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Editora ABRIL

edição 2884 - ano 57 - nº- 11


15 de março de 2024

www.veja.com

DENTRO DA BOLHA
Ao insistir em fórmulas que já foram testadas e não deram certo, assumir posições
controversas sobre temas variados e se manter distante de problemas reais, Lula
afasta uma parcela do eleitorado e começa a enfrentar os ventos da impopularidade
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VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA


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CARTA AO LEITOR

ADNAN FARZAT/NURPHOTO/GETTY IMAGES

VITÓRIA Celebração feminina da aprovação do aborto na


França: agora na Constituição

MULHERES EM AÇÃO
AS MUDANÇAS de comportamento da sociedade sem-
pre foram tema de permanente atenção de VEJA ao lon-
go de seus 55 anos de história — período suficiente para
ver as placas tectônicas, rígidas e imutáveis, se movimen-
tarem, empurradas pelo saudável vento da democracia.

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Entre as mulheres, especialmente, as transformações têm


sido vigorosas e louváveis, aptas a romper com o mundo
masculino, alimentado por preconceito e misoginia. Te-
mas tidos como tabu, na antessala de lentas revoluções,
foram capa da revista. Em 1979, a série Malu Mulher, da
Globo, estrelada por Regina Duarte, iluminava o direito à
vida sem marido, depois da separação e do divórcio, que
apenas dois anos antes tinha sido legalizado. Em 1997, al-
gumas celebridades — entre elas, as apresentadoras de
televisão Hebe Camargo e Marília Gabriela — admitiram
ter feito aborto. Foram criticadas, em alguns casos aban-
donadas pelos fãs, mas não cederam — em luta por um
direito que, no Brasil, ainda hoje engatinha, no avesso da
avassaladora vitória feminista na França, país que apro-
vou, há duas semanas, a possibilidade de interrupção da
gravidez em sua Constituição. Em 2013, Daniela Mer-
cury e a jornalista Malu Verçosa tiveram a coragem de
celebrar sua união, uma “questão inadiável”, como anun-
ciava a chamada principal.
Como um bonito passo da humanidade, em qualquer
canto do mundo — até mesmo onde a opressão dá as car-
tas — os movimentos individuais e coletivos costumam
se antecipar à construção das leis. Somente depois é que
os políticos entram em cena, movidos por grupos mais
avançados, freados pelos conservadores radicais. Em to-
das as situações, destaque-se, é sempre bom ver o que fa-
zem as mulheres, por andarem à frente, na marra, valen-

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VITÓRIA Celebração feminina da aprovação do aborto na


França: agora na Constituição

tes e inteligentes. Uma reportagem especial de VEJA des-


ta semana, escrita pela repórter Duda Monteiro de Bar-
ros, esmiúça um interessante fenômeno, confirmado por
pesquisa exclusiva do instituto Genial/Quaest: a crescen-
te adesão de meninas e moças da chamada geração Z
(nascidas de 1995 a 2008), que têm entre 16 e 29 anos, a
causas progressistas, atreladas aos direitos irrefutáveis de
viver sozinhas, de abortar, de manter uma união ho-
moafetiva etc. Observar esse tipo de sacolejo — e mostrar
que elas, independentemente da vontade deles, fazem
suas escolhas — é um bom caminho de civilidade e igual-
dade. VEJA se orgulha de poder ajudar a erguer esse edi-
fício. O jornalismo como rascunho da história, a passar
diante de nossos olhos. Detalhe importante: não apenas
no dia dedicado a elas. ƒ

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ENTREVISTA MARÍA CORINA MACHADO


CARLOS BECERRA/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

“SEJA FIRME, LULA”


A principal oponente de Maduro na Venezuela,
banida do pleito presidencial, diz que o brasileiro
deve deixar de dar aval à ditadura de seu país e se
mexer para garantir ali eleições livres
AMANDA PÉCHY

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EM 2011, María Corina Machado, que estreava como con-


gressista, interrompeu um discurso do então presidente
Hugo Chávez (1954-2013) para denunciar a erosão da de-
mocracia na Venezuela. Irritado, ele desdenhou: “Sugiro
que ganhe as primárias para discutir comigo. Águias não
caçam moscas”. Corina não abandonou o ringue e, recen-
temente, conseguiu o feito de unir a oposição sempre esfa-
celada, tornando-se a principal rival de Nicolás Maduro
no pleito presidencial marcado para 28 de julho — o ani-
versário de Chávez, que o guindou ao poder. Aos 56 anos,
engenheira industrial especializada em políticas públicas
pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, ela virou uma
radical antagonista do regime que atropela os direitos hu-
manos e as instituições, que a tornaram inelegível por uma
suposta ocultação de bens. “Foi uma decisão arbitrária.
Maduro controla todos os órgãos públicos”, disse a política
na entrevista concedida por videoconferência a VEJA, em
meio à batalha para se manter no palanque. É uma corrida
contra o tempo, já que o prazo para o registro das candida-
turas se encerra em 25 de março.

Lula voltou a defender o regime de Maduro no último en-


contro dos dois, dias atrás. Essa aproximação é um obs-
táculo ao restabelecimento da democracia na Venezue-
la? Depende de como Lula conduzir a conversa. A interlo-
cução dele com Maduro poderia até ajudar, servindo de
alavanca para o processo democrático. Só que, para tal, Lu-

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la precisa assumir uma postura firme a favor das liberdades


individuais e parar de dar aval a um autocrata.

Qual o papel concreto que Lula pode exercer neste tenso


tabuleiro? O de líder. E não digo isso apenas por ele ser re-
ferência na política da América Latina, mas também por-
que o Brasil tem responsabilidade sobre a estabilidade na
região. Um tremor na Venezuela transborda as fronteiras.
Aliás, acho que todos os governantes de nações vizinhas,
sobretudo aqueles que mantêm canal com Maduro, têm o
dever de fazê-lo compreender que a melhor opção hoje à
mesa é uma transição negociada.

Lula chegou a dizer que a afronta às instituições demo-


cráticas na Venezuela era uma “narrativa”. Faz sentido
sob algum ponto de vista? Nenhum. Lula sabe muito

“A interlocução de Lula com Maduro


poderia até servir de alavanca
para a democracia. Só que, para tal,
ele precisa assumir uma postura firme
em prol das liberdades individuais”
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bem que o que vivemos aqui vai muito além de uma nar-
rativa. O regime de Maduro é o mais corrupto e violador
dos direitos humanos da história. As pessoas sentem na
pele. Há destruição econômica, institucional e social. Sa-
lários não passam de 1 dólar por mês, e as crianças têm
sorte quando conseguem ir à escola mais de duas vezes na
semana. Não à toa, a população debandou: 7 milhões já se
foram em busca de um futuro.

O governo deu até o fim de março para que candidatos à


presidência se registrem, e seu nome segue vetado.
Quais as chances de constar na cédula? Elas estão nas
mãos de Maduro, que precisa entender, pelos sinais emiti-
dos dentro e fora do país, que sua melhor opção é a via
eleitoral. Se eu for mesmo banida da disputa, estará explí-
cito que essas eleições não serão livres. O próprio Parla-
mento europeu, em coro com outros observadores inter-
nacionais, enfatizou isso. Um pleito tutelado pode levar à
repressão maciça, o que seria tremendamente contrapro-
ducente para Maduro. O governo perdeu a robustez e a
coesão que já teve. O povo jamais vai aceitar mais um
atentado contra o jogo democrático.

O medo não freia os protestos? Enquanto percorro o país,


observo pessoas indo às ruas com mais ânimo e entusias-
mo do que nunca. Andam horas a pé para chegar a meus
comícios. Elas choram, se manifestam. Vejo a construção

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de um movimento mais amplo na sociedade, que extrapola


qualquer ideologia. Aí reside sua força.

O que mudou? Há uma questão prática. Maduro desenvol-


veu ao longo dos anos uma engrenagem de extorsão social,
como quando diz às pessoas que, caso não sejam fiéis ao re-
gime, não receberão seu benefício mensal ou perderão o
emprego. Com a crise atual, porém, essa capacidade está se
esgotando. É neste cenário que um número crescente de
venezuelanos enxerga na eleição uma oportunidade histó-
rica para evitar mais pobreza e devastação.

O governo endureceu contra os opositores, adotando


uma linha batizada de “Fúria Bolivariana”. Quais os efei-
tos imediatos? Assistimos à expulsão dos membros do ga-
binete da ONU para os direitos humanos e, em dois meses,
quatro membros de minha equipe foram sequestrados pelo
serviço secreto. Não sabemos seu paradeiro. Nossa sede
também foi vandalizada. Me fazem todo tipo de ameaça ao
rodar o país. Usam a polícia e o exército para bloquear es-
tradas para que não possa me locomover. O nome disso é
perseguição, com todas as letras.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, tornou-se


uma espécie de porta-voz não oficial de Caracas nas
costuras para pôr de pé as eleições. Acredita que ele
queira alcançar uma solução democrática? Para a Co-

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lômbia, interessa, e muito, uma resolução pacífica na Ve-


nezuela. Com Maduro, a pressão de imigrantes na frontei-
ra não vai parar, nem tampouco se coloca um horizonte
para equacionar o enrosco colombiano com o ELN, grupo
guerrilheiro que encontrou na Venezuela um santuário,
onde conta com o apoio das autoridades.

Os Estados Unidos suspenderam sanções ao setor de


petróleo venezuelano em troca da realização de eleições
livres em 2024. Isso pode ser decisivo? Em tese, poderia,
mas a situação até agora, em que a repressão se aprofunda,
é uma demonstração de que a iniciativa americana não está
surtindo o efeito desejado.

O que esperar de um eventual retorno de Donald Trump à


Casa Branca? A Venezuela é assunto delicado. Envolve a
segurança nacional americana. O cartel mexicano de Sina-
loa se instalou no país, intensificando o tráfico de drogas, e
viramos porta de entrada para a influência da Rússia e do
Irã na América Latina. Pesa ainda a imigração — os vene-
zuelanos inundam a fronteira sul dos Estados Unidos. Es-
ses nós, sem Maduro, começariam a ser desatados. Por is-
so, acredito que qualquer um que ocupe o Salão Oval traba-
lhará para se livrar da ditadura.

A senhora é favorável às sanções? Sim. Sou a favor das


negociações e, hoje, elas só se desenrolam porque existem

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as sanções. É um mecanismo relevante para combater cri-


mes de impacto transnacional, como tráfico de drogas, la-
vagem de dinheiro e violações aos direitos humanos.
Washington estabeleceu um prazo para Maduro liberar mi-
nha candidatura e a do restante da oposição. Se não acon-
tecer, as sanções estarão de volta.

Sem citar seu nome, Lula referiu-se à senhora dizendo


que, quando ele não pôde concorrer à presidência, em
2018, indicou outro candidato “ao invés de ficar choran-
do”. Considera essa opção? É uma falácia. O problema
não é meu nome. Se colocarem outro no lugar, o regime da-
rá um jeito de impedir a candidatura. E assim será até que
surja um postulante fraco, que Maduro derrotará. Me proi-
bir de concorrer foi uma decisão arbitrária, possível apenas
porque o governo controla todos os órgãos públicos.

“O serviço secreto sequestrou quatro


membros de minha equipe. Me fazem
todo tipo de ameaça ao rodar o país,
bloqueando inclusive estradas. O nome
disso é perseguição, com todas as letras”
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Na oposição ao chavismo, o então deputado Juan Guaidó


foi quem mais esteve perto do poder, mas acabou deixa-
do à deriva em meio à desunião dos que eram contra Ma-
duro. Por que o desfecho seria diferente agora? Dois fa-
tores custaram caro a Guaidó. Ele estava rodeado de parti-
dos que tentavam impor seus interesses, sem um projeto
em comum, e subestimou a habilidade do regime de Madu-
ro em se manter no poder. Desta vez, todas as siglas demo-
cráticas concordaram com um processo em que o povo le-
gitimou uma única liderança. O apoio a mim é de 100%.
Ele vem inclusive de uma ala descontente do chavismo.

A senhora é a favor da anexação de Essequibo, territó-


rio da Guiana que Maduro tentou levar via plebiscito?
Sabemos quais são nossos direitos históricos em relação a
Essequibo, mas Maduro quis dar à discussão um teor
ideológico, com o objetivo de unir o país num momento
de fraqueza e ganhar fôlego. Não é coincidência que o
anúncio do plebiscito tenha ocorrido logo após as primá-
rias da oposição, onde 92% de mais de 2 milhões de elei-
tores me escolheram para representá-los. Mas a manobra
teve resultado oposto, colhendo pesadas críticas da co-
munidade internacional — mesmo Lula ficou escandali-
zado e disse que não poderia haver ali uma guerra. O
apoio interno a Maduro também não cresceu. Prova disso
é que a população não compareceu como esperado ao re-
ferendo, ainda que sob ameaças.

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As chances de guerra por lá são reais ou é tudo bravata?


Quero acreditar que Maduro compreenderá que o tiro saiu pe-
la culatra e que prevalecerá o bom senso. Mas, não custa lem-
brar, estamos diante de um regime capaz de qualquer loucura.

No passado, a senhora defendeu o uso da força para der-


rubar o chavismo. Ainda cogita esse cenário? À época,
fui mal interpretada: na verdade, me referia à força e ao po-
der de mobilização da população.

Sentaria à mesa para negociar com Maduro as bases pa-


ra uma eleição democrática? Sem dúvida. O problema é
convencê-lo de que isso é de interesse geral, incluindo uma
parcela da turma que o apoia. Se eleita, vou garantir um jul-
gamento justo a Maduro e seus comparsas — desde gente
envolvida em crimes contra a humanidade àqueles que aca-
baram sendo vítimas do sistema.

A senhora diz admirar Margaret Thatcher e incluiu em


sua agenda a privatização de estatais, como a petrolífera
PDVSA. A ideia é caminhar à direita? Sou liberal. Esta é
uma filosofia de vida, para além da política. A Venezuela
tem potencial para se tornar o centro energético das Amé-
ricas, o que nunca acontecerá com alguém como Maduro.
Quero restaurar o Estado democrático de direito para atrair
investimentos e fazer com que o princípio da propriedade
privada volte a vigorar.

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Teme por sua vida? Todos temos medo na Venezuela. O


regime está enfraquecido e sabe disso, aí endurece a repres-
são contra gente como eu, vista como inimiga.

Com três filhos no exterior, nunca pensou em sair do


país? Tirei meus filhos daqui anos atrás, porque comecei a
receber ameaças de morte. Sinto culpa por não poder estar
presente na vida deles. É como se estivesse falhando como
mãe. Mas sair daqui não dá. Num momento como este, não
posso deixar para trás a luta pela democracia. ƒ

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IMAGEM DA SEMANA

A FOTO QUE VALE


POR MIL PALAVRAS

FOI UM DESASTRE de comunicação, estrago danado de


relações públicas. E como agora retocar a imagem da realeza
britânica, depois do escândalo da fotografia alterada de Kate
Middleton cercada pelos filhos para comemorar o Dia
das Mães, divulgada no domingo dia 10? A ideia, a rigor,
INSTAGRAM @PRINCEANDPRINCESSOFWALES

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era mostrar que a princesa de Gales, sumida desde janeiro, em


decorrência de uma cirurgia abdominal, vai bem de saúde,
leve e sorridente, pronta para o que der e vier. Não demorou,
contudo, para os fiscais das redes sociais, associados a
fofoqueiros de plantão, identificarem aos menos dezesseis
erros na cena. Exemplos das manipulações: a mão
esquerda de Charlotte aparece desalinhada e parte
da manga da malha de tricô sumiu. O cabelo e o zíper
do casaco de Kate — revelam o recurso de lupa —
também foram alterados. O clique, feito pelo príncipe
William e depois “photoshopado” pela futura rainha, seria
banido dos catálogos das agências internacionais de
fotografia. A retratação veio a galope: “Gostaria de expressar
minhas desculpas por qualquer confusão que a fotografia
tenha causado”, disse Kate. E os súditos continuam a
desconhecer o que realmente houve com a nora do rei Charles
III e como anda sua prolongada convalescença. E dá-lhe
chuva de teorias da conspiração (houve quem dissesse que até
o rosto de Kate é falso, extraído de uma antiga capa de revista
de moda). “Não dá mais para confiar no Palácio”, escreveu Liz
Jones, colunista do tabloide Daily Mail. “Eles acham que
somos burros.” Há algo de podre no reino da Inglaterra. ƒ

Ricardo Ferraz

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CONVERSA JONATHAN ROUMIE

“REZO ANTES DAS


GRAVAÇÕES”
Intérprete de Jesus em The Chosen — Os Escolhidos,
ator americano de 49 anos falou sobre sua relação
com a fé e a importância do papel às vésperas de
viajar ao país para lançar nova temporada da série
DIVULGAÇÃO

FEIÇÕES DIVINAS Roumie como Jesus: há quem ore


pensando no rosto dele

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The Chosen — cuja quarta temporada tem estreia


especial nos cinemas e no streaming a partir de
quinta-feira 21 — não foi sua primeira vez no papel
de Jesus. Como viveu essa saga? Faz mais de dez
anos que venho interpretando Jesus. Primeiro, em ví-
deos e peças de teatro de uma produtora católica. Até
que, em 2014, o Dallas Jenkins (criador de The Chosen)
me contratou para fazer Jesus em três curtas que foram
embriões da série.

Tem alguma história peculiar sobre seus oito anos


no papel? Já ouvi pessoas dizerem que, quando oram
ou rezam, pensam no meu rosto. Acho bizarro, mas en-
tendo. No México, entrei numa igreja e o rosto de Jesus
num quadro era claramente o de Robert Powell (ator co-
nhecido pela série Jesus de Nazaré, de 1977). Já vi ima-
gens de arte de rua no Brasil com meu rosto. Vira e me-
xe, pessoas passam por mim na rua e, do nada, me fa-
lam “obrigado”. Então, creio que é uma reação inevitável
do imaginário humano diante da dramatização dessa
história tão impactante.

Tem algum ritual antes de entrar no set? Eu rezo antes


das gravações. Sou católico, então me confesso, participo
da eucaristia, peço a bênção do padre antes de cada tem-
porada, e peço a Deus entendimento sobre o que Ele quer
comunicar através de mim.

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A série mudou sua relação com a fé? Fui batizado nu-


ma igreja ortodoxa, depois cresci como católico. Tenho
essas duas raízes em mim. Mas interpretar Jesus me le-
vou mais fundo na minha fé, no misticismo, na inspira-
ção dos que vieram antes de mim e que deram suas vidas
pela fé cristã.

Sua família paterna é de origem egípcia e síria. Ainda


tem parentes nessa região tão próxima do conflito na
Palestina? Sim, tenho familiares naquela região, inclusi-
ve em Israel e na Palestina. É uma situação difícil, e eu oro
por aqueles que estão sofrendo. Não há uma solução sim-
ples para o Oriente Médio, e eu, do outro lado do mundo,
só posso pedir a Deus que tenha misericórdia e traga paz.

Se Jesus voltasse nos dias de hoje, como gostaria que


Ele fosse? Nossa, difícil. Eu gostaria que Ele fosse mise-
ricordioso, talvez ainda mais que da primeira vez que
veio à Terra. Estamos lidando com muitas dificuldades
no mundo, muita divisão, tensão, raiva, frustração. Gos-
taria que Ele conseguisse ver além dos nossos preconcei-
tos e fosse compreensivo com as nossas fraquezas, como
foi no passado. ƒ

Raquel Carneiro

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DATAS

DIVULGAÇÃO INSTAGRAM @AKIRA.TORIYAMA

FENÔMENO O japonês
Akira Toriyama e sua criação
mais conhecida, o Goku de
Dragon Ball (à esq.): paixão
mundial pelo espevitado e
esperto personagem

O DISNEY DOS MANGÁS


Era uma vez um menino japonês que adorava os desenhos
animados da Disney. Aos 6 anos de idade ele viu pela primei-
ra vez 101 Dálmatas, apaixonou-se por Pongo e Prenda, ficou
enternecido com Roger e amou odiar Cruella de Vil. E então
decidiu que seguiria a carreira de pincel e caneta em mãos.
“Quando eu era pequeno, não tínhamos tantas formas de en-
tretenimento como hoje, então todos nós desenhávamos”, dis-
se certa vez Akira Toriyama. “Na escola primária, fazíamos
mangás e mostrávamos uns aos outros.” Toriyama reinventa-

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ria os quadrinhos típicos do Japão e os faria circular pelo


mundo. Em 1980, lançou o Dr. Slump, a história de um jovem
androide com superpoderes. Mas foi em 1984, com Dragon
Ball, que ele viraria um mestre do tamanho de Walt Disney
para quem gosta do estilo oriental — e atire a primeira pedra
quem não se divertiu (ou sonhou acordado) com Goku, um
lutador de cabelo espevitado à caça das esferas do dragão, ob-
jetos capazes de realizar desejos — personagem que, ao longo
de sua jornada, enfrenta inimigos de todos os tipos, de mes-
tres em artes marciais a demônios.
Em 1986, Dragon Ball virou série de televisão e fenômeno
internacional, em mais de oitenta países — inclusive o Brasil, é
claro (e lembre-se que Toriyama tinha especial apreço pelo
país, por causa de Ayrton Senna, a quem admirava). No forma-
to de revista, os 42 volumes da série venderam mais de 260
milhões de exemplares. Na TV é impossível medir o alcance.
Mas faça uma experiência: vá a uma feira de quadrinhos e, ain-
da hoje, haverá alguém vestido de Goku. Mesmo nas festas in-
fantis da criançada da era do TikTok é comum a figura simpá-
tica e acelerada dar as caras. Não por acaso, dada a força in-
controlável do fenômeno, Goku tem um dia de homenagem, o
9 de maio. Por que ele foi escolhido? Quando se fala “5/9” em
japonês, a pronúncia do mês (maio, 5) e do dia (9) pode ser ou-
vida como “Go” e “Ku”. Toriyama morreu em 1º de março, aos
68 anos, em decorrência de um hematoma no cérebro. O fune-
ral foi realizado privadamente, apenas para a família, e somen-
te na semana passada a morte foi anunciada.

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UM SALTO DA CIÊNCIA
É uma bonita aventura da
medicina. Em março de 1961, o
patologista britânico Anthony
Epstein sentou-se nas últimas
cadeiras, bem no fundão mes-
mo, de uma palestra de um cole-
ga irlandês que apresentava uma

BRITISH MEDICAL JOURNAL


série de fotografias de crianças
de Uganda com tumores faciais
na linha da mandíbula. A um só DESCOBERTA Anthony
tempo assustado e entusiasmado Epstein, patologista
pelo que vira, Epstein abando- britânico: ao lado da ex-
nou tudo e, associado com uma aluna e colega Yvone Barr,
aluna de doutorado, Yvone Barr, ele descobriu o vírus
mergulhou no caso. Em 1964 da mononucleose
eles anunciaram a descoberta de
um vírus, batizado de Epstein-Barr (EBV), responsável pela
mononucleose — infecção transmitida pela saliva, também co-
nhecida como “doença do beijo”, e cuja ocorrência é muito co-
mum na juventude. Estimativas indicam que pelo menos 95%
da população global adulta já teve contato com o vírus e é ca-
paz de produzir anticorpos contra ele. Vale pontuar que a mo-
nonucleose não é considerada uma infecção sexualmente
transmissível, dado não ser disseminada por sêmen ou por se-
creções vaginais e anais. Epstein morreu em 6 de fevereiro, aos
102 anos, em Londres. Yvone Barr faleceu em 2016. ƒ

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VEJA ESSA
JIM WATSON/AFP

“O problema que nossa nação


enfrenta não é quão velhos somos,
é quão velhas nossas ideias são.”
JOE BIDEN, presidente dos Estados Unidos, 81 anos

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“Acredito que os mais fortes são


aqueles que veem a situação,
pensam nas pessoas e têm
coragem de levantar a bandeira
branca e negociar.”
PAPA FRANCISCO, sugerindo às autoridades
da Ucrânia o que fazer contra a agressão da
Rússia de Putin

“Eu desejo que o Vaticano evite


repetir os erros do passado e apoie
a Ucrânia e o seu povo na justa
luta por suas vidas.”
DMYTRO KULEBA, ministro ucraniano das
Relações Exteriores, ao responder ao pontífice

“Nós precisamos, como diz aqui na


Bahia, macetar. Mas é macetar a
legalização do aborto, macetar a
legalização das drogas.”
MICHELLE BOLSONARO, ex-primeira-dama, em
um encontro do PL em Salvador

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INÊS 249

“As pautas da direita também


merecem respeito, porque foram
chanceladas nas urnas.”
CAROLINE DE TONI, deputada federal pelo PL de
Santa Catarina, presidente da Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara

“Você perguntaria sobre


isso a um artista homem?”
PAULA TOLLER, incomodada
com as frequentes questões a respeito
de seu corpo e beleza. Ela tem 61 anos

“Sinceramente, nós temos


muita tranquilidade com
o que está sendo feito.
E aí o pessoal pode ir na ONU,
pode ir na Liga da Justiça, no raio
que o parta, que eu não tô nem aí.”
TARCÍSIO DE FREITAS, governador de São Paulo,
após ser denunciado nas Nações Unidas por
“operações letais” contra o crime no estado

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INÊS 249

“As fotos
ficaram
(quase)
ótimas.”
MARINA RUY
BARBOSA, atriz,
em suas redes sociais

INSTAGRAM @MARINARUYBARBOSA

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INÊS 249
INÊS 249

FERNANDO SCHÜLER

A EXCEÇÃO
COMO REGRA
ELE FOI PRESO no balaio. O Geraldo. Sobrenome “da Sil-
va”. Morador de rua de Brasília, cidade que não tem propria-
mente rua. Naquele domingo de janeiro ele andava vagando
por lá, curioso. Acabou na rede. Onze meses em cana, com
direito a uma tornozeleira eletrônica, no final. Geraldo não ti-
nha “foro por prerrogativa de função”, mas conseguiu a única
coisa chique da vida: ser julgado pelo Supremo. Denunciado
por “associação criminosa armada, abolição violenta do Esta-
do democrático de direito, tentativa de golpe”. Logo ele, que
não tinha nem bem o que comer. Um jornal chamou seu caso
de “incrível”. A mim, tudo lembra um pouco uma novela de
García Márquez. O sem-teto que iria derrubar o Estado de di-
reito. Bom retrato da maluquice brasileira atual. A ideia vaga
do “delito coletivo”, o “crime multitudinário”, no qual você é
condenado “por estar ali, no meio da confusão”. No fim, o mi-
nistro foi lacônico: “Não há prova suficiente para a condena-
ção”. Por ora, ninguém dá a menor bola. Mais um equívoco,
talvez, e bola para frente. Mas desconfio que um dia isso tudo
será estudado e descrito com palavras bastante mais duras.

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INÊS 249

Não acho que um caso como este ajude o país a voltar aos
trilhos da “normalidade jurídica”, como começo a ler em edi-
toriais com um tom de impaciência. O ponto é que eles conti-
nuam a ser vistos como “acidentes de percurso”. Vale o mes-
mo para a morte do Clezão, com a diferença de que, no seu
caso, não há mais nada a fazer. A espinha dorsal da grande
história que fundamenta toda a sorte de “inovações” surgi-
das desde a criação dos inquéritos sobre fake news, que já vai
completando cinco anos, permanece intacta. Na verdade, vai
se aprofundando. Seu fundamento é a tese ensaiada desde as
eleições de 2018, de que era preciso lançar mão de “medidas
excepcionais”, relativizando normas do Estado de direito, pa-
ra proteger nossa frágil democracia. O aspecto central não é
tanto especular sobre o tamanho do “risco” existente à de-
mocracia. Mas o tipo de remédio que deveria ser usado, pelas
instituições, para lidar com eventuais delitos devidamente ti-
pificados, cometidos por quem quer que seja, e que merecem
nem mais, nem menos do que o rigor da lei.
O que o Brasil fez foi recriar uma versão tropical da tese
da “democracia militante”, originalmente pensada pelo ju-
rista alemão Karl Loewenstein, nos anos 1930, em uma épo-
ca na qual o nazismo já havia se consolidado, na Alemanha.
A tese de Loewenstein dizia que era preciso “abandonar
temporariamente” certos princípios e direitos caros a nossas
democracias como forma de “defender a própria democra-
cia, a longo prazo”. Tese sedutora, no contexto da época,
mas envolvendo riscos evidentes. E usada, com variações,

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INÊS 249

IDEIA Karl Loewenstein, jurista alemão dos anos 1930:


“democracia militante”

por regimes autoritários. No Brasil atual, por absurdo que


seja, decidimos recauchutar essa tese. A primeira atitude
veio em 2019, quando uma revista foi censurada. Houve cer-
ta comoção, reação forte, da então oposição, no Congresso,
que chegou a pedir o impeachment de um ministro do STF.
A publicação não fazia propriamente um “ataque à demo-
cracia”, mas a lógica de sua repressão era perfeitamente a
mesma do que viria depois. A ideia da “notícia falsa”. Do
“ataque às instituições” centrais para a democracia. Coisa
AMHERST COLLEGE ARCHIVES & SPECIAL COLLECTIONS

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INÊS 249

“Estamos de novo
no ponto de
partida: o plano das
boas intenções”
que exigia “medidas enérgicas”, mesmo que heterodoxas,
como a forma de instalação daqueles inquéritos, para o seu
combate. Não muito tempo depois, o alvo migrou para o
blogueiro Allan do Santos, acusado de “apontar o dedo mé-
dio para prédio do Supremo”. A partir daí, tudo parece ter
encontrado seu eixo. E por aí andamos.
A lista do que foi feito é conhecida, ainda que não exista
(que eu saiba) um apanhado geral de todas as pessoas censu-
radas, processadas, presas, “desmonetizadas” ou banidas.
Quando a ministra Cármen Lúcia explicou que “excepcional-
mente” se censuraria previamente aquele filme feito pela
Brasil Paralelo sobre a “facada no Bolsonaro”, à época da
campanha eleitoral, talvez tenha produzido a melhor síntese
de todo esse processo. Uma mistura de irrelevância (que efei-
to real teria aquele filme?), imprecisão (qual era mesmo o seu
conteúdo?) e pura e simples quebra do “Estado de direito”,
dado que a censura prévia é vedada em nossa ordem legal.
Há uma certa graça em observar a banalidade da maior par-

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INÊS 249

te da repressão praticada no país. A história dos empresários


banidos pelo papo furado naquele grupo de WhatsApp, o
português “interrogado” em Cumbica, a operação que parou
a Ponte da Amizade para prender um ameaçador humorista,
no Paraguai. A história dos fatos que não “colam” na grande
narrativa. E que, para além do elemento anedótico, deixam
um rastro obscuro e algo constrangedor. É precisamente aí
que entra o Geraldo. O mais completo e verdadeiro “mané”.
O tipo que nem sequer um post fará, na internet, defendendo
qualquer coisa, e que logo mais será esquecido. Se é que já
não o foi. O ponto é que o transe continua.
Uma vez que se põe em marcha a lógica do “estado de ex-
ceção”, é difícil dar marcha a ré. Cria-se uma mecânica, pe-
quenos centros de poder. E o mais importante: cria-se uma
mentalidade. Por vezes sutil. Não mais a ideia de que, lá atrás,
nossa democracia esteve em risco e que era preciso “agir com
energia”, relativizando regras do direito, mas a ideia de que a
democracia está em risco. Ou não? Que há o risco do “popu-
lismo eletrônico extremista”, a “(super)desordem informacio-
nal”, a “extrema direita”, sempre rondando, como cadáver in-
sepulto. E, agora, a “fake news 2.0”, no rastro da inteligência
artificial. E que por tudo isso é preciso proteger, em conceito
de sabor irônico, o “direito à escolha do eleitor”.
É o que se viu nas últimas semanas. Uma resolução da
Justiça Eleitoral tornou as plataformas digitais responsá-
veis pela não retirada, sem ordem judicial, de conteúdos
“fascistas”, de “ódio”, da internet, numa contradição cha-

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INÊS 249

pada com o que diz o marco civil da internet. Uma lei apro-
vada no Congresso. E agora a criação de uma espécie de
superinstância de monitoramento de qualquer coisa, en-
volvendo “ameaças”, “desinformação”, “discursos de ódio”
e as palavras de sempre. Estamos nós, de novo, no ponto
de partida: o plano das boas intenções. Como lá em 2019,
tudo é possível. Novos Monarks, novos PCOs, novos Mar-
cos Cintras, novos Geraldos, e quem sabe, tristemente, no-
vos Clezões. Talvez seja nossa vocação como país. Que o
“Estado de tutela” se instale em definitivo. Que devamos
aceitar o fato da guerra permanente, e logo as práticas
sempre surpreendentes da democracia militante, em nossa
vida institucional. Cada um pode julgar. O ponto: o que era
provisório se tornou permanente. E o que um dia foi exce-
ção, sem cerimônia, vai se transformando em regra. Até
quando? Não faço a menor ideia. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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SOBEDESCE

SOBE
JAVIER MILEI
O presidente da Argentina
comemorou o fato de o país ter
fechado o mês de fevereiro com
uma taxa de inflação de 13,2%,
7 pontos abaixo do índice
registrado no mês anterior.

OPPENHEIMER
O longa foi o grande vencedor do
Oscar ao levar sete estatuetas,
incluindo os prêmios de melhor
filme, direção (Christopher
Nolan) e ator (Cillian Murphy).

MICHAEL JORDAN
O ex-craque da NBA lidera o ranking
mundial de atletas mais ricos de
todos os tempos, com patrimônio
estimado em 3,75 bilhões de dólares.

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INÊS 249

DESCE
REGINA DUARTE
A atriz foi condenada a pagar
30 000 reais de indenização
à família de Leila Diniz por
uso indevido da imagem dela.

JOHN TEXTOR
O dono da SAF do Botafogo
fez uma grave denúncia sem
apresentar provas sobre
manipulação de resultados
no Campeonato Brasileiro.

EDMILSON RODRIGUES
Único político do PSOL a
comandar uma capital do país, o
prefeito de Belém é rejeitado por
75% da população da cidade e, por
isso, enfrenta enorme dificuldade
em sua campanha à reeleição.

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INÊS 249

RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Nicholas Shores


e Ramiro Brites

Um vespeiro penitenciário, o ministro quer


Tragado por uma crise logo mexer no vespeiro da fiscali-
na primeira semana de traba- zação dos CACs pelo Exérci-
lho, o ministro da Justiça, Ri- to e concluir o caso Marielle.
cardo Lewandowski, esta-
beleceu prioridades na pasta Cadastro nacional
para não ter de passar o ano Diante dos dados do TCU,
falando apenas da fuga no que mostram mais de 5 000
presídio federal de Mossoró. registros de CACs concedi-
Além de revitalizar o sistema dos pelo Exército a mortos
TOM COSTA/MJSP

AGENDA Lewandowski: ministro quer tirar fiscalização


dos CACs do Exército

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INÊS 249

e pessoas com antecedentes pularidade, a saída de Lula


criminais, o plano de Le- é... gastar. Daí a pressão sobre
wandowski é entregar o Petrobras e outras estatais.
serviço à PF e criar um sis-
tema único de antecedentes Sem flagrante
criminais no país. A investigação do golpe, diz
uma fonte da apuração,
Tem algo errado chegou a um platô na PF.
Lula venceu Jair Bolsonaro Há muitos indícios contra
prometendo defender a de- Bolsonaro, mas não uma
mocracia e retomar auxílios bala de prata.
sociais. Em quinze meses,
fez tudo isso, mas segue Chegamos ao fim?
vendo sua popularidade Os depoimentos dos ex-co-
derreter no Nordeste. mandantes militares refor-
çam o que já se sabe sobre o
Hora de se renovar plano golpista, complicam
Para um auxiliar de Lula, a situação de Bolsonaro,
há um desgaste das bandei- mas não mudam, segundo
ras que antes impulsiona- fontes da investigação, a na-
vam o petista: “Isso já foi tureza interpretativa sobre
virtude. Agora é só obriga- os crimes cometidos pelo
ção. É preciso mais”. ex-presidente. A conferir.

Fórmula velha Nada mais a dizer


Se dar auxílio e bater em Jair Delator, Mauro Cid acredi-
Bolsonaro já não dá mais po- ta que esgotou sua colabo-

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INÊS 249

ração com a PF sem incri- não há motivo para não


minar Bolsonaro: “Cid não tentar”, diz esse aliado.
é dedo-duro nem traidor,
mas falou sobre tudo que Tudo novinho
foi perguntado. Do ponto Com medo de ter os bens
de vista da defesa, termi- bloqueados pelo STF, Bol-
nou sua colaboração”, diz sonaro reformou sua casa
Cezar Bitencourt. de praia, em Angra dos Reis.
Mas não foi só. Ele também
Nosso candidato deu um banho de loja na ca-
Os ataques de Lula ao mer- sa do Condomínio Vivendas
cado e a acionistas e diri- da Barra, no Rio.
gentes de empresas priva-
das ou de capital aberto es- Efeito pedagógico
tão ampliando a já grande O MPF fechou um Termo
popularidade de Tarcísio de de Ajustamento de Condu-
Freitas na Faria Lima. ta com um militar do Rio
que postou textos golpistas
Mudança de planos nas redes. Pelo acordo, vai
Se continuar assim, diz um pagar 5 000 reais, terá de
aliado de Tarcísio, o gover- fazer curso sobre democra-
nador paulista terá de cia e ficar um período sem
abandonar o plano de ree- usar as redes.
leição estadual por algo
maior: o Planalto. “Com Protocolo Janja
apoio de Bolsonaro e os Recentemente, a primeira-
bons resultados da gestão, dama Janja redefiniu o es-

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INÊS 249

quema de segurança nos


gabinetes dela e de Lula no
terceiro andar do Planalto.
Além de ampliar o espaço
restrito, deu ordens para li-
mitar o trânsito de auxilia-
res no lugar.

Tem de pedir pra entrar


Diante das novas regras, se-
gundo um auxiliar de Lula,

JOÉDSON ALVES/AGÊNCIA BRASIL


Janja deu uma bronca geral
na equipe ao ver que um
ministro havia entrado sem
bater na sala do presidente. FOGO AMIGO Messias:
Pelas novas regras, isso foi ele já foi mais popular entre
uma falha de segurança. servidores da AGU

Até os dentes órgão. Servidores acusam o


Depois de repor o estoque auxiliar de Lula de perse-
de munição, o GSI agora vai guir técnicos não alinhados
comprar granadas e armas ao petismo.
não letais para o Planalto.
Em revisão
Crise interna O órgão da PGR que trata
Chefe da AGU, Jorge Mes- de casos de corrupção vai
sias já foi mais popular no decidir o futuro de uma de-

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INÊS 249

núncia contra Lula. O petis- de reais e agora está parali-


ta, em 2022, usou o avião sada por... corrupção.
de um empresário para uma
viagem internacional. O ca- As minas de Eike
so foi arquivado, mas pode Representante da massa fa-
ser reaberto. lida da MMX, o tributarista
Leonardo Antonelli derru-
Primeiro de muitos bou na Justiça uma multa
Ricardo Nunes acionou de 650 milhões de reais
Guilherme Boulos na Justi- contra a mineradora de Ei-
ça. Diz que o adversário es- ke Batista. O caso concreto
palha fake news contra ele — uma das maiores execu-
nas redes. Pede 100 000 ções fiscais do Rio — envol-
reais de indenização. ve 4 bilhões de reais.

Vai vender Resgate do gigante


Tarcísio de Freitas já tem Um dos cartões-postais de
data para vender as ações Brasília, o Teatro Nacional
da Emae. O leilão será no será revitalizado ao custo
dia 19 de abril. de 62 milhões de reais.

Casa de ferreiro... Deu certo


Em 2021, o MPSP começou A Ovvi, marca de acessó-
a erguer um prédio da insti- rios de celular da Vivo, fa-
tuição na capital. Orçada turou 40 milhões de reais
em 22 milhões de reais, a em 2023, primeiro ano de
obra subiu para 37 milhões operação.

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INSTAGRAM @GIOVANNAANTONELLI
É FAKE Giovanna: criminosos usam a imagem dela
para golpes na internet

Multa milionária Paes, a atriz Giovanna


A Transpetro aplicou re- Antonelli vive um tormento
centemente uma multa de nas redes. É que criminosos
21 milhões de reais à em- usam a imagem delas para
preiteira NM Engenharia. vender cápsulas milagrosas
Ela foi enquadrada na Lei de juventude — um claro
Anticorrupção. golpe. “Já entrei com vários
processos. Além de ser pro-
Golpe da beleza paganda enganosa, o resul-
Ao lado de estrelas como tado é uma grande mentira”,
Fátima Bernardes e Juliana diz a atriz. ƒ

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BRASIL PODER

A BOLHA DO
PRESIDENTE
Ao insistir em fórmulas que já foram testadas e não
deram certo, assumir posições controversas sobre
determinados temas e se manter distante de problemas
reais, Lula afasta uma parcela do eleitorado e começa a
enfrentar os ventos da impopularidade
DANIEL PEREIRA

MONTAGEM FREEPIK.COM; GABRIELA BILÓ/FOLHAPRESS

CAPA: MONTAGEM COM FOTOS DE FREEPIK.COM E GABRIELA BILÓ/FOLHAPRESS

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INÊS 249

L
ogo após assumir seu terceiro mandato na Presidên-
cia da República, Lula ganhou um presente de Jair
Bolsonaro, a quem derrotou na eleição mais acirrada
desde a redemocratização do país. A invasão e a de-
predação das sedes dos três poderes, em 8 de janeiro
de 2023, desgastaram seu principal adversário político, re-
traíram o bolsonarismo e permitiram ao petista — sob o pre-
texto de defender a democracia — estreitar laços com repre-
sentantes do Judiciário e do Legislativo e até com políticos da
oposição. Na esteira de uma fracassada articulação golpista,
abriu-se uma janela para a pacificação do país e consolidou-
se um ambiente de boa vontade com o mandatário, em nome
da reconstrução nacional. Experiente, Lula aproveitou a
oportunidade e conseguiu aprovar projetos importantes no
Congresso, recuperar programas sociais e fazer a economia
crescer acima do esperado pelo mercado. Esses resultados le-
varam-no a acreditar que o governo era um sucesso — se não
de crítica, ao menos de público. Com fama de infalível dentro
do PT, o presidente errou na avaliação e tem sido, ele mesmo,
o catalisador do desgaste de sua gestão.
Desde o ano passado, as imagens de Lula e do governo es-
tão derretendo, como resultado do confronto entre duas reali-
dades. A realidade paralela da bolha de esquerda e dos sabujos
do Palácio do Planalto, que não têm coragem para contestar o
chefe e aplaudem recaídas ideológicas e receitas já testadas e
reprovadas. E a realidade das ruas, nas quais há preocupação
com a segurança pública, o avanço da dengue, a carestia dos

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INÊS 249

AVA L I A Ç Ã O D O G OVERNO

Genial/Quaest
FEV/2023 MAR/2024

Positiva 40 % 35 %
Negativa 20 % 34 %
alimentos e o fantasma da corrupção. Na pesquisa Genial/
Quaest, a aprovação ao trabalho de Lula caiu no final de feve-
reiro ao menor nível desde o início do terceiro mandato, 51%,
enquanto a reprovação alcançou a maior marca, 46%. No le-
vantamento do Ipec, a avaliação positiva do governo também
registrou seu pior resultado, 33%, uma situação de empate téc-
nico com a avaliação negativa, 32% (veja os quadros). Os nú-
meros obrigaram o presidente a se curvar à voz das ruas. Em
entrevista ao SBT, ele reconheceu que o governo estava “muito
aquém” do prometido, mas emendou com o otimismo de pra-
xe: “Até agora, preparamos a terra, aramos, adubamos e colo-
camos a semente. Cobrimos a semente. Este é o ano em que
vamos começar a colher o que plantamos”.
Antes das pesquisas, a autocrítica era uma raridade no
Palácio do Planalto. Encastelados, alguns dos principais as-
sessores presidenciais minimizavam os focos de desgaste,
que, segundo eles, teriam impacto negativo menor do que os
dividendos gerados por uma série de dados econômicos posi-
tivos, como o crescimento do produto interno bruto (PIB), do

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INÊS 249

RICARDO STUCKERT/PR

emprego e da renda do trabalhador. Nesses indicadores hou-


ve de fato avanços, mas, mesmo assim, a percepção da popu-
lação sobre a economia degringolou. Do total de entrevista-
dos pela Genial/Quaest, 38% disseram que a economia pio-
rou nos últimos doze meses, e apenas 26% afirmaram que
melhorou. Foi uma inversão do quadro, já que, em dezembro
passado, 34% declararam que a economia havia melhorado,
enquanto 31% responderam o contrário. Em reação a esse
cenário, alguns petistas reclamaram de uma suposta “disso-
nância cognitiva” do povo, que não estaria percebendo as
conquistas econômicas ou dando o devido crédito ao gover-
no por elas. Outros quadros, de perfil mais técnico, responsa-

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INÊS 249

MIN IST ÉR IO DA ED UC AÇ ÃO
REEDIÇÃO Institutos de educação em 2024 e
em 2008 (no detalhe): Lula 3 não pode ser apenas
a repetição de Lula 2

bilizaram o aumento do preço dos alimentos pela deteriora-


ção das expectativas da população. É uma discussão impor-
tante, mas não dá a dimensão do tamanho do problema.
Mesmo se houvesse entusiasmo popular com os rumos
da economia, nada garante que a avaliação do governo re-
sistiria à queda. Num país polarizado como o Brasil, com
posições tão cristalizadas e antagônicas, outros temas ga-
nharam relevância. Segundo a pesquisa AtlasIntel, os prin-
cipais problemas apontados pela população são “criminali-
dade e tráfico de drogas” e “corrupção”. Em terceiro lugar,
com uma quantidade bem menor de menções, aparece o
quesito “pobreza, desemprego e desigualdade social”. Esse

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INÊS 249

ranking retrata bem o desafio de Lula. Até agora, a gestão


do petista não apresentou um plano consistente para a segu-
rança pública, sob o confortável argumento de que, segundo
a Constituição, a área compete aos estados. No ano passado,
o governo até anunciou medidas para reforçar a vigilância
em portos, aeroportos e fronteiras. Ficou nisso e não conse-
guiu reduzir a sensação de insegurança da população, que,
conforme um antigo conselheiro de Lula, pode explicar a
queda da avaliação positiva do governo entre os mais jovens,
que foram fundamentais para a vitória do PT em 2022.
Do outro lado da trincheira, o bolsonarismo usa a pauta da
segurança pública para desgastar o presidente. Recentemente,
comissões do Senado aprovaram um projeto que endurece as
regras de saídas temporárias de presos da cadeia e uma pro-
posta de emenda constitucional que criminaliza porte e posse
de drogas. Em ambos os casos, os aliados de Lula não impuse-
ram resistência, com medo de prejudicar ainda mais a imagem
do governo. Com a ajuda das redes sociais, onde reina de for-
ma soberana, a extrema direita lança mão também de uma
pauta moral, na qual se destacam temas como o aborto, para
fustigar o presidente, que até aqui não conseguiu conter a san-
gria. A rejeição a Lula entre os evangélicos, por exemplo, bateu
recorde e chegou a 62%, de acordo com a Genial/Quaest. Ape-
sar da ofensiva bolsonarista, a desidratação de Lula não decor-
re principalmente da campanha de desconstrução coordenada
pelo principal adversário político. É o petista, e não o capitão, o
dínamo do derretimento da imagem do governo.

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RIC AR DO ST UC KE RT/ PR

DÉJÀ-VU Petrobras: ingerência política na estatal


tem tudo para dar errado, como deu no passado

Como se sabe, Bolsonaro não resistia à tentação do cercadi-


nho, onde entoava teorias da conspiração, insuflava apoiado-
res radicais e comprava brigas diversas — com a ciência, o Ju-
diciário etc. Lula não tem um cercadinho propriamente dito,
mas quase nunca sai da bolha da esquerda, o que — somado ao
fato de não ter mais ao seu lado conselheiros com intimidade e
peso político para confrontá-lo — faz com que dispare tiros a
esmo no próprio pé. A preocupação popular com a corrupção
tem relação direta com o desmonte da Lava-Jato, que, registre-
se, começou em gestões anteriores. O presidente nunca fez um
mea-culpa sobre o monumental esquema de corrupção desco-
berto pela operação e insiste na tese de que tudo não passou de
uma conspiração internacional destinada a quebrar empresas

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INÊS 249

RICARDO STUCKERT/PR
brasileiras e derrubar o governo do PT. “Tudo o que aconteceu
neste país foi uma mancomunação entre alguns juízes, alguns
procuradores, subordinados ao Departamento de Justiça dos
Estados Unidos, que queriam e nunca aceitaram o Brasil ter
uma empresa como a Petrobras”, discursou Lula ao visitar a
Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco.
Numa mesa de negociação aberta pelo ministro do Su-
premo Tribunal Federal (STF) André Mendonça, no final
de fevereiro, as empreiteiras que protagonizaram o petrolão
começaram a renegociar seus acordos de leniência com ór-
gãos de controle. Apesar de terem confessado seus crimes
anos atrás, receberão refrescos bilionários em suas multas,
tudo sob a bênção do presidente da República. Não dá para

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INÊS 249

AVA L I A Ç Ã O D O G OV ERNO

Ipec
MAR/2023 MAR/2024

Ótimo/Bom 41 % 33 %
Ruim/Péssimo 24 % 32 %
reclamar depois de “dissonância cognitiva”. Há outros ca-
sos de grande repercussão em que Lula contrata desgastes
por conta própria. Na política externa, seus dois desatinos
mais recentes foram comparar a ação do exército de Israel
em Gaza ao Holocausto e endossar o ditador Nicolás Ma-
duro, ao dizer que haverá eleições na Venezuela e omitir
que a candidatura da oposicionista mais competitiva foi ve-
tada (leia a entrevista nas Páginas Amarelas). Apesar de
até aqui apoiar a política econômica do ministro da Fazen-
da, Fernando Haddad, que volta e meia enfrenta o fogo
amigo do PT, o presidente também sabota a administração
quando insiste em receitas de seu partido que já foram tes-
tadas e reprovadas. Entre elas, intervencionismo estatal em
empresas de economia mista e até privadas.
Como parte de seu plano de redimir antigos companhei-
ros, Lula tentou emplacar o ex-ministro Guido Mantega na
Vale. Até agora, não conseguiu — e também não desistiu. A
confusão sobre o pagamento de dividendos extras pela Pe-
trobras também fez reviver o temor de que o Planalto tente

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INÊS 249

FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL


DIVERGENTES Os ministros Silveira e Haddad: apesar dos
avanços, a percepção positiva sobre a economia degringolou

aumentar o nível de ingerência em grandes companhias.


Tem tudo para dar errado, como deu no passado. O caso da
Petrobras, por sinal, é um exemplo perfeito da falta de coor-
denação dentro do governo. O ministro Alexandre Silveira,
de Minas e Energia, e o chefe da Casa Civil, Rui Costa, eram
contra o pagamento dos dividendos extras. Já o CEO da Pe-
trobras, Jean Paul Prates, e o ministro Fernando Haddad
eram favoráveis. A primeira dupla prevaleceu. Até aí, tudo
bem. O problema é que Lula só chamou todos os envolvidos
para debater a questão depois de anunciada a decisão e da
consequente perda bilionária do valor da empresa.
Entusiasmado com o sonho de se tornar um líder global,
o presidente tem mostrado cada vez menos disposição para

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INÊS 249

EDILSON RODRIGUES/AGÊNCIA SENADO


PAUTA DE COSTUMES Congresso: a oposição fustiga o
governo ao aprovar projeto que criminaliza posse de drogas

cuidar dos assuntos do dia a dia da administração. Segundo


seus próprios aliados, esse pode ser um dos motivos para a
falta de uma marca nova para o seu terceiro mandato, que é
sustentado por enquanto por programas lançados em ges-
tões anteriores, como o PAC, o Bolsa Família e o Minha Ca-
sa, Minha Vida. Na terça-feira 12, ele prometeu entregar
mais 100 institutos federais de educação, como fizera em
2008. Essas iniciativas são meritórias, mas podem não ser
suficientes em termos de recuperação e consolidação de po-
pularidade. O mundo mudou. As demandas e os desafios
também. Diante do choque de realidade dado pelas pesqui-
sas, Lula pretende concentrar esforços na agenda interna e
percorrer o país para anunciar projetos e obras. Na próxima

11 | 12
INÊS 249

AVA L I A Ç Ã O D O GOVE RNO

AtlasIntel
JAN/2023 MAR/2024

Ótimo/Bom 41 % 38 %
Ruim/Péssimo 38 % 41 %
semana, deve fazer uma reunião ministerial, em que pedirá
à equipe que pise no acelerador e entregue resultados.
Nos últimos dias, como ocorre quase toda vez em que
uma gestão se sente acossada, voltou a ganhar corpo nos
bastidores a ideia de aumentar os gastos públicos. Setores do
PT defendem há tempos essa medida, que pode ter impacto
nefasto em juros e inflação, por exemplo. Com o aumento da
arrecadação registrado no início do ano, Lula voltou a aven-
tar essa possibilidade. De novo, uma receita já testada e re-
provada. O presidente, que superou diferentes crises em sua
carreira política, pode fazer ajustes aqui e ali, mas só reto-
mará o rumo, segundo um antigo e experiente conselheiro,
se voltar a discursar e decidir levando em consideração a
frente ampla formada em torno dele para derrotar Bolsona-
ro. Recaídas ideológicas, sectárias e populistas até rendem
aplausos fáceis na bolha de esquerda, mas não agradam ao
eleitorado médio, que, apesar de espremido entre as duas
massas de eleitores polarizados, decidiu a eleição de 2022 —
e certamente decidirá a de 2026. ƒ

12 | 12
INÊS 249

BRASIL POLÍCIA

O CORONEL NA
ENCRUZILHADA
Ameaçado e com a carreira por um fio, o
ex-ajudante de ordens de Bolsonaro vai ter de
decidir entre a fidelidade ao ex-presidente e o risco
de voltar à prisão MARCELA MATTOS
PEDRO LADEIRA/FOLHAPRESS

CLÁUSULAS Mauro Cid: acordo para cumprir dois


anos de prisão e salvaguarda para os familiares

1|8
INÊS 249

EM SUA EDIÇÃO da semana passada, VEJA trouxe tre-


chos inéditos do depoimento do tenente-coronel Mauro
Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, em que ele
revela à Polícia Federal detalhes das reuniões ocorridas
no final de 2022 no Palácio da Alvorada, onde teria sido
discutido um plano para anular as eleições e prender au-
toridades como o ministro do Supremo Tribunal Federal
Alexandre de Moraes. Os detalhes da trama teriam sido
comunicados aos comandantes militares. Dois deles, o do
Exército e o da Aeronáutica, desestimularam a empreita-
da golpista. O da Marinha teria colocado as tropas à dis-
posição. Contextualizadas, as informações não deixam
margem a dúvidas sobre as intenções golpistas do ex-pre-
sidente, o que, num primeiro momento, pode resultar nu-
ma acusação contra ele pelos crimes de tentativa de abo-
lição do Estado democrático e golpe de Estado. Mauro
Cid, por isso, é a testemunha que assombra o antigo chefe
— situação da qual, ultimamente, ele tem se esforçado
para se desvencilhar.
Na segunda-feira 11, o ex-ajudante de ordens prestou um
novo depoimento, o sexto desde que assinou um acordo de
colaboração com a polícia. O conteúdo é mantido em sigilo,
mas consta que o coronel teria dado informações que
preencheram lacunas importantes da trama golpista. No
papel de colaborador, Cid não pode mentir. Se o fizer, perde
os benefícios legais que conseguiu e pode, em último caso,
voltar à prisão, onde já esteve por 129 dias, acusado de fal-

2|8
INÊS 249

ESTEVAM COSTA/PR

CONSPIRATA Jair Bolsonaro e os


ex-chefes militares: trama desvendada

sificar cartões de vacinação. Há, porém, algo estranho


acontecendo em relação ao comportamento do ex-ajudante
de ordens. Recentemente, ao reclamar da pecha de delator,
ele não só protestou contra o título como ainda defendeu
Jair Bolsonaro. “Não sou traidor, nunca disse que o presi-
dente tramou um golpe. O que havia eram propostas sobre
o que fazer caso se comprovasse a fraude eleitoral, o que
não se comprovou e nada foi feito”, afirmou. A declaração
não faz nenhum sentido quando confrontada com os fatos
que ele revelou à polícia.

3|8
INÊS 249

Os depoimentos do coronel combinados com os docu-


mentos colhidos pelos investigadores compõem um mosai-
co repleto de evidências de que Bolsonaro e seus principais
auxiliares realizaram um minucioso estudo que visava
contestar as eleições, prender autoridades que se colocas-
sem contrárias à iniciativa e, se necessário, usar a força mi-
litar para garantir o sucesso da operação. Para a PF, já há
evidências mais do que suficientes para indiciar o ex-presi-
dente no inquérito que deve ser concluído até o meio do
ano — e o testemunho de Cid é peça-chave para unir as
várias pontas da apuração. Um recuo do coronel neste mo-
mento, além de comprometer todo o trabalho, lhe traria
uma infinidade de problemas. Para manter os benefícios,
os termos pactuados da colaboração devem ser cumpridos
à risca. O acordo estabelece que, em caso de condenação, a
pena máxima para o ex-ajudante de ordens seria de dois
anos — uma considerável diminuição para quem tinha no
horizonte a perspectiva de sentenças que, somadas, podem
chegar a mais de uma década de cadeia.
Vale ressaltar que, desses dois anos de prisão, Cid já
cumpriu quase a metade, somando os quatro meses em que
ficou detido preventivamente mais o período de uso da tor-
nozeleira eletrônica, que é computado como tempo de cum-
primento de pena. O coronel também garantiu no acordo
que seus familiares serão poupados de qualquer punição,
assim como seus ex-auxiliares que foram presos. Ou seja,
um recuo agora pode complicar a vida dele, da família e de

4|8
INÊS 249

VINÍCIUS SCHMIDT/METRÓPOLES

NÃO SERÁ PROMOVIDO Múcio e Tomás Paiva: governo


fechou questão sobre a promoção do ex-ajudante de ordens

alguns de seus colegas de farda. Caberá ao ministro Ale-


xandre de Moraes, relator do inquérito sobre os atos golpis-
tas do dia 8 de janeiro, definir ao final da investigação o
“prêmio” concedido ao ex-ajudante de ordens, que será de-
verá ser proporcional à relevância de sua contribuição para
o esclarecimento do caso. Não foi por coincidência que, an-
tes da oitiva de segunda-feira, a polícia fez correr a infor-
mação de que qualquer omissão ou mentira do coronel po-
deria levar ao cancelamento do acordo.

5|8
INÊS 249

Mauro Cid, porém, está assustado. Desde que assumiu


o papel de colaborador, ele tem recebido recados pouco
amigáveis e notícias nada alvissareiras. No fim do ano
passado, por exemplo, encaminhou ao Exército a docu-
mentação necessária para a sua promoção a coronel. A
avaliação acontecerá no próximo mês e, por alguma ra-
zão, o tenente-coronel ainda alimentava a esperança de
ascender dentro da força. O Ministério da Defesa, no en-
tanto, já comunicou que isso não acontecerá. O assunto já
foi tratado em uma conversa entre o ministro José Múcio
e o comandante da Força, general Tomás Paiva, que sa-
cramentou o que pode ser o fim da carreira militar do ex-
-ajudante de ordens. Cid também teme pela segurança
dele e da família e, talvez por isso, tenta poupar o ex-pre-
sidente ao afirmar agora que ele nunca tramou golpe,
apesar de todas as evidências. Na versão do tenente-co-
ronel, o decreto que previa subverter o regime democrá-
tico seria apenas um plano de contingência a ser coloca-
do em prática, caso ficasse comprovada a suspeita de que
as eleições haviam sido fraudadas. Se essa afirmação se
resumir a uma tentativa de aplacar a ira do ex-chefe e
seus apoiadores mais radicais, Cid pode estar trilhando
uma rota perigosa. As cláusulas do acordo de colabora-
ção, como se viu, são muito objetivas. Além de não poder
mentir, o coronel só terá direito aos benefícios se as infor-
mações repassadas à polícia tiverem efetividade, ou seja,
ajudarem a desvendar a trama — e não o contrário.

6|8
INÊS 249

TON MOLINA/FOTOARENA

EPÍLOGO Alexandre de Moraes: “prêmio” a Mauro Cid vai


depender da efetividade da colaboração do tenente-coronel

Nas redes sociais, Cid tem recebido ameaças e mensa-


gens enigmáticas sobre a rotina de seus familiares que,
compreensivelmente, lhe tiram o sono. Além disso, gene-
rais que acompanham o caso de perto já advertiram que,
de fato, o colega tem de se cuidar. “O grande medo da fa-
mília é que me coloquem como traidor. Daqui a pouco tem
um maluco aí querendo fazer alguma coisa comigo”, desa-
bafou Cid recentemente. Nas tratativas com a Polícia Fe-

7|8
INÊS 249

deral, ele expressou uma preocupação com possíveis reta-


liações e deixou clara a intenção de sair do Brasil. Como
não é possível, solicitou segurança especial. Desde maio
do ano passado, quando foi preso, soldados do Exército
patrulham as proximidades da casa onde ele mora, no Se-
tor Militar, em Brasília. Temores à parte, Cid sabe que es-
tá solto apenas porque decidiu revelar fatos que viu de
perto, fatos que, por mais que ele tente minimizar, de-
monstram que seu ex-chefe e setores militares no mínimo
flertaram com a ideia de um golpe, o que é crime.
Por mais estranho que pareça, Jair Bolsonaro continua
tratando Mauro Cid como um “bom garoto”, continua
ressaltando que o considera como um filho, mesmo de-
pois das revelações que o deixaram numa situação jurídi-
ca extremamente delicada. Atentar contra o Estado de-
mocrático de direito, vale repetir, pode resultar em até
vinte anos de prisão. Na outra ponta, o tenente-coronel
continua repetindo que sempre cuidou do capitão como
se ele fosse seu pai, que espera que essa tormenta acabe o
mais rápido possível e que acredita até na possibilidade
de o ex-chefe voltar a ocupar a cadeira de presidente da
República. “Se isso acontecer, tenho certeza de que ele
não vai me esquecer”, diz. Uma coisa é certa: diante dos
fatos que já são conhecidos e confirmada a hipótese de
um eventual recuo, é possível que os dois — coronel e ca-
pitão — terminem de fato essa história novamente juntos
— mas não será no Palácio do Planalto. ƒ

8|8
INÊS 249

BRASIL ELEIÇÕES

ALERTA VERMELHO
Aposta da esquerda para São Paulo, Guilherme
Boulos vê seu rival Ricardo Nunes se aproximar em
momento de baixa para ele e seu padrinho, Lula
VALMAR HUPSEL FILHO E ADRIANA FERRAZ

PRESSÃO Boulos: dificuldade para


crescer na campanha

YURI MURAKAMI/FOTOARENA/AGÊNCIA O GLOBO

1 | 10
INÊS 249

GUILHERME BOULOS (PSOL) se consolidou como pré-


candidato à prefeitura de São Paulo já em maio de 2022, quan-
do abdicou de concorrer ao governo do Estado e lançou-se a
deputado federal, em um acordo que garantiu para ele o iné-
dito apoio do PT a um nome de outro partido na maior cidade
do país. Com recall de três campanhas (para presidente em
2018, prefeitura em 2020 e deputado em 2022), em que teve
votações expressivas, ele saiu na frente logo nas primeiras pes-
quisas de intenção de voto. Principal aposta do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e da esquerda para a eleição, Boulos segue
como favorito para chegar ao segundo turno, mas tomou um
choque de realidade com a divulgação das últimas sondagens,
que mostraram um conjunto relevante de problemas no hori-
zonte do psolista. Segundo o Datafolha, ele está agora empa-
tado tecnicamente com o prefeito Ricardo Nunes (MDB) —
30% a 29% — e tem a maior rejeição do eleitorado (34%) no
momento em que seu maior padrinho político também perde
prestígio em São Paulo (veja o quadro).
Boulos era tido como o nome a ser batido já quando Nunes
assumiu o cargo, em maio de 2021, com a morte de Bruno
Covas. Ex-vereador discreto, o prefeito ainda buscava se tor-
nar mais popular, fincar a sua marca na gestão e se creden-
ciar a uma tentativa de reeleição. Três anos depois, Nunes
não só aparece em pé de igualdade com o deputado do PSOL,
mas o supera em segmentos estratégicos do eleitorado, como
entre os mais pobres (com renda familiar até dois salários mí-
nimos), que representam 40% dos votantes. Também viu a

2 | 10
INÊS 249

avaliação de sua gestão subir e hoje é tão conhecido do eleitor


quanto Boulos (85% a 83%).
O cenário de empate técnico a sete meses da votação con-
firma a sensação de que o pleito paulistano será altamente
polarizado entre os dois favoritos, com fortes emoções reser-
vadas ao longo da campanha. Embora o estafe de Boulos não
tenha demonstrado preocupação com o Datafolha, alguns
dados merecem atenção. A aprovação de Nunes, por exem-
plo, vem crescendo à medida que ele se torna mais conhecido.
Para o cientista político Alberto Carlos de Almeida, do Insti-

FOTOGRAFIA
RUIM
Quatro constatações
preocupantes para
Guilherme Boulos
na pesquisa Datafolha

M A I O R R E J E I Ç Ã O
34% DO ELEITORADO NÃO VOTARIA NELE
(ERA 29% EM AGOSTO DE 2023). RICARDO
NUNES MANTEVE 26%

3 | 10
INÊS 249

tuto Brasilis, a aprovação da gestão é o principal índice a ser


considerado numa disputa com candidato à reeleição, porque
o eleitor avalia se quer permanecer com o governo vigente ou
mudar. Almeida lembra que essa avaliação cresceu 12 pontos
percentuais desde abril de 2022, mas precisa crescer mais 11
para deixá-lo em condição privilegiada. “Para que o prefeito

PA D R I N H O E M BA I X A
A APROVAÇÃO A LULA NA CIDADE CAIU 7
PONTOS EM SEIS MESES, E A REPROVAÇÃO
CRESCEU 9

A DV E R S Á R I O E M A LTA
A APROVAÇÃO À GESTÃO DE NUNES SUBIU
DE 23% EM AGOSTO DE 2023 PARA
29% AGORA

D E R ROTA E N T R E
O S M A I S P O B R E S
NUNES BATE BOULOS (30% A 24%) ENTRE
QUEM GANHA ATÉ DOIS SALÁRIOS MÍNIMOS
(40% DO ELEITORADO)

4 | 10
INÊS 249

se torne franco favorito, ele precisa de 40% de ótimo/bom ou


mais”, pontua — Nunes tem hoje 29%.
A estratégia de Boulos passa por impedir que essa me-
lhora continue. A campanha já iniciou ofensiva para au-
mentar a rejeição do prefeito, como um programa em suas
redes sociais para noticiar problemas da cidade e irregula-
ridades da administração. A ideia é colar a imagem de que
o crescimento de Nunes se dá pelo uso ostensivo e irregular
da máquina pública. Segundo a campanha da esquerda,
foram mais de 200 milhões de reais gastos em publicidade,
além de quase 5 bilhões de reais em obras sem licitação nos
últimos dois anos. Em paralelo, o comitê tentará diminuir
a rejeição do próprio Boulos. A avaliação é que houve ao
menos um apontamento positivo no Datafolha: a intenção
de voto espontânea nele cresceu de 8% em agosto para
14% agora. “Isso mostra a solidez da candidatura”, afirma
o marqueteiro de Boulos, Lula Guimarães.
Outra estratégia é mirar o eleitorado mais pobre, que
hoje está majoritariamente com Nunes. Para isso, a campa-
nha conta com ajuda do PT, partido que tem muito mais
capilaridade na periferia. O anúncio da ex-prefeita Marta
Suplicy (PT) como vice, no fim de janeiro, não teve impac-
to até agora — Boulos tem praticamente o mesmo percen-
tual de votos que tinha em agosto (32% a 30%). Mas é cer-
to que o petismo mergulhará na campanha, até porque Lu-
la já deixou claro que vai se empenhar pessoalmente pela
vitória de Boulos. “Houve um estranhamento inicial por-

5 | 10
INÊS 249

RONALDO SILVA/ATO PRESS/AGÊNCIA O GLOBO

ESTRATÉGIA Ricardo Nunes: aposta em um grande


programa de obras

que queríamos que o PT tivesse candidato, mas essa ques-


tão já está superada e estaremos com força total”, anuncia
o deputado estadual Ênio Tatto.
Enquanto sorri com os ventos favoráveis, Nunes tam-
bém prepara a sua estratégia. Um dos pontos é não forçar
a polarização nacional que Boulos e a esquerda tanto dese-
jam. Enquanto a campanha adversária tenta ligá-lo a Bol-
sonaro, chamando-o de apoiador de golpista por ter ido ao
ato convocado pelo ex-presidente na Avenida Paulista, Nu-

6 | 10
INÊS 249

A CORRIDA ELEITORAL
NA MAIOR CIDADE DO PAÍS
GUILHERME BOULOS (PSOL)
30%

RICARDO NUNES (MDB)


29%

TABATA AMARAL (PSB)


8%

MARINA HELENA (NOVO)


7%

KIM KATAGUIRI (UNIÃO)


4%

ALTINO PRAZERES (PSTU)


2%
Fonte: Datafolha — pesquisa feita com 1 090
eleitores entre os dias 7 e 8 de março. A margem
de erro é de 3 pontos percentuais

7 | 10
INÊS 249

ELIANE NEVES/FOTOARENA

INCERTEZA Kim: deputado tem dificuldade de convencer


o próprio partido

nes tenta colar em Boulos a imagem de radical, invasor de


terras e apoiador de extremistas como o Hamas — mas
sempre ataca o candidato e nunca mira em Lula. Com o
bolsonarismo, o desafio é caminhar no fio da navalha, já
que o mesmo Datafolha mostrou que a maioria não o liga
ao ex-presidente e 63% disse que não votaria em um nome
indicado por Bolsonaro. A difícil missão é conquistar o vo-
to de quem é bolsonarista, mas não ser identificado como
tal para o eleitor que rejeita o ex-presidente.
Um ponto que conta a favor do prefeito é que as eleições
municipais, historicamente, tendem a não ser nacionalizadas.

8 | 10
INÊS 249

ELIANE NEVES/FOTOARENA

ALTERNATIVA Tabata: aposta na saturação da polarização


para ganhar terreno

Pesquisas mostram que o eleitor tenderá a se guiar por ques-


tões que atingem seu bairro e seu cotidiano. Por isso, Nunes
aposta nas entregas de obras como unidades de saúde, cre-
ches, parques e recapeamento asfáltico. “A população come-
ça a perceber que não é esse o debate que ela quer”, declarou,
em vídeo distribuído a aliados em comemoração aos resulta-
dos da pesquisa. Para mostrar o que faz, o prefeito também
tem outro trunfo: ele deve ter mais de 60% do tempo de rádio
e TV e a maior fatia dos fundos partidário e eleitoral.
A eleição, claro, ainda está longe. Em sete meses, muita
coisa pode mudar no humor do eleitor e até na configuração

9 | 10
INÊS 249

do páreo. Em terceiro lugar, com 8%, Tabata Amaral (PSB)


aposta na saturação do ambiente polarizado para ganhar ter-
reno. “Isso gera forte desgaste e é aí que o eleitor pode se in-
teressar em ouvir o que ela tem a dizer”, diz o marqueteiro de
sua campanha, Pablo Nobel. Para ele, a alta taxa de desco-
nhecimento (47% não a conhecem) aliada à baixa rejeição
(19%) dão a Tabata um caminho para crescer. No início do
ano, circulou nos bastidores a informação de que Lula plane-
java atuar para tirá-la da disputa. Apoiada pelo vice-presi-
dente Geraldo Alckmin, Tabata não dá sinais de desistir.
Mais difícil é a vida do deputado Kim Kataguiri (União Bra-
sil), que tem 4% e cuja candidatura é fortemente ameaçada
pela intenção de seu partido em apoiar Nunes.
A eleição paulistana sempre foi a mais importante do país,
dado o peso da cidade e o tamanho do seu orçamento (o
quarto maior do país, atrás apenas da União e dos estados de
São Paulo e Minas Gerais). Agora, as atenções devem ser ain-
da maiores em razão do apoio de Lula e Bolsonaro aos dois
favoritos. Boulos carrega nos ombros a missão de levar a es-
querda de volta aos tempos de glória nas eleições municipais.
Enquanto isso, uma vitória de Nunes representaria não ape-
nas um triunfo do ex-presidente: seria também uma demons-
tração de força do governador paulista Tarcísio de Freitas,
outro cabo eleitoral importante do atual prefeito. A disputa
está equilibrada, como mostram as últimas pesquisas, mas o
viés de alta de Nunes inegavelmente acendeu o sinal verme-
lho na campanha adversária. ƒ

10 | 10
INÊS 249

MURILLO DE ARAGÃO

O PARADOXO
POPULISTA
Esse fenômeno na política é fantasia
para enganar incautos

O MUNDO HOJE vive o paradoxo do populismo, no


qual o viés de direita está mais popular do que as ve-
lhas narrativas populistas de esquerda. Sem julgar o
mérito da questão, essa é uma realidade. Os resultados
eleitorais recentes na Argentina e em Portugal e a as-
censão de Donald Trump nos Estados Unidos compro-
vam tal fato.
O que faz o populismo de direita ser mais popular do
que o seu irmão gêmeo, o de esquerda? O fenômeno, seja
de direita, seja de esquerda, pode variar consideravelmen-
te em contextos e períodos históricos diversos.
O melhor momento da versão de direita em compara-
ção com a de esquerda pode ser atribuído a várias razões,
que muitas vezes se sobrepõem e se interagem.
O movimento de direita com frequência capitaliza
questões de identidade nacional, cultural ou étnica. E, em
períodos de mudança demográfica ou crise econômica,
esses assuntos podem se tornar particularmente salientes.

1|3
INÊS 249

Temas relacionados à segurança, imigração e crime


muitas vezes são priorizados pelo populismo de direita.
A promessa de medidas rigorosas contra a criminalida-
de e de controle estrito sobre a imigração pode ser
atraente para segmentos da população que se sentem
ameaçados ou inseguros.
A eficácia com que os movimentos de direita usam
as mídias sociais e outras formas de comunicação pode
ajudar a amplificar a sua mensagem. A habilidade para
contornar os meios de comunicação tradicionais e se
conectar diretamente com o eleitorado pode ser outro
fator-chave.
O populismo de direita costuma se beneficiar do des-
contentamento com as elites políticas e financeiras,
promovendo uma narrativa de defesa “do povo comum”
contra “essas elites”. Isso pode ser especialmente

“Argentina, Portugal e
a ascensão de Trump
comprovam que
o viés de direita está
mais popular”
2|3
INÊS 249

atraente em tempos de crise econômica ou de corrup-


ção política perceptível.
Já a versão de esquerda propõe mais Estado, mais in-
tervenção, uma visão internacionalista das políticas e
uma certa abdicação da liberdade individual em favor
do coletivo. Tampouco constrói uma narrativa de segu-
rança pública, apesar de os regimes populistas de es-
querda serem policialescos.
No Brasil, a vitória de Lula se deveu mais aos equí-
vocos e à rejeição a Bolsonaro do que à aderência a suas
teses. Na sequência, o governo enveredou pela narrativa
que busca popularidade, mas acaba lançando mão do
populismo démodé.
Para o observador atento, de direita ou de esquerda, o
populismo na política deve ser visto como uma fantasia ela-
borada para enganar os incautos. E que prospera com base
em meias-verdades, mentiras, diagnósticos simplistas e
narrativas distorcidas. Essa observação não é meramente
cínica. É um reconhecimento de que a construção da civili-
zação, em várias instâncias, sempre esteve atrelada à capa-
cidade humana de criar e acreditar em histórias que simpli-
ficam, omitem ou embelezam a complexidade da realidade.
A humanidade ainda não parece preparada para se
livrar das soluções populistas que se apresentam. Prin-
cipalmente se nossas expectativas acerca de direitos
continuarem maiores do que as noções a respeito de
nossas obrigações como cidadãos. ƒ

3|3
INÊS 249

BRASIL JUSTIÇA

BRIGADA
ANTI-FAKE NEWS
Perto de deixar o TSE, Moraes cria órgão reunindo
PGR, OAB e Ministério da Justiça para combater velhas
e novas ameaças à democracia BRUNO CANIATO E
ISABELLA ALONSO PANHO

FRENTE AMPLA Moraes: articulação inédita


para garantir a lisura do pleito

LUIZ ROBERTO/SECOM/TSE

1|8
INÊS 249

EM AGOSTO DE 2022, em meio ao alto grau de polariza-


ção política do país, o ministro Alexandre de Moraes assu-
miu a presidência do TSE com um desafio nada pequeno:
conter a propagação de ataques à democracia e fake news na
internet, em especial sobre as urnas eletrônicas. “A interven-
ção da Justiça Eleitoral será mínima, porém será célere, fir-
me e implacável”, disse na posse. A firmeza da autoridade
eleitoral foi, de fato, um componente decisivo da eleição, da
qual Moraes emergiu como uma espécie de “xerife” do Esta-
do contra a ação política delituosa no mundo virtual. Agora,
a poucos meses do término de seu mandato, em junho, ele
lançou na terça, 12, um órgão de amplitude inédita, de cará-
ter multi-institucional, com Executivo, Ministério Público e
outros operadores do direito, na cruzada final de sua gestão
contra um inimigo que ronda a democracia desde 2018.
Em linhas gerais, o novo órgão tem o objetivo de fazer
valer as regras eleitorais mais duras estabelecidas pelo tri-
bunal em fevereiro, que incluem maior responsabilização
das companhias de tecnologia e punições mais rigorosas pa-
ra os políticos. Batizada de Centro Integrado de Enfrenta-
mento à Desinformação e Defesa da Democracia (Ciedde), a
entidade terá representantes do Ministério da Justiça, da
Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), da Procu-
radoria-Geral da República (PGR) e da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil (OAB). A maior promessa é uniformizar os
métodos da Justiça para lidar com a desinformação, servin-
do como guia para os magistrados da primeira instância, e

2|8
INÊS 249

ISTOCK/GETTY IMAGES

MANIPULAÇÃO Inteligência artificial: o inimigo da vez do


processo de votação

promover um sistema rápido de troca de informações para


viabilizar decisões em curto espaço de tempo. Também fo-
ram firmados acordos com as big techs — as principais esta-
vam no evento — para diminuir o tempo de resposta no ca-
so de identificação de material criminoso.
A espiral evolutiva das ameaças virtuais é notável: come-
çou com a distribuição em massa de fake news pelo WhatsA-
pp e Facebook em 2018, se ampliou com a proliferação de
canais e perfis em ambientes pouco fiscalizados, como Tele-
gram e TikTok, em 2022, e chegou ao vilão que mais inspira
temor até agora: a inteligência artificial. O caso mais alar-
mante vem dos deepfakes, vídeos e imagens de pessoas reais

3|8
INÊS 249

digitalmente manipulados. Um caso emblemático ocorreu há


poucos dias nos Estados Unidos, quando partidários de Do-
nald Trump, em tentativa de atrair a simpatia do eleitorado
afro-americano, inundaram as redes com fotos do republica-
no cercado por sorridentes eleitores negros — todas as ima-
gens foram artificialmente geradas com o auxílio de robôs.
As resoluções aprovadas pelo TSE exigem que todo o
conteúdo manipulado digitalmente seja identificado e ve-
tam completamente o uso de deepfakes, mas a fiscalização
terá uma série de obstáculos técnicos. Em geral, as ferra-
mentas generativas mais acessíveis produzem resultados
que podem até enganar o leigo, mas são facilmente desmas-
carados por observadores mais atentos. Os deepfakes mais
sofisticados, por sua vez, são produzidos por profissionais
com computadores mais potentes e conhecimento técnico
considerável — a tecnologia para analisar e desmascarar es-
sas falcatruas existe, mas demanda análise minuciosa. “É
difícil gerar um deepfake que engane os peritos, mas o imen-
so volume de conteúdo que circula na web torna inviável au-
tomatizar esse processo de análise”, diz Carlos Irineu, pes-
quisador em inteligência artificial e colaborador do Instituto
de Estudos Avançados da USP.
Desde que os conteúdos virtuais viraram arma da guerra
política, a dança entre as big techs e o poder público é mar-
cada pela tensão. Uma resistência à cooperação foi vista no
início, o que levou até a enfrentamentos mais duros, como a
retirada do Telegram do ar em 2022 por Moraes. Agora, as

4|8
INÊS 249

companhias dizem que vão


cooperar. A postura incluiu
um solene pacto global pela
integridade das eleições fir-
mado na Conferência de Mu-
nique, em fevereiro, por vinte
das maiores empresas de tec-
nologia. Nos bastidores, po-

TON MOLINA/FOTOARENA
rém, as big techs reclamam
do rigor das exigências, da
dificuldade para identificar OUTRO FRONT Rodrigo
conteúdos ilegais, da capaci- Pacheco: autor de proposta
dade de cumprir as decisões para regular a IA
judiciais em tempo tão rápi-
do — na internet, minutos significam muita coisa — e da ex-
cessiva responsabilização imposta às empresas.
Ao redor do mundo, multiplicam-se os esforços gover-
namentais para enquadrar legalmente gigantes como Goo-
gle, Meta (controladora de Facebook, WhatsApp e Insta-
gram), TikTok e X (antigo Twitter). Na quarta, 13, o Parla-
mento Europeu aprovou a Lei de Inteligência Artificial,
com restrições a sistemas como o reconhecimento digital
de emoções faciais no ambiente de trabalho. No mesmo
dia, a Câmara dos EUA aprovou o banimento do TikTok
sob alegações de espionagem pela chinesa ByteDance, do-
na do aplicativo. O Congresso americano já vinha fechan-
do o cerco contra as plataformas desde janeiro, quando o

5|8
INÊS 249

fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, foi intimado a


depor sobre abuso infantil em suas redes.
Pelo lado do Legislativo brasileiro, tudo anda mais de-
vagar. A principal aposta é o Marco Civil da Inteligência
Artificial, projeto do presidente do Senado, Rodrigo Pa-
checo (PSD-MG). O senador Marcos Pontes (PL-SP), vi-
ce-presidente da Comissão para Inteligência Artificial do
Senado, diz que a ideia é criar uma espécie de conselho
composto por múltiplos órgãos de governo para segmen-
tar as normas específicas sobre IA em cada setor e adap-
tá-las constantemente aos avanços tecnológicos. “A inteli-
gência artificial é como a tecnologia nuclear. Tem inúme-
ros usos benéficos para a ciência e as indústrias, mas tam-
bém pode ser usada para a criação de uma bomba atômi-
ca”, pontifica o ex-astronauta. Outra iniciativa, o PL das
Fake News (2630/20), não avançou nem apoiado pelo po-
deroso presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e pelo
governo Lula. Anunciado como prioridade para este ano,
sua retomada sequer é discutida hoje.
A falta de um arcabouço legal consistente acaba deixando
exposta a Justiça Eleitoral, várias vezes acusada de promover
a censura ao mandar retirar conteúdos da internet. “O TSE
está tentando esticar a corda para fazer com que esses atores
(Ciedde e big techs) tenham mais proeminência no combate
ao discurso de ódio. Mas é complicado deixá-los agir sem
uma legislação sobre o tema”, afirma Yasmin Curzi, profes-
sora da FGV Direito Rio e coordenadora do projeto Mídia e

6|8
INÊS 249

REPRODUÇÃO

CAMPANHA SUJA Montagem de Donald Trump com eleitores


negros: tudo o que está nesta foto foi gerado por robôs

Democracia. Dentro das campanhas, também há preocupa-


ção com arbítrios. “A IA é mais do que as fake news. Com ela,
é possível estabelecer segmentações, fortalecer bolhas e tra-
balhar em grande escala a construção de opiniões. Como o
TSE vai atuar com isonomia e capacidade de solução?”, diz o
marqueteiro político Bruno Bernardes, da PLTK.
Há, por fim, uma curiosa ironia na cruzada do TSE: a
mesma instituição que deu exemplo ao implantar uma das
votações eletrônicas mais modernas do planeta é agora o
santo guerreiro contra o dragão do mau uso da tecnologia.
“A Justiça Eleitoral do Brasil, que sempre se beneficiou em

7|8
INÊS 249

ALEX WONG/GETTY IMAGES

AÇÃO RADICAL Fãs do TikTok: protesto contra o


banimento da rede nos EUA

larga escala do uso da tecnologia de ponta, paradoxalmente


se vê diante dos riscos de desnaturação dela”, afirma o ex-
ministro da Corte Tarcísio de Carvalho Neto. O enfrenta-
mento do problema é de, fato, complexo, mas não pode ser
feito sem obstinação, clareza e continuidade. O ministro
Alexandre de Moraes, com seus erros e acertos, realizou im-
portantes avanços. Mas é fundamental que o esforço possa
ter sequência com a atuação de um órgão mais amplo, com
mais agentes institucionais e mais estrutura para poder en-
frentar o monstro de sete cabeças que povoa as redes sociais
— que não só cresce, como se renova a cada dia. ƒ

8|8
INÊS 249

CRISTOVAM BUARQUE

ÊXITO PESSOAL,
FRACASSO NACIONAL
O descaso com a educação faz o país
avançar muito pouco

NOS ESPORTES, só comemoramos o vencedor — o segun-


do colocado não recebe festa. Na educação, porém, conside-
ramos vitória um avanço pessoal, ainda que seja prova de
fracasso nacional. A televisão tem mostrado a fala de um jo-
vem brasileiro celebrando ser o primeiro de sua família a in-
gressar em curso superior. Não há dúvida do sucesso do me-
nino ao ser uma exceção em sua família. Mas seu sucesso
pessoal e a publicidade como êxito social são provas do des-
caso nacional com a educação. Na terceira década do século
XXI, duzentos anos depois da independência, quase um sé-
culo e meio de república, quarenta anos depois da redemo-
cratização, quinze anos de governos de esquerda, o atual
ocupante do Planalto comemora o primeiro membro de
uma família a ingressar no ensino superior.
A publicidade revela fracasso ao admitir que o êxito do
jovem ainda é uma exceção, sem mesmo dizer qual a qua-
lidade de seu curso para dar-lhe chances na vida e condi-
ções de ajudar a construir um Brasil melhor. O governo

1|3
INÊS 249

ignora o fracasso público de não conseguir assegurar a


conclusão da educação de base com qualidade a todos os
brasileiros, independentemente da renda e do endereço de
suas famílias. O jovem merece aplausos, mas sua glória
indica que dez governos democráticos ainda comemoram
a exceção devido ao descuido por não terem feito do in-
gresso na faculdade uma regra natural do talento de cada
jovem, de qualquer origem social.
Quando o jovem brilhante e bem-sucedido que aparece
na publicidade do governo nasceu, a democracia já tinha 20
anos, o presidente Lula já estava no poder. Desde então, o
Brasil assistiu a diversas políticas públicas positivas que
permitiram aumento substancial no número de vagas no
ensino superior, inclusive graças à adoção de cotas raciais e
sociais. Sem esse aumento de vagas e essas cotas, o jovem
talvez não tivesse conseguido ser o primeiro da família a

“É como se, no lugar


de promover a abolição,
comemorássemos
a alforria de um
jovem brilhante”
2|3
INÊS 249

ingressar no ensino superior, mas os governos democráti-


cos, inclusive de esquerda, não conseguiram fazer com que
todos os jovens terminem a educação de base em cursos de
qualidade para poder caminhar na vida em busca da felici-
dade pessoal, dispondo do conhecimento necessário para
participar da construção do país, e ao mesmo tempo dispu-
tar vaga no ensino superior em condições iguais, indepen-
dentemente da desigualdade social na sua origem. O gover-
no comemora o êxito pessoal devido ao fracasso governa-
mental: a justa comemoração de uma família pobre por
conquistar a exceção do ingresso no ensino superior decor-
re da pobreza do governo na educação de base.
É como se, no lugar de promover a abolição da escravatura
para todos, os governos ainda hoje comemorassem a alforria
de um jovem brilhante que consegue o raro feito de ser o pri-
meiro de sua família a sair da escravidão ao ingressar no ensi-
no superior. Esta não é a única pobre comemoração relaciona-
da com a educação de base: o governo comemora o aumento
no número de famílias que recebem o Bolsa Família em vez
de comemorar a redução no número das famílias necessita-
das dessa ajuda para a sobrevivência sem fome; comemora a
intenção de alfabetizar crianças aos 8 anos, quando todos já
deveriam saber ler aos 5; cria auxílio para aumentar algumas
vagas em horário integral, em vez de adotar as escolas nos
municípios sem condições de educar suas crianças com máxi-
ma qualidade e total equidade, a despeito da renda e do ende-
reço. Precisamos parar de comemorar exceções. ƒ

3|3
INÊS 249

BRASIL CONGRESSO

A POLÍTICA
COMO ELA É
Suspeita de atentado transforma disputa pelo
controle do União Brasil em um caso de polícia que
tem troca de acusações, denúncia de corrupção e
ameaças de morte LARYSSA BORGES

JOGO SUJO Rueda: casas destruídas e gravações com


ameaças de morte a ele e à filha, uma criança de 10 anos

CRISTIANO MARIZ/AGÊNCIA O GLOBO

1|6
INÊS 249

NA QUARTA-FEIRA 13, o União Brasil instaurou um


processo para expulsar o deputado federal Luciano Bivar,
ninguém menos que o presidente do partido. Dois dias an-
tes, em Pernambuco, o fogo destruiu uma casa do advoga-
do Antonio Rueda, vice-presidente da sigla, e outra da ir-
mã dele, a tesoureira. Os dirigentes travam há meses uma
disputa pelo comando da legenda, a terceira maior do país,
que tem 59 deputados, sete senadores e um orçamento su-
perior a 500 milhões de reais este ano. Rueda disse que ele
e a irmã foram alvo de um atentado político e não precisou
nem citar o nome de quem eles consideram como o princi-
pal suspeito. O embate entre os Rueda e Bivar já rendeu
ameaças, inclusive de morte, e atingiu o ponto de ebulição
REPRODUÇÃO

LABAREDA Destroços nas casas: vestígios


indicam que incêndio foi criminoso

2|6
INÊS 249

com o incêndio supostamente criminoso. Uma das estrelas


do partido, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, clas-
sificou o ataque como inaceitável, assinou a representação
para a expulsão do deputado e disse que pedirá ao Tribu-
nal Superior Eleitoral a cassação do mandato do colega.
Na iminência de ser destituído do cargo, Bivar anunciou
que cairia atirando — e cumpriu a promessa.
Sem apresentar uma mísera evidência, o presidente do
União acusou o seu vice de utilizar a estrutura da sigla pa-
ra traficar influência, mercadejar alianças políticas e ne-
gociar facilidades junto a tribunais superiores. Também
afirma ter cedido um barco e um imóvel em Miami para
supostas tramoias do ex-aliado, vincula a esposa dele ao
furto de um cofre de sua propriedade e ainda insinua que o
desafeto desviou dinheiro do caixa do partido. Bivar tam-
bém imputa ao governador Ronaldo Caiado o envolvimen-
to num assassinato em Goiás — sem provas, evidentemen-
te. Em nota, o governador negou ser investigado no caso,
afirmou que Bivar “mente de forma despudorada e crimi-
nosa” e disse que acionará judicialmente o parlamentar.
Poucas atividades são tão cobiçadas quanto a de dirigente
de partido político. As atuais 29 legendas movimentarão em
2024, um ano eleitoral, mais de 6 bilhões de reais em recur-
sos públicos — uma estrutura que, quando mal admi-
nistrada, se transforma numa máquina de produzir escânda-
los. Com apenas dois anos de existência, o União Brasil pode
superar tudo que já se viu até hoje em termos de absurdo.

3|6
INÊS 249

FLICKR @UNIÃO NA CÂMARA

SEM PROVAS Bivar: cofre roubado, acusações


de desvios e assassinato

Antigos aliados que conhecem muito bem o passado


um do outro, Bivar e Rueda protagonizam uma troca de
acusações de arrepiar. Antes de ter a casa incendiada, o
vice-presidente da sigla já havia denunciado à Justiça três
ameaças que teria sofrido por parte do agora adversário.
No processo, ao qual VEJA teve acesso, Rueda afirma ter
tomado conhecimento de um plano para matá-lo. Segun-
do ele, Bivar teria confidenciado a uma pessoa próxima
que já havia contratado assassinos de aluguel e reservado
20 milhões de reais para concretizar a empreitada.
O advogado arrolou como testemunha o vereador Mil-
ton Leite, presidente da Câmara Municipal de São Paulo,
que teria ouvido a confissão do deputado. Procurado, Lei-

4|6
INÊS 249

te disse que não iria comentar. Rueda também anexou ao


processo um áudio mostrando que Bivar teria ameaçado
de morte ele e a filha, uma criança de 10 anos de idade, e
outro contendo o relato de uma pessoa sobre uma embos-
cada armada para surpreendê-lo em Brasília. Essa última
gravação foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal
uma semana antes do incêndio em Pernambuco.
Localizadas a cerca de 500 metros de um imóvel de
Bivar e dentro de um condomínio particular no município
de Ipojuca (PE), as duas casas começaram a pegar fogo si-
multaneamente. Em ambas, as labaredas atingiram pri-
meiramente os móveis, o que reforça a possibilidade de
uma ação criminosa. Ouvido por VEJA, o deputado mini-
miza o conteúdo das gravações e nega envolvimento com
os incêndios. “Se fizerem alguma ilação direta entre mim
e isso que aconteceu vou processar quem quer que seja
por danos morais”, disse Bivar. Mais uma vez sem provas,
ele jura que também foi ameaçado pelo advogado. “A dife-
rença é que eu não gravei. Mas ele ameaçou minha famí-
lia”, diz. Em nota, Rueda disse que as acusações de Bivar
são “absurdas e fantasiosas” e afirmou que o contra-ata-
que do deputado tem “o objetivo espúrio de tentar desviar
o foco das ameaças e dos graves atentados ocorridos em
nossas residências no litoral de Pernambuco”.
O União Brasil nasceu da fusão entre o DEM e o PSL,
partido que era presidido por Bivar em 2018 e pelo qual
Jair Bolsonaro se elegeu presidente da República. Logo no

5|6
INÊS 249

início do governo, o deputado se desentendeu com a ala


bolsonarista da legenda que, na época, se empenhou para
reabrir a investigação de um rumoroso crime ocorrido em
1982 envolvendo Bivar. O caso foi noticiado por VEJA em
novembro de 2019. Há quarenta anos, o deputado foi
apontado pela polícia de Pernambuco como suspeito da
morte de uma massagista, com quem teria tido um caso
amoroso. O corpo da mulher apareceu boiando no Rio
Capibaribe, em Recife. O inquérito nunca foi concluído.
Perguntado a respeito, ele disse que a tentativa de enredá-
-lo no assassinato foi uma armação perpetrada por seus
inimigos e que nunca foi sequer intimado a prestar escla-
recimentos sobre o assunto. Nada de novo, portanto. Coi-
sas da política. ƒ

6|6
INÊS 249
INÊS 249

RADAR ECONÔMICO
VICTOR IRAJÁ

Com reportagem de Diego Gimenes,


Felipe Erlich e Pedro Gil
BENNY MARTY/ALAMY/FOTOARENA

SORTE Hotel da MGM: empresa quer


entrar no mercado brasileiro de jogos on-line

Aposta certeira apostas on-line. As empre-


Os grupos americanos Hard sas deram entrada na pape-
Rock e MGM, donos de ne- lada para obter a licença.
gócios como restaurantes,
cassinos e resorts, manifes- Novos hábitos
taram ao Ministério da Fa- Marcelo Odebrecht, ex-presi-
zenda interesse em entrar dente da construtora Ode-
no mercado brasileiro de brecht (agora chamada de

1|3
INÊS 249

Novonor) e condenado por Pronto para decolar


corrupção no âmbito da Ope- Está em análise no Tribu-
ração Lava-Jato, tomou gosto nal de Contas da União
pelo trabalho voluntário. (TCU) um plano de inves-
timentos apresentado pelo
Vida que segue governo para a realização
Durante dois anos, para re- de reformas em 100 aero-
duzir sua pena por corrup- portos regionais.
ção, Odebrecht trabalhou no
setor administrativo do Hos- Apertem os cintos
pital das Clínicas, em São Para o plano ser aprovado,
Paulo. A pena foi concluída contudo, o TCU exige que
no ano passado, mas ele re- o governo forneça mais de-
solveu continuar prestando talhes sobre o plano de in-
o serviço voluntário no HC. vestimentos e os critérios
adotados para definir o
Funcionário do mês destino do dinheiro.
Procurado pelo Radar Eco-
nômico, o HC afirma que o Panela quente
empresário “participa de Duas gestoras de redes de
discussões de casos admi- restaurantes, a Antaris Fran-
nistrativos hospitalares, chising e a Foods Brands,
contribuindo com sua ex- controladoras de marcas co-
periência na formação de mo Johnny Rockets e Cuor
residentes médicos e apri- di Crema, juntaram esforços
morandos em Administra- para criar a holding Antaris
ção em Saúde”. Foods Brands Franchising.

2|3
INÊS 249

Com apetite estadual paulista, com um


O empreendimento conjun- endividamento de 7,9 bi-
to abarca doze marcas e lhões de reais.
projeta um faturamento de
250 milhões de reais neste Sem substituição
ano. Atualmente, as redes A próxima assembleia de
totalizam 150 lojas no Bra- acionistas da Vale, que vai
sil, mas pretendem ultra- ocorrer em abril, não deve-
passar 200 em 2025. rá deliberar sobre a substi-
tuição do conselheiro José
Devo, não nego... Luciano Penido — que saiu
A Secretaria da Fazenda do atirando contra o processo
Estado de São Paulo deter- de sucessão da empresa.
minou que a Fera Distri- Segundo o estatuto da mi-
buidora de Combustíveis, neradora, a Vale precisa ter
empresa que tem contrato de onze a treze conselhei-
de exclusividade com o ros para ser operacional.
Grupo Refit, pague 39,6 Com a saída de Penido, so-
milhões de reais devidos ao braram doze agora. ƒ
Fisco paulista. Não é muita
OFERECIMENTO
coisa: o Grupo Refit é o
maior devedor do imposto

3|3
INÊS 249

ECONOMIA GOVERNANÇA

ALOISIO MAURICIO/FOTOARENA

TENSÃO Bartolomeo, presidente da Vale:


o PT quer o cargo dele

INGERÊNCIAS
NEFASTAS
O governo Lula interfere na política de distribuição
de dividendos da Petrobras e embaralha a
sucessão do presidente da Vale. Isso é péssimo
para as empresas, mas pior ainda para o Brasil
JULIANA MACHADO E PEDRO GIL

1 | 10
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DADO GALDIERI/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

FOGO CRUZADO Prates, chefe da Petrobras:


visão oposta à de Lula

P
oucas empresas na história do Brasil, talvez nenhu-
ma, foram tão maltratadas pelos governantes de
ocasião quanto a Petrobras. Desde a sua criação, em
1953, pelo presidente Getúlio Vargas, a petrolífera
tem sido alvo de pressões políticas que frequente-
mente determinam os caminhos que ela deverá seguir. Foi
assim com o próprio Getúlio, que inventou a campanha “o
petróleo é nosso”, e com os governos militares, que fizeram a
estatal trabalhar a favor do slogan “Brasil grande”. Os gover-
nos petistas, contudo, têm especial predileção por mexer

2 | 10
INÊS 249

com a companhia. Nos dois primeiros mandatos do presiden-


te Lula e na gestão Dilma, o esquema conhecido como petro-
lão custou aos cofres da Petrobras, segundo investigação da
Polícia Federal, prejuízos estimados em 43 bilhões de reais.
Apesar das péssimas experiências no passado, o PT decidiu
novamente usar a empresa como instrumento político —
com impactos econômicos, mais uma vez, desastrosos.
Há alguns dias, a estatal anunciou, em conjunto com a
apresentação do balanço do quarto trimestre, que não paga-
rá dividendos extraordinários aos acionistas, ou seja, não
distribuirá recursos acima do mínimo estabelecido no seu
estatuto social. A decisão tomada pelo conselho de adminis-
tração atendeu a um pedido do presidente Lula e contrariou
avaliações técnicas feitas por boa parte dos diretores e con-
selheiros da empresa, incluindo o seu próprio presidente,
Jean Paul Prates. A inapropriada ingerência de Lula fez a
Petrobras perder, em apenas um dia, 56 bilhões de reais em
valor de mercado em razão da queda de 10% do valor de
suas ações na bolsa de valores. “A Petrobras faz política so-
cial ao pagar impostos e royalties e ao gerar empregos e in-
vestimentos”, afirma Adriano Pires, diretor do Centro Bra-
sileiro de Infraestrutura “Agora, o governo quer voltar ao
passado com uma política que nunca deu certo.”
O argumento de Lula para cortar o pagamento de divi-
dendos é que os recursos que seriam distribuídos aos acionis-
tas voltarão ao Brasil na forma de investimentos feitos pela
Petrobras. Trata-se de uma visão torta — os gestores da em-

3 | 10
INÊS 249

PERDAS BILIONÁRIAS
O efeito negativo das decisões políticas

EMPRESA

QUANTO PERDEU EM VALOR DE MERCADO


EM 2024 DESDE O SEU PONTO MÁXIMO

69 BILHÕES
DE REAIS

4 | 10
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EMPRESA

QUANTO PERDEU EM VALOR DE MERCADO


EM 2024 DESDE O SEU PONTO MÁXIMO

92 BILHÕES
DE REAIS

Fonte: Elos Ayta Consultoria

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INÊS 249

presa, e não o presidente da República, deveriam estabelecer


o destino do dinheiro e a partir de critérios meramente técni-
cos. Note-se também que o próprio governo federal sai per-
dendo. “O governo está tentando aumentar a arrecadação,
mas nega receber os dividendos da empresa que poderiam
ser usados para ajudar a fechar as contas do país”, disse a
VEJA Roberto Castello Branco, ex-presidente da Petrobras.
“É uma decisão irracional.” Castello Branco conhece bem a
mão pesada dos políticos. Ele foi demitido do comando da
companhia pelo então presidente Jair Bolsonaro, que o insta-
va a reduzir o preço dos combustíveis. O executivo resistiu
quanto pôde. “Essas pressões prejudicam o ambiente de ne-
gócios e afugentam investidores”, afirma. “Iniciativas inter-
vencionistas são perniciosas para a avaliação de riscos.”
O cenário de ingerência não está restrito à petrolífera. A
Vale, outra empresa estratégica para os políticos, também
tem sofrido com o barulho provocado por Lula, que tentou
emplacar o ex-ministro Guido Mantega no comando da
companhia e com suas atitudes tem embaralhado o proces-
so sucessório do atual presidente, Eduardo Bartolomeo. No
caso da Vale, as investidas de Lula são ainda mais chocan-
tes. Trata-se de uma empresa de controle privado, que não
deveria dar satisfação aos palpiteiros de Brasília. Lula, de fa-
to, tem provocado estragos com seu jeito peculiar de fazer
política. Em carta de renúncia apresentada aos colegas, o
conselheiro independente da Vale José Luciano Penido afir-
mou que a transição na mineradora vem sendo conduzida

6 | 10
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SOB PRESSÃO
Desempenho das
ações da Petrobras em
períodos de crise QUANTO A
COTAÇÃO DOS
EVENTO DATA PAPÉIS CAIU

Joesley Day 18/5/2017


16%
Greve dos 28/5/2018
caminhoneiros 15%
Saída de Pedro 1/6/2018
Parente da presidência 15%
da empresa

Início da pandemia 12/3/2020


de Covid-19 20%
Demissão de Roberto 19/2/2021
Castello Branco da 8%
presidência da empresa

Corte de dividendos 8/4/2024


extraordinários 10%
Fonte: Investing

7 | 10
INÊS 249

LUIZ FERNANDO MENEZES/FOTOARENA

NA MIRA Plataforma da Petrobras: interferência política afasta


investidores e põe em risco a saúde financeira da empresa

“de forma manipulada, não atende ao melhor interesse da


empresa, e sofre evidente e nefasta influência política”.
Sob os ruídos políticos, e mais queda de preço do mi-
nério de ferro, a Vale recentemente viu evaporar 69 bi-
lhões de reais em valor de mercado desde a cotação mais
alta de suas ações. Ou seja, quem tem recurso investido na
empresa perdeu dinheiro. “Minha impressão é que inco-
moda ao Penido não só a intervenção do governo, mas os
interesses de cada um dos acionistas que têm representan-
tes no conselho e olham para si próprios e para suas em-
presas, como é o caso de Cosan, Bradespar e Mitsui”, afir-

8 | 10
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ENTRADAS E SAÍDAS
Movimento de recursos
estrangeiros na bolsa brasileira
(em bilhões de reais)

120
120

100

80

56
41
60

40

20
2024
0

-20
2021 2022 2023

-40
-21 *

* Dados até 8 de março


Fonte: B3

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ma um gestor de ações de uma grande casa. “É uma em-


presa disfuncional no modelo de governança.”
Não é difícil ver os impactos danosos das ingerências po-
líticas em empresas que deveriam caminhar com as próprias
pernas. Como gigantes da bolsa, ao ser abaladas, Petrobras
e Vale acabam afastando investidores locais e estrangeiros e
contaminando, assim, todo o mercado — juntas, suas ações
representam 24% do Ibovespa, principal índice da bolsa de
valores. Para ter ideia, em 2024 o indicador está no campo
negativo, enquanto as bolsas nos Estados Unidos, Europa e
Japão alcançaram recentemente as suas máximas históri-
cas. Outro dado alarmante é a debandada de investidores
estrangeiros da bolsa brasileira, que deveria atrair capital de
risco. Em 2024, eles já sacaram 21 bilhões de reais da B3 —
e o ano mal começou. Para efeito de comparação, a bolsa re-
gistrou em 2023 captação positiva de 56 bilhões de reais.
A desvalorização das ações das empresas e a consequen-
te perda de bilhões de dólares em valor de mercado afetam
as suas capacidades de competir com rivais estrangeiros. No
caso da Petrobras, a ação já é historicamente negociada com
um nível de “desconto” maior em relação a pares globais, in-
corporando os riscos de uma companhia com controle com-
partilhado com o governo. Nos últimos dias, os problemas
dessa mistura ficaram evidentes. Enquanto os governantes
teimarem em achar que grandes empresas existem para ser-
vir aos seus interesses políticos, o mundo corporativo brasi-
leiro e o desenvolvimento do país estarão ameaçados. ƒ

10 | 10
INÊS 249

MAÍLSON DA NÓBREGA

É CORRETO IMITAR OS
ESTADOS UNIDOS?
A comparação com a política industrial
americana é imprópria

INTEGRANTES do governo defenderam o plano Nova


Indústria Brasil (NIB), alegando que os Estados Unidos
teriam adotado ações semelhantes. De fato, países ricos
têm aprovado políticas industriais, mas não se pode con-
fundir alhos com bugalhos.
A NIB reedita fracassadas medidas que geraram desper-
dícios e beneficiaram grupos bem conectados, o que inibiu a
produtividade. Claro, há aspectos positivos, como o de in-
centivar a inovação, mas se começou com empréstimo sub-
sidiado de 500 milhões de reais a uma empresa automobi-
lística. Será que ela precisaria do Brasil para enfrentar a
competição da indústria chinesa?
Logo após, o presidente do BNDES defendeu apoio à in-
dústria naval. Comparou a produção de navios à de aerona-
ves da Embraer. Seria como se seu êxito fosse reproduzível
em novo programa naval. Difícil. Nos anos 1980, exportáva-
mos navios, mas isso acontecia porque, além dos incentivos
fiscais, o governo complementava a receita das empresas,

1|3
INÊS 249

pagando-lhes 40% do que recebiam por navio. Desde então,


nenhuma reencarnação do programa deu certo.
Segundo o economista Daron Acemoglu em Letter from
America: When Industry Means Hard Work (Royal Econo-
mic Society, res.org.uk), as medidas americanas objetivam
“a transição verde, a competição tecnológica com a China e
a revisão das cadeias globais de valor”. Neste último caso, os
efeitos da pandemia de Covid-19 evidenciaram a vulnerabi-
lidade a cadeias longas de produção. Busca-se, assim, realo-
cá-las para países mais próximos (nearshoring) ou amigos
(friendshoring). O objetivo não é a industrialização, mas
atender a questões de segurança nacional. A presidente da
Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, falou em de-risk:
afastar o risco de dependência dos suprimentos da China.
Acemoglu lança alertas sobre as políticas industriais do
governo Biden. Elas precisavam, disse, ser baseadas em es-

“A política
industrial deveria
adotar medidas de
avaliação permanente
de suas ações”
2|3
INÊS 249

tudos bem documentados sobre a existência de falhas de


mercado, de forma a justificá-las, o que parece não ter acon-
tecido. Para ele, foram poucos os casos de sucesso de tais
políticas. Cita especificamente os da Finlândia e da Coreia
do Sul. Políticas industriais, conclui, necessitam mirar a
competitividade, e não a escolha de vencedores, como ocor-
reu frequentemente na América Latina.
Outro conceituado analista, o jornalista Fareed Zakaria,
também criticou as políticas industriais de Biden. Assinalou
que elas têm sido crescentemente defensivas, como se desti-
nadas a proteger “um país que supostamente se perdeu nas
últimas décadas”. Seu artigo na mais recente edição da re-
vista Foreign Affairs enfatiza, ao contrário, a ideia de que os
Estados Unidos estão hoje mais fortes. Logo, a necessidade
da política industrial seria questionável.
Sobre a NIB, ainda há muito a fazer e a explicar. Por
exemplo, adotar medidas para avaliação permanente de
suas ações, bem como sua pronta interrupção se não corres-
ponderem às expectativas do governo e do país. No passado
não foi assim. Agora será? ƒ

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INÊS 249

ECONOMIA NEGÓCIOS

UMA CARGA DE
100 BILHÕES
Montadoras anunciam investimentos recordes no
Brasil, mas o objetivo não é a expansão de fábricas.
O grosso do dinheiro será para lançar carros
híbridos e elétricos JULIANA ELIAS

APOSTA Loja da chinesa BYD: empresa terá fábrica de


elétricos no Brasil

KOJI NAKAYAMA/YOMIURI/AFP

1|6
INÊS 249

EM DEZEMBRO do ano passado, a chinesa BYD, uma das


maiores fabricantes de carros elétricos do mundo, chegou pe-
la primeira vez à lista das dez marcas de automóveis mais
vendidas no Brasil, de acordo com a Fenabrave, federação que
reúne as concessionárias. A empresa colocou no mercado, na-
quele mês, 5 500 carros elétricos e híbridos — exatamente um
ano antes sua venda mal chegara a 100 unidades. A ascensão
da novata ajuda a explicar os investimentos bilionários que as
montadoras vêm anunciando no país. Nas contas da Anfavea,
associação dos fabricantes de veículos, já são ao menos 100
bilhões de reais encomendados para os próximos anos. “É o
nosso maior ciclo de investimentos de todos os tempos, e ain-
da há outros anúncios por vir”, diz o presidente da Anfavea,
Márcio Leite. GM, Hyundai, Nissan, Renault, Stellantis, Toyo-
ta e Volkswagen integram a lista das que divulgaram aportes
do meio do ano passado para cá, além da BYD e da também
chinesa Great Wall Motors (GWM), que estão fazendo suas
primeiras fábricas de carros elétricos no Brasil.
Ao contrário de ciclos anteriores de investimentos, o foco
atual não está na expansão da produção. Na verdade, isso
não faria sentido — as fábricas estão ociosas e sofrem para
retomar os níveis de 2013. Desta vez, o grosso do dinheiro
irá para o desenvolvimento de produtos, com grande parte
dos recursos sendo destinada a preparar o lançamento de
veículos híbridos e 100% elétricos. “Virou uma corrida do
ouro para ter eletrificados no portfólio”, diz Ricardo Bacel-
lar, consultor especializado na indústria automotiva. “Quem

2|6
INÊS 249

EM ACELERAÇÃO
As vendas de veículos
elétricos e híbridos no Brasil 93 900
(em unidades)

80 000

60 000

40 000

20 000

1 100
0

2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

Fonte: ABVE

3|6
INÊS 249

JB LACROIX/FULL PICTURE AGENCY/AFP

NA TOMADA Abastecimento de elétrico:


menor custo de manutenção

não tiver vai perder espaço.” Um dos casos mais surpreen-


dentes é o da ítalo-franco-americana Stellantis, que planeja
trazer quarenta carros para o mercado brasileiro, introduzir
tecnologias e desenvolver motorizações híbridas e elétricas.
O universo dos eletrificados inclui os veículos 100% elé-
tricos, movidos só a bateria, e os híbridos, em que uma ba-
teria menor auxilia o motor a combustão. Atualmente, ape-
nas Toyota e Caoa montam híbridos no Brasil, e nenhuma
produz o 100% elétrico. O mercado funciona com importa-

4|6
INÊS 249

ALOISIO MAURICIO/FOTOARENA

EMPURRÃO NO SETOR Alckmin: crédito tributário


para as montadoras

ções. O avanço impressiona: só em 2023, as vendas de elé-


tricos e híbridos cresceram 91%, para um total de 93 900
unidades, de acordo com a Associação Brasileira do Veícu-
lo Elétrico (ABVE). “Chegamos a 5% do mercado, o que,
pela experiência dos outros países, é o ponto de não mais
retorno”, diz o presidente da ABVE, Ricardo Bastos. “As
pessoas começam a ver, conhecer e querer o carro.”
Os empurrões do governo ajudaram a destravar os in-
vestimentos. Até a virada do ano o imposto de importação

5|6
INÊS 249

sobre veículos elétricos estava zerado — em 2024, volta a


ser cobrado gradualmente. Além disso, o vice-presidente
e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e
Serviços, Geraldo Alckmin, anunciou o programa Mover,
que dá créditos tributários para fabricantes que investi-
rem em pesquisa. As vantagens do veículo elétrico são
evidentes. Além de menos poluentes que os pares a gaso-
lina, eles reduzem os custos de manutenção — não preci-
sam de troca de óleo, a eletricidade ajuda a poupar os
freios e o motor tem menos peças a repor. O abastecimen-
to também sai mais em conta. “Se um motorista rodar 100
quilômetros com gasolina, ele vai gastar 50 reais, e, no
elétrico, o custo pode cair até a 10 reais”, diz Murilo Bri-
ganti, diretor da consultoria especializada Bright.
Ainda assim, persistem pontos de interrogação. A baixa
duração das baterias, uma das peças mais importantes dos
eletrificados, é um problema no mercado de segunda mão
— tanto é assim que os donos de elétricos têm encontrado
dificuldade para vender os carros usados. No Brasil, outra
barreira é o preço. A maioria dos elétricos custa mais que
200 000 reais, embora a BYD tenha lançado recentemente
um modelo a 115 000 reais, o Dolphin Mini. De todo modo,
é pelos híbridos que as fabricantes planejam inaugurar sua
produção de eletrificados no país, apostando inclusive no
flex, o clássico motor brasileiro movido a gasolina e etanol.
Quem diria: nessa corrida da eletrificação, o Brasil tem bons
exemplos a oferecer para o mundo. ƒ

6|6
INÊS 249

INTERNACIONAL PORTUGAL

CHEGOU CHEGANDO
O partido da extrema direita portuguesa conquista
quase 20% dos votos, sai da eleição como o maior
vencedor e complica a formação de um novo governo
pelas legendas tradicionais

ERNESTO NEVES

LIMPEZA Ventura, do Chega: a principal bandeira do partido


radical é acabar com a imigração, a quem culpa pelos males

ANDRE DIAS NOBRE/AFP

1|5
INÊS 249

T
odo ano, no dia 25 de abril, desde 1974, Portugal
celebra a Revolução dos Cravos, movimento popu-
lar pacífico que pôs fim à ditadura instituída por
António de Oliveira Salazar (1889-1970). Neste
abril, quando a volta à democracia completa exatos
50 anos, a comemoração ganha um traço de amargor: nas
eleições gerais realizadas no domingo 10, o maior triunfo
coube ao partido ultradireitista Chega, francamente nostálgi-
co do salazarismo, que quadruplicou sua bancada, conquis-
tando 18% dos votos e 48 assentos na Assembleia da Repú-
blica. “Hoje é o dia que assinala o fim do bipartidarismo em
Portugal”, proclamou o líder do Chega, André Ventura, de 41
anos, que ganhou força e influência no complicado tabuleiro
político montado pelo resultado eleitoral, sem clara vanta-
gem para nenhuma das duas legendas que tradicionalmente
se revezam no poder. Nele, a coalizão liderada pelo conser-
vador Partido Social Democrata (PSD) venceu por margem
estreitíssima o Partido Socialista (PS): 29% dos votos e 79
deputados, contra 28% e 77 cadeiras do rival.
Programada para acontecer somente em 2026, depois de
uma clara vitória do PS que lhe deu confortável maioria par-
lamentar, as eleições foram antecipadas porque, em novem-
bro, o primeiro-ministro António Costa renunciou em de-
corrência de um escândalo de corrupção. As denúncias não
envolveram Costa diretamente, mas implicaram seu chefe
de gabinete e um ministro, e ele considerou não ter condi-
ções de seguir no poder, deixando o cargo e a liderança do

2|5
INÊS 249

HORACIO VILLALOBOS/CORBIS/GETTY IMAGES

SAIA JUSTA Montenegro, de centro-direita:


dificuldade para formar maioria

partido. Decepcionados e irritados com os políticos tradicio-


nais, os eleitores se dividiram e criaram um quadro comple-
xo para a formação do novo governo. “Esta eleição marca a
consolidação da direita populista”, diz Marina Lobo, cientis-
ta política da Universidade de Lisboa.
A coligação vencedora, Aliança Democrática (AD), está
longe da maioria no Parlamento de 230 cadeiras. Encarre-
gado de formar o novo governo, Luís Montenegro, 51, líder
do PSD, segue rejeitando, como fez durante toda a campa-
nha, a participação em seu gabinete do Chega, que qualifica
de xenófobo e racista. “Não é não”, afirma. A expectativa é
que opte por compor um governo de minoria, negociando

3|5
INÊS 249

projeto a projeto com as demais legendas — o que deve levar


a embates com o Partido Socialista, agora liderado por Pe-
dro Nuno Santos, em questões em que as duas legendas di-
vergem profundamente, como o orçamento anual da União.
Se a composição do novo gabinete não estiver definida até
20 de março, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa pode
convocar novas eleições.
O Chega, tal qual outras siglas populistas, surgiu em
2019 fustigando a crescente presença de imigrantes e o au-
mento da criminalidade, resumidos no slogan “Portugal
precisa de uma limpeza”. Seu alvo inicial eram os “roma”
(como se convencionou agora chamar os ciganos), mas o
guarda-chuva não deixa de alojar os brasileiros, que for-
mam 40% dos estrangeiros no país. Com o tempo, estendeu
os ataques à alta do custo de vida, causa principal de uma
crise imobiliária (outro pecado fincado na conta da imigra-
ção) que vem tirando o sono dos portugueses. Habilidoso
em combinar teorias conspiratórias e discurso raivoso, Ven-
tura, ex-seminarista e ex-comentarista de futebol de perfil
carismático, se elegeu para a Assembleia da República no
primeiro ano do Chega — a única vaga conquistada pela le-
genda. Dois anos depois, concorreu à presidência, ficando
em terceiro lugar, com 11,9% dos votos. O resultado de ago-
ra representa um estrondoso avanço para a legenda novata.
Tanto o crescimento do Chega quanto a vitória apertada
da Aliança Democrática se encaixam na evolução do con-
servadorismo na Europa, onde, nos últimos dois anos, siglas

4|5
INÊS 249

de direita chegaram ao poder ou se tornaram o fiel da ba-


lança em governos na Holanda, Finlândia, Suécia, Grécia e
Itália. Na Espanha, o Vox dobrou sua votação regional de
2023, e, na Alemanha, o fascista Alternativa para a Alema-
nha elegeu seu primeiro prefeito. Segundo especialistas, a
ascensão de partidos que pareciam insignificantes no qua-
dro político é decorrência da insatisfação dos eleitores, far-
tos da falta de perspectivas de futuro, acirrada pelo persis-
tente aumento do custo de vida e pela entrada no continente
de levas de refugiados e imigrantes. Nas eleições para o Par-
lamento Europeu, em junho, quando 400 milhões de pes-
soas vão às urnas, prevê-se que os ultranacionalistas asse-
gurem cerca de 98 dos 720 assentos. “Este resultado repre-
sentaria outro avanço significativo da direita”, afirma Simon
Hix, professor de política comparada no Instituto Universi-
tário Europeu. O Chega, neste cenário, chegou chegando, e
talvez para ficar. ƒ

5|5
INÊS 249

INTERNACIONAL HAITI

TERRA SEM LEI


Devastada, a mais pobre nação das Américas
vive sob um vazio institucional em que violentas
gangues se apoderaram do Estado e forçaram
a renúncia do primeiro-ministro CAIO SAAD
GUERINAULT LOUIS/ANADOLU/GETTY IMAGES

TUDO DOMINADO Capital em chamas: bandos tocam o


horror, atacando estações de polícia e até o palácio presidencial

1|4
INÊS 249

SEM GOVERNO, sem indústria, sem agricultura, sem turis-


mo e sem riquezas, o Haiti, país mais pobre das Américas, pe-
na há décadas sob a sinistra sombra de lugar onde tudo é pés-
simo, mas sempre pode piorar. Neste mês de março, piorou:
aproveitando uma viagem do impopular primeiro-ministro
Ariel Henry ao Quênia, para tentar garantir um reforço da pre-
cária segurança em Porto Príncipe com uma tropa de soldados
quenianos, as gangues que controlam quase toda a capital se
uniram e tomaram de vez o poder. “Se Ariel Henry não renun-
ciar, caminhamos para uma guerra civil que levará a um geno-
cídio”, insuflou Jimmy Chérizier, o Babekyou, pronúncia no
idioma local de Barbecue (churrasco, em inglês, referência tan-
to ao fato de vender espetinhos na infância quanto ao de quei-
mar vivos seus inimigos), falando em nome do “G9”, o sindica-
to de quadrilhas que, em mais uma ironia semântica, inspirou
seu nome no G7 das potências ocidentais. Acuado, Henry
anunciou, na terça-feira 12, que vai se afastar do governo.
O país vive um entra e sai de presidentes desde o desmo-
ronamento, em 1986, de trinta anos de feroz ditadura do clã
Duvalier, pai e filho apelidados de Papa e Baby Doc. Henry
apoderou-se do cargo de primeiro-ministro após o assassina-
to do presidente Jovenel Moïse, em 2021, onde ficaria até a
convocação de novo pleito, indefinidamente adiado. No vazio
instalado pela crise institucional, violentas gangues foram
tomando conta de Porto Príncipe e, quando Henry viajou,
não perderam tempo: invadiram duas prisões da capital e li-
bertaram 4 000 detentos, ocuparam o porto e o aeroporto e

2|4
INÊS 249

MATIAS DELACROIX/AP/IMAGEPLUS

NO COMANDO Babekyou, o líder das gangues:


ameaça de guerra civil

trocaram tiros com a guarda do palácio presidencial. Impe-


dido de voltar, o primeiro-ministro refugiou-se em Porto Ri-
co. “Peço a todos que permaneçam calmos e façam tudo o
que puderem para que a paz e a estabilidade voltem o mais
rápido possível”, disse em comunicado.
O acordo da renúncia, obtido sob pressão dos Estados
Unidos — espécie de garantidor da existência aos trancos e
barrancos do Haiti — durante uma reunião na Jamaica, pre-
vê a criação de um conselho de transição encarregado de
tomar decisões por maioria de votos. Os sete membros, a se-
rem escolhidos, devem ter ficha limpa, estão impedidos de
se candidatar nas eleições a serem marcadas e se compro-
metem a acatar a resolução do Conselho de Segurança da

3|4
INÊS 249

ONU que aprova o envio de forças de vários países para aju-


dar. O conselho terá de lidar com 59% da população abaixo
da linha de pobreza e milhares de mortos, sequestrados e
desalojados. Como se não bastasse, o país está na rota das
catástrofes naturais — em 2010, um gigantesco terremoto na
capital ceifou a vida de 220 000 pessoas.
Atualmente, o Haiti conta com um terço do reforço in-
ternacional recomendado pela ONU, e os 2 000 quenianos
que se preparavam para atuar lá pouca diferença fariam.
“Seria uma missão suicida, no pior cenário, e um desperdí-
cio de dinheiro, no melhor”, diz o americano Daniel Foote,
ex-enviado especial ao país, que calcula em pelo menos
5 000 integrantes experientes a força necessária para repor
a ordem. A nova missão internacional aprovada pelas Na-
ções Unidas, a pedido do próprio governo haitiano e com
apoio do Brasil (que por treze anos manteve soldados em
Porto Príncipe), ainda não saiu do papel. Os poucos milita-
res e policiais locais trabalham em condições precárias e
são alvo preferencial das gangues, que dispõem de recursos
milionários provenientes de extorsão e sequestros. “A pro-
ximidade do Haiti com países produtores de drogas e com
consumidores como os Estados Unidos alimenta a atividade
criminosa”, ressalta Christopher Sabatini, pesquisador do
think tank britânico Chatham House. Contrariando o dita-
do, no Haiti, pior do que está pode, sim, ficar. ƒ

4|4
INÊS 249

VILMA GRYZINSKI

ESTÃO FALTANDO
BEBÊS
Imagine um mundo em que a China tem
metade da população atual

DO PONTO DE VISTA populacional, o futuro está traça-


do: países ricos e médios se retrairão irreversivelmente. De-
pois de atingir o ápice, em 2050, com 230 milhões de habi-
tantes, o Brasil vai encolher para 185 milhões em 2100.
Nesse mesmo ano, a China estará com 771 milhões, a meta-
de do número atual, 1,4 bilhão, uma tragédia geopolítica.
A Índia, que tomou o lugar número um em população, con-
tinuará crescendo, mas chegará a 2100 quase empatada
com a quantidade atual, com 1,5 bilhão. A Nigéria terá 540
milhões de pessoas. Espanha, Itália e Rússia terão uma po-
pulação tão encolhida que só sobreviverão com habitantes
estrangeiros, sem a conexão cultural e emocional com seu
patrimônio. O berço da civilização ocidental estará esva-
ziado. Os EUA continuarão, excepcionalmente, crescendo,
embora menos. As consequências desse futuro podem ser
vistas pelo lado otimista: menos gente para consumir re-
cursos preciosos, mais inteligência artificial para resolver
problemas que pareciam insolúveis. Só precisaríamos che-

1|3
INÊS 249

gar até lá sem grandes prejuízos depois de atravessar a pon-


te do bônus populacional, quando tem mais gente traba-
lhando do que os menores e idosos aos quais as sociedades
civilizadas proveem sustento.
O risco de ver a janela se fechar leva pessoas tão diferen-
tes como Elon Musk, Giorgia Meloni, Fumio Kishida e Vla-
dimir Putin a fazer campanhas para que os casais tenham
mais filhos. O multibilionário Musk vive repetindo que “o
colapso populacional decorrente das baixas taxas de nata-
lidade é um risco para a civilização muito maior do que o
aquecimento global”. Ele também faz a sua parte: tem onze
filhos, inclusive gêmeos e trigêmeos nascidos por fertiliza-
ção artificial. Mas a realidade é que, quando podem esco-
lher e controlar suas vidas, a maioria das mulheres prefere

“O incentivo aos
altos índices de
reprodução
tradicionalmente
foi da esfera da
extrema direita”
2|3
INÊS 249

ter dois, um ou nenhum filho. Adiar a maternidade para es-


tudar e trabalhar ou não procriar são fenômenos sociais.
Daí a inutilidade de apelos como o feito por Putin às russas
para que tenham “sete ou oito filhos, como nossas avós e bi-
savós”. As dificuldades de criar filhos hoje — não como
nossas avós e bisavós, com tolerância maior por padrões
menos exigentes de saúde e educação — não são os únicos
problemas de países onde a população encolhe. Mudanças
culturais de enorme abrangência criaram no Japão fenôme-
nos como os hikikomori, homens jovens que não saem de
casa. E isso muito antes das redes sociais, que criam antis-
sociais com aversão à formação de casais, como na Coreia
do Sul (média anêmica de filhos por mulher: 0,72), onde há
um movimento correspondente de jovens mulheres que são
contra casar, fazer sexo e ter filhos.
O incentivo aos altos índices de reprodução tradicional-
mente foi da esfera da extrema direita. Hitler criou a Cruz
da Mãe — de ouro para as mulheres que tinham sete filhos,
prata para seis e bronze para cinco. Benefícios como a
licença-maternidade foram conquistas da social-democra-
cia. Como mantê-los se a população cai? “É agora ou nunca
em termos de índices de natalidade”, avisou no ano passado
o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida. Para o Japão,
com previsão de ir dos atuais 125 milhões para 67 milhões
em 2100, já parece que é nunca. ƒ

3|3
INÊS 249

GENTE
VALMIR MORATELLI

TRAÍDA PELO ZÍPER


Ao cruzar o tapete vermelho do Oscar, metro
quadrado dos mais disputados pelos holofo-
tes globais, EMMA STONE, 35 anos, pisou
firme, embalada pela esperança de que leva-
ria a estatueta de melhor atriz, a segunda de
sua carreira, por sua elogiada atuação em
Pobres Criaturas — e assim foi. Mas, como
nunca o roteiro sai tal e qual o escrito, ela en-
frentou no Dolby Theatre, em Los Angeles,
um daqueles desconcertantes imprevistos:
ao subir ao palco, o zíper do belo vestido se
abriu. “Não olhem. Ele arrebentou durante I’m
Just Ken”, disse Emma, referindo-se à canção
do filme Barbie que havia sacudido a plateia,
ela inclusive. As implacáveis câmeras tam-
bém a puseram na mira quando o apresenta-
dor Jimmy Kimmel fez graça com as cenas de
sexo que protagoniza. “Essas são as únicas
partes que podemos mostrar na TV”, brincou
ele, depois da exibição de um trecho da pelí-
cula, irritando a laureada, que, segundo esco-
lados em leitura labial, disparou: “Idiota”.
Tudo, claro, com um sempre
sorridente semblante.
KEVIN MAZUR/GETTY IMAGES

1|4
INÊS 249

ABRINDO O HORIZONTE
Não havia nenhum sinal de cor-de-rosa,
que voltou a toda depois de Barbie, nos fi-
gurinos usados pela protagonista do filme
que estourou nas bilheterias (mas não no
Oscar, em que venceu apenas por canção
original). Pois MARGOT ROBBIE, 33
anos, que vinha exibindo visuais justamen-
te róseos, desta vez chegou à cerimônia
com um vestido preto que lhe valorizava
as curvas e, explorando ainda mais a pale-
ta, depois o trocou por um ousado corpe-
te dourado, à base de bem menos pano
FOTOS JON KOPALOFF/GETTY IMAGES/AFP; MIKE COPPOLA/GETTY IMAGES

(no detalhe), com o qual surgiu esfuziante


na festa da Vanity Fair. “Vou desligar meu
telefone por cerca de uma semana. Acho
que é o máximo que consigo escapar im-
pune e apenas relaxar”, avisou Robbie,
que não passou recibo por ter sido igno-
rada na lista das indicadas a melhor atriz.

2|4
INÊS 249

SMOKING COM HISTÓRIA


O tom politizado da premiação se disseminou pelos smokings, nos
quais reluziam bótons cheios de mensagem. O de MARK RUFFALO (à
esq.), 56 anos, que concorreu como ator coadjuvante, era da ONG Ar-
tists4Ceasefire, organização composta de artistas de Hollywood em
prol do fim do conflito entre Israel e o Hamas. “Defendemos a paz pa-
ra todos. Nossos dólares de impostos não devem ser usados para
matar crianças em nenhum lugar”, declarou Mark, cutucando o
aporte de verbas americanas para os israelenses. Já o francês
SWANN ARLAUD (à dir.), 42 anos, estrela do surpreendente Ana-
tomia de uma Queda, desfilou com um broche em que se via a ban-
deira da Palestina. Para alguns, o adereço serviu só de enfeite mes-
mo — caso do cantor JUSTIN TIMBERLAKE (ao centro), 43, que
saracoteava com um brilhante adorno prateado na tentativa de se
diferenciar em meio a tantos célebres ternos.

DANIELE VENTURELLI/GETTY IMAGE PHILLIP FARAONE/VF24/GETTY IMAGES MIKE COPPOLA/GETTY IMAGES/AFP

3|4
INÊS 249

FRANK MICELOTTA/DISNEY/GETTY IMAGES

O QUE TEM AÍ?


O Oscar revisitou a edição de 1974 para dar ritmo ao show. Naquele
memorável ano, um homem invadiu o palco nu, episódio revivido ago-
ra pelo ator JOHN CENA, 46, que apareceu sem tecidos aparentes
justamente para anunciar o prêmio de melhor figurino. O envelope
campeão lhe cobria a zona das partes íntimas. Com humor, ele dis-
cursou como quem se arrependesse do convite. “Honestamente,
vocês deveriam sentir vergonha por sugerirem uma ideia de tão mau
gosto. O corpo masculino não é uma piada”, brincou Cena, cuja si-
lhueta torneada por anos nos ringues de luta livre foi coberta por
uma toga dourada tão logo ergueu o papel que continha o nome da
produção vencedora, Pobres Criaturas. Mais tarde, se revelaria que
uma bem disfarçada tanguinha cor da pele sempre esteve sobre a
área que não deveria ser mostrada. ƒ

4|4
INÊS 249

GERAL COMPORTAMENTO

A VOZ DA MUDANÇA
Pesquisa mostra que as jovens brasileiras são a única
parcela da população em que prevalecem as ideias
progressistas. E elas estão mais avançadas do que nunca

DUDA MONTEIRO DE BARROS


FRANCESCO CARTA/MOMENT/GETTY IMAGES

ATITUDE O grito das garotas: liderança na


briga por amplas transformações na sociedade

1 | 10
INÊS 249

U
ma marca indelével do século XX, que se espa-
lha, nítida e potente, pelos tempos atuais, é o po-
der de transformação exercido pelas mulheres
nos valores, no comportamento e na assimilação
do novo por parte da sociedade. Entre as mudan-
ças mais significativas lideradas e protagonizadas por elas
estão a conquista do voto feminino, o direito ao divórcio, a
entrada no mercado de trabalho, a liberdade sexual e a ex-
posição do papel subserviente que ocupavam nos lares.
Décadas se passaram, a sociedade se reorganizou e as
ideias progressistas vêm sendo, nos últimos anos, desafia-
das por uma agenda conservadora propagada em muitos
casos por mulheres empenhadas em neutralizar avanços,
em nome da preservação de costumes e modos tradicio-
nais. Isso significa que elas abriram mão de seu papel na
linha de frente das reformas sociais? Não, pelo contrário.
No mundo em que vivemos, a única parcela da população
que permanece decididamente fincada na marcha da re-
modelação de valores são as jovens na faixa dos 20, 30
anos, integrantes da agitada e inovadora geração Z.
Um estudo exclusivo da Genial/Quaest com 35 000 en-
trevistados, encomendado por VEJA, aponta que a ala fe-
minina, dos 18 aos 60 anos, continua sendo mais aberta a
mudanças do que a masculina na mesma faixa etária. Mas,
no termômetro ideológico em que os grupos se situam mais
à esquerda ou mais à direita, todos eles, sejam homens ou
mulheres, se encaixam na definição conservadora — com

2 | 10
INÊS 249

AVANÇADAS, SIM
Dentre todas as faixas etárias, apenas as
jovens mulheres da geração Z — nascidas
entre 1995 e 2008 — se situam no campo
das ideias progressistas no Brasil

MO
+ CO
NS
I S ER
S S V
E A
R D
G

O
O

R
PR

IS

MULHERES
MO
+

DA GERAÇÃO Z

-1 +1

MO
+ CO
NS
I S ER
S S V
E A
R
D
G

O
O

R
PR

IS

HOMENS
MO
+

DA GERAÇÃO Z

-1 +1

3 | 10
INÊS 249

exceção, grite-se no megafone, das moças GenZ, como a


turma é chamada (veja detalhes no infográfico abaixo). “É
movimento que avança de uma geração para a outra”, diz o
cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest. Aprofun-
dando-nos na pesquisa, vemos que elas se revelam inclusi-
ve bem mais progressistas do que suas mães e avós, avanço
impulsionado por dois motores: o fato de serem produto de
0

MO
+ CO
NS
I S ER
S S V
E A
R
D
G

O
O

R
PR

IS

MULHERES
MO
+

EM GERAL

-1 +1

MO
+ CO
NS
IS ER
SS V
A
E
R
D
G

O
O

R
PR

IS

POPULAÇÃO
MO
+

BRASILEIRA

-1 +1
Fonte: Genial/Quaest

4 | 10
INÊS 249

várias gerações alinhadas com mudanças e, claro, o onipre-


sente efeito das redes sociais, que amplificam e massificam
as lutas postas em cena. “Trata-se do recorte populacional
mais progressista de todos os tempos”, diz a historiadora
Veruska Laureana, especialista em igualdade de gênero.
O grupo feminino que começa na adolescência e vai até
os 30 anos acumula, no Brasil e no mundo, características
que não só rompem com os estereótipos do século passado
como saltam além deles: elas não fazem questão de se encai-
xar em padrões, são independentes e levantam bandeiras
ruidosas, como legalização do aborto e das drogas, cotas ra-
ciais e desarmamento civil. Mais de meio século depois das
primeiras passeatas pela liberação feminina, que fizeram as
ruas trepidar nos anos 1960 e 1970, muitas desapegaram do
sonho de suas mães e avós de se casar e ter filhos e se dizem
coladas ao desenvolvimento pessoal e de carreira.
Pesquisa recente do King’s College London, entre jovens
de 16 a 29 anos, mostrou que quase metade das garotas acre-
dita que o movimento feminista faz bem à sociedade, 10% a
mais do que os garotos. A estudante de cinema paulista Lua-
na Coelho, 20 anos, relata que cresceu questionando pilares
tradicionais. “Na adolescência, comecei a estudar mais a fun-
do os conceitos sociais, o que fundamentou meu apoio à des-
criminalização do aborto e das drogas”, diz. Não raro, valo-
res progressistas desembocam em opções políticas: em 2022,
Lula teve mais de 50% das intenções de voto dos eleitores
entre 16 e 29 anos, contra 20% de Jair Bolsonaro.

5 | 10
INÊS 249

NASCIDA PARA MUDAR


“Sempre questionei os valores tradicionais”,
diz a paulista Luana Coelho, 20 anos, estudante
de cinema que resolveu se aprofundar no assunto:
“Comecei a estudar os conceitos sociais”, afirma.

CLAUDIO GATTI

6 | 10
INÊS 249

A tendência de mulheres jovens puxarem a marcha das


transformações foi confirmada por um conjunto de pes-
quisas conduzidas pela Universidade Stanford, na Califór-
nia, e analisadas recentemente pelo jornal inglês Finan-
cial Times. O levantamento abrange países avançados,
como China, Coreia do Sul e Estados Unidos, mas, segun-
do alguns especialistas, suas conclusões podem ser am-
pliadas para o mundo em geral — e elas mostram que
nunca tantas mulheres jovens foram tão progressistas. Do
outro lado do espectro, o conservadorismo também avan-
ça como nunca do lado masculino, estimulando um abis-
mo ideológico de gêneros no campo dos valores — resul-
tado do princípio da soma zero, segundo o qual para uma
parcela da sociedade ascender é necessário que outra fi-
que estagnada. “Os homens se sentem ameaçados pela lu-
ta feminina para ganhar espaço e o ressentimento estimu-
la posicionamentos sexistas e de extrema direita entre
eles”, diz Alice Evans, professora de ciências sociais de
Stanford, à frente das pesquisas.
O conservadorismo não prevalece da mesma forma em
todas as faixas etárias da ala masculina — os estudos
apontam que os garotos da geração Z se sentem pressio-
nados a participar das discussões sobre gênero e outras
questões sociais e são os primeiros a se alinhar às pautas
progressistas. “O questionamento do papel da masculini-
dade no Brasil é recente. Mas as mulheres, motores de
uma transformação social, acabam fazendo com que os

7 | 10
INÊS 249

ABAIXO O MACHISMO
“Não quero me casar de jeito nenhum”, afirma a estudante
de relações públicas carioca Thaís Monteiro,
23 anos, que debate as questões feministas nas redes.
“O casamento reproduz a misoginia”, diz.

ALEX FERRO

8 | 10
INÊS 249

BARBARA ALPER/GETTY IMAGES

EM MARCHA Protesto em Nova York,


anos 1970: contra a exploração feminina

parceiros reflitam mais”, observa a historiadora Veruska.


O estudante de tecnologia da informação Guilherme Dias,
23 anos, reconhece que ainda vê o mundo com olhos mais
conservadores do que suas amigas. “Pelo lugar que ocu-
pam na sociedade, elas sentem na pele algumas questões
e se posicionam à frente de nós, homens”, admite. De um
modo geral, porém, entre eles o caminho da mudança é
cheio de obstáculos e o discurso sobre igualdade de gêne-
ros ainda causa arrepios, favorecendo a formação de gru-
pos como o Red Pill, que prega que as mulheres os estão

9 | 10
INÊS 249

manipulando para dominar o mundo e questiona os direi-


tos por elas conquistados. “O conservadorismo masculino
é uma forma de eles resistirem a abrir mão dos privilégios
a que estão acostumados”, afirma a socióloga Marcela
Castro, da Universidade Federal do Piauí.
Em contraponto aos macho men da internet, as bolhas
feministas criadas nas redes sociais também estimulam o
ímpeto reformista das adolescentes e jovens revoltadas
com a permanência de desigualdades, levando o debate
às rodinhas de amigas em todos os lugares. “É uma gera-
ção que cresceu em um contexto de efervescência tecno-
lógica, com acesso à informação como nunca se viu an-
tes”, diz Lila Xavier, vice-presidente da Rede de Pesqui-
sadores e Pesquisadoras da Juventude Brasileira. A estu-
dante de relações públicas carioca Thaís Monteiro, 23
anos, passou a se identificar com ideias progressistas ain-
da na escola. Com o tempo e com a ajuda das redes, foi se
aprofundando no debate sobre machismo e suas conse-
quências na vida da mulher e se tornou cada vez mais cri-
teriosa nos relacionamentos. “Hoje digo que não quero
me casar de jeito nenhum. Entendi que o casamento é
mais uma das tradições que reproduzem a misoginia, a
ideia de que a mulher é submissa e pertence à cozinha”,
diz Thaís. E assim, com a igualdade na cabeça e a visão
de uma sociedade mais aberta no futuro, as garotas GenZ
vão fazendo girar com incomparável potência a necessá-
ria roda revolucionária. ƒ

10 | 10
INÊS 249

GERAL SOCIEDADE

RETORNO ÀS ORIGENS
Para fugir das ameaças constantes do racismo,
negros americanos encontram refúgio em países
africanos — movimento que aos poucos cresce
no Brasil LUIZ PAULO SOUZA

EM CASA Americana em Gana: o país favorece a obtenção


de cidadania para afrodescendentes

NATALIJA GORMALOVA/AFP

1|8
INÊS 249

TUDO COMEÇOU com uma ideia racista. Anos antes da


abolição da escravatura nos Estados Unidos, em 1863, o nú-
mero de libertos aumentou progressivamente, antecipando
um movimento inevitável. Para evitar a miscigenação com a
população branca e de modo a driblar a logística de enviar os
alforriados a seus países de origem, na África, o governo
criou a Sociedade Americana de Colonização e, por meio de-
la, comprou uma enorme área na costa leste africana. Ali,
entre Serra Leoa, Guiné e Costa do Marfim, seria formada,
alguns anos depois, a Libéria — o país dos libertos.
Os liberianos enfrentaram muitos dissabores ao longo de
sua formação. Em 1847, o país declarou a independência, co-
mo república cuja constituição foi decalcada da americana.
Como herança, porém, havia uma imensa dívida com o go-
verno dos Estados Unidos. A guerra civil não demoraria a
eclodir, entre nativos e imigrantes. Apesar de tudo, apesar da
dor, a história se transformou em exemplo de resgate do lega-
do e da diáspora africana. Em interessante movimento, o flu-
xo volta a se repetir — agora, por obra e vontade dos descen-
dentes afro-americanos que buscam retomar as raízes.
As ondas migratórias, de negros dos Estados Unidos a ca-
minho da África, ganhou apelido: é o Blaxit, da união das
palavras black (negro) e exit (saída), em evidente referência
sonora ao Brexit britânico, de fuga da União europeia. Ao re-
tornar para os países africanos de seus antepassados, os afro-
-americanos buscam uma vida livre do preconceito racial
que, em seu país natal, permitiu tragédias inaceitáveis, como

2|8
INÊS 249

CAMINHO DE VOLTA
Número de negros americanos
que retornaram para viver no
continente africano

100 000

9 000 700
(1 500 entre 2019 e 2023)
SERRA
ETIÓPIA
LEOA

GANA

150 000

LIBÉRIA

3 000
ÁFRICA DO SUL

3|8
INÊS 249

a de George Floyd, assassinado pela polícia, em 2020. Os des-


tinos são variados, mas há lugares, como Gana e Serra Leoa,
que têm estimulado a travessia, com programas que facilitam
a obtenção da cidadania. De acordo com o Gabinete de As-
suntos da Diáspora do Gana, pelo menos 1 500 afro-america-
nos mudaram-se para o país entre 2019 e 2023 (veja no info-
gráfico). O principal benefício é financeiro — o dólar ameri-
cano, ao ser trocado por moedas locais, autoriza vida digna,
sobretudo para os chamados nômades digitais.
As mazelas herdadas do colonialismo, como o fosso social
entre os que têm alguma coisa e os que nada têm, além das
crescentes políticas anti-LGBTQIA+, preocupam, mas não re-
presentam empecilho. “Vivemos em um mundo no qual exis-
tem muito poucos lugares onde pessoas negras são bem-vin-
das”, disse a VEJA o historiador e filósofo camaronês Achille
Mbembe. “Temos de garantir, nas constituições, que qualquer
pessoa negra, seja africana, seja da diáspora, possa se realocar
e se mover livremente dentro da África.”
Há, naturalmente, pontos de conexão entre o cenário dos Es-
tados Unidos e o do Brasil, da perspectiva tanto histórica quanto
do cotidiano, hoje. A Lei Áurea brasileira foi precedida por uma
grande pressão internacional pela libertação dos cativos, cuja
imagem rodava o mundo a partir dos desenhos de Jean-Baptiste
Debret. Antes que a princesa Isabel fosse praticamente obrigada
a assinar o decreto que aboliu a escravatura, muitos alforriados
já queriam voltar para as terras de onde haviam sido sequestra-
dos. Alguns desses relatos, aliás, inspiraram obras celebradas

4|8
INÊS 249

TURISMO NEGRO
Incomodada com a
falta de operadoras
que oferecessem
pacotes e intercâmbios
para países africanos,
a empreendedora Bia
Moremi criou uma
agência que se tornou
uma das 100 empresas
mais prestigiadas do setor
no Brasil em 2021 e 2022
ARQUIVO PESSOAL

como Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, que conta a


saga de Kehinde, raptada ainda criança no Reino do Daomé,
atual Benim, e levada para ser escravizada na Bahia. Agora, em
cenário mais favorável, é claro, parte da comunidade afro-brasi-
leira procura resgatar a vida de seus ancestrais.
É o caso da curitibana Layla Moura dos Santos, de 35 anos.
Depois de se mudar para São Paulo, a operadora de turismo co-
meçou a se aproximar das pautas raciais e buscou entender sua
origem. A partir de um teste de DNA, descobriu ascendência
leste-africana e decidiu conhecer o continente. Passou quase dois
anos na África do Sul, onde enfrentou dificuldades para estabe-
lecer relações, mas se surpreendeu com a organização das cida-
des e com o baixíssimo grau de racismo. “Lá, os negros estão em
todos os lugares e em todas as posições sociais”, diz. “As microa-
gressões que vivemos aqui todos os dias são menos frequentes.”

5|8
INÊS 249

O apartheid, regime de segregação racial na África do Sul


que durou de 1948 a 1994, foi um período cruel e injusto da
história. Após o fim da discriminação, medidas protetivas fo-
ram adotadas na nova Constituição, promovendo ações verda-
deiramente reparatórias — diferentemente do que aconteceu
no Brasil, que deixou os ex-escravizados à deriva. Foi o que
motivou a empreendedora paulista Bia Moremi, 35 anos, a
também escolher o país como destino. Primeiro, como opera-
dora de turismo à frente de uma empresa que promove viagens
de experiência e intercâmbios para vários países africanos. De-
pois, como imigrante. Um episódio de racismo sofrido no Bra-
sil pelos seus pais, em 2022, deu-lhe o impulso necessário para
realizar uma antiga vontade de mudar de ares. “Na África do
Sul, com a renda que tenho no Brasil, consigo viver uma vida
confortável”, afirma. “Além disso, me aproximei de outras pes-
soas negras que vivem uma realidade parecida com a minha.”
Há uma carência enorme de dados confiáveis sobre os flu-
xos migratórios e turísticos de pessoas negras — antigos e
atuais. Essa lacuna torna mais difícil medir o impacto econômi-
co, as oportunidades e o potencial que essa população pode al-
cançar. As estatísticas brasileiras que existem em torno do con-
tinente africano abrangem também pessoas brancas que vão
trabalhar na construção civil. Em 2023, quando o turismo vol-
tou a tomar fôlego, após três anos de pandemia e restrições so-
ciais, o número de brasileiros que visitaram a África do Sul pas-
sou dos 30 000, um aumento de mais de 70% em relação ao
ano anterior, mas ainda aquém dos 80 000 que fizeram a via-

6|8
INÊS 249

LIBRARY OF CONGRESS/CORBIS/GETTY IMAGES

HISTÓRIA A fundação da Libéria, em 1847: criada por


negros saídos dos EUA

gem em 2019. O montante de brasileiros morando no continen-


te também não é desprezível. A estimativa do Itamaraty aponta
que, no ano passado, eles já somavam quase 40 000 pessoas,
número que, embora não reflita necessariamente um fluxo mi-
gratório negro, é 51% maior que o estabelecido em 2018. A
maior parte deles está em Angola, país que mais enviou negros
para o Brasil durante o período de tráfico de escravizados e que,
na década de 1980, recebeu milhares de imigrantes.
As pessoas negras que se mudam para a África não bus-
cam necessariamente uma vida melhor. Sonham beber do
passado, de algum modo voltando para casa. Foi o que fez a
cantora Nina Simone (1933-2003) em 1974, que viveu qua-
tro anos na Libéria. Foi o que fez, de maneira mais sutil, Gil-
berto Gil, de dreadlocks nos cabelos, ao imaginar e criar o
clássico disco Refavela na Nigéria, em 1977: “A refavela, ba-

7|8
INÊS 249

JEAN-BAPTISTE DEBRET/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES

VERGONHA Desenho de Jean-Baptiste Debret:


o Brasil da escravidão

tuque puro / de samba duro de marfim / marfim da costa de


uma Nigéria / miséria, roupa de cetim”.
Some-se aos sentimentos genealógicos a possibilidade de
trabalhar remotamente e dá-se a decisão do exílio. “Os brasi-
leiros sempre foram bem-vindos e continuarão sendo bem re-
cebidos por aqui”, disse a VEJA o embaixador do Brasil em
Luanda, Rafael de Mello Vidal. A onipresença negra, nas pa-
lavras dos próprios imigrantes, torna a discriminação com
base em raça um conceito abstrato. É sinônimo de alguma
tranquilidade para quem decide partir. Os obstáculos não de-
saparecem, a vida não é fácil. Mas há, nesse processo demo-
gráfico, forte nos Estados Unidos e ainda tímido entre os bra-
sileiros, ressalve-se, uma mensagem bonita e promissora: o
direito de ir e vir, sem que ninguém tenha de fugir ou ser ex-
pulso de seu território em decorrência da cor da pele. ƒ

8|8
INÊS 249

LUCILIA DINIZ

A ILUSÃO
DA VERDADE
O pior cego é o que pensa que
já viu de tudo

BOTAS E MAIS BOTAS. Muito provavelmente esse será o


resultado de uma busca na internet ao perguntar o melhor
calçado para fazer o Caminho de Santiago. De diferentes
marcas, com o cano mais ou menos alto, novas e resistentes
ou surradas e amaciadas — mas sempre botas.
Foi o que os buscadores recomendaram quando, anos
atrás, meu marido, Luiz, e eu nos preparamos para nossa ca-
minhada. Pois bem: como descobrimos pela nossa própria
experiência, a melhor alternativa para os muitos quilômetros
de caminhada diários eram os tênis, com dois pares de meias.
As botas estavam lá, enchendo as telas à exaustão, a um
toque dos nossos dedos. Como poderia não ser verdade? E,
no entanto, como dizem, “na prática a teoria era outra”. Isso
faz pensar sobre como hoje aceitamos respostas prontas, às
vezes para nossa confusão.
Nada escapa ao “oráculo eletrônico”. A data de um even-
to obscuro, a sinopse de uma obra clássica ou a explicação
de um teorema complicadíssimo: seja qual for o interesse, as

1|3
INÊS 249

trilhas cibernéticas, bem menos acidentadas que as do norte


da Espanha, nos levam a um conhecimento instantâneo.
Anos atrás — uma fração de segundo em termos de tem-
po histórico — era preciso recorrer a enciclopédias, dicioná-
rios e especialistas atrás de uma informação. Hoje as respos-
tas vêm em uma fração literal de segundo. E cada vez fica
mais fácil. Quando nos limitávamos aos buscadores, tínha-
mos às vezes de cruzar dados incompletos. Agora, a inteli-
gência artificial nos entrega o que procuramos em textos
com começo, meio e fim. Não dá nem para desconfiar —
mas deveríamos. Não à toa, até os próprios mecanismos de
IA advertem que os conteúdos podem ter imprecisões.
Além do risco de erros, há uma questão mais sutil.
Quem acredita que todo o saber vem pela tela do celular
acaba deixando de dar valor a um conhecimento menos
divulgado, gerado em universidades e outros centros de

“Fazer longas
investigações não
nos isentava de erros,
mas dava tempo à
dúvida e à reflexão”
2|3
INÊS 249

estudos. Vivi um exemplo disso quando, em um seminá-


rio na França, aprendi com o químico francês Hervé
This, especialista em gastronomia molecular, sobre a uti-
lidade de resfriar o macarrão para tornar mais lenta a ab-
sorção de seus carboidratos.
Naquela época, como hoje, sempre procurei variar mi-
nhas fontes de conhecimento. Não fosse por isso, talvez não
tivesse me inteirado da produção científica de This, ainda
fora do alcance dos mecanismos de busca da internet. Só te-
ria tido essa mesma informação poucos meses atrás, quando
li no The New York Times uma reportagem que explicava a
“nova” técnica viralizada nas mídias sociais. Fazer longas
investigações não nos isentava de erros. Mas dava tempo à
dúvida e à reflexão; tempo para digerir a informação. Ab-
sorver um conhecimento rápido é parecido com matar a fo-
me comendo fast-food. A satisfação é imediata. Mas os efei-
tos posteriores nem sempre são benéficos.
O principal risco, penso eu, é acumularmos certezas
inabaláveis. Um dado errôneo, mal-intencionado ou não,
pode causar bem mais danos do que as dores ocasionadas
por um calçado errado. Por que abriremos os olhos para
outras possibilidades quando “tudo indica” que já temos a
resposta que procurávamos? O pior cego, hoje, não é o que
não quer ver, mas o que pensa que já viu de tudo. Como
dizia o filósofo grego Parmênides cinco séculos antes de
Cristo, “o maior inimigo do conhecimento não é a igno-
rância, mas a ilusão da verdade”. ƒ

3|3
INÊS 249

GERAL AVENTURA
LHAGBA/XINHUA/AFP

TRÂNSITO NA NEVE Aumento no número de alpinistas:


olhar para segurança e sustentabilidade resulta em novas

ESCALADA
DE NORMAS
A alta procura e a degradação ambiental levaram
as autoridades a endurecer as diretrizes para
subir o Monte Everest. A excursão ficou mais
burocrática — e menos perigosa LIGIA MORAES

1|6
INÊS 249

A MÃE DO UNIVERSO, uma das denominações dadas à


mais alta montanha do mundo por povos que vivem ao seu
redor, pede cautela e respeito. Situado na fronteira entre o Ne-
pal e o Tibete, o Everest — que deve seu nome ao geógrafo in-
glês que mapeou a região no século XIX — ainda hoje é fonte
de reverência e rituais entre etnias que moram às suas franjas.
No entanto, a mística entre os aventureiros, muitos deles oci-
dentais, é outra. Na ânsia e na adrenalina de escalar o monte
de 8 848 metros de altura, a cordialidade, os cuidados e as
boas maneiras não raro são deixados de lado. O resultado:
mais acidentes de percurso e lixo acumulado em meio à neve.
Para frear o desrespeito com a formação rochosa cultua-
da dentro e fora daquele pedaço da Ásia e conter a carga
crescente de turistas irresponsáveis, o governo do Nepal
acaba de instituir novas regras para subir o colosso. Há uma
preocupação com a quantidade de detritos — de plásticos a
fezes humanas — largada do pé ao cume. Estima-se que, fo-
ra os mais de 200 corpos de exploradores que jazem em seu
ventre frio, 50 toneladas de dejetos e 3 toneladas de excre-
mentos se encontrem nos caminhos dos alpinistas. Desde
1953, quando Edmund Hillary e Tenzing Norgay se torna-
ram os primeiros a chegar ao topo e retornar com êxito, o
pico foi escalado milhares de vezes. Nos últimos anos, con-
tudo, a concorrência esquentou. Em 2023, o Nepal emitiu
478 permissões para alpinistas, um número recorde. A tem-
porada também foi uma das mais mortais: 19 pessoas foram
dadas como mortas ou desaparecidas.

2|6
INÊS 249

NAS ALTURAS
Números que fazem a fama do monte
AVENTUREIROS POR ANO
CERCA DE 800

PESSOAS QUE CHEGARAM AO CUME


6 664

MORTES
AO MENOS 322 PESSOAS MORRERAM
DESDE O INÍCIO DOS REGISTROS EM
1922 — UMA MÉDIA DE 3,2 ÓBITOS
POR ANO

TURISMO
A ESCALADA DE MONTANHAS E
AS TRILHAS ATRAEM MILHARES DE
ESTRANGEIROS PARA O NEPAL TODOS
OS ANOS, CONTRIBUINDO COM MAIS DE
4% PARA A ECONOMIA DE 40 BILHÕES
DE DÓLARES DO PAÍS ASIÁTICO

3|6
INÊS 249

CHI NA

MONTE EVEREST

NE PAL

ÍN DI A

A decisão do Ministério do Turismo do país asiático visa


corrigir essa rota. Agora, os aventureiros que desejarem desa-
fiar o monte terão que limpar suas próprias fezes e levá-las de
volta ao acampamento para descarte correto — operação que
será vistoriada. As autoridades locais irão fornecer sacos que
contêm produtos químicos que solidificam os excrementos e
os tornam, em grande parte, inodoros. O que acontece é que,
devido às temperaturas extremas, as fezes deixadas no Eve-

4|6
INÊS 249

CAPTAIN NOEL/HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES

LENDA A expedição de George Mallory: britânico subiu o


monte há 100 anos, mas nunca voltou de lá

rest não diluem completamente, tornando-se visíveis e conta-


minando o solo. Além disso, os montanhistas terão a obriga-
ção de alugar e usar um dispositivo de rastreamento, do ta-
manho de um pen drive, em suas jornadas — um desembolso
extra na faixa de 50 reais. O intuito é que, se houver sumiços
ou acidentes, as equipes de resgate possam ser mais rápidas e
assertivas para salvar vidas.

5|6
INÊS 249

De local inóspito o Everest se transformou em destino pop.


Em 2019, fotos viralizaram expondo a superlotação de tre-
chos da montanha, com centenas de alpinistas esperando até
12 horas para escalar, o que suscitou o alerta de ambientalis-
tas. O governo nepalês inclusive foi criticado por liberar via-
jantes demais para galgar o monte, só que o retorno financei-
ro vinha falando mais alto. A partir desta temporada, porém,
as diretrizes endurecem de vez. Mesmo assim, especialistas
não acreditam que o destino deixará de ser objeto de desejo.
Pelo contrário. Se antes o padrão era ver alpinistas expe-
rientes nos acampamentos, hoje se multiplicam os novatos.
Os espíritos destemidos e abastados dispõem não só de heli-
cópteros para chegar à base como de instalações de luxo, com
direito a massagem e entretenimento noturno. Uma viagem
dessas não sai por menos de 250 000 reais, em média — cus-
to que engloba permissões, cama, comida, transporte, guia e
equipamentos de segurança. Um cenário bem diferente da-
quele encontrado pelo britânico George Mallory cem anos
atrás. Em 1924, o alpinista iniciou a lendária expedição da
qual não retornaria. Questionado sobre o motivo de querer
encarar o Everest, respondeu laconicamente “Porque ele está
lá”, frase que se tornou um mantra entre montanhistas. Quan-
do o corpo de Mallory foi encontrado, em bom estado de con-
servação, em 1999, o monte já não era mais o mesmo. Agora,
com o aquecimento global à espreita e hordas ávidas de turis-
tas, a prudência manda seguir as novas regras — para preser-
var a montanha e conseguir voltar de lá. ƒ

6|6
INÊS 249

GERAL TURISMO

RARO
O espetáculo
no Hemisfério
Norte: o maior
em décadas

NO CAMINHO
DO SOL
Com visibilidade muito acima da média, o eclipse que
acontece em 8 de abril movimenta o turismo na América
do Norte e estimula a criação de pacotes temáticos
VALÉRIA FRANÇA

ISTOCK/GETTY IMAGES

1|5
INÊS 249

QUANDO a ciência ainda não conseguia desvendar o


motivo para o sol desaparecer das vistas, no meio do dia,
dando lugar à escuridão, as lendas se encarregaram de
explicar o que parecia inexplicável. Derivado da palavra
grega ekleipsis, que significa abandono, o eclipse costu-
mava ser relacionado a prenúncios de calamidades e de-
sastres. Na Antiga Mesopotâmia, por exemplo, era aviso
da morte iminente de monarcas e da vinda do deus da tor-
menta. Causava pânico na população. Hoje, no entanto,
assistir à Lua deslizar entre a Terra e o Sol, bloqueando a
passagem da luz, virou atração turística alimentada de
fascínio irrefreável pelo fenômeno.
Em 8 de abril, um eclipse total poderá ser visto em
quinze estados americanos, três mexicanos e quatro pro-
víncias canadenses, em uma faixa de 13 000 quilômetros
de comprimento e 185 quilômetros de extensão. É ocor-
rência rara pelo tamanho de visibilidade. “Vai levar 72
anos para a América do Norte assistir a evento igual a es-
se”, diz Joaquim Costa, chefe da divisão de clima espacial
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A Na-
sa prevê público de 40 milhões de pessoas olhando para
cima, ressabiadas. Trata-se, portanto, de espetáculo que
vai atrair viajantes de olhares curiosos.
O setor hoteleiro, especialmente o americano e o mexi-
cano, prepararam uma série de pacotes especiais para a
data. Há shows musicais, estadias que incluem palestras e
visitas à Nasa, a agência espacial que pôs o ser humano na

2|5
INÊS 249

SCIENCE HISTORY IMAGES/ALAMY/FOTOARENA


SUPERSTIÇÃO Representação no Antigo Egito:
fenômeno era temido

Lua, além de voos especiais de observação. A Delta Airli-


nes lançou rotas para quem deseja assistir ao evento cós-
mico de camarote, sentado em uma poltrona confortável
com vista quase exclusiva — com direito a um bom espu-
mante. O primeiro roteiro anunciado pela companhia, pro-
gramado para sair de Dallas, no Texas, e aterrissar em De-
troit, no Michigan, esgotou em 24 horas. Foi preciso alocar
uma segunda aeronave, um Airbus A220-300, com jane-
las grandes, que decolará de Austin, no Texas, a caminho
de Detroit. As passagens custam, em média, 1 000 dólares.
A oportunidade movimenta o mercado, inclusive no
Brasil. A agência de turismo do astronauta Marcos Pon-
tes, ex-ministro bolsonarista, oferece um pacote de cinco

3|5
INÊS 249

dias. O grupo conhecerá a sede da Nasa, em Houston, lo-


cal onde os astronautas fazem a capacitação profissional.
Também está programada uma visita à SpaceX, empresa
aeroespacial de Elon Musk. Lá poderão entrar na Star-
ship, espaçonave que, nos sonhos de Musk, pode vir a
pousar em Marte, com passageiros, dentro de três a qua-
tro anos. “Escolhemos Austin como base para a hospeda-
gem porque será um dos melhores lugares para assistir ao
eclipse”, diz Marcos Palhares, sócio e diretor comercial de
Marcos Pontes. O preço estimado da brincadeira: 6 990
dólares (pacote individual). O Texas está no roteiro quen-
te de diversão, por ter excelentes pontos de observação.
Por isso, concentra boa demanda de atrações turísticas
para a data. Entre elas, o Eclipse Festival, que acontece
em uma fazenda, em Burnet. São cinco dias de shows, que
se alternam com apresentações científicas. No local, tam-
bém estão programados eventos de ioga e experiências de
“visões do futuro”, que fazem lembrar Woodstock. Nos
EUA, há mais dois eventos desse tipo programados: o
ShadowFest, em Bloomington, Indiana, e o 2024 Total
Eclipse, em Jessieville, em Arkansas, com estrutura de
camping e atividades de aventura, como tirolesa.
O assombro no firmamento costuma alimentar as
crenças no sobrenatural e funciona ainda como fonte de
inspirações românticas. “Pedi minha noiva em casamen-
to, de joelhos, durante um eclipse”, diz o programador
Wellington Magalhães, de 35 anos. Ele armou uma sur-

4|5
INÊS 249

LEOPATRIZI/E+/GETTY IMAGES

EXPECTATIVA Turismo eclíptico:


Nasa prevê 40 milhões de interessados

presa, com a ajuda da agência especializada que levou o


casal para assistir ao balé espacial nas dunas de Geni-
pabu, em Natal, no ano passado. Durante o eclipse, houve
apenas um problema: o céu nublou um pouco. Eis aí um
nó: os turistas devem estar preparados para as surpresas
do clima. É conveniente que ninguém observe o fenômeno
sem óculos especiais. E para quem não vai viajar, uma di-
ca: a Nasa fará cobertura em tempo real, em seu site, entre
16 e 17 horas de Brasília. Vale lembrar uma frase do popu-
larizador da astronomia Carl Sagan (1934-1996): “Quan-
do você faz uma descoberta — mesmo se for a última pes-
soa na Terra a ver a luz —, jamais vai se esquecer.” ƒ

5|5
INÊS 249

PRIMEIRA PESSOA

MARCELO NAVARRO

1|4
INÊS 249

MAIS QUE PRÉDIOS,


QUERO ERGUER UM
MUNDO MELHOR
Bruno Sindona transformou experiências traumáticas em
alicerce para criar casas populares com proposta inovadora

MEU PAI VEIO do Vale do Jequitinhonha, catou papelão,


foi garimpeiro, trabalhou em obras. Minha mãe tinha um
salão de beleza improvisado e vendia salgadinhos. E eu, nas-
cido em Osasco, desde cedo queria ajudá-los. A pobreza for-
ça a gente a buscar alternativas, ninguém quer conviver com
ela. A minha sorte é que nunca achei que aquele lugar era o
meu, e, por isso, fui logo auxiliar nas obras e aprendi a nego-
ciar. Aos 17 anos, porém, peguei tuberculose, meu primeiro
contato próximo com a morte. Passei seis meses dentro de
um quarto. Minha mãe já era doente, mas botou a minha ca-
ma junto à dela e passava noites me olhando, com medo de
que eu parasse de respirar. Foi difícil, mas transformador.
Curado, voltei ao trabalho. Até que, em 2008, uma incorpo-

2|4
INÊS 249

radora adquiriu um terreno herdado pela minha família, só


que ela quebrou antes de finalizar o empreendimento. Era
como se estivéssemos com a loteria ganha nas mãos, mas
perdido o bilhete. Então, mesmo sem ter muita noção, com
as pessoas me achando meio doido, tomei à frente e concluí
a obra. Como um menino que dormia em uma cama escora-
da em blocos de pedra podia construir um prédio? Pois essa
foi a primeira criação da Sindona.
A empresa começou a crescer, mas eu só pensava em dar
uma vida boa para a minha mãe. Não deu tempo, infelizmen-
te. A perda dela de um lado e o crescimento da incorporado-
ra do outro foram tempos complicados. Todo mundo queria
ser meu amigo. Acabei me tornando compulsivo: bebia de-
mais, brigava, não dormia, a vida era só festa e virou um
caos. E o trabalho, claro, começou a desandar. Até que, em
2015, um assalto me fez cair na real. Tinha 24 anos e foi mi-
nha segunda experiência de cara com a morte. Levei quatro
tiros. Consegui escapar e chegar ao hospital, mas com aquela
sensação de não poder respirar. A recuperação foi mais um
processo de casulo e renascimento. Percebi ali que nenhum
carro importado ia devolver minha mãe e os anos de saúde
que estava perdendo com os excessos. Minha missão, então,
mudou. Passou a ser fazer moradias para transformar vidas.
Como é que uma pessoa pode ter dignidade se dorme em
uma casa infestada de ratos, como a aquela em que eu dormi
um dia? Sei bem o que é ter que correr de enchente, e, não
por menos, decidi traçar minha carreira numa direção de

3|4
INÊS 249

humanizar o mercado imobiliário. Poderia ganhar muito


mais dinheiro de outra forma, mas não era isso que iria me
satisfazer. O que mais me motiva a fazer residências bonitas,
funcionais e acessíveis é que as pessoas de baixa renda pos-
sam não só ter sua casa própria como orgulho de entrar e
morar ali. Passados cinco anos do assalto, a vida e os negó-
cios caminhavam bem. Até que veio a pandemia. E, pela ter-
ceira vez, me vi sem ar e colado na morte. Peguei Covid em
março de 2020, quando ainda não havia exame, ninguém
sabia o que era aquilo, e as pessoas começavam a morrer.
Saí do hospital com uma bombinha de asma e mal podia le-
vantar da cama. Mais uma vez, foi um tempo de reflexão e
de virada na minha vida — desta vez, pela fé.
Não tem a ver com religião, mas, sim, em acreditar não só
no etéreo, mas em mim, em um futuro melhor, no planeta,
em algo coletivo e positivo. É um dos motivos pelos quais en-
trei para o Conselhão do governo federal. Ali posso ajudar a
desenvolver projetos habitacionais e obter mais ferramentas
para realizá-los. Quero que mais pessoas carentes possam vi-
ver bem, ter confiança na vida. Essa é a minha luta, sou um
guerreiro do bem. E, depois de todas essas experiências trau-
máticas que vivi, entendi que ainda estou caminhando e
aprendendo. E percebi definitivamente que não são só pré-
dios que quero erguer. Quero construir um mundo melhor. ƒ

Depoimento dado a Simone Blanes

4|4
INÊS 249

GERAL LIVRO

POR TRÁS DO
MITO Busto em
relevo feito entre III
e I a.C.: mulher que

DEAGOSTINI/GETTY IMAGES
desafiou as ideias
de submissão

DE VÍBORA A
LEOA FEMINISTA
Nova biografia se propõe a corrigir estereótipos sobre
Cleópatra e fazer justiça à rainha egípcia, reforçando
sua conversão em ícone da afirmação política
RAQUEL CARNEIRO

1|5
INÊS 249

LINDA E SENSUAL, ao lado de seu leopardo de estimação,


uma fria Cleópatra observa a morte de prisioneiros enquanto
testa neles a eficácia de venenos. A cena retratada no quadro
de 1887 do pintor francês Alexandre Cabanel resume a fama
da rainha egípcia perpetuada ao longo de dois milênios: escra-
va da luxúria, cruel e emocionalmente instável, Cleópatra teria
deixado um rastro de destruição em sua trajetória, desviando
grandes homens do caminho da virtude, enquanto causava a
morte de indefesos e desfrutava de riquezas desproporcionais
em seu palácio. Da literatura às artes plásticas, passando pelo
teatro de Shakespeare e o cinema do século XX, são muitas as
representações da personagem sob esse mesmo olhar — adi-
cionando ainda, se possível, elementos de feitiçaria.
Em meio a tantos estereótipos, a ensaísta americana Fran-
cine Prose se propôs uma tarefa complexa. Diante do material
histórico esparso e de muitos relatos feitos por opositores, a au-
tora separa o joio do trigo sobre a personagem no notável e en-
xuto livro Cleópatra: Seu Mito, Sua História, que está saindo
no país pela Planeta. A começar pelo óbvio: boa parte do que
se sabe sobre Cleópatra passou pelo filtro de homens romanos,
que não só a desprezaram por ser uma mulher que desafiou as
ideias de submissão feminina, como também por sua astúcia e
teimosia, postura que dificultou a expansão imperial, atrasan-
do em duas décadas o domínio de Roma sobre o Egito.
Ao lançar essa lupa sobre a personagem, a nova biografia
não só reforça uma onda de pesquisas que buscam acessar
brechas da verdade por trás de narrativas tidas como oficiais,

2|5
INÊS 249

DEAGOSTINI/GETTY IMAGES

ESTIGMA Quadro do francês Alexandre Cabanel:


envenenando prisioneiros

mas também se impõe como um exemplar valioso entre os tí-


tulos voltados à soberana egípcia. No ano passado, a minissé-
rie documental Rainha Cleópatra, da Netflix, causou furor ao
colocar a atriz negra Adele James no papel da protagonista —
até o governo do Egito pediu o boicote da produção assinada
pela também atriz negra Jada Pinkett Smith. A série expôs
ainda atitudes mais sóbrias da personagem, ao contrário do
tom histérico dado pela atriz inglesa e branca Elizabeth Tay-
lor (1932-2011) no filme de 1963. Julgada pelo machismo e
pela xenofobia — os egípcios eram considerados seres inferio-
res pelos romanos —, Cleópatra, em pleno século XXI, vira o
jogo para se firmar como um símbolo improvável de afirma-

3|5
INÊS 249

ção feminista e racial. “Ela era bem-educada, boa diplomata e


poliglota”, disse a autora em entrevista a VEJA. “Cleópatra li-
dou com todo tipo de conflito interno; houve inundações, fo-
me, guerras, desafios extremos para qualquer tipo de gover-
nante. E ela conseguiu, com alianças, atravessá-los.” Entre es-
ses parceiros oportunos estavam dois romanos proeminentes,
o imperador Júlio César e, depois, o cônsul Marco Antônio,
com os quais ela se relacionou e teve filhos. Por estratégia ou
amor, o fato é que Cleópatra se manteve no poder no Egito
por vinte anos após o conturbado governo de seu pai, Ptolo-
meu XII, transformando a capital, Alexandria, numa cidade
vibrante e mantendo o país relevante e autônomo.
Mesmo com tantos feitos, denuncia a autora, é a aparência
física da rainha a maior obsessão dos detratores. Descrita co-
mo dona de beleza ímpar (nunca comprovada), Cleópatra
não teria chegado tão longe naquele violento jogo político se
não tivesse uma inteligência perspicaz e a firmeza exigida de
monarcas. “O constante interesse na aparência dela é sinto-
ma de julgamentos sexistas e raciais”, diz Prose. Cleópatra
era macedônia por parte da família paterna, um indício de
que teria traços brancos. Não se sabe, porém, quem foi sua
mãe. Na época, o Egito era um reduto multicultural, com na-
cionalidades diversas — herança da ocupação de Alexandre,
o Grande trezentos anos antes. A autora então crava que, sim,
a rainha poderia ter sido negra, mistério que ainda não tem
resposta. “Qualquer biógrafo de Cleópatra trabalha com
poucos fatos e muita especulação”, explica Prose.

4|5
INÊS 249

HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES

VISÃO MACHISTA MISTÉRIO Adele James


Elizabeth Taylor no filme em série da Netflix: a egípcia
clássico: fútil e histérica poderia ser negra?

Isso se aplica até ao mais antigo e famoso deles, Plu-


tarco (46 d.C.-120 d.C.) — que, na passagem do século I
ao II, escreveu sobre homens gregos e romanos proemi-
nentes. Entre eles, Marco Antônio, tratado como vítima
da manipulação de Cleópatra. Após uma investida mili-
tar malsucedida do casal, a rainha morreu — suposta-
mente picada por uma cobra, em 30 a.C., aos 39 anos.
Sua vida curta agora é revisada sob a ótica afirmativa
atual. E assim, quem diria, a rainha passou de víbora a
leoa feminista. ƒ

5|5
INÊS 249

GERAL MODA

A GRANDE SACADA
Duas exposições em Paris revelam como a
necessidade humana de se exercitar fez mudar
radicalmente a forma como as pessoas se vestem
DUDA MONTEIRO DE BARROS E MAFÊ FIRPO

DIRETO
DO MAR
Evangelista
RISKYWALLS/ALAMY/FOTOARENA

em desfile da
Chanel: estilo
surfista

1|6
INÊS 249

NOÇÃO hoje amplamente aceita e praticada, a ideia de


que atividades esportivas trazem vastos benefícios à saúde
surgiu com ares de grande novidade na Europa do século
XIX. Antes disso, pairava sobre o esforço físico o estigma
de ser braçal, algo para a classe trabalhadora. Foi a ciência
que chacoalhou os pilares dessa convicção calcada em pre-
conceito, impulsionando os bons médicos a expressamente
indicar que as pessoas deixassem de lado a inércia e se pu-
sessem em movimento. No início, a descoberta era com-
partilhada pelo reduzido círculo das elites, até se dissemi-
nar por todas as camadas e provocar uma profunda mu-
dança de hábitos. À medida que as várias modalidades iam
se profissionalizando — hipismo, tênis, natação —, uma
questão se tornou inescapável: como adaptar os trajes tão
fartos em tecido e tolhidos por espartilhos, feitos para en-
feitar, a um mundo que abrigava a primeira Olimpíada da
era moderna (1896), em Atenas, e assistia à humanidade
cada vez mais adepta dos exercícios?
A resposta veio na forma de uma revolução na moda, que
precisou adicionar altas pitadas de funcionalidade à beleza,
explorando caminhos nunca antes percorridos para atender
às ascendentes demandas esportivas. E as transformações
se fizeram visíveis para muito além do guarda-roupas, que
foi se tornando menos formal para, aos poucos, deixar os
corpos mais livres e à mostra, dentro e fora das quadras. É
nessa histórica jornada, na qual moda e esporte seguiram
firmes de mãos dadas, que duas belas exposições mergu-

2|6
INÊS 249

lham em Paris, a cidade-se-


de dos próximos Jogos
Olímpicos — uma no Museu
de Artes Decorativas, cola-
do ao Louvre, outra no Pa-
lais Galliera, dedicado jus-
tamente à moda, não muito
longe do Arco do Triunfo.
Ali, no palacete de arquite-

DIVULGAÇÃO
tura clássica, a evolução dos
trajes se revela em duzentas TRAJE DE MONTARIA
peças que, uma década após Quando surgiu: século XIX
a outra, vão se amoldando Evolução: O excesso de
aos avanços esportivos, até pano do vestido exigia que as
desaguar na alta-costura. “A mulheres se acomodassem
partir da década de 1920, as de lado sobre o cavalo. Ele
foi substituído um século
prestigiadas maisons passa- mais tarde por um conjunto
ram a ter uma linha voltada de jaqueta e calça inspirado
para o esporte, o que mais no guarda-roupa inglês.
tarde resultaria no sports-
wear, com o visual atlético
tomando as ruas”, disse a VEJA Sophie Lemahieu, curadora
da mostra Mode et Sport, do Museu de Artes Decorativas.
A metamorfose por que passou o vestuário usado nas
mais distintas formas de exercício exigiu tempo e espírito de
inovação. Ainda no século XVIII, a excêntrica Maria Anto-
nieta, a última das rainhas da França, praticava equitação

3|6
INÊS 249

HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES


DIVULGAÇÃO

ROUPA DE BANHO UNIFORME DE TÊNIS


Quando surgiu: 1900 Quando surgiu: década de 1920
Evolução: O modelo, Evolução: Desenhada pelo
formado por túnica e revolucionário Jean Patou,
bermuda, foi encolhendo a saia plissada na altura dos
gradativamente para se joelhos combinada à blusa
adaptar à natação sem decotes encurtou e se
e saltou das piscinas ajustou ao corpo, incorporando
às areias nos anos de 1940, o náilon, tudo para facilitar
já na forma de biquíni o movimento

envolta em infinitas camadas de tecido que formavam uma


saia com um corte para dar espaço às pernas — curiosa ima-
gem eternizada por pinturas da época. Inspirada nas pre-
cursoras inglesas, ela depois adotou calça bufante, uma
transgressão, já que era item exclusivamente masculino.
Custou para se dar o salto para a jaqueta e a calça justa de

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INÊS 249

hoje. Muitos materiais foram entrando em cena para confe-


rir leveza na arena esportiva, e, nessa marcha, a estilista Co-
co Chanel (1883-1971) decidiu comercializar uma linha em
malha jérsei, antes restrita aos homens. “No começo, as
competições eram o único local onde elas podiam revelar
suas curvas, e isso acabou representando mais um motor
para a emancipação feminina”, observa Sophie Lemahieu.
Considerado um grande propulsor da estética esportiva,
o francês Jean Patou (1887-1936) tornou-se o primeiro a
conceber um modelito de alta-costura que foi parar nas qua-
dras. Em 1926, com uma saia plissada na altura dos joelhos
e blusa sem manga, a estrela do tênis Suzanne Lenglen cau-
sou abalos ao se apresentar com o conjunto que se distancia-
va dos uniformes que mal deixavam entrever a pele. Tem-
pos depois, ele ficou mais curto e justo e desbravou tecidos
elásticos, como o náilon. Também as piscinas foram palco
de um dos mais notáveis sacolejos na moda — até o início do
século XX, o conceito de maiô se traduzia em uma túnica
sobre calça curta de algodão, o que conduziria a um maca-
quinho de malha, ambas soluções impensáveis nos dias de
hoje, diante dos competitivos parâmetros da natação mo-
derna. Apenas na década de 1940, aliás, o biquíni despontou
nas areias europeias, alterando definitivamente a paisagem
e a própria relação com o corpo.
As duas exposições parisienses enfatizam que a influên-
cia do esporte sobre a moda não para e vai ganhando novos
contornos. Quando a top model Linda Evangelista adentrou

5|6
INÊS 249

a passarela da Chanel, em 1991, com um acinturado terni-


nho azul brilhante e legging preta, uma releitura do visual
do surfe assinado por Karl Lagerfeld, apresentava mais do
que um look — ali estava uma ideia. Grifes como Louis Vuit-
ton, Balenciaga, Prada e Gucci também ingressaram com
tudo no profícuo rol esportivo, já povoado por tantas mar-
cas. “As fronteiras entre moda social e esportiva se dissolve-
ram completamente”, afirma o especialista Brunno Almei-
da. E assim a humanidade caminhou, correu e saltou rumo
a uma existência em que o espartilho, felizmente, não passa
de peça de museu. ƒ

6|6
INÊS 249

CULTURA ARTE

NO LIMITE Estudo
para Retrato em Cama
Dobrável: representação
humana de Bacon é
figurativa, mas
nada realista
FRANCIS BACON - STUDY FOR PORTRAIT ON FOLDING BED, 1963

TENTAÇÕES DA CARNE
Exposição impactante no Masp joga luz sobre a influência da
sexualidade de Francis Bacon em sua obra explosiva e destaca
o papel do irlandês como inovador radical da técnica do retrato
AMANDA CAPUANO

1|5
INÊS 249

E
m um dia prosaico como qualquer outro, o irlandês
Francis Bacon (1909-1992) foi atraído por uma ima-
gem que passa despercebida para muitos: ao cami-
nhar em frente a um açougue, teve o olhar captura-
do pelas peças de vermelho vivo exibidas na vitrine
do estabelecimento. “Como pintor, você não pode deixar de
sentir toda a beleza do colorido da carne”, proclamou ele ao
relatar a experiência ao historiador e crítico de arte David
Sylvester (1924-2001). A passagem curiosa ilustra o olhar
atento do artista para a composição corporal em toda a sua
plasticidade, e é a centelha inicial da exposição Francis Ba-
con: a Beleza da Carne, em cartaz no Masp, em São Paulo,
a partir de sexta-feira, 22. “A gente parte dessa fala que dia-
loga com diversas obras dele para pensar também sobre ou-
tro aspecto de sua pintura, o desejo carnal”, explica Laura
Cosenday, uma das curadoras da mostra.
Parte de uma programação inteiramente dedicada a
histórias da diversidade LGBTQIA+, que conta com uma
série de mostras ao longo de 2024, a exposição — que lan-
çará, ainda, um catálogo inédito do artista — é uma das
raras ocasiões em que a obra de Bacon é exibida de manei-
ra extensa no Brasil. No total, 24 pinturas produzidas en-
tre 1940 e 1980 compõem o acervo, que reúne peças vin-
das de diversas instituições de renome. Inserida no contex-
to da diversidade sexual, a curadoria volta suas atenções
para um recorte importante e pouco explorado: a influên-
cia da homossexualidade do pintor em sua arte e, mais que

2|5
INÊS 249

RAPHAEL GAILLARDE/GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES

FRANCIS BACON - STUDY FOR SELF-PORTRAIT, 1981


O ARTISTA Bacon: arte A OBRA Estudo para
marcada por ambiguidade Autorretrato: nem ele mesmo
e estranheza escapa das distorções

isso, como seu estilo inovador abriu caminhos para a re-


presentação queer em tempos de repressão.
Filho de pais ingleses e nascido na Irlanda, Bacon pas-
sou boa parte da vida em um contexto no qual a homos-
sexualidade era mais que malvista: até 1967, a prática era
considerada crime na Inglaterra, condenando muita gen-
te à prisão. Isso não impediu que Bacon retratasse seus
desejos nas telas: o corpo masculino, em nus ou retratos
mais “comportados”, é uma temática recorrente em sua
pintura — inspirado, inclusive, por musos como Peter La-
cy e George Dyer, com quem manteve relações apaixona-
das, mas também violentas. “Esses dois relacionamentos

3|5
INÊS 249

foram muito marcantes para Bacon. Ambos morreram


jovens e foram perdas sofridas”, detalha a curadora do
Masp, lembrando que o pintor também eternizou amigos,
mulheres e figuras não identificadas.
Expor corpos masculinos, no entanto, exigia jogo de
cintura, especialmente no início da carreira: quadros co-
mo Man at a Washbasin (Homem em um Lavatório) tra-
zem o personagem-título de modo sutil, em tons mais só-
brios e com intimidade nada explícita. A ambiguidade es-
perta de Bacon nesse período mostra seu valor num epi-
sódio significativo: em 1955, a pintura Two Figures in the
Grass, que exibe dois homens contorcendo-se na grama,
foi denunciada para a polícia, mas acabou interpretada
pelos oficiais como uma dupla de lutadores em combate,
isenta de qualquer teor sexual. “Fora de contexto é difícil
distinguir se eles estão lutando ou fazendo sexo. Essa é
uma estratégia de ambiguidade”, explica a curadora.
Nessas obras, o artista costumava se inspirar nos estu-
dos de movimento do fotógrafo Eadweard Muybridge
(1830-1904), conhecido por captar imagens de atletas. “O
uso do contexto esportivo era uma estratégia na época pa-
ra a circulação de imagens homoeróticas”, conta ela. Mes-
mo assim, Bacon deixou de lado os couplings (acasalamen-
tos), como chamava esse tipo de representação, e só reto-
mou a ideia a partir de 1967, depois que a legislação descri-
minalizou a homossexualidade. Exemplo desse retorno é
Two Figures with a Monkey (Duas Figuras com um Maca-

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INÊS 249

FRANCIS BACON - TWO FIGURES WITH A MONKEY, 1973

FRANCIS BACON - MAN AT A WASHBASIN, C.1954


O CORPO FALA Duas Figuras com um Macaco (à esq.) e
Homem em um Lavatório: erotismo e fascinação por açougue

co), em que corpos disformes se entrelaçam em cima de


uma mesa enquanto um primata pula abaixo dela.
Para além do peculiar erotismo, Bacon se estabeleceu co-
mo nome importantíssimo (e pop) na arte por seus retratos:
tido como um dos principais renovadores do gênero no século
XX, ele contrariou a corrente abstracionista de sua época ao
se manter fiel à pintura figurativa. Ao mesmo tempo, inovou
desconstruindo traços de um jeito voraz, sem apego à beleza e
ao realismo. “Ele leva a representação do ser humano ao limi-
te da figuração”, teoriza Laura. As pinceladas fortes e distor-
ções, como em Study for Portrait on Folding Bed, acabaram
ligadas à violência e ao grotesco por externalizar as chagas do
pintor, expulso de casa aos 16 anos pelo pai, após ser pego
com roupas íntimas da mãe. “Ele dizia que suas obras não
eram violentas, que a vida é violenta”, diz a curadora. Para so-
breviver ao preconceito, a carne de fato precisa ser forte. ƒ

5|5
INÊS 249

CULTURA CINEMA

UM ATO DE
CORAGEM
No filme Uma Vida — A História de Nicholas
Winton, um homem comum salva centenas de
crianças judias do nazismo — uma trama real que
atesta o poder da empatia e da solidariedade

FORÇA-TAREFA Johnny Flynn (de óculos) no longa:


quando voluntários anônimos se empenham para
proteger vulneráveis

DIAMOND FILMS

1|3
INÊS 249

AOS 29 ANOS, Nicholas Winton tinha uma vida confortável. O


jovem inglês, filho de judeus alemães, era corretor de ações de
um banco em Londres e planejava esquiar nas férias que teria em
dezembro de 1938. Isso, até um amigo lhe telefonar de um cam-
po de refugiados em Praga pedindo ajuda. Winton não pensou
duas vezes. O rapaz logo pegou o trem rumo à extinta Tchecos-
lováquia para reforçar uma equipe de voluntários que tentava,
com muito boa vontade e poucos recursos, salvar judeus e mem-
bros de movimentos antinazistas do exército de Hitler, que ex-
pandia seu domínio na Europa — avanço que deflagrou, no ano
seguinte, a Segunda Guerra Mundial. O trabalho que duraria
uma semana se estendeu por nove meses, período no qual Win-
ton organizou uma complicadíssima evacuação de centenas de
crianças judias de Praga para a Inglaterra. Apelidado de “Schin-
dler inglês”, em referência ao empresário alemão eternizado no
filme A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, o corretor e sua
saga conduzem o longa Uma Vida — A História de Nicholas
Winton (One Life, Reino Unido, 2023), em cartaz nos cinemas.
Honrando a personalidade discreta e altruísta do biogra-
fado — ele só se tornou uma pessoa pública em 1988, quando
buscava um museu para doar a extensa documentação que ti-
nha da época —, o filme de James Hawes foge da armadilha
de transformar Winton em um herói dramático e fora da cur-
va. Para isso, se apoia em um roteiro singelo e contido na me-
lancolia, embalado por uma ideia reconfortante: sem acesso
aos ambientes de poder, pessoas comuns podem, sim, fazer a
diferença em um mundo caótico.

2|3
INÊS 249

Interpretado por Johnny


Flynn na juventude e pelo gi-
gante Anthony Hopkins na
maturidade, Winton tinha
uma habilidade valiosa: era

DIAMOND FILMS
ótimo com papelada. Talento
desprovido de glamour, mas DISCRETO Hopkins como
que fazia com que ele enxer- Winton: ele refutava a fama
gasse possibilidades práticas de herói na guerra
onde os demais não viam. Ao
notar que a única maneira de levar as crianças de forma legal
e segura à Inglaterra exigia a aprovação de vistos emergen-
ciais, uma alta quantia financeira e cidadãos ingleses dispos-
tos a abrigá-las em suas casas, ele encabeçou uma força-tare-
fa que angariou doações e famílias prontas a ajudar. Como
resultado, 669 crianças foram salvas — número que poderia
ter sido maior não fossem tantos entraves burocráticos.
Em 2014, quando a filha de Winton publicou a biografia
que dá nome ao filme, a estimativa era de que 6 000 descen-
dentes daquelas crianças existiam por causa de seu empe-
nho. Após a guerra, ele voltou ao trabalho no banco e, na
aposentadoria, se dedicou a ações humanitárias diversas.
Morto em 2015, aos 106 anos, Winton deixou uma lição po-
derosa: a combinação de empatia e coragem pode mudar
(ou ao menos melhorar) o mundo. ƒ

Raquel Carneiro

3|3
INÊS 249

CULTURA TELEVISÃO

NETFLIX

GUERRA DOS MUNDOS


Baseada na obra de Cixin Liu, a série O Problema dos
Três Corpos, da Netflix, atesta a força da ficção
científica made in China com enredo humanista sobre
invasão de ETs KELLY MIYASHIRO

1|6
INÊS 249

NOVA DIMENSÃO
Simulação de jogo:
aliens que dominam
as mentes

EM 1966, no auge do fervor destrutivo da Revolução Cul-


tural na China comunista, a astrofísica Ye Wenjie (Zine
Tseng) vê seu pai, um professor da mesma área, ser espan-
cado até a morte por jovens revolucionários. Seu delito:
não renegar as teorias de Albert Einstein, considerado —
haja cegueira obscurantista — um aliado do imperialismo
ocidental. Mais tarde, a própria Ye é perseguida, mas o re-

2|6
INÊS 249

gime maoísta a perdoa em troca de seus préstimos científi-


cos para uma organização oficial envolvida numa missão
singular. Enquanto Rússia e Estados Unidos lançavam-se
na corrida espacial, a China, secretamente, queria ir além:
buscava contato com forças extraterrestres. Essa hipótese
fantasiosa, mas irresistível para a ficção, é explorada na sé-
rie O Problema dos Três Corpos, que estreia seus oito epi-
sódios na próxima quinta, 21, na Netflix.
Com roteiro dos poderosos David Benioff e D.B. Weiss
(dupla de Game of Thrones) e produção de Alexander Woo
(True Blood), a trama lança luz sobre um fenômeno maior
do entretenimento: a ascensão de uma nova ficção científica
produzida na China — e aparentemente, mesmo contendo
certas farpas políticas, tolerada e até estimulada pela dita-
dura de Pequim. A façanha cabe ao escritor Cixin Liu, cria-
dor do intrincado O Problema dos Três Corpos (2008) e dos
dois livros que completam a saga até agora, A Floresta Som-
bria e O Fim da Morte. Neles, fala-se de um mote reciclado à
exaustão na literatura, no cinema e na TV desde o clássico
Guerra dos Mundos (1897), do inglês H.G. Wells: a ideia de
um conflito iminente entre os humanos e ETs decididos a
dominar a Terra. Cixin Liu, no entanto, consegue injetar
frescor nessa premissa antiga ao dotá-la de sutileza, dilemas
existencialistas e, principalmente, de uma base teórica enge-
nhosa, que vai da mecânica quântica à inteligência artificial.
Adaptada com autorização de seu criador, a série da
Netflix realça o elemento central da obra de Cixin Liu: a

3|6
INÊS 249

ED MILLER/NETFLIX
GUARDIÕES Os cientistas da série:
perseguidos por forças terríveis

defesa do valor intrínseco da liberdade científica como


guardiã, em última instância, da civilização. Logo no iní-
cio de O Problema dos Três Corpos — título que se refere a
um velho debate da física sobre a interação de forças gravi-
tacionais —, a protagonista Ye Wenjie toma uma decisão
solitária de altíssimo impacto. Desiludida com o ambiente
de terror em seu país e a Guerra Fria, ela tem uma reação
de desespero ao obter sucesso na comunicação com aliení-
genas por meio da imensa antena do laboratório governa-
mental: mesmo alertada pelos próprios de que eles só vi-
riam à Terra para nos dominar, ela insiste que venham.

4|6
INÊS 249

Após quase sessenta anos, a decisão desencadeia uma série


de suicídios de cientistas em Londres, obrigando o agente
antiterrorista Clarence Da Shi (Benedict Wong) a começar
uma investigação conturbada por forças além de seu en-
tendimento, que manipulam mentes através de um game
ativado por um capacete misterioso. Famoso por interpre-
tar o fiel escudeiro do Doutor Estranho (Benedict Cum-
berbatch) no universo da Marvel, Wong dá vida ao deteti-
ve que precisa impedir o apocalipse. “A série nos obriga a
fazer perguntas sobre a sociedade e o destino da humani-
dade”, explicou o ator a VEJA (leia à dir.).
Para dominar os humanos, enfim, os ETs sabotam os
avanços científicos de estudiosos brilhantes. O enredo ga-
nha toques perturbadores ao especular como uma parcela
das pessoas se renderia aos aliens ao vê-los como divinda-
des — uma clara alegoria sobre os perigos do fanatismo re-
ligioso e político. Cixin Liu, de 60 anos, sabe bem do que
fala em sua obra. Nascido na província de Shanxi, onde
ainda mora, e criado na Revolução Cultural, ele via seu pai
esconder livros de mestres da ficção científica como Ar-
thur C. Clarke por medo da repressão. Só na virada dos
anos 1980, quando o comunismo chinês reviu sua visão so-
bre a ciência, é que eles foram aceitos. Engenheiro da com-
putação, Liu temeu censura quando começou a escrever,
mas garante que até hoje não sofreu represálias. Se chegas-
sem hoje por aqui, nem os aliens duvidariam que suas
obras são um negócio da China. ƒ

5|6
INÊS 249

CONECTADOS
Wong como Da
Shi: investigador
busca respostas
NETFLIX

“É UMA SÉRIE CORAJOSA”


Famoso como personagem da Marvel, o inglês Benedict Wong fala a
VEJA sobre O Problema dos Três Corpos e suas mensagens políticas:

O que pensou ao ler o roteiro de uma série tão cheia de


complexidades científicas? Vi algo de magnitude. É uma
série que nos obriga a fazer perguntas sobre os dilemas da so-
ciedade e o destino da humanidade.

Como descendente de chineses, como vê a citação


da Revolução Cultural? Acho muito corajosa. Mostra o
período de forma sensível. A trama foi criada por um chinês,
claro, mas é universal: uma jovem vê seu pai ser morto e quer
mudar o mundo.

Qual a motivação de seu personagem, Da Shi? Ele é


um agente brilhante que atua contra o terrorismo, quer ajudar
as pessoas — mas é um péssimo pai.

Como foi interpretar um homem comum em vez de um


herói da Marvel? Foi legal e revigorante, para ser sincero.

6|6
INÊS 249

CULTURA MÚSICA

O AVÔ DA SOFRÊNCIA
Um belo documentário reconta a vida de Lupicínio
Rodrigues, o sambista gaúcho que criou a dor de
cotovelo, enfrentou o racismo e foi indicado ao Oscar à
sua revelia FELIPE BRANCO CRUZ

BOEMIA Lupicínio (à dir.) com Nelson Cavaquinho: compositor


sofria de amor em balcões de bar, mas sem perder o humor

LUCAS NOBILE/DIVULGAÇÃO

1|4
INÊS 249

EM MEADOS DE 1948, um amigo de Lupicínio Rodrigues


o procurou extasiado após assistir ao musical Dançarina
Loura (1944). Durante quase dois minutos, o casal formado
pelos astros Belita e James Ellison dançava ao som instru-
mental de Se Acaso Você Chegasse, uma de suas mais belas
composições — que ficaria famosa na voz de Elza Soares.
Imediatamente, o músico foi ao cinema conferir. De família
humilde, nascido na Ilhota, uma favela gaúcha da época, Lu-
picínio saiu da sala maravilhado em ver sua criação em
Hollywood. Ele ainda não sabia, mas a faixa também fora in-
dicada ao Oscar — só que com o título Silver Shadows and
Golden Dreams e creditada a Lew Pollack e Charles
Newman. Em seus 59 anos de vida, o brasileiro nunca foi
consultado nem autorizou o uso da canção, tampouco procu-
rou reparação na Justiça. A revelação inédita é apenas uma
das inúmeras pérolas do documentário Lupicínio Rodrigues:
Confissões de um Sofredor, em cartaz nos cinemas. “Prova-
velmente a faixa chegou aos Estados Unidos por meio da po-
lítica de Getúlio Vargas de levar músicas do Brasil para as rá-
dios americanas”, diz o diretor do filme, Alfredo Manevy.
Os poucos registros em vídeo e um punhado de fotogra-
fias que Lupicínio deixou foram resgatados numa meticulosa
pesquisa feita por Lucas Nobile (também autor de uma bio-
grafia de Dona Ivone Lara). Três grandes entrevistas foram
restauradas, em que se ouve sua voz suave e melodiosa e se
expõe um compositor atormentado pelas dores do amor, mas
que nunca perdia o humor. “Avô” da sofrência (a memorável

2|4
INÊS 249

Nervos de Aço que o diga),


Lupicínio era visto nos bares
com os cotovelos no balcão
enquanto sofria por amor —
daí a expressão “dor de coto-
velo”. Amigo de outros sam-
bistas sofredores, como o ca-
rioca Nelson Cavaquinho,
ele garantia que as músicas
doloridas eram inspiradas
em suas histórias. O clássico
Felicidade versava sobre sua
primeira algoz amorosa, a

DIVULGAÇÃO
gaúcha Inah. Para a carioca
Mercedes, escreveu o hino MULHERENGO Lupicínio e
da sofrência, Vingança. A es- a esposa, Cerenita: após anos
posa, Cerenita, com quem se de desilusões amorosas, ele
casou na maturidade, deu se casou na maturidade
mote a Exemplo.
Negro e pobre, Lupicínio foi discriminado por sua clas-
se social e cor da pele. Nos anos 1950, já famoso, foi bar-
rado num bar em Porto Alegre. Amparado na Lei Afonso
Arinos (1951), chamou a polícia, tornando-se o primeiro
na cidade a invocar a lei contra o racismo. No futebol,
também rompeu barreiras. Numa época em que Grêmio e
Internacional não aceitavam jogadores pretos, tornou-se
torcedor do tricolor gaúcho porque o time foi o único a

3|4
INÊS 249

aceitar treinar com a Liga dos Canelas Pretas, escrete de


seu pai formado só por negros. Em retribuição, compôs o
hino gremista e foi o primeiro na sua condição a ser aceito
como sócio do clube.
Em sua carreira, Lupicínio não se importou ainda em
apoiar novos movimentos, como a Bossa Nova e a Tropicá-
lia. “Se continuássemos cantando só samba-canção, o Brasil
seria como a Argentina, onde só se ouve tango”, dizia. Gra-
ças às revelações do documentário, a família de Lupicínio
decidiu exigir o crédito de Se Acaso Você Chegasse junto ao
Oscar. Eles serão representados pelo advogado da Rihanna,
Miles Cooley, que é casado com uma brasileira e ofereceu
seus serviços de graça. Antes tarde do que nunca, justiça se-
ja feita ao bamba sofredor. ƒ

4|4
INÊS 249

WALCYR CARRASCO

PROTEÇÃO OU
TROLAGEM?
Na nossa era surreal, a IA decide
até se somos quem somos

COMPRO um celular novo. Preciso preencher infindáveis


formulários digitais, com números, letras maiúsculas e mi-
núsculas, senhas com elevados graus de dificuldade, das
quais não me lembrarei depois. Mas não basta. Tenho de
provar que eu sou eu, através de reconhecimento facial. Se
abro uma conta bancária ou tento entrar na que já tenho,
também é preciso mostrar o carão. Nem sempre a IA reco-
nhece. Preciso ficar com o rosto torto, olhar de ângulos dife-
rentes, aproximar ou afastar o celular, tudo isso tirando e
colocando os óculos para conferir o que está acontecendo.
Nem sempre é fácil. A IA é rigorosa, uma espinha no nariz
talvez bloqueie minhas contas. Outro dia, eu e um especia-
lista em finanças ficamos quarenta minutos tentando, mas
não conseguimos entrar na minha conta bancária. A IA es-
tava de mau humor, acredito. No dia seguinte, bastou mos-
trar o rosto umas cinco vezes e ela se convenceu de algo que
eu sabia havia muito tempo: que eu sou eu. Mas talvez esteja
errado. Outra vez, em um aplicativo de compras, passei um

1|3
INÊS 249

tempão tentando provar que não sou uma máquina. Entre


várias imagens, tinha de identificar em qual havia semáfo-
ros, depois placas... Deu erro. Fiquei na dúvida se sou de car-
ne e osso, já que não consigo provar isso nem para meu celu-
lar. Para entrar em um prédio ou pegar um atalho no aero-
porto, o reconhecimento também é facial. E, para pagar as
compras, basta sorrir para meu celular, se foi com um sorri-
so que me cadastrei. Mas, se eu estiver gripado, ou com o
rosto inchado, serei expulso de onde quero entrar?
Quando saio, estremeço ao escolher um cartão de crédi-
to. A segurança digital pode não aceitar que eu pague mi-
nhas compras. Se recusa, tenho de ligar para um determina-
do número, me identificar e responder dados específicos pa-
ra não ser bloqueado. Penso sempre no que acontecerá se

“Cada vez menos


humanos e mais
robôs cuidam da
nossa segurança.
É preciso ser gentil
com as máquinas”
2|3
INÊS 249

um dia for para o Deserto do Saara e, no reconhecimento de


face ID, for bloqueado. Um lifting nas orelhas e terei de fazer
tudo de novo! Mas tudo isso funciona? Tenho dúvidas. Hoje
em dia até criminosos clonam “pessoas” via IA. Soube de
uma história pela internet. Uma aposentada recebeu uma
chamada de vídeo em seu celular. Do outro lado era sua fi-
lha, que saíra algumas horas antes. Pedia com urgência uma
transferência via Pix de 600 reais. A aposentada farejou a
vigarice. A filha estava com um blusa diferente daquela com
que havia saído, e o depósito era na conta de uma amiga,
não dela. Mais: a filha não havia chamado a mãe pelo apeli-
do carinhoso que havia entre elas. A aposentada resolveu
perguntar qual era o nome do cachorro. A ligação caiu.
Ou seja, não se pode acreditar totalmente na inteligência
artificial, nem na segurança digital. Mas também fico com
medo da IA estar me observando. Na verdade, tenho certe-
za disso. E se ela resolver se vingar? Negar todos os reco-
nhecimentos faciais que eu possa precisar, desaparecer com
todas as minhas senhas? Como eu viveria? Há cada vez me-
nos humanos e mais robôs cuidando de nossa segurança.
O trato social contemporâneo exige que a gente saiba ser
gentil com as máquinas. Ai-ai de quem não for! ƒ

3|3
INÊS 249

CULTURA VEJA RECOMENDA

PIONEIRA
Regina King
como Shirley:
mudança
física para
interpretar
deputada
americana que

GLEN WILSON/NETFLIX
fez história

FILME
SHIRLEY PARA PRESIDENTE
(Shirley, Estados Unidos, 2024. Disponível na Netflix)
Filha de imigrantes caribenhos, Shirley Chisholm (1924-2005)
carregou em seu currículo uma série de pioneirismos. A ativista
foi a primeira mulher negra a ser eleita deputada nos Estados
Unidos, em 1968. Ousada e desafiando o conselho de todos ao
redor, ela se tornou ainda, em 1972, a primeira mulher a dispu-
tar as primárias democratas para a presidência do país. No fil-
me, a atriz Regina King assume a oratória envolvente e as fei-
ções (com muita maquiagem) de Shirley, enquanto se move nos
bastidores agitados de uma campanha presidencial. Os percal-
ços do trajeto foram muitos, de crise pessoal no casamento até
atentados e ameaças de morte — um caminho que expõe o pre-
conceito que ainda persistia entre muitos americanos, em con-
traste com a sabedoria e firmeza da graciosa deputada.

1|8
INÊS 249

TELEVISÃO
O AGENTE DE FUTEBOL (disponível no Star+)
No fim dos anos 80, Diego Maradona estava no auge após fatu-
rar a Copa de 1986 para a Argentina e virar estrela do futebol
italiano. Mas tinha um desejo difícil até para um deus da bola:
queria uma Ferrari que já tinha saído de linha — e preta, contra-
riando o vermelho da marca. Coube a seu agente, Guillermo
Coppola, realizar o sonho maluco, usando artimanhas surreais
para dobrar a montadora. Com humor escrachado e a sacada
de mostrar um Maradona onipresente, mas sem rosto, a série
argentina reconta a vida do folclórico Coppola (Juan Minujín)
— mais que empresário, amigão de balada e babá com o qual o
astro rompeu em 2003, mas reatou no fim da vida.
STAR +

FOLCLÓRICO Coppola (no centro) na série:


vida do agente e amigo de Maradona

2|8
INÊS 249

DISCO
BLEACHERS,
de Bleachers (disponível nas plataformas de streaming)
Um dos produtores mais requisitados da atualidade,
autor de sucessos de Taylor Swift e Lana Del Rey,
Jack Antonoff arrumou um tempinho para voltar a
se dedicar à própria banda, os Bleachers. Seu quin-
to álbum chama atenção, sobretudo, pelas melodias
marcantes e irresistíveis de ouvir. Em Modern Girl,
cruza o rock de Bruce Springsteen (seu conterrâneo
de Nova Jersey) com o pop dançante da neozelan-
desa Lorde (e dá certo). Na acústica Woke Up To-
day, há em sua voz uma alegria agridoce que reme-
te a Joni Mitchell. ƒ

3|8
INÊS 249

CULTURA OS MAIS VENDIDOS

OS MAIS VENDIDOS
FICÇÃO
1 o avesso Da Pele
Jeferson Tenório [0 | 1] COMPANHIA DAS LETRAS

2 a BiBlioTeCa Da meia-NoiTe
Matt Haig [1 | 78#] BERTRAND BRASIL

3 os seTe maRiDos De evelYN Hugo


Taylor Jenkins Reid [4 | 113#] PARALELA

4 em agosTo Nos vemos


Gabriel García Márquez [0 | 1] RECORD

5 veRiTY
Colleen Hoover [6 | 92#] GALERA RECORD

6 é assim Que aCaBa


Colleen Hoover [3 | 130#] GALERA RECORD

7 TuDo é Rio
Carla Madeira [2 | 76#] RECORD

8 é assim Que Começa


Colleen Hoover [8 | 68] GALERA RECORD

9 a emPRegaDa
Freida McFadden [5 | 12#] ARQUEIRO

10 um DefeiTo De CoR
Ana Maria Gonçalves [7 | 4] RECORD

4|8
INÊS 249

NÃO FICÇÃO
1 mulHeRes Que CoRRem Com os
loBos Clarissa Pinkola Estés [1 | 180#] ROCCO

2 a CaDa Passo
Anderson Birman [0 | 2#] CITADEL

3 Nação DoPamiNa
Dra. Anna Lembke [2 | 34#] VESTÍGIO

4 QuaRTo De DesPeJo — DiáRio De uma


favelaDa Carolina Maria de Jesus [3 | 67#] ÁTICA

5 o PRíNCiPe
Nicolau Maquiavel [4 | 36#] VÁRIAS EDITORAS

6 meDiTações
Marco Aurélio [6 | 42#] VÁRIAS EDITORAS

7 se Não eu, Quem vai faZeR voCê feliZ?


Graziela Gonçalves [0 | 9#] PARALELA

8 o PaCTo Da BRaNQuiTuDe
Cida Bento [0 | 12#] COMPANHIA DAS LETRAS

9 BoX BiBlioTeCa esToiCa: gRaNDes


mesTRes Vários autores [10 | 31#] CAMELOT EDITORA

10 em BusCa De mim
Viola Davis [5 | 70#] BEST SELLER

5|8
INÊS 249

AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 Café Com Deus Pai 2024
Junior Rostirola [1 | 12#] VÉLOS
o
2 NegóCio 360
Vários autores [0 | 1] GENTE

3 o Homem mais RiCo Da BaBilôNia


George S. Clason [5 | 159#] HARPERCOLLINS BRASIL

4 iNove PaRa seR úNiCo


Johnathan Alves [3 | 6#] GENTE

5 a PsiCologia fiNaNCeiRa
Morgan Housel [9 | 26#] HARPERCOLLINS BRASIL

6 HáBiTos aTômiCos
James Clear [4 | 39#] ALTA BOOKS

7 esseNCialismo
Greg McKeown [10 | 34#] SEXTANTE/GMT

8 mais esPeRTo Que o DiaBo


Napoleon Hill [0 | 240#] CITADEL

9 os segReDos Da meNTe milioNáRia


T. Harv Eker [0 | 450#] SEXTANTE

10 Como faZeR amigos & iNflueNCiaR


Pessoas Dale Carnegie [0 | 117#] SEXTANTE

6|8
INÊS 249

INFANTOJUVENIL
1 o PeQueNo PRíNCiPe
Antoine de Saint-Exupéry [1 | 409#] VÁRIAS EDITORAS

2 melHoR Do Que Nos filmes


Lynn Painter [3 | 11#] INTRÍNSECA

3 HaRRY PoTTeR e a PeDRa filosofal


J.K. Rowling [4 | 418#] ROCCO

4 malala — a meNiNa Que QueRia iR PaRa a esCola


Adriana Carranca [5 | 37#] COMPANHIA DAS LETRINHAS

5 DiáRio De um BaNaNa
Jeff Kinney [0 | 23#] VR

6 as aveNTuRas De miKe
Gabriel Dearo e Manu Digilio [0 | 23#] OUTRO PLANETA

7 o meu Pé De laRaNJa lima


José Mauro de Vasconcelos [0 | 8#] MELHORAMENTOS

8 as aveNTuRas De miKe 4 — a oRigem De RoBsoN


Gabriel Dearo e Manu Digilio [0 | 9#] OUTRO PLANETA

9 o laDRão De Raios
Rick Riordan [0 | 46#] INTRÍNSECA

10 as CRôNiCas De NáRNia: o leão, a feiTiCeiRa e o


guaRDa-RouPa C. S. Lewis [0 | 7#] HARPERCOLLINS BRASIL

7|8
INÊS 249

[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas


o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas
Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita: Real
Peruíbe, Barueri: Travessa, Belém: Leitura, SBS, Travessia, Belo Horizonte: Disal, Jenipapo,
Leitura, Livraria da Rua, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos, Betim: Leitura, Blumenau:
Curitiba, Brasília: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Cabedelo: Leitura,
Cachoeirinha: Santos, Campina Grande: Leitura, Campinas: Disal, Leitura, Livraria da Vila,
Loyola, Senhor Livreiro, Vozes, Campo Grande: Leitura, Campos do Jordão: História sem Fim,
Campos dos Goytacazes: Leitura, Canoas: Mania de Ler, Santos, Capão da Canoa: Santos,
Caruaru: Leitura, Cascavel: A Página, Colombo: A Página, Confins: Leitura, Contagem: Leitura,
Cotia: Prime, Um Livro, Criciúma: Curitiba, Cuiabá: Vozes, Curitiba: A Página, Curitiba, Disal,
Evangelizar, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Florianópolis: Curitiba, Catarinense, Fortaleza:
Evangelizar, Leitura, Vozes, Foz do Iguaçu: A Página, Frederico Westphalen: Vitrola, Garopaba:
Livraria Navegar, Goiânia: Leitura, Palavrear, SBS, Governador Valadares: Leitura, Gramado:
Mania de Ler, Guaíba: Santos, Guarapuava: A Página, Guarulhos: Disal, Leitura, Livraria da
Vila, SBS, Ipatinga: Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa Vamos Ler, João Pessoa: Leitura,
Joinville: A Página, Curitiba, Juiz de Fora: Leitura, Vozes, Jundiaí: Leitura, Limeira: Livruz, Lins:
Koinonia, Londrina: A Página, Curitiba, Livraria da Vila, Macapá: Leitura, Maceió: Leitura,
Livro Presente, Maringá: Curitiba, Mogi das Cruzes: A Eólica Book Bar, Leitura, Natal:
Leitura, Niterói: Blooks, Palmas: Leitura, Paranaguá: A Página, Pelotas: Vanguarda, Petrópolis:
Vozes, Poços de Caldas: Livruz, Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre: A Página, Cameron,
Disal, Leitura, Macun Livraria e Café, Mania de Ler, Santos, SBS, Taverna, Porto Velho:
Leitura, Recife: Disal, Leitura, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal, Livraria da Vila, Rio Claro:
Livruz, Rio de Janeiro: Blooks, Disal, Janela, Leitura, Leonardo da Vinci, Odontomedi,
SBS, Rio Grande: Vanguarda, Salvador: Disal, Escariz, LDM, Leitura, SBS, Santa Maria:
Santos, Santana de Parnaíba: Leitura, Santo André: Disal, Leitura, Santos: Loyola, São Bernardo
do Campo: Leitura, São Caetano do Sul: Disal, Livraria da Vila, São João de Meriti: Leitura, São
José: A Página, Curitiba, São José do Rio Preto: Leitura, São José dos Campos: Amo Ler, Curitiba,
Leitura, São José dos Pinhais: Curitiba, São Luís: Hélio Books, Leitura, São Paulo: A Página,
B307, Círculo, Cult Café Livro Música, Curitiba, Disal, Dois Pontos, Drummond,
HiperLivros, Leitura, Livraria da Tarde, Livraria da Vila, Loyola, Megafauna, Nobel
Brooklin, Santuário, SBS, Simples, Vozes, Vida, WMF Martins Fontes, Serra: Leitura,
Sete Lagoas: Leitura, Taboão da Serra: Curitiba, Taguatinga: Leitura, Taubaté: Leitura, Teresina:
Leitura, Uberlândia: Leitura, SBS, Umuarama: A Página, Vila Velha: Leitura, Vitória: Leitura,
SBS, Vitória da Conquista: LDM, internet: Amazon, A Página, Authentic E-commerce, Boa
Viagem E-commerce, Canal dos Livros, Curitiba, Leitura, LT2 Shop, Magazine Luiza,
Sinopsys, Submarino, Travessa, Um Livro, Vanguarda, WMF Martins Fontes

8|8
INÊS 249

JOSÉ CASADO

A MÃO PESADA
LULA inaugurou a Lulabrás. No imaginário dos áulicos do
Palácio do Planalto é uma espécie de coordenadoria para ali-
nhamento de empresas públicas, privatizadas ou apoiadas
por fundos de pensão estatais, com aquilo que a Presidência
diz ser o “pensamento de desenvolvimento do governo”.
Cultivada nos jardins do lulismo palaciano, Lulabrás é
uma ideia vaga com a pretensão de renovação política do
nacional-desenvolvimentismo. Acumulam-se as demonstra-
ções da sua capacidade de produzir confusão entre o públi-
co e o privado. Semana passada, provocou crises simultâ-
neas na Petrobras e na Vale e ampliou o conflito do governo
com a Eletrobras.
O Estado tem participação diluída no capital dessas em-
presas. Nos três casos, a razão do tumulto nas relações com
sócios privados e administradores está no fato de que, além
de Lula, ninguém na Esplanada dos Ministérios sabe expli-
car, descrever ou definir qual é o “pensamento de desenvol-
vimento do governo”.
Como não foi apresentado na campanha eleitoral de
2022 e permanece oculto no gabinete presidencial há mais
de um ano, há otimistas supondo que, talvez, venha à luz an-

1|4
INÊS 249

tes da quinta-feira 31 de dezembro de 2026, último dia do


mandato. Por enquanto, da Lulabrás só se conhece a diretriz
desbotada: se não é estatal, não presta.
A ideia de capitalismo politicamente orientado ecoa a
modernização no Estado Novo (1937-1945). Getúlio Vargas
assentou-a numa estrutura de relações do trabalho contra a
qual Lula comandou uma insurgência no ABC paulista no
século passado e, no governo, escolheu preservá-la até no
simbólico imposto sindical. Na versão lulista de modernida-
de no século XXI, traduz-se em intervencionismo estatal
com o objetivo de harmonizar administração, negócios e
projetos de empresas públicas, como a Petrobras, ou privati-
zadas, como Vale e Eletrobras, com o cardápio de priorida-
des governamentais.
Caso exemplar é o da criação de um orçamento para-
lelo em Itaipu, responsável pelo abastecimento energéti-
co do Sul e do Sudeste. Meio século depois de construída,
a usina liquidou suas dívidas e, agora, opera com uma so-
bra de caixa estimada em 2,5 bilhões de reais por ano.
Por decisão do governo, passou a usar o dinheiro na
construção de pontes, rodovias, aeroportos e projetos so-
ciais em 430 municípios do Paraná e do Mato Grosso.
Nessas cidades vivem 11 milhões de eleitores e, por coin-
cidência, o calendário da iniciativa coincide com as tem-
poradas de eleições de prefeitos neste ano e em 2026,
quando serão eleitos deputados, senadores, governadores
e presidente da República.

2|4
INÊS 249

“Lulabrás pretende
a renovação política
do velho nacional-
desenvolvimentismo”
As doações de Itaipu são tipificadas como despesa nova na
“geração de energia”. Ficam escondidas na conta de luz paga
pelos brasileiros, que já é uma das mais caras do planeta: 4 em
cada 10 reais na fatura de energia não têm ligação direta com
geração, transmissão e distribuição de eletricidade, estimam
entidades dos consumidores. Acender uma lâmpada no Brasil
ficou caríssimo. Em dólares, sai por quase o dobro do preço
cobrado nos Estados Unidos, Reino Unido e Japão, embora a
renda dos brasileiros seja até dez vezes mais baixa.
Na Petrobras, o governo cobiça o caixa de 20 bilhões de
dólares, equivalentes a 100 bilhões de reais, restaurado de-
pois do ciclo de perdas com má gerência e corrupção desve-
ladas na Lava-Jato. A intervenção já deixou sequelas. Divi-
diu o governo, abriu espaço para eventuais pedidos de inde-
nização no exterior e levantou suspeitas de fraude no merca-
do acionário nacional por supostos lucros com informações
privilegiadas: a Comissão de Valores Mobiliários foi notifi-
cada dias atrás sobre operações “atípicas” com 12 milhões

3|4
INÊS 249

de contratos de derivativos da Petrobras realizados em ape-


nas um segundo, às 10h41 da terça-feira 27 de fevereiro.
Na Vale, Lula foi além. Atuou para derrubar administra-
dores e lançou acusações genéricas, sem provas, sobre “di-
retor da Vale envolvido na corrupção”. O governo passou a
pressionar pela cobrança extra de 20 bilhões de reais sobre
o acordo de concessão da linha de trem de exportação de
minério de Carajás. No tumulto, um representante de inves-
tidores privados escolheu sair, deixando carta pública com
denúncia sobre interferência política indevida e a conivência
de responsáveis pela governança da empresa.
Forçar a mão pesada e invisível do Estado na economia é
objetivo político legítimo. No caso brasileiro, os resultados
são questionáveis, como mostra o histórico dos governos de
Lula e Dilma Rousseff. Como o Planalto não consegue ex-
plicar o que quer e onde pretende chegar, prevalece o risco
conhecido da estridência de escândalos. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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