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U N I V E R S I D A D E | Página 3 C U L T U R A | Página 4 M E I O A M B I E N T E | Página 11

Faltam vagas na moradia Crise do setor leva Retirada de pinus das


estudantil e parte dos editoras a inovar para dunas depende de ação
alunos segue desassistida atrair novos leitores de voluntários

Curso de Jornalismo | UFSC | Florianópolis | Maio de 2019 | Ano 38 | Número 1

Quilombo
C I D A D A N I A | Página 8

resiste na
capital
Em condições precárias de moradia, remanescentes quilombolas
esperam há mais de 40 anos por reconquista de território original
e reconhecimento da presença negra na história da Ilha

Centenas protestam
S O C I E D A D E | Página 15

contra violência policial


A morte de Vitor Santos, jovem negro baleado por policiais militares dentro de casa, inflamou a discussão sobre abuso de autoridade,
motivando a mobilização que lotou o Largo da Catedral Metropolitana de Florianópolis. Manifestantes pediam fim do racismo institucional
O MBUDSMINA E XPEDIENTE

Néri Pedroso é formada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Santa JORNAL-LABORATÓRIO ZERO
Maria (RS), vive e atua em Florianópolis (SC). Jornalista, é diretora da NProduções, microempresa Ano 38 | Nº 1
voltada para projetos no campo da cultura. Tem experiência em jornalismo cultural e na implantação Maio de 2019
de projetos jornalísticos, como cadernos e suplementos especiais, nos jornais A Notícia e Notícias
do Dia. Integra a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), a Academia Catarinense de Envie críticas, sugestões e comentários. Participe!
Artes e Letras (Acla) e, como sócia-fundadora, faz parte da diretoria do Instituto Schwanke, em zeroufsc@gmail.com
Joinville, onde atua como vice-presidente. (48) 3721-4833
/jornalzero
Que avanço! O sequencial das 16 páginas leva a pensar no @zeroufsc
Um privilégio poder fazer uma avaliação com- modo como se dá o planejamento que deve pri- Departamento de Jornalismo
Centro de Comunicação e Expressão
parativa entre a edição do Zero, de setembro e no- mar pela valorização temática. Páginas ímpares
Universidade Federal de Santa Catarina
vembro, as de número 3 e 4. A mudança na escolha são mais importantes, podem acolher assuntos de
Trindade | Florianópolis | SC | CEP 88040-900
do papel é significativa, ajuda a qualificar e real- uma página só, as espelhadas pedem as grandes
çar o produto. A capa está impecável nos títulos, na apostas. Nesse sentido, lamento a ausência de uma
ilustração, na cor. Na avaliação crítica, agora num imagem nas páginas centrais, justo as mais valio- 3º melhor Jornal-Laboratório do Brasil
enfoque mais textual, percebo uma repetição de sas. Não caberia ao menos um pequeno boneco da EXPOCOM 1994
palavra no próprio texto – descaso, e um equívo- entrevistada? Tijolões são inconcebíveis. Chama a
co ao comentar um lead, no qual troco o nome do atenção também que dois temas do universo da
narrador Cacau por seu Andrino. Como se vê, o jor- cultura estejam distanciados, com selos diferen- Melhor Jornal-Laboratório – I Prêmio Foca
nalismo exige reconhecer erros e fazer correções. ciados: um de cultura e outro de tradição. A aproxi- Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina 2000
Ao contrário da edição anterior, o ordenamen- mação poderia dar mais densidade ao jornal.
to dos assuntos chama a atenção no jornal nú- Sobre a pauta, os assuntos dessa edição em
mero 4 pela inexistência da vinheta Leia Mais, relação à anterior se contêm em sua potência Melhor Jornal-Laboratório
que leva a uma análise inicial que se desconstrói política, são mais leves, demonstram menos in- EXPOCOM SUL 2015 & 2017
no folhear. Surpreende o fato da página 4 se abrir quietude sobre o atual momento político brasilei-
com uma arte fundamental para a estruturação ro. Uma boa pauta deve estimular uma discussão
sobre os fatos e sua repercussão na realidade. As- Melhor Jornal-Laboratório do Brasil
da matéria, uma vez que o parágrafo dedicado ao
EXPOCOM 2015
acervo, na página 3, é pouco consistente. Ossada sim, diante de índices deprimentes sobre a edu-
do homem do sambaqui, objetos indígenas, ren- cação no País, questiono o tema coaching.
da de bilro, 45 mil peças, embora informações Regra geral, os textos merecem mais revisão Reportagem em Jornalismo Impresso
importantes, não dão a real dimensão do patri- dos próprios autores. O criador precisa suspeitar EXPOCOM NACIONAL 2017 & 2018
mônio. O leitor lê a página 3 na suposição de que e ter a coragem de destruir a própria produção,
ela se fecha ali, sem perceber que a regra do ve- crendo que sempre é possível melhorar. É preci-
ículo é fechar os textos com a letra Z em verme- so reescrever até enlouquecer. Palavras repetidas Reportagem em Jornalismo Impresso
lho, algo que não se concretiza, por exemplo, na empobrecem o conteúdo. Por sua imprecisão, EXPOCOM SUL 2017 & 2018
matéria sobre coaching. vários e diversos devem ser descartados da lida
Na mesma perspectiva percebe-se a adoção jornalística. Uso de palavras com hífen aparecem
de intertítulos e não de retrancas o que acaba erradas. Houaiss sugere on-line (erro na pág. 8) e Melhor Peça Gráfica
por provocar outro estranhamento, em Arqui- sociocultural (pág. 9). Falta de padronização ao Set Universitário | PUC-RS
vos do silêncio. Com três páginas, a personagem longo das páginas ou até mesmo numa mesma 1988, 1989, 1990, 1991, 1992 & 1998
Juliana que está no lead só volta a aparecer no página: no uso de numerais; de maiúsculas, Es-
fim, feito um fantasminha. Depois de ler tudo, tado, como sinônimo de unidade administrativa; REPORTAGEM
pergunta-se: mas quem é mesmo Juliana? A ví- de pontos cardeais; na pontuação, sobretudo no Ana Ritti, Eduardo Iarek, Eliza Della Barba, Emily
ponto final em citações com aspas. Leão, Fernando Perosa, Isabela Petrini Moya, Jéssica
tima de abuso na infância meio que desaparece,
Antunes, João Balestrin, Lavínia Kaucz, Madu Silva,
ganha poucas linhas quando há hoje mulheres Um jornal é sempre o que foi possível fazer como
Maria Gabriella Schwaemmle, Pâmela Schreiner, Rafael
dispostas a falar abertamente sobre o drama equipe. Embora as imperfeições, deve ser celebrado Prudencio Moreira, Sofia Mayer e Tatiane Borges
pessoal. O pertinente tema começa por um caso porque envolve riqueza humana - discussões, crí-
de abuso e logo segue para os dados do Disque tica, seletividade, contextualização, cruzamento REDES SOCIAIS
100. Embora correlatas - violência e exploração de dados, síntese, clareza, originalidade, renúncia, Bruna Ferreira, Letícia Silva, Maria Heloísa Vieira
sexual, seria oportuno clarear, antes de tudo, o astúcia, inquietação, desejo de mudança na esfera e Yeda Teixeira
que está posto no intertítulo O papel da pobre- pública e privada, humildade e persistência. Avan-
za, que aborda as ambiguidades na classificação ços ou erros logo ficam para trás, porque já está na FOTOGRAFIA
dos casos. hora de começar tudo de novo, uma nova edição! Jéssica Antunes, Lívia Tokasiki, Luiza Monteiro
e Luna Mariah Zunino

INFOGRAFIA

E DI TORI AL Daniela Müller e Ildo Francisco Golfetto

DIAGRAMAÇÃO

A
Clarissa Levy, Eduardo Melo, Lucas de Amorim
primeira edição do Zero em 2019 traz como matéria de capa um caso que evidencia a desigualdade e Luísa Michels
de direitos enfrentada em Florianópolis. O único quilombo da capital catarinense, Vidal Martins,
espera há cinco anos por regulamentação fundiária e a comunidade ainda luta para recuperar o PROJETO GRÁFICO
seu território. Os quilombolas moram em um ambiente improvisado desde que foram expulsos de suas Bruna Elisa Mayer, Caroline Copatti Selbach,
terras. A reportagem destaca o andamento do processo e revela a dura realidade da comunidade. Ildo Francisco Golfetto, João Vitor Nunes,
O Zero também aborda a implantação de políticas de inclusão nas universidades públicas brasileiras. Larissa Karla Martinelli e Mariela Cancelier
Nas duas últimas décadas, essas políticas trouxeram para dentro das salas de aula estudantes das mais
REVISÃO FINAL
diversas culturas e realidades, inclusive de famílias de baixa renda. A UFSC está localizada na capital com
Valentina da Silva Nunes e Alggeri Hendrick
um dos custos de vida mais caros do Brasil, porém a quantidade de vagas ofertadas na moradia estudantil
da universidade ainda é insuficiente para atender quem não tem condições de pagar aluguel, dificultando CHEFIA DA EDIÇÃO
a continuidade dos estudos longe de casa. Para piorar, os recursos destinados às universidades públicas Daniel Sborz e Suelen Rocha
vêm reduzindo a cada ano e a cobrança de mensalidades passou a ser cogitada pelo governo atual.
Além disso, os casos de violência policial militar contra a população vêm crescendo na capital, e a CAPA
população pobre e negra é a que mais sofre. Em menos de um mês, uma morte e dois atos de violência Clarissa Levy, Ildo Francisco Golfetto e
foram cometidos em abordagens policiais. Das três vítimas, duas eram negras e uma era mulher. Para Valentina da Silva Nunes
lutar contra esses abusos, foi realizada, no dia 25 de abril, uma marcha no centro de Florianópolis, que Foto: Jéssica Antunes
poderá ser conferida em nossa fotorreportagem.
PROFESSORES RESPONSÁVEIS
Problemas ambientais também fazem parte dessa edição. Os pinus são a segunda maior causa de Ildo Francisco Golfetto (SC 02372-JP)
perda de biodiversidade e extinção de espécies no mundo por encobrir áreas de vegetação nativa. Em Flo- Valentina da Silva Nunes (MTB MS 14224)
rianópolis, mais de 28 mil árvores da espécie foram retiradas somente na região da Lagoa da Conceição
em 2018. O Zero traz uma reportagem sobre os problemas da efetivação de uma Lei Municipal que ordena MONITORIA
a remoção completa e substituição dessa espécie invasora, cujo trabalho vem sendo feito por voluntários. Evangelina Oggero Viviani, Lívia Schumacher e
A evolução tecnológica mudou a forma como nos relacionamos uns com os outros. É quase impossível Rafaela Coelho
imaginar nossas vidas hoje sem o uso de aparelhos eletrônicos ou sem internet. Entretanto, nem todas
as pessoas estão inseridas nesse cenário e podem se sentir excluídas. Os idosos assistiram as novas ge- IMPRESSÃO
rações adentrando no mundo da tecnologia e muitas vezes acabam ficando para trás. Por isso apresen- Imprensa UFSC
tamos nesta edição projetos que oferecem cursos voltados à inclusão digital dos idosos. TIRAGEM E DISTRIBUIÇÃO
Falamos também do acolhimento de mulheres e crianças imigrantes em Florianópolis e mostramos 1.000 exemplares - Nacional
como a corrida de rua é uma boa forma de exercitar o corpo. Em cultura, vamos contar a história do
artista chileno Polo Cabrera e refletir sobre o mercado literário no Brasil - a crise das editoras e os novos FECHAMENTO
meios de atrair os leitores. Desejamos uma ótima e produtiva leitura! 12 de maio 2019

2| | ANO 38 | N. 1 | MAIO 2019


U NIVERSIDADE TEXTO POR MADU SILVA
madusilva.jor@gmail.com
FOTO POR LUNA MARIAH ZUNINO
luna.mariah@hotmail.com

Estudantes dependem de Apesar de ser um


direito, não há vagas

auxílio para ficar na UFSC


suficientes para todos

O
que precisam
condomínio de núme-
ro 700 da rua Desem-
bargador Vitor Lima,
no bairro Trindade em
Florianópolis, aparen-
ta ser como qualquer outro. Mas na
verdade abriga a Moradia Estudantil
da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Entre os estudan-
tes que residem ali, está Hemilly
Monteiro Gaudencio do Nascimen-
to, que divide seu quarto com outra
menina, além de compartilhar a co-
zinha e o banheiro com mais duas
pessoas. “O espaço é bem limitado.
Se os quatro decidirem fazer co-
mida ao mesmo tempo, fica muito
apertado”, comenta Hemilly sobre a
estrutura do edifício.
Atualmente, 167 estudantes de diversos dar dinheiro, que foi suficiente para passa- uma das políticas de permanência, não pode Adaptação: mesmo com
cursos da UFSC vivem no condomínio, que gem e para passar o primeiro mês, enquanto ser cobrada em horas”, explicou Vanessa, que a limitação do espaço,
fica ao lado da universidade - são 76 vagas aguardava sair o resultado da PRAE.” Quan- na época participava do movimento. Hemilly, estudante de
femininas e 90 vagas masculinas. Mas a do chegou, não tinha onde ficar, entrou em Mas nem todos têm a mesma sorte que Animação, conseguiu
disputa para conseguir morar ali é muito contato com a prima que estava morando Hemilly e Vanessa tiveram. A estudante de fazer de seu quarto
acirrada: só no primeiro semestre de 2019, aqui e ela pediu a uma amiga para hospedar Jornalismo Inara Santos Chagas, de 20 anos, compartilhado um ateliê
mais de 500 alunos entraram em contato Giovani até que o edital saísse com o resul- é natural de Cianorte, no Paraná. Desde o para suas criações.
com a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis tado. Após quase dois meses de espera, foi início da sua graduação em 2017 tenta parti- O abajur rosa é uma
(PRAE) para conseguir uma vaga na mo- aprovado para receber os auxílios. “Eu sa- cipar de alguns programas da PRAE, mas o nova aquisição para
radia estudantil. A coordenadora de assis- bia que conseguiria o cadastro por conta da único que conseguiu foi a isenção no restau- trabalhar durante a
tência estudantil da PRAE, Cláudia Priscila renda da minha família. Eu sou o primeiro rante universitário. “Desde que entrei, todo noite sem atrapalhar
C. dos Santos, revela que a UFSC é uma das de oito filhos, além do meu pai que trabalha semestre tento benefício da PRAE. Moradia sua colega de quarto.
universidades com o menor número de va- com calçados e minha mãe é do lar”. eu já desisti, existem pessoas que precisam
gas na moradia estudantil. “Mesmo com mais do que eu, que têm renda baixíssima”.

“Difícil
outros programas da pró-reitoria, a necessi- Inara saiu de Cianorte sem saber como ia se
dade do aluno residir na universidade sem virar em Florianópolis. “Quando contei para
a especulação do mercado imobiliário não é meus pais foi uma felicidade, mas nós não
suprida”, sinaliza a coordenadora. sabíamos como seria dali pra frente”, lem-

pensar em cálculos
Hemilly tem 24 anos, é natural de Abreu bra a estudante. A viagem longa para visitar
Lima, Pernambuco, estuda no curso de Ani- os pais é feita apenas duas vezes ao ano, já

quando você tem


mação da UFSC e faz parte do grupo de es- que ela utiliza toda a renda que tem para se
tudantes da universidade que possui renda manter na cidade. “Eu não penso em atra-
familiar menor ou igual a um salário míni- sar o curso, porque se eu atrasar vão ser
mo e meio per capta, cálculo feito através da
soma da renda bruta mensal da família di- que procurar mais seis meses que meus pais vão pagar o
aluguel”, finaliza a paranaense.

emprego para
vidida pelo número de pessoas que residem Ao contrário de Inara, Thiago José da
na casa. Por conta disso, ela conseguiu fa- Costa, 24, prestou vestibular para Ciência da

se sustentar”
zer parte de dois programas oferecidos pela Computação. Foi aprovado, mas conseguiu
universidade: a moradia estudantil e a bol- permanecer apenas dois semestres na uni-
sa permanência no valor de R$ 698,11 (valor versidade. Morador do bairro Rio Vermelho,
referente ao último edital da PRAE). A egressa do curso de Relações Internacio- em Florianópolis, a cerca de 33 quilômetros
Hemilly vem de uma família com poucos nais, Vanessa Canei, também residiu na Mo- de distância da UFSC, Thiago fez o cadastro
recursos e sem condições de mantê-la lon- radia Estudantil da UFSC durante a gradua- na PRAE, mas não conseguiu receber ne-
ge de casa. “A minha família é apenas eu, ção. Ela iniciou os estudos na universidade nhum auxílio. “É muito difícil pensar em
minha irmã e meu pai. Morávamos num em 2012 e, como tantos outros estudantes de cálculos quando você tem que procurar um
sobradinho no terreno da minha avó”, conta famílias de renda baixa, precisava de auxílio emprego para se sustentar”, relata. Tendo
a estudante. Aprovada no vestibular de 2016, para ter onde morar longe de casa. “Quando consciência da importância dos estudos, ele
Hemilly finalmente viu a oportunidade de vim estudar na UFSC, eu estava trabalhan- pensa em retornar em breve para a univer-
cursar o que mais gostava. Sem condições de do em uma empresa de telemarketing para sidade. “Esse ano vou fazer o vestibular de
pagar aluguel, foi em busca dos programas conseguir me manter, mas a rotina era mui- inverno, durante o dia vou trabalhar e à noi-
ofertados pela universidade, que surgiram to pesada, não estava dando conta. Então saí te vou focar nos estudos”, finaliza Thiago.
como alternativa para conseguir realizar seu da empresa e procurei informações sobre os Além da moradia estudantil, a UFSC ofe-
sonho de entrar no ensino superior. “Fiquei programas de permanência estudantil da rece o Programa de Apoio Emergencial de
com medo de não ser aprovada no cadastro, universidade”, relata Vanessa, que não co- Permanência (Paep), um espaço físico onde
porque na UFSC é tudo bem concorrido, são nhecia a PRAE até aquele momento. estudantes ficam alojados até a saída dos
poucas vagas para muitas pessoas”, lembra. Na época em que entrou no curso, para re- editais da moradia ou até conseguirem um
Assim como Hemilly, o estudante de En- ceber a bolsa de apoio financeiro da universi- lugar para morar. Mas ainda assim muitos
genharia Civil, Giovani Araújo, 19, também dade era necessário fazer parte de um projeto alunos ficam sem ter onde morar e muitas
é residente da moradia estudantil da UFSC. com uma carga horária mínima de 20 horas vezes acabam largando os estudos. “Temos
Ele veio de São Paulo com uma “vaquinha” semanais. O movimento estudantil contes- só 167 vagas na moradia, esse semestre fo-
feita pelas tias: “de algum jeito, eu teria que tava essa exigência e o Diretório Central dos ram abertas 4 vagas no Paep para um uni-
vir, mas meus pais não tinham como pagar. Estudantes (DCE) interviu para que a bolsa verso de 26 mil estudantes”, lamenta a coor-
Então minhas tias se juntaram para arreca- fosse apenas de apoio aos estudantes. “Essa é denadora da PRAE.

MAIO 2019 | N. 1 | ANO 38 | |3


C U LT U R A TEXTO POR FERNANDO PEROSA & PÂMELA SCHREINER
fernando.perosa1@gmail.com & pamela_schreiner@hotmail.com
FOTO POR LUIZA MONTEIRO
monteiroaluiza98@gmail.com

Editoras repensam
estratégias em meio à crise

T
Clubes do livro, booktubers e audiolivros são novidades para atrair leitores
odo romance tem um
clímax, uma reviravolta
que deixa o protagonis-
ta em um beco sem saí-
da. Neste momento, ele
precisa encontrar uma solução. Tra-
çando um paralelo com a realidade,
é assim que se encontra o mercado
editorial brasileiro. No último tri-
mestre de 2018, as duas maiores
redes de livrarias do país anuncia-
ram medidas que abalaram a indús-
tria de livros: a Cultura pediu recu-
peração judicial e a Saraiva, após
fechar 20 lojas (inclusive uma de
suas unidades em Florianópolis, no
Beiramar Shopping), fez o mesmo.
Para contornar essa situação de cri-
se, as editoras precisam se adaptar
às mudanças do mercado e buscar
novos meios para atrair leitores.

“Foi um
O fechamento das lojas e as dívidas, tiva para essa questão. E-books são livros Alternativa: para as
principalmente as da Saraiva, que che- digitais que podem ser lidos em disposi- discussões do clube do
gam a R$ 675 milhões, segundo dados do tivos eletrônicos, como computadores, livro, criado em conjunto
processo que corre na Justiça, afetaram celulares, tablets e e-readers (equipamen- com as amigas, a
diretamente as editoras, por conta do
modelo de negócio dessas empresas. No dos maiores baques tos eletrônicos exclusivos para leitura). A
última pesquisa sobre consumo de livros
preferência é por obras
mais baratas. “Cada

da indústria do livro
Brasil, as livrarias trabalham com o sis- digitais do Instituto Pró-Livro, divulgada vez mais, estamos
tema de consignação, em que não com- em 2016, mostrou que 26% dos leitores abrindo para outras
pram os livros das editoras, mas “pegam brasileiros já haviam lido um e-book. En- pessoas entrarem,
emprestado” e expõem em suas lojas.
Depois de um tempo, as livrarias pres-
no Brasil, talvez o tre seus atrativos estão a instantaneida-
de (quem compra o livro pode começar a
porque percebemos a
dificuldade que é ter um
tam contas para as editoras e devolvem
os exemplares que não foram vendidos. maior da sua história” lê-lo na hora), portabilidade (são vários
exemplares em um único dispositivo) e
espaço para falar sobre
livros”, conta Bianca.
Nesse modelo de negócio, quem mais preços mais baixos. Por exemplo, o pre-
se arrisca são as editoras, que inves- da indústria do livro, talvez o maior da ço de capa da obra mais vendida de 2018,
tem alto em uma publicação, sem saber sua história. Os editores sabiam que as A sutil arte de ligar o f*da-se, é R$ 34,90,
quando e quanto vão receber. É um jogo coisas iam mal, com pagamentos prote- enquanto o e-book pode ser comprado por
de equilíbrio complicado, pois as edito- lados, negociados, atrasados… mas a si- R$ 16,79 na Amazon.
ras poderiam vender seus produtos em tuação em outubro de 2018 ficou terrível”, Com a popularização dos e-books, edi-
um site próprio e com um preço mais ressalta Sandra. toras estão investindo em publicações
acessível ao leitor, mas precisam da ex- É um momento de mudanças e de re- digitais e já existem empresas especia-
posição de seus lançamentos proporcio- flexão para o mercado editorial. “Tudo lizadas apenas nisso. Sandra Espilotro
nada pelas grandes redes, que extrapola está mudando o tempo todo, inclusive a saiu do mercado editorial tradicional e
as barreiras virtuais e chega a todos os relação dos leitores com os livros, com fundou, junto com o filho Tiago Ferro, a e-
tipos de público. os autores, as livrarias, as editoras, o galáxia, uma editora que oferece serviços
O mercado editorial também sofreu cenário ainda não está muito definido”, de arte, texto, publicação e distribuição de
com queda na venda de livros nos últi- comenta Ana Lima, editora executiva da e-books. A e-galáxia já tem em seu catá-
mos anos. Analisando a lista dos dez Galera Record por quase 18 anos. A indús- logo 390 autores, no entanto, Sandra con-
livros mais vendidos de cada ano, no tria musical precisou pensar em novas sidera que ainda é essencial a construção
período de 2014 a 2018, percebe-se uma formas de consumir música no início de um hábito de leitura digital. “O livro fí-
redução de 36,8% no número de unidades dos anos 2000, quando os CDs perde- sico nunca vai sumir, mas dividirá espaço
comercializadas, de acordo com dados ram espaço para o meio digital. As gra- com o e-book, porém devagar – afinal são
do Publish News. Em 2014, o livro mais vadoras usaram a internet a seu favor, 400 anos lendo no papel, não se pode espe-
vendido foi Nada a perder 3, de Edir Ma- distribuindo músicas online e, mais re- rar uma migração grande. O leitor ainda
cedo, com 870.094 exemplares, enquanto centemente, nos serviços de streaming. precisa aprender que ler no e-reader é con-
em 2018 foi A sutil arte de ligar o f*da-se, As editoras se encontram nesse mesmo fortável, prático e mais barato”, esclarece.
de Mark Manson, com 439.251 unida- contexto, onde é necessário reinventar e Outro modo de consumir literatura que
des, ou seja, quase a metade. Essa queda procurar novas formas e formatos para vem crescendo no Brasil é o audiolivro.
nas vendas, aliada à crise da Saraiva e atrair leitores. Nos Estados Unidos, esse mercado movi-
da Cultura, desencadeou uma revisão, e mentou US$ 2 bilhões em 2016 e, no ano
consequente diminuição, dos lançamen- “Criando” novos leitores seguinte, vendeu mais de 10 milhões de
tos anuais, além de uma série de cortes unidades. O audiolivro dá ao leitor a pos-
de profissionais do editorial e do comer- Um dos problemas que as editoras vêm sibilidade de fazer outra coisa ao mesmo
cial, como aponta Sandra Espilotro, pro- enfrentando é o acúmulo de livros nos es- tempo em que escuta uma história, além
fissional do livro que hoje atua no mer- toques, o que gera prejuízos financeiros, de ser um formato inclusivo e acessível.
cado de livros digitais e foi gerente geral uma vez que cada exemplar tem um custo “Para você ler um livro, exige-se uma
da área de Publicações da Editora Globo para ser produzido e não gera lucro caso atenção que o mundo de hoje não dá. É di-
por 30 anos. “Foi um dos maiores baques não seja vendido. O e-book é uma alterna- fícil, você precisa se desligar e muita gente

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não tem tempo para isso”, pontua Ana. A teral, em que uma pessoa fala para outras tores disponibilizam contos, romances,
Ubook é uma das empresas que apostam pessoas e não diretamente com elas. “Nós poemas, fanfics, entre outros, de forma
nesse serviço. O usuário faz uma assina- acabamos escutando outras pessoas fala- totalmente gratuita para os mais de 70
tura mensal e tem acesso a todo o catá- rem sobre livros hoje na Internet, mas isso milhões de usuários do site; já no segun-
logo, incluindo livros, revistas, podcasts, ainda parece muito distante, falta um lu- do, os autores não pagam para publicar,
jornais, palestras e entrevistas. A narração gar onde possamos discutir esse gosto pela mas as obras são vendidas no aplicativo e
é feita por atores, locutores e até mesmo literatura”, conta a estudante de Jornalis- nos aparelhos Kindle e 30% do valor total
pelos próprios autores. mo Bianca Jung. A solução encontrada por das vendas vai para a empresa. A paulis-
Neste momento de incertezas, as edito- ela e pelas amigas para realizar esse dese- ta Ray Tavares é uma autora que ganhou
ras se esforçam para não esquecer do obje- jo foi criar um clube do livro. Mensalmen- notoriedade no Wattpad com Os 12 signos
tivo mais importante: criar novos leitores. te, elas escolhem uma obra pelo grupo do de Valentina. O livro teve mais de 2,5 mi-
Pensam em formas de chegar, abordar e WhatsApp e se reúnem em um café para lhões de leituras e chamou a atenção da
se conectar com esse público, através de conversar sobre sua impressões. “É mui- Galera Record, que comprou os direitos da
redes sociais, feiras, clubes de livro, pro- to interessante como os livros conseguem obra e a transformou em uma edição físi-
duzindo edições especiais e investindo no causar várias sensações e emoções, conse- ca. Em 2019, mais uma história de Ray vai
meio digital. A editora DarkSide foi criada guimos juntas vivenciar a mesma experi- virar livro e teve os direitos de adaptação
em 2013, inicialmente com foco nos gêne- ência através da leitura”, finaliza. adquiridos pela Paris Filmes.
ros terror, suspense e fantasia. Uma ca- Promover uma experiência que vai Com a ajuda financeira dos próprios lei-
racterística forte da marca é pensar em além das páginas também é o objetivo tores, escritores estão encontrando formas
todos os elementos gráficos do livro, des- do Turista Literário, um clube de assina- de publicar livros em edição física sem ne-
de capa, marcador de página, ilustrações turas de livros criado em 2016 que, todo cessariamente precisar de uma empresa
e brindes, para garantir uma experiência mês, entrega aos assinantes uma caixa por trás do processo. Phellip Willian e Me-
literária diferente. O catálogo segue uma contendo um lançamento de livro da lissa Garabeli foram procurados por edito-
identidade visual particular; quando o lei- categoria “jovem adulto”. A ideia do Tu- ras para lançar a história em quadrinhos
tor vê um livro da editora, já identifica na rista é fazer o leitor embarcar em uma Saudade, mas as propostas recebidas não
hora que é DarkSide. viagem ao universo do livro, utilizando eram interessantes para eles. Em 2017, os
Não basta apenas produzir e vender li- itens especiais para estimular os senti- autores optaram por um financiamento
vros para conquistar leitores. “Enquanto dos, incluindo um souvenir da viagem. coletivo, através do Catarse, em que leito-
algumas editoras se agarram em salvar res interessados puderam contribuir para

Editoras
o modelo tradicional, outras timidamente viabilizar a publicação. A ideia deu certo:
abrem novos canais de contato, estican- com a ajuda de 852 apoiadores, Saudade
do os músculos para entender como falar arrecadou mais de R$ 42 mil, superando
direto com o leitor”, constata Daniel La- a meta inicial, de R$ 20 mil, em 210%. “Os
meira, editor da Aleph e fundador da An-
tofágica, que lança seu primeiro livro no devem se reinventar maiores desafios são a divulgação e a ven-
da. O autor tem um esforço grande de criar,

e procurar novas
mês de maio. A editora surgiu com a pro- desenvolver, imprimir, divulgar, vender,
posta de aproximar o público de clássicos enviar. Ele faz todo o processo do mercado
da literatura, reeditando esses livros com editorial sozinho”, analisa Phellip. O Catar-
novos projetos gráficos, apresentações es-
critas por criadores de conteúdo do YouTu-
formas e formatos se funciona como uma espécie de pré-ven-
da, um lugar onde leitores entram em con-
be e textos de profissionais e acadêmicos
relacionados à obra. A Antofágica também para atrair leitores tato com novas histórias e podem ajudar a
torná-las realidade.
busca atrair a atenção dos leitores com a
produção de conteúdo original, como ví- “Acredito que existe tanto a busca da Vendas caíram 37% entre 2014 e 2018
deos, resenhas e newsletters. curadoria, que vai entregar um bom li-
vro e recursos para o assinante expandir Em um período de cinco anos, o número de exemplares vendidos
Experiências inovadoras a leitura; como a questão da surpresa. caiu 37%. O dado se refere aos 10 livros mais comercializados de
Um presente pra si todo mês. Além de ser cada ano, de acordo com o Publish News.
Para fazer a divulgação de lançamen- mais uma forma de se conhecer gêne- 3,1
tos, muitas editoras formam parcerias ros ou autores que a pessoa talvez nunca milhões
com booktubers, pessoas que falam sobre escolhesse sozinha”, afirma Mayra Si-
livros em vídeos no YouTube. Eles criam gwalt, co-fundadora e curadora do clube.
2,9
conteúdos relacionados aos livros e geram Assim como o Turista, existem diver- milhões
engajamento em suas redes sociais, o que sas caixas literárias com diferentes pro-
para as editoras funciona como publici- postas. A TAG Livros, fundada em 2013
dade para atingir o público-alvo da pu- por três ex-estudantes de Administração,
blicação. “São pessoas comuns, das mais apresenta aos assinantes duas opções:
1,7 1,1 1,9
diferentes áreas, dividindo suas opiniões TAG Curadoria, com livros indicados por
milhões milhões milhões
de leitura e criando uma relação de con- grandes nomes da literatura, e TAG Inédi-
fiança com quem os acompanha. O con- tos, com best-sellers internacionais ainda
teúdo por eles criado é repleto de opiniões não lançados no Brasil. Algumas editoras
pessoais, empolgação, interpretações di- estão investindo no mercado de caixas
ferentes do que está lá acontecendo e tro- literárias, como a Intrínseca. O clube In-
ca com o leitor”, explica Daniel, no artigo trínsecos traz uma edição exclusiva em
Livros e YouTube, publicado no Medium. capa dura dos próximos lançamentos da
A maior booktuber do Brasil, Bel Rodri- marca, que só chegarão às livrarias 45
gues, tem mais de 600 mil inscritos em dias ou mais depois do envio da caixa
seu canal, que fala principalmente sobre para os assinantes.
suspense, terror e criminologia. Recente- Com a crise do mercado editorial e a
mente, a DarkSide patrocinou um vídeo queda no número de lançamentos, ficou
em que Bel fala sobre lançamentos de li- ainda mais difícil para um autor inician-
vros de crimes reais no Brasil, incluindo a te mostrar seu trabalho. É na internet
nova aposta da editora. que novos escritores estão encontrando
Os booktubers começaram seus canais espaço para publicar suas histórias, em
porque sentiam falta de um espaço para plataformas de publicação independente,
comentar sobre suas leituras. Entretanto, como o Wattpad e o serviço de autopu- 2014 2015 2016 2017 2018
o YouTube ainda é uma plataforma unila- blicação da Amazon. No primeiro, os au- FONTE: PUBLISH NEWS, 2019

MAIO 2019 | N. 1 | ANO 38 | |5


C U LT U R A TEXTO E FOTO POR RAFAEL PRUDENCIO MOREIRA
rafaelprudenciomoreira@gmail.com

Artista chileno escolheu Artista fugiu da ditadura

viver seu exílio na Ilha


chilena, ganhou os palcos
da MPB e hoje vive a

N
solidão em Florianópolis
a capital catarinen-
se, as noites de são
cada vez mais mo-
vimentadas. Ba-
res e clubes lotam
a cidade multicultural e urbaniza-
da, ofuscando o boi de mamão, as

“Todo dia
festas tradicionais e até as bruxas.
Apesar desse crescimento, ainda é
possível encontrar seres encanta-
dos talhados em madeira, molda-
dos em barro ou pintados na pele.
era um amigo novo
Assim é a casa de Polo Cabrera, no que desaparecia”
Porto da Lagoa em Florianópolis.
Leopoldo Augusto Cabrera Zuñiga, mais de lá via os aviões passando bzzz… E no rá- que os convidou para conhecer o seu aparta- Influente. Ao fim
conhecido como Polo, é compositor, multi- dio dizia que havia tido um golpe militar.” mento no Rio de Janeiro. Em um show que da entrevista, Polo
-instrumentista, escultor, contador de his- Em 16 de setembro, cinco dias após o deram na PUC Rio, as flautas, vozes e a tra- se levanta, pega um
tórias, pintor, ilustrador, artesão, escritor golpe, Victor Jara, artista e companheiro dição andina que corria nas veias dos in- instrumento inventado
e um inventor de modo geral. Mede entre de Polo no La Nación foi preso, torturado, tegrantes encantaram Milton Nascimento por ele, saca um arco
1,50m e 1,65 de altura, tem 74 anos, andar fuzilado e jogado em uma favela da capi- que se encontrava na plateia. E ele se encan- de violino e o toca.
torto e um riso divertido. Mas não se en- tal Santiago. A sua morte é até hoje uma tou tanto com o que viu e ouviu, que os cha- É quase como se as
gane pelo seu jeitinho brejeiro, sua his- das mais emblemáticas para os chilenos, mou para participar do álbum Geraes. luzes dançassem e a
tória envolve tanto parcerias de sucesso assim como a de Vladimir Herzog na dita- Este foi o estopim para que aconteces- Cordilheira fosse, na
com Ney Matogrosso, Milton Nascimento e dura militar brasileira. Cerca de um ano sem convites para o Água. A lista inclui no- verdade, o Morro do
Mercedes Sosa, quanto traumas com a di- depois, Polo foi preso por “conspirar contra mes como Ney Matogrosso no álbum Seu Lampião, acalmando
tadura militar chilena. o regime”, ou seja, reunir-se com amigos. Tipo, Moraes Moreira em Bazar Brasileiro, assim, o coração
Ele nasceu no Chile, na capital Santia- Jair Rodrigues, Flávio Venturini, entre ou- marcado por grandes
go, mas vive em Florianópolis “há mais Pesadelos e ameaças tros. “Rodamos o nordeste inteiro, tocamos alegrias e anos de
de 30 anos”. Sua casa é como uma ofici- em Campina Grande, conhecemos todos os chumbo. Para além
na de bruxas; da rua é possível ouvir os si- Companheiros torturados e tortura psi- baianos: o Caetano, o Moraes, o Smetak, o disso, nas noites de
nos pendurados como um grande móbile; cológica deixaram marcas na vida de Polo luthier famoso. Estivemos com Elomar, fi- sábado, Polo costuma
muitos rostos e totens nas paredes; instru- até hoje. “E agora, quando apareceu aque- camos na fazenda, por uns dias, uma volta convidar amigos para
mentos inventados ou pré-existentes por le ‘Bolsonazi’, me apareceram sonhos e re- enorme. Não dá nem pra resumir.” fazer música, festa e
toda a casa; cheiro de incenso; além de es- cordações de todas essas coisas terríveis. E A volta para o Chile no início dos anos muita improvisação.
culturas e quadros surreais, que remetem realmente para mim tá uma coisa muito 80 dissolveu o Água. O grupo, que fugiu dos
ao folclore latino. desconfortável ver esses caras no poder.” horrores da ditadura, começou a receber
Polo se interessou pela música influen- Na época do golpe no Chile, mesmo depois convites para tocar com bandas de apoio
ciado por sua mãe quando criança. “Apren- de sair da prisão, Polo recebia cartas ame- ao regime de Pinochet. Nenhum dinheiro
di desde pequeno a fazer a harmonia das açando sua família, e então não viu outra conseguia fazer Polo ignorar os dias na pri-
vozes. Minha mãe fazia uma primeira voz, opção senão deixar seu país. “Eu fiquei em são e a perseguição. Então, ele e outro inte-
outro irmão fazia a segunda, eu aprendi a um estado muito mal, né, todo mundo que grante, Nelson Araya, voltaram ao Brasil.
fazer a terceira. E tudo assim [estala o dedo]. passa por isso fica… mas aí comecei a tocar Desde então as visitas ao país foram
Cantava e já [fazíamos]”, conta em entrevis- com os meninos do Grupo Água e essa foi a poucas. A última se deve a uma carta do
ta que deu para a banda de Florianópolis minha terapia. Foi isso que me salvou.” governo chileno em 2014, que ainda procu-
Novo Código Genético, em 2017. Hoje ele é um O grupo composto por Oscar Ratón Pé- ra os responsáveis pela morte de um dos
tipo de maestro intuitivo. Todos os sábados rez, Nano Stuven, Nelson Araya e Polo Ca- colegas de cela de Polo. Ele tem certeza que
à noite, em festas chamadas ‘Tocatas’, junta brera partiu do Chile em 1975. O principal ter partido em 1975 é o motivo de hoje ser
desde músicos profissionais a amadores em motivo era fugir do regime: “todo dia era um dos 200 mil exilados, em vez de um dos
harmonias simples, coletivas e 100% im- um amigo novo que desaparecia, um ter- 3 mil mortos e desaparecidos.
provisadas. Uma das coisas que Polo apren- ror!”, relata Polo. Subiram a cordilheira em Em sua casa, ele conta tudo com calma
deu durante suas viagens foi a capacidade direção à Bolívia onde pousaram por um e bom humor. Rindo comenta sobre as ga-
de improvisar com qualquer instrumento, ano, ou melhor, voaram por um ano. “Via- fes do atual presidente brasileiro em Israel.
mas ele não comenta como conseguiu os jamos a Bolívia inteira. A selva, Potosí… To- Mas fica sério quando fala da solidão, prin-
poderes de fazer pessoas que nunca experi- camos nas faculdades…”. cipalmente de seus pesadelos e temores. No
mentaram um instrumento tocarem cole- A viagem seguiu para o Peru e o Equa- entanto, diz que tem descoberto uma nova
tivamente já na primeira Tocata. dor, onde experimentaram a Ayahuasca força dentro de si com todo esse tempo so-
Apesar de tocar desde criança, o mergu- com um xamã, e essa não seria a última zinho. Suas principais companhias são
lho na música para Polo se deu aos 28 anos, vez. Anos depois, Polo se uniria ao ex-guer- dois cachorros vira-latas, que em sincronia
em 11 de setembro de 1973, com o golpe mi- rilheiro Alex Polari como primeiro violei- engraçada cantam juntos de seu dono.
litar chileno. Na época, era jornalista no La ro do padrinho da igreja do Santo Daime. Tem se virado com pouco, a sua prin-
Nación, jornal oficial do presidente Salva- No entanto, isso já aconteceria depois dos cipal renda é uma espécie de aulas que dá
dor Allende. Um de seus colegas de traba- anos de sucesso musical no Brasil. para seu novo grupo musical Los Colibris.
lho era Victor Jara, ativista político e artis- Em 1977, no Jornal de Música, Milton Nele compõe músicas novas, sobre histó-
ta de renome no Chile. Nascimento falava sobre o seu álbum Ge- rias novas, e também relembra músicas do
Em entrevista para o Zero, Polo conta raes recém-lançado no Brasil. “Isso (nunca Água e de épocas até mais antigas.
sobre o dia do bombardeio no Palácio de la ter se animado a gravar com músicos lati- As velhas histórias de Polo se misturam
Moneda. “Eu trabalhava ali, só que o golpe nos) foi até conhecer o [Grupo] Água e des- com um presente reflexivo. Nas colunas de
militar foi mais cedo, eu ainda não estava cobrir que nós temos muito em comum, sua casa, ainda há lembranças dos rostos
no jornal. Eu entrava às 14h e o golpe mi- inclusive o famoso pé na estrada.” modelados à mão, construídos de forma
litar foi de manhã cedo. 7h...8h da manhã. O andar do Grupo Água chegou ao Brasil coletiva. Ali, em seus 74 anos, Polo prova
Os aviões soltando foguetes no Palácio de através da cidade boliviana Santa Cruz de La que a arte não é apenas uma forma de ex-
la Moneda. Estava apaixonado [por uma Sierra. Lá conheceram o músico hoje famo- pressão, mas também carrega muita his-
menina que] morava perto da Cordilheira e so, mas na época desconhecido, Almir Sater, tória e resistência.

6| | ANO 38 | N. 1 | MAIO 2019


D IREITOS HUMANOS TEXTO POR LAVÍNIA KAUCZ
lavikaucz@hotmail.com

Para mulheres
FOTO POR LUNA MARIAH ZUNINO
luna.mariah@hotmail.com

Estruturas de acolhimento

é mais difícil emigrar


são insuficientes em Santa
Catarina, que recebe imigrantes

C
e refugiados de diversos países
uidar de mim é cuidar do
outro, e cuidar do outro
é cuidar de mim”. Para
a venezuelana Merlina
Saudade, essa frase re-
sume o que ela acredita ser a me-
lhor forma de lutar pelo bem de
seus filhos longe de seu país: prote-
gendo as outras mães. “Se a gente
abandona uma mãe, o filho dessa
mãe pode vir a ser o criminoso que
faz mal para o meu filho. Mas, se eu
cuido dela, eu cuido do meu filho
também”, explica.
É por essa razão que, desde que veio de conseguir revalidar seu diploma para O Centro de Referência e Atendimento Trabalho:
para o Brasil, há três anos, Merlina se continuar atuando na área em que tra- para Imigrantes e Refugiados (CRAI) man- Ingrid Villanueva era
dedica a articular políticas públicas que balhava há anos. Por enquanto, ela vende tém a mesma estrutura de fevereiro de professora de ensino
contemplem principalmente as mães peças de crochê que confecciona na feira 2018, apesar de estar recebendo o triplo de fundamental na
imigrantes. Ela decidiu sair da Venezuela de imigrantes que ocorre toda sexta-feira imigrantes. Da média de 308 por mês na Venezuela. No Brasil há
e vir para o Brasil após sofrer uma hemor- no centro da Capital época, hoje o CRAI faz aproximadamente cinco meses, conta com a
ragia no parto do seu segundo filho. Saiu Longe de casa, sem ter com quem dei- 1.400 atendimentos mensais. venda de peças de crochê
do hospital com um pedaço do seu útero xar os filhos, e precisando trabalhar para Em um ano de funcionamento, o CRAI que ela mesma faz para
em um potinho, retirado por falta de al- pagar o aluguel, as famílias se veem em recebeu 5.647 pessoas, de 58 nacionalida- garantir sua renda.
ternativa - os remédios necessários para um beco sem saída. Na maior parte dos des. Desses, a maior parte são haitianos
segurar a gravidez e evitar infecções esta- casos, é natural que a mulher deva ficar (73%), seguidos por venezuelanos, sendo
vam em falta na Venezuela. em casa cuidando das crianças. que o número de atendidos aumentou
Desde 2014, mas principalmente em Nas situações de deslocamento força- muito rapidamente em um ano: em feve-
2018, a crise socioeconômica e política na do, as mulheres se encontram em uma reiro de 2018, eram de dois a três por mês
Venezuela acentuou a emigração em bus- situação de dupla vulnerabilidade: elas já – agora, são aproximadamente 130 que
ca de melhores condições de vida. Muitas partem de uma estrutura social machis- chegam a cada mês.
mulheres viajam grávidas, ou com filhos ta no país de origem, e no Brasil continu- Em setembro deste ano, o contrato do
pequenos, em busca de mais segurança am sem chances de poder se desvencilhar CRAI com o governo estadual termina. E,
para o parto ou acesso a medicamentos. dessa estrutura. segundo o coordenador, Luciano Leite, há
Merlina conta que, ao chegar em Flo- A advogada e mestre em Direito pela o risco de ele não ser renovado. A gestão
rianópolis, encontrou dificuldades para Universidade Federal de Santa Catarina atual do governo está estudando a possi-
alugar um local que aceitasse seus filhos. (UFSC), Thais Silveira Pertille, explica que bilidade de realizar, no segundo semestre
“Quando você tem criança, não pode ser isso acontece principalmente quando a de 2019, uma capacitação dos assistentes
tirado rápido, precisa de tempo, e eles as- vivência dessas mulheres, no país de ori- sociais dos Centros de Referência de As-
sumem isso como uma perda”, lamenta, gem, estava baseado no lar. “Dessa forma, sistência Social (CRAS) de Florianópolis,
referindo-se à prática dos proprietários de quando elas são obrigadas a se deslocar, para que eles possam acolher diretamen-
imóveis locais de pedir a saída de inquili- elas deixam toda a vivência delas para te os imigrantes, sem encaminhamento.
nos no final do ano, de olho nos aluguéis trás, e vão para um lugar em que não vão Mas, segundo Luciano, a mudança não
de temporada - bem mais vantajosos. mais encontrar o mesmo formato de vida”. resolverá as demandas que chegam: ape-
Entre a moradia e o emprego, muitos A situação é diferente para os homens, nas 20% dos atendimentos realizados no
imigrantes que viajam com a família se pois para eles o ambiente público é per- CRAI são relacionados ao acolhimento
deparam com outro entrave: não têm mitido: “O marido refaz a dignidade dele psicológico e o restante é para resolver
com quem contar para ajudar a cuidar porque vai para o trabalho, mas a mulher questões documentais e a inserção no
das crianças. No caso das creches, mui- perde a dignidade dela”, afirma Thais. mercado de trabalho.
tas famílias não conseguem reunir os do- As dificuldades e o despreparo do es-
cumentos necessários para a matrícula. Falta de planejamento tado para receber imigrantes se refletem
Além disso, as vagas são abertas uma vez também nas escolas públicas. Em 2016, a
por ano, e, quando os imigrantes chegam, O problema da falta de acolhimento professora de história Maria Alice Rosa de
já perderam a data. dos imigrantes e refugiados, principal- Morais e a professora de português Edi Fa-
A síria Ghofran Daher, 31 anos, veio mente mulheres e crianças, traduz em tima, da Escola de Educação Básica Lauro
para o Brasil há três anos, após a vinda do parte a falta de planejamento do Estado Müller, perceberam a necessidade de criar
marido. Com duas filhas - de 6 e 8 anos - e para acolher essas pessoas. Com a política uma dinâmica diferenciada para alunos
sem a família por perto para cuidar das de interiorização implementada pelo go- imigrantes - principalmente sírios e hai-
crianças quando elas não estão na escola, verno federal em 2018 para dispersar pelo tianos. Foi assim que nasceu o Projeto
Ghofran sai pouco de casa. Ela e o marido país o contingente de venezuelanos que Sementes. Elas desenvolvem atividades
trabalham fazendo comida árabe sob en- estavam em Roraima, cerca de 300 deles para ajudá-los com a língua e a sociali-
comenda ou para eventos. Ghofran era de- vieram para a Grande Florianópolis, em zação. “Não compreendendo a língua, as
signer de moda na Síria, e gostaria de vol- novembro. Outros, ainda, foram recebidos crianças ficam caladas em sala de aula,
tar a trabalhar na área - mas, além de ter por famílias evangélicas e pela entidade não participam de nada e querem ir em-
que cuidar das crianças, precisa lidar com católica Cáritas. bora.”, explica.
a burocracia para a revalidação do diplo- O que não é contabilizado, no entanto, Mas a professora Maria Clara lamenta
ma do ensino superior e a dificuldade com é a história de cada imigrante no país de que não exista, por parte da grande maio-
a língua. Ela já frequentou as aulas gra- origem. “Se tu traz um venezuelano pra ria das escolas, estruturas para pensar
tuitas de português oferecidas no centro cá, vão ter outros que vêm em seguida: o acolhimento desses alunos. “O que eu
de Florianópolis, mas sente falta de aulas familiares, amigos, e assim vai”, observa vejo são as crianças sendo matriculadas
direcionadas ao mercado de trabalho. Merlina. Ela defende que é preciso levar nas escolas e sendo colocadas em sala de
Ingrid Villanueva era professora de en- isso em conta na hora de articular políti- aula, e às vezes os professores nem sa-
sino fundamental na Venezuela. Há cinco cas públicas efetivas, que contemplem as bem que eles têm alunos que vieram de
meses no Brasil, não tem nem esperanças necessidades dessas pessoas. regiões de conflito.”

MAIO 2019 | N. 1 | ANO 38 | |7


C IDADANIA TEXTO POR EDUARDO IAREK E JÉSSICA ANTUNES
eduardo.iarek@hotmail.com & jcastroantunes@gmail.com

Quilombolas vivem há 40 anos


FOTOS POR JÉSSICA ANTUNES
jcastroantunes@gmail.com

expulsos de suas terras na Capital


T
odo dia é a mesma coi-
sa: sem as pílulas, o
sono não vem. Deitada
sozinha na cama de ca-
sal, Dona Jucélia, aos 61
anos, continua a imaginar sua tata-
ravó amarrada no tronco durante a
escravidão. Ela já perdeu a esperan-
ça de conseguir viver nas terras que
um dia pertenceram à sua família.
Enquanto pensa no destino de sua
comunidade, observa a insistente
goteira pingando no lençol: vem do
encanamento do andar de cima, que
fica à mostra, sinal de que seu filho
acabou de tomar banho. A constru-
ção improvisada é uma das casas
empilhadas à margem da rodovia
que liga a Barra da Lagoa ao Rio Ver-
melho, no norte de Florianópolis.

“Não tem
Jucélia Beatriz Vidal é moradora do qui- Pouco tempo depois, a família Vidal Acima: quando criança,
lombo Vidal Martins, que carrega o nome de Martins deixaria as terras herdadas da ta- Dona Jucélia conta
seu bisavô. Ela vive num terreno de 400 m² taravó, a escrava liberta Joanna. O motivo que fazia bonecas com
junto a outras 15 famílias desde que os qui- foi a apropriação progressiva da área pelo folhas de bananeira
lombolas foram expulsos de seu antigo ter-
ritório para a criação do Parque Estadual do nada de bom Estado, numa série de eventos que ainda es-
tão sendo investigados.
como as que aparecem
na foto. Nunca teve luxo,

na minha vida.
Rio Vermelho, na década de 1960. A instalação do Parque Estadual do Rio mas usava a imaginação
Avó de sete netos, Dona Jucélia gosta de Vermelho e as ações do Instituto da Refor- para aproveitar a

Se isso é pecado,
cozinhar para as crianças. “Elas chegam da ma Agrária de Santa Catarina (Irasc), ex- infância.
escola com fome, eu boto o prato pra um que tinto em 1977, estão entre os fatos que le-
vai sentar na cama, boto o prato pra outro varam à retirada dos quilombolas dali. O
que vai sentar do outro lado, cada uma vai
comer em um canto porque não cabe”, la- Deus que me Irasc foi um órgão criado pelo governador
Celso Ramos com o objetivo de identificar

perdoe”
menta. A casa de um só cômodo e a mesi- e distribuir terras devolutas no estado. Na-
nha de pernas bambas a impedem de reali- quela época, os interesses fundiários já si-
zar seu sonho: ter um banquete em família. nalizavam o potencial de exploração imo-
Ela sente vergonha do próprio lar. “Assim tomaria conta das plantações, casas e da biliária naquela região.
que chega gente, eu pulo pra rua, não recebo própria Lagoa da Conceição. Para conter Atualmente, por suspeita de fraude nas
ninguém na minha casa.” as dunas, era preciso transformar toda a concessões, o Ministério Público Federal in-
Aos domingos, seu divertimento é fa- paisagem. A área funcionaria como um vestiga os títulos de terra emitidos na época.
zer renda. Ela não tem amigos pelo bair- grande laboratório a céu aberto para testar Os documentos anexados ao processo evi-
ro. Durante a juventude até tentava ir aos qual vegetação se adaptaria melhor à orla denciam que nos 15 anos de atuação o pro-
bailes, mas só podia ficar olhando do lado marítima do estado. grama aumentou o patrimônio de pessoas
de fora. A festa era reservada para os bran- Em 12 anos, foram plantados 700 hecta- ligadas à especulação imobiliária. Entre os
cos. “Não tem nada de bom na minha vida. res de pinus e eucaliptos, inclusive nas ter- 980 lotes distribuídos pelo Irasc em Floria-
Se isso é pecado, Deus que me perdoe”, diz ras onde vivia a família Vidal Martins. Para nópolis estavam terrenos onde antigamente
com lágrima nos olhos. dar conta do serviço e sem grandes custos, o viviam os quilombolas.
Não é de hoje que os Vidal Martins car- Estado mobilizou uma equipe de detentos da O destino da comunidade foi o pequeno
regam tristeza no olhar. Essa história co- extinta Colônia Penal de Canasvieiras. Além terreno onde vivem até hoje, passados 40
meça com o tráfico de escravos na Ilha de deles, quem também trabalhou, mas como anos. O novo lote não veio por indenização,
Santa Catarina em meados do século XVIII. empregado, foi o jovem quilombola Odílio mas pelo suor de seu Isidro, o pai de família
A tataravó de Dona Jucélia, conhecida como Isidro Vidal, morador do local, que com o que precisava se afastar por seis meses, para
Joanna crioula, nasceu em 1830 e adotou os tempo ficaria conhecido por Seu Odílio. trabalhar com pesca no Rio Grande do Sul. A
sobrenomes “Martins” e “Oliveira” de seus As mãos calejadas e os passos lentos de morte chegou antes que ele conseguisse pa-
proprietários. Aos 20 anos, a escrava casou quem se aposentou por invalidez revelam rar com os deslocamentos a trabalho e fosse
com Manoel do Espírito Santo, mas só foi li- uma trajetória sofrida. O senhor magro de morar lá com a mulher e os filhos.
bertada após a morte do último dono, Padre 65 anos, de barba e cabelo grisalho, conta Ali no número 9.543 à beira da rodovia
Pulcheria Oliveira, em 1867. que trabalhou por anos ao lado dos presos. João Gualberto Soares, seus filhos acaba-
Nas terras de Joanna, ali entre lagoa, rio e Ninguém sabia direito a história de cada ram crescendo e construindo suas próprias
mar, viveram seus descendentes. Até que, nos um, mas imaginava-se muito. famílias. Seu Odílio e Dona Jucélia tomaram
anos 60, um homem bem apessoado chegou Naquela época, o povoado mais próxi- para si a responsabilidade de transmitir as
na região, à serviço da Secretaria de Agricul- mo de onde morava a família Vidal era a memórias e as lembranças dos quilombolas
tura do Estado, convencendo toda a gente de freguesia do Rio Vermelho, a aproximada- a seus descendentes. No dia a dia, Helena
que era preciso conter o avanço das dunas da mente quatro quilômetros. Isidro Boaven- Jucélia Vidal de Oliveira e Shirlen Vidal de
Praia Grande, atual Moçambique. Era Henri- tura Vidal e Beatriz Geraldina Vidal foram Oliveira costumam vestir os trajes típicos
que Berenhauser, idealizador e responsável pais de 11 filhos, incluindo Odílio e Jucélia. da cultura afro-brasileira. Filhas de Dona
pela implantação de uma Estação Florestal. As mulheres da casa ficavam sozinhas Jucélia, as duas se reconheceram enquan-
Berenhauser, conforme conta seu Seu quando Isidro e Odílio saiam para traba- to quilombolas e decidiram também exigir
Odílio, irmão de Jucélia, dizia que a restin- lhar com Berenhauser e, por conta de ru- seus direitos. A expulsão dos Vidal Martins
ga daquelas terras não conseguiria segu- mores e preconceitos ditos sobre os presos, das terras que eram de seus antepassados
rar a areia contra os ventos e aos poucos sentiam-se desprotegidas. precisaria ser reparada.

8| | ANO 38 | N. 1 | MAIO 2019


Os remanescentes do único quilombo registrado em
Florianópolis lutam pela reconquista de seu território,
mas esperam há cinco anos pela conclusão de uma
entre as várias etapas da regulamentação fundiária
Espera sem fim “O Incra aponta que caberia à equipe da sidade”. Esse trabalho específico consiste
UFSC fazer o mapa do território a ser titu- em levantar a relação dos proprietários de
Helena e Shirlen cresceram sentindo na lado. Nós descrevemos no relatório qual é a determinado imóvel rural, desde a titulação
pele que a situação dos quilombolas esta- área que está sendo solicitada pela comu- original pelo Poder Público até o último dono
va permeada de injustiças e desmandos, nidade, que apresentamos a partir de duas (atual proprietário), para evitar que o Incra
então decidiram pesquisar mais a fun- perspectivas: a área pesquisada e a área so- indenize uma eventual desapropriação a
do a sua própria história. Depois de rodar licitada. Mas isso não é suficiente. Acredi- quem não é efetivamente dono da área.
por cartórios, bibliotecas, universidades, tamos que só teria sido possível chegar ao Por sua vez, o instituto afirma que “acer-
Ministério Público e Câmara Municipal, mapa final do território mediante alcança- ca da elaboração do relatório antropológico
encarando espera e burocracia, o trabalho das as condições prévias de esclarecimento da comunidade remanescente de quilombo
das irmãs finalmente rendeu frutos para a das questões apontadas na primeira versão Vidal Martins, o Incra/SC reitera que traba-
luta da família. O quilombo Vidal Martins do Relatório e que o Incra sequer considerou lha para cumprir o acordo judicial já homo-
recebeu certificação da Fundação Palma- que seria seu papel enfrentar”, argumenta logado, a fim de complementar o material
res em outubro de 2013 e, logo em seguida, Ilka Boaventura Leite, professora do Depar- elaborado pela universidade e concluir o
deu-se início a um processo de regulariza- tamento de Antropologia da UFSC e uma das trabalho em prazo determinado judicial-
ção de território junto ao Instituto Nacional responsáveis pelo relatório. mente”. Para isso, também já conta com
de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Segundo ela, o trabalho realizado pela apoio de técnico indicado pela universidade
Naquele momento, surgiu a esperança de equipe da universidade identificou situações para a elaboração dos mapas.
reparar a injustiça histórica e reconquistar de regularização de terras públicas, envol- A Defensoria Pública da União abriu uma
o território da comunidade. vendo inclusive o antigo Instituto de Refor- reclamação pré-processual contra o Incra
Em novembro de 2014, um ano depois da ma Agrária de Santa Catarina (Irasc), títulos pela demora na conclusão do relatório Rela-
certificação do quilombo, um Acordo de Co- ilegais, negociatas com autoridades públicas, tório Técnico de Identificação e Delimitação
operação Técnica (ACT) entre o Incra e a Uni- entre outros. Ela afirma ainda que “para elu- (RTID). No dia 25 de março deste ano, uma
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC) cidar esses aspectos é necessário o estudo reunião de conciliação foi realizada na Justiça
foi firmado para a realização de estudos das cadeias dominiais, tarefa de responsa- Federal com a presença da comunidade para
históricos, ambientais, socioeconômicos e bilidade do órgão fundiário, não da univer- resolver os problemas do atraso. O novo pra-
culturais da comunidade Vidal Martins. É zo estabelecido para a conclusão do relatório

Em 1810,
com base nesses estudos que o Incra publica pelo Incra, e não mais pela UFSC, ficou para 30
o Relatório Técnico de Identificação e Deli- de agosto de 2019. “A comunidade tá cansada,
mitação (RTID), primeiro passo no trâmite não aguenta mais esperar”, reclama Shirlen,
da regularização fundiária. que se tornou importante liderança da comu-
Ficou estipulado um prazo inicial de
dois anos para a conclusão dos trabalhos a Ilha de Santa nidade quilombola.
Ao longo dos cinco anos de impasses bu-

Catarina tinha
da parceria Incra e UFSC. No entanto, o rocráticos, enquanto autoridades e técnicos
laudo entregue pela universidade em 2016 discutiam sobre quem era responsável pelo

12.471 habitantes,
foi considerado incompleto pelo Incra, que quê, a vida dos quilombolas seguiu adiante.
apontou 27 questionamentos sobre o estu- A comunidade foi crescendo e as precarieda-
do. Além das divergências metodológicas des aumentaram com o tempo. Vitória, filha
no trabalho técnico-antropológico, o rela-
tório não foi finalizado em função de im- sendo 3.313 escravos, de Dona Jucélia, era pré-adolescente quan-
do os trabalhos antropológicos começaram.

ou seja 26,56%
passes envolvendo a interpretação de com- Durante o período de realização das pesqui-
petências para o registro topográfico. sas junto ao quilombo, deu tempo de cres-

Regularização dos territórios quilombolas em Santa Catarina


Em Santa Catarina, há 16 comunidades publicação do Executivo Federal para desapro- ficiente para sustentar os estudos; e três delas
remanescentes de quilombolas. Só uma priações. Outras três estão com estudos antro- não têm certificado da Fundação Palmares. Al-
conseguiu a titulação das terras, ainda que pológicos prontos, mas aguardam análises finais gumas áreas estão sobre unidades de conserva-
parcial, depois de 15 anos de processo: a In- do Incra para publicação do relatório; duas tive- ção, como Vidal Martins, Tabuleiro e São Roque.
vernada dos Negros. A comunidade de São ram problemas nos estudos antropológicos e Veja os locais e o andamento dos processos de
Roque aguarda desde agosto de 2018 uma estão estagnadas; três não têm mobilização su- regulamentação dos quilombos catarinenses.

Etapas da regulamentação fundiária

1ª | Autodefinição quilombola: emissão do Tapera


Certificado de Autorreconhecimento pela Itapocu sem registro em São
Francisco do Sul
Fundação Cultural Palmares. sem registro Situação: 2ª etapa
em Araquari
2ª | Relatório Técnico de Identificação e
Mutirão e Costeira Campo dos Polí
Situação: 1ª etapa Valongo
Delimitação (RTID): estudos cartográficos, sem registro
sem registro 12 famílias
antropológicos, históricos, socioeconômi- em Seara em Monte Carlo em Porto Belo
Morro do Boi Situação: 2ª etapa
cos e identificação da área reivindicada. Situação: 2ª etapa Situação: 3ª etapa 11 famílias em
3ª | Publicação do RTID: divulgação para Balneário Camboriú Vidal Martins
Situação: 3ª etapa 28 famílias
contestação, análise e registro de recursos. em Florianópolis
4ª | Portaria de reconhecimento: publica- Caldas do Cubatão Situação: 2º etapa
50 famílias em Sto.
ção nos Diários Oficiais da União e do Estado Invernada Amaro da Imperatriz Tabuleiro
identificando a área e os limites territoriais. dos Negros Situação: 2º etapa sem registro em Sto.
84 famílias Amaro da Imperatriz
5ª | Decreto de desapropriação: declara- em Campos Novos Santa Cruz Situação: 2ª etapa
ção da área como de interesse social pela Situação: 8ª etapa 35 famílias
em Paulo Lopes Morro do
Presidência da República, autorizando a Andamento do relatório técnico Situação: 2º etapa Fortunato
desapropriação e indenização de imóveis. Comunidades em processo de organização
40 famílias
em Garopaba
6ª | Retirada dos outros ocupantes: notifi- Comunidades com RTID em andamento Situação: 2ª etapa
cação e retirada de cidadãos ou empresas
que estejam no território quilombola.
Comunidades com RTID já publicado Aldeia
São Roque 36 famílias
Densidade populacional
7ª | Titulação da terra: emissão pelo Incra (em número de famílias)
29 famílias em em Garopaba
Praia Grande Situação: 2º etapa
do título de propriedade coletiva da terra à Situação: 4ª etapa
comunidade, que nunca poderá ser vendida. Família Thomaz Ilhotinha
9 famílias sem registro em
8ª | Território Regulamentado: tramitação 9 84 em Treze de Maio Capivari de Baixo
completa, mesmo com titulação parcial. FONTE: INCRA/SC, 2019 Situação: 5ª etapa Situação: 2ª etapa

MAIO 2019 | N. 1 | ANO 38 | |9


Caminhos
interrompidos: terreno
em que vivem hoje 16
famílias do quilombo
Vidal Martins é cortado
pela Rodovia João
Gualberto Soares,
para chegar à Lagoa,
a comunidade precisa
esperar a boa vontade
dos motoristas.

cer, da barriga brotar e de nascer Brayan. A antropóloga Raquel explica que a repro- sas. O único acesso que restou do quilombo
Ela precisava de um lar para criar o bebê. dução de um só discurso dentro de uma cul- para a Lagoa da Conceição foi um corredor
Preocupada com a situação, Shirlen decidiu tura produz efeitos negativos com relação estreito. Dona Jucélia lembra que inicialmen-
ceder a própria morada para ela e alugar ou- aos demais. “Se você no passado cultuasse te o terreno ia até a Lagoa, mas precisaram
tra no bairro dos Ingleses. qualquer coisa de matriz religiosa africana, dividi-lo quando a família passava fome.
Durante os cinco anos de espera pelo re- como é que você seria percebido numa co- Venderam o trecho à beira da Lagoa e ficaram
latório, a comunidade Vidal Martins, que já munidade em meio à Lagoa da Conceição, com o outro lado da rodovia. Já que a pesca é
tinha cinco crianças, registrou o nascimento onde o discurso do manezinho açoriano era fundamental para a comunidade, a condição
de mais cinco. Ana Clara, Elen, Quênnia, Ra- e continua sendo hegemônico?” foi manter este acesso entre dois terrenos fe-
faela, Gustavo, Brayan, Guilherme, Emanuel, Histórias de terreiro Seu Odílio não sabe, chados por muros de 3 metros de altura.
Marcos e Israel são as crianças que brincam mas carrega na memória a figura do tio A cinco minutos de carro dali, na área
pelo estreito chão batido ao lado das casas do João Ventura, um negro contador de causos antigamente conhecida como Travessão, se
quilombo. O contraste entre os limites im- que guardava em casa mais de 50 santos de ergueu um muro branco quase a perder de
postos às crianças ali e a liberdade de corre- barro. Na época de menino, andavam jun- vista. Entre os 700 metros de comprimento
rem soltas se revela toda vez que vão ao Par- tos pelos caminhos da região. De repente, o estão distribuídos alguns portões. “Aquilo ali
que do Rio Vermelho. “Quando elas estão no tio puxava uma música gingando como na tudo é tipo um condomínio, é tudo lote. Ali é
parque parecem passarinhos, largou estão capoeira. Seu Odílio consegue até lembrar difícil encontrar os nativos, todos venderam e
querendo voar”, diz Fabiana, mãe de Israel, da letra: “nós somos caboclos da ‘Ruana’ ficaram só na beiradinha do asfalto”, lembra
referindo-se à alegria dos pequenos em brin- ó Santo Antônio, ó meu senhor, meu sal- Seu Odílio. O terreno ainda está vazio, mas
car no espaço que um dia foi da comunidade vador, Zé Carulina com leite de cipó, meu não por muito tempo. O metro quadrado no
e hoje é uma reivindicação. Santo Antônio”. bairro vizinho, o já valorizado Ingleses, cus-

O que
Desde que foram expulsos, os Vidal Mar- ta quase quatro mil reais, sendo o 16º bairro
tins quase não frequentavam o Parque Es- mais caro da cidade, segundo levantamento
tadual do Rio Vermelho até 2018. Atualmen- da Federação do Comércio de Bens, Serviços e
te, três turmas de oito alunos estudam lá Turismo de Santa Catarina (Fecomércio).
dentro, na sala da educação ambiental. Os O quilombo Vidal Martins dá mesmo a im-
cursos fazem parte da Educação de Jovens e
Adultos - EJA Quilombola, garantidos por Lei eles buscam pressão de ter parado no tempo se compara-
do com as construções supervalorizadas que

é reescrever
desde 2012. A estudante Shirlen explica que, o rodeiam. A morada de Dona Jucélia conti-
para eles, estudar dentro do parque foi uma nua com os mesmos problemas de infiltração

a história de
conquista depois de muita negociação com a e falta de saneamento. Os casebres crescem
Prefeitura de Florianópolis. “Há cinco anos a verticalmente. Ao lado, mansões fechadas por
gente tava lá sem expectativa de nada, sem muros altos continuam chegando no bairro e
saber de quilombo, nem dos nossos direitos,
e de repente a nossa vida faz boom!”, reflete Florianópolis, a especulação imobiliária está cada vez mais
próxima dos Vidal Martins. Enquanto o tem-
*IANNI, O. CARDOSO, F. H. COR
E MOBILIDADE SOCIAL EM
FLORIANÓPOLIS – ASPECTOS DAS

incluindo-se nela
RELAÇÕES ENTRE NEGROS E BRANCOS
sobre a conscientização de sua luta. po passa, a luta da comunidade persiste. Pa- NUMA COMUNIDADE DO BRASIL
MERIDIONAL. SÃO PAULO: COMPANHIA
Sempre que alguém pergunta para Hele- rece estar cada vez mais difícil. EDITORA NACIONAL, 1960.

na os motivos de estudar em uma sala den-


tro do parque, ela explica a relação direta de Seu Odílio nunca entendeu o significa- Futuro incerto
sua comunidade com a terra. “Para nós, es- do de Aruanda. “Eu queria era saber o que é
tudar aqui é uma questão de reconhecimen- essa tal “ruãna, luanda, ruanda!”. A palavra Em situações similares à família Vidal Martins, outras 1.715 co-
to. A gente se sente em casa, conquistamos é presente em religiões afro-brasileiras e se munidades quilombolas brasileiras estão esperando por suas ter-
um espaço dentro do território que é nosso. refere a um lugar no plano espiritual. É onde ras. Porém, desde o início do ano, o governo federal não avançou
Poderíamos estar em outra escola, mas não. vivem as entidades superiores como o Cabo- na titulação dos territórios. “O que eles nos alegam é que estariam
Estamos aqui! A escola é um começo para clo de Aruanda da música, e os Orixás, Guias analisando novamente todos os processos, uma coisa que nos cho-
muitas outras conquistas”. O que os quilom- e Pretos Velhos. Umas das histórias que tio ca muito. Isso é totalmente ilegal, completamente fora do que de-
bolas buscam é reescrever a história de Flo- Ventura contava remete à presença da capo- termina a Constituição”, aponta a procuradora Analúcia Hartmann.
rianópolis, incluindo-se nela. eira nas redondezas. Se hoje em dia é preci- Por aqui o MPF/SC entrou com ação judicial para obrigar o Incra a
“No sul do país, o projeto de desestru- so um curso para aprender a lutar, naquela seguir com os processos de regularização fundiária. Existe ação civil
turação cultural dessas comunidades foi época, bastava ir até a beira do Rio Vermelho pública em defesa das comunidades quilombolas de Florianópolis,
muito forte. Se investiu em construir uma em noite de São João. Pontualmente à meia Paulo Lopes e Santo Amaro de Imperatriz, as três estão com proces-
imagem de Santa Catarina como um esta- noite, apareceria ali o melhor dos professo- so parado na confecção do RTID. Em sua defesa, o Superintendente
do europeu”, afirma a antropóloga Raquel res. “Vinha um negrinho e perguntava se o do Incra em Santa Catarina, Nilton Tadeu Garcia, aponta a falta de
Mombelli. A cultura manezinha é geral- camarada queria ser ligeiro. Se aceitasse, diz mão de obra como uma das dificuldades do trabalho. Cinco pessoas
mente relacionada à renda de bilro e ao que saia dali que era um relâmpago! Levava do setor responsável pela confecção dos relatórios quilombolas se
boi-de-mamão, símbolos tipicamente aço- tombo, mas no dia seguinte se precisar bri- aposentaram recentemente e não há previsão de concurso público
rianos. No entanto, em 1810 a Ilha de Santa gava com três ou quatro”, relembra. para substituir esses funcionários. Todo o trabalho do setor é feito
Catarina tinha 12.471 habitantes, sendo 3.313 Na época em que a comunidade tinha atualmente por Marcelo Spaolonse, único antropólogo do Incra/SC.
escravos, correspondendo a 26,56% da popu- terras para plantar, eles cultivavam milho, O investimento para as ações do órgão vem diminuindo. A dotação
lação, conforme Ianni e Cardoso*. Foram as batata doce, aipim, chuchu. Não se usava orçamentária específica para a realização dos trabalhos de titulação
mãos negras que construíram os grandes dinheiro, trocar alimento no Norte da Ilha teve início em 2010, com um total de R$ 6,2 milhões. Em 2017, o valor
prédios do centro da capital. era a forma de garantir a subsistência. Mas reduziu 78%, ficando em R$ 1,3 milhão. Com o novo governo ainda não
Mais do que participar da construção civil, com o passar das gerações, os costumes vão há definições. A administração empossada pelo presidente da Repúbli-
os negros tinham sua própria cultura, mes- mudando. “Se disser pra minha filha ir lá ca promete uma reestruturação do Incra até o 2º semestre de 2019.
mo que muitos costumes tenham se perdido no alto do Rio Vermelho trocar peixe por fa- Enquanto isso, não se fala de orçamento. “A gente liga para Brasília e a
no tempo. É o caso de Dona Jucélia, que hoje rinha que nem eu fazia, nem morta que ela informação que temos é que tem um grupo de trabalho que está escre-
não adere às religiões de matriz africana. vai fazer isso. As coisas vão evoluindo e se tu vendo o novo regimento do Incra, uma nova estrutura”, afirma Nilton.
“Nós não ‘pegamos’ isso de terreiro, porque para, fica pra trás.” O presidente do Incra, o general Jesus Correa, mandou um me-
os nossos antepassados foram escravos de O caminho que os quilombolas Vidal Mar- morando que dimunuiu em 25% as despesas contratuais das supe-
padre. Eles vieram com a crença deles, mas tins percorriam até o alto do Rio Vermelho rintendências estaduais. “Estamos vendo o que nós vamos fechar
aqui o padre tirava. Se desde pequenos nós hoje virou rodovia, e com ela veio a urbaniza- – vamos ter que mandar terceirizados embora ou vigilante, fechar
tivéssemos sido criados assim, tenho certeza ção. Se antes viviam praticamente isolados, garagem – não estou dizendo que vamos fazer isso, mas discuti-
que a gente seria, mas somos evangélicos.” agora o local onde moram foi cercado por ca- mos”, diz o Superintendente do Incra, tentando lidar com os cortes.

10 | | ANO 38 | N. 1 | MAIO 2019


MEIO AMBIENTE TEXTO POR ANA RITTI & EMILY LEÃO
ana.ritti@gmail.com & emis.menezes@gmail.com
FOTOS POR LUNA MARIAH ZUNINO
luna.mariah@hotmail.com

Pinus prejudicam a Em Florianópolis, mesmo

biodiversidade
com Lei Municipal retirada
da espécie invasora depende
da ação de voluntários

A

nossa diversão de fim to nº 18.495, que prevê que o município, sob animais que dependem daquele ambien- Resistência: em 2018
de semana era ir para coordenação da FLORAM, tem o prazo de te para alimentação e reprodução perdem foram retirados 28.283
as dunas brincar no dois anos, a partir da data de promulgação, espaço. “É como se você chegasse na sua mil pinus do Parque
para realizar o diagnóstico e mapeamento casa e está uma bagunça. Aquele espaço Natural Municipal das
mato. Há 30 anos não das espécies na cidade e então definir es- não está mais organizado como você co- Dunas da Lagoa da
tinha pinus lá, aquilo foi tratégias para remoção e substituição. Den- nhece, de repente a comida já não está Conceição. Apesar da
crescendo e ficando mais verde.” Se tro desse prazo, a entidade deve capacitar mais ali disponível”, compara Michele. redução significativa,
na infância ir para as dunas da La- profissionais para as ações, criar progra- Os pinus elliotti e taeda foram trazidos ainda é possível avistar
mas de educação ambiental e de produção para a cidade nas décadas de 50 e 60 por algumas árvores da
goa da Conceição, na região leste de de mudas de espécies nativas. Além disso, incentivos do governo. Na época, mudas espécie pela restinga.
Florianópolis, era uma atividade de ela é responsável pela fiscalização de áreas foram distribuídas para a população e
lazer para Roberto Medeiros, o Beto, públicas e privadas, podendo autuar os pro- também plantadas em áreas experimen-
de 42 anos, hoje em dia tem outro prietários através de advertência e multa. tais. Esperava-se que a madeira fosse co-
mercializada e a árvore fosse uma barrei-
significado: trabalho e esforço para O verde nocivo ra em regiões de dunas. Com o tempo, a
recuperar o ambiente nativo. Isso ideia de comercializar pinus se mostrou
porque entre os montes de areia e o Ter o verde no visual da cidade não é si- inviável por questões de estrutura e as
verde da restinga, o parque foi inva- nônimo de diversidade biológica. Segundo áreas foram abandonadas. O Parque Esta-
a professora Michele Dechoum, do Depar- dual do Rio Vermelho é um exemplo: na
dido por pinus — elliotti e taeda —, tamento de Ecologia e Zoologia da Univer- década de 60, um projeto experimental
espécie de árvore exótica que con- sidade Federal de Santa Catarina (UFSC), encabeçado por Henrique Berenhauser,
some muita água e encobre áreas, as exóticas invasoras são a segunda maior então presidente da Associação Rural de
impedindo que a vegetação nativa e causa de perda de biodiversidade e extin- Florianópolis, em convênio com a gestão
ção de espécies no mundo. O pinus é um do governador Celso Ramos, fez com que
animais que dependem dela tenham exemplo, e além dos prejuízos ambientais, os pinus tomassem conta de grande par-
condições de sobrevivência. Para re- ele também causa problemas econômicos te das áreas florestais daquela região. Be-
cuperar esse ecossistema, além de e sociais. Eles afetam a alimentação dos renhauser alegava que era preciso fazer
devolver a paisagem e a vida de an- animais e a polinização de insetos, inva- uma barreira para evitar que o vento le-
dem áreas de campo e de lazer ecológico, vasse a areia das dunas do leste da Ilha
tigamente, Beto e outros voluntários geram gastos com seu manejo em áreas de Santa Catarina para aquela região e
se dedicam a eliminar a invasora. protegidas, agrícolas e rodovias, e alteram que os pinus seriam as árvores ideias para
a paisagem, conforme apresenta a base de isso; caso contrário, as áreas de plantação
Em Florianópolis, existe legislação dados do Instituto Hórus. e pastagem seriam prejudicadas.
para isso. Sancionada em 2012, a Lei Mu- A espécie não fica restrita ao local onde Com a plantação de milhares de mudas
nicipal nº 9097 institui que os pinus — foi plantada, suas sementes leves são dis- da espécie invasora, o Parque se tornou
juntamente com eucalyptus e casuarina persadas pelo vento para outras áreas. um banco de sementes, o que facilitou a
spp — devem ser erradicados e substitu- Cada árvore gera milhares de sementes proliferação da espécie em outros pontos
ídos por espécies nativas até 2022. A três que se espalham ao longo do ano. A se- na cidade, como mostra a Lista Comentada
anos do prazo final, a retirada das árvores mente se desenvolve e a planta, com cerca de Espécies Exóticas Invasoras no Estado de
depende da ação de voluntários e eventu- de quatro anos e cinco metros de altura, Santa Catarina, organizado pelo Instituto
ais trabalhos da Fundação Municipal do já começa a produzir novas sementes. Du- do Meio Ambiente (IMA), em 2016.
Meio Ambiente (FLORAM). Apesar disso, a rante esse processo, o pinus utiliza água Hoje, mesmo com discussões técnicas, a
aplicação da lei esbarra em questões téc- em excesso, aumenta a acidez do solo e execução do trabalho se concentra em ações
nicas e na falta de ações efetivas. quando maiores fazem sombra, impedin- de voluntários. Só no ano passado, eles re-
Para mudar esse cenário e fazer valer a do que as nativas tenham água e luz, o tiraram 28.283 pinus apenas no Parque
lei, em abril de 2018 foi assinado o Decre- básico para sobrevivência. Além disso, os Natural Municipal das Dunas da Lagoa da

MAIO 2019 | N. 1 | ANO 38 | | 11


Vizinhança: na Avenida
das Rendeiras, que
fica na extremidade
das Dunas da Lagoa
da Conceição, os
pinus ainda podem
ser encontrados nas
áreas residenciais. As
sementes da espécie
podem ser espalhadas
pelo vento até os
grandes montes de
areia, prejudicando o
avançado trabalho de
manejo do local.

O que são espécies exóticas invasoras


As espécies exóticas invasoras são caracterizadas por sua rápida re-
produção e proliferação, elas dominam os ambientes que invadem e
prejudicam espécies nativas, causando extinções, perda de biodiver-
sidade e alteração de ecossistemas. “Nenhuma planta exótica tem
uma função ecológica da mesma forma que tem uma planta nativa.
Quando elas são invasoras elas destroem as funções ecológicas,
porque dominam o ambiente e não o deixam funcionar como deve-
ria. Usam mais água porque crescem muito rápido e assim impedem
a regeneração e crescimento de espécies nativas, elas não convivem
com as nativas mas as expulsam. Isso significa que animais ficam sem
suas fontes alimentares, inclusive insetos, que vivem dos néctar das
flores e de plantas em geral, e são extremamentes importantes como
polinizadores”, explica Silvia Ziller, diretora do Instituto Hórus.

Exemplos

• Acácia-mimosa (Acacia podalyriifolia): nativa da Austrália, é proi-


bido plantá-la em Santa Catarina. A espécie invade vegetações
como a restinga e impacta as espécies nativas;
• Ipê de jardim (Tecoma Stans): nativa da América do Norte, a es-
pécie é considerada invasora pois degrada florestas, pastagens e
áreas agrícolas. Seu plantio também é proibido no Estado;
• Casuarina (Casuarina equisetifolia): nativa da Austrália, é encon-
trada predominantemente em áreas litorâneas para o uso de con-
tenção de dunas.

Evite a disseminação

• Comece conhecendo as plantas do seu jardim;


• Ao reconhecer uma espécie exótica, entre em contato com a
FLORAM através do número (48) 3251-6500 para informações
de retirada;
• Faça a substituição por espécies nativas;
• Não cultive plantas exóticas invasoras.
FONTE: LISTA DE ESPÉCIES EXÓTICAS INVASORAS DO INSTITUTO DO MEIO AMBIENTE DE SANTA CATARINA (IMA-SC) I

“O tempo
Conceição. Organizados pelo Instituto Hó- de Unidades de Conservação. “Precisaria
rus, grupos de no máximo 20 pessoas vi- ter um corpo técnico permanente para
sitam o local para realizar o manejo men- isso, um grupo operacional de no míni-

passa e essas
salmente. “O programa veio em resposta à mo dez pessoas. Profissionais capacita-
percepção de um problema muito grave que dos para o uso de motosserra e outros
já era conhecido. Já havia ações feitas, in- equipamentos. Tem que ter a parte de co-
clusive pelo Ministério Público em 1998, mas
eram pontuais, não efetivas. Com o desen- espécies vão municação também, talvez dentro dessa
equipe técnica ter um educador ambien-

ocupando o espaço
volvimento do programa, em contato com a tal.” Isso acaba não acontecendo porque
universidade veio a oportunidade de ofere- outras questões ganham prioridade. Até

das nativas”
cer um programa de extensão que também o momento, foram realizados manejos e
beneficiava a conservação do parque”, conta fiscalização na Galheta, no sul da ilha;
Silvia Ziller, diretora do Instituto. Daniela, no norte; e Lagoa do Peri, no su-
Entre alunos, professores e membros deste. Ali foram feitos trabalhos de co-
da comunidade, está o voluntário Beto, que Apesar da dedicação dos voluntários, o municação com a população do entorno,
pode aplicar seu conhecimento profissional trabalho precisa do engajamento dos mo- com a distribuição de folderes que expli-
em jardinagem e trazer de volta à memó- radores do entorno. “Ao longo da rua Osni cam as ações, já que ainda existe precon-
ria a paisagem antiga. “O pinus foi se proli- Ortiga e da Avenida das Rendeiras, muitas ceito contra o corte.
ferando, a gente foi acostumando, mas de- casas têm pinus no quintal. Essas árvores Quase sete anos depois da promulgação
pois do projeto percebemos o que aconte- estão jogando sementes para dentro do da lei, Mauro e Silvia concordam que é invi-
cia. Sem o Instituto aquilo estaria perdido. parque e não vão deixar a gente acabar o ável erradicar os pinus no prazo de dez anos,
Não ia ter mais areia, não ia ter mais nada. trabalho se não forem retiradas”, explica como previsto. Isso se deve à falta de infor-
Quem fosse lá veria uma floresta verde, to- Silvia. No artigo da Biological Invasions, mação e atuações práticas da prefeitura
talmente fechada de pinus.” Além da ação pesquisadores avaliam que um terço da desde o início. “As pessoas têm boa intenção,
dos voluntários, motosserristas contrata- área total do parque estaria invadida pela mas na verdade não sabem o que é preser-
dos vão ao parque para retirar as espécies espécie exótica, caso as atividades de ma- var a natureza. Então, se há boa intenção, e
de maior porte. O gasto com profissionais nejo não tivessem se iniciado. Estima-se na medida em que há ação prática, elas se
e material é custeado através de financia- agora que, com as retiradas no Parque e dão conta: ‘poxa, pinus é ruim, então vou ti-
mentos coletivos e doações. Calcula-se que nas propriedades vizinhas, os pinus sejam rar o meu’”, diz Silvia. Para Mauro, no cená-
desde o início das atividades, em 2010, R$ erradicados do local até 2028. rio atual é necessário fazer algo efetivo para
137 mil foram poupados dos cofres públicos Se na Lagoa da Conceição o apoio da salvar a ilha da espécie exótica invasora. “A
com a retirada de mais de 350 mil mudas FLORAM é institucional, em outros pon- política da FLORAM precisa ganhar corpo
e plantas da invasora no Parque, conforme tos invadidos a retirada é pontual. A falta enquanto instituição, para dar conta desses
informações do artigo “Engajamento de ci- de organização e recursos da entidade é gargalos.” Já a professora Michele alerta: “à
dadãos no manejo de pinus exóticos inva- um dos fatores que atrapalham o desen- medida que o tempo passa, essas espécies
sores: faz diferença?”, publicado em 2018 na volvimento de ações, como explica Mauro vão ocupando o espaço das nativas. O tem-
revista científica Biological Invasions. Manoel da Costa, chefe do Departamento po joga a favor das invasoras”.

12 | | ANO 38 | N. 1 | MAIO 2019


T ECNOLOGIA TEXTO POR ELIZA DELLA BARBA & MARIA GABRIELLA SCHWAEMMLE
elizadellabarba@gmail.com & smariagabriella@gmail.com
FOTO POR LIVIA TOKASIKI
liviatok@gmail.com

Inclusão digital eleva


autoestima dos idosos

D
Em Florianópolis, cursos ensinam a utilizar WhatsApp e outros aplicativos virtuais
arcy da Silva é reven-
dedor de perfumes há
mais de 10 anos. Co-
meçou de porta em
porta, depois os clien-
tes passaram a fazer encomendas
por telefone, e agora pedem para
ver os produtos através de fotos no
WhatsApp. A questão é que o senhor
de 79 anos não sabe usar o aplica-
tivo de conversas instantâneas. Com
medo de perder clientes e o seu sus-
tento, Seu Darcy, como é mais co-
nhecido, decidiu buscar ajuda para
aprender a usar os novos recursos
de comunicação digital.
A história se repete com outras pes- Federal de Santa Catarina (UFSC) passou tados, como é o caso de Santa Catarina, Aprendizado:
soas na mesma faixa etária, seja para a oferecer cursos e oficinas que ajudam com a expectativa de vida de 79.4 anos. “Ao Esse é o segundo
entrar em contato com familiares que seus alunos a lidar com as novas tecno- atingir 60 anos, a pessoa vai viver mais dos dois encontros
moram longe ou simplesmente para se logias. A oficina de Novas Mídias Digitais, um terço do que ela viveu até aquele mo- promovidos pela escola
manter incluído no mundo da tecnologia. iniciada em abril, tem a proposta de en- mento, de acordo com a expectativa de Era Conectada, que
Segundo dados da consultoria SeniorLab, sinar os idosos a usar aplicativos como vida. E 20 anos é muita coisa”, comenta o ensina idosos a usar
até agosto de 2017, passava de 7 milhões WhatsApp, Facebook, Instagram, YouTu- mestrando em Mídias do Conhecimento o WhatsApp. Para se
o público brasileiro com 60 anos ou mais be, Spotify e Uber. Outra iniciativa reali- na UFSC, José Roberto Cordeiro. “matricular”, cada um
que utilizava a rede social Facebook. zada pelo Núcleo é o IntegraNETI, um blog Cordeiro também ressalta a importân- levou dois quilos de
Além disso, o grupo que mais cresce na feito coletivamente pelos idosos e que tem cia do idoso utilizar a internet à medida alimento, doados para o
Internet é o dos idosos. A Pesquisa Nacio- como intuito levar conhecimento e contri- que esta se torna cada vez mais impres- Asilo Irmão Joaquim, no
nal por Amostra de Domicílios (Pnad), do buir com um novo olhar para o processo cindível na vida da sociedade. “Hoje em centro de Florianópolis.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e de envelhecimento. dia se você quiser se comunicar com al-
Estatística), mostra que houve um cresci- guém, comprar alguma coisa, você recorre

O fato
mento de 25,9% de 2016 para 2017. à internet. Até porque a sociedade impõe
Foi pensando nesse público que Luciano isso, tem serviços bancários e de telefonia
e Cristiano Pereira começaram o projeto que são disponíveis apenas pela internet.
“Melhor Idade Conectada”, há quatro anos. Então imagina a pessoa hoje com 60 anos

de os idosos de hoje
Os irmãos são proprietários de uma esco- não saber fazer isso e ter que viver mais
la de informática e tecnologia no centro 20 anos sem saber”.
de Florianópolis e, percebendo a demanda, O idoso conectado imprime hoje um
passaram a oferecer cursos de como usar
computador e smartphone “para aque-
realizarem tarefas, gera novo paradigma de velhice. É o que explica
a gerontóloga e coordenadora do NETI, Jor-
les que já sabem muito, mas tem muito a
aprender”. Eles já receberam em média 500 não apenas qualidade delina Schier. “Hoje a gente vê que o aluno
que chega aqui com 50 anos se preocupa

de vida, mas autonomia


alunos, com idade entre 50 e 89 anos. em se inserir numa atividade diferente,
A principal queixa dos idosos que pro- traçar novos planos, e se preparar para um
curam os cursos é a falta de paciência da envelhecimento saudável. Eles vêm porque
família para ensiná-los. “O filho chega, Com a ajuda dessas iniciativas, o pú- entendem que precisam manter a convi-
dá um smartphone na mão do pai, da blico que não nasceu nesta geração digital vência, para manter o seu status, o seu pa-
mãe ou do avô e não ensina. A gente até vai se adaptando. “A queixa deles é real- pel social. É esse novo idoso que está vin-
brinca ‘tá me dando uma Ferrari, mas mente comunicar, o nível mais básico da do com força, e a internet está ajudando a
me dá a gasolina, né’”, conta Luciano. Ele coisa. Não é mais um luxo, é uma neces- construir esse idoso.”
percebeu uma grande diferença na auto- sidade”, conclui Luciano.
estima de seus alunos, que saem das au- Cursos, oficinas e palestras
las mais confiantes e com um brilho nos O novo idoso
olhos por ter aprendido algo novo. O NETI oferece gratuitamente cursos, oficinas e palestras que en-
De acordo com o estudo desenvolvido na Estar conectado é uma necessidade que volvem o idoso no mundo digital. As oficinas duram em média de
Universidade de Berna, na Suíça, e publica- surgiu como parte de uma pressão social, quatro a oito encontros e a entrada é livre.
do em 2018, a autoestima cresce e se esta- que vê o idoso como ultrapassado, fora das
biliza dos 4 aos 70 anos, quando a mesma tendências do mundo moderno. “Uma vez Onde Av. Desembargador Vitor Lima, 145 • UFSC • Florianópolis
começa a declinar. Segundo os pesquisa- me perguntaram: ‘Jacira, tu não tens Face- Contato (48) 3721-6198
dores, esse declínio acontece por conta de book?’ E eu respondi: ‘não tenho’. E me in- Facebook www.facebook.com/netiufsc
perdas familiares e do próprio status so- dagaram de volta: ‘como assim tu não tens?
cial. O fato dos idosos de hoje conseguirem Todo mundo tem’. Naquela hora eu me senti A escola de informática Era Conectada oferece cursos para auxi-
realizar tarefas, como pedir carona em um muito diminuída, excluída. Hoje se tu não liar o idoso a utilizar computador, laptop e smartphone. O curso de
aplicativo ou fazer compras e pagamentos estás no mundo digital, tu não vives ou vi- smartphone é composto por seis aulas, duas vezes por semana,
pela Internet, gera não apenas qualidade ves com muitas dificuldades”, relata a alu- cada aula com 2 h de duração.
de vida, mas também autonomia. na do NETI, Maria Jacira Moura, de 67 anos.
Percebendo essa necessidade da inclu- Segundo dados do IBGE divulgados em Onde Rua Jerônimo Coelho, 383 • Sala 802 • Centro • Florianópolis
são digital de idosos, o Núcleo de Estudos 2018, a expectativa de vida do brasileiro é Contato (48) 98824-0869 (WhatsApp) • (48) 3209-7222
da Terceira Idade (NETI) da Universidade de 76 anos, sendo até maior em alguns es- Facebook www.facebook.com/melhoridadeconectadaoficial

MAIO 2019 | N. 1 | ANO 38 | | 13


E SPORTE TEXTO POR TATIANE BORGES
tatibfranca@gmail.com

Hábito de correr
FOTOS POR LUIZA MONTEIRO
monteiroaluiza98@gmail.com

cresce no país
Além de benefícios físicos e mentais, corrida é
sinônimo de liberdade, energia e força de vontade

C
om a ponte Hercílio Luz jam alimentares ou de excesso de treinos ca pilates, faz academia e pedala, sempre Acima:
e o mar como cenário e pouco descanso, é uma preocupação de procurando melhorar sua performance Não importa se são 5
todas as idades, mas correr como estilo de na corrida, esporte em que finalmente se km, 10 km, ou 42 km,
ao fundo, pelo menos vida, como hábito saudável, todo mundo encontrou. “A corrida pra mim serve como a corrida é uma prática
três vezes por semana, pode e deve”, destaca Bruno Cardoso, espe- uma meditação, serve para me conectar. que ativa o corpo. É
às 7h, Maria Zilene Car- cialista em medicina esportiva. Quando estou correndo, esqueço de tudo ou preciso disposição e
Uma dica que Zilene e Isabel deixam procuro soluções para meus problemas.” preparo para tornar esse
doso, 63 anos, administradora do para quem está começando, além de ter O engenheiro cartógrafo e agrimensor, esporte um hábito. Na
museu Palácio Cruz e Souza, e Isa- disciplina e persistência, é procurar uma Julio Destre, de 26 anos, já correu cinco Beira-Mar Continental,
assessoria esportiva, para ter acompa- maratonas: três em Curitiba e duas em
bel Cristina de Jesus Rodrigues, 64 nhamento adequado e evitar se lesionar São Paulo - e, ao contrário de Carolina,
é comum encontrar
corredores, como
anos, perita criminal aposentada, ao praticar exercício errado. nunca procurou ajuda de assessoria. Mas Isabel, que se exercitam
correm pela Beira-Mar Continental, “Quando a gente começa a correr, a mo- a recomendação é de que os futuros corre- logo pela manhã.
tivação e o ganho de condicionamento fí- dores antes se consultem pelo menos com
em Florianópolis. As amigas já trei- sico e aeróbico ocorrem muito mais rápido um médico. “A chance de a pessoa que dis-
nam juntas há 10 anos. do que as adaptações de nossas articula- pensa o assessor esportivo se machucar é
ções, tendões e músculos”, alerta Bruno. muito grande”, observa o médico Bruno.
Antes de se aposentar, Zilene não tinha Por ser uma modalidade esportiva livre, O engenheiro correu a primeira mara-
tempo para cuidar do corpo e da saúde. progressiva à caminhada, é comum que as tona apenas dois meses depois de parti-
Com a aposentadoria, em 2009, ela conse- pessoas não se atentem para as questões cipar da primeira prova de curta distân-
guiu dar mais atenção a sua qualidade de de saúde antes de iniciar a corrida de rua. cia, e confessa ter errado no treinamento.
vida e, com auxílio de um educador físico, Por isso é importante que o atleta visite seu “Durante esses dois meses corria religio-
a corrida entrou em sua rotina. Agora diz médico para se certificar de que pode co- samente, logo passei de 30 minutos por
que virou um vício. “O corpo pede, se você meçar o exercício sem problemas. dia para 1h, 1h30, aumentei muito drasti-
deixa de fazer você fica mal, o corpo exi- camente, o que ocasionou uma lesão.”
ge que você faça algum tipo de atividade”, Correr sozinho ou com assessoria? Desde então, ele já correu mais de 30
ressalta Zilene. provas (de curta distância, meia marato-
Para Isabel, a primeira experiência com A educadora física Ana Cláudia Maria de na e maratona), mas agora com treinos
a corrida surgiu mais cedo, em 1982, du- Jesus Rodrigues, conhecida como Cacá, téc- adequados. Atualmente está se prepa-
rante um teste de capacidade física para se nica certificada pela Federação Internacio- rando para correr novamente as marato-
tornar perita criminal, quando ainda mo- nal de Atletismo (IAAF), aponta que o erro nas de São Paulo, em maio, e de Curitiba,
rava em Itajaí. Depois que se mudou para mais comum de quem está começando é em novembro. Seu treino é de 45 minu-
Florianópolis, acabou perdendo a compa- não procurar um profissional especializa- tos a 1h, em dias alternados, seguindo as
nhia na corrida e isso a fez parar. Em 2009, do para as orientações. “Tem muitos que planilhas disponíveis na internet, além
por estímulo dos amigos da academia onde olham na internet planilhas de treinos, só de frequentar academia para fortalecer
malhava, voltou a treinar para participar que cada pessoa é diferente”, ressalta Cacá. a musculatura.
de uma prova. “Do nosso grupo [da acade- Para a jornalista esportiva Carolina Co-
mia], eu me saí melhorzinha, aí botaram razza, de 25 anos, a ajuda das assessorias Floripa Road Runners
pilha e eu continuei”, destaca Isabel. “Ela esportivas foi fundamental para que ela
sempre se sai melhor, sempre pega pódio”, começasse a correr. O designer gráfico Geraldo Protta, 40
interrompe Zilene e reforça que a compa- Além de ajudar quem está começan- anos, desenvolveu um projeto para pro-
nhia também é importante para ela. “A do, as assessorias também apoiam quem mover a corrida de rua na Grande Floria-
gente faz muitos amigos. Tudo é motivo já pratica o esporte. São responsáveis por nópolis. Geraldo se inspirou no New York
pra comemoração.” realizar acompanhamento personaliza- Runners, uma organização sem fins lu-
Com mais de 30 provas realizadas, as do com profissionais de educação física, crativos, criada em 1958, em que as pes-
duas já se preparam para a próxima, que planejando e aplicando programas de soas combinavam de se encontrar no
irá acontecer em junho, em Itajaí: a cor- treinamento focado nos objetivos e nas Central Park para fazer uma corrida de
rida Brisas só para Mulheres. A meta de condições físicas de cada corredor. Nes- última hora (parecido com os flash mob).
cada uma é diferente: para Zilene, o ob- sa assistência, os educadores físicos cor- O Floripa Road Runners auxilia quem
jetivo é terminar bem a prova. Já Isabel, rigem erros comuns, principalmente de está começando e quem já está nesse es-
mais competitiva, quer baixar seu tempo. quem está começando, e ajudam a evitar porte, orienta como procurar as assesso-
A corrida, além de ser um esporte demo- lesões que podem ser geradas pela corrida. rias esportivas mais próximas, marcar
crático por não precisar de muitos investi- Quem vê a jornalista hoje não imagina encontros para correr em grupo, divulgar
mentos iniciais, é contraindicada apenas que há quase dois anos ela não praticava provas que acontecem durante o ano na
para pessoas que sofrem de problemas car- nenhuma atividade física. Tudo começou cidade e até mesmo promover atletas que
díacos ou possuem outro tipo de patologia em 2017, quando foi desafiada ao vivo por precisam de apoio.
(problemas articulares, por exemplo). Pode um educador físico de uma assessoria de Geraldo considera o esporte bastante
ser praticada por crianças e idosos, desde Florianópolis no programa de rádio que motivador. “É um meio onde todo mun-
que acompanhados por um profissional. apresentava. “Ele falou que eu conseguiria do incentiva todo mundo, já vi gente cair
“Correr e fazer parte de programas de trei- em três meses correr 30 minutos.” na prova e quem estava do lado ajudar
namento de alta intensidade de maneira Hoje, além de correr três vezes por se- e falar: ‘vamos juntos até o final’ - isso
competitiva, com algumas restrições, se- mana de 45 minutos a 1h, Carolina prati- é a corrida.”

14 | | ANO 38 | N. 1| MAIO 2019


S OCIEDADE TEXTO POR YEDA TEIXEIRA
yeteixeira04v@gmail.com
FOTO POR LUNA MARIAH ZUNINO
luna.mariah@hotmail.com

Manifestantes pedem
fim de racismo institucional
J
ovem negro de 19 anos, Acima: “Que viva a luta
Vitor Henrique Xavier Sil- do meu povo preto,
va Santos “tinha o sonho de norte a sul e no
país inteiro.” O grito
de ser policial”, conta a ecoado durante boa
irmã Vivian da Silva San- parte do ato revela um
tos. Na quinta-feira, 18 de abril, ele problema estrutural
brincava com uma arma de pressão no sistema brasileiro:
os assassinados são
no quintal da casa, onde morava vítimas de racismo
com os pais, no bairro dos Ingle- institucional.
ses, norte de Florianópolis, quando
foi surpreendido por dois policiais À esquerda: “O último
militares que atiraram contra ele. A suspiro do Vitor foi nos
meus braços”, relata
PM, em nota oficial, ressaltou que a irmã Vivian da Silva
“as circunstâncias dos fatos serão Santos, 22 anos. Os
investigadas e apuradas”. policiais envolvidos no
caso afirmaram que
Na mesma semana, outras duas situações Vitor havia apontado a
já haviam chamado a atenção para a violên- arma na direção deles.
cia em abordagens policiais. No domingo, “A gente sabe que ele
14, um vídeo que circulou nas redes sociais não fez isso. Imagina,
mostrou uma rapper desmaiando ao receber você ter o sonho de
um mata-leão de um policial militar, próxi- ser policial e apontar a
mo à Universidade Federal de Santa Catarina arma pra eles. Não tem
(UFSC). A abordagem ocorreu após um policial explicação!”, conta.
à paisana ser questionado por estar armado.
Dois dias antes do assassinato de Vitor, um
trabalhador senegalês foi detido com violên-
cia na região central de Florianópolis. A situa-

“Viva a luta
ção também foi filmada e divulgada nas redes
sociais. No vídeo, policiais da Guarda Munici-
pal apontam uma arma de bala de borracha
para a população que se revoltou com a força
excessiva usada contra o imigrante. As ações
violentas por parte da polícia desencadearam
a “Marcha contra a violência policial, em de- do meu povo preto de norte
fesa de direitos e pela democracia”, realizada
na quinta-feira, 25, no centro da cidade. a sul e no país inteiro”
MAIO 2019 | N. 1 | ANO 38 | | 15
Acima: Os policiais
militares que mataram o
jovem usaram máscara
durante toda a ocorrência.
Juliana Venciguerra, 19
anos, amiga próxima de
Vitor, contou que eles
continuaram a agir
de modo abusivo, mesmo
depois de atirar. “Eles
tomaram o celular da mão
da Vivian e não deixaram
chamar o SAMU”.

À esquerda: Duas Abaixo: Outros casos


viaturas da Guarda ocorridos no país
Municipal e uma da Polícia foram relembrados.
Militar acompanharam Nos caixões, os
a manifestação. De manifestantes
acordo com o Fórum colocaram a foto do
Nacional de Segurança menino Marcos Vinícius
Pública, entre 2015 e da Silva, 14 anos, morto
2016, mais de 75% das durante operação
pessoas assassinadas policial no Complexo da
durante intervenções Maré e o caso do músico
policiais eram negras. O Evaldo Rosa e do catador
mesmo recorte vale para de recicláveis Luciano
os policiais negros, que Macedo, ambos vítimas
dentro das corporações de 80 tiros disparados
representam 56% dos pelo Exército no
assassinados. Rio de Janeiro.

16 | | ANO 38 | N. 1 | MAIO 2019

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