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CURSO DE JORNALISMO DA UFSC - FLORIANÓPOLIS, DEZEMBRO DE 2016 - ANO XXXV, NÚMERO 7

ABORTO
O dilema ético, religioso e
científico sobre a interrupção
voluntária da gravidez
Páginas 8 e 9

Internet Intolerância Rafael Vilela


Especialista Rodrigo Salvo Casos de discriminação como o Fotógrafo da Mídia Ninja discute o
explica o que fazer para ficar racismo vêm crescendo dentro do papel do jornalismo na conjuntura
protegido nas redes socias Pág 6 ambiente universitário Pág 11 política atual Págs 12 e 13
EDITORIAL

A
produção desta edição do Zero foi bastante complica- versidade. Tem também uma entrevista com um repórter da
da. Em meio a tragédia da Chapecoense e ocupações na Mídia Ninja sobre o papel do jornalismo independente na atual
UFSC, a equipe do jornal se desdobrou para fazer esse conjuntura. Na editoria de cultura, relatamos a experiência da
JORNAL LABORATÓRIO ZERO
número. Foram semanas sem aulas, o que impactou nas maté- Sociedade Histórica Destherrense, que simula a vida de outros Ano XXXV - Nº 7
rias. Desde a suspensão das disciplinas em 16 de novembro até tempos, e contamos como a moda do rock para mulheres cres- Novembro de 2016
a volta das atividades em 1º de dezembro, as pautas do jornal ce em Florianópolis. Boa Leitura!
ficaram em stand by. No retorno dos trabalhos, a equipe reuniu PARTICIPE!
todos os esforços para a conclusão das reportagens dentro do Mande críticas, sugestões e comentários:
curto prazo que restou. O resultado você confere nesta ediçã ERRAMOS: Na reportagem de capa “Lixo marinho afeta saúde zeroufsc@gmail.com
(48) 3721-4833
Assim, o Zero está dividido nas seguintes editorias: tecno- da população”, ano XXXV, nº 6, o Zero errou ao afirmar que “os /jornalzero
logia; saúde; política; e cultura. Em relação à tecnologia, você sintomas citados pelo surfista não caracterizam virose, e sim uma @zeroufsc
confere uma reportagem sobre fontes renováveis de energia, contaminação por toxinas de microalgas (cianobactérias)”. Se- Departamento de Jornalismo - Centro de
Comunicação e Expressão, UFSC, Trindade,
outra sobre o vírus Ransomware e um guia para se proteger na gundo a bióloga Bianca Vetoratto, citada na afirmação acima, se- Florianópolis (SC) - CEP: 88040-900
internet. Em saúde, está a nossa matéria de capa, sobre aborto. riam necessários exames laboratoriais para confirmar a situação.
A relevância do assunto fala por si. Também falamos de dieta Da mesma forma, não é possível confirmar que a contaminação
sem glúten e saúde mental. foi por cianobactérias, apenas por microalgas. O tipo exato preci- 3º melhor Jornal-Laboratório do Brasil
No espaço dedicado à política, o Zero se volta para a UFSC saria ser confirmado por testes laboratoriais. EXPOCOM 1994
e discute os casos de intolerância que vêm ocorrendo na uni-

Melhor Jornal Laboratório - I Prêmio Foca


OMBUDSMAN Sindicato dos Jornalistas de SC 2000

que há algumas observações que julgo E se a proposta desta coluna é dis-


ser pertinentes para contribuir com a cutir as vozes ouvidas para a edição
Melhor Jornal-Laboratório
avaliação sobre esta edição. de outubro do Zero, a reportagem EXPOCOM SUL 2015
A matéria central, sobre a questão sobre os músicos - youtubers mostra
do lixo marinho, foi bem trabalhada como a pluralidade pode ser rica. O
ainda que poderia ter explorado mais a que não se viu, por exemplo, quan- Melhor Jornal-Laboratório do Brasil
negligência do poder público por meio do foram abordadas as histórias dos EXPOCOM 2015
do discurso de defesa dos atores en- autistas. Faltou a voz de um especia-
volvidos. Será que aumentar o horário lista que pudesse contribuir para o
de coleta de lixo nas praias durante a debate, uma vez que compreender a Melhor Peça Gráfica
temporada de verão é suficiente, por condição, suas origens e abordagens Set Universitário / PUC-RS
exemplo? A reportagem mostra que torna mais fácil a tarefa de quebrar 1988, 1989, 1990, 1991, 1992 e 1998
não. Mas qual é o argumento das auto- estereótipos e promover a inclusão
ridades para não implementar outras dos autistas. EQUIPE
Luiza Bodenmüller é formada medidas para mitigar o problema? Por fim, a pauta com o desafio de Ana Carolina Inácio, Ana Carolina
pela Faculdade Estácio de Sá de San- O mesmo descompasso de vozes ficar 15 dias sem produtos que uti- Prieto, Camila Valgas, Daniel da Silva,
ta Catarina e especialista em Polí- pode ser percebido na matéria sobre lizem trabalho escravo em sua ca- Débora Nazário, Fernanda Mueller,
tica e Relações Internacionais pela as demolições de edificações em APPs. deia produtiva tem sua relevância Fernanda Struecker, Fernando Lisbôa,
FESPSP. Foi editora online na Agên- O tema, como o próprio texto revela, é no atual contexto, em que boa parte Francielle Cecília, Giulia Gaia, Gustavo
cia Pública de Reportagem e Jornalis- polêmico, e por isso a importância de do que consumimos está atrelado a Falluh, Kamylla Silva, Luiza Giombelli,
Mateus Mognon, Monique Souza, Neri
mo Investigativo, editora de blogs no dar o mesmo peso a ambos os lados do alguma empresa que se utiliza de tal
Neto, Omar Niekiforuk, Pedro Cureau,
HuffPost Brasil, consultora de comuni- imbróglio. Ao abordar a disputa judi- mão de obra. Dito isso, fizeram falta Rodrigo Rocha, Sarah Soares e Tamy
cação na Rede Justiça Criminal e rela- cial em torno dos beach clubs, optou- as contribuições da Repórter Bra- Dassoler
ções externas no Centro de Referência se por publicar apenas uma frase do sil, ONG referência no país sobre o
para Refugiados. representante da AJIN, enquanto que tema, que tem diversas publicações
aqueles que se posicionam contrários sobre trabalho escravo, em especial DIAGRAMAÇÃO
Omar Niekiforuk, Rodrigo Rocha e
O Zero de outubro é um exemplo às demolições ocuparam praticamen- no setor têxtil e alimentar. Ainda
Ronaldo Fontana
de bom jornalismo. Os eventuais er- te uma coluna inteira. Dessa forma, o assim, no todo, o Zero de outubro
ros de revisão e deslizes menores no texto passa a impressão de que os re- mostrou uma boa qualidade de tex-
desenvolvimento das reportagens não pórteres escolheram um lado – e tal- tos e um encadeamento coeso de EDIÇÃO
foram capazes de eclipsar a qualidade vez o mais questionável – do debate o pautas, condizentes com o status de Anna Paula Silva, Carlos Henrique
das pautas e dos textos apresentados que, quando o assunto é polêmico, não referência adquirido pelo jornal ao Costa e Eduardo Garcia Alves
pelos quase-focas. No entanto, penso é a melhor solução. longo dos anos.
CAPA
Foto: Francielle Cecília
CRÔNICA
PROFESSORES RESPONSÁVEIS
Estrela Chapecoense POR EDUARDO GARCIA ALVES Janara Nicoletti
SC 02957 JP
Frederico S. M. de Carvalho
Futebol: esporte no qual vinte e dois jogadores, divididos tantes pronto para desbravar lugares nunca antes imaginados SC 01787 JP
em duas equipes, esforçam-se para fazer entrar uma bola na e enfrentando com muita honra gigantes cada vez maiores, se
baliza adversária. Mas futebol é só isso? Certamente não, fute- tornando mais forte a cada dia. MONITORIA
bol não é só uma modalidade. Futebol é mais, é tudo. Há quem Tal força levou a Chape até a final da Copa Sul-Americana, Gisele Flôres e Michel Gomes
diga até que o futebol é uma religião. Quem nunca rezou de derrotando Independiente e San Lorenzo, clubes argentinos
joelhos para seu time ganhar um título ou para não cair de di- que já foram donos da América. Na final, teria como adver- IMPRESSÃO
visão que atire a primeira pedra. E quantas vezes isso funcio- sário nada menos que o atual campeão da Libertadores, o Gráfica Grafinorte
nou? Não há dúvidas que alguém lá em cima gosta do esporte. Atlético Nacional (COL). E logo no maior feito de sua história,
Mesmo parecendo já ter conquistado o mundo, os deuses quiseram os deuses do futebol nos pregar uma peça. A Cha- TIRAGEM
4 mil exemplares
do futebol mostram querer ainda mais. De Leicester a Cha- pecoense estava voando cada vez mais alto até que decidiram
pecó, cidades que antes não tinham expressão na modalida- lhe dar asas não para colocar mais uma estrela no escudo, mas DISTRIBUIÇÃO
de ganharam seu devido espaço no mundo da bola na última transformar esse clube em uma. Agora, quando nossos times Nacional
temporada e mostram cada vez mais que o esporte pode sur- estiverem precisando de ajuda, serão os jogadores da Chape
preender até os mais céticos. que nos ouvirão. Não oramos mais por eles, e sim para eles. FECHAMENTO
A bola da vez era a Chapecoense, clube do oeste de Santa Uma pena o mundo não poder assistir a Chapecoense no 22 de dezembro
Catarina com menos de 50 anos de história. Mas que história! maior salto de sua história. Uma pena o futebol brasileiro per-
Para quem não acompanha muito, o clube mais parecia escre- der um de seus filhos mais queridos. Uma pena as lágrimas de
ver um roteiro de filme. Um desconhecido vindo de terras dis- seus torcedores não serem mais de alegria.

2 • DEZEMBRO| 2016
SUSTENTABILIDADE

Fontes renováveis como moeda de troca Fabio Tarnapolsky/Zero

Geração distribuída permite empréstimo de


energia excedente produzida por consumidor

F
ontes de energia estão entre os mero passe para mil. As pessoas já estão
temas mais debatidos quando aceitando os preços iniciais para arris-
o assunto é sustentabilidade carem no projeto”, explica Márcio Lau-
pelo seu alto movimento de ter, um dos coordenadores do projeto.
mercado. Nas conversas, sur- O custo inicial, sem descontos, vai de
gem novas formas de produção e co- aproximadamente R$ 1 mil em um pai-
mercialização, uma delas é a geração nel, até R$ 50 mil em um gerador solar
distribuída (GD), o método que dá auto- completo. O preço dos equipamentos
nomia aos consumidores de eletricida- para geração de energia solar vem dimi-
de para que produzam a própria ener- nuindo com o crescimento no número
gia. Nela, as fontes mais presentes são de fabricantes de painéis fotovoltaicos.
as renováveis e a mais viável é a solar, O incentivo e a criação de projetos do
criada através de painéis fotovoltaicos. tipo foram permitidos pela Resolução
Na geração distribuída, quem con- Normativa nº 482/2012 da Agência Na-
some energia pode gerá-la em sua re- cional de Energia Elétrica (Aneel), que
sidência e vender o excedente da pro- estabeleceu o Sistema de Compensação
dução para as empresas distribuidoras. de Energia Elétrica para acesso de mi-
Em Santa Catarina, foi criado pela Ce- cro e minigeração distribuída no Brasil. Roberto Francisco Coelho é engenheiro elétrico e trabalha com painéis fotovoltaicos
lesc um projeto que incentiva o uso A potência instalada pela GD em
desse método. É o programa Bônus Fo- Santa Catarina é de 5842 quilowatts e
tovoltaico, que tem como objetivo cus- a região tem o maior índice per capi- “A MICROGERAÇÃO FUNCIONA POR MEIO
tear 60% da instalação dos painéis de ta de uso de energia solar, além de ser
energia solar nas casas dos moradores um dos cinco estados que vão oferecer DA COMPENSAÇÃO DE ENERGIA, QUANDO O
interessados em participar. Esses dis- desconto no Imposto sobre Circulação
positivos são os necessários para o uso de Mercadorias e Serviços (ICMS), para CONSUMIDOR INSTALA UMA FONTE EM CASA”
da geração distribuída. Compostos por incentivar os moradores a usarem os
células que captam a luz do sol e a con- sistemas alternativos de eletricidade. sas que produzem esse tipo de equipa- é pouco explorado, o que se busca é a
vertem em eletricidade, costumam ser Roberto Francisco Coelho, é forma- mento, embora nós já dominássemos a diversificação das matrizes energéticas.
usados por empresas e organizações do em engenharia elétrica foi um dos tecnologia em laboratório”. A energia eólica é um dos tipos pou-
que buscam as fontes renováveis para pesquisadores do Centro de Energias A microgeração, segundo Coelho, é co usados no país que se encaixam no
geração de energia. Os pré-requisitos Renováveis (CES) da fundação CERTI aquela que se baseia na compensação método da geração distribuída e que
para inscrição são: estar em dia finan- e atualmente desenvolve trabalhos de de energia, isso funciona quando o con- podem variar o cenário das fontes re-
ceiramente com a Celesc e ter um con- pesquisa junto ao Instituto de Eletrô- sumidor instala na sua casa uma fonte, nováveis do país. Ela consiste em gerar
sumo médio superior a 350 quilowatts nica de Potência (INEP), onde traba- para se tornar autônomo e não consu- eletricidade através da força dos ven-
nos últimos 12 meses. lha com o processamento de energia mir mais da concessionária. É nesses tos, muito comum na Europa. Segun-
Mas por que a divulgação desse pro- fotovoltaica desde 1994. O especialista casos que entram os painéis fotovol- do Roberto Francisco Coelho, a eólica
grama? É que ele vai seguir à risca o comenta que a resolução normativa taicos, que agora são vendidos para o “é pouco utilizada, o país tem grandes
conceito do método de produção em 482/2012 possibilitou uma mudança na público e despontam no mercado. Para regiões com ventos intensos que dão
casa. As pessoas vão usar os painéis, produção do país. “Nós costumamos o pesquisador, o investimento se paga condições para produzir essa energia
produzir sua própria energia ao longo desenvolver sistemas que processam entre seis a oito anos, pela economia e dela extrair uma boa potência. Te-
do ano e o que sobrar de excedente será energia geradas por fontes renováveis, das faturas de energia elétrica. mos que tomar cuidado também com
injetado no sistema elétrico catarinen- fazemos isso antes da 482, mas a par- o tipo de ambiente onde ela será ins-
se, uma parceria consumidor-institui- tir dela que passamos a trabalhar mais Debate antigo talada, ventos turbulentos geralmente
ção. “A gente acompanha mensalmente fortemente com os inversores, que são Entre os dias 26 de agosto e 4 de se- acontecem nas grandes cidades, nesse
a quantidade de sistemas e vemos que dispositivos para fazer interface entre a tembro de 2002 foi realizada no Rio de caso o uso de ventiladores eólicos não
está aumentando. Atualmente temos 350 fonte renovável e a rede elétrica. O Bra- Janeiro a conferência Rio +10, ou Cúpula se torna favorável”. Apesar da possibi-
unidades e a expectativa é que esse nú- sil recentemente começou a ter empre- Mundial sobre Desenvolvimento Sus- lidade de se construir microgeradores,
Rodrigo Rocha/Zero tentável, conhecida como Earth Summit esse tipo de fonte ainda não é o prin-
em países de língua inglesa. O objetivo cipal tema da Geração Distribuída, já
GERAÇÃO DISTRIBUÍDA EM SANTA CATARINA principal do encontro foi discutir so- que se encaixam mais em produtores
luções propostas na Agenda 21 (Rio 92) de maior potência, como grandes em-
e aplicá-las, de forma coerente, pelos presas. O potencial da GD é, de fato,
- Potência instalada por tipo de energia governos e cidadãos. Dentre os assun- concentrado na energia solar e nos
tos debatidos, um deles era a energia, painéis fotovoltaicos.
mas as conversas não avançaram. A As fontes renováveis e sustentá-
Fotovoltaica 42.890 quilowatts problemática era sobre o esgotamento veis fazem parte dos temas debatidos
das reservas de combustível fóssil e o mundialmente para um desenvolvi-
uso de fontes renováveis para substituí- mento sustentável. A utilização da ge-
Eólica 159 quilowatts -las. Devido às dificuldades dos países ração distribuída é um dos principais
emergentes em usarem esse método, a incentivos para que o Brasil, país tão
discussão parou em apenas citações de atuante na matriz alternativa, avance
Biomassa 6.000 quilowatts exemplos. Foi a primeira vez em que isso cada vez nas pesquisas e descobertas
foi debatido no país. A matriz energéti- de métodos, para que as energias se-
ca brasileira é baseada nas hidrelétricas, jam utilizadas de forma inteligente.
Biogás 3.367 quilowatts tipo de fonte que gera polêmica pelos Por quem as consome, produz, ou os
problemas causados nas construções dois ao mesmo tempo.
de usinas, como Belo Monte. O Brasil
Fonte: Márcio Lauter, coordenador do projeto Bônus Fotovoltaico da Celesc tem potencial para a produção de ou- Fabio Tarnapolsky
tras fontes renováveis, mas o território ftarna@gmail.com

DEZEMBRO | 2016 • 3
CHANTAGEM VIRTUAL

Malware sequestra dados e pede resgate


Ransomware é usado por criminosos para roubar dinheiro de empresas e órgãos públicos

H
Mateus Mognon/Zero
enrique Kühr chegava para mais um
dia de trabalho como assistente finan-
ceiro em um hotel de Florianópolis.
Seus colegas executavam suas ativida-
des sem preocupações, mas algo estava
errado: ele não conseguia acessar diversos arquivos
em seu computador. Pesquisou uma solução rápida
na internet e descobriu que podia se tratar de um
vírus.
O diagnóstico foi confirmado após a equipe de
Tecnologia de Informação (TI) constatar que outras
máquinas estavam com o mesmo problema e exi-
biam uma janela pedindo uma quantia de dinhei-
ro para liberar os dados. Graças a alguns cliques
descuidados de um dos funcionários, o sistema de
computadores da empresa foi sequestrado por um
hacker utilizando o ransomware, um malware que
cresceu em 2016 e vem gerando prejuízos.
A tradução do nome já diz tudo: ransom significa
“resgate” em inglês. Já o sufixo malware é atribuído
a todo programa utilizado para infectar computa-
dores. Em outras palavras, é um software malicio-
so usado para sequestrar dados e pedir resgate em
dinheiro. Os métodos mais utilizados são os e-mails sensacionalistas e sites com baixo nível de segurança, como os de pirataria
Segundo Marcus Almeida, especialista de segu-
rança online, os ransomwares são desenvolvidos também se aproveitam de deficiências na seguran- próprio hacker acaba eliminando a chave que abria
desde a época do antigo sistema da Microsoft MS- ça dos sistemas. “Para empresas, o método mais os arquivos do sistema”.
DOS, no início dos anos 1990. Os hackers que usa- utilizado atualmente para infectar computadores
vam o vírus tinham como alvo grandes empresas, são as falhas em serviços remotos, que permitem Crescimento e “mercado” obscuro do Ransomware
que podiam pagar resgates milionários pelos seus controlar computadores à distância. Os cibercri- Em questão de números, o principal sistema
arquivos. Porém, nos últimos anos, o vírus se popu- minosos também estão adotando novas técnicas de operacional atingido pelo ransomware é o Windows,
larizou e começou a ser utilizado não apenas contra proliferação do ransomware, como vulnerabilidades que está presente em mais de 80% dos computadores
multinacionais, mas também pequenas e médias em Java e Flash. Já relatamos até um ataque onde o no mundo. Porém, a família de vírus também já
empresas, serviços públicos e até usuários comuns vírus chegou ao computador via arquivo PDF”, co- chegou no Linux e também no Mac, utilizado nos
de internet. menta o especialista de segurança, Fabio Assolini. computadores da Apple. O primeiro grande ataque
Além de torná-lo mais abrangente, também dei- No caso das empresas, também existe a possi- massivo que ocorreu no sistema operacional da
xaram este tipo de ataque maior e mais complexo, bilidade de uma sabotagem interna. Como o vírus fabricante de iPhones aconteceu em março de 2016,
com mais variantes do vírus, desde arquivos sim- precisa ser instalado, um funcionário descontente quando uma falha de segurança permitiu que um
ples até malwares difíceis de serem combatidos. pode acabar colocando-o no sistema proposital- ransomware fosse disponibilizado para download no
mente. “Um profissional insatisfeito lugar de um popular programa de torrents do Mac,
pode acabar divulgando informações software permite baixar filmes e séries piratas de
“NO PRIMEIRO TRIMESTRE DESSE ANO, sigilosas ou vazar dados relacionados graça na internet.
ao planejamento estratégico”, aponta Os dispositivos móveis também não escapam
O NÚMERO DE CASOS SUBIU 30% DO Paulo Silva, especialista de segurança dos ransomwares. Em 2016, a empresa de seguran-
da informação da Tracker Consulto- ça Symantec registrou uma onda de ataques de
QUE NO MESMO PERÍODO EM 2015” ria. ransomware da família Android.Lockdroid, feita
Quando instalado no sistema ope- especialmente para Android, sistema operacional
“Os primeiros ataques eram mais fáceis de serem racional, os arquivos são criptografados com cha-
corrigidos. Atualmente estão muito mais sofistica- ves de cifragem altas, normalmente entre 1048 e
dos. Muitas vezes, os códigos criados pelos hackers
para desbloquear o sistema têm mais de cem dí-
4096 bits, dificultando o trabalho das equipes de TI.
Junto com o acesso aos arquivos negado, o software
Como se proteger
gitos, praticamente impossível de ser descoberto”,
explica Almeida.
malicioso também abre uma janela onde exige pa-
gamento para que o conteúdo seja desbloqueado.
do Ransomware?
Normalmente, os cibercriminosos pedem o “res-
Não clique em links suspeitos na internet
Como funciona o ataque gate” em bitcoin, uma moeda digital criptografada
Apesar de bastante complexo, o meio mais uti- e que não pode ser rastreada como cédulas de di-
Não instale aplicativos e programas de
lizado para espalhar o vírus é antigo: os e-mails. nheiro convencionais.
fontes desconhecidas
Os hackers espalham mensagens sensacionalistas É unanimidade entre os especialistas em segu-
que atiçam a curiosidade pela internet para tentar rança a recomendação de que as vítimas não efe-
Sempre tenha um antivírus nos seu
pegar as vítimas. “Eles procuram plataformas com tuem pagamentos quando atacadas, pois assim só
dispositivos
longo alcance para disseminar o vírus e atingir o estão alimentando esse tipo de golpe. Além disso,
máximo de alvos possíveis. Quando o ataque é pul- o cibercriminoso não dá nenhuma garantia de que
Caso seja vítima, procure na internet a
verizado, a probabilidade do cibercriminoso ter su- realmente desbloqueará os arquivos. Em alguns
No More Ransom, iniciativa criada por presas
cesso é maior”, explica o engenheiro de segurança casos, como explica Fabio Assolini, nem mesmo o
de segurança que traz dicas de como lidar com
Nelson Barbosa. hacker consegue descriptografar os arquivos se-
este ataque
Além do tradicional e-mail, outra forma comum questrados pelo software malicioso. “O número
de infectar usuários são sites falsos ou de baixa se- de criminosos amadores está aumentando. Exis-
Antes de cogitar pagar o resgate, procure
gurança, como plataformas de pirataria. Quando tem famílias de ransomware com chaves de cifra-
a polícia e faça um boletim de ocorrência
utilizado para atacar corporações ou serviços pú- gem tão mal programadas que a recuperação dos
blicos – como prefeituras e hospitais –, os hackers arquivos é impossível. Na hora de criar o vírus, o

4 • DEZEMBRO | 2016
Paulo Silva/Divulgação
do Google que é o mais utilizado em smartphones Em parceria com a Tracker Consultoria, a Associa-
mundialmente. O vírus bloqueia a tela do celular e, ção Catarinense de Empresas de Tecnologia (Acate)
em seguida, abre uma janela onde explica que, para oferece constantemente cursos preparatórios e pa-
desbloquear os arquivos do aparelho, a vítima deve lestras sobre segurança online, com o objetivo de di-
entrar em contato com o hacker para fechar uma minuir a incidência de prejuízos. “Nestes encontros,
acordo por meio de um serviço de mensagens do falamos sobre atitudes para manter os dados a salvo e
próprio malware. como as companhias devem agir para se protegerem
Além do crescimento no número de plataformas e ou resolverem situações que as exponham”, conta Sil-
nos meios de infecção, o vírus também se espalhou va. Ele também recomenda que as empresas contem
geograficamente, atingindo países de menor poder com um funcionário específico para segurança onli-
financeiro, incluindo o Brasil, que foi a quarta maior ne. “O primeiro passo é contar com um especialista
vítima deste tipo de ataque em 2015. “Antes, os ran- para tentar resolver de forma rápida o problema”.
somwares atacavam países desenvolvidos, mas, por Outra dica é sempre manter um backup de dados
causa da facilidade, os cibercriminosos começaram essenciais. Assim, informações vitais não serão com-
a mirar em países menores economicamente”, afir- prometidas e o pagamento do resgate nem será cogi-
ma Fabio Assolini, especialista de segurança online. tado. “Caso a companhia conte com certa estrutura
O crescimento dos ataques de ransomwares tam- de segurança de dados, o importante é resolver a si-
bém gerou um mercado que vai além dos sequestro tuação informando que o pagamento não vai ocorrer
direto de arquivos e que, consequentemente, au- e realizando uma limpeza através de antivírus. É pre-
menta ainda mais o número de ataques. O hacker ciso ainda reforçar com a equipe as ações de seguran-
conhecido como “Fakben” encontrou outra alterna- ça e relembrar as regras relacionadas a acessos para
tiva para ganhar dinheiro com o malware sequestra- evitar uma nova invasão”, orienta Silva.
dor: vendendo e alugando códigos de ransomware
para novatos no mundo do cibercrime. Prefeitura recebe novo sistema com melhorias
O negócio chamado de “Cryptolocker Service”, que na segurança online
pode ser contratado na DeepWeb, promete que qual- Como órgãos públicos são alvos constantes, a
quer pessoa possa lançar ataques do tipo, contanto equipe do Zero procurou os responsáveis pela área de
que o dono do código receba 10% dos ganhos. Se- Paulo Silva ensina empresas a se proteger de ciberataques TI da Prefeitura de Florianópolis para saber como é
gundo Assolini, esta prática é conheci- a segurança online do órgão. De acordo com o Dire-
da como sistema de afiliados e também tor de Governo Eletrônico da prefeitura, Cícero Cerri,
funciona com porta de entrada para “MUITAS VEZES, OS CÓDIGOS o órgão não teve grandes prejuízos com ataques de
novos hackers. “Neste sistema, um ransomware até o momento graças a um novo siste-
criminoso que ainda não sabe progra- CRIADOS PELOS HACKERS PARA ma implementado em 2013, o Centro de Informática
mar seu próprio malware consegue os e Automação do Estado de Santa Catarina (Ciasc),
códigos com alguém mais experiente DESBLOQUEAR O SISTEMA TÊM MAIS mais moderno e seguro. “Soubemos de tentativas de
e os dois trabalham em conjunto, di- hackers utilizando vírus com características de ran-
vidindo os lucros no final do ataque”. DE CEM DÍGITOS, PRATICAMENTE somware que foram inibidas pela tecnologia do nosso

O vírus em Florianópolis
IMPOSSÍVEL DE SER DESCOBERTO” sistema”, explicou.
Algumas estações de trabalho chegaram a ser afe-
Um dos principais setores econômi- tadas, mas os dados da administração foram protegi-
cos de Florianópolis é a tecnologia, o que faz da ca- casos e o prejuízo total causado por este tipo de ata- dos. “Computadores pessoais podem ter sido infec-
pital um ponto importante para empresas da área e, que, mas diversas empresas da Grande Florianópolis tados, mas não possuem privilégios de comunicação
também, um local cheio de alvos para ransomware. De já passaram por isso. “Em nível nacional, só no pri- para que o ataque se concretize, sendo bloqueados e
acordo com o especialista em segurança Paulo Silva, meiro trimestre deste ano, o número de casos subiu desinfectados automaticamente por nossos servido-
ainda não existem pesquisas informando o número de 30% em relação ao mesmo período de 2015”, aponta. res de segurança”.
Segundo Cerri, os investimentos em segurança
Mateus Mognon/Zero
online estão sendo bem executados e, atualmente, a
equipe está finalizando o processo de implementação
de um novo sistema que vai englobar toda a estrutu-
ra online utilizada pela prefeitura, o que inclui apro-
ximadamente 3 mil computadores, 100 servidores e
200 circuitos de fibras ópticas interligados.

Hospital Universitário adota medidas para evi-


tar ataques online
Outra vítima constante de ransomware são redes
hospitalares. Porém, o Hospital Universitário (HU)
da UFSC não entra neste padrão. Segundo Renato
Leal, coordenador de TI, o sistema nunca foi infecta-
do. “Não tivemos registro desse vírus na nossa rede.
Também não tive notícias sobre esse tipo de ataque
aqui na UFSC”.
A equipe mantém os computadores atualizados e
com softwares antivírus para se proteger de possíveis
ameaças. Além disso, o sistema do HU conta com um
filtro que impede o acesso a sites suspeitos, o que
evita a exposição a perigos online. “Trabalhamos com
um firewall que bloqueia sites maliciosos e trabalha
com as ameaças mais conhecidas”, explica Leal.
De acordo com o coordenador de TI, o hospital já
sofreu outros ataques online, mas sempre com bai-
xa periculosidade. “O máximo que aconteceu foram
poucos computadores parados. Não tivemos prejuí-
zos ou vazamento de dados”.

Mateus Mognon
mateusmognon@gmail.com

Ao invadir um sistema, os cibercriminosos criptografam todos os arquivos e depois pedem algum valor de resgate

DEZEMBRO | 2016 • 5
SEGURANÇA

Aprenda como se
Daniel Santos/Zero

proteger nas redes


Especialista em segurança online dá dicas de
como evitar ser vítima de crackers na internet

O
ex-funcionário da Agên- “avise-nos se não for você” – um me-
cia Nacional de Segu- canismo de segurança para evitar que
rança (NSA), e hoje ati- pessoas não autorizadas acessem a
vista exilado na Rússia, conta de e-mail.
Edward Snowden, assus- Por causa dessa opção, foi possí-
tou o mundo ao falar sobre a segu- vel impedir que os crackers tivessem
rança online. Segundo ele, um celular acesso a informações pessoais. Além
em qualquer lugar do planeta pode de interromper o acesso à conta, a
ser acessado por satélite e captar áu- empresa de tecnologia também dis-
dio e imagem mesmo que esteja des- ponibiliza o endereço IP (Internet
ligado. Isso traz um questionamento Protocol ou Protocolo de internet)
à sociedade moderna sobre seguran- com o local e horário de login. Assim
ça online. Até onde estamos protegi- que recebeu a mensagem comple-
dos na rede? ta informando que um computador
desconhecido entrara em sua conta,
a vítima teve acesso ao endereço de
“UMA DAS TÉCNICAS IP e o local de acesso do cracker. “Eu
UTILIZADAS PARA fiquei nervosa, porque guardo do-
cumentos importantes como cópias Malena Wilbert se surpreendeu quando percebeu que sua conta havia sido hackeada
PEGAR SENHAS digitais de documentos e outras in-
formações pessoais no Drive. E daí tidade de quem está do outro lado. de um site falso. Ainda, ela pode ter
DE CONTAS É A eles já estavam tentando entrar no
meu Facebook, mas eu já tava ligada,
Muita gente usa dados óbvios para
senhas, como data de aniversário ou
baixado algum arquivo malicioso,
que pegou os dados do seu compu-
ENGENHARIA SOCIAL” já tava com o IP deles na mão”. coisas do gênero, e assim é muito fá- tador. Para se proteger nesses casos,
A vítima registrou boletim de ocor- cil para um atacante ter acesso.” cadastrar um envio no SMS de cartão
Rodrigo Salvo, especialista em se- rência na delegacia de crimes virtu- de crédito é uma boa pedida. Toda vez
gurança online, desenvolve estratégias ais e não enfrentou mais problemas CASO II que uma compra é feita com o meu
para empresas que precisam de pro- do tipo desde então. Recentemente, Como foi: Thalita Constatinov teve cartão, por exemplo, eu fico sabendo.
teção para seus computadores e ser- aderiu a uma solução para tentar uma o cartão de crédito clonado há cerca de Esse é um serviço que não custa mui-
vidores. Conversamos com ele sobre proteção definitiva: está experimen- um mês. Quando recebeu a fatura, viu to e dá segurança aos usuários, aju-
as melhores formas de se proteger no tando um antivírus capaz de bloquear apenas gastos com corridas de Uber, dando a identificar clonagens muito
uso privado. A seguir, citamos dois ca- tablet ou smartphone à distância. Isso fora do Brasil. Ela estranhou porque mais rápido do que esperar pelo ven-
sos de pessoas que sofreram ataques impede que outras pessoas acessem o nunca chegou a fazer uma conta no cimento da fatura.
dos chamados crackers – indivíduos conteúdo do aparelho caso seja rou- aplicativo. No total, foram gastos mais E sobre os cuidados que a Tali-
que quebram códigos de segurança bado ou perdido. Assim, se ela perder de R$ 800 em cerca de quatro dias. Ela ta tomou, mesmo que ela tenha um
com fins criminosos –, e Salvo explica seu celular, por exemplo, pode blo- costuma comprar na internet usando o computador só para fazer downloads,
os erros das vítimas e o que elas pode- quear o acesso através do computa- seu cartão de crédito, mas toma alguns se os dois computadores estiverem
riam ter feito para se proteger. dor e vice-versa. O aplicativo também cuidados. Evita comprar de sites des- na mesma rede, um malware poderia
é capaz de informar a localização do conhecidos, e tem dois computadores: acessar qualquer um deles através do
CASO I celular e outros dispositivos quando um onde faz downloads, e outro, que que chamamos de ‘movimentação la-
Como foi: Uma amiga de infância conectado à internet. considera mais seguro, para fazer as teral’. Além disso, também é impor-
de Malena Wilbert a chamou pelo Fa- compras online. tante tomar cuidado com os sites fal-
cebook dizendo: “Então, desculpa in- Erro, segundo o especialista: O que errou segundo o especia- sos. Ao lado da URL do site, existe um
comodar, mas preciso trocar o email “Uma das técnicas utilizadas para lista: “Hoje, eu também faço com- pequeno cadeado que significa que o
do meu facebook pq perdi acesso ao pegar senhas de contas é a chamada pras em diversos sites e, às vezes, site é seguro.
meu antigo… so que pra isso, eles engenharia social. Hackers se utili- Mesmo sites fakes podem ter um
sorteiam 3 amigos da pessoa pra con- zam dessas técnicas se passando por certificado de segurança, mas é mui-
firmar a troca… e acabaram sorte- um amigo, puxando conversa e con- “PARA SE PROTEGER to raro, e saber disso já dá mais segu-
ando vc… confirma pra mim? é bem seguindo algumas informações. Eles rança. Caso saibamos que um com-
fácil… só receber um SMS no celular geralmente conseguem acesso a um NESSES CASOS, É putador de uma rede está infectado,
com um código e me passar ele. Aju- perfil em alguma rede social e logo devemos tomar muito cuidado com o
da? :)” pedem o e-mail para alguém. Tendo a UMA BOA PEDIDA que acessamos nos outros computa-
O SMS que a vítima recebeu foi a conta de e-mail, caso a vítima tenha a dores daquela mesma conexão. Tem
seguinte: “O seu código de verifica- senha fraca, é só fazer algumas tenta- CADASTRAR O gente que sabe que tem o computa-
ção do Google # 18107”.
Ao receber o número, Malena não
tivas para conseguir acessá-lo. Tanto
que, quando alguma pessoa acessa o
ENVIO DE UM SMS A dor infectado e mesmo assim deixa o
outro computador com webcam liga-
se questionou o motivo de estar es-
crito “Google” ou “código de verifi-
seu e-mail de algum local diferente, o
provedor manda um SMS ou mesmo
CADA COMPRA NO da, o que é perigoso.”

cação” porque conhecia a amiga há um e-mail avisando. A dica que dou CARTÃO”DE CRÉDITO” Daniel Santos
muitos anos. Em seguida, a vítima é sempre questionar se seus conta- danielss8787@gmail.com
enviou print do SMS com o código. tos são realmente quem você pensa acabamos fazendo compras em al- Neri Neto
Pouco tempo depois, recebeu uma que são. Recomendo suspeitar se eles guns menos conhecidos. A clonagem nerineto07@gmail.com
segunda mensagem do Google infor- pedem algum dado pessoal e, nesse de cartão de crédito pode acontecer
mando que alguém havia acessado caso, é bom fazer alguma pergunta de diversas formas: alguém pode ter
sua conta. O aviso trazia uma opção mais pessoal, para garantir a iden- coletado os dados da Talita através

6 • DEZEMBRO | 2016
ALIMENTAÇÃO

Dieta sem glúten: um hábito perigoso?


Tirar esta proteína do cardápio sem necessidade pode acabar sendo prejudicial à saúde

H
á alguns anos ninguém A adaptação, conta a estudante, foi entre indivíduos não-celíacos. Alguns parecer da entidade, “o consumo de
notava a expressão “não difícil. Ela teve que deixar de ir a res- profissionais afirmam que o consumo farinha de trigo integral por indiví-
contém glúten” nas emba- taurantes que gostava e parou de co- de derivados de trigo é prejudicial à duos não sensíveis ao glúten contri-
lagens dos produtos. Hoje, mer suas comidas preferidas. Já Pedro saúde por causa de substâncias quími- bui para a redução do risco de câncer
alimentos sem a proteína Leite, coordenador da Rádio Itapema cas e modificações genéticas presentes intestinal, de condições inflamatórias,
se tornaram aliados de pessoas que FM SC, mudou a alimentação por op- nestes produtos. de dislipidemias e de doenças cardio-
querem perder peso e buscam maior ção e diz que não sofreu para se adap- A nutricionista Gisele Brodwolf vasculares”.
qualidade de vida. É o caso de famosas tar. Sentia-se estufado quando comia costuma prescrever dietas para seus A maioria dos médicos e nutricio-
como Juliana Paes e Luciana Gimenez, pão, e certos alimentos pioravam sua pacientes baseadas em produtos natu- nistas garantem que a dieta sem glúten
que a cortaram da alimentação para sinusite. rais — saladas, vegetais, peixes, azeites, não é a melhor opção para quem busca
voltar à forma após a gravidez. O te- Além de cortar o glúten, também frutas — e não inclui alimentos refina- perder peso. Em termos de caloria, o
nista número dois do mundo, Novak parou de consumir alguns alimentos dos. Ela explica que o problema não é pão sem glúten, à base de fécula de ba-
Djokovic, até escreveu um livro sobre específicos, como o leite, que atra- o glúten, e sim a modificação genética tata ou polvilho, praticamente empata
como a dieta contribuiu para a sua car- palhava a sua voz. Aos 57 anos, Pedro em alimentos derivados do trigo e os com o tradicional. Outro ponto negati-
reira, o Sirva para vencer – a dieta sem Leite tem uma saúde e disposição que aditivos dele. Desde os agrotóxicos das vo é que, ao suprimir o glúten da die-
glúten para a excelência física e mental. muitos jovens invejam. “Se eu sei que plantações até fosfatos adicionados ta, algumas pessoas não consomem os
O glúten é o responsável por dar não me faz bem, não quero mais co- para conservação do trigo e pão. “An- nutrientes necessários, sentem mais
aquela consistência fofa aos produtos mer, não tem nenhum sofrimento. tigamente, um pão durava três dias, fome e comem em excesso.
industrializados. Mas não é somen- Se eu tiver que tomar um chá super hoje, chega a durar semanas”, constata Segundo o nutrólogo Eddy Alvarez,
te o pão ou o prato de macarrão que amargo, mas eu sei que aquilo vai me a nutricionista. o indivíduo que adota esse tipo de die-
estão condenados, ao contrário do que fazer bem, vou tomar”, afirma. ta pode até emagrecer, mas isso acon-
pensam alguns consumidores. Além Desmistificando a dieta gluten free tece devido à retirada de alimentos ri-
de estar presente no trigo, ele também O que dizem os profissionais A SBAN indica que a dieta sem glú- cos em carboidrato do cardápio, como
está no centeio, na cevada e na aveia. De acordo com a Sociedade Brasi- ten para indivíduos que não possuem a pães, massas e biscoitos. Não significa
Ou seja, quem tiver coragem de cortar leira de Alimentação e Nutrição (SBAN), doença celíaca, além de não ser bené- que a perda de peso está ligada dire-
a proteína da alimentação não poderá desde 2004 o mercado de produtos fica, pode prejudicar o trato digestório. tamente ao glúten. Engana-se quem
mais tomar cerveja, nem mesmo no livres de glúten vem crescendo apro- Esse tipo de alimentação é frequente- pensa que os rótulos gluten free signi-
happy hour. No entanto, há quem ado- ximadamente 30% ao ano. Este de- mente pobre em grãos integrais e fi- ficam menos açúcar, menos gorduras
tou a dieta sem glúten por necessidade. sempenho não se deve ao aumento bras que têm efeito prebiótico, isto é, ou sequer menos quilos na balança.
Cerca de 1% da população mundial da incidência de casos de intolerância estimulam o crescimento de espécies
possui a chamada doença celíaca, que ao glúten, mas sim à grande demanda bacterianas consideradas benéficas Fernanda Mueller
altera a textura da parede intestinal, gerada pela adesão à dieta gluten free para o intestino. Portanto, segundo o fernandajmueller@gmail.com
prejudicando a absorção dos nutrien- Omar Niekiforuk/Zero
tes. Resultado de fatores genéticos,
imunológicos e ambientais, o indivíduo Vida sem Glúten
tem essa condição ou predisposição, Pães, bolos e
mas necessita de exposição ao glúten Tapioca, pão de biscoitos de trigo
para desenvolver a doença. Os sinto- queijo e biscoitos
mas mais comuns são diarreia crônica, de polvilho
perda de peso e dores abdominais. Em
alguns casos, também chega a causar Flocos de milho e
constipação intestinal e artrites (dores arroz Aveia, granola e cereais
nas articulações). A patologia pode ser
diagnosticada pela biópsia do intestino
ou através de um exame de sangue.
A estudante de medicina, Louise
Siqueira, de 23 anos, teve diagnóstico
da doença celíaca há dois anos. Como
ela não demonstrava sintomas, nem
sentia nenhum desconforto quando
consumia a proteína, só foi descobrir
que estava anêmica numa consulta de
rotina. O corpo percebe o glúten como
algo que faz mal para ela e o combate
com o sistema imunológico, causando
uma inflamação que pode trazer mui-
tas consequências futuras.
A anemia é um exemplo disso, mas
em casos mais graves pode ocasionar
infertilidade ou até mesmo câncer. O
nutrólogo Eddy Alvarez explica que a
doença celíaca não é quantitativa, e sim Massas feitas com Macarrão, pizza e
qualitativa. Ou seja, mesmo quantida- farinha de arroz, outras massas
des mínimas da proteína na alimenta- quinoa ou milho
ção podem causar alterações no corpo
dos celíacos. “Como eu não sinto nada,
é fácil pensar que às vezes posso comer
e não vai acontecer nada, mas seria um Vinho e champagne
erro. Todas as vezes que ingerir algu- Cerveja e uísque
ma forma de glúten, vai me prejudicar”,
analisa Louise.

DEZEMBRO | 2016 • 7
SAÚDE PÚBLICA

Camila Valgas/Zero

Chega de silêncio: vamos falar de aborto


Mulheres arriscam sua vida ao fazer o procedimento de maneira clandestina e insegura

B
runa* levantou da cama com o primeiro to- o estudo, nem 3% delas vivem em países que permitem Em vários locais do mundo, o aborto é considera-
que do despertador. Mal havia dormido. Um o procedimento. Mas isso não impediu que o número do um crime contra a vida. O Código Penal Brasileiro,
misto de ansiedade e nervosismo tomava de abortos aumentasse na região, comparado com o por exemplo, prevê detenção de um a três anos para a
conta dela. Entrou no banheiro e abaixou período 1990-1994, quando se estimava 4,4 milhões de gestante que optar por ele. Apenas três situações estão
as calças do pijama na expectativa de estar abortos. Ou seja, o percentual de gravidezes interrom- livres de penalidades: se há risco de vida para a mulher,
menstruada. Nada. Mais um dia de atraso e tensão. pidas subiu de 23% para 32%, segundo a pesquisa. se a gestação é consequência de um estupro ou quando
Correu para a cozinha e preparou um litro de chá de
canela, hábito adotado há exatos cinco dias. Com uma
breve pesquisa na internet, a jovem havia descoberto Tema divide opiniões na Câmara, Senado e Supremo
as propriedades da erva — entre elas, a contraindica-
ção para gestantes, pois pode provocar aborto devido a Em novembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) se reuniu para julgar um caso envolven-
contrações no útero. do duas pessoas denunciadas pelo Ministério Público pela suposta prática de aborto com consenti-
Depois da faculdade, no início da noite, Bruna pas- mento da gestante. Os envolvidos no caso, ocorrido em Duque de Caxias (RJ), foram presos em fla-
sou na farmácia e comprou um teste caseiro de gra- grante. Contudo, foram soltos, pois os ministros do STF entenderam que, por serem réus primários,
videz. Estava evitando aquele momento há dias. Pri- com bons antecedentes, trabalho e renda fixa, a prisão não se sustentava.
meiro, por não querer acreditar na possibilidade. Em O relator, ministro Marco Aurélio Mello, afirmou que os artigos do Código Penal que criminali-
segundo, por conhecer o farmacêutico atrás do balcão zam o aborto até os três primeiros meses de gestação violam direitos fundamentais da mulher. “Na
— era um conhecido de seu pai. Fingiu um sorriso e medida em que a mulher que suporta o ônus integral da gravidez e que o homem não engravida, so-
disse estar comprando para a amiga de uma amiga. Ah, mente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir sobre a sua manutenção”,
claro que não era para ela! Tão novinha, né? declarou.
“Negativo, negativo, negativo”, entoava em pen- Luís Roberto Barroso, que também faz parte da primeira turma do STF, mostrou mais um ar-
samento como um mantra. Pegou a embalagem com gumento favorável a liberação dos acusados. Segundo ele, os artigos do Código Penal de 1940 que
receio, leu as instruções e esperou pelo resultado. Foi caracterizam o crime do aborto não são válidos quando comparados à Constituição Federal de 1988.
sentada no vaso sanitário que viu as duas tirinhas ver- Sendo o Código Penal anterior à Constituição, deve-se excluir a possibilidade de crime quando o
melhas apareceram em poucos minutos: positivo. aborto é realizado dentro dos três primeiros meses de gestação, visto que a Constituição traz artigos
Essa história é comum. De acordo com a Organiza- que defendem os direitos e a autonomia das mulheres.
ção das Nações Unidas (ONU), cerca de 12% das jovens Contudo, a Câmara reagiu rapidamente a essa decisão. No mesmo dia, o presidente da Câmara,
brasileiras de 15 a 19 anos de idade têm pelo menos um Rodrigo Maia (DEM-RJ), formou uma comissão especial que pode incluir na Constituição um artigo
filho. O relatório ainda mostra que 95% dos partos com sobre o aborto. “Sempre que o Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto”, concluiu. Na
adolescentes do mundo são realizados em países em realidade, a comissão vai debater uma proposta sobre licença-maternidade, a PEC 58/11, do deputado
desenvolvimento, como o Brasil. Pode-se estimar um Jorge Silva (PHS-ES), mas a discussão pode acabar tornando ainda mais rígida a legislação sobre a
total de 7,3 milhões de novas mães menores de idade interrupção da gravidez.
por ano, sendo que 2 milhões são menores de 15 anos. Fora da corrente favorável à descriminalização da prática, o deputado Edmar Arruda (PSD-PR) foi
Mas e quando ter o filho é uma ideia tão assustadora um dos representantes que usou a religião como argumento para reprovar a decisão do STF. “Nós,
— ou inviável — que as meninas buscam outra opção? que somos cristãos, nós que defendemos a família, nós que defendemos a vida, nós não concordamos
Em torno de 6,5 milhões de abortos induzidos fo- com essa decisão”, disse.
ram realizados na América Latina e no Caribe, entre Apesar da decisão valer apenas para o caso em questão, a manifestação de ministros do Supremo
2010 e 2014, conforme uma estimativa divulgada em em favor da descriminalização do aborto indica que, caso este tema seja levado ao plenário do STF em
maio de 2016 pelo Instituto Guttmacher e Organização um debate de repercussão geral, existe a possibilidade de as proibições ao aborto previstas no Código
Mundial da Saúde (OMS). O estudo indica que, em cada Penal serem derrubadas — porém, precisam ser aprovadas tanto na Câmara quanto no Senado. En-
mil mulheres casadas, 49 realizaram o procedimento; quanto isso, as práticas ilegais e inseguras continuam.
entre as solteiras, a taxa é de 28 em cada mil. Segundo

8 • DEZEMBRO | 2016
descobrir a gravidez, ela sequer conseguia levantar.
Sem consulta médica e orientação profissional “Não sei cuidar de um bebê. Não posso, não consigo”, o
Para averiguar a facilidade da compra de pílulas abortivas, o Zero foi até o local indicado por pensamento martelava em sua cabeça. Tinha uma vida
Bruna: o Mercado Público. Ao chegar, não sabíamos para quem poderíamos perguntar sobre a dis- estável, cursando Direito, estagiando na área que pre-
ponibilidade do Cytotec, o “remédio”. Por puro instinto, procuramos pela pessoa que nos pareceu tendia seguir e com apenas 19 anos.
mais inofensiva: uma jovem que aparentava ter uns 20 anos e trabalhava em um dos boxes. Imediatamente, jogou a palavra “aborto” na inter-
— Oi, vocês têm Cytotec? — perguntei quase em um sussurro. net e leu diversos textos a respeito. Entrou em um gru-
— Cytotec? A gente tem Cytotec, Simone? — berrou a menina para uma atendente mais velha, po feminista no Facebook e ficou surpresa ao descobrir
que parecia ser a gerente. Esta fez que não com a cabeça, um pouco constrangida, claramente que havia pílulas abortivas à venda em um lugar de fácil
sabendo do que se tratava. acesso no Centro da cidade onde mora: Florianópolis.
— Não tem Cytotec aqui não, moça. O que que é isso? — a jovem voltou a perguntar. Após um exame sanguíneo que confirmou a gestação,
E eu, insegura, respondi: Bruna — um pouco hesitante — comprou as tais pílu-
— Remédio pra aborto. las de Cytotec, o remédio que causa aborto medicinal
Ela não pareceu se abalar, mas ficou pensativa e soltou: através de contrações uterinas.
— Ué, então vai na farmácia, né… aqui que não vai ter, não. Com ajuda de uma amiga tão inexperiente quan-
Agradecemos pela dica e saímos andando pelos outros boxes procurando alguém com mais to ela, tomou as pílulas como indicava as instruções
informações. Ao avistar outra jovem, fomos até ela com a mesma pergunta. Desta vez, obtive uma de um site com aparência confiável, pois ali tinha
resposta mais satisfatória: lido diversos depoimentos de outras mulheres des-
— É pra ti mesmo? — respondeu ela, me avaliando. conhecidas que afirmavam ter obtido sucesso no
— Sim. procedimento. Aguardou com medo do que estava
E, com isso, soube onde eu realmente poderia encontrar os tais dos remédios, em um local por vir. As dores começaram fortes: uma cólica que
próximo dali. A jovem nos informou exatamente sobre a pessoa com a qual deveríamos falar. nunca havia sentido. Não podia reclamar ou tomar
O local não era dos mais acolhedores. Apesar de ser três da tarde de um dia útil, o bar da rua outros remédios, pois qualquer alteração poderia
estava lotado de homens bêbados. Vários mendigos estavam parados por ali, sentados no chão fazer o Cytotec não agir corretamente. Muito sangue
com olhares vagos. Avaliamos o local até encontrar a mulher com a aparência descrita pela jovem e grandes coágulos eram expelidos.
do Mercado Público. Encontramos e, um pouco apreensivas, nos aproximamos. Bruna chorava pensando no pecado que havia co-
— Oi, tem Cytotec? — perguntei, enquanto a mulher me encarava ao mesmo tempo em que metido, ao mesmo tempo em que brigava com sua
tragava um cigarro. racionalidade: “Você não acredita nisso, é apenas um
— Cigarro? Tenho, sim — respondeu ela bem alto. feto! Não é um ser humano”. Ela já não tinha certezas,
Em um primeiro momento, achei que não havia me escutado direito, já que eu tinha quase só medo e insegurança. Agora, era uma criminosa
sussurrado a pergunta. Mas logo entendi que a resposta era apenas para despistar quem pudesse perante a lei. “Quantas outras mulheres já passaram
ter ouvido o curto diálogo. por isso?”, se perguntava
Ela continuou:
— Entra no bar que eu já vou ali. Legalizar ou não?
Seguimos para dentro do minúsculo bar, que estava lotado. Não havia nenhuma mesa dispo- No Congresso Nacional, o único projeto pela lega-
nível e tentamos ficar em um dos cantos do local, paradas, sem coragem de proferir uma única lização da prática do aborto que obteve uma tramita-
palavra. Então esperamos. Assim que a mulher entrou no estabelecimento, deu um olhada geral ção longa foi apresentado em 1991 por Eduardo Jorge.
e afirmou: Porém, não foi viabilizado. Para Eduardo Cunha, ex-
— Aqui dentro não, tá muito lotado. Vamos ali pra fora. -presidente da Câmara dos Deputados, a descrimina-
Seguimos ela, parando logo ao lado do bar, em frente a uma loja que estava fechada. lização aumentaria a prática no país. Cunha é autor do
— É de quanto tempo? — ela perguntou. maior número de propostas para tornar mais rígida a
Me senti patética por não ter saído de casa já pensando em alguma história para encobrir a legislação contrária ao aborto no Brasil.
possível gravidez, então gaguejei: Existe um grande esforço por parte da população
— Dois meses. pró-escolha de tornar legal o aborto no Brasil como
— Então vão ter que ser oito pílulas. Pra dois meses tem que ser oito. Vocês sabem usar, né? opção da gestante. Um dos fortes argumentos desse
— A gente leu as instruções na internet... grupo é que a prática ilegal não evita que o aborto seja
— O que vocês leram? — ela interrompeu, e eu respondi narrando tudo o que havia juntado de realizado, apenas faz com que as mulheres recorram a
informações dos mais diversos sites. meios alternativos e inseguros de fazê-lo.
Quando terminei, ela declarou: Um dos exemplos de conscientização é o grupo
— Aqui não é igual o da internet, não. Aquele lá é o remédio que um médico te daria, esse daqui Católicas pelo Direito de Decidir: com um escritório
não. Por isso tem que tomar mais. Tem que ser oito. E cada uma custa 70 reais. É só tomar duas, as fixo em São Paulo, as integrantes apresentam pales-
outras seis tem que colocar no canal vaginal, bem lá dentro, senão dá errado. Toma duas, coloca o tras, oficinas e publicam artigos sobre os direitos se-
resto direitinho lá dentro e pode deitar e ficar bem relaxada que tá tudo certo. xuais e reprodutivos das mulheres. “Visto que a maio-
E antes mesmo de respondermos algo, ela continuou: ria das mulheres que abortam são católicas, já que a
— Vocês não têm mesmo nenhuma amiga que saiba fazer? maioria da população brasileira também é, nós ten-
— Não temos, não. Não conhecemos ninguém. Vem muita gente aqui comprar? tamos mostrar que a religião não pode interferir em
— Ô, se vem, minha filha. Todo dia, um monte. Lá da universidade mesmo… as meninas já tão uma questão de saúde pública competente ao direito
tudo craque. individual de cada uma”, argumenta Rosângela Talib,
Agradecemos pelas informações, afirmando que iríamos pensar um pouco melhor na situação coordenadora do projeto.
e, qualquer coisa, voltaríamos para realizar a compra. “O aborto ser ou não legal não teria mudado a mi-
nha decisão. Só teria permitido que eu não corresse
risco de vida”, relata Bruna, que hoje esclarece dúvidas
sobre o assunto e compartilha sua experiência em um
o feto não possui uma parte do cérebro. Nestes casos, ou arriscando a própria vida? De acordo com a pes- grupo de apoio feminista.
o governo realiza o aborto gratuitamente pelo Sistema quisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos O Zero entrou em contato com a assessoria de im-
Único de Saúde (SUS). Além disso, procedimentos rea- e Gênero (Anis) Débora Diniz, em algumas cidades do prensa da Polícia Civil de Santa Catarina. A assessora,
lizados fora de território nacional — em países onde a Brasil o aborto clandestino é a segunda maior cau- que não quis revelar seu nome, informou que o órgão
ação é descriminalizada — também são livres de pena. sa de morte materna. Na América do Sul e no Caribe, não possui um planejamento para fiscalizar os locais
A questão é, de fato, problemática, já que ainda não ele é responsável por 10% das mortes maternas todos de venda para apreender as pílulas. “Muitas vezes, sa-
existe consenso sobre qual momento marca o início de os anos, conforme o estudo do Instituto Guttmacher bemos através de denúncias. A Polícia Rodoviária tam-
uma vida. Os defensores da visão neurológica afirmam: e da OMS. O relatório constata que “cerca de 760 mil bém encontra esse tipo de medicamento junto com
somente quando as primeiras conexões neurais são mulheres da região são tratadas anualmente por pro- outras drogas, mas é só isso”, afirmou.
estabelecidas no córtex cerebral do feto ele se torna blemas gerados pelo aborto inseguro”. Entre as conse-
um ser humano. A religião também assume um papel quências indicadas estão o aborto incompleto, a perda *Os nomes desta reportagem foram alterados para
determinante para a visão da sociedade sobre o tema. excessiva de sangue e infecções. Outras complicações preservar a identidade das entrevistadas.
Como o Brasil é o país com maior número de católicos citadas como menos comuns, mas consideradas muito
romanos do mundo, grande parte da população enxer- graves, são o choque séptico, a perfuração de órgãos Ana Carolina Inácio
ga o aborto como um crime. internos e a inflamação do peritôneo. anacinaciopassos@gmail.com
As opiniões são conflitantes: seria sensato abortar? Mesmo sabendo dos riscos, muitas mulheres se Camila Valgas
Estariam essas mulheres cometendo um homicídio submetem ao procedimento. Foi o caso de Bruna. Ao camilamelicia@gmail.com

DEZEMBRO | 2016 • 9
Depressão

Estudantes sofrem com rotinas intensas


Sintomas da doença são considerados normais e o tema é pouco debatido na UFSC

M
Doses Diárias de Amor e Respeito/Divulgação
arta, 22 anos, vive com sua mãe em universidade. Hoje, Flávio não precisa
Florianópolis e foi diagnosticada mais de remédios e segue com o pro-
com depressão no segundo período cesso de terapia.
da faculdade. Não muito diferente Situação semelhante foi vivida por
de vários outros jovens da sua idade, Carolina*, mas além da rotina ace-
ela entrou na Universidade Federal de Santa Cata- lerada, a estudante de engenharia**
rina (UFSC) para aprender e encontrar realização ainda buscava driblar a frustração de
pessoal e profissional. Antes de ser diagnosticada, não conseguir atender às suas pró-
atuava na empresa júnior do seu curso** volunta- prias expectativas com o curso. Antes
riamente, além de estagiar e trabalhar em projetos de entrar na faculdade, ela já tinha um
externos. Para ela, o conjunto de atividades servia diploma técnico em Informática. De
para tentar suprir o que não encontrava na sala de acordo com a acadêmica, enquanto era
aula: conhecimento atualizado e relevante para sua bolsista em um laboratório da UFSC, os
futura profissão. Contudo, trabalhar para se man- professores lhe designavam atividades
ter, se profissionalizar e cumprir a carga horária relacionadas ao seu curso técnico an-
semestral exigida foram os catalisadores de uma terior e não à graduação, para qual a
rotina cada vez mais impossível, que trouxe consigo vaga era destinada, o que gerava des-
a depressão e uma tentativa de suicídio. conforto com a atividade desenvolvida.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), Além disso, a jovem também atuava no
21% dos jovens entre 14 e 25 anos possuem sintomas centro acadêmico, organização de fes-
de depressão. Entre eles, 5% já tentaram suicídio. tas para a formatura, bolsa de inicia-
“Dentro da universidade o jovem deve lidar com ção científica, e, claro, a carga horária
as idealizações e expectativas que tem sobre como das aulas da graduação. A sensação de
será sua vida e como será seu desempenho, na ten- que sua vida social e sua saúde esta-
tativa de sustentar suas idealizações, seus sonhos, vam sendo deixadas de lado para dar
essa pessoa pode adoecer por não conseguir en- lugar apenas para o desempenho aca-
xergar e respeitar seus limites”, avalia a psicóloga dêmico culminaram em um quadro de
Adriane Ciaffone. depressão. Ao ser diagnosticada, Caro-
Enquanto muitos conseguem driblar o stress lina abandonou todas as funções aca-
e a pressão do dia a dia, outros “podem adoecer”, dêmicas anteriores. E não pensa em
complementa a psicóloga. Além disso, fatores voltar.*As identidades dos entrevista-
como solidão, distanciamento da família e ami- dos foram preservadas nesse texto.
gos, má alimentação, sedentarismo e local precá-
rio de moradia podem desencadear o problema. *As identidades dos entrevistados
foram preservadas nesse texto
Doença silenciosa ** A fonte solicitou que o curso Relações interpessoais são prejudicadas quando o aluno está em crise
Muitos estudantes sequer percebem os sintomas não fosse revelado
da depressão, por julgarem se tratar de algo comum
ao dia a dia. “As relações, sem dúvida, serão afetadas. Sarah Soares SEGUNDO A OMS, 21% DOS JOVENS
Distanciamento, isolamento, ansiedade, cansaço,
desinteresse, são alguns dos sinais que podem ser
sarah.soares.ce@gmail.com
Colaborou: Débora Nazário
ENTRE 14 E 25 ANOS POSSUEM
observados com cuidado. Esses sintomas são sinais
socialmente aceitos, e podem ser justificados pelo
deborah_nazario@hotmail.com
SINTOMAS DE DEPRESSÃO
estilo de vida, e por isso passam despercebidos”, ex-
plica a psicóloga Adriane Ciaffone.​ Rede de apoio
Os sintomas da doença variam de pessoa para A depressão é uma doença silenciosa por se instalar discretamente, invisível aos que estão em volta. Para
pessoa, em diferentes níveis e podem podem apa- os familiares e amigos que acompanham uma pessoa nesta condição, é importante oferecer uma rede de
recer de forma bastante sutil. “Pode ser um mergu- apoio e mobilização, para acolher a pessoa e oferecer suporte. “Familiares têm importante papel no aspec-
lho muito profundo nos afazeres, nas obrigações, to afetivo e questões práticas. Professores podem se abrir para conversar e entender como a depressão está
um sofrimento disfarçado de dedicação e auto- limitando a participação de seus alunos e construir com esses novas possibilidades de aproveitamento e de
-exigência. Somos ensinados muitas vezes a não avaliação para que o aluno não seja ainda mais prejudicado”, pontua a psicóloga Adriane Ciaffone.
levarmos nossos sofrimentos à sério, sentir pode A pessoa com depressão também precisa passar por acompanhamento psicológico e, em alguns casos,
ser considerado sinal de fraqueza para muitos, en- psiquiátrico com apoio de medicamentos. Com a psicoterapia, a pessoa desenvolve processos de “recons-
tão ignora-se o sentimento”, comenta Adriane. Ela trução de significados e formas de relação com seu mundo, seu ambiente e pessoas de sua vida”, comenta
alerta que o afastamento dos próprios sentimentos Adriane. Segundo a especialista, os remédios tratam o sintoma, mas precisa ser administrado com uma
pode levar alguém a entrar em crise ao não perce- terapia adicional. “O remédio é essencial em muitos casos, mas o sintoma voltará, da mesma forma ou de
ber os pequenos sinais do problema. outra, se a forma dessa pessoa relacionar-se com sua vida não mudar”.
Flávio*, de 19 anos, passou por isso. Ele é cotista
na UFSC e precisa compartilhar seus gastos com os Locais de atendimento
pais, que moram no interior. Para melhorar a situa- Em Florianópolis, os estudantes da UFSC podem ser atendidos no Serviço de Atenção Psicológica
ção financeira da família, a saída era buscar susten- (Sapsi), que oferece acompanhamento psicológico e também orientação profissional. Mas a procura é
to na profissão que escolheu. Para se formar mais grande. Em agosto, por exemplo, as 30 vagas disponíveis para terapia foram preenchidas em 30 minutos, e
rápido, passou a cursar oito disciplinas por semes- a última fila de espera contava com mais de 200 pessoas.
tre e quando não estava dentro da sala de aula como Além do Sapsi, o estudante pode ser atendido pelo Hospital Universitário em caso de emergência e mais
aluno, era professor de redação, atividade que en- três psicólogas da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE). Outras universidades particulares também
controu para aliviar as contas. Flávio não aguentou, possuem núcleos de atendimento. Também há na capital a Associação Instituto Movimento (Assim), uma
teve um surto repentino em 2015. A crise fez com organização que oferece atendimento a pessoas de baixa renda ou sem condições financeiras para pagar
que trancasse o curso**, voltasse para a casa dos uma consulta particular com psicólogo. Institutos como Instituto Familiare, Locus Partner, Comunidade
pais e buscasse ajuda profissional. O tratamento in- Gestáltica, Instituto Granzotto, também oferecem atendimento social.
cluiu oito tipos de remédio e terapia com psicólogo.
Após 2 meses, ele pode retornar suas atividades na

10 • DEZEMBRO | 2016
Intolerância

UFSC não consegue coibir ações racistas


Movimentos estudantis criticam atuação da Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades

A
Frederico S. M. de Carvalho/Zero
o prestar o vestibular da Longo percurso
UFSC em 2015,Francielle Mesmo com a criação de uma secre-
Cecília dos Santos imagina- taria específica para tratar as deman-
va que as situações de racis- das dos movimentos negro, indígena e
mo e humilhação que viven- LGBT, a SAAD vem sofrendo diversas
ciou na universidade onde estudava no críticas sobre seu modo de atuação. Para
interior do estado diminuiriam de forma Roberta Lira, ativista do coletivo Kurima
significativa. Acreditava que o ambiente - estudantes negros e negras da UFSC,
de uma instituição pública seria muito a Secretaria acaba inviabilizando a luta
mais acolhedor e que, por isso, os pre- do movimento negro na medida em que
conceitos que ela testemunhava e sentia não abre espaços para o diálogo e não
não estariam mais presentes no seu dia leva em conta o que foi construído an-
a dia. Não foi isso que aconteceu. Na fila teriormente pelos coletivos durante as
do restaurante universitário ouviu “pia- gestões passadas. “O mínimo que a se-
das” sobre seu cabelo crespo vindos de cretaria deveria fazer é chamar os co-
um grupo de meninos que são amigos Marcas da manifestação neonazista permanecem na parede da Sala Quilombo letivos e movimentos negros para saber
do seu namorado, um deles até pergun- como nós queremos construir uma me-
tou se ela frequentava a roda de capoeira nhou informações à Polícia Federal que contra o estudante ou não. “Ouvido os lhor estrutura para nós”. Guilherme dos
do bloco do Centro de Comunicação e investigou o caso, mas até a publicação alunos, o Colegiado do curso entendeu Santos, integrante do coletivo 4P (Poder
Expressão (CCE), porque para ele todo desta reportagem, ninguém havia sido que não havia nenhuma materialidade para o Povo Preto), acredita que a UFSC
mundo que é negro joga capoeira. responsabilizado pelo ato. para que implicasse em ofensa grave e não tem sido cuidadosa com as questões
Francielle não fez denúncia na ou- Uma nova ocorrência aconteceu em devolveu o processo pra mim, o outro, raciais nos últimos anos e mesmo com
vidoria e talvez não tenha nem cha- novembro, mês em que se celebra o Dia colegiado entendeu que o comentário a criação de uma secretaria específica
mado a atenção do amigo do seu na- da Consciência Negra. Como forma de que a aluna fez foi genérico, e o outro re- as coisas não mudarão porque “ela atua
morado. Ela também não deu risada protesto e de chamar a atenção para solveu que o aluno será suspenso por 30 de forma sobrecarregada”. Segundo ele,
da “piada”. Sofreu calada. Assim como as pichações, um grupo de estudantes dias pelos comentários de cunho racista “a questão é de responsabilidade da uni-
o relato dela, a maioria das ocorrên- negros organizou uma manifestação e agressivos”, explica o chefe de gabinete versidade como um todo e não de uma
cias de racismo na universidade ainda batizada de Virada Anti-racista, evento da Reitoria, Aureo Moraes. secretaria única, só porque ela recebeu o
são subnotificadas, seja por medo da nome de diversidade”, afirma.
exposição, de sofrer assédio ou repre- Francis Tourinho diz que, sempre
sálias ou ainda receio de gerar alguma RACISMO INSTITUCIONALIZADO É A que procurada, recebe as demandas de
indisposição com algum colega.
Esse tipo de comportamento de
INCAPACIDADE DE UMA INSTITUIÇÃO EM coletivos internos e externos à universi-
dade e de pessoas da comunidade aca-
hostilidade a outra pessoa é chamado
de intolerância. A psicóloga Francine
PROVER SERVIÇO ADEQUADO ÀS PESSOAS EM dêmica que não estão organizados em
grupos. Quanto a crítica em relação a
Beiro explica que a pessoa intolerante VIRTUDE DE SUA ORIGEM RACIAL OU ÉTNICA sobrecarga, justifica: “estamos criando
tenta impor seu pensamento através da a SAAD, instituindo normas, treinando
utilização da agressividade e da raiva, pessoal, aprendendo as situações em que
humilhando e coagindo o outro. que traria oficinas, mesas de debate e Francis Tourinho, responsável pela a SAAD tem que trabalhar e ainda rece-
A exposição a esse tipo de precon- aula pública para a comunidade aca- coordenação da SAAD, quer que sejam bendo casos de denúncia e trabalhando
ceito traz consequências psicológicas e dêmica. Começou com uma interven- criadas políticas específicas na univer- nos que precisam”. Francis ressalta ain-
emocionais para quem é vítima. Ao in- ção no Restaurante Universitário (RU) sidade para que assuntos de interesse da que “existe uma demanda reprimida
ternalizar as ofensas e hostilidades, o e, durante o ato, um desentendimento do departamento possam ser tratados dentro da universidade. As pessoas não
alvo da agressão pode desenvolver sen- entre duas manifestantes e um rapaz e resolvidos dentro da própria secre- sentiam que poderiam denunciar e que
timentos de auto-rejeição, insatisfação acusado de agressão física deu início taria. Segundo ela, a resolução que re- podiam pedir ajuda”.
com o próprio corpo, baixa autoestima, a uma confusão que só foi terminar na gulamenta as penas disciplinares ao José Ribeiro, presidente do Conselho
inferioridade e insegurança, por exem- delegacia. Houve gritaria, ameaça, em- estudante não trata de situações que Estadual das Populações Afrodescenden-
plo, que favorecem o comportamento de purra-empurra, agressão. Os três en- envolvam crimes cometidos dentro da tes (CEPA), acredita que a Reitoria deve-
isolamento, além da ansiedade, depres- volvidos foram levados pelo Deseg para universidade, como o racismo e a dis- ria agir de outra forma para combater o
são, o aparecimento de fobias e, em ca- a Polícia Civil onde registraram Boletim criminação, por exemplo. racismo dentro da universidade. “O ra-
sos mais graves, pode até levar a estresse de Ocorrência. O objetivo é desenvolver ações para cismo deve estar pautado dia-a-dia”. Para
pós-traumático e ataques de pânico. Um outro caso aconteceu em janeiro. combater também o racismo insti- ele, “todo o corpo técnico deveria estar
Para tentar combater casos de into- Ao “questionar” a existência de um cur- tucionalizado, conceito definido pela sensibilizado, passar periodicamente
lerância dentro da Universidade Federal so de licenciatura indígena em um grupo ONG Geledés, como a incapacidade de por formação nas discussões das leis que
de Santa Catarina (UFSC), em maio, foi do Facebook um estudante deu início a uma instituição em prover um servi- envolvem crimes de racismo e estudo da
criada a Secretaria de Ações Afirmativas uma enxurrada de comentários racistas. ço adequado às pessoas em virtude de cultura indígena e afro-brasileira’’. Ro-
e Diversidades (SAAD), responsável por Os acadêmicos indígenas denunciaram sua origem racial ou étnica, resulta- berta Lira concorda, e aponta que um
definir e executar políticas afirmativas, o caso em março. Meses depois perce- do de uma combinação de ações que dos caminhos é a construção coletiva de
focadas em questões étnico-raciais, gê- beram que o processo não estava no sis- mesclam estereótipos racistas, falta políticas afirmativas entre universidade e
nero, orientação sexual, e de acessibili- tema e fizeram uma nova denúncia na de atenção ou até mesmo ignorância estudantes, pois eles “ têm um manancial
dade e equidade. ouvidoria, após a posse da nova gestão em lidar com determinados contextos. de informações para acrescentar”. Para
da Reitoria. Foi aberto um procedimento Trata-se de um problema nacional que Guilherme dos Santos, “é uma questão
Racismo na universidade administrativo e, em pouco mais de um não afeta só a universidade. “A gente da universidade de se colocar enquan-
Neste ano três casos de racismo mês, o processo chegou nas mãos das combate o racismo institucional na to protagonista dessas ações e não uma
ocorridos na UFSC ganharam reper- coordenadorias dos cursos nos quais os UFSC com políticas específicas, para mera espectadora que só atende quando
cussão. Em outubro a sala Quilombo, alunos denunciados estão matriculados. minimizar ou punir o racismo. Es- a gente berra”, conclui.t
utilizada por estudantes negros no Cen- Dos sete identificados e denunciados tamos pensando em uma política de
tro de Convivência para a realização de apenas um foi punido. enfrentamento ao racismo, além de Francielle Cecília
atividades étnico-culturais, apareceu De acordo com as normas da UFSC, é trabalhar com a educação e a cons- franciellehanck@gmail.com
pichada com ameaças racistas, homofó- o Colegiado do curso o responsável por cientização”, explica a secretária da Renato Botteon
bicas e nazistas. A universidade encami- decidir se abre um processo disciplinar SAAD Francis Tourinho. renatogbotteon@hotmail.com

DEZEMBRO | 2016 • 11
ENTREVISTA

Crise no país dá voz à mídia alternativa


Repórter Rafael Vilela, da Mídia Ninja, discute a atual situação do jornalismo no Brasil

R
Fer
afael Vilela, 27 anos, é formado em Design pela Uni- nan
da Em um país no qual a comunicação e o jornalismo são vistos
S tr
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mas ue
ck com desconfiança, as fontes independente se tornam uma
er
foram as experiências que teve além do cur- /Z
e alternativa para quem busca informações. Jornalistas de
so que o direcionaram para seu trabalho grandes empresas se posicionarem politicamente se

ro
como fotógrafo da Mídia Ninja, um dos tornou motivo de demissão: Barbara Gancia foi de-
principais veículos independentes de informação mitida da Band News, por se recusar a pegar leve
do Brasil. “Sempre fui muito próximo do jor- com Eduardo Cunha, e José Trajano demitido da
nalismo; estudei fotografia por conta própria. ESPN, por se mostrar contrário ao impeachment
Então, minha compreensão do jornalismo vem da ex-presidente da República Dilma Rousseff.
um pouco da fotografia, do fotojornalismo”, Além disso, uma onda de aversão ao jor-
diz. nalismo parece vir de quase todos os ângulos.
Participou de grupos e movimentos so- Jornalistas são agredidos em manifestações
ciais durante a graduação, como o Diretório — perdem equipamentos, e até a visão. Em re-
Central dos Estudantes da UFSC e o Coletivo latório da Associação Brasileira de Jornalismo
Cardume, nos quais sempre buscou dinami- Investigativo (Abraji), foram registradas 206
zar a comunicação. Até chegou a trabalhar em agressões intencionais contra jornalistas desde
uma agência de publicidade, mas lembra desse as manifestações de 2013, sendo 145 por parte de
período como “um mês horrível” em sua vida. Foi agentes de segurança e o restante por manifes-
morar em uma casa da rede de coletivos Fora do tantes.
Eixo, em São Paulo, e nunca mais saiu de lá. “Fui me Em uma conversa com a equipe do Zero, Rafael
envolvendo. Era um momento que já estavam pensando Vilela falou sobre a crise política, o comportamento da
na proposta de uma rede de comunicação independente. E mídia brasileira, a participação das redes sociais nesse ce-
foi lá que, enfim, a gente construiu a Mídia Ninja”. nário e como é o trabalho dos Ninjas.

Zero: Como funciona a Mídia Ninja? Z: Que dificuldades a Mídia Ninja enfrenta enquan- lização dos movimentos sociais e das pautas pro-
Rafael Vilela: A Mídia Ninja se confirma essencial- to fonte de informação independente? gressistas. O que a gente tem que dimensionar é
mente como um veículo de base colaborativa, distri- RV: Acaba sempre sendo a primeira pergunta: o novo: hoje podemos criar uma rota paralela a
buído tanto no território quanto na gestão. Não tem “como que vocês vivem disso, como é que vocês isso. A gente teve um processo de dez, 15 anos no
a ideia de um editor-chefe. Tem editorias ligadas aos pagam a conta?”. Não que isso seja uma dificul- Brasil, onde, mesmo com um governo de inten-
temas que importam para a nossa geração e são in- dade, porque criamos um sistema baseado em ções populares, a política de comunicação avan-
visibilizados ou distorcidos pela mídia tradicional: caixa coletivo. Mas é esse o desafio, como criar çou muito pouco, o que fez com que a mídia tives-
o genocídio da juventude negra, a questão ambien- uma metodologia que te permite fazer aquilo na se o poder de derrubar um governo. É uma coisa
tal, as ondas do movimento LGBT, a legalização das sua totalidade. Isso está muito ligado à ideia de impensável, atuação de partido político. Você tem
drogas. Temos editores e uma galera mais orgânica, que mídia alternativa também tem que falar para nomes que são extremamente midiáticos, como o
que está nas casas coletivas. Nessas casas, o pessoal milhões de pessoas, não só para quem tem aces- [ João] Dória, que acaba de ser eleito em São Paulo
trabalha 24 horas por dia, a partir de uma dinâmica so ou entende. A gente entende que o grande fi- e é conhecido como apresentador de TV, ou parte
comunitária onde ninguém tem salário; todo mundo nanciador do processo é a nossa própria força de do movimento evangélico, que conseguiu crescer
vive com um caixa coletivo. A ideia é que o colabora- trabalho. Você coloca 20, 30 pessoas numa casa e se estabelecer quando entendeu que precisava
dor possa se sentir parte do processo e que o traba- coletiva para trabalhar naquilo e elas abdicam de de mídia e comprou a Record. Então, a ideia de
lho faça sentido pra ele. Para isso, ele precisa de uma ter um salário em prol de um processo coletivo e que a mídia é um partido nunca foi tão concreta
gestão muito sólida e que existam pessoas dedicadas de um objetivo comum. Cada um está investin- - a mídia está no centro do debate sobre poder,
a organizar, estimular e inspirar. do sua vida naquilo ali e isso não tem preço. O sobre direitos, sobre sociedade civil, sobre o pró-
mercado nunca vai conseguir absorver esse tipo prio processo democrático.
Z: Você já tinha como objetivo seguir na mídia inde- de desejo e disposição das pessoas. E no lado
pendente? do crescimento eu acho que é um pouco isso de Z: A Mídia Ninja sempre se posiciona politicamen-
RV: Sim, sempre tive um tesão grande por comunica- romper a bolha e falar com o desorganizado. O te. Para você, qual a importância desse posiciona-
ção. Não tinha essa ideia do jornalismo independente objetivo é chegar até a vó de alguém, que não está mento por parte dos veículos?
porque não era uma realidade, mas tinha o sonho. A envolvida naquilo, mas viu e falou “poxa, tem um RV: Acho que se assumir politicamente é uma ques-
gente até brinca, todo mundo quando era mais novo contraponto essa informação, não é só essa fon- tão central para a gente e deveria ser para todos os
na fotografia sonhava em trabalhar na National Ge- te”, para gerar esse questionamento nas pessoas veículos. A questão não é você ser parcial ou não:
ographic, mas nem imaginava o quão corporativo, o em relação a de onde vem a informação. você tem que deixar nítido o seu lugar de fala, da
quão ligado ao século 20, é a estrutura de uma revista onde vem sua opinião. A gente tem um mito da im-
como aquela; uma mega corporação. E hoje a gente parcialidade no Brasil, perpetuado principalmente
descobre que o nosso sonho é trabalhar na Mídia Nin- “A QUESTÃO NÃO É VOCÊ SER porque a academia prepara as pessoas para o mer-
ja, é criar o nosso próprio sonho. Se você ficar espe- cado de trabalho. Esse conceito isenta os veículos
rando alguém vir te contratar para fazer o trabalho PARCIAL OU NÃO: VOCÊ TEM de serem identificados quanto grupos políticos; eles
que você quer, você pode passar a vida inteira espe- saem desse radar e as pessoas entendem o que eles
rando. Mas você pode juntar amigos que tem um inte- QUE DEIXAR NÍTIDO O SEU publicam como realidade, têm dificuldade de inter-
resse comum e amanhã mesmo fazer o que sonha, in- pretar. A gente não acredita de maneira nenhuma na
dependente se isso dá dinheiro ou não. Você tem um LUGAR DE FALA” imparcialidade. Toda opinião emitida tem um co-
ecossistema de mídias independentes hoje no Brasil nhecimento prévio.
que é reflexo de um dos países com a maior concen- Z: Como você acha que a mídia tem cumprido seu
tração midiática de poder. São sete famílias que con- papel nesse momento politicamente instável do Z: Considerando esse posicionamento, como é a
trolam praticamente tudo. Mas, e não é nem a gente país? Como ela tem influenciado a população? participação das pessoas nas suas páginas?
que fala isso, e sim o jornalista Glenn Greenwald, que RV: O golpe é institucional, jurídico e midiático. RV: Não temos medo de enfrentar, de comprar des-
falou com a gente esses dias, que o Brasil, por ter essa A mídia é corresponsável no processo de quebra gaste. Se temos uma opinião política formada, nós
concentração, acabou gerando também a mídia inde- democrática que a gente viveu nesse último ciclo. vamos defendê-la. Não somos refém do nosso públi-
pendente mais potente do mundo. Como sempre, foi um componente de desestabi- co, nesse sentido. Ao mesmo tempo, nosso processo

12 • DEZEMBRO | 2016
de produção de conteúdo é extremamente conec- a mídia, de fato, emburrece as pessoas porque in- na sociedade, entendendo que a soma deles é que vai
tado com o público. E público entre aspas, porque teressa a ela, aliada ao status quo político, que nin- conseguir superar a crise e começar a reconfigurar
acho que a dinâmica das novas mídias supera essa guém consiga ser questionador, crítico. Então, acho um processo político no Brasil. Sobre a polícia, vá-
história de emissor e receptor. Tem momentos que que essa questão não é das redes sociais: é uma rias pessoas da Mídia Ninja já foram presas por es-
o Ninja tem 40 mensagens por minuto chegando por questão da sociedade. tarem transmitindo ao vivo. Em 2013 isso foi muito
mensagem privada no Facebook e pessoas da equipe forte e continua acontecendo. Mas a gente entende
que ficam o tempo todo atendendo esses que estão que a visibilidade é a nossa maior defesa. Vamos nos
lendo o nosso trabalho. A era das redes está trazendo “BOA PARTE DAS NOSSAS posicionar cada vez mais e criar uma situação em
coisas novas e a gente tem que aproveitar isso. que mexer com a mídia independente também seja
PAUTAS SÃO CONSTRUÍDAS um problema para eles.
Z: Temos visto jornalistas sendo criticados, tanto
pelos veículos em que trabalham, quanto pelo pú- EM DIÁLOGOS DIRETOS COM Z: Qual momento foi o mais marcante para você fa-
blico, por assumirem suas posições políticas. Como zendo coberturas para a Mídia Ninja?
os colaboradores da Mídia Ninja são instruídos em OS MOVIMENTOS SOCIAIS” RV: Tem coisas muito emocionantes, como você
relação a isso? acompanhar um acampamento de sem-teto. Eles
RV: Não tem nenhum problema. O Ninja nasce des- Z: Como você avalia a mídia brasileira no que diz ocupando um terreno, montando suas próprias
sa posição política assumida, de uma mídia que está respeito à cobertura de movimentos políticos? casas, seus barracos de lona, na esperança de que
mostrando o que ninguém está. Cada pessoa que RV: Desastrosa. Essa comunicação que eles fazem aquilo vá possibilitar ter uma casa própria e conse-
trabalha ali tem uma opinião própria e está dispu- dos movimentos é sempre na tentativa de crimina- guir sair da ditadura do aluguel. A pauta indígena
tando o espaço da sua opinião, tentando convencer lizar, desmoralizar, tirar visibilidade. Por exemplo, também; estar em contato com os povos originários,
mais gente de que aquilo é importante. Boa parte teve uma manifestação em São Paulo contra a PEC 55 seja nas aldeias, na resistência deles ou na linha de
das nossas pautas são construídas em diálogos di- e isso apareceu muito pouco. Se fosse um ato a favor frente contra os fazendeiros, aquela coisa tensa que
retos com os próprios movimentos sociais. Eles são do impeachment, teria 20 minutos no Fantástico. tem cheiro de morte. Pra mim, um momento es-
os atores do processo; então, é deles que a gente vai A gente tem que ter essa dimensão de que a mídia pecialmente tenso que foi a cobertura da queda do
escutar a opinião. Essa proximidade com os movi- corporativa é inteligente. Ela não deixa muitas ve- Mohamed Morsi, no Egito. Em agosto de 2013, o país
mentos nos dá tranquilidade de entender que não zes de fazer a cobertura, mas no grau de relevân- começou a explodir nas ruas, estimavam que quase
estamos defendo posições do Ninja enquanto indiví- cia que ela dá pra cada notícia é que você entende. 30 milhões de pessoas estavam nos protestos. Passei
duos, mas sim posições coletivas. É nos detalhes que está a manipulação da mídia. É uns sete dias cobrindo as ruas do Cairo no meio de
na omissão. Não é só uma questão de “eu acho que a uma revolução, da derrubada de um presidente elei-
Z: Como você avalia a relevância da internet e das mídia manipula”. Não, você pode calcular o tempo, a to, pelo próprio povo que o elegeu. Aquilo foi tenso,
redes sociais no contexto político atual? O quanto prioridade que ela dá para cada pauta. Nas redes é a algo que eu nunca tinha vivenciado, noites com 50
elas ajudam ou prejudicam a cobertura? mesma coisa: quando é uma denúncia contra o Lula, mortos. O Egito passando por um processo de rom-
RV: A Mídia Ninja e qualquer outro veículo de co- fica três dias na capa. Quando é contra Aécio, Serra pimento democrático; talvez, possa-se dizer que
municação independente não existiria se não fos- ou Cunha, aí não é corrupção, não é um escândalo. nunca teve uma democracia de fato. Lá, é terrível a
sem as redes sociais, mesmo com todas as críticas perseguição às mídias. Tirar foto de polícia em uma
que possamos ter em relação ao Facebook. Não tem Z: Em manifestações, como é a reação dos partici- manifestação pode significar ser preso. Além de só
como negar que foi a partir dessas plataformas que pantes e da polícia com a mídia? falar inglês, em um país que todo mundo fala ára-
foi possível existir um trabalho como o que a gen- RV: A gente é recebido de forma muito interessan- be, eu tinha muita cara de gringo, então rolava mui-
te faz. O que tem é a contradição, mas quem vive te nas manifestações progressistas. No nosso cam- to preconceito. Essa cobertura foi uma coisa muito
em um sistema capitalista e quer transformar ele po político, de defesa da democracia e dos direitos, marcante pra mim.
numa coisa diferente tem que lidar com isso. En- a Mídia Ninja tem uma aceitação muito grande. As
tão, eu discordo dessa leitura de que as redes sociais pessoas participam, querem gerar conteúdo. Já em Fernanda Struecker
emburrecem as pessoas. A questão da educação no uma manifestação de direita, falar que é da Mídia fe.struecker@gmail.com
Brasil é séria; a educação pública é muito defasa- Ninja é quase uma ofensa. A esquerda tem muitas Luiza Giombelli
da. Você acha que ela vai gerar pessoas que estão posições e o Ninja opera no sentido de dar visibilida- luizamgiombelli@gmail.com
conscientes do seu tempo? Não necessariamente. E de para a diversidade de pensamentos que existem

Pelas lentes de Rafael Vilela, Rafael é fotógrafo da


a Mídia Ninja oferece Mídia Ninja desde a
a proposta de ser um criação do grupo e
contraponto e mostrar cobre as manifestações
a realidade das ruas políticas que aconte-
brasileiras que a mí- cem no país, assim
dia tradicional não como pautas relacio-
está mostrando, nadas à questões
ou muitas vezes, sociais como o
desmoralizando Movimento dos
e distorcendo Sem-Teto, resis-
movimentos tência indígena
sociais. e a legalização
das drogas.
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DEZEMBRO | 2016 • 13
TRADIÇÃO
Gustavo Falluh/Zero

Vestindo trajes de época e caminhando pelas ruas de Santo Antônio de Lisboa, integrantes da Sociedade Histórica Desterrense relembram pontos tradicionais e curiosidades

Passeio pela história nas ruas da capital


Grupo preserva patrimônio cultural da cidade relembrando o passado de Florianópolis

P
auline Kisner chama a ticos ficam devidamente guardados acadêmico, que também teme pela gada a segundo plano, o pesquisador
atenção por onde passa. O dentro das mochilas de seus alunos. perpetuação de estereótipos sobre o é desafiado a procurar casos esqueci-
vestido armado com a aju- passado. Atualmente, a única entida- dos com o passar do tempo. “Eu con-
da de crinolina, a postura Entre parques e museus de que reconhece esforços de grupos sigo dizer qual é a rotina de uma dona
ereta pelo uso de esparti- Frutas, doces e xícaras de chá se como o de Pauline é a Rede Brasileira de casa na Inglaterra em 1860, mas
lho e os cabelos enfeitados com flo- espalham sobre toalhas de renda es- de História Pública (RBHP). não no Brasil. E não é que não tenha
res dão a impressão de que ela saiu tendidas no gramado de um belo par- As atividades da SHD podem ser fonte, ela não é explorada”, lamenta.
das páginas de um livro de história. que. Ao redor delas, estão sentadas divididas em dois grupos: à paisana e Já em termos de figurino, é preciso
Enquanto caminha pelas ruas de damas que usam vestidos bufantes e a caráter. Com as roupas do dia a dia, estar disposto a gastar ou aprender a
Santo Antônio de Lisboa, pessoas se cavalheiros com trajes bem cortados. Pauline promove um grupo de estudos costurar para curtir o hobby.
aproximam para pedir fotos ou per- Eles conversam sobre história, litera- chamado Café com História, em que A turismóloga Carolina Felipe, par-
guntar se ela é atriz. Alguns até pe- tura e moda. Esses encontros foram discute temas de interesse dos partici- ticipante da SHD desde o início, está
dem para ver o que há por baixo de batizados de piqueniques vitorianos e pantes com a ajuda de textos. Os trajes na praça Getúlio Vargas, em frente à
tantas camadas de tecido. acontecem nas principais cidades do de época são retirados dos armários Igreja Nossa Senhora das Necessida-
Quando se mudou para Floria- Brasil desde 2009. apenas para piqueniques em parques, des, em Santo Antônio de Lisboa. Seu
nópolis com a mãe, em 1997, Pauline Pauline organizou a primeira edi- roteiros pelo Centro de Florianópolis e espartilho está frouxo. Pauline, a mais
começou a explorar o Centro para se ção realizada em Florianópolis, em visitas guiadas a museus. hábil com reparos e ajustes, pede a ela
familiarizar. Foi assim que descobriu 2010. Porém, a popularização do que segure a parte de baixo da saia de
a cultura, as ruas e os prédios locais. formato do evento fez com que ela Histórias sob trajes passeio enquanto aperta a amarração
Alguns anos depois, ela ingressou no pensasse em inovações para não se A partir de fontes primárias, Pau- em suas costas. Carolina sorri – sabe
curso de História da Universidade Fe- limitar a reproduções estereotipa- line Kisner lidera a pesquisa para a que é sempre Pauline quem socorre
deral de Santa Catarina (UFSC). Seus das da Era Vitoriana. Foi assim que reconstrução histórica. O período nos momentos de aperto.
trabalhos acadêmicos exigiam consul- nasceu a Sociedade Histórica Des- que costumam estudar abrange da “Eu não costuro, infelizmente.
tas a acervos e, aos poucos, ela acabou therrense (SHD), grupo que promo- Revolução Francesa (1789-1799) até Muitas de nossas roupas precisam ser
se encantando pelo passado da cidade. ve atividades educativas ligadas à o início da Primeira Guerra Mundial costuradas. Às vezes, a gente pega tu-
Hoje, Pauline dá aulas de história e história e ao patrimônio cultural da (1914-1918). De acordo com a his- torial na internet. A maioria costura,
geografia em uma escola particular de cidade no mesmo ano. toriadora, os últimos dois roteiros tem habilidade com artes manuais.
São José. Lá, ela tem toda a liberdade A SHD trabalha com o conceito de exigiram entre três e seis meses de Eu, como não tenho, peço ajuda para
para trabalhar do jeito que gosta: ves- reconstrução histórica, que é a prá- planejamento, investidos em desco- quem consegue”, comenta a turismó-
tida com roupas inspiradas em outros tica de pesquisar, simular e compre- brir como os fatos da época influen- loga. Segundo as participantes, para
períodos, usando objetos originais de ender a vida de outros tempos. No ciaram alguns personagens. a confecção de um traje novo, a pri-
décadas passadas e empregando jogos entanto, a etapa da encenação ainda Mas ela conta que não é tarefa fácil. meira etapa é encontrar um tecido
de tabuleiro clássicos. Os livros didá- é vista com desconfiança pelo meio Como a história do cotidiano é rele- parecido com o da época. Os bre-

14 • DEZEMBRO | 2016
Kamylla Silva/Zero

Gustavo Falluh/Zero
chós da rua João Pinto, no Centro gênero que, em vez de pensar o mundo
Histórico, costumam ter algumas do futuro, cria alterações tecnológicas
peças que se encaixam no contexto. no passado –, ficou conhecido pelo
Em último caso, o grupo apela para grupo como o escritor que ambienta-
panos de cortina. va histórias no século 19. Juntaram-se
Como os moldes das roupas são os interesses comuns. De um lado, a
trazidos de fora, a montagem é a par- paixão pela época como motivador ge-
te mais complexa, conta a secretária ral; por outro, o objetivo particular do
Laura Pereira. Apesar de saber costu- jornalista de compreender o contexto.
rar, ela gastou cerca de R$ 200 com o “Fui dar mais credibilidade para os
traje que veste e garante que este teve ambientes que eu descrevia”, explica.
baixo custo. Interessada por cosplay –
a representação de um personagem Uma história de pessoas comuns
a caráter –, apaixonou-se pela bele- Os livros didáticos estão cheios de
za das vestimentas e quis participar datas, heróis e fatos que parecem ter
da SHD. “No meu caso, foi o fascínio pouca relação com o presente. Com as
pelo estético. A roupa chama atenção. reconstruções, a historiadora Pauline
Mesmo as mais simples são normal- Kisner busca mostrar que a história é
mente muito bonitas”. feita por pessoas comuns e vive em de-
Os homens, em compensação, têm talhes do nosso cotidiano. “Existe uma
uma certa vantagem. Eles adaptam o produção acadêmica maravilhosa no
que já existe para ser transformado Brasil, mas a academia não consegue
no figurino. “Por exemplo, este cra- levar isso ao grande público. O conhe- Roupas e acessórios usados são cuidadosamente selecionados e produzidos por eles
vat a Pauline achou o molde e fez em cimento gerado dentro da universida-
casa. A camisa eu posso levantar a gola de precisa circular”, critica.
e vira de época. Só a cartola que deu Outro grande objetivo da SHD é Era Vitoriana: marcada por mudanças
mais trabalho, precisei encomendar”, dar um novo significado ao conjunto
demonstra Sandro Zamboni, marido do patrimônio histórico-cultural de tecnológicas, na moda e culturais
de Pauline e ilustrador oficial da SHD. Florianópolis. “Criamos mecanismos
Gustavo Falluh/Zero para que as pessoas construam senti- A chamada Era Vitoriana corresponde ao período entre 20 de junho
dos. Não é só fazer com que elas res- de 1837 e 22 de janeiro de 1901, quando a rainha Vitória esteve à frente do
peitem uma fachada; precisamos con- Império Britânico. O reinado mais longo da história da Grã-Bretanha até
tar as histórias que estão por trás dela aquele momento – ultrapassado por Elizabeth II em 2015 – foi marcado por
e afetam o mundo em que vivemos prosperidade econômica, efervescência cultural e orgulho nacional.
hoje. Um prédio não deve ser preser- Politicamente, a Era Vitoriana costuma ser lembrada pelo neocolonia-
vado só porque tem mais de 200 anos”, lismo. Em 1882, a Grã-Bretanha já possuía o maior império da história. No
acredita a historiadora. final do reinado de Vitória, seus domínios se estendiam por cerca de um
Contudo, reconstruir um período quinto da superfície terrestre e quase um quarto da população mundial
histórico é mais complexo do que devia lealdade a ela.
encontrar um tecido semelhante ao A Revolução Industrial (1760) impactou a Era Vitoriana de maneira signi-
utilizado em determinada época. ficativa. Os avanços tecnológicos no desenvolvimento de máquinas a vapor
No Brasil, o acesso às fontes origi- aumentaram a produtividade das fábricas. A construção de ferrovias, ca-
nais costuma ser difícil. Além dis- nais e estradas permitiu que matérias-primas e bens de consumo fossem
so, alguns dos principais capítulos transportados mais rapidamente.
da história de nosso país – como a O período viu muitas mudanças no campo da moda, incluindo transfor-
escravidão e a Guerra do Paraguai mações nos estilos das roupas, nas tecnologias de fabricação e nos méto-
(1864-1870) – exigem um olhar mais dos de distribuição. O avanço das técnicas de impressão incentivou a proli-
sensível para que sejam tratados em feração de revistas e permitiu que as massas participassem das tendências,
toda a sua complexidade. abrindo caminho para o consumo e a publicidade.
Entre os capítulos polêmicos
da história da cidade, a SHD ainda
Sandro exibe o cravat, usado no pescoço não abordou a Revolução Federalis- Pontos históricos do Centro de Florianópolis
ta (1893-1895), que foi marcada por
“Grande bagunça democrática” fuzilamentos na Fortaleza de Santa Casa de Câmara e Cadeia: Construída Igreja de Nossa Senhora do Rosário
A organização da SHD reúne um Cruz de Anhatomirim e serviu como entre 1771 e 1780, abrigava os presos e Benedito: A Irmandade de Nos-
grupo fixo de oito membros, que es- pretexto para a mudança do nome no piso inferior e a Assembleia Le- sa Senhora do Rosário dos Homens
tão em todos os eventos e possuem de Nossa Senhora do Desterro para gislativa Provincial no superior. Deve Pretos ergueu a segunda igreja mais
formações diferentes. O público varia Florianópolis. “Achamos que isso receber o Museu de Florianópolis em antiga de Florianópolis para acolher a
entre 15 e 30 pessoas. Embora lidere vai dar pano pra manga. Então, não 2017. religiosidade do povo negro.
o grupo, Pauline garante que não é vamos mexer nesse vespeiro por Museu Histórico de Santa Catarina: Igreja de Nossa Senhora do Bom Parto:
nenhuma ditadora. “Nós somos uma enquanto. Mas está na nossa lista”, Localizado Construída por devotos da confraria
grande bagunça democrática. Todo conta Pauline. no Palá- da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
mundo fala, grita e briga, mas a gente A historiadora também reconhece cio Cruz e São Benedito entre 1841 e 1861, rece-
chega num denominador comum no que a SHD ainda está presa ao modo e Sousa, bia o mesmo público humilde.
final”, diz a educadora. como as classes mais altas das so- conta Teatro
Qualquer membro da equipe pode ciedades de outras épocas se ves- com cinco Álvaro de
sugerir encontros e, ao surgir um tiam. Ela atribui o posicionamento frentes de Carvalho:
problema para ser resolvido, o en- do grupo à escassez de referências acervos em exposição: bibliográfico, Pela ne-
frentamento é multidisciplinar. Ali- visuais sobre o vestuário das cama- arquivístico, arqueológico, museológi- cessidade
ne Estacheski, com formação na área das mais baixas. “Somos criteriosos. co e arquitetônico. de expres-
médica, tem vivência em teatro e aju- Tentamos resolver com pesquisa, são em
da na parte da decoração. Carolina mas lidar apenas com descrições Praça XV Desterro,
Felipe, por sua vez, é pós-graduada textuais para criar uma roupa é de No- um grupo de pessoas ligadas à cultura
em marketing, mas se encantou por muito difícil. Se não temos fontes, vembro: incentivou a criação de um teatro. A
turismo e contribui com a divulga- não fazemos”, explica. Representa inauguração oficial ocorreu em 1875.
ção. Sandro Zamboni é responsável o ponto de Avenida Hercílio Luz: Antes da cons-
pela identidade visual. Gustavo Falluh expansão trução da avenida, o Rio da Bulha
Quando o assunto é literatura, Ro- gustavofalluh@gmail.com inicial da corria pelo local e reunia lavadeiras.
meu Martins é acionado. Autor de Kamylla Silva Vila de Nossa Senhora do Desterro. No segundo governo de Hercílio Luz,
contos de ficção científica steampunk – kamylla.freelancer@gmail.com Recebeu a figueira centenária em 1891. o curso d’água foi canalizado.

DEZEMBRO | 2016 • 15
TENDÊNCIA

Mercado do rock inova para as mulheres


Amante do gênero, Luana Beling viu espaço no mercado e abriu loja de artigos femininos

A
Fotos: Pedro Cureau/Zero
globalização e a busca por muitas roupas acessó-
novas tendências na moda rios bonitos que não
promovem, de tempo em são da modinha”. Seu
tempo, o surgimento de envolvimento com o
diferentes segmentos para assunto foi influência
atender a exigência de públicos cada importante na defini-
vez mais alternativos. Este cenário é ção do público-alvo da
propício para a ação de empreendedo- loja, que trabalha ape-
res, bastando identificar a existência nas com produtos fe-
da demanda e abrir o negócio próprio. mininos. Aquele é o seu
A parapsicóloga Luana Beling conse- mundo. Se atendesse o
guiu ir além disso: viu a oportunidade público masculino, não
de empreender em uma área que ela poderia se dar ao luxo
gosta. Há pouco mais de um mês, abriu de escolher produtos
a loja Made in Rock, especializada em de acordo com seu gos-
roupas e acessórios que remetem ao to pessoal, nem con-
estilo que vai além da música. tar com alguns pitacos
A lousa na entrada, com uma arte da filha. A vendedora
em giz que muda de cores constante- acredita que teria mais
mente devido à luz, lembra os neons clientes homens do que
de pubs como o Cavern Club, onde os mulheres caso atentas- A parapsicóloga, Luana Beling uniu paixão pelo rock à vontade de empreender e ter o próprio negócio
Beatles começaram sua carreira. Esco- se para os dois gêne-
lhida pessoalmente pela proprietária, ros, mas prefere ter cautela e estudar tos que eventualmente podem sair de Com o passar dos anos, eram sem-
a música Wonderful Tonight, de Eric o mercado que ainda não domina antes moda, como o spike (tachinhas) ou o pre as passarelas que ditavam as ten-
Clapton, destaca ainda mais o estilo de investir mais e expandir os negócios. xadrez, são encontrados nesse tipo de dências. Ana Marta Flores, jornalista
do local. A luz baixa realça a cor preta, O rock, desde seu surgimento em lojas com mais facilidade. Muitas pes- especializada no assunto, defende
que pinta desde as paredes até a roupa meados da década de 1950, é um gran- soas vão até a Made in Rock atrás de que atualmente o caminho é inverso:
da mulher atrás do balcão. Mas quem de formador de tendências. Do ponto peças que não estão em abundância a concepção de estilo está nas ruas,
enxerga rigidez e falta de sensibilidade de vista musical, ele trata apenas da no mercado: “independente de estar nas ideias de pessoas comuns, que
através do vestuário se espanta com a audição, não tem sabor, nem imagem. ou não estar na moda, a ideia da loja é influenciam o que vai ou não ser exi-
simpatia e a timidez da vendedora, Em decorrência disso, por necessidade, essa. Sempre vai ter aqui”. bido nos grandes desfiles: “o poder
que, enquanto tentava fugir da lente estas tendências foram se expandindo As fontes alternativas no merca- de criação dessas pessoas é enorme.
da câmera, contou de onde surgiu a e ultrapassando o conceito inicial. O do não se restringem mais somente a Exemplo disso são as customizações
ideia de abrir o estabelecimento. sabor de uma música do Ramones, por produtos, se estende também a pro- de peças que seriam descartadas”.
Na busca por fornecedores para uma exemplo, equivale ao de uma cerveja cura por informação sobre o assun- A procura por produtos em lo-
loja de calçados – seu primeiro em- bem amarga e gelada. Já visualmente, to. O jornalista Artur Felipe Figueira, jas como a Made in Rock e por in-
preendimento –, Luana encontrou um as músicas são concebidas pela roupa. que cobre eventos, acredita que hoje formação em blogs e vlogs, aliada
profissional especializado em acessó- O estilo, nas suas variações que pare- as pessoas preferem dicas de moda às tendências que surgem nas ruas,
rios de rock. Se identificando com o es- cem infinitas, virou padrão de compor- da internet, de blogs ou vlogs, do que reforça o mercado alternativo. Este
tilo, a parapsicóloga passou a trabalhar tamento, depósito e fonte de conheci- o conteúdo publicado pela imprensa caráter singular, para Luana, permi-
com esses produtos no antigo estabe- mento cultural, e, é claro, um segmento especializada. “Elas estão interessa- te ainda mais liberdade para esco-
lecimento. Quando se deu conta que da moda. É como se nascessem exten- das na experiência pessoal de quem dá lher seu estilo. “A moda dita muita
quase todas as bolsas que vendia eram sões correspondentes ao sentido da as dicas”, conta. As fontes alternativas coisa, mas você não é obrigado. Meu
daquele segmento da moda, percebeu audição, que juntas constituem per- permitem que o público crie uma rela- público aqui é outro, é o que tem o
que era hora de mudar. sonalidades, como as das pessoas que ção mais próxima com o indivíduo que seu estilo. Independente de estar ou
Luana não é apenas uma empre- procuram a loja de Luana. elas seguem nas redes sociais. Figueira não na moda, é disso que eu gosto e
endedora do ramo, é também con- O público, contudo, não fica restrito garante, contudo, que as revistas tra- ponto”.
sumidora. Orgulhosa, diz que a filha àquele que consome somente o vestu- dicionais não vão sumir do mercado,
adolescente herdou o mesmo estilo da ário rock. “Vem muita gente que não porque uma parte das pessoas ainda Fernando Lisbôa
mãe: “eu gosto do que é diferente, mas é nem do estilo alternativo. Que busca quer um conhecimento mais aprofun- fernandolisboaes@gmail.com
bonito. Nunca gostei daquela ideia de um ou outro acessório para comple- dado, que não fica restrito a impres- Pedro Cureau
andar todo mundo igual. Aqui eu tenho mentar o visual”. Além disso, produ- sões e experiências próprias. pedrohjcureau@gmail.com

Negócio começou com a venda de bolsas estilizadas para os amantes da moda rock e, com o tempo, se transformou em uma loja especializada neste segmento de mercado

DEZEMBRO | 2016 • 16

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