrato de Christo sobre o peito.
Producto dessa força que plasma, no seio do
A mãe soluça de joelhos aos pés da cama, mur-
anonymato, os typos excepcionaes e de eleição, o
pequeno tinha todos os sentidos, para comprehen- murando.: — Christo! pae de todas as crianças
der a vida, mais abertos e evoluídos que os ou- que não têm p a e . . . sê na noite de Natal o pae
tros de sua idade. de meu filho . . .
SYLVIO FLOREAL
Além de não ter pae, arrastava a fatalidade da
precocidade! E a, idéa de ver o seu, pae crescia
em seu cérebro tenro com toda a força de sua
innocencia, aggráváda tenazmente, pela potência
maldita de ser uni menino precoce!

'' 25 de dezembro. > Ceu loucamente estrelíado.


Meia noite... Natal ! Os sinos batem nas tor-
res de todas as igrejas. Belemzinho em peso se
movimenta para ir assistir á missa do, gállo. Ha
ruidos de malas que se abrem para tirar frescas
camisas o vestidos engommados de mulher. Bal-
burdia em todas as esquinas, onde magotes de
1% A NOVELLA SEMANAL

caçada; acolá, em attitudes macabras, recurvos e


entrelaçados, verticalmente afundados pela areia
movediça, uma infinidade de ossos que foram
braços resolutos, carcassas expostas á braza do
sol, estrueturas que tiveram vida na engrenagem
gasta dos tendões apodrecidos.
„ A velha, na angustia de uma solitude que a
TRAPOS DA VIDA (CONTO PHANTASTICO)
collocava, única, com trez creanças, dentro de uma
natureza ingrata, agonizava no soffrimento atroz
da jndecisão. Não concebia o que fazer. A se-
Era alta e esgrouviada como um canniço que, de corroift-lhe a garganta e para enganar a fome
desageitado e reincidente, lucrasse contra o ven- chupava a immimdicie dos cabellos que o desa-
dava! do brejo, mantendo a sua linha. Tinha linho atufava em sua bocca. Faminta, mais que
nos olhos duas fogueiras, duas lantejoulas rebri- os infelizes entes que eram o contrapeso da sua
lhantes, que eram o único adorno do corpo de dôr, sahiu á cata de um naco, um feliz encontro
miséria. No craneo, > uma confusão imuumda de que lhe suavisasse a angustia. Vagou, vagou,
cabellos brancos; sobre o ventre, sobre o dorso, triturando ao acaso, nos cacos da dentadura, pe-
umas faíripas de trapos; nos pés, a carne mia. d roucos de terra que apanhava de quando em
A casa em que se açoitara, á maneira de bruxa quando. A fome dava-lhe uma anciã de masti-
que repelle pelo aspecto e pela attitude ascosa gar, que não continha. E batia os maxillares,
das maneiras, firmava no seu contorno exótico lugubremente.
uma mina de paredes, sustendo, numa heroicida-
O sol fazia já o termino da sua curvatura pelo
de, o tecto que era a vida, os poucos madeirames
espaço azul-roxo de um firn de tarde, quando
que eram o balsamo da sombra contra a combu-
chegou ao casebre. Nada encontrara. Á visão
rencia escaldante de um sol a pino.
continuada das ossadas do caminho, tinha a im-
Pleno Ceará. Modorra e mormáço. Deserto
pressão de sentir a morte agora, a bater a sur-
tudo, na apparencia visível de uma calamidade.
dina da sua platigencia fúnebre no seu peito.
Os últimos habitantes da villa desertaram ha
Tropeçava. A custo arrastou-se até os pequenos.
horas. Ninguém, nem um sussurro mais de voz
Ouvia-lhes o choro abafado.
humana. Fora-se com a ultima madrugada o ul-
timo gemido de faminto. Mornidão apathica en- Quando entrou, de sob a caricia do tecto de
gulindo actividades na anciã de crestar e de sorver. sombra, e, acocorada como uma hyena, procurou
E, naqueüe abrigo, exposta á surprezae á tor- tactear, suas mãos descarnadas encontraram um
tura de uma solidão avara, deixaram-na, por velha corpo morto. Um delles estava frio e hirto. ,Os
e gasta, com trez creanças que a mãe, na loucu- outros dois na anciã de continuar o choro, es-
ra da retirada, esquecera ou abandonara. tertoravam.
Sahiu, um momento, á soleira, tropega, sedenta, A conjuneção da desgraça não lhe arrancou
estirando o olhar ao iéo, na anciã de implorar a um soluço. Quiz clamar, quiz enlouquecer em
gotta d'agua que continuasse a vida. gargalhadas, mas, como um maior castigo, a ra-
Dentro do casebre, os trez pequenos infelizes, zão lhe ficava lúcida, clara, para a percepção in-
no desespero que precede aos supremos esterto- tegral do soffrimento.
res, unisonos num berreiro, choravam em con- A noite chegara. Um somno passageiro en-
vulsão. volveu as cousas todas e os quatro corpos.
Fora, o sol se divertia. Arvores espaçavam, Na manhã seguinte, ao despontar de novo a
despidos, os galhos mis, os troncos hirtos. De flammivoma fulgencia do sol de braza, sob a ale-
quando em quando um grito de abutre seguia o espi- gria horrível da luz, havia mais um corpo frio.
ralar de um vulto no espaço amplo. E a cai nica Era a fome que trabalhava em gradações. Pouco
humana alava-se em parcellas pelos bicos recur- a pouco, a morte estendia mais, abarcava mais o
vos dos rapaces. No solo, como reticências de seu domínio.
ironia sobre a vida exuberante da terra que ra- Semi-louca, como quem decide uma resolução
chava de calor, desdobravam-se nas posições der- que não retrograda, quiz fugir, furtar-se aquelle
radeiras da tortura que os anniquilára — espectros horror, mas faltaram-lhe as forças. Ha cinco dias
da morte — esqueletos e esqueletos. Aqui, cra- que comera o ultimo resto na visinhança e ha
neos recortados ainda das pellancas da carne espi- uma dezena que os habitantes se alimentavam
A NOVELLA SEMANAL 197

dos cães e gatos do povoado. E, a^ora, nem ósseo dos horríveis braços despido 'onde a pelle
mesmo um gesto de vigor, que lhe ajudasse a se engelhava, e fugiu. Fugiu dali sem destino,
vencer aTethargia do seu corpo mórbido. De- andando quanto podia, quanto lhe dava ainda a
finhava. vida, desafiando o fôlego que lhe faltava a espa-
Ao seu lado, o ultimo vivente gania um fio de ços. Então parava. E assim, mais um dia se
soluço. Morria também. E qualquer cousa gri- passou nessa jornada. ,
tava-lhe n'alma que o não deixasse morrer. Não Como a creança se habituara a comer, chr>
era possivel, não devera desapparecer na garra rando por novos bocados, viu-se, na coragem es-
da fome, como ou outros. Urgia uma victoria tonteante do desespero, constrangida a usar, na
ao menos, sobre a morte assoladofa. Um peda- falta de outra, a sua própria carne. E deu den-
ço de carne, qualquer cousa solida que lhe illu- tadas em si mesmo.
disse o estômago minúsculo. Pouco a pouco; porém, seu corpo seria uma
De repente, resolveu. Os dois outros corpí- chaga enorme. Não haveria, dali por deante,
nhos eram carne morta, de vez. Era horrível, espaço ern branco onde nãó se apresentassem em
era, mas devia aproveital-os. Atirou-se, decepou- todo o seu horror, as rííanchas sangrentas das
lhes com os dentes nacos brancos que a. condição feridas abertas. E aquella carne, aquelles farra-
cadavefica enrijára, e, triturandoros quanto podia, pos seccos de pelle, iriam faltar também.
deu-os a mastigar ao pequenino. Era a morte De repente, não poude mais. O sangue que
dando vida á vida! perdia arrastava-lhe o ultimo alento. Tombou/
1
E a creança resistia ainda, saciando-se, innocen- desfallecida. A creança rolou-lhe ventre acima.
te antropóphago, desse modo' incrivel. Nesse momento, cahia suavemente a noite
A infeliz proyocadora dessas scenas extinguiu morna.
com o seu próprio appetite os últimos restos.
Foram-se mais dois dias, e, no terceiro, aquel- E quando o novo sol iniciou a, sua faina de
la iguaria lhes< faltou também. Medrosa, então, causticar e comburir, a creança inda vivia, de-
de se finar ali antes de uma salvação possivel, a bruçada sobre os bracinhos recurvos, mamando
anciã acertou solucionai a desgraça. Ergueu o sangue dos peitos pellancudos da velha morta.
corpo magro, tomou o pequeno, pôi-o entre o élo MANOEL VICTOR

Acaba de apparecer a 4.a edição do

POR LEO VAZ

PREÇO: 4 $ 0 0 0
PEDIDOS AOS EDITORES;

MONTEIRO LOBATO &C. * c , ™ ÍTPÜÚ"


A NOVELLA NACIONAL "Volumes publicados:

A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por


série "cie pequenos livrou, nos quaes AMA HEI i AMARAL, o suecessor de
se mira ao seguinte escopo : oflerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira._
a melhor leitura, sob a apresentação "E' no gênero uma verdadeira obra
mais artistica, ao preço mais barato prima „ — - disse desta novella o grande
possivel. Os objeetivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, cie que é clirector o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n t i a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor cio ''Professor Jeremias"',
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 */, X 12 </2 centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor ^
e illustraclo com numerosas e artisticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,'1
gravuras, contendo uma obra completa ÍIEROES E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

OS NKGROS

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume. líftOOO em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado lítp'300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados:
Série de três novellas
3$500 ; série . de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr. Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO
..Vi*-
Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da
Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — Là, foges, Heonselhou-ma um, etc.
ANNO 1 SÂO PAULO, 23 DE JULHO DE 1Ô21 NUMERO 13

ANOVEIXA
SEMANAL

toCEDITX>I^OIJBG4raORIBEmO-RDfABRANCHES,45-SPAl^^
A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR: BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AOS SABBADOS


Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphabetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em oollecçõeB
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um'opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num oireulo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extracção no
cioso : o livro não se diffunde entre nós porque é caro mercado livreiro, desta-cará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se difiunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias do grande e pequem)
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didaoticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares o se esgotam edições sobre edições . . . — as que sojam a melhor mostra do livro e do auotor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame. muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da creação deste periódico. mente nunca teriam. K isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tonaal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possível pela escrupuinsa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção 71e cada võiüme, '6' depoiS'-usar de t o - mesmo tempo que um abundante" repositório-de-infor-
dos os meios para odiffundir em todo o território na- mações bibliographicas, uma selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor oo-
sociaes, desde as mais culta* ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
£;ramma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando no mesmo tempo da natureza do livro nos.a collaboração especial, de um punhado dos mais,
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as \anfagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, será vendida a preço intimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheoi-
apregoada nas ruas, nas estradhs de ferro, em toda 7^ar- dos p desconhecidos, consagrados e estreantes,comtfinto
ic. a toda geme : mas não será iutil e de ingresso o- oue taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phemero como ella : pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A NOVET. LA. isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros..que se encadernarão no fim de cuia
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Proferimos dar maior desenvolvimento á ediçito do
uma bibliotheea literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volum es por serem esses os
gêneros que contam, entre o publico, maior'numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
e creanças. senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
curiosos, pela totalidade, emfim. da população ledora, Todos os outros gêneros terão o seu logar no nosso
procurará nos auctores a vida, a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a sç tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas lelras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos, Não seria este o melhor meio tlc se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathico.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- Os EDITORES.

Aos auctores
Aci-eitaremos com prazer toda col- queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessant c para qualquer Aos leitores que nos enviem relações de auctores
das seccões desie periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores oo\ cm nos remetter os na ser lida em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seunome. villas, povoações. estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, boteis, c.lulis, bibjiotheeas, etc.,
ferecem a sua collaboração. estando porisso orgauisando um ser-
viço de distribuit-ào que será o mais
Importante
Os originites devem ser escriptos de Toda pessoa quo angariar três assi-
um só lado do papel, em calligraphia completo possivel, de sorte a nao ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legível e de preferencia dactylo- ver ponto ilo território nacional onde enviando-nos adeantadamenfe a res-
graphados. não tenha leitores e mio seja encon- pectiva importância, terá direito a
Toda a correspondência deve - ser trada á vendji. .para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
e-nrio Ribeiro — Caixa postal n. 117- nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de, brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará interessar pela venda ou leitura des- sil, no \alor de 20 o|o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo. te periódico em qual.píer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor. preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptoies e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, Anno . , 20$000
indicações. alim de lhe- poder divulgar a obra.
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre . . 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . . 5$000
lém disso uma'noticia critica. fornecida, rogand a todos quantos $400
Numero avulso . .

SOCIEDADE EDITORA OLEGARlOJIBEIRO-fi. Br. Abranches, 43 Caixa Postal, ll/Z-Tiliph.: Cidade, 5441 -S.
ANNO I A NOVELLA SEMANAL São Paulo, 2 3 de Julho de 1921 NUMERO 13

A VELHINHA
Arinos.
Affonso

MA' SINA—Lucilo Varejão.


SUMMARIO Vid^a literária — Oéca Tatu
na Argentina - JVUsotJi.
GALVKZ HI.TO.
Curiosidades literárias —
0 NATAL DE V p L T A I R E Ponson duTerráil, poeta.
— Eduardp Prado. A V O — Godofredo SUPPLEMENTO — A vida — O "taotilismo,, - ' S .
A ERMIDA — Rodrigo Oc- Rangel. anecdotica e pittoresca J — Um discurso proferi-
tavio. TIO D A ESCÓCIA — dos grandes escriptores do pelo gfammophoiíe.
0 PODER DE D . DOM1- Lúcio de Mendonça. ' — Uma carta inédita -de Os nossos poetas — Simões
TILLA—V*" a t o Corrêa. Enclídes. Pinto.

A VBL H INHA
•*• Quandb, já tião me lembra; mas foi em tempo ras, de uma pobre salinha, pela janella aberta so-
que vài longe. bre a rua, não só telas descobridas, como um an-
Passeiava uma tarde por uma .tua solitária de tigo cravo, primoroso na fabrica, incrustado de,
pequena cidade em ruína. Ao defrontar umá ca- bronze e ornado de finos lavores de talha na ma-
sinha de gelosias abertas, mergulhei o olhar indis- deira negra prenderam de todo a attenção.
creto nas paredes interiores, onde me pareceu di- — Restos de uma grandeza extincta! que triste
visar telas antigas — magníficas talvez — esque- fadario vos impelüu ao casebre mesquinho de
cidas alli, ou melhor, poupadas á» profanação quem por certo, vos não conhece a historia nem
de algum adélo pela providencia bemfazeja de o valor ? Cravo centenário ! que .languidá . aça-
uma lembrança querida queellas representassem., fata ou melindrosa sinhá-moça esflorou o marfim
Nesta nossa terra, onde as tradições tão depres- de teu teclado, desfiando o rythmo grave de uma
sa se apagam, tão cedo se esquecem as velhas dança solárenga ou, a furto, a dénguice feiticeira
usanças, —, o encontro, muito raro de algum ob- de um fado villão ?
jecto antigo, tem sempre,para mim alguma cousa Isto pensando, aderguei a uma pequena porta ao
de delicado e commovente. Moveis ou telas, pa- lado, cuja aldraba a mão ergue involuntariamente.
peis ou vestuários — na sua physionomia esmae- Neste ponto, o sonho corpeçado interrompeu-sé e
cida, no seu todo de dó — elles me falam ab sen- eu, desconcertado, verifiquei a indiscreção daquel-
timento como uma musica longínqua e' maviosa le passo. Nova reflexão succedeua esta: um pouco
onde se contam longas historias de amôí, ou se re- daquelle fatalismo a ^ u e o grande Loyola entre-
ferem dramas pungentes de hão sabidas lutas e gou a solução do primeiro problema de sua vida de
misérias. i peccador já redempto e de seareiro de Deus no
0 espirito se compraz, então, no tecer uma tra- grande agro do mundo. — Ora, se cá vieram, ter
ma de romance ou de tragédia, em que cada um meus'rpassos, não será sem alguma funda causa
dos velhos objectos vive na vida de mil perso- ignota. Entremos.
nagens evocados; Uma longa estrada, sinuosa e Bati algum tempo e, não acudindo alguém de
brancs, se rasga para o paiz do sonho, e a alma, dentro, entrei sem mais cerimonia. Puz-me a
seguindo-a, deixa embular-se como Leilah, ao som examinar um quadro a óleo com uma velha mol-
de guzlas; ou á plangente harmonia das bailadas. dura de madeira envernizada; reprentava dom
O certo é que, ao perscrutar, as paredes^escu- João V quando infante, na posição e na edade.
202 A NOVELLA SEMANAL

Era uma criança loura de rosto vivo, vestida de cava requintes de luxo e de gaíanteria numa corte
camisola de seda branca com uma larga faixa azul; já morta.
tinha na mão esquerda, a modo de menino Deus, *A mulher demorou-se um pouco, polindo, tal-
um orbe, e na direita, um sceptro de marfim. A vez, o crystal de um velho copo ha longo tempo
um lado, sobre uma grande almofada de velludo fora do uso.
côr de granada, fulgia o escudo d'armas dos Bia- Quando voltou, corri ao seu encontro, por evi-
ganças. tar-lhe alguns passos mais, e, emquanto bebia, de-
Passei ao cravo e admirei a perfeição do puro morei a vista sobre aquelles restos venerandos de
estylo Luiz XV, artificioso, airebicado, mestireiro, uma — quem o sabe? — talvez e^tincta bel-
revelando no bem acabado da minúcia, no traba- leza.
lhado do pormenor, as mil regVas da etiqueta do — Agradou-lhe aquillo? perguntou-me apon-
tempo. tando para o cravo. Foi da casa de meu sinhô.
Na grande taboa inteiriça do fundo, sob o te- — Mas que é dos filhos ou dos netos de seu
clado, avultava um bello corpo de Baccho, coroa sinhô? Elles não quizeram ficar com isso?
do de pampanos, trazendo nas costas, em fôr- — Elle não deixou filhos — accrescentou a
ma de manto regio, uma grande pelle de tigre. velha com voz sumida.
Aos cantos, anjinhos ^anafados, com cintos de — Ah ! não deixou filhos...
rosas cahindo-lhes nos quadris roliços, abraçavam Ella abanou a cabeça e ficou alguns momentos
os fustes de columnasinhas e tocavam com os pol- de olhos abertos, vagos, vagos...
legares estendidos as folhas do acantho, como se Eu, fingindo não perceber sua commoção, le-
esforçando por colhel-as. vantei a cabeça: deparou-se-me, então, dependu-
rado num torno de madeira, um chapéo de homem.
Um leve ruido fez-me voltar o rosto e ver en-
— Mas a senhora tem um filho, não é ? Seu
tão, emmoldurada pelas hombreiras da porta, ao
filho faz-lhe companhia, não é assim, minha tia ?
fundo, uma estranha figura de mulher, vestida de
Está trabalhando fora com certeza.
algodão muito branco, com o torso pendido a
uma dôr intensa, sopitada a custo, e a physiono- Do tamborete de como onde se tinha "sentado,
mia cançada, emmurchecida, repuxada de rugas, a velha surprehendeu-me a olhar; levantou os o-
onde mal se adivinhavam os olhos sem brilho, qua- Ihos também, mas baixou-os logo, escondendo o
si inexpressivos, a não ser um «quê; muito fu- rosto nas mãos.
gaz de carinho, que nelles boiava ainda como uma Esteve assim muito tempo... Depois, como que
flor desprendida da haste e já quasi fenecida, continuando um período já começado, disse :
flucruando na superfície de um lago dormente. — Coitado ! assim desamparado... ninguém sa-
be !... Nem o consolo de um logar bento...
Meio admirado, meio constrangido, por ter pe-
— Como!?
netrado, sem mais nem menos, naquella casa des-
Ella fez-me um gesto, e por elle comprehendi
conhecida, dirigi-me para a mulher e balbuciei:
que seu filho era louco. Depois, quasi por mono-
— Perdôo-me a confiança. Tinha andado muito syllabos me fez comprehender que o desventurado,
pela cidade e estava com muita sede... Bati; não sua uuica alegria, apesar de enfermo da mais
vendo gente, entrei assim mesmo. Perdôe-me a triste das enfermidades, - - desapparecera de casa
confiança, não é ? havia mais de dez annos, sem que soubesse até
— Sente-se, nhonhô: vou buscar a água — então de seu destino. Era crença de todos que
disse-me ella com voz trêmula, e sahiu, queren- fora arrastado pela corrente do rio ou tragado
do fazer-se pressurosa, arrastando pelo chão as chi- por algum boqueirão da serra. — «E acabou-se
nellas de couro. tudo» — accrescentou. — «Nem mais esperança,
Ao voltar sobre os passos para entrar no inte- nem nada 1» Depois, apanhou a barra da saia e
rior de casa, pareceu abafar um gemido... E iá nella tentou afogar o pranto.
foi, -apoiando-se ás paredes do corredor, sempre — Que pagina sentida escrevestes, ó interpre-
curvada, premida sempre por uma dôr que seus tes do coração humano, que dôa mais do que a
lábios não diziam, mas seu aspecto nos contava só vista desse velho pergaminho mudo engelhado
de modo a fazer pena. no rosto da velhinha ! Essa dôr infinda e resigna-
Sentei-me nufn catre grosseiro, mesquinho, cujo da, essa dôr desamparada e humilde naquelle des-
assento era um tecido de couro crú, destoando do pojo humano é mais dolorosa do que a do mytho
cravo, tão elegante, tã'i aristocrático, que até evo- ímmortal de Prometheu.
A NOVELLA SEMANAL 203

Tomei insensivelmente, uma das mãos da ve- E depois não lhe ficavam bem, como homem,
lhinha o beijei-a como o de uma mãe venerada. aquellas acedias de energia.
O cravo ancião e o^quadro do rei infante, re- E caminhando, 'todo tropego, pelo passeio da
presentando as passadas grandezas, diziam como rua erma, Gonzaga comprimia a coronha do re-
através do séculos, vencendo-os, sobrepujando suas volver, com uma raiva surda a maltratar-lhe o
glorias, — alguma cousa innominavel, mas sem- cérebro — uma raiva de tudo, de todos, de si
piterna, pôde encontrar-se occulta na prece de um próprio. Sempre fora desgraçado. Naquella pro-
mísero ou no coração de uma velhinha. fissão mesmo/ que abraçara desde a mocidade,
Cheguei a saber então qual a causa ignota que apesar de actuoso e obediente, jamais conseguira
me guiara os passos inconscientes á pobre casa de «ma fita. Os superiores queriam-lhe sempre mal.
gelosias abertas. Já fora preso até. E para completar a má sina
E ?— não me envergonho de contal-o — sahi que o perseguia, até o filho, unicp e querido, dera
daquella casa com os olhosmarejados de lagrimas. de tal fôrma em roubar "que se vira na contin-
AFFONSO ARINOS.
gência de expulsa-lo de casa.
Recordando então este ineidente, Luiz Gonzaga
reviveu toda a scena desse dia distante em que ti-
vera, por áuasipróprias mãos, de atirar á portão
filho, e as lagrimas da mãe que tanto o queria e
sè não podia acostumar a viver sem elle.
Emmaranhado nessas recordações, levava por
vezes a mão á gorja, como se quizesse afastar uni-
hypotetico baraço.
M A' S I N A O casario decrépito da rua, tinha agora, áos
seus olhos, saliências sinistras; uma igreja, no
junto a um combustor, Luiz Gonzaga parou fundo do scenario, parecia-lhe uma sombra ma-
ainda um instante a reler, de olhos incendidos, cabra na luz roxa do amanhecer; e ás vezes, o
aquellas linhas que desde a véspera á tarde, quan- apitar gorgolejado dos seus companheiros, que se
do as recebera, lhe estracinhavarn a alma. entrecruzava á distancia, sobresaltava-o, acèlera-
Não, não podia ser mentira. Havia muito já va-lhe o bater das artérias.
que elle notava na mulher esse aborrecimento e Então parava, levava por sua vez . o apito á
es$a impaciência que denunciam a iminência duma bocca, numa resposta raivosa. E continuava a ca-
traição. minhar, todo curvado, como si um pensamento
Ultimamente, então, tornara-se ella de tal forma horrerite o atraísse para dentro de si mesmo.
intratável que ás suas mais insignificantes pergun- De súbito parou admirado. Sem saber como,
tas respondia com reviretes, grosserias, ameaças. tinha andado até á rua em que morava.
Era pois verdade o que lhe dizia aquella carta- Já a manhã clareava; vagas carroças passavam
Escrevera-a sem duvida algum amigo, um dos rolando para o mercado; ouvia-se o campainhar
muitos que a sua bondade de alma creára n a dos primeiros electricós.
quartel. Luiz Gonzaga teve de se arrimar á parede, de
? E embrulhado sinistramente no seu capote de sufocado; o coração batia-lhe tão desordenada-*
guarda-nocturno, Gonzaga plantou ainda uma vez mente que se diria querer sair-lhe pela bocca.
diante dos olhos o papel amarrotado. Lá estava a Esteve ainda um instante a olhar estupidamente
delação cruel, escripta com. uma sinceridade que uns restos de sombra que se arrastavam por baixo
nãq^ deixava duvida: das arvores achaparradas dos passeios graniticos.
; «Si yquer [ saber quem é a mulher com quem Agora era uma incerteza dolorosa que o inde-
casou, regresse um dia de madrugada, em vez de . cisava. Si tudo aquillo representasse uma calumnia,
faze-lo pela manhã, como costuma.» , uma vingança de alguém que fora repellido por
sua mulher.
Ahi, uma onda de sangue escureceu á vista de
íLuíz Gonzaga: as pernas tremeram-lhe, as mãos Blantou-se-lhe no cérebro escandente a imagem
delia, tão santa e tão pura. Não acreditava, não
crisparam-se-!he; e na madrugada que enlivedescia,
podia acreditar naquella falsidade.
elle teve a noção exacta da desgraça a que o seu
Era tão horrente, tão abjecta a suspeita, que che-
destino o arrastava. Pois que fosse. Se era. destino,
gou um momento a repelli-la como uma afronta.
por mais que fizesse, não havia meio de evita-lo.
204 A NOVELLA SEMANAL

Mas sentiu qualquer coisa na mão convulsa:


era a carta.
Não, era preciso saber a verdade, toda a ver-
dade — custasse o que custasse.
Deu dois passos incertos, continuou a caminhar,
num cambaleio de ébrio.
Afinal galgou a porta da escada.
Mas então veiu-lhe de novo a vergonha da pró- O NATAL DE VOLTAIRE
pria acção. Quiz retroceder e sem saber por que Ha cento e vinte annos, Paris inteiro, os poetas
seguiu. Uma lâmpada ardia no corredor. Luiz e os philosophos, os sábios e os financeiros, os du-
Gonzaga foi andando pé ante pé, até o corrimão ques e a princeza, faziam a Voltaire a-mais estron-
da escada. Ahi, dissolvido na sombra, ficou, o co- dosa das ovações.
ração aos trancos, as artérias a laíejarem-lhe com As memórias do tempo contam, com minúcia
violência, a mão tremula sempre no cabo do re- que, por uma clara quinta-feira de abril, M. de
volvei. Mas nada. Lá longe, na calma da cidade, Voltaire, pela primeira vez, desde a sua chegada
um sino deu horas. Depois, lentamente, uma cor- a Paris, deixando os vagos e amplos roupões fa-
neta tocou. voráveis ás exigências da doença e da estatua ria,
Luiz Gonzaga, impaciente, accendeu uni cigarro, vestiu-se e fez o que se chamava toilette inteira
puxou o relógio: eram quatro horas. — grande casaca vermelha, forrada de arminho,
E voltando a considerar, convenceu-se de que immensa cabelleira á Luiz XIV, negra, não em-
fora victima duma infâmia. Passou-se meia hora. poada, e tão basta que ò rosto magro, amarello,
Passou-se uma hora. Nada. Luiz Gonzaga acabou enrugado, ficava n;ella tão enterrado, que só se
por concluir que o haviam embaído. E dispunha- lhe viam os dous olhos brilhantes como carbún-
•se a sair, já envergonhado, quando distinguiu o culos ; á mão, uma leve bengala, de recurvo cas-
rumor quase apagado de passos cautelosos, que tão de ouro, e, sobre a pyramide da cabelleira,
desciam. Aperrou o revolver. Esperou. Os passos, no alto e coroando-a, um chapéo de velludo ver-
agora, eram mais nítidos. 'Um carroção passou melho, quadrado e franjado, de plumas tambeni
rolando, fora, no asphalto da rua. vermelhas. E entrou na sua formosa carruagem,
E emfim Luiz Gonzaga poude ver, á claridade pintada de azul celeste, ponteado de estrellas
incerta da lâmpada,' um vulto que procurava a douradas, que era chamada — carro do Em-
saída. Uma nuvem cegou-o. Puxou o gatilho da pyreo. N'ella foi á Academia Franceza, onde
arma. A carga partiu. E um grito, que elle reco- se cumpriram, em honra daquelle espectro, todos
nheceu de prompto, feriu-lhe o ouvido, emquanto os ritos da adoração acadêmica. Ouviu o elogio
a sombra cambaleante foi cahindo até ao passeio- de.Boileau, por D'Alembert e o abbade Delille
Luiz Gonzaga seguiu-o. Curvou-se sobre ella. leu fragmentos do seu poema, que ensinava «a
Queria ver-lhe o rosto, já doido por uma suspei- arte de gosar, pintar e ornar a natureza .
ta tão grande que o fazia esquecer o próprio cri- Da Academia seguiu para a Comedia Franceza,
me. E lá fora, na luz azul da manhã, Luiz Gon- onde, ao saltar da sua carruagem estrellada, foi
zaga teve outro grito, maior, mais humano, mais acclamado pelos fidalgos e pelas damas que o es-
doloroso. Era seu filho. peravam. E, durante a representação, os applau-
Recife ~ 921. LUCILO VAREJÃO sos dados á tragédia, que era de Voltaire, relum-
baram em explosões de adoração • aquelle deus
monstruoso, para quem sorriam, beatas, as mu-
lheres mais formosas, como as Egypcias, resplen-
dentes filhas de Pharaós, deante de um terrível
Anubis cynocephalo. E o deus foi para casa le-
vando, pousada sobre a crina encaracolada da
negra cabelleira, a coroa de louros que lhe dei-
tou o príncipe de Beauveau; e, de todo o des-
lumbramento, levou dentro da cabeça, dizem ainda
as memórias do tempo, a resolução de comprar casa
em Paris e de escrever tragédias, muitas tragédias!
As tragédias não as escreveu e, mesmo, aquella tiiti-
A NOVELLA SEMANAL 205
ma casa que a todos aguarda, elle não a teve logo viu, nem ouviu, deste século que ora acaba e cuja
em Paris, porque o levaram, d'ahi a dias, para ser aurora elle queria advinhar como o começo do seu
enterrado nas vizinhanças de Troyes. E, quanto domínio incontestado e perpetuo. Por algumas
ás tragédias, eram outras as que a fidalguia, den- horas, esteve aberto o caixão, e o craneo que o
tro em breve, ia ella própria representar, contra a príncipe de Beauveau laureara e que sonhara
sua vontade, mas sempre com elegante arrogân- immorredoura aquella coroa, passou, de mão em
cia no tablado da morte. mão, entre os assistentes, que o manusearam e
Todas aquellas cabeças, e muitas, que a guilho- voltaram e examinaram com curiosidade e des-
tina aguardava, julgavam-se bem seguras sobre os confiança, como fazem os freqüentadores do Ho-
Hombros elegantes, ou não, bellos, ou não, mas tel Drovvot, marfim supposto antigo, e todo en-
sempre orgulhosos, que, si abaixavam deante do cardido, sempre suspeito de falso e de. artificial-
Rei do Espirito, erguiam-se, impacientes e desde- mente amarellecido em fraudulento banho de água
nhosas, deante das superstições e das ignorancias de tabaco. Si viram alguma cousa as orbitas
do bassado.' sem olhos, si alguma cousa ouviram os ouvidos
Ós filhos daquelle século chamado sceptico eram sem orelhas, por certo muito se admiraram do
na realidade, profundamente crentes e devotos; que viram e do que ouviram.
tinham a crença firme de que estava acabado o Em vez das elegantes casacas á Luiz XV, sobre
christianismo e só reverenciavam aquelle quç lhes dongos colletes bordados a matiz; em vez de
tinha ensinado a nada mais venerar. E Voltaire sorrisos cortezes nas faces impeccavelntenté bar-
conservava a certeza, que lhe dava o seu inaudito beadas, que eram as dos homens que deixara sp-
triumpho parisiense, de que a sua philosophia es- bre a terra; em1 vez de expressivas cabeças em-
tava definitivamente victoriosa. E os seus velhos poadas; em vez de finas espadas pendentes, ao
ossos gastos, torcidos do tempo, estremeciam de lado de calções de velludo; em vez de .meias de
júbilo dentro do amarrotado pergaminho flacido seda e de altos sapatos afivellados d'ouro, — que
que lhes servia de pelle, quando os seus adora- viu Voltaire, na sombra humida daquella adéga
d o r e s , carregàrído-o^ em procissão, largáram-n-o nacional, onde se guardam glorias ?
sobre o 'throno celebre da sua realeza, a lendária- Não havia entre aquelles inesperados visitantes
poltrona que é, hoje, para o povo, alem do bou- uma só dama. Que era feito das parisienses?
levard e cães chamado Voltaire, tudo quanto re- Nenhuma face gentil, avivada' de emoção e de
corda aquelle nome que encheu. a França é a carmim, e com sua braUeura realçada pelas mos-
' Europa. cas de seda preta; nenhuns olhos acesos pela,
Cento e vinte annos depois, os netos e os bis- curiosidade e pelo lápis negro buscavam com an-
netos do voltairianisrho não sabiam onde estavam ciã, enthusiasmo e devoção, vêr o antigo deus,,
os ossos desse vencedor de Deus. E, não a re- que estava alli a desencaixotar-se tão sem ceri-
verencia, mas a simples curiosidade daquelles des- monia, á luz de uma lanterna, numa fria e ne-
cendentes, levou alguns delles a .baixarem á crypta voenta tarde de dezembro.
do Pantheon, precedidos de um carpinteiro, para E a caveira que, ,outr'ora, tanto sorriu, em res-
despregar e arrancar as taboas, na busca do es- posta a outros sorrisos femininos, teve um certo
quecido, ou extraviado esqueleto, que a Revolu- despeito, vendo que não ia ser acariciada por ne-
ção para alli trouxera de Troyes, de certo para nhuns dedos rosados, nem commovidamente so-
que aquelle auctor e amador de tragédias pudesse pesada por finas mãos perfumadas.
ver as que se preparavam em Paris. Voltairej — Já não me admiram, pois, as mulheres!
cortezão do Reis e amigo de Príncipes, nunca Que estarão ellas fazendo a estas horas ? A' força
amou os carpinteiros e, de todos elles, aquelle . a das luzes da instrucção, ter-se-ão transformado em
quem mais ódio votou, foi um certo que teve, ha sabias, em rriathematicas, como a minha querida
vinte séculos, a sua tenda.em Nazareth. Um car- e massadora amiga Madame du Châtelet? Esta-
pinteiro pregou e martelloú o seu caixão, no sé- rão todas nas bibliothecas, nos laboratórios, ás
culo passado, e outro era, agora, trazido aos sub- voltas com os livros, com os compassos e os alam-
terrâneos de Santa ;Genoveva, para despregar o biques?
que seu collegâ, de ha cem annos, tão solidamente — E estes senhores... Quaes senhores!
pregara. Um e outro não foram amáveis para Estes alarves, de barba inculta, todos vestidos
com Voltaire. de preto, quadrados dentro destas largas túnicas
No pó e na escuridão da crypta, Voltaire nada tão fechadas, tão negras e grosseiras, e tendo to-
206 A NOVELLA SEMANAL

dos, nas cabeças, esses tubos pretos ... Quem são cavallos brancos, muito grandes, dos quaes só
elles ? . . . E onde vi eu esses desgraciosos cylin- vejo as pernas . . .
dros luzidios? Ah! já me lembra. Vi-os em — Que é aquillo ? Passam rápidos uns pares
estampas que, da Rússia, me mandou a minha de rodas, uma adeante da outra e de que vejo
amiga Caüiarina... Os padres (ó infames!), na só a a metade inferior, e que apparecem, cor-
Rússia, usam desses tubos... Creio, porém, que rem, desapparecem, sem que eu veja cavallo nem
os trazem sem a b a s . . . Terá a Rússia conquis- homem que as puxe . . . E' uma illusão da minha
tado a França e estarei eu (oh massada H enter- vista... Não ha mais milagres, e não será Vol-
rado num mosteiro orthodoxo? M a s . . . neste taire quem acreditará que rodas possam andar
caso, o que aconteceria á monarchia que andou assim, a rodar por Paris, sem o competente ca-
a consolidar o meu amigo Frederico ? Os russos vallo! Seria contra a razão e experiência.
não podiam ter chegado até cá, sem passarem
Escutemos, porém, este grupo de homens que
por cima delia e dos seus p intanos pomeranios,
estão aqui a cochichar, por baixo da minha pra-
que elle chamava Reino. . Estimaria, só para
teleira :
ver a cara do tal Salomão sem mulheres!...
Quem será este sujeito que me segura agora pela — . . . un cheque de 50.000 f rancs...
minha nuca desarticulada e que está a dizer que — Je suis pour les chrétiens, Contre ces sales
me acha parecido com não sei que busto ? juifs!
— Que singular opinião ! Mas que tanto estão
Os meus bustos foram feitos para se parecer a falar de judeus e de christãos ! . . . São, de certo,
commigo e não eu, que tenho de parecer com sujeitos que se occupam da Historia e que discu-
elles. Lá vou eu, ou, antes, lá vai a minha tem a Edade Média ! . . .
cabeça para as mãos calçadas de luvas sujas da-
Quem será este que pelo nome parece húngaro
quelle velho todo de preto, que tem ar de chim . . .
e de quem tanto falam ?
Traz, porém, o-botão vermelho de mandarim ao
— Um francez que escreve cartas insultando o
peito, o ignorante! em vez de o trazer no cha-
exercito da sua pátria, é um miserável e uni
péo, como eu expliquei que é, e deve ser, no
traidor !
Diccionario Philosophico... Ai! cá estou. Muito
— Isto, agora, é comungo!
mal educada é esta gente! E bem se vê que não
são extrangeiros!... Muito mal falam; parecem Mais uma pequena canalhice daquelle pedante
todos de Marselha!... Quanta palavra que não de Frederico, que, de certo, publicou uma carta
entendo! Offerecem agora a minha cabeça ao toda particular e de amizade que lhe escrevi, fa-
exame deste o u t r o . . . zendo troça dos soldados francezes que elle se
— Merci, monsieur. regalou de bater em Rosbach ! . . . Mas que tem
— Este, todo velhinho e tremulo! isso ? ...
Até se parece commigo ! . . . Na rua:
Quasi me deita ao chão ! . . . ' — Achetez . . . achetez . . . le numero de Noêl.,.
Tivesse eu a minha maxilla inferior, que aquelle —- Noel ? . . . E sempre as taes rodasinhas a
desazado deixou lá dentro do caixão, e mordia- passarem . . . Lá vem uma carroça... Parece
lhe ô dedo . . . com os dentes que não tenho ! . . • cheia de arvores, ou de ramos, como na Borgo-
— Après vouS; monsieur le directeur general nha costuma vir enfeitado o carro que traz as
des Beaux Arts . . . ultimas cestas da vindima ! . . . Mas não 1 . . . Pa-
— Porque será que esta gente, tão feia, vem recem pinheiros . . . e tão verdes ! . . . Parece
agora falar em bellas artes ? Tão mal vestidos!... uma pequena floresta andando ! . . . Lembra aquella
— Avez-vous vu, tous, le crâne, messieurs ? historia, tão ridícula, daquelle inglez bárbaro e
— Uff! Até que, emfim me largam da ca- inintelligivel, que chegou até a ser representado (é
beça ! . . . Muito havia ella de doer n'outros tempos, incrível!) mas que reduzi a n a d a . . . numa das
si lhe dessem taes tratos ! . . . Deixam-na, agora, suas chamadas tragédias, qual era o nome delia ?
sobre esta prateleira, emquanto estão a remexer E como se chamava elle ? Ah ! já me lembro...
naquelles ossos... Oh ! Uma restea de luz ! . . . Macbet!... E elle Shakespeare ? E' isso ! Pois,
Vejo por aquella pequena e estreita abertura, á entre outras coisas cômicas, fala elle de uma flo-
altura desta prateleira, alguma cousa... E' a cal- resta que caminhava do alto do cabeço de um
çada, de uma rua! Passa um carro muito grande, outeiro da Escossia para o acampamento do rei/..
muito pesado, que tudo abala... puxado por uns E pensar que cousas taes se representavam . . .
A NOVELLA SEMANAL 207

— Achetez! achetez! des arbres. de beaux ar- Porque ?


bres de Noêl! — O sitio era malassombrado, as ruínas tinham
O craneo de Voltaire estremeceu e ia rolar da sua mysteríosa historia trágica. Ahi nada pude
prateleira, quando um jornalista amparou-o. Pelo' obter que me contassem; ao passo apressado das
respiradouro do subterrâneo, por onde Voltaire alimárias espertas, passámos de largo. Mais tarde
via aquellas arvores que caminhavam, entrou o inquiri, busquei saber, e eis quanto me disseram.
grande som profundo e largo dos sinos da vizi- Que intenção piedosa, ou que ríião arrojada
nha e antiquissima egreja de Saint-Etienne-au- plantaria alli os quatro muros da pequena igreja,
Monl! era cousa que ninguém sabia ao certo.
Vai-se encerrar o craneo de Voltaire ! Lendas, inverosimeis algumas, phantasiosas to-
— Andemos depressa ! disse um membro da das, envolviam as tristes ruínas.
Academia Franceza. Não quero chegar tarde á O sitio era soturno. A' meia encosta de uma
egreja, para ouvir a conferência do Advento, pelo coílina que, logo após, se erguia, quasi a prumo,
abbé Frémont... em rocha, escalavrada e limosa, pela altura, além,
'""• Egreja ! Advento !! Abbé!!! I o accesso do santuário era «difficultado por gran-
O que restava do craneo de Voltai ré estalou e des blocos erráticos que se lhe accumulavam em
os pedaços formaram um punhado de ossos esfa- torno. Por um lado, a dous passos, o solo abria-
relados, que voltaram para a poeira pardacenta e se num groíão, em cujo fundo referviam aguas r
para o rrtôfo secular do caixão arrombado,. que vindas por ignotos, invisíveis rumos.
o carpinteiro (ainda o carpinteiro!) repregou a Hoje, a matta ria investiu o templo, assaltou-lhe
martelladas que resôaram na crypta. os pateos, crescia do interior, onde ruiram os
, Momentos depois, ps exploradores de sepulcros tectos ; apenas se erguiam as quatro paredes aber-
desciam as escadarias do Pantheoh e mergulha- tas em fendas, olhando, desconsoladamente, sem
vam de novo dentro de Paris, através dà bruma, ver, para os quatro lados da terra, pelos vãos das
ainda clara, da tarde de inverno. ' Calaram-se os portas e janellas, escancarados como orbitas
sinos, e, dentro da egreja, o pregador começeu vasias...
a falar do eterno e próximo renascimeuto do ou-
Dizia-se que nesse trágico lugar, um noivo, em
tro Carpinteiro, daquelle próprio a quem Voltaire
accesso de paixão, tresvairado, sacrificara a esposa,
tinha matado, para sempre, em meiados do sé-
que acreditara impura; e que, mais tarde, nas
culo XVIII.
ânsias do remorso e da duvida, viera, penitente
, Janeiro — 1898.
e louco, plantar um templo á misericordiosa Mãe
!- "- EDUARDO PRADO
dos homens.
Outros prendiam a creação da solitária capella
á dôrfde um velho pae, que numa alegre excur-
são de amazonas e cavalleiros, vira de improviso,
o vulto da filha estremecida resvalar nas lages e
desappârecer no abysmo...
Corriam ainda outras versões; o certo é que
bizarra fora a idéa de erigir-se, neste agreste re-
A E I D A canto a pequena igreja, cuja ruína lugubre a flo-
resta ora envolvia. Por muitos annos vivera, en-
Certa vez, em diligencia, na comarca de mèu tretanto, essa ermida de extranha e mysteriosa
primeiro emprego judiciário, no interior de Mi- origem e que -teve não menos extranho e mys-
nas, longe de arraiaes e povoados, em montanho- terioso fim.
sa região de lavra de ouro, viram meus olhos, na Dos arraiaes próximos vinham alli satisfazer
pesquiza curiosa em que se apraziam dos panora- promessas. A invocação da Senhora da Serra
mas e perspectivas, as ruínas de uns velhos muros, era, por toda a redondeza, respeitada e tida por
na orla de um bosque, já dentro da espessa matta miraculosa. Romeiros piedosos entretinham, pre-
sombria. parado para as cerimonias do culto, esse lugar
Que as fosse ver de perto e as visitar não m'o sagrado, duplamente sagrado, pelo sentimento re-
permittiram guias e companheiros, que, timoratos, ligioso e pela superstição, do mysterio. Conta-se
nem mesmo um rápido e fugaz olhar lançavam que muita dor arrefeceu, muito martyrio moral
sobre ellas. aliviou.
208 A NOVELLA SEMANAL

O certo é que na calma de seu retiro, o pe- E assim seguiram as cousas, sem historia, na
queno templo nunca estava abandonado; a lâm- continuidade serena e uniforme dos dias e dos
pada do santuário jamais deixaram que se extin- meses.
guisse e, não raro, lá dentro, por dias e noites, Mas, tudo acaba; tudo o que existe no mun-
velas e cirios ardiam, votivamente, numa crepi- do está marcado para acabar.
tação solitária. Certa manhã, num domingo, rezava, na com-
Comtudo, não tinha a ermida um serventuário puncção habitual, o eremita, a missa matutina.
effectivo, nem mesmo um simples guarda; guar- Não notara a assistência, no momento, mas de-
dava-a e servia-a o respeito commum dos habi- pois a circumstancia foi assignalada e confir-
tantes próximos. mada por muitas vozes, que o celebrante mani-
E, do mesmo modo porque um dia a igrejinha festava, nessa clara manhã, uma abstracção maior,
apparecera, um dia perceberam os fieis que a er- um ar de maior desprendimento dos aspectos*
mida tinha seu cura. Um padre, ou alguém, que materiaes do mundo.
um velho habito envergava, alli se havia installado. Por vezes, em meio das orações, braços er-
Ao fundo, alguns passos distantes, sobre a ro- guidos, parava o officio, como n'um êxtase, alheio
cha, construiu-se uma tosca, pequena casa, resi- á vida, alheio aos fieis; depois proseguia, arras-
dência do religioso. tadamente, entregue, de todo, á sujeição espiri-
E, sem que ninguém pensasse em inquirir quem tual do acto que celebrava. No momento da con-
era e de onde viera, o improvizado vigário foi sagração, vários fieis commuugaram, presos da
visto e acceito, num accordo tácito que o senti- emoção enorme que o aspecto sobrehumano do
mento reciproco sellou. cura lhes trausmittira na solemnidade do seu ges-
Augmentoü de tal geito o mysterio. Para tem- to e na dolorosa expressão de seu rosto.
plo, que não se sabia quem construirá, chegara Retirando-se, após, para o altar, preparou para
um cura, que se não sabia de onde vinha. E a fa- si o corpo e o sangue de Christo; o pequeno
ma da milagrosa ermida cresceu e dilatou-se. O acolyto, ao deitar no pobre cálice o vinho, que
ermitão não era velho, nem moço- Trazia n'al- o ritual prescreve, viu, surpreso, que, por sua vez
ma, porém, a funda preocciipação de uma dôr o cura na mesmo despejou também o conteúdo
irreparável, que de todo em todo, o prendia aquel- de um pequeno frasco.
la religiosa empresa. E a missa continuou. Feitas as orações, aben-
Não parecia creatura de nossos dias: depois çoado esse vinho, o cura tomou o cálice e o ab-
que chegara, jamais o viram entregue a outro sorveu de um trago. Não rezou mais: pousando
mister senão o que o sacerdócio lhe impunha. o cálice sobre o altar, ergueu os olhos para a
Si bem que, de seu estado cousa alguma se sou- imagem, na brancura de suas vestes e, alguns
besse, e já, de muito, houvessem desapparecido minutos após, levando a mão ao peito, prostrou-
vestígios de tonsura, na exuberância de uma ca- se e caiu pesadamente, ao chão.
belleira loira, que lhe sobrava na nuca e se con- Acercaram-no, atônitos, os fieis; olharam-lhe o
fundia com a fina barba que lhe envolvia o rosto, rosto, apalparam-lhe o corpo: estava morto.
geralmente o recebiam como confessor e cele- * h •

brante. Como um pousado bando de pombos, que a


A clientela dos fieis crescia: ex-votos cobriam súbita queda de um corpo, em meio delles, dis-
as paredes internas da pequena igreja, cerimonias persa, fazendo-os voar, céleres, por direcções di-
celebravam-se ameude, e, na sobriedade d e seu versas, tal os fieis, desordenadamente, em pânico,
viver, nada faltava ao cura para as necessidades abandonaram a ermida.
materiaes da vida. Ninguém ousou volver atrás um olhar curioso
E desse modo, nesse entendimento entre fieis' e, cada qual, foi em casa, na segurança do lar,
e pastor, foram passando annos, que crearam pa- no aconchego dos seus, que parou e respirou.
ra o estranho ermitão a aureola de santidade, que E dias correram . e meses passaram e annos
a persistência da vida austera e a dedicação ex- fluíram, sem que pessoa alguma se atrevesse a
clusiva á obra espiritual, de mais em mais accen- acercar-se da igreja mysteriosa. O corpo' do cura
tuava. sacrilego, alli encontrou o seu original mauso-
As missas de domingo, sobretudo, attrahiam léo, onde, insepulto, esperou a acção fatal da de-
maior concorrência, a despeito da hora matinal composição. E esse novo mysterio envolveu, no
em que eram ditas. vago de sua historia, a ermida mysteriosa.
A NOVELLA SEMANAL 209'
Quando, passado algum tempo, chegou, de um que o seu nome andava atassalhado na lingua da
longínquo logar, una bispo, cuja autoridade se cidade. O concubinato de d. Pedro escandalizava
desconhecia, decretando a interdição'da solitária a vida pacata e sisuda do Rio. O imperador ca-
e malassombrada capella, já sobre ella a supers- minhava no período mais intenso de sua paixão-
ticção do povo havia feito pesar a sancção de um pela marqueza. Ao que se dizia, a imperatriz era
interdicto mais efficaz e solemne. ella: só ella governava, só se fazia o que orde^
O abandono dos homens estimulou a acção da nava a sua vontade. O pae, os irmãos e parentes
natureza, entregue á sua expansão- irrefreada. da paulista, todos os dias subiam de postos e ar-
O matto tomou, os caminhos, envolveu as pa- ranjavam gratificações que o Thesouro pagava
redes, enredou em seu intrincado a pequena cons- religiosamente.
trucção, que, afinal, ruiu, sobrevivendo, apenas, A cegueira de d. Pedro tinha ido a ponto de
na consistência de uns muros e no mysterio, que installar a amante a dois passos da Quinta dá Bôa
no fundo das almas recalca, a ingenuidade pri- Vista, quasi que deante dos olhos da imperatriz.
mitiva da gente da serra. Murmuravam-se as coisas mais chocantes. Conta-
RODRIGO OCTAVIO. va-se que até o marido da .marqueza se aprovei-
tara da' situação da mulher para arranjar a admi-
nistração da feitoria de Peripery, Havia, quem
garantisse que a boa paz já não reinava na Bôa-
: Vista: d. Pedro não tinha mais recato para com
a esposa: a qualquer hora do dia oU da noite ia
metter-se em casa da concubina, sem se doer das,
lagrimas de d. Leopoldina. Commentava-se airida
o caso que no anno anterior assanhou as línguas
O P O D E..R D E ínaledicentes da cidade: d. DSmitilla tivera o des-
plante de ir metter-se na Quinta, no quarto da
D. D O M I T I L L A imperador, quando este quebrara as costellas na-
quella celebre queda que a chronica mexeriqueira
.Quando Pedro I appareceu na varanda florida até hoje affirma ter sido uma "sova".
do camarote imperial, a sala de espectaculos com- Tudo e tudo daquelles aflores arranhava as
prehendeu que elle não sabia ainda do escândalo. sensibilidades da popula.ção carioca: a falta de
i Era no Theatrinho Constitucional de S. Pedro, recato nas visitas que d. Pedro fazia á amante, a
em setembro de 1824. Naquella época era ali a demissão de José Bonifácio, que se cochichava ter
platéa "chie" do Rio. Não havia, por bem dizer, sido obra dá marqueza, as festas pelo nascimento
theatro na cidade. O São João, que Fernando Jo- de Isabel Maria, a futura duqueza de Goyaz, que
sé ,de Almeida erguera,'fora lambido pelas cham- se diziam terem sido assistidas, em pessoa, pelo
mas, a 25 dê março daquelle mesmo arino, na imperador, a condescendência desembaraçada e
noite em que sè festejava ó juramento dá Consti- lucrativa do pae de d. Domrtilla, o processo de
tuição. O Theatrinho Constitucional, construído divorcio desta começado, naquelle anno, a affronta
no largo do Rocio, entre as ruas do Piolho e do que ella fazia á sociedade, apparecendo nas festas
Cano, fora feito por meio de subscripção entre a da fidalguia escrupuíosa.
gente endinheirada. Só os subscriptores e ps con- A cidade inteira odiava-a. As famílias traziam-
vidados da directoria podiam ali entrar em noite na atravessada á garganta, repellindo-a como se
de espectaculo. Não se vendiam entradas; os repelle uma mulher á tôa.
convites andavam por empenhós. Para a sociedade do Theatrinho Constitucional
Naquella noite havia a recita quinzena!. E dez a presença da marqueza era um insulto. Se ella
minutos antes do imperador chegar, estalara p chegasse a entrar na sala de espectaculos, quasi
escândalo que enchia toda a gente de oppressões. toda a gente se retiraria. > ',
Começavam as famílias a entrar, quando apor- A directoria teve um gesto de alta coragem.
ta do theatrinho parou um carro. Era d. Domi- Despediu d. Domitilla á porta do theatro. A des-
tilla de Castro, na sua desenvoltura de amante culpa foi secca e summaria: só ali se entrava pór
imperial. Correu pelo theatro um rumor de des- meio de convites e nenhum cartão lhe tinha sido
agrado. D. Domitilla estava na phase culminante distribuído. A marqueza metteu-se novamente no
da antipathia popular. Havia mais de um anno carro, tranzida de vergonha.
210 A NOVELLA SEMANAL

A sala do theatrinho fervia em commentarios, rador, apaixonado como vivia, não ia deixar a
quando a figura altiva de d. Pedro surgiu na va- amante exposta ás risotas publicas.
randa engalanada do camarote imperial. A coisa seria no dia seguinte...
— Não sabe ainda. Nesse momento a campainha retiniu. Ia come-
—• E se sabe conforma-se, murmurou-se aqui eali. çar o espectaculo.. Os grupos desmancharam-se,
Mas ao lado de sua majestade appareceu o toda gente correu para as cadeiras. A orchestra
"Chalaça''. D. Pedro voltou-se para falar ao valido. lançou os compassos de uma valsa da moda.
Aquillo foi tudo muito rápido. A's primeiras Todo o mundo espera o panno erguer-se. Pas-
palavras do "Chalaça", a physionomia do impe- sam-se dois minutos, trez, cinco, dez. Um sopro
rador mudou de risonha a áspera. Um arrepio de inquietação agita todas as cabeças. A sala en-
passou-lhe pelo corpo, todo elle se empinou ner- treolha-se com uma interrogação suspensa. Que
vosamente, batendo com os pés no taboado. e ? Que não é ?
— Mas por que não me preveniram isso á en- Torna a campainha a retinir lá dentro.
trada? , O panno sobe. No palco está a figura contrariada
O "Chalaça" continuou a contar. Parecia estar de um dos directores. Desce até ao proscênio e fala:
descrevendo a scena que humilhara a marqueza. — A directoria manda pedir desculpas ao pu-
Os espectadores não despregavam os olhos da blico. Não pôde haver espectaculo por prohibição
figura de d. Pedro. Agora sua majestade gesticu- do intendente geral de policia.
lava como num accesso de raiva, saiu do cama- No dia seguinte o Theatrinho Constitucional de
rote, foi até o corredor, tornou a voltar, a phy- S. Pedro era fechado por ordem do governo. Em
sionomia perturbada, gesticulando sempre. Parecia menos de uma semana o prédio foi comprado e
ter perdido as estribeiras. A um gesto seu o os moveis atirados ostensivamente á rua.
"Chalaça" entregou-lhe o chapéo e, sem olhar o VIRIATO CORRÊA
publico que o devorava com os olhos, d. Pedro
sae numa tempestade acompanhado do valido.
Os directores, ao vel-o seguir para a porta»
querem-lhe ir ao encontro. E' impossível. Já es-
tava elle na rua e alcançava o carro que rodou
apressadamente emfumo da Bôa Vista.
Na sala houve ao começo um estatelamento,
mas, aos poucos, aquillo se foi mexendo como
um formigueiro que se assanhasse. As damas não O A V O
tinham socego. Com a chispa do escândalo nos Parecia-se com todos os vovôs. Seu maior pra-
oüios, erguiam-se a falar umas ás outras, cruzan- zer era brincar com os netinhos, principalmente
do-se entre as cadeiras enfileiradas. Grupos for- com os bem pequeninos que ainda não aprende-
mavam-se e desmanchavam-se num momento. ram a rir-se delle e a desprezado.
A directoria, reunida em grupo no corredor, Quando elle chegava arcadinho, auxiliando os
.tentava deliberar. Toda a gente sabia do gênio passos tropegos com o bengalão de cabeça de
impulsivo do imperador. Moço, na embriaguez cachorro esculpida no cabo, a miuçalha alvoro-
da paixão que o empolgava, era capaz de uma çava-se e recebia-o com um só grito :
estralada violenta e de uma vingança infernal. Se- — O vovôzinho ! •
ria conveniente ir-se no dia seguinte á Bôa Vista Precipitavam-se, soffregos, arrebatando-lhe a mão
dar-lhe uma satisfação qualquer. Uma mentira para,a beijar.
<jue fosse: poder-se-ia dizer que os directores, por Interesseirozinhos! não o faziam por affeição
um engano lamentável, não tinham reconhecido apenas; é que sabiam ser essa uma cerimonia
a preferida imperial. preliminar indispensável e procuravam libertar-se
Na sala de espectaculos continuava o borbori- delia o mais depressa possivel.
nho das saias. Havia um zumbido de cochichos. O essencial era o que vinha depois, isto é, a
O nome da marqueza andava aos trapos, tézou- repartição das balas.
rado de grupo em grupo. Isso era infallivel e mysteriosamente inexplicável.
Em que ia acabar aquillo ? D. Domitilla, pode- Como caberem tantas balas num só bolso ?
rosa como era, certamente não suportaria resi- E havia-as sempre, nunca os netinhos viram es-
gnada uma humilhação daquella ordem. O impe- gotada a provisão.
A NOVELLA SEMANAL 211
Como queriam bem aquelle velhinho, cuja ima-
gem se lhes associava no espirito á idéa, de boas
guloseimas!
Além disso, vovô não era como todos os homens;
era mais «complicado», carregando comsigo maior
numero de coisas que lhes serviam de brincos: a
boceta de rape, o >engalão, o relógio, os óculos...
Os netinhos amavam-no e elle os adorava-
Era de ver o gosto com que tomava nos joe- O TIO DA ESCÓCIA
lhos um delles! (A meu irmão Cândido Drummond)

Fosse embora a mais disforme das criaturas elle


Eu — sem modéstia e sem pezar o declaro —
o contemplava absorvidoem êxtase, exclamandp :
bem sei que não possuo o que propriamente se
— Como é galantezinho!
,chama um nome literário, posto que tenha fie-,
— Tão bondoso o vovô! e tão esquecido! quentado os prelos com uma assiduidade de que,
Ao sahir deixava sempre qualquer coisa e essa sem duvida, se hão de lembrar, em tempo, os
qualquer coisa eram quasi sempre os óculos. meus biographos.
Ao afastar-se, gritava um dos petizes:
Não é que também não conte as minhas glo-
— Vovôzínho ! os óculos! rias ; conto. Uma tarde^ na roça, ouvi uns versos
E emquanto a criançada abria um coro de risos, meus recitados por um bando de moças a passeio
elle os tomava com mão tremula murmurando: por uma alameda. Se bem me lembro, já tenho
— Esta minha cabeça! Tudo me esquece. urna ou duas descomposturas do "Apóstolo" e de
outra folha catholica. Emfim, com algum esfor-
Um dia não houve repartição de balas. ço, e revolvendo bem o passado, podia ainda en-
E' que o vovôzinho morrera. ram a r outros louros. Pois bem: valesse muito
Tão-frágeis essas criaturas amadas, cujos cabel- mais o meu nome que eu sem pena o trocaria,
los o inverno da vida embranqueceu ! Um sopro como .hoje.
as leva, e, preenchendo o espaço da casa onde
A explicação deste acto encontra-se numa no-
havia uma creatura animada, resta somente uma
ticia ha rnezes divulgada pela imprensa: — na
recordação melancólica.
Madeira, naquella ilha com que todos sympathi-
Foi a primeira vez que não houve repartição
samos pela sua exportação engarrafada, estavam-
de guloseimas.
se habilitando herdeiros de uma fortuna colossal,
Levaram os netinhos o vel-o. '
deixada por João Drummond, um fidalgo de san-
Quanta coisa a estranhar naquelle dia!
gue real, um emigrado político da Escócia.
O vovô que nunca acordava, estirado na marque-
za da sala da visitas; pessoas que choravam, outras Ora, este homem illustre era, nem mais, nem
que entravam e sahiam, pisando de mansinho. menos, tio deste que se tinha por obscuro plebeu.
A Dusica, netinha de três annos, arregalava os Eu já sabia, por tradições de família, que me gi-
olhos cândidos, sem comprehender. rava nas veias o heróico sangue escocez. A ver-
de Erín! já, muito antes da herança, eu estreme-
Sua sô-impressão nitida era a inveja que lhe
cia de orgulho filial imaginando que ainda provi-,
causava o canivete novo do Mello, único meio en-
nha d'aquella raça de bardos montanhezes; e, co-
contrado de consolal-o da magua iriconsolavel que
mo bom descendente de Ossiah, tinha um fraco
lhe causava aquella desgraça.
pelos nevoeiros. Hoje não! vejam os senhores
,• No mais, em sua cabecita de anjo, tudo era con-
bardos se têm outro descendente! olha quetn!
fusão.
uns- miseráveis, que talvez fossem até salteadores 1
• Por quê mettiam o bom avô num longo caixão
Nós descendemos dos Drummond, senhores de
negro ? E depois, por que o levavam ?
Stogbal na Escócia. Pu ro sangue real! Se não
Muitos homens descobertos sahiram da casa,
fossem certas prevenções, que nos ficaram dos
carregando-o comsigo.
nossos tempos de plebeu e republicano^ escrevia-
Dusica, sorprehendida, vagueava em torno o
mos ao imperador chamando-lhe primo. E isto
olhar cândido.
mesmo com certa generosidade: o nosso sangue
Viu então sobre a mesa um objectó esquecido;
é muito mais azul: da casa de Bragança dizem
e como de costume,' correu á porta gritando :
umas coisas, que nunca se atreveram a murmurar
— Vovôzinho ! os óculos ! da nossa, de que Walter Scott fala tantas vezes.
OODOFREDO RANGEL.
212 A NOVELLA SEMANAL

A'lais do que nós, porem, que ficámos olhando Essa noite, no colloquio do caramanchão, per-
o vulgo muito de cima, aproveitou com a noticia guntou á menina das apólices :
um parente nosso, cuja historia ahi vae, para — Que dirias tu, se te propuzessem um noivo
maior gloria da família. de sangue real ?
Ella fez-se modesta; isso não era para,ella; e
v estava bem satisfeita com o seu.
E' um rapaz gordo e forte, e chama-se Mar- — Pois o meu sangue é desses !
cello. A' noite, parece ter trinta annos; á luz do
A outra não comprehendeu bem o alcance da no-
sol, quarenta. Passou por todas as academias da
ticia, e admirou-se menos do que convinha á magni-
capital, mas nunca passou disso; ultimamente
tude do caso. Marcello insistiu e explicou ; em sum-
era revisor de provas num jornal e, nas horas va-
ma, aquillo vinha abrir-lhe a porta da sala, aelle que
gas, collaborador de varias confeitarias, secção
só conhecia a do jardim: já se animava a falar
balas de estalo. Vestia-se invariavelmente de pre-
ao papae.
to, e era modesto como um prólogo.
Espalhou-se a nova, e no outro dia Marcello
Este rapaz sempre teve a previsão da riqueza. era interpellado a cada esquina :
Lia todos os testamentos no "Jornal"; só se apai-
— Tu também és parente ?
xonava de herdeiras; e, sentindo uma preguiça
superabundante, dizia á mãe: - Veja bem, que — E dos mais próximos!
eu com certeza tenho sangue nobre. — Então, millionario ? !
Pelos fins do anno passado, a paixão de Mar- — E nobre; accrescentava elle, levantando os
cello era pela filha de um titular da capital. O collarinhos á altura da situação.
pae, cujo apego ás apólices não ha quem não co- E aos que ainda não sabiam era o primeiro a
nheça, nem desconfiava de que lhe cantavam os mel- dizer que descobrira ter sangue real. Um malé-
ros, todas as tardes num caramanchão do jardim. volo perguntou-lhe se isso vinha de Pedro I.
• Diga-se, para esclarecimento dos factos, que — Miiito acima, corrigiu Marcello sem com-
Marcello era um rapagão, e a namorada uma co- prehender. Vem da Escócia. Não leste a "Ga-
rujinha, que, se não, fossem as apólices paternas, zeta" ?
havia de se resignar aos sobrinhos. Entraram a'surgir-lhe parentes por todos os la-
Cprriam assim as coisas quando, uma clara ma- dos, em todas as classes — na magistratura, no
nhã, leu Marcello na "Gazeta" a noticia da ver- commercio, no magistério, nas letras,' na indus-
tiginoso, herança do tio escocez. Logo depois do tria, na política,' na diplomacia. Eram apresenta-
almoço foi visitar a avó, de quem obteve em ções todos os dias. Por uns e por outros, chegou
conversa a genealogia da família; mas não se fa- a ser apresentado ao pae da menina, o qual lhe
lava do ascendente mais glorioso. offereceu a casa.
— Diga-me, atalhou Marcello, não tivemos pa- Iam de vento em popa as suas esperanças. Já
rentes na Madeira ? se via em Botafogo e no Cattete, numa sala de
— Tivemos, sim, e ainda temos. Hoje, os Tris- decoração severa, e antiga, onde passavam fâmu-
tões . . . los de libre, a passos que os tapetes amorteciam;
— Sim ?! a senhora afiança-me isso ? E nunca ou, voltando do theatro, no fundo de um "coupé"
ouviu falar, num parente nosso qae veio da Es- biazonado, rolando surdamente, emquanto lá fora
cócia ? . . . faiscavam as ferraduras das parelhas e os plebeus
voltavam a pé, com as mãos nos bolsos e as go-
— Pois não ! isso mesmo ! um emigrado...
las levantadas.
Marcello saltou na cadeira e saltou ao pescoço E vinham depois os bailes do Casino, o Jockey-
da velha: Club, os passeios á Tijuca, os verões em- Petro-
— Estamos ricos! polis. E que horizonte político ! uma cadeira na
Leu-lhe a "Gazeta"; conversou-se ainda muito Câmara, o colleguismo das notabilidades, e, mais
a respeito do grande homem; elogiou-se a hones- tarde, a curul do Senado, o direito de sentar-se
tidade da lei ingleza, que deixa jazer por tantos ao lado de Octaviano e de pedir pitadas ao Sr.
annos uma herança; e, quando sahiu, levou Mar- Abaeté e offerecer outras ao Sr. Jaguary, que
cello cartas e papeis velhos de família, por onde não as dá.
se provava, pouco mais ou menos, o seu direito Tinha também a idéia de proteger as letras,
aos brazões e ás libras esterlinas do emigrado. favorecer a empresa do "Cenaculo", alcançar uma
A NOVELLA SEMANAL 213
commenda para o Arthut de Oliveira e uma pen- para que outra não fosse condessa com o Mar-
são ao Ferreira de Menezes para escrever mais cello.
a miúdo e outra ao C. — para nunca mais es-
E' um velho recurso muito explorado e sabido,"
crever ! E, para mostrar-se bem do seu partido e
. mas ainda assim infallivel com os pães de cora-
da sua .classe, machinava tomar a assignatura do
ção fraco: amuou dias inteiros, sem comer ou co-
"Apóstolo"; e,, se o apurassem muito, era homem
mendo ás occultas, e chorando como quem não
para uma conferência na escola da Gloria : para a
tivesse mais que fazer. Não havia meio de a
fazer e, até, para a ouvir!
consolar, senão dar-lhe Marcello; deu-se-lhe. As-
Chegou a achar que era uma afiança desegual sim casou, ha mezes, este meu parente, primeiro
a, sua com a'corujinha das apólices, e pensou va- que desfructa o tio da Escócia. •
gamente em uma f rmosura real, cujo retraio vira E' hoje outro homem: não ^entra nos cafés on-
na almanak de Gotha, princeza da Dinamarca; de almoçava "de assobio", nem passa pelas lojas
mas isso não deixava de ser corríplicado; demais, de roupa feita da rua do Hospício; foi admittido
conservava ainda alguns preconceitos democráti- ao Grêmio do Bernardo, e já tem assignatura de
cas : 'optou pela fluminense. camarote para a Companhia* lyrica a .chegar. Bre-
Uma noite, apresentou-se ao titular, com bom ve o temos' na Gloria. E vá se preparando o
padrinho, e obteve a mão da namorada; mas o "Apóstolo" para o milagre de mais um assig-
homem, pelo seguro, impoz que o casamento fos- nante; / t• .
se depois de recebida a herança. O herdeiro dos No baile do casamento, foi visto a conversar
Drummond sahiu desconsolado; acudiu-Ihe, po-, com um ministro: suspeita-se-lhe a intenção de
rem, uma esperança: conseguir logo da menina representar a nação por Matto Grosso ou Goyaz,,
o que a prudência paterna adiava. A primeira vez ou de ser lente substituto na Escola Polyíeclniica,
que se viu a sós com ella, disse-lhe que não po- logàr para o qual está • provado que se não exige
dia esperar tanto pelo casamento, que o pae o nem exame de francez-
òffendia duvidando do seu direito, e insinuou
, Projecta uma economia que talvez o leve ao
perversamente que era capaz de levar a outra os
ministério — supprimir, a pasta da marinha. Enas
seus brazões. ,
horas vagas, que são hoje todas as suas horas,
Procurou também deslumbral-a com a exhibi-
inventou um jogo em que se procura, não onde
ção do seu rico futuro: podiam ir morar para a.
está o gato, mas onde está o barrete phrygio de
•Escócia, um paiz de legenda, um castello antigo
certo jurísconsulto.
entre os rochedos, entre a vegetação phantastica
dos alamos e dos pinheiros, ouvindo á noite ge- Tal era o1 homem eme se perdia na obscuridade
mer a alma dos heroes nas lástimas do vento. da pobreza e na ociosidade dos cafés, por falta
Ella achou bonito, com a condição de sè pintar unicamente de uma herança. Bastou-lhe a noticia
de novo o castello,, e de pinhões não queria sa- de ,uma, eil-o elevado á altura do seu destino.
ber : sempre ouvira dizer quê era muito quente; Encontrou-se commigo, ha dias, na rua, e já não
quanto aos phantasmas, podia-se fechar a janella. me conheceu, esquecido, tão cedo, de que toda a
Mas uma coisa ficou-lhe — a possibilidade, que prosperidade lhe veio do nosso tio commum.
elle mostrou de vir a ser conde. «A sra. condess.a !», Deixa-te estar, villão, que também, ha de chegar
«a condessa de Stogbal!» já via os esplendores do o meu dia; já a esperança, a musa prophetica,
seu luxo e a inveja das amigas. Lembrava-se da mais doce que o mantuano, segreda-me na hora
sua viagem á Europa,, logo que sahira do colle- dós sonhos: "Tu Marcellus eris" Também nós
gio, e imaginava-se outra vez a bordo, nas tardes seremos gente, e nutriremos na alma cívica a as-
do tombadilho, na vasta alegria do mar, comendo piração generosa de ir salvando a pátria a cin-
-
ameixas passadas, sua gulodice predilecta. E via- coenta mil réis diários
se chegando aos seus domínios, esperada no seu Até Iá/perdoae-me, ó manes do meu rico tio,
castello, caminhando entre alas de velhos lacaios e fazei com que venha a mim, sem demora, o
de libre; e havia de ter aias inglezas,. asseiadas e meu quinhão dos brazões e mais das libras, prin-
discretas, ,e uma musica suave, como a banda dos cipalmente das libras, de nossa illustre casa!
' allemães do Passeio, que tocasse todas as tardes
no pavilhão do jardim . . . Rio, junho de 1878.
:
Não, : positivamente, já não podia ser menos Lúcio Drummond, esq.
que condessa na Escócia; cumpria casar, e já, LÚCIO DE MENDONÇA
NOVELLA SEMANAL

disto fui sempre u m tímido : jB tive ainda a inexplicável


Avíd& ãnecdotícó< nunca perdi esse traço de filho
da roça que me desequilibra in-
satisfação de descer orgulhosa-
m e n t e as escadas do Itamaraty^
e píltQr'e$£&Úps:: timamente ao t r a t a r com quem
quer que seja. Dahi o ter per-
atravessar alegremente o saguão,
em baixo, e sahir agitando não
dido. sei quantos sonhos de futuro...
Aqui tenho um convite que u m futuro que desastradamente
f Uma carta inédita leio hoje com tristeza e que n a eu t i n h a destruído.
de E U C L I D E S . occasião recebi com indifferença. Conto-lhe o caso para que
«29 de Janeiro de 1898. Eucly- avalie a insciencia em que es-
des — o Marechal precisa lhe t a v a daquelle momento históri-
A carta que ins.erimos abaixo, fallar hoje. P i n t o Peixoto». co, o que explica a minha igno-
escripta por Euclides da Cunha
Lá fui, constrangido na mi- rância actual. .
a Lúcio de Mendonça — polí-
tico e j u i z , estreitamente ligado nha farda de 2.o tenente e atra- P o r isso, sempre que puder,
a u m a phase memorável da exis- palhado com a espada. Encon- sem q u e isto seja um compro-
tência nacional, da propaganda trei o homem na sala de j a n t a r , misso que lhe tome o tempo tão
abolicionista aos primeiros tem- á vontade, e em um dos seus bem empregado — transmitta-
pos de Eepublica — foi extra- dias de expansão. A filha mais me as suas impressões pessoaesa.
ctada de u m caderno de rascu- velha, D. Anua, que j á naquella
nhos do estylista magnífico dos hora matinal estava j u n t o a u m a
«Sertões», caderno dado por Eu- machina de costura — retiroxi-
clides a um dos seus melhores se logo depois que a cumpri-
amigos e admiradores de Minas, mentei .
o Sr. F e r n a n d o de F a r i a Júnior, E o grande dominador abriu-
de quem houve a R e v i s t a do me a apertadissima pasta da
I n s t i t u t o Histórico de Bahia a sua intimidade :
copia publicada. — Veio em a r de guerra . . .
E ' um documento interessan- não precisava fardar-se. Vocês
aqui e n t r a m como amigos e Geca Tatu na Argentina,
te, não somente como um auto-
retrato moral do grande escri- nunca como soldados. Da «Union», jornal que se edita ess
ptor, como o registo de um ins- Decorei t e x t u a l m e n t e . Buenos Aires, transcrevemos o artigo
publicado pelo sr. Manoel Galvez hi-!
tante decisivo desviando talvez Agora meu caro D r . Lúcio, vá jo, autor de " O mal metaphysioo" e
a directriz de toda a sua vida preparando o mais fulminante de outros trabalhos :
publica, mas ainda pelo que nos alexandrino das Vergastas para " E ' incrível até que ponto a litera-
tura no Brasil revela no paiz irmão
apresenta, traçado em algumas fulminar a minha horrorosa ina- os mesmos costumes que no noseo.
linhas expansivas, da intimi- ptidão. O grande doador de .Salvo no quo se refere' aos negros1, as
dade de uma figura como a do novellas e os contos dos grandes es-
posições, referindo-se á m i n h a criptores brasileiros — os Coelho Net-.,
Marechal Floriano Peixoto, em recente formatura e ao meu en- to, os Medeiros e Albuquerque, oa A-,
um inesquecível momento da thusiasmo pela Republica, de- franio Peixoto, os Graça Aranha, os
historia brasileira. A lcídes Maya, pura só falar nos com-
clarou-me que tendo eu direito temporaneos — poderiam Sjer argenti-
a escolher por mim mesmo u m a nos com u m a simples mudança nos
posição, não se julgava com- nomes e a differenciaçao de alguns
pormenores. Os escriptores que nao
«Li com o máximo interesse petente para indical-a . . . Que fazem alli obra nacional e Beguem as
a sua carta de 22 onde estão perspectiva! Basta dizer-lhe que correntes francenas, também Be1 asse-
alguns apontamentos sobre o estávamos .em pleno despencar melham aquelles dos nossos que se
encontram no mesmo caso. E nos me-
nosso homem. Não se sorpre- dos governadores estaduaes !... lhores críticos da nova geração — Mu-
henda com o desejo de conhecer E eu (nesta epocha estava sob oio Leão, Konald de Carvalho e Tris-
taes pornlenores, por parte de o domínio cáptivante de Au- tao do Athayde — observamos uma ra-
ra analogia de sensibilidade e de cul-
quem, (estudante militar e for- gusto Comte, e que isto vá co- tura oom os mais intelligentes dos
mando-se precisamente na epo- mo recurso absolutorio) — de- nossos críticos contemporâneos, com-,
cha em que — em pleno poder clarei-lhe i n g e n u a m e n t e que de- a resalva do serem bastante superio-;-
res os brasileiros, pois os críticos «c-,é
— nos collocava acima de todos sejava o que previa a lei para gentinos, de quem, deveremos esperar"
os homens deste paiz) devia-os os engenheiros recem-foimados: grandes coisas, começam apenas sua
conhecer perfeitamente. Expli- obra, sondo ainda muito jovens.
um anno de pratica na E. F. C,
co : naquella quadra não calcu- do Brazil ! .Essa semelhança entre nossos cos-,
lei bem a situação ; vi no ho- turnos <: oa do Brasil j á foi assigntt-
Não lhe conto o resto. Quan- lada pulos críticos brasileiros que es-
mem apenas um dos muitos do me despedi pareceu-me que '•re\o.™m sobre a tradncçSo do "Bi/
soldats heureux que entram es- no olhar mortiço do Interlocu- Mal Metafísico", editada no ftio de
tonteadamente na historia. Além -laneiro, e sobre outros livros meus
tor estava escripto : nada vale.s. que leram no origbial. Porém, para •
A NOVELLA SEMANAL 213
nós nada ha tão revelador a esse res- folhetinista que, galhardamente, em meaça a civilização. Um passado mais
peito oomo " ü r u p é s " , o vigoroso e so- cinco grandes jornaes, mantinha nada longínquo, a edade das cavernas, por'
lido volume de contos de Monteiro menos que, cinco folhetins . . . exemplo, lhe agrada muito. Sabe-se
bobato, flue acaba de appareoer em E m 1863, Frederico Thomaz publi- que elle emprehendeu substituir a
Buenos Ayres vertido por Benjamin cou u m volume de phantasias, intitu- musica pelo ruido e que fundou or-
de Garay. lado — /«Les vielles lunes d'un avo- chestras de «ruideiros». Essa conquis-
Em "Ürupés , que não é somente eat», enviando um exemplar a Ponson ta vem restaurar em nossos dias a ar-
uma collecção ãe contos, encontra- du Terrail. te dos sons'tal como a podiam culti-
mos os mesmos vicios da nossa vida Este agradeceu nos segviint.es ter- var as multidões selvagens em estado
Inióional. Vemos appáreeer alli a ruim mos : de exeitação delirante. A' semelhança,
política, a péssima ^administração, a dos adeptos do verso livre, sem uni-
Aprés cette lune en bas âge. dade métrica, Marinetti se fez parti-
miserável existência das classes po- Qu"on nomme Ia lune de miei,
bres. Tudo quanto Monteiro Lobato dário da «palavra-livre», sem syntaxe
E t qui se montre dans le ciei nem sentido, oppondo assim ao «vers-
refere do mestiço, na penetrante ana- Aussi fuyante'qu'nn nuage,
lyse com que abre o volume, pôde áp- librisme» o «mot-librisme». Palavras
plicar-se aos nossos "paisanos": a La lune rousse vient, dit-on, isoladas, sem syntaxe nem seqüên-
mesmapréguiça, idêntica falta de as- Eclairer le seuil du poete ; cia, sem formar sentenças nem
pirações, egual ignorância e supers- Mais en dépit du vieux dicton, phrases, mas iima serie invertebrada
tição. Aquelle Géca Tatu, celebre j á Ma lune rousse est incomplète. e desordenada de interjeições : é mais
no Brasil, onde o nome da persona- ou menos o balbuciar de uma crean-
gom. creada por Monteiro Lobato deu J'ai reçu, mon cher Avocat, ça de dezoito mezes. Mas porque pá-
ensejo ao appareeimento de u m a se- D'aimables vers, na charraant livre, ra em tão bello caminho ? Ha me-
rie de vocábulos typicos, não é outro Qui tout à 1'heure vont me suivre lhor. Ha os vagidos do recém-nascido
senão esse Juan Pueblo, .esfarrapado Sur mon vieux galet d'Etretat. e os simples gritos dos animaes.
e bruto que vemos, de quando em Sur Ia 1'alaise de granít, • A ultima jnvenção de Marinetti é o
quando, nas caricaturas das nossas Si Ia mer déferle avec rage , «tactilismo». Não se-sabe porque des-
revistas illustradas. E, quando Géca Si les colores de l'orage encadeou tempestades naquella reu-
Tatu, aconselhado a pôr u m a cerca Me font tressaillir dans mon lit ; nião e levantou protestos dos «dadais-
enTseu rancho, coisa fácil "havendo tas» : parecia destinada a agradar-
por ahi tanta madeira", responde com Tandis que le vent sur les dunes lhes. O «tactilismo» é, uma arte uo ?a,
o musulmano "nao vale a pena", não Ronlera les flots en courroux, evidentemente fadada a supplantar
estamos ouvindo os nossos "criollos", J e lirsi, moi, vos «Vielles lunes» todas as artes de outrora. Estas, pa-
a todos os nossos "eriollos", desde os L'o3il et le coeur tournés' vei-s vous ! ra os seus fins, utilisavam-se das sen-
de Jujuy até os do Pampa ? sações visuaes e auditivas. Fora da
O mais interessante é que ahi se a- moda. Não estamos oançados de ser-
E o protagonista desse conto mag- gradecem «os versos amáveis». Ora, o vir-nos dos ouvidos e dos olhos ? Não
nífico, tao cheio de humorismo como livro é em prosa,! O poeta agradecia nos capacitamos da inanidade das o-
os melhores do Mark TVain, que se sem ,o ter aberto. Mas, que importa ? bras que se dirigem ao espirito" por
chama "El gracioso arrependido", nao Bocambole fez dessas e peiores que intermédio desses sentidos «passadis-
ee parece, tal uma gotta a uma gotta, essa. tas» ? Sejamos cegos e surdos: eis.»
com osmossos "graciosos" provmoia- Ponson morreu de varíola, quasi re- progresso. Marinetti, que tem tacto,
nos? 0 joven medico audaz e, intru- pentinamente, pouco tempo depois d»' não admitte senão as sensaçâes do
jüo, de,"Police verso", nao terá por- guerra franco-prussiana, que figurou tacto. A obra de arte do, futuro coín-
ventura'entre os seus collegas argen- como capitão de guardas territoriaes. pôr-se-á de «taboas-tacteis> e «fitas .
tinos, innumeros similes ? E vivedo- tácteis», sobre as quaes passaremos
"res, como aquelíe do " E l comprador as inàos. Por uma sabia disposição
dehaoiendas", outro conto bellissimo, de matérias taes como «papel de vi-
flío '.haverá muitíssimos em nosso O "tactilismo,, dro», «papel de estanho» • escovas, se-
naiz ? 0 livro de Monteiro Lobato que da e penugens, evocarão os nossos,
tao é apenas muito interessante e Poemas de vidro, estanho, dedos uma multidão de coisas bel-
cheio de talento, senão que por egual papel, seda, escovas... las e provocarão ineffaveis volúpia*
Contem muitos ensinamentos para to- estheticas. Marinetti j á é a i c t o r de
Éos nós, leva-nos a repetir a conheci- Antes de fazer ruido no ; mundo, as um «poema táctil» — «Sudan-Pa-
da phrase de Saenz Pena : "Tudo nos conferências de Marinettí começaram ris» — que encerra em alguns deciV
fone, nada nos separa". Os mesmos por fazel-o na sala : é mais certo. metros quadrados de estofos, de phi-
Refeitos nacionaes e as mesmas virtu- Nisso parecem-se com as sessões «da- màs e de papel toda a desolação do
des ; idênticas esperanças e idêntico dáistas». Mas o futurismo e o «da- v
deserto e toda a febril alacridade da,
futuro. Poderá duvidar alguém que dáismo» são irmãos inimigos. Não se grande capital.
o Brasil 6eja um povo irmão, ,e que vive senão ,oppondo-se a alguém ou a
devemos cònhecel-o e amal-o, aban- alguma coisa. E esses grupos de es- Marinetti riria, decerto, muito, se_se>
donando para sempre as estúpidas thetas são candidatos á existência. lhe discutisse seriamente a faoeont.
rivalidades, indignas de nações demo- Nada demosntia que o consigam, bem. Raciocina como geometra mystifica-
cráticas, que devem olhar para, o por- que desenvolvam um trabalho enor- dor. Desde que tem cinco sentidos,
vir e realizar os ideaes dqs tempos me para dar na vista. -. A creação de porque só dois seriam instrumento*;
modernos ? uma obra-prima seria menos laborio- de arte ? Baudelaire e Huysmans
sa : é verdade que a boa vontade pa- imaginaram symphonias de perfume,
MANOTX GAI/VEZ HI.TO mas desde logo se tornou evidente
ra tanto não basta. Emquanto não, que não se iria longe nesse caminho.
vem o successo, houve ha pouco, em Quanto á cosinha, é uma arte, respei-
nm dos theatros de Paris, violentos tável, mas sem pretenções a i abalar a
recontros, em que, ás bicadas e espo- pintura e a musica. O tacto é ainda
radas como numa rinha, se viram, de imenos capaz de cultura artística, por-
um lado Marinetti e do outro Francis que é o sentido mais rudimentar e
Pieabia s Trístan Tzara, que se jul- mais' grosseiro, como o explicou Taine
gavam feitos para bem se entende*- em seu tratado da «Intelligeneia»- A-
vem. Não foi menor a surprez» — penas ó susceptível de impressões pri-
diz um jornalista — ao vêr-se a sra. marias, ás vezes intensas, mas monó-
liara estrear num papel conciliador. tonas e pouco apprehende para o ss-
Ponson du Terrail, poeta. Entre os dois campos, interpunha-se
ella, a reclamar silencio. Artista, ori- pirito. E' precisamente o que devia
ginal, que sabe, variar .os seus effei- encantar Marinetti. Mas resta-lhe ain-
A França eommemorou este anno o tos, ella defendia a Ordem publica. da um passo. O sou «tactilismo» sup-
cincoentenario de Ponsort du Terrail,, põe um systema nervoso orgaiaisado.
Ainda se encontram muitos fanáti- Nos seus põe Marinetti um pouco Na primeira occasião, elle nos propo-
cos do romanee de acção que lêem e mais de lógica. Esse pretenso futu- rá, sem duvida, como suprema as."en-
rista propõe eystematicamente o re- ção para um glorioso futuro, uma ar-
devoram p «Rocambole» e a «Mocida- gresso á barbaria. Não se admira que te accef.sivel aos organismos absolu-
de do rei Henrique». Ninguém, no seja bellicista. Queria queimar os tamente primitivos e que n->s ha de
•emtanto, se podia gabar de haver lido museus, arrazar os monumentos, des- pôr, emfim, ao nível dos protozon-
versos do intrépido narrador. Aliás, truir os vestig^os do passado : mas is- rios,
parece que sóbiente u m a vez na vida so seria para no,s conduzir muito mais
fa elle versos. longe. Seu horror ao passado so a- S.
Será ourioso lôr esses versinhos do
216 A NOVELLA SEMANAL
um «Radio - Megaphone-. Faltando eu. devido ao -.iiaily Mail , tem sido
U m discurso proferido pe- dentro deste terrifico instrumento, immenso'. Kós to.los estamos passan-
lo g r a m m o p h o n e . que estava ligado ao «St.entorphone» do actualmente pior um período de
suas palavras poderam ser ouvidas prova, de que emergiremos, dentro,
por todos. Façam idéa do que não se- em pouco, O mundo está. perturbado
Antônio Torres, que se acha em Lon- ria esse pandemonium do Olympia. . . por crises de trabalho intimamente
dres, enviou paia a «Gaxeta de Xoti- Mas, em sumiria, que teriam metal- ligadas com a Imprensa, em vista da
cias» interessante carta em que tra- licamente vociferado esses infernaes principal ser a Vio carvão. Quando se:
ta da festa anniversariti do «Daily instrumentos «on behalf» do Sr. Vis- dispersarem essas nuvens, olharei pu-
Mail-, um dos maiores jornaes do conde Northcliffe ? r a a frente mais condado numa era
mundo, o qual se publica na capital florescente e que exigirá, mais esti.
da Inglaterra. Foi um banquete de Melhor seria transe rever alguns tre- mulo. Congratulo-me com os organi.
sete mil talheres, offerecido aos em- chos do seu grammophonico «speeeh». sadores deste banquete, e especial-
pregados do jornal. E' claro que um Como, porém, esse discurso, além de mente com os sis. Lyons, os quaes
-discurso, proferido por vóz humana, longo, refere-se mais á vida dos 3.000 realisaram o que eu acreditava, qua-
não seria perfeitamente ouvido numa trabalhadores do «Daily Mail» do que si impossivel",
reunião a-sitn. a assumpt.os de ordem geral, trans-
crevo apenas os seguintes trechos, ex-
"Mas — escreve aquelle jornalista — trahidos ao discurso supplementar fei- O sr. Northcliffe também reconhe-
não se assustem que para, tudo tem to pelo Visconde Northcliffe, em res- ceu que, apesar dò seu jornal ter uma
remédio a Civíiisaeão. O discurso do posta a um brinde também supple- venda ineguulada mesmo nos Kstados
Visconde Northcliffe foi pronunciado mentar que lhe fizeram— porque ape- Unidos, léem-se menos jornaes na In-
gramnipphonieamente. Sua Excellen- sar dos prévios avisos em contrario, glaterra do que naquella Republica
cia passou um dia nas officínas da a oratória britanniea não deixou de e na Allemanhá ; entretanto elle sup-
«Gramophone Company». em iMidde- explodir, como convinha e era de es- põe que o seu jornal será ainda mais
lesex, onde. sob a direcção de um te- perar depois das vastas libações que lido depois que lhe chegarem as ma-
•chnico da companhia, o sr. A. G. S. regaram aquelle ágape . . . chinas aperfeiçoada» que está espe-
Clark, foi leito um «record» todo es- rando . . .
pecial. Deste «record» tiraram-se cin-
co copias, que foram reproduzidas em '•Quero também dizer algo acerca, E cá fiquei eu scismaiulo, sósinho
grammophone uo Olympia, sendo que do futuro do nosso ofíicio. Creio que e á noite, como o poeta, numa outra
o volume da vóz era espantosamente por emquanto elle está apenas no co- terra, tão vasta, tão distante, tão va-
ampliado por um cStentorphone» pro- meço. Confio em que noaeremos ain- sia e tão amada, onde a Imprensa è
vido de cinco immensas campanas, da produzir melhores jornaes, e dar ainda, como alguma coisa vaga, inde-
de sorte que em todos os cantos da emprego a maior numero de gente, cisa e ombryouaria, minúscula como
casa o discurso podia ser ouvido per- e um dia faremos um festim duas um átomo de grão de areia, e enjn
feitamente. O mestre de brindes (lo- vezes maior do que este. O progres- orgulho inaudito de professor ile ar-
ast-master), um considerável senhor so da imprensa britanniea no ultimo raial nem siquer podo já ser compa-
chamado AV. Knightsinith. usou de quartel do século, um pouco, cuido rado ao da rã deante do boi . . . "

IMPFRIA
Kssa que ahi vae, a passo tardo, lento,
K que, em seu rosto, a tísica, retrata,
Sotfre. em segredo, u m intimo tormento
Que. 'pouco a pouco, lentamente, a mata.
Ninguém sabe avaliar o soffrimento
Que a su'alma espesinha e que a maltrata .-
SIMÕES PINTO. Sem proferir um único lamento,
Xinirueni tão querido em São Pauto, nas rodas lite- Do bulicio do mundo se recata, !
rárias, como Simões Pinto. (fraude espirito, a sua in- Dizem, porém, que. um trovador de esquina,.
fluencia se fez sentir longe e. ainda agora, jã, desappa- Com seu beijo, alfa noite, polllniti
recido do numero dos vivos, não será diíbcil descobrir- Dos lábios seus a candidez divina.
lhe traços. A -na obra, entretanto; de jornalista e poe- Data, d'abi a sua desventura:
ta, pelo próprio auctor esquecida, não tem a divulga- Na, expineão do erro .on que eabiu
ção que nu roce. O jornalismo se sobrepoz á poesia e — na Vive cavando a própria sepultura, !
impossibilidade e ingratidão do — mister deixou ajJagar-
se, indifferentemente, o nome do homem. BBLLEZA MORTA
Um capricho do acaso, porém — capricho de belchior Kssa, que eu amo, eseulptural Camena,
que, na inconsciencia com que merca alfarrábios, des- Typo ideal, belleza soberana,
cobre ás vezes preciosidades — trouxe-nos aos olhos Não tem a vida da mulher .morena. !
alguns tragmentos da. obra do poeta. Era uma brochura- Não tem a cor da venus ottomana !
sinha. quasi esfrangalha.la. Paginas pardaeenras, im- Lyrio entreaborto quando a noute amena
pressas a vermelho. Ávidas mãos, ile um apaixonado, A liinpi.lez ilo céo azul enipana.
talvez, destacara do texto algumas folhas, das melho- Possui-, no rosto, a pollidez serena
res, decerto . . . Mãos impiedosas e perversas ! Mas. quem Da luz prateada que do luar dimaua.
sabe' quanta alma nâ«, foi nesse gesto brutal V 'Livro Não tem no olhar a claridade ingente
raro, avaiamente guardado, alguém o pilhara de sur- Que banha a terra quando o sol, no Oriente,
preza e lendo-o ás pressas, foi-lhe surripiaudo o melhor, Sacode o pó da cabelleira casta.
naquella in inietação de quem, sabendo-se criminoso, não E eu que idolatro essa belleza morta,
-abe fugir a,o crime. Sei que ella me não q u e r ; porém que importa
Assim, podemos hoje oflereeer aos leitores alguns Tenho-a no c o r a ç ã o : Isso me basta !
versos da CárminaM
FONTE DE AMOR BANDOIJNÍSTA
Fonte pura de amor. crystalina e sonora ! Toma do ple.ctro e o bandolim, queixosa-,
Bocca que encho de inveja o favo das abelhas. Eil-a cpue tango sonorosamente ;
Quando, rubra, a tremer, mil pertumes dissóra, Gemem as cordas, sob a mão nervosa,
Num sorriso aromai de papoulas vermelhas ! Numa «berecuse • harmônica e dolente.
Abre os lábios em flor, irmã gêmea da aurora ! Então m i n h a l m a , tímida e, medrosa ,
Kaze brilhar de gôso as lubricas scentelhas ! — Alma de poeta, sonhadora o crente ! —
Abre os lábios ern flor e, sorridente, agora. Em extasis se queda, corno a rosa
f)a-me o beijo febril em que a volúpia espelhas ! Ao doce murmúrio da água corrente.
Quero sorver o inél e o aroma dos teus beijos, E, emquanto as notas perdem-se no espaço
O' bocca que sorris, transformada em colméa Eu desejo, de palmas e de flores.
Das abelhas gentis dos meus loucos desejos ! Um turbilhão depor.no seu regaço
Da-me o beijo febril que as forças revigora, E, á fronte augusta e genial de artista
Bocca cheia de graça;, e de candura cheia. Um diadema de rútilos fulgwon ':
Fonte pura de amor, crystalina e sonora ! Um. diadema de oj.ála .,- de amethvsta !
1 5 D I Ç O E S D A

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A NOVELLA NACIONAL
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A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por
série de pequenos livros, nos qna.es AMADEU AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : otíerecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
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a melhor leitura, sob a apresentação W no gênero uma. verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o .celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — L I - Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n H a por. LEO VAZ, o fes-
CE D E TODOS. tejado auctor do ''Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualiclade, alcançando três
lume por mez, com cerca-de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato. 16 !/2 X 12'/» centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em. magnífico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S * E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias j á sobejamente conhe-,.;,,;
cidas e apreciadas!

OS NEGROS

A seguir novellas d e :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires é outros.
Cada volume, lfliOOO em
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correio, registrado lfSOG.
Assignaturas com direito
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lumes registrados :
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3$õ00; série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora.
Olegarío Ribeiro
Rua Dr. Abranches N/43
Caixa, 1172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo - Lá, foges, *xni,*\hm.m* n m «fa.
ÁNNÔ 1 SAO PAULO, 30 DE JULHO DÊ 1921 NUMERO 14

A N O LLA
SEMANAL
LFrxicío-
HM
y^-

• S " ' \ '

****,

BREVEMENTE: "A NOVA PLEIADE"


COLLECÇÃO de pequenos livros de versos a
se publicar sob a direcção de Amadeu Ama-
ral (da Academia Brasileira) e destinada a
CADA volume, caprichosamente confeccionado,
impresso a duas cores em excellente papel,
com artísticos ornatos e solidamente enca-
mm
dernado, será vendido a 2$500.
• vulgarizai- as obras dos poetas novos de Na NOVA PLEIADE somente serão publica-
grande merecimento, ainda pouco conhe-
cidos do puDiico.
publico. das obras de verdadeiro valor.
ciclos ao _ , o Silveira
Iniciaremos a collecção com o primoroso livro MANHA do poeta paulista Gracch S. Paulo
' SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - Rua:Dr. A b r a n d a 43 - Caixa, 1172 -

á)C.EDITORA.OLEGARIORIBEIRO RDfABRANCHES,45 SPAÜLO


A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR: BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AOS SABBADOS


Paru os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-
dos os analphahetos, as tiragens dos livros nacionaes lhores paginas esgotadas e as sepultadas em colleeç.ões
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num circulo vi- cido e inaccessivel. Das obras ainda em extracção no
cioso : o livro não se diffunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é caro porque não se diffunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didacticas e populares, e em publicações periódicas
nas de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
paiz, snggeriu a iniciativa da creação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indioações preoisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tomal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possiveLpela escrupulosa escolha cia matéria B pela ar- mo auctor. Esta publicação constituirá, portanto, ao
tística confecção de cada volume, e depois usar de t o - mesmo tempo qite um abundante repositório de infor-
dos os meios para o diffundir em todo o território na- mações bibliographieas, uma selecta de pequenas obras
, cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor co-
sociaes. desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas jmlavras, todo o nosso pro- fronteiras.
£'ramma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando ao mesmo tempo da natureza do livro nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos com
as vantagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores e.onheoi-
apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, em toda par- dos e desconhecidos, consagrados e estreantes,comtanto
te, a toda gente ; mas não será futil e de interesse e- aue taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phemero como ella: pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A NOVELLA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série tensão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que se encadernarão no íim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará Preferimos dar maior desenvolvimento á edição do
uma bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volum es por serem esses os
gêneros que contam, entre o publioo, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida, lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
e creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora, Todos on outros gêneros terão o seu logar no nosso
procurará nos auctores a vida, a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se tornar um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se collooa á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. Não seria este o melhor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
• cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathico.
ahi, esquecida e ignorada da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- Os EDITORES.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col- Aos leitores queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessante para qualquer que nos enviem relações de auctores
das secções deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados, de modo a nos
Os auctores devem nos remetfcer os na ser lida em toda parte ; cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o seujnome, villas, povoações. estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, hotéis, clubs, bibliothecas, e t c ,
ferecem a sua collaboração. estando porisso organisando um ser- Importante
Os originaes devem ser escriptos de viço de distribuição que será o mais Toda pessoa que angariar três assi-
um só lado do papel, em calligraphia completo possivel, de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL,
bem legível e de preferencia dactylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos. adoantadamente a res-,
graphaclos. • •• nfto tenha leitores é não'seja encon- jVe<'tiva"'im'porta iicia, tórtl" dfrêíto a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A toda pessoa que angariar qual-
garío Jiibeiro — Caixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— S. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereceremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
;. rA NOVELLA SEMANAL publicará interessar pela venda ou leitura, des- sil, no valor de 20 o/o sobre o preço
com prazer, e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade, total das assignaturas angariadas.
nome do auctor. preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor, de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil, bastando para isso os escriptores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas, Anno 20$000
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra.
De todas as obras das quaes lhe for muito agradeceremos qualquer indi- Semestre 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . . 5$000
lém disso uma^noticia critica. fornecida, rogand o. todos quantos Numero avulso . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO-R. Dr. Abranches, 43 Caixa Postal, 11,2-Teleph.: Cidade, 5441-S.PAULO
A N N O I A NOVELLA SEMANAL São P a u l o , 3 0 de Julho de 1921 NUMERO 14

VIDA ELEGANTE — Julio


César da Silva.
A ENTREVISTA — T h e o -
SIMMAR» Curiosidades literárias —Ás
senhoras bahianas - C A S
TEO AI-VES. — O Ceitte-
' doro M a g a l h ã e s . , nario de Fláubert - C. L.
O HOMEM D A S CIRCU- DOIS IDIOTAS - Julio SUPPLEMENTO — A vida Paginas esquecidas --. O vo-
L A R E S — Jurandyr Scheibel. anecdotica ' e pittoresca cabulário - COELHO N E T -
, 'Gomes. TO.
dos grandes escriptores
SIMPLICIDADE — Coelho Ricardo, Gonçalves - M. O s nossos poetas — JuUÒ
Netto. VILI.AÇA DK CAMARGO. César da Silva,

V I D A E L E G A N T E
Mlle Lili tem apenas dezoito annos, dezoito an- nando pelas avenidas asphaltadas, dançar o tango
nos de edade e cinco annos de fortuna e vida nos salões elegantes,/ freqüentar o Theatro Muni-
elegante. Nasceu pobre e foi pobre até aos treze. cipal. Era ao cachorrinho, emfim, que ella
O papá era um simples agente de negócios, e abria a sua alma, dizendo-lhe as suas angustias
de negócios que fatalmente fracassavam. O.po- e ideaes. "Brinquinho", sentado no regaço de
bre homem, na luta pela vida, não fazia um es- Lili, olhava-a muito, nesses momentos de confi-
forço que obtivesse êxito nem sahia da luta senão dencia, com os seus olhinhos intelligentes, quasi
depois de derrotado. humanos. Dir-se-ia, pela maneira com que acom-
A occupação da pequena era malhar o piano panhava os gestos á menina e attentava nas suas
sem nunca acertar a dedilhagem nem o compasso, palavras, que elle comprehendia tudo. A's vezeg,
compor, ella mesma, os seus chapéos, aproveitando quando a pequena, para dar mais intimidade ás
as fôrmas velhas e as fitas desbotodas, e, com o suas confidencias, approximava o rosto do seu
lindo rostínho cheirando a pô de arroz barato e íoc-inho, elle, traiçoeiramente, lambia-lhe'o, soltan-
besuntado de carmin, olhar a rua, de cotovelos do ganidos de alegria. Ella ameaçava' bater^lhe,
fincados no parapeito. Eram essas as suas horas mas contentava-se de enxugar o rosto á manga
melhores. Cultivava a attenção dos homens, es- da blusa, e continuava à sua interminável historia
timulando-à com um geito de olhar de que tirava de maguas soffridas e 'de desejos incontentados.
effeitos maravilhosos e com um geito de manter Quando a mamãe se avisinhava^ arrastando as
os lábios, pondo a descoberto os dentes, que bri- chinellas, do quarto de Lili, esta, calava-se ou
lhavam. Cantava "também, quando, o pae estava disfarçava, cantando.
ausente ou a mama não estava de máo humor. A menina era tagarella e a mama, casmurra.
A sua vozinha, nos registros agudos,- falseava, A pobre senhora nem sempre foi assim ; mas,
desafinando. Todo o seü affecto dedicava-o ella de tanto soffrér decepções e privações, mudara
a umcachorrinho, o " Brinquinho ,", de focinho completamente de índole, e só abria a bocca> o
pelludo e olhos chorosos. Era-a elle, a elle só, que raramente fazia, para censurar ou praguejar.
que ella, nas suas horas de aborrecimento, con- Como não gostava de falar, não gostava também
tava as, suas ambições, o seu desejo de freqüentar de ouvir.
o grande mundo, de se vestir segundo os últimos Com quem, pois, Lili podia trocar idéas senão
figurinos, guiar, ella mesma, a suaJàejjie^fonfo- com "Brinquinho" ? O pae, sempre na rua, no
218 A NOVELLA SEMANAL

encalço das transacções fugidias, e a mãe a labu- meros e urgentes deveres. Levantava-se cedo.
tar na cozinha ou no lavadouro, sempre azeda. Para falar verdade, não se levantava mas levantava
Sentindo-se só, agarrava-se ao animalzinho. Nes- apenas meio corpo, sem sáhir do leito. Com as
sas palestras confidenciaes de portas fechadas, em pernas mettidas entre os lençóes, a camisa escor-
que o cão também tomava parte, falando corir os regando hombros abaixo, impunha-se a tarefa de
olhos e com os movimentos eloqüentes da cauda, ler os jornaes e revistas. Passava os olhos pelas
Lili fazia-lhe promessas... Oh! quantas promes- noticias do mundo elegante, interessava-se pelos
sas ! Quando ella fosse rica, sahiria a passeio anniversarios, pelas obras de piedade promovidas
com "Brinquinho", de automóvel. E via-se já de pelas senhoras de alta roda, pelos últimos figurino?.
automóvel, com as mãos enluvadas no volante e Assim, em menos de quarto de hora, tinha sa-
o cachorrinho ao lado, muito grave, com sua tisfeito a sua curiosidade e posto de lado, como
colleira de fita azul. "Brinquinho" teria uma inúteis, algumas dezenas de magazines, de revis-
casota em feitio de chalet suisso, com roseiras ao tas literárias e jornaes. Feito isto, levantava-se, e,
lado. Teria as suas horas de " footing" pelas desta vez, de verdade. O seu banho era uma
aléas do jardim... coisa complicada. Antes, contentava-se com um
E veiu a guerra, a grande guerra. O pae de sabonete e uma ampla bacia de água tépida. E
Lili tinha o faro dos negócios e a visão das coi- sahia do seu banho tão asseiada como uma nym-
sas futuras. \Metteu-se em transacções de papel, pha a emergir da fonte. Agora, porém, o seu
de andinas, de tintas para typographia, de gado corpinho magro, leve, de linhas um tanto angu-
para exportação, metteu-se em tudo. Foram tão losas, exigia uma piscina e águas abundantes
felizes os seus negócios, que os capitalistas come- saturadas de água de colônia e essência de rosas.
çaram a olhal-o com respeito, com um respeito Uma massagista eximia f riccionava-lhe o corpo com
a que se misturavam a superstição e a inveja. luvas de bucha. Depois, pulvèrisações de vinagre
Ao cabo do primeiro anno, entrou a negociar aromatico e outras coisas essenciaes á conserva-
com os seus próprios capitães, que já eram avu!- ção e belleza da pelle.
tados. Dobrou-os, triplicou-os, multiplicou-os- Em seguida, vinha a manicura, uma senhora
Antes da assignatuia do armistício, já era aponta- franceza, que se dedicava ás suas unhas com um
do como um dos mais fortes capitalistas da praça- cuidado muito affectuoso, muito exaggerado.
Lili tinha realisado o seu sonho. Habitava um Madame não lhe abandonava as unhas senão de-
palacete. Em cinco annos de vida rica, progre- pois que ellas estavam fulgurando, com uma cen-
dira notavelmente. Affez-se de tal maneira á telha bem viva em cada curva. Tratava-as a
nova vida, que a anterior, que era mais longa, quasi esmalte, a pastas vermelhas, a verniz, a ferrinhos
que se lhe apagara da memória. e apparelhos de feitíos caprichosos, a ácidos e
Ao piano, graças' aos esforços de um professor líquidos, em frasquinhos minúsculos.
reputado e aos seus esforços também, já não er- Uma das suas horas mais agradáveis era aquel-
rava a dedilhagem nem desacertava o compasso. la em que se entregava aos cuidados, não menos
O habito de freqüentar concertos, de ler as noti- excessivos e affectuosos, do "coiffeur". Este apre-
cias das grandes audições, de ouvir a opinião das sentava-se sempre de smoking, e tinha uns ares
pessoas autorisadas, se pouco lhe accrescentou á de moço da boa roda. Dentes magníficos, cara
cultura musical, desenvolveu-lhe, em compensação, encanhoada. Só falava francez. Mlle Lili falava
o snobismo. No fundo, adorava a opereta, as francez correntiamente e já se familiarisara com
operas românticas de muita enscenação e espec- o "argot", mas não conversava com o rapaz se-
taculo, embora só confessasse o seu amor por não . propósito do penteado, de um retoque a
Chopin e Debussy. fazer ou de um effeito a tirar, em phrases cur-
Adoptou os hábitos elegantes, e adaptou-se a tas, sem o fitar nunca. A uma moça da sua po-
elles como se fossem hábitos velhos. Antes, le- sição e fortuna não convinha a intimidade das
vantava-se tarde, quasi á hora do almoço. Ver- phrases longas. Entretanto, sentindo que era
dade é que as suas horas eram immensamente admirada, quç aquellas mãos, sob pretexto de
vasias. Dividia-as, por isso, em horas de somno achatar um anel rebelde dos cabellos, se apoiavam
e hoias de aborrecimento. Agora, não. Tendo em sua cabeça com uma lentidão menos profis-
o seu dia tomado por ura tumulto de, tarefas e sional que carinhosa, entregava-se aquelles cuida-'
preoccupações, tratou de disciplinar a sua vida de dos com um prazer que, mesmo a si própria,^
maneira a satisfazer, em cada dia, os seus innu- penosamente confessava. Como era um profissio-
A NOVELLA SEMANAL 219
nal, recebia-o com qualquer "toilette", preferindo episódios do seu dia, sempre os mesmos, Sempre
até recebel-o com a "toilette" que menos a ves- '* parecidos, mas tão agradáveis sempre!
tia . . . Para as suas horas de corso adoptou um cão-
Ás vezes, para descançar dessas sérias, occupa- sinho "loulou", cor de chocolate, chato como um
ções, em que se imniobilisava por horas e horas, saurio e dé movimentos molles de cobra. "Brinqui-
necessitava executar movimentos violentos. Ia fa- nho" não ganhou, como Lili lhe promettéra, a casota
zer uma partida de tennis no seu club. Depois em feitio de chalet suisso entre renques de ro-
do alijtoço, um passeio pelo seu arrabalde, ora a seira'. Lá vivia no quintal entre o gallinheiro e a
pé, ora de automóvel. Puro pretexto para exhibir horta, a ganir o seu abandono. Lili nunca mais
a "toilette" de passeio. A's dezeseis horas, uma quiz velro, receiosa de que a sua presença lhe
volta pela cidade a ver os mostruarios dos joa- recordasse muito ao vivo o passado...
lheiros e das casas de armarinho. As lojas de
JULIO CÉSAR DA SILVA
moda tentavam-n'a mais. Entrava. A escolha de 4
"robes" e "manteaux", com exhibição de mane-
quins vivos, occupava-lhe minutos profundos de
attenção e tensão espiritual. Por fim, cançada do
esforço, sem se decidir por este ou por aquelle
artigo que se lhe offerecia, comprava qualquer
futilidade.
Num dos magazins do centro havia uma hora
de chá elegante, cóm quarteto de cordas. Mlle
Lili não dispensava esse chá- nem a sua hora de
A ENTREVISTA
de musica e "flirt". Emquanto mexia o assucar Naquela noite uma rajada de vento, entrando
no fundo da chfvena> fazia-se alvo da attenção pela grande aberta da cela de fr. Sampaio, apa-
dos homens.. Não lhes correspondia" nunca. O gara o roliço imgio de cera virgem que ardia
orgulho dós seus recentes milhões roubara-lhe, sobre a secretária de mogno. -O monge que es-
em parte, a sensibilidade. tava o escrever o artigo: para o Regulador, le-
Entrava em- casa quasi á hora do jantar. Mal vantou-se e accendeu a velâ?e ordenou, depois,
tirlha.tempo de mudar de vestido. Aqi^ella va- as tiras de papel que haviam se espalhado peio
riedade de pratos e o serviço á franceza tiravam- chão. Olhou o lado domar e acqstou-se aopei-
lhe o appetite. Não podia consolar-se com a toril da janella do seuaposentp de professo fran-
falta da antiga terrina de feijão, de caldo grosso. ciscano do convento de Santo,» Antônio.
Distrahía-se, porém, em dêbicar as gelatines, em- A cidade dormia silenciosa sob um céo negro
beber o pão no molho de tomate e provar, ape- onde faíscavam estrellas: apenas o chouto deali-
nas com os lábios, os vinhos seccos. Desforrava-se mária que galopava pela Vala era o único rumor
nas frúctas. quechegava ao alto do morro., Ao longe, quasi
A's vinte e uma horas, fazia a sua entrada glo- á entrada da barra, sobresaia da densa escuridão
riosa no Theatro Municipal quando era recita de o farol da proa de uma sumatra que reflectia
assignatura. Apoiando o cotovelo no rebordo da , frouxa restea de luz escarlata sobre as águas da
frisa, ostentava o decote amplo e os braços nús. pacifica Guanabara,
Sentia pena que o deco|e tivesse um limite, mas De repente, fr. Sampaio percebeu o arrastar
consolava-se com o limite máximo. Nessas suas da sola pesada de grossas sandálias pisando o
horas de triumpho tinha Lili a sensação de que soalho do esguio corredor do. mosteiro. Pouco
o,espectaculo era promovido em homepagém a depois, cessava o rumor e alguém bateo de va-
ella, e, não raro, a sensação, ainda mais gostosa, gar ao umbral da cela.
de que ella era a actriz e que não só aquelle pu- — Quem é ? gritou o frade.
blico como as próprias figuras da . scena eram ,— Vossa Paternidade, queira abrir — respon-
apenas espectadores do seu triumpho. Essa Alu- deram^ de fora. "• ~
são, que a afoguèava e lhe punha calor no lobo Fr. Sampaio deu dois passos e chegando á fe-
das orelhas, não lhe dava tempo de indagar o chadura voltou duas vez a chave -puxando para
que se passava em scena. dentro a pesada porta. Entre — disse o francis-
Ao deitar-se em seu leitosínho virginal, recapi- cano. E. immediatamente accrescentou:
tulava, emquanto não vinha o •somno,. todos os — Que quer ? irmão Antônio.
220 A NOVELLA SEMANAL

Um donáto, rapazola de seus vinte e dois anos, branca do claustro, que a baça candeia de azeite
olhos azuis, faces rosadas, as mãos cruzadas so- do pequeno oratório clareava com moríiços lam-
bre o peito, curvando a cabeça, reverentemente, pejos.
repondeo submisso: Fr. Sampaio fechou a cela, deu alguns passos
— Desculpe-me V. Reverencia, interrompê-lo. e bateu a porta próxima de seu quarto de reli-
E' que á portaria do convento acaba de aparecer gioso, chamando baixindo:
uma mulher de mantilha; pede de V. Reverencia — Frei Rodovalho.
a caridade de assistir uma enferma a bem morrer- Immediatamente surgiu a figura distinta, do ce-
— E onde devo ir a ver a penitente ? nobita que, dias antes, pregara numa fçsta da ca-
— A' rua do Piolho, padre mestre. pela rial o mais eloqüente sermão daqueles últi-
— A' rua do Piolho, repetiu pausadamente o mos tempos. Trazia a estamenha desabotoada,
egresso. o cordão branco embaraçado á cintura e um li-
Fr. Sampaio demorou longos minutos vaci- vro volumoso na mão esquerda de que o in-
lante. Diversos pensamentos, enxameando-Ihe dicador marcava a pagina cuja leitura fora in-
o cérebro davam-lhe a duvida de que alguém o terrompida.
quizesse para confessor. — Padre mestre, disse fr. Sampaio, vou ouvir
A sua expressão deixava adivinhar receios se- uma doente em confissão. E' pedido que me
cretos: o seu olhar denunciava a hesitação de acu- solicita pessoa desconhecida que, a esta hora [de
<dir a tão grave chamado. Que destino levaria silencio, veio me procurar ao convento. Si, acaso,
ele se saísse e fosse colhido nalguma cilada? A eu não regressar por cair ém cilada armada, o
sua actividade estendia-se do repouso do claustro que não será de surpreender, destrua os papeis
ao bulicio da maçonaria : envolvera-se nos ajustes que se encontram amarrados aos manuscritos de
sediciosos do Grande Oriente, talhados á inde- meus sermões.
pendência do Brasil, lutava pela emancipação da — Cartas de amor, padre mestre? — atalhou
Pátria enovelado nas rixas dos partidos e perce- com zombaria fr. Rodovalho.
bia que as rivalidades entre Ledo e José Bonifá- — Documentos políticos, meu amigo.
cio poderiam acarretar-lhe grandes desgostos ou — A política e a mulher assemelham-se; ma-
mesmo inesperadas decepções... Parecia-lhe te- nejam o embuste. E com ambas V. Paternidade
meridade deixar àquela hora o convento, descer dissipa gentilezas.
a ladeira e acompanhar uma desconhecida que se — Não esteja a meter-me á bulha. Sabe como
resguardava nos panos de avantajada mantilha, me preoccupa a separação do Brasil. Vivo no
no intuito, talvez, de arrasta-lo a um sitio peri- Grande Oriente, redijo um periódico. Exponho-
goso. Emquanto, mentalmente, pesava essas pon- me, padre mestre, e comprometo-me. Inda no
derações, começou a envergonhar-se de sua co- mes passado, em casa de José Clemente, o co-
vardia. Quem se compromettera á tarefa de altas nego Januário perguntava-me si nunca eu sof-
responsabilidades, entregando-se ao empreendi- frera a ameaça de agressão á subida da ladeira.
mento de auxiliar a libertação da terra natal, não Afoito-me; tenho demasias ás vezes.
se devia apavorar com a suposição de vingança — Pois, então, prudência, padre-mestre. Pru-
ou do embuste do adversário. Filiara-se á loja dência. Evite as conjurações e fuja á galanteria.
Commercio e Artes empenhado na proclamação
— Fr. Rodovalho, sou professo. Se me con-
da independência do Brasil; cumpria-lhe revestir-
duzo delicado ante as senhoras, não trago na
se de coragem em todos os actos da vida de mo-
face o vinco marcado da depravação c do vicio.
do que lhe não faltasse o animo em prováveis
momentos de serias difficuldades políticas. — Oh! fr. Sampaio. Não o computo por má
conta... V. P. não é o príncipe regente.
Como se decidisse a definitivo alvitre, volveu-
se num súbito repelão e inclinou-se sobre o poial A mudez do claustro quebrou-se com as risa-
apanhando o seu grosso breviario. Pousou leve- das dos dois franciscanos. Fr. Sampaio meteu o
mente a mão espalmada no ombro truculento do livro dentro da manga, apertou a ilharga, como
jovem leigo e murmurou: verificando si levava algum objecto oculto e des-
— Vá dizer a essa mulher que me espere um pedindo-se do seu confrade poz-se a andar res-
momento. mungando :
O converso afastou-se ao longo do corredor e — Seja tudo pelo amor de Deus.
desapareceu sombreando o seu vulto á parede Sentada ao escano da portaria, deparou-se-lhe
A NOVELLA SEMANAL 221

a mulher que o esperava. Não a encarou. Disse1- tiros dé pistola. . Cobrió quasi, os olhos com a
lhe somente: festeira do capús e andou, pisando fraco, de mo-
—'Vá descendo, filha, e leve-me a essa casa do ,que se lhe não percebesse o ranger da san-
onde de mim precisam. , M dália. Enrolou a camandula nd cordão de. es-
Puxou-o capús e escondeu-feem o rosto. Vol- parío, afim de què as Contas não ramajhassem
tando-se para traz e vendo o leigo, junto ao ni- pendentes do habito castanho. '• .
cho que guarnécia a entrada do mosteiro, de pé, A certa altura da caminhada a mulher de man-
humilde servo aguardando passivamente ordens tilha estacou inesperadamente. Fr. Sampaio apru-
as mais penosas, recomendou-lhe, em palavras de mou-se, levantou a ponta do capús e esperou. O
brandura, comunicasse ao guardião que ás inove silencio da noite auxiliava qualquer emboscada.
horas da noite fr. Francisco de Sampaio sahira O sitio ernio e em trevas prestava-se á façanha
do convento em missão da caridade e de paz. de malfeitores salariados. O frade médio a sua'
Fr. Sampaio transpôs, calado, o terraço do con- situação porquê alimentava receios; estava huma
vento de Santo Antônio e rápido ganhou a Ca- rua já deserta, escura, onde só vinham os ecos
rioca. Um escravo, fatigado do trabalho diurno, abafados da melopéa de 'urna antífona que 'al-
tirava sorhamente água ao chafariz: avistando o gum mestre de reza recitava entre escravos e mu-
frade, ajoelhou-se e segurou-lhe a "ponta da co- camas.
gula, levou-a aos lábios e osculou-a, balbuciando A mulher de mantilha, cabisbáixa, balbuciou
supplicas supersticiosas. O religioso passourlhe, então. ' ;
carinhosamente, a mão pela cabeça e num sus- ,— Perdoai-me, senhor; menti. Neuhum doen-
piro triste, condoído, exclamou: Infeliz... A mu- te o quer a estas horas;
lher que lhe era guia, ouvindo-o falar, interpe- Fr. Sampaio estremeceu. Olhou , em •. roda a
pelou o monge: examinar o sitio e/desabo toando o; habito, co-
— Vossa reverencia fez-me alguma pergunta ? locou-se em postura defensiva, segurando a arma
O cenobita, que não havia trocado conversação que, por prevenção, costumava usar quando a
com aquella mensageira de penitencia óu cúm- desoras subia a encosta do convento,
plice de malfeitor, lembrou-se de sindicar : — Já, rugiuo frade, lampejando no olhara
— Está muito grave a pessoa que mandou bus- coragem de que súbito se assomara; Dize, que
car-me? ,• foste fazer ao convento, embusteira..^
— Ignoro, meu senhor. Nao sou da casa. Ia a re- — Absolutamente estou a iludil-o, interrompeu
cado a certa senhora moradora na Conceição a mulher. Cumpro uma ordem i ditada sob o
quando uma velhinha lacrimosa, lamentando ter maior sigilo. ; ' -\ ,
de subir o morro, suplicou-me chamasse V. Re- — Como ? Quem ousa buscar iim professo á
verencia ao convento. Não me custava prestar sua comunidade e arrasta-lo a lugar ignorado ?
esse serviço e tomei a incumbência de o levar á — Senhor, fiz o que me determinaram. Trouxe
rua do Piolho. aqui V. Reverencia e quasi devo pronunciar só
— E' uma alma bemfazeia... Está visto... uma palavra. Verá que se tornou injusto na sua
E o monge parou o dialogo. E' que a botica ameaça e dará rasão a quem me incubio de fa-
de David Pamplona estava aberta e lá dentro lar-lhe em meio desta solidão.
três indivíduos discutiam a iniciação dé D. Pedro O frade parecia desnorteado. Algum mysterio
entre os Cavalleiros da Santa Cruz, perante José ia ser-lhe desvendado e1 começou a anciar-se, ner-
Bonifácio, o logar tenente dá sociedade, secreta. voso, esperando o desfecho da narrativa da mu-
l
Fr. Sampaio escutou o comentário de alguém que lher de mantilha.
reprovava o procedimento •, do príncipe, conspi- — Basta de justificativas — bradou: explique-se
rando dentro de uma agremiação que tinha a de uma vez que muito me aborrece tanta algaravia.
sede no commando das armas. — Carecia de repelir-lhe a suposição de que
O Franciscano poupou-se a averiguações; ob- seja, alguma intrüjona. Agora, dar-lhe-ei a se-
servou simplesmente que á rua descansava umà nha è da sua resposta depende orientár-lhe o ver-
cadeirinha brunida, certo pertencente a, pessoa dadeiro rumo. E, ao oúvidò do franciscano, de;
•abastada. Apressou o passo, dobrou a rua dos quem se approximou num salto, apavorándo-o,
Latoeiros, sobresaltado, indeciso do seu destino, balbuciou Constituição.
rosmoando pragas e imaginando a cada instante Fr. Sampaio abotoou-se è desafogado, deso-
vultos èjmbuçados que da sombra o alvejassem a primida a respiração, replicou:
222 A NOVELLA SEMANAL

— Pátria — E, agora, instrua-me onde devo ir. "Nem frades são príncipes... E' verdade d. Pe-
A mulher de mantilha, sem maior espera, sa- dro, de propósito proseguio, a sra. Dometün pe-
cou de dentro do seio uma chave que largo lenço dio-me hontem noticias suas. Queixa-se de que
de alcobaçá enrolava e entregou-a ao monge ex- esta semana inda o não vio".
plicando-se: A rapariga fixou,o príncipe enraivecida; com
— Mandaram-me repetir-lhe estas palavras: os olhos rasos d'agua, calculando a extensão de
Alvaplena. Porta a esquerda. Tamoio. sua infelicidade, clamou em aflitivo impulso:
— Não fale mais, acudiu o egresso já com a — Canalha; enganou-me. E' ela a sua amada... j
impassibilidade de um convicto. Vai-te com "Deus, E desceu apressadamente a exada.
mulher, e toma este cobre para o azeite da tua D. Pedro, besta feroz vendo perdida a presa,
candeia. correu á busca da sua victima, emquanto o mon-
• A mulher de mantilha espalmou a mão e re- ge saboreava inflexível aquela scena que provo-
cebeu' do frade uma grossa moeda. Fr. Sampaio cara. Alcançou a mulher transpondo á soleira;
vio-a descer a rua do Cano e súmir-se na treva; puxou-a pelo braço e em langoroso enleio, pon-
tomou novo itinerário, desinquieto de represálias, do em pratica os habituais recursos de conquis-
a face contraída de sorrisos de contentamento. tador amestrado, cobrindo de beijos a seduzida,
Decorrido largo quarto d'hora de trajecto du- carregou-a, escada acima, protestando-lhe, por
rante o qual meditava planos revolucionários, entre ardentes declarações, a mais fingida e si-
chegava o franciscano ao campo da Lampadosa. mulada afeição. A infeliz transformou-se, domi-
Bateu á porta de modesta casa. Não responde- nada pela lábia do dissoluto soberano, e. abraçou
ram de dentro. Aplicou o ouvido, nada escutou. nervosamente o príncipe de" quem acreditava na-
Tornou a bater, ninguém respondeu ainda. Um quelle momento haver recebido o honraria de
negro passou a distancia, trauteando um lundd favorita do rei.
em voga. Fr. Sampaio esgueirou-se, ocultando-se. D. Pedro, conduzindo a amante ao quarto, fe-
O preto não o lobrigou. O, monge deitou a chou-a.
mão á chave que recebera da mulher de manti- — Patife, disse ao franciscano, por tua cau-
lha, volteou-a na fechadura. Entrou e galgou a sa a rola fugia ao milhaire. Mas sei tratar essa <
estreita escada que dava accesso a**uma espécie gente. Aquela daqui não sai hoje. Hei de pas-
de água furtada. Uma rapariga trigueira, muito sar uma noite invejável...
rtova ainda, apareceu ao patamar e gritou: Fr, Sampaio encarou altivo o príncipe. Este
— Pode subir. não lhe deu tempo de qualquer repulsa; expli-
O frade estranhou a recepção. A mulher era cou-lhe a ausência de intenção ofensiva nas suas
figura alheia ás reuniões a que por duas vezes ali palavras e, fidalgamente, indicou-lhe o corredor
comparecera: a casa guardava desusada tranqüi- que era'a passagem para a sala interna onde se
lidade. Não se sentia o vozear dos seus com- celebravam reuniões secretas.
panheiros; faltava-lhe o estridulo da gargalhada Em recinto estreito guarnecido de pesada mesa
desenvolta de Azeredo Coutinho, saboreando as quadrangular e algumas cadeiras de espaldar, es-
piadas do alferes Joaquim Almeida. O ambiente tiveram a confabular D. Pedro e Fr. Sampaio.
deparava-se-lhe diverso. Ia a falar, mas do in- Examinaram papeis, leram cartas, concertaram
terior de um quarto que se abre fartamente ilu- planos. Aquelle retiro apropriava-se ás sessões
minado, surge de repente o vulto audacioso do dos liberais que trabalhavam a favor da indepen-
príncipe regente.-' dência do Brasil; ninguém imaginaria que ali
— Vossa Magestade, sem José Bonifácio e, se tramasse contra a coroa de Portugal. Por isso,
aqui, na companhia de uma mulher? em dias determinados, juntavam-se ao redor da
— Que quer padre , mestre ? E' preciso sahir mesa, crhde o príncipe espalhara um masso de
da monotonia dos negócios do estado e o me- manuscritos, diversos membros do Apostolado, a
lhor acerto é passar alguns momentos ao lado associação que José Bonifácio instalara na Guarda
deste feitiço. Velha, alguns inações e os patriotas que se não
E afagando a rapariga, que se mantinha do- achavam iniciados no Grande Oriente. No escon-
cumente de pé, apresentando o aspecto de con- derijo dos conspiradores realizava-se durante essa
tristadora subserviência, em tom debochado con- noite a conferência privada do príncipe com o
tinuou: «Isto não é fazenda de frade». frade. D. Pedro precisava estar a sós com frei
Fr. Sampaio sorrio-se e por perfídia retrucou: Sampaio, apartado de olhares indagadorjjs, ocul-
A NOVELLA SEMANAL 223

to a sindicâncias interessadas em attribuir-lhe . os meus servidores e emalhada nas paginas do


conchavos e traições. Prevenira tudo para essa Regulaâôr.
entrevista que planejara, aproveitando o tempo ao — Obrigado a V. M. por tão honrosa mercê
gozo das caricias de uma mulher que ele engo- que a mim pretende conceder. Permita-me, po-
dara com alegres esperanças dé converte-la em rem, que lhe lembre não lhe ser licito ajuizar mal
companheira de. casa efpucarinho. de qutrem sem conhecimento positivo das cousas.
Fr. Sampaio compreendeu que o misterioso co- Si foi para repreender-me que empregou artifícios
loquio representava a vigilante curiosidade do e me arrastou a esta casa; prefiro que me censure
príncipe. ( na presença dos nossos, pois saberei defender-me...
, D. Pedro atraia-o á -desconfortável saleta dos Prdvoque-me, senhor, em ponto menos clandes-
conspiradores, trocando-a pelas salas espaçosas tino diante dos seus servidores. Ajustaremos con-
do antigo palácio dos vice-reis; subtraia-se a in- tas... Depois não lamente *s conseqüências da
discreções de seus validos e almejava tirar a lim- cartada que vai- jogar... E, -boa noite, D. Pedro.
po a significação de qualquer facto de rele-
— Espere! — acenon o príncipe levantando-se
vância.
da cadeira visivelmente agitado.
I Não errou o professo. Depois de revolver vá-
" A maneira arrogante por que fr. Sampaio se
rios papeis, zeloso sempre da observância de to-
externara abrira no animo do filho de d. João a
dos os segredos, precavido em não elevar o dia-
certeza de que alguma cousa de mais importante
ípasão dos diálogos afim de que ouvidos estra-
significava a publicação- do Regulador. A resposta
nhos não apanhassem a conversação, D. Pedro sa-
altaneira do monge encerrava perigosa realidade;
cudio o braço do franciscano, com a quebra da
saia das normas da delicadeza, e não pecava por
linha da etiqueta e em frase rude interrogou :
plácida nem ^prudente.
— Então, seu frade da mão furada, você anda
a escrever inconveniências no Regulador ? Fr. Sampaio reconhecia que a sua atitude, ca-
tegórica e repulsiva, superiorisava-se pela ener-
| Houve na sala demorado silencio. O t velho gia e insubmissão. Tratara o soberano sem ba-
í cuco, pendurado no vão de duas janelas, dava julações; conseguira abater-lhe a sobranceria e
-fortes pancadas que se destacavam no socego da- cortar-lhe a impolidez. Ficara intimamente sa-
quele local secreto. 0 príncipe com a fisiono- tisfeito com a impetuosidade do. seu gesto.
mis ameaçadora, aguardando a resposta á brusca
1
interpelação; o frade, com os olhos tomados de O cenobita aguardou a resolução de D. Pedro
nevoas de raiva e o garganta afogueada sem po- que o tetivera sem se apressar a explicações. O
der articular a réplica. príncipe abrio uma janella e apoiado ao peitoril
meditava. Na escuridão do campo faiscava o cla-
— Então, meu bandarra, és dos nossos para lá rão fugidio dos vagalumes. Num lodaçal próxi-
tora me. embaraçares com impertinencias malva- mo coachavam sapos; a inferneira chiada dos
das, confinou D. Pedro. grilos orquestrava o mesmo compasso continua-
-Irritado, ferido no seu amor próprio, começou damenfe. Um relógio de torre soou 11 horas.
a rodopiar entre os dedos o cordão da cogula e O frade dirige-se ao soberano:
com os dentes a ranger de cólera conseguio re-
-— V. M. nada tem a ordena-me. >E'tarde pre-
trucar ironicamente:
ciso retirar-me.
— Não sou nenhum aventureiro, vindo de ter-
ras distantes a colocar na minha cabeça a coroa — Fr. Sampaio — acudio D. Pedro — embora
que meu pai tivera de abandonar e ouírem po- no ceo já apontasse a madrugada eu o não dei-
deria usurpar. Nasci no Brasil e, servindo os in- xaria daqui sair sem uma elucidação formal. Não é
teresses de minha Pátria e nunca os desejos ab- o monarca quem o pede; é o amigo, o compa-
surdos ou a cobiça dos homens, hei de me ocu- nheiro das maquinações contra a Coroa de Por-
1
par das questões políticas de meu amado país. tugal! Diga-me: porque escreveu aqueles arti-
— Ninguém põe em duvida o seu patriotismo, gos do Regulador?
padre mestre, ponderou o príncipe, tendo mais — V. M. insiste num assunto de que não devo,
brandura e amenidade nas suas expressões. Sei não posso inteira-lo. Dir-lhe-ei unicamente o que
que é um devotado á causa e a prova do meu re- exporia .em sessão plena do Grande Oriente, si
conhecimento está na promessa que algures lhe exigido fosse. Não são meus, affirmo-lhe, os ar-
fiz de nomea-lo,bispo. Careço, entretanto, de apa- tigos; recebi-os de pessoa a quem voto respeito
nhar o fio á meada de uma intriga tecida entre e consideração.
224 A NOVELLA SEMANAL

— Como? Então costuma assumir a responsa-


bilidade das opiniões de terceiro?
— Tais sejam os motivos...
— Tolere-me a importunação e, para tran-
quillidade minha e no beneficio de evitar-me sus-
peitas sobre pessoas innocentes, pronuncie, pa-
dre-mestre, o nome deste indivíduo a quem não
quiz desatender.
O HOMEM DAS CIRCU-
I ARF^N 'J? VIDA, PAIXÃO E MORTE DE-
— Senhor, comprometi-me e não divulga-lo. JL.Í\rvI1.0 RICARDO DE MAGALHAENS
— Ninguém o saberá. Empenharei a palavra (Do memorial d u m provinciano)
de honra si o padre-mestre o exigir; é mister
que eu conheça o anônimo do Regulador. Hontem morreu Ricardo de Magalhaens; hoje,
seu corpo descerá á região dos vermes. Não irei
— Poupe-me a quebra do sigilo. ao enterramento porque o tempo está mau: a
— Colhi o principal. V. reverendissima rece- columna de mercúrio desce no íhermometro as-
beu de alguém a perversidade saida no Regulador. sustadoramente e nuvens escuras correm na atmos-
Portanto, concluo — rematou na sua linguagem phera, tangidas por um vento que não nos chega. J
desabusada: o patife ou é Ledo ou José Clemente. Quando, ha pouco saltei da camay a cerração que
— Senhor! por cá fora andava era tal, tão densa era, que
— Sim. Vejo, agora, como bem avisado an- da janela de meu gabinete, não via como habi-
dava José Bonifácio desviando-me dos conselhos tualmente as torres de Sto. Antônio, altas e bran-
destes dois biltres que me impeliam a jurar fideli- cas, terminadas por gallos vermelhos espetados,
dade á constituição da assemblea. em hastes metallicas. Decididamente, numa quadra
— Ledo e Clemente são caracteres fidalgos. chuvosa, como esta, em que se passa quatro e
Os rogos que fizeram a V. M. para que jurasse cinco dias a se ver claridade e não sol, ninguém
a constituição ditaram-lhes os mais elevados sen- deveria morrer... se é que a morte pôde ser levada
timentos de amizade ao príncipe e dedicação ao em conta, de um dos espinhosos deveres humanos.
Brasil. Como acompanhar um amigo morto á campa
— Aá leis da nobreza e da honra mandam- gélida, num dia assim, de ceu plúmbeo, de garoa
me acreditar no protesto de .V. Reverencia. Os impenitente 1 Só de pensar em metter as galochas
deveres da lialdade e obediência ao rei exigem, na lama das ruas publicas, só em me julgar
entretanto, que fr.1 Sampaio confesse quem foi numa capa de borracha, molhada, todo encolhido,
que forneceo ao Regulador umas linhas contra- os dedos crispados dentro de bolsos húmidos, ps
rias aos ideaes do partido democrático — bradou cabellos hirtos sob um chapéu frio, o nariz ge-
o -soberano. lado, a face livida batida pela chuva impiedosa,
Fr. Sampaio passou vagamente os olhos pela — sinto um calefrio me percorrer o dorso, como
sala, enfiou as mãos nas largas mangas do hábito se estivesse lendo uma aventura formidanda de
e soprou ao ouvido do monarca: Edgar Poe.
— José Bonifácio. Qual! Não vou; não sou homem para taes
O príncipe afundou-se na cadeira de estofo violências. Terceiro dia de chuva! Não saio
adamascado. Entontecera-o a revelação. Fr. Sam- emquanto o tempo não mudar. De- mais a mais,
paio meneou a cabeça e afastando-se disse, le- hoje é feriado. Apezar da myopia, vejo, percebo
vando o indicador ao lábio: — E caluda. Tenho inilludivelmente, o vermelho estampado na fo-
a sua palavra. lhinha commercial. Hoje, é verdade! é treze de
— Até amanhã, padre-mestre. Piores que ra- maio, haverá festas — se Santa Clara der tarde
meiras esses politicos. limpa, — e o commercio fechará excepcionai-
Fr- Sampaio desceu a escada, embuçado na sua te cedo. Sairei á tarde.
estamenha. D. Pedro ficou pensativo por instan- Mas ha quem, não sabendo viver, não saiba
tes. Nisto, despertou daquela espécie de torpor, até morrer! Ricardo de Magalhaens foi desses.
murmurou entre dentes palavras imperceptíveis e Não sei se li ou ouvi algures que triste do ho-
levantando-se abrio a porta do quarto chamando mem que teve historia. Se não li ou ouvi, melhor
a rapariga que lhe acedia ás falsas promessas — porque o dito fica sendo meu, e não desgosto
d'amor. se me tomam por grande pensador.
THEODORO MAGALHÃES. E o Magalhaens teve historia, coitado. Sua vi-
A NOVELLA SEMANAL 22S

da, se não foi um romance perfeito (para felici- ao Magalhaens, piedosos e entendidos, irõnistas
dade do pobre), foi entretanto uma comedia dra- da terra) só tinha de louco e temível, o habito
mática — como se diz commummente hoje, na extfanho — o Miguelinho do Amancio dizia em
gíria dos cinematographos. Risos e lagrimas an- voz baixa, piscando um olho maliciosamente,
daram se confundindo, para que nos; últimos sungando a calça suja ou encaracpíando as mele-
momentos só os prantos ficassem, como aliás sóe nas raivas, com os dedos chatos e callosos:
acontecer, na vida humana. Thalia, a pérfida,
— "E' um bom rapazola; um mijá-manso, um
disputa áfMelpomene, seu lugar entre os homens,
mija-mansinho..." '
para afinal ceder o campo á adversaria e se lan-
E dito o calão, ria para ficar depois silencioso,
çar á sôraa do Parnaso... '
olhando a rua, ou trauteando a musica mais bre-
f, E como a historia do Magalhaens não é total- jeira dá ultima serenata.
mente desprovida de algum interesse e como O que sei ao certo é que, se ia á caça, matava
também me começa a invadir uma lamentável sempre muitas perdizes, victorias bem melhores
amnésia, com pretenções a chiopicidade, aqui/ a do que as de Tartarin, Nemròd de Tarascom
archivarei, a " historia do homem das cir- Quanto a fanfarronadas, nunca as teve senão
culares"; para, em futuros serões dè longínquos quando se tratava de perdigueiros è tiros certos,
invernos, poder contar a vida, paixão e morte de entre um gole de refresco e um lance de carta,
Ricardo de Magalhaens, por agnome «Louco», o na esquina do capitão Netto. Mas, todos os' ca-
pobre amigo que hoje descerá ao frio chão, na çadores são assim. ,:
clássica expressão popular. Talvez dissessem ser Os cochichos acerescentavam isto, jurado pela
uma pouca-vergonha minha escrever as excentri- gente "das rodas", á.pés Juntos: na capital per-
cidades dum amigo no dia de seu desappareci- nambucana a mania de Ricardo, meu bom Ri-
mento material da vista dos homens, embora taes cardo, se desenvolvera de modo inquietador. Afi-
linhas não se destinem originariamente á «letra nal, a obsessão era apenas esta-: elle, o enfani]
redonda » e sirvam apenas para suscitar commen- ierrible de calça comprida, escrevia uma bem
tarios " inter-amicus ". Èu,' porém," responderia feita epístola amorosa, capaz de desnortear a
que a vida dos homens excêntricos, como a dos petulância política duma Cleopatra, numa calli-
homens públicos, a dos grandes, e a dos talentos, graphia admirável, todas as letras de tamanhos
não lhes pertence exclusivamente. Fazem parte eguaes, todas as phrases perfeitamente harmonio-
do patrimohio commum. sas, tirava uma düzia de cópias, (conforme o
r As^riginalidadcs do Magalhaens, por exemplo, numero das victímas) e distribuía "as circúlares"
são uma potaba de Deus aos curiosos... como dizem que as denominava o autor. Ricardo
\ Ricardo, coitado ! adquirira o " habito das cir- era elegante, maneiroso, empregado da prefeitura,
çulares'', numa republica do Rio, segundo a tra- de muito boa família, com um "aens", no nome
dição mais vulgarizada. Dizia-se, /porém, aos (embora seus maiores tivessem um simples ~...),e
cochichos, em certas rodas (e principalmente no era quasi sempre acceito... Por alguns dias tinha
gamão commum, todas as tardes jogado na phar- assim a original ventura de jurar a differentes
macia nova), que o habito era maís velho, adqui- moças, que as ia pedir. As coitadas agradeciam
rido em sua terra natal, no interior de Pernam- fervorosamente a Santo Antônio, a graça obtida;
buco. Dizia-se até que esse gênero de missivas, as torres esguias e cindidas da , grande igreja,,
o levara ao Recife, para onde seguira entre um encimadas por gallos sangüíneos atrevidos, lhes.
rumor de escândalo... pareciam mais bellas, mais augustas, dominando
Esses últimos boatos eram discutidos em sur- o pezado corpo "barroco-jesuitico" do templo.
dina, com ares mystèriosos, porque, mau grado E o Magalhaens ria, Néro do amor, metido em,
ser notadamente ordeiro, o Magalhaens tinha ex- burocráticas funcções, deante de chammas breves
quisita fama de valente, de .escaldafaves. O pró- que annuncíavam a escuridade... Garnia a mesa
prio Miguelinho, filho do cabelleireiro Amancio, do gabinete com flores recebidas por creadas.
cuja reputação de arruaceiro-amador, era por discretas, contente .da victoria, embora fosse sus-
todos conhecida, provada e respeitada, tinha uma picaz por experiência. Não lhe era, nem podia
rupulsa intima, calada mas visível, ao pobre Ri- ser, desconhecido que taes vínculos eróticos em
cardo Louco, á ,qual se juntava innegavelmente pouco se deliriam; e elle ficaria abandonado. A-
um receio de "medir forcas"... E quando se dizia bándonádo, sim — más não abatido, porque, como
que "o bom homem Ricardo" (assim chamavam um démentg, elle o que havia desqado fora esse
226 A NOVELLA SEMANAL

triumpho ephemero, deliciosamente ephemero;.. Afinal, a morte resolveu amparar o pobre Ma-
Dentro de certo tempo, a tal posição de "multi- galhaens. Morreu. O dr. Cassiano escreveu no
/quasi-noivo" era insustentável; o falario das ami- óbito que "do coração", numa irônica perversi-
gas era o can-honeio previsto e temido, que tudo dade, magoando a quem matara o infeliz...
derrocava, que punha tudo aò chão, peor que as Não sei se na Municipalidade hastearam ban-
pragas do Egypto. E o Magalhaens recuava, se- deira a meio pau, nem se os jornaes elogiam ó
guindo as prescripções duma hábil tactica de rom- poeta morto. Talvez não, porque elle ganhava
pimentos consecutivos. Já alcançara sèu ideal e na prefeitura dois mil e quinhentos reis por dia...
se contentava com uns mezes de inactividade ro- O tempo continua mau. Quererá que não haja
mântica, durante os quaes se queixava de amores festa, á tarde ? Maldita natureza !
infelizes, perfeita humanização de crocodilo. Penedo, 1921 JURANDYR GOMES
Repetira (diziam alguns) essa operação trez
vezes, em sua terra natal e apezar do geito, que
innegavelmente possuía para o manejo, fatalmente
se desmoralizara. No Recife, esteve dois annos "nos
estudos", porem, trez vezes mudou de residência.
E como da capitai chegavam uma ou outra vez,
noticias indiscretas de taponas, em noites de luar,
e coisas desse jaez, o "pequeno" dos Magalhães
foi mandado "á Corte", como nurn^a reminiscen- SIMPLICIDADE
cia monarchica os matutos chamavam, á Capital
Federal. Dizem que lá andou pelas delegacias, — Tiro das tuas palavras o conceito que el-
«uns negócios de serenatas, mas é possivel que las suggerem.
seja mera invencionice. O provável é a conti- ' — E qual é elle ? Vejamos...
nuação das circzdares, e o certo é que seu nome — E' que tudo quanto me tem ultimamente
andou num jornal critico, taxado de " nome de acontecido só' tem uma causa, uma única: a mi-
guerra dum perigoso aventureiro recifense"... nha bondade. Sou bôr de mais.
*E o Magalhaens veio para cá, faltando apenas — E's simples.
um anno para ser bacharel, mas dizendo até que — Simples? Porque não dizes francamente: tola?,'
defendera these. Uns chamavam-no o doutor- — Não : insisto no que disse: simples. Tens,
zinho; outros, nem isso. Entre os últimos, es- como se costuma dizer, o coração na boca. A
tavam incluídos o Miguelinho e vendeiro Pardal... ua bontade transborda em ternura, mas essa
Semi-doutor, foi commerciante (quem o diria ?!'); bondade compromette pelo excesso e também
faliido; mau professor; homem de bem; D. João de por má applicação.
sorte; poeta notável; chronista mundano; homem Um milionário que se puzesse á janella do seu
caipora e por ultimo, funecionaio da prefeitura. palácio, entre cofres abarrotados de ouro, lan-
O pai morêra; D. João platônico não se emendou. çando moedas á rebatinha, seria tomado por doido
Ficou desacreditado. ' e, desde logo, levado para um manicômio. O que
Mas o De Magalhaens, como elle se assignava fazes com a tua excessiva ternura é tanto como
nos jornaes, (poeta... <por sport ) era um bom isso. A bondade deve ser pesada na balança da
rapaz. Suspeito dos burguezes, do padre Miguel ponderação, dando-se tanta quanta baste para que ;
e dos grammaticos indígenas, elle os desprezava, produza o beneficio desejado. A demasia dará a
a todos apellidando de caturras. quem a receba o direito de a julgar segundo a
Ultimamente andava gasto, doente. Contraiu própria maldade.
uma paixão, sua paixão verídica'. Mas o idolo fu- E's meiga, naturalmente carinhosa, incapaz de
gia a seus rogos, com medo de novas circular es..: maltratar a quem quer que seja, e demais a mais,
Coitado do Magalhaens! Foi um abalo. timida.
Penou seis mezes sobre a terra, pensando que Tudo isto que revela a perfeição da tua alma
suas continuas provas de amor e a falta de in- concorre para expor-te aos males que tens soffri-
trigas patenteassem a boa vontade sua. Fez os do — desde a ingratidão até quasi a affronta e,
>setis mais bellos versos, andou magnetizado por entre taes extremos, todos os abusos dos que,
um revólver, pagou ao senhorio, o diabo emfim! descobrindo a tua fraqueza sentimental, "entram por
Por duas vezes chegou a se atirar da Ponte Bran- ella causando-te os aborecimentos de que te queixas.
ca, nas águas tumultuosas do rio, (dizem\ mas tinha Quanto mais precioso é o thesouro maiores de-
a infelicidade de saber nadar maravilhosamente. vem gftir -,-« jai»jjiVJi*R_;-A'j-_/-, -<»- *»!•->-•-.t-
A NOVELLA SEMANAL 227
Ninguém confia preciosidodes a uma gaveta o circulo em que eüas têm de soar, vestimo-las,
sem chave, guarda-as em cofre de ferro, com fe- não é verdade?
chadura de segredor
Tu, não. Ha phrases tuas que seriam clespu-
Deve-se ser bom, visto que a bondade é a ex- dores cynicos se não fossem ingenuidades. Não
pressão divina d'alma, mas com cautela. tens malícia e, como o pudor é filho da malícia,
A rosa não se nos nega, inclina-se toda na nãó havendo esta não pqde haver aquelle. Taes
haste a offerecer-se-nos, mas se~ a não colhemos phrases, porem, que, para nós, as tuas amigas,
com geito fere-nos com os espinhos. são innocentes e encantadoras como crianças tra-
Tu não recebes em tua casa, acolhendo-o na vessas, os estranhos interpretam-nas maldosamente
intimidade, ao primeiro transeunte que te bate á e de taes interpretações tens tido ultimamente as
porta. E se tens escrúpulos em dar entrada no provas; e se não te corrigires quem sabe o que
lar ao estranho, como te abres em sorrisos com ainda poderá succeder!
uma creatura com quem pela primeira vez te en- Falo-te como amiga. Sou mais velha do que tu
contras em um salão e tens com ella confiden- e ando ha mais tempo nesse mundo complicado,
cias que são segredos de tua alma? cheio de enredos, entalhado* de intrigas que se cha-
-Senão consentes que violem as gavetas dos teus ma a sociedade, onde todos se festejam sorrindo,
móveis, onde guardas fitas e enfeites, como expões não por amizade, mas para que se lhes vejam os den-
abertamente a um estranho, cujo caracter desconhe- tes. • Arma-te, exercita-te, deixa essasimplicidade...
ces, o que tens de mais intimo e precioso: a alma? — A minha pelle de burro... como a da historia...
Fazes mal, arrisca-te a muito e o que tens soffrido — Não, a tua pureza infantil e lembra-te de
dos ingratos, aos quaes tens acolhido com tanta mei- que vives entre feras. Sê astuta e prudente, pesa
guice, bem pode ser um aviso da Providencia pa- bem as palavras que disseres e pratica a bondade
ra que te ponhas em guarda contra os infames. de modo que te agradeçam a generosidade, mas
Affirmam os philosophos que a mulher é um que te não chamem de tola nem tomem o im-
ser enygmaticq em cuja alma, que é como um pulso do teu coração por uma fraqueza do teu
labyrintho, quanto mais se aprofundam mais se caracter. Sê boa com altivez como o sol, que il-
acham confundidos. Esse labyrintho, minha ami- íuminalá de cima. COELHO NETTO.
ga, é a nossa única defesa.
Façamos como a aranha que tece o fio da sua
teia, não para quê sirva de guia, mas para que
enlice e prenda.
Se dissermos o nosso segredo terrível perdere-
mos a nossa força que é... nenhuma.
Sim, nenhuma. Nós somos como esses animae-
sinhos frágeis que, por não disporem de presas
ném de garras^ jervem-se da astucia e com ella •
DOIS IDIOTAS
/conseguem vencer aos mais poderosos. Eram dois idiotas — mãe e filho.
O teu mal é á simplicidade — caminhas entre Ella — velha cabocla, de cara encarquilhada
inimigos completamente desarmada e, mais ainda, como uma casca de nóz, as sujas madeixas grisa-
denunciando as próprias fraquezas. Fazes mal. lhas a fugirem de sob o lenço sujissimo, embru-
Sê mulher, cmero dizer: sê maliciosa e subtil lhada em farrapos nojentos e com uma singular
— Queres dizer: hypocrita e má... ? tremura do maxillar inferior, que mais accentuava
— Nem hypocrita nem má, quero que vivas ainda a convidade da bocca, erma de dentes.
como devamos viver. Elle — de corporatura áthletica, physionomia
— Transformando-me no que não sou... ? Nasci alvar, tez mais carregada, revelando no encarapi-
assim... nhado da grenha o sangue de negro e tão -sujo,
— Nasceste assim... Ora, minha amiga. Nós tão maltrapilho, tão repellente como a mãe.
nascemos nuas, nem por isso apparecemos na so- Nha Tuca bamba e Feliciano bambo, era como
ciedade como entramos na vida. Pois se traja- os conhecia a população inteira, sem falha de
mos o corpo, porque não havemos de vestir a uma só alma ou de um só desalmado, da vetusta
alma com aquilo que chamamos discrição e' en- cidade, typicamente colonial nos seus prédios
feites de convencionalismo ? acaçapados, nas suas janellas de rótulas, nos cha-
Nem todos os nossos pensamentos sahem em tos,, larguissimos beiraes e nas ruas impossíveis,
palavras p"«-*w» CP cahiespm fariam—escândalo. onde, ainda, pelo tempo, viçava o capim e reali-
Nós comp =:-;--- - -- - m zavam-se congadas e cayapós, com enorníe estar-
228 A NOVELLA SEAVANAL

dalhaço e na qualidade de complemento directo e onde fora o altar mor, um bando de santos,
obrigatório de certas festividades religiosas, que santinhos, tocos de velas de cera e cebo enchiam
as vassouras do cosmopolitismo vão varrendo para e preenchiam o vácuo deixado pela imagem ausente.
a valia commum da indifferença. No fim abrupto do morro, que parecia o corte
O filho vivia de recolher e rachar lenha, de ir de um machado titanico, passava, defluindo lento,
ás nascentes buscar água a quem não n'a queria um ribeirão — 6 Guapeva- '
dos poços, de todos os biscates, em summa, que Um oleiro italiano, de iniciativa'mais ampla, ahi
constituem o substractum da vida desses paria® - armara uma arataca, para movimentara a massador.
miserrimos, que escassamente vivem das miga- Era como que uma caricatura, no singular, das
lhas, sejam do trabalho, sejam da paga, de uma famosas rodas de Marly.
agglomeração urbana qualquer. Entre as pás dessa roda dágua, cuja potência
A mãe, essa, esmolava apenas. uma chuvarada multiplicara, o corpo do Feliciano
Cantavam e dançavam ambos, porém, quando bambo, sumido ha dias, foi encontrado engasta-
alguém, que na sua miséria achava divertimento, Ihado, moido, exangue e layado, rostido pelos
lhes dava um nickel para isso. pedregulhos do fundo.
A dança era um rudimentar, mero sapateado ; Foi a própria mãe quem o achou.
o canto, uma melopéa, tristíssima na sua mono- No primeiro dia, não aconteceu nada; no se-
tonia, em que os sons gutturaes e insignificativos gundo, nha Tuca andou de casa em casa, de
preponderavam sobre as palavras. porta em porta, á cata do filho.
Si, porém, não havia nelle melodia apreciável, — Vancê viu o Friciano ? — era a pergunta
o rythmo era perfeito, como acontece sempre só, que sahia daquella angustiada, suja, mal chei-
com as idéias musicaes dessas mentes retardata- rosa bocca de mãe. Ninguém o viro.
rias ou regressivas. Quando ninguém o tinha visto, nem sabia delle,
A's exhibições vocaes e choreographicas das onde ninguém soubera nem vira, Tuca advinhou.
duas miserandas creaturas o elemento garotagem Soube-se do achado porque uns moleques, pesca-
era chronico e, com freqüência, expandia a sua dores de lambarys, impressionaram-se com a immo-
malvadez congênita em vaias, apupos e pedradas, bilidade daquella estatua de immundicie á beira
a que vinham em troco palavrões medonhos, bar- dágua.
baridades de arrepiar; bramados por mãe e filho, Vislumbraram os traçalhos do corpo de Feli-
ambos com escuma nos cantos da bocca, ambos ciano e, desistindo das covas, jogando fora as va-
a espirrar ascuas de ira dos olhos congestos. ras, correndo a perder fôlego, foram dar o alarme.
Da degenerescencia, o minimo, lamentável ex- A ronceira, enferrujada geringonça da senti-
poente. Tarados, successores de uma hedionda tinella avançada da sociedade poz-se em movi-
herança, os dois alcoólatras ' inveterados, f ranga- mento. Com delegado, escrivão, quatro gatos
Ihos humanos, batidos nas mais sórdidas taboas pingados, representando a força publica e um
da vida, apenas um ponto os identificava com a magote de curiosos, o corpo foi, em pedaços,
gente normal, lh'os egualava, ou, mesmo, os pu- extrahido dentre os pranchões de peroba, levan-
nha acima delia : — o amor da mãe pelo filho, tado, identificado e enterrado.
a canina dedicação do filho pela mãe. Isso foi por volta de janeiro ou fevereiro. Dalli,
Ao Feliciano bambo, quando, nos dias bons, daquelle comoro de barba de bode nha Tuca, só se
lhe davam, ao almoço ou ao jantar, afora o ar- movia quando o estômago gritava bem alto. Então
roz, Jeijão e farinha, um pedaço de carne, qual- subia para a cidade e esmolava a comida.
quer coisa de melhor, deixava-a aparte e post- Por uma fria madrugada de fins de maio, ou
pastum, pedia uma foia de pape. princípios de junho, embolada, a cara entre as
— P'ra que, Feliciano ? — perguntavam. mãos, as mãos entre os joelhos, as gadelhas, agora
— E' p'ra leva p'ra nha mãe. só amarellas de sujeira, esborrifadas á volta, houve
Quando, entre as esmolas catadas por portas alguém que visse nha Tuca.
pela velha cabocla, vinha qualquer coisa mais as- Da geada da noite, ainda restavam, aqui e alli,
sim, menos ruim, punha-a ella de parte. uns crystaesinhos.
— P'ra que, nha Tuca ? Delles, refrangindo-se nasfacetas,o empalamado
— Isso é p'ro meu fio. sol de inverno tirava chispas.
Haviam-se enlurado os dois lá no Anhangabahu, Nha Tuca estava morta.
nos escombros de uma egreja de taipa, soccada Alli, ào par, bem junto, pacotinhos de papel.
pelos bugres aldeados pelos jesuítas. Hüm, uma carcassa de gallinha; noutro, um
Cada um daquelles animaes hominios havia
eito o seu ninho em uma das caoellas lateraes :
NOVELLA SEMANAL

quer prova de gratidão . . . Era per-'


feito !
 v í d &&i\ec4ótic& / A sua bagagem litteraria infeliz-
Ricardo odiada os preconceitos de
casta.
e piw mente dispersa e quasi no olvido, é
o espelho em qae se, reflectem todas
Uma vez, viu elle um dos seus fn
lhinhos affastar-se' re,cejoso dé u m
as modalidades da sua alma sublime- pobre rapazinho, u m preto : chamou,
mente amante,' do seu coração pro- pénalisado, as duas creanças e fez
fundamente sincero e bom. Um rou- Sentir ao seu filhinho que amboj
bo que ainda hoje lamentámos como eram eguaes ; que a diversidade de
vran crime,' priva-nos hoje de repro-
"/v Ricardo Gonçalves duzir aqui, alguns versos inéditos do
côr e de posição não impedia que nas
veias de ambos circulasse* sangue ,
Ricardo era u m desses seres privi- pranteado poeta ! A nenhum dos elei- egual . . . E momentos após, as'duas
. legiados a quem a Providencia dotou • tos do'Parnaso, da presente geração, creanças, felizes, traquinavam sob o
jjio mesmo tempo de uma i n t e l i g ê n - se applicaria como a elle com tanta olhar hnmido de Ripardo, que se es-
cia superior e de um entranhado af- propriedade, a sentença, de Hugo : quecia a contemplal-os . . .
fecto á sua t e r r a e á sua gente. Dif- — «Toda a creança é até- certo ponto
•* um gênio e todo _o gênio é até certo A ama de' um dos seus pequerru-
fioilmente se encontrarão reunidas ponto' uma creança !» — .Ricardo era chos tinha úm filho que lhe era mui-
tantas qualidades nobres, tantas vir- assim,um composto destes dois extre- to affeiçoado. Por qualquer cousa de
tcdes, como as,que e x o r n a v a m o mal- mos. Assim,a sua obra. A sua, lyra somenos importância, a ama deixou
logrado poeta que foi ao mesmo tem- mágica tinha ternuras desconhecidas ; a família. Semanas depois adoeceu o
po dístiuoto advogado e -exímio jfpro- elle cantava a poesia oampesina, a menino e Ricardo, sabedor do facto,
sador. A' sua modéstia exagerada, belleza da nossa flora, a simplicida- mandava diariamente - o medioo ao
ruas modéstia não calculada, antes de do nosso matuto, com o' mesmo pequeno; visitou-ô muitas vezes e fez
assim como que necessidade do seu desprendimento que' a creança põe a expensas próprias, o enterro, que
temperamento extraordinário, deveu nos seus brincos, com a mesma emo- acompanhou de cabeça descoberta:
o digno moço a quasi obseuridadé em ção, com a mesma segurança do sá- foi isto em S. José dos Campos e o
que viver! e da qual os amigos e den- bio nas suas arrojadas descobertas. . medico do menor foi o Dr. Mario
tre esses, Roberto Moreira, Martins Gal vão.
Fontes, Monteiro Lobato, Arthur Ra- Também a matta virgem para elle Como Ricardo se sentiaxfoliz quan-
mos e CarJote Valente', raras, rarissi- não era avara dos'seus segredos» do ia, espingarda ao hornbro, chapéu
mas vezes o conseguiam arrancar. desabado, rumo da casinhola de al-
Grande,cabeça, grande coraçãoj elle Ricardo ria pouco. Só uma vez, o
vimos gargalhar perdidamente. Eoi gum Géca ! A's vezes em casa esta-
«ra em tudo u m excessivo. 'Aos seus vam á sua espera para o almoço, em-
amigos, queria com o affecto carinho- Lobato o causador dessa hilaridade,
numa noite memorável, em que a sa- quanto elle, socegadamente, comia
so de um -verdadeiro irmão ! Nos lá numa cabana ignorada virado de
seus melhores dias, o áen verdadeiro la de Ricardo, encantadora e convi-
' dativa, fora transformada em cena- feijão com torresmos e depois toma-
gozo era ter ao seu lado, á sua mesa va café com garapá . . .
ou no seio das florestas, na vastidão culo, o que; ás vezes succedia. E uma
dos campou, entre a Natura princi- satyra mordaz, cortante, mas inno-
palmente, u m ou mais amigos, aos cente, como soem ser os estyletes hu-
quaes desvendava os arcanos do seu morísticos daquelle querido prosador Certa vez,- com a familia e outras
peito, deixando jorrar- em borbotões foi causa de uma geral barngacla de pessoas amigas, formou elle uma ca-
a exhuberancia do seu mimoso talen- riso . . . ravana e foram fazer uma estação
to, as pérolas mais raras da sua alma em Ubatuba, com escala em S. Se-
de artista e de filho verdadeiramen- *** bastião. Uma vez nesta ultima loca-
te amante da creação . . . Aos extra- Num dos seus «mergulhos» no ser- lidade, alugaram, ao Padre Jayme,
nhos e aos nullos parecia Ricardo um tão, lá para as bandas de Catanduya, vigário da parochia, u m casinhoto
exquisíto, uni sorumbatico, um tris- uma pobre mãe moribunda, descrida onde arranchararn. Entre os excur-
te — mas não ; o inditoso efnulo de do esposo, ébrio inveterado, entre- sionistas achavam-se o Arthur Ra-
: Euclydes da Cunha era de u m a na- gou-lhe u m a . filhinha. Recebendo o mos, amigo querido, dé Riòardo, o
tureza essencialmente plasmada para encargo, prometteu Ricardo velar pe- seu Cunha, o Honorato Pimenta, o
àprehender as mais sublimes e arro- la pequenita e assim o fez: Dispen- .Luiz Gonçalves, irmão de Ricardo, a
jadas concepções da vida, da belleza sando-lb.e carinho paternal, educan- familia de ambos, etc.
e da perfeição ! Riáarditp foi um des- do-a na rectidão dos seus costumes. Seduzido pela perspectiva da caça,
ses entes que vivem «ouvindo estrel- • djr-se-ia que o seu espirito velou que alli havia em abundância, apree-
las» porque a delicada sensibilidade por ella, até d'alem túmulo, pois que tourse o affíccionado Ricardito e oom
do seu " E g o " lhes permitte ouvil-as a pequena abandonada, j á então ado- alguns companheiros embrenhou-rse
e entendel-as ; porque as almas das lescente, após a sua morte, soube na matta. Três dias e três noites du-
flores são irmãs das suas próprias portar-se á altura do nome do seu • rou a excursão i no raiar do quarto
almas ; porque a mais medrosa das bemfeitbr : casou-se bem, ó sempre •dia, regressaram os, intrepfnos caça-
avesinhas os conhece e ama ; porque com lagrimas na vòz que se refere dores, conduzindo os despojos da ma-
repugnando a nobreza dos seus senti- ao seu pai adoptivo e até hoje, na- tança, pa.ia o é3$ito da qual dormi-
mentos a maldade dos homens, elles quelle fatal onze de Outubro, ella lá ram três noites num rancho, impro-
buscam na solidão e no convívio dos . vai depor no" túmulo quasi esquecido visado e se alimentaram de fructas
brutos, a «affeotividadep, que é a ra- do,saudoso vate. as;flores e as lagri- e rirei, como anachoretas. "De S. Se-,
zão de ser de sua existência. Ricardo mas da sua gratidão. bastião seguiram para Ubatuba, que
foi um puro — e foi u m bom ! Foi Ricardo anciava por conhecer. A qua-
•isso que o matou. si abstinência a que eram obrigados
Residia então Ricardo nas Perdizes. alli, por ser um logar falto de tudo,
Úm querido amigo seu que foi tam- punha um sainete de tragédia naquel-
Eu não acabaria nunca, se quizes- la viagem, mas a alegria, o bom hu-
se ennumerar aqui os rasgos de bon- bém distincto' e mallógrado jornalis-
ta, teve nessa época dias sombrios. mor dos itinerantes fazia «pendent»
dade desse manoebo tão prematura- oom o café de garapa, com a farinha
mente roubado á terra de seu berço ; Ricardo, com a sua habitual delica- (
deza, fazia milagres para acudir o de mandioca, com o peixe cozido oom
eram elles eòmmuns ; eram a preo- banana verde — os melhores pitéos',
cupação de seus dias ; e praticava o pobre moço, sem ferir-lhe a natural
susceptibilidade : ia buscal-o diaria- da zona e as esteiras de tabôa — úni-
bem, modesta e obscuramente, admi- co leito que poderam encontrar.
rando-se naturalmente, quando devi- mente, inventava pretextos, armava
do a alguma traição do, acaso, o elo- ciladas e quando tudo falhava orde- A alegria ruidosa da caravana
giavam pelo bem que espalhava ; fi.tr- nava que se transportasse o «potage» transbordava. Pela manhã, os mais
tando-se systematioamente a qual- para a casa do amigo em questão . . . bulhentos despertavam a tiros os
230 A NOVELLA SEMANAL

dorminhocos. E no meio desses lou- tria das utopias,, região criada para
cos, só Ricardo conservava os seus a realização de todos os sonhos da li-
modos commedidos. discretamente sa- berdade, de toda cxr.incção de preoon-
tisfeito. Um dia um dos rapazes que ceitos, de toda conquista moral.
j ã agora, entrara para o rói dos ho-
mens sérios, inventou um passeio à
" P r a i a da Enseada", onde o chamava
Éter&rí&s A terra que realizou a emancipa-í
çSo dos homens, ha de realizar a
emanoipação da mulher. A terra que
e attrahia um «lindo par de olhos», fez o suffragio universal, não tem.,
nma pérola perdida naquella solidão. direito de reousar o voto_ de metade!
E alli, durante quinze dias, os vi- Ás s e n h o r a s bahianas da America. E este voto é o vosso. '
andantes, emquanto o eudiabrado ra- E' o voto dessas mães de familia
paz bebia o céo pelos olhos da ama- Pedem-se donativos para uma so- que v aprenderam, no amor de seus &-\
da, tiveram que passar a café e car- ciedade abolicionista. Quem pede? lhos a ternura pelas crianças . . . «ain-„
ne secca ! . . Mas a sede de aventu- Quem pede são homens que vos di- da que negras». E' o voto dessas vir-
ras ainda não-fatigára. zem simplesmente : Para nossos ir- gens puríssimas que choram de ver
Inventou-se ir cValli á ilha dos Por- mãos 1 São escravos que vos repetem scenas repugnantes da escravidão tur-
cos, de balsa, afim de attender a um com a monotonia da verdade : P a r a bando a poesia da familia. Oh mães !
iconvite que fora dirigido ao Eieardo. nossos filhos ! E a quem se pede ? Oh virgens ! \Protestae em nome de
Não ó a vós, banqueiros ou milliona- Maria «Mater -ereatoris». Protestas 1
E se bem se pensou, melhor se fez. rios, ricos ou poderosos. em nome de Maria a virgom — «Vir-,
Eis a balsa pejada de homens, senho- Não ! Ha um instineto e um pu- go oastissima».
ras e creanças, rumo da ilha dos Por- dor nesse pedido. O pudor diz : a
cos, impellida por quatro romeiros Houve um tempo em que a matro-
sob um céo claro e límpido. esmola de u m a moça não humilha. na de Esparta levava, o filho ao ban-
O instineto diz : o coração de uma quete do opprobio e da miséria mo-
Súbito, u m a ' n u v e m negra passa. virgem não faz economia. ral. O ilota tinha a significação do
O céo se turva, ribomba célere um Péde-se a vós, senhoras, a vós don- dístico espartano : Enoja-tc. Hoje a
trovão e a tempestade desaba quasi zellas ! a vós crianças ! A caridade matrona leva o íflho ao orjriistnlo da
imrnediatamente. O Cunha ria-se e pede «a vós que sois a caridade» ! escravidão. O escravo aviltado tem,
praguejava corno um pagâo; os outros E' que o nosso coração acostumou- porém, a significação de um verso
procuravam animar as senhoras, que se a encarnar a virtude primeira do biblico : Compadece-te.
grifavam loucamente ; Ricardo e a christianismo na fôrma puríssima da
sua pupilla, ao fundo da balsa, au- Nas horas serias da humanidade,
xiliando a retirada da agna que aniPn- mulher — charitas 1 no berço ou no, túmulo das grandes
çava submergi I-a, não soltavam pa- Symbolo divino, esta figura cujos cousas, quando u m a raça expira,
lavra ; dir-se-hia que na presciencia braços semelham duas ramas pesadas quando um povo se ergue, quando
do seu trágico fim, achava-o o pobre de fruetos, em cujo regaço as crean- um ruino desaba, quando uma revo-
amigo, rodeado ile entes queridos, ças abandonadas se entrelaçam oomo lução se forja ; um vulto eleva-se ba,-
suave e consolador ! . . . as aves de um só ninho . . . esta fi- nhado nessa belleza rnystica' da fra-
gura benéfica — é a synthese de uma queza feminil, e por cima do turbi-
A tempestade durou toda a noite. religião, é a deificação de uma classe ! lhão das almas indecisas passa a ins-
Toda a, noite luetaram os excursio- Acolá está todo o espirito do chris- piração febremta da Cassandra — a
nistas eonn-a os elementos, com água tianismo, todo o futuro da mulher prophetisa co Hypathia — a meta-
até os joelhos. na sociedade moderna. phisica 1 — o punhal de J udith — a
Pela manhã, quando exbaustos, des- De seoulo em soeulo os homens regicida 1 — do Joanna d'Aro -» a
norteados, o temporal amainou, acha- ganharam um plano no terreno da donzella ! on a penna fulgurante de
vam-se próximos da praia e os soc- liberdade e do pensamento. As victo- Beecher — a abolicionista !
oorros de terra não se fizeram espe- rias òa mulher foram no terrono do
rar. E não terá chegado um desses mo-
amor. mentos ?
Quem sabe se, depois, no dia fatal, O Christo disso aos apóstolos : en- Oh que sim ! As ondas hiantos do ••
,no derradeiro olhar lançado á sfinda sinae a todas as gentes 1 Mas disse ás seoulo j á apagaram ao longe das duas
percorrida — naufrago salvo das a- mulheres : Amae a todas às gentes ! Américas todas as instituições escra-
gna«, mas naufrago da vida — não 0 amor era, uma coroa; desde então vocratas. O dilúvio da abolição veio
reviu o querido companheiro essa a caridade foi um resplendor. Houve lavar as continentes para as novas
noite, e não lamentou ter sido jiou- dilaração no circulo dos affectos. gerações.
ipado então ! . . . A estatua da esposa grega tinha os Só em torno desta t e r r a brasileira
pós sobre uma tartaruga para lem- é que roem as vagas a base do ulti-
En fui entre os seus innumcros brar-lhe a immobilidade do coração. mo rochedo que abriga as cousas que
amigos e admiradores, o mais obscu- Seu universo é o lar. hão de morrer.
ro o ignorado. Elle mesmo talvez, Vede-lhe a antithese ! Um vulto H a uma pagina assim no «Céu e '
ignorou sempre, o grande aífecto que ideal de moça traz nas sandálias o terra» de Byron. <Ao clarão sinistro
me soube inspirar. pó de todos os hospitaes para lem- e livido que tomou conta dos ares»;
E'-me grato por isso — gosto acer- brar-lhe a universalidade do seu co- os vultos dos arcanjos amorosos ele-
bo dos que amam fallar de cousas ração. A irmã de caridade tem por vam-se, do abysmo, carregando nas
.que os fazem soífrer — despetalar so- lar o mundo inteiro. E' que os anti- asas ivfulgentes as noivas que ad.Oi-
bre a sua campa, estas flores em- gos mal tinham soletrado neste livro raram sobre a, torra ! . . .
murchecidas de pranto e de sau- rnystico que se chama a virgem. ; Oh virgens ! O cataclysmo rebrama
dade . . . Para que fizeram os deuses a rosa Vamos ! Estendei estas mãos alvia-
lubrica dos lábios? P a i a os beijos di- símus !
M. VII.I.AOA I»K CAMARGO ziam elles. Oarregae para o céu dos livres, es-
Nós dizemos: Também para a prece. tas criancinhas agonizadas, que vos
A mão alabastrina da musa saphi- chamam balbuciando.
ca vae bem na lyra eburnea, mas é E depois, vós bem sabeis. a bonda-
divina levando um crucifixo á bocca do ó também u m a belleza. E quereis
de um moribundo. Achaes formosos ' que vos d i g a ? Eu penso que uma
os cabellos da Venus marinha, ainda acção bonita deixa sempre um irra-
rorejantes das pérolas do oceano ? díamento no olhar, u m relâmpago
Eu chamo de sublime á cabelleira na fronte.
loira de Magdalena, quando enxuga Ha dias em que a formosura des-
os pés de Christo. lumbra. E' quando o anjo da guar-
Depois . . . Quereis que vos diga a da beijou contente a face da donzella.
verdade ? Vós tendes, minhas .senho- Demais, que ó que vos pedem ?
ras, o direito e o dever de protestar Pouco e muito. — Pouco pelo que
, e condemnar nesta questão. Porque vos ha de custar. Porque emfim, as
sois as bellas filiias desta idade que flores de um bordado nascem melhor
se illustrou por George Sand e Emi- sob vossas mãos ligeiras do quo os
lia Gerardin, por Mme. de Stael e lilazes aos afagos da primavera. . . Ao
Harriet Stowe. vosso hálito suavíssimo, o vellndo
Ainda mais : porque sois filha des- «moroso rebenta em lírios e em bor-
ta magnífica terra da America — pá- boletas de seda . . . E o bastidor es-
A NOVELLA SEMANAL 23 í

trella-se de missangas, como se tece va grande apreço ás apreciações de


de eonstellações uma noite luxuosa Bonilliefc sobre o que escrevia e mos-
de Equador. trava, trecho a trecho. E o que é
— Muito, pelo resultado que isto peior é que, dominado pela profunda
importa. affeição que dedicava ao poeta e dra-
Imagino que estaes só. Acabastes maturgo, Flaubert, ás vezes, modifi-
- de ler a ultima pagina de um- livro cava o original — com prejuízo de
querido do vosso escriptor predilecto, sua perfeição. Tal suocedeu, por
a «Pata da gazela», talvez . . . e fi- exemplo, com a «Tentação de Santo .
caes scismando . . . em que ? no he-
róe, no desfecho, nessas visões sera-
Antônio». Cedendo a suggestões de,
seu amigo, Flaubert refel-a três ve-
O Vocabulário
phicas, que povoam os corações das zes, e cada vez com menos felicidade, As palavras têm seu meio próprio..
virgens... Depois, como se a tristeza o que se verificou posteriormente á Ha expressões que não ousam pene-
vos ficasse de m a t a r nesta cabeça es- sua morte : encontrados os dois pri-
pirituosa, sacudis a onda m a g n é t i c a meiros originaes, reconheceu-se quão trar ém uma sala, ficam á porta, es-
dos cabellos e deixaes cair en'tre*.per- grande era a superioridade de ambos piam e, vexadamente, recuam; outras
fumes a scisma que vos pesava como sobre a edição definitivamente dada nunca chegaram ao limial- da porta...
um diadema . . . que íazer ? Um de- á estampa 1 e, si alguma vez isso snçcede, o. e s -
senho ? Uma aquarella ? Más a palhe- Pelo exposto se vê que, talvez, nem panto é extraordinário.
ta está guardada, o álbum vos foi mesmo os grandes escriptores tenham Quem supporta, por exemplo, um
pedido por alguém. amigos . . . hispido, escabroso vocábulo de gyria.
Emfim é impossível. A propósito do centenário do im- na bocca delicada de uma sénhóríta
" Se ao menos fosseis tocar aquella mortal estylistá, publicou a «Conais- elegante? dá-nos a impressão duma
*musica tão bella de Gothsclialk — saince» u m a . curiosa paraphrase da lesma «ahindo de uma rosa.
Ojos creolos, que o maestro compôs prece christã Padre Nosso: «Pae Flau- Aconteceu-me, certa vez, parar es-
'• : advinhando os vossos olhos . . . Mas bert, que estaes no céo, glorificado gazeado, tolhido em verdadeiro espan-
nestes dias de inverno o piano está seja o vosso nome, eontinuae em vos- to, ouvindo um negro boçal, de gran-
humido e 'preguiçoso ; demais sois so reino, seja observada vossa pure- des, pendurados beiços, dizer, com
•nervosa, e as teclas geladas produ- za em nossos vocábulos e em nossas enfatuado aprumo: «odorifero».
zem um arrepio irresistível. Vamos, phrases ; nossa, inspiração quotidia-
'senhora, não ha remédio. Tirae de n a nos.dae hoje ; perdoae-nos nossos Si um cavalheiro, em trajo de r i -
vossa cestínha de- costura esses fios erros de franoez, assim como,perdo- gor, rompesse de uma baiúea, c o m a s
,, de seda ou'de ouro. Sentae-vos ahi amos aquelles aos quáes temos criti- botinas de verniz enfiadas na benga-
junto dessa janella por onde o ceu cado. Não nos deixais succumbir á la, desengonçando-se em u m a chula
vos mira, sorrindo nessa limpidez do tentação dá «reclame», mas nos livrae, sarrafaoal não seria tão grande a
arzul. Trabaíhae, criança •'. . assim ! da Academia. A m í m . minha surpreza.
Meu Deus ! Como sois bella ! Sabeis. Da Academia' e de amigos como «Chacun à sa place.»
Sois a parodia celeste' da Parca. Ten- Bonilhet . . . O. vocabulário... é o homem.
des nos dedinhos cor de rosa o fio de COELHO NETTO
uma vida . . . mas urn fio de seda. . . c. L.
uma vida de liberdade tecida por
vossas mãos angélicas, ó Gênio da
Caridade ? , • ,
E agora eu vou concluir ; mas an-'-
tes deixae que vos lembre uma his-
Os cNpssos® '^s&x^cpoeías
toria.
Dizem que houve u m a rainha em maior. O dêsprehendimento do poe-
cujo regaço as moedas que levava Julio César dá Silva ta para com a sua poesia, mais nol-o
aos pobres se transformavam em Existe em São Paulo um grande impõe. Copiosa, a sua obra permane-
flores. poeta. Existe ha muito, quasi ignora- ce em grande parte inédita. Delia se
Donzella ! "Vós também fazeis mi- do. E', decerto, um' dos mais velhos). conhece um livro — «A morte do Píer-
lagres. Em vossas mãos as flores vão da divina grey. Aureola-lhe o nonfe rot»—magnífico poema cuja repercus-
transformar-se em ouro para a remis- um nimbo longínquo de glória. E' são longe está do seu grande mérito.
são dos oaptivos. quasi uma figura ao passado, a que .A «Arte' de amar) terá, pois, as.
CASTKO AI.VES nem faltam uns toques lendários pa- proporções de uma revelação. Porqu&
ra justificar a nossa admiração sur- ô, de facto, maravilha de poesia. Nel--
preza ante o seu resurgir victorioso > la, o ideal do poeta se nos apresenta
em plena vida, na plena actualidade integro. Sobre u m fundo de legitimo.'
O Centenário de Flaubert dos nossos dias. e puro lyrisíno, em que se irmanam
todas*as almas, uma fina coloração
Temos sob os olhos a «Arte de
O mundo das letras, é também o Amar», de Julio .Cesa,r da Silva. de cultura suavemente se esbate, mas,
mundo das desaffeíções- Esse nome conhecem-n'o muitos. E' tão fina e tão medida que toda, em
Não ha duvida que os grandes es- u m nome glorioso nas letras nacio- sua homogeneidade, a poesia se sus-
oriptores tiveram amigos, mas so- - naes. Versos, porém só se lhe sabeih pende, entre o seu tom quasi popular
ímente por isto — porque for*,m gran- esparsos, um ou outro soneto, uma e a- sua linha imperturbável de bom
des. serie delles, quando muito, todos per- gosto e apuramento artístico. Os mo-
Dè que não é i n ú t i l ser amigo de feitos, de admirável acabamento, la- tivos simples, encantadoramente in-
um grande' escriptor, tivemos prova pidares e transbordantes de vida. A gênuos, de uma inspiração fácil e
ha bem pouco, quando Ruão eomme- sua è.nma gloria, também assim, de espontânea tomam, assirrij aspecto,
morou o, centenário de Flaubert, seu , fragmentos, murmurada de longe em requintados, com inconfundível m a r -
glprioso'filho- longe, raro e raro proclamada por 'ca de espirito e de fino lavor.
Mais alguém mereceu, então, as uma vóz mais desaçaimada e cheia. Julio Gesar faz a sua profissão de
honras tributadas a o ' excelso autor Mas, porisso mesmo è mais bella' e fé no soneto «Arte suprema» :
de «Salammbo» : Luiz Bonilhet. , ARTE SUPREMA
Poeta e escriptor dramático, Boni- Tal como Pygmaliâo, a minha idéia
lhet jamais conseguiria pelo valor de Visto na pedra, talho^a, douro-a, bato-a :
suas obras semelhante homenagem E ante os meus olhos e a vaidade-fatua
da posteridade. Foi, porém, tão inti- Surge, formosa e nua, Galathéa.
mo amigo de Flaubert, tantas atten-
ções e tanto carinho este lhe dispen- Mais uni retoque, uns golpes . . . e remato-a ;
sou sempre, de tal forma á vida de Digo-lhe : " F a l a ! " ao ver em cada veia
ambos se contundiu, que os promo- Sangue rubro, que a oóra e aformoseia . . .
tores dos festejos julgaram dever re- E a estatua não falou, porque era estatua.
verenciar também Bonilhet, até mes- Bem haja o verso, em cuja enorme escala
mo porque isso só poderia ser grato F a l a m todas as vozes do universo,
ao proj-irio Flaubert . . . . E ao qual também arte nenhuma eguala :
E assim aconteceu. * Quer mesquinho e sem cor, quer amplo e ter«o,
" O extraordinário escriptor de «Ma- Em vão não é que eu digo ao verso : ' F a l a ! ' '
ír í <ia
dame Bovarv^ IS j^g,,o.jJÈ(8snps ^* ' *' E elle fala-me sempre, porque é verso.
232 A NOVELLA SEMANAL

A superioridade da Poesia sobre to- E é essa, exaetamente a impressão o saxophone e a requinta do verso
das as artes ahi está admiravelmente que nos dão os versos da «Arte de ou, senão, broxam telas a ocre e . ,,<•
expressa. Pygmaliâo. ao tirar do már- Amar» : elles "falam". Luzem, bri- a verde Paris.
more Galathea ordenava que falasse. lham, cantam, porém, sobretudo, Julio César tem o bom senso d«
E em sua perfeição, Galathea não "falam . . ." Não é virtude vulgar, falar, apenas, E fala-nos á intelligan-
"falou. Mas o poeta descreve, pinta, numa época em que a poesia o me- cia e a alma com eloqüência sem par.
-anima a mesma estatua, perfeita e, nos que faz é falar. Os nossos mo-
se lhe ordena que fale, pela própria dernissimos poetas, os que se guiam
natureza dos versos em que a pintou, pelos últimos cabotinos internaoio- São do novo livro de Julio César1»
•ella lhe fala sempre . . . naes de Paris, não poetam : gemem os seguites versos :
ARTE DE AMAR CONTRASTES
XXVII Casta nos gestos e nas attitudes
A mesma velha cantiga Vêm-te os meus olhos sempre, enamorados,v
Ouvirás a muita gente : E a toda hora te lanço os meus alados
Que te ama sinceramente Beijos, dispondo em pinha os dedos rudes.
Não faltara quem te diga.
Es tão pura de corpo e de cuidados,
Mas esse amor verdadeiro Que se, aoaso, aos meus olhos te desnudes,
Se, um dia, tentas buscal-o, Mais te verei vestida de virtudes
Ser-te-á tão penoso achal-o Quão me vejo coberto de peocados.
Como agulha no palheiro.
Nunoa pensei em tua bocca fria
XXVIII Pôr, mesmo em sonho, um beijo imaginário ;
Nunca o pensei e nunca o pensaria ;
^Juem
1
de amor diz que está louco
E o que mais siso revela . . . Não sou e nunca, fui tão temerário ;
Quem mente é tão tagarella ! Se o fosse, é certo que a impressão teria
'}asm ama fala tão pouco ! De um sacrilégio em pleno sanofcuario.
Mais que o lábio, que delira,
O olhar, que é mudo, persuade , CORAÇÃO CALMO
Tão sóbria é a sinceridade Disse-me ella que lera (não sabia
Quanto eloqüente a mentira. Onde nem quando) que, por mais cuidado
Que se tenha em trazer o amor guardado,
PHRASES FEITAS Batendo, o coração logo o annuncia.
O «Vi-te e amei-te», como, geralmente,
Hoje se diz, a ninguém mais persuade : Disse, e, attenta, auscultando o esquerdo lado
Perdeu de voz toda a sinceridade Do meu peito, notou, naquelle dia,
Porque anda na expressão de toda gente. Que, regular, o coração batia,
Nem mais forte nem menos adressado.
Com tal ouvir não ha quem se contente
Nem de tal coisa nf.o se desagrado : A tudo alheio, indiiforente ás penas,
São palavras vasiaá de verdade Na arca funda do peito, onde o domino,
Que a bocca diz e o coração desmente. Suas pancadas lentas e serenas,
E pois não digo que teu gesto acceite Sem precipitações nem desatino,
Este amor, que arde em mim como uma lava, Calmo batia o coração, apenas
Este amor, que é meu mal e meu deleite ; Por dever de bater, que ó sen destino.
Do delicto de crer-me essas mãos lava, OUTRAS CANTIGAS
Que te não direi nunca : «Vj-te e amei-te»
Porque antes de te ver eu j á te amava. II
Horas de intenso regalo,
LIBERTAÇÃO Acceso o olhar em desejos,
Adeus. Tu, fica. Eu parto. Não conheço As boccas cheias de beijos,
O destino a seguir, mas parto e corro. Que é uma loucura contal-o,
Livre quero ficar, por qualquer preço, Passávamos á porfia
Ou desta escravidão tornar-me forro. Nestes jogos amoraveis :
De illusões e de sonhos me abasteço ; Dizieis vós que me amáveis,
Não mais que de esperanças me soccorro Que vos amava eu dizia
Para este grande mal de que padeço, Dizíamos com tal fogo,
Para este sollrimento ido que morro. (que certo, nãó vinha d'alma)
Quem escoteiro parte, só precisa Que hoje nem sei fluem a palma
Da esperança e do mais que ella lhe offerta, Ganhou emfim nesse jogo.
Da i Ilusão e do mais que ella improvisa. Éramos como, parece,
A alma a exultar, a fronte descoberta, Duas pessoas travessas
Saio do teu amor, que me escravisa. De cujas pobres cabeças
Corro para outro amor. que me liberta. O sisO f u g i d o hotITOSHO.

COFRE DE MALES
N'uma hora de exaltado desvario,
•O teu cofre, Pandóra, eu, sem receio,
Com minhas próprias mãos, sorrindo, abri-o . . .
•^ó de males teu cofre estava cheio.
Depois de tel-o aberto è que me veiu
Este remorso inútil e tardio ;
E arrependido e tremulo, fechei-o,
Para de todo não ficar vasio.
Esses males a que hoje me condemnas
Cahiram todos sobre mim, do chófre ;
São angustias mortaes e acerbas penas ;
E em cambio, a quem, como eu, j á tanto soffre,
Dás um goso, a iliusão de um goso apenas
Encerrada no fundo do teu cofre. k. ^.W-
\ • * *
E D I Ç Õ E S D A
;
úf(iòeiay
AMADEU|AMARAL F. T. DE SOUZA REIS
A Pulseira de Ferro (novella) 1$000 A Divida do Brasil (estudo histórico) . . 4$000
Um soneto de Bilac (critica) 2$000
WALDEMAR FERREIRA
MONTEIRO LOBATO Manual do Commerciante 8$000
Os Negros (novella) £J1$000 Estudos de Direito Commercial . . . . 10$0rj0
A Hypotheca Naval no Brasil 3$000
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Ritinha (novella) No prelo
O que- todo o commerciante precisa saber
GUSTAVO BARROSO (10.° milheiro) 2$000
Almanach Commercial Brasileiro de 1918 6$000
Mula sem cabeça (novella) No prelo
NICOLAU ATHANASSOF
A. DE SAMPAIO DORIA Os Suinos, manual do criador de porcos
O que o cidadão deve saber (10.° milheiro) 3$000 (2.a edição, 8.° milheiro) . . . . 3$000
OS PEDIDOS DO INTERIOR DEVEM TRAZER MAIS 10 o/o PARA O PORTE

SOCIEDADE EDITORA. OIvBGARIO RIBEIRO


lexa-a r > r . A b r a n o t i e s , ^feS = C a i x a P o s t a l l l ^ S =S Ã O P A U L O

EDIÇÕES DA "Revista d o B r a s i l t9
Broch. Encad. Broch. Encad
NEORINHA, contos por Monteiro DIAS DE GUERRA E DE SER-
Lobato 2$500 3$500 TÃO, interessante narrativa pêlo
ÜRUPÉS, contos por Monteiro Lo- Visconde de Taunay . . . . 4$000 5$000
bato, 6.a edição 4$000 5|000 MADAME POMMERY, íomance
CIDADES MORTAS, contos por satyrico, por Hilário Tácito. . 4$000
Monteiro Lobato, 2.a edição. . 4$000 5$000 BRASIL COM S OU COM Z, por
IDÈAS DE JECA TATU, critica F. Assis Cintra 3$000
por Monteiro Lobato, 2.a edição 4$000 5$000 VIDA OCIOSA, romance por Go-
NARIZINHO ARREBITADO, li- dofredo Rangel 4$000 5$000
vro de historias para crianças, OS CABOCLOS, contos por Val-
por Monteiro Lobato . . . . 3$500 domiro Silveira 4$000 5S000
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DO BRASIL, estudo de sociolo- RIA, por Viriato Corrêa . . . 31500 4$500
gia por F. / . Oliveira Vianna . 8$000 10$000 ESPHINGES, versos de Francisco
PROFESSOR JEREMIAS, por Léo falia 5$000
Vaz, 3.a edição 4$000 5$000 SCENAS E PAISAGENS DA MI-
VIDA E MORTE DE GONZAGA NHA TERRA, versos caipiras de
DE SÁ, romance por Lima Bar- Cornelio Pires 5$000
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LIVRO DE HORAS DE SOROR João do Norte
DOLOROSA, poesias por Gui- PAIZ DE OURO E ESMERALDA,
lherme de Almeida 5$000 — romance,/. A. Nogueira . . . 4$000
ALMA CABOCLA, versos de Pau- PEDIDOS PARA O INTERIOR,
lo Setúbal, 2.a edição 3$000 4$000 MAIS 10 o/o PARA O PORTE
P e d i d o s aos E d i t o r e s : M o n t e i f O L o b a t O (EL C , C a i x a 2 - A - S . P A U L O
A NOVELLA NACIONAL
"Volumes publicados:

A NOVELLA NACIONAL é uma A P u l s e i r a d e F e r r o por


série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o successor de
se mira ao seguinte escopo : ofiferecer Olavo Bilac, na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "E} no gênero uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima „ — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que é director o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (da Academia Brasileira) podem BATO, o celebre creador de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor do "Professor Jeremias'',
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualidade, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 -pa-, i i

edições em poucos mezes.


ginas, no formato 16 >/2 X 12'/»• centí-
metros, impresso em magnífico papel
M t i l a s e m c a b e ç a por GUS-
TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas
cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras,-contendo uma obra completa
H E R O È S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido.
jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.
OS NEGROS

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíra. Silveira
Cornelio Pires e outros;;]'
Cada volume LfOOO em •*.
todas as livrarias, Pelo
correio, registrado lí(j>300.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3|500; série de seis no-
vellas 7$000;. série de '
doze novellas 14$000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ribeiro
Rua Dr, Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — Lé,, foges, f.
tNNO 1 SÃO PAULO, 6 DE AGOSTO DÈ 19^1 NUMERO 15

ANOW LÍA.
EMAIVAL

COLLECÇÃO de^pequenos livros de versos a CADA volume, caprichosamente confeccionado.


se PpubUcar sob a direcção de Amadeu Ama- impresso a duas cores em excellenW papel,
ai (da Academia Brasileira) e destinada a com artísticos «matos e so Udamente enca-
vulsrarizár as obras dos poetas novos de dernado, será vendido a 2J50U.
grafde merec^ento, ainda pouco conhe- Na NOVA PLEIADE• som«.te «er.o publica-
cidos do publico. das obras de v e r d a d e s valor.
Iniciaremos a collecção com o primoroso livro M A N H A do poeta paulista G r a c c h o Silveira
SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - Rua:Dr. A t r a n c h e . 43 - Caixa, 1172 - S. Paulo

ÍOCEDITORA OLEGARIO RIBEIRO RD?ABRANCHES,45SPAULO


A NOVELLA SEMANAL DIRECTOR: BRENNO FERRAZ

PUBLICA-SE AOS SABBADOS


Para os 30 milhões de brasileiros, mesmo desconta- VELLA SEMANAL se propõe a salvar do olvido as me-,
dos os analphabetos, RS tiragens dos livros nacionaes lliores paginas esgotadas e as sepultadas em eolleoções'!
são ridículas. E as edições pequenas encarecem o li- de jornaes e revistas — preciosidades que representam
vro, limitam-lhe a expansão, impedem a razoável remu- um'opulento thesouro literário quasi de todo desconhe-
neração dos auctores. Vivemos, assim, num oirculo vi- cido e inaooessivel. Das obras ainda em extracção nn
cioso : o livro não se diffunde entre nós porque é caro mercado livreiro, destacará — a exemplo do que se faz
e é oaro porque não se diffunde. Isto succede com o em vários paizes, em anthologias de grande e pequeno
livro bom, pois dos de fancaria se tiram por ahi deze- tomo, didaoticas e populares, e em publicações periódicas
nas-de milhares e se esgotam edições sobre edições . . . — as que sejam a melhor mostra do livro e do auctor,
de sorte a despertar nos leitores o desejo de ler os li-
Esta situação, de tão funestas conseqüências para o vros que, sem esse reclame, muitos provavel-
paiz, suggeriu a iniciativa da creação deste periódico, mente nunca leriam. E isso fará fornecendo ao mesmo
que representa um esforço no sentido de vulgarizar a tempo todas as indicações precisas para que qualquer
boa literatura. pessoa possa fazer encommenda, ao seu livreiro ou di-
Popularizar o livro, tornal-o accessivel a todos, sem rectamente ao editor, da obra da qual se apresentou
descuidar de o fazer ao mesmo tempo o mais attrahente aqui uma pequena amostra e das outras obras do mes-
possivel pela escrupulosa escolha da matéria e pela ar- mo auctor. Esta publioação constituirá, portanto^ ao-
tística confecção ile cada volume, e depois usar de to- mesmo tempo que um abundante repositório de infor-
dos os meios para o diffundir em todo o território na- mações bibiiographicas. uma selecta de pequenas obras
cional, de fronteira a fronteira, e entre todas as classes excellentes, organizada com o fito de tornar melhor co-
sociaes, desde as mais cultas ás menos letradas — eis nhecida a nossa literatura, dentro das nossas próprias
ahi, resumido em poucas palavras, todo o nosso pro- fronteiras.
gramma.
Não viveremos, porém, de alheia seiva. Teremos a
Participando no mesmo tempo da. natureza ,1o livro nossa collaboração especial, de um punhado dos mais
e da revista, A NOVELLA SEMANAL pretende reunir notáveis escriptores contemporâneos e acolheremos oom
ns vantagens desta e daquelle : como a revista, será de prazer — e remuneraremos — todos os trabalhos inte-
leitura leve e variada, será vendida a preço Ínfimo, será ressantes que nos sejam enviados por auctores conheci-
. apregoada nas ruas, nas estradas de ferro, ern toda par- dos e desconhecidos, consagrados e estreautes^eomtanto
le, a toda irente ; mas não será (nt.il o de interesse e- aue taes obras tenham valor e sejam conformes com a
phemero como ella : pelo fundo — pela qualidade e pela feição d'A NOVELLA, isto é, que tenham pequena ex-
extensão da matéria — constituirá uma verdadeira série tím-ão e possam ser lidas por toda gente.
de pequenos livros, que se encadernarão no fim de cada
trimestre, em bellos volumes com os quaes se formará 'Preferimos dar maior desenvolvimento â< edição da
uma bibliotheca literária realmente preciosa. conto e da novella nestes volum os por serem esses os
gêneros que oontam, entre o publico, maior numero de
Pretendendo ser lida, muito lida., lida por homens apreciadores. Mas não nos restringiremos a elles, em-
o creanças, senhoras e moças, ricos e pobres, letrados e bora delles tenhamos tirado o titulo desta publicação.
curiosos, pela totalidade, emfim, da população ledora. Todos os outros gêneros terão o seu logar no nosso
procurará nos auctores a vida. a acção, o interesse, de supplemento, verdadeira gazeta literária de pequenas
modo a constituir o verdadeiro livro popular. proporções, onde se encontrará um pouco de tudo e só
Destinando-se a se t o m a r um instrumento de pro- do melhor.
paganda das boas letras — dos melhores auctores e dos Eis ahi ao que vem A NOVELLA SEMANAL, que
melhores livros nacionaes — não se limitará a publicar se colloca á disposição do publico, dos auctores e dos
trabalhos inéditos. Xão seria este o melhor meio de se editores, aos quaes deseja servir e dos quaes espera re-
cumprir esta parte do programma traçado, havendo por ceber um acolhimento sympathico.
»lii, esquecida e ignorada, da maior parte do publico,
tanta cousa optima a pedir um editor. Assim, A NO- O s ElOIOKKS.

Aos auctores
Acceitaremos com prazer toda col- Aos leitores queiram nos auxiliar neste trabalho
laboração interessi-.ntc paru qualquer que nos enviem relações de auctores
ilas secções deste periódico. A NOVELLA SEMANAL ambicio- e de livros publicados de modo a nos
Os uctorps devem nos remetter os na ser lida em toda parte : cidades, habilitar a adquirir os volumes para
seus trabalhos, declarando o sennome. villas, povoações. estradas de ferro, os examinar.
endereço e o preço pelo qual nos of- navios, hotéis, clulis, hibliothecas, e t c ,
ferecem n sua colaboração.
Os oriiriuaes devem ser escriptos de
estando porisso organisando um ser-
viço de distribuição que será o mais
Importante
Toda pessoa que angariar três assi-
,ura só lutlo do papel, em calligraphia completo possível, de sorte a não ha- gnaturas d'A NOVELLA SEMANAL-
bem legível e de prelerencia dactylo- ver ponto do território nacional onde enviando-nos adeantadamente a res-
gra phados. nao tenha:leitores e não seja encon- pectiva importância, terá direito' a
Toda a correspondência deve ser trada á venda. Para obter este resul- uma assignatura gratuita.
endereçada á Sociedade Editora Ole- tado contamos com o auxilio dos A t o d a pessoa que angariar qual-
garío Ribeiro Caixa postal n. 1172 nossos leitores, aos quaes pedimos que quer numero de assignaturas d'A NO-
— s. Paulo. nos indiquem endereços de livrarias, VELLA SEMANAL offereccremos a
agencias e vendedores de jornaes e titulo de brinde, livros, escolhidos no
Aos editores pessoas e instituições que possam se catalogo de qualquer livraria do Bra-
A NOVELLA SEMANAL publicará interessai- pela venda ou leitura des- sil, no valor de 20 o/o sobre o preço
com prazer e gratuitamente, o titulo, te periódico em qualquer localidade. total das assignaturas angariadas.
nome do auctor preço e nome e en- por insignificante que seja.
dereço do editor de todas as obras Interessados também em conhecer
editadas no Brasil bastando para isso os escriplores e poetas de mérito de Assignaturas
que os editores lhe enviem aquellas todos os Estados e de todas as épocas,
indicações. afim de lhes poder divulgar a obra. Anno . . 20$000
De todas as obras das quaes lhe for muUo agradeceremos qualquer indi- Semestre . . 10$000
remettido um exemplar, publicará a- cação que a este respeito nos seja Trimestre . 5$000
lém disso uma noticia critica. fornecida, rogand a todos quantos Numero avulso . . . $400

SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO RIBEIRO - R. Dr. Abranches, 43 Caixa Postal, 1172 - Teleph.: Cidade, 5441 - S. PAULO
HiiimiMiiiiiiiiiBiíiiiiiiiiniiii •—imniiiiiuini IIIIIIIIIUIIII iiumiiiiin

ANNO I A N O V E[L L A SEMANAL • São Paulo, 6 de A g o s t o de 1921 NUMERO 15

ALMA FRIVOLA — Sud resca dos grandes es-


Mennucci. criptores — Euclydes da
C H I C Ã O " D U A S MOR- Cunha — B . E .
TES" — Dimas Camar- Curiosidades literárias — O
> KO Stein. jornalismo e as letras -
TIO GABRIEL F. Sil- SUPPLEMENTO — A phi- . Josri MARIA B E I X O . • —
DIVINA — Jorge FaHeiros. veira. losophia de T a n — BKKN- "Ürupés" na Argentina.
PEITO - L A R G O Carie NO EKKKAZ.
Paginas esquecidas —- Pri-
da Fonseca. A vida anecdotlca e pitto- mavera. - R A D L POMPKIA.

'A^X^JSéLJS* (3TJ<e> -üitjrx r o m a n c e g o r a d o )


No dia seguinte o Álvaro se achava na casa
do capitão Joaquim da Motta, á espera dos autos diga? Deixemos de casos intrincados de almas
que os havia, a elle e mais a comitiva, de con- alheias, especialmente da minha, que escapa á
duzir á checara «Celeste». i minha própria analyse. Falemos mal dos outros.
A companhia era a mesma do jantar do dia Não acha que seja lim bom emprego?
anterior. — Por exemplo, riu maliciosamente d. Laura,
D. Laura, á chegada do professor, reclamou-o. falemos mal de sua namorada.
Subiu nb automóvel com elle e só permittiu a — Pois seja delia.
entrada de três petizes, dós quaes o mais velho — Dir-me-á quem é ?
não contava mais de sete annos. — Para que, si isso não passa de um flírt in-
E, enquanto o vehiculo corria sobre o pedre- significante, em que eu sou o provocado ?
gulho da alameda ensombrada, que conduzia á -^ E' bonita ?
quinta, ella foi-lhe dizendo um sem numero de — E'. A figura que, hontem, o Sebastião usou
phrases excitantes. a respeito delia é exacta : E' linda como unia bo-
Eiles haviam ficado os últimos na fila dos auto- neca de «bisquit». Ou antes... não, porque as
móveis e, para evitar a poeira da estrada, dis- bonecas são, em geral feias. E' bonita mas...
tanciavam-se muito do ultimo que ia na frente. — Mas.... indagou' a mulher anciosa, más • com
— Eu gosto dâs almas como o senhor, solita* ar distrahido, de quem quer affectar indifferença.
rias e recolhidas, que mesmo nos momentos de — Mas não me agrada.
grande alegria, não se illudem e não deixam nunca — Mas não a deixa.
de ser o que são. — Minha senhora, eü não posso recusar o flirt
i — Más eu nãó sou absolutamente hypocrita e a uma menina «chie». Iria contra as regras do
a senhora está me emprestando ; essa qualidade, bom tom.
exclamou, num riso largo,, o mestre-escola. — Que o senhor aliás não segue. Então para
— Não torça,' Álvaro. O senhor entende-me que , affecta uni sentimento que não tem ? E'
bastante, para querer mangar commigo. ser mau,
— Mangar com uma tão linda mulher? Mas — Não é. E' mais por indolência, porque afi-
seria ignóbil da minha parte. Que quer que lhe nal, o admirado sou eu e e enamorada é ella.
234 A NOVELLA SEMANAL

D. Laura riu, chamando-lhe extraordinário. — Eu sei. Eilas preferem beijos... A senhora,


— Nem tanto quanto julga. Por exemplo, eu comtudo, é muito alia e eu precisaria arranjar,
sou de uma timidez desastrosa. para dar cumprimento ao preceito, uma situaçãoj
— Não se diria. qualquer para fazel-a abaixar-se ou sentar-se.
— Como não ? confirmou o rapaz. Então não Aqui não ha bancos e ha apenas dois minutos que
acha timido uni moço que, desde hontem, tem a descemos do automóvel: não deve estar cançada...
tentação de devorar-lhe os lábios de beijos e Demais, eu não conheço a arte de seduzir. Não
ainda não ò fez ? Não foi falta de occasião nem entendo da chimica do amor.
de vontade. D. Laura riu clamorosamente e indagou :
— Foi, naturalmente, por indolência, volveu — Nunca teve conquistas ?
d. Laura calmamente. — Si as fiz? Não., Mas já fui conquistado
— Ou melhor por timidez. Mas garanto-lhe uma vez'; ainda não ha dois mezes.
que, hoje mesmo, tomarei desforra. — E foi o senhor o conquistado ?
— Querem-n'o auctorizou ? — Sim, porque eu nem siquer disse a essa mu-
— Pois é preciso, acaso, auctorização ? lher que a amava, nem por brincadeira.
Chegaram á chácara. — O senhor é um excêntrico.
— E'grande a propriedade? indagou o professor. — Parece que a senhora se diverte a, me ap-
— Bastante para gyrar-se uma hora. plicar adjectivos. Acha-me com feição de subs-
-- Nesse caso dê-me o seu braço e vamos dar tantivo ?
umas voltas por ella. Ella riu de novo :
— Professor, o sr. está com intenções dia- — Está ou não justificando o meu ultimo dito?
bólicas ! — Não sei.
— Quem sabe ? Acaso sente-se mal em saber Os dois haviam chegado diante de uma latada
que dá o braço a um cavalheiro que está pouco de parreiras. Cachos maduros de uva pendiam,
bem disposto a seu respeito? excitando o desejo.
— Absolutamente. Não sou mulher que me Daili avistava-se, lá em baixo, a cidade, fais-
espante por tão pouco. cando ao sol...
— Então vamos. — Quer chupar uvas, d. Laura ?
E os dois afastaram-se, a passo lento, por uma — Quero. Mas o senhor não as alcança. Eu,
das alamedas da quinta. que sou mais alta, não vou até lá.
D. Laura sentia-se feliz de encontrar-se no meio — Alli está, porem, retorquio o professor, o
das arvores amigas. caixão providencial. Espere.
— Infelizmente não ha vi ração, disse serio, num O rapaz apanhou o primeiro cacho. D. Laura
ar compungido, o Álvaro. avisinhou-se para o receber, mas achegouse tanto
— Para que ? inquiriu a mulher, admirada. que, quando ia levar o primeiro bago á bocca, o
— Para tornar o nosso passeio digno de uma mestre escola, num movimento rápido, cingiu-lhe,:
descripção clássica de Ponson du Terrail ou, os braços ao pescoço e estampou-lhe nos lábios
quando menos, de uma prelecção pedagógica de GOUS rumorosos beijos. -(
dia de Festa das Arvores. A mulher correspondeu-lhe, largando o cacho e
— O senhor, por mais que se esforce, não abraçando-o com toda a força.
pode esquecer-se de que é ferozmente irônico. Depois, fingindo-se arrependida, abandonou o
— E' a minha mania. Não posso torcer a veia rapaz e, baixando os olhos, disse :
de meu temperamento. — E você não entendia de coisas de amor.
— Podia ter outra e deixar essa; que já é ve- Foi para isto que arranjou o caixão ?
lha. Hoje toda a genfe. faz ironias. E' moda. - Não se zangue por tão pouca cousa ! "
— Queria que fizesse maárigâes ? — Foi uma accão indigna ! confirmou, ba-
— Era talvez melhor. tendo o pé.
— Mas, d. Laura, madrigaes todo o mundo os
— Pois então, concertemol-a. diante de todo
fez e os faz. E eu preciso acompanhar a minha S. Luiz, que lá em baixo nos olha, alvitrou Ál-
época para poder justificar o seu epithelo de ex- varo, apontando a cidade.
traordinário.
— Lá volta o senhor. Sabe, Álvaro, que não é E o professor e d. Laura abraçaram-se de novo.
assim que se agradam mulheres ?
SUD MENNUCGI
A NOVELLA SEMANAL 235

Trazia os bolsos cheios de pedregulhos, que se-


leccionava a capricho, para a devastação das tfti-
cas e chupins circumvisinhos. Tinha também um
ceveiro. Ai daquelle-que ousasse profanar o ce-
vei ro do Chico ! .Abria logo umas guélas âtròa-
doras e despejava sobre o audacioso o vocabulá-
rio typicò dos caboclos destorcidos. Era um en-
CHICÃO "DUAS MORTESti xurro. A geração toda do mardito ficava não
raro compromettida, quando não eram especifica-
damente cotejadas as respectivas matronas com a
Aquelle que vae passando alli, do outro lado «Joaquininha-lambisgoià», a Barbina-Reboleira»
na calçada fronteira, chapéu de abas largas que- de quem o Chico ouvira aos talúdos do bairro,
brado na testa, 4passinho afadistado, porrete preso em dias de festa, referencias cochichadas, só entre
ao punho por uma pulseira de couro curtido, é o homens. E fechava sempre o brilhante improviso
•Chicão «Duas Mortes». Eu o conheci simples- com a ameaça sobre todas tremenda: (<Vô conta
mente Chico, um caboclinho encardido e molengo, p'ra pái, lazarento do inferno! » Ante esta deci-
lá das bandas do norte. O nome é banal, mas o siva argumentação sumiam-se pelos atalhos os
appendice que se lhe segue, tem a sua historia. Jecas miúdos e graúdos: O Tuvira pae, um
E por ella se prova uma vez mais, de como, dos membrudo e tostado espécime dos degenerados
confrontos que os contrastes e surprezas da vida ex-heroiços bandeirantes, tinha nome feito na
suggerem, nem sempre se podem tirar conclu- zona. De uma feita rachara o coco á paulada ao
sões harmônicas, deducções lógicas. Bastiãosinho Serelépe, um caboclinho pernóstico'
De pigmeu feito gigante, o heróe deste conto cuéra no pé, que num baile de famia, fizera co-
é uma contribuição a más a corroborar o acerto rar as Julietas patrícias, cantando ao violão, com
desse illogismo. Fiquemos aqui. A vida é a requebros d'olhos maliciosos e pimenta em todas
Vida. E quem a fez a Babel que ella é, foi o as syllabas, aquella modinha indecorosa que lera
homo sapíens, vulgo bicho. Soffra-lhe elle as il- no'"Rio Nu". Entreolhava-se, já com o nó na
lações inopinadas. Já Monteiro Lobato o disse : garganta, mas encolhida a um canto, encurralada,
«Moralidade ha nas fábulas. Na vida, nem sem- a caboclada toda. Nisto, entra na sala o Tuvira.
pre. . E é pena». E' isso mesmo. Veiu, viu, ouviu . . . . E ainda o Bastiãosinho não
pingara o ponto no verso começado . . . . "Óia,
Pois o Chicão foi o caboclo mais preguiça que cachorrinho excumum ....[' O gado ninguém
eu conheci. Em pequeno essa tendência para ouviu. O porrete do Tuvira (perobinha asseada!)
deputado já era soberanamente manifesta. Não cantou duas vezes. Dois gritos, que pareceram
porque fosse tão somente mamparreiro : é que dois urros. Dois faniquitos curados com esfre-
era também duma obtusidade fradesca, o pobre gações, E dois; mezes de- hospedagem por conta
do Chico. Se era para ir á venda lá do Manuel do governo á espera de julgamento. E' pleo-
portüguez, comprar dois litros de farinha ou um nasmo dizer-se que foi unanimissímamente icom
garrafão da azulada, — «Ara, pai, mande 0 Dictol» as 17 letras bem espichadinhas) absolvido. O
Ò Dieta, um esverdinhado, enfermiço rebeíito Dr., Sabugosa Trancoso, advogado do réu, um
da prole maleiteira do Jucá Tuvira, era a taboa bacharelzihho ainda em cueiros, com s s sibi-
de bater roupa do Chico. Pagava o pato sempre. lantes e l l de engasgar, com infinitos "O aç-
Temperamento submisso, duma docilidade passiva,- oitado presente, senhores jurados . . . " <cO„meu
era um joguete nas mãos do irmão lambanceiro. nobre collega representante do ministério publi-
; Óbrigava-se a tudo resignadamente, sem um mur- co . . . " e outras chapas gastas já pelo úzo, ao
cho protesto, vencido. E era por isso tido em terminar a peroração, pediu para o seu consti-
casa como um songamonga, um estúrdio,, um tuinte a absolvição, " . . . como era de justiça,
lorpa refinado. senhores jurados, porque o Sr. José Polycarpo da
— O Chico? — «Rapaisinho sarado este meu Silva Tuvira, lidimo representante, esteio máximo
fio ! . . . » impava o Tuvira ao vel-o de estillin- da sociedade sertaneja de Santo Antônio do Paú
d'Alho com um nobre gesto de franca repulsa ás
•gue em punho, feroz matador dos tico-ticos das
obcenidades do famanaz capoeireiro, desafrontara
redondezas. O pae trazia já de o\ho uma pica-
os brios das tímidas piicellas tos Snrs. jurados
pausinha para elle quando entrasse o anno novo.
236 A NOVELLA SEMANAL

entreolham-se . . . . ) Santantoniopaudalhenses !! " de grandes chalés cruzados na frente e creanci-'


Quatro horas depois, o Tuvira, num anguloso nhas macilentas penduradas nas carnes flacidas:
e melado bucephalo trotão, lá partia, póc, póc, dos peitos terrosos, rezava o terço em ladainha
póc, póc, para os seus domínios saudosos. e fazia promessas. A ladainha, já se vê, era ura
choromigo arrastado, dormente, enervante, como
Foi assim, aos quinze annos, á sombra da
sóe ser tudo que dos gorgomilos afora deixa o
fama avalentoada do pae, que o Chico foi cre-
Jeca sahir como anemêdo de musica. Sons har-
ando azas e já. de vez em quando, ante a resi-
mônicos ? Não! Guinchos. Jeca, meu Deus!
gnada covardia dum Jequinha humilhado, riscava
nem assobia ! . . . ,
com a ponta da perobinha o pó da estrada, cus-
pindo aò medroso a ultima, victoriosa injuria : A ladainha . . . Nisto, rompe da porta a voz
"Mediô, porquera! . Lavo mio ! . . . „ E nesse dia cansada do Beréva : "Achei o hóme, moçada ! „
contava ao pae, engasgado de gozo, a façanhuda E do quarto, como si estas palavras fossem o
scena : " . . . Ranquei do porrete e invisti ! . . . desfecho esperado dos pediíoriosaos mil e um
tudo abriu, pae ! De lapiana na mão, lumiàno ! santos da Folhinha, grandes gritos estridentes par-
Ché ! . . . „ E o Tuvira babava-se . . . . tiram : "São Bão Jesuis me ouviu ! Bamo nhá
Rita, num chore ! Eu nuu dizia pra mecêis ? ! . . . "
Dois annos depois, numa tarde triste de agosto, E vieram de roldão, na ància incontida de far-
cheia da fumarada suffocante das queimadas, o tar-se de pormenores que as acalmassem, que pur
Tuvira não voltou á casa como era costume. zessem fim á angustiosa espera de três dias in-
Procuraram-no debalde nas redondezas. Foi um findáveis.
amigo á cidade : talvez que o caboclo, mesmo sem O Beréva murchara. E encolhido, amarrotando
ser dia santo ou domingo, tivesse querido mata nas mãos o chapéu domingueiro, ante a andada,
o bicho na villa e, n'algum fecha desse com os angustiosa, imperativa pergunta da mulher do Tu-
costados no xadrez. Não sabiam delle, ninguém vira, abriu, num gesto* largo os braços, desem-
o vira. Voltou o portador com a desalentadôra buchou : — Tá lá no brejão do Caviuna,...
nova. Ao passar pelo brejo do Caviuna, o animal,
fedêno ! ! "
esfalfado, enchia duma água barrenta o vazio, a < ' t

grandes goles chupados, quando o Beréva, num Nhá Rita desabou como um muro que se ten-
terror que o immobilisara, deitando esgazeados- desse na base. Teve, momentos depois, "um máu
olhares para os lados, parecia cercado de visões suecesso". E no dia seguinte, os paudalhenses
aterradoras. tiveram um espectaculo inédito : a caminho da
E' que no ar parado do brejal passara, numa villa, para o descanço eterno na vala commum, lá
lufada, a exhalação pútrida dum corpo em de- seguiam, estrada afora, no balanço compassado;
composição. Nãó havia gado nessas paragens. duma rede encardida, os corpos da mãe e do li-'
De mais a mais a tiguéra queimada do Tuvira lho ; adiante, numa carroça emprestada, o corpo
não ficava longe dali. E pela imaginação apavo- disforme, violaceo, nauzeante do Tuvira, empes-
rada do caipira em tremuras, surgiu logo como tava o mormaço, afugentava os curiosos." Só os
uma coisa incontéste, a verdade terrível : Era corvos, famintos, vorazes, insistentes, não pare-
elle ! . . . ciam conformar-se com o banquete que lhes es-
capara 1'. . .
E voltando a si do estupor que o tomara, deu
O Bastiãosinho,, caboclinho máu, aquelle 1
de esporas e abalou desabridamente . . . .
Cáe o pano agora, como nos dramalhões anti-
Na casa do Tuvira, entre a fumarada suffo- gos. E este final de historia, que se poderia
cante dos cigarros, um cheiro activo de caninha quasi chamar também "Alguns annos depois" co-
errava no ar. O ultimo garrafão que o Dicto mo o celebrado romance de Dumas, não tem o
comprara ná venda do Portuguez, já s e fora. E desfecho brilhante dos do grande e fecundo ro-
pelos cantes, de cócoras, cuspilhando de esguicho mancista fidalgo. Epílogo bocejante. Culpa dos
para'os lados, sombras vagas moviam-se na es- Jecas. E' lá possivel hoje, depois que o Lobato
curidão da sala. Vinha do quarto ao lado, de tirou, com o bisíuri da observação, de ''Sobre a
envolta com as lamentações arrastadas do Chico, nudez forte da verdade, o manto diaphano da
a funda magua da viuva: "Tenha dó de mim, phantazia" — reeditar "Iracemás", "Ouaranys",
meu Deus! Ai, Jesiíis . . . . " E era tão compas- romantisar a vida dos Ubirajaras modernos, -J
sada, tão monótona a toada dolorida, que uma ' pasto inexgotavd de vtrminoses, amarelões, anki-
somnolencia invadia, pesava no ar. O muiherio, lostomos ?
A NOVELLA SEMANAL 237

Ah ! Alencar ! Macedo ! Quanta pílula dourada Não houve dito picante, allusão ferina, picuinha
nos destes ! mordente que nãó estravasasse. Chafurdaram-lhe
A vida do Chico, após a morte trágica do pae, a vida, châpinharam-lhe a reputação. O Chico,
é façil prever-se o que tenha sido. Faltou-lhe a moita. Por fim, deram tréguas á campanha sór-
sombra protectora do Tuvira : foi um desmoro- dida e torpe. A mátiíla, á falta de revide que a
namento. Por outro lado, nos arraiaes inimigos, açulasse, debandou indemne. Tréguas forçadas.
foi festejada a quentão a limpeza do mandachuva Ninguém luta com a própria sombra
'da zona. Muita raiva represada transbordou, Exilado pelo desprezo ambiente, num isola-
muito orgulho humilhado explodiu. Não houve 'Hiento raras vezes quebrado por antigos amigos
então, por toda aquella redondeza, quem não qui- de seu pae, o mísero, roida a pequena herança
zesse tirar o ventre da miséria. De 30 passou o paterna, conheceu mais um inimigo: a miséria.
Chico a 8. Levou pés-do-Owôido de estalar, mu- E vinham-lhe á mente, então, os saudosos' tempos
nhecaços puchâdOs á sustância, safanões afuci- da sua meninice, a casinha varrida, rebocada de
^nhantes . . . / novo, a meza farta, a ruidosa alegria do Tuvira,
Culminou tudo isso uma sova a chicote, entre Como isso tudo se fora tao bruscamente epilogar
a risota escarninha e os dichotes zombeteiros da numa emboscada icoyarde, tocaia armada pela as-
assistência: "Ué, Chico 1 Quedêlle as farófia ? „ tucia brutal duma alma mesquinha! - A sua feli-
Xingue, nhá mãi agora, mardito ! '' , cidade se dissipara ao sopro de morte que dissi-
E o Chico, enfiado, murcho,- encolhido, aco- para no brejal do Caviuna, a fumaça assassina.
vardado, a um canto, métteu dó aos circumstantes: Nasceu-lhe então no peito, como labareda que
"Chega, Bermiro ! Isso tamêm num se fáis!..." irrompe dum palheiro, um ódio surdo, implacável,
Desd'ahi era uma indignidade bater no Chico. feroz, contra o matador covarde de seu pae.'
Era degradante. Quem, fòi que disse que Jécá Egoísta mesmo na vingança, elle queria des-
não tem dignidade ? forrar-se, não do assassino que o orphanara ao
Os factos respondem por si. E este é um caso 17 annos, mas daquelle que o privara da abas-
• isolado. A verdade é que, aos vinte annos, o es- tança, até então tão commodameute gozada e que
tiolado rebento a que faltara a seiva forte de o fizera alvo, agora, da chufa e da risota escar-
tronco uberrimo, abatido á trahição na grota es- ninha daquelles a quem elle dominara outróra, á
cura duma restinga — morreu em vida, mas de sombra de quaesquer riscos, sob o prestigio con-
morte moral. vincente da fama avalentoada do Tuvira. Obce-
i E morreu porque casou. Casou . . . . Casou cado por essa idéia, ruminóu de mil modos, no
vcom a Isabézinha, filha da "Reboleira", para que isolamento soturno da tapera, o remate brutal da
se tivesse mais uma vez a confirmação ~ do ^que scena antegozada. E um riso diabólico lhe arre-
reza o mais sábio brocardo popular : "Filho de gaçava os lábios sedentos ; e ficava a olhar, ran-
peixe . . . . " gendo sinistramente os dentes, um ponto escuro
E como nesse tempo já Santos Dumont tinha do quarto : lá estava, como a sua imaginação o
revolucionado a sciencia do Ar e contornava ante desenhava, o quadro dantesco : de borco, escabu-
os basbaques de Pariz a Torre Eiffel na sua "An- Jando no pó que o sangue espastava, uma sombr
tOniette", e já tivessem chegado até Pau d'Alho vaga, que num fio de voz, pedia água.
as zabumbas da Gloria" patíicia e as conseqüentes E elle ia espojar-se, espostejar o corpo á la-
curvaturas da Europa ante o Brasil, nos versos.do nhadas, canibaleseaniente, horrido e sanhudo . . .
'defuncto Eduardo das Neves, julgou de bom- aviso Tropeçava . ....'' E offegante e febril, porefando-
. a trefega loifeira, dar de azas também . . . E lhe do rosto, em camarinhas grossas, um suor
numa noite estrellada, feita de encommenda para gelado, quedava-se aparvalhado, hirto, bestiahsado.
os prirhordios de romances em brochura, com fi- E ás vezes, quando o cansaço vencia a agitação
gura ria capa, a dez tostões o volume, — em- que o tomava e elle conseguia conciliar o somno,
quanto o Chico, espapaçado, roncava de lado, ella já pelas frinchas do reboque cabido, viilha um
abalou sorrateiramente nos braços dum soldado , retalho vivo dó sói beijar-lhe a grénha hirsuta....
de policia
Elle, coitado, deixou-se estar. Choveram re-
moques, chufas, escarneos babados de gozo á Eu sou fataüsta. O nosso destino, mal aporta-
desgraça humilhada do Chico. Cantaram ao vio- mos á vida, traça-õ- indeleveímente o Summo
lão, com denguices na voz, o caso escandaloso. Creador: e tanto podem nascer para o mundo
238 A NOVELLA SEMANAL

dum mesmo santificado connubio, banqueiros res- queire de tiguéra, isso sim, era o que lhes im-
peitáveis e respeitados bandidos, homens d'alma la- portava. Numa cinzenta manhã de sexta-feira,
vada e límpida consciência ou requintados canalhas. uma noticia alvoroçante agitou a pasmaceira ge-
Não ha fugir: a rota traçada pelo dedo invisível ha ral da pacata Pau d'Alho: O Bastiãosinho tor-
de ser palmilhada. E' por isso que a vida é cheia nara á villa. Já não tinha agora aquelle ar aca-
de surprezas. Homens de reputação illibada e poeirado, petulante e rixento d'outróra. Do Se-
caracter impolluto acabam, não raro, como rato- relepe antigo só conservava o pernóstico bigodinho
neiros vulgares ; facinorosos bandidos fazem de retorcido e a paixão racial pela modinha e o vio-.
heróes de romance ; homens de vida intensa e lão. Não viera só : e isto era o que mais es-
trabalho activo, alquebrados ao peso das agruras candalisara as recatadas matronas paudalhenses.
no mourejar quotidiano, esmolam famintamente Trouxera de braço, rebolante e pimpona, uma
uma códea de pão, na velhice honrada e vene- espevitada figura rescendendo á Frèr d'Amú na-
randa. E, ironia da sorte ! — ladravazes trafican- cional. E logo que alguém os viu, uma vóz es-
cantes, para quem a honra é um peso incommodo ganiçada de mulher bisbilhotou p'ra dentro:
e a- dignidade um mytho, — ostentam a sua opu- "Venham vê gente ! A delambida da Zabé . . .
lencia regalada e o seu cynismo victorioso, so- Chi ! Que canaice! . . ."
berbos de empáfia e damos-lhes Excellencia ! . . . " A scena se repetiu. Ferveram commentarios
Nem sempre, se vence na vida tendo o Bem em torno do caso. "Ah ! póvre do Chico!"
por divisa e a sã Morai por dogma. Isto é velho Era com effeito a Izabézinha do Chico, que nu-
e sediço : e antes que eu descambe a pontificar ma noite enluarada quebrara os sagrados laços,
no intrincado cipoal da philosophia de algibeira, numa reles aventura com um soldado. Pou-
reatemos o fio da historia, que, com philosophia cos mezes depois elle a deixara, como traste
e tudo, quasi nem vale a tinta . . . de difficil transporte. Ella ficara, então, como
náu desarvorada, entregue aos caprichos da sorte.
Viveu ao léo, curtiu angustias amargas, jungida :í
Pois é assim : o homem põe e Deus dispõe... vida aventurosa e errante que herdara pelo san-
"O que tem de ser tem força ! " gue e pelo exemplo. Um acaso fortuito os apro- __
Vai dahi, o nosso Chico, com uma intuição ximou. Desde ahi não se largaram mais." Ella,
naturalissima, fundamentada em exemplos da pró- precavida e cançada, confiou-se ao braço forte do
pria ascendência, resolve, num golpe á gran-gui- amante. Elle, temeroso porque suspeitado, logrou
gnol, fazer-se o continuador invejado da gloríóla alliar-se a quem poderia, por despeito e vingança,
paterna. Nada detém o curso da vida ; nem a denuncial-o. O crime busca,o crime: çompleta-
morte, dizem os que crêm na transmigração das ram-se, pois.
almas e na vida futura. Assim viveram largos annos. Um dia, passou-
E a roda da vida; — motu-continuo donde nas- lhes pela idéia a imagem saudosa da terrinha dis-
ceu a roda loterica — na caprichosa indifferença da tante. Que saudade ! Um vago receio o tomava:
sua engrenagem silenciosa, vai extrahindo ás de- e si o prendessem? Mas que provas havia? E
zenas, os bilhetes premiados, (os a quemla fortuna quem tinha lá interesse em demmcial-o ? — O
sorri) aos milhares, os bilhetes corridos, como diz Chico... |
o vulgo (os que falharam na vida . . .) e os que, Mas esse, acovardado, pusilânime e cretino, não
muito sovinamente nos dão o mesmo dinheiro... lhe dava cuidados. Os demais tinham até feste-
São aquelles a quem o zombeteiro rifão satirisa : jado a quentão o trágico fim do Tuvira. Alem
"Quem nasceu p'ra vintém não chega a tostão..." disso, de antemão contava como o descaso das
O Chico queria chegar. A Sorte, que é varia autoridades da comarca, que só tinham rigor para
e inconstante, porque é bem feminina, deu-lhe os casos políticos, alheios a tudo que não fosse
a mão. ferir os interesses da camarilha absorvente. Ella,
Era em agosto. Um cansaço bocejante entor- por seu lado, conhecia á farta o marido. As ul-
pecia os membros, convidava ao repouso ou ao timas duvidas se desvaneceram. E arranjaram
banho frio estimulante. Feitas as roçadas, os Je- as malas.
cas deitavam-lhes fogo e iam socegadamdnte mam- Nessa noite, na casa do Ventura, ia animado o
parrear em casa. Pouco se lhes dava que o fogo bate-pé. No lar^o terreiro da frente, á luz pra-
iasaciavel lambesse em labaredas vorazes o mata- teada duma bojuda lua cheia, um grupo bulhento
gal visinho. A sua quarta de terra, o meio al- sapateava ao violão. Num claro aberto ao meio
.A NOVELLA SEMANAL 239

o Serelépe, de collarinho celulóide e gravata ver- sahindo. "Té aminhã, minha gente ! " E o Se-
melha borboleta, gemia, em nostálgico descante, relépe, repinicando ao violão uma pólkinha salti-
o exilio donde tornara. tante, rumou para casa com a companheira..
Andei mundo, corri terra, Foi se fazendo silencio. De longe em longe,
'tive até no Paraguay, numa volta de caminho, os que se separavam
Deixei os amigo veio davam os "Té aminhã" do costume. O vento tra-
Mas agora . . . nunca mái !
zia, de vez em quando, o écho amortecido dum
E um caboclinho fanhoso, o literato cia terra, tiro á distancia, praxe costumeira de fim de festa
dado a leituras nas horas vagas, com rasoavel na roça. As estrellas fugiam ariscas aos primor-
estoque de versos de Vitruvio, proezas de Sher- dios dum dia de canicula. Pela estrada deserta ia
lock, e pieguices de Macedo, a suspirada aspira- o par cantarolando. 'Scenas rememoradas, im-
ção de toda a lindeza de Pau d'Alho, — pi- pressões fugitivas obrigavam de quando em quan-
garreou e, do a comentários jocosos. Um longo silencio
Assúca preto e mascavo,
depois.
Só se compra no varejo ;' Estavam cansados, dérreados, anciosos por se
•«Nunca mais >" já disse o corvo pilharem em casa, na larga cama de colcha de
Quando perdeu o seu queijo . . .
retalhos e fronhas com monograma. Uma ma-
Toda a roda riu da alhtsão mofina. O Sere- céga, seguida de arbustos cerrados, fez-lhes ver
lépe deu de hombros e tornou •: que estavam chegando. - Isto animou-os. Deram-
Ninguém diga que num vórta,
se os abraços. Elle ertlaçou-a pela cinta, cari-
Quano arruma a troxa e sái. nhoso, ella cingiu-lhe o pescoço, amorosa. E ro-
Quero morre nesta terra bustecidos pela paixão que unira os seus destinos,
Onde tenho mãi e pai. — plangente, melodioso, evocando agruras pas-
E a roda, num sapateado vivo, repetiu, pían- sadas, entoaram em dueto um descante em
gente á copia final: surdina:
«Quero morre'nesta terra Quano chega minha hora
Onde tenho mãi. e pai . . . > Um só desejo me anima ;
Na cova de sete parmo,
E o fanhoso vate, sem esperar pela 'resposta, — Eu embaixo, ella em cima . . .
alteou a vóz e cantou : Não tenho medo da morte
. Quem arruma a trouxa e sái, Seja a mais feia que fô;
E' que tem negocio sério ; Quero i depindurado
Eufconheço um carniceiro Nas azas do meu amô ! . . .
Que já foi barão no império . . . E num movimento brusco, peito a peito, uni-
Jogado quano é matrêro, ram com força os lábios se,dentos . . . .
Pra joga prepara o maço, Da rnacéga ao lado, um urro de íéra a quem
Serelépe é bicho esperto,
Mas um dia cái no laço . . . . tomaram a preza, partiu.
E os dois canos duma garrucha, duma só vez
"Eta [cabocro d'espirito ! Chupa truco, Bas-
despejaram, num estrondo de roqueira, a metra-
tiãosinho ! „ E este, apontando para a compa-
lha assassina. E antes que se dissipasse a fuma-
nheira que o olhava embevecida, chorou no pinho:
rada que suecedeu ao clarão do fogo, um vulto
A muié que agrada os lióme,
Tem sempre cintura fina ;
cahiu sobre elles. Á luz pallida das ultimas es-
Serelépe cái no laço trellas — mudas testemunhas do nefando crime,
Se for sorte, se for sina . . . . — um brilho argenteo faiscou no ar . . .
Quano chega minha hora, Mas o abraço durava . . . A morte queos.sur-
Um só desejo me anima . prehendera num arroubo de amor, inteiriçara-lhes
Na cova de sete párnio,
os membros. E rijos, tezos, hirtos, como'um pi-
• — Eu embaixo, ella em. cima . . . .
nheiro que se abate, os dois corpos tombaram.
Não tenho medo da morte
Seja a mais feia que fô . . . . E sobre elles então, naquelles corpos que a
Quero i depindurado morte unira nnm abraço titanico, fundidos num
Nas azas do meu amô . . . . ultimo beijo, unificados para a viagem eterna,
nas azas do meu amô ! . . . . num furor iconoclasta, satânico, espantoso, o her-
É o bate-pé ferveu em roda viva, até que pe- deiro das glorias paternas, cevou-se na vingança
las três da manhã, os primeiros parceiros foram hedionda. O facalhão brutal com que o velho
240 A NOVELLA SEMANAL

Tuvira já abatera no moirão do terreiro as rezes


passivas, estraçou a lanhadas, na sanha horrenda
da desforra covarde, os corpos exanimes.
E o abraço não se desfez. E na bocca escan-
carada, hediondamente disforme, do Serelépe, que
a claridade diffusa deixava entrever, pairava, num
riso escarninho e mofino, a -alegria derradeira do
que baqueia I N„ A
nas azas do seu amô
Meu irmão è eu somos estudantes de Enge-
nharia. Chamo-me Pedro, elle se chama Paulo.
O resto é pouco. Enoja até. Gostamos muito de dansar. Isto depois de ter-
Realmente, não é uma pilhéria o jury ? terão mos freqüentado uma Escola de Dansa que nos
sempre os honestíssimos srs. juizes de facto a custava 6OS00OO por mez, o que representava um
isenção de animo, a clarividente viz|o dos factos, desfalque enorme na mezada. Fomos, outro dia, '
a integridade moral consentanea a tão melindrosa a um baile no Trianon, em beneficio não sei, de, •
missão ? Ha os que vão ao jury como quem vai que casa de caridade, para recolhimento de crean-
ao theatro : si a peça é boa, mas de um desa- ças pobres. Paulo valsou com uma moça bonita
fecto, quando a não vaiam, condemnam-na com que lhe deitou uns olhos compridos. Foi quanto
o frio indifferentisnio com que a recebem. Si é bastou para entabolarem um namoro que, por
má, mas o auctor é da rodinha d'elles, fazem de desequilibrado, não me pareceu gracioso. Passa-
cláque e estrugem aplausos. Epílogo' corriqueiro : ram assim "até, á madrugada.
Doze reses escolhidas a dedo pelas defeza, mais Ao nos retirarmos Paulo me disse que era ella
um palavriado ôco despejado em jorros, berrado filha duma das famílias mais distinctas da Pauli-
sobre a sonnolencia enfastiada dos srs. jurados, céa. Chamava-se Marianna e morava não. sei em
e o juiz pingou o ponto final do caso. E por que palacete da Alameda Barão de Limeira.
unanimidade, está claro, que no alto conceito dos Pobre rapaz! Queria por força ir visital-a,con-
seus julgadores, o nobre gesto do Chicão-Duas- forme ella o havia convidado. Acabou pedindo-
Mortes, fora uma desaffronta de honra ultrajada me que o acompanhasse: — Sem ti não vou,
e um nobilissimo exemplo de amor filial.. . disse-me. Accedi. Quando deixamos o palacete
Da cadeia para a casa do chefe: um terno da Bella procurei dissuadil-o.
novo, um par de botas, uma peléga de 200. Cabo — Olha, não sejas tolo. A moça é formosa, é
eleitoral de l.a. Temido nos arraiaes da opposi- rica, é de bôa familia, é tudo quanto quizeres,
ção; figura indispensável, obrigatória, necessária, mas não será nunca tua esposa.
de toda situação dominante que se preza. O — Isso dizes tu... e quaes são as razões para
Chico venceu. tal affirrnares ?
Não desanimem os que bracejam no mar largo — Eu ? motivos ? . . . Ora bolas ! eu sei.
da vida, sem a visão confortadora dum escalér — Sabes como ?
salvador. O exemplo é tentador. Força é se- — Escuta, quero ser franco: tua pretensa na-
guil-o. Vivam os magarefes ! ! morada é para comtigo duma indifferença quasi
— Que é que resmungas ? — Moralidade ? — desdenhosa...
Ingênuo que és! "Moralidade ha nas fábulas ! — Desdenhosa? i
Na vida, nem sempre. E é pena." — Desdenhosa. Não lhe viste aquelle modo de
Tietê. perguntar: — Sim ? . . . E' ?... E', é ?... - - a tudo
DIMA.S CAMARGO STEIN quanto lhe dizias ?
— Qual! historias ! Vá sahindo ! São elegân-
cias que não comprehendes. A própria indiffe-
rença é o encanto das mulheres.
— Bom, se é assim, faze o que entenderes.
Aquella sua idéa a respeito da indifferença das '
mulheres lisonjeou tanto a sua vaidade de poeta
(porque é um poeta) que, ao outro dia, veiu me
trazer um soneto que terminava por este verso:
A NOVELLA SEMANAL 241

Indifferente, má, quasi divina». Uma divina indifferença. Não riu, não sorriu
não choiou, não cahiu desmaiada, não sentiu a
II
menor emoção; disse apenas: — Esses estudantes
Não digo mais nada; um mez depois da pri- são uns infelizes; qualquei italianinha os perde
meira visita Paulo era noivo da senhorita Marianna. Divina, pois não achas ?
Fiquei boquiaberto, mas, nem por isso, duvidan- 1
S. Paulo 1921. JORGE FALLE1ROS
do menos. Pudera não! Se a familia havia
pedido prazo até ao dia da formatura !
III
O contracto que acabo de narrar se deu ha
uns dois mezes mais ou menos. Hontem assisti
ao casamento do meu irmão. Não houve outra
assistência além da minha. Fizemos a cousa ás
escondidas.
— Como assim? perguntará o leitor— pois a
PEITO-LARGO
noiva não tinha pedido um prazo enorme ? Eram decorridos alguns anos dês que o Guedes
De facto; mas é que elle não se casou com a comprara uma escassa bem que fértil gleba na,
noiva. Casou-se com uma pequena italiana, cos- sesmaria. "dos Cedros," quando lhe nasceu a Es-
tureirinha corriqueira. mera, "Merínha," consoante tratamento casei-
Paulo tinha o máu costume (por, mim varias ro, que era o alvo dos seus mimos, o ai Jesus!
vezes reprehendido) de ir estudar no Largo do da casa. . ,
Arouche porque o nosso quarto é um tanto es- Ajudava-o valentemente nas roças o filho mais
curo. Ora, aconteceu que a italianinha passava velho, o Neco, que já ia pelos vinte, com uma
por ãlli todos os dias, e elles se entreolhavam mu- notável estatura, torso de íutadpr e pulsos respei-
tuamente. E, como o Diabo escreve torto por táveis e tal arcabouço que bem justificava a al-
linhas direitas... o resto o leitor já sabe. Tam- cunha com que mais tarde vieram a nomeá-lo.
bém o pae delia veiu a saber e quiz que a policia Sua índole é ações, nada prenunciavam então
também o soubesse. Esta forçou meu. irmão ao que justificasse o renome e por completo briga-
casamento. Uma desgraça! Fiquei desconsolado. vam com esse sugestivo e lendário nome de guer-
—- Mas Paulo, — disse a meu irmão — que ra : era um borrêgo simples,' morigerado e timo-
fizeste? Deitaste a perder a tua honra, a honra rato. Se ia a festa,, como sofrível folgaz, e moço
da nossa familia, todo o teu futuro... que era, jamais alguém o vira excedesse em be-
Como, porém, elle começasse a • chorar como, bidas, tomar de cartas para jogar dinheiro ou
uma creança, de tal maneira que fazia dó, tive rentàr a qualquer. Ia aos terços e motirõés, sem
pena d'elle. Consolei-o: prescindir de convites, e tal era o seu porte nes-
— Mas afinal.1., agora... que diabo! sas reuniões, como em toda parte, que chegavam
a cumprimentar o Guedes pelo filho que possuía,
IV o qual era por outro; pais apontado á prole co-
Hoje estava eu fingindo esperar o bonde no mo modelo. '
Largo dos Guayanazes, quando me encontrou um Ha peroração das paternais admonendas suspi-
collega de pensão. ravam :— Se Deus me houvesse dad i um filho como,
— Estavas esperando o bonde? o Neco!,
— Não. Estava te esperando a ti para prosarmos,. Àquele sim! Trabalha em casa toda a semana
Não tínhamos prosa. Passou por nós uma e aos domingos, antes do pasaeio ou dâ caçada,
rapariga. vai á missa. Não ser recolhe para o quartinho á
— Divina, pois não? — fez-me elle. noite sem a bênção do pai, para que tenha um
— Deixa disso! — respondi com uma idéa fi- bom sono e seja feliz. Ali está um rap?z ás di-
xa. Só houve na terra uma mulher divina. reitas !
—. Qual terá sido, Deus de bondade! Acompanhava a irmã á missa ou a algum vi-
— Foi a noiva de meu irmão no momento em zinho que reclama -sua presença dela para que
que soube do casamento d'elle. desse uma demão ás panelas Ou ao' forno, se o
— Estás maluco? cumprimento de um voto > religioso determinava
— De facto, aauella indiffereaa»wjgL divina. para algum sábado ou véspera de santificado uma
242 A NOVELLA SEMANAL

ladainha em oblata ao santo respectivo, sucedida lhou de casa em casa que o decoro da casa do
da ceia e danças consuetas. Guedes fora conspurcado pelo Dito e que a pobre
Reconhecidamente hábil, péchosa em todos os Esmera ia ver-se constrangida pelos tentáculos de
•seus dons caseiros, a moça já aos dezesseis anos um dilema: a casar-se a todo transe com o chas-
era admirada pela diligencia e pelo esmero com quete do rapaz que a desdenhava, ou a eivar pa-
que, bem justificando o seu nome, se desobriga- ra sempre a honesta velhice do pai e as honro-
va de tais tarefas. Caseira e dedicada aos seus, sas, bem que humildes, tradições da familia.
era parca de sorrisos, avara de suas graças, co- Avultava-se a mu rmu ração odiosa, insinuando
medida em palavras, mantendo onde quer que que Esmera já não podia agora dissimular a pres-
aparecesse a mais irrepreensível e louvável.com- sa, talvez a leviandade com que afiusara nos pro-
postura. testos do noivo infame: sua falta, dia a dia, se
Seis meses, se tanto, havia que se mudara para tornava conhecida, evidente.
os "Cedros" uma familia procedente de municí- Pela manhã de Maio, eneblinada e fria, a pe-
pio cercão. As visitas usuais, a reciprocidade de quena e desordenada estação ferro-viária, de pou-
serviços em motirões, ocasionaram para logo a co levantada no seio da mata, vinha se animando,
aproximação das duas famílias. com a aproximação da hora em que devia passar
O Benedicto, "Dito", como lhe chamavam em o único trem diário de passageiros que a visitava.
casa, filho dos nossos vizinhos, em pouco acama- Chegaram fazendeiros, de chapéu de palha,
radou-se ao Neco, que a miúdo o levava para brancos, envergando sobretudos, rebuçados com
casa, aos sábados, ingressando-o até á cozinha, cachinés e repetenando-se nas almofadas do tróli;
onde conversavam junto ao fogo, conversas que ora um cavaleiro moço, de botas e rebenque,
muita vez eram continuadas no quarto do hospe- precedendo ao pagem condutor da mala e que,
deiro, onde o hospede evocava saudoso os encan- recebia às bridas ao apear-se o patrão.
tos do "Arvaré", como êle chamava á cidade pau- Alguns, trigosos e impacientes, iam-se abeiran-
lista, estropiando-lhe o nome., do da bilheteria deserta, a contar dinheiro, tiran-
Esse acotiar á casa do Guedes o foi, dia a dia, do do bolso do colete os níqueis para perfazerem
rendendo aos encantos de Esmera e a sua apro- o custo da passagem. Ociosos passeavam a plata-
positada guapice e rebuscada destreza ao trabalho forma, indiferentes, em passos á toa, e pretas
grangearam-lhe em breve a sua confiança. Assoa- quitandeiras, descobrindo taboleiros portáteis, ex-
lhou-se pelo bairro que a menina deixara de ser punham, junto á parede do edifício, as suas
a princeza encantada dos contos e topara final- mercês.
mente homem que lhe baldasse a timidez e lhe Um silvo possante, novelos de fumo entrevistos
frustrasse a esquivança. Diziam-nos até noivos. na próxima curva e, em uma gradativa conten-
Decorrido o tempo preciso para que se colhes- ção de marcha, o comboio abeirou-se, ruidoso, a
sem as informações sobre o pretendente, período resfolgar. Um rapaz vestindo talvez a sua melhor
de observação que se impusera o velho, foi o e mais nova fatiota de brim, que desde pela ma-
r
'Díto" admitido a participar dos trabalhos, penas nhã aí estava, já de posse da passagem, tomou o
e alegrias da familia como seu futuro membro. estribo de um carro de segunda, entrou, sentou-
Já o vizinho se lembrava, queixando-se, de que se junto a uma janela, cujo vidro desceu, e pôs-
"quem casa uma filha ganha mais um filho e se a olhar para fora, com um ar de satisfação e
quem casa um filho perde-o." Era o que lhe ia tranqüilidade.
fazer o Guedes, usurpando-lhe os direitos e talvez Um cavaleiro a meio galope sustou o animal
a afeição do filho. junto á cerca que guarnece a linha e, apeando-se,
Falava-se em marcar o dia, quando as visitas varou pela estação, abrigado por um espesso pon-
do noivo se foram espadando, até que de vez se cho-pala, cuja gola levantara até o queixo. Dirí-j
cortaram. A' menina foi-se-llie crescendo o re- gindo-se para o trem, defrontava conhecidos que
traímento, tornando-se mais recolhida, rindo-se o cumprimentavam :
raras vezes. — Olá, "seu" Neco! Então por aqui? Bom dia.
Deixou de sair, declinando dos mais instantes e — £' verdade. Bom dia . . .
-amáveis convites. v"" O viajante moço, debruçado á janela, ao vê-lo
E a choquice deu-lhe para a palidez: parecia aproximar-se, intimou-lhe com arrogância:
doente. — Pare aí. Acho bom você não se chegar
O boato malévolo, o abominando,-, onsta, espa- muito, não. >
A NOVELLA SEMANAL 243

O Neco, com um amargo sorriso, parou, obtem- Na, estação, antes que acodisse a? ação e a ini-
perando persuasívo e calmo: ciativa ás duas únicas praças de policia presentes,
— Que é que você receia, Dito ? Não brigo já o Neco, pouco antes apodado de poltrão, desapa-
com ninguém, como você sabe, e não trago ar- recia pela estrada arenosa paralela ao leito da linha.
ma. Olhe. E, tirando as mãos de sob o pala, agi- Mais tarde, quando foi a júri, aureolado pela
tou-as abertas, acrescentando, conciliador: simpatia popular, aclamavam-no e os jornais Ihe-
—Í Vim só para conversarmos Um pouco. En- faziam referências cheias de subtítulos, chamandõ-
tão é certo que se vai embora? lhe Neco Guedes, o Peito-largo.
— Para Botucatú. Estou entejado do sertão - ' indiferente a essa significativa antonomásia, o Ne-
Você embarca também ? co acareou a estima, a admiração e o respeito gerais.
— Não. Lá em casa estão chorando, por amol- Peito largo é hoje, até onde vai a sua fama,
de você... E o casamento, Dito, não sai mesmo ? simultaneamente temido e bemquisto.
Minha irmã como fica? Venda a que elle chegue deserta-se logo e a
—-Ora essa! Fica como era: nada lhe fiz, não sua presença desfaz rusgas' em começo, é portado-
lhe tirei nenhum pedaço . . . Casa com outro; há ra de reconciliação e de ordem. No entanto con-
tanto rapaz por aí. tinua sendo êle em casa o calado, o pacifico, o
O Neco voltou o rosto, por esconder a palidez, cangueiro de outros tempos.
e continuou: Pirajú (S. Paulo) 1898. CARLOS DA FONSECA
— Não é isso. Você bem sabe - e está se fazen-
do desentendido. Merinha não pode casar com
outro. È, aproximando-se mais, perguntou em voz '
frouxa, com um tom de piofunda angústia:
— E . . . a criança, Dito ?
— O'filho? Tudo se remedeia: você casa e
leva-o para criar. Não gosta de um sobrinho ?
Curiosos, interessados no dialogo, saboreando
o cômico e o inédito da scena^ os circumsíantes
sentiam-se boquiabrir ante aquela incrível poltro-
TIO GA IEL
Chovia desregradamente e as águas cahindo no
neira. Um viajante, apoiado ao "break", retirou-
inferno do monjolo velho, enchiam de clamores
se cuspindo, enojado, a murmurar: '
aquella noite escura. Com as barbas derramadas
— Apre ! Já é não prestar ! Tamanho homem ! sobre o ponche azul, mãos espalmadas para o ca-
Quem ouve destas e nada faz . . . lor da lareira, pois que a estação era de inverno,
O Neco baixou a cabeça trêmulo, meio cego, entretia-nos o nosso pae, recordando o seu tempo
livido, cruzando os braços ao largo peito, sob o de moço, quando enganava as velhas por causa
pala; e, como se calasse, o interlocutor pergun- das jovens e usava gravata de laço longo para os
tou a escarnear: exames em Palácio. Não fora songo e os"seus
— Então, é só ? Olhe que já houve signal de olhos, rebrilhando nas orbitas-fundas, diziam muito
embarque... em abono dos feitos que nos ia narrando. As
/ — E minha irmã? P e n s e . . . montadas e os novilhos nedios da chácara do
— Não tenho tempo de pensar. Adeus í Quer Pary; as fugas do collegio dos educandos em
alguma cousa para Botucatú ? SanfAnna, as festas da Penha e, sobre tudo, os
— Nada. Muito obrigado! Boa viagem'. sustos ao preto Manoelão, doceiro de Sinhazinha
O Dito, triunfante, a impar, estendeu a mão: Machado, passavam vividamente pela nossa ima-
— Então, adeus, Neco . . . ginação exaltada ao calor do brazido, aos arrou-
O rapaz, que já descruzara os braços; deixan- bos por vezes eloqüentes do narrador. E á con-
do-os caídos aos flanços, quando já tangera uma versa derivava deliciosa, cheia de encantos para
sineta e a locomotiva arrancava, tirou rapidamen- nós, cheia de saudades para o ancião. Gabriel, o-
te uma arma. heróe de todas as façanhas, companheiro e salvador
O estrugir de um tiro misturou-se ao silvo de daquelle que, para nós, tomava as proporções dum
partida e ao entréchocar de ferros em movimento. ser divino, insinuou-se em nosso affecto, assenho-
Quando, passada a estupefação da surpreza e reou-se da nossa alma. Quem era esse Gabriel ?
do terror súbito, alguém se lembrou do aparelho — Quem era? pois ainda não sabem que falo.
de alarma, já ó trem corria, levando o cadáver do seu tio Gabriel ? Arre ! . . .
de um passageiro. Uma dessas pausas communs nas palestras, so-
244 A NOVELLA SEMANAL

breveio á exclamação do velho que, em silencio, se duma jluz triste, melancólica, apagada. O sof-
apertava com a unha do pollegai a ponta encan- frimento extinguira o brilho daquellas pupillas
decida do cigarro, pensativo a olhar os carvões negras. Reavivou-se a lareira, erepiíou o lume
c-repitando no ladrilho. para guizados ligeiros, emquanto o nosso proge-
— Em que está pensando? interrogou um de nós. nitor rejuvenecido até, narrava ao tio Gabriel os
— "Não sei porque, respondeu-nos, fui soprar pensamentos fúnebres que tivéramos sobre a sua
essa cinza, essa poeira que os annos haviam aca- pessoa. "Ora veja, mano : chorávamos a sua mor-
mado por sobre tantas passagens da minha mo- te e você bem vivo, tão perto de nós; foi Deus
cidade ! Olhem, o coração da gente é como este que nos enviou aquellas maguas para melhor go-
brazido: venha a recordação reavival-o como faz zarmos este encontro inesperado. Chega de tanto
a aragem ao fogo e as saudades se ateiam como peregrinar; moraremos juntos, a casa é grande".
brazas, queimando mais do que ellas. A casa é grande — repetimos nós, olhando as
feições esbatidas do tio Gabriel. O seu porte não
Disse tanto do mano Gabriel e elle, coitado !
correspondia ao vulto que imagináramos atraveí
onde estará a estas horas ? Desde que a esposa
da eloqüência paterna. Não era\um forte; o cor-
morreu, nem commigo quiz morar; andava lar-
po se arqueava como si um peso o acurvasse para
gado, sosinho, alma penada a cumprir um fadario
a frente e as faces duma côr de cera pareciam de
triste, assombrando os viajeiros das estradas do
morto. Eram três horas da madrugada e ainda se
oeste. Nunca mais soube delle; talvez já não exis-
conversava animadamente ao redor da mesa quan-
ta, o pobre! Quem lhe haveria cavado a cova ?
do um bocejo longo nos fez pensar no cansaço
talvez morresse ao longo dos caminhos, sem uma
do velho tio. Demos-lhe o quarto da sala, desti-
prece, sem urna cruz para dizer que alli dormia
nado aas Hospedes. Coitado! ha quantos annos
um christão. Nem sei porque fui tocar nesses tre-
não veria nm leito bom como aquelle ? Ficamos
chos do meu passado, que me dormiam cá dentro,
ainda á mesa em commentarios cheios de excla-
no velho coração, frios como em cemitério."
mações e surprezas. Lá fora amiudavam os gallos
Seus grandes olhos choravam e nós commovi- e a chuva cedia; do beirai já gottejavam as ulti-
dos viamos também entre lagrimas, a cova pobre mas .águas da1 tormenta.
do tio infeliz, sem epitaphio e sem cruz.
Lá fora, continuava a chuva fragorosamente e Dispunhamo-nos a dormir as horas que restavam
as águas, cahindo no inferno do monjolo velho, para o amanhecer quando ouvimos o chapinhar
enchiam a noite escura de clamores. Um medo de um cavalleiro apressado e logo um ancioso —
se apoderou de nós. Era já bem tarde e o vento, "O' de casa! "
soprando no beirai, 'embrava choros, imitava ge- Que historia! exclamou o velho chefe; alguma
midos. Recahimos num silencio mortal; amedron- nova surpreza ? Abriu-se à porta. Um mulato ma-
tados, não ousávamos fitar uns os outros, quando gro, sem1 reverencia alguma saccou do bolso um
uma voz forte nos gelou o sangue com um po- telegramma. Dentro estava escripto: — Em Rin-
derosíssimo — ''O' de casa! " Ninguém respon- cão ; casa de amigo; meia noite, falleceu Gabrjel
deu. Quem seria? Era fanhosa a voz. "Vou abrir Lopez. Gabriel Lopez ! não era o nosso tio ! não
a porta," disse o nosso pae. Não vá — gritamos repousava na alcôVa da sala ? Havia de ser en-,
nós. E nesse entremeio de "vou" "não vá", amai- gano; voamos ao quarto, escancaramos a porta...
nou-se o vento; aproveitando a calada, a mesma Nada ! tudo vasio ; o leito sem uma ruga, intac-
voz retumbou e desta vez, accrescentando o no- to. Unicamente um mystico aroma de incenso e
me do chefe da familia. Não havia duvida, era rosas murchas perfumava o aposento vasio. Fora
gente conhecida. A porta se abriu. No fundo ne- uma visão; fora o fantasma do tio Gabriel.
gro da noite, mal alumiado pela chamma dum
lampeão, pudemos apenas ver um homem alto,
grande chapéu na cabeça, molhado inteirinho. Um Longe vinha o dia pallidamente. Na meia luz
sopro de vento apagou a luz. "Entre! " foi o que da nossa memória vibratilizada pelas emoções da
ouvimos e depois, o ranger dos quicios emperra- noite, desfazia-se aos poucos a personalidade mys-
dos da poita que se fecha. No clarão davasaJa- teriosa do Tio'Gabriel, cujo' olhar velado duma
de jantar, com voz tremula apresentou-nos o nos- tristeza que parecia eterna, diluia-se como as ul-
so pae ao desconhecido : "seus sobrinhos" ; e a timas estrellas nos esplendores da manhã, enchen-
• nós : "seu tio Gabriel". Tio Gabriel! Possivel ? ! e do-nos a alma duma dôr profunda, cónvidando-
precipitamo-nos para os braços delle, enchemol-o nos a chorar. E choramos sentidamente.
de caricias. Mas, os seus olhos fundos trasvasavam EIRA
A philosophia de Tan nhum guerreiro entediado, foi por va pote. Pois~si o seu t a n g r a m m a
mim deduzida, do texto, incomprehen- só dava para isso... ,
sivel aos olhos'do vulgo, bem que eu E eu estou com o chinez. As theo-
Nunca li obra alguma do philoso- não seja nenhum matador em dispo- rias philosophicas são um traço cari-'
pho chinez. Sei-lhe apenas o nome e nibilidade. catural, cujo complemento imagina-
conheço-lhe o invento, que aliás, é E u sempre achei exquisito o tan- mos de aeeordo com aJFpropria idío-
obra de fôlego : úm brinquedo de gramma. Fazer' uma gallinha, de- syncrasia... Assim, no geral, a ca-
creanças... compol-a e, oom luas partes, crear rantonha do autor degenera, na dà
Si Tan escreveu algum tratado igno- u m homem, sem, no entanto, lh'as gente. '
ro-o ; si existiu, não -sei'; mas com dar a comer,! Ou de um ganso fazer E eis ahi com o que .brincam me-
certeza, era philpsopho e chinez. Si. uma frueteira ou um lampeâo !... ' ninos e Bonapartes — com o sueco de
duvidam informem-se do tangramma, . Simples e profundo ! (Pudera ! Não
Qualquer um, me^mo um p i r r a l h o ! fosse tal e desabaria sobre mim o todas as sabedorias. Sempre è uma
esclarece 1-os-á, aTespeíto, recortando mundo todo para vingar-sc da affron- grande verdade que 6 simples ó o
. em papel cartão quadrungulár as sete ta que lhe faria em ser profundo e profundo.
cabaliscicas, geométricas figuras : um complicado.) Magno Tan !
parallelogrammo, um qxradrado, dois BKKNNO FERJCSÜ.-
triângulos grandes, outros tantos me- E puz-me a pensar, largos dias, na
nores e um médio. Com esse barro chiheza intenção oceulta, que presi-
fazem-se homens e coisas e até aquillo dira a faotura do magno, brinquedo.
que satan não' houvesse imaginado. Al,li havia dedo...
E o pequeno que isto lhes disser
accíescentará, por certo, a guiza, de
Transcendi. Passei pelo monismo
e1 detestei Haeekel" pelo Evolucionis- Avíd^-^écdiDtíca.
indefectível credencial, a particulari- mo e abominei . Spencer... Chegara
tarde para ' formulsr essas theoriás,
.é pifÍer&Ê&;405 :-Z
dade '-notável'de ter sido o t a n g r a m - que aliás estavam ha séculos alli, la-
ma o passatempo predilecto de Na- tentes, no papel recortado. Consolei-
poleão I. me, afinal, com o diminuir-lhes a
,E me venham dizer, depois, que gloria,, dizendo que muito antes o,meu
Tan não -era philosopho e chinez...
Pouco importa que elle nao tenha
Tan j á fizera do Um sahir o Tudo e o Epclydes da Cunha
Tudo voltar a Um. E com grande
existido, listará, então, em muito vantagem sobre aquelles dois, porque
b o a , companhia, - junto de Homero, Euclydes da Cunha viveu em São
não escreveu, mas demonstrou mate- Paulo. Fez-se em nosso meio e entre
Lycurgo, Siiakespeare e celebridades rialmente a Verdade... O seu invento ,nós escreveu «Os Sertões>. Fartamen-
taes, bastante celebres para que sua ó a corporisação daquellas philoso-
existência seja posta em duvida. O te conhecido, portanto,: em nossas me-
phias. lhores rodas, fácil se torna apanhar
facto é que existe a obra prima da
quinquilharia, que é delle. Nós somos tangrammas ; viver é algumas notas sobre a sua vida, isto
brincar com tangrammas ; o mundo é, sobre o seu modo de ser, a manei-
, Eis quanto basta para haver u m a ra de encarar as coisas e de se con-
philosophia de Tan. Mas ainda ha não passa de um grande tangramma... duzir entre os factos.
mais. Pois o passatempo de Bona- Sim, senhores. No fundo tudo é pa-
parte poderia djeixar de t e r , u m a phi- pel.;, perdão ! matéria e o que faze- A propósito, a personalidade do
losophia ? Não se concebe irreverên- mos é dar-lhe esta ou aquella forma. grande mestre do estylo se revelava
cia tamanha. 0 tangramma precisa, E a alma ? sempre typic.i, inconfundível, com
ter, tem uma profunda sabedoria, es- , A. alma também é rim quadrado de um caracter aneedotico' significativo
trangulada, esquartejada nos seus se- papel a se recortar, á medida que de bem vincadas feições moraes. A
te pedaços, como por certo, o bom crescemos, nas sete figuras «tangram- verdade a seu respeito é, sempre, ver-
chinez também ofoi. (Precisa ver-se matícas». E são ellas que, quando 1 dade pittoresca. E' que a originalida-
que um chím de gênio devia ter mais queremos philosophar, se põem a dan- de estava-lhe nos instinetos, no -mais
de quatro >quartos). sar, desordenadamente, em nosso cé- profundo dos nervos.
Pois é isso. 0 brinquedo de pape- rebro, até que se coordenam em uma Entre os episódios dó seu dia a dia,
lão foi inventado por um philqsopíio, imagem. 'Mas esta varia de indiví- conta-se um, oceorrido nesta capital,
que lhe transfundiu alguma coisa' de duo para indivíduo, porque não está em casa de distinetopaulista. E : uma-
sua alma, poíque Napoleão não era na sua vontade armsfr o tangramma passagem simples, vulgar, mas cheia
qualquer, nem era homem p'ara ma- da razão assim oxi assim. Nascemos 'Se significação. Anima-a ó grande po-
tar tempo. A expressão "passatem- j á com a silhueta bosquejada no ín- der aifectivo, o forte sentimento, que
po" é o que-ha de esfarrapadámente timo, mais ou menos definida nesta dis^inguia o genial brasileiro. Ressu-
eitphemieo. Ell,e matava coisa me- on naquelle. 0. trabalho é determi- ma, ao mesmo tempo, uni amor pró-
l h o r : a gallínha, b ganso, o vende- nar-lhe os contornos, justapondo-lhes prio hypertrophiado e um orgulo tão
dor de porcelana, o homem na bar- os polygonos para resaltar a nossa
quinha e outros animaes que , se fa- personalidade. E é difficil isto, por- ' profundo quão insopitaveL.
zem e desfazem com o, tangramma. que alguns- têm mais de um bosquejó Euclydes da Cunha-, quando de pas-
Sempre .fera... "' , e de um-para outro andam, sem nada sagem por São Paulo, hosped,ava-se,
geralmente, com ,um dos seus amigos.
E, além disso, .tinha pra.zer ainda conseguir cie eítavel... Mesmo com família, mulher e todos
maior : gosava o riso philosophieo, Na razão do valor da c-ffigie qtie os filhos, um bello dia lá vinha elle
sardonico, esboçado naquelles carac- i compuzermos está o nosso talento.' — gente de casa, que chega e entra
teres cuneiformes e nelles via a morte Quem não sae.do quadrado é... natir- , e, quando vae, só deixa saudade. Uma .
moral do gênero humano... '' ralmente,-quadrado. Quem chega ao ' vez, de mudança, precisou deixar nes-
Era isso. Devia ser, ao menos, por, lampeâo é menos grosseiro. E aquelle sa casa algumas malas, engradados e
honra da firma. B, si nao foi, me- que confecciona o ganso é quasi a- outros volumes, ,que na occasião não
lhor para mim, que terei, nesse caso, gnia. .Nessa proporção também está podiam seguir com elle. Muito bem.
para honra da familia, a prioridade a nossa philosophia : simplista, ba- Lá ficou tudo sem maior incommodo
na decifração dos sete hieroglyphos. rata, traseendente... , pára quem quer que fosse.
A philosophia do nosso homem — Tempos depois, volta Euclydes e
como se vê — ó extraordinariamente procura o que era seu. Levam-no ao
Começarei, portanto, por dizer que monista. Admitte a existência de to- porão. Embora na meia obscuridade
a philosophia de Tan, si nao e delle, das as outr-is, que não são mais que- daquelles quartos baixos, mas nem
é minha, bem que eu não seja chim; formàs da verdadeira. Admitte mes- tanto que nelles não se andasse á von-
,e, si jamais foi entrevista por ne- mo aquella do suieito que,, se julga- tade, os seus guardados ficavam bem
24S A NOVELLA SEMANAL

F a s c i c u l o 21. 5 F a s c i c u l o T\.O 1 1
O L u n d u m — José Veríssimo . . . 73 A resalva — João Luso . . . , !Bí*
A Feiticeira — Inglez de Souza . . . 7B A V i r g e m d a s e s m e r a l d a s - C a s t r o .Menezes . 172
Uma Santa Brasileira — Santa Diana — Lima O velocípede — J . Ramos . . . . . 171
Campos . , . . SO A e s m o l a — Mario Sette 177 ,
G , C . P . A. — H a s t a o C r u l s . . . . K3 Tia Elisa — J u l i o Scheibel . . . . . . 179
A carta do suicida — Sud Mennncci . . . i»)
S U P P L E M E N T O - Vida literária — Psycholo-
gia do tlieatro . . . , . .' 86 S U P P L E M E N T O .— A v i d a a n e c d o t i c a e p i t t o -
C u r i o s i d a d e s l i t e r á r i a s — «A C o m e d i a » . »~ resca dos grandes escriptores — Amadeu
Os n o s s o s p o e t a s — U m a s a t y r a d e H i l á - Amaral — Paulo Duarte . . . . . . 182
rio Tácito . . . . . . . . 8b C u r i o s i d a d e s literárias — Pensai»entos de
EU3- B a r b o s a ( C o l l e c t a n e a d e M a r i o d e L i -
m a Barbosa) . . . . . . is.i
Fe.scic-u.io n . 43 R a c i n e em C a f é - c o n e e r t o . . . . IS&
Preço d e f S a n g u e — Jorge Falleiros . . . 89 L e c o n t e d e I-i.sle — ,le;m D o r n i s . . . 1S4
O s v:cios d e l l e s — .Tulia L o p e s d e A l m e i d a . . 91
Ciar,nha d a s r e n d a s — Mario Sette . . . 93 F a s c i c u l o n . o12
conomiar domestica — Euclydes Andrade . . 100
Na escola — José Sizenando . . . . . . . 185.
S U P P L E M E N T O — A vida anecdotica e pitto- Conto d e F a d a s — Raul Pompeia 1Ü8*
resca d o s g r a n d e s escriptores — Simões A c a r a d o m e u visinho — J u l i a Lopes de A l -
Pinto — Lourenço Filho 102 meida M
Vida l i t e r á r i a — O p a r a d o x o d a c u l t u r a A. M. 102 A v i n g a n ç a d o T e i x e i r i n h a — JSicolau P e r o . : 192
Curiosidades literárias — VERSOS — João C h r i s t o — S y l v i o Kloreal -194
Ribeiro . . . . . . . . 103 T r a p o s d a vida — Manoel Víetor . . . 196

F a s c i c a l o n . 7 S U P P L E M E N T O - Vida l i t e r á r i a — V i s ã o g e r a l
d a l i t e r a t u r a b r a s i l e i r a — M o n t e i r o L o b a t o 198
Briga d e gallos — Julio Scheibel . . . . 105 A a u r o r a d e C a s t r o A l v e s — B o n a l d de
L a g r y m a p e r d i d a — Lúcio d e Mendonça . . 107 Carvalho . . . - . . . ' 199
O Cordão — / f bales Andrade 111 C u r i o s i d a d e s l i t e r á r i a s — L i t e r a t u r a do
O Arrepio — Oscar Lopes . . . . 11 ti outro mundo, . . . , 200
S U P P L E M E N T O —Vida Literária -'CRITICA
— Melían Lafmur . . . . . . . 119 F a s c i c u l o n . o -13
P a g i n a s Celebres— D a «Arte de F u r t a r » . . 119
L e i t u r a s — O nome Brasil — Questões de A v e l h i n h a — Affonso A r i n o s . . . . . . 201
P o r t u g u ê s — lli-liyuiils d a M e m ó r i a 120 Má s i n a — Lucilo Varejão . . . . . . . 203
Os n o s s o s p o e t a s — U m a bella i m a g e m 120 O n a t a l d e V o l t a i r e — E d u a r d o P r a d o . . . . 204
A e r m i d a — Rodrigo Octavio . . . 207
O poder d e D. Domitilla — V i r i a t o Corrêa . 209
F a s c l c u l o ín o 8 O a v ô — G-odofredo R a n g e l . . ... . . 210
Rogério, o rude — Raul Pompeia 121 O Tio d a Escócia — Luclo de Mendonça, . . 211
U m p r o b l e m a d e p s y c h o l o g i a — L é o Vaz 123
121 S U P P L E M E N T O — A vida a n e c d o t i c a e pitto-
A f u g a — Aftbuso A r i n o s . . . . . . r e s c a d o s g r a n d e s e s c r i p t o r e s — U m a car-
Noite d e São J o ã o — Luiz Carlos . . . 127
129 ta inédita de Euclides 211
" M ã e M a r i a " — Olavo B i l a c . . . . . Vida l i t e r á r i a — G-óea T a t u n a A r g e n t i n a —
J e s u s — T h o m a z Lopes . . . . 132 •Manoel ( l a l v e z H i j o 217
S U P P L E M E N T O — A vida a n e c d o t i c a e p i t - C u r i o s i d a d a s l i t e r á r i a s - - P o n s o n d u Ter-
t o r e s c a dos g r a n d e s escriptores — Euclides rail, poeta . . . . 215
da C u n h a — Viriato Corrêa . . . 131 O 'tactilismo» — S 215
Vida l i t e r á r i a — A Atlantid;i> . . . 1.55 Um discurso proferido pelo grammophone 2lfl
O s . - o s s o s p o e t a s — P a u l o Ku-ó — A.maderx Os nossos poetas — Simões Pinto . . . . 2 lli
Ar.nral . . . . 136 1
Paeinas celebres — De Anaereonte 136 F a s c i c u l o x&.o 1 4 -
Vida e l e g a n t e — J u l i o C é s a r d a -Silva . . 217
Fasciculo n . o <J A e n t r e v i s t a — T l i e o d o r o M a g a l h ã e s .. . . . . 219
Anecdoía pecuniária — Machado de Assis . 137 O h o m e m d a s c i r c u l a r e s — J u r a n d y r G o m e s ; 221
A lavadeira — José Veríssimo Ml S i m p l i c i d a d e — C o e l h o Metto . . . " 22i I
Natal no Lourenção - - Waldomiro Silveira 111 Dois idiotas — J u l i o Schcibol
A venda secca — Oliveira e Souza . ., lli
O veiho escrinio — F. Silveira . - 146 S U P P L E M E N T O - A vida a n e c d o t i c a e pitto-
O Tônico — João do Xorte 119 resco d e s grandes escriptores — Ricardo
G o n ç a l v e s — M, Vil l a ç a d e C a m a r g o . . 229-
SUPPLEiviENTO - - A vida anecdotica e pitto- C u r i o s i d a d e l i t e r á r i a s - - A ' s s e n h o r a s ha-
resca dos grandes escriptores — Coelho hiariii/i — C a s t r o A l v e s . . . .' . 230
Netto. . . . , . . . 150 O C e n t e n á r i o d e F h u i l i e r t — C. . . . 231
. Os nossos poetas — dnania verba» — B. F. 151 Paginas esquecidas O vocabulário —
Curiosidades literárias — A cAilantida» de Coelho Nctt.j . . . 23
iJlatão — 1-1. cie Rauville . O s n o s s o s p o e t a s — J u l i o César <ln S i j y a . 231
Leituras — Vultos e Livros — Figurões vis-
tos por dentro -*- Piraquaras . 152 F a s c i c u l o n . o 15
F a s c i c u l o m.o IO Alrna frivola - - S u d M e n m i e e i 2*1
C h i c ã o " D u a s m o r t e s " — Dima» C a m a r g o St.uin 235
A Façanha ,do Imperador Theortoro Maga- Divina — J o r g e F a l l e i r o s . . . . 210
lhães . . l r>:-s P e i t o l a r g o — Clarins d a Fonsee.i, 24!
Querer bem — Afranio Peixoto . . . I.'i8 Tio G a b r i e l — K. S i l v e i r a . . . . 213
Ultimo lance — Aluizio Azevedo 131
S,lo José — Thomaz Lopes . . . . 162 SUPPLEMENTO A philosophia do Tan
Brenno Ferraz 2-15
SUPPLEMENTO — A vida anecdotica.o piíto- A vida a n e c d o t i c a e p i t t o r e s c a d o s g r a n d e s
resca dos grandes escriptores - - Ola%o Bi- escriptores — Euclides d a Cunha — B F . . 245
lac — Mario de Alencar ,. Vti Vida literária — O j o r n a l i s m o e as,letras
Vida literária — Cupitaas literárias . . . 137 — J o s é V;.ria Bello . . . . . , , . 245
Tradição e novidade em poesia . . . '. 107 Ürupés n a Argentina , . . .!i'i
Curiosidades literárias — Helena, <.a dos P a g i n a s e s q u e c i d a s -•• P r i m a v e r a — Raul
braços brancos. - Helena, ca das bellas faces» 16H Pompeia . . . .
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À NOVELLA NACIONAL
"Volumes publicados:

A NOVELLA NACIONAL e uma A P u l s e i r a d e F e r r o por


série de pequenos livros, nos quaes AMADEU AMARAL, o succossor cie
se mira ao seguinte escopo : olierecer Olavo Bilac. na Academia Brasileira.
a melhor leitura, sob a apresentação "E1 no gene.ro uma verdadeira obra
mais artística, ao preço mais barato prima,, — disse desta novella o grande
possivel. Os objectivos desta publi- poeta Alberto de Oliveira.
cação, de que e direi:tor o sr. Amadeu O s N e g r o s por MONTEIRO LO-
Amaral (cia Academia Brasileira) podem BATO, o celebre rrcmior de Jeca Tatu.
assim, condensar-se no lemma — LI- Estão no prelo mais dois volumes:
VRO BOM E BONITO AO ALCAN- R i t i n h a por LEO VAZ, o fes-
CE DE TODOS. tejado auctor cio "Professor Jeremias",
romance que obteve o maior successo
Apparece approximadamente um vo- literário da actualicla.de, alcançando três
lume por mez, com cerca de 80 pa- edições em poucos mezes.
ginas, no formato 16 i/s X 12 >/2 centí- M u l a s e m c a b e ç a por GUS-
metros, impresso em magnifico papel TAVO BARROSO, o famoso escriptor
e illustrado com numerosas e artísticas cearense, autor da T E R R A DO SOL,
gravuras, contendo uma obra completa H E R O E S E BANDIDOS e outras
de auctor conhecido. jóias literárias já sobejamente conhe-
cidas e apreciadas.

il2Si gãs«.tj J''3ê2£; ffOS NEGROS

A seguir novellas de :
Coelho Netto,
Afranío Peixoto,
Waldomíro Silveira
Cornelio Pires e outros.
Cada volume LfOOO em
todas as livrarias. Pelo
correio, registrado 1|3Ü0.
Assignaturas com direito
a receber todos os vo-
lumes registrados :
Série de três novellas
3í$500; série de seis no-
vellas 7$000; série de
doze novellas 14J000.
Pedidos á

Sociedade Editora
Olegarío Ríbeífo
Rua Dr, Abranches N. 43
Caixa, 1172 - SAO PAULO

Typ. " Revista de Commercio e Industria „ da


Soe. Ed. Olegarío Ribeiro, Abranches 43, S. Paulo — L á , fogeív.

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